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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIENCIAS SOCIAIS

O produtor como autor

O digital como ferramenta, fetiche e estética

TATIANA BRAGA BACAL

2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O produtor como autor


O digital como ferramenta, fetiche e estética

TATIANA BRAGA BACAL

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós‐Graduação em Sociologia e
Antropologia, IFCS, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor
em Antropologia

Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves


Co‐orientadora: Santuza Cambraia Naves

Rio de Janeiro
2010

ii
O produtor como autor
O digital como ferramenta, fetiche e estética

TATIANA BRAGA BACAL

Orientador: José Reginaldo Gonçalves


Co‐Orientadora: Santuza Cambraia Naves

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós‐Graduação em Sociologia e


Antropologia, IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Antropologia Cultural.
Aprovada por:

____________________________
Presidente, Prof. José Reginaldo Santos Gonçalves

_______________________________
Profa. Santuza Cambraia Naves

_______________________________
Profa. Els Lagrou

_____________________________
Prof. Marco Antonio Gonçalves

_______________________________
Prof. Otávio Guilherme Alves Velho

_______________________________
Prof. Amir Geiger

Rio de Janeiro
2010

iii
Bacal, Tatiana Braga

O produtor como autor. O digital como ferramenta, fetiche e estética.‐ Rio de


Janeiro: UFRJ/ PPGSA, 2010.

xiii, 259 f.: il. 31 cm.

Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves


Co‐Orientadora: Santuza Cambraia Naves

Tese (doutorado) – UFRJ/ IFCS

Programa de Pós‐Graduação em Sociologia e Antropologia, 2010.

Referências Bibliográficas: f. 259

1. Palavras chave : Antropologia da Arte, Antropologia da Música,


Subjetividade, Autoria, Tecnologia, Digitalização.

I. Gonçalves, José Reginaldo Santos. II. Universidade Federal do Rio de


Janeiro, Programa de Pós‐Graduação em Sociologia e Antropologia Social. III.
O produtor como autor. O digital como ferramenta, fetiche e estética

iv
O produtor como autor
O digital como ferramenta, fetiche e estética

TATIANA BRAGA BACAL

Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves


Co‐Orientadora: Santuza Cambraia Naves

Esta tese pretende investigar o surgimento de novos agentes artísticos que se autodenominam
‐ ou são denominados ‐ produtores e que atribuem “autenticidade” às suas criações ao
perceberem as “tecnologias digitais” como parte integrante de criação e inspiração. Sugiro que
os produtores se classificam através de várias autodenominações e esta categoria vem sendo
utilizada como forma de cobrir um “vazio” de definição destes agentes. A força da categoria é
criar mediações entre várias esferas de atuação, o que significa percebê‐la aqui na tese tão
ambígua como se apresenta para os personagens.

Ao considerar esses produtores enquanto autores, esta tese se propõe a fazer uma
contribuição para a discussão sobre as novas modalidades de autoria a partir da sua relação
com os modelos digitais de criação. O digital é por vezes considerado pelos agentes uma
ferramenta de trabalho, não demarcando um limite para o resultado final do processo criativo.
Para outros, o digital é percebido como uma nova plataforma de criação que impõe um novo
paradigma de criação e de visão de mundo, configurando‐se dessa forma como uma estética.
E, ao mesmo tempo, a tecnologia digital se configura enquanto fetiche a partir do momento
em que possibilita não somente fazer uma arte, mas também fazer o produtor. Esses
produtores como autores desta época seriam assim, eles próprios, ferramentas, fetiches,
estéticas. Neste aspecto, os produtores e as suas criações em um sentido amplo são tomados
metodologicamente e conceitualmente como “pessoas distribuídas”.

Esta tese se baseia em um trabalho etnográfico com os produtores tentando reconstruir seus
espaços de socialidade, físicos e virtuais; assim como observar os seus processos criativos e as
suas performances.

v
The producer as author
The digital as tool, fetish and aesthetic

TATIANA BRAGA BACAL

Orientador: José Reginaldo Santos Gonçalves


Co‐Orientadora: Santuza Cambraia Naves

This Dissertation aims to investigate new artistic agents who identify themselves – or are
defined as – producers, and who attribute “authenticity” to their creations and perceive
“digital technologies” as important agents for their creation and inspiration. I suggest that
these producers classify themselves through different auto‐denominations and that this
category is being used to cover up an “empty space” of definition to these agents. The strength
of the category lies in creating mediations between different spheres of action; in this sense,
this category must be understood in all its ambiguity as it is approached by the characters
presented in this work.

When presenting these producers as authors, this work proposes a contribution to the
discussion about new models of authorship created in relation to digital forms of creation. The
digital is at times considered by the agents a “tool”, not inflicting a specific line on the end
result of the creative process. For others, the digital is contemplated as a new platform of
creation that in itself imposes a new paradigm of creation and world view, and is though
interpreted as an “aesthetic”. Digital technology can also be perceived as a “fetish”, at the
same time that it enables the creation of art but also of the producer himself. The producers as
authors of this time can also be perceived as tools, fetishes, aesthetics. In this aspect,
producers and their creations will be methodologically and conceptually considered
“distributed persons”.

This Dissertation is based on ethnographic Fieldwork with producers, trying to accompany


them in their spaces of sociality, physical and virtual, and also observe their creative processes
as well as their performances.

vi
Aos meus pais, Ana e Azril que, mesmo ela “Fama” e
ele “Cronopio”, compartilham o gosto pela leitura e
souberam transmiti‐lo aos seus filhos.

Aos meus queridos avós, Megan e Humberto.

Ao Octavio e ao Theo, com amor.

vii
Agradecimentos

Antecipo‐me a informar que talvez a minha tentativa de ser econômica nos agradecimentos
seja falida. São vários anos desde que este projeto teve início, e não foram poucas as pessoas
que estiveram presentes e me ajudaram no processo. Sinto que estes foram anos de
verdadeira formação, de “aprender a aprender”, como diria Gregory Bateson, as diversas
atividades que se agregam ao ofício do antropólogo.

Gostaria de agradecer ao meu orientador, o Professor Reginaldo Santos Gonçalves, que desde
a primeira conversa abraçou a minha ideia, e enriqueceu o meu trabalho com indicações de
leituras valiosas, comentários e sugestões, sempre com entusiasmo e crença que me
sustentaram ao longo do percurso.

Esta tese contou com a coorientação da Professora Santuza Cambraia Naves. Já são quase
doze anos que Santuza acompanha e impulsiona meu desenvolvimento acadêmico e
profissional e a minha vida. Todos esses aspectos estão nela entrelaçados, e os meus
agradecimentos extrapolam o espaço de realização desta tese. Limito‐me a agradecer o seu
perfeccionismo, a sua leitura detalhista, os seus insights brilhantes e a forma final mais
cuidadosa que ganhou o meu texto a partir do seu olhar.

Aos membros da banca de qualificação, os professores Els Lagrou e Otávio Velho, pelas
indicações bibliográficas e pelos caminhos sugeridos para a pesquisa naquele momento. À
Professora Els gostaria de agradecer também especialmente o curso tão inspirador que fiz com
ela, de Antropologia da Arte, que me animou a realizar uma etnografia de uma exposição em
São Paulo, logo que entrei no doutorado. A partir desse curso foi possível elaborar uma série
de leituras importantes para o meu projeto de doutorado. Ao Professor Otávio gostaria de
agradecer por ser uma referência de pensamento, a quem tenho o privilégio de manter como
interlocutor ainda hoje.

Ao Professor Marco Antonio Gonçalves por ter reaberto para mim uma área de conhecimento,
com seu curso Antropologia Visual, e também pelos comentários e pela leitura dos seus
trabalhos. Ao Professor Emerson Giumbelli, pela possibilidade de praticar o meu estágio
docência no curso Música Urbana Brasileira, ministrado por ele e pelo Professor Nilton Santos.

viii
Ainda, ao Programa PPGSA e à Capes, por me outorgarem uma bolsa de doutorado, e também
à Claudinha à Denise, por toda a ajuda e assistência que me deram.

Também gostaria de agradecer as conversas que tive com Leila Amaral, Amir Geiger e Jayme
Aranha que igualmente contribuíram para enriquecer este trabalho.

Duas pessoas foram essenciais para a realização desta tese e acompanharam as leituras desde
as minhas primeiras versões: Lecticia De Vincenzi e Octavio Bonet. É graças à minha tia Leta
que a tese está escrita de acordo com as normas do novo dicionário; ela sempre esteve
disposta, nos horários menos previsíveis, para ler os meus originais. Octavio esteve
permanentemente perto, assumindo no final todo o trabalho de formatação da tese,
contribuindo de forma constante com comentários, sugestões e com o seu companheirismo.

Gostaria de fazer um especial agradecimento às pessoas com quem tive o privilégio de


compartilhar os anos em que atuei como pesquisadora do Núcleo de Estudos Musicais
(CESAP/UCAM) até 2009. Ali se formou um grupo de amizades e de troca intelectual que deixei
com muitas saudades. Fred Coelho, companheiro e amigo de tantos anos, foi junto com ele
que aprendi a trabalhar no espírito de colaboração que Santuza engendra em torno dela;
Fernanda Deborah, com o orgulho de vê‐la crescer ao longo do tempo em que trabalhamos
juntas; Fernanda Eugenio, também por tantos anos solidários desde os tempos do mestrado.
João Francisco de Lemos, agora em Londres, faz muita falta, e Helena Gomes que mostra como
a tecnologia é mesmo um “milagre”, pois, mesmo já morando na Bélgica há alguns anos, está
comigo todos os dias. Esse espaço de troca intelectual, de conversas, de tanto trabalho
interessante gestado existiu por causa da Professora Maria Isabel Mendes de Almeida.
Gostaria que soubesse, Bebel, como nos proporcionou um campo privilegiado de aprendizado,
de trabalho e de amadurecimento ao longo de todos estes anos.

Também gostaria de agradecer aos colegas que dividiram comigo esta vivência tão peculiar de
“estar fazendo tese”, Mylene Mizrahi, Julio Naves Ribeiro, Jayme Aranha, Anna Paula Vencato
e Andrea Paiva. E aos comentários dos colegas orientandos do Professor Reginaldo, que
participaram do seminário de tese de doutorado em 2007.

ix
A Jonas Lana, Antonia Gama, Emilio Domingos, Mylene Mizrahi e Pedro Peixoto Ferreira,
Fernanda Eugenio e Luiza Leite por contribuírem com importantes conversas para a minha
tese.

Minha família e amigos foram um suporte fundamental em todo este tempo. Gostaria de
agradecer especialmente à minha mãe que se descobriu uma superavó e esteve tão disponível
para distrair o neto enquanto eu precisava trabalhar. E pelo seu carinho e mimos
permanentes. A Tobias Cepelowicz, especialmente por ter me presenteado com a coleção
inteira de Peanuts, em doses homeopáticas, à medida que os volumes saem do forno e
adoçam o coração. À querida Elisa e ao meu irmão Dudu, por estarem por perto e passarem
tempo com o Theo nestas últimas semanas mais atribuladas. Aos meus queridos avós que
entenderam a minha ausência. Ao meu pai que, morando longe, há muito tempo não
consegue desfrutar o quality time ao telefone com a filha. A Luiza Leite, o privilégio de tê‐la
por perto. A Juliana, Byron e Joaquim, que fizeram muita companhia a Octavio e Theo; as
minhas boas vindas à linda Antonia que nasceu bem nestes dias em que termino a tese.
Também a Kika e a Amélia, por serem esses eternos espelhos através dos quais me reconheço.
A Kika principalmente porque teve que ficar sem a amiga durante algum tempo; e a Teresa e a
Tito que também brincaram com o Theo. E ao grande professor da vida, que é David Tucci,
para mim e para tantas pessoas citadas nestes agradecimentos.

Não poderia ter realizado este trabalho sem as pessoas que se dedicaram a passar tempo
comigo, compartilhando as suas experiências, os seus pensamentos, as suas criações, os
personagens desta tese. É verdadeiramente, graças a sua disponibilidade que este trabalho
pôde existir: Alexandre Kassin, Rica Amabis, Lúcio Maia, Bruno Medina, Fred Coelho, Felipe
Vaz, Daniel Castanheira, Ricardo Cutz, Fernando Timba, Fernando Salis e Batman Zavareze,
gostaria de agradecer o rico material que me ofereceram ao longo da pesquisa de campo.

Quando conheci Octavio, ainda não pensava em fazer a minha monografia de conclusão de
curso. São tantos anos passados desde então, tantas etapas atravessadas juntos, com amor,
principalmente nesta aventura que começamos como pais do Theo. E finalmente ao Theo, que
teve que aprender tão novo a dizer que a mamãe estava fazendo “te‐se”.

x
Sumário

Introdução 1

Parte I: Os produtores. Uma autoria ciborgue 11

Capítulo 1: Como transformar uma tendência em campo antropológico 13

Um loop entre a magia e a feitiçaria: “A arte na era da distribuição digital” 18

Os produtores 27

Capítulo 2: Alguns relatos autossimilares: Uma proposta abdutiva ou


como encontrar “os produtores em toda parte” 40

Kassin 49

Rica Amabis 54

Felipe Vaz 58

Daniel Castanheira 60

Timba 67

Fernando Salis 77

Batman Zavareze 81

Capítulo 3: Os produtores‐ciborgues 84

Uma autoria ciborgue 86

Os produtores‐mediadores 97

Mediação Arte‐Técnica 98

Mediação Habilidades Estéticas 105

xi
PLUG‐INS: Os Produtores entre Agências 114

Plug‐in I.1: Fernando Salis. “Veni, Vidi, Verti” – uma relação audiovisual
com a vida em três atos 116

Pós‐fato: Um exercício de (re) contextualização 117

Uma etnografia entre o acontecimento e o desejo 122

Uma amostra audiovisual bem sucedida 132

Uma etnografia das pastas virtuais: considerações sobre a criação


de um banco de dados 139
Extensão Plug‐in 1.1: Crackear e Comprar: posicionamentos ético‐estéticos 148

Plug‐in I. 2: Daniel Castanheira/Hapax “Devir‐33’4” 159

Daniel OnPaper: “O buraco 1” 161

Hapax OnPaper: A invenção do nome pela escrita 164

“Burro sem Rabo” ou Registros como resíduos: Hapax On line 169

33’38 ou 33’4: uma etnoescuta 183

Extensão Plug‐in 2.1: Atualização do loop magia‐feitiçaria em algumas

narrativas sobre as tecnologias “digitais” e “analógicas” 192

Plug‐in I.3: Batman Zavareze/Multiplicidade. Um projeto de “Design Expandido” 201

A idealização de um projeto múltiplo 202

O curador como produtor. A produção da primeira edição de 2010 217

Como inventar uma arte: uma etnografia dos catálogos 238

Plug‐in I.4: Samples Reflexivos 246

Referências Bibliográficas 251

xii
A metalogue is a conversation about some problematic
subject. This conversation should be such that not only
do the participants discuss the problem but the structure
of the conversation as a whole is also relevant to the
same subject.

Gregory Bateson, Steps to an Ecology of Mind, 2000

xiii
Introdução

Esta tese pretende investigar o surgimento de novos agentes artísticos que se autodenominam
‐ ou são denominados ‐ produtores e que atribuem “autenticidade” às suas criações ao
perceberem as “tecnologias digitais” como parte integrante de criação e inspiração. Neste
trabalho desloco a análise centrada num campo de arte delimitado para estudar como as
novas tecnologias tensionam as diferentes esferas artísticas emergentes; procuro saber por
que os seus criadores, os “produtores”, anunciam que não participam de uma manifestação
“artística” específica.

Ao considerar esses produtores enquanto autores, esta tese se propõe a fazer uma
contribuição para a discussão sobre as novas modalidades de autoria a partir da sua relação
com os modelos digitais de criação. O digital é por vezes considerado pelos agentes uma
ferramenta de trabalho, não demarcando um limite para o resultado final do processo criativo.
Para outros, o digital é percebido como uma nova plataforma de trabalho que impõe um novo
paradigma de criação e de visão de mundo, configurando‐se dessa forma como uma estética.
Por sua vez, a tecnologia se configura enquanto fetiche a partir do momento em que
possibilita não somente fazer uma arte, mas também transformar o produtor. Esses
produtores como autores desta época seriam assim, eles próprios, ferramentas, fetiches,
estéticas, operadores míticos de um período de alta intimidade com as tecnologias digitais.

Roy Wagner (1981) afirma que todos somos antropólogos, no sentido de que antropólogos e
nativos produzem conhecimento. Alguns dos “nativos” desta tese são também fabricantes de
conhecimento acadêmico (professores e/ou alunos de pós‐graduação). Outros não envolvidos
na elaboração de conhecimento estritamente acadêmico nos fazem pensar que a arte não é
necessariamente uma esfera relegada à estética, mas é, sim, geradora de conhecimento, como
afirmam Arnd Schneider e Christopher Wright (2007) na Introdução ao livro Contemporary Art
and Anthropology. Esta configuração provocou a constante pergunta sobre quem produz
conhecimento e como esse conhecimento é originado.

Assim, pode‐se imaginar a possibilidade de o conhecimento ser transmitido de diferentes


maneiras, e pensar também o estatuto de apropriação de conceitos antropológicos por outros
campos de conhecimento universitário (como a Comunicação Social e a Literatura, segmentos
que agrupam alguns de meus personagens) e artístico (como, por exemplo, no caso recorrente
dos personagens desta tese que afirmam operar com “trabalho de campo” e com
1
performance). Schneider e Wright sugerem que, apesar dos diferentes usos antropológicos e
artísticos, o trabalho de campo, no seu “sentido expandido do paradigma” para [a
antropologia e para a arte contemporânea], é “uma área que envolve uma radical
experimentação” (ibidem:16). Otávio Velho (cf. Velho et all., 2008) se refere ao fato de os
“grupos” e “movimentos sociais” cada vez mais falarem “por si mesmos”, e como este
fenômeno causa reverberações para os antropólogos em termos da perda do monopólio sobre
os seus conceitos originais. Não creio que consiga ao longo deste trabalho dar uma “resposta”
satisfatória, além de ter sido recorrente o sentimento de que eu não tinha “nada a
acrescentar” ao que os meus entrevistados já haviam dito ou escrito. Nesse aspecto, este
trabalho não supõe ter sido resultado de um “diálogo” entre antropólogo e nativo enquanto
atores discretos dentro de uma pesquisa de campo. É sim um diálogo em que me deixei
embaralhar pelas categorias nativas, incluindo, nesse processo, indicações bibliográficas que
recebi de muitos dos protagonistas aqui estudados. Poderíamos assumir assim a metáfora do
“corpo” para pensar esta etnografia. A partir da conceituação de Marylin Strathern, Marco
Antonio Gonçalves e Scott Head afirmam que essa metáfora pode ser utilizada “quando a
abordagem etnográfica não busca somente representar as categorias nativas, mas reformular
as suas próprias estratégias de representação através de sua aproximação mimética das
formas nativas” (Gonçalves e Head, 2009:7).

Esta tese se baseia em duas ideias centrais: a primeira, de que uma antropologia da arte deve
levar em conta a rede de relações em que estão imbricados os objetos (Gell, 1998), as imagens
(Lagrou, 2007), e também as sonoridades criadas pelos produtores. Uma segunda ideia é que,
como alude Els Lagrou, “a construção da pessoa do artista é tão específica quanto a estética
que produz” (Lagrou, 2007:40). Isso significa indagar sobre a especificidade da autoria dos
produtores que ganha sentido através da ambiguidade, e do poder de mediação, constituindo,
dessa maneira, um valor múltiplo e parcial, como a conceituação que Marylin Strathern (2001)
dá ao ciborgue de Donna Haraway, enquanto uma soma de partes que juntas não configuram
uma totalidade mas que mantêm “conexões parciais” entre si. Neste aspecto, os produtores e
as suas criações em um sentido amplo são tomados metodologicamente e conceitualmente
como “pessoas distribuídas”.

Uma Ideia fundamental desta tese é que os produtores passeiam por várias auto‐
denominações e esta categoria vem sendo utilizada como forma de cobrir um “vazio” de
definição destes agentes. A força da categoria reside em criar mediações entre várias esferas

2
de atuação. Com isso quero dizer que esta categoria aqui na tese deve ser tão movediça como
se apresenta para os personagens.

A partir das criações expressivas dos produtores, é possível pensar no estatuto que Alfred Gell
outorga aos objetos. Com uma série de exemplos sobre idolatria e ‘volt‐sorcery’, o autor nos
mostra como os ídolos, a floresta, os bonecos, dependendo de seus contextos etnográficos,
seriam dotados de uma agência, ou seja, de uma ‘psicologia intencional’. Não seriam meros
recipientes inanimados, importantes por terem sido fabricados por seres humanos, mas eles
próprios seriam agentes intencionais, não meramente passivos, pois, da mesma maneira que
pessoas se relacionam com outras pessoas, elas igualmente se relacionam com objetos que
por isso devem ser tratados como pessoas. A noção de "pessoa distribuída" de Gell proporia
uma “teoria da pessoa” 1 estendida às criações artísticas. Como ele observa, “as obras de arte
vêm em famílias, linhagens, tribos, populações, assim como as pessoas. Elas se relacionam
entre si e com as pessoas que os criam e circulam como objetos individuais. Elas se casam e
têm filhos que carregam a marca de seus antecessores. Os objetos são manifestações de
cultura como um fenômeno coletivo, eles são, como as pessoas, seres aculturados” (Gell,
1998:153). Essa ideia se articula com um estudo sobre a proveniência da agência (a atribuição
de uma mente) aos objetos,2 levando em consideração, como enuncia Amir Geiger (2008), que
a arte constitui um objeto e “sem contradição (muito pelo contrário), ela também é, como quis
Bateson, bem diferente de uma coisa: é o que nos deixa apreender as relações que a
concretude imprópria das coisas esconde” (Geiger, 2008:373). Porque, usando as suas
palavras:

O que é próprio da arte não é simplesmente provocar os efeitos sensoriais alternantes,


desestabilizadores, desorientadores, transificadores, no plano perceptivo. É sim fazê‐lo
dentro de um circuito inteiro em que esses efeitos, aparecendo como confirmação de
relações previamente construídas – relações que, sociais que são, constituem a própria
coerência perceptiva do sujeito das sensações ‐, ilustram o poder das relações (técnicas,

1
A “teoria da pessoa” proposta por Gell tem relação com o desenvolvimento da categoria pessoa realizada por
Marcel Mauss no texto “Uma categoria do espírito humano a noção de pessoa e de eu” (2003), no qual o autor faz a
história intelectual da categoria desde seu significado enquanto máscara até a pessoa interiorizada e psicologizada
que carateriza a cultura moderna. Entretanto, a concepção de pessoa total como é concebida na sociologia
maussiana tem que ser entendida como a interrelação entre as dimensões biológica, psicológica e social como
mostra o autor nos ensaios sobre a “expressão obrigatória dos sentimentos” (1979) e sobre as “técnicas corporais”
(2003); nesses textos as diferentes instâncias da pessoa se transformam em uma engrenagem relacional da qual
provém a significação simbólica.
2
Para Gell, o agenciamento dos objetos não se explicaria por meio de uma visão puramente “externalista”, ou seja,
no ato expressivo de relacionamento humano‐objeto, como no caso da sociologia de Bourdieu. Mas tampouco se
explicaria por uma perspectiva “internalista”, na atribuição de um “eu a priori” desses objetos, como no caso da
psicologia cognitiva.
3
processos, habilidades) necessárias à confecção do objeto, e que são as mesmas da
sociedade como um todo (seu cotidiano, sua organização, seus ritos e mitos, etc.) (Efeitos
estéticos são a ‘prova’, a amostra, a afirmação de que a coisa foi feita com poder, e não o
próprio poder do objeto artístico). A arte coage aliciadoramente, reafirma como adesão
encantada o que é também arregimentação técnica de seus integrantes (ibidem).

A aplicação dessa análise relacional ao estudo que desenvolvo se justifica por alguns motivos:
primeiro, pela possibilidade de designar um lugar privilegiado para materiais que em si
próprios não detêm o mesmo “caráter institucional”, dando um tratamento cuidadoso e
expressivo a elementos que não se enquadram estritamente dentro das instituições de arte,
porque os próprios produtores parecem estar em constante movimento entre instituições e
não instituições. Em segundo lugar, se encaramos esses elementos como expressivos, partimos
do pressuposto de que esses objetos são seres privilegiados e dotados de autonomia
etnográfica, importantes, portanto, para a constituição relacional na socialidade3 em que eles
se inserem. Como diz Bruno Latour, “It´s now much easier to not consider the actor as a
subject endowed with some primeval interiority, which turns its gaze toward an objective
world made up of brute things to which it should resist or out of which it should be able to
cook up some symbolic brew” (Latour, 2005: 208). Nesse mesmo sentido, prossegue Roy
Wagner:

Existe uma moralidade das “coisas”, dos objetos em seus significados e usos
convencionais. Mesmo ferramentas não são tanto instrumentos utilitários “funcionais”
quanto uma espécie de propriedade humana ou cultural comum, relíquias que
constrangem seus usuários ao aprenderem a usá‐los. Podemos mesmo sugerir [...] que
esses instrumentos “usam” os seres humanos, que brinquedos “brincam” com as
crianças, e que armas nos estimulam à luta. (...) Assim, em nossa vida esses brinquedos,
ferramentas e relíquias, desejando‐os, colecionando‐os nós introduzimos em nossas
personalidades todo o conjunto de valores, atitudes e sentimentos – na verdade a
criatividade – daqueles que os inventaram, os usaram, os conhecem e os desejam e os
deram a nós. Ao aprendermos a usar esses instrumentos nós estamos secretamente
aprendendo a nos usar; enquanto controle, esses instrumentos mediam essa relação,
eles objetificam nossas habilidades (Wagner apud Gonçalves, 2005:s/p).

3
Utilizo ao longo da tese o termo socialidade como operado por Roy Wagner (1974). Para este autor, este conceito
funciona como uma alternativa ao de sociedade que no seu emprego já predispõe o sentido de que esta se trata de
um fenômeno maior do que as relações que a compõem. O termo socialidade, por outro lado, sugere uma
subordinação teórica do conceito de “sociedade” ao contexto culturalmente específico onde é forjado.
4
E em terceiro lugar, a escolha desses objetos se deu porque eles atendem, na escala em que
são apresentados, a múltiplas outras camadas que abrem as vias para outras escalas. Assim
sendo, esses elementos expressivos são em si mesmos múltiplos.

Não parti de um campo artístico estabelecido; estava interessada em ver como se


performatizavam os produtores. Nesse aspecto, algo que lia a respeito deles em um artigo
jornalístico me levava a entrar em contato com um personagem; e, mesmo que, em alguns
casos, esse encontro fosse realizado “ritualisticamente” uma só vez, era depois entremeado de
informações em sites de internet, encontros não restritos ao trabalho de campo e a
depoimentos de terceiros.4 No primeiro capítulo da tese, descrevo o processo de elaboração
analítica do trabalho de campo que me permitiu entender essa performatização difusa dos
produtores. Nesse processo de elaboração do campo, enfatizo as continuidades e
descontinuidades em relação à minha pesquisa de dissertação de mestrado, realizada com DJs
de música eletrônica, no decorrer da qual pela primeira vez a categoria produtor se fez visível.

A metodologia usada no trabalho de campo constou de entrevistas abertas – que derivavam


de encontros com os produtores nos seus espaços de trabalho, enquanto usavam o
computador –, observação participante acompanhando apresentações de produtores – , e
também observação participante em diversos sites e comunidades de relacionamento na
Internet. O uso da entrevista como “recurso etnográfico”, como afirma Santuza Naves (2007),
amparada em Gadamer, teria um “caráter dialógico”; permite assim “um processo constante
de criação enquanto dura o jogo de perguntas e respostas”. Como afirma a autora,

para que o diálogo se concretize, é necessário que o entrevistador não se reduza à


condição de um gravador de depoimentos alheios nem se esconda por trás de um
questionário frio e padronizado, mas que, pelo contrário, assuma suas opiniões. Em caso
de discordância entre entrevistador e entrevistado, segue‐se um embate que caracteriza
mais ainda o aspecto lúdico dessa forma de conhecimento que não se reduz a uma
sucessão de perguntas e respostas. Devido à adoção deste tipo de procedimento,
algumas entrevistas se tornaram obras de referência para determinados assuntos, como
a que Lévi‐Strauss concedeu a Georges Charbonnier por volta de 1960, em que ambos
emitiram opiniões preciosas, entre outras coisas, sobre arte e cultura (Naves, 2007).

4
Trabalhei de 2001 a 2009 como pesquisadora do Núcleo de Estudos Musicais, do (CESAP) na Universidade Candido
Mendes. O Núcleo era coordenado por Santuza Naves e nele atuavam como pesquisadores Frederico Coelho,
Fernanda Lima e eu. Algumas das entrevistas com produtores sonoros foram realizadas no contexto da pesquisa “A
música popular e sua crítica no Brasil”, financiada pela FAPERJ, que faz uma interface da música popular no Brasil
com outras linguagens estéticas, como a poesia, o cinema, e também a “tecnologia digital”
5
A metodologia também contou com observação participante, em que privilegiei encontros
com personagens para acompanhá‐los em performances específicas a fim de observá‐los de
perto, circundados por suas ferramentas e na elaboração dos seus materiais de criação.
Também fez parte do trabalho de campo uma etnografia de criações de projetos em registros
visuais, sonoros e impressos, elaborados pelos produtores. É nessa intimidade com os seus
objetos de criação e nas performances que a tecnologia ganha essas dimensões
intercambiantes de fetiche, ferramenta e estética.

Finalmente, gostaria de mencionar o estatuto que conferi às imagens nesta tese. Como a elas
recorri extensivamente, talvez seja necessário classificá‐las de maneira cuidadosa. É
significativo o fato de elas começarem a ocupar um lugar central apenas nos Plug‐ins desta
tese. Inicialmente, busquei inspiração na metodologia usada por Marco Antonio Gonçalves
(2008), que captou imagens digitalmente do écran do computador; nesse aspecto,
“representam [no livro] não a totalidade de uma obra mas apenas milésimos de segundos de
muitas horas de obras fílmicas. Deste modo, as imagens aqui utilizadas devem ser tomadas tão
somente enquanto citações e estão entre aspas do mesmo modo que cito trechos de narração
dos filmes, obras acadêmicas e entrevistas de Jean Rouch” (Gonçalves, 2008:35). Assim,
incorporei imagens de vídeos realizados pelos meus personagens pelo efeito único que elas
têm de exprimirem informações impossíveis de serem transpostas em texto. A esse respeito,
Els Lagrou tece conjeturas sobre o poder das imagens de afetar as pessoas emocionalmente,
escapando à objetificação (Lagrou, 2007:57); e também Schneider e Wright (2007), em
referência a Roy Wagner, remetem a certas imagens que não têm como ser transformadas em
texto, que devem mesmo ser experimentadas como tais, porque é nessa experiência que
ganham significado e poder (Schneider e Wright, 2007:13‐14). Mas também as imagens
incorporadas são por vezes parte da minha própria autoria, quando, por exemplo, me foi
pedido que eu tirasse fotos para registrar uma performance, ou quando eu mesma utilizei a
máquina como recurso etnográfico. No caso do curador do festival Multiplicidade_Som
_e_Imagem_Inusitados, Batman Zavareze, especificamente, ele próprio me enviou por e‐mail
imagens realizadas pelo fotógrafo profissional do seu evento, dentre as quais escolhi algumas
para integrar a tese. Assim, as imagens dentro da tese também circulam por uma ampla rede
de significados que dizem respeito às relações estabelecidas durante o trabalho de campo.

Em um primeiro momento, havia imaginado compor esta tese em duas partes que se
organizariam em duas bases analíticas: o primeiro, o “ser”, e o segundo, o “fazer”. Mas aos

6
poucos foi perdendo o sentido determinar uma diferença entre a identidade e a ação, na
medida em que o ato de nomear é por si mesmo uma ação. Assim, apesar de manter a divisão
das partes, ela serve mais como uma modalidade retroalimentar, já que os personagens agem
ao nomear, e nomeiam ao agir. Desse modo, os produtos expressivos – uma performance, um
CD, um vídeo – , não podem ser separados dos agentes apresentados na primeira parte; por
isso, trata‐se de uma parte composta de Plug‐ins.

Nos três primeiros capítulos da Primeira Parte, discuto a polissemia da categoria "produtor" e,
mediante o uso de etnobiografias,5 mostro como os produtores associam as atividades que
desenvolvem às relações que eles estabelecem com os instrumentos digitais. Finalizo essa
parte com uma conceituação da autoria dos produtores. Essa autoria parcial, “distribuída”, é
desenvolvida na Segunda Parte desta tese. Na divisão da tese, esta Primeira Parte funciona
metaforicamente como um programa, um software de produção da autoria dos personagens
num quadro de digitialização da cultura no mundo contemporâneo.

A parte da tese que chamo de PLUG‐INS é composta por três personagens que funcionam
como Plug‐ins da Primeira Parte. Na linguagem da Internet, um plug‐in é um programa que, ao
ser ativado, permite ter acesso a outras funções de um programa maior. Como exemplifica
Bruno Latour, quando se entra em algum site da Internet e ele aparece em branco, muitas
vezes surge um “aviso amistoso” sugerindo que se faça um download de um software, o qual,
instalado em seu sistema, permite acessar aquilo que não se via anteriormente. Latour
trabalha esse termo para determinar os veículos que transportam individualidade,
subjetividade, pessoalidade e interioridade. Para esse autor,

What is so telling in this metaphor of the plug‐in is that competence doesn´t come in
bulk any longer but literary in bits and bytes. You don´t have to imagine a ´wholesale´
human having intentionality, making rational calculations, feeling responsible for his sins,
or agonizing over his mortal soul. Rather, you realize that to obtain ´complete´ human
actors, you have to compose them out of many successive layers, each of which is
empirically distinct from the next (Latour, 2005:207).

A ideia de “camadas sucessivas” desenvolvida por Latour tem afinidades com a noção de
“pessoa distribuída” de Gell, apresentada anteriormente. Procurei utilizá‐la não meramente
como conteúdo analítico, mas também como forma. Ao acionar três personagens enquanto

5
Marco Antonio Gonçalves (2008) declara que o conceito de etnobiografia não provém de “uma tentativa de
produzir uma visão autêntica de dentro procurando ‘apreender o ponto de vista nativo’ mas sim um modo de
definir a complexa forma de representação do outro que se realiza enquanto construção de um etno‐diálogo (...)
em que o (...) antropólogo est[á] diretamente implicado” (Gonçalves, 2008:206).
7
plug‐ins, examino alguns conteúdos expressivos dos produtores e comento como
performatizam as suas subjetivações por intermédio das diferentes plataformas utilizadas em
suas criações. Para desenvolver este ponto, optei por três diferentes conteúdos expressivos
como pontos nodais dentro da rede. Essa foi a melhor maneira que encontrei para preservar o
detalhe.6 O que caracteriza estes pontos nodais é a sua capacidade de ter uma autonomia
criativa e, ao mesmo tempo, funcionar como “pessoas distribuídas”, interrelacionadas a
outros elementos expressivos.

Ainda sobre a forma da parte dos PLUG‐INS, cada um deles tem, ao final, uma extensão‐plug‐in
que possibilita desenvolver uma competência ou uma relação privilegiada que surgiu para mim
na elaboração de cada ponto nodal. A extensão‐plug‐in permite “instalar” uma discussão que
retoma os outros personagens desta tese, ou seja, por onde os pontos nodais se encontram
com outros mediadores da rede.

No primeiro capítulo, traço o meu percurso de campo, indicando como os produtores se


manifestaram para mim como um problema antropológico, a sugerir que havia especificidades
nas suas descrições de si que os direcionavam para uma autoclassificação ambígua, para o
relacionamento com instrumentos digitais de criação, e para não poderem ser classificados
dentro de um campo artístico constituído. Assim, os produtores poderiam ser encontrados
atuando em diversas esferas, pautados por uma característica de privilegiar os conhecimentos
expressivos do digital. Também desenvolvo uma discussão sobre como os agenciamentos dos
produtores estão permeados por um problema que passeia pelos polos “mágicos” e
“feiticeiros”, relacionados à modernidade tecnológica e ao progresso, associando‐os, assim, ao
mundo povoado pela internet.

O segundo capítulo consiste em apresentar, a partir das metáforas das janelas dos sites de
Internet, narrações de si ou “etnobiografias” que transmitem como os produtores são
categorizados por eles e pela mídia, de modo que, a cada encontro com um novo personagem,
há elementos que se mantêm, e outros que metaforizam a ação da categoria "produtor". Entre
os elementos reincidentes, é possível distinguir uma ênfase dada ao momento em que o
computador “entra” em suas vidas, e a maneira como passam a realizar trabalhos criativos
com os agenciamentos acionados pela relação que estabelecem com este personagem‐objeto.

6
Como diz Marcel Mauss, “Quando uma relação foi estabelecida num caso, mesmo único, mas metódica e
minuciosamente estudado, sua realidade é bem mais segura do que quando, para ser demonstrada, ela é ilustrada
com fatos numerosos” (Mauss, 2003b:427).
8
O capítulo 3 se desenha com a identificação de “maquinismos” que outorgariam autenticidade
à autoria dos produtores. Percebemos como o agenciamento da categoria "produtor" depende
de seu poder ambíguo, de se apresentar como um termo de mediação entre “técnico” e
“artista”, entre estéticas e habilidades. Esses elementos apontariam para um tipo de autoria
que poderia ser qualificada como ciborgue, originado da conceituação que Marylin de
Strathern (2001) outorga ao termo, como indicado anteriormente.

No plug‐in I.1 apresento primeiramente uma etnografia do ciclo da atuação audiovisual de


Fernando Salis, da sua pesquisa de material à performance que realizou em setembro de 2009,
intitulada “Vini, Vidi, Verti”, e uma edição gravada, de seis minutos, que divulga seu trabalho
audiovisual. Esse pequeno vídeo não tem um fim artístico em si próprio, mas se relaciona com
todo o processo de elaboração da videoperformance de Fernando, desde as escolhas dos
materiais, dos equipamentos, até a própria apresentação. Dessa forma, o vídeo seria uma
elaboração autônoma, mas intimamente conectada às suas outras experiências expressivas.

A partir das análises apresentadas nesse Plug‐in, abro a extensão‐plug‐in 1.1 onde discuto os
posicionamentos ético‐estéticos dos produtores em relação ao que define as escolhas de
hackear ou comprar suas ferramentas de trabalho, os softwares.

O plug‐in I.2, Daniel Castanheira/Hapax, tem uma dupla função: é ao mesmo tempo uma
etnografia de registros e de sites na Internet, bem como um exemplo de operação de um
coletivo, modalidade de agrupamento muito usada pelos produtores. Em seguida, discuto “O
movimento forjado em música”, faixa sonora de Daniel Castanheira elaborada como um remix
de três diferentes performances realizadas pelo coletivo a que ele pertence, o Hapax, e que
integra a sua dissertação de mestrado. Neste caso, privilegiei uma composição em formato de
registro, mas também voltada para recriar uma experiência de performance in actu. Apesar de
não ter acompanhado nenhuma das apresentações do “Burro Sem Rabo”, utilizo o recurso
etnográfico do material escrito pelo grupo e as imagens contidas no site do coletivo.

A partir da descrição apresentada, abro a extensão‐plug‐in 2.1 que indica como os produtores,
ao fazerem e ao mesmo tempo desfazerem as oposições entre as tecnologias “analógicas” e
“digitais”, atualizam as discussões entre “magia” e “feitiçaria”, vistas no primeiros capítulo.

O plug‐in I.3 descreve o festival Multiplicidade ‐ Imagem e Som inusitados. A marca distintiva
do festival criado por Batman Zavareze em 2005 é a maneira de ele compor seus espetáculos,
recorrendo continuamente a um artista sonoro e a outro visual, sempre em diálogo com a
tecnologia. A etnografia se concentra, além das entrevistas, no acompanhamento do processo

9
de criação da primeira edição de 2010 em que desenvolvo a noção do curador como produtor,
e do potencial de inventar uma arte, com base numa leitura abrangente dos catálogos.

Finalmente, o plug‐in I.4 retoma alguns pontos importantes desta tese, sem no entanto, fechá‐
la, já que, assim como os produtores, tem uma característica sempre parcial, e são
incrementados por diversos gadgets, assim também a tese não se fecha, podendo sempre
ainda conectar novos plug‐ins e extensões plug‐ins.

10
Parte I

Os produtores. Uma autoria ciborgue


The name of the song is called ‘Haddocks’ Eyes’.”
“Oh, that’s the name of the song, is it?” Alice said, trying to feel
interested.
“No, you don´t understand,” the Knight said, looking a little vexed.
“That’s what the name is called. The name really is ‘The Aged Aged
Man’.”
“Then I ought to have said ‘That’s what the song is called’?” Alice
corrected herself.
‘”No, you oughtn’t: that´s quite another thing! The song is called ‘Ways
and Means’: but that´s only what it´s called, you know!”
“Well what is the song, then?” said Alice, who was by this time
completely bewildered.
Lewis Carroll, Through the Looking Glass and what Alice Found There
(2005)

12


Capítulo 1

Como transformar uma tendência em campo antropológico

A máquina de escrever só tornará alheia à caneta a mão do literato


quando a exatidão das formações tipográficas entrar imediatamente na
concepção de seus livros. Provavelmente serão necessários então novos
sistemas, com configuração de escrita mais variável. Eles colocarão a
inervação dos dedos que comandam no lugar da mão cursiva.
Walter Benjamin, Rua de Mão Única, 2000.

“Se alguma coisa preexiste ao pixel e à imagem é o programa, isto é,


linguagem e números, e não mais o real. Eis porque a imagem numérica
não representa mais o mundo real, ela o simula. Ela o reconstrói,
fragmento por fragmento, propondo dele uma visualização numérica
que não mantém mais nenhuma relação direta com o real, nem física,
nem energética... a imagem‐matriz digital não apresenta mais
nenhuma aderência ao real: libera‐se dele. Faz entrar a lógica da
figuração na era da Simulação. A topologia do Sujeito, da Imagem e do
Objeto fica abalada: as fronteiras entre esses três atores da
representação se esbatem. Eles se desalinham, se interpenetram, se
hibridizam. A imagem torna‐se imagem‐objeto, mas também imagem‐
linguagem, vaivém entre programa e tela, entre as memórias e o centro
de cálculo, os terminais; torna‐se imagem‐sujeito, pois reage
interativamente ao nosso contato, mesmo a nosso olhar: ela também
nos olha. O sujeito não mais afronta o objeto em sua resistência de
realidade, penetra‐o em sua transparência virtual, como entra no
próprio interior da imagem. O espaço muda: virtual, pode assumir
todas as dimensões possíveis, até dimensões não inteiras, fractais.
Mesmo o tempo flui diferente; ou antes, não flui mais de maneira
inelutável; sua origem é permanente “reinicializável”: não fornece mais
acontecimentos prontos, mas eventualidades. Impõe‐se uma outra
visão de mundo. Emerge uma nova ordem visual”.
Edmond Couchot, A tecnologia na arte. Da fotografia à realidade
virtual, 2003

O campo que apresento dos (auto)produtores é uma aposta. É uma aposta porque é feito de
personagens que parecem não ter relações diretas entre si, não configuram um “grupo” (por
mais “efêmero” que este possa ser), não constituem um “universo”, não necessariamente
frequentam um “lugar” ou mesmo um “circuito”, nem necessariamente se conhecem (pelo
menos, pessoalmente). Talvez, o “pior de tudo” (e com isso aumento ainda mais a minha
aposta) é que cada um desses personagens poderia pertencer, dependendo do recorte, a um
ou mais campos considerados “mais constituídos” (mesmo que ilusoriamente), a partir dos
13


quais eu poderia “ter partido”. A natureza da aposta se dá através de indícios (Ginzburg, 1989)
de que há um crescente número de personagens que apresentam discussões análogas em
diversas esferas artísticas; de que há categorias redundantes em diferentes universos, e de
que esses universos se encontram difíceis de precisar nesses termos.

Somente para ilustrar alguns possíveis caminhos nos sentidos que (pelo menos) pareciam mais
“prudentes”, eu poderia ter me restringido à esfera da produção de música eletrônica,
atualmente uma manifestação que intriga diversos pesquisadores internacionalmente e no
âmbito nacional.7 Afinal, foi desse “campo”, ao longo de minha pesquisa de mestrado, que
surgiram as minhas atuais perguntas. A “tangibilidade” (mesmo que aparente) do campo teria
algo de confortador ao pesquisador. Os VJs (videojóqueis) manipulam imagens a partir do
mesmo princípio dos DJs. E, assim como os DJs de música eletrônica que pesquisei para minha
dissertação de mestrado, os VJs passam recentemente por um processo crescente de
legitimação. Surgem os produtores sonoros e os produtores de imagens e, nesse processo,
criam‐se sonoridades (desde a música eletroacústica) e imagens nunca antes imaginadas com
as máquinas digitais. Tensionando essas ideias, poderíamos citar o campo da “arte sonora” (ou
sound‐art)8 e da “videoarte”, assim como a “netart” ou “arte das novas mídias”. De fato, todas
essas temáticas se desenham como “campos” férteis para a antropologia, já que são assuntos
mais estudados nos âmbitos dos estudos culturais, das teorias da comunicação e das artes
plásticas, e seria proveitoso articular essa bibliografia com uma abordagem antropológica.
Todavia, o modo de realização deste campo não atende a uma autoindulgência no sentido de
desejo fantasioso ou wishful thinking nem pretende ser um “experimento estético‐
etnográfico”.9 Apesar dos riscos presentes em não situar esta pesquisa a partir dos possíveis
campos acima mencionados (estou me referindo a histórias sociais e culturais que derivam dos
mitos de origem de cada um desses campos), esta escolha se deu em virtude dos problemas
que foram ficando evidentes durante o trabalho de campo. O problema metodológico que se
configurava quando tentava pensar num campo de partida foi que, se tivesse tomado algum

7
Como Ferreira (2006), Fontanari (2003), Bacal (2003) no Brasil, e Thornton (1996), na Inglaterra, e Jouvenet (2006)
na França, entre outros.
8
Assim mesmo, em um “campo constituído”, vejam como Felipe Vaz ‐ um dos "personagens" entrevistados para
esta tese ‐ apresenta em sua introdução a possibilidade de realizar uma pesquisa partindo da denominação da arte
sonora: “A caracterização de arte sonora como categoria à parte nos parece um trabalho necessariamente
arriscado, dado o fato de ser um território em constante movimento, e de sua produção ser intrinsecamente
interdisciplinar, como iremos verificar mais adiante. O que há, na arte sonora como nas artes plásticas, são
situações, propostas e objetos que artistas irão construir de diferentes modos, ignorando cada vez mais a clivagem
entre as disciplinas das academias das artes, e produzindo híbridos dificilmente classificáveis dentro de cânones do
saber e do fazer artístico (Vaz, 2008:2). Ou seja, Felipe considera tão arriscado partir da designação da arte sonora
quanto eu considero não partir de diversas designações.
9
Refiro‐me a etnografias em voga na década de 1980, na esteira da coletânea, Writing Culture, 1986.
14


desses caminhos, teria que deixar de lado tudo o que os personagens deste trabalho também
são, ou seja, todo o alcance da categoria "produtor".

Como digo que este campo é uma aposta, é necessária muita cautela de minha parte para que
consiga definir o fio “ilusório” de como este campo se evidenciou. Os produtores não surgiram
de uma hora para outra para mim. Essa categoria foi se configurando como um problema de
pesquisa aos poucos e ao longo do tempo. Por isso é preciso tentar tecer um fio mais ou
menos “cronológico” (de trás para frente) de como os produtores foram se fazendo visíveis
para mim e se constituíram como foco do meu campo e ganharam estatuto de tema para esta
tese. Este primeiro capítulo atende ao propósito de acompanhar um percurso que se
desenvolveu no tempo, para que o leitor acompanhe o meu caminho e perceba a introdução
de temas que foram fecundados para a elaboração desta tese.

Um momento propício para iniciar este percurso data dos primeiros tempos de doutorado,
quando inicialmente tive muita dificuldade em definir, quando me perguntavam, o meu tema
de pesquisa. Não era especificamente sobre ‘arte‐digital’, não era sobre DJs, ou sobre música
eletrônica, ou sobre arte sonora, ou VJs, ou web‐art, ou videoarte, ou design.

Esta janela serve para familiarizar o leitor com as designações acima citadas. Trata‐se de um uso de
descrições “nativas” para exemplificar como artistas dessas diferentes denominações estão produzindo
conhecimento acadêmico a respeito das áreas em que atuam. De qualquer modo, mesmo para o leitor
mais atualizado com estas designações, esta janela é útil para apontar que todas estas denominações
são caracterizadas como ambíguas ou híbridas por aqueles que as registram. Este hibridismo se
evidencia como um elemento muito importante como justificativa para não adentrar a tese por uma
destas designações, já que, de maneira análoga, cada uma delas se designa por uma oposição a uma
identidade artística.

Timothy Jaeger, em sua página de internet, http://timjaeger.com/, se autodefine como “artista


multidisciplinar, designer, diretor e produtor. No seu livro Live cinema unraveled. Handbook for live
visual performance (2005) ele utiliza a metáfora do VJ como uma “linguagem” bastante conhecida por
antropólogos: o pidgin.

“VJ‐as‐Pidgin Language: Like speakers of pidgin languages, which are based on simplified usage of
different languages as a means of communicating with speakers of different tongues, VJs currently find
themselves speaking ‘pidgin’. They are not quite at home in the world of fine art, graphic design,
software / open source culture, or motion graphics, so there is subsequently an incredibly simplified
vernacular to VJ culture. Unlike other new roles and identities that form and create complex systems of
communication, VJs do not have a particularly rich background to draw from at this point in history.
Instead, they have to borrow metaphors and meaning constantly from other areas, creating weird
syntheses, festival names that refer to the relationship between film and sound while still adopting a
Proscenium model for performance based work. (…) VJs appropriate and adopt roles and standards
found in other areas, such as theatre, video editing, DJing, and software design to constitute this new
identity and act as a type of standard”.

Em sua dissertação de mestrado, intitulada “Elementos da arte sonora” (2008), Felipe Vaz, que, como já
indiquei na nota 2, também integra esta pesquisa como personagem entrevistado, assim caracteriza
essa esfera:
15


“A expressão sound art ou arte sonora tem sido empregada neste contexto para descrever produção
artística apresentada das mais diferentes formas: instalações, esculturas, arte ambiental, objetos,
performances, soundwalks, net art, instrumentos experimentais, ambientes interativos imersivos,
intervenções arquitetônicas e urbanas, entre outras. Tal tipo de produção vem sendo frequentemente
caracterizado como uma categoria recente, com questões novas e exclusivas, a despeito das origens e
dos antecedentes desses trabalhos e suas questões. Estas raízes são verificáveis de um lado na música,
começando com experiências à época das vanguardas históricas do início do século XX, e, de outro, nas
investigações realizadas no campo das artes plásticas em especial a partir dos anos 1950 – assim como
na constante realimentação e interdeterminação dos movimentos e gêneros artísticos destas duas
disciplinas no período que se estende até hoje. (...) A caracterização de arte sonora como categoria à
parte nos parece um trabalho necessariamente arriscado, dado o fato de ser um território em constante
movimento, e de sua produção ser intrinsecamente interdisciplinar, como iremos verificar mais adiante.
O que há, na arte sonora como nas artes plásticas, são situações, propostas e objetos que artistas irão
construir de diferentes modos, ignorando cada vez mais a clivagem entre as disciplinas das academias
das artes, e produzindo híbridos dificilmente classificáveis dentro de cânones do saber e do fazer
artístico (Vaz, 2008: 1,2)”.

No livro editado pela Taschen, New Media Art, de 2006, na introdução “Art in the age of digital
distribution”, os autores assim a caracterizam:

“A arte da nova mídia e designações mais antigas como “arte digital”, “arte de computador”, “arte
multimídia” e “arte interativa”, são usadas usualmente de maneira intercambiante, mas para o
propósito deste livro usamos o termo Arte da nova mídia para descrever projetos que fazem uso de
novas tecnologias de mídia e que se preocupam com as possibilidades culturais, políticas e estéticas
destas ferramentas. Localizamos a arte da nova mídia como uma categoria que deriva de duas
categorias mais amplas: Arte e Tecnologia e arte midiática “media art”. Arte e Tecnologia se refere a
práticas como a arte eletrônica, arte robótica e arte genômica, que lidam com tecnologias que são
novas, mas não necessariamente relacionadas às mídias. “Media art” inclui vídeo‐arte, arte de
transmissão e filme experimental – formas artísticas que incorporam tecnologias midiáticas que nos
anos 1990 não eram mais consideradas novas. A própria decisão do que constitui como uma tecnologia
de mídia é difícil. A Internet, um elemento central para muitos projetos artísticos de arte da nova mídia,
é em si mesma heterogênea (..) também jogos de computador, câmeras de segurança, celulares, laptops
e dispositivos de GPS (Global Positioning System) (Tribe & Jana, 2006:7)”.

Nesse momento, o meu interesse se direcionava para a mudança na sensibilidade


contemporânea10 – que eu denominava, não muito confiante, como o “processo de
digitalização da arte e da cultura” – e que remetia instantaneamente, como recurso
dispositivo, ao texto “A obra de arte”, de Walter Benjamin.11 A amplitude e a vagueza do tema
eram manifestas para meus interlocutores e para mim, mas denotava obviamente um

10
Em palestra proferida em outubro de 2009, intitulada “Momentos contemporâneos”, Marylin Strathern afirmou
que o contemporâneo deve ser percebido pelo acesso a uma composição dos “diversos passados presentes” que
constituem um período temporal específico. O “momento contemporâneo” focado por ela se refere ao que se
configura genericamente como conhecimento ocidental e conhecimento indígena. Mas Strathern diz: não se trata
de “misturar tudo”, não se trata de “pegar diferentes elementos e fazer uma nova composição. Trata‐se de escolher
um modo de pensamento, o conhecimento indígena, por exemplo, e outorgar‐lhe um lugar privilegiado, para
perceber a sua perspectiva; e, depois, confrontá‐lo com um outro modo de pensamento, o ocidental, e tomar este
como um lugar privilegiado. Esse lugar privilegiado não deveria ser o de colocar‐se em posição dominante em
relação ao outro, mas um esforço de trazer esse modo particular de visão à tona e tomar consciência dele
(Strathern, 2009:16).
11
Utilizarei essa terminologia para designar “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, de 1936.
16


problema mais profundo sobre a natureza de um campo ainda por ser delimitado. Esse
panorama ou tendência se vislumbrava na mídia por um sem número de artigos jornalísticos
com temas afins à digitalização e às artes com uma frequência insistente, desde que iniciei a
minha pesquisa.12 Também na crescente circulação de revistas impressas e on‐line (e mesmo
blogs),13 dos mais especializados aos mais gerais, manifesta‐se a presença midiática dessa
tendência e, por fim, na inclusão cada vez maior de cursos especializados em mídias e
instrumentos digitais nas escolas representativas de arte e música no Rio, como no Parque
Lage e no Ateliê da Imagem.

No plano teórico, somente no Brasil há vários núcleos de pesquisa dedicados ao tema de


mídias digitais e à criação artística com mídias digitais, muitos pertencentes a programas de
pós‐graduação em comunicação e alguns também na área das artes plásticas. Nesse mesmo
sentido, há uma crescente proliferação de publicações que elencam o impacto da Internet e de
instrumentos digitais na contemporaneidade. Todas elas apresentam uma consciência da
profunda transformação que estaria ocorrendo no momento presente e que deveria ser
registrada. Essas publicações vão ao encontro da busca de categorias que expliquem o que
está acontecendo e já mudando radicalmente.

Este capítulo se propõe muito simplesmente a realizar uma soma dos passos traçados até o
meu campo. Se um campo é feito de encontros, estes se dão com pessoas, espaços, objetos e
também com um conjunto de leituras. O leitor não deve confundir esta sessão que se abre
com um mapeamento da bibliografia que aponta para essa tendência. Ela não atende a essa
proposta. Parece‐me importante apenas mencionar com algumas ilustrações como essa
“tendência” se fazia manifesta para mim, pois nela coincidiam como temas os padrões de
criação sendo “abalados” pelas “tecnologias da modernidade” e do “progresso”,
principalmente após o advento do computador caseiro e da Internet; presente nesse processo
haveria um caminho inexorável e inevitável.

12
Uma pesquisa utilizando artigos de jornais, mesmo somente de um periódico, como O Globo, sustentaria um
trabalho importante a ser feito.
13
Os blogs se caracterizam como páginas personalizadas na Internet que podem ser estilizadas e utilizadas
livremente.
17


Um loop entre a magia e a feitiçaria: “A arte na era da distribuição digital”
Tem um loop repetição e tem o loop infinito. O loop da repetição é
quando você tem um corte. Agora, o loop infinito é sem corte, e tem
todas as variações entre uma coisa e outra.
Fernando Salis

Essa sensação de urgência para retratar os acontecimentos presentes nos remete ao fascínio
gerado pelo texto A obra de arte, de Benjamin,14 por ele ter capturado o “espírito de época”
(Otávio Velho, 1995)15 mediante uma reflexão sobre o impacto dos usos das tecnologias de
reprodução para as artes, e o emprego de categorias “estabelecidas”, como as de
“autenticidade”, “obra” e “autor”, que se encontravam “estremecidas” na primeira metade do
século XX. Esse artigo, em conjunto com vários outros da autoria de Walter Benjamin, exprime
características específicas da sensibilidade “modernista”, opera uma modulação diferencial de
certas experiências subjetivas do século XIX para o XX ao pintar o panorama que se cristalizava
então como uma nova “tendência”.16 Não causa surpresa o fato de o trabalho de Benjamin ter
sido muito utilizado como pedra de toque para comparar as transformações ocorridas no final
do século XIX, no sentido de aperfeiçoar a reprodução de originais, e o que se convencionou
chamar o “segundo momento de advento tecnológico”, relativo ao advento da “tecnologia
digital” no final do século XX. Como ilustração dessa tendência, H.U. Gumbrecht e M. Marrinan
organizaram em 2003 uma publicação em homenagem ao célebre artigo de Walter Benjamin,
chamada Mapping Benjamin. The work of art in the digital age. A publicação em homenagem
ao autor alemão ‐ uma entre as inúmeras reflexões acerca da relação entre arte e tecnologia
ao longo dos séculos XX e XXI ‐ é um exemplo do enorme impacto que ele causou em várias
áreas do conhecimento, e bastante significativa da atualidade dos diversos temas por ele
apresentados. Os editores da publicação afirmam que “além [desse artigo] ser lido como
metonímia de toda a obra de Benjamin, o texto A obra de arte é provavelmente o mais
frequentemente citado e mais intensamente debatido (...) na história das humanidades na

14
Santos (2003) sustenta que “’não é por acaso que a “Pequena história da fotografia’ e ‘A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica’ tornaram‐se textos seminais da nossa cultura. Nesses escritos foi formulada a síntese
da experiência de ver moderna. Por isso, reconhecendo a força e a propriedade de tal formulação, muitos se
sentem compelidos a voltar a ela, como uma matriz” (Santos, 2003: 154).
15
Otávio Velho alerta que a noção de “espírito de época” funcionaria “como uma costura passível de ser imaginada
por um observador”, e não “como organização de uma totalidade a partir de um centro que se impõe”. Por outro
lado, não se reduz a um “modismo” que só se caracteriza “em oposição complementar a algum fundamento”
(Velho, 1997:145).
16
Em seu estudo das técnicas de produção do DJ de música eletrônica, Pedro Peixoto Ferreira menciona que
“apesar da crescente presença das máquinas no cotidiano desde o final do século XIX, estudiosos da arte moderna
notam que foi apenas a partir da segunda década do século XX que elas passaram a figurar com destaque como
objeto de inspiração e reflexão estética sistemática” (Ferreira, 2006:254).
18


academia do século 20” (Gumbrecht e Marrinan, 2003). Poderíamos sugerir que o próprio
artigo tornou‐se uma espécie de “fatiche” (Latour,2002) para os intelectuais e meios de
comunicação.17

Nesse mesmo sentido, Lev Manovich, em Language of the new Media,18 apresenta como
introdução uma cronologia pessoal, de 1975 a 2000, com as drásticas mudanças que se deram
no espaço dos últimos vinte anos do século passado, referindo‐se à importância de uma
“teoria do presente”. Manovich justifica o seu trabalho com o argumento de que ninguém
capturou o advento do cinema e o seu impacto “imediato”, em torno de 1903. Assim, o autor
se coloca como espectador da emergência de uma nova mídia, “a metamídia” do computador
digital, e a concebe como revolucionária. Manovich acredita, no entanto, que os teóricos do
mundo contemporâneo tendem mais a realizar prognósticos para o futuro do que a se
concentrar numa “teoria do presente”, como ele se propõe a realizar em seu estudo dos
códigos semióticos da nova mídia, das formas de tratamento e dos padrões de recepção de
público (Manovich, 2001:33). Para ele, assim como a imprensa no século XIV e a fotografia no
século XIX tiveram um impacto revolucionário para o desenvolvimento da sociedade e da
cultura modernas, hoje estamos no meio de uma nova revolução de mídia – a mudança de
toda a nossa cultura para formas de produção, distribuição e comunicação mediatizadas pelo
computador. Esta nova revolução seria mais profunda que as outras, e nós estaríamos só
começando a sentir os seus efeitos iniciais. De acordo com Manovich, o surgimento da
imprensa teria afetado somente o estágio da cultura da comunicação – a mídia de distribuição
–, enquanto o da fotografia teria alterado um tipo de comunicação cultural baseado em
imagens fixas. Em contraste, a revolução da mídia computacional afetaria todos os tipos de

17
A fim de ilustrar o lugar de “fe(i)tiche”, Bruno Latour (2002) lança mão do termo para mostrar como pessoas e
objetos podem ao mesmo tempo “fazer” e “ser” feitos. Apesar de na edição citada a palavra ter sido transposta
para o português como Fe(i)tiche, ao longo da tese vou utilizar a tradução empregada por Otávio Velho (2005). Um
artigo jornalístico recente de O Globo, chega mesmo a criar uma entrevista com Walter Benjamim, com perguntas
relacionadas às técnicas de reprodução atuais, como a virtualização digital, os ipods, as fotografias digitais. Essas
perguntas são respondidas com trechos do seu ensaio A obra de arte. A arte liberada de sua dimensão ritual surge
neste momento como uma celebração da tecnologia de reprodução. E o pai dessa ideia (bem mais densa do que
aparece no jornal) é literalmente ressuscitado como o grande entusiasta desse movimento “irremediável” da
tecnologia.
18
Fernando Salis e Ricardo Cutz, que participam desta pesquisa e serão apresentados mais adiante, me deram essa
indicação bibliográfica durante as nossas entrevistas.
19


mídia – texto, imagens fixas, imagens em movimento, som e construções espaciais (Manovich,
2001:43).19

Ochoa (2003) segue um caminho parecido, realizando um prognóstico vasto do impacto


causado pela tecnologia digital. Em seu Músicas locales en tiempos de globalización, a autora
abre uma discussão sobre a ideia de Timothy Taylor de que a técnica digital seria a maior
revolução no âmbito da música ocidental desde que a notação musical foi inventada no século
IX, porque, ao contrário de invenções precedentes, a da tecnologia digital não apresenta
necessidade de um suporte físico na transmissão de música à distância (Ochoa, 2003:23‐24).
De acordo com Ochoa, no que se refere especificamente ao que denomina “músicas locais”,20
a digitalização “está desempenhando um papel crucial na alteração dos modos de transmissão
dessas músicas, na maneira como definimos as fronteiras dos gêneros musicais ‘locais’ e
também no próprio sensorium da percepção do sonoro” (idem). A partir desses
desenvolvimentos, a tecnologia digital estaria afetando profundamente a relação entre “lugar,
música e memória”, entre “o público e o privado”, entre “música, intimidade e socialidade”, a
relação com “o sagrado” e, finalmente, a relação fronteiriça com o que veio a ser considerado
pela indústria musical como world music.

O crítico de arte Paulo Sérgio Duarte igualmente se pronuncia a respeito das tecnologias
digitais, alegando que elas “alteram nossos referenciais de tempo, mas, também e sobretudo,
os de espaço”. Duarte argumenta: “Como lembra o arquiteto William J. Mitchell, para os
milhões de usuários da Internet, pduaerte@candidomendes.br é minha identidade, mas
também é o meu endereço” (Duarte, 2004: 206). Ele percebe ainda “uma transformação
completa do sujeito da fruição, assentado, na sua forma clássica, na contemplação”, a qual se
daria da seguinte maneira:

Os novos meios assinalam, mais do que nunca, nos seus mecanismos interativos, para
uma percepção descentrada, subordinada muito mais ao automatismo dos reflexos
condicionados e nos processos de aquisição da complexidade crescente desses reflexos,
como nos jogos de computador, do que na fruição contemplativa dos objetos. Mesmo

19
É muito significativo do tom “futurista” que Manovich utilize como prólogo (ou “índice visual”) stills do filme‐
manifesto O homem e a câmera, de Dziga Vertov, de 1929, junto com citações do seu livro sobre a nova mídia. Esse
recurso tem um duplo movimento, no sentido de tratar a nova mídia como uma vanguarda e ao mesmo tempo
considerar que todas as ideias já estavam dadas no início do século XX, embora só tenham se concretizado no final
do século (retomarei este ponto mais adiante).
20
“Músicas que em algum momento histórico estiveram claramente associadas a um território e a um grupo
cultural ou grupos culturais específicos – mesmo quando a territorialização não tenha sido necessariamente contida
em suas fronteiras e nas quais essa territorialização original continua desempenhando um papel de definição
genérica” (Ochoa, 2004:11).
20


nos trabalhos em que está descartada a interação, como na cultura dos videoclipes, os
truques da geração de imagens virtuais vêm, quase sempre, acompanhados de uma
velocidade de edição que solicita um novo tempo à percepção. Um tempo radicalmente
oposto àquele no qual se apoiavam as obras de arte convencionais” (Duarte, 2004:210).

Numa veia semelhante, Italo Moriconi, em coluna do jornal O Globo, elabora a ideia do
“Intelectual Pop”. Segundo ele, essa expressão significa “pertencer a uma geração literária que
teve entre os seus primeiros mestres e inspiradores estrelas do mundo do espetáculo.”
Moriconi se diz identificado com essa categoria, na medida em que teria acessado a poesia por
intermédio de Caetano Veloso e outros mestres da música popular, que a sua “narrativa
mestra” teria sido o cinema, e a sua “trilha sonora”, o rock internacional. Assim, mais do que
uma geração televisiva ou visual, a sua geração se configura como “musical” e “dançante”.
Para ele, entretanto,

Nesta primeira década do novo século, ao pop se sobrepõe a revolução digital. Desde os
anos 90 do século passado vêm surgindo novas gerações intelectuais: novas
sensibilidades, novas inteligências pós‐pop. Impossível negar isso. O digital é pós‐pop,
mas no sentido de intensificação, ou seja, é mais pop do que nunca, apesar de virtual.
Temos agora o pop digitalizado, que muitas vezes pode significar um pop sublimado.
Dança puramente mental. O fone de ouvido em lugar da caixa de som. O social
transformado em sociabilidade na rede. Entre corpo e chip, ciborgues para sempre. Na
minha área da literatura o perfil vanguardista do jovem escritor ou escritora é o trânsito
entre a escrita, as performances de vários tipos de produção visual (cinema, vídeo e
internet). Temos poetas roqueiros, poetas do hip hop, prosadores que são roqueiros. E
roqueiros que são artistas visuais, do grafite às graphic novels. Todo mundo tem seu site,
seu blog, seu olho de vidro sobre o mundo, sua persona na rede. O espetáculo pop que
sempre foi eletrizado e eletrizante, agora é antenado, wired. Estamos em trânsito, do
pop ao pop digital” (Moriconi, 2009).

Em uma entrevista concedida à publicação Cultura Digital, organizada por Sergio Cohn e por
Rodrigo Savazoni e lançada no final de 2009, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, diz que:

O impacto do digital na cultura é imenso e as pessoas não têm muita noção do que isso
significa, porque as pessoas pensam que a cultura pode ser a mesma no mundo digital,
ou que a cultura pode ser a mesma, você digitalizando a cultura, levando‐a, digamos,
para o mundo digital. Traduzindo para o mundo digital. Na minha perspectiva, é outra
história, porque não se trata só de uma digitalização da cultura, mas da criação de uma
outra cultura, com outros referenciais, com uma outra cientificidade operatória (um
21


outro conceito de cultura) e uma outra maneira de conceber o que deve ser considerado
ou não cultura e de como é que você olha as outras culturas, que não são a cultura de um
cibernético (Santos In. Cohn & Savazoni, 2009:285).

Na área da literatura e dos estudos culturais, na área das comunicações, das artes plásticas e
da musicologia, e na área da sociologia e da cultura, estes autores acima citados apontam para
transformações irrevogáveis nas nossas sensibilidades e percepções. A inspiração (mesmo que
indireta) em Benjamin se nota no tom de ruptura desses discursos, enfatizando a ideia de que
a Internet e o computador, entrando em nossas vidas, geram, com os diversos usos, novas
subjetividades, alterando os modos de criação artística, as formas sensíveis de organização da
escuta, da visão da criação e dos agentes criadores e, mesmo, da própria cultura. Nessas
narrativas de tom revolucionário, há uma sensação ao mesmo tempo positiva e apocalíptica, a
partir do argumento de que a “Nova Era”, tão anunciada, chegou “para ficar” e o ato
revolucionário se outorga às novas mídias. Com maior ou menor sutileza, eu poderia
acrescentar uma série de argumentos que vão ao encontro desta conotação revolucionária.
Mas talvez seja pertinente retomar o artigo de Benjamin para buscar variações desta
perspectiva ilustrada nos exemplos acima.

No jocoso artigo de Hennion e Latour (2003), “How to make mistakes on so many things at
once – and become famous for it”, que integra a série de artigos da publicação organizada por
Gumbrecht (2003) mencionada acima,21 o texto A obra de arte é criticado por ter conseguido
abordar (“de maneira ingênua e superficial”) todos os aspectos da vida moderna: arte, cultura,
arquitetura, ciência, técnica, religião, economia, política, guerra e psicanálise. Os autores
indicam que, por muitos momentos, uma das categorias acima citadas é tomada por outra,
sem diferenciação.22 A grande crítica dos autores se baseia, portanto, no fato de Benjamin ter
ajudado a “inventar” a “modernidade” e os sentidos consequentes de “autenticidade” e
“tecnologia” (ver Latour, 1994, e também sobre a ideia de invenção, ver Wagner, 1981, e
Gonçalves, 1996). Para eles, foi precisamente por ter incorrido nesse erro que o próprio artigo

21
Originalmente intitulado: “L’art, l’aura et la distance selon Benjamin, ou comment devenir célèbre em faisant tant
d’erreurs à la fois...” In. CAHIERS DE MÉDIOLOGIE, N° 1, 1° semestre de 1996.
22
Os próprios Hennion e Latour cometeram alguns “pecados” em seu texto (mesmo que tenham sido deliberados,
para fundamentar o seu argumento) ao confundir, por exemplo, W. Benjamin com a “Escola de Frankfurt”. A partir
de Santos (2003) também poderíamos dizer que Benjamin realiza um interessante recorte “conectando” (como diria
Otávio Velho, 1997) figuras como “o cirurgião” e “o cinegrafista”, na “era moderna” e o mágico e o pintor na “era
tradicional”. Seguindo a reflexão benjaminiana, Santos diz: “o cirurgião intervém em seu corpo; o primeiro preserva
a distância natural entre ele e o doente, mantendo a relação homem‐homem; o segundo renuncia a relacionar‐se
com o paciente de homem a homem. Benjamin então prossegue: ‘O pintor observa em seu trabalho uma distância
natural entre a realidade dada e ele próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa
realidade’” (Santos, 2003:137).
22


tornou‐se tão célebre. Segundo Hennion e Latour, o tema da autenticidade é um subproduto
tardio de uma constante atividade de reprodução pelos meios técnicos (cf. Hennion e Latour,
2003). Ou seja, foi a possibilidade de copiar que criou a ideia de um “original”. Por outro lado,
o que estaria errado seria o próprio sentido atribuído à ideia de “técnica” como “reprodução
mecânica”,23 percebido quando afirmam, por exemplo: “a técnica sempre foi um meio ativo de
produção artística e não uma perversão moderna” (Hennion e Latour, 2003). Nesse sentido,
para estes autores, Benjamin estaria preso à visão romântica de artista, e “qualquer novo
estudo da obra de arte na era de sua reprodutibilidade mecânica deve tentar evitar os erros de
categoria e (re)trabalhar a definição constantemente flutuante de “modernidade” (idem).

Ainda a respeito de Benjamin, Paulo Sergio Duarte, em “As técnicas de reprodução e a ideia de
progresso em arte” (2004), compara “o ponto de vista otimista de Walter Benjamin sobre o
advento de novas técnicas” – que ele julga “bastante unilateral” e feito com “comparações e
mesmo prognósticos incompatíveis com as questões históricas da arte” – com a “resposta de
Theodor Adorno”, segundo o autor, “a contrapartida sombria, e não menos verdadeira, sobre
as consequências do progresso e suas técnicas de reprodução no campo da arte.” (Duarte,
2004:214‐215 – meus grifos). Duarte não considera — à maneira de Couchot (2003), na
epígrafe desta sessão — que os recursos tecnológicos sejam garantia de “progresso” visual no
sentido cultural mais amplo:

Basta ver as sofisticadas vinhetas digitais de televisão, ou mesmo certas demonstrações


da arte por computador – às vezes tão primitiva nesses seus primórdios ‐, para ver que
muitos de seus autores não passariam sequer pelo teste de olhar e interpretar
esteticamente uma natureza‐morta de Cézanne. Se olharmos do ponto de vista de sua
organização espacial, quase todas essas “novas” imagens são tributárias de uma visão
ilusionista pré‐moderna. De um lado, a ferramenta contemporânea, tecnologicamente
avançada, estaria a serviço de arquétipos arcaicos herdados da representação em
perspectiva da Renascença. Arquétipos dos quais a arte, no Ocidente, se viu liberada pelo
menos desde o Cubismo.24

A existência de perspectivas diferenciadas sobre a tecnologia como progresso e modernidade pode ser
vista nas duas passagens a seguir, tratadas não como pontos de vista contrastantes em um mesmo
período histórico, como no caso de Adorno e Benjamin na década de 30, ou mesmo Benjamin e

23
As análises de Ingold, 2000, e Latour, 1994, direcionam‐se no mesmo sentido, como veremos mais adiante.
24
É relevante levar em consideração que esta citação é retirada do interior de um importante argumento “contra a
linha evolutiva da obra de arte”, uma teoria que tenta alinhavar progressos tecnológicos com os “progressos
culturais, modernos e artísticos”. De qualquer modo, parece interessante notar a presença do crítico nesta
passagem, que relaciona a arte a uma tradição que “deveria saber interpretar uma natureza‐morta de Cézanne”.
23


Collingwood e, em muitos sentidos, também Benjamin e Heidegger.25 Mas podem ser lidas pelo
desenho de um personagem que surge aliado ao advento do telefone como invenção tecnológica da
modernidade. A primeira, a conhecida passagem de Sapir sobre a personagem da telefonista (do artigo
“Cultura autêntica e espúria”, publicado em 1924 no American Journal of Sociology); para Sapir, a
ilustração paradigmática da “inautenticidade” da sociedade moderna:

A grande falácia cultural do industrialismo, tal como se desenvolveu até os nossos usos, ele não soube
impedir a sujeição da maioria da humanidade às suas máquinas. A telefonista que empresta a sua
capacidade, durante a maior parte de cada dia de sua existência, à manipulação de uma rotina técnica
que tem afinal alto valor de eficiência, mas que não corresponde a nenhuma necessidade espiritual dela
mesma, representa um espantoso sacrifício à civilização. Como solução do problema da cultura,
malogrou ela – malogro tanto mais lamentável quanto maiores são os seus dotes naturais. O que sucede
com a telefonista é de recear‐se suceda com a grande maioria de nós outros, escravos atiçadores de
fogueiras que queimam para demônios que desejaríamos destruir, não nos aparecessem eles sob o
disfarce de benfeitores (Sapir, 1970: 292).

A segunda aparece em O caminho de Germantes, de Marcel Proust. Trata‐se de um momento em que o


narrador estava em Combray e queria comunicar‐se com a sua avó pelo telefone. E, diante da
dificuldade, surge a telefonista como uma espécie de fada tecnológica que possibilita a comunicação
entre seres queridos:

E somos como o personagem do conto a quem uma fada, ante o desejo que ele exprime, faz surgir,
banhada em claridade sobrenatural, a avó ou a noiva no ato de folhear um livro, de derramar lágrimas,
de colher flores, tão perto do espectador e entretanto tão longe, no próprio local onde se encontra de
verdade. Para que tal milagre se cumpra, basta‐nos aproximar os lábios da prancheta mágica e chamar
(...) as Virgens Vigilantes, cuja voz podemos ouvir todos os dias sem jamais conhecer‐lhes o rosto, e que
são anjos da guarda nas trevas vertiginosas cujas portas vigiam com ciúme; as Todo‐poderosas devido a
quem os ausentes surgem ao nosso lado, sem que seja permitido vislumbrá‐los; as Danaides do invisível
que sem cessar, voltam a encher e transmitem as urnas de sons (...) as desconfiadas sacerdotisas do
Invisível, as Senhoritas do telefone! (Proust, O Caminho de Guermantes, 2002:113‐114).

Essas duas passagens contrastantes remeteriam a duas concepções acerca da modernidade, do


progresso e da importância da tecnologia na vida cotidiana; e podemos perceber que, se há posições em
que a tecnologia é lançada em segundo plano em nossa sociedade, existem outras esferas que saúdam a
tecnologia como um fenômeno que propicia a criação – até mesmo mágica. Se percebermos os
processos sociais e culturais como coexistentes e sobrepostos, podemos então fugir de determinismos,
sejam eles tecnológicos ou naturais. As perspectivas conflitantes de Proust e de Sapir em relação à
figura mágico‐trágica da telefonista são relacionadas a contextos históricos, sociais e a propósitos
específicos e diferenciados, mas o interesse em sobrepor ambas as posições é que elas coexistem como
possibilidades em nossa sociedade. No texto de Proust, a figura da telefonista é admirada como uma
espécie de ninfa propulsora da tecnologia. Desde o século XIX é presente a admiração mágica diante da
possibilidade e do mistério do advento do telefone. Já no texto de Sapir, no início do século XX, vemos a
figura da telefonista como aquela que exerce o trabalho mais técnico e mecânico, menos ligado a uma
noção de criatividade e imaginação. O trabalho do operário e da telefonista, altamente repetitivo e
especializado, não seria banhado de “autenticidade” porque não os habilita a outras atuações em outras
esferas da vida, configurando‐se, dessa maneira, como uma atividade “oca”.

25
Em um livro destinado à filosofia do encantamento, R. G. Collinwood (2005), no ensaio chamado “A arte e a
máquina” chama a atenção para as degradantes consequências da reprodução mecânica da arte para a cultura e
para a civilização. Seu argumento enfeitiçado acerca da reprodutibilidade como “desfiguração do real” incita os
próprios organizadores dos seus ensaios, na introdução, a comparar esse texto com o de Benjamin, por ambos os
autores estarem tratando a mesma questão a partir de visões antagônicas. Laymert Garcia dos Santos (2003)
mostra como Gianni Vattimo traça uma curiosa relação entre o texto da obra de arte de Benjamin com o de
Heidegger do mesmo ano de 1936, “A origem da obra de arte”. Apesar da visão negativa da técnica de Heidegger,
Vattimo considera a noção de “golpe” em Heidegger muito semelhante à noção de “choque” em Benjamin porque
ambas as categorias aludem à experiência de deslocamento na arte (Santos, 2003:164‐167).
24


Acompanhando essas leituras, poderíamos sugerir que as perspectivas em relação à tecnologia
se traduziriam em dois polos, o da magia (positivo) e o da feitiçaria (negativo). A primeira seria
ligada a uma atitude de celebração; e a segunda, a uma atitude apocalíptica.26 Mas ambas
existem sob o registro do poder do encantamento. Trazendo a fortuna da modernidade ou a
ruína dos “bons tempos”, atribui‐se à tecnologia um “poder de encantamento” (Gell, 1988‐
1998).27

É interessante perceber nos discursos citados a maneira pela qual a tecnologia é concebida
como dotada de certos “poderes” próprios (Gell, 1988 e 1998), que podem ser considerados
mágicos, ou feiticeiros, já que não detemos a fórmula de funcionamento desses aparatos. O
que está por trás dos exemplos citados é o potencial criador (mágico‐feiticeiro) do suporte
tecnológico. E, segundo Huyssen (1997), esse polo que aqui chamo de mágico‐feiticeiro pode
ser historiado desde o final do século XIX com “a estetização da técnica”, por um lado, e o
“horror da técnica inspirado pelo pavoroso maquinário de guerra da Primeira Guerra Mundial”
(1997: 31).28 Mas, para ele, “apenas a vanguarda pós‐1910 conseguiu dar expressão artística a
esta experiência bipolar da tecnologia no mundo burguês, através da ciência e da produção na

26
Para qualificar um pouco mais especificamente o que quero dizer com essa oposição entre um relacionamento
mágico e feiticeiro da arte com a tecnologia, recorro a Evans‐Pritchard (2005). Este autor postula que a magia entre
os Azande é considerada boa e utilizada para fins socialmente aprovados, enquanto a feitiçaria seria considerada
negativa e utilizada para fins malignos e antissociais. Assim poderiam ser descritas as duas possíveis relações que a
arte estabelece com a tecnologia, como digo no parágrafo acima. Mas Evans‐Pritchard sugere que, se a feitiçaria é o
lado oposto e negativo da magia, é difícil distinguir uma da outra inteiramente porque muitas vezes ambas ‐ a
magia e a feitiçaria ‐ se utilizam dos mesmos caminhos para atingir objetivos diversos (cf. 2005). Esse espaço de
ambiguidade entre os dois polos também aparece em Mauss e Hubert (2003) quando afirma que entre a religião e a
magia (neste caso o par de oposição é transferido para o da religião, como polo positivo, e o da magia como polo
negativo) existiria uma “massa” de ideias mágico‐religiosas. O espaço ambíguo permite especificar a magia e a
feitiçaria como dois polos entre os quais residiriam diversas relações da arte com a tecnologia. Não seriam polos
estanques, mas polos unidos por um continuum. Gostaria de ilustrar inicialmente o que chamo de encantamento
mágico e feiticeiro atribuídos à tecnologia e à sua relação com a arte a partir um artigo de O Globo, de teor bastante
apocalíptico, referido a uma nova máquina que pode confirmar se um disco será um sucesso, e assim rentável ou
não para as gravadoras, com base em um número x de hits codificados e em uma combinação matemática, a
chamada Hit Song Science. O artigo aponta para visões mágico‐positivas e feitiço‐negativas: a mais nova tecnologia
versus o perigo de banalizar a criação artística.
27
Tratarei mais especificamente dessa relação entre tecnologia e encantamento no capítulo 3. Entretanto é possível
apontar já desde o texto de Mauss e Hubert (2003) que trata da relação entre magia e técnica, a partir do fato de
que a magia é composta de uma série de procedimentos que, embora sejam inoperantes do ponto de vista técnico,
têm como objetivo produzir resultados concretos por meio de uma habilidade que entre outras características é
manual.
28
James Clifford chama a atenção para o profundo impacto causado pela Primeira Guerra Mundial no surgimento
de uma estética “surrealista” nas artes e também na etnografia. Para esse autor, os surrealistas operavam segundo
um duplo efeito: o de exaltar o exótico de fora e também de dentro da sociedade ocidental, assim como o de
incorrer num procedimento de desnaturalização (e por isso de “tecnologização”, inclusive do corpo humano) (cf.
Clifford, 1998).
25


arte, integração da tecnologia e da imaginação tecnológica na produção da arte” (Huyssen,
1997: 31).29

A ideia da máquina como fetiche e a atribuição a ela de um poder de agenciamento está


presente em várias correntes das vanguardas modernistas. Assim, em vez de ser vista como
um mero instrumento na mão humana, a máquina é divisada com capacidade de criar (cf.
Benjamin, 1996, e Gell, 1998). É neste aspecto que Benjamin atribui magia às máquinas de
reprodução, através da possibilidade de fazer as coisas – entre elas, as obras de arte – ficarem
mais próximas, e de serem possuídas. Segundo Huyssen, em alguns aspectos, baseado numa
esperança de que as tecnologias modernas pudessem ajudar na construção de uma cultura
socialista de massa (Huyssen, 1997).

Não se trata aqui somente de usar o artigo de Benjamin como “fetiche intelectual”, mas de
traçar uma possível inspiração antropológica para esta tese. O foco na “possibilidade histórica
na percepção sensorial”,30 relacionado “às mudanças nas técnicas de reprodução na arte”
(1997: 36), baseava‐se no interesse de Benjamin pela “recepção tátil que, segundo ele, se
efetuaria menos pela percepção que pelo uso, menos pela atenção que pelo hábito” (Santos,
2003:159). Essa ênfase de Benjamin no uso e no hábito nos remete à ideia de habilidade ou
skill desenvolvida por Tim Ingold (2000), entendida como “uma perícia que nós levamos no
nosso corpo e que resiste à formulação em termos de qualquer sistema mental de regras e
representações. Essa habilidade não é adquirida através da instrução formal, mas pela
realização de tarefas rotineiras específicas que envolvem posturas e gestos característicos”
(Ingold, 2000: 162).

Por outro lado, há uma questão importante na crítica de Hennion e Latour a Benjamin, citada
anteriormente, a ser considerada, que é a de perceber a modernidade como flutuante, e não
de forma cristalizada ou reificada. No sentido de dar conta dessa maleabilidade, Matei
Calinescu lida com a ideia de modernidade (estética) através de suas diversas dimensões ou
“faces”, configuradas como modernismo, vanguarda, decadência, kitsch e pós‐modernismo,
não dependendo de uma temporalidade cronológica. Laymert Garcia dos Santos observa que,
quando tratamos da cultura moderna também como uma cultura tradicional, é possível

29
Calinescu (1996) não concorda exatamente com uma resolução da experiência bipolar da modernidade, para ele
associada a duas experiências temporais: a temporalidade objetificada e medida da civilização capitalista, e a
temporalidade pessoal, subjetiva, baseada no descortinamento do “self”. Ele argumenta que a cultura modernista
foi fundada a partir desta segunda temporalidade, que alia o tempo do self (Cf. Calinescu, 1996:5).
30
Benjamin diz: “No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se
transforma ao mesmo tempo em que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana,
o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente” (Benjamin: 1996:
169).
26


“apagar a fronteira que existia entre o tradicional e o moderno (as chamadas culturas
tradicionais e a cultura moderna). E, ao tratar a cultura moderna como também sendo de
outro tempo, como cultura tradicional, isso permite uma reavaliação completa das outras
culturas com relação ao moderno” (Santos In. Cohn e Savazoni, 2009). Aqui se aponta para a
possibilidade de perceber as concepções de modernidade como submetidas a um loop infinito,
como nos ensina Fernando Salis na epígrafe desta sessão, com todas as possibilidades de
variação de significados.

Os produtores
Essas leituras indicavam que se fazia necessário articular uma discussão sobre as noções de
“arte”, “tecnologia” e de “modernidades” para dar conta desta “tendência”. E parte do meu
desafio se direcionava para a possibilidade de transformar essa tendência em um campo
antropológico. Foi durante uma palestra de Anthony Seeger, no primeiro semestre de 2007,
que esse problema, aparentemente relacionado à minha (im)possibilidade de estabelecer um
campo, se manifestou como um problema do campo.31 Num determinado momento de sua
palestra, intitulada “Antropologia, etnomusicologia e indústria musical”, Seeger, que havia
discorrido historicamente sobre as relações entre tecnologias de gravação e a Antropologia ao
longo do século XX, encerrou o discurso com a seguinte frase: “todos agora estão
autoproduzindo”. Esta constatação, de novo tão vaga e ampla, carregava o mesmo tom do
artigo de Benjamin; o mesmo prenúncio de tendência ou de “espírito de uma época”,
constituindo‐se como um problema antropológico. Mas, apesar de saber perfeitamente que
não há um “todos” literal, a ideia‐chave se encontrava no “estar autoproduzindo”: a tendência
(“todos”) ganhava uma categoria antropológica, a de autoprodução. Tratava‐se de uma
categoria polissêmica por elencar uma série de definições, tanto em sua vertente analítica
quanto em sua vertente “nativa”. Estar produzindo também possibilitava encontrar um
campo: o que pessoas e seus computadores estão fazendo?

A solução seria então a de fazer do problema a possibilidade e seguir, como afirma Otávio
Velho, esses “novos sujeitos sociais” (Velho, 1995), os produtores, que pedem ao “olhar
presente” um “recorte [d]a sociedade de maneiras inusitadas” (Velho, 1995:157). Podemos
parafrasear Otávio Velho quando pondera em relação ao mundo moderno que “o próprio
abalo das crenças não leva, necessariamente, à simples descrença como ponto terminal, mas a
novas formas de crença” (Velho, 1995:154). Nesse mesmo sentido aponta Benjamin, quando

31
Uma versão preliminar do argumento que desenvolvo nesta sessão foi publicada em Bacal (2008a).
27


mostra um deslocamento da autenticidade como valor artístico a partir da reprodutibilidade
técnica: da eternidade e originalidade das obras dos gregos para a perfectibilidade da
reprodução e da ideia de montagem (Benjamin, 1996: 174). Velho e Benjamin propõem uma
mesma pergunta: qual o contexto de surgimento desses “novos sujeitos sociais” ou, nos
termos de Benjamin, dessa “nova barbárie” (Benjamim, 1996:115), a partir da modernidade?32
Quais as mudanças e deslocamentos por meio dos quais se atribuem essas novas
“autenticidades” a partir dos usos variados da digitalização? A total portabilidade,
transportabilidade e transmutabilidade de quaisquer (e de todos) os ambientes sonoros e
imagéticos parecem mirar para a implosão de algumas categorias de sensibilidade
“modernas”. E, como consequência, proliferam desejos de invenções de novas categorias
analíticas33 ou, por parte dos nativos, de proteger‐se sob uma categoria guarda‐chuva, como
no caso dos “produtores”.

Antes de tentar uma definição desse campo, mesmo que provisória, é importante voltar no
tempo para observar que os primeiros agentes que encontrei envolvidos em projetos de
autoprodução foram os DJs de música eletrônica, entrevistados para a minha dissertação de
mestrado, entre 2000 e 2003. Naquele momento, estava preocupada em delinear as narrativas
de agentes que passavam a ser apresentados como novos artistas, os DJs, principalmente
aqueles associados à cena da música eletrônica. Nesse cenário, as técnicas de manipulação
sonora passaram a ser consideradas a partir de um domínio técnico ou de habilidades próprias
da estética dos DJs, que começavam a vivenciar uma experiência parecida com a dos músicos e
bandas de rock de atrair os olhares e os corpos da pista de dança para uma configuração
semelhante a de um “público”, assim como a cobrar cachês para fazer apresentações musicais.
Em termos da estética dessa cena, havia toda uma recomposição de um imaginário futurista
que descendia da literatura de ficção científica e da criação de sonoridades realizadas com
equipamentos originariamente inventados para a reprodução. Ou seja, havia um tom de
manifesto que rondava a cena eletrônica como um todo: o uso da tecnologia digital como
dispositivo de autorreferencialidade. Mas havia um elemento importante a ser levado em

32
Poderíamos dizer que Benjamin está preocupado com o surgimento de uma “nova barbárie” modernista, e Velho
com novos sujeitos sociais pós‐modernos. Apesar dessas particularidades, ambos pretendem relacionar essa
novidade “moderna” a uma “tradição”, seja a partir de rupturas, ou de continuidades. Como afirma Benjamin,
“Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização” (Benjamin, 1996:115).
33
Para citar exemplos de dois etnomusicólogos, Ochoa (2003) pretende deslocar as categorias, para ela caducas, de
“música” e de “gêneros musicais” para “sonoridades contemporâneas”. E Feld (1995) pretende a substituição do
termo “esquizofonia” (criado originalmente por Murray Schafer para designar uma visão do impacto da tecnologia
em práticas musicais e ambientes sonoros, com preocupação muito marcada pela crítica à cultura de massas) para o
de cismogênese complementar (tomada de Gregory Bateson), a fim de dar conta das contestações criativas e
embates, no âmbito cultural contemporâneo, em termos de criação e recepção, que estão em constante jogo.
28


consideração: num contexto em que o sample e o remix são utilizados como os principais
modos de produção sonoras digitais e em que o material pré‐gravado era tratado como as
“notas musicais” dos “instrumentos” pick‐ups (toca‐discos profissionais), valoriza‐se mais o uso
dos discos de vinil (mídia analógica) do que o de CDs em contextos de performance dos DJs de
música eletrônica. Ao contrário da tendência mais ampla de uso do CD como mídia sonora, os
DJs defendem o emprego do vinil, alegando basicamente que neles vibram frequências
sonoras não existentes nos CDs, fenômeno importante para a sonoridade do ambiente; tocar
com vinil exige um controle direto do som com as mãos, ao contrário do CD. Dessa forma, as
atuações dos DJs ganhariam algo de uma performance ao vivo, “quente”, em termos de
proximidade com o público, e técnica, em termos de manusear o pick‐up como um
instrumento musical, ao contrário da “frieza” e do “distanciamento” atribuídos à mídia digital
(o CD) (Ferreira, 2004; Thornton, 1996; Bacal, 2003).34 É possível afirmar que os polos da magia
e da feitiçaria, no caso dos DJs e dos personagens que trataremos a seguir, atualizam‐se em
muitos casos entre o analógico e digital, às vezes tendendo a ver, um ou outro, ora como polo
positivo, ora como negativo.

Por outro lado, o momento de realização da minha dissertação coincidiu com o de crescente
legitimação e consequente reterritorialização da música eletrônica no cenário brasileiro.35 Esse
desejo de legitimação por meio de uma luta pela “função‐autoral” (Foucault, 1979)36 se
traduzia pela prática (em muitos casos recente, naquele momento) dos agentes em produzir

34
Por outro lado, há vários DJs que preferem tocar com CD, porque, além de os LPs serem muito caros quando
feitos para DJs, paga‐se uma taxa muito alta para importá‐los. O CD, ao contrário, possibilita tocar os últimos
lançamentos baixados da Internet, e sem custo. Além do mais, já existem alguns CDs fabricados que permitem o
alcance de variações sonoras que se aproximam das do LP. A perfectibilidade como meta é a intencionalidade dos
meios de reprodução tecnológicos. Uma tendência atual é a de alguns DJs tocarem com dois Ipods, a última
invenção digital que, dependendo da memória do aparato, permite armazenar incontáveis números de faixas
sonoras, de imagens e de vídeo. É um aparelho pequeno que permite ser transportado e plugado em diferentes
espaços (a sala, o quarto, o carro, o trabalho). Muitos dizem que, com a chegada dos Ipods, o uso de CDs irá
diminuir consideravelmente. Seguindo essa mesma tendência, já existem disponíveis maquinarias que tocam CDs
como se fossem analógicos, chegando ao ápice com a mídia do final scratch – bolacha digital que permite a
manipulação de músicas baixadas in actu da Internet.
35
Outro dado interessante para ressaltar naquele momento de legitimação dos DJs de música eletrônica no cenário
“cultural” e “artístico” é que vários dos DJs e produtores que entrevistei insistiam em criticar a “cultura brasileira”
por “ainda não reconhecer o DJ como profissão”, e afirmavam que não viviam unicamente daquela atividade por
causa de salários insuficientes. Por outro lado, em sua grande maioria, os DJs preferiram manter os nomes próprios
ou artísticos em minha dissertação – todos sempre muito atenciosos e interessados em uma “boa” divulgação da
“cena”.
36
Para Foucault, a função autoral “é característica de um modo de existência, de circulação, e funcionamento de
determinados discursos dentro de uma sociedade”; assim, o nome do autor performatizaria “um papel em relação
ao discurso narrativo, assegurando a sua função classificatória” (Foucault, 1979:146).
29


“música própria”.37 E essa produção se realizava em estúdios caseiros, muitas vezes equipados
com um único computador, que, em sua maioria, se localizava no quarto (já que muitos
desses “produtores” eram “jovens” e ainda moravam com os pais). Apesar de voltada naquele
momento para os DJs, muitos deles já estavam em vias de tornar‐se produtores.38 A frase do
jornalista paulista e DJ de techno Camilo Rocha foi bem circunstancial quando afirmou: “o
passo lógico para a maioria dos DJs é, depois que está tocando, começar a produzir as suas
próprias músicas, a ser criador de música própria”. Mas “ser criador de música própria”, para
aqueles DJs, configurava uma outra forma de criação muito específica, que passava, durante as
entrevistas, por ter como instrumento um computador (que, em diversos momentos, era
manuseado para ilustrar algum ponto durante as entrevistas) e pela “palavra de ordem” de
“não entenderem nada de música”. Era recorrente, por exemplo, a afirmação dos DJs de que
não sabiam fazer música. Este é o caso do DJ de drum´n´bass, sediado em São Paulo, Ramilson
Maia: “Como eu vou fazer música? Eu não sei nada, não sei tocar teclado, não sei cantar, não
sei fazer letra. Como é que você quer que eu faça música?”. Ou mesmo de negar veemente,
como o DJ e produtor de techno Marcelo Schild: “Não sei nada! De teoria musical, de notas, de
harmonia, de tom. Não sei o que é fazer um acorde, se mudou pra uma quinta, eu não sei”.
Mas, por outro lado, ele afirmava saber de “coisas técnicas, de produção de música, de
engenharia de som. Já trabalhei em estúdio, sempre pesquisei, tenho milhões de coisas, toda a
parte técnica de som sou eu que faço”.

Marcelo Schild, em sua fala, remete a algo marcado nas narrativas subjetivas dos DJs com os
quais tive contato. Variando em idades que não atingem os quarenta anos, os DJs falaram
sempre, nas suas histórias de vida, da relação com a música como mais vinculada à maneira
como a ouviam do que com a aplicação no estudo de algum instrumento musical. Era o que se
escutava em casa, na esteira das escolhas de pais e irmãos, o que começaram a ouvir e a
gostar e os discos que principiaram a colecionar. E, nesse ponto, saber das “partes técnicas” se
tornava um termo valorativo para poder criar música eletrônica. Esses produtores herdaram o
legado das experiências dos estúdios de gravação. Nesse sentido, quando o disco, o objeto
gravado, deslocou a vivência de uma escuta no ato da performance para uma experiência de
escuta do disco enquanto “obra final”, uma das características consequentes, entre outras, foi

37
É importante mencionar aqui que os DJs estavam envolvidos num jogo retroalimentar de engajamento com a
“proliferação dos significados” e, ao mesmo tempo, de se legitimarem como “autores”. A manipulação desses
registros produzia um espaço rico de investigação, já apontando para o desejo de manutenção da “ambiguidade”,
como veremos adiante.
38
Naquele momento, eu não estava buscando a autoprodução na minha pesquisa, mas, assim como “as vacas para‐
os‐nuer‐e‐para Evans‐Pritchard”, esse acabou sendo um tema abordado por mim, mesmo que pontualmente; com o
passar do tempo tornou‐se uma categoria fundamental para o meu doutorado.
30


o aperfeiçoamento do estúdio como o próprio instrumento e o disco como obra artística final.
Trata‐se de um processo que teve início a partir dos anos 60, em forte conjunção com os
desenvolvimentos tecnológicos na área musical, embora tenha demorado um tempo
considerável para que os técnicos e engenheiros de som ganhassem o status de artistas.

Em etnografia dos processos de gravação no início dos anos 80, Antoine Hennion se refere a
uma atuação ainda incipiente na França dos engenheiros de som como “novos músicos”. Ao
contrário dos seus congêneres norte‐americanos, “os engenheiros de som franceses se contam
no momento nos dedos da mão. Os outros apenas se desembaraçam da situação anterior na
qual eles não eram senão uma engrenagem mecânica, completamente exterior à criação
artística” (Hennion, 1981:153 – nossos grifos). Nesse sutil processo de passagem da condição
de “parte da engrenagem mecânica” para o estatuto de “novo músico”, Hennion especifica as
atividades do engenheiro de som, voltadas para a “atenção ao som”, para a “manipulação
eletrônica” e para os “efeitos artificiais”. E essas aptidões fazem com que ele se relacione com
o estúdio como um instrumento e não como um “aparelho de gravação”. A relação se
estabelece de tal forma que consideram o estúdio um “instrumento onde o som é produzido, e
não reproduzido. Nesse sentido, a música não é aquilo que esses efeitos e manipulações
traficam e deformam, mas, ao contrário, aquilo que eles formam” (idem: 154,155 – nossos
grifos). Assim, afirma Hennion, os “jovens engenheiros de som” não dissociam as invenções
técnicas das pesquisas musicais, e os novos aparelhos e sonoridades não podem mais ser
considerados “desprovidos de significações musicais”, por se encontrarem “na encruzilhada de
múltiplas demandas” de criação de sentido (cf. Hennion,1981).

Em entrevista recente, o músico e compositor Lucas Santana afirmou que atualmente “a


figura do produtor” (uma versão mais contemporânea e ambígua do que o engenheiro de
som) “é uma coisa muito confusa”. Isso se passa por causa de uma mudança não só na “figura
do produtor” como também na do “músico”. Lucas afirma que atualmente a música não chega
“pronta” para ser gravada pelo produtor, na medida em que a composição só fica pronta
39
depois de masterizada por ele. Assim, todos os que participam do processo são em parte
compositores da música (Santana, In. Savazoni e Cohn, 2009:193).

Por outro lado, não me parecia suficiente abandonar por completo a dimensão expressiva que
a categoria “músico” engloba. Quando disse acima que os DJs e os produtores teriam herdado
o legado dos estúdios de gravação, não gostaria de deixá‐los presos unicamente a esse

39
A masterização é considerada o último passo do processo de gravação de um áudio para um formato que pode
ser reproduzido e copiado.
31


registro. Compartilha‐se, sendo DJ e sendo produtor, uma certa ambiguidade nas narrativas de
autodefinição subjetiva. Sobre os DJs, Camilo declara que não costuma dizer que “eles são
músicos, mas que têm ouvido musical.” Camilo acrescenta: “Embora não seja um músico no
sentido tradicional da palavra, ele conhece e tem ouvido musical”. Desse modo, diz algo
ambíguo à maneira de Schild: “Não tenho formação musical, mas a minha formação é musical,
em função da música”. Em outras palavras, eles estavam enunciando que, apesar de não
criarem música com instrumentos “usuais”, apesar da formação técnica dos estúdios ou dos
pickups, não se reduziam a “meros” técnicos. A ambiguidade dos termos traduzia uma
gramática de criação específica para a música eletrônica.40

No entanto, foi somente um ano depois de ter finalizado a dissertação, enquanto entrevistava
o produtor e DJ carioca Marcelinho DaLua, que me vi diante de um problema de “falta de
comunicação”. Digo que ocorreu uma falta de comunicação porque perguntei em três
diferentes momentos, com certa insistência (ou seja, com pouca sensibilidade antropológica),
como ele se definia em termos de “identidade musical”. Reproduzo aqui as suas respostas,
nos diferentes momentos, sempre vagas: “Não sei. Isso é complexo. Acho que eu sou um
colaborador da nossa cultura. Tento mostrar para as pessoas a cultura de origem africana, o
samba, o reggae” (...) “Eu gosto muito de criar e ter informação e conhecimento”. (...) E,
finalmente, depois de muita “pressão”, ele respondeu: “E eu não sei se me considero músico,
porque músico eu não sou. Mas faço música, então pode ser que eu seja um músico... Mas eu
aprendi bastante sobre ritmo”.

Essa mistura de multiplicidade, ambiguidade e hesitação quanto à sua identidade criativa e


profissional soava como um eco do que eu ouvira durante as diversas entrevistas realizadas
para a minha dissertação de mestrado. Não era propriamente uma novidade, mas foi apenas
naquele instante que ela se evidenciou como um problema. Na época da dissertação, eu
estava preocupada com a definição de uma nova categoria de artista: aquele que apresentava
qualidades musicais sem ser um músico no sentido clássico do termo. Mas a trajetória de

40
Por outro lado, é possível verificar, com o exemplo a seguir, que essas experiências de autoprodução digital
implodiram a “cena” da música eletrônica e afetaram outros espaços, inclusive os mais “institucionais”. A
experiência narrada por Hermano Vianna de ter gravado a trilha do filme dirigido por Andrucha Waddington, Eu tu
eles, com o Gilberto Gil (Gilberto Gil e as canções de Eu, Tu, Eles, Warner Music, 2000), é indicativa dos usos
possíveis dessa tecnologia, não necessariamente compromissados com uma estética “eletrônica”. Nesse disco, que
utiliza como referencial estético musicalidades tipicamente nordestinas, Hermano conta ter sugerido, para a sua
confecção: “fazer tudo com instrumentos acústicos, mas todos processados pelo computador e trabalhados no
ProTools, para descaracterizar os instrumentos acústicos, que eram todos instrumentos nordestinos. Ele [Gil] topou,
e eu disse também: ‘Vamos fazer com o Chico Neves, que é um produtor que trabalha muito bem com o ProTools e
trabalha em um estúdio pequenininho’. Ficamos lá gravando, e vi muitas coisas, tipo o Gil cantando, e o Chico já
processando em tempo real os sons, com o Gil já respondendo ao processamento dos sons”.
32


DaLua se iniciou nos estúdios de gravação, ao contrário da maioria dos DJs que havia
entrevistado para a minha pesquisa. Somente mais tarde ele se tornou DJ e entrou em contato
com a música eletrônica. Isso explica, em parte, o meu engano em achar que ele teria um
discurso mais “articulado” sobre a sua “identidade”. DaLua havia traçado o caminho oposto ao
da maioria dos DJs – dos estúdios para as pistas. Nos termos de Hennion (1981), DaLua, como
engenheiro de som, já poderia ser considerado um “novo artista”. O caso de DaLua era
também interessante porque, naquele momento, havia criado com Roberto Menescal o grupo
“Bossa Cuca Nova”. Com um dos representantes da Bossa Nova e com um DJ e produtor de
drum´n´bass, as performances extravasam os espaços da cena e se faziam conhecidas por um
público mais amplo. Esse produtor, como criador, não se limitava unicamente ao circuito de
criação, apresentação e circulação, o que contribuía para a soma de indeterminações
presentes nesse personagem.

E foi naquele momento de “vazio explícito”, exemplificado pela falta de palavras de DaLua
para expressar uma definição de suas atividades criativas e profissionais, que me deparei com
a possibilidade de essa “hesitação” estar apontando para uma crise nas categorias de definição
artísticas, culturais e musicais clássicas ocidentais. E mais do que isso: ele não estava muito
preocupado em “ser” especificamente “alguém”.41 O reconhecimento dessa “falta de
comunicação” foi a condição de possibilidade para perceber como um campo se articulava
com uma “tendência” mais ampla. Nessa entrevista, compreendi que a preocupação com a
“identidade criativa” ou com a “identidade profissional” era somente minha. Eu estava diante
de um erro como o descrito por Roy Wagner (Wagner, 1974), no sentido de encontrar
“identidades” em agentes que não estavam interessados ou, mais ainda, não reconheciam
essa categoria como recurso de classificação.42 A partir de então, foi possível perceber os DJs e
produtores de música eletrônica como personagens, entre outros agentes, envolvidos com
autoprodução, ao mesmo tempo em que se fazia possível integrar os produtores a uma
discussão mais ampla das transformações nas sensibilidades criativas no mundo
contemporâneo.

E, de fato, as características da musicalidade digital têm afetado os modos de circulação


musical, criando uma verdadeira crise para a indústria fonográfica. Proliferam, desde os anos
90, gravadoras independentes e estúdios caseiros (autoprodução), com os quais se criam, se

41
Veja‐se que ele só utiliza as palavras “músico” e “música” em sua última tentativa de articulação autodefinitória.
42
Faço referência à crítica de Wagner, em seu texto “Are there Social Groups in the New Guinea Highlands?”
(1974), à Antropologia, por ter pretendido fixar em socialidades não ocidentais um modelo de “sociedade”
ocidental. Ele alerta para o “perigo” de pôr no “outro” categorias que são “nossas”.
33


“queimam”43 e se distribuem CDs fora do circuito das grandes gravadoras, e sites de
intercâmbio musical na Internet44. Em termos mais amplos, “o consumidor passou a controlar
parte das estratégias de distribuição” e também de produção (Ochoa, 2003:21). O fato de o
Brasil aparecer nas estatísticas das indústrias fonográficas legais como o terceiro país no
ranking mundial de pirataria é indicativo de que os processos de circulação musical não estão
passando pelo crivo da grande indústria fonográfica, mas por meios alternativos, e que não são
necessariamente “ilegais”. Essa situação tem criado um cenário curioso, em que o Brasil
começa a ser percebido pelos norte‐americanos como uma grande ameaça ao pensamento
ocidental de propriedade intelectual, ou seja, como “pré‐moderno”, ou mesmo
“antimoderno”. Para os ativistas da Internet, o Brasil passa a ocupar um lugar de destaque
pelas qualidades “indígenas” que atribuem aos seus sites de compartilhamento de imagens e
sons, que teriam adotado como prática a “economia do dom”.45 Assim, ao contrário do
governo norteamericano que vê o Brasil como “pré” ou “antimoderno”, os ativistas do
software livre, justamente pelo fato de o país desrespeitar as regras internacionais de direito
autoral, que consideram “arcaicas”, o concebem como “hipermoderno”. Talvez os internautas
citados estejam mais inclinados a considerar o caso brasileiro como um exemplo de
“modernidade alternativa” (Velho, 2005),46 e com isso indicando não uma crítica mas um
elogio.

Apesar das leituras alternativas explicitas no parágrafo anterior, Frith e Marshall (2004)
observaram que os acordos reguladores dos anos 90 fizeram com que indústrias de música de
diferentes países com histórias específicas tivessem que se submeter às mesmas regulações de
direito autoral e sofrer ameaças de uma mesma sanção internacional, caso não se adequassem
ao modelo ocidental de proteção do direito autoral em seus domínios (Frith e
Marshall,2004:13). Por outro lado, o direito à propriedade intelectual ampliou o conceito de

43
Expressão que designa a gravação de CD. Vem do inglês, burn a CD.
44
Vários grandes sites de compartilhamento de músicas já foram fechados, como o NAPSTER e o AudioGalaxy, por
perderam judicialmente para as grandes gravadoras em defesa dos direitos autorais. Mas, enquanto esses foram
fechados, outros tantos novos vão surgindo.
45
Marcel Mauss (2003a) desenvolve no seu Ensaio sobre a dádiva a centralidade da troca de dons na constituição e
na organização dos grupos sociais. Segundo Mauss, a troca envolve algo além do meramente econômico,
alcançando também as dimensões morais, religiosas e políticas do fenômeno, a partir do qual o autor propõe o
conceito de fato social total (Op. cit: 309). A forma como o dom vem sendo utilizado nas discussões deste trabalho
retoma a oposição que Mauss elabora nas conclusões, quando opõe a economia do dom à economia do interesse.
Como afirma Mauss, “o homem foi por muito tempo outra coisa e não faz muito tempo que é uma complicada
máquina de calcular” (Op. cit: 307). Assim, apresentam‐se as duas posições: o resgate do dom por uns se opõe à
defesa do mercado por outros.
46
A ideia de Velho da existência de uma “modernidade alternativa” é uma referência à crítica que faz a Bruno
Latour no sentido de que a modernidade proposta por este último não daria conta da modernidade praticada no
Brasil. Desenvolverei este tema no Plug‐in Daniel Castanheira/Hapax.
34


propriedade cultural, incluindo ideias, artefatos, conhecimento médico, plantas e
conhecimento genético, gerando um uso particular das sociedades “não ocidentais” dessas leis
(cf. Strathern, 2009). Assim, percebemos o movimento coincidente de imposição de regras
legislativas da função‐autoral e outras modalidades de autoria emergentes criadoras de novos
significados como parte da discussão do momento contemporâneo.

Muito dos efeitos aqui apresentados se devem ao fato de que, a partir das possibilidades
tecnológicas, é cada vez mais fácil acessar espaços de produção cada vez menores. Assim, com
variações de maior ou menor tecnologia de softwares e hardwares – o grau acelerado com que
se criam novas tecnologias também acelera o barateamento de custos de tecnologias
“ultrapassadas” –, o pequeno estúdio pode chegar ao limite de ser um computador caseiro.
Essa facilidade de acesso tecnológico tem aberto possibilidades para o surgimento de estilos
musicais como o funk carioca, o hip‐hop e o drum’n’bass em periferias e favelas no Brasil, e
também de numerosos outros grupos ou intérpretes em geral. Por outro lado, está igualmente
ampliando a categoria de produtor em diversas categorizações.

Estas tensões na música podem ser também percebidas no âmbito da produção de imagens, a
partir do aparecimento das máquinas digitais no mercado fotográfico. Em termos de um
acontecimento mais amplo, vemos, por um lado, várias empresas que produzem máquinas
fotográficas diminuírem a fabricação de máquinas analógicas e direcionarem os seus
investimentos para as máquinas digitais. E, numa via de contracorrente, vemos movimentos
de tornar a fotografia (analógica) “patrimônio da humanidade”, antes que “deixe de ser
fabricada”, configurando uma retórica da perda (Gonçalves, 1996),47 em relação ao espaço
estético da fotografia analógica na sociedade ocidental.

Vemos surgir também chips que podem ser inseridos em máquinas digitais como se fossem
asas analógicas, de maneira a fazer com que o meio digital crie a ilusão das granulações
possibilitadas pelas máquinas analógicas. E, como contratendência, existem trabalhos que se
aplicam a fazer com que o filme analógico se assemelhe à imagem digital, considerada, por
alguns, mais “limpa”. Configura‐se assim um panorama curioso em que se tenta encontrar o
analógico via o digital, e o digital, via o analógico.
Podemos perceber a intensificação dessa tendência mais ampla nas palavras de um jovem
fotógrafo, que me disse não ser possível igualar as fotografias digitais e analógicas. Para ele,

47
A retórica da perda, acionada para proteger a fotografia analógica do “desaparecimento”, se aproxima do sentido
usado por Reginaldo Gonçalves, para quem “as práticas de preservação histórica nas modernas sociedades
nacionais estão associadas a narrativas que se configuram como respostas a uma situação social e histórica na qual
valores culturais são apresentados sob um risco iminente de desaparecimento” (Gonçalves, 1996:89).
35


trata‐se de dois procedimentos absolutamente díspares. O primeiro se faz a partir de um
processo “químico”, o que daria “autenticidade” à fotografia, enquanto que o processo digital
seria produtor de “imagens digitais”, lançando para o registro “inautêntico” a fotografia digital.
Nesse sentido, para este fotógrafo, as máquinas digitais, assim como os CDs para os DJs de
música eletrônica, transmitiriam uma distância “fria” da parte de seus manipuladores, não
consistindo em uma “verdadeira arte”. Se a autenticidade da fotografia se fundamenta no
processo químico em que o fotógrafo manipula manualmente o material fotográfico, na
música eletrônica ela se deve ao procedimento do DJ de acionar manualmente o material
discográfico. A máquina digital e o CD impossibilitariam os dois processos citados. Assim, criar,
para quem trabalha com essas mídias, depende até certo ponto da interferência ou da agência
da máquina, ficando ao seu encargo parte da “produção”. Por outro lado, esse mesmo
fotógrafo mencionado, que enfeitiça a fotografia digital, gastou todo o pagamento que havia
recebido com um trabalho bem remunerado na compra de uma máquina digital profissional,
porque atualmente, para ele, é “importante acompanhar os últimos avanços da fotografia”.

Ainda poderia citar mais um exemplo extraído do trabalho que realizei (2006) acerca de um
suporte na Internet: o fotolog. Este suporte disponibiliza aos internautas uma página que
permite a inclusão de uma imagem fotográfica e de um texto ilustrativo, um a cada dia, para
usuários não pagantes. Esse trabalho, intitulado “O fotolog como uma dimensão do eu: o
suporte tecnológico e a busca da autenticidade”, procura analisar os usuários que se
autodenominam criadores de “fotologs autorais”. O interessante é que os usuários do fotolog,
em sua grande maioria, fotografam integralmente com máquinas digitais e realizam seu
“tratamento” por meio de programas específicos para a manipulação de imagens no
computador. O próprio suporte, que havia sido criado por dois fotógrafos americanos,
objetivava o intercâmbio de imagens fotográficas entre profissionais e amadores, partindo das
novas possibilidades da fotografia digital (e, de fato, ficou evidente que, entre os criadores de
fotolog que entrevistei, a maioria passou a usá‐lo como empreendimento cotidiano depois de
terem comprado uma máquina digital). Entretanto, segundo os entrevistados, que chamo de
fotologgers autorais, esse projeto inicial dos criadores do suporte não se cumpriu
integralmente porque o fotolog foi “usurpado” por adolescentes brasileiras “egocentradas”,
que criavam “colunas sociais” para informar sobre suas amizades e difundir eventos sociais.
Opondo‐se a esse procedimento de limitar‐se a mostrar fotos dos “amigos”, os fotologgers
“autorais” estariam comprometidos com a ideia inicial dos criadores do suporte. Resistiriam ao
“mau uso” do suporte por intermédio de um “investimento de criação”, como me disse um

36


fotologger artístico e literário. São as fotos artísticas e os textos literários que confeririam
autoria aos seus fotologs.48

Em todos os exemplos expostos, percebemos um vocabulário da “moderna” da arte, como a


“autoria” (no caso dos fotologs autorais) e o uso direto do corpo humano como processo
criativo por excelência (nos casos dos DJs de música eletrônica e do fotógrafo profissional),
interagindo ao mesmo tempo com “novos” vocabulários e usuários. Se num ambiente não se
questiona nem o meio digital nem o suporte digital, busca‐se, em compensação, a autoria.
Num outro ambiente bane‐se o meio digital, mas este é ao mesmo tempo utilizado como algo
imponderável do mundo atual. Qualquer um dos procedimentos de celebrar ou recusar as
tecnologias digitais não elimina a necessidade de se relacionar com ela de alguma maneira (no
caso daqueles envolvidos em criar, usando essas mídias de reprodução). A partir desse
relacionamento, emergem vocabulários por vezes contraditórios, que se cristalizam num
momento e perdem o sentido num outro. É na própria contradição – entre a fala e a ação,
entre o uso de mídias aparentemente conflitantes, entre discursos divergentes – que surgem
esses novos criadores, os produtores.

Para ilustrar esse ponto retorno aqui aos DJs de música eletrônica. Pelo tipo de performance
(diluição das oposições entre palco e plateia) e pelos meios de que dispõem para realizar essa
performance (os pickups e os discos substituem os instrumentos musicais e as notas), a noção
de artista que se forma em torno do DJ é de mediador ou como o “próprio objeto de
mediação”. Isso aparece em vários discursos dos próprios DJs, dos críticos e do público quando
se referem ao DJ como um “canal entre a música e o público”, ou nas metáforas aproximativas
do DJ com o “xamã” ou com o “padre”. Claro está que, dos DJs considerados “mais artísticos”,
cobra‐se, além da boa escolha musical, que façam a sua performance de tal modo a atrair os
olhos do público em sua direção. Pelo registro de criação desses artistas, eles residem numa
esfera em que, ao contrário de outros performers, se realiza na ambiguidade, na contradição
de serem astros sem serem astros, de serem músicos sem serem músicos, de serem autores
sem serem autores. Assim sendo, se a categoria de mediador é a que mais define esse artista,
a condição do DJ muda consideravelmente quando ele passa a produzir música própria,
quando se torna produtor. Apesar de criar música a partir de pedaços de outras músicas, ou de

48
Esse constitui um bom exemplo para mostrar como a Internet surge como mais um espaço ocupado pelo mundo
social diferenciado e fragmentado. Da mesma maneira que impomos formas de tornar mais analógicos os
relacionamentos formatados a partir de uma imposição digital, também transpomos para o mundo “real” parte do
vocabulário que empregamos na esfera virtual. Trata‐se de um jogo de intertensão existente em diversos planos
por intermédio de discursos na sociedade. Esta não é mais que outra maneira de dizer que, ao contrário do que se
imaginou inicialmente, o ciberespaço não é uma experiência extracorpórea ou uma “alucinação”. Trata‐se, pelo
contrário, de uma esfera cada vez mais impregnada pelo mundo (Wilson e Peterson, 2002).
37


elaborar faixas usando inteiramente sons vindos de sintetizadores ou de computadores, é com
esse tipo de produção (mesmo caseira) que o DJ se torna artista criador, não somente pelo
modelo de empreendimento envolvido, mas também por poderem registrar e ganhar direitos
autorais com as suas músicas. Por outro lado, não é somente circunstancialmente que os DJs
devindo produtores figuram na abertura desta tese. Tobias van Veen, a propósito, defende
que as sonoridades desenvolvidas com softwares digitais no último quarto de século do século
XX (desde os sons afro‐americanos que samplearam o funk, o soul e o jazz com os “trabalhos
maquínicos” de Kraftwerk) não teriam se tornado um “movimento tão popular e amplo” se
não fosse pelo techno (van Veen, 2002:3). Ou seja, é importante ter sido afetado pelo universo
teórico e estético do techno para adentrar no mundo da “autoprodução”.

As atividades de autoprodução digitais não se restringem à cena eletrônica. Elas podem ser
encontradas “por toda parte” (uma maneira mais apropriada de alocar os “todos”
mencionados por Seeger em sua palestra ao se referir ao fato atual de que "todos estão
produzindo"). E, mesmo “fora dela”, reincidem argumentos para acionar‐se a ambiguidade. Em
termos metodológicos, quando me refiro a “dentro” ou a “fora” da cena da música eletrônica,
não imagino essas delimitações como “verdadeiras” no sentido de serem entidades discretas.
Para “adentrar” (ou inventar) o universo da música eletrônica, foi importante ver “tudo” o que
não havia sido esse “universo”. Com os referenciais teóricos e estéticos ali encontrados, é
possível olhar agora para o “fora”, o que não significa “abandonar o dentro”, mas percebê‐lo
como um exemplo entre outros de atividades de produção com máquinas. Em outras palavras,
o caminho “de artesão a artista” (cf. Thornton, 1996, e Bacal, 2003) atravessado pelos DJs
desde os anos 50 do último século é um caminho de reverter tudo o que ele “não era”,
englobado na categoria “músico”. O caminho de “dentro para fora” que agora faço permite
estabelecer uma análise a partir de tudo o que os “DJs e produtores são” e pelo que “fazem”
(sons e imagens criados pelo computador), e por tudo o que “os músicos não são.”

Corroborando esta ideia, Niccolas Bourriad (2009) afirma que o DJ e o programador visual
seriam “figuras gêmeas” de uma atividade artística contemporânea que deriva da “pós‐
produção”. Na opinião do autor, um “termo técnico usado no mundo da televisão, do cinema e
do vídeo designa o conjunto de tratamentos dados a um material registrado: a montagem, o
acréscimo de outras fontes visuais ou sonoras, as legendas, as vozes off, os efeitos especiais”
(Bourriad, 2009:7‐8). Segundo um jovem VJ, essa tarefa da pós‐produção teria se expandido
para o próprio momento da concepção. A esse respeito, o cineasta, artista visual e VJ Peter
Greenaway afirma: “Estou numa posição muito privilegiada. Tenho formação de pintor, possuo

38


uma educação oratória bastante articulada em termos de literatura, e tenho experiência como
editor de filmes. E edição de filmes é a melhor maneira de organizar os fenômenos agora. O rei
agora é o editor” (Greenaway, In Zavareze, Catálogo 2008:85).

Assim, dou início a um primeiro delineamento do campo com algumas possibilidades de


identificação. Primeira possibilidade: a categoria “autoprodução” seria aplicada para referir‐se
a usuários que utilizam o computador para a criação. A segunda consideraria que as criações
feitas no computador desencadeariam uma relação complexa entre as dimensões analógicas e
digitais do processo criador em questão. E, por último, que a noção de autoprodução não
indicaria um nome, mas uma ação; assim, as consequências dessa modulação terminológica
seriam importantes para integrar um campo antropológico a uma tendência contemporânea,
como veremos mais adiante. A partir dessas primeiras ideias aqui expostas, gostaria de sugerir
que a categoria “produtor” serve atualmente como um amplo guarda‐chuva para abrigar
novos protagonistas artísticos “sem nome”, agentes que carecem de uma denominação que os
caracterize precisamente. Pois, se por um lado os termos convencionais, como “artista”,
“autor” e “músico”, não correspondem à sua atividade, por outro, o vocabulário, nativo ou
especializado, parece não os ter ainda conceitualizado com exatidão. Meu objetivo começou a
se configurar para investigar o surgimento de agentes artísticos que, às vezes (mas não
necessariamente), se autodenominam produtores, atribuindo autenticidade às suas criações
pela prerrogativa de estarem se distanciando das formas de composição “tradicionais”.

Lidar com a categoria “autoprodutor" me exigiu, no entanto, repensar a etnografia e a teoria


que o campo começava a pedir para trabalhar com os vazios e as ambiguidades inerentes a
modos alternativos de pertencimento.

39


Capítulo 2

Alguns Relatos autossimilares: Uma proposta abdutiva ou como


encontrar “os produtores em toda parte”

O ciborgue supõe a possibilidade de realizar conexões sem a suposição de


comparabilidade: compatibilidade sem comparabilidade.
Marylin Strathern, Partial Conexions, 1991.

Es sobre todo el instrumento de La abducción, que consiste en extraer de los


fenómenos de diferentes campos aquello que ellos comparten.
Gregory Bateson, El Temor de los Ángeles, 1989

Vimos no Capítulo 1 que a visibilidade do produtor como categoria surgiu para mim na ocasião da
pesquisa que desenvolvi na minha dissertação de mestrado sobre os DJs de música eletrônica.
Gostaria de frisar que um argumento central nesta tese é o efeito catalisador da música eletrônica
por ter imprimido uma estética que no Brasil ganhou impulso na virada do milênio, coincidindo
também com o uso crescente da Internet.

Um pequeno exemplo do "efeito" da música eletrônica pode ser dado com a constatação de Felipe
Vaz em sua dissertação de mestrado – um dos personagens deste trabalho e que será apresentado
mais adiante – sobre o termo "arte sonora", que começou a ser empregado no contexto das artes
plásticas nos anos 90. Vaz afirma que "desde esta época, grandes exposições passaram a empregar o
termo, mas muitas delas faziam apenas associações entre música (especialmente derivações do
techno) e tecnologia, ou entre música eletrônica e a produção ao vivo de imagens por meio
tecnológico, notadamente Sonic Process (MCBA, 2202) e Bitstreams (Whitney Musuem, 2001).
Outras ainda simplesmente reapresentavam música experimental no contexto do museu (LICH;
2007)" (Vaz, 2008: 3‐4). Outra ilustração significativa desse efeito é percebida na introdução ao livro
New Media Art, de 2000. Os autores propõem que a arte das “novas mídias” se inspira nos
readymades de Duchamp e na prática de reciclagem da Pop art, desde a publicidade até os livros de
quadrinhos. Mas o uso dos remixes como modo de criação estética, de apropriação de elementos já
existentes, também é influenciado pelas práticas de remixagem e sampling da música pop,
“principalmente do hip‐hop e da música eletrônica de pista” (Tribe & Janna, 2006:14).

40
Os produtores surgiam como modelos de compositores, os botões, como instrumentos musicais, os
designers, DJs e VJs, como performers, ao utilizarem efeitos sonoros e visuais criados com máquinas
em grandes performances. Desenvolvi a ideia de que esse elemento propulsor foi um espaço
concentrado de polinização que teve um efeito disseminador e novos (auto)produtores começaram
a surgir em outros contextos, não necessariamente identificados com a cena eletrônica.

A tese que ora apresento passou a ser concebida depois do “efeito” (passado ou concomitante) da
música eletrônica sobre os agentes que configuram o meu atual campo de pesquisa. Gostaria de
ilustrar a sensação do efeito dessa estética com outra menção ao depoimento que Felipe Vaz me fez
especialmente. Felipe realizou a arquitetura do site Overmundo, site patrocinado pelo Governo
Federal e pelo qual ganhou o prêmio Ars Eletrônica por seu desenho inovador. Felipe também
desenvolve produções de música eletrônica e de arte sonora. Ele me disse que, quando se deparou
com a cena techno, interessou‐se em realizar experimentos através da produção de música
eletrônica. E, sentindo‐se um pouco enfadado com o trabalho como designer na Internet, decidiu
ingressar num programa de mestrado da ECO/UFRJ. Sua dissertação de mestrado acabou sendo
sobre a caracterização da arte sonora, pois, durante o período de pesquisa para a dissertação –
depois do primeiro impacto do techno e sua consequente sensação de ter “passado como fenômeno
de invenção” – a arte sonora lhe pareceu abrir um espaço de “maior invenção”. Mas o relato a seguir
(apesar de um pouco longo) vale para ilustrar o impacto desta cena, de ter sido vivido como um
“fenômeno de época” para Felipe, e pelo seu efeito disseminador.

Eu estava emburacando na coisa do techno e queria fazer uma reflexão sobre aquilo. Para mim,
era muita novidade. A ideia do mestrado veio ao perceber grandes mudanças na cultura, e de
precisar de uma reflexão sobre aquilo. Veio quando teve a Nokia Trends em 2005.49 É um
momento... São heterotopias de techno mesmo. ... E eu entrei nessa muito tarde, muito velho,
com 30 e poucos anos. Já não mais na idade de tomar ecstasy em festinha; então não rolou
muitas vezes. A Dani [mulher de Felipe] tinha tido a experiência, mas na época certa, e voltou
para se divertir comigo. Mas eu acabei me interessando pela estética da música. Uma vez eu
fiquei pensando ao ver aquelas pessoas todas enlouquecidas: “Aqui tem oito mil pessoas
dentro deste espaço, uma parte delas pagou R$ 90,00 pra entrar, e não tem um artista, ou um
artista só dentro dos muitos aqui, com um CD lançado no Brasil. No entanto, eles estão
ganhando dinheiro, tem um monte de gente pagando, tem milhões de marketing da Nokia
[marca de celular]”. Fiquei viajando assim: “Poxa, aqui, neste momento, as pessoas estão
pulando, como em câmera lenta com os cabelos ao vento, como nas propagandas de celular.

49
Festival de música eletrônica sediado ao mesmo tempo no Rio de Janeiro e em São Paulo, em setembro de 2005.
41
Ali, com essa sensação, esse enlevo, estão absolutamente extasiadas e felizes”. Eu ficava
imaginando também sobre o mercado da música. Tinha que tentar entender essa cultura, mas
ao mesmo tempo, de entender a estética do techno. Não de fazer um julgamento de valor; eu
estava curtindo muito. Para os meus antigos pares que estudaram música na universidade, o
techno parece um absurdo.50 Aquela música terrível, aquilo ali é a morte da música, a negação
da música. E, para mim, não. Para mim se apresentava como um outro paradigma, uma outra
criatividade, um outro código, uma outra elaboração de linguagem, uma outra pesquisa... Uma
música mais aberta, onde as coisas estavam acontecendo. O ponto que me interessava e que
me fez entrar no mestrado era não só uma coisa de estar meio de saco cheio com o trabalho só
com a Internet, mas [as questões]: “O que permitiu que um tipo de música se tornasse um
fenômeno de massa tão rápido, se ele é tão diferente?" Uma música sem letra, repetitiva, com
tempos longuíssimos, com uma instrumentação completamente diferente. "O que acontecia na
ponta da produção, na ponta do consumo, que permitia aquilo ali?" Principalmente pelo lado
da estética mesmo, da criação, pensar: "por que músicos passaram a fazer aquela música?" E aí
eu entrei numa de que tinha a ver com uma certa “economia da atenção”, sabe? Resolver um
problema. Quer dizer, hoje em dia a gente está ouvindo ao fundo música, mas não está
parando para ouvir música. É uma coisa paralela, de background; onde eu estou, tem música
rolando no fundo, e ninguém para realmente fruir música. No caso do techno, parecia ter uma
base de redundância: “bum, bum, bum, bum, bum,” numa outra sintonia, e, a partir dali,
fazendo pequenas modulações, movimentos minimalistas. Era outra forma radical de conseguir
discursos; e com isso muitos artistas conseguiam construir discursos interessantíssimos. Mais
ou menos a mesma coisa do minimalismo na música do século XX. Só que lá não tinha o bum,
bum, bum. Para mim, tinha essa coisa, esse pretexto, esse ambiente da dança; lógico que tem
uma coisa meio histérica aí, com a pretensão da sinestesia, coisa da droga e tal. Mas também o
de criar uma sintonia, como o pão onde, em cima do qual você vai fazer o seu sanduíche
realmente diferente.

Esta passagem convida a fazer uma série de discussões. A música eletrônica, como fenômeno de
“impacto geracional”, como relata Felipe, entrou na sua vida depois de passado o momento em que
“poderia viver isso de maneira intensa”, como considera que sua mulher vivenciou. Apesar disso,
Felipe diz que sentiu a música eletrônica como uma experiência de fruição, de criação e de reflexão.

50
Felipe refere‐se ao seu primeiro curso universitário em Música na Unicamp. Dois anos depois, ele cursou Comunicação
Social na UFRJ.
42
Percebemos em sua fala a articulação desses elementos de modo reflexivo.51

A ideia de “momento certo” para vivenciar experiências de uma “vida noturna intensa” se relaciona
em parte com uma noção aliada à categoria “juventude”. Identifiquei uma sensação semelhante há
alguns meses, em um encontro casual no Jardim Botânico com Marcelo Schild, enquanto ambos
passeávamos com os nossos respectivos filhos pequenos. Schild tem uma participação
importantíssima na minha trajetória de pesquisa, já que acompanhei o seu percurso ao longo de
muitos anos. Schild me concedeu a primeira entrevista no final de 1998, para a minha monografia de
final de curso; depois o acompanhei como DJ e produtor de música eletrônica pelas casas noturnas
até 2003. Foi o primeiro DJ que, durante uma entrevista para a minha pesquisa de mestrado,
sentou‐se no computador e me mostrou como fazia as suas faixas sonoras, e falou explicitamente
sobre o processo de produção caseira. Neste encontro casual, em 2009, ele disse que havia parado
de trabalhar como DJ porque não conseguia compatibilizar “a rotina da vida de DJ” com a nova
“rotina de pai”. Naquele momento, continuava produzindo e também estava se dedicando a fazer
traduções. Felipe Vaz igualmente se refere a algo nesse sentido, quando diz que entrou em contato
com a música eletrônica numa época em que não era mais possível viver “na noite”. Talvez deva ser
mencionado que Felipe também se tornou pai há pouco tempo. Como tenho maior contato com ele,
sei que estabelece uma espécie de “divisão de trabalho” com a sua mulher, já que alternam os
papéis: quando um “vive a noite”, o outro fica com a filha. Algo que acredito ser também a vivência
de Schild. Assim, depois de tornarem‐se pais, estes personagens não “abandonam a noite
inteiramente”, mas passam a vivenciá‐la de outra forma. Por outro lado – e este fato interessa a
minha pesquisa –, “sair da noite”, mesmo parcialmente, implica levar elementos dessa estética para
outros ambientes. Isso pode ser percebido, no caso de Felipe, por seu interesse inicial em
desenvolver uma pesquisa a respeito do “fenômeno da música eletrônica”, e por ter acabado
realizando um trabalho sobre “arte sonora”.

É preciso, porém, mais uma vez apresentar um relativizador. Ao mesmo tempo em que me vi
intimamente relacionada com o impacto da música eletrônica por estar envolvida numa pesquisa
sobre o tema, em diversos momentos encontrei a mesma quantidade de exemplos de não

51
A mesma sensação de “impacto” é sugerida também no filme Trainspotting, de 1996, do diretor Dany Boyle, sobre
jovens viciados em heroína. Em um momento de virada do filme, o protagonista vai a Londres para tentar se “limpar”.
Sentado num banco, tomando uma cerveja, o rapaz está numa festa ao som alto de música eletrônica, pulsante, com luzes
estroboscópicas. Por seus olhos, somos apresentados a uma cena não muito diferente da descrita por Felipe, quando ele
afirma para si e para o público: “O mundo está mudando, a música está mudando, as drogas estão mudando. Até homens
e mulheres estão mudando. Daqui a mil anos não vai ter mais caras e meninas, somente punheteiros”. Nesse mesmo
sentido de impacto, em 1999, na época em que houve uma grande apresentação no Citybank Hall dos Chemical Brothers,
uma conhecida me disse no meio do show: “Estamos vivendo a música da geração do milênio”.

43
identificação com a música e com a cena. Em duas oportunidades, quando apresentei meu trabalho
sobre música eletrônica, em 1999, uma professora ‐ uns dez anos mais velha do que eu ‐ comentou
que eu havia naturalizado a dança com uma música que lhe parecia uma verdadeira “antimúsica”.
Passado algum tempo, já em 2009, um aluno dez anos mais novo me disse que o “bate‐estaca” do
techno “não tinha nada de criativo”, que “aquilo” não poderia ser considerado “música”. Ainda com
o propósito de relativizar a categoria de "geração", gostaria de citar as palavras de Fernanda Eugenio
(2006) sobre os perigos de tomá‐la como recorte:

“Geração? Alerta vermelho, se quisermos trabalhar com a ideia. Deve se evitar ‘colocar as
circunstâncias de uma época no lugar de uma mentalidade de geração’, aconselha‐nos Jaide,
desde seu amarelado texto de 1968 (:21). Ademais, contra a noção de que uma geração seria
um ‘rebanho conduzido por uma tendência’ (op.cit.: 26), o mesmo autor oferece a mais afinada
acepção de que se trata de um complexio oppositorium, no qual coexistem combinatórias
variadas de comportamentos e tendências, associações e estilos. Eis a aporia inevitável que
caracteriza tanto a ideia de geração como a de juventude, ao mesmo tempo dotadas de
características tributárias de uma configuração sócio‐histórica específica (uma época, por falta
de melhor nomenclatura) e de características mais ou menos permanentes, que as definem
como versões para uma etapa do ciclo de vida comum a todos. A juventude enquanto
‘representação’: fatia do tempo biográfico na qual se admite como legítima a inconsistência das
coerências, das certezas e das definições, tijolos de um porvir em montagem. Contra esta
acepção da juventude, como faixa etária ou fase da vida, acompanhamos
contemporaneamente o desenhar da juventude como estilo ou estilos de vida, seu alargamento
e sua conversão em valor e objetivo a ser perseguido, passando assim a abrigar os
mandamentos contraditórios da intensidade e da extensividade. Enquanto se tratava
predominantemente de uma fase, e de uma fase de experimentação autorizada, era locus
privilegiado da intensividade, e a extensividade poderia ser preocupação temporariamente
suspensa. Agora não mais ‐ ou, pelo menos, esta é a tendência” (Eugenio, 2006:142).

Outro aspecto que dever ser relevado na fala de Felipe – como em todas as "narrações de si" dos DJs
e dos produtores mencionados no capítulo anterior – é que elas apresentam um efeito de
incompletude. Felipe se refere aos colegas de universidade como músicos que considerariam a
experiência sonora eletrônica como “antimusical”. A condição dos produtores me lembrou a das
feministas, vistas por Marylin Strathern como pessoas não completas, e de seu poder provir de “um
certo deslocamento” (Strathern, 1991: 33‐34), algo que será trabalhado com mais precisão no

44
capítulo 3.52 Todos os produtores que entrevistei para esta pesquisa negam, em suas narrativas, a
identidade de "músicos", ao mesmo tempo em que criam com eles “conexões parciais” (idem). E a
partir da negação, da condição de “não ser” [músico], apontam para uma nova composição da
“natureza” das suas atividades. Daniel Castanheira, outro personagem que será apresentado neste
capítulo, afirma que esta postura de se definir pelo recurso negativo é um “não ser que vem a ser”.
Trata‐se para ele de um “trânsito por uma linguagem virtual. Uma linguagem em potência que ainda
não é, mas está vindo a ser”. Referindo aos outros agentes desta pesquisa que ele conhece, acha
que “Ninguém nega o lado ‘músico’, foi somente levado para outro lado que não é o do lugar do
músico. Mas a questão de se considerar isso música sim!”. Assim, no primeiro momento de
identificação da categoria “produtor”, usei a estratégia de campo de seguir os agentes que
compartilhassem o uso de certos termos linguísticos. Havia indícios de que o cenário caracterizado
pela sensação de incompletude (um não ser “exatamente”) estaria associado à criação com novas
ferramentas digitais. Eram indícios redundantes em diferentes esferas de criação (ou, melhor dito,
de produção). Como não partiam de um lócus específico, os produtores podiam ser enquadrados
como “nativos” quando algum daqueles indícios acima mencionados fosse percebido. Assim,
retomando a afirmação de Seeger de que “todos estão produzindo”, eu poderia argumentar: os
produtores não estão em um único lugar, não se configuram como grupo, mas é uma categoria que
aparece cada vez com mais frequência em diversos meios.

Discutirei agora a maneira como os produtores se apresentam, a partir das narrativas que fazem de
si próprios. Vou me basear principalmente nos relatos de trajetória profissional dos personagens,
nos quais eclodem os elementos que performatizam a categoria de "produtor", e,
consequentemente, a potência distributiva dessa categoria. Esta parte tem o efeito simbólico de um
primeiro encontro da antropóloga ‐ e também do leitor ‐ que parte de certos elementos indiciários
para chegar a seus personagens: os produtores. Em termos metodológicos, o momento funciona
como um modo de apresentação de alguns agentes que compõem o meu estudo; ou seja, procuro
expor como os meus personagens, sem conexões evidentes entre si, se delinearam como um campo
de estudo. O relato desses nossos encontros tem uma natureza simbólica: marca o momento de

52
Acompanhando Strathern em sua noção de mundo pós‐plural, é possível continuar seu argumento com a associação,
que faço, entre o feminismo e os produtores. Quando ela afirma que a “escola feminista é percebida ao mesmo tempo
como precursora e como uma manifestação de algumas posições que se agrupam [em torno do] pós‐modernismo”
(Strathern, 1991:33). A publicação Technoculture – Cultural Politics (Vol. 3), editada por Constance Penley e Andrew Ross
em 1997, oferece uma boa ilustração dessa minha associação. Nesse volume, os temas dos artigos agrupados no livro são:
Donna Haraway (ou uma entrevista com a autora, mostrando que, se Donna Haraway criara seu personagem, o ciborgue,
este teria, por sua vez, "inventando" a autora como personagem pós‐moderno por excelência), artigos sobre feminismo,
AIDS, cyberpunk, quadrinhos japoneses, videoclipes, hip hop (como exemplos de criação digital).
45
eclosão da dimensão ambígua das identidades dos produtores, e dos usos de instrumentos digitais
para a criação. E também configura uma primeira apresentação desses personagens. Mas é no
primeiro sentido, como foram a mim ‐ e ao campo de estudo ‐ apresentados que as próximas
páginas devem ser lidas, para observar as coincidências que me levaram a agregá‐los, mesmo que de
maneira provisória, como uma categoria, neste trabalho.

Em termos metodológicos, utilizo o recurso às “histórias de vida”, com encontros periódicos ao


longo do tempo e observação participante, para colher as possíveis autodefinições de meus
personagens; mas também a consultas a artigos de jornal e revistas em que eles foram
eventualmente apresentados e identificados. Esta “seleção biográfica” não pretende construir uma
“coerência identitária dando a impressão de que vida deles é a ‘expressão unitária de um projeto’,
ou que a obra é ‘a inscrição histórica de um projeto original’” (Jouvenet, 2006: 192).53 Mais do que
partir da pressuposição de que a “percepção da obra e o comentário biográfico convergem na busca
da coerência ontológica que guia a apreciação e a compreensão dos artistas” (ibidem), pretendo
pensar a partir do termo etnobiografia. Com toda a possibilidade da evidência das “fabulações de
si”, esse recurso me parece frutífero para fins de apresentação, por se mostrar próximo do gênero
etnográfico de ‘estórias de vida’ (Gonçalves, 2008:205). Marco Antonio Gonçalves outorga ao
conceito um sentido, que merece ser lembrado:

O conceito de etnobiografia que emprego aqui (...) [é] um modo de definir a complexa forma
de representação do outro que se realiza enquanto construção de um etno‐diálogo (...)
Etnobiografia é produto e constructo de uma relação que altera percepções no processo
mesmo de sua criação, não se reduz a alternativas do tipo ou/ou, isto é, ou a visão do nativo,
ou a visão do antropólogo. Etnobiografia parece ser, neste novo contexto, condição mesma de
ultrapassagem desta dualidade quando não tem por objetivo procurar discernir que é o
produtor de conhecimento na Antropologia (se o nativo ou o antropólogo) ou de quem são as
visões de mundo apresentadas (Gonçalves, 2008: 206‐207).

Parte do exercício abdutivo deste trabalho, de me pautar pelos indícios que delineavam um campo,
é lidar com o perigo de encontrar “nativos” que utilizam os mesmos conceitos com significados
diferentes. Mas, por outro lado, é importante pensar que é com usos localizados e diferenciais que

53
Citando Anselm Strauss, Morgan Jouvenet (2006) afirma que “a abordagem biográfica é o quadro mais geral de
apreensão do trabalho artístico. (...) As questões do tipo ‘você pode nos relembrar seus inícios? ’, ‘como você começou? ’,
‘em que condições? ’ etc., não são em parte alguma tão presentes como nos universos artísticos, onde o tema das origens
parece ter um interesse profissional capital (...) Para além dos processos de criação que ela engloba, é a vida do artista
que é questionada, enquanto movimento determinante das intenções criadoras e como material de publicidade. Assim,
revelando a causalidade biográfica à obra na produção de um artista, a seleção biográfica constrói sua indispensável
coerência identitária” (Jouvenet, 2006:192).

46
os “mesmos conceitos” passam a habitar o mundo e a inventá‐lo (Wagner, 1981).54 Nesse sentido,
podemos nos distanciar de termos externos, fortes, que aparecem muitas vezes na discussão sobre
as qualidades do mundo “pós‐Internet”, como “tecnologia”, “digitalização”, “virtualização”, como
fenômenos que antecedem os indivíduos em vez de pensar como estes processos se atravessam de
modo retroalimentar com os agentes. Talvez o recurso que utilizo, de apresentação de personagens
individuais, também sirva como uma “resposta antropológica” a uma bibliografia centrada
principalmente nos “meios”; uma espécie de “recurso de compensação” que leve em consideração
as pessoas e trate também como “pessoas” e “agenciamento” as ferramentas que foram entrando
em suas vidas. Chamo de “resposta antropológica” ao que poderia ser denominado uma “teoria dos
meios”; mas tampouco desejo cair no extremo oposto, o de uma “teoria dos autores”. Edmond
Couchot (1993), no seu artigo “Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da
figuração”, observa que a “ordem numérica torna possível uma hibridação quase orgânica das
formas visuais e sonoras, do texto e da imagem, das artes, das linguagens, dos saberes
instrumentais, dos modos de pensamento e de percepção. Esse possível não é forçosamente
provável: tudo depende da maneira pela qual especialmente os artistas farão com que tais
tecnologias se curvem a seus sonhos” (Couchot, 1993:47 – meu grifo). No final deste trecho,
percebemos que o autor se preocupa com o reconhecimento e a manutenção do papel e da
identidade do artista, principalmente quando enfatiza uma tarefa a ser cumprida, uma
responsabilidade, um papel a ser desempenhado, e que configura a primazia do sujeito sobre as
“tecnologias”.

Gostaria de retomar o ponto anteriormente mencionado, relativo à maneira como alguns teóricos
mencionados no capítulo 1 concebem a digitalização como um procedimento “avassalador” e
“sempre devastador”, definitivo. Acredito que esse tom apocalíptico se adeque à experiência das
pessoas que entrevistei para esta pesquisa, que vivenciaram a entrada do computador caseiro e da
Internet quando estavam entre os quinze e vinte anos de idade, talvez constituindo, neste sentido,
algum recorte possível de “geração”. É importante, portanto, o relato dos entrevistados sobre o
impacto causado por esses equipamentos em suas vidas. Por exemplo, Bruno Medina, tecladista da
banda Los Hermanos, diz que o primeiro CD de estreia de sua banda, em 1999, foi pós‐produzido

54
Recorro ao conceito de cultura de Roy Wagner (1981) retomado por Gonçalves (1996). Cultura, segundo estes autores, é
algo que está em permanente tensão e invenção. Para Wagner, as “culturas existem através do fato de serem inventadas e
através da efetividade dessa invenção (...) Esta invenção é parte de um fenômeno mais amplo de criatividade humana –
transformando a noção assumida de cultura para uma arte criativa. (...) A relação estabelecida entre duas culturas – que,
por sua vez, objetificam e assim ‘criam’ essas culturas para si – surge precisamente do seu ato de ‘invenção’ (...) O
resultado é uma analogia, ou uma série de analogias, que ‘traduz’ os significados básicos de um grupo para outro e
podendo então participar de ambos os sistemas de significação ao mesmo tempo, assim como o seu criador”
(Wagner,1981:9‐11 – meu grifo).
47
metade no software pro‐tools (pelo procedimento digital), e a outra metade, dentro do formato
analógico, porque os produtores tinham “medo de perder o material”. Todos os outros discos
posteriores teriam sido processados diretamente no pro‐tools, embora tivessem passado depois por
um tratamento de fita analógica para “esquentar” o som.55 Bruno explica o fato de terem gravado a
sua primeira demo em fita K7, porque, na época, a fita cassete custava um real, e o CD, cinco reais,
encarecendo o produto para as gravadoras. Já em 2004 (somente cinco anos depois), o seu terceiro
disco foi “vazado” na internet em uma versão ainda não final. Esse incidente aborreceu os
componentes da banda, por um lado, por terem perdido o controle do CD; e, por outro, porque o
disco não estava ainda em sua versão final. Mas, segundo ele, quando realizaram o primeiro show, o
público cantou em uníssono todas as músicas que havia “baixado” da internet, fato que gerou um
grande impacto entre os membros da banda.

Abordo, neste capítulo, como os produtores exprimem esse atravessamento dos meios digitais em
suas vidas. Lev Manovich, por exemplo, justifica a necessidade de elaborar uma tipologia estético‐
teórica das características das “novas mídias” por ter sido atravessado em sua “biografia” por
transformações históricas, como vimos no capítulo 1. Num sentido mais amplo, um produtor me diz
que a mixagem em estúdio nos anos 60 era um processo técnico, não um processo artístico, como é
hoje considerado. Esse processo é semelhante à trajetória de Mozart, tal como descrita por Norbert
Elias (1994): o compositor teria vivido num momento em que os músicos de corte estariam trocando
a condição de artesãos para a de artistas. É nas narrativas de si que estas transições são explicitadas
pelos agentes. E, pelas histórias que contam esses agentes, de como integraram o computador e a
Internet às suas vidas, podemos situá‐los no paradigma de uma apresentação de si “ilusória”
(Bourdieu), por mais que possa ter sido “inventada” (Wagner, 1981). Todavia, a cada vez, nossos
encontros se configuravam como “rituais de entrevista”.

Gostaria de usar a rede virtual como metáfora, e pensar este campo como absolutamente fugaz, no
sentido de não haver nada antes nem depois, ou no sentido de não se poder acessar situações
anteriores e posteriores. Por isso, é importante não vislumbrar estes personagens como se
representassem tipos ideais ou exemplos representativos de diferentes manifestações artísticas.
Eles simplesmente entram como personagens deste trabalho porque foi possível estabelecer um
encontro. As pessoas que apresento não somam a totalidade do meu campo e nem poderiam ser

55
Assim Bruno explica o procedimento de “esquentar o som”: “É o seguinte: você grava o disco no pro‐tools. Ele é um disco
digital, não tem nada valvulado ali, tudo é digital. Então, o que você faz, dá play no computador, e dá rec na fita. O disco
passa pela fita. A matriz do disco passa a ser uma fita. Passa a ser uma coisa analógica, vai de uma fita para outra fita. Esse
processo se diz ‘dar uma esquentada no som’. É uma esquentada boa que a gente gosta, bem anos 70, aquela coisa, fica
um som mais grave. É isso que a fita faz. Não tenho muitos detalhes técnicos sobre isso. Mas sei que esse é um processo
que se faz até hoje”.
48
considerados como figuras principais. E, seguindo a orientação de Marilyn Strathern, tampouco
devem ser vistas como “o centro de uma constelação de papéis, direcionados para vários ângulos,
como pivôs ou lugar de encontro de diversas visões, o administrador no centro da rede” (Strathern,
1991: 23 ‐ tradução minha).56 Em outras palavras, eles não se configuram como catalisadores de
constelações.57 Eles seriam talvez bulbos, pois, como no rizoma, “não existem pontos ou posições
(...) como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas” (Deleuze e
Guattarri, 1995:17). Operando com a ideia de rede virtual, peço ao leitor para acessar as próximas
partes como se fossem links, que abrimos como janelas da Internet, com diferentes formatos, por
vezes nos detendo um tempo maior em alguns, e outras vezes um tempo menor, e ainda outras
vezes uns entrando nas janelas de outros. Contudo, propomos adicionar a esta metáfora dos links, o
recurso etnográfico de uma análise antropológica, agregando alguns pontos de reflexão a estas
janelas descritivas que se abrem constantemente.

Kassin

No final dos anos 90, fui a um show da banda Moreno +2, no Planetário, formada por Moreno
Veloso, Domenico Lancelotti (ex‐integrante da banda Mulheres que Dizem Sim) e Alexandre Kassin
(que também é baixista da banda Acabou La Tequila). Nessa primeira formatação, Moreno fazia os
vocais, Domenico cuidava da bateria eletrônica, e Kassin, além do baixo, manipulava uma série de
aparelhos eletrônicos no palco. Os efeitos eletrônicos, tocados de forma bem performática por
Kassin, junto com outros instrumentos eletroacústicos, criavam um contraste com os vocais
melodiosos de Moreno. Desde então, a banda lançou mais dois discos, com os nomes
intercambiantes de Domenico + 2, e Kassin + 2. Antes disso, Kassin assinou a trilha sonora da
apresentação de dança da Cia. de Dança Debora Colker, também composta basicamente de sons
eletrônicos e, a partir desse trabalho, realizou diversas trilhas sonoras, como a dos programas da
Regina Casé, na Rede Globo. Ademais de membro da banda +2, e de Acabou La Tequila, Kassin
participou como instrumentista de diversos músicos, como Lenine, e foi produtor de Los Hermanos e
de Vanessa da Mata, entre outros lançamentos recentes do cenário musical brasileiro. Atualmente é

56
No trecho a seguir, a autora elabora essa ideia de maneira mais detalhada: “It is a commonplace in the sociologized
vocabulary of middle class culture that one moves from persona to persona in role playing. This is a vision of the complex
society. I am a Melanesianist to this audience, a rural studies person to that; one’s ‘role’ changes as contexts change, and
there is nothing remarkable about it. (..) What connects the two suppositions together is the person imagined as an
individual. The figure appears either as fragmented or as integrated for the same reason: because as an individual s/he can
always be counterposed to her or his placement, whether ‘in’ a sociocentric structure or an egocentric network.The
individual who gives personal coherence to the network is equally a particle of a structure which defines his or her
location” (Strathern, 1991:23 – ênfase retirada).
57
Como mencionei no primeiro capítulo, a tentativa de considerá‐los como exemplos paradigmáticos de diferentes áreas
não se sustentou como recurso metodológico.
49
dono do selo Ping‐pong e do estúdio Monoaural, que divide com Berna Ceppas. Participa também
como baixista e produtor do disco da Orquestra Imperial, composta por diversos membros de
bandas representativas do Rio de Janeiro. A Orquestra Imperial recupera de maneira jocosa o samba
das orquestras das gafieiras. Kassin também desenvolve individualmente um projeto que chama de
Artificial, a partir do qual lançou o disco Free U.S.A., realizado com um game‐boy58 como único
instrumento, projeto especialmente interessante para este trabalho.

Como já conhecia Kassin desde a adolescência, frequentei pontualmente algumas das suas
apresentações ao longo dos anos 90, como a de dança, de Deborah Colker, em que assinou a trilha
sonora, e também fui a um show do Acabou La Tequila e a dois shows do + 2, um dos quais relatei
acima. Além das referências citadas e das suas atividades no estúdio Monoaural, minha atenção foi
despertada, já no momento em que realizava esta pesquisa, para um trecho da entrevista feita para
divulgar o disco Futurismo, do Kassin +2, para o jornal argentino Página/12, em que Kassin se
autodefinia, e definia os demais integrantes da banda. Dizia ele “não saber” o que é, “Moreno é
baiano, e Domenico é o gênio da banda” (Página/12 ‐ 29/06/2007). Para além de a resposta poder
ser considerada “espirituosa ou irônica”, podemos examiná‐la com um olhar mais analítico. Tanto na
formatação da banda, que troca os papéis de seus integrantes a cada disco, quanto no que se refere
às autodefinições, que não se fundamentam numa identidade estável, há uma atitude de se
autodefinir pela ambiguidade. O que chama a atenção é que Kassin – assim como os outros dois
integrantes do +2, (já que Domenico também atua como artista plástico e designer, e Moreno por
sua vez é físico e trabalha no laboratório atômico experimental na UFRJ) –, teria várias
“justificativas” para alocar‐se numa identidade musical estável, isto é, socialmente reconhecida e
valorizada, por tocar diversos instrumentos profissionalmente, por ser “produtor musical” de
renomados artistas em evidência, utilizando o sentido da categoria estabelecida em meados dos
anos 60 (Hennion, 1981), e por seus diversos trabalhos terem boa repercussão nos meios midiáticos.
Mas prefere “não saber o que é”.

Essa opção pela ambiguidade, traduzida por não “saber o que é”, engloba uma série de pontos
coincidentes com os DJs e produtores entrevistados anteriormente. Apesar de lidar com atividades
bastante ecléticas no cenário musical, como vimos no parágrafo anterior, é possível afirmar que
Kassin tem uma atuação mais abrangente que a dos DJs citados no primeiro capítulo, um dado que
pode abalar a convicção de um pesquisador que espera defrontar‐se com uma “categoria estável”
de definição. Mas não é necessário ouvi‐lo por muito tempo para ver formar‐se um desenho
narrativo recorrente entre os autoprodutores ‐ ou seja, os meus "nativos". Ele também aciona, como

58
O game‐boy é um videogame portátil da marca Nintendo.
50
os DJs que entrevistei, a agência dos discos que ouvia em casa, introduzidos pelo pai e pelo irmão, e
teria, desde os oito anos, a coleção completa do Kraftwerk.59

Fazendo parte de uma geração “intermediária entre o analógico e o digital”, no início dos anos 90,
Kassin preferia brincar com parafernálias de programação a “pegar o violão”. O momento em que
ganha consciência de que poderia viver dessa atividade teria sido o de “virada” em sua “trajetória”,
como ele mesmo descreve:

Eu acho que segui um caminho que era natural para muitas pessoas da minha idade: comprei
um porta‐estúdio de quatro canais, tape, e fazia coisas ali, que eram um misto de colagens com
coisas tocadas. Eu me lembro que, naquela época, era muito caro comprar um sampler. Meu
sampler era um pedalzinho, um sampler delay de oito segundos, bem vagabundo. Eu conseguia
passar as coisas da vitrola para ele e cortava; às vezes baixava a rotação da vitrola para afinar,
ou para fazer o que quer que fosse. Eu o disparava e, às vezes, conseguia um loop, que eu tinha
que gravar, tipo cinco minutos... Não havia muita programação. Era repetição (...) [O meu] é um
caminho bem torto, mas eles [referindo‐se a Chico Neves, Dado Villa‐Lobos, Hermano Vianna e
Sérgio Mekler]60 me fizeram entender que aquilo poderia ser uma forma de fazer música, e que
aquilo poderia ser profissional.

A atitude de desdenhar a “atividade musical” regida pelos “instrumentos” (em seu caso,
primeiramente o violão e depois o baixo) e de valorizar os “meios técnicos” como caminho de
criação indica o entusiasmo de sua parte em descobrir que era possível “fazer música” de uma outra

59
Uma das primeiras bandas consideradas pop, embora num sentido extremamente experimental, foi a alemã Kraftwerk.
Inspirado nesse grupo, o DJ Afrika Bambaataa mais tarde criaria o electro, assim como a sonoridade do hip hop. O techno
de Detroit também foi inspirado fortemente nessa banda. Esse grupo tornou‐se conhecido por somente usar instrumentos
eletrônicos, como sintetizadores, máquina de bateria e linha de baixo e sequenciadores, chegando a utilizar um dos
primeiros computadores, o Atari ST, e até mesmo sons de calculadoras, em apresentações de 1981 e 1986. Foram
atualizando os tipos de máquinas com a modernização desses instrumentos eletrônicos. Em suas capas de disco e em suas
letras há sempre motivos robóticos. As vozes são todas modificadas por “vocoders” e as letras são repetitivas, para gerar
uma atmosfera de robotização. Seus discos “We are the Robots” e “Trans Europe Express”, assim como a faixa “electric
cafe” recorrem aos temas de uma música futura feita puramente por meios eletrônicos e por robôs. Em suas capas de
disco aparecem seus rostos com corpos de manequim. Classificados como euro‐pop ou até como uma banda proto‐techno,
influenciaram diversas linhas tanto norte‐americanas como europeias, que se espalharam nos anos 80 e início dos 90, sob
o crivo do euro‐dance. Neles há também a presença de uma ambiguidade em relação à tecnologia. Se por um lado realizam
todas as técnicas imagináveis em termos eletrônicos, mostram na estética de suas capas de disco a quase‐transformação
dos seres humanos em robôs, ou manequins por onde as modas vão passando e vestindo (cf. Bacal, 2003).
60
Jouvenet (2006) afirma em seu trabalho com rappers e DJs de música eletrônica que “os artistas têm maiores chances de
serem notados quando pertencem a uma ‘família’ já recompensada [premiada]: as qualificações e as apostas dos experts
acerca dos artistas se apoiam sobre a pertença a linhas "horizontais" (quando são da mesma geração), ou ‘verticais’
(quando se referem a influências de músicos mais antigos que são colocados na frente”) (Jouvenet, 2006:pg 190s). Kassin
pode ser pensado numa genealogia horizontal e vertical. Neste trecho, ele remete à sua linhagem vertical, centrada nos
produtores musicais Chico Neves e Sérgio Mekler, no músico Dado Villa‐Lobos, ex‐integrante da banda Legião Urbana, e no
antropólogo e pesquisador, Hermano Vianna. O acionamento a linhagens verticais também aparece em outros relatos
biográficos, como, por exemplo, no de Rica Amabis, que se refere principalmente ao seu estágio com o produtor Apollo 9;
Batman Zavareze fala que “um dos grandes responsáveis por ter decidido voltar ao Brasil”, (referindo‐se a um tempo que
morou e trabalhou na Europa) teria sido o cinegrafista e produtor visual Gringo Cardia. As linhagens horizontais são
igualmente consideradas muito relevantes para os personagens desta tese.
51
maneira, e, ainda, “profissionalmente”. Kassin assumiu essa atividade que o legitimou dentro dos
estúdios, apesar de sua resistência à “vida de músico”, cheia de viagens “sempre desconfortáveis”. O
espaço do estúdio proporcionaria uma fonte de inspiração mais criativa, inclusive nos momentos de
ócio aparente.

Ao se colocar próximo dos DJs que entrevistei anteriormente em termos de um uso criativo de
máquinas que fazem música, Kassin se apresenta como uma boa porta de entrada para esta tese.
Seu caso é interessante por exemplificar uma persona ambígua num espaço legitimado. Seus
parceiros de trabalho, que exibem uma condição parecida com a dele, são também seus amigos
desde a adolescência. Todos poderiam ser incluídos facilmente na geração de possíveis filhos ou
netos dos “Nobres Cariocas”, trabalhados por Gilberto Velho (1998).61 Juntamente com Sérgio
Mekler e Hermano Vianna, que teriam sido os seus “mestres”; Regina Casé, de cujo programa
chegou a participar; Pedro Sá (que agora participa da banda do Caetano Veloso), Moreno Veloso,
Domenico Lancellotti e Berna Ceppas, com quem faz parcerias; e Adriana Calcanhoto, Los Hermanos,
e Vanessa da Mata.

Em matéria para a revista Época em 2002, intitulada “A vez do sem‐estilo, Alexandre Kassin
desponta como o mais promissor e criativo produtor de discos do momento”; o jornalista Lauro
Lisboa Garcia o apresenta como o produtor dos anos 2000. Garcia inclusive faz uma lista
retrospectiva dos produtores “que deixaram marcas na MPB das últimas décadas” ‐ como Aloysio de
Oliveira nos anos 60 (“este criou o selo Elenco e lançou Edu Lobo, Nara Leão, Silvia Telles, Nana
Caymmi, Vinicius de Morais, entre outros”), Marco Mazzola nos anos 70 (“que produziu álbuns
essenciais de compositores como Jorge Ben, Raul Seixas, Gilberto Gil e Belchior, no auge da
gravadora Philips”), Liminha nos anos 80 (“começou com as Frenéticas e tornou‐se o Midas do pop‐
rock, definindo o som de Titãs, Kid Abelha e Lulu Santos, entre outros”) e Chico Neves nos anos 90
(“foi responsável pelo desenvolvimento da eletrônica no pop brasileiro e promoveu guinadas nas
carreiras de Fernanda Abreu, Skank e Lenine”). A reportagem posiciona Kassin dentro de um espaço
legitimado no quadro de referências da música pop no Brasil. Ao mesmo tempo, no artigo, aparecem
as primeiras descrições das atividades do produtor:

Desde a atuação de Liminha nos anos 80, a figura do produtor vem conquistando um papel
cada vez mais relevante no pop brasileiro. Com o aprimoramento dos recursos eletrônicos, os
anos 90 tiveram uma explosão de ótimos profissionais, como Tom Capone, Suba, Chico Neves e
Apollo 9. Agora é a vez de o carioca Alexandre Kassin, de 28 anos, ganhar projeção. Espécie de

61
Reginaldo Gonçalves chama a atenção para o fato de o lugar de maior legitimação profissional outorgar uma
probabilidade maior de liberdade de trânsito para os agentes (comunicação pessoal).
52
faz‐tudo, ele é produtor, baixista, compositor, guitarrista, programador eletrônico e se dá bem
com qualquer instrumento. 'Não me fixei em nenhum estilo e só não tenho preconceito.
Poderia tanto produzir um disco de pagode como um de barulho experimental', diz o músico,
que já tocou na banda de Lenine e fez remix para Bebel Gilberto. 'Talvez essa seja minha
principal característica. Nenhum trabalho é igual ao outro’ (...) E muita gente tem gostado do
que ele faz. Caetano o considera 'naturalmente moderno', mas essa não é das condições que
Kassin mais aprecia. 'O compromisso com a modernidade é muito chato', desconversa. (...) 'O
bom produtor é aquele que sabe ler a alma do artista e traduzi‐la de maneira atraente', define
Miranda. (...) Liminha vê em Kassin certas semelhanças com sua maneira de entender música.
'Um produtor não pode ser burocrático, executivo. Fazer um disco é quase como um ato de
compor', afirma. 'Improvisar e estar antenado com o que acontece no mundo é importante.
Kassin tem essa capacidade’. O estilo despojado vigora não só na música como no modo de
viver. Kassin é conhecido internacionalmente, mas seu reduto é Copacabana. Rapaz de bons
hábitos, é vegetariano, não fuma, não bebe, trabalha muito. É do tipo que conquista amigos 'na
humildade', como eles dizem (Revista Época, em 11/10/2002 / Edição No 230).

A capacidade de “traduzir almas”, de estar “antenado com o mundo”, de improvisação, são algumas
características que surgem ligadas às atividades do produtor musical. Mesmo em sua face mais
tradicional, como aparece neste artigo, ele é definido como um “tradutor” num sentido muito
próximo ao descrito por Benjamin em “A tarefa do tradutor”, pois, segundo ele, se “somente um
poeta pode traduzir a poesia do artista” (cf. Benjamin, 1968: 70), e se somente a “verdadeira
tradução é transparente, não encobre mas ilumina ainda mais a obra do artista” (cf. ibidem:79), o
produtor musical seria aquele que traduz, no ato da gravação, a sonoridade do artista, configurando‐
se assim como um mediador. Embora o misticismo de Benjamin não esteja nada próximo da
cosmologia indígena, essa ideia de “traduzir almas”, como uma capacidade do produtor, nos lembra
um pouco a de Els Lagrou, de que “a fonte de inspiração criadora ou a legitimidade de motivos e
formas tradicionais costuma, no pensamento ameríndio, ser vista como originalmente exterior ao
mundo humano ou étnico, remetendo a conquistas sobre o mundo desconhecido de vizinhos
inimigos ou seres naturais e sobrenaturais hostis e ameaçadores. O artista, neste caso, seria mais um
mediador do que um criador” (Lagrou, 2007:41).

Kassin dá a entender, pela maneira como descreve a si próprio, que é por não se ter agarrado a
nenhum nome, a nenhuma designação, e por não ter “um estilo” (ao recusar categorias absolutas,
como a de “moderno”, e afirmar enfaticamente não ter nenhum preconceito), que sua história tem
sido tão bem sucedida. É exatamente por seu domínio técnico que ele chamou atenção de seus
mestres, pelo uso criativo que costuma fazer das máquinas. Com a recusa de se autodefinir, optando
53
claramente pela indefinição, Kassin assume uma postura semelhante à dos DJs e produtores de
música eletrônica, embora, em vez de no mundo da cena eletrônica, ele atue num espaço artístico
legitimado. Era interessante para mim perceber a ambiguidade sendo valorizada, porque me levava
a ver a sua positivação a partir de um lugar legitimado. Ali também aparecia a possibilidade de
desenhar um campo de pesquisa onde quer que eu fosse encontrar essa dificuldade de
autodesignação.

Rica Amabis

Desde que escutei pela primeira vez o som do Instituto, com o disco Coleção Nacional (2002), tive
dificuldade de imaginar com precisão o que representava esse nome. Pela mídia ou mesmo por ouvir
de outras pessoas, sabia que se tratava de um “coletivo” radicado em São Paulo, no qual circulavam
DJs de rap, como o Zé Gonzales, rappers paulistas, como Sabotage, e alguns cariocas, como BNegão
e Gustavo Black Alien. Estavam também associados à produção do Instituto alguns integrantes da
cena recifense, como Lucio Maia e Otto, alocados em São Paulo, bem como algumas bandas de rock,
como o Cidadão Instigado, entre outras. Apesar de ter consciência desse circuito, ainda era difícil
delimitar quem pertencia a esse coletivo, e quais eram as suas características. Ao longo dos anos, o
nome foi aparecendo cada vez mais na assinatura de produções de discos e também de trilhas
sonoras, além de se apresentarem em shows. Minha curiosidade pelo que comportaria esse nome se
espelhava na mídia, como na matéria sobre o Instituto, de 2002, assinada pelo jornalista Pedro
Alexandre Sanches, na época em que saiu a coletânea Coleção Nacional:

Involuntariamente, o grupo Instituto vem jogar mais pimenta na acalorada discussão da MPB
sobre numeração de discos, autoria, direito autoral, formatos musicais, renovação artística etc.
Nem é que os quatro rapazes organizados em torno do também nascente selo Instituto tenham
opinião firme sobre tais assuntos. Sua intervenção nasce já a partir da dificuldade de conceituar
o que eles são e o que é seu primeiro disco, "Coleção Nacional". Rica Amabis, 28, Tejo
Damasceno, 26, e Daniel Ganja Man, 24, são produtores musicais em São Paulo. Rodrigo
Silveira, 24, é programador visual. Juntos, não formam um grupo musical, dizem. "Instituto é
um selo, um estúdio e um projeto musical", tenta explicar Silveira. "'Coleção Nacional' é uma
coletânea que produzimos para apresentá‐lo", continua Damasceno. "Instituto é um núcleo de
produção. É um conceito novo", atalha Amabis, hesitante (Sanches, Folha de São Paulo.
Caderno Folha Ilustrada em 16/07/2002).

Um selo, um estúdio, um projeto musical, sintetizados num “conceito novo” de ser “um núcleo de
produção”, indica, pelo próprio Rica Amabis, que já estaria dentro de uma nova configuração que
necessitaria de um novo conceito teórico. Em muitos sentidos, Rica elencou uma série de elementos
54
muito próximos aos de Kassin para uma apresentação de si, apesar de se definir mais fortemente
como produtor com um perfil técnico.62 Sua primeira experiência no estúdio se realizou enquanto
estudava Geografia na faculdade. Foi procurar estágio em um estúdio porque era a maneira mais
fácil “de [se] envolver com música sem ter que tocar um instrumento.” Antes disso, havia atuado
como discotecário em festinhas de escola e lembra ter feito experimentos com gravação: “Uma
imagem que me lembro muito é de estar em casa com aqueles pick‐ups de caixinha de criança, eu
colocava com um gravador de fita, gravando os sons ambiente que saíam dele”. Em 1996, resolveu
fazer um curso de engenharia de som de duração de um ano na NYU, onde, entre outras matérias,
estudou programação, física, como reverberam ondas sonoras,63 para aperfeiçoar‐se nas técnicas do
estúdio. Voltando dos Estados Unidos em 1997, foi trabalhar com o produtor Apollo 9 na elaboração
do disco do Otto, Samba pra Burro, de 1998, e, a partir de então, começou a produzir trabalhos
próprios. Diz que até hoje vem desenvolvendo isso de maneira “pouco tradicional” por não conhecer
notação musical e não saber tocar instrumentos musicais, fazendo com que seja um trabalho “muito
intuitivo”. Quando pergunto sobre as características do produtor, ele responde:

Essas qualidades estéticas, cada um cria a sua. Eu penso que você cria através dos anos,
escutando música. Acho que, nesse caso, é um aprendizado seu, individual mesmo. Não existe
curso para aquele produtor que influencia artisticamente na composição, é a vivência dele.
Acho que é muito individual isso. E saber a parte técnica para fazer o link do músico com o
estúdio, porque é muito botão, muita coisa, (...) o produtor fica no meio do processo, ele é a
ponte entre os músicos e o estúdio, então, agrega muita gente.

Nessa descrição minuciosa da atividade do produtor, Rica ressalta o elemento de mediação como
sua característica mais importante. Assim, ele releva o fato de ser uma figura do meio, que conecta
os músicos ao estúdio, que a um só tempo detém os elementos de “inspiração”, elencados como a
vivência individual “que influenciaria artisticamente na composição”, e o controle “dos botões”, que
os artistas não têm. Ele se define no campo da arte mais como mediador do que como criador, ou
então como um criador que alcança esse estatuto a partir de sua função mediadora. Essa ideia nos
remete à noção de mediação de Bruno Latour, segundo a qual os mediadores são causadores de
transformações (2005). É possível tomar como exemplo de potência criativa de mediação o
depoimento de Rica, de que há momentos de insegurança no início de um trabalho por não ter
caminhos roteirizados de criação como os músicos. Rica afirma que ele não tem “aquilo estabelecido

62
Nesse sentido, talvez se assemelhe mais à trajetória de Marcelinho DaLua, visto no capítulo anterior.
63
Rica afirmou, durante a nossa entrevista, que no ano em que foi realizar esse curso ainda não existia um curso de
engenharia de som, mas, logo depois do seu retorno, começaram aparecer cursos semelhantes em São Paulo.

55
na cabeça, como esses músicos têm; “eu vou para cá, para cá, e depois resolvo”, apesar de
“geralmente dar certo”, inclusive de “maneiras não convencionais”. Mas, por outro lado, talvez “dê
certo” exatamente por usar de maneiras inusitadas (para não dizer “deveras originais”), por não
saber o caminho. Esse caminho, segundo ele, não seria tentado pelos músicos, porque “aprenderam
que assim não vai dar certo”.

Em trabalho sobre o impacto das novas tecnologias nas práticas dos músicos, Théberge (1997) alega
que somente um “determinismo tecnológico cru poderia ancorar o argumento de que os músicos
vão ao encontro das novas tecnologias sem trazer em sua bagagem algumas ‘sensibilidades
acumuladas’ a respeito de criação musical”. Para ele, é principalmente através de seu uso que
tecnologias se tornam instrumentos musicais, e não através de sua forma (Théberge, 1997:159 –
meus grifos e tradução minha). Mas, pelas afirmações de Rica, percebemos que é justamente pelo
fato de não terem “sensibilidades acumuladas” do aprendizado musical — ou por causa da falta de
habitus (cf. Bourduieu), ou de habilidade (Ingold) — que agentes como ele podem encontrar “saídas
não convencionais. O que Rica talvez indique é que há uma espécie de mudança de paradigma
atuante que diz respeito a uma habilidade dos produtores em criar música através das formas (assim
como dos usos) das tecnologias digitais.64

Paul Théberge faz uma comparação entre as diferentes sensibilidades necessárias para se tocar uma bateria
eletrônica e um tambor tradicional, que vale ser transcrita:

“The drum machine (...) bears no resemblance to traditional drums and drumming practice. The instrument
has no direct, physical sound‐producing mechanism; instead, it reproduces digital recordings of drum and/or
synthesized sounds that are stored in its memory. It can be played, or programmed, with a series of buttons on
its front panel, a key‐board, or a computer, and requires none of the physical coordination and discipline of a
drummer. Finally, most drum machines not only contain drum sounds but also include present rhythmic
patterns, programmed in a variety of musical styles, that can be freely combined to create the rhythm track for
a song. As a result, one´s sense of musical style and language can be relatively more abstract in nature (…)
What is at stake here is not simply a change in technology – the substitution of one set of materials for another
– but rather a form of practice, where ‘practice’ is taken to mean a form of knowledge in action (Bourdieu
1990). In this sense, learning to play a traditional musical instrument, especially in genres of popular music
where notation plays little or no role in the composition of music, and to thereby conceptualize music in
specific ways: ‘A lot of people, when they program machines, they don´t think like a drummer would play’
(Dennis Chambers, Musician 116, 1988: 103; emphasis added)” (Théberge, 1997:3).

Neste trecho citado há uma estreita correspondência com o que diz Rica. Como produtor, o seu modo de
pensar a música não é o mesmo que o de um guitarrista ou de um baterista.

64
Há, a propósito, uma mitologia nativa e teórica segundo a qual o uso incorreto de aparelhos eletrônicos seria
responsável por novas modalidades musicais e culturais. O Acid House, por exemplo, foi criado quando uns DJs de disc
music em Chicago começaram a usar um pedal que havia sido originalmente disponibilizado para guitarristas, mas logo
descartado por esses músicos (Reynolds, 1999). Hermano Vianna também relata que, quando presenteou o DJ Malboro
com uma bateria eletrônica, ele não sabia como funcionava, embora tenha sido e a partir de suas “experimentações” que
surgiu o funk carioca (cf. Vianna, 1988).
56
O contexto da entrevista mostrou bem uma das características intrínsecas à ideia do mediador,
atribuída neste caso em referência a Rica. Eu havia conseguido com muito esforço o contato de
Lúcio Maia, guitarrista da banda Nação Zumbi. Não havia dúvida de que entrevistar um dos músicos
dessa banda seria importante para a pesquisa que realizava no Núcleo de Estudos Musicais (NUM)65
pelo forte impacto que essa banda teve no cenário cultural brasileiro, desde a sua primeira formação
com Chico Science até a sua morte. A comoção provocada pela banda recifense se refletiu no seu
batismo pela mídia de “movimento manguebeat” e no interesse manifestado pela academia por
esse tipo de expressão musical, inclusive no exterior.66 Muito se deveu à maneira como articulou as
informações do rock e das sonoridades eletrônicas com os tambores do maracatu, assim como às
letras “futuristas” e ao seu material conceitual, em encartes de discos e manifestos. Meu interesse
em entrevistar Lúcio se devia ao seu projeto individual (Homem Binário) e ao seu primeiro disco
solo, Maquinado (2008), cuja realização contou com seu computador caseiro. Já que o encontro iria
se dar em São Paulo, tentei ver se poderia encaixar uma entrevista com Rica no mesmo dia.
Primeiramente, marquei para entrevistar Lúcio em sua casa, e Rica no seu estúdio. Assim que
cheguei à casa do Lúcio, entretanto, ele falou que iríamos para o estúdio do Rica porque ele
precisava fazer uma gravação para um projeto de Rica, e eu poderia aproveitar para fazer as
entrevistas com os dois. Essa articulação, de natureza que poderíamos considerar “gerencial”, foi
realizada por Rica.

Nesta passagem sobre meu encontro com Rica e Lúcio também se evidencia esse elemento
mediador com a circulação de músicos pelo estúdio de Rica. Ele estava fazendo naquele momento
uma trilha sonora, e Lúcio foi gravar sua guitarra para a composição de Rica. Aqui se soma mais uma
característica do produtor: ele se ocupa em elaborar a paginação final de um disco de um artista ou
banda, sendo que os músicos também podem pontualmente trabalhar para os projetos individuais
do produtor. Por conta dessa produção (mesmo caseira), esses artistas tornam‐se criadores, não
somente pelo tipo de empreendimento envolvido, mas também por lograrem registrar as suas
músicas. É interessante notar que, como produtores, figuras como Rica acabam angariando mais
direitos autorais do que os músicos convencionais. Inclusive, existe a categoria “músicos de estúdio”
para designar aqueles cuja principal ocupação é trabalhar as composições dos produtores. Se como
produtores estes agentes conseguem realizar a passagem de mediadores para criadores (não
excluindo a primeira possibilidade, pois ela é um acréscimo à sua gama de possibilidades de
atuação), assim mesmo a categoria de produtor tende mais para a de técnico com potencial criador,

65
“A Música Popular e sua crítica no Brasil”, coordenada por Santuza Naves, já citada na Introdução.
66
Há um crescente número de artigos, teses e dissertações realizados no país e no exterior sobre a banda e sobre o assim
chamado “movimento” (cito alguns, como Calazans, 2008, Silveira, 2008).
57
de que fala Hennion (1981), do que para a de artista criador. Esse procedimento tensiona a divisão
ocidental entre técnico e artista e, por conseguinte, entre arte e artefato. Esta última categoria é
empregada para a produção simbólica com funcionalidade não artística, usualmente referida à
produção de povos não ocidentais (Marcus e Myers, 1995; Gell, 2001) ou com finalidade unicamente
mecânica (Ingold, 2000).

Felipe Vaz

Conheci Felipe no aniversário de uma amiga em comum, que é artista plástica. Eu já conhecia a sua
mulher, Daniela Labra, que é curadora e crítica de arte. Num desses momentos fatídicos de tentar
explicar o meu tema de tese para alguém, ela disse que achava que o seu marido seria “perfeito para
entrevistar”. E, de fato, o encontro com Felipe foi essencial para uma desestabilização ainda maior
do campo, como veremos mais adiante. Por morarmos perto, em Laranjeiras, nossos encontros
foram sempre em nossas respectivas casas; ele não manifestava desejo de estar perto do
computador. Foi somente nos últimos encontros que ele começou a me mostrar alguns de seus
trabalhos na frente do computador, o que se deu a meu pedido.

Num trajeto menos evidente, mas muito parecido com o dos outros já mencionados, Felipe Vaz
conta como teria trilhado um percurso “do piano aos botões” e como, nesse caminho, teria sentido
sua atividade passando de “artesão” a “uma tarefa mais artística”. Tendo estudado piano desde
pequeno e, depois, entrado no primeiro programa de música popular do Brasil, na Unicamp, atuou
como pianista durante uns dois ou três anos após sua formatura. Percebeu, naquele momento, que
a vida de instrumentista não lhe parecia exigir muita “criatividade”. Um tanto desiludido, resolveu
cursar Comunicação Social na UFRJ, período durante o qual se dedicou a estágios e, mais tarde, a
trabalhos nas “novas empresas de Internet”. Essas empresas se mostravam muito próximas àquelas
que Scott Lash denomina empresas multimídia: “firmas geralmente anárquicas que têm um pé na
cultura publicitária, outro nas escolas de arte e um pendor para a tecnologia” (Lash, 1999: s/pg). Ou,
como afirma Eugenio (2006) sobre as novas empresas de design: aquelas que viabilizam “um meio
[para os seus integrantes] de manter‐se como artista e ainda se qualificar para o mercado de
ações”.67 Especificamente em seu trabalho com a Internet, Felipe vivenciou o que ele classificou
como uma tensão não resolvida. Por um lado, esses projetos se enquadravam em sua concepção de
trabalho de 9‐18hs, não se configurando como “trabalhos artísticos”. Mas, por outro lado, não
gostava quando “outros” desqualificam essa atividade como sendo não artística.

67
O próprio Felipe afirma que começou a ganhar dinheiro “de gente grande” razoavelmente cedo, atuando em projetos de
Internet.
58
Felipe Vaz desenvolve trabalhos nessa área – o mais recente deles o do site Overmundo,68 e ainda os
estudos de mestrado que resultaram na dissertação já citada anteriormente. Além disso, ele faz
experimentações com produção de música eletrônica – uma delas, vendida para a empresa Telemar
em 2007, foi utilizada como mensagem de fim de ano da empresa. Todas essas atividades ainda se
somam aos seus trabalhos de arte sonora que expôs em diversos centros culturais e galerias.
Ultimamente participa como tecladista da despretensiosa banda de rock Kelvin & a Banda Surda. Em
sua narrativa, a leitura musical, os pianos acústicos e os sintetizadores foram se enchendo de “pó”,
guardados no armário, à medida que se interessava pelo computador e aprendia a sua linguagem.
Por outro lado, foi por causa do design do site do Overmundo que ganhou um prêmio no festival Ars
Eletronica, um dos maiores festivais de arte eletrônica, algo que o deixou “desnorteado”, porque
esse trabalho estava associado ao que ele qualifica como o seu day job, o qual ele não considera
como “artístico”.

Há um outro relato que deve ser destacado para a discussão que desenvolvo, que justifica, de certo
modo, o fato de sua mulher considerá‐lo “perfeito para a minha pesquisa”, e que se constitui como
um curioso “drama social” no momento em que tento dar um desenho ao campo. A história se deu
durante uma exposição na qual Felipe tinha um trabalho de arte sonora. Em um determinado
momento, um curador galês se interessou pelo seu trabalho e o convidou a fazer uma residência
artística no País de Gales para desenvolver um projeto de arte sonora. A reação imediata de Daniela
foi dizer: “Mas Felipe não é artista”. E o ponto foi que Felipe já havia ficado um tanto estremecido
por ganhar um prêmio artístico‐tecnológico por um trabalho que ele não considerava “artístico”, e
agora, quando ganha um convite por causa de um trabalho que considera “artístico”, sua mulher
não o “reconhece” como artista. Sua contrarreação foi a de se sentir injustiçado, mal definido. Ele
explica o porquê desse sentimento,

[Foi uma] situação [na qual] briguei sério com a Dani. O que acontece? Ela trabalha no campo
das artes plásticas. Ela é curadora de arte contemporânea e, mais do que isso, trabalha meio
que já nos limites, nas fronteiras do sistema da arte, com grafiteiros e com artistas de
performance, os mais loucos. Uma coisa meio que já nas franjas das instituições da arte
contemporânea. Mesmo assim, eu ainda acho que ela acredita muito nessas instituições, e
volta e meia eu tenho discussões com ela.

Toda esta situação é muito instigante por elencar uma série de interpretações diferentes acerca do
que é um “artista”, e do que é “arte”. Não me parece que os envolvidos nessa discussão estejam

68
O Overmundo é um site colaborativo, licenciado pelo Creative Commons e criado por Hermano Vianna, Alexandre
Youssef, Marcelo Zacchi e Ronaldo Lemos. Com patrocínio da Petrobras, permite que pessoas de todo o Brasil possam
postar textos, imagens e músicas que retratem a produção cultural local.
59
errados. Essa falta de comunicação ou confusão aparece na situação vivenciada pelos produtores.
Em todos esses relatos, Felipe manifestou um sentimento de desconforto, de tensão, de até mesmo
de perplexidade diante dos eventos que ora o alocam como técnico, ora como artista.

Ainda com o intuito de entender como Felipe Vaz constrói sua “identidade”, perguntei‐lhe, durante
a nossa primeira entrevista, o que ele preenche no campo “ocupação” quando se registra, por
exemplo, num hotel. E seguiu‐se a resposta: “Cada vez uma coisa. Empresário, designer e
comunicólogo, que são as únicas coisas que se encaixam na agência de ocupações no imposto de
renda. São as únicas que eu encontro que mais ou menos encaixam... Comunicólogo, o que na
verdade eu não sei, não faço a menor ideia do que é um comunicólogo. Realmente é meio que cada
vez vai um.”

O que mais me chamou a atenção em Felipe talvez se deva ao fato de ele ter começado a vida
profissional num espaço artístico institucionalizado, numa Faculdade de Música. Ele destoa do
modelo mais englobante de Kassin, ou do mais especializado de Rica, demonstrando, na entrevista,
a sensação de deslocamento em relação às diversas esferas em que atua. E foi Felipe que me fez
perceber que esta indefinição está no meu próprio objeto de estudo. Felipe estudou piano por um
tempo, e depois abandonou. Muitos anos depois começou a desenvolver produções de música
eletrônica e a fazer alguns trabalhos como DJ, atividade que exercia simultaneamente com a de
webdesigner. Como webdesigner ganhou um prêmio num festival de arte eletrônica e, à época da
entrevista, estava exibindo um trabalho de arte sonora em algumas exposições. Felipe concluiu ao
longo do tempo da minha pesquisa a sua dissertação de mestrado sobre arte sonora, na ECO/UFRJ.
Meu encontro com Felipe me fez refletir sobre a impossibilidade de defini‐lo a partir de alguma das
funções que ele exerce: pesquisador, artista conceitual, produtor, DJ e webdesigner.

Daniel Castanheira

Em um artigo do Segundo Caderno do jornal O Globo (que infelizmente perdi) sobre a banda de Ava
Rocha, composta, entre outros integrantes, por Daniel Castanheira, os vários termos utilizados por
Daniel para definir a composição da banda me chamaram a atenção. Principalmente o fato de ele
ressaltar que cada um dos membros não se restringe aos papéis que desempenham na banda.

Daniel estudou na PUC nos anos 90, na mesma época em que eu era estudante de graduação. Eu
sabia à época que ele era articulado com vários projetos “político‐artístico‐estudantis”, mesmo não
o conhecendo pessoalmente. Após ler a matéria referida acima, consegui o seu e‐mail com um
amigo em comum e nos encontramos em sua casa, em Santa Teresa, que divide com outros dois
rapazes. Nesse primeiro encontro, verifiquei que o seu quarto era composto por vários instrumentos

60
musicais, computador, bateria eletrônica, muitos livros teóricos e alguns objetos indefinidos que
utiliza como material para as suas instalações, como ele mesmo diz: “Esse espaço é meu quarto,
minha casa. Eu até brinco quando as pessoas vêm aqui” (apontando para os três cantos que
compõem o seu quarto): “Aqui é meu estúdio, ali meu escritório e lá, onde eu durmo. A gente vê
que eu trabalho aqui, estudo um pouquinho ali, e depois vou dormir lá.”

O encontro com Daniel me fez pensar sobre um elemento que considero importante mencionar para
esta primeira introdução dos personagens. Daniel destoa dos outros personagens até aqui descritos
com respeito a algo que abrange desde a sua personalidade até uma apresentação de si. É possível
verificar em Kassin, Rica e Felipe um agrupamento de características apolíneas, como a voz pausada,
os movimentos e as expressões finos e contidos; uma seriedade que se equilibra entre uma atitude
cool, polida, entre a ironia e a sensitividade. Os cabelos curtos, as roupas básicas (o jeans e a
camiseta, às vezes com alguma referência pop irônica), tudo parece ter o seu lugar simetricamente
elaborado, clean. Esses elementos são mais enfatizados no caso de Felipe e Rica, pois Kassin sempre
assume um jeito que tem um tom de brincadeira e ironia, uma leveza que se deixa mostrar nos
óculos de armação grossa, de inspiração retrô dos anos 70, à la Peter Sellers. Estas características
parecem circunstanciais, mas dizem respeito a uma certa assepsia no estilo desses produtores. Kim
Cascone (2002), a propósito, chama a atenção para os “micromovimentos dos pulsos e dedos” dos
produtores, que ele denomina de “artistas do laptop”, muito diferentes das performances e da
composição corporal dos músicos, que envolveriam, de forma contrastante, macromovimentos de
diversas partes do corpo. Nesse mesmo sentido, quase todos os entrevistados têm uma compleição
quase cinza de tão alvos, “desbotados”, talvez relacionada a um cultivo do indoors, elencado a um
comportamento “saudável” (lembrar a referência da reportagem da Revista Época sobre Kassin,
citada anteriormente: “Rapaz de bons hábitos, é vegetariano, não fuma, não bebe, trabalha muito. É
do tipo que conquista amigos 'na humildade', como eles dizem”), luzem algo como uma estética que
poderíamos chamar de “pós‐nerd”.69 Adotando um tom irônico de brincadeira, Daniel Castanheira,
por sua vez, alude a essa estética clean de maneira assumidamente estereotipada, exagerada, que
merece ser confrontada com aquela descrita nas entrevistas dos outros personagens, em que a
atitude oposta foi preponderante, talvez por simples coincidência: “Esse discurso de cabelinho
cortado em Londres, durinho, dançando. Mas, eu sou brasileiro, tenho o cabelo duro, me mexo

69
Na elaboração do conceito da coleção de inverno 2009 da Osklen, Oskar Metsavaht apresentou, no seu desfile, modelos
usando grandes óculos com armações avantajadas, em homenagem aos “nerds”. No site sobre o conceito ele diz: “Estamos
vivendo um período de reflexões e o mundo está à espera de uma nova direção, de caminhos para que se torne
sustentável social, ambiental e economicamente. Vamos retomar os básicos e, mais uma vez, nos renovar através da arte,
da ciência e da filosofia. O personagem que se destaca nesse universo é um renascentista atual, misto de cientista e artista,
um humanista que reflete os tempos e propõe” (http://www.osklen.com).
61
diferente. Não tem como ficar com um cabelinho assim. Não adianta, eu sou do carnaval, bloco,
rua”. Guiando‐se por essa ideia, de maneira contrastante, Daniel soma uma série de qualidades
dionisíacas por um cultivo do excesso, “da vida exagerada”, como ele diz. E isso se expressa também
em seu modo de vestir, ao utilizar os tecidos do algodão, mais suaves, assim como em sua narrativa
labiríntica e em sua maneira de estar. Muito falante e entusiasmado, performático, pegava um
violão com a mesma intimidade que gravava um loop para ilustrar o que queria dizer ao longo de
nossas conversas. A metáfora multifuncional de sua casa foi de fato reavivada por ele naqueles
momentos. É importante registrar que a construção de sua personalidade “excessiva” é
conscientemente elaborada em seu discurso.

Daniel começou a entrevista discorrendo durante um bom tempo sobre conceitos teóricos,
aparentando um desejo maior de mostrar ideias que reverberavam posteriormente numa
apresentação de si. Em muitos sentidos, ele é um bom contraponto para Felipe em termos de estilo
de apresentação, já que, enquanto Felipe se define por uma cautelosa negativa – de “não ser bem”
alguma coisa –, Daniel, de maneira diferente, argumenta afirmativamente que a sua atuação em
diversas áreas é norteada por um “conceito básico”, o que, de certa forma, possibilitaria o seu
procedimento diversificado no “campo cultural”. Sua multivivência se manifesta inclusive na
dificuldade que enfrento neste momento para apresentá‐lo, pois, a cada assunto que surgia em
nossa conversa, somava‐se ao mesmo tempo uma explicação teórica, uma demonstração musical,
uma referência estética e um posicionamento político.

Ele abriu a sua narrativa dizendo que uma preocupação com a “noção de espacialidade” orientaria a
sua vida, independente dos universos pelos quais transita. A experiência como skatista quando era
adolescente é bem pertinente para iniciar a sua apresentação. Para ele, o skate o fez mover‐se entre
diversas camadas sociais ao mesmo tempo em que lhe deu “alguns trocados”, porque era
patrocinado em competições. Concomitantemente, havia uma postura “rebelde” (por andar em
lugares proibidos da cidade) e, por isso, também “política” (por enfrentar‐se com as “autoridades”),
que ecoavam nas atitudes jocosas entre os companheiros de skate. Além disso, foi também uma
experiência estética, pois, segundo ele:

Sem a arquitetura modernista e todo o seu lado ruim, o skate não teria nascido. O skate
precisa de escadaria, mármore, corrimão, aquelas coisas “Niemeyer” que são desumanas.
Por exemplo, daqui para lá tem que fazer uma volta em um prédio enorme, porque ele
colocou um piloti ali, então você tem que fazer, não adianta. O skate parece ser um
fenômeno muito humano, no sentido de humanizar essas superfícies duras e lisas, esses
espaços cartesianos.
62
Ainda adolescente, começou a tocar um violão antigo, guardado em casa, e com ele chegou à PUC
“na efervescência dos diretórios acadêmicos” quando foi estudar Filosofia no início dos anos 90. Ele
ressalta, nesse momento, um desejo de sua geração de distanciamento “da cultura da cocaína e do
rock dos anos 80”. Assim, em decorrência desse processo, teria havido um deslocamento para
começarem a ouvir e tocar samba, chorinho, para um “redescobrimento das raízes” e para a
socialização da maconha. Desse modo passou a transitar em apresentações de rodas de samba,
inclusive quando começou a aprender a tocar percussão. O desconforto decorrente dos “purismos”
de seus companheiros de Diretório Acadêmico, “essa galera que foi parar no Museu Nacional,70
Boitatá e afins”, o levou a procurar coisas diferentes. E foi com o grupo Slamb que principiou a
cruzar com a linguagem eletrônica de maneira ainda tímida. O grupo era formado por Claudio
Monjope, que fazia os ruídos eletrônicos, Ericson Pires, Clara Linhardt e Rodrigo Amarante. Ele
descreve que a performance consistia em Ericson ler os seus poemas, mexendo na voz
eletronicamente, Claudio fazendo as bases e ruídos, ele próprio tocando o violão, e Clara e Rodrigo
com um trabalho de corpo, já que eram atores. Explica que, naquele momento, trabalhava com o
elemento acústico dessa formação. “O Claudinho era o cara que tinha os botões. Então, juntava eu e
o Claudinho, ele cheio de botões e ruído, e eu levava umas canções, inventava outras, levava o
violão, uns ferros velhos para dialogar com ele. Um arrastava e o outro batia”.

A base do “desconforto” em participar da rodas de samba e chorinho se fundava no que os seus


colegas denominavam “autenticidade”. Para Daniel, tratava‐se de uma autenticidade que não
pertencia à vivência específica de classe média da Zona Sul carioca dos seus colegas. Muito pelo
contrário, parecia‐lhe estranho as letras falarem de “morro” e do “Nordeste”, assim como os
acordes, considerados por ele “puristas”, em que não cabia nenhum “ruído” ou estética “mais
suja”.71 E, em sua trajetória, foi a partir do momento em que assumiu a estética dos “botões” que se
sentiu mais próximo de sua vivência particular. Durante o curso de graduação, Daniel foi estudar em
Paris, onde acabou se dedicando bastante à música. Lá ele continuou a se aproximar do universo
“eletrônico”, juntando‐se a uma banda de hip hop, formada por um DJ, um baixista e um guitarrista,

70
Referindo‐se ao PPGAS/UFRJ.
71
Elizabeth Travassos, em artigo intitulado “O moderno gosto das raízes e os híbridos estilísticos” (2004), faz uma atilada
análise sobre essa constelação a que se refere Daniel, apontando, até mesmo para uma insuspeita relação com a
tecnologia digital. Ela diz trabalhar com alguns músicos brasileiros de vertente “purista”, preocupados com a ideia de
autenticidade através de associações entre folclore e rusticidade, folclore e comunidade, folclore e sons acústicos ao vivo.
Tais músicos estariam se relacionando com os novos meios de produção e reprodução sonoros digitais em seus CDs e
mesmo DVDs de modo a criar uma “continuidade cultural que dilui as fronteiras de classe, religião, raça, experiência
musical” (Travassos, 2004:3). Dessa forma, estariam “ocultando as diferenças na organização social das práticas musicais e
idealizando o compartilhamento de códigos e valores culturais” (idem). Segundo a autora, o elemento pré‐gravado, o
sample, apresentaria algo de paradoxal naquele contexto: o sample, “objeto ligado intrinsecamente à criação e recepção
esquizofônicas, vem sendo usado para criar simulações de atividade musical artesanal, ao vivo e em conjunto – em
resumo, o fragmento pré‐gravado vem sendo chamado a participar duma imaginação ‘sin‐fônica’” (Travassos, 2004:3).
63
à qual se integrou como “o étnico” do grupo, sendo apresentado como “Daniel do Brasil”. Ele diz
que tocava berimbau, congo, violão, bongô, moringa. Além disso, revela ter, naquele momento,

sobrevivido tocando muita música brasileira. Música brasileira mesmo, até mais brasileira
do que a que se faz no Brasil. Nostálgica mesmo. Fundei o Clube do Choro de Paris na
Maison do Brasil, Cité Universitaire, junto com uma galera de lá do Conservatório. Nunca
perdi esse diálogo. Hoje mesmo entreguei meu portfólio lá no MEC para me candidatar a
professor substituto para o ano que vem. Então, coloquei vários trabalhos de arte sonora,
e também fotos minhas tocando chorinho porque a galera nem lembra que eu gosto e
toco.

Quando retornou ao Brasil, no final de 2002, integrou imediatamente o coletivo Hapax, criado no
início de 2001. A princípio, a ideia era dar continuidade ao projeto da antiga Slamb, realizando
intervenções urbanas com várias experiências sonoras eletrônicas e eletroacústicas. Isso motivou
Daniel a começar a baixar softwares de criação musical e a comprar um equipamento básico para
fazer um miniestúdio no computador em casa. Daniel Castanheira, Ericson Pires e Ricardo Cutz, os
atuais membros do Hapax, agora se dedicam mais à criação de arte sonora. No momento de nosso
primeiro encontro, Daniel realizava também a sua primeira trilha sonora para um programa do Canal
Brasil, além de escrever sua dissertação de mestrado.

Para Daniel, todas as suas atividades são elencadas num mesmo plano, sem nenhuma separação ou
hierarquização, já que partem de um mesmo núcleo. Referindo‐se às suas atividades como músico,
como criador de arte sonora, e acadêmicas, Daniel diz: “Não sei mais qual é a direção disso e vice‐
versa”. Tem uma questão interessante que aparece em sua fala, relativa à afirmação de que “não
gosta de músicos”, mas que “gosta de fazer música com os amigos e sozinho”. Diz que não tolera a
vida de “filósofo de gabinete”, embora assegure que pretende seguir o doutorado e dar aulas na
Universidade (apesar de se alocar mais como “ensaísta” do que como “pesquisador”). Não tolera,
como vimos acima, uma estética da cópia europeia, dos que frequentam o universo da música
eletrônica, “como se estivessem em Londres”. Mas tampouco tolera “a bandeira brasileira e o
nacionalismo”. Nesse mesmo procedimento, junto com o Hapax, gravou um disco com samples
utilizando fragmentos de uma entrevista que realizaram com o cientista político Antonio Negri. E,
quando lecionou o curso “Narrativas espaciais e sonoridades”, no Instituto de Artes da UERJ, em
2007, deu aulas sobre a filosofia de Deleuze usando um computador para ajudar a ilustrar os
conceitos que iria trabalhar em sala de aula. Por outro lado, acha que seria difícil realizar uma
verdadeira separação entre conceitos filosóficos e sonoros, porque, segundo ele, a música eletrônica
deve ser pensada através de um código espacial e não temporal. A temporalidade na música
64
eletrônica já estaria dada a partir da repetição, por isso o relevo associado à espacialidade já
configura uma ruptura no modelo da música tradicional. Ele afirma que, ultimamente, tem se
dedicado a “ficar ouvindo loops”, que às vezes grava toda a trajetória de ônibus da PUC (onde
leciona) até Santa Teresa e capta os 40 minutos do percurso para depois ouvir e entender os
momentos da distorção do som, o espectro e amplitude da onda sonora, a relação com o microfone.
Afirma estar vivenciando um momento “experimental – não no sentido teórico e Cult, mas de
laboratório, ‘jalequinho branco’”.

Assim, em última instância, “a questão é ter uma linguagem que tenha a ver com política e com
invenção. Poder se inventar e criar espaços para estar, e discursos mais libertários. Poder se liberar
para fazer as coisas. Colocar a produção em casa e fazer você mesmo”. Parte dessa ideia de
liberdade está ligada a poder escolher os horários e as atividades, algo que encontra eco em Kassin e
Rica.

Foi revelador, a propósito, o fato de Daniel recomendar, durante a entrevista, que eu também
entrevistasse Ricardo Cutz, companheiro no Hapax, porque ele havia recentemente defendido uma
dissertação de mestrado sobre arte sonora, orientado por Ivana Bentes, na ECO/UFRJ. Ele também
chamou a atenção para o fato de Ricardo ter uma vida “mais séria”, regrada por horários. No
encontro que tive com Cutz em seu estúdio recém‐montado em uma casa que compartilha com
outros, no Humaitá, todo o seu material estava muito bem organizado.72 Ele ressaltou uma nova
dimensão da categoria produtor, relativa não apenas ao seu lado criativo, de mediação, de
gerenciamento dos outros, mas de um gerenciamento de si. Ele inclusive utilizou a categoria de
“self‐promoter”. E, nesse aspecto, os sites pessoais e de relacionamento da Internet seriam muito
importantes. Entre os personagens que entrevistei, Cutz é o único que tem um site oficial com um
formato livre elaborado por ele próprio, em que divulga seus diferentes trabalhos e oferece ao leitor
algumas considerações pessoais sobre o processo subjetivo de realização. Apesar de não ter em
nenhum lugar uma identificação de “quem é” Ricardo (um about/sobre), ele organiza o seu site a
partir das suas diferentes atuações:

Ricardo Cutz
‐ On‐camera
‐ On‐soft
‐ On‐sound
‐ On‐tape

72
Em casas “antiguinhas” e charmosas sediadas nos bairros do Humaitá, Gávea, Jardim Botânico e Santa Teresa, monta‐se
um cenário onde realizei a maior parte de minhas observações e entrevistas. Quartos antigos são agora repaginados em
salas, escritórios, estúdios. Apesar de independentes uns dos outros, por vezes as diferentes áreas de atuação dentro de
uma “casa” podem colaborar para um projeto conjunto.
65
‐ On‐paper

Ao “clicar” em cada um desses ícones, você acessa a dissertação de Ricardo sobre arte sonora,
defendida na ECO/UFRJ, em 2008. Você também acessa suas composições de música eletrônica;
como igualmente os seus trabalhos de trilhas sonoras para filmes e os trabalhos artísticos, junto ao
coletivo Hapax. Ele pode ser acessado em todas essas atividades e todas essas atividades identificam
Cutz, já que ele esta em/“on” todas elas. Ali também estão links para outros sites onde Ricardo
aparece, inclusive dentro do currículo Lattes.

Em um evento que participou em janeiro de 2009, denominado Encontros da Arte Sonora, em que o
artista é chamado para um “bate‐papo informal sobre a sua obra”,73 assim Ricardo foi apresentado:

Ricardo é um artista sonoro cujo trabalho passa pelo cinema, música e artes plásticas.
Trabalha com cinema, é membro do grupo Hapax, realiza trabalhos de arte sonora e urbana
com GPS, instalações interativas e apresentações musicais.

Cutz e Daniel também se referiram a um campo interessante em que atuam, o de sound‐designers.


Descrevendo essa atividade como recente e ainda não muito valorizada no Brasil, Daniel faz um
paralelo com a atividade do vídeo‐designer:

O vídeo‐designer faz a marca e toda a identidade visual de um filme, por exemplo. O desenho
de som no cinema também é isso porque o desenhista de som vai pensar a concepção de som
daquele filme. É uma narrativa a mais além da visual. Depois tem a música, que é outra
narrativa. Essa composição de narrativas vai dar nesse espaço cinematográfico que se quer. O
sound designer e as coisas de cinema têm muito a acrescentar. Porque, se estou fazendo um
som aqui, e quero fazer o mesmo som em outro espaço, existem técnicas de desenho, de
tentar mapear, ou de esgarçar essas relações espaciais e sonoras. Eu sei que se eu fechar a
porta e você estiver no ambiente ao lado, mas houver uma aberturinha aqui, vamos tirar um
pouquinho de grave. Se o quarto é grande, tem um parâmetro que é o reverb, a reverberação
da sala. Esse é um parâmetro da edição sonora. Então, se eu quebrar a minha edição, só vai
chegar aqui no banheiro. Eu vou ter um imaginário dos parâmetros desse som. Se eu te colocar
aqui em uma sala enorme ou em um ginásio, vou fazer um mesmo som se puxar o reverb,

73
Essa série de encontros teve início desde o final de 2008 no cinema Odeon. O flyer do evento caracteriza essa designação
com novas possibilidades de inclusão de modalidades criativas (que é possível comparar com a de Felipe Vaz,
anteriormente citada): “Arte Sonora Hoje: É um espaço de discussão sobre arte contemporânea, focado nas experiências
apresentadas pelos artistas convidados. O crescimento da utilização do som na arte contemporânea nos leva
necessariamente a refletir se estamos diante de um modo radicalmente novo de fazer arte e como ele se afirma dentre as
outras mídias já conhecidas. / Arte Sonora Hoje. Através dos trabalhos apresentados e do debate publico, trata das
possibilidades abertas por experiências artísticas ainda não totalmente exploradas como radioarte, esculturas sonoras,
performances, videoarte e similares (Http://ricardocutz.com.br).
66
calcular o tamanho da sala. Se estiver fazendo um som em uma sala de duzentos metros
quadrados, então a reflexibilidade dele vai ser uma, a difusão outra. O sound designer que
trabalha com cinema saca muito isso. Então, a Sound Design, na verdade, é uma grande
disciplina para pensar a espacialidade sonora.

Esta sensação de entusiasmo em ampliar ao se referir aos trabalhos de trilha sonora para programa
de televisão indica uma diferença àquela sentida pelos “nobres” descritos por Gilberto Velho. No
caso dos “nobres” dos anos 70 a preservação da “autenticidade” se realiza a partir da criação de
uma relação de tensão entre “criação” e “mercado”. Como diz Gilberto Velho: “Em vários
momentos, aceitavam ‘esquemas comerciais’ para poder sobreviver ou ter reservas para fazer
depois o seu ‘verdadeiro trabalho’. É o compositor que aceita fazer um jingle, o cenógrafo que vai
trabalhar na televisão, o fotógrafo que colabora num filme erótico de baixo nível etc.” (Velho,
1998:41). Através dos exemplos dos rapazes até agora apresentados e também os que vão ainda ser
apresentados, os processos de autenticidade não parecem estar tão estreitamente demarcados nas
esferas do trabalho “comercial” e “criativo”. Assim como verificamos o interesse apontado por
Daniel em relação ao ofício do sound designer e do prêmio de arte eletrônica recebido por Felipe
pelo desenho de um site, Batman Zavareze, personagem que aparecerá mais detalhadamente no
capítulo 3, afirma claramente que as atividades que realiza na sua empresa 27 +1 exigem o mesmo
processo de criatividade e detalhe que o festival de arte multimídia (Multiplicidade) do qual é
curador.

Timba

Para a introdução de Fernando Timba nesta tese, preciso antes descrever as circunstâncias e o
cenário em que travei conhecimento com ele. O leitor deve considerar as três próximas páginas
como uma espécie de "prólogo" a Timba.

No início de 2007, um amigo meu de muitos anos, Eduardo Llerena,74 enviou, através de um e‐mail

74
Esse amigo era namorado já há alguns anos da dona dessa casa noturna, e durante um período ele trabalhou em
diferentes funções naquela casa. Mas acima de tudo ele vivenciou um bom período da cena da música eletrônica no Rio, já
que o Dama de Ferro é um clube protagonista dessa cena.
67
de divulgação do clube noturno Dama De Ferro,75 uma informação acerca do primeiro curso de VJs
(Videojóqueis) no Rio. O curso se baseava numa adaptação do primeiro formato que o professor
Jodele Larcher ministrou na Escola de Televisión y Cine de Havana naquele mesmo ano.
Anteriormente, em 2003, uma matéria para a revista eletrônica Rraurl,76 Jodele já se pronunciara
sobre a atividade do VJing. Em seu papel de porta‐voz,77 vale a pena deter‐nos em alguns pontos
dessa entrevista na qual ele articula uma combinação significativa entre a apresentação de suas
atividades profissionais com as características do VJ:

Sou diretor de TV, esta é a minha formação. Os videoclipes vieram por causa do meu
envolvimento com a música. Comecei como assistente para depois produzir a banda Brylho, e
outros. Na verdade sempre estive neste miolo entre a música e a TV, sou um criador de imagens
com o auxílio luxuoso dos letristas que nos ajudam na busca desta poética. Tudo começou
porque o Lulu Santos me chamou [no final dos anos 90] para fazer um cenário virtual de

75
O clube noturno Dama de Ferro integra um circuito de DJs e frequentadores da “cena da música eletrônica” no Rio, que
apesar do tempo passado desde o início do milênio quando realizava a minha pesquisa de mestrado, ainda mantêm um
desenho característico. Na época da minha pesquisa ainda não era um clube “protagonista”, como a Bunker, mas era um
clube que “habitava” a cena da música eletrônica no Rio. Submetido a uma descrição geral, assim dizia naquela época: “As
boates, mesmo que por uma noite, revestem‐se de uma estética, evocando a ideia londrina de “night‐club” ou “club”, em
que os elementos estéticos “clubber” montarão um cenário para receber um DJ de música eletrônica e o seu público. Além
de diferenciarem‐se das outras boates por terem o seu pico de noite ou início por volta das quatro da manhã, no horário
after‐hours, têm suas ambientações mais escuras, mesmo nas pistas de dança; utilizam muito de fumaça, luzes a raio laser,
flashes. Os corredores são sempre sombrios, escuros. Normalmente a estética desses ambientes varia entre algo mais
asséptico, embora escuro, negro, ou algo meio futurista, como canos, as cores cinza e prateado, ou decorações com
grandes armações de ferro (Bacal, 2003: 91‐92). Para a pesquisa sobre novas modalidades erótico‐afetivas na complexa
socialidade que a autora delineia como a “cena carioca”, Eugenio (2006) abre sua tese com uma cuidadosa descrição do
ambiente do Dama de Ferro como um espaço‐revelador sobre a configuração dessa cena e ao mesmo tempo um novo
papel protagonista ao Dama de Ferro. De forma meio impressionista, poderia dizer que em 2003 o Dama era mais “gay” do
que “eletrônico”. Em 2006 era “eletrônico” e “moderno” (seguindo aqui a configuração em que Eugenio qualifica, através
de uma caracterização ambígua, as relações eróticas). Em minha entrevista com Fernando Salis, sobre a qual falaremos
mais adiante, ele realça o lugar protagonista para a cena “electro” do Rio, contando como a dona, Adriana Lima, teria
trazido verdadeiros DJs estrelas (muitas vezes “do seu bolso”) para tocarem no Dama sem ser assim tão valorizado por
todos os frequentadores da casa. Ele vincula a sua entrada na cena como sendo subsequente a um período de residência
em Nova York, quando descobriu a cena do electroclash, aliada a uma “descoberta de um estilo de vida”, utilizando os seus
próprios termos que o teriam levado a descobrir a atividade de VJing.
76
O site www.Rraurl.com é uma publicação eletrônica, sediada em São Paulo, bem legitimada sobre a cena de música
eletrônica.
77
Segundo Latour, o porta‐voz “fala pela existência do grupo”. Ele “define o que um grupo é, o que o grupo deveria ser e o
que o grupo foi”. Essas definições “são constantemente trabalhadas, justificando a existência de um grupo, evocando
regras e precedentes e medindo as diferentes justaposições de definições” (Latour, 2005:31 – minha tradução). Se for
possível identificar a existência dos VJs como um “grupo profissional”, deve ser feito através do que dizem os seus
formadores (group makers, group talkers e group holders: 32). Também sobre a ideia do porta‐voz, Bourdieu propõe que
“o poder das palavras reside no fato de não serem pronunciadas a título pessoal por alguém que é tão somente ‘portador’
delas. O porta‐voz autorizado consegue agir sobre as próprias coisas, na medida em que sua fala concentra o capital
simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador” (Bourdieu,
1996: 89). De alguma forma, essas duas referências dariam conta dos dois lados que “criam” um porta‐voz. O porta‐voz
como criador de um “grupo” e o porta‐voz como “criação” do grupo. Batman Zavareze pondera que Jodele “é uma
presença fundamental para o trabalho com imagens no Brasil. Nos trabalhos mais importantes e de grande porte, ele já
participava”. Ele seria uma espécie de “Neandertal” (no sentido de longevidade e de atualidade) das diversas práticas do
vídeo “não enquadrado dentro do formato de cinema”, e um dos grandes entusiastas do termo VJ, “mesmo quando
ninguém falava na existência do termo”.
68
projeções para a tour "Liga Lá", em que ele cantava sincronizado com o Gabriel O Pensador. Foi
aí que comecei a pesquisar as ferramentas para poder ‘tocar’ as imagens, e assim encontrei
uma nova tribo, a denominação visual music, e uma lista enorme de praticantes desta
modalidade de arte (...) Os VJs vêm das mais diversas formações: artes plásticas, fotografia,
designers de moda, de web.... Ativistas da palavra, os poetas, e por fim diretores de TV ou
cinema experimental são facilmente atraídos pela manipulação das imagens em tempo real. A
grande maioria dos VJs internacionais são coletivos de todas as áreas. (...) É um campo de
experimentação maravilhoso, as aplicações são infinitas. Ao mesmo tempo, você pode fazer
algo sozinho, no seu quartinho, pode ser ao mesmo tempo ativista. Veja, por exemplo, o Jean
Michel Jarre, um dos maiores patrocinadores do mais popular programa de manipulação de
vídeo, o "Xpose" da Arkaos. Então os grandes shows de arena precisam de imagens. Pense no
U2, no Rush, veja o DVD do Fatboy Slim. Os profissionais da área têm também a sua própria
Cia. de design, e trabalham para as grandes corporações numa boa. (...) [Para a criação] eu
penso em temas, depois gravo com a mini DV, ou o Jera Calderon (meu parceiro) de 3D molda e
anima as ideias. Então cortamos as imagens e exportamos em formato mov, que são pequenos
filmes, e endereçamos para os programas que usamos ‐ o Xpose e o Vidvox ‐, para então
tocarmos como música para os olhos. Estamos avançando para uma interação maior, ou seja,
vamos começar a compor nosso material sonoro e fazer intervenções de áudio e vídeo sobre
uma base pré‐programada (entrevista realizada por Silvia Piccolo em 06/05/03 – meus grifos).78

É possível verificar que Jodele se situa desde o início de sua biografia profissional no “miolo” entre a
TV e a música. Em termos de geração, ele pertence à mesma faixa que os “mestres” de Kassin, como
Sergio Mekler e Hermano Vianna, estando próximo dos cinquenta anos. Começou a carreira na
Televisão e passou a atuar na área dos videoclipes. Modelo de linguagem estética, os videoclipes se
configuraram como um novo gênero e influenciaram uma série de produções no cinema e na

78
Nessa entrevista há uma pergunta muito oportuna da entrevistadora para Jodele, que merece ser mencionada, pela sua
afinidade com a ideia que apresento nesta primeira parte da tese: “Acredita que a presença do VJ numa festa acaba
atraindo designers e artistas plásticos para a cena eletrônica?” Esta seria uma espécie de contraface de designers e artistas
plásticos levarem alguns elementos da cena eletrônica para outros espaços de atuação, mostrando como essas fronteiras
estariam “embaçadas”.
69
televisão.79

Mais adiante, Jodele defrontou‐se com o trabalho de criar o cenário de um show para o Lulu Santos,
e se interessou em aprender a usar ferramentas para “tocar” imagens como se toca música. Ao
mesmo tempo, elaborava essa ferramenta para exibir suas imagens em um evento musical de
grande porte, como se caracterizam os shows de bandas de rock, como as que nomeia na entrevista
acima. Ao entrar em contato com essas ferramentas e com outros que “estavam começando a
trabalhar com elas”, ganhou consciência das possibilidades de profissionalização dessa identidade
profissional, e passou a atuar conscientemente nesse processo. Narro a história nestes termos
porque me parece que várias pessoas estavam trabalhando como VJs sem essa conscientização.
Quando se dá conta disso, Jodele utiliza “as mesmas categorias” dos produtores que já citamos
anteriormente: fala da possibilidade de trabalhar “no seu quartinho” e ser ao mesmo tempo um
“ativista” (variações dessa ideia surgem principalmente na narrativa de Daniel como na de Kassin e
também na de Fernando Salis, que apresentaremos a seguir). Fala da facilidade de lidar sem um
sentimento de “contradição” com “grandes patrocinadores” e “grandes corporações” e realizar a sua
atividade “artística”. Finalmente, sinaliza como prognóstico o fim da separação entre modalidades e
equipamentos de tocar imagens e de tocar música como atividades separadas, realizadas por
pessoas diferentes. Foi assim que Jodele começou a se posicionar com VJ, chegou a dar o seu curso
em Havana e, depois, no Rio.

Parece‐me importante mencionar esse curso porque foi um evento para o qual fui consciente de que
poderia conhecer pessoas pertinentes para esta pesquisa. Estava mais interessada em pesquisar
acerca da origem dos integrantes do curso do que na atividade em si. Mas, com um olhar

79
Especificamente neste trabalho, Lúcio Maia comenta a importância que a MTV Brasil teve para a banda Chico Science e
Nação Zumbi. O período inicial dessa rede de televisão estava aberto para bandas experimentais. Batman Zavarese, que
começou a sua carreira como estagiário da MTV, diz que ali ele “aprendeu tudo” sobre “novas linguagens”, e se considera
pertencente à mesma geração de bandas como a banda carioca Planet Hemp e da galera do “manguebeat”, pois são todos
“da mesma idade”. Poderíamos examinar aqui a fala de Batman a partir de uma valorização das famílias horizontais, já que
acabou trabalhando como fotógrafo de várias bandas de sua época, como as citadas acima. Alguns autores, como Canclini
e Sarlo, identificam a estética do videoclipe como específica de uma sensibilidade “pós‐moderna”. A maioria dos autores
trabalha o videoclipe como relacionado ao zapping como um modo de comportamento: “... a patch‐work quilt of scraps of
cultures from present and past, here and there, and from nowhere else. Different genres, attitudes, products, styles, and
cultures are blurred. MTV’s images have all the dynamism that lens and cameras movements and computer animated
graphics can provide. Cuts to new images average less than one every seconds.” (Meyrowitz e Leonard In. Lemos 2006:70).
Também já há na teoria uma caracterização de confluência entre as linguagens sonoras e visuais na estética do videoclipe:
“Alguns clipes recentemente abolem as imagens dos intérpretes, substituindo–as por paisagens vagas, anamorfoses de
toda espécie e até mesmo por imagens inteiramente abstratas. Isso tem possibilitado um salto qualitativo no tratamento
visual dos clipes e ao mesmo tempo permitido que a imagem seja trabalhada como textura, tapeçaria cromática e sofra a
mesma interferência no processamento, como o que já ocorre na música”. (Machado, In Lemos, 2006:68). João Francisco
de Lemos comenta que alguns autores, como Fridmann, este em um “tom apocalíptico” se refere à MTV “como síndrome
da questão pós‐moderna", valendo para mostrar “as reações que a MTV despertou, de como esta emissora se tornou
objeto de uma certa pensata contemporânea" (comunicação pessoal). Para o autor, “a MTV estava para aquela geração
assim como os computadores e o Youtube estão para os jovens que a mídia chama de ‘geração digital’, “que é uma galera
mais IPODS, mais interactive media. “A ideia é de que a MTV mesma já estaria para trás” (Lemos, comunicação pessoal).
70
retrospectivo, é possível considerar a própria realização do curso como catalisadora de carreiras,
possibilitando refletir a respeito do que aconteceu com os personagens desde a época em que o
curso se deu (2007) até o final da minha pesquisa. Ali conheci Fernando Timba e Fernando Salis, que
se tornariam importantes para a minha pesquisa.80

(Fernando) Timba se mostrou muito interessado e disponível em me ajudar desde o início. Sua
personalidade solícita me fez lembrar do interesse que os DJs de música eletrônica demonstravam
em me ajudar com meu trabalho de dissertação de mestrado, porque, nesse ato de mostrar ou
desvendar a existência de um “grupo”, ao mesmo tempo se propaga a divulgação da cena. Timba
sempre me avisou sobre eventos interessantes por iniciativa própria, respondeu às minhas
perguntas por e‐mail, principalmente depois que se mudou para São Paulo e os nossos encontros
ficaram bem menos frequentes. A sua participação em minha pesquisa foi também fundamental
porque me ajudou com outros contatos para personagens que também se tornariam importantes
para o meu trabalho e se mostrou disposto a me encontrar em diferentes ocasiões durante longos
períodos.81

Foi curioso descobrir que Timba havia entrado em contato com a prática de VJing em uma festa
organizada por conhecidos meus. O elemento surpresa residia no fato de que o curso de Jodele se
realizou num clube noturno central para a cena da música eletrônica no Rio. De fato, os VJs sempre
foram personagens conhecidos e vistos por mim nessas festas desde o tempo de minha pesquisa.
Mas foi na festa PHUNK! (a mesma para a qual Dani, mulher de Felipe Vaz, toca como DJ) que ele
conheceu o trabalho de Vjing do documentarista Simplício Neto, fundador da festa, junto com os DJs
Saens Pena (Emilio Domingos), Coisa Fina (Daniela Labra) e Artur Miró (Frederico Coelho), em 2001.
Tanto se interessou que passou a participar como estagiário de Simplício, quando se familiarizou
com o procedimento. Entre 2003 e 2004 Timba ganhou consciência plena da categoria de VJ. Até
então não possuía muito conhecimento de música eletrônica e nem tinha muita prática de
frequentar festas noturnas da cidade. Um elemento de aproximação entre Timba e Felipe Vaz,
apresentado anteriormente, é que ambos entraram em contato com a sonoridade e a estética da
música eletrônica depois dos vinte e cinco anos, e disseram explicitamente em suas narrativas terem
sido afetados por essa estética como fonte de experimentação. Sobre a própria categoria do

80
Como veremos mais adiante, Fernando Salis revela que, para ele, foi no curso de Jodele que “a coisa explodiu, porque
quando cheguei à oficina do Jodele, pirei. Lá encontrei muita gente que conhecia da música, da noite, do cinema, e foi
incrível, foi realmente mágico. Foram duas semanas mágicas porque a gente ficava o dia inteiro produzindo. Eu me
encontrei completamente”.
81
Em um de nossos encontros, quando eu estava com mais de 7 meses grávida, ele se dispôs a vir a minha casa,
carregando uma grande mochila onde trazia o seu laptop, e um controlador, que trouxe para me mostrar como
funcionavam.
71
videojóquei, Timba afirma que:

Há uns dois anos, outras festas, outros estilos de música têm pensado o VJ como sendo
indispensável para a festa. Ainda não é normal você pensar dessa maneira, mas é uma
mudança visível. A música eletrônica deu a partida dessa relação. Eu acho que o principal é
que, primeiro, o assunto de tecnologia e música está mais próximo da música eletrônica
mesmo; eu acho que a maior parte desses coletivos de VJs surgiu na música eletrônica.
Inclusive, os programas de VJ surgiram financiados por produtores de música eletrônica. Assim,
isso tudo foi impulsionado pela música eletrônica. E eu acho que a sequência foi que, depois
desse fenômeno, qualquer tipo de festa imaginasse que você ter VJ é o complemento natural
de uma festa.

Filho de professora, Timba resolveu cursar Belas Artes, já que sempre teve habilidade e gosto por
desenhar. A frase principal do seu não muito usado fotolog é significativa: “a drawing a day keeps
the doctor away”. Ele acabou se decepcionando com o curso por sentir que era “prático demais”, e
no meio do caminho mudou para o curso de Comunicação da mesma UFRJ. Este, por sua vez, foi
considerado como tendendo para o extremo oposto, ser “teórico demais”. E foi assim que entrou na
carreira e se formou em Desenho Industrial. Nessa profissão, passou a estagiar e a trabalhar com
ilustração de jornais, capas de livro, diagramação do miolo com o uso de softwares de programação,
como o photoshop. Acabou se tornando Diretor de Arte de uma agência de publicidade. Mais tarde,
quando nos conhecemos, estava atuando como free lancer nessa mesma empresa. Vale notar que
Felipe e Timba se formaram em cursos híbridos, como Comunicação e Desenho Industrial, e que
atuam na área de publicidade, um espaço que sintetiza arte, vendas e grandes corporações.82 São
também cursos que em determinado momento coincidiram com o surgimento da Internet como um
espaço de ampliação de mercado de trabalho.

Retomando a sua narrativa, Timba diz que tem três pontos referenciais para ter chegado a se
encontrar com a atividade de VJ. O primeiro que lhe marcou foi a experiência de ter visto uma
exposição do videoartista Bill Viola no CCBB, em 1996. Ali ele apreciou pela primeira vez “um
trabalho de imagem ou de artes plásticas” que trabalhava “a projeção”, não como “um filme”, mas
como possibilidade para “criar um ambiente” ou “usar como uma obra”. No ano seguinte, em 1997,

82
Refletindo sobre a área da Comunicação dentro do sistema universitário e em relação às agências de financiamento,
Fernando Salis acredita que a de comunicação foi diretamente afetada “por todas as transformações decorrentes do
processo de globalização e de transformação do mundo, do século, como são as tecnologias da comunicação, a linguagem
da comunicação e as questões de comunicação”. Nesse momento, para ele, “O campo da comunicação explodiu e então
houve uma reação muito grande das agências de conhecimento, tentando definir a comunicação como ciência social
aplicada, e tentando acabar com essa grande interdisciplinaridade da comunicação. Porque a comunicação virou qualquer
coisa, no sentido de que realmente tudo poderia ser pensado sob o ponto de vista da comunicação na
contemporaneidade”.
72
ele fez o primeiro curso em animação sem saber ainda muito bem como “trabalhar essa técnica”.
Conjuntamente com os seus trabalhos de ilustração e design, continuou fazendo cursos em
animação, apesar de não pretender utilizar essa técnica da maneira mais usual, de publicidade ou de
criação de personagens. A segunda experiência se deu enquanto passava um mês em Nova York e
por acaso descobriu uma retrospectiva do artista sul‐africano William Kentridge.83 Naquele
momento percebeu que era possível fazer animação relacionada às artes plásticas. O que mais
chamou a sua atenção foi como o artista “criava um ambiente, uma exposição e dentro desse
ambiente projetava as suas animações”. Timba afirma que foi a partir daí que ele resolveu “fazer
animação relacionada com artes plásticas”; e não o tipo de animação tradicional. Assim, ele foi
conhecendo outras coisas de VJ. Já com esse referencial, ao ir à festa PHUNK! no período em que era
sediada no Bola Preta, perguntou ao documentarista e criador da festa, Simplício Neto, se podia
acompanhar de perto sua projeção. Desse modo Simplício começou a ensinar um pouco sobre o
software para VJ que usava na época e a deixar Timba projetando cada vez mais, até que ele próprio
se tornou mais um VJ da festa. Timba reconhece que foi com Simplício que aprendeu a “ter a
sensibilidade para relacionar música com imagem”, a se familiarizar com “o timing e com o software
de VJ”. Já com alguma prática como VJ, em torno de 2003, ele conta que seu terceiro ponto
referencial se deu quando foi assistir à apresentação de Mike Helm, no Circo Voador. Helm atuava
como DJ e VJ, e sua performance constava de um set audiovisual em que trabalhava imagens
mixando com um DVDJ. Chamou a atenção de Timba a “relação tão palpável, o casamento tão
perfeito entre música e imagem”.

Quando Perguntei a Timba se ele havia se tornado também um estudioso de música quando
começou a trabalhar como VJ, ele respondeu:

Esse momento foi importante para eu começar a prestar atenção em elementos que antes não
chamavam a minha atenção: como se relacionam música e pista, como se relacionam música e
o ambiente da festa. Por exemplo, mesmo não estando tão atento para a música que está
sendo tocada, comecei a prestar mais atenção em como a música alterava aquela pista. Enfim,
como aquilo que eu projeto não vai necessariamente mudar uma pista, mas vai acompanhar
aquela mudança da música. Ou como pensar um tom de cor para às vezes ter relação com o
tipo de som que está acontecendo. Quando tem um tipo de som mais pesado, você pode usar
um azul que vai recuar o ambiente e deixar tudo mais introspectivo, por exemplo. Eu tive que

83
Timba diz: “O grande mote do trabalho dele é o que se chama Drying Projections. Ele faz desenhos, animações para
projeção. Ele não faz um desenho animado pra você ver numa sessão; ele cria um ambiente, faz uma exposição e nessa
exposição ele projeta essas animações. Então, ele tem uma técnica que eu acho incrível: desenha tudo com carvão e tudo
na mesma folha. Desenha e apaga cada desenho; então vai fazendo uma sequência de animações com um traço
superpeculiar, porque é artista plástico, não é exatamente um animador”.
73
aprender um pouco mais de como as cores se relacionam com o tipo de som.

Em sua descrição das atividades de VJ especificamente no universo das festas, Timba ressalta ter se
tornado mais atento não aos elementos expressivos da música, mas à sua funcionalidade. O
elemento interessante de sua resposta é que ele ressalta que, para a sua atividade, teve que
incorporar uma habilidade auditiva específica para traduzir as diferentes sonoridades das festas em
que atua com imagens e cor. Há um elemento de reencontro com as cores através de uma paleta
diferente, feita de botões, conectado com o elemento performático: os VJs, assim como os DJs, não
formatam previamente as suas apresentações. Parte do elemento criativo dos VJs e DJs é a
improvisação. Inclusive, não são bem vistos os VJ sets (a performance dos VJs) gravados ou
previamente armados. Apesar das semelhanças entre as suas atividades, Timba considera o DJ como
mais especializado do que o VJ. Para ele, isso se deve ao fato de as músicas que os DJs tocam
“definirem o estilo da festa e da cena que frequenta essa festa”. Os VJs teriam uma natureza mais
colaborativa por princípio do que os DJs e, nesse sentido, acabam com uma amplitude maior de
possibilidades de atuação. Esse elemento do VJ, como um colaborador adicional das festas, como
um agregado, é importante para a designação dessa categoria como híbrida. Nesse sentido, o
caminho de territorialização dessa atividade não significa tornarem‐se os VJs mais “especializados”,
como no caso dos DJs que criam a sua autoridade de acordo com uma associação a um gênero
musical. Para os VJs, a autoridade reside na sua capacidade de se adaptarem a diversos universos de
apresentação.

Partindo do momento final do curso que frequentou com Jodele, Timba passou a ser chamado para
incorporar diversos projetos de diferentes naturezas, como shows, festas variadas, óperas,
programas de televisão, vinhetas de programas. Note‐se que ele não incorporou esses projetos
especificamente com a identidade de VJ; suas atividades também eram variadas nesses diferentes
projetos. Na reportagem que saiu no jornal O Dia, na coluna Perfil, em 21 de setembro de 2008, ele
é apresentado primeiramente como designer e VJ, mas, em seguida, descrevem os diferentes
trabalhos que realizou com designações diferenciadas, como a animação de abertura de um longa
metragem do diretor Wolf Maia, vinhetas para programas de televisão, vídeo‐designer da peça “Sem
Ana Blues”, dirigida por Ivan Sugahara, com texto de Caio Fernando Abreu e encenada por Ana
Abott. Dois trabalhos ele julga especialmente interessantes: o que desenvolve com Cila Mac Dowell,
com projeções da ópera “O vôo de Lindbergh”, de Kurt Weil, e a montagem do italiano Pier
Francsico Maestrin, da ópera “La Bohème”, de Giacomo Puccini, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro. Apesar de ter encontrado uma denominação profissional, ela não congelou Timba em uma
esfera de trabalho. A partir disso, é possível afirmar que ocorreram dois movimentos paralelos: por

74
um lado, a atividade de VJ passou a ser incorporada em outras linguagens artísticas, inclusive numa
modalidade clássica, como a ópera. E, por outro lado, a identidade de VJ conferiu mais liberdade
para Timba explorar trabalhos com outras técnicas de que tinha experiência. Esta se caracteriza por
ser uma atividade de proliferação, e não de congelamento, como continuaremos a expor a seguir.

Ao longo de dois anos, desde que o conheci, Timba havia se mudado para trabalhar numa empresa
de produção de multimídia para eventos em São Paulo, apesar de vir com frequência ao Rio para
tocar em finais de semana. Em uma de suas vindas ao Rio de Janeiro, ele me convidou para assistir a
uma gravação para o programa televisão Tribos, que seria transmitida no canal de TV a cabo
Multishow em uma apresentação dedicada aos VJs. Para a filmagem do episódio, a produção do
programa entrou em contato com Jodele, que, por sua vez, convocou alguns integrantes da turma
que havia originalmente feito o curso com ele. Timba me enviou um e‐mail avisando sobre essa
gravação, considerando que poderia ser útil para a minha pesquisa.

Houve um momento muito específico e curto, durante a gravação (que usou uma casa noturna em
Botafogo como cenário), que foi bastante significativo para perceber as ambiguidades na maneira
como as pessoas ligadas a esse meio constroem suas identidades. Antes de começar, enquanto
montavam o ambiente, a produtora do programa começou a fazer circular formulários de direito de
imagem, onde também pedia que eles preenchessem como queriam que aparecesse a legenda de
suas atividades profissionais. Parecia um momento burocrático. Mas esse pedido gerou entre os VJs
um pequeno frisson de dúvida. Na folha de papel que preencheram havia várias rasuras. E o papel
circulava, retornando aos agentes que modificavam mais uma vez o que haviam escrito. A
perplexidade dos rapazes84 se demonstrava nessa movimentação de vai e vem, apaga e conserta. E
ainda teve o desfecho irônico de não terem sido respeitadas as suas próprias versões finais acerca
de suas “identidades profissionais” na apresentação final do programa, por haver um espaço
definido na vinheta do programa. Assim, Timba, que escrevera “Vídeo designer e Editor”, hesitou e
me disse: “trabalho como vídeo designer na produtora que estou agora, mas também atuo como VJ
para eles. Será que devo acrescentar que também sou VJ?”. Fernando Salis colocou inicialmente “VJ
e professor universitário”, mas depois mudou para “cineasta e VJ”. Os outros que estavam ali se
autolegendaram da seguinte forma: Jodele, como “diretor de TV e VJ”; Jarbas, como “músico,
programador e cientista da computação”; Batman Zavareze, como “designer e diretor do

84
Apesar de Timba ter mencionado que Jodele havia chamado uma menina VJ para o programa, todos os Vjs presentes
eram rapazes.
75
Multiplicidade”85; Breno Ung, também como “designer; João Rebello, como “editor”; por último, o
DJ Nepal, como “produtor musical”.

Gostaria de registrar que esse momento foi o único de uma certa confusão e hesitação entre os
rapazes que haviam sido elencados para participar como integrantes da “tribo” dos VJs, embora
somente três se designassem por essa denominação. Será que se trata de uma profissionalização em
processo de legitimação, razão pela qual as pessoas ainda não utilizam o VJ como rubrica de
identificação profissional?86 Até certo ponto, é possível pensar positivamente esse fato, já que
dificilmente eles vivem unicamente com a renda que auferem com o trabalho como VJs. Por outro
lado, não acredito que essa seja a intenção. Durante a gravação do programa de televisão, em um
dos momentos em que tentava descrever a atividade do VJ, Fernando Salis afirmou que o VJ teria
que ter “um apreço por pesquisa, por imagens e por mistura”. Esse também é um elemento
destacado por Jodele. Ele reitera que o importante é vir de diferentes áreas da arte digital para atuar
neste modo de criação.

É interessante notar como uma série de “formadores de grupo” (Latour, 2005) foram acionados no
contexto dessa gravação: a “mídia”, através do programa de televisão especialmente criado para
“inventar grupos”; a “teoria”, pela presença da antropóloga (não esquecer que Timba me chamou
por julgar que eu pesquiso a atividade de VJing); o “porta‐voz”, com a presença de Jodele (professor
dos VJs) e de seus alunos (que ele agora identifica como “parceiros do grupo”). Batman contou que
chegou à gravação por intermédio da ex‐namorada de seu assistente de direção do Multiplicidade,
apesar de conhecer todos os presentes angariados para “formar” a “tribo dos VJs”. Na verdade, foi
somente durante o desenrolar do programa que ele percebeu que a gravação (como um encontro)
tratava de “celebrar o VJ”. Ele achou “na verdade” que havia “sido chamado para falar do
Multiplicidade”.

Já me referi anteriormente ao sentimento de afinidade de Timba com a categoria do VJ, algo que
também se expressa na sua participação da lista de assinaturas brasileiras de VJs, os quais, ao se
organizarem, conseguiram comprar o software Modul8 especificamente para VJs, com um bom
desconto e com divisão das despesas. Por outro lado, quando Batman fala sobre Timba, opina que
Timba já “ultrapassou” essa “categoria”, com os trabalhos de imagem que fez para teatro, ópera e
85
No myspace do Multiplicidade, na parte “sobre o grupo”, esse festival é identificado da seguinte maneira: “O projeto
Multiplicidade> Imagem_Som_inusitados é um movimento de manifestação artística que já faz parte do calendário cultural
do Rio de Janeiro, mostrando ao público diversidade de atrações em um repertório plural. A cada apresentação quinzenal
são criados espetáculos não convencionais, em combinações inéditas entre artistas visuais e musicais. Reunindo música e
arte digital contemporânea, o projeto promove encontros únicos entre artistas que têm o desafio da criação de novos
conceitos, dispondo da tecnologia digital como suporte”(www.myspace.com/multiplicidade). O Multiplicidade será tratado
no último Plug‐in na Parte II desta tese.
86
Pergunta à qual me chamou atenção o meu orientador.
76
artes visuais. Este é um exemplo importante para sinalizar como os “grupos” podem ser feitos com
diferentes nomes. Batman conhece e aprecia o “trabalho” de todos os que foram chamados para
“fazer aparecer” a “tribo dos VJs”. Isso quer dizer que Batman não os vê como VJs, quando parece
não apreciar o conteúdo da atividade? Acredito que, de fato, Batman não os vê somente como VJs,
porque eles também são outras coisas. E aqui não podemos esquecer que Batman é igualmente um
porta‐voz da “arte digital contemporânea” como curador do Multiplicidade, festival do qual Kassin já
participou em sua primeira edição em 2005, assim como todos aqueles que Kassin aciona como
“mestres” (Chico Neves, Hermano Vianna, Sérgio Mekler). Timba gostaria de ter inscrito um projeto
nesse festival, depois que se apresentou no festival Live Cinema, em novembro de 2009. Este
acontecimento, somado “às diferentes vozes” a ele relacionadas, nos direciona para mais uma
realização do que para um recorte por “profissão” ou por “campo artístico”.

Fernando Salis

No catálogo do evento Performance Presente Futuro Vol. II,87 ocorrido nos dias 11, 12 e 13 de
setembro de 2009, consta na parte de apresentação das performances a minibiografia de Fernando
Salis e do seu convidado, DJ Maga Bo:

Fernando Salis é cineasta, ator e professor da Escola de Comunicação da UFRJ. Como VJ e


artista audiovisual, já realizou instalações e performances no Brasil, EUA, Espanha e Canadá, em
galerias, clubes e festivais como o Pop Montreal, Bowery Poetry Club de Nova York e Yastá
Madrid. Seus filmes já foram exibidos em festivais em Paris, Florença, Toronto, Havana, Berlim,
São Francisco e Mumbai. Com artigos publicados em diversos países, foi professor visitante de
Estudos de Performance e Cinema na New York University e na Universidad Carlos III, em
Madri.

Artista convidado: Maga Bo, norte‐americano radicado no Rio de Janeiro há 10 anos. É DJ e


produtor musical atuante do movimento Global Ghettotech. Como técnico de som de cinema,
Maga Bo vem colaborando com diretores de diversos países. Tem se apresentado em turnês
mundiais e eventos, festas de rua, clubes e festivais, que vão de Vancouver a Sidney, de Dakar à
Cidade do Cabo, passando por Maputo, Barcelona, Berlim e Copenhagen (Catálogo

87
Para informar o leitor sobre a natureza do evento em que participa Fernando, transcrevo o texto de apresentação da
curadora, Daniela Labra. “Performance Presente Futuro vol. II é a segunda edição do evento interdisciplinar ocorrido em
2008, dedicado à multiplicidade da arte da performance e sua integração com recursos tecnológico‐midiáticos e científicos.
São reunidos pesquisas artísticas e trabalhos inéditos em que a ciência e a tecnologia estão presentes como fundamento e
não somente como fetiche. As propostas exibidas nesta mostra são fruto da vontade de artistas em compreender nossa
humanidade e lugar num mundo que se quer mais tecnológico. Por outro lado, buscam também uma relação harmônica,
ainda que crítica, com a ferramenta midiática que manipulam. Durante três dias, o quarto piso do Oi Futuro recebe ações
ao vivo, videoinstalações performáticas, workshops e palestras de artistas que, apoiados em tecnologias diversas, refletem
possibilidades da expressão humana quando ampliada por dispositivos mecânicos, eletrônicos e digitais” (também
disponível em www.artesquema.com).
77
Performance Presente Futuro Vol II).

Vimos acima que, no programa de televisão específico sobre VJs, Fernando aparece como “cineasta
e VJ”. No catálogo de uma exposição em um centro cultural, duas descrições de “tipos ideais” do
meu trabalho se condensam em sua minibiografia: para a mesma performance, um produtor visual e
um produtor sonoro, bem como os elementos que podem aparecer dentro da categoria de
produtor. Assim, com todas as atividades que podem ser englobadas pela categoria, esta citação
tem um elemento performático de indicar todas as possibilidades de apresentação de Fernando,
tanto em termos identitários quanto em termos dos contextos em que exibe ou realiza os diferentes
trabalhos: como VJ e artista, em galerias, clubes e festivais. Como cineasta, em festivais de cinema;
como professor universitário, em publicações e cursos. Seria possível fazer um site para Fernando
como aquele que fez Ricardo Cutz para si mesmo, em que se estabeleça um acesso a este através de
todas as suas atividades. Fernando pode ser encontrado em todos esses suportes.

Na primeira visita ao apartamento de Fernando, numa pequena rua bucólica perpendicular à Lagoa
Rodrigo de Freitas, o início do nosso encontro parecia se dar em um contexto em que eu assumia o
papel de estudante, e Fernando, o de professor. Ele me deu várias referências bibliográficas e
disponibilizou o material que tinha em sua casa para me auxiliar na minha pesquisa. A sensação de
deslocamento, de ir pesquisar um “nativo” e me deparar com um “professor” – ao contrário dos
outros, que poderiam se colocar diante de mim como “colegas” –, teve certa magnitude, porque ele,
de fato, é professor da UFRJ e orienta diversos alunos. Essa sensação logo foi seguida por outro tipo
de interesse, pois, ao longo de nossa conversa, havia momentos em que Fernando assumia o papel
do sujeito‐autor sendo entrevistado, e outros em que se distanciava de seus comentários e realizava
uma síntese analítica em cima de suas afirmações. Em certas situações, Fernando tornava‐se o
produtor mostrando seus projetos ao computador. E ainda aparecia um lado – que chamaria aqui
por falta de um conceito melhor de “intimista” ‐, em que familiares e amigos ocupavam a casa ao
mesmo tempo em que ocorriam as nossas conversas. Em todo o tempo, sua personalidade teatral
imprimia o tom das conversas. Sua fala é rápida, enfática e afirmativa. Ele combina uma presença
dionisíaca com uma aparência apolínea, com os cabelos bem curtos, camiseta e calças jeans.

Em sua narrativa biográfica, Fernando ressalta em sua vida uma série de “fases obsessivas”. Em um
momento, no meio de nosso primeiro encontro, ele parou e resumiu em um parágrafo a minha
proposta de acompanhar a sua “trajetória”: “a gente pode continuar acompanhando essa minha
trajetória, como é que eu passei da comunicação para o teatro, do teatro para a filosofia, da filosofia
para o teatro, do teatro para a comunicação, da comunicação para a performance, da performance
para o documentário; e agora eu voltei para a performance e para o cinema como performance”.

78
Fernando foi jogador de vôlei profissional quando era adolescente. Mais tarde, ingressou na
Universidade da Cidade para cursar Radialismo, com o sonho de estudar Cinema e, logo em seguida,
passou a cursar concomitantemente Teatro. Durante algum tempo participou de diversas peças e se
tornou professor da mesma universidade. Nesse mesmo período começou a trabalhar em uma
empresa de produção de cinema, TV e comerciais, e se tornou empresário. Apesar de ser um
verdadeiro workaholic e ganhar muito dinheiro nesse momento de sua vida, ele se sentiu
“vampirizado” e profundamente infeliz. Foi assim que decidiu “jogar tudo para o alto” e inscrever‐se
no mestrado em Filosofia da PUC‐Rio, onde estudou Nietzsche com a professora Kátia Muricy. O
ingresso ao mestrado também significou um retorno ao teatro, mas combinava igualmente essas
atividades com alguns bicos para a antiga empresa a fim de ganhar algum dinheiro. Assim que
terminou o mestrado, passou em um concurso para professor‐assistente na Escola de Comunicação
da UFRJ, um momento que ele considera de grande florescimento em sua vida.

Já como professor, começou o seu doutorado e viveu um ano com bolsa sanduíche na NYU, em
torno de 2001‐2002, ambientado em estudos de performance. Nesse período resolveu que queria
trabalhar como documentarista e ali realizou o seu primeiro longa‐metragem. Há um aspecto em
seus documentários que vale ressaltar: o professor Robert Stam, da NYU, categorizou o trabalho de
Fernando como o de “documentário de resistência na América Latina”. Fernando conceitua: por
“justamente ser o tipo de produção que endereça questões, num formato e num sistema de
distribuição que resiste porque fura, porque atravessa, porque não se insere na lógica de produção e
distribuição do mercado. É, nesse sentido, de ‘resistência’”. Fernando assegura que cada vez mais há
muita coisa sendo feita dentro desse formato pelas possibilidades de acesso que as tecnologias
digitais disponibilizam.

Apesar dos entrevistados não usarem o termo “minoria”. Em alguns aspectos se aproximam da conceituação
que Marcio Goldman outorga aos “novos movimentos culturais”. Para ele, “’Ser’ uma minoria pode consistir
apenas em um modo de ‘não ser’ maioria, ou seja, uma forma para exprimir situações de resistência ou de
deriva frente a uma situação majoritária qualquer. Como linhas de fuga para escapar do majoritário, as
minorias podem ser capazes de detonar processos incontroláveis, o que significa, também, que mesmo as
tentativas de estabelecer identidades aparentemente muito bem enraizadas podem valer mais pelos
movimentos que desencadeiam do que pelas supostas identidades que criam ou cristalizam (Goldman,
2009:16). O documentarista e DJ Emilio Domingos também ressalta a oportunidade de fazer os seus filmes
gravados e editados digitalmente pois nunca teria sido possível financiar um filme em formato de película por
ser caro demais. Diz que mesmo após o bem sucedido longa‐metragem “L.A.P.A.” de 2008, filmado em
parceria com Cavi Borges, ainda assim não consegue patrocinadores para o seu segundo projeto de longa e
pretende continuar realizando os seus filmes nesse formato. Embora não se identifique como um
“movimento”, a prática do uso digital que permite a realização de um filme sem patrocínio externo e dentro
de um formato “caseiro” acaba por subverter a “lógica de produção e distribuição de mercado”. Assim, talvez,
a cristalização traduzida na nomenclatura “documentário de resistência da América Latina”, seja parte
integrante do “movimento”, nos termos de Goldman, que gera o uso da tecnologia digital.

79
No período em que ficou em Nova York, enquanto iniciava a atividade de fazer documentários,
tocava também como percussionista em diversos shows. Diz que levou uma vida de músico pelos
bares da cidade. E ainda começou a frequentar de perto a cena electroclash. Conta que em Nova
Iorque “descobriu a cena dos clubbers mesmo” e, quando retornou ao Rio, no final de 2002,
“imediatamente” se “incorporou à cena clubber no Rio de Janeiro.” Segundo Fernando, não era a
primeira vez que ganhava consciência dessa cena. Revela que, na época de adolescente, quando
jogava vôlei, gostava de Kraftwerk (para ele, “o único elemento que o diferenciava da média”). Mais
adiante, na época em que tinha uma empresa, fez alguns trabalhos para a MTV com os DJs de
drum´n´bass paulista Marky e Patife, que atingiram sucesso internacional, e também frequentou um
pouco o clube Bunker nos anos 90. Mas foi mesmo com a vivência em Nova York e na sua volta que
teve uma experimentação mais intensa dessa cena, frequentando o Dama, o Fosfobox e os festivais
que apresentam os DJs.

Como frequentador das festas de música eletrônica ele começou a ver os trabalhos de projeção dos
VJs e se deu conta de que possuía um enorme banco de imagens, pois gravava “muita coisa com
câmera, com celular, com o dispositivo que estivesse disponível”. Fernando viaja muito e tem
imagens de diversos países. Diz que começou a perceber que havia estabelecido “uma relação
realmente audiovisual com a vida”, e decidiu que queria “usar isso em outros formatos”. Além disso,
sentia também que estabelecia uma forte relação com a dança e com a música. E sublinha: “eu sou
músico também”.

Depois de frequentar o curso de Jodele, como dissemos antes, e de aprender a usar os softwares dos
VJs, passou a tocar em diversas festas, inclusive em Madri, enquanto lecionava na Universidad Carlos
III como professor‐visitante, até o momento em que, sabendo das suas projeções, o diretor do
departamento o convidou para realizar uma apresentação na universidade. Nesse local apresentou a
sua primeira instalação audiovisual. Sobre esta passagem de VJ a artista visual, ele detalha:

A minha vontade era de fazer instalações, era de criar ambientes imersivos audiovisuais. Eu
nunca tive na verdade vontade ou intenção de fazer o que os VJs fazem. Não é que eu não
goste, eu gosto. Mas não é o que eu mais gosto nessa possibilidade. Até porque acho essa
rotina e o hábito de fazer o trabalho do VJ muito pesado, essa coisa de tocar em festas até
muito tarde, ter essa rotina, para mim, não é muito possível. Eu acho divertido, acho ótimo,
mas o que eu realmente gosto de fazer é uma coisa mais autoral, mais pensada, mais
trabalhada, com temas mais específicos, com propostas estéticas mais singulares.

Apesar de Fernando dizer enfaticamente que o seu plano nunca foi ser somente VJ, ele continua
fazendo trabalhos como VJ e inclusive foi à gravação sobre os VJs descrita acima. No momento do
80
nosso segundo encontro, ele estava se preparando para tocar num festival de música eletrônica no
Rio e estava animadíssimo. Talvez seja um caso de contemporizar: Fernando não frequenta a cena
eletrônica ou clubber com a mesma intensidade que fazia quando voltou de NY, nem como VJ, nem
como assistente, como na época em a que cursou a oficina de Jodele. Mas não deixa de estar
presente em alguns eventos específicos. Seu argumento sobre o estilo de vida necessário para viver
da/na noite se aproxima muito daqueles apresentados por Felipe e Schild no início do capítulo. Para
finalizar, Fernando diz como lida com suas diversas atuações:

Era uma coisa que me causava um pouco de angústia, que me sentia com a sensação de não
fazer nada direito e sou muito exigente comigo mesmo. No ano passado eu cheguei à
conclusão de que é isso mesmo, sem ter que responder a um desses nichos. Realmente eu sou
ator, cineasta, artista, professor, escritor...

Batman Zavareze

Batman Zavareze, cujo codinome é usado como referência ao personagem dos quadrinhos, é um
grande colecionador de todos os elementos relacionados a esse personagem, assim como
igualmente de outros objetos materiais, como fotos 3/4, esta última prática herdada do avô
materno, de quem também tomou o sobrenome.

Curador do festival Multiplicidade (já citado anteriormente na gravação sobre VJs), conta que
quando ingressou na Universidade da Cidade para cursar Desenho Industrial, no início dos anos 90,
assistiu à banca examinadora de um projeto final de um aluno prestes a se graduar. Em um
determinado momento, um dos professores arguidores se dirigiu ao público que assistia à defesa
(em sua maioria, alunos que acabavam de entrar na faculdade) e falou que não deveria ser
permitido aos estudantes a realização dos projetos finais com o uso do computador. Batman
continua o relato dizendo que em 1997, quando se formou, aconteceu uma situação inversa: um
colega foi reprovado por não ter utilizado o computador para fazer o seu projeto final. Ele
considera “uma revolução” o fato de em tão poucos anos as regras terem se invertido
completamente. E “essa revolução”, que, como Kassin, ele denomina “do analógico ao digital”, foi
vivida por ele em sua formação, assim como no seu primeiro trabalho na MTV.

Batman julga que a pergunta “mais difícil” é a relativa à sua identidade profissional, porque sente
que nunca consegue “explicar direito” para o pai, médico, o que realmente faz. Pelos trabalhos que
já fez, sabe que é identificado como “cinegrafista”, como “VJ”, como “fotógrafo” ou “designer”,

81
88
apesar de não gostar desta última denominação. Ele já se considerou “artista visual” em certo
momento, mas, hoje em dia, não pensa que os seus trabalhos se direcionem para essa área
específica. Mais recentemente, de 2005 para cá, sua identificação na mídia tem realçado sua
atuação de curador do festival Multiplicidade, mas ele diz não se sentir um “curador no sentido
formal”, por não achar que tenha “a bagagem necessária para ser identificado como “curador”. Ele
qualifica a sua atividade, posicionando‐a no tempo presente de estar “experimentando” ou
89
“vivendo” a ação de curador. De qualquer forma, todas essas atividades para ele “são bastante
novas”. Batman não identifica o trabalho de projeção visual à cena eletrônica. Quando viveu em
Londres, em 1998, descobriu a cena drum’n’bass, chegou a ver os DJs Marky e Patife se
apresentando “sem saber que eram brasileiros”; depois foi ao primeiro festival Sónar na Espanha.
Diz não ter visto projeções de imagem em nenhum dos festivais de música eletrônica que
frequentou à época. Para ele, as primeiras projeções de vídeo apareceram nos shows de rock e nas
artes plásticas. De qualquer modo, é possível afirmar que o Multiplicidade, principalmente durante
os dois primeiros anos (2005‐2006), propiciou apresentações de DJs de música eletrônica e de VJs
identificados com essa cena.

*
Fecho este capítulo com a intenção ter apresentado narrações de si ou etnobiografias de alguns
personagens que compõem o campo, ao mesmo tempo em que relato como os encontros com esses
personagens me direcionaram para um desenho próprio a este campo. Fiquei com a sensação de
“ter aberto muitas tampas” ou, mais especificamente, “de ter aberto muitos nomes”. Não é meu

88
Batman dedicou um bom tempo de nossa conversa a relatar a experiência que teve de um ano e alguns meses
trabalhando na Fabrica. Esta é sediada em Treviso, Itália, desde 1994, e foi concebida pelo publicitário e fotógrafo Oliviero
Toscani (criador das ousadas campanhas da Benneton) e por Luciano Benneton. Toscani também foi responsável pela
publicação da revista Colors, em circulação desde 1991. No site oficial, www.fabrica.it, esta é descrita da seguinte forma:
“Fabrica is not a school, advertising agency or university. It is an applied creativity laboratory, a talent incubator, a studio of
sorts in which young, modern artists come from all over the world to develop innovative projects and explore new
directions in myriad avenues of communication, from design, music and film to photography, publishing and the Internet.
These artist‐experimenters are accompanied along their research path by leading figures in art and communication,
blurring the boundaries of culture and language and transgressing the traditional borders between a diverse range of
communication mediums. Communication research at Fabrica services a wide variety of social causes and disciplines such
as economics, social or environmental sciences. Fabrica’s aim is to grasp the future by giving innovative exposure to
cultural or scientific projects which open a window onto tomorrow’s world”. É interessante perceber como o espaço da
Fabrica se caracteriza inicialmente por esta negativa ‐ “Fabrica is not a university” ‐, e se designa como polo de criação e
experimentação para artes classificadas como híbridas. Batman se refere ao período em que trabalhou na Fabrica como
uma época em que se misturaram sentimentos de tensão e criatividade, mas ao mesmo tempo ele carrega com clareza
uma série de ensinamentos de vida que lhe adveio pela convivência com Toscani.
89
Ele conta como, em dez anos de convivência com Gringo Cárdia, verificou que Gringo criara diversos cartões pessoais
com diferentes denominações ao longo do tempo. Atualmente, segundo ele, Gringo só usa o cartão com apenas seu nome;
acredita que, pelo Google, fica mais fácil para as pessoas identificarem “quem” ele é e como atua.
82
desejo fechar esses nomes‐tampas. O produtor é apenas uma tentativa de não deixar um vazio onde
há um vazio (cheio de significado) já que o fato de não encontrarem um “nome” específico de
identificação é um dos principais temas aqui abordados. Mas penso ter indicado que os produtores
compartilhariam de um maquinismo (funcionamento), e esta é a proposta do próximo capítulo.

83
Capítulo 3

Os produtores‐ciborgues

Haraway´s political cyborgue (...) carries a certain conviction, persuades


by its form. If the motive for her writings is to create networks of
communication between people who do not require to be bound by
appeal to common unity or origin, but who are connected as different,
exterior presences to one another, she offers an imaginative entry into
how we might conceive the conduct of social relationships.
Partial Connections. Marylin Strathern

O capítulo anterior foi realizado com a intenção de apresentar o campo de estudo a partir de
encontros realizados com alguns produtores que utilizam técnicas digitais. Nessas entrevistas,
as pessoas que compõem esse campo criam narrações de si não com o objetivo de mostrar
“mais do mesmo”, ou seja, provar com quantidade que “todos são iguais”. Muito pelo
contrário, em muitos casos os personagens provêm de diferentes ambientações artísticas; as
técnicas digitais que utilizam, como os softwares e equipamentos, não são os mesmos, e nem
necessariamente eles se conhecem pessoalmente. Ainda mais importante: eles atualizam de
diferentes modos a categoria produtor, quando de fato a utilizam como procedimento
autoclassificatório. Ou seja, pelo modo como constroem suas identidades subjetivas,
aparecem, com essa categoria, múltiplas formas de ser produtor. O procedimento parece
indicar que, apesar de todos concordarem que estão produzindo, há uma constante
metaforização do sentido e da ação do produtor (cf. Wagner, 1981).

Mas ao mesmo tempo, esses trechos de narração de si podem ser considerados autossimilares
ou autorrecursivos em razão de alguns pontos de referência que considerei como indícios no
capítulo anterior: o momento em que os produtores tomam consciência da digitalização como
integrante em suas vidas, e o momento em que passam a atuar com ela de modo que
consideram “criativo”. Nos depoimentos de todos os produtores entrevistados, em que
prevalece um tom retrospectivo e reflexivo, notamos uma ênfase na recordação pessoal do
momento em que tiveram uma percepção súbita, como uma epifania, das possibilidades dos
diferentes campos profissionais a eles disponíveis, assim como na tomada de consciência de
que já estavam de certo modo exercendo essas novas atividades. Para eles, tais atividades
surgem como “novas”, “geracionais”, como parte do “seu mundo presente”. Um elemento

84
importante na performatização destas identidades profissionais se encontra nos artigos
escritos sobre eles, nas brochuras de exposições, nas identificações em seus sites de
relacionamento em que estão cadastrados, algo que já foi possível acompanhar com as
apresentações do capítulo 2. Essas novas atividades aparecem em suas narrativas sem que
naquele momento eles tivessem “muita consciência”; assim também a cena da música
eletrônica, em suas diversas faces, surge para eles, igualmente em seus relatos, como
manifestação do gosto de uma nova geração. Da mesma forma, brotam aqui e ali algumas
considerações sobre a brasilidade relacionada ao mundo contemporâneo, principalmente
através dos polos nacional x internacional (o que será tratado com mais cuidado na Parte II). O
que verificamos é que esses espaços e atividades são também móveis e abertos, como
veremos a seguir.

O presente capítulo propõe a realização de uma operacionalização abdutiva dos relatos


apresentados no capítulo 2, no sentido de construir pontes (sempre parciais) entre os relatos
autossimilares, com o uso de “Silogismos de metáfora”, ou seja, “a busca da compreensão
através da analogia” (Bateson G. e Bateson M.C., 1989:190). Gregory Bateson considera que há
uma diferença importante entre o “silogismo categórico”, baseado na classificação de
entidades separadas, e o “silogismo metafórico” – também denominado por ele o “silogismo
da erva” –, baseado nas relações. Assim, segundo ele, se por um lado a esquizofrenia, a poesia,
a arte, os sonhos, o humor e a religião preferem os silogismos da erva (Bateson e Bateson,
1989:39), a biologia pode também ser vista por meio desse segundo silogismo. Como ele
especifica:

Hablamos sobre ‘cosas’ sobre hojas o tallos, y tratamos de determinar qué son esas
cosas. Ahora bien, Goethe descubrió que una ‘hoja’ se define como aquello que crece de
um tallo y presenta um brote en su ángulo; lo que luego emerge de esse ángulo (de ese
brote), es de nuevo un tallo. Las unidades correctas de descripción no son la hoja ni el
tallo, sino que son las relaciones que éstos guardan entre si (Bateson e Bateson,
1989:40).

Em outros termos, poderíamos dizer que estaria em busca de apontar maquinismos, um


“conjunto de ‘vizinhança’ entre termos heterogêneos independentes” (Deleuze e Parnet,

85
90
1998:121). É possível sugerir esta relação entre o “maquinsimo” deleuziano e o “silogismo de
metáfora” batesoniano porque, se para Bateson existe um “padrão que conecta” os
caranguejos e as lagostas, as orquídeas e os narcisos, as amebas e os esquizofrênicos (cf.
Bateson e Bateson 1989), a máquina, para Deleuze, “é um conjunto de vizinhança homem‐
ferramenta‐animal‐coisa. Ela é primeira em relação a eles, já que institui a linha abstrata que
os atravessa e os faz funcionar juntos. Está sempre sobreposta a várias estruturas (...) A
máquina, em sua exigência de heterogeneidade de vizinhanças, vai além das estruturas com
suas condições mínimas de homogeneidade. Há sempre uma máquina social primeira em
relação aos homens e aos animais que ela toma em seu phylum” (Deleuze e Parnet, 1998:122).
Como esclarece Pedro Ferreira (2004):

O maquinismo é aquilo que passa entre o cavalo, o homem e o arco sobre a estepe e os
transforma em peças de uma máquina nômade. É algo que os maquina e os faz funcionar
de determinada maneira. O filo maquínico é, assim, sinergia maquínica, filo nos dois
sentidos de "amigo"/"amante" (como em "filosofia") e "linhagem"/"família" (como em
"filogênese"). Atração, simpatia, afinidade, o filo maquínico é a linhagem e o desejo dos
maquinismos (Ferreira, 2004: 5).

Assim, poderíamos identificar o “maquinismo” com um “padrão que conecta”, sendo que as
possibilidades de verificar maquinismos nos produtores passam pelo propósito de pensar em
analogias que os conectem ou pela verificação de seus regimes de autenticidade. A busca
abdutiva está em apresentar os indícios através dos quais é possível traçar essas analogias
metafóricas. Mas, como já expressei no início do capítulo 2, trata‐se sempre de um sistema
provisório, pois as analogias se organizam parcialmente.

Uma autoria ciborgue

Marilyn Strathern (1991) caracteriza o ciborgue como um tipo especifico de “autor”


relacionado a um “tempo contemporâneo”. Como proposta de nivelação do discurso
antropológico ao discurso ocidental, a estética implicada no procedimento etnográfico
revelaria parcialmente aspectos do modernismo e do pós‐modernismo euro‐americano. A
imagem do antropólogo “branco europeu” que “representa” a “sociedade primitiva”, não
ocidental do início do século, é substituída pela imagem do “turista e consumidor pós‐

90
Para Deleuze, “Máquina, maquinismo, "maquínico": não é nem mecânico, nem orgânico. A mecânica é um
sistema de conexões graduais entre termos dependentes. A máquina, ao contrário, é um conjunto de "vizinhança"
entre termos heterogêneos independentes (a vizinhança topológica é, ela mesma, independente da distância ou da
contiguidade). O que define um agenciamento maquínico é o deslocamento de um centro de gravidade sobre uma
linha abstrata” (Deleuze e Parnet, 1998:121).
86
moderno”, em um momento de crise e ruptura em que se questiona a possibilidade da
“representação” e se propõe um mundo não mais modernista, mas pós‐moderno e “plural”.
Otávio Velho (2005), em referência a outro artigo de Strathern (“Out of context: the persuasive
fictions of anthorpology” 1990) em que a autora já realiza essa crítica, afirma que:

nesse trabalho, Strathern aceita a argumentação de Edwin Ardener (1985) de que está
findando o período modernista da antropologia. Esse modernismo antropológico,
segundo Ardener, seria caracterizado por uma ênfase acentuada na visão das sociedades
individuais como totalidades a serem interpretadas em seus próprios termos, numa
relação com o público leitor baseada na construção de um estranhamento em relação a
essas sociedades às quais, no entanto, seríamos perfeitamente capazes de dar sentido,
uma vez respeitada a dicotomia entre sujeito e objeto e uma epistemologia implícita que
domesticaria o comportamento. /Não cabe aqui verificar a produtividade dessa postura,
nem examinar as razões teóricas, políticas e retóricas alegadas por Strathern, Ardener e
muitos outros autores que afirmam já não ser possível, hoje, operar com os mesmos
pressupostos modernistas, que já não seriam eficazes. Aliás, é um assunto ainda
polêmico, embora muitos de nós já estejamos persuadidos, e princípio, a levá‐lo a sério,
nem que seja em face do ambiente intelectual de que ele é sintoma. (Velho, 2007:344‐
345)

Essa proposta plural se revelaria na polifonia dos discursos dos personagens envolvidos,
antropólogos e nativos, compondo um outro modo de autoria formada por um caleidoscópio
de diversas combinações. Mas, segundo a autora, ainda nessa concepção haveria uma ideia de
entidades separadas sendo combinadas. Para a autora no entanto, estes personagens (com os
seus tipos sociais personificados na imagem do “viajante modernista” e do “turista e
consumidor pós‐moderno” não deteriam mais a força de imagem estética como “autores”
plausíveis a este “momento”. Nem modernista, nem plural, ela pretende criar uma analogia
entre o personagem antropológico para um mundo “pós‐plural”, e a que melhor se adequa,
em sua concepção, é a imagem do ciborgue. Vejamos como Fernanda Eugenio traça uma
comparação entre as modalidades estéticas da perspectiva “plural” que ela denomina “regime
de multiplicidade”, no sentido deleuziano, e que, poderíamos dizer, se assemelha à
perspectiva ciborgue:

A lógica do plural admite a combinação e o arranjo, mas é então de uma relação entre
termos/inteiros que se trata. A multiplicidade nomeia, por sua vez, sínteses que se dão
por contaminação recíproca de elementos que já (e de pronto) são eles próprios

87
contaminações, as diferenças convertidas em gradações. São as sínteses disjuntivas,
como as chamaram Deleuze & Guattari – um conceito a serviço antes de uma pragmática
que de uma lógica. Ou, como comenta Viveiros de Castro (ibidem), na adoção da
perspectiva da multiplicidade, tratar‐se‐ia da “cristalização de uma outra imagem do
pensamento: a de um cromatismo generalizado ‐ o gênio ou o demônio dos pequenos
intervalos saiu da garrafa” (Eugenio, 2006:50).

O padrão que conecta os produtores estaria em perceber os seus maquinismos autorais. Como
aprendemos com Foucault (1979), quanto mais morre o autor mais florescem outras
modalidades de autoria. Ao mesmo tempo, há uma certa ironia presente na imagem do
ciborgue como um mito da ficção científica. A conceituação de Dona Haraway (2000) virou
pastiche estético há muito tempo. Ele não se configura como o último ou o mais “moderno”
dos tipos autorais. Mas Marylin Strathern recria esta imagem de modo muito interessante, de
maneira que é possível constatar correspondências com as qualidades autorais dos
produtores. Se o ciborgue atende a uma época e a um tipo de autoria, qual o tipo de
articulação realizada pelos produtores, que os aproximaria de uma autoria‐ciborgue?

Em primeiro lugar, é preciso dizer (de novo) que a definição dos produtores como ciborgues
91
segue uma “definição performática” (Latour, 2005:37). Nessa perspectiva, convém alocar
alguns contornos permeáveis por onde se criam as afinidades sensíveis dos produtores: os
seus regimes de autenticidade.

Seria possível sugerir que a categoria produtor (talvez aqui fosse conveniente pensar essa
produção como uma ação) tem algo em comum com a concepção de cultura. Roy Wagner
afirma que o termo “cultura” passou por diversas metaforizações ou “extensões de sentido”
ao longo do tempo no pensamento ocidental; desse modo, segundo o autor, vemos que
mesmo hoje os antropólogos o associam com as diferentes metaforizações estabelecidas
anteriormente. Assim, ele observa que cultura como “cultivo da terra” (o sentido ‘original’)
tem associações com cultura como “cultivo de si”, e que ambas teriam vinculações com o
termo “universal e democrático” atual; e todos esses sentidos refletem uma noção cumulativa
referente à cultura do Ocidente. Esse acúmulo de metaforizações qualifica a categoria cultura
com uma “ambiguidade criativa” (cf. Wagner, 1981). O trecho a seguir merece uma leitura
cuidadosa:

91
Segundo Latour, o “objeto de uma definição performativa desaparece quando deixa de ser performatizada. “Ao
contrário do objetivo de uma definição “ostensiva”, que ali permanece independentemente do que acontece com o
índex do observador” (Latour, 2005:37).
88
A produtividade ou a criatividade de nossa cultura é definida pela aplicação,
manipulação, revalidação ou extensão dessas técnicas e descobertas. Qualquer tipo de
trabalho, seja ele inovador ou simplesmente ‘produtivo’ como se diz, adquire seu sentido
em relação a essa soma cultural, que constitui seu contexto de significação (...) O
trabalho produtivo, expressivo, exercido como ‘mão‐de‐obra’, é a base do nosso sistema
de crédito, de forma que podemos estimá‐lo em termos monetários. Isso possibilita
avaliar outras quantidades, tais como tempo, recursos e trabalho acumulado, ou mesmo
‘direitos’ e ‘ obrigações’ abstratos. Essa produtividade, a aplicação e implementação do
refinamento do homem por ele próprio, determina o foco central da nossa civilização.
Isso explica o alto valor atribuído à ‘Cultura’ no sentido restrito, marcado, ‘sala de ópera’,
pois ela representa o incremento criativo, a produtividade que gera trabalho e
conhecimento ao provê‐los de ideias, técnicas e descobertas, e que em última instância
molda o próprio valor cultural. Experimentamos a relação entre os dois sentidos de
‘cultura’ nos significados de nossa vida cotidiana e de nosso trabalho: em seu sentido
mais restrito, a ‘Cultura’ á um precedente histórico e normativo para a cultura como um
todo: ela encarna um ideal de refinamento humano (Wagner, 1981:22;23 – minhas
ênfases).

A citação acima produz um efeito de “dupla‐leitura”, e as duas leituras se complementam


como proposta de armar a discussão neste capítulo. No seu primeiro sentido, podemos seguir
Wagner em sua trajetória de desvendar as extensões de sentido do termo cultura, e expor
como tais extensões metaforizam elementos que remetem, em última instância, à própria
cultura ocidental. Podemos nos inspirar nessa trajetória e pensar o termo produção como
sofrendo igualmente diferentes metaforizações. Retomando a imagem do ciborgue,
poderíamos sugerir que, se as metaforizações funcionam como “extensões de sentido”
segundo Wagner, elas teriam “conexões parciais” umas com as outras, como argumenta
Strathern.

Marylin Strathern qualifica o ciborgue como aquele que faz conexões sem a necessidade de
comparação. As suas partes não são iguais, nem formam uma totalidade, mas funcionam como
extensões da capacidade umas das outras. Suas relações seriam mais bem caracterizadas
como prostéticas, assim como a que se estabelece entre a pessoa e a ferramenta: cada parte
sendo uma extensão da outra, mas somente se vista a partir da outra posição; o que se
percebe de um lado ou de outro são as suas “capacidades diferenciais”. Nesta perspectiva, não
há relação de sujeito‐objeto entre a pessoa e a ferramenta; somente uma “capacidade
expandida” (expanded capability). Organismo e máquina não são conectados numa relação de

89
parte/todo, já que uma não pode definir a outra completamente (Strathern, 1991:38). Por
outro lado, o ciborgue não observa escala: não é singular nem plural; não é um nem muitos,
mas um circuito de conexões que juntam partes que não podem ser comparadas porque não
são isomórficas. Não se pode chegar a ele nem de forma holista nem de forma atomista, como
uma entidade, ou como uma multiplicação de entidades (como a perspectiva “plural”). Ele
replica uma interessante complexidade (ibidem:54).

Tomando as considerações sobre as feministas como ilustração do seu ponto, Strathern


elucida que não existe um corpo teórico feminista para o qual os indivíduos devem sentir que
contribuem. Apesar de haver um elemento comum, as relações internas não são percebidas
como homogêneas. Não se trata de uma atividade simultânea em múltiplas frentes, mas das
diferenças mantidas entre essas frentes: suas múltiplas diferenças internas. As posições
internas não são meras justaposições; são contradições que não se resolvem – ainda que
dialeticamente – em totalidades mais amplas: elas têm a ver com a tensão de manter juntas
coisas incompatíveis porque todas são necessárias e verdadeiras (Haraway, 2000:39 – minha
ênfase). Strathern afirma contemplar não um sucedâneo de estilos que trabalham como ecos
uns dos outros, mas uma “produtiva compatibilidade” ‐ working compatibility (Strathern,
1991:35). Por outro lado, o feminismo não pode ser usado como metáfora do local; nenhuma
das disciplinas (seja o Feminismo, seja a Antropologia) oferece “um lugar” para que a autora
possa sentir‐se “segura, como uma pessoa completa”. Nenhum desses âmbitos é um contexto
completo, e ela não é igual a nenhum deles. Eles também não são metades de uma totalidade.
Não funcionam por alternância. Não se trata de duas perspectivas – não são duas pessoas,
nem uma única pessoa dividida em dois (Strathern, 1991:35).

No caso de Fernando Salis, encontramos algo semelhante ao problema das feministas: VJ,
professor universitário, cineasta e ator trabalham como extensões de sentido das capacidades
uns dos outros; não são equivalentes nem alternantes. Cada uma das “identidades” na relação
umas com as outras são prostéticas, como a da pessoa e a da ferramenta. Mas essas múltiplas
extensões são percebidas a partir de onde se inicia a perspectiva. O VJ funciona como uma
extensão do cineasta, pois, no seu caso, para ser VJ ele teve que se dar conta de que poderia
usar de outra forma o seu banco de imagens, anteriormente criado e guardado com o fim de
utilizar o material na linguagem documental. Podemos afirmar, assim, que o VJ é igualmente
uma extensão de sentido de um estilo de vida associado à cena eletrônica, pois foi como
frequentador desses ambientes que percebeu que poderia adquirir a habilidade do VJ. O
artista audiovisual, por sua vez, é uma extensão do VJ, já que as técnicas empregadas pelo VJ

90
para trabalhar imagens de uma maneira alternativa à linguagem cinematográfica ou
documental oferecem possibilidades para se pensar em outras modalidades de performance
que adentra as galerias de arte. Mas o artista‐audiovisual é também uma extensão do ator. O
professor, igualmente, é uma extensão do ator. Depende de onde se está olhando.

O modelo retroalimentar de estímulo‐resposta‐reforço de Bateson (2000) pode ser útil para


elucidar o funcionamento do ciborgue, pois os pontos de sequência por onde se inicia a
perspectiva afetam a percepção. Entre ser VJ e cineasta, por exemplo, poderíamos afirmar que
o polo cineasta enviou um estímulo ao polo VJ, pois é como cineasta que Fernando se dá conta
de que tem um amplo banco de imagens. Ao mesmo tempo, ele percebe, enquanto
frequentador da cena electro, que poderia exercer a atividade de VJ. Assim, a realização do
que se configura a atividade do VJ também viria por meio de um estímulo ocasionado por um
estilo de vida. Quando começa a praticar VJing, ele passa a enviar uma resposta ao seu polo
cineasta, mas agora acrescida da perspectiva do VJ. Como cineasta, ele manda um reforço,
pois tem que captar imagens que também funcionem bem para o formato de projeção de VJ, e
não mais apenas para o modelo de filme; e deve aumentar seu banco de imagens como
cineasta para garantir uma quantidade maior de imagens‐ferramentas. Ao mesmo tempo, sua
atividade de VJ manda um estímulo para sua atividade como professor, já que por isso o
convidam a lecionar em um curso sobre vídeo e performance, como professor visitante em
Madri, terminando por realizar uma performance audiovisual artística no espaço da
Universidade, com a participação dos seus alunos.

Para um segundo exemplo, gostaria de introduzir um personagem ainda não “formalmente


apresentado” nesta tese, apesar de já ter sido mencionado anteriormente no texto. Frederico
Coelho é meu amigo e colega de trabalho no Núcleo de Estudos Musicais (NUM‐CESAP‐UCAM)
há muitos anos. A primeira vez que olhei para o Fred como “nativo” em potencial foi em 2006,
quando redigi um trabalho de fim de curso sobre os fotologs, anteriormente citado no capítulo
1. Eu já estava fazendo campo no meio do rebuliço coletivo que se deu entre vários amigos
92
(que surgiam a partir do núcleo composto pelos pesquisadores do Cesap) em torno do
fotolog. Um rebuliço que estava também associado às recentes aquisições de máquinas
digitais. Em 2005, Fred considerou aquele “espaço” do fotolog como uma dimensão em que

92
Caracterizados por sermos todos, em sua maioria, estudantes de pós‐graduação em área de humanas e artes.
91
93
poderia assumir a sua “veia literária”. Para ele, esse impulso digital‐literário se aliava a uma
“mudança de rumo”, em seus termos, de uma “escrita carregada por um estilo discursivo
histórico‐acadêmico, que correspondia à sua graduação e mestrado em História no IFCS, para
uma “escrita mais autoral” que emergira ao longo do curso de doutoramento em Letras na
PUC‐Rio. É importante frisar que Frederico já escrevia “de forma literária” antes do fotolog,
mas nunca havia divulgado seus escritos de maneira tão ampla, como se deu a partir do
fotolog. Ele começou publicando no fotolog textos antigos que redigia em cadernos há vários
anos. Mas muito rapidamente passou a postar imagens e textos inéditos. Seu primeiro
endereço de fotolog foi www.fotolog.com/pauperia, onde intitulou sua página “A pureza é um
mito”, como referência ao livro Os últimos dias de pauperia (1984), do poeta e tropicalista
Torquato Neto, um dos personagens estudados por ele em sua dissertação de mestrado, e
sobre quem publicou textos acadêmicos. pauperia@gmail.com também é seu endereço
eletrônico até hoje (apesar de em alguns momentos Frederico achar que deveria mudar para
um e‐mail com nome próprio). Ainda nesse período, Fred criou outro fotolog de
nome/endereço ‐ Sapopemba ‐, e também um blog com o mesmo nome do primeiro fotolog: A
pureza é um mito. Esses nomes que começaram a divulgar Fred como um autor‐digital são
referência ao estudo do período histórico‐cultural brasileiro dos anos 60 e 70, iniciado em sua
pesquisa de mestrado, e que culminou em sua tese de doutorado, defendida em 2008, sobre
os escritos nunca publicados pelo artista plástico Hélio Oiticica, intitulada Livro ou Livro‐me. Os
escritos babilônicos de Hélio Oiticica (1971‐1978). Ao longo desse período, Fred se
institucionalizou como pesquisador de música popular e arte brasileira, e diversificou seus
espaços de atuação para além da academia, com a realização de conteúdo de sites, curadoria
de exposições e escrita de roteiros, entre outras atividades. Atualmente trabalha no MAM e é
professor da PUC‐Rio. Apesar de manter os fotologs até hoje, esse primeiro blog não durou
muito tempo, pois revela que, naquele momento, “não se adaptou à linguagem do blog”. Mais
recentemente, Fred Coelho, como assina os seus textos ultimamente, criou o blog Objeto sim
objeto não. Este último, mais “institucionalizado”, apresenta um conteúdo fortemente
elencado numa escrita de crítica cultural, um movimento que coincide com sua recente
titulação de doutor e a próxima publicação da tese. Ele mesmo concorda com essa ideia:

93
Para aquele trabalho, entrevistei ainda minha colega do período do mestrado e também companheira de CESAP,
Fernanda Eugenio, que finalizava a sua tese de doutorado em Antropologia no Museu Nacional naquele momento.
Ela relata que o fotolog foi essencial para tornar‐se, mesmo que temporariamente, uma integrante da cena que
pesquisava, sobre novos comportamentos amorosos que não se distinguiam pelas designações opostas de homo ou
hetero. Mais adiante, ela publicou um livro de textos “poéticos”, extraídos da sua experiência com a escrita‐fotolog.
92
Acho que o blog atual é mais institucionalizado sim, pois tem muito mais leitores, porque
eu de certa forma me tornei uma pessoa mais institucionalizada – academicamente,
profissionalmente, simbolicamente. E aí escrevo com preocupações sobre quem lê, coisa
que em 2005 eu nem pensava, pois era mais pessoal. Agora sei que os textos replicam no
Facebook e às vezes são reproduzidos em blogs alheios.

É interessante notar que Fred se descreve em termos muito semelhantes aos que Bourdieu outorga à
noção de “Instituição” ou “poder simbólico”. “A razão ‐ e a razão de ser de uma instituição e dos seus
efeitos sociais ‐ não está na ‘vontade’ de um indivíduo ou de um grupo, mas sim no campo de forças
antagonistas ou complementares no qual, em função dos interesses associados às diferentes posições e
dos habitus dos seus ocupantes, se geram as ‘vontades’ e no qual se define e se redefine
continuamente, na luta – e através da luta ‐ a realidade das instituições e dos seus efeitos sociais,
previstos e imprevistos” (Bourdieu, 1989:81). “Apesar de sua vontade”, Fred sabe que, ao contrário do
seu primeiro blog que foi utilizado como uma espécie de mensagem engarrafada perdida lançada ao
mar ciberespacial, agora “tem leitores”, pois a sua escrita é citada por outros. E a Internet tem funções
que permitem que suas citações nos blogs e nas páginas de Facebook dos seus “leitores” sejam vistas
por ele. Em seus termos, os “leitores” que “ele tem em mente quando escreve”, faz dele um “blog‐
autor” mais institucionalizado. E, para o blog ter essa feição “mais institucionalizada”, associa‐se o
“poder simbólico” que acumulou academicamente e profissionalmente.

Ao discorrer sobre esta história, percebemos que o fotolog, para Fred, pode ter sido o agente
de uma crescente cristalização de um autor ampliado em diversas dimensões; e esses
diferentes espaços abrigam as suas diversas modalidades de escrita. Essas modalidades de
escrita ganham o que poderíamos denominar por “vários nomes”. Mas ainda há que
apresentar os outros nomes de Frederico.

Desde a faculdade Fred participou como baterista de diferentes formações de bandas. Eu o


conheci no tempo em que pertencia à banda U.R.S.S. ‐ União Responsa do Samba Solto ‐, com
a qual chegou a se apresentar em alguns shows e gravou um CD com o nome da banda. Em
2001, ele se juntou ao também integrante da U.R.S.S., Emilio Domingos, bem como a Daniela
Labra e Simplicio Neto para criaram a festa PHUNK! Fred virou o DJ Arthur Miró (uma
homenagem a uma música de Jorge Ben); o documentarista e cineasta Emilio se tornou o DJ
Saens Pena; e a curadora e crítica de arte Daniela, a DJ Coisa Fina. Juntos se denominaram de
Equipe de Som Classe A. O também cineasta e documentarista Simplício virou o VJ Simpla, e a
festa foi uma das primeiras fora do circuito eletrônico a criar especificamente um espaço para
o VJ. Ao longo dos dez anos de existência, a festa passou por períodos de poucos
frequentadores, em que seus integrantes tocavam em espaços bem pequenos, como o Cine
Buraco, em Laranjeiras, e por fases consideradas “áureas”, quando tiveram lotação de mil
pessoas, em 2006, época em que a festa era sediada no Bola Preta, localizado na Cinelândia.
Nesse mesmo ano fizeram uma festa na Fundição Progresso, com lotação de mil e quinhentas
93
pessoas. Em 2008, tocaram para duas mil pessoas no evento de verão Claro Open Air.
Atualmente, Fred diz que mantém a festa “por causa dos amigos”, apesar de não se configurar
mais como uma atividade com lucro, como o fora anteriormente.

Em 2006, momento que coincide com o período de boom da festa, o DJ Arthur Miró criou uma
página no MySpace chamada Arthurmiró, cujo endereço é
www.myspace.com/arthurmirosound. Esse novo nome/pessoa, cristalizado principalmente em
um site de relacionamentos de músicos/artistas, não se configura como uma grande novidade,
94
já que é bastante comum os DJs criarem codinomes pelos quais são identificados. O próprio
Emilio criou duas páginas no MySpace, uma como Emilio Domingos e outra como DJ Saens
Pena. Sua página como DJ tem muito mais amigos (233 amigos contra os 14 amigos de Emilio),
é mais atualizada, e, por isso, mais “completa” do que a página de Emilio Domingos. Na página
de Arthurmiró, há composições suas disponíveis para serem baixadas pelo o ouvinte (a última
foi produzida em 2009); nela, lista as suas influências que outorgam um determinado “perfil”
ou estilo:

shuffle and groovy black 70's soul power dub reggae raga pancadão catra's style eletro
LCD/DFA Lee Perry Black Ark Studio experience Beastie Boys Dj Shadow Sonic Youth
Nuyrocan soul quannun projects jazz studio one trojan groove Brasil invenção musical
nação e URSS.

Contudo, Fred nunca teve projeto de fazer de sua atividade como Arthur Miró algo maior do
que a festa PHUNK!; ao contrário de Emilio, que toca em diferentes festas e adotou a prática
de usar o vinil, ferramenta mais conceituada no universo dos DJs (ver capítulo 1). Fred, ao
contrário, nunca sentiu o menor “pudor” em ser um “CDJ” (tocador de CD), afirmando a
parcialidade de sua identidade como DJ.

Essa pessoalidade múltipla se expressa ao ponto de no seu texto‐manifesto “Literatura


95
Sampler”, que assina em parceria com Mauro Gaspar Filho, ele citar em sua lista de
referências o DJ Arthur Miró, uma possibilidade para percebermos que, no caso de Fred, como

94
Assim mesmo, quando essa outra identidade de Fred, como Arthur Miró, surgiu no MySpace, chegou a causar
certa perplexidade. Na parte dos comentários da página, um rapaz, que acabara de fazer contato com o Fred,
pergunta: “então... agora, tô confuso vc é arthur ou Fred? (...) parece que a gente se cruzou sem perceber na festa
phunk no sábado...eu tava lá! Nem sabia que vc é DJ também....vamos nos falar um dia desses. Abração” (postada
em 15/Nov/2006/15:05).
95
A versão oral do manifesto foi chamada: “Fotogramas leituras do tempo no império do efêmero.
Manifesto Sampler – Fotogramas”. 2004. (Seminário). E foi publicada com o título “Invasores de corpos ‐
Manifesto Sampler”, na revista Transdições, 2006.
94
no caso de Fernando Salis acima, “não se trata de duas perspectivas, não são duas pessoas
nem uma pessoa dividida em dois” (Strathern, 1991:35), como enfatiza esta autora:

Here one position could almost be thought of as constituted by another in the way that
social relations are imagined in certain anthropological discourses as constitutive of
persons. The presence of specific exterior others that provides a place for the individual
person elicits from him or her a perception of those relationships as connections at once
part and not part of her or himself. Perhaps such a sense of positioning may also be
created not just by the specificity of the presences (persons who are each ‘someone’) but
by a history that does not otherwise need to be present. All that needs to be known is
that these others have come from ‘somewhere’, that they have perspective that doesn´t
not quite constitute a perspective for oneself (Strathern, 1991:40).

Trata‐se de um tipo de relação em que as conexões aparecem como ao mesmo tempo


constitutivas e não constitutivas de si, como aquela que se estabelece entre “outros externos
específicos que formam um lugar para a pessoa individual”. É como se as pessoas fossem
constitutivas parcialmente de várias outras pessoas. Nesse sentido, Fred seria um produtor,
pois tende a criar “várias pessoas” ao criar vários “nomes”. Assim como algumas categorias
neste capítulo começaram a ganhar “um duplo” a partir do uso do hífen que conecta ‐ e por
isso transforma os conceitos em outros conceitos ‐, Fred seria um composto desses duplos,
mas que se “resolve” com “muitos nomes” que sofrem infinitas combinações: Arthur Miró‐
Fred Coelho, Pauperia‐Fred Coelho, Sapopemba‐Pauperia. Por outro lado, os nomes que
escolhe para si funcionam como entidades antropofágicas. Pesquisador que devora o
pesquisado e o veste como entidade. Arthur Miró “quer ser jogador de futebol quando
crescer”, como diz a letra de Jorge Ben “Meus filhos, meu tesouro”, do disco África Brasil de
1976. Ser filho de Jorge Ben é ao mesmo tempo ter alguma consubstancialidade com o “pai” e
ser “outro”. Por outro lado, Torquato Neto, se espalha por entre as diversas identidades que
assume o Fred pesquisador.

Marylin Strathern utiliza como exemplo ser ela ao mesmo tempo feminista e antropóloga,
assim, cada uma dessas identidades seria uma extensão da outra, dependendo da posição a
partir de onde se vê. Essa descrição “de uma pessoa composta por uma multiplicidade de
relações, como se elaborada a partir de várias pessoas internamente, se aproxima do conceito
de “pessoa distribuída” de Alfred Gell (1998). Para elaborar essa ideia, este autor se inspira na
concepção da “pessoalidade fractal”, concebida por Roy Wagner e aprofundada por Marylin
Strathern. A pessoalidade fractal se visualiza na imagem metafórica da cebola, também fractal,

95
pois, a cada camada que se retira da cebola, vamos encontrando uma série de outras camadas,
sem nunca atingir um centro. E as camadas que vão saindo, por sua vez, se constituem como
partes dessa cebola em relação ao ambiente. Segundo Gell, esse tratamento teórico a essa
noção da pessoa podem ser elaborados em diferentes contextos sociais para seres humanos e
também objetos. Vejamos como Gell se pronuncia a respeito:

O mistério da animação se resolve pela reduplicação de peles, direcionadas para fora, ao


macrocosmo, e para dentro, direcionadas ao microcosmo. E pelo fato dessas peles serem
estruturalmente homólogas – não existe uma superfície definitiva como não existe um
centro definitivo, mas uma passagem contínua de dentro e fora, e nessa passagem, nesse
tráfico que se constitui uma teoria da pessoa distribuída (...) Se consideramos os seres
humanos como agentes intencionais é porque eles ao mesmo tempo geram e respondem
a representações mentais (...) externamente, está no centro de um arsenal concêntrico
de relações entre pessoas e, internamente, pode também ser visto como um arsenal
concêntrico de relações entre pessoas ‘internas’ – uma associação de humúnculos – de
que é composto (Gell, 1998: 139‐140).

Apesar das devidas distâncias de contexto e de significado, não deixa de ser interessante a coincidência
de terminologias usadas por teóricos para pensar os “novos regimes subjetivos” a partir da relação do
sujeito com o mundo virtual. Edmond Couchot, afirma que:

De todas as hibridações em direção das quais o numérico se inclina, a mais violenta e decisiva é a
hibridação do sujeito e da máquina, através da interface. Violenta porque ela projeta o sujeito – tanto o
autor da obra quanto o espectador, o artista quanto o amador de arte – em que ele é intimado
insistentemente a se redefinir; decisiva, porque a emergência do que poderíamos chamar de uma arte
da hibridação depende dela. A aparelhagem numérica do sujeito, perturba, com efeito, (...) as relações
entre o EU e o Nós, (...) Entre os artistas, Roy Ascott compreendeu muito cedo que as tecnologias das
telecomunicações, impondo‐nos relações interativas múltiplas e não mais duelos através das redes,
afetavam seriamente nossas relações intersubjetivas e a própria natureza de nossa presença ao outro.
Ele também introduziu a ideia de uma “presença virtualizada” de um “eu individual distribuído” através
da malha de redes e de seus nós, não mais localizados pontualmente, como havia sido o olho nos
sistemas de figuração fundado na representação ótica. A este eu distribuído, integrando ao corpo das
interfaces, corresponderiam formas de significação “implicadas” ou múltiplas (...) a sua concepção de
“autor distribuído” define bem uma das principais características do sujeito traspassado pela interface
(...) Pierre Levy, que definiu a novas subjetividade como “fractal”, observa que as técnicas que ele
chama de ‘técnicas da inteligência” repousam fora dos sujeitos (cognitivos), mas também entre os
sujeitos e nos próprios sujeitos. Objetos (de conhecimento) e sujeitos (cognitivos) se encaixam
reciprocamente em uma relação fractal (Couchot, 2003: 271;272;273).

Acredito que a imagem do ciborgue de Dona Haraway recuperada por Strathern é


analiticamente muito fértil, porque a imagem do ciborgue stratherniano outorga uma
operacionalidade ao hibridismo ou à “ambiguidade criativa” e nos ajuda a qualificar sem a
necessidade de uma somatória as configurações subjetivas que são elas próprias híbridas.

96
Dessa forma, nenhuma das capacidades do ciborgue daria conta da totalidade, pois a via
sempre tende à parcialidade. Nesse sentido, mais do que atuarem como bricoleurs “pós‐
modernos”, os produtores se designariam por suas qualidades ciborgues. Hermano Vianna
(2007) nos oferece uma boa forma de alocar as estéticas da colagem e do sampling. Para esse
autor, “os elementos que compõem uma colagem permanecem de alguma maneira distintos
na obra resultante, enquanto que a apropriação digital proposta pelo sampler pode até fundir
de maneira indistinguível elementos de origens totalmente diferentes, apagando‐se muitas
vezes, assim, os traços de suas origens heterogêneas” (Vianna, 2007:141). A partir dos
exemplos mencionados, poderíamos continuar a seguir as características‐ciborgue dos
produtores, e sugerir que, pelo tipo de conexões que fazem, os produtores se configuram
como mediadores.

Os produtores‐mediadores

Os produtores podem ser considerados mediadores em diferentes abordagens. Para Gilberto


Velho, “os mediadores, estabelecendo comunicação entre grupos e categorias sociais
distintos, são, muitas vezes, agentes de transformação (...) a sua atuação tem o potencial de
alterar fronteiras, com o seu ir e vir, transitando com informações e valores” (Gilberto Velho,
2001:27). Os produtores podem ser considerados mediadores privilegiados na concepção
apresentada por Gilberto Velho porque transitam com “informações e valores”. Mas eles
também podem ser percebidos como mediadores no sentido apresentado por Bruno Latour.
Como já vimos anteriormente, na concepção de Latour, os mediadores “transformam,
traduzem, distorcem, e modificam o significado ou os elementos que deveriam carregar” (ao
contrário do “intermediário”, que por mais complexo que seja sempre tenderá a manter a
quantidade de informação intacta (Latour, 2005:39). Por outro lado, os mediadores de Latour
começam a existir a partir do ponto onde inicia a rede. E, nesse sentido, eles não se restringem
às identidades meramente “humanas”. Os mediadores são múltiplos na construção da rede, e
“morrem” quando ela termina.

Poderíamos então considerar os produtores como mediadores nos dois sentidos apresentados
acima, pela capacidade de estabelecer conexões parciais. Pela maneira como arranjam as suas
subjetivações, vimos até agora como operam em sua ação de criar identidades parciais, não
chegando nunca à formação de uma totalidade. Nesse procedimento também transformam as
relações com “o mundo”. Eles não “resolvem” as relações; não fundem as relações. Eles
funcionariam como “dispositivos de conjunção” ‐ gadgets. Só que, nesse acionamento,
transformariam os resultados.
97
No capítulo 2, ao apresentar os produtores, apareceram temas caros a todos eles, entre os
quais poderíamos mencionar uma tendência a se afirmar pela negativa. Na mais recente
entrevista com Kassin, concedida à Revista OGlobo, em 7 de fevereiro de 2010, a chamada é
uma citação em que ele diz “não me considero um músico de verdade”. Estamos seguindo até
aqui o proveito desse acionamento que, “ao não ser algo específico”, permite “ser”
parcialmente vários. Assim, gostaria de explorar a seguir duas conexões específicas que, ao
passar pelos produtores, acabam por ter seus significados transformados. A primeira é como
eles agenciam a relação arte‐técnica; a segunda se refere aos processos de digitalização,
usados por eles ora como habilidade técnica, ora como recurso estético.

Mediação Arte‐Técnica

No início da segunda sessão deste capítulo apresentei um trecho de Roy Wagner que seria
utilizado a partir de um efeito de dupla leitura. Para iniciar agora esta passagem, tomo o
caminho de apresentar uma segunda leitura daquela citação. Seguindo bem de perto o trecho
extraído de Wagner, é possível perceber que a categoria produção aparece fortemente
associada ao termo cultura. E como aparece esse primeiro termo nas palavras de Wagner?

A produtividade como a “aplicação e implementação do refinamento do homem por ele


próprio” às vezes pode parecer como “simplesmente produtivo”, em oposição à inovação ou à
“criatividade”. Se, em um primeiro momento, produtividade é considerada contraditória à
criatividade, em outras o primeiro termo aparece junto ao segundo, ambos figurando como
possibilidades de “mão de obra” ou “trabalho”. Então, podemos concluir, seguindo esta
leitura, que a ideia de produção foi inicialmente mais relacionada à técnica do que à arte, mais
ao campo do “terreno” ‐ do “trabalho” ‐ do que ao campo das “alturas”, ligado à ideia de
inspiração criativa.

Passemos da ideia de produção como ação ‐ como apresentada nos termos de Wagner ‐ para a
que identifica aquele que realiza a atividade de produção, ou seja, o produtor, que aparece
atrelado ao surgimento de funções que implicam sempre um complemento adjetivo, como nos
casos do “produtor cultural”, do “produtor de cinema” e do “produtor musical”, entre
96
outros. Segundo Maureen Mahon, os produtores culturais seriam aqueles que se identificam
pelas “atividades e ideologias de quem produz formas midiáticas e culturais dentro de
estruturas e organizações de poder que outros consomem” (Mahon, 2000:469). É possível

96
Esse complemento adjetivo também foi muito recorrente nos primeiros usos do termos cultura, sempre seguido
de um adjetivo, como no caso de “cultura das artes”, etc. (Wagner 1981, Elias 1990).
98
acrescentar que, nos exemplos citados acima, é comum atribuir‐se aos produtores um maior
contato com os elementos “não artísticos”, com as possibilidades “concretas”, contato esse
que viabiliza ao mesmo tempo uma ação de “controle” sobre um “trabalho artístico”. Nesse
sentido, continua prevalecendo a concepção de produtor como aquele que lida com os
elementos “técnicos” da “Cultura” (no sentido “sala de ópera”, atribuído por Wagner).
Gostaria de deixar claro ao leitor que, até o presente momento, estou me baseando em
“noções convencionais” (Wagner, 1981) associadas a esta categoria. Vimos anteriormente
(Capítulo 2) que o trabalho de produção passou por ressignificações desde os anos 60, tanto
para o trabalho dentro do estúdio ‐ como no caso dos produtores musicais (ver Hennion 1980,
anteriormente citado) ‐, quanto para as tarefas de efeitos sonoros e visuais, no cinema. Mais
recentemente, junto ao surgimento do DJ nas cenas de hip‐hop, de música eletrônica, de funk
carioca e de dub, entre outras, os criadores dessas sonoridades começaram a se
autodenominar produtores, privilegiando expressivamente o manuseio de “efeitos técnicos”,
podendo estar “dentro das organizações de poder” ou não, ao contrário do que afirma Mahon
acima. Como disse Niccolas Bourriad (2009), as atividades que qualificam os produtores
derivam diretamente de eles levarem para o ato da criação ferramentas que originariamente
eram atribuídas às técnicas de pós‐produção.

Como ilustração desta apresentação bem sumária de algumas metáforas utilizadas para
designar esse termo, gostaria de retomar o artigo que saiu na revista Época a respeito de
Kassin (Ver capítulo 2 – Kassin), em 2003. Em primeiro lugar, destaco a expressão “a vez do
sem estilo” (subtítulo que aparece no referido texto e que tem ressonância na chamada da
entrevista que saiu sobre ele no início de 2010, como aquele que “não se considera um músico
97
de verdade”). Kassin é apresentado ao lado de “grandes produtores” do cenário da música
popular brasileira nos anos 60, 70, 80 e 90. E com todas as suas diferentes facetas e atuações é
referenciado como produtor de artistas que despontaram no cenário nacional nos anos 2000,
como Vanessa da Mata e a banda Los Hermanos. Kassin relembra o que Caetano Veloso lhe
dissera a respeito dos anos 60: “o artista não acompanhava o processo de mixagem. Era
proibido. A mixagem [processo realizado dentro do estúdio] era um processo técnico, não era
um processo artístico”. E observamos que o trabalho específico de produtor musical dentro do
estúdio é uma prática que, ao longo do período que tem início nos anos 60 e vem até os dias
de hoje, está cada vez mais sendo considerada “menos técnica”, ao adquirir qualidades
chamadas mais “expressivas”. É possível, pois, afirmar que, se elencados conjuntamente, os

97
7 de fevereiro de 2010, Revista O Globo. Página 14.
99
produtores das últimas cinco décadas teriam entre si conexões parciais ou extensões de
sentido, já que, apesar de exercerem a mesma “função” e chamados de produtores, as suas
ferramentas são outras, além de serem percebidos de maneira diferente, a partir das suas
realizações – agora não meramente técnicas, mas também artísticas.

O exemplo de Kassin nos permite observar como a categoria produtor apresenta uma
“ambiguidade criativa”, pois cada entrevistado associa a ela um significado próprio. Assim,
Aloysio de Oliveira é chamado de produtor musical nos anos 60 tanto quanto Kassin nos anos
2000, embora o compartilhamento do mesmo nome não signifique que operem e sejam
percebidos como realizadores de funções comuns. O próprio Kassin, a propósito, se refere a
um período de passagem em que os procedimentos determinados por uma oposição arte x
técnica teriam sofrido uma inversão.

É interessante citar uma passagem do prólogo do livro de Dan Frank, Boêmios, para verificar
como foi recente, ainda que profunda, a separação “moderna” entre arte e técnica. É um
trecho sobre a geração de modernistas em Paris, referindo‐se a Picasso, Alfred Jarry,
Modigliani, Braque, Matisse, Breton, Soutine, Apollinaire e Man Ray, entre outros; nesse texto
se lida com a ideia romântica do autor, que assim deseja apresentar os artistas acima citados
ao leitor:

[Muitos pintores] tornaram‐se uma espécie de técnicos, de artesãos da pintura. Ora, os


artesãos não seriam artistas. Pierre Soulages, um dia, me deu a chave para a diferença:
“o artista procura. Ele ignora o caminho que vai tomar para alcançar seu objetivo. O
artesão, por sua vez, segue por caminhos que ele conhece para ir ao encontro de um
objeto que ele também conhece” (...) A obra de arte é única, assim como aquele que a
produz. As cariátides de Modigliani não são comparáveis a nenhuma outra... A nova obra
nunca é adquirida. Ela não repousa sobre coisa alguma, nem mesmo sobre a obra que a
precede... É preciso sempre recomeçar do zero. O zero é um abismo. O artista vive
apenas do seu fôlego. Se este lhe falta, tudo desmorona (Franck, 1998: 16,17).

Dan Franck utiliza, como modelo de trabalho e de apresentação dos seus personagens, a
marca da separação da sensibilidade do artista moderno: aquele que “não é técnico”, aquele
que trabalha com uma ideia de criação como ruptura e a partir da tabula rasa.

A relação entre tecnologia e arte pode apresentar variações quase infinitas, já que, como disse
Ingold (2000), ambas as categorias não deixam de ser meras “palavras” que mudam o seu
significado ao longo do tempo. Sem pretensões de esgotar o tema, podemos inicialmente
seguir este autor quando sustenta ser recente a separação entre arte e tecnologia, fenômeno
100
que teria acontecido no final do século XVIII. A partir daí, segundo Ingold, teria início a
tendência de pensar a arte como tributária das faculdades superiores humanas, como a
criatividade e a imaginação. A tecnologia, por sua vez, na virada do século XIX para o XX, teria
ganhado um outro significado. Se antes era considerada como algo que informava estudos
científicos de práticas produtivas, teria passado a ser vista como um corpo de regras e
princípios instalados no próprio coração do aparato de produção (Ingold, 2000:350). Ao lado
de dicotomias como “mente” e “corpo”, “criatividade” e “repetição”, “liberdade” e
“determinação”, a dicotomia entre "arte" e "tecnologia" se instaurava na sociedade como um
problema moderno. Com o surgimento das técnicas de reprodução, a oposição entre "arte" e
"tecnologia" fica ainda mais tensionada, porque a arte foi uma das áreas mais afetadas pela
reprodutibilidade técnica. Ingold frisa essa recente separação ao lembrar que mesmo no
século XVII havia continuidade entre categorias de artista e artesão, ambas determinadas por
uma técnica. Na Grécia e Roma antigas, segundo ele, arte e técnica derivaram de troncos
semelhantes, sendo usadas para descrever toda a atividade que envolvia a manufatura de
objetos duráveis (Ingold, 2000: 349).

Na medida em que essa dicotomia se torna cada vez mais presente na modernidade, o ofício
artesanal (craft), associado ao que é considerado “meramente técnico”, passa a ser
desvalorizado de maneira inversa ao que acontece com a “arte”, referenciada ao exercício
criativo da imaginação” (Ingold, 2000: 350). Essa distinção entre artesanato e arte teria criado
98
obviamente uma diferenciação entre as categorias do artista e do artesão. Ingold acredita
que a separação entre arte e tecnologia teria afetado a própria antropologia, na medida em
que passou a haver pouca comunicação entre os estudos antropológicos que trabalham com
essas duas disciplinas, tomando‐se como subentendido que a tecnologia funciona, e que a arte
significa: “a ação técnica almeja produzir resultados de uma maneira determinada enquanto
99
que o objetivo da arte é comunicar” (Ingold, 2000: 351).

Alfred Gell (1988 e 1998) também concorda que a esfera da tecnologia passou a ser concebida,
em nossa sociedade, como subjugada às necessidades materiais, afastando‐se das esferas da
imaginação e do simbólico, ou expressivo. Assim, segundo Gell, apesar de dependermos

98
Gombrich esclarece que no final do século XVIII havia se formado uma distinção clara entre Arte com A maiúscula
e o exercício de um ofício, como o de pintor ou construtor, a partir das academias e exibições. A revolução
Industrial no século XIX destruiria as próprias bases que assentaram a tradição de oficinas (craftmanship) por causa
da produção maquínica. Houve um deslocamento do workshop para a fábrica (Gombrich, 1995:499).
99
O objetivo de Ingold se alicerça em superar dicotomias modernas que se inscrevem em uma oposição maior entre
natureza e cultura. Partindo dessa ideia, sugere o termo habilidade como proposta para essa superação. Esta
discussão específica será retomada mais adiante.
101
inteiramente da tecnologia, por estar mais próxima a “ferramentas acinzentadas e a artefatos
mecânicos”, nós a desprezamos como uma esfera separada da criação artística “autêntica”.
Partindo desse pressuposto, Gell procura ampliar o entendimento da categoria tecnologia para
tentar superar a dicotomia ocidental entre arte e tecnologia, considerando explicitamente a
arte como uma tecnologia do encantamento. Utilizando um conceito ampliado de tecnologia,
Gell afirma que, dentro das capacidades tecnológicas humanas, haveria a “tecnologia de
produção”, ligada à sobrevivência objetiva; a “tecnologia de reprodução”, da qual fariam parte
o parentesco e a reprodução; e, por último, a “tecnologia do encantamento”, que se traduz
pelo exercício de controle do pensamento e dos sentimentos de outras pessoas. Para ele, a
arte seria um exemplo paradigmático da tecnologia do encantamento enquanto arma
100
psicológica. A tecnologia, em sua concepção, deve ter um esquema de circuito sistêmico no
alcance de qualquer objetivo; é a soma total de formas de conhecimento que tornam possível
a invenção, o fazer, e o uso das ferramentas num determinado contexto social. E funciona
como um sistema complexo que unifica uma série de técnicas para assegurar um resultado
desejado. Assim sendo, a magia seria uma espécie de “tecnologia ideal”:

Magic consists of a symbolic commentary on technical strategies in production,


reproduction and psychological manipulation (…) The defining feature of “magic” as an
ideal technology is that it is costless in terms of the kind of drudgery, hazards and
investments which actual technical activity inevitably requires. Production by magic is
production minus the disadvantageous side‐effects, such as struggle, effort, etc (Gell,
1988).

Portanto, o que define a arte como uma tecnologia mágica é que a arte se realiza a partir de
um processo tecnológico que transcende o conhecimento do espectador, parecendo, assim,
101
um procedimento mágico (Gell, 1998: 48).

Podemos ver que Gell usa a expressão "tecnologia do encantamento" quando a fabricação de
uma obra de arte, enquanto Arte, se torna inacessível para a maioria das pessoas. Ao contrário
das sociedades “primitivas”, em que a arte é extremamente ligada à magia, em nosso entorno

100
Ele ilustra essa ideia com o padrão decorativo nas proas das canoas trobriandesas. “The trobriand canoe‐board is
a technically appropriate pattern for its intended purpose of dazzling and upsetting the spectator (…) It is the way
an art object is construed as having come into de world which is the source of the power such objects have over us”
(Gell, 1998: 45‐46).
101
Coincidentemente, na abertura ao O Cru e o cozido, Lévi‐Strauss afirma que o “criador de música” seria um “ser
igual aos deuses”, pelo fato de a música “ser uma linguagem por meio da qual são elaboradas mensagens das quais
pelo menos algumas são compreendidas pela imensa maioria, ao passo que apenas uma ínfima minoria é capaz de
emiti‐las, e de, entre todas as linguagens, ser esta a única que reúne as características contraditórias de ser ao
mesmo tempo inteligível e intraduzível” (Lévi‐Strauss, 2004:37‐38).
102
social a magia vive na idealização da tecnologia. Assim, os propagandistas, os produtores de
imagens e os ideólogos da cultura tecnológica seriam os mágicos ocidentais, já que nesses
âmbitos perdemos de vista a tecnologia e nos deixamos afetar pela magia. E “se não
reconhecemos a magia de modo explícito é porque tecnologia e magia, para nós, são a mesma
coisa” (Gell, 1988).

É significativo o comentário tecido por Amir Geiger (2007) sobre os modos de verificar a
relação entre magia, técnica e arte para Alfred Gell e Georg Simmel (como aparece
principalmente em seus ensaios “A metrópole e a vida mental” e “Cultura subjetiva e Cultura
objetiva”. Esclarecendo que a diferença entre os autores não deve ser tratada “como um
grande divisor, apenas distintos significados culturais da relação arte‐técnica” (Geiger,
2007:380), o autor afirma que para a modernidade de Simmel (que encontra ressonâncias em
Sapir), a aproximação entre arte e tecnologia seria “conceitual” mas não “experiencial”, ela
seria “objetificadora” e “reificadora de relações”. Nesse sentido, o “modernismo tardio
simmeliano se caracterizaria por uma separação entre a arte e a técnica. Já, para Gell, como a
arte é tecnológica, não haveria separação entre as esferas da arte, da tecnologia e da
magia.Assim, afirma Geiger: “Se Gell propõe considerar a ‘magia como técnica ideal’, o
modernismo – incidindo sobre o mesmo vínculo – quis ver na técnica a mágica real” (ibidem).

Se a tecnologia e a magia estão intimamente relacionadas em nossa sociedade, como afirma


Gell, isso se deve, segundo Scott Lash, a um cenário a partir do qual estaríamos
experimentando uma mudança no sentido de vivenciar a “cultura como representação”
(cenário que configuraria o que ele denomina “mídia clássica”) para a era da “nova mídia”, a
“cultura como tecnologia”. No seu entender, “não é algo que se veja, leia ou ouça, mas é algo
que se faz”. Assim, segundo Lash, na cultura da mídia clássica, “as platecontemporaneidadeias
eram passivas ou ativas”, ao passo que hoje, no contexto das indústrias globais de cultura, elas
são interativas”. Estaríamos portanto “substituindo o princípio da face pelo da interface”. Lash
acrescenta:

Ao consumirmos multimídia somos consumidos de conteúdo e de tecnologia. É a


dimensão tecnológica que permite a interatividade. Assim, não vemos mais, face à
cultura, como uma plateia, como leitores, espectadores ou assistentes, mas como
praticantes e usuários (Lash, 1999: s/p. – grifos do autor).

Ao privilegiar‐se a “cultura como tecnologia”, primam aqueles que manipulam o “conteúdo


técnico” e não mais o “conteúdo expressivo” (cf. Ferreira , 2006). É possível, assim, acessar
inicialmente aquilo que aparenta se configurar como uma inversão, a partir dos anos passados,
103
em que o produtor‐técnico se torna um produtor‐artista: a capacidade de manipular o
“conteúdo técnico” ganha ênfase estética e não mais apenas o “conteúdo expressivo” (cf.
Ferreira, 2006). Para Ferreira, o conteúdo expressivo estaria sendo substituído pelo conteúdo
técnico em “músicas que valorizem (...) a funcionalidade acima da narrativa e da
expressividade” (Ferreira, 2006: 251). Essa inversão se traduz na rejeição de “elementos
textuais” (Van Veen, 2002), ou de “representação”, ou mesmo de elementos “temporais”, nos
termos de Daniel Castanheira, em favor do “espaço” e do “efeito sensual do som” (Van Veen,
2002). Como diz Kassin, “todas as coisas que a gente faz [referindo‐se ao trabalho que realiza
com o +2] produzem esse prazer de ter a concepção de som. Acho que até mais do que a
concepção da canção, ou a concepção instrumental”. A “concepção do som”, para Kassin, ou a
“concepção espacial”, para Daniel parecem querer incursionar pela experimentação “do efeito
maquínico provocado pelo som” das máquinas (Ferreira, 2006:251). O conteúdo expressivo
afigura‐se ter sido preterido pelo conteúdo maquínico. Nesse mesmo sentido, Felipe e Timba
relatam ter encontrado na produção com softwares de computação, respectivamente em suas
criações de música eletrônica e projetos de sound‐art e em criações de vídeo‐arte e VJ, “um
campo novo e fértil de invenção e criatividade”. Felipe chega a definir a sua sensação quando
atuava como músico pianista no ano seguinte à sua formatura, como “artesão”, “repetitivo”,
sem muitas possibilidades de “inovação”. O que veio a se configurar como um trabalho
“inventivo”, “artístico”, segundo ele, consolidou‐se nos momentos de criação digital. Por sua
vez, Timba considerou o curso de Belas Artes “demasiado prático”, sem muita possibilidade de
“reflexão”, o que acabou derivando em uma mudança de carreira, que somente encontrou de
novo a dimensão artística quando se deparou com a atividade de VJ.

A noção de Santuza Naves (comunicação pessoal) de “fim do artista intelectual” pode ser
alocada nessa mudança de sensibilidade da face para a interface e da expressão para a
102
técnica. Definir‐se pelo que “se faz” e negar uma “identidade” equivalem a valorizar o
conteúdo da tecnologia ou o “devir‐máquina da música” (Ferreira, 2006:253). O “fim do artista
intelectual” não se deve ao fato de terem os produtores observados abandonado os
elementos especificamente “intelectuais”, mas, de maneira diferente, deve‐se aos seus
diálogos com os “conteúdos tecnológicos”. O estudo dos “botões” ganha uma inflexão; faz

102
Santuza Naves (2008) qualifica o “artista intelectual” como aquele que opera criticamente no processo de
composição, promovendo uma crítica tanto interna – como o uso da metalinguagem e outros expedientes
considerados modernos – quanto externa – no sentido de articular arte e vida. Para Eugenio (2006), o
procedimento de adotar‐se o desvio como estilo de vida teria se insinuado na sociedade brasileira a partir do
Tropicalismo, nos anos 70. É também com esse “movimento” que Naves (comunicação pessoal) identifica o
surgimento de um novo tipo de artista, que difere daquele que se conforma a modelos descritos por Argan, como
Picasso e outros modernistas, ou aos compositores que criaram a MPB e o tropicalismo.
104
103
mais sentido deter‐se em uma análise da qualidade sonora do mp3 e da fita cassete do que
alongar‐se numa pergunta a respeito do “conteúdo artístico”, como no caso de Kassin.

Quando argumentei anteriormente que seria possível constatar um procedimento de inversão


das categorias modernas de “arte como expressividade” para a predominância dos “efeitos
técnicos”, isso não quer dizer que se tenham abandonado de fato os elementos “expressivos”,
como os arranjos, as leituras musicais, ou a canção, o desenho ou a reflexão teórica. É possível
perceber nas conversas com Felipe Vaz que, mesmo quando ele se dedicava a incansáveis
horas de estudo de piano, também experimentava novidades com o computador. O desejo de
inversão das categorias de arte e técnica próprias de nossa contemporaneidade pode sentir‐se
na direção dos “afetos” dos agentes: no tom de animação e na atenção e desenvolvimento que
ganham os elementos denominados “técnicos”. Para Kassin, estar no estúdio é muito mais
prazeroso e “criativo” do que levar a vida de músico de turnês e shows, apesar de ele próprio
vivenciar o estilo de vida do músico. Mais uma inversão dessas categorias como no caso de
Felipe: o “artesão” aparece filiado ao músico, e o “artista”, ao produtor.

Mas essa inversão dos valores (conferidos à arte e à técnica) não chega a formar uma outra
dicotomia no sentido de que as práticas “expressivas” ou narrativas que primavam
anteriormente não foram “apagadas” da memória ou mesmo das práticas musicais dos
produtores. Ainda que buscando alcançar um sistema de “puros”, estaríamos lidando com
configurações híbridas. Percebe‐se que o desejo de inversão das categorias modernas não
substitui o esquema arte > técnica pela técnica > arte. A inversão tem um efeito menos de
substituição do que de não‐aceitação dessas dicotomias. Assim, a noção “dos instrumentos aos
botões” não funciona em termos de “superação” ou inversão dicotômica, mas como polos
entre os quais é possível deslizar. Esse espaço da ambiguidade permite a destruição do
“nome” e habilita outros meios expressivos, aquele do “conteúdo tecnológico” ou do “efeito
maquínico imagem‐som”; os meios por onde se instalam as suas imaginações criativas. São
outras as ferramentas que devem ser utilizadas para a criação.

Mediação Habilidades Estéticas

No desenho maquínico dos produtores como autores‐ciborgues, as relações específicas


estabelecidas por eles entre arte e tecnologia e os seus “derivados” ‐ como artista e artesão,
arte e técnica, analógico e digital ‐ teriam um efeito propulsor de evidenciar outras habilidades

103
Essas duas mídias se prestam à comparação entre as tecnologias digitais e analógicas, e, nesse sentido, ao
surgimento derivado dos diferentes valores estéticos que aparecem entre os produtores dedicados a essas
estéticas. Esta discussão que será mais detalhada no plug‐in I.1 a seguir.
105
que se adquirem com as ferramentas digitais. Para fechar este capítulo ‐ e como último
recurso de aliar os produtores “ao seu tempo” ‐, pretendo examinar como as ferramentas
digitais são acionadas como um referencial estético para os produtores, a partir das
habilidades específicas agenciadas por eles.

Então, retomemos mais uma vez o comentário de Kassin, a respeito de comparar sua geração
104
com o contexto da eclosão da tropicália. Em primeiro lugar, ele lembra que na época do
tropicalismo o músico não acompanhava o processo de mixagem por não ser considerado um
procedimento artístico, enquanto que, nos dias de hoje, o processo em si seria artístico, assim
como quem o realiza é qualificado como artista. Seria possível perguntar, a partir desta
“mudança” percebida por Kassin, que aspectos foram acionados por ele no sentido de fazer
com que, quarenta anos depois da tropicália, seja possível perceber o processo de produção
como um processo artístico, e não mais como um processo técnico, e como se configura a
estética daqueles que são os técnicos‐artistas.

Para começar esta discussão, cito o artigo de Hermano Vianna que integra o catálogo da
exposição sobre a Tropicália, distribuído em museus de Nova York, Londres e Berlim em 2007.
Nesse artigo, o autor afirma que há um crescente interesse internacional por esse movimento
nos últimos anos, o que teria a ver com uma afinidade entre a estética do tropicalismo e
determinados fenômenos do mundo contemporâneo. Segundo Vianna, essa estética poderia
ser considerada um “espelho caótico do mundo contemporâneo” marcado pela incerteza, pela
ambiguidade, pelo amor‐humor, e também caracterizado pelas delicadas relações entre
comércio, cultura de massa e vanguarda (cf. Vianna, 2007). Vianna cita algumas afirmações
recentes à época de Gilberto Gil, então ministro da Cultura, todas ditas em aparições públicas
e incorporadas ao papel de ministro. Ele destaca a entrevista em que Gil declarou abertamente
que defendia o software livre, e que se sentia inspirado pela “ética hacker”, além de ter
apoiado e utilizado o creative commons. Vianna ressalta que algumas dessas atitudes
poderiam ter sido consideradas politicamente incorretas se proferidas por outros ministros,
mas é como se ser/ou ter sido um tropicalista vestisse o seu usuário de poderes de um maior
trânsito por entre essas esferas mencionadas acima. No mesmo artigo, o autor fala ainda que
Caetano, ao referir‐se às músicas tropicalistas, diz que tinham como desejo de ‘samplear’
retalhos musicais, e tomávamos os arranjos como ready‐mades” (Vianna, 2007:139)

104
Devo esclarecer que a comparação com o tropicalismo foi impulsionada pelos entrevistadores, no caso de Kassin,
e de novo por mim, quando entrevistei Lúcio Maia (guitarrista da banda Nação Zumbi). O motivo da comparação
tem a ver com certas “afinidades” percebidas e referenciadas, em meios midiáticos e de crítica cultural, entre essas
bandas e o tropicalismo. Além disso, tanto o +2 como a Nação Zumbi participaram da exposição internacional
Tropicália, em 2007.
106
Sobre os elementos que poderiam ser referidos aos hackers, Théberge afirma que:

“a number of recent commentators have remarked on the make‐up of computer subcultures and
compared them to the folklore that has been generated about them. Dennis Hayes dismisses the
popular mythology of the ‘outlaw’ and the computer ‘terrorist’ by arguing that hackers are ‘typically
white, upper‐middle‐class adolescents” who generally lack political motivation despite their
antibureaucratic posturing. Arguing against Hayes’s assumptions, Andrew Ross is less ready to judge the
political commitment of hackers as implied by their class status alone or by an overly simplistic
interpretation of their activities. Ross makes a more revealing and potentially more important
observation about hackers, however, when he argues that, despite the hackers’ countercultural stance,
there exists an underlying ‘fit’ between the hacker’s system of values and that of the entrepreneurial
elements of computer culture: ‘The hacker cyberculture is not a dropout culture; its disaffiliation from a
domestic parent culture is often manifest in activities that answer, directly or indirectly, to the
legitimate needs of industrial R&D. For example, this hacker culture celebrates high productivity,
maverick forms of creative work energy, and an obsessive identification with on‐line endurance (and
endorphin highs) – all qualities that are valorized by the entrepreneurial codes of silicon futurism’”
(Théberge, 1997:136‐137).

Nesta passagem, Théberge apresenta uma discussão sobre os hackers, como “uma subcultura” do
ciberespaço e menciona autores que não concordam em atribuir aos hackers as qualidades de
“desviantes” ou “underground” em relação a uma cultura “dominante”, o que se deve, segundo o autor,
ao mito do hacker como um terrorista do computador ou como fora da lei. Poderíamos também, por
outro lado, ressaltar a sua face “romântica”, mas não menos importante, como se vislumbra no caso do
personagem Neo, da trilogia de filmes Matrix. Nesse filme, Neo é um jovem hacker e ao mesmo tempo
aquele que pode, por acessar a linguagem das máquinas, “salvar o mundo”. Ao contrário dessa
mitologia, Théberge cita autores que realçam os elementos de continuidade entre os hackers e os
“valores empresariais da cultura computacional”. Mas é possível entender a frase de Gilberto Gil, de
sentir‐se “inspirado pela ética hacker”, nos termos em que Vianna apresenta em seu texto: é próprio do
hacker ser ao mesmo tempo um terrorista e estar dentro do sistema de valores capitalistas. Nesse
sentido, ele se aproximaria da visão criativa apresentada por Eugenio [2006] sobre o “e” como “estilo de
vida” (o de pessoas que acrescentam facetas de personalidade antes consideradas opostas, do tipo "ou
isto ou aquilo").

Num espírito semelhante aos (ex)tropicalistas apresentado por Hermano Vianna no artigo
acima citado, em análise de Hélio Oiticica, Frederico Coelho argumenta que o “que ocorre nos
escritos de Oiticica é a narrativa de uma apropriação voraz da leitura do alheio, de uma
necessidade de dar eco às suas muitas vozes. O que ocorre é um abandonar completo de
hierarquias e demarcações culturais em prol de uma leituraescrita sampleadora, um
cruzamento de informações cujo objetivo final é sempre a síntese de suas certezas e teorias”
(Coelho, 2008:17 – minha ênfase).

Sua diagramação visual, seus espaços para imagens, seus samples cortados e colados de
livros alheios, suas referências de leitura, passando da tradução poética de Haroldo de
Campos aos ensaios da teoria da comunicação de Mcluhan, ligando os shows dos Stones
no Havaí às obras de Lygia Clark e Aconcci eram demonstrações do conteúdo de um livro
multidimensional. Os dois artistas plásticos, aliás, são citados pelas suas experiências o

107
corpo enquanto obra, com trabalhos que iam ao encontro das questões levantadas por
Oiticica em Bodywise (Coelho, 2008:150 – minha ênfase).

Em todos os exemplos mencionados, temos o caso de personagens ou estudiosos do


tropicalismo terem acionado categorias que configuram uma estética digital contemporânea
(como o sample, enquanto uma modalidade de colagem, e o hacker, enquanto um usurpador
criativo) para melhor fazer entender a proposta estética do momento histórico do
tropicalismo. É como se naquele momento não houvesse ainda nomes e ferramentas que
definissem tão bem o que eles estavam fazendo criativamente. Por outro lado, há certas
categorias estéticas presentes nos discursos mencionados acima – como o sample e o hacker –
que não existiam naquele momento. Noções que se referem a uma paisagem atual em que a
prática do sampling existe como um procedimento estético para inclusive ser atribuído a
artistas que não conheciam esse termo – apesar de praticá‐lo em um momento determinado
de sua trajetória, como vimos no artigo já comentado de Vianna.

Mencionei, no primeiro capítulo, a ideia de Matei Calinescu de perceber a modernidade por


meio de faces. E se por um lado, como observam Ingold e Gell, haveria uma separação
moderna entre arte e tecnologia, haveria do mesmo modo, desde o início do século 20,
diversas manifestações artísticas que iriam ao encontro da superação dessa dicotomia.
Huyssen afirma (1997), seguindo Bürger, que “a grande meta dos movimentos artísticos tais
como o Dadá, o surrealismo e a vanguarda russa pós‐1917 era a reintegração da arte na práxis
da vida, o fim da lacuna que separa a arte da realidade” (Huyssen, 1997: 27). A separação
entre arte e vida havia sido criada a partir do esteticismo no final do século XIX. Esse
esteticismo se baseava na crescente autonomia da arte em relação à Igreja e ao Estado
(fundamentada na estética de Kant e Schiller sobre a necessária autonomia de toda criação
artística), num panorama institucional em que a arte era produzida, distribuída e recebida na
sociedade burguesa (cf. Huyssen, 1997: 27). Assim, “a vanguarda histórica tentou transformar
o isolamento da ‘arte pela arte’ em relação à realidade numa rebelião ativa que faria a arte ser
produtiva para a mudança social” (Huyssen, 1997: 28). Seu alvo era exatamente a “arte
instituição” criada desde o século XVIII. Nesse panorama de ruptura, segundo o autor, a
tecnologia teria desempenhado “o papel crucial, na tentativa da vanguarda de superar a
dicotomia arte/vida e tornar a arte produtiva para a transformação do cotidiano” (Huyssen,
1997: 29 – grifo do autor):

Nenhum outro fator influenciou mais a emergência da nova arte de vanguarda que a
tecnologia, que não só incendiou a imaginação dos artistas (com o dinamismo, o culto à

108
máquina, a beleza da técnica, as atitudes construtivista e produtivista), como penetrou
no coração mesmo da obra. A verdadeira invasão da tecnologia na fabricação do objeto
de arte e o que poderia vagamente chamar de imaginação tecnológica podem ser melhor
entendidos através de práticas artísticas como a colagem, a montagem e a
fotomontagem; e desembocam ainda na fotografia e no filme, formas de arte que podem
não só ser reproduzidas, mas que são na verdade planejadas para a reprodutibilidade
105
técnica (Huyssen, 1997: 30).

Para Amir Geiger (2007), portanto, o tempo presente parece apontar para “alterações
tecnológicas” que produzem a “estranheza no interior da biografia individual em intensidade
multiplicada”:

(e, portanto, qualitativamente diferente da fragmentação e multiplicidade que


marcaram as experiências, experimentações e representações dos modernismos de
outro século), num tempo em que a ampliação das potencialidades faz o passado
individual ser arqueológico – a memória pessoal é o museu etnográfico num sentido que
passou do metafórico ao literal e retornou ao metafórico, pois não se trata de “eu” ser
outro, nem de a experiência de sê‐lo estar documentada à exaustão, mas, agora, de
duvidarmos intrabiograficamente da nossa própria humanidade, dúvida que oscila entre
as duas direções: somos mais maquínicos, maníacos maquinais, ou com as máquinas
ampliamos nossa condição humana? (Geiger, 2007:388).

Essa “dúvida”, para o autor teria um poder “redentor” pois “na proliferação de gadgets, no
prazer prosaico da convivência tecnicamente mediada, algo radical esteja acontecendo”
(ibidem:386).

Para prosseguir e começar a mapear a novidade destes “novos sujeitos artísticos” (algo que
continuarei a percorrer na Parte II desta tese), poderíamos utilizar como referência a descrição
de Bruno Latour sobre a arte dos últimos dois séculos:

Gerações de iconoclastas despedaçando mutuamente seus trabalhos e rostos. Um


fabuloso experimento niilista em larga escala. Uma alegria maníaca de autodestruição.
Um sacrilégio hilariante. Uma espécie de inferno anicônico e deletério (...) desse

105
Naves (2003), em referência a Argan, comenta que esse momento estava “impregnado de informações da
produção industrial”. E, com isso, deviam ocorrer mudanças sociais e culturais mediante a interferência do artista.
“Cabe a ele procurar conectar a concepção de suas obras com a dos objetos de projeção industrial, para reavivar o
vínculo entre arte e sociedade. Transformado em ‘técnico projetista’, o artista utiliza a tecnologia industrial para
criar objetos que tenham valor ao mesmo tempo funcional e estético, contribuindo assim para a integração de
todos os segmentos sociais na vida econômica e cultural. Esse processo de integração, na medida em que se realiza
através da função, é dinâmico, pressupondo uma fruição que se completa com a utilização do objeto, e não
mediante a contemplação passiva dos artefatos convencionalmente tratados como ‘artísticos’” (Naves, 2003).
109
experimento obsessivo para evitar o poder da construção tradicional da imagem, uma
fonte fabulosa de novas imagens, novas mídias, novas obras de arte foi encontrada;
novos esquemas para multiplicar as possibilidades de visão. Quanto mais arte se tornou
sinônimo de destruição da arte, mais arte vem sendo produzida, avaliada, comentada,
comprada e vendida, e sim, cultuada (Latour, 2008: 122).

Daniel Castanheira talvez responda a esta problemática de uma forma bem adequada: “Nos
anos 60, as ferramentas eram outras, não havia os procedimentos digitais que existem hoje.
Mas já estavam sendo criados os conceitos que continuam influindo na nossa configuração
cultural até os dias de hoje”. Daniel se refere às consequências de existirem as ferramentas de
fato. Não basta pensar no sampling como uma modalidade de colagem. Isso seria chegar
somente ao meio do caminho, pois ter a ferramenta modula o resultado. O sampling realizado
com a ferramenta digital imprime um novo adjetivo ao procedimento da colagem: incrementa,
agrega e, assim, ganha autonomia como categoria. Pensando numa configuração específica
para a estética dos produtores, é possível considerar que o que diferencia a concepção de
mixagem como um procedimento técnico ou como arte ‐ naquele momento nos anos 60 e no
momento atual ‐ seja a mesma diferença estabelecida entre a colagem e o sampling. E, nesse
sentido, também distancia o produtor‐técnico do produtor‐artista.

Sobre o procedimento estético modulado pelos processos digitais, Daniel considera que a
digitalização e o microcomputador possibilitaram um novo paradigma para pensar, em vez do
tempo, o espaço como categoria de pensamento. Para ele,

Tem uma música minha que está tocando por aí com uma banda nova, que é uma canção
supertradicional, quase uma marchinha. Então, a brincadeira é a matéria da canção, dizer
ou não dizer a coisa é a matéria sonora de que eu falo.

‘Agora amor/ vemos temos nada/ agora amor/ vou me deixar amanhecer/ vou me deixar
espreguiçar/ sair daqui/ esquece amor/ temos nada para dizer/ só gaguejar/ pa pa pa pa/
que que que que’

A gente tem uma programação em loop, que a gente tenta reproduzir. Trata‐se de uma
brincadeira metalinguística sobre a música e o discurso também. A época em que
ninguém diz nada para ninguém. Mesmo quando eu faço uma canção tem um loop, tem
um gaguejar, várias coisas.

O interessante desta passagem é que Daniel revela que mesmo na elaboração do que ele
denomina “canção”, em seu sentido “tradicional”, ele já estava sendo embebido pela
inspiração oriunda da gramática digital. O loop, enquanto um procedimento de repetição, não
110
se inscreve numa estética temporal, mas numa estética espacial. Daniel reitera que “o que
está em jogo é o espaço, porque, por exemplo, eu pego um sampler ou um sintetizador, em
que eu crio aqui agora um sonzinho e crio uma frase e fico repetindo em loop. A questão vai
ser sempre o mesmo corpo espacializado e colocado em relevo, a mesma frase com dez
minutos de música variando de espaço”.

Fernando Salis afirma algo muito semelhante quando diz:

Eu estou muito treinado no documentário e cada vez mais treinado nessa história de
nova mídia. Então eu acho que tenho marcadamente uma perspectiva do documentário,
de fazer câmera para documentário, o que me leva muito para o que as pessoas estão
fazendo, as ações. Mas, ao mesmo tempo, por exemplo, se eu pego [com a minha
câmera] uma bicicleta e tem um trem passando, eu já penso que esse movimento pode
virar um loop, entendeu? Esse já é um treinamento do VJ, que uma pessoa que só faz
documentário não percebe, mas eu vejo. Às vezes eu estou gravando alguma coisa e
naquilo que estou vendo, eu vejo um loop, porque eu já tenho treinamento do loop
dentro da minha cabeça.

Esta última frase de Fernando é muito importante, porque mostra como o domínio da técnica
do loop pode interferir e transformar a estética da criação em novos âmbitos. Assim, ao captar
uma imagem ele pode afetar as habilidades das ferramentas do documentarista com as
habilidades do VJ. Um homem passeando de bicicleta pode vir a se configurar como uma ação
importante em um documentário, mas pode virar uma “dança em loop”.

O loop é uma estética. Primeiro porque o loop é a estética da arte eletrônica; e, segundo,
porque o loop permite também trabalhar uma temporalidade específica: essa
temporalidade da amostra, do “sample”. O loop e o sample têm muito a ver um com o
outro, porque você pode pegar uma certa imagem, e você tem como transformar a
relação de tempo, que aquela imagem tem inicialmente, com a tua percepção. Você
pode botar, por exemplo, um reverse e aí cria um movimento infinito. Tem um loop
repetição, e tem o loop infinito. O loop da repetição é quando você tem um corte. Agora,
o loop infinito é sem corte, e tem todas as variações entre uma coisa e outra. No caso da
estética do VJ, ela se aproxima da questão do compasso musical; e, no caso da música
106
eletrônica, o loop é a base da música eletrônica.

106
Ricardo Cutz considera que nos anos 90 se cristalizou a “massificação do loop”. Porque nesse período “se
introjetou o não linear”. Ele afirma que a narrativa não linear já existia no cinema antes disso com os recursos de
cortes e de flash‐back mas reitera que o computador realmente reformulou o processo de composição e cortou
com a estética linear.
111
O DJ e produtor Arthur Miró, ao entregar‐me um CD gravado com suas criações, cujo título é
“20 variações sobre os mesmos temas” explicou que aquelas produções se arranjavam dentro
de um quadro cronológico de aprendizagem de utilização técnica dos softwares de produção
musical acid e sound forge. Assim também se refere Frederico Coelho ao seu blog. Em 2005 ele
criou um blog que teve “breves posts e durou alguns meses”, por ele não ter se adaptado à
“linguagem do blog”. O blog atual, sobre o qual falamos na segunda sessão deste capítulo, é
visto por Fred como “mais institucionalizado” do que o anterior. Em outras palavras,
considera‐o mais “bem sucedido”, apesar de, assim mesmo, ele se defrontar com problemas
que dizem respeito à estética do blog. Como ele explica:

O problema do blog é que ele cria a ‘agonia da atualização’ e como escrevo textos e não
fico dando notinhas ‐ como outros bons blogs fazem muito bem ‐ cada vez mais demoro
em arrumar tempo para escrever algo. Então minha frequência de atualização diminuiu
bastante.

Se considerarmos que a frequência é um elemento importante para a estética do blog,


podemos dizer que Fred de alguma forma “agoniza” frente a um formato de composição.

Estes exemplos, ao mesmo tempo fecham esta parte da tese e servem como prelúdio à
segunda parte, na qual trato das habilidades estéticas específicas dos produtores. Por ora,
gostaria de finalizar este capítulo com duas ideias. A primeira se refere ao que dizem os
produtores nos exemplos citados acima. Para eles, a forma impõe um conteúdo e, nesse
sentido, discordaria de Théberge, como vimos no capítulo 2. A forma se impõe como conteúdo
ao acompanharmos, no caso de Fernando, a cena em que é possível criar em formato de loop,
ou mesmo no caso da “agonia da atualização” do formato do blog, um elemento fundamental
para a manutenção do conteúdo.

A segunda ideia se impõe como uma necessidade de retomar o início do capítulo para assim
poder “fechá‐lo” e permitir que ele se desdobre nos plug‐ins que formam a próxima parte
desta tese. Em um primeiro momento, havia imaginado compor esta tese em duas partes e
elas se organizariam por dois “momentos”, o primeiro, o “ser” e o segundo, o “fazer”. Mas aos
poucos foi perdendo o sentido determinar uma diferença entre a identidade e a ação, na
medida em que o ato de nomear é por si mesmo uma ação. Assim, apesar de manter a divisão
das partes, ela serve mais como uma modalidade retroalimentar, já que agem ao nomear e
nomeiam ao agir.

Ivana Bentes (2006) utiliza os conceitos de Gilbert Simondon e Deleuze para pensar sobre a
especificidade das “imagens digitais” pelas “novas tecnologias”. Para a autora, as imagens do
112
cinema clássico “parecem determinadas por leis de associação, contiguidade, semelhança,
oposição, por leis exteriores à própria imagem” (s/n). Por outro lado, “as imagens de síntese se
autoproduzem do interior, numa espécie de gênese maquínica que simula a gênese físico‐
biológica do ser vivo (...) inserindo‐se no que poderíamos chamar de um ‘teatro da
individuação’, uma autoprodução da imagem por metamorfoses, clonagens, anamorfoses,
etc.” (s/n). Para ela, o que Simondon denominou de ontogênese, “um pôr em obra do ser
vivo”, se assemelha à produção das imagens digitais, “as imagens vivas (capazes de se
reproduzirem ao infinito formando figuras complexas)” (s/n). Porque para Simondon, “o ser
vivo resolve problemas, não apenas se adaptando, ou seja modificando sua relação com o
meio (como uma máquina pode fazer), mas modificando‐se a si mesmo, inteiro, nos axiomas
dos problemas vitais” (Simondon, In Bentes, 2006: s/n).

Para Bentes, “uma nova topologia também decorre dessa autoprodução da imagem digital e
dos dispositivos. Imagens que constituem o próprio espaço no qual vamos habitar”. E cita
Deleuze, sentenciando: “as novas imagens já não têm exterioridade (extracampo), tampouco
interiorizam‐se num todo: têm, melhor dizendo, um direito e um avesso, reversíveis e não
passíveis de superposição, como um poder de se voltar sobre si mesmas. Elas são objetos de
uma perpétua reorganização, na qual uma nova imagem pode nascer de qualquer ponto da
imagem precedente” (Deleuze, In Bentes, 2006:s/n).

Há muita semelhança entre as imagens digitais que se autoproduzem e os personagens que


encontramos até aqui, que também se “autoproduzem”, e nos quais uma “nova atividade
pode nascer de qualquer ponto da atividade precedente”. Os produtores não “têm
exterioridade, tampouco interiorizam‐se num todo”, eles não se superpõem, parecem mais ter
“um direito e um avesso, reversíveis”. Ao contrário do cinema clássico, regido pelas “leis
exteriores à própria imagem”, as da representação a que se refere Strathern, os rapazes desta
tese se “autoproduzem por metamorfoses, clonagens, anamorfoses”.

113
PLUG‐INS

Os Produtores entre Agências


115
Plug‐in I.1: Fernando Salis

“Veni, Vidi, Verti” – uma relação audiovisual com a vida em três


atos

Fernando Salis é uma figura que me pareceu interessante nesta pesquisa, porque me foi
possível acompanhá‐lo em apresentações diferentes ao longo do tempo em que me dediquei
ao trabalho de campo. Como expus com mais detalhe na primeira parte, encontrei‐o pela
primeira vez em sua performance como VJ na festa de Miss Playmobil. Naquela ocasião (em
2007), Fernando, Timba e outros VJs iniciantes, juntamente com o professor Jodele Archer, se
apresentavam no encerramento do workshop para VJs, sediado no Dama de Ferro. Fernando,
logo depois, passou um ano em Madri, onde atuou como professor visitante na Universidade
Carlos III e VJ, e onde terminou sua temporada criando uma instalação audiovisual em um dos
prédios da universidade. Reencontrei Fernando, no final de 2008, na gravação do programa
“Tribos” para o canal Multishow. A partir dessa segunda apresentação, já depois de seu
retorno ao Rio, Fernando respondeu prontamente ao meu e‐mail. Começamos, então, a
marcar uma série de encontros em sua casa, antes e depois da sua apresentação “Veni, Vidi,
Verti”, realizada dentro do evento Performance Presente Futuro Vol. 2, com curadoria de
Daniela Labra, no Oi Futuro, no final de setembro de 2009.

A performance foi idealizada por Fernando e projetada para um espaço de galeria artística,
uma experiência que lhe parecia muito interessante pois lhe permitia experimentar “como
ocupar os espaços com as projeções”. Segundo ele, os ambientes de públicos de festivais de

116
música eletrônica restringem as atuações do VJ, porque este artista é uma das partes
constitutivas de um festival e usualmente projeta em uma tela que já está dada, como um dos
componentes da programação do clube. Com tais considerações, Fernando começou a ter
vontade “de dispor de um espaço onde poderia propor tudo”. Isso significava ele próprio criar
um ambiente. Teria que propor os espaços da projeção e a interação da música com essas
projeções.

Quando sugeri a Fernando a ideia de seguir passo a passo todo o desenvolvimento de seu
trabalho, percebi que houve uma coincidência de interesses porque ele considerou esse
trabalho mais “autoral” do que uma apresentação como VJ. Assim, passado o evento do “Veni,
Vidi, Verti, Fernando me disse ao telefone que estava trabalhando na edição das filmagens
realizadas durante o evento para ter uma amostra disponível do que havia sido a performance,
a qual poderia ser usada para divulgar seu trabalho e submetê‐lo a curadores. Quando na
semana seguinte fui até a sua casa, ele já havia completado a edição e me mostrou uma
filmagem de 6 minutos que, na sua opinião, traduzia melhor a ideia original do que deveria ter
sido o conteúdo daquela apresentação. De fato, a satisfação que demonstrava enquanto me
exibia a edição recente do evento realizado alguns meses antes contrastava fortemente com o
sentimento demonstrado imediatamente após a performance, quando me disse, assim que fui
cumprimentá‐lo, que “tudo havia saído errado”, apesar de deixar claro que “só ele tinha
percebido”. Naquele momento, ao término da apresentação, pareceu‐me que se tratava de
uma primeira reação emocional. Fiquei um tanto surpresa com aquele sentimento negativo,
pois, para os meus olhos de “espectadora”, tudo parecia ter saído muito bem.

De qualquer modo, demorei alguns dias para perceber que aquele pequeno vídeo guardava ele
próprio uma autonomia, que era possível analisá‐lo e, ao mesmo tempo, relacioná‐lo a outros
aspectos da performance e da vida de Fernando; o vídeo dava acesso em outra escala à própria
performance. Ao ser editada pós‐fato e recortada no espaço, aquela performance ganhava um
encontro com o desejo original de Fernando. Assim que cheguei a seu apartamento, ele me
disse: “Quero te mostrar o vídeo. Vendo o vídeo, tenho a sensação de que [a performance]
aconteceu da maneira como eu gostaria que tivesse acontecido”.

Pós‐fato: Um exercício de (re)contextualização

A análise específica da agência do vídeo deve ser realizada em seus vários desdobramentos.
Por isso, torna‐se necessário contextualizar o enquadramento da performance para chegarmos
à sua edição. Fernando havia recebido um convite de Daniela Labra para participar da segunda

117
edição do evento Performance Presente e Futuro Vol. 1. A primeira versão daquele evento
ocorrera em agosto de 2008 e constara de workshops e palestras além de performances e
instalações; dela resultou um livro que está disponível para download no site da curadora
(www.artesquema.com). O segundo evento Performance Presente Futuro Vol. II aconteceu em
setembro de 2009 e foi para essa edição que Fernando foi chamado. Os três dias de
programação seguiram o modelo do primeiro “volume”, com palestras, workshops e
performances, e Fernando foi convidado para fechar o evento, com sua atuação audiovisual
“Veni, Vidi, Verti”.

No site, Daniela oferece um “Breve Histórico” do que qualifica como “arte da performance”:

“se pode situar o aparecimento da arte da performance, como linguagem artística interdisciplinar entre
o teatro e as artes plásticas, já no Futurismo e no Dadaísmo. Nos anos 1960 até meados da década de
1970, essa linguagem, que lida com ações ao vivo, explode em intensa produção e se institucionaliza,
denominando‐se então performance, happening, body‐art ou arte corporal. Nos anos 1980 e 1990, a
performance se manteve sempre presente, embora sofrendo certa dramatização inclusive no meio das
artes visuais. Nos últimos 10 anos, esta prática artística vive uma retomada, tornando‐se, atualmente,
uma das mais pesquisadas por artistas jovens que procuram formas de abordar o mundo real e testar
os próprios limites entre a arte e a vida. / Por envolver elementos orgânicos em seu processo – o corpo
do artista; o tempo da ação; as participações intelectuais, emocionais e físicas do público, entre outros –
a arte da performance modifica o conceito tradicional das artes visuais e redimensiona outras práticas,
como o teatro e a dança. A pesquisa em performance nos últimos 20 anos tem se aproximado de outras
áreas de interesse como a bioengenharia, a informática, a medicina, as tecnologias da comunicação, o
videomaking, a fotografia, a composição sonora, o ativismo, entre outros. Apoiando‐se em recursos
destas e de outras áreas, artistas performáticos vêm testando os limites do próprio corpo e também das
narrativas temporais de suas ações, desvelando discursos quase sempre políticos, filosóficos, científicos
(www.artesquema.com)”.

É significativo que as características apresentadas acima por Daniela para situar a


institucionalização da arte da performance coincidem com o surgimento do que Hal Foster, em
“O artista como etnógrafo” (1995), denomina a “virada etnográfica” na arte contemporânea.
Foster delimita o que em linhas gerais caracterizaria a trajetória de uma série de pesquisas nas
artes que teriam confluência para designar essa virada etnográfica a partir de meados dos
anos 50. Ele remete a um deslocamento da preocupação com “os elementos objetivos da obra
de arte para as condições espaciais da percepção", e, mais adiante, "para as bases corporais
desta percepção” (Foster, 1995:305). O minimalismo dos anos 60, a arte conceitual,
performance, body‐art e site‐specific nos anos 70 seriam exemplos desta preocupação. Dentro
desse contexto, as críticas à institucionalização da arte, principalmente as relativas aos espaços
físicos, como a galeria e o museu, cedem lugar ao desejo de “ampliar a rede para outras
práticas discursivas, instituições, subjetividades e comunidades” (ibidem:305). Nesse sentido, o
observador não é mais delimitado fenomenologicamente, mas se aloca “como um sujeito
118
social definido a partir de diversas linguagens, e marcado por várias diferenças” (ibidem:305),
(como, por exemplo, sexuais e étnicas). Segundo Foster, nesse movimento, a arte teria se
expandido para o campo da cultura, em correlação com os novos movimentos sociais.
(ibidem:305‐306). Essa “virada etnográfica”, na opinião de Schneider e Wright (2007), implica,
em última instância, uma ampliação do termo Etnografia, assim como o tratamento nas Artes
de temas caros à Antropologia.

O próprio Fernando afirma que o campo relativamente novo de Estudos da Performance lhe
agradou em razão do seu caráter “interdisciplinar” e fortemente ancorado em teóricos
antropólogos:

O campo da performance me interessava mais do que o enquadramento institucional do


teatro. Primeiro, há o fato de ser a performance um tipo de arte mais radical em termos
de enquadramento; segundo, porque a performance lida com o dado do acaso ‐ que para
mim é um problema filosófico de primeira ordem. E, terceiro, porque a performance é
um conceito que se coloca numa interseção de todos os campos de conhecimento que
me interessam dentro das ciências sociais. A performance é pensada na Antropologia, na
Sociologia, na Psicologia, na Psicanálise, na Filosofia, na Comunicação, nas Artes, nas
Artes Cênicas, mas também na religião e no esporte. Assim também a performance era o
meu conceito (..) Os estudos de performance nasceram do encontro de Richard
Schechner com Victor Turner; e Turner tem uma influência de Geertz. Bom, aí você já
sabe...

Vê‐se performatizado na fala de Fernando (que se explicita em seu diálogo comigo como
antropóloga, quando cita referência a teóricos que eu conheço por ser antropóloga: “bom, aí
você já sabe”) o fato de antropólogos e críticos de arte estarem trabalhando os mesmos textos
a partir de diferentes perspectivas, como indicam Marcus e Myers na Introdução de The Traffic
between art and culture, de 1995. Além disso, também verificamos que Fernando considera o
“problema filosófico de primeira ordem” como sendo “o dado do acaso”, exatamente um dos
aspectos centrais propostos pelo método etnográfico.107 E, ainda, a ideia de que a análise da
performance demanda uma abordagem transdisciplinar.

Por outro lado, a apresentação de Daniela na janela acima elucida que, assim como a arte
sonora e a videoarte (cujas características já foram relativamente apresentadas no primeiro
capítulo), a arte da performance se apresenta como mais uma possibilidade de expressão, a

107
O tema do “acaso” como parte do trabalho de campo pode ser encontrado ao longo da história da antropologia.
Poderíamos citar como exemplos emblemáticos, entre muitos outros, Malinowski (1935), nos apêndices de Coral
Gardens, Bateson, em Naven (1958), e Evans‐Pritchard, nos Azande (2005).
119
partir do diálogo com “novas mídias” e dentro de um contexto de “dessacralização da arte a
partir de sua associação com a vida”. Nesse sentido, Latour argumenta que o projeto da arte
do século XX tem sido a destruição da própria arte‐instituição: “tudo e todos, qualquer detalhe
do que a arte é, do que é um ícone, um ídolo, uma vista, um olhar, foram jogados na panela
para serem cozinhados e queimados ao longo do século passado, no que foi chamado de arte
modernista. Um Juízo Final foi promulgado: todas as nossas maneiras de produzir
representação de qualquer tipo foram consideradas deficientes” (Latour, 2008:122). Talvez o
que esteja em jogo nas coincidências de atenção da Arte Contemporânea e da Antropologia
seja, por um lado, o ter se deixado abalar pela “crise da representação”, e, por outro lado, o
ter percebido que as tecnologias estão mais “íntimas”, como verificado por Dona Haraway
(2000):

a microeletrônica está no centro do processo que faz a tradução do trabalho em termos


de robótica e de processamento de texto, do sexo em termos de engenharia e de
tecnologias reprodutivas e da mente em termos de inteligência artificial e de
procedimentos de decisão. As novas biotecnologias têm a ver com mais coisas do que
simplesmente com reprodução humana. Como uma poderosa ciência da engenharia para
redesenhar materiais e processos, a biologia tem implicações revolucionárias para a
indústria, talvez mais óbvias hoje em áreas como fermentação, agricultura e energia. As
ciências da comunicação e a biologia caracterizam‐se como construções de objetos
tecno‐naturais de conhecimento, nas quais a diferença entre máquina e organismo
torna‐se totalmente borrada; a mente, o corpo e o instrumento mantêm, entre si, uma
relação de grande intimidade (Haraway, 2000: 73).

Essa intimidade também se manifesta como uma preocupação artística, e por isso a atenção
crescente com a “informática, a medicina, as tecnologias da comunicação, o videomaking, a
fotografia, a composição sonora, o ativismo, entre outros”, como diz Labra, na janela citada.

No caso específico de Fernando, ele se refere nos seguintes termos à criação audiovisual em
performance: “é um momento de mostrar algo”. Isso, para ele, se diagnostica como “a cultura
da representação: a gente prepara e mostra. Mas performance não é só isso, é uma ação
criativa; um estado de criação que se dá enquanto se faz”. Por outro lado, se a performance
depende do inesperado e do improviso, esse fator não invalida a preparação prévia. Assim,
Fernando evoca a ideia do teatro: “você tem que levar algo que está pronto, mas o que
acontece (...) é o dado do acaso”. Nesse ponto, ele reforça o elemento ritual da participação
como oposto ao da representação. A elaboração conjunta, “um estado de criação que se dá

120
enquanto se faz”, funciona como uma crítica à representação que performatiza a separação
entre criador e espectador, uma entre várias maneiras de “destruir” essa separação, como
afirma Latour acima. No artigo que integra o recém‐editado catálogo Performance Presente
Futuro Vol. II (2010), Fernando explica o que significa para ele o termo “Performance
audiovisual”:

Propomos aqui chamarmos simplesmente de performance audiovisual a ação artística


que tenha na criação em tempo real de imagens e sons digitais o fundamento da
experiência estética. Assim, tanto a videoperformance, como o vjing ou o cinema ao vivo
teriam o solo comum da exploração desse novo universo tecnológico (...) o interessante
aqui é menos a fetichização da tecnologia do que a reafirmação do dado da performance
hoje: todos esses equipamentos, quando incorporados em acontecimentos que trazem a
marca do estado de improvisação jazzística, do movimento corporal, da interatividade,
podem expandir a experiência reivindicada pela arte da performance: o estado liminar
entre norma e a alteridade, a abertura para o acaso, a recontextualização das linguagens,
o desafio aos limites entre vida e representação (Salis,2009:42;43).

Fernando contou que, quando foi estudar as características do espaço do Oi Futuro (localizado
na Rua 2 de Dezembro, próximo ao Largo do Machado) vários meses antes de sua
apresentação, com o objetivo de pensar a maneira de estruturar seu espetáculo, ele teve um
desejo inicial de começar a performance na rua, em frente ao Largo do Machado, e depois
direcionar o público até a sala do quarto andar que já estaria ocupada pelas instalações. O Oi
Futuro, de oito andares, antigo Museu do Telefone, recuperado e restaurado como o Centro
Cultural Telemar em 2005, é relativamente pequeno. A partir do desejo da diretoria do
Instituto de relacionar arte e tecnologia, e promover a “interatividade”, o desejo de
“ocupação” de todo o prédio não é algo incomum para produções do Centro, como veremos
em narrativas posteriores nesta Segunda Parte.

Fernando também disse que tinha se interessado em usar as três colunas já existentes na
estrutura da sala. A sua primeira inspiração foi pensá‐las como “antenas condutoras de
informação entre um lado do cérebro e outro”. Assim, em vez de encarar as colunas como um
incômodo, optou por trabalhá‐las positivamente em sua performance, ou seja, utilizar os
constrangimentos do espaço a seu favor. Apesar de Fernando não ter desenvolvido no seu
formato final nenhuma dessas ideias iniciais, creio ser relevante mencioná‐las como parte de
um processo que vai ganhando forma ao longo do tempo.

121
Estas são algumas imagens da maquete final que Fernando fez para a curadora e a produtora terem uma noção da
produção necessária à realização de sua instalação. Naquele momento, Fernando já havia fechado a ideia em um
conceito e as duas foram até a sua casa conversar com ele. Na maquete vemos o formato retangular da sala, a
disposição das telas, enquanto os clipes mostram o eixo dos projetores. Ele utilizaria 9 projetores, diferencialmente
dispostos no ambiente.

Uma etnografia entre o acontecimento e o desejo

Havia um clima concentrado na sala do quarto andar do Oi Futuro quando lá cheguei, o que
talvez explique o fato de ninguém ter prestado muita atenção à minha presença numa sala em
processo de arrumação, mesmo com um guarda ao lado da porta impedindo o ingresso do
público. Fernando tentava dar ordens para que o ajudassem a montar o cenário, e logo em
seguida desistia; acabava ele mesmo fazendo e refazendo a montagem. Daniela me confessou
um pouco preocupada que a performance de Fernando era mais complexa e exigia uma
produção superior à dos outros artistas do evento que ela realizava como curadora. Por sua
vez, apesar de elogiar muito as organizadoras do evento, Fernando concordou com Daniela,
quando nos encontramos um tempo depois, dizendo que a estrutura do evento não
comportava a produção do seu projeto. Esse teria sido um dos problemas enfrentados por ele
nessa apresentação específica. Quando Fernando alude aos problemas vivenciados naquele
dia, não há um tom dramático que expresse um sentimento de fracasso, ou de negação do
acontecimento em sua totalidade. Há mais uma sensação de que a performance não
122
preencheu todas as suas expectativas. Ele esclarece que o “retorno do público” foi positivo,
que ele gostou muito da experiência e que estava ansioso para repeti‐la.

Todos estavam também preocupados por outro motivo: a produção do Centro Cultural
pressionava a equipe de Fernando para a montagem ser feita a tempo, porque a sala
destinada à performance seria usada para algum outro evento às nove da noite em ponto, e
tudo teria que terminar na hora previamente confirmada. Fernando conta que fez tudo
sozinho, apesar de ter agrupado pessoas para montar a produção — a equipe do evento e seus
alunos. Naquele momento prévio, como todos ali, em torno de umas sete pessoas, tentei me
fazer útil, passando ou segurando um par de tesouras ou fita crepe, enquanto via Fernando
alçar as suas diferentes telas em espaços milimetricamente demarcados (porque estas se
associavam com o direcionamento dos projetores). Em cima de uma escada alta, ele abria o
voile, recortado em retângulos imensos que eram pendurados no teto e chegavam ao chão.
Em seguida, uma moça da produção, que parecia fazer as coisas de acordo com o gosto de
Fernando, cortava o tecido não muito longe do chão e costurava uma bainha. As folhas de
poliéster, mais frágeis porque manchavam e amassavam com facilidade, exigiam um cuidado
maior para serem cortadas e penduradas em retângulos menores.

À minha pergunta sobre a razão da escolha desse material, Fernando disse que foi um dia ao
Oi Futuro estudar a sala para a performance e lá havia uma instalação do artista visual inglês
Garry Hume. Fernando levara consigo várias amostras de tecido, colocando‐as na frente dos
projetores ali presentes, até que experimentou uma pasta de plástico e achou o efeito
interessante. Acabou descobrindo telas de poliéster fabricadas para empresas e delas se
utilizou; assim, comprou os rolos sem saber exatamente como seria o efeito da imagem
projetada naquela tela. A pesquisa sobre os materiais baseou‐se na importância deles para a
elaboração da performance, a qual, segundo Fernando, consistia primariamente “nos
desdobramentos da projeção da imagem projetada em diferentes superfícies”. O seu
argumento é de que, como a matéria reage à projeção, para obter seu objetivo ele pretendia
trabalhar a “reflexão”, a “translucidez” e a “transparência”. Os espelhos foram dispostos nas
duas extremidades da sala e teriam como objetivo trabalhar a reflexão; o poliéster, a
translucidez, a transparência e o reflexo; o voile, a translucidez; a própria parede e o chão
habilitavam outro tipo de reflexão por serem opacos. Nesse aspecto, poderíamos afirmar,
evocando Gregory Bateson, que o “significado do código escolhido”, implícito em estilo,
materiais selecionados, composição, ritmo e habilidade (Bateson, 2000), era central para
acompanhar o resultado da performance de Fernando, porque a qualidade do material afetava

123
a qualidade da imagem. Era a partir da combinação da imagem com as diferentes “telas” que
se realizaria o “efeito” desejado por Fernando. Para Gregory Bateson, o ferro usado nos leões
de Trafalgar Square é mais importante do que o animal escolhido (cf. Bateson,2000:130), já
que poderiam ser “águias” ou “buldogues” e ainda assim carregariam mensagens semelhantes
sobre as premissas culturais da Inglaterra imperial do século 19. Por outro lado, se fossem
feitas de madeira em vez de ferro, alterariam por completo a mensagem dessas esculturas
(ibidem). As telas utilizadas por Fernando em sua performance teriam uma certa prevalência
sobre o conteúdo das imagens; por isso o “significado do código” teria uma prevalência sobre
o “significado da mensagem codificada” (ibidem).

Apesar desses momentos iniciais de tensão pelo pouco tempo disponível para montar o
cenário, a sala finalmente parecia ganhar a sua ambientação como previamente desejada,
porque Fernando sinalizava que estava satisfeito. Quando tudo estava quase pronto, Fernando
solicitou que fossem espalhadas almofadas no chão. Em seguida, pediu que abrissem as portas
ao público. A disposição das almofadas no chão, encostadas nas paredes ao redor das pilastras
e distribuídas no meio da sala, convidou o público a sentar‐se de maneira despojada ao redor
do espaço.108 Enquanto isso, Fernando se direcionou para o espelho na extrema direita da sala,
do ponto de vista de quem entra, com um pequeno projetor acoplado a um Ipod. Alguns
minutos antes de direcionar‐se para a sua primeira posição, enquanto as luzes se apagavam,
Fernando me entregou uma câmera digital comum e me surpreendeu com a “tarefa” de ter
que fotografar a sua apresentação.

A tarefa me deixou um pouco constrangida por não saber exatamente o que Fernando gostaria
que eu captasse. Não sabia se aquela câmera funcionaria para uma espécie de suvenir, já que
havia dois cameramen profissionais filmando todo o evento ‐ Felipe Ribeiro, ex‐aluno de
Fernando e co‐diretor de um filme, e o irmão do DJ e produtor Maga‐Bo que participava com a
parte sonora da performance ‐, além da equipe de produção. Tive receio de que ele esperasse
algo “artístico” da minha parte, o que me pareceu uma tarefa “impossível” de ser realizada.
Por outro lado, para “agradar Fernando”, acabei me movimentando muito no espaço ao longo
da performance, tentando dar conta da variedade de imagens e de ângulos e formatos que
apareciam através das telas. Em diversos momentos, sentia que estava atrapalhando a
“organização”, passando demais na “frente das pessoas”. Esse sentimento um tanto manqué
me acompanhou durante quase toda a sua apresentação. Quase no final, vi que Timba estava

108
Também teriam que ser levadas em consideração a disposição do espaço na apresentação anterior e a
quantidade de pessoas que estaria assistindo a eventos o dia todo.
124
presente na plateia e fui me sentar ao seu lado, pedindo para ele assumir a tarefa de tirar as
fotos. Foi afinal surpreendente ver a minha presença na edição posterior feita por Fernando,
que, segundo ele, foram privilegiadas exatamente porque eu acabei sendo uma das poucas
pessoas que se mostraram “em movimento” durante a apresentação. A minha sensação de
desconforto por estar atrapalhando o “cenário” teve eco entre outras pessoas da plateia,
segundo me contou Fernando posteriormente. Para ele, essa sensação de o público não se
sentir “livre” para se movimentar foi o que Fernando considerou como o ponto que não deu
certo na sua performance.

Jean Rouch chama a atenção para a maneira de usar a câmera de filmar em suas experiências
de campo etnográfico: ela lhe confere agenciamento para incorporar um lugar participativo na
pesquisa. No caso de filmar atos de possessão, a câmera o traz para dentro do evento, por ele
ter um papel de estar “possuído” pela câmera no ato de filmar a possessão (Rouch, 2003).
Neste caso em particular, a câmera não me fez subjetivamente sentir integrada ao evento.
Quem lhe conferiu sentido foi Fernando em sua própria experiência de recriar a performance,
ao fabricar o seu vídeo posteriormente. Nesse aspecto, é possível afirmar que, de maneira
contingente e independente da qualidade artística das fotografias e do meu sentimento de
estar agindo de forma automática e distanciada, naquele momento eu acabei desenvolvendo
um papel ao fazer algumas “imagens do evento”.

O uso da câmera em meio ao evento me deixou desorientada, o que me impediu de


acompanhar o significado preciso da encenação que deu início à performance, quando
Fernando, em frente ao espelho, começou a projetar imagens nele, depois no teto, para em
seguida lançar imagens no corpo da atriz, a qual, por sua vez, pegou um pedaço de tela através
do qual também se refletiam novas imagens, e jogava perfumes no público, envolvendo‐o na
ambientação. Juntamente com a música de batida hipnótica do DJ Maga Bo e das imagens
também hipnóticas de Fernando criadas no computador, a fragrância fechava o ambiente com
mais um elemento sensorial. Durante a nossa conversa, Fernando explicou o significado do
que ele chamou de “pequena dramaturgia” inicial. Fernando e Maria começariam
posicionados de frente para um espelho, em cada extremidade da sala. Ele começaria
projetando nele próprio imagens de símbolos (“a primeira dimensão dos símbolos”), depois no
espelho e os símbolos passeariam pelo espaço até chegar ao corpo de Maria. Ela começaria em
seguida a caminhar pela sala com o pedaço retangular de voile que levava em suas mãos, de
modo a refletir as imagens e a criar desenhos próprios com essa tela na mão. A partir daquele

125
momento as imagens ganhariam o espaço, ou seja, as diversas telas espalhadas pela sala. Para
Fernando, aquele primeiro ato significava

sair do simbólico e reflexivo, passar pela projeção da imagem no corpo e finalmente pela
imagem projetada no espaço; usar o espelho para atrair as pessoas para essa mudança
de perspectiva, convidar as pessoas a experimentar, passear pelo espaço, e ver as
composições das imagens através de ângulos diferentes.

A partir do momento em que Fernando deixasse as imagens serem projetadas


automaticamente, Fernando e Maria tinham ações pensadas. A ideia era que, além do efeito
olfativo propiciado pelos perfumes (confeccionados por Maria) e do tátil, com a
experimentação das diferentes telas, ele pretendia criar um “estranhamento" nas pessoas,
provocando‐as a verem imagens através dos espelhos. Em seguida, Maria pegaria a câmera e
começaria a gravar as pessoas e a convidá‐las para brincar com suas imagens. Iriam também
passar a câmera e o projetor para as pessoas do público para que elas próprias produzissem
imagens, e verem, em seguida, em tempo real, suas novas imagens projetadas nas telas. O
objetivo de Fernando era criar um ambiente imersivo e participativo, em que todos se
sentissem convidados a fazer parte, sendo ao mesmo tempo criadores daquela experiência.

Esse desejo apresentado pós‐fato por Fernando contrastava com os acontecimentos do dia,
que inviabilizaram o desenvolvimento da sua concepção descrita acima. Fernando lamenta em
primeiro lugar não ter tido tempo de ensaiar com Maria. Em segundo lugar, aconteceu algo
que Fernando considerou como o “golpe final”: assim que ele terminou a abertura com a
“pequena dramaturgia” descrita acima e foi sentar‐se na mesa em frente ao computador
(situada ao fundo da sala, ao lado de Maga Bo) para iniciar a exibição das imagens, ele se deu
conta de que os projetores não estavam alinhados com os canais de saída da mesa. Percebeu
naquele momento que não houve comunicação entre as equipes e era tarde demais para,
naquele ponto da performance, trocar a configuração. Fernando havia se organizado para
sequenciar imagens específicas para cada projetor, deixando os canais em sincronia, o que lhe
daria a liberdade para sair da mesa e interagir com o público junto com Maria; mas essa outra
configuração obrigou‐o a improvisar e ficar na mesa o tempo todo, impedindo a sua
interatividade direta com o público. Por sua vez, Maria também teve que improvisar como
pôde dentro do quadro do contexto descrito.

O público apresentou uma atitude quase absolutamente contemplativa. Muitos, reclinados


contra a parede, não se mexiam enquanto absorviam os flashes de formas, cores, luzes e sons.
Um casal recostado ao lado do espelho — ela com a cabeça apoiada no ombro do
126
companheiro — parecia sonhar acordado. Como estavam ao lado do espelho, também eram
usados como tela, os seus rostos servindo para refletir as diferentes granulações cromáticas. A
imobilidade deles acabava gerando uma participação enquanto tela. Outros, mais eretos,
olhavam com atenção, tentando acompanhar o jorro de diferentes composições nas diversas
telas espalhadas pelo ambiente. As imagens, naquele momento, se mostravam para mim mais
como forma do que como conteúdo, porque o efeito delas nas diferentes telas ganhava um
estatuto de um desenho temporário. Foi somente a partir do vídeo que Fernando fez
posteriormente que pude reviver e apreender o conteúdo das imagens, quando, por exemplo,
Fernando projetou uma cena de metrô em andamento, e Maria lançou o seu pedaço de voile
recortado e “pegou” o transporte público.

A atitude contemplativa do público levou‐nos a imaginar as pessoas que se movimentaram por


um motivo ou outro como parte do elenco integrante da performance. Em determinado
momento, três pessoas se levantaram, caminharam para um canto perto do retângulo de
Fernando e começaram a dançar. Vários olhares do público se direcionaram para eles, pois
havia algo de extravagante naquele ato, que não condizia com o comportamento “natural” dos
espectadores presentes. Os três adotaram um “ar” um tanto irreverente quando perceberam
os olhares a eles dirigidos, ao dançarem de forma que no contexto parecia desafiadora. Fiquei
cogitando que talvez houvesse algo no espaço em que se dava aquela apresentação que não
convidava o público ao movimento dos corpos. E se aquela apresentação tivesse ocorrido em
um clube noturno? E se não houvesse almofadas? Por que três pessoas dançando parecia um
comportamento tão performático a ponto de serem confundidas com integrantes do
espetáculo? Em outro momento, um menino de uns treze ou quatorze anos, sentado de
pernas cruzadas, começou a girar no chão. O seu movimento giratório parecia uma resposta
apropriada para um determinado instante em que as imagens de Fernando ganhavam um
ritmo também circular. Uma forma de ação anticontemplativa? Uma resposta corporal antes
que mental? Os dançarinos e o menino acabaram provocando um efeito icônico.

Após o espetáculo, muitas pessoas comentaram com Fernando que tiveram vontade de andar
pelo ambiente; outras, que queriam dançar, mas não se sentiram à vontade para passear pelo
espaço. Para Fernando,

o que deveria ter acontecido era que as pessoas se sentissem confortáveis para explorar
o espaço e dar uma volta, se quisessem. Muitos acharam que o menino rodando e os
poucos espectadores dançando eram parte da performance. A estrutura fora armada

127
para que se você quisesse ficar sentado ficasse, mas se quisesse levantar e caminhar, se
quisesse dançar, se quisesse explorar...

Fernando explicou o que planejara: por um lado, não era para ser “um caos, com as pessoas
andando freneticamente pelo ambiente”, ou virar uma “pista de dança (mas se acontecesse
não teria o menor problema)”. O que o incomodou foi o constrangimento que as pessoas
demonstraram para se movimentarem. Isso, para ele, provocou a sensação de “não ter
funcionado”.

É importante pensar no desejo de interatividade de Fernando quando ele diz que a intenção
era convidar o público para uma colaboração. Não se tratava de criar uma pista de dança. Mas
se tivesse realmente originado uma “pista de dança”, ela não seria uma real pista de dança
porque as pessoas não teriam estado em uma festa “de verdade”. Se tivesse ocorrido uma
pista de dança dentro de uma sala no museu, ela seria valorizada pelo seu efeito de “modelo
reduzido” de uma festa. Se, como diz Lévi‐Strauss (1997), a obra de arte emociona no processo
de miniaturização, o “efeito” positivo teria sido o de fazer perceber os elementos dessa
redução, o que significava produzir uma obra de arte ao criar uma festa “reduzida”. Por outro
lado, Fernando revela algo que podemos considerar como a interação “ideal” em sua
apresentação, que tem mais a ver com respostas individuais ao ambiente por ele criado. O
objetivo era gerar respostas individuais autorais. O seu ideal de interação, segundo diz, é de
que alguns circulassem, outros dançassem, outros procurassem mexer nas telas ou passar por
dentro dos corredores de imagem, e até mesmo se posicionar atrás do poliéster. Ele lamenta
que as pessoas não tivessem reparado numa estrutura cônica, pequena e mais afastada, onde
a imagem escorria para baixo. Com essa interação, ele teria compartilhado a percepção da
linguagem audiovisual que têm aqueles que editam, montam, filmam, “em outras palavras, a
tridimensionalidade da imagem”. Além de uma tentativa de interação íntima com a
“linguagem audiovisual”, haveria o uso autoral individual que cada um somaria à totalidade da
experiência de cada participante, e não um efeito de reação primeiramente coletivo, como em
muitos casos se dá em shows de rock (Seeger, 1977), ou em festas de música eletrônica (Bacal,
2003). Isso fica muito claro com o expresso desejo de Fernando de ocupar uma galeria em
relação a ser VJ. Como VJ, Fernando se sente como mais "um componente do ambiente
disposto para a festa"; como artista, ele cria um ambiente para que nele as pessoas se
relacionem individualmente e de maneira autoral, interagindo e experimentando imagens.

Minha reflexão sobre a influência do ambiente para a análise daquela performance, no sentido
de pensar o museu/galeria como eles próprios sendo agentes e envolvidos no elemento

128
provocador de maior contemplação gerada entre o público, foi somente em parte aprovada
por Fernando. Ele concordou que havia muitos elementos presentes que levavam a uma
“reação de contemplação”, como a “frieza do lugar”, a “tecnologia”, a disposição das
almofadas e as muitas “informações” presentes pela grande quantidade de imagens. Mas ele
disse que não houve chance de ele e Maria se “apropriarem do lugar”. E essa seria sua
principal atenção na próxima vez que realizar um projeto. Segundo Fernando, seria possível ter
feito daquele espaço “uma caixa de brinquedo” e, com isso, ter “contagiado as pessoas”.

Se com Maria não houve tempo para ensaiar e alcançar o objetivo de interação naquela
apresentação, a relação com o realizador da trilha, o produtor e DJ norte‐americano Maga Bo,
mostrou‐se mais azeitada. Os dois são amigos e trabalham juntos há dez anos. “Bo” já fez
inclusive as trilhas sonoras de documentários realizados por Fernando, que assim explica o
“conceito” de Maga Bo: misturar ritmos do mundo inteiro, focado “nas raízes da música
percussiva popular, como o hip‐hop, que tensionam o percussivo com o eletrônico”. Fernando
assegura que Bo seria representante do que se tem chamado de Global Ghetto Tech (e
esclarece a designação como Música Tecnológica de Gueto, como o funk e o hip‐hop), “mas ao
mesmo tempo com muita poesia”. Frisa que Maga Bo tem se relacionado com expressões que
articulam “o artístico, o cultural e o político”, e cita os seus principais parceiros no Brasil: o
rapper carioca BNegão, Marcelo Yuka, além de dizer que ele estaria naquele momento
gravando com MV Bill.109

Ao buscar MAGA BO no Google, vejo que ele tem um site de nome Kalleidosonic. Nesse site podemos
acessar sua biografia em inglês e português, o seu blog, pequenos documentários (que em sua maioria
são entrevistas com diversos produtores sonoros de diferentes lugares do mundo), suas mixagens
musicais disponíveis para ouvir ao vivo, e sua discografia que abre a página da loja do I‐tunes e onde se
pode baixar cada faixa por 0,99 dólares. Na página de web Kalleidosonic, também se acessam os
releases, e, a cada clique feito, há um display intercambiante de belas fotografias tiradas dos lugares
visitados por ele. Além disso, há links para Maga Bo no MY SPACE, no FLIckr e no Youtube.
(http://comandodigital.com/kolleidosonic/).

Fernando diz que Maga BO tem muitos sons incidentais gravados em diversas cidades do
mundo por onde Fernando também filmou, com sonoridades “de rua, de feira, de mesquitas,
de animais”. Para a apresentação, ele tinha um canal com sons e outro com músicas, cujas
bases são gravadas “com músicos mesmo do mundo inteiro”. Quando Fernando frisa que as
109
BNegão é ex‐integrante da banda Planet Hemp e agora segue carreira solo; Marcelo Yuka é ex‐baterista da
banda O Rappa e atualmente líder da banda e ONG de mesmo nome F.U.R.T.O.; e MV Bill tem articulado sua
carreira artística com uma forte mobilização política, denominando‐se em diversos momentos, “mais guerrilheiro
do que músico”. Ele também lidera a ONG sediada na Comunidade Cidade de Deus, na Zona Oeste do Rio, CUFA
(Central Única de Favelas). Os três são representantes, pelo menos em seu início, do movimento hip‐hop no Rio de
Janeiro.
129
bases do Bo são gravadas com músicos mesmo, ele se refere à autenticidade do som de um
instrumento em relação ao som de “máquinas digitais” (algo que aprofundarei com mais
cuidado adiante). Para o “Vini, Vidi, Verti”, fizeram um roteiro que seguia o seguinte sistema,
com “algumas correlações entre imagens e música”:

Fizemos um roteiro. Por exemplo, eu tinha uma sequência gravada no carnaval de


Veneza. Concomitantemente ele produziu uma mixagem no mesmo momento, de
gravações feitas por ele de blocos de carnaval aqui do Rio. Teve outro momento em que
eu apresentava uma sequência de imagens de bicicletas em Amsterdam, e Bo fez de sons
de bicicleta em Barcelona. Em outro momento em que eu tinha imagens de protestos
políticos em Madri e a repressão da polícia...

Essa relação específica entre sons e imagens ganha uma notável gama de possibilidades de
pensamento sobre o caráter intercambiante dos produtores: Fernando disse que poderiam ter
criado um outro dispositivo de relação entre imagem e música, com um canal de saída de
áudio dos vídeos feitos por Fernando, e que entrariam pelo mixer de Bo. Assim, Maga BO
poderia usar sons de Fernando. Por outro lado, Bo lhe disponibilizou uma série de imagens que
ele gravou pelo mundo, dando a Fernando o direito usá‐las em suas projeções, mas Fernando
afirma que acabou não as projetando porque já dispunha de uma grande quantidade dele
próprio.

Em relação a Maga Bo e à performance, Fernando fala que os dois já têm uma parceria de
muitos anos com larga experiência dentro do formato da apresentação. Têm muita coisa em
comum: ambos viajaram por muitos lugares diferentes no mundo, e ressalta “a vivência
subjetiva nesses lugares” através da criação de imagens e sons. Diz ainda que:

também tem a ver com vim, vi, transformei: esse dito do Cesar, vim, vi, venci – a torção
dessa máxima imperialista para uma máxima artística, isso tem a ver com a nossa
experiência de vida, porque já viajamos muito e fazemos isso: ir e transformar. Bem no
final da apresentação, todos os verbos que uso são traduções para verter: criar, traduzir,
transbordar, transformar, brotar, todos são sinônimos.

No livro Site‐Specificity: the ethnographic turn (2000), James Meyer integra a publicação com
um artigo intitulado “Figuras de viagem na arte contemporânea”. Ele estabelece uma distinção
entre dois tipos de nomadismo centrado no tema da viagem, a seu ver relacionados, entre
outros fatores, ao crescimento de redes digitais e tecnologias de comunicação. O primeiro
nomadismo, por ele identificado como lírico, se caracteriza por “tematizar a mobilidade como
uma interação poética e randômica com objetos e espaços do cotidiano. Ao reconciliar a
130
estratégia surrealista/dadaísta do encontro arbitrário com um sentimento contemporâneo de
deriva, este nomadismo transfigura os contatos mais efêmeros e incidentais para a
contemplação estética” (Meyer,2000:11). Mas também considera que nas imagens
representadas não se foge aos estereótipos, a mediações criadas pelo produtor de imagens
tanto as de sua própria cultura com as da cultura do outro (ibidem:22). O interesse de Meyer
nesse artigo é indagar se o “nomadismo lírico” seria fundamentalmente crítico ou se reforçaria
a imagem egocêntrica do turista como consumidor, processos que estão na base do
capitalismo. Seria subversão ou convenção, quando aparecem em sincronia as imagens do
carnaval de Veneza com os sons do carnaval carioca? Mera justaposição estética?

Talvez tecer um comentário sobre o conteúdo das imagens na performance de Fernando ajude
a pensar sobre esta questão. Há diversos takes que refletem sobre o espaço urbano e nesse
aspecto são ressaltadas cenas de trânsito em avenidas e ruas, assim como no metrô ou em
escadas rolantes. Estas imagens não sublinham as particularidades, mas a similitude desses
espaços. Há a brincadeira de impor um ritmo às imagens: fazer a escada rolante parecer que
está descendo quando sabemos que ela jamais muda o movimento, ou gerar sobreposições
entre imagens, ou mesmo fazer com elas desenhos circulares; aqui se desvenda a estetização
dos espaços territorializados. Esse processo também está presente nas imagens da polícia
armada (que Fernando diz ter feito em Madri durante uma manifestação política) provocando
uma sensação de serem “soldadinhos de chumbo” que dançam, a partir do efeito de recuo e
avanço rítmico e do aceleramento dos seus movimentos. Amir Geiger realiza uma análise
complementar sobre dois personagens (que se desejam) opostos: a sinfonia musical e a ponte:

A sinfonia se quer estesia que se esgota em si mesma, e da ponte se quer eficiência para
alguma coisa. Mas sinfonia e ponte são, em suas categorias, ferramentas, isto é,
instrumentos de cultivo, agenciamentos. A fruição tem sempre um ‘uso’ (quando não
usura) social, e na eficiência haverá também uma estética específica. Podemos ir mais
longe do que dizer que a ponte é como uma sinfonia de ferro, e que a obra orquestral é
como que uma engenharia de sons; que há muita técnica a serviço da inspiração artística
e também inspiração numa obra de engenharia (Geiger, 2008:377).

É possível afirmar, junto com Geiger, que os efeitos descritos acima, gerados pela intervenção
nas imagens, possibilitam o acesso à lembrança de que “na eficiência haverá uma estética
específica”. O olho que permite ver descer uma máquina que faz subir trabalha com as
possibilidades de (outros) movimentos na malha urbana, assim também o conteúdo que se
torna forma abre possibilidades insuspeitas de visão. Convenção ou subversão? Geiger ajuda a

131
responder com as possibilidades convencionais da subversão e as capacidades subversivas da
convenção.110 E o próprio Fernando Salis aponta para a convergência desses (que aparentam
ser) “contrários” no próprio “interior do corpo humano”, como afirma em sua publicação no
catálogo da mostra:

Artistas realizam suas performances culturais, assim como carros, produtos e materiais
têm as suas performances no mercado. O interessante é perceber que a generalização
dessa performance tecnológica na vida contemporânea evidencia a cada vez maior
aproximação dessas duas abordagens, sobretudo na perspectiva das tecnologias de
informação. Tanto do ponto de vista das corporações capitalistas, como do ponto de
vista cultural, essas tecnologias vêm transformando o nosso entendimento do que seja o
agenciamento eficiente do homem com as máquinas ao seu redor. E não apenas ‘ao
redor’, mas cada vez mais no interior do próprio corpo humano (Salis, 2009a:38).

Uma amostra audiovisual bem sucedida

Na brochura de divulgação de Performance Presente Futuro, Vol. II, a performance de


Fernando é descrita da seguinte maneira:

Performance: “Veni, vidi, verti”, 2009

Trata‐se de uma instalação/performance audiovisual em que os sons e imagens editados


ao vivo dialogarão com os movimentos dos participantes no espaço através de múltiplas
telas, câmeras abertas e projetores. Imagens de vídeo gravadas, ou captadas em tempo
real, serão projetadas em diferentes telas translúcidas, transparentes, espelhadas ou nos
corpos das pessoas presentes. Através das texturas e ângulos produzidos, serão
compostas perspectivas inusitadas sobre as imagens dos diferentes modos de circulação
e ocupação de lugares públicos no Brasil, Espanha, EUA, França, Etiópia, Guiana,
Alemanha, Inglaterra, Senegal, Itália, Marrocos, entre outros. Torcendo a máxima
imperialista para “vim, vi e verti”. “A vitória que nos interessa é a criação”.

Ver amostra visual A

110
No paper intitulado “The Framed Man: Representation and Performance on Cyberculture” (2002), Fernando
trata de sua experiência envolvendo iniciativas públicas de educação à distância no nível de graduação no Rio de
Janeiro, a Unirede e a Cederj, relacionadas à UFRJ. Seu principal caso de estudo é um projeto da Cederj de
implementar o primeiro curso de informática à distância, o que para ele significa considerar as relações entre
interatividade e performance. Assim, ele descreve os primeiros momentos desse projeto: The transposition of their
work to the video language brought a series of new questions to the professors. We all have experience with the
audio‐visual language even if only as spectators but when we take the attitude and start to analyze it, as producers
and performers, the frames, plans, camera movements, the editing, the sound design, and other elements, lead us
to a new perception of frame and space. The question of performing, brought to the first plan to these professors,
transformed not only their relationships with the audio‐visual language but, what is still more interesting, it
changed the way they were used to see their usual performance (Salis, 2002).
132
Antes de entrar na descrição deste vídeo, é relevante falar sobre dois aspectos da performance
de Fernando. O registro fazia parte da apresentação; não era somente importante para
Fernando (havia duas pessoas ligadas a ele filmando o evento), mas também para a curadora
do evento. Daniela me disse que a sua produção estava gravando tudo. Assim como eu tirava
fotos, havia um fotógrafo profissional e mais três câmeras registrando o evento. Além disso,
Fernando faz questão de frisar que, apesar dos registros presentes, aquela experiência era
“impossível de registrar”. “É imersivo, sitespecific, é naquele espaço, e qualquer outra
configuração será diferente”. Mesmo assim, “o vídeo representa melhor a ideia original”. E é
nesse sentido que ele recria um tempo e um espaço em sua edição. Acredito que a agência do
vídeo está menos em perceber a nostalgia do tempo passado e nunca recuperado, e mais na
criatividade de reinventar o momento. Se, para Roy Wagner (1981), a criatividade do conceito
de cultura está associada à sua própria invenção, intrínseca à ambiguidade, às várias
metaforizações que sofreu ao longo do tempo, este vídeo se apresenta menos como
representação ou repetição e mais como uma invenção.

O trabalho de Fernando consistiu em pegar o conteúdo de duas filmagens diferentes que


duraram tanto quanto a performance em torno de 40 minutos e transformar aquele tempo
duplo e interpretativo (os dois pontos de vista dos cameramen) condensando‐o numa edição
de apenas seis minutos. O objetivo desse trabalho foi principalmente enviar uma amostra de
sua apresentação para outros curadores. Fernando expressou a vontade, enquanto
conversávamos sobre a apresentação, de tentar submeter um projeto para um programa de
residência artística, com a finalidade de poder dedicar‐se a pesquisar diversos formatos que
partissem da ideia de criação de ambientes imersivos. O trabalho de edição em suas palavras
“não foi fácil”, levou tempo, mas ele ficou satisfeito com o resultado.

Há uma verdadeira diferenciação entre realizar uma etnografia de uma performance única e
de uma gravação. A possibilidade de ver a gravação múltiplas vezes favorece a observação de
detalhes. Os seis minutos de Fernando podem virar um sem número de páginas descritivas. E,
neste caso, seria algo que poderia se chamar de uma experiência autêntica, relacionada a cada
uma das situações, porque são necessários registros diferentes para colher as diversas
autenticidades. Muitos já falaram sobre isso, mas gostaria de ressaltar a esse respeito o
trabalho de Steven Feld (1995 e 1996), principalmente quando mostra a diferença entre
realizar uma etnografia com eventos efêmeros, e com formatos gravados. Para Fernando,
fazer aquele vídeo significava (re)fazer e recriar aquela experiência. Por outro lado, não tenho

133
um controle absoluto do quanto a minha descrição da performance (conforme minhas
anotações) já não teria sido influenciada pelas visões múltiplas que tive do vídeo.

Outro elemento de eficácia do clipe diz respeito ao seu formato. Fernando gravou no meu pen
drive. Por falta de plug‐ins necessários, só pude abrir o vídeo em um computador que não
costumo usar. Entrando na página não muito atualizada de Fernando (que, neste momento,
não tem a sua foto, nem a descrição de seu trabalho ou comentários sobre os vídeos
postados), na seção no Vimeo, http://vimeo.com/user720684,111 encontro o seu vídeo com a
seguinte legenda “Performance de encerramento do evento “Performance Presente e Futuro”
no Oi Futuro, Rio de Janeiro, set de 2009”, ao lado de outros dois: um de uma reportagem da
televisão espanhola feita sobre a videoinstalação de Fernando em Madri, e a outra referente a
um trabalho seu como VJ em parceria com vários colegas do curso para VJs e Jodele Larcher.
Embora veja no Google que Fernando está no MySpace, no Vimeo, no Facebook e no Twitter,
estes dois últimos parecem mais bem atualizados e usados (e, por isso, vividos) do que os dois
primeiros, o que poderia ser considerado como seguindo uma tendência geral. Fernando já
havia dito que pertencia a todas essas comunidades, mas já preferia o Facebook. Ao mesmo
tempo, se essas diferentes comunidades permitem uma organização específica de ênfase
sobre as atividades, Fernando, ao escolher o vimeo para apresentar/divulgar as suas atuações
como VJ e como artista videodigital, ressaltou as ações implicadas em seu desejo que
pudessem ajudá‐lo a obter uma Residência Artística. Assim como o Currículo Lattes divulga as
suas atividades acadêmicas, talvez o Facebook mostre o anúncio da próxima viagem. A
questão é que as janelas dessas comunidades não se abrem uma de cada vez, elas estão todas
abertas ao mesmo tempo. Eu mesma já me vi nessa situação, de tê‐las todas abertas, ao
escrever sobre cada personagem desta tese. Aqui, de novo, vejo que abrir todas as janelas de
Fernando não me possibilitam acessar uma “representação” de Fernando como “total”.
Porque o que ele posta, ao organizar um perfil, é uma edição apropriada para compor uma
identidade parcial que caiba na composição da comunidade, mediada entre a proposta de seus
criadores e os modos de uso dos que dela participam.

Junto com as maiores capacidades de armazenamento de conteúdo em diferentes aparatos, a


extensão da memória RAM nos vários dispositivos (como as filmadoras, os Ipods, os celulares,

111
Na apresentação de sua comunidade, os criadores assim a descrevem: “Vimeo is a respectful community of
creative people who are passionate about sharing the videos they make. We provide the best tools and highest
quality video in the universe” (http://vimeo.com/). Daniel Castanheira, quando me indicou ver os registros de suas
performances, também recomendou acessar o vimeo “porque a qualidade das imagens é melhor que as do
youtube.”, algo que aparece na propaganda da comunidade ser mais séria e de melhor qualidade para competir
com o youtube.
134
a Internet, além das CPUs), a criação está em editar, recortar para a presentificação da
experiência. É significativo que o caso do vídeo da apresentação a que assisti e descrevi não
passou pela mídia do CD, mas somente através do pen drive e do seu up‐load no vídeo. O seu
poder multiplicativo talvez não seja necessariamente maior do que o boca‐boca do público, ou
a recomendação da curadora do evento em que Fernando participou. O poder multiplicativo
referente a uma autenticidade própria desse registro transita por plataformas digitais que
podem ao mesmo tempo sair do seu “controle”, como ao adicionar as opiniões divergentes do
público sobre a sua performance, mas que tem uma certa capacidade de controle pela escolha
das redes por onde transita. Foi como amostra que Fernando criou aquele vídeo, e, em seis
minutos, podemos ver o seu ambiente artístico.

O vídeo abre com as letras garrafais brancas sob fundo negro do título da Performance – Veni,
Vidi, Verti. A música é uma base rítmica com letra do Nordeste brasileiro. Em seguida, a
mixagem passa para uma batida acelerada a sublinhar os momentos que antecedem a
apresentação em si: Fernando subindo em uma escada para pendurar uma tela, o alto
produtor sonoro Maga Bo, de boné, observando, alguns ajudantes de Fernando, eu também
apareço observando.

Nesse trecho, a música se compõe de BPMs rápidas; as imagens também estão em fast
forward. Aparece um elemento no vídeo sobre o qual não conversei com Fernando que agora
parece bem central e do qual eu havia me esquecido: a grande bola cinza pendurada do teto e
o efeito testado de uma imagem de um menino correndo refletida na bola. Algumas telas já
testadas com a projeção saltam aos olhos; uma grande imagem do entardecer à beira da praia
de Ipanema com o morro Dois Irmãos ao fundo.

De repente, há silêncio e a tela escurece. Em seguida percebemos que a apresentação está


prestes a começar. Fernando surge em frente a um espelho fino, longo e retangular que quase
135
chega até o teto, enquanto os espectadores entram na sala. Fernando segura um pequeno
projetor; ouvimos o som de uma sirene que começa alto e vai diminuindo até chegar a um
chiado. Nesse ponto, a luz ambiente escurece e o chiado vira um ritmo já mais devagar, com
uma BPM mais cadenciada, hipnótica, não frenética. Enquanto isso, Fernando projeta
símbolos, primeiro em si, depois no espelho, a imagem sobe pela parede, é ampliada no teto,
segue em diferentes lugares da parede e também em diferentes telas do espaço; prossegue
através da tela segurada por Maria, a atriz do espetáculo; Fernando chega bem perto dela, em
frente dela, com o seu projetor. A partir desse momento, observamos o público sentado nas
almofadas, a maioria encostada no chão, enquanto os símbolos multicores se multiplicam
pelas diversas telas e os vemos em diferentes texturas. Os símbolos se expandem pelas telas,
e apreciamos cenas de pessoas em escadas rolantes ou esteiras de metrô, praia, trânsito. A
transição das imagens de símbolos para cenas de situações de cidades marca a passagem para
o meio do espetáculo.

Nas imagens seguintes, que traduzem o conteúdo da performance, há dois elementos que
gostaria de explorar sobre o foco de Fernando. O primeiro é que os personagens ícones de sua
performance – aqueles que foram confundidos como “atores” da apresentação – passam
agora a ser mostrados como pessoas integrantes do público. A câmera capta um jovem rapaz
que fotografa entre as telas, a parede e o voile; a câmera capta imagens minhas sentando,
levantando, passando. Uma moça encostada na parede em pé e um rapaz atento que, apesar
de sentado, vira a cabeça em direção à câmera e a olha fixamente. Destaca quando um rapaz,
com um impulso – a câmera revela o impulso, o desejo de – se levanta e vai dançar num canto,
onde já dança outro rapaz. E capta a terceira dançarina do evento pelo espelho enquanto ela
se junta aos outros dois rapazes. Em uma cena de várias pessoas sentadas no chão, a câmera
também capta o impulso do menino giratório, e ainda o casal que chamou a minha atenção, os

136
namorados sentados, encostados na parede ao lado do espelho. Na verdade é ele que deita
sua cabeça no ombro da moça, e não ao contrário, como pensei que vi; e ela recosta a sua
cabeça na dele.

As suas expressões “como em sonho”, como disse acima, traduzem o segundo elemento
privilegiado por Fernando: a relação entre a saturação de imagens que agem como se
envolvessem o público, criando, ao mesmo tempo e em diferentes lugares, desenhos
abstratos, corredores de cores. A ideia da saturação talvez seja interessante, pois estar como
em sonho envolvido por imagens urbanas em movimento, em sobreposição e em cores, é
também participar visualmente dos choques produzidos pela saturação de imagens. Taussig
(1993) demonstra bem como as observações de Benjamin sobre o “conhecimento corporal do
inconsciente óptico” ‐ ou as “qualidades táteis da visão” ‐, aberto pelas novas possibilidades de
visão pelos usos diversos da câmera e do filme, revelaria as mudanças sensíveis das técnicas
miméticas:

Physiognomy, stirring in waking dreams brought to the light of day by the mimetic
techniques, bespeaks a newly revealed truth about objects as much as it does about
persons into whom it floods as tactile knowing: unstoppable merging of the object of
perception with the body of the perceiver and not just with the mind´s eye
(Taussig,1993:24).

Para Taussig, o uso de Benjamin da metáfora da mão do cirurgião que penetra o corpo da
realidade e do espectador seria equivalente à filmadora que abre o inconsciente óptico. Mas
nessa abertura para as revelações do inconsciente óptico haveria uma “transgressão
epistêmica” (ibidem:32) e, nesse sentido, seria um “olho alucinatório”; “a roller‐coastering of
the sense dissolving science and art into a new mode of truth seeking and reality testing”
(ibidem). Estar como em sonho porque a saturação de imagens (de “informações", como diz

137
Fernando) é como uma alucinação que metaforiza a nossa própria vivência de visões não
somente urbanas, mas também virtuais.

As imagens com conteúdo de pessoas caminhando num parque e na praia de Ipanema fazem
lembrar o filme de Dziga Vertov “O homem da câmera” (1929), pois mostram como o corpo
está incorporado a um hábito/habilidade tanto em espaços de “trabalho” como de “lazer”.
Quando vemos nas imagens as “rotinas sociais do corpo” (cf. Taussig,1993:24), num tempo
mais rápido, ganhamos consciência desses “pilotos automáticos”: o conhecimento tátil do
hábito (ibidem). Estar dentro de um “ambiente saturado” por imagens nos leva a pensar que
as telas são janelas que trazem alguma diferença da experiência da realidade e, nessa
experiência, nos damos conta, ainda que em sonho, do automatismo e das possibilidades de
uma “nova fisionomia” (ibidem). A imagem do “sonhar acordado” me faz lembrar do post‐
scriptum da tese de Pedro Ferreira (2006), “O que pode uma máquina”. Ali ele afirma:
“Vivemos, há algum tempo, como que semiadormecidos, quando não em estado de
sonambulismo profundo (...) Já foi dito que motoristas de automóvel, quando vistos de fora,
tendem a parecer semimortos” (Ferreira, 2006:367‐368). Em seguida ele pergunta: “como
acordar?”, e descreve uma cena de festa de música eletrônica: “Assim como eu e todos os
demais nesse ambiente vibratório, somos peças de máquina, uma máquina cujo som
ensurdecedor é justamente a música e cujo produto é principalmente o desejo de perpetuar o
movimento” (ibidem:369). O efeito delirante de se sentir dentro de um espaço saturado de
imagens e de ter como que sonhado segue um efeito semelhante, mesmo sem sair do lugar.
Em vez de dormir acordado no trânsito, o público se vê em um ambiente em que tem a
liberdade para viver um sonho.

Assim, a gravação e as imagens vão chegando ao fim, com a imagem‐guia de Maria com seu
longo vestido branco em frente ao espelho, retratada depois nas telas e caminhando de costas

138
para a outra extremidade da sala. Temos de novo silêncio e o fim das imagens. Ouvimos
aplausos e assim termina o vídeo, com os créditos a Fernando, Maga Bo e Maria.

A estrutura narrativa de Fernando é propiciar uma ideia de início, meio e fim, segundo uma
sensação de ordem cronológica de sua performance. É a capacidade da totalidade da
apresentação que é privilegiada. Não é um fragmento de um momento significativo, mas a
totalidade que lhe outorga autenticidade de que o espectador verifique um sample de sua
obra. Nessa construção, a maneira como ele editou o som para o vídeo segue bem o seu
desejo, pois ele pegou os momentos sincrônicos de som e imagem do início e do fim sem
alterar a relação entre eles; já no segmento que representa o meio da performance ele foi
gradativamente mixando o som de acordo com as imagens que privilegiou, modificando, desse
modo, a relação sincrônica entre imagem e som.

Uma etnografia das pastas virtuais: considerações sobre a criação de um


banco de dados

Na segunda visita que fiz a Fernando em sua casa, não muito tempo depois da primeira
entrevista bem centrada em sua história de vida, ele estava se preparando para tocar como VJ
de um grande festival de música eletrônica durante o set do DJ e produtor paulista Gui
Boratto.112 Naquele momento, ele já havia recebido o convite para se apresentar na
performance do Oi Futuro, em setembro. Passamos o encontro quase integralmente em frente
ao seu computador, e ele me mostrou várias ferramentas de trabalho, como as pastas com
imagens de “material bruto” e exemplos de trabalho dessas imagens no software que utiliza na
hora da performance. Ele estava pesquisando para a sua próxima apresentação como VJ, e
desse material bruto também sairia a composição de imagens de sua videoperformance no Oi
Futuro. Poderíamos dizer que é naquele processo de criar um banco de imagens que tudo
começa, e também que as mesmas ferramentas para atuar como VJ num espaço‐festa são
utilizadas para apresentar‐se como artista num espaço‐galeria.

112
Não deixa de ser interessante vermos o “about” the Gui Boratto em seu site:
“BIOGRAPHY ‐ GUI BORATTO
Born in 1974 in São Paulo Brazil, Gui Boratto, architect, musician, composer and producer initiated his career in the
advertising sector in 1993. From 1994 until 2004 he performed various works for countless record labels both
national and international. From 2005 he began to dedicate himself to his own productions and compositions,
displaying to the public an authoral and more personalized side to his abilities. With countless licenses with
respected European labels, such as Kompakt, K2, Audiomatique, Harthouse, Plastic City, among others, Gui Boratto
has managed to appear in the chart and playlists of world's most famous producers and DJs”
(http://www.guiboratto.com.br/index.htm).
139
Uma etnografia de diferentes modalidades de criação de banco de dados mostra uma
complexa relação entre captar imagens e classificar o material bruto que será usado no ato da
performance. No trecho que apresento a seguir, procuro mostrar a importância da criação de
matéria‐prima. Naquele dia, eu estava preocupada em perceber como Fernando organizava o
seu material para levá‐lo nos seus diversos formatos de apresentação. Assim, vi pela primeira
vez algumas imagens que apareceriam no “Vini, Vidi,Verdi”; por isso esta sessão é significativa
como parte integrante do modo de elaboração do trabalho de Fernando. No processo entre a
escolha de imagens e o trabalho com elas também se compõe um estilo pessoal. Apesar de
Fernando sentir ser “difícil” pensar ainda numa “definição específica de um estilo próprio”
como VJ e artista, naquele tempo que sentamos juntos foi possível compor algumas
características de sua metodologia de criação.

A primeira fase de trabalho consta da tarefa de captar imagens para formar os banco de
dados. Apesar de deixar claro que não tem nada contra o uso de imagens de terceiros (ele
declara não ter nenhum “pudor ou preconceito”), Fernando prefere usar imagens próprias
como material de trabalho. Ele mesmo capta a maior parte das imagens que irá depois
manipular no momento de apresentação. Essa característica inicial afeta o próprio fim dessas
imagens; há pois que se falar antes sobre o seu método de captar imagens.

Fernando explica que, de tanto trabalhar com imagens ao longo do tempo, ele criou uma
estratégia de arquivamento. Para trabalhar na próxima festa e na performance do OI Futuro,
ele escolhe o “material” que criou no “ano passado”. Liga um de seus três compactos mais
potentes HDs e abre uma pasta dos arquivos que gravou com sua câmera fotográfica digital
em 2008. Vemos uma lista de pastas organizadas automaticamente por ano. “Tem [uma
classificação] por ano. Aí eu tenho a identificação das gravações, como, “Berlim”, “Buenos
Aires”, “Carnaval”, minha “despedida” (referindo‐se à despedida da Espanha),
“Amsterdam”...”. Dentro de cada uma dessas pastas há quantidades de sequências gravadas
ainda sem nome. O terceiro procedimento é selecionar e organizar os vídeos, criando um novo
nome, e jogando fora o que não serve. Explica ele que, por mais que tente pré‐editar, tem
certa dificuldade em fazer isso na hora em que vai fazendo as suas gravações (isto é, apagar da
máquina o que não serve).

Enquanto me mostra uns trechos de filmagens dentro de pastas ainda não nomeadas e em
estado bruto (sem terem sido editadas numa certa quantidade de segundos, privilegiando o
take que lhe parece interessante), Fernando fala sobre o seu método de captar imagens. De
frente à tela do computador, ele diz: “às vezes você não vê o que está gravando, ou grava

140
alguma coisa e, quando assiste, encontra outra”. O meu sentimento de identificação foi muito
forte com essa frase no que considero ser parte consistente do método de trabalho de campo
antropológico. A sensação de estar em campo “perdido na vivência cotidiana dos outros” (já
referenciada por Malinowski, 1978, Da Matta, 1978 Geertz, 1973 entre muitos outros),
captando aspectos que, na maioria das vezes, só parecem formar um “sentido” quando se
lê/ouve, vê o material “fora” do campo.

Mais adiante, ele ressalta que sempre está ligado em algum “movimento”, em alguma
“composição possível”, em uma relação de “profundidade e cor”, ou em filmar um transeunte
que lhe desperte um interesse especial. Abre algumas pastas de modo aleatório: vemos
pequemos clipes, trechos gravados em diferentes ambientes. Clica em uma pasta aleatória:
cenas que acredita terem sido gravadas em Amsterdam. Lembra ter estado na praça central e,
enquanto esperava um amigo, resolveu gravar. Naquela imagem específica, diz que não parece
haver nada em especial que lhe chamasse a atenção. Assim mesmo, Fernando explica que tem
uma experiência suficiente para ligar a câmera e buscar “o que está dentro”, o que está
acontecendo. Enquanto olhamos para aquela longa sequência, ele comenta que, apesar da
“qualidade da imagem ser ruim”, parece‐lhe interessante para “trabalhar um loop”. Nesse
caso, privilegia‐se o potencial rítmico de uma imagem, e não a qualidade “límpida”.

O trecho acima indica um assunto que foi o grande perfil temático da sua instalação na
Universidade Carlos III em Madri, ou seja, o seu interesse pela “dimensão antropológica da
circulação” e do “movimento”: o trem elétrico, as bicicletas e pessoas em circulação se
adaptam ao que pode conferir um valor estético de ver pessoas em circulação ou objetos
rodando. Ao mesmo tempo indica uma complexa relação entre o momento do registro e o que
se recupera desse registro. As imagens não necessariamente precisam ter uma “boa
qualidade”, elas devem servir para formar uma composição que usualmente está relacionada a
ilustrar um ritmo. A maioria das imagens apresenta alguma possibilidade de aproveitamento,
mas ele analisa a qualidade daquelas que, a seu ver, usualmente “funcionam”, pela
importância da composição de cor.

Ele abre a pasta “Madri” e mostra uma série de imagens das bolas de luz tiradas em um
parque da cidade e afirma: “Isto funciona em qualquer situação, porque todo mundo gosta de
ver bola colorida”. Ele conta o contexto do momento em que produziu aqueles vídeos:

Estas imagens foram tiradas de uma instalação de arte. É na beira do rio Manzanares em
Madri. Para você ter uma ideia, isso aqui é uma avenida enorme. É uma área de dois
quilômetros com luminárias, cada uma dessas luminárias tem dentro um princípio que
141
ativa luzes de várias cores, e elas vão mudando de cor bem devagarinho; tudo muda de
cor o tempo todo. É lindo!

Em outra imagem, vemos uma sequência filmada em seu apartamento em Madri com sua irmã
dançando. Enquanto passa a filmagem, ele brinca: “olha a minha intimidade!”, mas, em
seguida, como exemplo de uso do software, coloca o cursor exatamente no segundo em que
sua irmã começa o movimento, e perdemos a referência do lugar íntimo em que está situada
ação (a sua sala). Ele diz: “imagina se eu editar essa imagem e acrescentar um contraste?”
Naquele ponto, com o acréscimo do contraste, perdemos a referência também da pessoa que
está dançando (a sua irmã). Fernando afirma que imagens de pessoas dançando é algo que
funciona tão bem, que tem vontade de criar vários pequenos trechos de amigos dançarinos.

Quando vai preparar um trabalho, Fernando usualmente cria “famílias de imagens”: imagens‐
narrativas; imagens‐texturas; imagens‐fundo (tipicamente, texturas e cores, “mas pode acabar
sendo qualquer imagem”). São raros os casos de utilizar imagens captadas por outros, que, no
seu caso, quando as usa, gosta de trabalhar com filmes de diretores. Assim, o nome de
determinada família (o nome da pasta) é o nome do diretor. Noto uma pasta com o nome
Bergman. Ele mostra um trecho de um filme, cujo nome agora não me recordo, e diz que
apesar de ser uma imagem “tão obvia”, que “já foi usada por tantas pessoas de diversas
maneiras”, pode funcionar de forma inesperada. Mesmo nesses casos, quando trabalha com
imagens previsíveis (por serem conhecidas), “sempre trago para o que me interessa: eu inverti,
mudei a relação de tempo, criei um loop, reverti”. Relata outro caso, ao assistir a um filme de
um cineasta húngaro, Béla Tarr, encantou‐se com um trecho:

Tinha uma sequência que era incrível de um caminhão passando. O caminhão possuía
uma textura como se fosse uma parede andando e havia a silhueta de um cara de costas;
a silhueta dele e aquilo passando, na hora eu vi aquilo e percebi que funcionaria para
várias coisas. Aí eu peguei, saturei, contrastei e fiz um loop com aquilo; assim, mesmo
quem, por exemplo, um amigo meu que já tinha visto o filme, não o reconheceu.

No caso de utilizar imagens “íntimas”, como na passagem de sua irmã dançando em casa,
Fernando escondeu os elementos que “delatam” essa intimidade: a sua casa e os traços físicos
da irmã; no caso específico de usar um trecho de “outro autor”, o exercício é o de esconder o
“autor”, a partir de uma total distorção da imagem.

Como forma de estabelecer um contraste, podemos recorrer a Timba que, ao contrário de


Fernando, trabalha somente com imagens de outros autores – até porque, como vimos no
capítulo 2, Timba gosta de fazer ilustrações por cima das imagens que projeta. Como Timba se
142
mostra bastante cuidadoso no que diz respeito aos direitos autorais, ele diz privilegiar as
imagens que já pertencem ao “domínio público”. Para a criação de um material bruto a fim de
formar um banco de imagens destinado a um set para VJ, ele tem que usar a Internet como
fonte. Utiliza Torrent113 para baixar as imagens. No momento em que conversávamos, ele fazia
buscas por temas pelos quais sentia “afinidade”, em sites de companhias de dança ou de
artistas plásticos. Mostrou‐me um filme curto feito por um diretor chinês sobre Andy Warhol.
Um filme que é muito “difícil de achar” e por isso as pessoas ficam encantadas. Mais
recentemente, revela ter feito pesquisa com documentários antigos e filmes de ficção
científica. Para festas de música eletrônica, projetar imagens de máquinas em atividade na
mesma batida da música produz um efeito interessante, em sua opinião. Considera também
“funcionais” os elementos gráficos, como uma imagem de um disco vinil em que se pode gerar
um scratch visual.

Timba diz também que não gosta de usar elementos imagéticos "ultrapedagógicos” com o
tema da festa em que ele está tocando, como, por exemplo, utilizar muitas imagens de grafite
numa festa de hip‐hop. Na sua busca, escolhe imagens difíceis de encontrar, as que ninguém
conhece. Mas afirma que, em todo caso, “é a maneira como você trabalha que vai fazer a
diferença”, ressaltando o lugar da originalidade individual de uma composição no momento
em que se dá a performance. Na festa Phunk!, onde os três VJs muitas vezes utilizam o mesmo
computador, é comum usarem as mesmas imagens porque, como se encontram
frequentemente, acabam passando seus arquivos uns para os outros, mas cada um os utiliza
de uma forma particular.

Ver amostra visual B

Fernando, por outro lado, diz ter um “pouco de ciúmes” de passar adiante para outros VJs as
imagens que ele fez. Ele concorda que existe troca de material entre VJs, que existem,
inclusive, sites onde VJs do mundo inteiro disponibilizam loops. Jodele já passou muito
material para Fernando que ele nem “conseguiu abrir” por ele mesmo possuir um banco de
dados tão amplo. No caso do “Veni, Vidi, Verti”, vale lembrar como Maga Bo lhe havia passado
imagens que ele “acabou não usando”. Por sua vez, ele se considera um pouco ciumento de
algumas de suas imagens, e prefere demorar um tempo antes de disponibilizá‐las. Já viu seu

113
O Torrent é a extensão de arquivos utilizados por um protocolo de transferência do tipo P2P (Peer to Peer), os
arquivos transferidos são divididos em partes e cada pessoa que tem o arquivo ajuda a fazer o upload a outros
usuários. Para compartilhar estes arquivos, é necessário usar um programa específico, conhecido como cliente. Ele
obtém as informações contidas nos arquivos e se encarrega de toda a comunicação entre os usuários (ref‐ na
Internet).
143
material ser usado de maneiras completamente diferentes, e sentiu uma “ponta possessiva”.
Ao mesmo tempo, reconhece que ele próprio deve “aprender a se desapegar”, rever os seus
conceitos, e que, nos casos em que usa materiais de outros autores, prefere descaracterizá‐los
completamente; mas confessa que “está refletindo muito sobre isso tudo”. Nas suas palavras:

A gente está passando por um momento que tem a ver com esta coisa em que
simplesmente você não tem mais como impedir as pessoas de terem acesso a esta ou
àquela informação. E, ao terem acesso, você não tem como impedir que elas usem a
criatividade em relação àquilo. Então, eu acho que essa criação de uma cultura
audiovisual jovem, de psicodelia, é inevitável. Não dá para ser reacionário, ah, então
vamos, “não pode fazer isto”. [Não é mais assim], eu acho que a gente vai ter que
repensar que ética é essa da era digital, entendeu? Porque eu acho que pura e
simplesmente pensar o direito de autor como a gente pensou na era do capitalismo
industrial e financeiro, hoje em dia a gente precisa dar uma outra resposta para este
problema.

Em sua fala, Fernando expressa uma certa “crise de consciência” sobre o seu sentimento de
possessão em relação ao seu material bruto. Se a valorização da autenticdade do VJ se realiza
no ato da performance, o material bruto pode ser e muitas vezes é partilhado por muitos. Mas
não deixa de ser curioso este sentimento “autoral” em relação aos seus próprios bancos de
dados, pois revela a vivência da crise de Fernando diante das questões que estão sendo
colocadas, para ele, “pela era digital”, e que não são as mesmas do “capitalismo industrial
financeiro”. A crise poderia ser chamada de “mal da função‐autor” num contexto em que não
se valoriza a autoria, ou mesmo a ética de compartilhamento entre pares, relacionada ao
agrupamento de banco de dados. Por outro lado, o sentimento possessivo de Fernando
demonstra que já há uma autenticidade pressentida ao momento de pesquisa, que encontra
ressonância no exemplo de Timba: ambos prezam imagens não encontradas facilmente. O
que, por outro lado, não deixa de ser problematizado pelo fato de os VJs também contarem
com o recurso de produzirem novas imagens no ato presente de suas performances. Como ele
reconhece,

Assim como os DJs têm inúmeros samples sonoros, arquivos de áudio e de reações ao
ambiente disponíveis para suas mixagens ao vivo, os VJs contam também com fontes
inesgotáveis de referências visuais e de materiais brutos – que vão ganhar singularidade
em cada contexto e acontecimento (...) Os VJs frequentemente [incorporam imagens
ambientes] para remixá‐l[a]s e lançá‐l[a]s em tempo real ao seu repertório (...) com
câmeras abertas em circuitos fechados. Ou melhor, abertos: hoje, um VJ pode, inclusive,
144
ao longo de sua performance, manipular imagens de arquivos on‐line ou de uma webcam
conectada em qualquer lugar do mundo (Salis, 2009a:42).

De qualquer modo estamos diante de exercícios de classificações de imagens que funcionam: o


ato de classificar já começa nos enquadramentos privilegiados no momento da captação de
imagens, a partir da noção de cenas, formas e cores que funcionam bem. A eficácia da imagem
se relaciona com alguma técnica intrínseca que pode propiciar o encantamento mágico na
hora da performance (Gell, 1998). Há um tratamento de composições que se interligam para
criar forma e fundo. Imagens que possam ser tocadas como música, que se deixem afetar e
que possam ilustrar um ritmo. Na autenticidade do trabalho de busca, um elemento valorizado
são as imagens dificilmente identificadas, quando se trata de outros autores. Em determinado
momento, Timba e Fernando afirmaram ter interesse por imagens em preto e branco. Essas
imagens usualmente são de filmes antigos a que poucos têm acesso. Mas, em se tratando de
imagens compostas pelo próprio autor ou por outros, há um elemento valorativo da criação in‐
actu. Nesse dia do meu encontro com as pastas de trabalho de Fernando Salis, aquele material
estava sendo pensado para ele atuar como VJ de uma festa. E parte dele pôde ser
reclassificado para sua apresentação no Oi Futuro, meses depois.

Com o passar do tempo, as imagens captadas vão ganhando classificações mais precisas à
medida que vão se aproximando do material a ser usado em uma performance específica. E os
próprios softwares para produtores visuais e sonoros funcionam com listas de imagens que já
ganharam um nome definitivo para a apresentação que vão realizar. Nesse recurso de maior
classificação e seleção, a pasta referida às imagens tiradas naquele ano “2008” recebe um
outro nome como “Amsterdam” e, mais tarde, as imagens selecionadas de Amsterdam, ao
serem tratadas e ganharem o status de loop, são renomeadas, como, por exemplo,
“bicicletas”. Esses loops posteriormente integram uma pasta “Texturas” ou “Fundo”, etc. É um
processo de armazenamento e seleção.

James Clifford (1988) apresenta o ato de colecionar no Ocidente como ligado, desde o século
XVII, a um self ideal possessivo. O ato de selecionar uma “propriedade” coletiva autêntica é, na
verdade, um ato de possuir arbitrariamente sistemas de valor e significado. Dessa maneira
possessiva, a identidade surge no Ocidente como um modo de riqueza “de objetos,
conhecimento, memórias, experiência” (Clifford, 1988:218). Os assuntos dos livros contidos
numa biblioteca, como diz Benjamin (1968), funcionam como indicadores de quem os possui.
Desse modo, colecionar se desdobra em uma estratégia para a distribuição de um self, uma
cultura e uma autenticidade possessivas. Está claro que o que se inclui ou exclui em uma

145
coleção faz parte de ampla seleção de regras culturais. O self que precisa possuir, mas não tem
elementos para angariar tudo, aprende então a selecionar, ordenar e classificar em
hierarquias. Colecionar se torna, assim, uma forma de subjetividade ocidental (ibidem). José
Reginaldo Gonçalves sintetiza seu olhar sobre a noção de coleção de Clifford nos seguintes
termos:

A análise crítica da ideologia da coleção mostra precisamente o esforço sempre


irrealizado no sentido de construir essa totalidade, na medida em que exclui o que é
considerado “inautêntico”. Em outras palavras, o colecionamento, na perspectiva desse
autor [Clifford], parece um processo dividido contra si mesmo, articulado por uma
permanente tensão entre totalização e fragmentação (Gonçalves, 1999:26).

Assim como o colecionamento, o ato de arquivar, segundo Artières (1998), partiria de uma
injunção social que faz parte da formação da subjetividade no Ocidente. Os diários íntimos, os
álbuns de família, os manuscritos, o próprio curriculum vitae como um inventário de nossos
arquivos, são todos modelos de como devemos dar valor social ao fichário caseiro: “escrever
um diário, guardar papéis, assim como escrever uma autobiografia, são práticas que
participam daquilo que Foucault chamava a preocupação com o eu. Arquivar a própria vida é
se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido
o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo” (Artières, 1998). Lev
Manovich sugere que haveria uma “lógica da base de dados” que surge com os usos de objetos
digitais. Segundo a sua concepção, se para o historiador da arte Ervin Panofsky a análise da
perspectiva linear seria a “forma simbólica da era moderna” (Manovich, 2001:194), a base de
dados, para ele (Manovich), seria a nova forma simbólica da “era do computador” (ibidem).
Para Manovich, o estilo de uma narrativa literária ou fílmica, assim como um plano
arquitetônico, ou uma base de dados, contêm formas específicas de “apresentar diferentes
modelos de mundo” (ibidem). Em sua descrição de páginas web, ele ilustra a “forma cultural”
específica da base de dados:

Web sites never have to be complete; and they rarely are. The sites always grow. New
links are being added to what is already there. It is as easy to add new elements to the
end of list as it is to insert them anywhere in it. All this further contributes to the anti‐
narrative logic of the Web. If new elements are being added over time, the result is a
collection, not a story. Indeed, how can one keep a coherent narrative or any other
development trajectory through the material if it keeps changing? (Manovich,2001:196).

146
Poderíamos finalizar este plug‐in com a ideia de que Fernando opera com diferentes “lógicas
de colecionamento” nas suas plataformas de criação: na construção de um colecionamento de
imagens, enquanto prepara a performance, na construção de um “mundo‐ambiente” formado
de composições de flashes de links de itens que se agregam a uma coleção de imagens em sua
apresentação, e no colecionamento dessa experiência através da edição registrada em vídeo e
que a disponibiliza on‐line ao lado de outros trabalhos, compondo assim um novo
colecionamento. É também relevante a informação de Fernando sobre a construção de sua
performance e os diversos mediadores envolvidos naquele processo, pois ele afirma que foi
por uma falta de comunicação dele com o aparato técnico que o fez considerar que sua
apresentação não dera certo.

Antes de passar para o plug‐in I.2, gostaria de abrir uma extensão plug‐in que se relaciona com
a discussão desta última sessão. Assim como a criação de um banco de dados é importante
para a configuração de um estilo do videoperformer, os equipamentos que usa também são
fundamentais durante o processo. Neste caso específico, exponho como os produtores se
posicionam com as possibilidades de “baixar” da Internet softwares piratas, e como essas
escolhas partem de um acréscimo de habilidade e de formação de estilo, assim como de uma
institucionalização maior dos produtores.

147
Extensão Plug‐in 1.1:

Crackear e Comprar: posicionamentos ético‐estéticos

Na última sessão do plug‐in I.1 respectiva a Fernando Salis, verificamos como se cria um
“estilo” no acúmulo de habilidades relativas ao método de colecionamento de imagens,
dependendo da forma como elas são captadas e da maneira como se concebem os seus takes
mais “autênticos”. Os produtores também ganham um “estilo” à medida que incorporam
habilidades de manuseio dos softwares. Fernando opina que o desenvolvimento de um estilo
depende da desenvoltura que se tem com o uso do software. Enquanto ele diz que teria
características de estilo muito próprias como documentarista, ainda lhe parece prematuro
firmar um estilo próprio enquanto VJ. Ele calcula que levou uns dez anos para se sentir seguro
com a atividade de editar. Agora, estima que vai precisar de mais alguns anos para explorar os
softwares para VJs (o Arkaos e o Modul8), e revela que chega a sentir‐se “afogado nas
possibilidades desses softwares”.

Timba conta que primeiro aprendeu a usar o Arkaos com Simplicio, na festa Phunk! Mais
adiante, Simplicio começou a se interessar pelo Resolume, um programa semelhante ao
Modul8. Ainda mais adiante, no curso que fez com Jodele, no Dama de Ferro, as aulas também
foram em cima do Arkaos, programa que, segundo Timba, Jodele utiliza “até hoje”. Ele
comenta algo interessante sobre o emprego do programa por Jodele: “Ele manuseia o Arkaos
de uma maneira que obriga o programa a oferecer possibilidades para ele; usa o software há
tanto tempo que desenvolveu um domínio que lhe possibilita trabalhar de uma maneira muito
confortável”.

Timba diz que passou por um período de aprendizado por diferentes programas até chegar ao
Modul8, porque considera que oitenta por cento do que é possível fazer com as imagens vêm
das próprias características do software. “Para mim, o indispensável nesse software em
relação aos outros é que eu tenho uma facilidade de trabalhar a imagem, a cor da imagem,
aqui, da maneira que eu quiser. Então, uma coisa que eu gosto de fazer é trabalhar a imagem
com cor complementar, ou com um contraste forte entre as cores. E não há outros programas
que trabalhem essas possibilidades com tanta facilidade”. Ele narra que foi com a vinda de um
VJ estrangeiro que aprendeu a lidar com o Modul8. Seguiu‐o por dois dias e, nesse
acompanhamento, resultou o acúmulo de experiência para formar uma habilidade técnica, e

148
sentir‐se identificado com o software. Durante o período da minha etnografia foi interessante
observar que no momento do meu primeiro encontro com Timba referente aos seus métodos
de trabalho, ele disse preferir utilizar um controlador externo (um aparato que é acoplado ao
computador e permite modificar as imagens com potenciômetros que podem ser regulados
manualmente, ao contrário do manuseio direto no laptop, que se controla com um apertar de
botões). Um ano depois, havia mudado de ideia quanto à utilidade do controlador, e
manifestou preferência por trabalhar diretamente com o computador. Verificamos nesse
processo temporal um experimento de técnicas nos usos de equipamentos que ora são
comprados, ora deixados de lado.

A partir das duas experiências narradas, gostaria de explorar como os produtores organizam
os seus discursos ético‐estéticos em relação aos usos diferenciais e à resolução de obter um
determinado software de criação, de modo “oficial” ou “crackeado” (ilegalmente baixado na
Internet de graça, ou copiado de amigos). As decisões a esse respeito os insere dentro de uma
rede complexa por onde se inventam e proliferam diferentes tipos de mediações que se
relacionam diretamente com esse processo de internalizar habilidades técnicas, como veremos
a seguir.

Na gravação televisiva sobre a “tribo” dos VJs, a apresentadora Daniela Suzuki tinha na pauta
perguntar se havia algum “símbolo” presente no corpo dos VJs, seja pelo modo de uso da
roupa ou dos cabelos, que permitiria aos VJs se reconhecerem na rua. Vários entrevistados
responderam que não. Realmente não reconheciam a existência entre eles de um jeito
determinado de caminhar, de vestir ou de cortar o cabelo. Mas Fernando Salis pareceu
encontrar uma resposta “cheia de significado” quando afirmou que os VJs podem se
reconhecer na rua pelos equipamentos que carregam. De fato, não somente os VJs, mas todos
os produtores que integram esta tese possuem um computador MAC. Em todas as ocasiões de
performance dos produtores (visuais ou sonoros) que presenciei, quando se apagavam as
luzes, brilhavam as maçãs da Apple na tampa de seus laptops. E, apesar de alguns afirmarem
que não há mais “tanta diferença” entre um MAC e um PC (da Microsoft), todos parecem ter
uma identificação maior com o modo de trabalho do MAC, alegando ser o MAC “mais
inteligente” ou que trabalha melhor com “arte”, ou mesmo referindo‐se a este como “fetiche”.
A partir dessas considerações gerais sobre o MAC, constato que é uma ferramenta comum a
todos os produtores deste trabalho, sem variação de maior ou menor institucionalização.
Mesmo sendo um computador bem mais caro do que o PC, a todos pareceu um “bom
investimento”; e realmente os MACs se apresentam em todas as situações como “pessoas

149
estendidas” dos produtores, oferecendo input sobre as qualidades subjetivas destes. Nesse
sentido, os MAC´s mais do que fetiches, são mesmo “fatiches” (Latour, 2002) pois fabricam
114
subjetivações aos que o utilizam, incrementando informação sobre os produtores. A
respeito do papel do fetiche, William Pietz (1985) afirma que:

The fetish (...) acts as a material space gathering and otherwise unconnected multiplicity
into the unity of its enduring singularity (...) The active relation of the fetish object to the
living body of an individual: a kind of external controlling organ directed by powers
outside the affected person´s will, the fetish represents subversion of the idea of the
autonomously determined self (Pietz, 1985:15).

Se há coincidências na marca dos seus computadores, elas ocorrem também nos softwares
que utilizam para criação. A partir deste momento, irei abordar o assunto bem específico
sobre os modos de aquisição desses softwares:

Fernando diz que ultimamente tem trabalhado com dois softwares, o Arkaos e o Modul8.
Quando pergunto se comprou ou crackeou esses programas, ele responde que comprou o
Modul8 e fez um download pirata do Arkaos. Indago se há uma ética envolvida nos usos do
download ou da cópia. Ele responde que é um assunto sobre o qual pensa bastante, que
“teoricamente gostaria de comprar tudo” e que não tem nada contra comprar softwares. Mas,
por outro lado, afirma que, de fato, a maioria dos softwares é cara e que eles poderiam ser
mais baratos. A questão que se apresenta para ele é que, ao mesmo tempo em que são caros,
alguns softwares são muito fáceis de se obter via download; portanto, há um determinante de
comodidade e praticidade em poder baixar o programa para usar. Como ele diz: “Às vezes, até
por uma questão de praticidade, você vai e baixa logo; está ali à disposição, por que você não
vai usar?”

114
O MAC é também uma marca de status e não se restringe ao uso dos produtores. Realmente a Apple tem esse
poder de criar fatiches. Como exemplo é possível lembrar a popularização de outras marcas após o aparecimento
do Ipod. Esses aparelhos de arquivamento ganharam o apelido no Brasil de “I‐pobres”. Essa mesma sensação se
transfere para os usuários de PC, que, mesmo os mais caros, dotados de belos designs, são considerados “mais
comuns” ou destinados à “massa”. Por outro lado, o valor do MAC não é “universal” para todos os produtores. Se,
nesta pesquisa, todos tinham MACs (Fred Coelho é a única exceção, mas, mesmo não o tendo, gostaria de possuir
um), em sua pesquisa sobre hip‐hop no Rio de Janeiro (realizada para o filme L.A.P.A (2008), Emilio Domingos
afirma que, fora os produtores “mais classe média”, seus entrevistados não se mostraram interessados em operar
com MACs, e todos possuem PCs. No universo pesquisado sobre funk recentemente, Mylene Mizrahi também
revela que os produtores de funk carioca que pesquisou não demonstraram desejo de ter um computador MAC,
inclusive por causa de incompatibilidade com computadores de outros produtores com quem trocam informações.
Em ambos os universos, o computador utilizado é o PC, da Microsoft (ambos os casos, comunicação pessoal). Essa
informação é relevante porque, mesmo tendo um poder aquisitivo muito variado, os personagens desta pesquisa
têm em comum... uma preferência específica por esse instrumento de trabalho.
150
Fernando conta que conseguiu o Arkaos por intermédio de um amigo que já tinha o programa
legal instalado em seu computador. Já o Modul8, ele usou durante um tempo crackeado;
posteriormente, um grupo vinculado à comunidade de lista de assinaturas de VJs no Brasil, a
VJBR, se reuniu para comprar esse software “para fortalecer a comunidade e para ter uma
relação mais próxima com os desenvolvedores do software; foi uma questão de
profissionalização mesmo, já que, quanto mais você utiliza, mais você quer participar, você
quer dar input pra quem desenvolve o software”.

A rápida e fácil disponibilidade dos programas na web tende a criar uma “lógica do conforto ou
do comodismo” em relação à qual os sujeitos se defrontam em seu cotidiano. Por outro lado,
há também uma interessante composição na história de aquisição do programa Modul8.
Inicialmente, Fernando diz ter baixado o programa. Nesse movimento, há uma curiosidade em
conhecer o programa, uma fase que poderíamos considerar de experimentação. Ao mesmo
tempo, continuando a sua narrativa, verificamos que há uma história de criação e visibilidade
de um grupo (profissional dos VJs) conectada à sua decisão de comprar especificamente esse
programa: a formação da lista de assinaturas VJBR, a sua subsequente assinatura e
pertencimento à lista enquanto “grupo”, e a organização de seus membros para entrar em
contato com a empresa que produz o Modul8 e dividir os custos enquanto “grupo
profissional”. Nesse mesmo sentido, a abertura da empresa para esse movimento mostra
como, no caso de Fernando, são acionados vários mediadores no processo de compra desse
software, que passam, inclusive, pelas afinidades de identificação do software específico com a
atividade do VJ.

Timba também pertence a essa mesma lista e ao grupo de VJs que se organizou para a compra
do Modul8. Ele igualmente tinha o programa “baixado” até a compra coletiva, e tem manejo
com os mesmos softwares indicados por Fernando. No final de 2007, contou‐me que o preço
do Modul8, o programa que considera melhor para se trabalhar, é bem distante da realidade
do salário de um VJ brasileiro. O software custava naquele momento mil e quinhentos reais,
enquanto havia outros programas convenientes que podiam ser adquiridos por em torno de
trinta dólares. Parte desse processo, em sua opinião, é que, além dos programas não serem
produzidos no Brasil, ainda por cima mantêm uma política de preços referente aos países onde
são produzidos. Mas, além do problema do preço alto, ele acrescenta, frisando que se trata de
uma crítica: é “um hábito brasileiro, as pessoas não terem uma versão oficial do software”.
Para ele, não haveria fundamentalmente entre “os brasileiros” uma preocupação em obter a
“versão oficial”.

151
Timba declara que sempre prefere ter uma versão oficial dos programas, mesmo que,
eventualmente, numa versão mais limitada e barata; pois para ele:

a pior coisa que pode acontecer com o VJ é você estar na noite e seu computador dar um
problema. E trabalhar com computador é correr esse risco. Eu acho uma coisa bem
comum, você estar tocando e ocorrer um problema no computador, tanto o VJ, quanto o
DJ. É uma coisa que aflige os VJ’s, e se resolve tendo o software original.

Ele ainda ressalta outro inconveniente, no caso específico do Modul8, de que os próprios
fabricantes criaram um sistema de bloqueio que desabilita várias possibilidades de uso para as
versões não oficiais desse programa.

O medo da perda de arquivos ou da pane do programa e do computador é uma sensação


aflitiva comum à maioria dos produtores com quem conversei e os programas piratas são mais
fáceis de darem bug na hora da performance ou no ato da criação. Daniel Castanheira diz que
ultimamente trabalha muito com o programa de mixagem de som Ableton Live, criado por
fabricantes alemães. Ele considera o melhor “do momento”. Diz que comprou esse software
de US$500 pela metade do preço, pois eles oferecem cinquenta por cento de desconto a
estudantes e instituições afins. Enviou uma carta do programa de Pós‐graduação, conseguiu
comprar via Internet e fazer um download. Enquanto me mostrava o modo de funcionamento
do Live, ele também abriu o software minimoog115, que diz ter sido baixado. Quando pergunto
por que acabou comprando o Live, ele responde que é um software mais difícil de baixar, e
que chegou a usar uma versão pirata durante um tempo, mas dava várias panes.116

Sobre este aspecto, poderia afirmar que existe um grande medo de perder o material. Na minha
pesquisa sobre os usos do fotolog autoral verifiquei que a noção do fotolog enquanto prática exige uma
reflexão acerca do arquivamento de si, já que, em cada página, qualquer um pode acessar um ícone
para arquivá‐lo desde o seu dia primeiro dia de cadastramento. Apagar ou não esses arquivos faz parte
da constelação de escolhas do sujeito. O interessante desse autoarquivamento é que ele não termina no
suporte fotolog. Dependendo de o texto ou a foto serem considerados mais importantes, não satisfeitos
com o suporte do fotolog, os fotologgers autorais guardam seus textos num documento do Word que às
vezes chegam ao limite de imprimir tudo. O texto aparece guardado em diversos níveis, no próprio site,
no documento de Word, talvez em disquete, e ainda impresso. É através de uma grande linha de
cuidado de um eu autoral que surge o interesse pelo arquivamento de si. Por outro lado, no processo de

115
Criado por Roberto Moog, o minimoog foi um dos primeiros sintetizadores comerciais. Nos anos 70, popularizou‐
se como um teclado instrumental.
116
Só dei a devida atenção ao medo da pane ou da perda do programa pelos produtores quando no meio da escrita
da tese foi roubado o meu computador e perdi muito material de escrita e de pesquisa. Apesar de ter tido textos
extraviados anteriormente, só foi possível me identificar com o medo que apresentavam os sujeitos entrevistados
quando eu mesma me vi numa situação de ter sido privada do material que considerava valioso. Com toda a
diferença de contexto e guardando as devidas proporções entre experiências, esse sentimento de identificação foi
semelhante ao de Renato Rosaldo (1989), para quem somente o forte pesar de ter perdido a sua mulher o fez sentir
identificação com a força do sentimento dos caçadores de cabeça Ilongot. Por outro lado, os produtores que
ficaram sabendo se mostraram bastante solidários comigo quanto à minha perda de material.
152
arquivamento fora do suporte fotolog, verifica‐se uma perda da dimensão de si criada pelo hipertexto.
Se a autoridade e a autenticidade surgem na conjunção da escrita e da imagem, essa construção
desmantela‐se no momento em que há a mediação de um contexto para outro. Os vários níveis do
processo de guardar esse texto dependem de diversas mediações que passam pela decisão do sujeito e
pelas possibilidades tecnológicas encontradas por ele ao longo do tempo. O texto arquivado no Word ou
impresso contém a perda do seu duplo, a imagem ou o texto transformando‐o, dessa maneira, em outra
criação ou em novo material para ainda uma outra criação (Haraway,1989). Esses diversos suportes,
sejam eles o fotolog, o Word ou o papel impresso, contêm em si diferentes distribuições de
enquadramento e (i)materialidade. O caminho do arquivo é aquele traçado pelo mais tangível, como o
próprio papel. Se para os fotologgers autorais se manifestava um medo do suporte imaterial, o medo de
a comunidade “sair do ar” fez com que guardassem os seus textos no Word.

Daniel acabou pensando que iria usar muito frequentemente o programa; por isso decidiu
comprar a versão oficial. Ele também assegura que simpatiza com a empresa, que, apesar de
ter crescido nos últimos anos, é “low profile”, o que ele aprova. Ele elogia o método de
desenvolvimento e de pesquisa da empresa e ainda ressalta a sua política de preço razoável
para estudantes. Diz sentir uma identificação com eles, pois, ao contrário de uma empresa
como a Microsoft, os percebe “ainda como iguais”. Ele exemplifica esse sentimento alegando
que, da mesma forma como eu sou estudante, ele não “blefa” comigo, pois também é
estudante. Nesse mesmo sentido, sabe que o dinheiro que gastou para comprar o software vai
ser utilizado positivamente para continuarem o desenvolvimento do programa. Nesse sentido,
em sua concepção, ele está pensando “no lado positivo do liberalismo”. Como ele diz:

Então, “tamo junto”, como se fala, está tranqüilo, os caras merecem. E eu tinha um
dinheirinho, podia [comprar], tinha um desconto, queria usar muito, queria parar de ver
alguns probleminhas que se tem sempre que se usa programa crackeado. Então eu fui
comprar e os caras usam esse dinheiro para desenvolver. Aquela situação de liberar, de
liberalismo mesmo do mercado, você sente que o cara está usando o seu dinheiro para
você mesmo... Então tem um lado desenvolvedor, de incentivar os desenvolvedores de
verdade, os que querem desenvolver.

De modo geral, Daniel diz que esse é um tema sobre o qual pensa bastante, e afirma que há
softwares que gostaria de comprar, mas não tem como, e aí “rouba mesmo”. Não vai deixar
de trabalhar com esse equipamento por falta de dinheiro. Isso, para ele ‐ e ressalta esse fato
de maneira positiva ‐, é “bem brasileiro”. Em relação ao Word, por exemplo, ele sabe que a
Microsoft não precisa de dinheiro. Nesse caso, “é ladrão que rouba ladrão”. Já, por outro lado,
no que diz respeito ao Live, ele realmente sentiu necessidade de comprar, como justificou
acima. No caso do minimoog, ele acha o programa interessante por manter a experiência do

153
Moog “vintage”, “analógico”, “antigo”, mas não o suficiente para sentir necessidade de
comprá‐lo.

Em vários sentidos, Daniel denota em sua narrativa um processo semelhante ao de Fernando e


Timba no caminho que empreendeu até decidir comprar o programa Live oficial para criação
de som. Um caminho que se desenvolve a partir do uso experimental do programa, aliado ao
subsequente desejo de garantia e segurança e ao fato da profissionalização (relembro que, no
momento do nosso primeiro encontro, Daniel estava começando a trabalhar na trilha sonora
de um programa de televisão, e ia começar a experiência de produzir som para o seu primeiro
longa‐metragem; foi também nesse período que gravou a faixa realizada de samples de
performances do Hapax e que integraria a sua dissertação de mestrado, como veremos no
próximo plug‐in). Além disso, também se evidencia nos relatos de Daniel a sensação de
identificação com os produtores do software e com a lógica da “criação conjunta”. Eles criam
um elo de comunicação a partir do preço que oferecem, e ele sente que deseja fazer parte e
ajudar a quem o ajuda, um sentimento que não tem em relação a uma empresa como a
Microsoft. Mais adiante, Daniel também comenta que a questão da “abertura” é bastante
subjetiva, porque há empresas que liberam um software grátis na Internet, mas não liberam a
engenharia de fabricação, enquanto há outros que não liberam o produto, mas liberam a
fórmula.

Richard Sennet afirma que o sistema operacional Linux – talvez inspirado no “espírito de
aventura” do início da informática nos anos 70 – é um código contrário ao da Microsoft “cujos
segredos até recentemente eram entesourados como propriedade intelectual de uma só
empresa” (Sennet, 2009:35). Segundo o autor, os softwares livres seguem o padrão da “Open
Source Initiative”. Mas, citando o engenheiro Eric Raymond, distingue dois modelos de
software livre: o modelo “catedral”, criado por um “grupo fechado de programadores” que
desenvolve o código e depois o disponibiliza; e o modelo “bazar”, a partir do qual todos
podem participar produzindo códigos pela Internet. Para Sennet, esse modelo bazar do Linux
se apresenta como um modelo de criação semelhante ao da Grécia Antiga, pois, em seus
termos, “o sistema Linux é um artesanato público. O kernel (núcleo de software) [desenvolvido
por Linus Torvalds no início da década de 90] do código Linux está disponível a todos, pode ser
utilizado e adaptado por qualquer um; as pessoas se oferecem voluntariamente e doam seu
tempo para aperfeiçoá‐lo” (ibidem:34). Assim, haveria dois elementos que combinados
aproximariam o Linux de um padrão de criação grega: o padrão fixo pela “comunidade”, e o da
“impessoalidade”. No caso da Wikipedia – uma enciclopédia on‐line criada de forma que

154
qualquer internauta pode contribuir –, os seus usuários convivem com o problema estrutural”
de conciliar a qualidade com o acesso livre. Para Sennet, o Linux “arregimenta artífices num
bazar eletrônico (...) Ele está voltado para a busca da qualidade, a confecção de um bom
trabalho, que vem a ser o principal fator de identidade de um artífice. No mundo tradicional
do oleiro ou do médico arcaico, os padrões de um bom trabalho eram fixados pela
comunidade, à medida que a habilitação de geração em geração (...) Na rede Linux, quando
um bug é resolvido, frequentemente se descortinam novas possibilidades para a utilização do
código. O código está constantemente evoluindo, não é um objeto fixo. Existe no Linux uma
relação quase instantânea entre a solução de problemas e a detecção de problemas” (ibidem
35;36).

Na oficina on‐line do Linux, Sennet considera impossível distinguir o gênero dos participantes.
O endereço eletrônico só interessa se “contribui para o debate”, assim como os artífices
arcaicos que eram “chamados em público pelos nomes de sua profissão”. Ele também diz que
nessas oficinas tampouco vigoram “as habituais simulações e evasivas de polidez da cultura
britânica”, frisando que essa “incontornável impessoalidade volta as pessoas para fora”
(ibidem:37).

Apesar de o autor se manifestar entusiasmado com este modelo, ele deixa bem claro que esta
comunidade é bem incomum e mesmo “marginal” em relação às grandes corporações que
controlam a Internet atualmente. No caso aqui enfocado dos diferentes programas utilizados
pelos produtores e através dos seus usos micropolíticos, percebemos que esses programas se
realizam por uma combinação de modelos. Assim, mesmo “marginal”, o Linux representou
uma inspiração para outros programadores e empresas, como no caso específico do Modul8.

É também revelador como aparece como parte intrínseca à lógica da pirataria, uma
identificação com uma concepção de brasilidade. O “jeitinho brasileiro”117 opera como fórmula
negativa quando acionada por Timba (embora ele próprio tenha usado o programa pirata
durante um tempo), e positiva quando acionada por Daniel. A presença dessa característica
nesses discursos é muito importante, pois, quando perguntei sobre as razões de baixar ou
comprar, eles trouxeram a “brasilidade” para dentro do argumento. O jeitinho, pela sua
subversão das normas, aparece ora como uma característica do “atraso” em relação aos
valores “universais” e “democráticos”, ora como uma feição micropolítica, na frase expressa
por Daniel “ladrão que rouba ladrão”. Mas é claro que as empresas que desenvolvem

117
Sobre o rendimento dessa categoria há uma extensa bibliografia, mas principalmente me restrinjo ao uso de
Roberto DaMatta em seu livro Carnavais, Malandros e Heróis (1990).
155
softwares não pensam em criar alternativas de preço ou ampliar o contato com os seus
usuários, ou mesmo elaborar dispositivos que fechem programas ilegais tendo em vista
somente os usuários brasileiros. As atividades de baixar programas ilegais não são restritas a
este país. Por isso, pelo ponto de vista de tratar‐se de produtores “brasileiros”, o uso da
brasilidade como uma característica aliada à noção de roubo é muito significativa. A
brasilidade como micropolítica será desenvolvida com mais cuidado no plug‐in I.2 Daniel
Castanheira/Hapax, a seguir.

Em um ambiente mais institucionalizado, por atuar em uma produtora, Rica Amabis assegura
que não baixa programas ilegalmente, pois, se tem que usar o software é porque tem também
o hardware e o software oficiais. Ele afirma que, em geral, não “é de baixar nem programas,
nem músicas, nem filmes”, que não se trata de uma “política”, apenas de uma preferência
“pessoal”. Mas que às vezes escuta músicas que o seu parceiro, o Tejo, baixa, pois ele sim tem
a prática de baixar música da Internet. Batman Zavareze comprou o software Arkaos quando
trabalhou na confecção do evento Coca‐cola Vibezone em 2003. Ele ficou responsável por
armar cinquenta projetores, junto com o seu parceiro Fabio Ghivelder e garante ter comprado
os programas desde o primeiro trabalho que fez porque se tratava de criar um ambiente de
uma festa com grandes telões e para um grande público. Para ele, pelo porte do evento, não
valia a pena “correr o risco” de usar um programa que não fosse “oficial”. Mais adiante,
ganhou o Modul8 quando foi ao Mapping festival e conheceu um dos criadores, já como
curador do Multiplicidade. Batman Zavareze admite, como Rica, que apesar de não ter o
costume de baixar faixas MP3 ou de vídeo, muitas pessoas que trabalham diretamente com
ele têm o costume de baixar. Nesse sentido, há uma aproximação entre os posicionamentos
mais “institucionalizados" de Rica e Batman. Por outro lado, de maneira geral, Batman
qualifica como uma característica negativa a “relação que os brasileiros têm com a pirataria”,
aqui de novo aparecendo o jeitinho através de um olhar crítico. Assim mesmo, ele afirma que a
sua primeira reação à cultura do download foi de sentir que “era uma coisa brasileira”, e
depois se deu conta de que se tratava de um fenômeno “mundial”. Ele próprio revela gostar
do “objeto CD” e o compra às vezes não exatamente pelo som, mas pelo projeto de design
gráfico, fato para o que está sempre muito atento.

Os posicionamentos de Lúcio Maia, guitarrista de banda Nação Zumbi, são reveladores a esse
respeito. Ele diz ter criado um pequeno estúdio caseiro onde já compôs os seus dois discos
solo. Em relação ao programa que usa, afirma utilizar muito o Pró‐tools não‐oficial. Sua lógica
é regida pela “comodidade de não ter que gastar”. Sendo esse um programa de três mil

156
dólares, ele prefere pegar emprestado de Rica, que tem o oficial, e gravar. Apesar de também
copiar discos de amigos, ele declara não saber se posicionar exatamente a favor ou contra a
pirataria. Em suas palavras:

Não sou contra, nem sou a favor da pirataria. Eu sou contra a partir do momento que
aquilo começa a afetar o mundo. Se começar a quebrar tudo e a dificultar a vida de um
monte de gente, de toda uma linha de industrialização. No fundo, você acaba penalizado
porque você é atingido diretamente. Mas, ao mesmo tempo, eu não sou contra meu filho
mais velho baixar música no computador. Já dei um Ipod para ele, é para ele fazer isso,
praticamente. Eu fico meio em cima do muro. Não tomo muito partido em relação a isso,
porque nem eu consigo entender o que acho do assunto. Não sei dizer se sou a favor ou
se sou contra. Então, ponho a coisa desse jeito, sou meio covarde em relação a isso.

No caso de Lúcio Maia, diferentemente de Rica, ele se institucionalizou como integrante de


uma banda de rock, e valoriza comprar guitarras únicas e raras, levando em consideração a
fabricação manual desses instrumentos. Por outro lado, os dois discos do projeto Maquinado,
que lançou unicamente com o seu nome no “pequeno parque de diversões” ‐, o seu estúdio
caseiro ‐, é qualificado como uma atividade que realiza “nas horas vagas do Nação Zumbi”.
Assim, o programa que utiliza para gravar o disco não tem que ser necessariamente oficial ou
original, ainda mais se um amigo pode lhe emprestar o programa original.

Esses depoimentos levam a pensar sobre a modalidade de copiar. Ela pode ser feita no mundo
virtual e no mundo real. A diferença é que no mundo virtual você nem sempre tem acesso às
pessoas de quem copia, enquanto na vida real as cópias rodam dentro de um círculo de
amizades. Nesse sentido, por mais que Rica e os seus parceiros do Instituto tenham os
equipamentos legalizados, não deixam de emprestá‐los aos amigos. E mesmo que
especificamente Rica não tenha a prática de baixar músicas da Internet, ele ouve as dos
amigos que as baixam.

Mas a opinião de Lúcio Maia sobre a pirataria é bem oportuna, porque aponta para uma
quebra de um modelo no qual ele está inserido. Quando ele diz não avaliar exatamente a
questão da pirataria e admite posicionar‐se “em cima do muro”, está dizendo que tem
elementos sobre o mundo que ele não controla, e que as suas práticas podem ter fugido de
uma coerência em relação a uma das posições estanques: não querer perder o direito autoral,
ao mesmo tempo que seu filho baixa ilegalmente músicas de outros autores para ouvir em seu
Ipod. Nesse sentido, os seus sentimentos ambíguos se aproximam das opiniões de Fernando
Salis sobre disponibilizar o seu material bruto para outros colegas VJs; ambos sofrem por

157
viverem entre “modelos”. Com esta afirmação, não gostaria que o leitor imaginasse que o
modelo da pirataria é o “último” ou “mais moderno”. Como todos os exemplos mostram, a
vivência de cada um dos produtores citados acaba por destruir modelos reificados; verificamos
uma constante adaptabilidade ou negociação entre modelos. Por outro lado, também
percebemos que na maioria dos casos, à medida que ganham habilidade e se institucionalizam,
os produtores tendem a comprar os seus equipamentos, muitas vezes contando com um
melhor funcionamento da ferramenta nos momentos de criação. E o(s) programa(s) baixado(s)
ilegalmente anteriormente pode(m) ter servido como um período de aprendizado, durante o
qual os produtores conhecem uma série de vantagens até encontrarem um com o qual se
identificam e passam a trabalhar com eles. Assim, finalizo esta extensão plug‐in com a noção
de que crackear e comprar não se apresentam como alternativas discretas, mas sim convivem
dentro de uma constelação que podem se ligar a processos de acúmulo de habilidades,
institucionalização, formação de grupos e a hierarquização relativa à importância de cada
software para os produtores.

158
Plug‐in I.2: Daniel Castanheira/Hapax

“Devir‐33’4”

Em mais de uma ocasião Daniel frisou que o “trabalho mais relevante” para refletir sobre a sua
“produção artística” era um projeto recente de GPS art, associado a uma performance, que ele
considera “repertório do grupo”, chamada “Burro sem Rabo”, realizada com o coletivo a que
pertence, o Hapax. Daniel justifica a importância desse projeto em sua biografia ao afirmar que
todos os seus trabalhos empreendidos dentro do “circuito artístico”, os que qualifica como
“arte sonora”, são assinados por ele com o nome do coletivo Hapax, e não individualmente.
Nessa associação, ele ilumina sua subjetividade de artista como parte de um coletivo, em
contraste com outras atividades que assume e assina individualmente, e que já foram
apresentadas na primeira parte desta tese (ver especialmente Capitulo 2 – Daniel
Castanheira). Ante a possibilidade de escolher um projeto para ser elaborado na minha tese,
ele opta por ampliar a rede que performatiza a visibilidade do Hapax, algo que os seus três
integrantes atuais – além de Daniel, nele estão Ricardo Cutz e Ericson Pires – fizeram em suas
publicações e trabalhos acadêmicos.

Do meu ponto de vista, apesar de ter visto duas performances do grupo ao longo dos anos,
nunca o fiz com objetivo “etnográfico”. Havia ainda o agravante de que, quando entrei em
contato primeiramente com Daniel, o Hapax tinha acabado de retirar a instalação Transitantes,
que ficou exposta no Centro Cultural Hélio Oiticica. Isso em princípio poderia causar uma
dificuldade na apreensão do trabalho artístico que o grupo realiza, centrado na performance.
Como afirma Ricardo Cutz em sua dissertação de mestrado, bem no encerramento da
descrição do coletivo:

O Hapax se colocou dentro da cena como um objeto errante, não deixando nada, apenas
registros em vídeo e som. Não efetivaram uma passagem para o mercado de arte como
produtores de objetos. Seus ambientes sempre dependeram de sua presença física ativa.
Só faltou ao Hapax uma legenda: “Não tente isto em casa” ou “Feito por profissionais”
(Cutz, 2008:112).

Como não deixaram “nada”, apenas “resíduos”, como afirma Cutz, não somente os sonoros e
audiovisuais (que disponibilizam no site do coletivo e na página da comunidade
www.vimeo.com de Ricardo Cutz), mas também em suas elaborações acadêmicas, e já que eu

159
não vi “nada” (referindo‐me especificamente às suas performances), escolho diferentes
resíduos, principalmente um registro sonoro, como tema de desenvolvimento deste plug‐in.
Uma etnografia de resíduos tem ressonância com o método indiciário ou abdutivo que já foi
seguido no capítulo 2. Assim, gostaria de sugerir que o CD que integra a dissertação de
mestrado de Daniel cumpre o papel de funcionar como uma “pessoa estendida” (Gell, 1998)
de Daniel e do Hapax e, ao mesmo tempo, opera como um importante mediador (Latour,
2005). Tratando‐se de uma produção artística ancorada fortemente na performance e no
efêmero, verifiquei que esta faixa sonora, registrada em CD, é também uma criação que tem
como inspiração um dos últimos projetos do coletivo. Assim como o vídeo de seis minutos de
Fernando, comentado no plug‐in I.1: Fernando Salis, esta faixa musical tem uma autonomia
criativa e ao mesmo tempo evidencia conexões com outras dimensões da vida de Daniel. E, se
seguimos a “rede” propiciada por esta faixa sonora, ela se associa às relações imbricadas em
que o próprio Daniel se performatiza: um trabalho acadêmico que abriga uma produção
musical inédita, realizado em cima de samples sonoros de três “derivas” performáticas do
“Burro sem Rabo” do Hapax. Se, no caso de Fernando Salis, o vídeo foi realizado como uma
amostra da experiência de uma performance, e com o intuito de divulgar o seu trabalho, no
caso de Daniel, o registro da faixa sonora propõe‐se a criar uma experiência auditiva
autônoma de três performances diferentes.

Esta etnografia dos resíduos conta com textos dos três integrantes do coletivo, encontros com
Daniel, uma entrevista com Ricardo Cutz118 e registros de performances disponíveis no site do
Hapax e do www.vimeo.com de Ricardo Cutz. Como disse na abertura desta Segunda Parte, há
um esforço de trabalhar a partir do material disponível de cada um dos entrevistados. Esse
material resulta diretamente da mediação e de tipos de encontros possíveis que se realizaram
desde que entrei em contato com cada um dos produtores. Assim, a própria qualidade da
etnografia tem um deslocamento de uma vivência no ato da performance para uma vivência
com os registros sonoros e visuais, afirmando com isso também a potência de uma etnografia
de espaços virtuais. A forma deste plug‐in ganha inspiração na sequência criada por Daniel no
capítulo de sua dissertação de mestrado chamado “O movimento forjado em música”; para
chegar ao CD, Daniel apresenta primeiramente o Hapax; em seguida, descreve o Burro sem

118
Acredito ser oportuno retomar um ponto sobre o recorte desta tese. Haveria um recorte possível de integrar
Fernando Salis dentro do campo dos VJs e trabalhar com todas as indefinições que permeiam a atividade‐
identididade desse modo expressivo. Um trabalho dedicado ao Hapax também se justifica, como os próprios
Ricardo Cutz e Ericson Pires o fizeram, cada um a sua maneira. O que me interessa verificar é como Daniel
Castanheira cria diferentes extensões de sentido em suas diversas atividades. Entrevistei Ricardo Cutz não como
outro integrante do Hapax, mas porque ocorreu a Daniel que ele também articulava um agenciamento que
interessava à minha pesquisa.
160
Rabo; e finalmente disponibiliza o CD para ser escutado. Essa ordem será respeitada aqui, a
partir de um recorte interessado de sua dissertação de mestrado.

Daniel OnPaper: “O buraco 1”

A sua dissertação intitulada “O lugar público de Agrippino. Trânsito e espacialidade na cidade‐


qualquer”,119 defendida em abril de 2009, no departamento de Pós‐graduação em Estudos de
Literatura da PUC‐Rio, chegou finalmente às minhas mãos no momento de admissão de Daniel
na PUC como professor do curso recém‐aberto de Artes Cênicas, no início de 2010.120 Daniel e
eu nos encontramos na Vila dos Diretórios, um espaço bastante peculiar da universidade,
porque ao mesmo tempo em que transitam professores, pois há “casas” com material xerox
dos cursos, haveria ali o que poderia ser chamado, segundo a terminologia deleuziana, de um
estriamento alternativo, 121 – que Daniel ajudou a (re)inventar e que fez dele um “personagem
carioca” ao longo da década de 90. Dez anos passados do século 21, Daniel ensaia uma nova
entrada, mas agora com os documentos de admissão para lecionar no ambiente em que
estudou.122

Depois do encontro na PUC (quando me entregou a sua dissertação), ficou fácil encontrar com
Daniel pela universidade e fazer daquele espaço o lugar privilegiado para a troca de
informações, muitas vezes pautada por entrega de material. Foi logo depois de ter ouvido a
faixa sonora que integra a tese que nos encontramos depois de nossas aulas. Disse‐lhe que
havia escutado o CD e que gostaria de fazer um último encontro para conversar sobre o
processo de registro. Ele perguntou quais eram os meus outros entrevistados e, enquanto eu
listava os produtores sonoros e visuais, alguns conhecidos dele e outros não, confirmou que,
depois das figuras dos DJs e VJs, recentemente havia surgido a figura do DJVJ, aquele que
opera imagens e sons simultaneamente. Aproveitei para dizer (mais uma vez) que gostaria de

119
José Agrippino de Paula é um autor que surge ligado ao tropicalismo nos anos 60. Escreveu Lugar Público, em
1965 (a principal referência para a dissertação de Daniel Castanheira), e PanAmérica, em 1967. Este livro ficou
conhecido por sua narrativa fragmentada e não linear, assim como por ter como personagens principais ícones da
cultura pop norte‐americana. Nesse período também realizou filmes, peças de teatro, dirigiu shows e compôs
músicas. Faleceu em 2007, já há muitos anos afastado, após o diagnóstico de esquizofrenia nos anos 80.
120
No nosso primeiro encontro em sua casa, Daniel estava começando a formular o conteúdo de sua dissertação.
121
Deleuze e Guatarri utilizam a noção de “espaço liso” como oposto ao “estriado”. O espaço liso sempre tem uma
codificação, um mapa, ao contrário do mar, o exemplo de um “espaço liso” (Deleuze e GUatarri, 1997). A Vila dos
Diretórios tem uma característica singular na PUC. É um espaço que foi “tomado” pelas “regras” dos próprios
alunos, usado para atividades festivas, e também para “estar” entre as aulas ou para “matar aula”. Dentro do
referencial de estereótipos ligados ao mundo PUC, desde os anos 90 as pessoas que frequentam esse espaço são
tachados de “neo‐hippies”. A Vila dos Diretórios também é usada como espaço de política estudantil, trotes.
122
Ao longo do semestre, Daniel (e também Fred Coelho) descobriu que a sua admissão seria temporária já que sua
disciplina é disponibilizada para os alunos de 3º período e, como o curso é bem novo, ainda não há uma turma
disponível para o segundo semestre de 2010. Apesar disso, ele espera ser chamado para ministrar outras aulas
nesse curso no início de 2011.
161
usar o seu CD na tese, como uma produção que ao mesmo tempo ilustrava a sua
expressividade autônoma e a do coletivo Hapax. Não era a primeira vez que lhe falava de
minha vontade de apresentar a sua faixa sonora, e nunca ficou claro para mim se Daniel achou
uma “boa ideia” eu trazer como um exemplo ilustrativo de relevância para a minha tese a
análise de sua produção sonora. Nunca a contestou, mas jamais se mostrou abertamente
entusiasmado.

Já havia pedido para ler a sua dissertação em outras ocasiões, porque, em determinado
momento, Daniel me disse que esse trabalho era um complemento de um filme, um CD e um
texto. Segundo ele, a banca examinadora havia tido alguma dificuldade em perceber a
articulação entre esses três elementos, o que, para os membros da banca, poderia ter sido
remediado com uma mudança no título. Essa sugestão parecia fazer sentido para ele enquanto
abria comigo uma cópia com rasuras e comentários do autor, além do filme e do CD originais.
Num envelope, ele me disponibilizou cópias gravadas do filme e do CD. Fez questão de abrir
comigo o sumário, mostrar um desenho que fez a nanquim de uma das primeiras elaborações
do “Burro sem Rabo”, e as capas do CD e do DVD, também desenhadas por ele.

Acredito que sua dissertação chamou minha atenção, mesmo sem saber sobre o seu
conteúdo, exatamente por ele afirmar que o CD e o filme não eram “ilustrações do texto”, mas
funcionavam como acessos autônomos de leitura da tese como um todo. Como ele mesmo
esclarece na abertura da elaboração e tratamentos dos materiais audiovisuais em sua
dissertação:

Essa parte da dissertação que aqui se inicia está composta por três jazidas, ou buracos.
Eles são fruto de experiências pessoais e coletivas desenvolvidas durante o período de
mestrado, que visam dar lugar a tentativas reais, efetivas, de materializar o espaço
subjetivo, ou subjetivar o espaço concreto, forjando distopias entre uma instalação
sonora, uma transliteratura e um diário de viagem. Para tal, outras mídias são oferecidas;
não como um intuito ilustrativo, mas pretendendo expandir o debate com o cruzamento
suplementar de linguagens (Castanheira, 2009:64).

A parte que Daniel caracteriza por “Buracos” é essencial para a organização múltipla de sua
tese ao recusar uma designação específica: um experimento literário, um experimento sonoro
e um último audiovisual (o seu primeiro filme). Além disso, dos três "buracos" a que Daniel se
lança em experimentos, um é dedicado ao que elabora conjuntamente com o Hapax. Parece
uma metáfora de como é possível dizer que Daniel é, ao mesmo tempo e parcialmente, Daniel
e Hapax, e de como a sua dissertação mostra‐se como um objeto, uma pessoa estendida, um

162
mediador a partir do qual se torna possível fazer uma análise do CD contido na tese. O Buraco
1, intitulado por ele de “O movimento forjado em música”, dedica‐se principalmente ao
projeto mais recente do coletivo artístico a que pertence, o Hapax, por ele chamado de
“Burro sem Rabo”, e apresenta ao final dessa jazida um CD realizado por ele de remixes
resultantes dos sons gerados pelo coletivo com três performances do Burro sem Rabo.

Em termos de forma, ele divide a dissertação em três partes: primeiro, criou um formato de
“crônica íntima”; a segunda parte abre uma discussão com a teoria literária; e os três
"buracos" autônomos no final se juntam ao seu compromisso de, como afirma, “fazer ler, de
discutir sobre a minha prática como artista, como músico, a partir da literatura”. E, como
dimensões intrínsecas ao formato, suas preocupações se orientam para o “falseamento”, o
“fluxo urbano”, os “elementos desviantes, sem lugar”, como considera ser o lugar de José de
Agripino na literatura brasileira.

Quando Daniel trouxe a dissertação, sentou‐se ao meu lado, mostrou‐me o índice e abriu em
seguida o item C da Parte I, chamada por ele de “Crônica”; leu em voz alta os dois primeiros
parágrafos que aqui cito:

Diversas questões tangenciam meu acesso a esse texto. De uma maneira geral, todas
dizem respeito a relações pessoais. De maneira alguma, é interessante que fique claro, o
objeto apareceu como fruto de um processo de pesquisa, resultado de uma ciência do
pesquisador, seja ele historiador, arqueólogo, paleontólogo, ou tudo isso ao mesmo
tempo. Ao contrário, parece ter sido um tipo de achado‐tropeço. Um tropeço em
amizades, circuitos e na própria cidade do Rio de Janeiro.

Como cidade do Rio de Janeiro, vale aqui o pedaço estético: estetizado e estetizante.
Aquele que vive ao redor de uma Lagoa, entre uma restinga e uma montanha, e que
aparentemente, possui uma baía para onde o senhor olha fixamente de braços abertos,
sem conseguir fechá‐los. Na capital dessa cidade, chamada Leblon, habitam várias
pessoas bonitas, inteligentes, influentes, ligadas à cultura e ao entretenimento – às vezes
também à arte. Dentre essas pessoas, conheço várias e, de algumas, sou amigo.
Naturalmente que conheço e sou amigo. Sou também carioca: bonito, inteligente,
influente, ligado à cultura, entretenimento e às vezes à arte. Apesar de não morar por aí,
ter nascido em outra cidade chamada Jacarepaguá e ter morado durante muitos anos em
outros sítios, no Brasil e fora dele, apareço muito no Leblon: de noite, que é hora boa. De
dia faz muito calor, e praia mesmo é no arpoador (Castanheira, 2009:5).

163
Seu objetivo, ao instaurar o estilo de crônica, era “brincar” com a “seriedade” outorgada às
“teorias relacionadas ao arquivo”, ao mesmo tempo em que apresentava em sua tese
documentos inéditos de “arquivo”. Assim acentua o recurso irônico. Em seguida à leitura desse
trecho, ele explicou que se tratava de apresentar o tema com relação à “nobreza carioca”, e
“retirar qualquer peso outorgado ao conceito de trabalho científico”. De fato, na continuação
das páginas que seguem o trecho citado, ele não “perdoa” ninguém, nem os amigos íntimos,
nem a instituição que havia rejeitado o seu ingresso no ano anterior. Esse elemento
“irreverente” se manifesta inclusive em seus agradecimentos da tese, onde consta uma pessoa
relacionada a atividades ilegais. Seu ar de deboche também se refletia no contato que
estabeleceu comigo, quando dizia para eu vestir o meu “jaleco branco de antropólogo”; ao
mesmo tempo dizia sentir‐se “orgulhoso de ser citado”. Na verdade talvez nessa zombaria já
exista um elemento de afetividade, e no afeto se expressam abertamente os seus círculos de
amizades que também coincidem em grande parte e compartilham com ele as criações. É
nesse tom que Daniel exibe o seu trabalho no coletivo. Mas, antes disso, seria importante
contextualizar esse trabalho dentro do quadro de referências a partir do qual o Hapax se
apresenta. Uma espécie de histórico do grupo narrado por meio de seus escritos.

Hapax OnPaper: A invenção do nome pela escrita


Hapax significa a instantaneidade do instante. Pelo Aurélio, “palavra de uma língua extinta de que se
possui um só exemplo: (forma abreviada do grego)” hápax lego menon “coisa dita uma única vez.”.
(www.hapax.com.br)

Os trabalhos do Hapax, os tipos de socialidade que compõem e as performances e “objetos”


que criam são mais do que relevantes para esta pesquisa pela estreita relação que
estabelecem entre expressividade e tecnologia. Convém mencionar que há um material
considerável escrito pelos próprios integrantes do coletivo sobre essas múltiplas elaborações.
Na verdade, torna‐se aparentemente difícil dizer algo sobre eles, pois eles próprios parecem já
ter dito “tudo” sobre as atividades que exercem. Essa sensação indica a dificuldade do estatuto
do antropólogo como aquele que “representa o outro”, nas afirmações de Goldman (2009) e
Otávio Velho (2008). Há vários artistas, muitos ligados à arte conceitual, que elaboraram uma
série de textos sobre a sua obra. No caso dos hapaxers, no entanto, esse falar de si ganha
institucionalização nas Universidades, aliada a bolsas outorgadas para a produção de
conhecimento. O curioso é que nenhum dos três integrantes realizou os seus projetos de pós‐
graduação em um programa de “belas artes”; mas foi como se houvesse um contínuo diálogo
entre a criação do conceito na forma de objetos ou performances e na forma escrita. Ou seja,

164
ao optar por departamentos de literatura e comunicação, performatizam na escrita a ideia que
sustentam como produtores.

Na dissertação de mestrado defendida no departamento de Letras da PUC‐Rio, Daniel dedica


um capítulo a este último projeto que me incentiva a analisar. Por sua vez, na sua dissertação
de mestrado, defendida na ECO/UFRJ, Ricardo Cutz contextualiza o histórico do Hapax dentro
do campo da arte sonora e da produção dessa cena entre 2001 e 2007, no Rio de Janeiro. E
Ericson Pires, no seu livro Cidade Ocupada (2007) – baseado em sua tese de doutorado,
defendida em 2005 –, também situa o Hapax no contexto mais amplo de produtores de arte da
cidade, mostrando‐o como parte de uma cena que se formou no final dos anos 90. Dessa
forma, apesar de apontar para projetos com objetivos diferenciados em suas teses, eles se
“reverberam” nos agradecimentos dos trabalhos de titulação acadêmica dos três integrantes,
nas citações que fazem uns dos outros e na maneira como inventam, enquadram,
institucionalizam, territorializam o Hapax.

Como já havia dito Daniel em sua entrevista, a formação inicial do coletivo se aproximava mais
das características de uma banda. Mas, ao longo do tempo, eles direcionaram seus interesses
para realizar projetos de arte sonora visando à “interferência urbana” e à “performance”.
Contudo, apesar de trabalhar no “âmbito” das artes, Daniel (e também Cutz, como vimos
acima) afirma que há uma forte crítica ao domínio da arte‐instituição (inclusive as galerias e as
salas de estar); pois, em razão dos tipos de materiais com os quais eles trabalham, têm uma
enorme dificuldade de serem expostos; muitas vezes, as suas “esculturas sonoras” são
compostas de dejetos achados na rua, “sujos”, “feios”, “degradados”, que não combinam
“com a cor da cortina da sala burguesa”. De fato, a relação com “o mercado da arte”, parece
estar sempre em tensão. Daniel afirma que o coletivo não tem marchand, galerista, produtor,
agente, nem qualquer figura parecida relacionada ao “mercado de arte”: “não somos bons
produtores de si”, declara Daniel, ressaltando a metaforização de produção como
gerenciamento. Além disso, Daniel também diz que com os trabalhos que desenvolve junto ao
Hapax não ganha o seu principal meio de sustento, apesar de ocasionalmente entrar um
dinheiro que qualifica como “bom”. Ericson Pires atua como professor adjunto de artes visuais
na UERJ, e Ricardo Cutz trabalha como produtor de som para cinema. Assim mesmo, o grupo
está sempre atento a editais governamentais, como os da Funarte, e Daniel diz que já haveria
alguma institucionalização do grupo no circuito de eventos musicais ou artísticos em que se
estabeleça algum tipo de relação entre tecnologia e performance. Essa ambiguidade com a
arte‐instituição se ilustra com o fato de terem há pouco tempo ganho um prêmio do Ministério

165
da Cultura e de estarem refletindo sobre a possibilidade de doar o seu “Burro sem Rabo” ao
MAM, já que “ninguém vai querer comprar”; além disso, têm peças que estão espalhadas pelo
Rio de Janeiro, parte com o “Cesinha Oiticica”, e outras partes na casa de Neville D’Almeida.
Então vejamos nos próximos trechos como cada um dos três integrantes do Hapax descreve as
características do coletivo a que pertencem:

Ressaltando um trabalho particular como parte de um experimento coletivo‐individual, Daniel


Castanheira afirma:

para além dos motivos e interesses privados, o coletivo de arte Hapax, do qual sou
integrante desde 2002, sempre ofereceu incansáveis possibilidades de exteriorizar, em
ação, [um] desejo íntimo. Caracterizando‐se, antes de mais nada, pela busca de uma
poética urbana a partir da intervenção física, presencial, em direção às sonoridades dos
lugares públicos, essas ações eram realizadas de forma densa, saturada, no limite do
enfrentamento, desafiando a lógica do movimento eficaz e produtivo que sempre fez
parte da composição de forças e da configuração espacial de uma cidade qualquer.
Traçando sempre um percurso híbrido, o grupo Hapax criou, ao longo de sua existência,
essa poética aplicada a diversas linguagens – como a intervenção urbana, a música/arte
sonora, a escultura/objeto, performance, etc. Em todos os campos o que está em jogo é
uma constante investigação do som, dos corpos sonoros, produtores e receptores de
ruídos que compõem o ambiente público, lançando a cidade contemporânea numa ação
lúdica e performática a partir de sua sonoridade.

Desse modo, em vários ensaios e tentativas diversas, transmitimos, percebemos,


executamos e registramos um tipo de sonoridade metálica, tanto em seu sentido teórico
quanto material, em nossas interfaces sonoras (instrumentos musicais?), constituída por
um conglomerado de sucatas de metal recolhidas pelas ruas, depósitos e pátios
industriais, aliado a um amplo mosaico tecnológico, tensionando hitech e lowtech:
samplers, sensores, sintetizadores, baterias eletrônicas, computadores, rádios UHF –
praticamente todo e qualquer aparato eletro‐eletrônico capaz de transmitir e inscrever
som (Castanheira, 2009:66)

Ericson Pires, a partir de um quadro contextual de produção de arte contemporânea nos anos
90, assim qualifica o Hapax em seu livro:

O grupo de ação de arte Hapax – formado por Daniel Castanheira, Marcelo Mac, Ricardo
Cutz e o presente autor – surgiu a partir de instaurações musicais instantâneas realizadas
na Lapa, Centro da cidade, durante oito meses de 2000. Logo após, o grupo se associou a

166
outros coletivos – o Atrocidades, o RRRadial, o Imaginário, o espaço Zona Franca, entre
outros –, realizando ações nos mais diversos espaços e situações. O Hapax é uma
proposição de intensificação dos processos de diferenciação realizados a partir de suas
experienciações em movimento. A intensidade instaura a potência de realização de um
outro real, o instante viabiliza à ação a liberdade de atuação do acaso e da dispersão,
transformando a experiência em processo de experienciação coletiva, rompendo com a
acumulação e controle, criando uma atividade de desobediência. A desobediência
pensada aqui como uma posição política a favor da afirmação dos processos de
singularização e diferença. Hapax é a instantaneidade do instante. (Pires, 2007: 324)

E Ricardo Cutz, colocando o histórico do coletivo dentro de um quadro de referência de “arte


sonora”, descreve da seguinte maneira o Hapax:

O Hapax atuou de 2001 a 2007 realizando uma série de trabalhos marcados nitidamente
pela performance e por uma relação com ready‐mades compostos de materiais pós‐
industriais de ferro e aço. Sucatas industriais montavam assemblagens esculturais que
eram usadas como instrumentos de percussão. Durante vários meses, o trabalho do
grupo consistiu em realizar um conjunto de intervenções urbanas que criavam um
momento de celebração e desobediência, com calçadas transformadas em palco. (Cutz,
2008: 102‐103).

Os trechos retirados dos autores funcionam em seus respectivos trabalhos como uma
introdução ilustrativa do percurso do grupo em que apresentam as questões que direcionam
as suas preocupações conceituais. Cada um com uma proposta diferente situa o coletivo
dentro da linha singular que todos tecem em seus trabalhos acadêmicos. Cada um abre o
diálogo com o outro e, assim, todos desenvolvem um quadro de ação em que o conceito
criado no âmbito artístico ganha uma reflexão literário‐acadêmica conceitual. Nesse processo
de apresentação do conceito, legitimam o grupo e também performatizam a sua existência.
Outro elemento que chama a atenção é um movimento autorreferente do grupo. O autor José
Agripino de Paula ‐ a inspiração que norteia a dissertação de Daniel Castanheira ‐ aparece
como epígrafe da dissertação de Ricardo Cutz, defendida no ano anterior. São numerosas as
citações uns dos outros nos trabalhos acadêmicos. Assim também Ericson Pires consta da
banca de titulação de mestre de Daniel. No artigo, escrito por Castanheira, “Transfaces. O
movimento forjado em música” que compõe a publicação Entre ouvidos sobre rádio e arte,
organizado por Lilian Zaremba (2009), ele abre com uma epígrafe de Ericson Pires. Algo
interessante sobre este último artigo de Daniel é que ele começa a falar do grupo Hapax como
representante desse coletivo, enquanto, no trecho da dissertação com o mesmo título e quase
167
com ao mesmo conteúdo, usa mais o recurso da primeira pessoa. No primeiro caso, ele
incorpora a voz do coletivo trabalhando como um mediador‐hapax; no segundo caso, ele
assume a voz de um eu‐autoral.

É possível verificar que os integrantes do Hapax inscrevem a sua ação artística em três
diferentes cenários. Ricardo Cutz configura os trabalhos do coletivo dentro do quadro
conceitual da Arte Sonora, enquanto Pires inventa uma cena de arte e performance no marco
geracional da década de 90, e Castanheira relaciona os projetos do coletivo no interior de uma
conceituação própria à cidade. Assim mesmo, nos trechos que escolhi, especificamente
concentrados em descrever a atuação do coletivo, nota‐se que há duas noções‐chave no seu
enquadramento: uma primeira respectiva ao instantâneo. Hapax, a performance instantânea
da cidade. Nessa intensa preocupação com o instantâneo, instaura‐se “a potência de
realização de um outro real”; “o instante viabiliza à ação a liberdade de atuação do acaso e da
dispersão, transformando a experiência em processo de experienciação coletiva”. Essa
“experienciação coletiva” leva para a segunda noção‐chave: a desobediência. Com o
agenciamento do instante, rompem‐se a “acumulação” e “o controle”; e, nesse sentido, a
atividade de desobediência seria “pensada aqui como uma posição política a favor da
afirmação dos processos de singularização e diferença”. A desobediência se dá por meio de
gerar enfrentamento entre o público e o privado, o high‐tech e o low‐tech, o som e o ruído.
Veremos a seguir, como articulam as ideias agrupadas acima, especificamente em relação ao
projeto Burro sem Rabo.

168
“Burro sem Rabo” ou Registros como resíduos: Hapax Online

Transitantes. Centro de Arte Hélio Oiticica. Novembro de 2008.

Daniel narra que ao total realizaram quatro performances com o Burro sem Rabo. Duas delas
sem o GPS e outras duas com o uso desse dispositivo. A imagem que vemos como epígrafe
desta sessão é parte da exposição que fizeram no Centro Cultural Hélio Oiticica no final de
2008, já com sua versão em GPS, percebida pela tela ao fundo, onde consta o desenho do
percurso que realizaram pela cidade. Mas vejamos como Daniel explica o conceito do Burro
sem Rabo:

A performance “Burro sem Rabo” [é] parte do que poderíamos chamar de repertório do
grupo. Ela acontece enquanto realiza‐se um percurso que atravessa um território
selecionado da cidade, divulgado anteriormente, construindo uma situação de tensão
sócio‐econômico tecnológica. Um carro popular de carga, de tração humana, batizado no
Rio de Janeiro como Burro sem Rabo, é preparado para gravar, processar e transmitir
sons, a partir de diversas mídias. Assim, durante uma deriva urbana, catamos sons pelas
ruas, pelos becos, viadutos e bueiros, muitas vezes transmitidos por nós, e justapostos
aos ruídos da cidade, durante o percurso para, no ponto final estabelecido, remixarmos
esse material ao vivo numa apresentação sonora/musical (Castanheira, 2009:69‐70).

169
Segundo Cutz, a primeira versão do Burro sem Rabo foi realizada em 2006. Essa “performance
de deriva urbana” tinha como objetivo “ocupar virtualmente espaços marginalizados de uma
metrópole” e interferir na paisagem sonora da cidade. Consistiu na criação de um burro sem
rabo, preparado com mesa de som, alto‐falantes, um tocador de MP3, um gravador portátil
digital, um notebook. Nessa primeira vez, realizaram a performance no Rio de Janeiro, saindo
da Rodoviária Novo Rio até o Centro Cultural Oi Futuro, no Catete (cf. Cutz, 2008:109). A
segunda performance foi realizada incorporada à programação do festival de mídias móveis
Arte.mov em Belo Horizonte. Nessa segunda versão, fizeram a performance com um
localizador GPS, um celular GSM e completaram com uma instalação audiovisual .

Assim a descreve Ricardo Cutz:


“Em sua segunda versão, o Burro‐sem‐rabo foi realizado de forma mais complexa, sendo acoplado à
performance um localizador GPS que, acoplado a um celular GSM, permitia recuperar em tempo real e
transmitir dados sobre a localização, velocidade e distâncias do grupo enquanto ele derivava por Belo
Horizonte. Nessa versão, o conjunto GPS/GSM permitiu ao grupo controlar remotamente um software
de produção musical. A partir de suas coordenadas e velocidade, o grupo manipulava uma composição a
distância via satélite. Nessa apresentação de Burro‐sem‐rabo, co‐titulada A cidade será Tocada,
desenvolveu‐se o mesmo aparato performance/deambulação‐difusão gravação‐performance musical da
primeira versão, com a adição de uma instalação audiovisual composta de uma imagem renderada em
tempo real do circuito que o grupo realizava em Belo Horizonte, somado ao software controlado
remotamente. Para entender melhor, a cada variação nas coordenadas ou velocidade do grupo pela
cidade correspondia uma ação sobre o software de música. Para uma corrida nas ruas, um eco ou uma
reverberação excessiva respondiam no computador. (...) Na produção de Burro‐sem‐rabo, o grupo, pela
primeira vez, pôde contar com a elaboração de softwares que permitiu a realização do controle remoto.
Dentro das máquinas digitais, sendo tudo código, é possível elaborar quase todo tipo de transformação.
Assim, foi possível transformar as linhas de código do GPS, que eram representações binárias de
latitude, longitude, distância percorrida, velocidade, em linguagem MIDI, uma linguagem de
computação que tem por objetivo representar a performance instrumental dentro do ambiente digital.
Então, para cada gesto dentro da urbanidade, havia uma analogia gestual musical, mas de uma
musicalidade eletrônica, quase de DJ” (Cutz, 2008:112).

No site http://vimeo.com, de Ricardo Cutz, e no site do coletivo, há pequenos clipes que


variam entre três a doze minutos e contêm flashes de diversas performances realizadas pelo
grupo ao longo dos anos, mas utilizarei unicamente como referência as imagens relacionadas
às derivas do Burro sem Rabo, no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte, porque foi dessas
derivas que Daniel colheu material para o seu remix.

Ver amostra visual C e D

Nos clipes disponibilizados das peformances do Hapax, os três integrantes alternam o uso de
dois “uniformes” do grupo. Daniel conta que o mais simples foi confeccionado por eles
próprios, e a modelagem segue a forma de um traje de jogador de futebol, de cor amarelo‐
vivo, com o nome do grupo na frente da camiseta, e o número do jogador atrás, de preto. São
170
as cores do Volta Redonda. Daniel diz gostar dessa camiseta e esporadicamente a utiliza em
seu cotidiano. O segundo uniforme surgiu em um momento que Daniel considera “mais
midiático” do Hapax, um momento em que “tinham assessoria de imprensa”. Esse uniforme,
mais elaborado e menos usado, foi criado pelo OEstudio, e consiste de uma calça e um casaco.
A roupa é preta, de mangas compridas com pequenos detalhes em amarelo e veste rente ao
corpo. O Nobu (referindo‐se ao estilista Nobuyuki Ogata do coletivo OEstudio) já havia feito
alguns trabalhos de VJ para eles e confeccionou a indumentária que costumam utilizar em
situações de performance mais “institucionalizadas”. Assim mesmo frisa que a própria lógica
do uniforme é subvertida. Nas poucas vezes em que optam pelo segundo traje, Daniel diz que
não usa a calça, pois prefere vestir uma parte de baixo mais confortável, como um bermudão
de skate. Ricardo, habituado a ficar atrás do computador, também não costuma portar a parte
de baixo. Em um dos vídeos, vemos que Daniel e Ricardo usam o uniforme “comum” e Ericson,
o mais costumizado.

Conversando com Daniel, ele explica que o uniforme nasceu como parte da necessidade de
oferecer uma sensação de coesão, de “time” do grupo, no momento de “enfrentamento com a
cidade”. Ele descreve as situações de performance como sempre à “beira do enfrentamento”.
Principalmente em relação ao material com o qual trabalham ‐ pesado, perigoso ‐ ao saírem
com o Burro sem Rabo, é comum se cortarem, e depois terem que tomar antitetânica.
Inclusive para se proteger, cada um costuma usar um rolo de esparadrapo nas mãos a fim de
amenizar possíveis (e esperadas) lesões. Como ele comenta,

O Hapax era um assalto urbano e na rua os “bichos” são soltos. Todo tipo de gente
(“entidade”) passava por ali. Isso ajudava a diferenciar quem estava responsável pela
jogada. Causava um respeito de alguma forma. Trata‐se de uma experiência anárquica,
violenta muitas vezes, perigosa. Sempre puxamos gato de eletricidade, o carro é pesado,
leva a energia para um lado violento, de quebrar de jogar, parar o trânsito, polícia. Um
enfrentamento.

O uniforme seria um acessório importante na hora de dar visibilidade ao grupo durante uma
performance no meio do espaço urbano, já aberto a interpretações e desentendimentos: o
traje informaria que há algo “fora do comum”. Daniel esclarece que “o figurino é fruto de uma
necessidade de se destacar numa situação de enfrentamento coletiva e caótica, anárquica,
urbana, e se proteger. Na hora, quem cuida? Se um cara quiser bater no outro, se um cara se
jogar na frente..." Por outro lado, ele afirma gostar do destaque que a mídia deu aos
esparadrapos que utilizam nas mãos, sempre pedindo para ressaltar as mãos enfaixadas

171
estendidas. Esta atitude preventiva acabou sendo uma marca “estética” do grupo (“fashion”)
da qual Daniel parece gostar particularmente. Perguntei‐lhe se o segundo uniforme se
inspirava numa releitura da farda do Sgt. Peppers (do disco dos Beatles, Sgt. Peppers Lonely
Hearts Club Band, de 1968), mas ele asseverou categoricamente que não, que lembra o
Jaspion (um personagem de quadrinhos japoneses dos anos 80). Inclusive insistiu que, mais
recentemente, com o crescente uso do GPS em suas performances, eles se interessam pela
lógica do game, do puzzle. Ultimamente andam muito inspirados pelo autor francês Georges
Perec e pela maneira como muitas das performances de GPS art têm se desenvolvido, por
meio de se impor “tarefas urbanas” ou criando um “pique‐pega urbano” ou em pensar a
“deriva como game”.

Janice Caiafa (2007) considera que a “cidade teria uma aventura própria, uma autonomia em
relação ao procedimento do Estado e do capitalismo”. Ao funcionar como ímã (campo de
atração), a cidade, em sua origem, já denota um “movimento”, um “deslocamento”. “São
fluxos que vêm de fora e que vão criar um nomadismo propriamente urbano, constituir a
cidade como lugar de circulação e dispersão” (Caiafa, 2007:118).

A cidade se constitui como exterioridade, como exposição, acolhendo estrangeiros,


fazendo desse estrangeirismo um devir. Há uma constante mobilização, que é em parte
física, mas envolve uma transformação mais forte, um investimento na diferença e na
singularização. Gera‐se uma inquietude, característica dos meios urbanos, que nos faz
desejar ir além do reconhecimento das pequenas vizinhanças, sair à rua, experimentar
novos lugares e enfrentar os riscos do imprevisível (ibidem:119 – minha ênfase).

Ao mesmo tempo, para a autora, a variedade das cidades não cria uma alteridade
necessariamente: “A diversidade nem sempre produz diferença, ela pode ser pacificada,
disciplinada em guetos pessoais ou geográficos” (ibidem:121). Esta advertência se dá a partir

172
de sua preocupação de que as novas mídias “não garantem a alteridade” (ibidem:24). Segundo
Caiafa, “essa primeira baixa na cidade privatizada não é compensada pela forma fantasmática
de acesso que eles geram. O que parece passar, ao contrário, é que a ilusão de alteridade
produzida nesses modelos não cessa de agravar mais e mais a privatização e o despovoamento
das cidades” (ibidem). Assim, ela avalia que,

A ocupação urbana é a nossa garantia. É a mistura urbana, a concentração e a circulação,


o contágio em plena rua que garantem a nossa presença e a nossa liberdade de circular
e, portanto, a nossa relação ativa com a cidade.123 Se uma organização da comunicação
hoje acompanha e promove novas formas de dominação que só recentemente e a duras
penas vamos aprendendo a distinguir, talvez essas estratégias espaciais sejam uma forma
possível de resistência. Como espaço do heterogêneo e do coletivo, a experiência urbana
pode ter a força de revidar com uma aventura própria [contra o Estado] que em algum
grau desafie esses novíssimos poderes (Caiafa, 2007:25).

Esta ênfase na aventura das cidades presente nos espaços de concentração e circulação
remete à experiência de Fernando Salis de captar imagens que enfatizem “movimentos”,
“circulações” nas diferentes localidades por onde viaja (ver plug‐in Fernando Salis – uma
etnografia das pastas virtuais). O olho da câmera ligada se deixa afetar pelos acontecimentos
“imprevistos”, de personagens que aparecem interessantes, ou mesmo daquilo que a câmera‐
olho percebe e que, somente em um momento posterior, o olho humano pode traduzir a
imagem em algum acontecimento. No caso de Fernando, a câmera enaltece a sua experiência
nômade das urbes por onde viaja.

Essa preocupação de Janice Caiafa parece encontrar um verdadeiro eco na construção


conceitual do Hapax. Ao “sair à rua” com o Burro sem Rabo, o Hapax se propõe a
“experimentar novos lugares” ao redesenhar a cidade através da deriva (a deriva se opõe ao
direcionamento do andar, à restrição dos movimentos sedentários), ao se ambientar
propositalmente, talvez ritualisticamente, ao enfrentamento dos “riscos do imprevisível”.
Assim, o uniforme integra a performance informando àqueles que ocupam a metrópole e o seu
cotidiano estriado que ali há um nomadismo sendo encenado. Eles fazem o corpo integrar a
vivência, eles se tornam objetos de exposição. Essa andança se faz visível e se ritualiza numa
experiência estética a partir da própria estetização dos seus corpos cobertos por uniformes.

123
É uma interessante coincidência que Fernando Salis tenha elaborado um documentário chamado “Rizoma” sobre
transporte público em diversas cidades do mundo, e Janice Caiafa realize uma etnografia sobre transporte público
em Nova York e no Rio de Janeiro.
173
Se a vestimenta funcionaria como uma espécie de advertência estética é porque a sua
escultura móvel, o Burro sem Rabo, os coloca numa situação de risco em situações
inadvertidas. Nos pequenos vídeos, a câmera capta essa grande escultura. É possível sentir seu
peso e seu grande porte porque tirar o aparato do frete ou do carro aberto, ou mesmo sair de
casa diretamente, já implica um trabalho de força que deve ser equilibrado por duas ou três
pessoas. Tirar de um caminhão, adicionar o equipamento de som e a partida. O próprio Daniel
informa que eles alternam entre si carregar o Burro sem Rabo durante a deriva por causa do
peso que devem sustentar.

Há também uma grande ênfase na chegada final do Burro sem Rabo. Daniel narra uma
situação de enfrentamento numa ocasião em que realizaram a performance no contexto de
um evento patrocinado pelo Oi Futuro em que o tema focava a relação entre o artista e a
cidade, chamada “A teatralidade do Humano”. Como a deriva sempre termina em algum lugar
específico para culminar numa performance‐mixagem final, nesse dia, depois de cinco horas
perambulando pela cidade, chegaram à porta do Centro Cultural “sujos” e “suados”, e não
havia ninguém da produção esperando por eles. Daniel conta (e também se vê no registro em
vídeo) que eles entraram apesar das “caras feias” dos seguranças. Ainda por cima, fazia parte
da performance colar com goma (fabricada por eles com soda cáustica) uns cartazes que
distribuíam pelo chão do Oi Futuro, causando desconforto também pela sujeira que a goma
causava. Pediam energia para plugar o Burro, mas só recebiam silêncio. Acabaram subindo de
elevador com o mobile “à força”, “naquele lugar asséptico, tecnológico”, “sujos e cheios de
fios”. A performance final foi realizada para uma plateia de em torno de sessenta pessoas,
número que Daniel considera significativo em termos de quantidade média de público das
performances do Hapax. Outros momentos de enfrentamento se dão quando o Burro
atrapalha o trânsito, quando se encontra com a polícia. A forma como Daniel cria uma
oposição entre o seu aparato tecnológico e o ambiente tecnológico do Oi Futuro não se limita
174
a uma provocação, mas afirma uma concepção própria à ideia que inventam de tecnologia,
algo que veremos mais adiante.

Se a deriva com o Burro sem Rabo tem momentos claros de enfrentamento e risco, ao mesmo
tempo Daniel ressalta os elementos lúdicos dessa deriva. O Burro sem Rabo é também uma
espécie de soundsystem ambulante que pode parar em um lugar e agrupar pessoas. Ele se
torna um evento que cria aglomeração, mesmo que pequena, curta e temporária, como
lembra Caiafa (2007), e, ali parado, vira uma “central de difusão”, que pode ser desmembrado
quando chega a algum lugar e aceita outras mídias. Tem gente que se aproxima para brincar
com suas buzinas, com samples, com os alto‐falantes. É possível botar um CD, há microfone. O
Burro mobile chama a atenção de quem passa porque não é discreto, dependendo do lugar
onde para.

E eles próprios se divertem ao longo do caminho: tomam cerveja, param para descansar e
chegam “alterados” ao final do percurso. Daniel inclusive diz que parar no bar e tomar cerveja
muitas vezes funciona como estratégia para conseguirem energia para fazer um “auê” (uma
pequena apresentação momentânea em um ponto da deriva). Ele também assegura que,
particularmente entre os integrantes do grupo, gosta de se relacionar com os “vários” da
cidade; fazer um approach que para ele beira o “limite de uma antropologia urbana” em que
se coloca a relação “sujeito‐objeto” ou o que ele chama de “espelho – arco e flecha”. Nesse
sentido eles se apresentam como possibilidade de agenciarem diferenciação para os outros.
Eles se revelam de modo performático como Outrem, encarnando a diferenciação do outro.
Daniel narra um momento (que é captado no seu remix sonoro mais adiante), em que um
grupo imenso de alunos de uma escola pública entrara no ônibus, e ele se aproximou com o
Burro, levantou o microfone para o alto e pediu para as crianças gritarem alguma coisa. Ele diz
que os amigos fazem mofa; “ih! Ta fazendo antropologia”. Na realidade, há que se pensar em
termos de uma andança com o Burro. Ele é o agente de curiosidade, atração e repulsa
(agressiva ou indiferente) que causa nomadismo por sua própria condição nômade, um burro
sem rabo subvertido e invertido. Em vez de um trabalhador ambulante cotidiano, os
transeuntes se deparam com um objeto outro, e o catador usual é subvertido por esse curioso
“time”. A câmera capta as reações dos itinerantes que passam, ou dos que estão sentados no
horário do chope, depois do trabalho, no Largo dos Telles; ou, como mostra outro vídeo, as
expressões dos visitantes do MAM. Pergunto como se dá o encontro com os catadores
cotidianos, e Daniel responde que se estabelece de maneira “bem carioca”, com
cumprimentos amistosos.

175
Por outro lado, há um sentimento forte de uma experiência própria do Hapax contra a cidade.
O estabelecimento de relação (mesmo que curta) com os personagens das derivas (tomar
cerveja no bar para curtir e para conseguir energia, o encontro com as crianças e a captação do
som) faz emergir uma metaforização de antropologia como uma aventura própria do grupo,
até mesmo enfatizada ou performatizada em seu sentido “modernista” do eu‐subjetivo
(espelho) com o outro‐objeto (arco e flecha).

Mas Daniel também chama atenção para uma outra metaforização de antropologia, quando
relata que, apesar de não se constituir como um “trabalho do antropólogo”, afirma terem
“um cuidado com o objeto no olhar”. E isso se traduz no “respeito” de “levar em consideração
a prática do objeto que estamos parodiando ou apropriando”. Nesse aspecto, diz que “a
eficácia do trabalho de um catador de burro sem rabo depende de sua discrição. Ele não sai
por aí fazendo o maior auê”, já que é um personagem “silencioso”, que passa debaixo do
viaduto, no bueiro, “catando até o que não deveria”. A fase do Burro sem Rabo se constitui
para ele como “uma fase mais discreta do Hapax”, em relação a trabalhos anteriores. Nesse
particular, a metaforização de antropologia surge num sentido maior de identificação com o
“objeto”. Em sua deriva, assim como os catadores, eles captam os sons que ninguém quer
ouvir ou que deixaram de ouvir. Como coletadores de sons urbanos, eles catam até o que “não
devem” catar. Talvez a recorrência de uma vivência antropológica surja em diversos
momentos porque há, com toda essa empreitada, uma tarefa antropológica de captar os sons
urbanos. Nesse sentido, a sua deriva se produz como projeto, tarefa, coletar os ruídos de uma
cidade. Enquanto pesquisa, em muitos momentos, esses sons remetem a encontros com
estranhos que perguntam, esbravejam, ou ignoram a sua indagação sonora.

176
Imagens do vídeo institucional gravado por Cesinha Oiticica e editado por Ricardo Cutz da performance
do Hapax em Belo Horizonte para o evento Art. MOv.

177
Existe um claro desejo de causar estranhamento. Uma apropriação consciente do nomadismo.
E nesse aspecto, o procedimento estético do Hapax tem algo em comum com os ready‐mades
de Marcel Duchamp. O Burro é um ready‐made e todas as peças que o compõem também
funcionam como ready‐mades. E a maneira como são amarrados os diferentes apetrechos,
principalmente as imagens dos fios para fora e a as imagens da fita isolante, os ferros velhos
ao lado do ipod e do sequenciador se constrói através de uma estética do feio criando uma
linha horizontal entre esses equipamentos high‐tech e low‐tech. Daniel observa que eles criam
um “anarquismo tecnológico. Estamos cruzando o high‐tech e o low‐tech artesanal”. Ele diz,
inclusive, que o GPS que usaram nas performances era bem “vagabundo”. A ideia “é tirar o
pedestal da tecnologia de ponta” ao criar uma horizontalidade entre tecnologias.

No clipe da performance de BH eles andam com o celular e o GPS dentro de uma vasilha de
metal que faz lembrar o mictório de Duchamp ou a cristaleira na mão do maestro Rogerio
Duprat, na capa do disco Tropicália, de 1968. Daniel assegura que eles têm uma comadre e um
compadre cromados “belíssimos”, e que há uma “canalização” positiva de Duchamp no
trabalho deles. Também se filiam às propostas de Hélio Oiticica e Ligia Clark, na ideia da arte
como um elemento fortemente sensorial. E igualmente recorrem à musica eletrônica a partir
da perspectiva herdada do movimento punk, do do it yourself (o próprio Daniel relembra que
a sua vivência como esqueitista estava atrelada a uma estética punk daquele período;
somente mais tarde o skate seria incorporado à estética hip‐hop). Assim se conecta com uma
citação direta ao movimento da arte povera, formado na Itália nos anos 60, em que os artistas
pegavam elementos de criação para propositalmente enfeiar a arte e, desse modo, torná‐la
mais próxima da vida, e, semelhantemente, utilizarem equipamentos considerados high‐tech
contemporâneos, como estarem trabalhando com um desenvolvimento artístico bastante
recente, a GPS art. Eles dão pistas dessa relação na entrevista que concederam à revista
Planeta Capacete, ao crítico de arte Luis Camilo Osório, em 2002, da qual transcrevo alguns
trechos a seguir:

178
Ricardo Cutz: Na verdade, acho que a gente percebeu dentro de todas estas noções, de
lowtech ou da primitividade, destes encontros da música tecnológica, com a percussão
que transita pelo candomblé, ou pela própria escola de samba, é possível você
reconhecer todos esses tipos de frases, […] Percebemos que aqui, hoje, com o capital
simbólico que a gente tem e no país que está vivendo, é possível trabalhar só com o
lowtech, dado gerador de uma certa singularidade sonora; diretamente ligado ao que
coloquei agora, é preciso buscar formas de se produzir que incluam a superação das
potências em jogo; entra aí a discussão técnica e talvez uma noção de arte povera.

Ericson Pires: Porque a povera não é como uma bandeira da década de 60. Eu cito a arte
povera, mas não é como uma negação do tecnológico, nem da tecnologia; é, na verdade,
incorporar. A tecnologia a gente pode incorporar, dentro dessa condição que a gente
está (apud Cutz, 2008:109).

A ideia de “incorporar a tecnologia dentro da condição de que se está”, como afirma Pires,
refere‐se a um “capital simbólico” de um “país” que cria ressonâncias entre a percussão da
“música tecnológica”, os “terreiros de candomblé” e o “samba”. O Burro sem Rabo sonoro se
enquadra dentro dessa perspectiva em que o exótico hibridismo do Brasil vai ao encontro do
hibridismo globalizado.

Daniel diz que também há uma influência do grupo alemão Neu!, formado por Michael Rother
e Klaus Dinger. Ele descreve a sonoridade desse grupo como rock industrial alemão, como um
“Hapax alemão, duro, com guitarra e baixo”. Daniel conta que eles costumam levar britadeiras
em suas apresentações e os seus movimentos são dotados de linhas retas, utilizam cabelo
moicano, vestem preto. Diz que o tema do Neu! trata da desindustrialização da Alemanha. A
partir da referência ao grupo alemão, pergunto sobre uma suposta especificidade brasileira:
Daniel afirma que o Brasil se caracteriza por ser “desindustrializado e industrializado o tempo
inteiro” e faz referência ao fato de conseguirem muito ferro velho em Lucas e no cais do porto.
Para ele, o Hapax entrou em contato com essa estética alemã, e eles fizeram uma leitura mais
“carnavalizada”, pois preferem a cor amarela, usam movimentos “mais fluidos” e
“arredondados”; “chutam e pulam”. Daniel retoma um tema que abordou na primeira
entrevista, da metáfora do bufão: “o bufão só causa ruído, confusão. Ele é chato; ‘desafina o

179
coro dos contentes’, como diz Torquato [Neto]”. Pergunto se essa é uma estética que teria a
ver com a ideia de brasilidade.124

Daniel responde que:

não é o que se construiu sobre a brasilidade que engolimos, mas [a brasilidade] tem
[também] o enfrentamento irônico, da mandinga, da capoeira. A grande virtude da
capoeira é não estar onde o perigo está. Desvia – marca e não vai. Faz uma armadilha,
traição, sorriso amarelo – tem esse lado da brasilidade. Não estar onde o perigo está.

A noção de brasilidade também parece ser utilizada de diversas formas englobantes. No


primeiro sentido, de um país que está se “desindustrializando e industrializando ao tempo
todo”, desenvolve a sua acepção “em desenvolvimento”. Mas há outro sentido, quando se fala
das sonoridades do candomblé e do samba, ressalta‐se o seu cunho “primitivista”. Quando se
acentua o seu sentido da prática generalizada do saque, da informalidade e da pirataria (vistas
na Extensão plug‐in acima), apareceria a brasilidade projetada em seu “subdesenvolvimento”.
Quando Daniel se refere especificamente às ações performáticas do Hapax como um “punk
abrasileirado”, ele ao mesmo tempo infere os elementos mais coloridos (em oposição ao
preto), os movimentos arredondados, a influência da capoeira, a partir da malandragem e do
jeitinho, como potências da brasilidade.

Otávio Velho, em seu artigo “Novas perspectivas: globalização” (1995), observa que
“construções como a cultura e identidade brasileiras não são estranhas a reciprocidades de
expectativas geradas num contexto mais amplo” (Velho, 1995:226). Assim, ele pergunta se “o
diagnóstico de uma ausência de modernidade” não estaria cumprindo uma função de
construir o “Brasil como lugar das fantasias e do imaginário europeu” e dessa forma
apresentando‐se não como a “negação” da modernidade, mas como “o lado oculto da
modernidade” (ibidem). O “compromisso com o exótico” brasileiro incluiria a função de
“confirmar as fantasias e o imaginário europeus”. Por outro lado, essa “virtualidade” brasileira
não deve ser apreendida como “ausência” ou como “deficiência”. Pois nessa virtualidade já há
um “comentário (crítico e inclusivo) a um paradigma individualista que talvez esteja em crise”
(ibidem:227). A esse respeito, o autor não deixa de considerar interessante como algumas das

124
Essa agressividade relacionada à personagem do bufão pode gerar um desconforto semelhante ao que algumas
pessoas sentem em relação aos discursos da diferença dos rappers paulistas, os Racionais MCs, ou do MV Bill, no
Rio de Janeiro. Se, no segundo caso, o mal‐estar se expressa em sentir‐se segregado por aquele que deveria ser
segregado, e porque afronta o mito da democracia racial, no primeiro caso os meninos incomodavam porque,
enquanto bufões, e muito inspirados numa atitude punk (“essa anarquia irônica”), botavam o dedo na ferida da
“corte carioca”.
180
características da globalização “como sincretismos, hibridações e crioulizações” já teriam sido
“antecipados” pelo pensamento de Gilberto Freyre. Porém alerta para o fato de que:

se essa antecipação é evidentemente digna de admiração e louvor, não deve fazer com
que nos coloquemos numa posição ufanista autossuficiente, como se “nada de novo”
estivesse sendo dito para nós; pois a própria percepção da generalidade desses
mecanismos globalizantes nos questiona quanto à construção de identidade que sempre
fizemos, apoiados numa suposta particularidade brasileira (Velho, 1995:227).

A “generalidade dos mecanismos globalizantes” aparenta ser compatível com uma idealização
tanto externa quanto interna – talvez beirando uma “posição ufanista autossuficiente” – do
Brasil como micropolítica. Quando Hermano Vianna (2005) se refere ao recente fascínio
internacional com o tropicalismo (inicialmente discutido no capítulo 3), o seu argumento se
direciona a uma “sintonia” entre o mundo contemporâneo, cada vez mais ambíguo e híbrido,
com a estética e a política desse movimento (sem deixar de notar que o Brasil tende neste
momento a tornar‐se mais “dualista”). O argumento de Hermano Vianna nesse artigo é que o
mundo está ficando mais parecido com o Brasil. Eduardo Viveiros de Castro se aproxima dessa
ideia em entrevista que deu a Rodrigo Savazoni e Sergio Cohn, para o livro Cultura digital.br
(2009). Ele afirma que o tropicalismo resolveu “a resposta que a América Latina tem que dar
para a alienação cultural”. Para ele, essa foi a “única teoria de libertação e autonomia culturais
produzida na América Latina”, e agora “todo mundo está descobrindo que tem que hibridizar e
mestiçar”. Assim, “a resolução híbrida [do tropicalismo] não foi através de uma síntese
conjuntiva, mas como síntese disjuntiva, na terminologia deleuziana (Vicente Celestino e John
Cage)”; e ressalta o sucesso recente dos Mutantes na vanguarda pop internacional, assim
como a descoberta de Hélio Oiticica no cenário das artes. No mesmo tom de Vianna, reitera:
“sempre disseram que o Brasil era o país do futuro. Coisa nenhuma, o futuro é que virou Brasil.
O Brasil não chegou ao futuro, foi o contrário. Para o bem e para o mal, agora tudo é Brasil”
(Viveiros de Castro apud Savazoni e Cohn, 2009:83).

Em sua palestra sobre “momentos contemporâneos”, Marylin Strathern (2009) descreve como
os ciberativistas que têm trabalhado junto ao Creative Commons para distribuir software livre
num viés que contraria as IPRs (International Property Rights) parecem inspirar‐se na “teoria
da dádiva”, muito referenciada às culturas da Melanésia; ressaltam agora a dádiva e o
compartilhamento de culturas não ocidentais para contrariar as noções de propriedade
intelectual. Assim acontece que, para a autora, estaria na “ordem do dia” divulgar a Open
Source como uma “inspiração indígena” (cf. Strathern 2009:6‐7). O Brasil neste cenário

181
aparenta ser a fonte ideal de inspiração e sugestionamento: em resposta aos entrevistadores
de Viveiros de Castro, se estava mais para o lado da dádiva ou do saque, ele responde: “a
antropofagia o que é? (...) vamos ser o outro em nossos próprios termos. Pegar a vanguarda
europeia, trazer para cá, e dar para as massas (...) A Internet, ou as novas tecnologias de
informação, ou as novas formas de criação, permitem que nós possamos, nós todos, realizar
nosso sonho de infância e nos tornarmos Robin Hood (...) E depois, como o mundo virou
brasileiro, ‘tudo é Brasil’, a antropofagia mudou um pouco de contexto. A antropofagia deu
certo, nesse sentido” (Viveiros de Castro, 2009:95). Como avalia Otávio Velho, talvez o maior
trunfo do Brasil tenha se caracterizado por sua designação de modernidade alternativa,
segundo a terminologia do autor, num momento em que o modelo de modernidade europeu
aparece em crise:

E como ficamos “nós”, aqui embaixo, em relação à modernidade? Quem sabe se nos
trópicos, onde sempre cultivamos as misturas, muito mais do que as purificações,
podemos imaginar uma modernidade que, paradoxalmente, não realize uma ruptura em
relação ao passado? Uma imaginação da modernidade mais próxima das suas práticas
efetivas (...) Até hoje vimos essa ausência de ruptura como uma falta em relação a nossos
sonhos revolucionários e aos discursos que compramos do primeiro mundo; mas nesta
era de ‘segundos pensamentos’ em relação à modernidade, quem sabe se não será, esse,
um privilégio do subdesenvolvimento: a exploração de modernidades alternativas em
relação aos discursos; bem diferente (...) da tentação oposta (...) ‘congelando’ a
modernidade por meio de um ocidentalismo, justamente na época de seu paradoxal
desencantamento (Velho, 2005:302).

Uma ilustração do Brasil virtual do ciberativista norte‐americano é o documentário‐manifesto


RiP: A remix manifesto, lançado em 2008.125 O documentarista e ciberativista Brett Gaylor
afirma em um determinado momento que, do ponto de vista de um remixer, “o Brasil está
liderando o mundo para a era digital” (Gaylor, 2008).

Nesse documentário, o diretor questiona toda a base de institucionalização dos direitos autorais nos
Estados Unidos, como noções jurídicas de “integridade criativa” e violação de copyright. Ele entrevista o
produtor e DJ de mashups, Girl Talk, assim como o criador do Creative Commons, O Lawrence Lessing,
bem como pessoas que foram intimadas pelo governo por fazer download ilegal de música, e também
outros ciberativistas, contrapondo as suas falas àquelas de autoridades governamentais envolvidas com
a proteção das International Property Laws. O filme é formatado a partir de 4 conceitos‐chave: 1)
Cultura sempre se constrói com o passado; 2) o passado sempre tenta controlar o futuro; 3) o nosso
futuro está se tornando menos livre; e 4) para construir sociedades livres, deve‐se limitar o controle do

125
Um filme nacional que vai nessa mesma direção, é o Ensolarado Byte, de 2005, dirigido por Mauricio Correa
sobre a trajetória de DJ Dolores em Recife.
182
passado. Este último ponto abre o capítulo referente ao Brasil como exemplo bem sucedido de uma
“sociedade livre”. Imagens de capoeiristas, sobrepostas ao som do funk carioca, introduzem o debate
sobre a quebra das patentes de remédios para HIV. E ele considera que para os brasileiros essa atitude
teria sido um “ato de vida” enquanto que, para as empresas farmacêuticas, teria se configurado como
“um ato criminoso”. Em seguida, Gaylor afirma que “remixar as culturas dos outros está na natureza do
brasileiro e que agora se institucionalizou como política governamental”, mostrando cenas dos Pontos
de Cultura estabelecidas durante o ministério de Gilberto Gil, nas quais crianças em uma favela
aprendem as técnicas de mixagem de DJ e de rádio comunitária. Ato contínuo, escutamos um trecho de
uma palestra de Lawrence Lessing, em 2004, na qual ele ressalta a importância do debate sobre o
Creative Commons no Brasil, e termina com a emocionante fala: “I come from the land where we talk
about being free. I come from the land where we are lost. You are our brother in this debate and you
must remind us of what we have lost”. Em outro momento, Gilberto Gil é entrevistado e defende que “o
compartilhamento é a natureza da criação”. Logo após , vemos diversas cenas de baile funk (“bem
comportadas”) enquanto o diretor indaga : “temos duas maneiras de olhar para essa música: podemos
contar os samples e fazer o cálculo de quantos mil dólares estes jovens devem ao governo americano,
ou nos deslumbrarmos diante dessa nova manifestação artística criada em um dos mais pobres bairros
do mundo”. Um trecho de entrevista com o DJ Sany Pitbul é bem interessante. Ele diz: “quando se fala
em funk, as pessoas pensam no James Brown, no Michael Jackson, mas nunca no funk (e acentua o)
carioca. A música é outra; só se manteve o nome”. Em seguida, com cenas à beira‐mar, o diretor revela
ter ouvido histórias de antropofagia e cita os seguintes trechos do manifesto antropofágico de Oswald
de Andrade: “Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do
exercício da possibilidade. Comi‐o. Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente.
Filosoficamente”. Depois de pregar sobre a eficácia do Brasil em promover o acesso ao conhecimento
humano, o diretor inquire: “o que a humanidade teria a ganhar se todos fizessem como o Brasil?" E
mostra cenas de um público dançando num show de Gilberto Gil em um verdadeiro clima de festa. Mas
corta em seguida; e então nos deparamos com uma cena de Nova York, no Times Square, com centenas
de imagens de propaganda de grande corporações, enquanto o diretor anuncia que infelizmente o
mundo se assemelha mais a um domínio privado e de grandes corporações”

De todos os produtores com os quais tive contato, Daniel opera com um nível de ambiguidade
em relação ao que poderíamos definir como “sentimentos autorais” (o que pode ser visto no
capítulo 3 e na extensão plug‐in 1.1). Muito pelo contrário, a sua fala nesta tese ganha força na
medida em que ele funciona como um verdadeiro porta‐voz desta época em que todos os
argumentos são direcionados, inclusive a brasilidade, para uma micropolítica do remix.

33’38 ou 33’4: uma etnoescuta

A minha experiência de uma “etnoescuta” se realiza de modo semelhante ao que já foi feito
com Fernando Salis, construída a partir de uma apreensão própria dessa escuta, acrescida
(como contraponto ou como complemento) de comentários de Daniel acerca dos elementos
que me chamaram a atenção, e de como ele fabricou essa experiência. Algo que também se
configura como interessante é que há uma diferença entre o que Daniel julgou como
arquetípico de suas performances e o que os vídeos consideram como arquetípico de suas
“derivas”. Os elementos para os quais Daniel chama a atenção em seu registro auditivo, a sua
recuperação do ocorrido e do que constitui a performance do grupo são bem diferentes do

183
que se privilegia nas imagens dos vídeos. Os vídeos estão mais preocupados em mostrar as
especificidades do Burro sem Rabo como obra. Um ponto importantíssimo do Hapax é que as
suas ferramentas são também objeto de arte. Na maneira como amarram ferro velho e Ipod,
mixer e alto‐falante, ferrugem e assepsia, essas ferramentas de criação e captação de som são
também expostas como obras. E assim, criam uma “armadilha”126 para o público, já que, como
afirmam Gell (1998, 2001) e Lagrou (2007), na arte conceitual não podemos dissociar objeto
instrumental e objeto artístico. Essa não dissociação afasta o “critério de beleza” como valor
absoluto na arte conceitual.

Este fenômeno deve ser contrastado com a performance de Fernando Salis descrita no plug‐in
anterior, pois, neste caso, todos aqueles que captaram imagens durante a performance (eu
inclusive) não direcionaram as suas lentes para Fernando e Maga Bo trabalhando em frente
aos seus laptops. Apesar de estarem sentados de frente para o público e de todos terem tido
acesso a uma visão (parcial, já que em parte coberta pela tampa do laptop) dos dois, todos que
se encontravam ali na tarefa de registrar se deixaram enfeitiçar pela magia das imagens. Eu
tampouco fiquei em momento algum sentada ao lado de Fernando durante a performance,
como faço usualmente, porque também fui capturada pelo fluir de imagens e pela
preocupação de não perder – ou seja, de cristalizar – os desenhos formados e rapidamente
fugidios. Retomando o foco das imagens criadas sobre o Burro, poderíamos dizer que os
responsáveis por produzir um registro privilegiaram o Burro como Obra/alteridade. Por outro
lado, no caso desta experiência sonora de Daniel, trata‐se de imprimir um foco na vivência dos
encontros do Hapax com a cidade. Ou seja, o que se ressalta no caso do registro sonoro de
Daniel são os elementos com os quais os rapazes se depararam em sua aventura da cidade.
Também há que se levar em consideração que as edições dos vídeos são realizadas para
mostrar o Hapax e aquilo que fabricam; por isso também são postadas no vimeo.com, como
no caso do vídeo da performance de Fernando Salis. A experiência sonora até o presente
momento ainda não tem uma finalidade específica – não foi encurtada e renomeada, não está
em nenhum site, nem foi “apresentada”, a não ser para a banca de titulação de mestre (e
Daniel duvida que tenham ouvido “com atenção”), e o CD que tenho para a minha escuta.

126
A ideia de “armadilha” remete ao ensaio de Gell sobre a curadoria da exposição Arte/Artefato, em que a
curadora Susan Vogel, junto com outras obras de arte conceitual, exibe uma rede de pesca Zande. A propósito da
experiência de curadoria de Susan Vogel, analisada por Alfred Gell, Els Lagrou argumenta que Gell se interessou em
saber o quanto a “ideia de armadilha e as engenhosas formas que assume em diversas sociedades se aproxima do
conjunto de intencionalidades complexas postas em operação em torno de uma obra de arte conceitual. Ou seja,
melhor do que procurar aproximar povos não ocidentais da nossa arte através da apreciação estética de uma
máscara ritual seria identificar o que têm em comum muitos artistas contemporâneos trabalhando com o tema da
armadilha (...) e as armadilhas indígenas, dando mostra de um mesmo grau de inventividade, complexidade e
dificuldade” (Lagrou, 2007:44).
184
Na dissertação de Daniel, ao final do “buraco 1: o movimento forjado em música”, após
apresentar o Hapax, o trabalho do Burro sem Rabo e as experiências com o GPS art, temos a
gravação do CD, composta por uma faixa. Uma experiência de escuta que dura 33 minutos e
38 segundos. Trata‐se de um remix feito em cima de três demonstrações diferentes do Burro
sem Rabo. Duas foram realizadas em datas e bairros diferentes, no Rio de Janeiro, e uma
terceira, a deriva, feita em Belo Horizonte para o evento Art. Mov, em 2007. Essa “proposta
sensorial de audição”, pondera Castanheira (2009), é um exercício de “registro”, “tradução” e
“interpretação”. Em suas palavras:

No intuito de viabilizar uma maior compreensão do assunto tratado, substituo, a partir


daqui, a argumentação escrita, pela proposta sensorial de audição da primeira
experiência apresentada no Art.Mov, em novembro de 2007, disponibilizada no CD que
se segue. Trata‐se de uma modulação de frequências nos moldes narrados, a partir de
um conteúdo musical bastante executado por DJs em pistas de dança daquele período –
entre o techno e o minimal – mixados aos sons captados durante a deriva da
performance. Trata‐se, enfim, de um landscape complexo, em movimento, entre registro,
tradução e interpretação: gravação dos sons do percurso; tradução do percurso
topograficamente inscritos pelo software, em modulações das frequências sonoras;
interpretação ao vivo da mistura desses resultados numa performance.Todos
sobrepostos numa faixa sonoro‐musical de 33´38” (Castanheira, 2009:73).

Como ele diz, trata‐se de um “soundscape complexo”, pois pretende criar uma faixa sonoro‐
musical na qual remixa: 1) os registros dos sons do percurso, 2) a tradução criada pelo
software e 3) a interpretação [do grupo] ao vivo da mistura desses resultados numa
performance. É possível afirmar que a criação desse “complexo soundscape” é ainda 4) uma
interpretação particular de Daniel sobre a experiência vivida. Daniel enfatiza o fato de que é o
primeiro trabalho do Hapax que mixou e editou sozinho.

Ouvir amostra sonora E

Desde a primeira conversa sobre a sua dissertação e a faixa sonora, Daniel disse que iria
encurtar o tempo da faixa de 33’38 para 33’4 e encurtar a duração do remix para o tempo do
título e assim fazer uma “brincadeira” com a obra “silenciosa” de John Cage “4’33”.

4’33 é uma peça “silenciosa”, escrita por John Cage em 1952 e feita em três movimentos. A primeira
apresentação foi realizada pelo pianista David Tudor em Nova York, nesse mesmo ano. Para Cage, a
ideia é que não existe silêncio; essa obra pode ser diferente, dependendo de cada lugar em que é
performatizada; pode ser tocada por qualquer instrumento e também pode durar uma quantidade de

185
tempo “aberta”. Na primeira vez que foi apresentada, o público ficou um tempo sem saber o que estava
acontecendo; depois, irritados com a aparente ausência de performance, muitos ouvintes foram saindo
do teatro.

Ao longo das conversas que se seguiram, essa decisão, que Daniel apresentou como uma mera
“brincadeira estética”, foi ganhando conteúdo conceitual. Daniel diz que com esse “novo
nome” ele criaria um “dissonante diálogo” entre o “ruído que há em toda escuta silenciosa,
como diria John Cage, e a escuta que há em todo ruído”. Para ele, John Cage é uma outra
“entidade” importante para o Hapax a partir de suas análises sobre o “discurso do ruído ou o
ruído do discurso”. Um exercício de “soundscape (no sentido que Murray Schafer designou ao
termo) saturado”, que seria “um diálogo com John Cage ao contrário”.

Essa composição inscrita em CD tem uma característica incompleta ou um estatuto em devir.


Ela é uma entrada parcial em sua tese. E o CD também é um devir Hapax, pois pode ainda
institucionalizar‐se com o nome do coletivo junto com uma nova denominação e com às
filiações do grupo aos movimentos de vanguarda. Mas ele questiona o fato de ser ao mesmo
tempo autônomo e coletivo. Diz que ele(s) adequam o fim às “necessidades.” Ele assegura:
“Independe. Posso considerar um trabalho autônomo ou coletivo, da maneira que for
necessário. Se quiser eu danço, se quiser eu faço sapateado. O que você quer?” Neste ponto,
acho que é oportuno retomar esta ambiguidade em relação a uma “autoprodução de si”
enquanto uma espécie de self‐management, ou self‐promoting, como disse Ricardo Cutz no
capítulo 2. Daniel acredita que eles não sejam muito “bons produtores de si” – e com isso
assume uma postura crítica à arte‐instituição – e também porque enfatiza as outra atividades
que realizam e que lhes tomam tempo individualmente. Mas, por outro lado, verificamos que
os trabalhos do Hapax e os projetos que produzem junto ao Ministério da Cultura, ou os
convites que recebem de curadores demonstram que há uma inserção institucional, embora
não intensa. Sobre o projeto que estão realizando agora, Daniel afirma que leva tempo,
porque há uma delicada relação entre “tempo e dinheiro”. E isso diz respeito a equilibrar os
projetos individuais com o do coletivo.

Steven Feld, em “From Ethnomusicology to Echo‐Muse‐Ecology: Reading R. Murray Schafer in


the Papua New Guinea Rainforest” (1994), se interroga sobre qual seria a voz da antropologia
nos estudos de soundscape ou “ecologia acústica”. Nesse caminho pessoal que diz ter trilhado
da etnomusicologia para a eco‐muse‐ecologia, ele afirma que, enquanto a “etno” sempre
remete à alteridade, a concepção de “eco” traduz uma ideia de “presença, uma noção
reverberante do passado no presente e do presente no passado” (Feld, 1994:3). A segunda
186
passagem, da musi‐cologia para a muse‐ecologia, se efetua no constante interjogo entre
inspiração, imitação e incorporação dos sons ambientes, e as expressividades criativas: “Uma
maneira de escutar o mundo se realiza no ato da interação, mas também na imaginação deste
mundo como “padrões que conectam” (no sentido empregado por Bateson): “Local acoustic
ecology can thus be considered a kind of aesthetic adaptation (...) a pattern of ecological and
aesthetic co‐evolution” (ibidem).

Entre outras possibilidades de designação, soundscape diz respeito à variedade de sons


presentes em um “ambiente imersivo” e também à experiência da gravação, ao criar a
sensação de vivenciar um ambiente sonoro. Tem um elemento importante a ser levado em
consideração: o fato de que, na evocação descritiva da faixa sonora de Daniel, se presentificam
como “eco” elementos da própria performance. A construção da narrativa de Daniel sobre a
maneira que compõe o seu soundscape sonoro envolve diretamente uma conversa sobre as
performances. Nessa descrição de Feld sobre a acústica ecológica local ser considerada “um
padrão de coevolução estética e ecológica”, a presença do techno poderia ser vista como uma
expressividade da ecologia estética do momento, ou, como Daniel afirma: “um conteúdo
musical bastante executado por DJs em pistas de dança dessa época”. Assim, poderíamos dizer
que há vários ecos presentes naquele soundscape: um eco de sua vivência pela cidade com o
objeto/obra Burro sem Rabo, ou seja, a presentificação da performance; em segundo lugar, há
um eco da ecologia ambiente, pois o que fazem é captar os sons da cidade, os ruídos/música, a
orquestração da cidade; em terceiro lugar, a presentificação de uma estética eletrônica que
encontra ressonâncias com uma ecologia eletrônica; e, por último, como Daniel reitera, há o
eco da criação do GPS enquanto máquina. Os sons que foram criados pelo GPS não foram
alterados por Daniel.

Assim Daniel descreve as derivas do Burro sem Rabo como experiências de criação de um
soundscape, e assim também descreve o seu remix:

A performance consiste em coletar e gerar uma instalação sonora em outro lugar e,


quando chegamos nesse lugar da instalação sonora, fazemos uma mixagem ao vivo do
que coletamos durante a deriva e do que tocou na instalação. Então, durante a
performance a gente está gerando som na rua, colhendo sons da rua, colhendo os nossos
sons, os nossos sons reverberados na rua e som gerado via internet na instalação que só
sabemos o que vai ser no final; sons que jogamos do ambiente e que reverberam no
ambiente.

187
Sobre a composição de sua faixa, Daniel acredita que organizou os diferentes layers sonoros de
uma maneira que ele não tocasse no resultado eletrônico aleatório controlado por GPS. Em
relação às derivas, ele afirma que foi editando “mais ou menos, deixando um pouco como é”.
Mas esclarece que se tratou de um “exercício de soundscape”, ao privilegiar os momentos
“mais arquetípicos de um soundscape, aqueles momentos mais “figurativos”, “pop”, que
ilustram a diversidade das experiências vividas: “amostras as mais díspares dos nossos sons na
rua e dos sons da rua, como os sons do baile charme Black Power, uma orquestra, as pessoas
falando, o texto do Ericson falado na rua quando pega o microfone”. Aqui ele retoma mais
uma metaforização da antropologia, quando declara que tentou “dar conta da variedade de
experiências do que se coletou em campo (para falar no seu [referindo‐se a mim] jargão)”.
Nesse sentido, apesar de privilegiar os encontros de sua aventura da cidade, ele também quis
dar conta “dos momentos em que não acontece nada, com apenas o barulho dos carros
passando”. Nesta criação de uma experiência que se configura como registro, reaparece a
prevalência dos “arquétipos”, como também vimos na experiência de edição do vídeo de
Fernando Salis.

O remix tem início com uma batida de techno que é sobreposta imediatamente a uma voz no
microfone que em tom potente (e que aparenta ser do Daniel) fala “Alô”, como se estivesse
testando o som. Em seguida, apresenta, já com um áudio mais abafado, o início da
performance: “Burro sem Rabo, diretamente de Belo Horizonte...” E, quando termina essa
primeira apresentação, entra uma camada de sons percussivos em metal junto com batidas de
techno e minimal, e de novo aparecem sons de vozes.

Essas vozes ganham maior ou menor potência ao longo da composição. Apesar disso, são um
elemento contínuo e presente na faixa, e por isso merecem uma atenção analítica. Ao longo da
jornada, em alguns momentos, as vozes que surgem (elas entram e saem de uma forma
semelhante àquela do submergir e emergir na água) são ilustrações de interações com o
público, como na ocasião em que Ricardo pede para gravar um som ambiente e explica a um
transeunte como funciona o gravador de sons. Em outros casos, são os próprios integrantes do
grupo fazendo algum comentário sobre as questões técnicas relativas ao percurso, os risos
deles, as piadas internas que se ouvem, traduzindo o aspecto lúdico da experiência. As vozes
também aparecem em um sentido mais formal, no uso performático que fazem do alto‐
falante, incluindo as experiências poéticas de voz realizadas por Ericson. De modo repetitivo,
em formato de eco, ele diz: “desobedeça, desobedeça”; “por acaso”. “Pobre, por acaso, rico

188
por acaso. Não há nenhum inocente. Por acaso”. “Não há um inocente”.127 Em outro instante,
a voz de Ericson aparece alta: “Sobre a silhueta dos prédios à luz da manhã”. “Eu odeio o
Leblon”. As vozes não devem ser chamadas de letra ou rap, pois elas compõem a faixa
especificamente como vozes. As vozes são ruído, são som, são barulho. Por vezes
incompreensíveis, mas sempre presentes, como parte do ruído urbano captado, da interação
com o ambiente, entre os próprios performers e aqueles criados como repertório da
perfomance. Quando se escutam perfeitamente, as vozes aparentam tratar de encontros,
mesmo que remixados, como quando Daniel mixa uma reclamação de uma voz masculina que
deve estar num carro, e que diz: “Pô, para com essa porra, cara. Porra, maior trânsito”, com a
voz de Ericson: “Não há um inocente”. Ou quando chegam perto do baile Black, e surge uma
voz feminina que avisa: “aqui rola preconceito contra branco”. As outras vozes que compõem
a ecologia sonora de Daniel são diferentes e insistentes: barulhos de motores de carros,
buzinas, chiados. Por vezes, ouvimos as batidas minimal e o passar de carros.

Entre os gêneros da eletrônica, o minimal techno se caracteriza por frisar a repetição e as


pequenas diferenças. Alguns críticos não consideram esse gênero como voltado para a pista de
dança, e o caracterizam mais por seus aspectos “mentais” do que “corporais”. Os samples de
minimal sobrepostos às buzinas do trânsito de carros passando, do vento soprando, apontam
mais para uma experiência de contemplação sonora, até porque o volume da sonoridade
eletrônica em relação aos outros elementos auditivos é bastante equilibrado; os sons da rua
não são pequenos elementos de uma faixa de minimal. A escuta se constrói através de uma
dosagem de volume entre esses dois elementos. Apesar de praticamente contínuo ao longo de
toda a faixa, o ritmo chega a ter um volume baixo em diversas ocasiões. Mas não deixa de
haver pequenos momentos “pista de dança” que duram propositalmente pouco. E Daniel
comenta: “é aleatório, mas tem momentos em que cola: O momento em que a orquestra se
junta com a sonoridade eletrônica fica lindo”. Daniel afirma que, apesar do Hapax já ter tocado
em diversas pistas de dança de festas de música eletrônica, mesmo lá “não são muito bem‐
vindos”, “até lá é ruído”. Não obstante serem “máquina e eletrônico”, eles não constroem
uma “narrativa”: “de repente, cansamos, perdemos o tempo, destruímos tudo e vamos para
outro momento”. Aliado a esse comentário sobre uma narrativa do ruído, Daniel, em seguida,
reconhece que já houve casos de “catástrofe”, em que o equipamento quebrou no meio de

127
Utilizadas durante a performance como frases, são estrofes da letra de música “Por acaso” do CD O que está
acontecendo, único CD do Hapax, lançado em 2005. Há pouco tempo, através do site, licenciaram quatro faixas
desse CD pelo Creative Commons, como eles falam: “Free to use, Free to remix, mas sem direito a uso comercial.
Remixe, divirta‐se e compartilhe” (www.hapax.com.br). Pedem também que aqueles que remixarem as suas faixas
disponibilizem a informação no seu site.
189
uma performance no Circo Voador. Neste encontro entre uma recusa de uma narrativa linear e
uma atitude performática há de novo a mescla de uma postura punk, seja no modo de exibição
como no de composição. “Assim mesmo”, arremata Daniel (para não perder a ambiguidade),
“há momentos em que fazemos as pessoas vibrar”.

Sobre as sonoridades techno, diz‐se que elas levam durante a festa a uma viagem de
intensidades. Pelo modo como o DJ costura os sons e as batidas, para que direcionem o
público ao movimento contínuo. No caso da experiência sonora de Daniel, esta seria melhor
traduzida como um passeio por sonoridades. Sem dúvida, trata‐se de uma jornada sonora, por
entre diversos espaços de sons. Se a proposta inicial de traduzir a experiência vivida da
performance Burro sem Rabo para uma outra auditiva, esta é bem realizada em sua intenção.
As diferentes sonoridades não levam a uma escuta direcionada no sentido de uma narrativa de
sons, nem a uma fusão. A escuta é essencialmente desestabilizadora. Leva para diferentes
ambientes, porém não em termos de viagem, mas de dispersão. Não é uma faixa que convida
a uma experiência sonora narrativa contínua. Ela é descontínua e, por isso, o seu caráter é
marcado pelo ruído.

Uma sinalização do fim da performance é dada quando começamos a ouvir os rapazes retornar
ao parque de onde saiu e aonde chegaria o Burro sem Rabo. Parecem ser perguntas ou avisos
de que estão chegando. Mas a faixa não termina com o fim da apresentação, essa sinalização
não é um marco definitivo de que terminou. Ela poderia continuar durante muito tempo.
Nesse aspecto, é bem diferente da edição de Fernando, que opera com um modelo de início,
meio e fim. No caso da gravação de Daniel, esta segue um modelo característico das
produções de música eletrônica, em que o início e o fim parecem como que cortados de uma
faixa maior, já que começam e terminam de maneira imprevista. E isto diz respeito também ao
fato de que é um registro que tem uma duração de mais de meia hora, fugindo aos padrões do
formato da canção, e também indicado no desejo de Daniel de encurtar a faixa alguns minutos
sem ele sentir que estaria cortando algo imprescindível de sua gravação. No fim, somente o
som da rua. “Vamo nessa’, ‘vamo nessa”, com umas batucadas de samba a sinalizar o final da
gravação.

Gostaria de concluir este plug‐in chamando a atenção para um elemento importante do


trabalho com o software que o Hapax desenvolve para o GPS. Como vimos acima, Cutz dissera
que o “GPS opera como um DJ”, já que, quando dão uma freada brusca ou viram numa curva
durante a deriva, o GPS muda o ritmo. Assim, é como se o GPS estivesse “tocando” os
movimentos do Hapax como um toca‐discos. Daniel também deixou claro que em seu remix

190
ele não “mexeu na parte criada pelo GPS”, que deixou a “sua criação” como estava. Com essa
operação, o Hapax desenvolve um interessante comentário a respeito do estatuto da máquina
digital como máquina‐ferramenta. Procuro aprofundar essa discussão junto a outros
produtores sonoros em suas narrativas sobre o poder de invenção das máquinas digitais.

191
Extensão Plug‐in 2.1

Atualização do loop magia‐feitiçaria em algumas narrativas


sobre as tecnologias “digitais” e “analógicas”128

Foi muito significativa a familiaridade dos produtores sonoros com a discussão sobre as
tecnologias digitais e analógicas. Por isso abro esta extensão plug‐in 2.1. Pela maneira como se
posicionam em relação aos atributos do digital e do analógico e também pela forma como
outorgam significação às tecnologias, eles acabam por recriar uma atualização do loop magia e
feitiçaria através de como percebem as qualidades do som “digital” e “analógico”. Apesar de
alguns produtores visuais afirmarem ter começado a sua profissionalização ainda no padrão de
formato analógico – e terem considerado essa uma atribuição positiva ‐, o tema específico
sobre as qualidades diferenciais de cada uma das tecnologias para a sua criação não ganhou
um status central em nossas conversas como no caso dos produtores sonoros. Por isso nesta
extensão plug‐in me remeto somente a uma discussão centrada nos produtores sonoros.

Vimos no capítulo 3 como Kassin relata ter vivenciado mudanças históricas que teriam
contribuído para a criação de sua identidade artística. Localizamos em sua biografia o
momento da mudança sutil que leva à reconfiguração conceitual do espaço do estúdio,
decorrente do acesso que se passa a ter aos diferentes modos de uso das ferramentas digitais
e analógicas. É também interessante verificar que, nesse quadro “mais geral”, Kassin não
discrimina as tecnologias disponíveis. Assim, ele demonstra um desejo de comprar
equipamentos digitais e analógicos e organiza o seu relato concernente à aquisição desses
equipamentos segundo o valor de mercado diferenciado que assumem ao longo do tempo: um
primeiro momento de novidade, relativo aos valores altos no mercado da tecnologia digital,
em oposição à situação contemporânea, em que a tecnologia digital é mais acessível e os
instrumentos analógicos ganham valor por, entre outras razões, tornarem‐se mais “raros”. Os
instrumentos que estavam “um passo atrás”, como ele mesmo diz, no momento do advento
do digital, passam agora a ser considerados como estando “um passo à frente”.

Apesar do grande interesse de Kassin em operar no mundo dos instrumentos digitais ou


analógicos disponíveis, no que diz respeito especificamente à noção da “qualidade do som”,
ele é categórico em afirmar que “a forma que as pessoas consomem música está indo por água

128
Esta discussão foi publicada em grande parte em Bacal, Tatiana e Naves, Santuza (2010).
192
abaixo há anos”. Ele se refere especificamente à mídia em formato MP3 e aos mais recentes
formatos de gravação. Nesse aspecto, os discursos relativos ao imaginário dos formatos das
tecnologias digitais e analógicas convergem em muitos aspectos com os discursos sobre os
patrimônios, como descritos por Reginaldo Gonçalves. Com relação aos discursos proferidos
no Brasil acerca do patrimônio cultural, Reginaldo Gonçalves (1996) observa que a noção de
Walter Benjamin de “alegoria moderna” teria um “sentido do mundo como transitório e
fragmentário, sendo a história concebida não como um processo criativo, mas como um
‘inevitável declínio’”. Assim, segundo Gonçalves, “o material análogo à alegoria é a ‘ruína’ (‘As
alegorias são, no reino do pensamento, o que as ruínas são no reino das coisas’), uma
estrutura em processo de desaparecimento e que convida a um permanente e obsessivo
processo de reconstrução no plano imaginário” (Gonçalves, 1996:28). Gonçalves dá
continuidade à sua descrição da seguinte maneira:

As narrativas nacionais sobre patrimônio cultural estão estruturalmente articuladas por


essa oposição entre transitoriedade e permanência, sendo que as práticas de resgate,
restauração e preservação incidem sobre objetos que podem ser pensados como
análogos a ruínas, quando não se constituem literalmente em ruínas. Como tais, esses
objetos estão sempre em processo de desaparecimento, ao mesmo tempo em que
provocando uma permanente reconstrução (idem).

Lúcio Maia, guitarrista da banda Nação Zumbi, acompanha de modo semelhante o processo
histórico identificado por Kassin:

Essa que passou aqui é uma guitarra japonesa de 1965, e só ela tem esse som. Hoje em
dia perdi o frisson da disputa tecnológica, de tudo ter que ser da última geração do
computador. Já passei muito tempo comprando a guitarra da última geração, o pedal de
último lançamento. Mas agora invisto muito mais em autenticidade. Não é à toa que a
Revolução industrial transformou tudo em coisas muito parecidas. Acho que hoje em dia
você só consegue se sobressair desse universo todo se você tem uma identidade. Como é
que você vai buscar isso? Através da autenticidade. Então, o pedal eu compro o mais caro
que tem porque é um hand made. A guitarra é a mais antiga que tem porque só ela tem
esse som. Procuro partir mais para esse campo agora, muito mais por uma questão de
individualização.

Lúcio diz ter sido afetado inicialmente pela “febre de novidade” que rondou a chegada dos
novos equipamentos tecnológicos, mas a compra de novos equipamentos é tomada como uma
febre “passageira”, pois as tecnologias tendem à democratização e à consequente

193
padronização. Nesse ponto, a busca por uma “identidade autêntica” se volta para o passado
das tecnologias de fabricação de instrumentos, para encontrar o único som produzido por um
instrumento ou a fabricação manual de outro momento, contra a fabricação manufaturada de
hoje. O argumento de Lúcio é quase “simmeliano”, no sentido de se pensar na “dimensão
quantitativa” e “qualitativa” do ser humano (Simmel, 1971). Diante da padronização “das
massas” em grandes centros urbanos, busca‐se uma preservação da “identidade” e da
“autenticidade” subjetivas do indivíduo e a fórmula para ir ao encontro dessa autenticidade é
recuperar as “ruínas” tecnológicas que perdem o seu estatuto de “tecnologia” quando não se
produzem mais de forma massificada.

Quanto a essa discussão, retomemos o argumento de Gonçalves, segundo o qual

a imagem das ruínas nos textos de Benjamin sobre a alegoria pode ser interpretada de
modo similar, na medida em que são, ao mesmo tempo, desaparecimento e construção
imaginativa; ou, nem uma coisa nem outra. Nesse sentido, desaparecimento e
reconstrução não são os dois polos de uma oposição binária, mas o produto de suas
relações diferenciais. Em outras palavras, o desaparecimento é a diferença ou o desvio
diferencial da reconstrução imaginativa (Gonçalves, 1996:28).

Embora tenhamos consciência de que os argumentos usados contra o processo de criação do


som digital caminham em diversas direções, tomando como referência a explicação de Kassin,
podemos resumir o procedimento de gravação digital da seguinte maneira: o processo de
gravação analógica tem uma dimensão física em que tanto os sons graves quanto os agudos
são fiéis aos sons que foram gravados originalmente. Entretanto, o processo da gravação
digital depende em certa medida de uma “invenção do próprio computador”, pois se trata de
um som que passa por um processo de “masterização”, necessitando de uma medida
matemática para organizar os graves e os agudos em todo o CD. Além disso, os formatos para
salvar esses sons digitais são muito pesados, o que faz com que sejam salvos de maneira que
perdem ainda mais “a fidelidade” do som “originalmente gravado”. Kassin é enfático em dizer
que uma gravação em MP3 é muito pior que uma gravação realizada em fita cassete, um
formato há muito tempo considerado obsoleto.

A matéria da Piauí! de 2007 é bem ilustrativa desse procedimento pendular de destruição e


reconstrução de autenticidade. O seu título: “Questões tecnológicas: Baixa fidelidade: com o
MP3 e o IPod, nunca foi tão fácil escutar música. E nunca a qualidade do som foi tão baixa e
ameaçou tanto a saúde dos ouvintes”, já indica o percurso do argumento. A tecnologia digital
democratizou a possibilidade de escuta através do acesso a uma maior quantidade de músicas,
194
mas, por outro lado, o seu formato de escuta quebrou com os padrões de alta fidelidade
referenciados pela escuta do elemento gravado, ao ponto de afetar de modo crescente a
relação entre natureza e cultura, chegando a se falar que a escuta desse formato implicaria em
última instância um “risco para a saúde”.

O autor do artigo, Cassiano Erik Machado, inicia a discussão com um panorama das
transformações geradas pelo formato digital, que estaria, por um lado, terminando com
modelos enrijecidos da estrutura das grandes gravadoras, e, por outro, abrindo as
possibilidades de democratização do novo formato, passando, desde a invenção do MP3
(abreviação de MPEG Layer 3), em 1989 ‐ um formato de codificação de música mais compacto
do que o CD e o LP ‐, àinvenção do Napster em 1999 ‐ quando Shawn Fanning, de 18 anos
desenvolveu um programa de intercâmbio digital na Internet, o Napster ‐, e o duplo
movimento de ter sido fechado pelas autoridades e a subsequente criação de um sem número
de sites de trocas de arquivos musicais. Ele explora também o fim de uma indústria de
fabricação e venda de discos que teria que se adaptar a um novo formato cultural, referindo‐se
ao fechamento de grandes vendedoras de discos e de gravadoras.

O artigo explora principalmente o fim da última fábrica de vinis da América Latina sediada em
Belford Roxo, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A Polysom foi fundada em abril de 1999, num
momento em que já havia o uso generalizado de CDs. Nesse primeiro ano, chegou a imprimir
110 mil cópias de um disco da igreja pentecostal Deus É Amor. Em 2004 produziram 43 mil
vinis, em 2005 foram 32 mil bolachas, em 2006 imprimiram 23 mil LPs, e em 2007 produziram
apenas 30 discos, a pedido de DJs.

Em 31 de janeiro de 2010 saiu uma matéria na revista OGlobo, intitulada “Virando o disco:
fechada (e quase sucateada) em 2007, quando já era a única fábrica de vinis da América Latina,
a Polysom volta à ativa com novo dono e a mão de obra de profissionais que viveram a
ascensão e a queda das bolachas, formato que está em alta de novo”, que continua a contar a
história dessa fábrica. Segundo o artigo, a Polysom fechou em outubro de 2007, e,
recentemente, um dono de uma gravadora independente comprou, recuperou os
equipamentos e também contratou uma equipe instruída para reabrir a fábrica. O seu
interesse se deve ao retorno de crescimento na porcentagem de compradores de LP, a partir
de 2009.

Para que tudo isso funcionasse de forma competitiva, João investiu em mão de obra
especializada – e foi buscar o que havia de melhor num mercado há muito desaquecido.
Primeiro, contratou dois dos mais capacitados profissionais da área: o operador de
195
caldeira José Rosa, de 62 anos, e o torneiro‐mecânico Nilton Rocha, da mesma idade de
José. Ex‐sócios da Polyson, que abriu em 1999, com máquinas compradas de antigas
fábricas de grandes gravadoras, não havia ninguém mais indicado para tocar o negócio.
Para completar a tropa de elite, foi recrutado o mecânico Sérgio Mortoni, de 53 anos,
que estava aposentado. Juntos, os três formam mais de um século de experiência na
indústria fonográfica, com passagens pelas fábricas de vinil das gravadoras mais
importantes do país, como as extintas Polygram e CBS (...) – Aqui só tem coisa velha. As
máquinas (dos anos 60), eu, seu Nilton, o José, o Sérgio – brinca João Augusto (Sobral,
Revista OGlobo, 30/01/2010:40).

Para Tim Ingold (2000), como vimos no capítulo 3, o que instaura a concepção moderna de
“máquina” (desde o final do século XVIII) é a sua crescente oposição à “ferramenta”. Uma
máquina ganha o estatuto de máquina quando a sua fonte de energia reside fora do corpo
humano e quando não é operada manualmente. Ao contrário da ferramenta, que é ativada
pelo agenciamento humano, a máquina se qualifica como “um instrumento com
características de independência em relação ao homem”. Ingold afirma que a discussão em
torno da filosofia da tecnologia se organiza em termos de considerar o funcionamento da
máquina como uma “cópia artificial melhorada” do corpo orgânico (Ingold, 2000:301). Em
muitos dos sentidos empregados por Kassin e Lúcio Maia, o analógico é visto como
“ferramenta” “controlada pela capacidade humana”, e, dessa maneira, em continuidade com
uma ideia de organismo, enquanto que o digital teria uma agência, apresentando portanto
uma natureza de máquina, pois a descontinuidade seria característica própria da tecnologia
digital. Como diz Kassin, referindo‐se ao processo de masterização através do computador: “o
grave [nesse caso] é falso. O grave é gerado por ele, é um grave inventado pelo computador”.

Rica Amabis tem uma visão de tecnologia um pouco diferente da apresentada por Kassin. Ele
sustenta que se trata de “um momento passageiro”, que o formato da gravação digital ainda é
muito pesado, mas que isso “já passa”. Ele abre a possibilidade de aperfeiçoamento das
tecnologias, no sentido de atingirem um “padrão” de qualidade cuja perfeição será equiparada
ao da analógica. Em última instância, Rica considera que uma gravação em fita cassete pode
ser melhor do que uma gravação em MP3 e, de maneira semelhante, uma masterização em
formato digital pode ser melhor do que uma gravação em vinil. É curioso o fato de que essa
perspectiva difere da visão da modernidade como ruína, como percebida anteriormente. No
entendimento de Rica, a tecnologia, aliada ao conceito de modernidade, tem uma propriedade
inventiva, e as tecnologias “novas” tendem a chegar ao ponto de equivalência das que
passaram. Rica se volta então para o exame da figura do produtor, ou seja, aquele que detém
196
o poder de trabalhar nesse processo e de realizar o melhor som, independentemente da
tecnologia que utiliza. O foco sai especificamente do âmbito da mídia tecnológica e passa a
estar inserido na capacidade do criador. E Rica utiliza termos como sensibilidade, intuição,
criatividade e imaginação para designar a criação diante do computador.

Ver amostra visual F

Daniel Castanheira radicaliza o argumento de Rica quanto ao advento do digital. Ele iguala a
busca pelos instrumentos analógicos ao do paleontólogo que teria “fetiche por múmia,
escavação e por tentar achar antepassados”. Mas, apesar de concordar que os instrumentos
analógicos são “realmente muito bons”, ele acredita que temos que nos abrir para pensar um
novo formato de criação. Em sua opinião, a sua geração vive a crise de “não acreditar no
novo”, pois se experimenta uma sensação de que tudo já foi inventado. É nesse contexto,
segundo ele, que surgem as bandas musicais “tradicionalistas” e, nesse mesmo plano, os
documentários no cinema, os reality shows, as novelas na televisão e as biografias na
literatura. A tendência, quando não se acredita no novo, é a de se voltar para o mais
tradicional e para “a realidade”, por mais construída que esta possa ser. Daniel argumenta:

o esforço e o desejo são pelo real. Se for um real inventado ou não, ninguém está se
questionando: como se o novo não fosse possível. O máximo que você faz é homenagem
a quem fez coisa boa, porque tudo já foi feito. [...] Tem gente que vai trabalhar no
computador para suprir a falta de grana para pagar os músicos. Então, precisa de um
saxofonista e não vai ter, então, baixa um som de sax e trabalha ele aqui durante dois
dias para dar a dinâmica mais perto do que o instrumentista faz. Porque todo mundo
sabe que o som que ele emite é meio “chulapinha”, feio, brega. Tem que ter o
saxofonista mesmo porque tem a dinâmica do pulmão, do vento, o som do sax mesmo.
Aqui é uma reprodução. Tem uns caras sérios que trabalham para criar um som que
remeta ao realista tal como é. Acho que não é legal, nesse sentido, no meu trabalho.
Acho que tem que usar o som realmente como ele é: feio, brega e exagerar isso. É ruim.
A gente trabalha com esse registro de não tentar pensar em termos de reprodução. O
barato artístico original de criação para mim na música feita digitalmente deve unir essa
triangulação: desejo – procedimento – aparato, e, para que isso seja possível, é
necessário acreditar no novo mesmo que não se trate mais de um “novo absoluto”.

Daniel acredita que é possível, neste momento, pensar em termos de uma revolução estética
no mesmo sentido de quando “se inventou o piano”. E não se trata simplesmente do advento
do “aparato” unicamente, mas do que ele denomina como “desejo”, mesmo porque não
197
adiantaria ter o aparato novo quando prevalece o “procedimento antigo”. A tríade de criação
para ele é desejo – procedimento – aparato. E isso significa não pensar em termos de
reprodução, mas de invenção. Poderíamos dizer, a partir disso, que positivar a tecnologia
como uma estética significa fazer o som “artificial” tornar‐se “original”. Assim, o procedimento
escolhido seria o de não esconder a artificialidade do som, procurando exagerar os elementos
considerados “bregas” e “feios”. Esse método permitiria desvincular o mercado da estética,
por um lado, e, por outro, entrar nas possibilidades dessa “invenção”. Assim, o som “brega e
feio” criado pela máquina (no sentido que vimos acima com Ingold, 2000) deve ser
transformado em ferramenta de criação. E a saída para isso está em positivar essa sonoridade
considerada “artificial” e “mecânica”.

Merece atenção o fato de Kassin considerar “mais autoral” — por ter feito todo sozinho, ao
contrário de sua produção em geral, que é feita em parcerias — o projeto intitulado
“Artificial”. Trata‐se de uma experiência de criação de um disco que se chamou Free USA,
realizado unicamente com um Game Boy, que se caracteriza como uma modalidade de
129
videogame portátil. A ideia desse disco foi concebida em uma turnê pelo interior dos
Estados Unidos, a partir do disco Sincerely Hot (2003), de Domênico +2, na qual ficou muito
impactado com a grande quantidade de casas que via com bandeiras que detinham o slogan
“Free Iraq”, respaldando a guerra ao Iraque. Essa sensação de tristeza o acompanhou em sua
viagem ao Japão, que acabou durando seis meses e que tinha como único instrumento o
videogame portátil. Foi com ele que realizou o seu disco que considera “político‐festivo”.

Eu masterizei o disco. Fiz do início ao fim. Está certo que é um negócio podre e sujo com
um Game Boy. Mas eu fiz a capa, tirei as fotos, escolhi a fonte [da letra]. Foi o primeiro
disco em que eu realmente fiz tudo, como mandava a regra. Fora isso, eu acho que é
curioso ser o pioneiro de alguma coisa. Eu admiro qualquer pessoa que é pioneira, por
mais que eu não goste. Eu achei engraçado ter sido o primeiro disco de Game Boy.

Ver amostra visual G

Neste projeto de Kassin, que ele considera “podre e sujo”, encontra‐se também aquele que
considera mais “seu”. Quando viu o anúncio na Internet em que se vendia um cartucho de
videogame para compor sons no Game Boy, ele não imaginava que, preso no Japão, acabaria
passando muito tempo com esse instrumento e que tanto tempo dedicaria a fabricar esse

129
Esse projeto também derivou em algumas performances, uma inclusive no festival de arte eletrônica Sónar, em
Barcelona, e que se chamou Free USA.
198
disco. É interessante notar que os sons digitais, considerados bregas e feios por Daniel, ou
podres e sujos por Kassin, remetem à concepção de Rica de que “a qualidade sonora depende
muito do sentimento que você quer transmitir”. Rica afirma que é possível “fazer música com
nada, só com barulho, que nem Kassin fez com o Game Boy”. Se em um primeiro momento,
como vimos na seção anterior, Kassin considera a tecnologia analógica mais “autêntica”, neste
exemplo o “podre e sujo” se alia à ideia de “invenção” e “autoria”, por ter sido pioneiro em
realizar um disco com este aparelho.

Lúcio Maia também procederia de maneira aparentemente contraditória com a realização do


seu projeto solo Maquinado, a partir do qual já realizou dois discos: Homem Binário, de 2007,
e Mundialmente Anônimo, o magnético sangramento da existência, de 2010. Ele conta que a
ideia desse projeto surgiu com a necessidade de realizar algo próprio nos momentos de
inatividade da banda Nação Zumbi, na qual concentra as suas principais atividades
profissionais e criativas. E foi no seu “pequeno parque de diversões”, como chama o seu
estúdio caseiro, que ele gravou integralmente o disco Homem Binário. Mesmo com diversas
parcerias no disco, Lúcio diz que, ao contrário da sua ação na banda, neste projeto ele
“responde por ele mesmo”, desde as letras até as composições musicais. Lúcio abre uma fresta
em suas atividades como guitarrista de uma banda bastante conhecida no cenário nacional ao
realizar um projeto autoral que se coloca informalmente através do “formato digital”. Ele dá
forma a esse projeto com o uso do seu equipamento e devido ao fato de que a sua relação
com máquinas acabou ganhando status conceitual. Vejamos, a propósito, como ele descreve o
processo de elaboração do seu primeiro disco:

A gente vive em funções de códigos, de necessidades mínimas que fazem parte do nosso
dia inteiro. São necessidades mínimas a que a gente nem presta atenção, mas, se você
não apertar a embreagem “x” vezes para chegar ao seu trabalho, você não sai nem da
sua casa, ou só chega ao meio do caminho. Então, são essas relações que são
importantes, mas que a gente não assimila. Assim, fiz a relação da ideia da mecanização
do raciocínio. Era disso que falava o Maquinado. Ao mesmo tempo, você ri, se diverte,
aprende, chora, se emociona, ou seja, a nossa vida não perde a poética por causa dessa
relação. E por que os computadores não podem ter essa mesma relação? Pode ser. A
gente é que não sabe ainda. Um computador tem toda aquela questão da automação,
mas em algum momento ele deve ter uma percepção que a gente ainda não sabe. E daí,
um dia se vai descobrir que existe a inteligência artificial. Dizem que já existe, mas que a
NASA vai abrir isso nos próximos dez, quinze anos para a gente saber. Enfim, achei muito
massa esse link dessas duas ideias do homem como uma relação de uma coisa altamente
199
feita pela natureza com um comportamento mecanizado, e o computador, que é uma
coisa altamente industrial, mas que fica também aquele sonho “será que ele pensa, será
que está raciocinando?”. Foi isso a ideia do homem binário, que é a minha relação com o
meu computador. Meu disco inteiro é sempre feito dentro de um computador dentro de
casa.

Ver amostra visual H

Ao se apresentar como plataforma de criação, o digital já não carrega o sentido da ruína


moderna benjaminiana, mas o de modernidade como “invenção criativa”. Assim, no próprio
ato de criação, o computador ganha o estatuto de ferramenta. Isso fica explícito na maneira
como Rica descreve o seu processo de composição: “Eu nunca entro no computador sabendo
o que vou fazer. Eu aceito sugestões [do computador]. Então, é um processo de troca, às vezes
o computador me ajuda muito. Não existe algo prévio”.

Essa intimidade com o computador se refere especificamente ao uso dos softwares de criação
que, segundo os relatos dos produtores, se assemelha em muitos aspectos ao tempo utilizado
em práticas instrumentais. Informações relativas à dedicação dos produtores ao computador e
ao estudo de seu funcionamento costumam ser reveladas em depoimentos de vários deles,
que chegam a dizer que dormiram muitas noites “em frente ao computador”.

Talvez o que esteja em jogo, quando se trata o computador como um “instrumento”, seja
estabelecer uma relação com ele como “ferramenta”. E nesse processo é necessário que se
aceite o seu papel de “máquina”, criando com ele um tipo de sonoridade que ele, enquanto
máquina, produz. Esse tipo de sonoridade, como vimos, é qualificada pelos produtores
entrevistados como “brega”, “feia”, “tosca”, “suja”, em suma, “artificial”. Positivar essas
sonoridades artificiais é uma atitude diretamente proporcional ao desejo criativo, e é nesse
processo que o digital se faz estético. Por outro lado, como observamos na maioria dos casos
mencionados, não se trata de esquecer o que veio antes, de criar uma tábula rasa, a partir de
um projeto de ruptura como era a proposta das vanguardas históricas. Nos exemplos citados
ao longo do texto, verificamos que os produtores encontram formas de criação que se
concretizam através de tecnologias analógicas e digitais. E é nessa relação que estabelecem
com essas tecnologias enquanto ferramentas que os produtores fazem os seus experimentos
sonoros.

200
Plug‐in I.3: Batman Zavareze/Multiplicidade

Um projeto de “Design Expandido”

Uma das características essenciais do sonho de multiplicidade é a de que cada elemento não para de variar e
modificar sua distância em relação aos outros
Deleuze e Guatarri, “1914 – um só ou vários lobos?”

Não é por mero acaso que finalizo a tese com este plug‐in dedicado ao festival de Batman Zavareze:
o Multiplicidade. Para explicar isso, recorro brevemente a uma passagem da linha do tempo.
Durante a gravação do programa “Tribos” para o canal Multishow, em 2008, Timba me apresentou a
todos aqueles que haviam sido chamados para “representar” a “tribo” dos VJs. Já nesse dia, Batman
rapidamente me entregou o seu cartão. Meses depois o reencontrei; entrei no site do Multiplicidade
e comecei a perceber algumas coincidências nas chamadas daquele evento nos jornais e em outros
canais de divulgação. Também durante esse período, quando comecei a introduzir o festival nas
conversas com os personagens desta pesquisa, ganhei consciência de que eles, ou já haviam
participado de uma edição do Multiplicidade, ou mostraram interesse em atuar em alguma
programação futura.

No decorrer do trabalho de campo, apesar das diferentes proveniências dos personagens, havia
alguns espaços coincidentes em que eles participavam que comecei a nomear ao longo da pesquisa
de “polos de atração” para estes agentes. Entre os espaços físicos, Kassin e Fernando Salis já haviam
participado em anos diferentes do festival internacional espanhol Sónar (Festival Internacional de
música avançada e arte multimídia de Barcelona).130 Felipe Vaz também já havia sido convidado para
o festival austríaco Prix Ars Eletronica. E mais recentemente Fernando Salis e Timba apresentaram
conteúdos nos festivais Live Cinema, em São Paulo, e Video Ataq, no Parque das Ruínas, no Rio de
Janeiro. Ainda que não se relacionassem propriamente como “amigos”, todos, sem exceção, exibiam
uma página no MySpace, uma comunidade virtual que teve um diferencial (pelo menos no seu auge)
de congregar artistas, músicos, bandas e coletivos artísticos. Alguns também comparecem na

130
O Sónar existe desde 1994 e assim é definido em sua página web: “Sónar es un festival de música y arte digital que se
celebra durante tres días del mes de junio en el corazón de la ciudad de Barcelona. En la última edición del festival, más de
80 mil personas pudieron disfrutar de una programación musical que combina los grandes nombres de la electrónica actual
con propuestas de corte minoritario. Sónar se caracteriza por ser un punto de encuentro tanto para un público procedente
de todo el mundo y ávido de novedad, como para profesionales, que encuentran en el marco del festival el lugar ideal para
mostrar sus productos y establecer contactos” (http://2009.sonar.es/es/que‐es‐sonar.php)
201
comunidade virtual Vimeo, ou no Youtube, onde postam imagens de suas apresentações artísticas,
como vimos no caso de Fernando Salis e Ricardo Cutz/Hapax. E todos possuem um computador MAC
(Apple).131 Uma entrevista com Batman neste momento (aparentemente final) de meu processo de
pesquisa se justifica para examinar o seu festival como um “polo de atração” carioca para os outros
personagens. Contudo, durante a entrevista, o próprio modelo conceitual do Multiplicidade:
Imagem_som_inusitados, chamado de “festival” por falta de um nome que o especifique
exatamente, demonstrou sofrer dos mesmos problemas de caracterização dos produtores aqui
estudados, o que tornava o próprio festival (assim como também seu criador, Batman) um
personagem imediato desta pesquisa.

Depois de uma longa entrevista na sede do Multiplicidade, na esquina da Pacheco Leão, no Jardim
Botânico, Batman me disse: “O Multiplicidade é um fenômeno que está gritando para ser estudado”,
e ainda disponibilizou um material riquíssimo que existe sobre o festival para ser etnografado desde
2005.132 A partir do estudo dos seus catálogos, da experiência de acompanhar a produção de uma
edição do festival e de assistir a diferentes espetáculos, verifiquei que, por um outro caminho,
Batman havia coincidentemente agrupado os produtores por mim buscados como parte do corpo de
artistas que configuram o seu festival.

A idealização de um projeto múltiplo

Mesmo após cinco anos da existência do Multiplicidade, Batman me contou que bem recentemente
havia se dirigido à empresa Coca‐Cola para solicitar um patrocínio, mas seus dirigentes haviam
recusado, alegando “não conseguirem entender direito a sua proposta” porque, embora ele
chamasse o Multi de "festival", este não se “enquadra em um formato regular de festival”. Batman
não me pareceu nem um pouco chateado com a recusa. Na verdade, aparentava um certo orgulho
em operar positivamente a ambiguidade. Ao compará‐lo com o seu festival favorito, o Sónar
espanhol, que acompanhou desde o início, ele aponta para a caracterização do Multiplicidade, que
não usa no título as categorias “arte eletrônica” ou “digital”, que, em sua concepção, capturariam
“um olhar artístico específico”. Outro evento usado como modelo de comparação é o Mapping

131
Convém esclarecer que os espaços virtuais mencionados não exigem um “perfil” específico. Poderíamos considerar que
o que caracteriza um certo modo semelhante no uso dessas comunidades é uma coincidência com a proposta inicial dos
seus criadores. Por exemplo, o MySpace é majoritariamente composto de “perfis artísticos”, especialmente ligados à
música; mas nessa comunidade também aparecem perfis não artísticos. Da mesma forma, também observamos que o
computador MAC não opera como fetiche unicamente para estes personagens aqui estudados.
132
A quantidade de material disponibilizado por Batman justifica um trabalho acadêmico dedicado ao seu festival, o que
ultrapassa os objetivos desta tese.
202
festival,133 criado pelos fabricantes do software Modul8, este norteado especialmente para VJs,
enquanto o Netmage134 também acaba se fixando, segundo Batman, em um público muito
direcionado. Como ele diz:

um festival que tem no título ‘arte digital’ ou ‘eletrônica’ já coloca no nome uma linha certeira
sobre o que você é ou não é. Ter logo na abertura o subtítulo ‘imagem e som num encontro
inusitado’, é difícil de entender num primeiro momento, pois o texto permite uma certa
confusão. O nome Multiplicidade tem uma origem aberta, pois se refere à construção de um
trabalho mais coletivo.

Comentando as muitas propostas que recebe anualmente (em 2009 chegou a receber seiscentos
projetos de performance para as dez que realizou), Batman pondera que essa “linha tênue” acaba
gerando uma “confusão legítima” entre as pessoas. Explica a criação do seu ideal como “um
envolvimento sensorial no palco que pode ou não ser musicado”. Claramente, não só os festivais
citados por Batman são referenciais para a concepção do Multiplicidade, como ele também
pretende incluir o “Multi” no circuito internacional. Isso se evidencia na apresentação bilíngue de
todos os seus catálogos. Ele lembra ter visto, quando morou em Londres, em 1998, uma dupla de DJ
e VJ pertencente ao coletivo britânico D‐Fuse dentro de um bom teatro, escurecido, com ótima
acústica, sentado numa cadeira confortável. Para ele, o que experimentava era um “espetáculo de
arte digital”, e não uma “festa de música eletrônica”. Nesse sentido, o Multiplicidade “leva para uma
cena de festivais europeus, o que estaria pulverizado nas festas da casa noturna 00, no Circo Voador
e no TIM Festival, no Rio de Janeiro, se não fosse pelo estabelecimento do Oi Futuro que se
consolida como uma “casa de arte e tecnologia”, propiciando a continuidade desse projeto. Por
outro lado, o seu festival também flerta com experimentação sonora, arte contemporânea, poesia,

133
No seu “about”, assim se caracteriza o Mapping festival, com sede em Genebra, Suíça: “The Mapping Festival is
dedicated to VJing and to the task of combining moving images with contemporary cultures. Thus multiplying the events
which animate the town and bestowing itself to the Genevans and international visitors./Formed in 2005 by Modul8
conceptors and Zoo/Usine, The Mapping is in search of all passionate of real time image use, amateurs of electronic
cultures, conviviality and discovery./The festival is a true laboratory for the VJing discipline, offering both novices and
professionals the possibility to experiment and encounter. This unique aspect gives the festival a world‐wide reputation in
the VJ‐community as a meeting point you just have to visit./ What is VJing ? The definition of VJing is performance which
consists in creating moving visual art (often video) on large displays or screens, often at events such as concerts, nightclubs
and music festivals, and usually in conjunction with other performance art. This results in a live, multimedia performance
that can include music, actors or dancers as well as live and prerecorded video. Also sometimes called «Realtime» or
«Realtime Video»” (http://www.mappingfestival.ch).
134
No site Wikipédia, o festival Netmage, que existe desde 2000, é descrito como se dedicando à arte eletrônica, produzido
anualmente em Bologna, Itália, “com um programa multidisciplinar de obras que investigam e promovem pesquisa
contemporânea” (http://en.wikipedia.org/wiki/Netmage). Na chamada para projetos de 2011, são dadas mais algumas
especificações: “The Live‐Media Floor is the main section of the Netmage festival program, an international platform to
confront practices of generating and/or mixing images and sound of every type and format. A window on cinematic and
inter‐media aesthetics that change form year by year. Participation is open to projects that employ electronic,
electroacoustic, analogue and cinematic means to produce visuals and sound. The projects selected will be performed in a
single event space, single or multi‐screen, for a duration of about 20 minutes each (http://www.netmage.it/).
203
dança e teatro, “formando conteúdos que vão além do espetáculo”. Ou seja, em seu relato se
percebe a integração da estética dos DJs em espaços não necessariamente dedicados a festas, sem
por isso deixar de filiar‐se às experiências “pulverizadas”, do 00 ou do Tim Festival, onde se fazem
apresentações de DJs, mas, ao mesmo tempo, soma esses personagens à “arte conceitual
contemporânea”. Não há em sua fala uma mera pontuação de diferença ou reforço de singularidade
do seu festival em relação aos outros que mencionou: cada uma das apresentações a que assisti
realmente não consegue por si própria indicar uma “identidade fixa” ao festival: um show de
Carlinhos Brown com imagens projetadas por Gualter Pupo e Christiano Calvet em uma escultura de
cornetas alto‐falantes (chamadas bocas‐sedãs na Bahia); uma apresentação do grupo de música
eletroacústica, o UAKTI, de Belo Horizonte; um “cinema narrado” intitulado “Pororoca Rave”, de
Fausto Fawcett, conjuntamente com a artista plástica e pesquisadora de sonoridades Vivian Caccuri
e o guitarrista Bruno Resende; e uma performance poética digital da artista Lica Cecato e do designer
gráfico e poeta digital André Vallias. Esses eventos não criam nenhuma linha de continuidade; talvez
o único elemento de continuidade seja justamente a descontinuidade entre os espetáculos.

Seu formato também gera uma certa “confusão”, pois, em vez de realizar‐se uma vez ao ano, em
três ou quatro dias concentrados, ele criou o Multi: Som e Imagem Inusitados para estender‐se ao
longo do ano, em formato de pílulas quinzenais, no teatro do oitavo andar do Oi Futuro, capacitado
para cem pessoas. Outra dimensão da experiência de estranhamento de uma empresa como a Coca‐
Cola em relação aos espetáculos do Multiplicidade diz respeito à duração da performance. Um show
de música normalmente se faz em hora e meia ou duas horas, enquanto um espetáculo usual do
“Multi” dura entre quarenta e cinquenta minutos – tempo que se aproxima mais da duração de uma
performance artística do que a de um show. Outros elementos que configuram esse festival: os
eventos são realizados em um Centro Cultural dedicado majoritariamente a exposições de artes
plásticas; e, ainda por cima, após cada apresentação, a equipe de Batman oferece um aperitivo no
foyer do teatro (usualmente, chope, mas, na abertura do ano e no lançamento do Catálogo, serviu
também acarajés em homenagem a Carlinhos Brown); tudo isso o aproxima de uma vivência de
vernissage. As apresentações se equilibram entre um formato de vernissage e show. Mais do que
pensar num formato de show, Batman considera que o espaço se abre para uma experiência de
“audição”.

Expor o desenho do festival me parece importante porque, como já mostraram Seeger (1977),
Sennet (1988), Finnegan (1992) e Bennet (1980), diferentes formatos de performance geram
restrições à experiência para os envolvidos, tanto para aqueles que ali se apresentam, como
também para o público. Esta descrição da construção do formato do Multiplicidade requer um

204
entendimento de quais foram as restrições autoimpostas ao festival. Se, como afirma Seeger, uma
produção de show de rock, deve levar em consideração o barulho participativo do público – que
geralmente está de pé, dançando e olhando de frente para o palco –, o primeiro Catálogo de Batman
já indica a mudança, como na montagem da primeira performance em que eles adotaram o modelo
de colocar almofadas no chão para o público sentar‐se, em vez deste assistir de pé. Era uma
sinalização ao público para o que se esperava proporcionar: não se tratava necessariamente de uma
experiência de show (isso não quer dizer, no entanto, que, ocasionalmente, dependendo da
performance, não se crie um formato com as pessoas de pé). Por outro lado, muitas das
apresentações do Multiplicidade estariam mais próximas à experiência de show, porque, ao
contrário de performances ligadas às artes visuais, os espetáculos do festival são sempre “plugados”,
com a luz apagada.

Algo que me ajudou a entender a especificidade do Multiplicidade foi a curadoria de um evento que
Batman Zavareze organizou na Casa França Brasil, em agosto de 2010, chamado Happenings. O
evento se realizava em diferentes espaços do Centro Cultural: começava com um debate com o
poeta Eucanaã Ferraz e o artista plástico Raul Mourão, e prosseguia com performance do coletivo de
arte sonora Chelpa Ferro. Em seguida, ocorria uma homenagem‐performance ao CEP 20000, com o
poeta Chacal junto a jovens poetas; no final da tarde apresentava‐se o noise de Arto Lindsay; e
finalmente, o encerramento na miniversão da festa “Dancing Cheetah”, de Globalguettotech (com
os DJs Chico Dub, Pedro Seiler e João Brasil). Perguntei a Batman por e‐mail o que diferenciava
aquele evento do “Multi”, pois todos os artistas convidados do Happenings já haviam participado do
Multiplicidade. A resposta foi bem elucidativa ao comparar as duas propostas:

O Multiplicidade tem como viés principal a rediscussão do uso da tecnologia nas linguagens
artísticas no que se propõem a fazer, espetáculos audiovisuais ou multimídia.

O Happenings recorre ao espírito dadaísta e futurista quando o resultado final é fruto de ações
coletivas diversas. O som, desta vez [referindo‐se a essa primeira experiência], está bem
presente pela minha relação pessoal com o tema e pesquisa visual destes. Mas o Happenings
não precisa estar ligado na tomada, não será num teatro escuro, não terá obrigatoriamente
projeções, não promove encontros num palco entre imagem e som. Ele poderá ocupar
diferentes espaços com diferentes linguagens, sempre abrindo espaço p/ discussão para em
seguida ir além....

Ao longo dos cinco anos do Multiplicidade, Batman modificou um pouco o formato das
apresentações quinzenais e, mais recentemente, estabeleceu uma apresentação mensal, pois julga
ser um formato mais possível em termos de produção e de outras atividades que acumula fora a

205
curadoria do festival. Por outro lado, desde 2008 incrementou apresentações periódicas no teatro Oi
Casa Grande, de muito maior porte; e, no verão de 2010, realizou sessões especiais na praia. Diz
ainda que gostaria de criar uma edição festa, como projeto possível para 2010.

Batman conta que, em 2000, quando chegou da Itália e após sua vivência na Fabrica (ver capítulo 3),
abriu uma firma com o nome 27+1 Comunicação Ltda. para poder passar nota em seus trabalhos
que fazia como free lancer (27 é o dia do seu nascimento; e o +1, diz ele, é para deixar claro que
“nada se faz sozinho”, pois tudo que faz “é colaborativo”).135 Ele havia comprado todo um
equipamento de produção de vídeo que coubesse em uma mochila e se disponibilizou a viajar. De
fato, passava nove meses do ano viajando; filmava, editava e montava os vídeos, geralmente,
programas para a televisão a cabo, nos quartos de hotel por onde passava. Foi depois contratado
para os Projetos Especiais da marca de roupas Sandpiper. Começou a realizar grandes produções,
como o show da dupla alemã de música eletrônica Kruder e Dorfmeister, no Cais do Porto, em 2002,
e o evento Coca‐Cola Vibezone, em 2003, entre outros festivais e outras festas nas quais ele
pretendia criar “alguma intervenção que fosse algo além do cenário”. Nesse período, também se
apresentou no Tim Festival com trabalhos de projeções. Há mais ou menos três anos que está mais
baseado no Rio, tempo que também coincide com o nascimento do seu primeiro filho, e a curadoria
do Multiplicidade. Ele acredita que, em 2005, foi por causa do seu trabalho como VJ que uma das
diretoras do Instituto Telemar, Maria Arlete Gonçalves, entrou em contato com ele para que
ocupasse as quintas‐feiras do recém‐inaugurado Centro Cultural Telemar com alguma programação
que “envolvesse uma performance multimídia”. Batman diz que na época não era um “produtor
cultural”, e considera que foi uma “aposta no seu trabalho”. Lembra que, naquele mesmo momento,
o coletivo Hapax – que nesta tese aparece coincidentemente no plug‐in anterior – foi convidado
para ocupar as quartas‐feiras, promovendo um encontro entre um DJ e um músico que nomearam
algo como “DJ X violão”, indicando como a direção do Centro Cultural parecia apostar em jovens
produtores para o estabelecimento da relação entre Arte e Tecnologia, associada à sua “identidade”.
Por e‐mail, ele descreve o contexto em que se realizou o convite e como foi a criação do conceito do
Multiplicidade:

Tive 24h p/ dar minha resposta afirmativa e surgiu o nome Multiplicidade, o formato ao longo
do ano (quinzenalmente às quintas‐feiras, de maio a dezembro), num horário cedo para
terminar cedo com a intenção de que formasse público, estimulasse o meio artístico com uso
de recursos digitais e tivesse regularidade. Quando cheguei à reunião todos tiveram um

135
Alguma ressonância desta ideia faz eco ao +2 de Kassin, Domenico Lancelotti e Moreno Veloso, mesmo que se realize
unicamente pelo título.
206
choque, já tinha um layout da logomarca e até uma proposta de programação definida... Abria
com Arnaldo Antunes nas imagens e Edgar Scandurra no som, ou Vik Muniz e Bateria da
Mangueira...

Sobre o formato, ele explica que “defendia um palco que não tinha visto ainda”, no qual o conteúdo
final fosse parcialmente produzido por todos os envolvidos, ele inclusive. Queria ter a opção de
propor algo inovador e não se submeter ao rider técnico do artista convidado. Naquela mesma
noite, registrou o nome no INPI.

A relação do projeto Multiplicidade com a criação do Centro Cultural Telemar se expressa bem nos
textos de apresentação do primeiro Catálogo, que, mesmo tendo sido redigido dois anos após a
criação do formato, nos ajudam a reviver a elaboração daquela ideia. Talvez aqui poderiam ser
considerados como textos míticos, a cristalizar uma ideia impressa após dois anos de existência do
festival. Assim, já consolidado, o projeto pôde ser inventado, através dos Catálogos, como veremos
adiante. Esses textos são institucionalizantes, pois funcionam como porta‐vozes (Latour, 2005) de
vários elementos que estão em jogo na concepção do festival, criando uma rede: sua associação ao
Oi Futuro, a invenção do Oi Futuro, os mediadores envolvidos, como a empresa Oi, o Ministério da
Cultura, e também os porta‐vozes do projeto, acionados e relacionados à sua “identidade”, a partir
de quem escreve e concebe o texto. Pela força de invenção e de acionamento de redes, vale
recuperar trechos desses textos:

Na abertura do primeiro Catálogo, referente aos anos 2005 e 2006, a então diretora do Oi Futuro,
Maria Arlete Gonçalves, escreve a apresentação:

O Multiplicidade_Imagem_Som_inusitados nasceu em maio de 2005, juntamente com o Oi


Futuro, que, naquela época, ainda respondia pelo nome do Centro Cultural Telemar. O projeto
foi criado em total sintonia com o conceito de convergência, que une ideias, linguagens e
pessoas de todos os sotaques em um só espaço. Passado esse tempo, o Multiplicidade
conserva a originalidade inicial e, a cada edição, reforça a opção pelo novo. Ao explorar os
limites da arte digital, com apresentações únicas de artistas de cada cena contemporânea
mundial, o formato faz diferença no calendário cultural do Rio de Janeiro.

Multiplicidade_Imagem_Som_inusitados tem curadoria de Batman Zavareze, profissional


realmente multimídia e que usa poderes de super‐herói para promover encontros a princípio
improváveis, produzir ambientações únicas e criar atmosferas invariavelmente surpreendentes.
Sempre fazendo de cada show uma experiência singular (...)

207
Agora, O Oi Futuro orgulha‐se de colocar à disposição esse catálogo, que resume em textos e
imagens o que tem sido o projeto. Quem nunca viveu uma noite Multiplicidade vai ter a
oportunidade de ter uma amostra do que perdeu

Para ler e ver com a cabeça e o coração abertos (Gonçalves,2007: 04).

Essa abertura é institucional: estabelece o quadro onde se faz possível o projeto de Batman. Em
seguida à primeira apresentação da diretora do Oi Futuro – que associa em seu texto o surgimento
do Multiplicidade com a inauguração do então chamado Centro Cultural Telemar – , Batman
Zavareze abre com um texto de exposição da proposta do seu projeto Multiplicidade, como veremos
nos trechos citados a seguir:

O nome, Multiplicidade, é autorreferencial. A função que ocupo é fruto da vontade de ver e


ouvir um repertório artístico contemporâneo diferente, que provoque a inventividade criativa
experimental numa discussão multíplice.

A cada espetáculo, um encontro único entre arte visual, música e tecnologia. A intenção do
Projeto Multiplicidade é promover a expansão, a expressão, a convergência, o diálogo e o
intercâmbio de novas ideias, desconstruindo linguagens para experimentar novas relações
entre o público e o universo digital.

Num primeiro momento, tivemos a função de criar, formatar, propor, explicar, convidar,
negociar, promover, e se estabelecer.

A ambição é ser plural e singular/Ser plural no sotaque, no repertório; e singular a cada


espetáculo, a cada encontro inusitado (Zavareze,2007:06)

Vale recuperar o seu texto de apresentação referente ao catálogo de 2008, lançado na abertura de 2009,
quando já se passaram três anos desde a criação do Multiplicidade. Afirma Zavareze:

“Temos um formato de Festival incomum: de maio a dezembro produzimos espetáculos singulares


intervalados, o que nos permite construir cenários, experiências inusitadas e criações artísticas únicas entre
imagem e som. Tudo isso num repertório plural inclassificável. Estabelecemos um diálogo que reúne arte
visual e experimentos sonoros em apresentações multimídia, já que a tecnologia e sua incessante renovação
fazem parte conceitual de nosso DNA” (Zavareze, 2009:15).

O texto de apresentação de Batman é também institucional e explicativo. Nele, Batman ressalta


igualmente a parceria com o Oi Futuro e a captação de recurso cultural do Governo do Estado do Rio
para o ano de 2006, delineando a possibilidade de “estabelecimento” do seu projeto mediante a
realização de parcerias com patrocinadores, fornecedores, equipe, realizadores, apoios, público e
artistas. Ele próprio destaca também a complementação de apreciar o Catálogo junto com a
documentação em foto e vídeo, disponível no site.
208
Batman finaliza o texto afirmando que três “referências para o projeto” foram convidadas para
desenvolverem ideias sobre IMAGEM, SOM e INUSITADO, os termos que, juntos no título, formam a
composição de sua proposta. Os escritos de abertura têm um duplo propósito de pensar sobre a
persona escolhida para ser associada ao projeto, e também sobre o conteúdo do texto. Ao levar em
conta essas duas dimensões, a escolha desses três personagens talvez deem a tônica do
enquadramento estético do festival:

O primeiro convidado, o designer Billy Bacon – com quem Batman trabalhou, e é criador do núcleo
de desing Nú‐dës bem como do projeto Nú‐dës:ordem para os seus espetáculos artísticos multimídia
– , escreve sobre “Imagem”. Diz que, como “designer gráfico”, aprendeu a “compreender e
manipular o processo de persuasão através da comunicação visual”, e sustenta que vivemos “um
bombardeio maciço e contínuo de imagens (e mensagens) dirigidas e construídas”. Porém, para ele,
o festival Multiplicidade se aproximaria de uma experiência antibombardeio, como uma “praia em
um dia de semana”. Argumenta:

As experiências com os sentidos que todos os participantes desta proposta anárquica, em


termos de formato, oferecem ao público não têm pretensão de nos tornar mais um alvo de
mercado. Pelo contrário, a intenção é explorar nossas idiossincrasias. Querem nossa
contemplação, oferecendo em troca liberdade para a retina e alívio para a mente! Criam
imagens com novas funções, funções com novas funções, imprecisas e imperfeitas.

Caos, ordem, desordem, fragmentos e significados para nos despertar e nos sensibilizar (Bacon,
2007:08).

É bem relevante que Billy Bacon fale de si como um profissional que surge no interior do aparelho de
controle social através de sua associação à propaganda, aliado ao processo de “persuasão” e de
criação de “mensagens dirigidas”. Alguém que se apresenta como aquele cuja atividade é gestada
dentro do valor de consumo. Multiplicidade, para Bacon, se enquadraria em um regime oposto,
formando um contraste entre “mercado” e “arte”, “bombardeio de imagens direcionadas” e
“autenticidade” temporal, “alívio para a mente”. Essa oposição aparentemente modernista se torna
mais complexa na apresentação a Billy Bacon que, a partir da criação do seu núcleo de design “com
propostas gráficas não convencionais, [resultou] num choque no mercado” (ibidem:09). Já na
própria criação mercadológica, transbordou “arte”; assim, a lição de Billy é ser Nú:dës e
Núdës:ordem; é tomar as ferramentas do design para a criação artística perdendo ao longo do
caminho os limites de onde começa uma e termina a outra.

209
O segundo convidado para escrever sobre “SOM” foi o produtor e apresentador da extinta e
cultuada rádio Fluminense, Mauricio Valladares. Sobre o SOM, ele assegura que, em 1984, no “início
de suas aventuras radiofônicas”, era:

Época de curiosidade, muita gente querendo saber das coisas – punk, pós‐punk, dub, Tim Maia
(...), Joy Division, o som de Brasília, samba, jazz, krautrock... Mistura, desejo, preconceito no
lixo, multiplicidade, novos tempos com os pezinhos lá atrás... e lá na frente!

O Multiplicidade existe para defender (...) a liberdade (Valladares, 2007:10).

Pertencente à mesma geração de Billy Bacon e reverenciado desde o B‐rock dos anos 80 e as cenas
abertas nos anos 90, em Recife, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro, Mauricio Valladares é
uma referência para o Multiplicidade, pois “em 1992, Mauval [Mauricio Valladares] criou o ‘Radiolla’
fora do dial, na Torre de Babel, misturando no mesmo palco Chico Science com Nelson Sargento,
Skank com uma harpista clássica, exatamente o que o Multiplicidade se propõe um dia a fazer”
(Zavareze, 2007:10). A fragmentação e a multiplicação de gêneros musicais a partir do final da
década de 80, assim como as influências punk abrem as possibilidades para realizar encontros entre
gerações musicais.

O terceiro convidado para escrever sobre o “INUSITADO”, e sobre quem se dispensa apresentação
no Catálogo, é o músico, compositor e um dos fundadores do movimento tropicalista, Tom Zé. A
organização do seu texto não segue uma estrutura narrativa; é construído a partir de curtas notas
intituladas “Anotações de Tom Zé”. Vejamos a seguir como ele elabora a ideia de “inusitado”:

O alvo de quem cria o chamado “produto artístico” hoje é a originalidade. Haja bala! Como
produto se inscreve em competição, a maratona soi disant original tem numerosos
concorrentes e incorre em certa repetição de processos. Originalidade aponta para a palavra
origem e também para o que não existiu antes. O que pode, por princípio, excluir o consumo
ostensivo e colocar o verdadeiramente original distante da massa.

Deus Mickey

Na exposição de esculturas de divindades Greco‐romanas em São Paulo, os frequentadores se


contam às centenas.

A massa gosta de estímulos, embora não muito seletivamente: engole Van Damme e Afrodite.

Ouvi um visitante que olhava a sombra projetada na parede da Faap pela estátua de Hermes,
com seu capacete provido de duas asas arredondadas, observar para a namorada: “Que legal,
parece o Mickey!”

210
Walt Disney, o deus do comércio e dos ladrões fundiram‐se no repertório da classe média
paulistana.

Foi um comentário exemplar e curioso; tome cuidado: o incomum nem sempre é valor em si
mesmo.

(...)

Comentam alguns que o resultado pode ser inusitado. Não se trata de jactância, pois não tomo
o adjetivo como elogioso, ele é apenas documental. Não controlo o resultado, o rigor não é
inimigo da surpresa; sou veículo do modus faciendi, que vai desenhando um mapa profundo, só
acompanho os contornos.

(...)

Inusitado é aquele trabalho que, em sua diversidade, nem contraria nem confirma o mercado:
pula sobre ele, na transcendência (Zé, 2007:12).

Tom Zé é chamado como uma entidade literal, por seu envolvimento na criação de um movimento
de vanguarda brasileiro, o tropicalismo, que, segundo Caetano Veloso, “apresentou na periferia da
economia mundial um modelo de confronto ao Século Norte‐Americano que somente agora passa a
ser globalmente inteligível” (Veloso In Vianna, 2007:142). Nessa proposta de desestabilizar a “zona
de conforto” dos artistas convidados e fazer com que se crie algo a partir do encontro entre artes
que usualmente não convivem, o formato do Multiplicidade muitas vezes segue uma composição
que pode ser pensada em continuidade com a estética da justaposição e surpresa, em continuidade
com algumas referências modernistas.

A técnica da justaposição é explorada por Lévi‐Strauss logo na abertura de Olhar, escutar e ler
(1997), sobre o modo de composição de À La recherche Du temps perdu. Ele afirma que os
personagens às vezes parecem serem fabricados de pedaços diferentes de pessoas reais. Assim
também ocorre com a noção de temporalidade. Propõe Lévi‐Strauss:

Proust compara seu trabalho ao de uma costureira que monta um vestido com peças já
recortadas, que já possuem forma; ou, se o vestido estiver muito usado, o refaz. Do mesmo
modo, em seu livro ele ajusta e cola fragmentos uns aos outros “para recriar a realidade,
costurando, no movimento de ombros de cada um, o movimento que nunca foi feito por
outro”, e construir uma única sonata, uma igreja, uma jovem, com impressões recebidas de
várias (...) No estado último da obra, as peças do mosaico permanecerem reconhecíveis e
manterem sua individualidade (Levi‐Strauss, 1997:10).

211
Essa técnica também estaria presente em a Grande jatte, de Seurat, que seria composta de
“flagrantes diferenças de escala” (ibidem:11) entre os personagens. Para Lévi‐Strauss, essa
impressão final se daria por Seurat ter concebido conjuntos de figuras de maneira independente,
“tendo‐os então disposto uns em relação aos outros (provavelmente após tentativas sucessivas,
cada qual constituindo uma experiência sobre a obra)” (ibidem: 11). Em “Políticas da Tropicália”
(2007), Hermano Vianna chama a atenção para o artigo de David Banash que sugere que as técnicas
de colagem e corte‐e‐cola foram usadas pela publicidade antes que os cubistas e outros modernistas
o fizessem. Vianna afirma que, segundo esse autor, o aprendizado dessa técnica pelo meio
publicitário não é muito valorizado pelos estudos de arte moderna para manter o “mito da
vanguarda definida pela resistência à cultura de massa e gosto predominante" (cf. Vianna,
2007:138). Vianna defende que a estética tropicalista teria admitido abertamente a sua dívida com
as formas culturais mais comerciais, tornando‐se, assim, os tropicalistas, eles mesmos, ídolos
comerciais através do método explicado por Caetano Veloso, e já citado anteriormente, de samples
de ready‐mades. Em última instância, para Hermano Vianna,

Nessa tentativa de conciliar opostos inconciliáveis o tropicalismo é herdeiro de importantes


tradições culturais brasileiras, como – obviamente – a antropofagia cultural de Oswald de
Andrade, mas também – e mais problematicamente – como o elogio da mestiçagem inventado
pelo antropólogo Gilberto Freyre (...) Gilberto pensava a mestiçagem como estado onde as
diferenças não se apagam num tipo de fusão completa, mas sim passam a viver num “precário
equilíbrio de antagonismos”. Esse jeitinho não “fusionista” de encarar a mestiçagem tem uma
sugestiva semelhança com a “montagem/justaposição” tropicalista, que por sua vez se
assemelha mais com uma estética proposta pelo sampler do que com a estética da colagem
(Vianna, 2007:141).

Na sua força de juntar elementos numa “síntese disjuntiva”, como afirmou Viveiros de Castro –
citado no plug‐in I.2 –, o tropicalismo já se apresenta como partindo de uma estética associada ao
conceito do ciborgue de Marylin Strathern (ver capítulo 3). Tom Zé, enquanto “personagem
tropicalista” incorporado à apresentação do primeiro Catálogo, estabelece uma relação de
continuidade do projeto Multiplicidade com os modernismos brasileiros pré e pós‐tropicalistas, a
partir de uma linha do “experimentalismo”. O próprio Tom Zé, em um e‐mail enviado após a sua
performance em 2006 e incluído no catálogo, afirma a partir da tônica da continuidade: “Batman
Zavareze e sua gente fazem do Projeto Multiplicidade o locus da diversidade. Remeto a cenografia
deles aos primórdios da poesia concreta, que então gerava encrencas memoráveis – são muito
benfazejos, os escândalos e encrencas, para uma linguagem artística nova. / O desavisado coça a
cabeça ao entrar na sala de espetáculo: “Então, no Multiplicidade o fragmentário toma conta do
212
espaço?” Mas não é nada disso: há uma regência, uma colocação visual, que dá direito à convivência
dos afins e contrários e a instaura” (Zé, 2007: 84).

Em termos da trajetória do festival, Batman situa que o “Multiplicidade é maior que Batman
Zavareze, e, por sua vez, Batman é maior do que 27+1”. Com esta frase, ele está dizendo que, apesar
de seu nome ser conhecido no “mercado” – e por isso foi convidado inicialmente pelas curadoras do
Oi Futuro –, cada vez mais ao longo do tempo foi incorporando conhecimentos em fotografia,
cinegrafia e artes visuais, assim como uma intimidade maior com novas tecnologias, para a atividade
de curador do Multiplicidade. Dessa forma, ele se refere a si mesmo como marca ou branding, e
exemplifica com o fato de que foi selecionado por uma turma de primeiro ano de design na PUC
para apresentar a história do projeto Multiplicidade. Ele diz que os alunos o escolheram por
considerar o desenho do festival “o futuro das possibilidades de design”. Talvez os alunos tenham se
interessado tanto pelo Multi que poderíamos afirmar que o branding funciona com duas operações:
a primeira como designação de identidade (e Zavareze utiliza os termos “espírito” ou “atmosfera”
associados a uma marca, quase no sentido romântico alemão, de uma kultur), através de desenhos,
logomarcas, descrições, entre vários outros aspectos. Ele ilustra isso com algumas associações que
fazemos com a marca Coca‐Cola (pessoas felizes, jovens, esporte). Assim, para ele, com formação de
design gráfico, seu objetivo é que o Multiplicidade possa “construir histórias” através de uma
“identidade”. A seu ver, assim como um projeto educativo, o festival só fará sentido em longo prazo.
Ele também acredita que o festival, enquanto “um laboratório de referências e pessoas que geram
uma reflexão entre imagem, som e o casamento delas”, tem um efeito “multiplicador” no sentido de
que reverbera indiretamente nas boates, festas, galerias e palcos, por navegar exatamente por entre
vários lugares de exibição de arte, assumindo a “pluralidade”.

Essa criação do “conceito” da marca também permite que muitos elementos díspares possam ser
reconhecidos pela própria marca. Dessa forma, o festival Multiplicidade não se resume à produção
do espetáculo porque há vários elementos conectados às performances que são também
autônomos. O site do Multiplicidade www.multiplicidade.com permite ao curioso entrar no
www.flickr.com/ para acessar sua galeria de fotos organizada por ano, e cada foto nomeada remete
respectivamente ao show em que foi tirada. De 2005 a 2009 (as fotos de 2010 ainda não estão
disponíveis), é possível verificar que a quantidade de fotografias relativas a cada ano foi
aumentando, assim como os recursos financeiros. Esses álbuns se restringem a um colecionamento
de pequenos cliques, de momentos registrados de cada performance. No site também podemos

213
clicar nos ícones do Facebook e do Twitter do Multiplicidade,136 comunidades que mantêm uma
função semelhante de divulgação das próximas atrações do festival. Mas pelo Google é igualmente
possível acessar o blog do Multiplicidade http://blogmultiplicidade.wordpress.com/, um espaço que
combina a seleção de momentos de ensaio dos artistas que vão participar do evento, e muito
material informativo sobre cada VJ, músico, coletivo ou produtor. O blog não se limita a criar
chamadas para o festival; ele oferece informação com conteúdo maior sobre cada artista convidado.
O exemplo da vinda do Cinematic Orchestra apresentando Man with a movie Camera, do diretor
Dziga Vertov, que se exibiu no Oi Casa Grande, em 2009, é bem ilustrativo deste recurso do blog. Há
um trabalho de escrita e descrição do filme, post com o cartaz do filme; em outros posts, eles
disponibilizam trechos do filme no Youtube, e ainda todo o histórico da trilha sonora do filme, assim
como o trabalho específico do Cinematic Orchestra. Mas o blog também é usado para acrescentar
pequenas pílulas promocionais para os seus seguidores de Twitter a fim de obter ingressos. O Blog,
assim, é um instrumento de divulgação mais aprofundado, possibilitando conteúdos sobre as
performances que se aproximam, ou descrições mais minuciosas das que já passaram. Além desses
links, há também um canal do Multiplicidade no Youtube, onde podem ser acessados pequenos
filmes de ensaios de performances, desde o início de sua criação, bem como as vinhetas anuais do
evento, que mudam de letra, fonte e cor a cada ano. Esses pequenos clipes de vídeo configuram um
colecionamento diferenciado do álbum de fotos disponível no Flickr porque são registros realizados
antes, durante e depois da performance, outorgando uma vivência não somente do espetáculo em
si, mas do ambiente de criação de toda a formulação de cada apresentação. Percebe‐se somente
nestas plataformas on‐line um cuidadoso trabalho de captura de imagens, seleção, edição dos vídeos
e incorporação desse material imagético e escrito.

Além disso, o Multiplicidade tem quatro catálogos, um primeiro respectivo aos anos de 2005 e 2006,
e mais três dedicados a cada ano de 2007, 2008 e 2009. Esses catálogos têm estatuto de livros de
arte ou livros/objeto de arte que Batman tem um especial gosto em realizar. Em termos de pesquisa,

136
No cartão que Batman me entregou no início de 2009 as maneiras de acessar o Multiplicidade on‐line são os endereços
do Youtube, do MySpace, e do site. A presença do Facebook e do Twitter, no início de 2010, mostra a maior presença/uso
neste momento dessas duas comunidades, mas isso não quer dizer que tenham saído do MySpace.
214
é possível começar folheando o Catálogo, encontrar a foto e a descrição de quando, por exemplo,
Kassin e Berna Ceppas se apresentaram no Multi com o projeto Artificial, quando também Kassin
lançou o seu disco Free U.S.A. A partir daí, podem‐se buscar fotos da apresentação no flickr, imagens
gravadas no Youtube e alguma descrição mais detalhada no blog. Apesar de suas diferentes
naturezas, os dispositivos de divulgação on‐line e em formato impresso acabam se conectando.
Como afirma Batman no final de sua apresentação do primeiro Catálogo: “Como estas páginas não
emitem som, proponho ler em voz alta ou visitar nosso site com toda a documentação em fotos e
vídeos desses encontros” (Zavareze, 2007:06). Assim também o site está disponível na folha de rosto
do Catálogo. São referências que criam pontes entre os diferentes modos de divulgação.

Batman não se dedica unicamente à curadoria do Multiplicidade. Somente neste ano, entre outros
trabalhos, ele organizou toda a parte visual de uma festa de grande porte em São Paulo e também o
cenário do Sport TV para a Copa do Mundo através de sua empresa 27+1, que arrecada dinheiro e
contrata um certo número da equipe que compõe o “Multi”, e que igualmente funciona como o que
ele chama de “fundo Zavareze”, quando ele próprio é marchand de si (literalmente autoproduzindo‐
se), ganhando dinheiro em trabalhos “comerciais” e financiando alguma parte do Multiplicidade (o
chope que oferece após cada espetáculo é financiado por ele, e tem o objetivo de estender a
convivência dentro do teatro entre artista e público para o lado de fora).

Até agora privilegiei uma série de elementos que se abrem a uma análise da composição do projeto
Multiplicidade como rizoma, segundo a concepção de Deleuze e Guatarri (1995), principalmente na
maneira como se espalha a sua divulgação na rede e nos blogs multiplicadores dos quais seus
autores perdem o controle, pelo coletivo provisório que se cria em torno de cada espetáculo, pela
confusão de imagens geradas pelo festival e pela ambiguidade do seu título. Segundo Deleuze e
Guatarri, o rizoma se caracteriza por “regime de multiplicidades”. Para eles,

todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as suas
dimensões: falar‐se‐á então de um plano de consistência das multiplicidades, se bem que este
plano seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões que se estabelecem nele.
As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de
desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem às outras
(Deleuze e Guatarri, 1995:17).

Deleuze confirma que a “multiplicidade não deve designar uma combinação de múltiplo e de uno,
mas uma organização do múltiplo como tal, que de modo algum tem necessidade da unidade para
formar um sistema”. Pelo que já foi exposto acima, a cada encontro se perdem as referências de
saber exatamente como se chegou à concepção final porque resulta de um encontro de autores.
215
Mesmo quando Batman reforça isso em diversas entrevistas (tanto as jornalísticas quanto as
concedidas a mim) e no Catálogo, ele pensa o seu projeto “singular” e “plural” ao mesmo tempo:
“singular porque se trata da criação de uma única apresentação”, e plural no “sotaque”, na
combinação de linguagens artísticas e de mídias que entram em seu festival. Não é porque ele
realiza o seu projeto com essa fórmula de divisão entre uno e múltiplo. A multiplicidade talvez se
veja mais explícita no seu desejo de singularidade, porque cada apresentação é multiplicidade;
porque o encontro acaba modificando a forma e escapa à criação de um “modelo tipificado”. Trata‐
se do objetivo de trabalhar esteticamente, a partir de linhas de fuga, quando se incluem DJs para
criar uma “obra de arte”, reterritorializando os significados atribuídos a este personagem. Trata‐se
de linha de fuga quando se cria um palco minimalista para Carlinhos Brown, acostumado a públicos
numerosos.

Mas é importante considerar que a “organização do múltiplo” opera ao mesmo tempo com uma
“estrutura arborescente” composta pela equipe do Multiplicidade, pois não há dúvida de que
Batman é o curador, o autor desse projeto, e de que toda a equipe que trabalha com ele se forma a
partir de uma estrutura hierárquica. Isso não quer dizer que essa hierarquia não ofereça espaço para
a própria transformação da estrutura a partir da presença dos diferentes agentes. No entanto, a
hierarquia não deixa de estar presente. Talvez o principal elemento a se ressaltar é que é possível
verificar uma coincidência entre a operação dos modelos e das linhas de fuga, e reterritorializações
que deslizam entre os modelos.137

Com o intuito de detalhar o agenciamento coincidente desses modelos, a próxima sessão se dedica a
acompanhar a produção da primeira edição do Multiplicidade de 2010, pretendendo associar a
atividade de curador à do produtor. O material visual das plataformas on‐line será utilizado em
alguns casos de maneira semelhante ao uso que fiz do material do Hapax: como etnografia do
registro e, em outros casos, como citações visuais de situações presenciais. Essas duas portas de
entrada, a primeira por uma análise dos Catálogos, e a segunda acompanhando uma edição do

137
A convivência desses modelos é bem expressiva nos catálogos do Multiplicidade. Por um lado, dentro do catálogo,
todos os textos se organizam através do estabelecimento da primeira pessoa do plural. O termo “nós” acentua o caráter
coletivo do seu projeto. Mas os agradecimentos e a dedicatória – que vão dos mais institucionais aos mais íntimos – são
claramente escritos em primeira pessoa, surgindo um eu‐autoral bem definido. O resultado final tende a um modelo
polifônico, em que por vezes se perde a referência do autor e por outras esta se faz notar fortemente.
216
Multi, foram abertas por Batman, assim como também duas entrevistas longas e diversas conversas
informais, bem como trocas de e‐mails.138

Batman Zavareze consegue reunir várias características da “aristocracia carioca”, como diria Daniel
Castanheira, sem ser “blasê”, uma combinação difícil no Rio de Janeiro.139 Os seus movimentos são
harmoniosos, as palavras e o tom, cuidados, pausados; não fala palavrão e quase não usa gírias.
Assim mesmo não chega as ser contido e cumprimenta a todos com muita simpatia.140 Ele está
presente (com uma certa suavidade) em todas as circunstâncias. Pois ele não é sério nem
melancólico sem tampouco se apresentar como elétrico ou ansioso. Talvez a melhor forma de
explicar seja que ele opera com uma “energia focada”. Enquanto Daniel Castanheira está
constantemente prestes a causar uma explosão, e Fernando Salis, uma catarse, Batman Zavareze
parece estar sempre pronto para botar todos para trabalhar. É uma presença descontraída,
“carioca”, mas nunca desleixada; quase sempre usa jeans e camiseta Polo, um pouco atrasado, entra
e sai de reuniões/encontros, mas sem perder nada.

O curador como produtor. A produção da primeira edição de 2010

Em termos do meu desenho de campo, há uma clara mudança de escala ao realizar etnografia do
ponto de vista deste curador, pois a sua obra trata, no caso específico do Multiplicidade, de propiciar
um encontro entre criadores de diferentes proveniências. Isso significa que acompanhar Batman
Zavarese implica acompanhar vários criadores ou sua relação com eles. Por outro lado, significa
também acompanhar a sua equipe, pois Batman é ao mesmo tempo o curador e o produtor do
Festival. Ao contrário de Daniela Labra, que realizou a curadoria do evento Performance Presente
Futuro Vol. 2 conjuntamente com uma produtora da qual participou Fernando Salis, como vimos no
plug‐in I.2, Batman Zavareze tem uma estrutura própria, uma equipe que, entre funcionários e
empresas terceirizadas, soma em torno de trinta pessoas por espetáculo e, no caso dos espetáculo
do Oi Casa Grande (que acomoda mil pessoas), chega a empregar setenta pessoas. Muitos

138
Ele deixou bem claro que havia “aberto a sua vida” porque até o momento presente somente uma estudante
estrangeira havia realizado um trabalho acadêmico sobre o Multiplicidade. Este foi o único caso que vivenciei em que
houve uma negociação clara de “troca de interesses” a partir do nosso encontro, deixando‐se explícitas as dimensões
“políticas” deste processo de trabalho de campo (pontos principalmente abordados em Clifford, Writing Culture). Ao
contrário de Fernando Salis – que abraçou a minha causa de realizar campo com ele assim como abraça as causas de
orientação de seus alunos – , e de Daniel Castanheira – que não mostrou muito interesse em ler o que eu escrevia ao seu
respeito (e até brincou com a relação sujeito‐objeto em todo o tempo) – , com toda a delicadeza que caracteriza Batman
(Marcelo) Zavareze, ele fechou um contrato comigo no nosso último encontro de que a sua “exposição” tinha a expectativa
de uma “retribuição” que consistisse na produção de conhecimento acadêmico.
139
De uma maneira bastante impressionista poderia caracterizar a categoria blasê, como usada no Rio de Janeiro, de forma
muito semelhante à bruxaria Zande, como descrita por Evans‐Pritchard. Esta funciona como categoria de acusação, e todos
são potencialmente blasês. (Evans Pritchard, 2005).
140
A falta de receber um cumprimento de alguém muitas vezes aciona esta categoria de acusação à pessoa que não
cumprimentou.
217
elementos de sua equipe já o acompanham quase desde o início de seu projeto. Com certeza, foi a
estrutura mais institucionalizada que vivenciei em meu trabalho de campo e que se assemelhou à
concepção de Howard Becker (1977), da “arte como ação coletiva”, em que estão presentes desde o
menino que compra o café, o técnico de luz, assistentes, e também os próprios artistas, suas equipes
e seus assistentes.

Como havia sido chamado para participar da programação especial de comemoração dos cinco anos
de existência do Oi Futuro – quando realizou uma edição especial com o grupo UAKTI –, o mês de
abertura seria em Junho de 2010, em vez de começar em maio. Em abril deste ano, começaram os
encontros para viabilizar a estreia.141 A intenção era juntar o núcleo de design Arterial (Christiano
Calvet e Marcos Leme) com Gualter Pupo, o diretor da empresa de design Hungry Man BR, com sede
em Nova York, Los Angeles, Rio de Janeiro e Londres, e o multi‐instrumentista, compositor e músico
Carlinhos Brown. Carlinhos Brown se apresentava interessante para o Multiplicidade, por seu talento
percussivo e experimentação sonora. Batman conta como – ao começar a trabalhar na MTV – se
sentiu impactado com a abrangência de qualidades musicais e sonoras do trabalho percussivo de
Carlinhos Brown, e, assim, gostaria que ele utilizasse seu palco dentro desse “histórico”. Durante
alguma conversa que antecedia o encontro com Brown, Christiano (Calvet) o comparou a um
“Stockhausen brasileiro” por seu domínio de experimentação sonora. Também foi ressaltada a sua
qualidade “barroca”, um termo que aparecia para descrever desde a sua personalidade até os usos e
diálogos com as sonoridades africanas, indianas e principalmente, afro‐brasileiras. Desde o início da
criação do imaginário do espetáculo, todos os envolvidos, e principalmente Carlinhos Brown,
aludiram a elementos “característicos” da Bahia para montar ideias. Em um instigante artigo sobre o
grupo de rap paulista, os Racionais MCs, Maria Rita Kehl (2001) traça uma comparação entre Mano
Brown e Carlinhos Brown. Enquanto o primeiro opera com um discurso “que aloca o lugar do negro
em um lugar diferenciado em termos da tradição brasileira” (Kehl, 2001:627), Carlinhos Brown
operaria um discurso de continuidade com a tradição brasileira, inclusive na incorporação do exótico
para inglês ver (idem).142 Apesar de Carlinhos Brown encarnar a “negritude da tradição brasileira”,
nos termos usados por Kehl, por arregimentar diversas qualidades “barrocas” – como os rapazes
ressaltavam –, ele não deixa de operar com uma lógica, senão da diferença, ao menos da autonomia.

141
É importante levar em consideração que a “abertura” do ano consiste em ser um evento ampliado porque há também o
lançamento do catálogo. É importante notar ainda que cada preparação de performance do Multiplicidade teria as suas
próprias especificidades já que os desafios impostos à equipe de Batman e ao coletivo artístico que se apresenta são
específicos a cada edição.
142
A discussão de Maria Rita Kehl se forma em torno do conteúdo de uma entrevista do rapper Mano Brown concedida à
revista Raça. O entrevistador teria comentado uma frase de Carlinhos Brown, que consideraria, naquele momento (final
dos anos 90), o rap paulista “triste”, ao que Mano Brown responderia que São Paulo não precisava do turismo como a
Bahia, recorrendo ao uso exacerbado do “exotismo brasileiro”, que verteria facilmente à expressão cunhada por Mário de
Andrade “macumba para turista”.
218
Além de ser frisado o fato de Carlinhos Brown ser o maior arrecadador de ECAD no Brasil (um
exemplo de como estavam lidando com um artista de tremendo apelo popular), uma outra frase
recorrente era que Brown “não precisava do eixo Rio‐São Paulo”. Sua presença na Bahia e no
cenário Internacional não passa pelo crivo do Sudeste. O próprio Carlinhos cantou no meio do show
uma música de trio‐elétrico e afirmou desejar ver o dia em que os tambores de AfroReggae vão ser
considerados “cultura” no Brasil. Nesse sentido, o espaço da “diferença” e da “autonomia” pode
perceber‐se realizado como estratégias diferentes nos dois casos dos “Browns” (o Mano, paulista, e
o Carlinhos, baiano), algo que se inscreve no próprio reconhecimento do Brown paulista sobre o
que o Brown baiano “fez por sua comunidade” (idem). E com certeza, o Multiplicidade opera, como
veremos no Catálogo, em termos de continuidade com a tradição brasileira, de incorporação da
mistura e da ambiguidade “positiva”.

É por esse tom que Carlinhos Brown se mostrava interessante para abrir um ano do Multiplicidade,
assim como Naná Vasconcelos e Siri já tinham participado anteriormente. A chegada se dava via
Gualter Pupo, amigo e parceiro de Brown, que realizara a cenografia de diversos dos seus shows.
Gualter Pupo é caracterizado no site http://www.hungryman.com/ como diretor artístico que atuou
nas áreas de cinema, animação, pós‐produção, videoclipes, curta‐metagens, teatro, shows e
desenho gráfico. Para a concepção dos seus trabalhos, ele une “art design”, “animação” e “pós‐
produção”. Christiano Calvet, o mais novo dos três, já havia trabalhando como assistente de Gualter
e agora tem seu próprio escritório de design. Se a parceria pelo menos em parte não se constituía
em novidade, com certeza esse arranjo específico nunca havia ocorrido anteriormente, e o cenário,
para Carlinhos Brown, se apresentava bem diferente de suas grandes plateias internacionais.

Acomodar a participação de Brown de acordo com sua agenda foi talvez o maior desafio da
produção, pois, de abril a junho, Brown participaria de duas grandes turnês, uma no Oriente e outra
na Europa, além de ter numerosos compromissos de gravação de disco na Bahia e no próprio Rio. O
grande atrativo de participar do Multiplicidade para Carlinhos Brown, na concepção de Batman, não
seria certamente o cachê, em sua opinião, bastante simbólico se comparado aos recebidos por esse
artista. O Festival se abria como um espaço interessante de experimentação para Carlinhos Brown.
Esse atrativo também era ressaltado nas participações de artistas anteriores, o que já havia sido
ilustrado, mostrando os catálogos e DVD do “Multi”. A maior estratégia de convencimento se
alocava dentro dessa possibilidade, de Carlinhos poder conceber elementos que não costuma exibir,
como o seu trabalho com pintura e poesia; mas, para Batman, esses usos tinham que se relacionar
de alguma forma com tecnologia. Batman diz que gostaria de sentir que o Multiplicidade
funcionasse cada vez mais como um espaço de experimentação. Apesar de tudo que se cria, em

219
termos de cenário e equipamentos, ficar depois com ele, isso não inviabiliza o autor de repetir o
formato em outros lugares. Aqui nesta passagem está em operação a problemática entre autonomia
e regras impostas pelo mercado. O festival de Batman pretende nesse aspecto resgatar o
experimentalismo modernista, muito associado à ideia de “risco”, sempre presente em seu discurso.
Ele declara que cada encontro é um risco, inclusive para ele próprio. A categoria que Batman e Chico
sempre trazem para a autenticidade do espetáculo é o nível de “experimentação” e de “ousadia”.
Não importa o trabalho de preparação em termos de produção. A associação ao risco equivale ao
compartilhamento autoral daquela criação específica: quanto mais equilibrada a voz dos autores
envolvidos, maior a quantidade de risco assumido. Houve um consenso ao final de que a voz autoral
de Carlinhos Brown teria ficado mais potente em relação à dos outros autores. Mas esse é um risco
que o próprio curador assume quando imagina a montagem de um coletivo de criação.

O processo de preparação contou com reuniões presenciais, das quais participei de algumas, e
também de uma intensa troca de e‐mails que Batman sempre copiou para mim. Logo no primeiro
encontro, ao chegar ao Oi Futuro, no último andar, Batman e Christiano já estavam lá. Esperavam
Gualter. Estavam entusiasmados com a resposta e o interesse de Carlinhos Brown para realizar a
abertura do Multiplicidade Ano 06, quando também se lançaria o Catálogo do ano anterior. Pela
forma de relacionar‐se com a dona do Café, tinha‐se a impressão de que Batman era "gente da
casa". Outras pessoas pareciam também usar esse café como sala de reunião ou de trabalho,
sentadas em frente aos seus laptops. Parecia nesse primeiro encontro já haver uma predisposição de
Gualter e Christiano na participação, e só faltava um OK final de Carlinhos Brown e de sua
empresária, Claudia Lima. Nesse mesmo dia, que terminou ainda sem nenhuma assinatura (apesar
de Batman já ter levado os contratos para tentar botar o motor em movimento), Christiano começou
a registrar todo o ambiente do Oi Futuro com uma pequena câmera digital. Depois de uma primeira
conversa no café, Batman guiou os dois pelo teatro, tentando mostrar todas as agências que o
teatro poderia ganhar. Isso não quer dizer que há uma liberdade absoluta nesse sentido. Mais
adiante, durante uma troca de e‐mails em que a equipe de Carlinhos Brown pôs em discussão o
tamanho do palco, achando‐o pequeno demais para o músico, Batman deixou claro que, quanto
maior o palco, menor seria a quantidade de pessoas ali dentro do teatro, que já era pequeno, o que
se configuraria como uma situação “grave”. É nesses pequenos detalhes que Batman opera com um
delicado registro que cobre diversos âmbitos: desde a "concepção" – que parte do desafio de criar
um "casamento" entre pessoas de diferentes áreas para a performance, dentro da integridade do
seu projeto – até os elementos mais "práticos" e "institucionais”, e também "relacional‐políticos",
cada uma dessas esferas exigindo uma técnica específica de sua parte.

220
É relevante notar, como nos PLUG‐INs o Oi Futuro se legitima como um importante agente, já que,
coincidentemente ele é o contexto que abriga em algum momento as apresentações dos
personagens‐título de cada plug‐in. Fernando Salis chegou a caracterizar o ambiente onde realizava
a sua performance como “frio”, “distanciado”; Daniel Castanheira, por sua vez, relata o contraste da
chegada do seu “sujo” burro sem rabo e o ambiente clean, frio e asséptico do elevador do Oi Futuro.
No caso de Batman, vi, durante conversas com artistas que se apresentariam no Multiplicidade,
casos em que ele frisava a necessidade de criar um diálogo com a “tecnologia”, porque se tratava de
um “ambiente tecnológico”. E creio que há mais do que uma imposição indireta da ideia do Multi
nessa sua frase; há, de fato, um diálogo com o agenciamento do próprio espaço. Mas nesses
“contratos” há também desde o início uma consciência da diretoria do Centro Cultural, quando
brotaram os projetos Multiplicidade, de Batman, e também o do Hapax, de mediadores que em
parceria poderiam criar um diálogo com um público, tornando‐os, assim, porta‐vozes de uma
relação com a tecnologia. Retomando o relato de “enfrentamento” do Hapax com o espaço do Oi
Futuro (detalhado por Daniel Castanheira no plug‐in anterior), apesar de todos os protestos e relatos
do “clima tenso” que se gerou com os seguranças, fazia parte da sua performance o Hapax finalizar a
sua “deriva” entrando no Oi Futuro, e indo presencialmente até o oitavo andar. Ou seja, a curadoria
realizada por Ivana Bentes, em 2005, já planejava produzir o contraste do “sujo” com o “asséptico” e
tensioná‐los como ideias relacionadas à tecnologia. No caso do Multiplicidade, mais uma vez o Oi
Futuro aparece como um agente que, a cada ocupação do festival, ao criar um verdadeiro “se faz
outro”, se modela e se recria. A negociação é bem aberta entre Batman e a equipe do Oi Futuro para
ocupar, no seu dia, o espaço quase em sua totalidade, e não somente o teatro. Nesse aspecto, a
relação entre o Multiplicidade e (principalmente o teatro do) o Oi Futuro equivale à relação entre o
processo de realização de trabalho de campo, como explicado por Roy Wagner. Para este autor
(1981), o trabalho de campo faz visível para o antropólogo a sua cultura e a cultura do outro, ao
mesmo tempo “inventando” as duas culturas que são impossíveis de prever se não se está imbuído
nessa experiência. Torno a frisar: a cada edição do Multiplicidade, o espaço do Oi Futuro se
reinventa a partir da complementação entre convenção e invenção em conjunto com as imposições
de criação daquele projeto.

Era o que Batman mostrava no espaço. A parede do prédio em frente à varanda do café que poderia
ser “ocupada” com projeções, as escadas desde o andar térreo, as diversas telas que poderiam ser
usadas pelo Multiplicidade Ano 6, 01, assim como a parte da entrada do Oi Futuro, onde já coube um
carro “fusca‐instrumento”, numa edição em que participou o músico e percussionista Siri. Todo esse
circuito mostrava a quantidade de possibilidades já exploradas por edições anteriores do festival,

221
sinalizando o amplo trânsito de Batman pelo espaço. E também a sua consciência (e igualmente a da
administração do Oi Futuro) de que ele poderia dar conta de montar e desmontar a produção dentro
do tempo planejado. A máquina de filmar de Christiano pretendia acompanhar o olhar de Batman
com o vivido anteriormente, a máquina‐olho, ajudando Christiano a conhecer os limites do seu
cenário para criar a partir dele. Enquanto eu acompanhava os três pelos diferentes espaços do
Centro Cultural, dava‐me conta de que o processo criativo estava começando ali, confrontado pelo
agenciamento do lugar.

Como esse encontro se realizava com os criadores de imagem, ficou combinado, desde esse
primeiro momento, que eles, em sua pesquisa, teriam que pensar nos “efeitos imagéticos do som”.
Já que Carlinhos Brown cuidaria do repertório sonoro, eles teriam que realizar uma pesquisa de
filmes, fotografias e paisagens que se relacionem com as ambientações sonoras das músicas de
Carlinhos.

Após a confirmação final de Carlinhos Brown, organizou‐se uma reunião em uma de suas passagens
pelo Rio, com todos os envolvidos no escritório do Arterial. Numa sala dentro de uma charmosa casa
na Gávea, estavam Christiano e Marcos (Arterial), Batman e Chico (Multiplicidade), Gualter e a
empresária de Carlinhos Brown. Ao fundo, duas mesas uma em frente à outra com computadores de
tela plana MAC; ao meio, uma mesa redonda de vidro; e, encostado a uma escada, no extremo
oposto das mesas de computador, um grande e confortável sofá. Todos tomavam cerveja e comiam
macadâmias, os petiscos espelhando a ambientação composta de estantes ao lado da mesa redonda
cobertas de belos livros de design, as cadeiras da mesa, estilosas. Um ambiente despojado e cool,
cercado de muito verde da mata do lado de fora. Batman conversava com a empresária de
Carlinhos, que se mostrava muito afável e aberta ao projeto. Assim que chegou Carlinhos Brown,
com um característico gorro que cobre os seus dreadlocks, Gualter, dotado de uma irreverente e
suntuosa ironia, apresentou a todos, a mim inclusive, como aquela que os “estava estudando”,
“acompanhando o Batman”. Rapidamente fui codificada e ninguém mais estranhou a minha
presença. Nessa reunião com todos os presentes, Gualter assumiu o papel de mediador, expondo a
proposta a Carlinhos Brown. Enquanto Carlinhos Brown escutava, acentuavam‐se algumas
ilustrações com a ajuda do Catálogo 2009, que Carlinhos folheava enquanto ouvia. Na mesa também
constavam os clippings do festival, caprichosamente encadernados, e também folheados por sua
empresária. Quando Carlinhos Brown começou a apresentar ideias, literalmente em formato de
cascata, imediatamente Chico e Batman ligaram as suas webcams e começaram a gravar o registro
desse encontro. Mais tarde, depois da reunião, tomando um chope em pé no Baixo Gávea, Batman
disse que iria criar um making off a ser disponibilizado no canal do Multiplicidade, no Youtube. Já

222
havia contratado uma pessoa para cuidar de editar as filmagens que faziam dos encontros e
reuniões, e que se postaram no Youtube em formato de pequenos teasers, alguns com menos de um
minuto, de diversos encontros prévios ao show. Uma ligeira incorporação de marketing não utilizada
em todas as edições.

Ver amostra visual I

Carlinhos se viu desde o início com muita vontade de usar suas poesias de maneira visual. Nesse
momento, chegou‐se a um acordo sobre o uso de frases poéticas de Carlinhos ao longo da escadaria
do Oi Futuro; Batman não viu o menor problema com esse uso do espaço externo ao teatro do
Centro Cultural. Nesse momento de cascata de ideias, Carlinhos apresentava uma ideia, logo outra, e
Gualter acrescentava e incrementava cada uma. Carlinhos estava entusiasmado em “tomar o Centro
Cultural”. Queria instalar claquetes de ônibus para gerar ruído com o movimento das pessoas desde
a entrada, ao longo da escada, até a porta do teatro. Gostava da ideia de “repercutir pelo caminho”.
Em algum momento, também se cogitou cobrir o chão com copinhos de plástico de café. Ou estes
poderiam “cair do teto” em algum ponto da performance. Duas ideias principais pareciam ganhar
um maior impacto em todos: algum uso de bocas‐sedãs (amplificadores em formato cônico que se
usam nas aberturas de trio‐elétrico na Bahia), uma espécie de alto‐falante mais comprido. Ficou
ainda a pergunta se elas seriam utilizadas como cenografia ou como produtoras de som. Uma outra
ideia que ainda teria muita repercussão, apesar de não ter sido usada, foi a de criar uma espécie de
roupa homem‐bomba‐sonoro. A pesquisa técnica de sensores para a criação do “homem‐bomba”
chegou a ser feita mais adiante pela equipe de Batman, e vale ser transmitida porque este empenho
demonstra a capacidade de transformar uma ideia criativa em possibilidade técnica. Posicionando‐se
muito favorável à ideia do “Homem‐Bomba”, no corpo do e‐mail de 21 de maio, Batman pede que
todos acessem links do Youtube onde se veem representados exemplos de funcionamento dos
sensores, como se pode observar na ilustração abaixo incorporada ao e‐mail.

223
Segundo Batman, os sensores seriam costurados em um colete ou parcialmente fixos com velcro e
presos à roupa de Carlinhos. Ainda deviam testar se poderiam ser seis ou nove sensores. Esses
sensores emitem som cada vez que uma batida é detectada. Ainda como parte do figurino aliado às
necessidades técnicas, deveriam pender cabos elétricos de sua vestimenta para transmitir a
informação dos sensores em linguagem sonora. Além disso, também era necessário levar em conta o
tempo de duração do som para cada batucada, a quantidade de memória (10MB) e o formato do
som (WAV). Batman finalizava o e‐mail dizendo que seriam necessários 20 dias para produzir esta
ferramenta, já que os sensores, o programa e o técnico viriam de Nova York. A partir daquela data,
era necessário confirmar o desejo de realização em sete dias para viabilizar o projeto. Durante um
período próximo ao desenvolvimento desta ideia, pensou‐se em juntar Carlinhos Brown, homem‐
bomba sonoro, a uma micro‐orquestra.

Mais para o final do primeiro brainstorm no escritório de Christiano, o grupo se dividiu, com Batman,
Chico e Claudia tentando analisar a agenda de Carlinhos Brown, entre gravação de disco e duas
turnês internacionais, procurando as ocasiões em que ele passaria pelo Rio para pensar os
momentos críticos até os dias da apresentação. No final, Chico pediu que todos lhe passassem com
urgência o material para produzir o release biográfico. Nesse tempo todo, Batman havia participado
da reunião acatando todas as ideias, sem nenhum tipo de intervenção, ficando em princípio com a
única função de se comunicar com a administração do Oi Futuro para saber o quanto poderiam usar

224
do espaço externo ao teatro. O único que adiantou é que usualmente a programação para uma
ocupação completa tem que ser feita com muita antecedência. Mais adiante, principalmente
durante a troca de e‐mails, seu tom ficou um pouco mais imperioso para dar conta da marcha
necessária a fim de viabilizar o espetáculo.

Se a ideia do homem‐bomba acabou sendo descartada, o uso das bocas‐sedãs ganhou corpo para a
formação de uma estrutura que penderia do teto e de onde sairiam as projeções de imagens. O
estudo de materiais foi enviado por e‐mail para todos, e as fotos que apresento a seguir, uma é uma
maquete da configuração do palco, quando ainda se defendia a ideia de Carlinhos tocar com uma
pequena orquestra composta de seis músicos. A da direita foi tirada na hora do show, e mostra a
projeção de imagens com trechos de poesias de Carlinhos Brown.

Uma interessante discussão através de e‐mail se deu entre os membros da equipe de imagem. Na
lista de pendências dos tópicos discutidos no e‐mail de 19 de maio, Batman já indica a formação da
escultura de bocas‐sedãs; também estava estabelecido que estivessem arregimentadas numa
estrutura em formato de meio‐círculo; e que cada boca‐sedã teria individualmente uma projeção de
imagem. Nesse momento, ainda não haviam estabelecido quantas cornetas seriam usadas nem qual

225
fornecedor utilizariam. Ao longo dos dias seguintes se dá uma troca de e‐mails que resumo na janela
abaixo:

May 19
Batman:
‐ Devemos entender o software de Vj p/ gerenciamento das imagens (Modul8, Arkaos, Isadora, etc?). Em
seguida, Gualter, Chris e Marcos precisaremos com urgência explicar as possibilidades técnicas de como será
executado.

May 20
Batman:
‐ é fundamental entender o quê e como as imagens vão acontecer. Quais softwares de vj para gerenciar as
imagens, quais as ferramentas desejadas para montar um rider, etc. Precisamos encontrar para falar de
imagem e viabilização das projeções na escultura de Boca Sedã.

May 26
Batman:
Olá todos,
‐ Estávamos aguardando ter os horários de vcs disponiveis p/ tentar agendar alguém que tivesse hora livre p/
dar uma aula tecnica. Mas p/ não perderem o bonde, indico o seguinte;
‐ no site do MODUL8 vcs vão ter uma excelente aula
‐ Cliquem em tutorial e sigam o passo‐a‐passo:
http://www.modul8.ch/index.php?c=tut&p=tut1
Tudo com Video e texto. Mastigadinho. O que teremos será alguém p/ tirar dúvidas. Se ficar complicado
iremos encontrar alguém dps desta primeira imersao de vcs no programa. Já conversei com o Chris Calvet e
ligarei agora p/ o Caio. Mas não deixem de seguir esta dica do site, isso é a aula.

May 26
Cristiano:
Galera,
Baixei o Modul8 2.6 com os cracks. Por favor, tentem baixar desse meu link para todos usarmos amanhã aqui
no escritório na aula: http://www.arterial.tv/temp/bagulho.zip (7.8 MB)
Abs!!
Chris

May 26
Caio (estagiário de Gualter):
Caros,
Baixei.. Mas descobri q não vai rolar no meu computador. Minha versão antiga
(tinha há dois anos) bloqueou. Tentei instalar esse agora, não acontece. Meu
técnico disse q já viu isso acontecer em outros computadores: a 'central
Modul8' descobriu q era crackd e bloqueou para sempre qq tipo de pirata
modul8 na minha máquina. Agora só comprando mesmo. Não podemos contar com meu comp p/isso.
abs,
Caio

Na extensão plug‐in 1.1 fiz uma referência a como os criadores do software Modul8 criam entraves
para o seu programa não ser "crackeado". Mais do que uma relação aurática com o programa
original, o que percebemos, neste exemplo específico, é mesmo uma ação dos fabricantes para
controlar minimamente a quantidade de cracks. Como o assistente de Gualter disse, a partir da

226
tentativa de baixar uma nova versão do Modul8, a possibilidade de usá‐lo em seu computador
estava “liquidada”, não podendo desde essa ação, “contar mais com o seu computador”. Além desse
ponto, há também outros aspectos importantes a serem explorados nessa troca de e‐mails.
Primeiramente, Batman pergunta qual seria o software propício para trabalhar as imagens, e acaba
indicando o Modul8. Batman me disse depois que aconselhou esse software porque o considera
muito “amigável” para a manipulação de improviso ao vivo, e acabou sugerindo‐o para Gualter e
Christiano. A partir desse momento, os dois (e também o assistente de Gualter) teriam que aprender
a manejar o software, e Batman resolve a transmissão dessa habilidade através de uma aula on‐line.
Mas, para dispor do software, todos baixaram uma versão "crackeada", e foi nesse esforço do
estagiário de Gualter, de conseguir a mesma versão do programa que Christiano e Gualter, que ele
acabou não tendo acesso àquele software no seu computador. Um outro problema que enfrentaram
foi sobre o uso desse software específico para projetar nas bocas‐sedãs. Como é mostrado nas
imagens, a estrutura de cones funciona com cada tela circular, no formato da abertura da corneta.
Gualter e Chris queriam projetar imagens individuais em cada diferente tela. Ou seja, eram
necessários vários outputs a fim de mandar imagens diferenciadas para cada tela. Batman nunca
tinha visto isso ser feito com esse programa, e nem as projeções em telas de formato circular.
Entrou em contato com o criador do Modul8, e este desestimulou o uso desse software, porque
afirmou não conhecer ninguém que o tivesse usado para essas possibilidades. Recomendou outro.
Batman então considerou que seria muito trabalhoso nessa altura do campeonato ensinar um outro
software para a equipe de criadores de imagem. Ele diz que aí começou uma série de tentativas com
o Modul8 e com diversos ângulos do projetor; eles acabaram conseguindo (Batman afirma que foi
muito por conta da insistência de Gualter) dar um uso não previsto pelos criadores do software:
fazer projeções numa tela ovalada, e fazer com que cada boca‐sedã pudesse projetar imagens
independentes umas das outras. Uma criatividade que Batman considera “muito brasileira”, ao
“tentar reverter usar o possível, e não o ideal”, uma “faceta com a qual o projeto Multiplicidade se
identifica fortemente”. Neste aspecto, reaparece a noção da “liberdade da periferia” outorgada a
esta ideia apresentada por Batman. Na “periferia” criamos híbridos com as funções que damos a
elementos não programados para atuar de uma maneira específica. Por outro lado, há também uma
série de elementos que surgem nesta história de uma intensa (e às vezes tensa) relação com as
tecnologias/ferramentas de criação.

Em artigo intitulado “Familiar and foreign bodies: a phenomenological exploration of the human‐
technology interface”, Jackson (2002) argumenta que “a nossa ambivalência em relação às novas
tecnologias” pode ser entendida através da forma como sentimos e demonstramos a nossa

227
ambivalência em relação a “outras pessoas”, o que aciona, em última instância, a maneira como
lidamos com a própria noção de “alteridade”. De acordo com Jackson, a forma como
experimentamos as relações entre pessoas e máquinas depende diretamente da nossa sensação de
“controle” sobre essas relações (cf. Jackson,2002:336). Partindo da perspectiva de que as máquinas
atuam dentro de um ‘sistema social’, o autor rejeita teorias que considera “clichês”, a exemplo
daquelas que surgiram com o advento da tecnologia cibernética e da genética, e que ressaltam
meramente a indeterminação harmoniosa entre natureza e cultura, autômato e autonomia,
humanos e coisas. Utilizando um argumento diferente, Jackson afirma que, junto com a sensação de
que a tecnologia pode ser por vezes considerada uma extensão do nosso corpo “quando age de
acordo com as nossas expectativas”, há também o sentimento de frustração e medo quando
sentimos que perdemos esse controle. Nesses casos, a tecnologia aparece como um corpo
alienígena diante do qual “perdemos a noção de quem somos” (Jackson, 2002:336).

É nesse sentido que Bruno Latour diferencia a qualidade identitária de um computador em bom
funcionamento da de um computador que para de funcionar. Um computador que funciona,
segundo Latour, seria uma espécie de “intermediário complexo”. Seja simples, seja complexo, um
intermediário é o que transporta significado ou força sem transformação; assim, a informação que
equivale àquela que sai. Entretanto, no momento em que o computador para de funcionar, ele
adquire qualidades de um “mediador”, pois este, por mais simples que seja, transforma, traduz,
distorce e modifica o significado das informações que carrega (cf. Latour, 2005:39). Jackson julga, a
propósito, que a máquina ganha um cérebro próprio no momento em que se dá a pane com o qual
sentimos a necessidade de negociar, de manipular, diante da frustração provocada por sua falta de
resposta. Em outras palavras, quando o computador para de funcionar, ele performatiza a rede de
relações em que estão imbricadas as pessoas e as tecnologias, ou seja, é o momento que determina
a relação com o outro, com a diferença.

Essa íntima relação de tentativa, erro, correção é bem demonstrada quando, por exemplo, Batman
reconhece que “estava quase desistindo”, mas Gualter insistiu que tentariam mais, e acabaram
encontrando uma “solução”. Esta série descritiva sobre as características técnicas é reveladora
porque o resultado final e a ideia inicial são agenciadas por estes momentos de mediação; série de
mediações com as possibilidades técnicas, do espaço, depende dos diversos constrangimentos que
um mediador coloca para outro. Uma série de mediações (entre humanos e não humanos que
funcionam como agentes) entre diversos agenciamentos terminou organizando a forma final da
abertura do Ano 6 do Multiplicidade. Carlinhos Brown queria criar uma ocupação integral do Centro
Cultural, o que só foi possível fazer parcialmente. A banda que tocou com Carlinhos acabou sendo a

228
que o acompanha usualmente; e foi abandonada a ideia de um quarteto de cordas, dois exemplos
entre vários outros já citados que dependeram de uma negociação entre possibilidades que se
estabeleceram entre agenciamentos e limites humanos e não humanos.

Na tarde de 24 de junho, na quinta‐feira da Abertura do Multiplicidade Ano 06: “Carlinhos Brown +


Gualter Pupo + Arterial” + lançamento do Catálogo de 2009, o Oi Futuro já estava preparado para
aquela noite, desde o piso da entrada às escadarias, com as imagens de frases que compunham
uma poesia completa, colada à pilastra do foyer do teatro. 143

Fotos enviadas por Batman por e‐mail, de Rodrigo Torres/Multiplicidade. Envolta na pilastra, vemos a poesia
completa de Carlinhos Brown, fragmentada nos vinis das escadarias. A foto foi tirada alguns momento antes
da performance, quando o público já está agrupado no foyer do teatro.

143
Neste plug‐in recorro ao uso de legendas para as imagens por causa de suas diferentes proveniências. Quando não há
referência, as imagens são minhas.
229
Vários outros marcos indicavam a presença do Multiplicidade, principalmente as vinhetas da
abertura do ano 6, em diferentes telões do Centro Cultural. Funcionavam como pequenos carimbos
imagéticos ao longo da entrada, nas janelas, no chão da entrada e nas escadas. Traços de como se
trabalhou com o agenciamento do espaço, utilizando as suas imposições como tela.

Ver amostra visual J

Dentro do teatro ainda em fases iniciais de arrumação, chamou‐me a atenção a quantidade de gente
em movimento. Várias equipes funcionando ao mesmo tempo: Gualter, Chris e Caio (assistente de
Gualter) preparavam as imagens, os cenotécnicos cuidavam da laboriosa e volumosa quantidade de
fios e tomadas assim como os técnicos de iluminação. Um pouco depois, os músicos de Carlinhos
Brown e técnicos afinavam os seus instrumentos; e a equipe de registro em vídeo (que transmitiria o
espetáculo ao vivo no telão do lado de fora do teatro para as pessoas que não conseguissem entrar)
também armava os seus equipamentos, enquanto o jovem fotógrafo contratado clicava os
momentos prévios à performance. Os movimentos de todos pareciam absolutamente engrenados,
cada um sabendo o que fazer em que momento, sem interferir no trabalho do outro. A maneira
como se tratavam, muitos por meio de apelidos, era indicativa da intimidade entre eles e de estarem
essas equipes trabalhando juntas há alguns dias, e a equipe ligada ao Multiplicidade operar unida há
anos. A engrenagem da fábrica144 também denotava que, mesmo se não se conhecessem, as equipes
já haviam trabalhando em universos semelhantes numerosas vezes; havia uma intimidade com as
técnicas envolvidas. Ainda que com o prazo apertado e com os eventuais problemas que
vivenciaram (houve duas quedas de luz, uma bem longa), ninguém saiu do tom em nenhum
momento. Os estresses gerados (muito em função do cumprimento dos prazos de horário) não
cortavam o clima de camaradagem nesse universo predominantemente masculino. Os cenotécnicos
usavam camiseta preta com a logo do Multiplicidade, e Alex (assim como outros assistentes de
produção), Chico Linhares (assistente de direção) e Batman, camisetas vermelhas. A produtora,
Mariana, era a única que usava uma camiseta preta também com a logo do festival, um pouco mais
customizada com a saia e casacos também pretos. Batman brinca que as camisetas vermelhas

144
Pedro Ferreira (2006) afirma que “um mundo mediado por máquinas (...) é um mundo com temporalidades específicas,
onde o ritmo da vida passa a ser cada vez mais ditado pelo ritmo automático e impessoal das máquinas. Dinerstein
mostrou como a ‘estética da máquina’ das Big Bands norte‐americanas do início do século tinha como base ‘poder,
velocidade, repetição, precisão, eficiência e fluxo rítmico’, todas características da linha de montagem industrial que
determinava o ritmo da produção” (Ferreira, 2006:255 – ênfase retirada). É interessante essa alusão do autor ao modo de
funcionamento estético de operação das big bands e a sua associação ao mundo “mediado por máquinas”. No meu caso, o
movimento dos rapazes que observava durante a montagem do teatro se assemelhava a uma dança coreografada,
determinada por esses mesmos valores (velocidade, repetição, precisão, eficiência e fluxo rítmico).
230
indicam que os seus usuários resolvem problemas maiores, enquanto as camisetas pretas, que os
seus usuários resolvem problemas menores.

A grande quantidade de rapazes com camisetas pretas e os poucos usando as vermelhas revela uma
estrutura piramidal bem delineada da equipe de Batman. A própria maneira como Batman se refere
à sua equipe remete a uma estrutura que se move sob sua supervisão. Para o Multiplicidade, ele tem
uma equipe de cinco pessoas dedicadas à parte administrativa e à de contabilidade, gerenciadas por
sua mulher, Miriam Peruch. Ele também tem um consultor que lida com questões de lei de
incentivo, e uma assessoria de imprensa. Há também a produtora e os assistentes de produção, e a
cada performance ele contrata cenotécnicos de duas empresas (que já recebem um organograma no
início do ano). Apesar de descrever a sua “estrutura” como sendo “pequena”, há uma rede de boa
quantidade de gente, entre empregados fixos e outros terceirizados, para o seu festival.

Deleuze e Guatarri (1995) sustentam que “os sistemas arborescentes são sistemas hierárquicos que
comportam centros de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias
organizadas” (1995:26). Eles frisam que “’num sistema hierárquico, um indivíduo admite somente
um vizinho ativo, seu superior hierárquico (...) os canais de transmissão são preestabelecidos: a
arborescência preexiste ao indivíduo que nela se integra num lugar preciso’ (significância e
subjetivação)” (ibidem:27). Muitas camisetas pretas para pequenos problemas e poucas vermelhas
para grandes problemas; a engrenagem azeitada de uma máquina em funcionamento se
demonstrava na dificuldade que tive para encontrar uma “atividade”, nem que fosse somente para
ajudar a agrupar as almofadas. Ao contrário da minha imediata incorporação à equipe de Fernando

231
Salis, nessas horas prévias à apresentação do show, passei muitas horas observando o desenrolar
destes “operadores de máquina”.145

Quando Batman fala sobre sua equipe em muitos aspectos remete à concepção que Sennet (2009)
outorga à concepção da “Oficina”. Para Sennet, um espaço onde o conhecimento se transmite
através da prática, seja nas guildas medievais, nos ateliês renascentistas, nos laboratórios modernos
ou nas fábricas de automóveis, a história social das oficinas indica como se relaciona a equação
entre “autoridade” e “autonomia”. Uma equação difícil de ser equilibrada com a “era moderna”, que
teria separado as dimensões de criatividade e de autonomia do artesanato técnico. Para esse autor,
“a oficina bem gerida deve equilibrar conhecimento tácito e explícito. Os mestres devem ser
insistentemente induzidos a se explicar, para expressarem o conjunto de passos e soluções que
absorveram em silêncio” (Sennet, 2009:93). No modelo de trabalho da União Soviética, ou no
sistema capitalista de saúde pública, na Inglaterra, ou, ainda, no modelo de oficina do “gênio”
Stradivari que levou o “segredo ao túmulo”, deixando “seu negócio para os dois filhos que nunca se
casaram e passaram toda a vida adulta na casa do pai, como seus empregados e herdeiros”
(ibidem:92), a oficina “fracassa” por não conseguir aliar autoridade e democracia. Para o artífice,
explica Sennet, “a autoridade significa algo mais que ocupar um lugar de honra numa trama social, a
autoridade também reside na qualidade de suas habilidades” (ibidem:75). A partir de sua relação
com as instituições culturais patrocinadas pela empresa Oi, como a Nave e a Oi Kabum! (ambos

145
Usualmente ganhar “uma atividade” em uma situação de campo acaba sendo parte de um “escambo antropológico”
positivo. Somente na hora da performance, Batman me designou um lugar específico, no qual eu deveria “tomar conta de
um dos projetores" para que ninguém da plateia o mudasse de lugar. Como eu não havia conseguido comprar ingressos,
porque ficaram esgotados muito rapidamente, essa meia‐função justificava a minha presença como “convidada” e também
é demonstrativa da incorporação de habilidades de todos os profissionais envolvidos que, assim que me foi designado o
lugar de proteção do projetor, percebi que ninguém da plateia tinha como esbarrar nele já que todos estavam sentados
confortavelmente, a boa distância do objeto. Por outro lado, o tecladista estava tão próximo que, ele sim, poderia ter
causado um acidente para os designers, caso esbarrasse ali, mas todos os seus movimentos pareciam estar coreografados
de forma tal que nunca poderia atingir o projetor.
232
projetos educativos sociais que oferecem capacitação de alta tecnologia a jovens que não têm
acesso financeiro), Batman se apresenta como alguém que ajuda esses jovens a entrarem para o
mercado de trabalho, percebendo‐lhes o talento e assessorando‐os na criação de portfólio. Ele
também começa a dar “aulas de fotografia” uma semana antes do espetáculo porque o fotógrafo,
usualmente um jovem universitário, tem a valiosa função de organizar os registros desses
espetáculos tão fugazes. Se a oficina, segundo Sennet, é um espaço em que se problematizam a
união e a coesão das pessoas, Batman dá indicações de que ele rege uma oficina, quando atesta que
“sem uma equipe muito estruturada não há como manter a brincadeira”. Ao mesmo tempo ele
também considera que todos os envolvidos ali devem “emocionar‐se”, conhecer o conteúdo das
performances e dar as suas opiniões nas reuniões semanais; porque, se há apenas uma sensação de
puro e simples “cumprimento de planilhas”, o trabalho tampouco se sustenta. Dessa forma, ele está
propondo uma preocupação com a manutenção de sua equipe em termos de eficiência e
criatividade; está, de fato, gerenciando vontade e gosto pelo trabalho.

Talvez uma atualização ao modelo de oficina pode ser vislumbrada quando ele diz transmitir a todos
a ideia de que a atuação deles no Multiplicidade deve ser experimentada como temporária; ou seja,
como um projeto por onde passam para acumular experiência e se lançar no mercado (essa
afirmação deve ser vista com certa relatividade, já que, pelos catálogos, percebemos que há uma
continuidade em termos dos integrantes da equipe). A mobilidade na estrutura depende da
criatividade percebida por Batman ao longo do tempo; assim, Chico começou como assistente de
produção e queria ser produtor, mas agora assume a assistência de direção; e Alex, que começou
como cenotécnico, agora é assistente de produção.

Mas Batman deixa claro que a presença de Chico Linhares afeta a concepção dos artistas
convidados, a partir de sua atividade como DJ e da cena que frequenta. Assim também, com a
recém‐contratada produtora com formação em teatro, a rede de Batman se deixa ampliar, seja
pelos contatos que ela incorpora ao chamar uma fotógrafa amiga para registrar um evento, ou uma
“artista invisível”, convidada para criar algo depois de assistir o Happenings. A propósito, Deleuze e
Guatarri afirmam que, “no coração de uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um
novo rizoma pode se formar” (1995:24). O importante aqui é que a participação dos outros agentes
incorporados à equipe altera a estrutura inicial e, como afirmei acima, os elementos que funcionam
como multiplicidade às vezes se territorializam; e, por sua vez, da estrutura de sua equipe também
saem linhas de fuga que formam rizomas. Talvez a equipe multiplicidade deva ser vista como uma
“estrutura performática” nos termos apresentados por Marshall Sahlins (1994), porque os seus

233
integrantes podem introduzir “eventos” à estrutura inicial, alterando o resultado final do festival.146
E Batman garante que as diferentes proveniências de sua equipe dão um caráter multidisciplinar ao
seu festival.

Ao desenrolar do dia, Batman vai de grupo em grupo, conectando os problemas enfrentados por
cada uma das equipes relativos ao prazo que devem cumprir. Nessas tarefas, Chico divide com ele as
funções, muitas vezes como reforço de informações: Batman pode assumir temporariamente o lugar
onde ficará Carlinhos Brown no palco para acertar a iluminação, ajudar a decidir sobre o
posicionamento da equipe que fará o registro de imagens para que tenham liberdade de circulação e
ao mesmo tempo não interfiram com a performance; ou atender os jornalistas para mediar o desejo
de entrevistas prévias dos artistas (necessárias e apreciadas pelos seus patrocinadores) com os
passos necessários para que se cumpra o ensaio. Nenhuma das apresentações a que assisti sofreu
um atraso maior que de meia‐hora. Ele também precisa ser o conector entre as equipes, pois há
certos arranjos que dependem de uma criação sincronizada entre equipes. Ele precisa igualmente
ser o conector entre os criadores e as imposições de teatro. Uma pessoa presente durante todo o
tempo foi um rapaz de camiseta azul, apelidado “Azul”, quem, segundo Batman, “é o que dá a
palavra final” sobre o que é possível impor ao ambiente do teatro. Batman não deixou ninguém sair
do palco para os camarins antes que fosse feito o ensaio de abertura: sempre levando em
consideração o som e as imagens ao longo do período de entrada do público, que calculam como
levando vinte minutos, e os primeiros passos para o início da performance, como a entrada dos
músicos e de Carlinhos Brown.

146
Para Sahlins, a cultura havaiana seria regida por uma estrutura performativa, em que “acontecimentos circunstanciais
são frequentemente assinalados e valorizados por suas diferenças, pelo afastamento em relação aos arranjos existentes,
podendo as pessoas então agir sobre esses arranjos para reconstruir suas condições sociais” (Sahlins, 1994:13). Este
modelo se opõe a um modelo prescritivo em que os “acontecimentos são valorizados por sua similaridade com o sistema
constituído” (ibidem).
234
Se, para a produção do Multi Ano 6 01, ele se preocupou em proporcionar ajuda acerca de como
usar um software, no caso da performance de Fausto Fawcett, como a equipe não havia ensaiado,
Batman assumiu a direção de iluminação e teve que passar todo o tempo da apresentação na house
mix. Essa maleabilidade de funções apresentou um momento icônico quando – no outro projeto que
concebeu este ano, o Happenings –, durante o debate inicial, Batman, que vestia uma camiseta Polo,
assim que terminou a discussão, trocou‐a por uma outra, vermelha com o título do evento
estampado, que o identificava com a produção do Happenings; a troca de camisetas a indicar a troca
de funções que assumia no desenrolar do dia.

Foto de Rodrigo Torres/Multiplicidade. Batman ao fundo conversando com Claudia Lima, a empresária de
Carlinhos Brown, após a performance.

Essas funções múltiplas também se mostram icônicas nos projetos que realiza fora os da curadoria e
da produção, como a concepção criada para o cenário do Sport TV, na época da Copa do Mundo, e
na direção de fotografia que realizou para dois filmes, bem como a cenografia do espaço Oi
Futuro/Nave, no Festival do Rio de cinema. Assim, poderíamos considerar que a autoria de Batman
se constrói a partir dessas sobreposições de habilidades que dependem da perspectiva de onde se
observa, como no modelo do ciborgue, apresentado no capítulo 3.

O processo de composição das projeções de imagens já estava acontecendo à tarde, quando cheguei
ao Oi Futuro. Christiano e Gualter trabalhavam um pequeno loop em cima de uma sequência de
imagens em curtas (como, uma flor se abrindo ou uma boca entreabrindo) nas quais alteravam a
cor, verificavam a limpidez, e depois as modulavam, passando do formato quadrado para outro
redondo, davam‐lhes um título, como “bandeiras amarelas” e as inseriam numa pasta que
chamavam de “bandeiras”, assim como outras, nomeadas “bocas”, “grafismos”, “bolas”, “flor”. A
construção dessas imagens se relacionava diretamente com as letras das músicas de Carlinhos

235
Brown, ou com as a ambientação que ganhavam os seus ritmos. Enquanto construíam essas
imagens, mostravam um para o outro o resultado desse trabalho.

As imagens da direita e a outra, abaixo, com o sinal “Unregistered” na extrema esquerda, no alto da
foto, foram tiradas com o écran do computador em cima dos clipes feitos e postados no canal
Multiplicidade no Youtube. Tanto na imagem da esquerda, acima, como na debaixo, vemos Gualter
e Christiano já em posição, nos fazem remontar ao capítulo 2, e ao argumento de Cascone (2002)
sobre as habilidades corporais dos “artistas do computador”. As costas, ombros e pescoços
curvados, a tez pálida iluminada pela tela do computador, os micromovimentos de dois dedos
compõem a habilidade corporal para tocar este instrumento:

Os laptops Apple com os gadgets “attachados”, como o Ipod, uma pequena CPU, no caso do Chris,
um teclado e mouse externos, o seu mouse pad e a “roupinha” plastificada laranja do Ipod de
Gualter. Nesta posição também estava Fernando Salis durante a sua performance, como também
Timba, Rica Amabis, Daniel Castanheira, em determinados momentos do seu processo de
composição. Esta imagem, assim como aquela que reconstruí de Fernando, é demonstrativa dos
236
agenciamentos maquínico‐coporais, fenômenos que transcorrem no ato de relacionamento entre os
homens e suas "pessoas estendidas" (Gell, 1998) que têm o poder, por sua vez, de refabricá‐los a
partir dos seus próprios agenciamentos.

Ver amostra visual K

Durante a apresentação, o público apreciou uma performance em forma de show, com canções
entremeadas por alguma interação com o público; os ritmos e as composições conferem a este
músico polivalente o estatuto relacionado ao âmbito da world music. A escultura de projeções
contava uma narrativa própria, por vezes duplicada com a força metonímica do tema da canção, por
outras funcionando como metáfora, leitura particular dos produtores de imagens. Como pauta de
encontro entre as imagem e música, para quem olhava muito para cima, houve de fato um encontro
entre linguagens, pois, se Carlinhos Brown se pautou por uma estética de show, os designers se
pautaram por sua vez pela linguagem dos VJs. Perguntei a Batman se ele tinha visto a performance,
ele respondeu que ficou um tempo em cada lugar: entre o público de dentro do teatro, entre o
público de fora que via as projeções, e também de cima, na house mix.

237
Como inventar uma arte: uma etnografia dos catálogos
“classificar, não é apenas constituir grupos: é dispor estes grupos segundo relações muito especiais”
Durkheim e Mauss, “Algumas formas primitivas de classificação”, 1903

Assim como o vídeo editado por Fernando Salis teria uma “autonomia relativa” no que diz respeito à
sua performance, e, igualmente, a faixa sonora de Daniel Castanheira, no que concerne à dele, os
quatro livros‐catálogo têm em si uma qualidade autônoma em relação ao festival de Batman.
Porque, como já disse anteriormente, este registro impresso (mais do que as plataformas on‐line)
materializa o projeto, fazendo‐o funcionar como “pessoa estendida” (Gell, 1998) em situações de
convite ou de divulgação para os artistas, ampliando dessa forma a rede do Multiplicidade.147 Os
catálogos seriam mais do que meros meios de divulgação porque eles “fazem entender” do que
trata o festival; eles traduzem, explicam e, assim, inventam o projeto.

Os catálogos do Multiplicidade podem ser considerados objetos de arte, objetos de mediação e de


documentação, e também criadores de conceitos que inventam a arte dos produtores.148 Cada
catálogo abre possibilidades para uma análise detalhada e cuidadosa, mas, para fins deste plug‐in, e
usando de um recorte interessado, pretendo tratá‐los como conjunto, como gadgets que relatam a
progressão de um projeto e o inventam através de sua “materialidade”.

Apesar de a performance de cada edição do Multiplicidade constar de uma apresentação única e de


juntar interações inéditas entre pessoas que não necessariamente voltam a se encontrar depois do
espetáculo, Batman e sua equipe criam um registro cuidadoso de cada evento. O espaço privilegiado
de atenção à equipe de registro e a qualidade dos equipamentos destinados a esse registro indicam
que os espetáculos são efêmeros em seu ato presencial, mas, ao mesmo tempo, fabricados para
serem registrados. Cada ano tem um catálogo que é lançado na abertura do ano seguinte, e o
catálogo respectivo ao ano de 2008 também inclui um DVD, a ele anexado. Batman afirma que, logo

147
Além das plataformas de divulgação e colecionamento on‐line descritas na primeira sessão deste plug‐in, a curadoria do
festival mantém, em caprichosas encadernações, os clippings sobre o evento e os espetáculos. Os clippings não se detêm
em artigos jornalísticos impressos e on‐line, mas também recortam as pequenas pílulas, as chamadas que aparecem em
blogs ou sites de divulgação, ampliando as referências dos espaços de divulgação para blogs pessoais. É possível dizer com
isso que o Multiplicidade opera com a proliferação de diversos mediadores que funcionam como porta‐vozes (Latour,
2005) do evento.
148
Alfred Gell (2001) e James Clifford (1988), entre outros, fizeram sugestivas etnografias de catálogos de arte. Gell, em
seu artigo, “A rede de Vogel”, fala sobre a exposição intitulada “Arte/Artefato”, que teve curadoria da antropóloga Susan
Vogel em 1988, e foi exibida no Center for African Art no mesmo ano. Mesmo sem ter estado lá (Gell, 2001:176), o autor
utiliza o que considera um rico material do catálogo para repensar criticamente a oposição moderna entre arte e artefato.
James Clifford, por sua vez, etnografou a exposição realizada no Museu de Arte Moderna de Nova York (MOMA), chamada
“’Primitivism’ in 20th century art: Affinities of the primitive and the modern”, exibida entre 1984 e 1985, e baseou‐se
expressivamente no material do catálogo para descrever o incômodo lugar que ocupa a arte não ocidental no mundo da
arte do Ocidente, relegando a arte primitiva sempre ao anonimato e à falta de contextualização histórica (Clifford, 1988 e
Lagrou, 2007).
238
no início do ano que começa, se “lança um produto do passado”. Nesse sentido, literalmente, o
catálogo “inventaria” um aspecto novo do Multiplicidade, gerando uma experiência própria, porque
a sua composição não é feita dos mesmos elementos usados em cada performance. Uma vez,
quando cheguei a uma edição da artista Lica Cecato e do poeta digital e designer André Vallias,
perguntei a Mariana como corria a programação, e ela me respondeu que cada edição produzia
sempre “um frio na barriga”, porque se montava pela “primeira vez” e pela “última vez”. Essa
sensação, de frio na barriga, de criar uma única experiência, difere do processo de elaboração de
arquivamento e de pesquisa que se realiza a cada ano: o resultado depende da recombinação dos
melhores formatos de registro.

O próprio Batman deixa claro que, para o Oi Futuro, ele teria que somente produzir uma brochura
com seis dobraduras, com a programação do Multiplicidade. Mas, desde o início, como “viagem
pessoal”, ele criou um Catálogo bilíngue que, nos últimos dois anos, editou em parceria com a
Aeroplano. Este ponto nos permite perceber a sua intenção de institucionalizar o projeto como
internacional, não somente com convidados internacionais, mas também com o objetivo de inserir o
festival no circuito internacional, como já vimos na primeira sessão deste plug‐in.

Mesmo que, inicialmente, tenham sido feitos sem tantos recursos, os catálogos têm um trabalho de
identidade gráfica. O próprio Batman alterna em chamá‐los "catálogos" e "livros", e os faz circular
pelas livrarias cult do país, como a Travessa e a Argumento, no Rio de Janeiro, a Blooks e a Cultura,
em São Paulo e também em Recife, assim como nos museus: o Malba, de Buenos Aires, o Macba, de
Barcelona, e a Tate, de Londres. Diz que “lá fora” – referindo‐se ao circuito internacional – , ele já
não leva os livros para mostrar o Multiplicidade, mas apenas o DVD. Isso se dá porque ele afirma ter
um lado de insistir em “formatos que já acabaram” – e que são bastante dispendiosos, não só
financeiramente, mas também em termos de esforço e de trabalho – que ele igualmente aproveita
para manter vivos, pelo “prazer da criação”.

Batman gosta especialmente de “narrar uma história visualmente”. Um exemplo disso foi o que
aconteceu no meio do espetáculo de Naná Vasconcelos com DJ Dolores, intitulado “blind date”, no
Oi Casa Grande (2009), quando houve um apagão de luz. A narração dessa noite se traduz por duas
páginas pretas, com letras em relevo, com as notícias de jornais sobre o apagão que abalou toda a
cidade do Rio. Com essas duas páginas ele deu um exemplo muito ilustrativo de como criar o
momento de apagão durante a performance. A apresentação acabou ficando dividida em dois
momentos: um primeiro, com energia, e o segundo, sem nenhuma luz, quando Naná teve que
assumir o improviso com seus instrumentos de percussão.

239
Desde as primeiras etapas da produção anual de um catálogo, ele cria uma tipografia nova junto à
empresa Bold Design (com a qual divide a casa sede do “Multi”). Começa a traçar um espelho, um
rascunho, formado a partir de um processo de “catalogação e pesquisa”. Do processo de pesquisa
consta a composição de uma ideia, elaborada desde o primeiro encontro com os artistas de uma
edição. Inicialmente, os primeiros desenhos são rabiscados em um caderno durante as primeiras
reuniões. A pesquisa também é feita a partir dos conteúdos que circulam dentro da performance,
como no caso daquela de Arnaldo Antunes (2008) em que aparece um jogo de palavras “totem” e
“tabu”, e que, no processo de pesquisa, os levou ao convite da psicanalista Numa Ciro para escrever
um texto relacionado a esse tema, que remete ao livro de Freud. Finalmente, o processo de pesquisa
também inclui a performance em si: que instrumentos foram usados ou criados para o espetáculo.
Por exemplo, as apresentações do grupo de música eletroacústica mineira, o UAKTI é também uma
performance em estrito senso dos instrumentos fabricados pelos seus integrantes, gerando um
equilíbrio entre show e exibição, porque os instrumentos ganham novos nomes e são exibidos ao
final do espetáculo, assim como os seus integrantes. O fusca que virou um instrumento na
apresentação de Siri (2005) também ganha ênfase nas fotos que integram o catálogo desse ano.

Ainda sobre a criação do livro‐catálogo, Batman afirma que aproveita “o atraso brasileiro” para
manter formatos de divulgação que também podem ser apresentados como objetos de arte ou
objetos‐fetiche. Ele se mostrou decepcionado quando acabaram as fabricações de catálogos do
festival Sónar de artes multimídia em Barcelona. Os livros‐catálogo se enquadram em consonância
com o conceito de modernidade alternativa (Velho, 2005), no respectivo “atraso brasileiro”: em sua
função de o atraso ter a dupla significância de “ainda não tão moderno como a Europa” – onde já
deixaram de lado as plataformas de publicação, como o livro, o CD, o vinil – , e também de ser
atrasado, no sentido de “antimoderno”, a partir de onde se aciona a “retórica da perda”, por ser o
Brasil “um país” que (ainda positivamente) valoriza o livro como um objeto de arte. Apesar de o seu
argumento sobre a sobrevivência do livro de arte ter um tom que pode ser associado ao especial
apreço das elites pelo objeto‐livro (DaMatta, 1990), o preço do último catálogo (40 reais) não pode
ser considerado caro se relacionado ao mercado brasileiro, quando levamos em conta o trabalho de
design, a capa dura e a qualidade do papel, assim como sua fabricação como obra de arte que pode
ser exibida em salas de visitas. Os valores escolhidos por Batman para os eventos do Multiplicidade
(15 reais), em sua concepção, teriam um viés democratizante, opondo‐se também aos preços de
shows, muito mais caros na cidade, independentemente do artista apresentado. A explicação de
levar em consideração um público‐alvo jovem não poderia ser sustentada pelos frequentadores das

240
edições a que assisti, nas quais encontrei um público que não se recorta por idade ou geração, mas
ganha sempre um novo formato em função da expectativa do que consistirá a apresentação.

Os quatro catálogos têm o mesmo tamanho, os dois últimos são alguns milímetros maiores porque
foram feitos com capa dura; estes dois últimos também trabalham com melhor qualidade de papel e
contam com mais conteúdo. Todos os catálogos têm o fundo de uma cor e as formas da logo do
“Multi” de outra cor (um jogo com o M que ficou mais conhecido por se assemelhar figurativamente
a uma borboleta).

Imagens enviadas por Batman Zavareze

Os catálogos estabelecem um diálogo entre si através das cores. O sombreado verde da logo do
primeiro catálogo rosa‐shocking ganha a cor do livro de 2007. O roxo dos pedaços de borboleta do
catálogo verde é a cor do catálogo de 2008. E, finalmente, a tonalidade roxa reaparece nas
borboletas do catálogo amarelo, referente ao ano 2009. Os dois primeiros catálogos parecem um
pouco rebuscados em termos das organizações de fontes e cores, um formato saturado de
informações visuais, com muito uso de recursos fluorescentes. Os dois últimos, de capa dura, já
apresentam uma harmonia maior na organização de imagem e texto; neles predominam cores
foscas. Batman me explicou que foi também porque naquela altura já havia mais dinheiro disponível
e maior quantidade de gente para trabalhar nos catálogos. Ele ainda revela que houve grande
incentivo por parte de Heloisa Buarque de Holanda (editora da Aeroplano, com quem também
participa de um grupo de estudo) para acrescentar uma quantidade significativa de conteúdo de
textos conceituais no último catálogo. Ou seja, a qualidade material do papel nos diferentes
catálogos também conta uma história sobre o desenvolvimento do festival ao longo do tempo. No
último catálogo (2009) há inclusive um jogo interessante de tipos de papel usados dentro do livro, os
textos conceituais concentrados no meio do livro, com papel bem fino, e as outras folhas, mais

241
grossas e brilhantes, onde se incluem muitas fotografias. E ainda há um sintetizador analógico de
papel para montar em casa, ao qual Batman relaciona a ideia de “fabricar um” para que “todos
possam ter em casa”, um sintetizador que só o produtor Carlos Trilha tem no Brasil.

Além desses elementos de fixação de uma identidade por meio dos catálogos, algo que caracteriza o
poder de invenção deles como conjunto se cria através de dois recursos textuais: o descritivo e o de
implementação de definições. Na apresentação dos artistas e na descrição do evento específico que
retratam, eles explicitam ao leitor as especificidades do projeto que se vai elaborando a partir de
cada experiência prática, e o formato que ganham as características dos artistas convidados, bem
como com a montagem de cada produção. Segundo Durkheim e Mauss (1981), a atividade de
classificar torna visível “as relações existentes entre os seres” (Durkheim e Mauss, 1981:403),
unificando “ideias” e “conhecimento”. Nesse sentido, é pela maneira particular como são
classificadas as pessoas e os objetos (pois, como afirmam, “há afinidades sentimentais entre as
coisas assim como entre indivíduos, e é de acordo com estas afinidades que elas são classificadas”
(:453)) que se inventa um projeto. Com a estratégia de definir e de agrupar de forma peculiar
instrumentos, máquinas e criadores de diferentes áreas, forma‐se uma identidade para o festival,
que articula uma invenção de continuidades, ao inserir novos “artistas” dentro de tradições
específicas dos modernismos nacionais e internacionais. Mas, ao mesmo tempo, ao agregar esses
novos mediadores – principalmente “as novas tecnologias” e os seus artistas, que aqui chamo de
"produtores" –, há um movimento inverso, de inventar novas categorias e redimensionar a rede do
festival, incorporando‐o ao quadro de uma estética contemporânea. Assim, podemos pensar no
processo relacional de invenção e convenção de que fala Wagner (1981). Como esclarece Batman
Zavareze, no final do seu texto de abertura, relativo ao ano de 2007,

Os VJs, o sotaque regional eletrônico, a tecnologia da periferia, as ideias eletroacústicas,


sensores de movimento, projeções em materiais não convencionais, novas cenografias,
softwares de sincronismo entre imagem e som, o jazz, a música erudita, electro, house, Techno,
noise fazem com que as audições do Multiplicidade no teatro do Oi Futuro sejam vistas com
uma percepção diferenciada do próprio espaço‐tempo e seu significado estabelecido (Zavareze,
2007:9).

Nesse mesmo texto de apresentação, enquanto expõe um sumário das performances que ocorreram
naquele ano, ele elabora uma série de “notas de rodapé” com definições de elementos mencionados
ao longo do texto. Como essas notas são definições que iluminam o poder de criar uma classificação,
nos termos apresentados por Durkheim e Mauss, transcrevo algumas a seguir, no quadro abaixo:

242
Os dadaístas são herdeiros do movimento antiartístico Dada, criado em 1916, em Zurique (Suíça), no
efervescente Cabaret Voltaire, onde agitavam Hugo Ball, Tristan Tzara e Hans Arp, entre outros. O dadaísmo,
nome sem significado, questionava os valores artísticos estabelecidos e a própria razão de sê‐los.
As obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark foram contribuições decisivas para uma nova relação entre o público e
a obra de arte. Crítico severo da passividade do espectador, Hélio Oiticica criou seus Parangolés capas e
estandartes, que o público devia vestir ou empunhar. Similarmente, Lygia Clark, com seus Bichos (1960), havia
levado o espectador a interagir com a obra. A casa É o Corpo é uma instalação composta de três ambientes a
serem atravessados, onde o espectador passa a vivenciar experiências sensibilizadoras.
Walter Smetak (1913‐84), compositor suíço, naturalizado brasileiro, e professor da Escola de Música da
Universidade Federal da Bahia, criou em 1958 e 84 mais de 150 instrumentos musicais originais, utilizando
materiais alternativos. Suas experiências chamaram a atenção de gente como Gilberto Gil, Rogério Duarte,
Tom Zé, Caetano Veloso e Uakti.
A poesia concreta é um movimento de vanguarda dos anos 50, período histórico do Brasil moderno, que
trabalha de forma integrada e som, a visualidade e os sentidos das palavras. É uma proposta de novos
parâmetros de fazer poesia, visando “a arte geral da palavra”.”.‐‐‐‐‐
Ouver (ouvir/ver) foi um nome de um espetáculo multimídia em 1993, em comemoração aos 30 anos da
“Semana nacional de poesia de vanguarda”, ocorrido em Belo Horizonte com presença dos concretistas
Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Cid Campos, Lívio Tragtemberg, entre outros.
Mashup une duas ou mais músicas numa só, criando um terceiro elemento. É um fenômeno nascido e criado
na internet, seja no momento de sua concepção (softwares de mixagem e a fonte dos MP3s), ou na sua
disseminação através de sites e rede de compartilhamento de arquivos. Por conta dos direitos autorais não
existem discos de Mashup.
O termo “Global Ghettotech” foi criado pelo DJ e MC americano Wayne&Wax, que também é etnomusicólogo,
para descrever uma estética emergente entre certos DJs e blogueiros, na qual se misturam gêneros “globais”
como hip‐hop, Techno e reggae, entre outros, com estilos “locais”, sons das periferias dos países. Nomes como
Diplo, DJ Dolores, Maga Bo, DJ/rupture, Ghislains Poirier e Wayne&Wax constroem sets que podem ter hip
hop amercianos, Techno alemão ou electro francês junto à soca de Trinidad, ao rap marroquino, ao funk
carioca, ao kuduro de Angola, ao dancehall jamaicano, ao grime das Cohabs londrinas ou à cúmbia colombiana
(Zavareze, 2007: 7‐9).

Ao transcrever somente as definições, descontextualizo‐as do texto a que estão associadas, mas,


respeitando o modo como se encontram dispostas no Catálogo, uma após a outra, é possível dizer
que Zavareze pretende oferecer um panorama geral da arte que se apresenta no festival
Multiplicidade. O movimento Dadá, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Walter Smetak, a poesia concreta, a
estética de Mashup e o gênero Globalguettotech assim relacionados criam um grupo “segundo
relações muito precisas”, como afirmam Durkheim e Mauss na epígrafe desta sessão. A seguir,
gostaria de mostrar a maneira como Batman descreve dois personagens e sua performance na
edição Multi 2005‐05:

Muti Randolph, pioneiro no Brasil na utilização de computadores como ferramenta (e suporte)


para artes visuais, desenvolve uma relação entre música, tecnologia e sua respectiva ocupação
espacial. / No Multiplicidade estreou um software de sua autoria para sincronizar o vídeo com a
música ao vivo tocada pelo DJ e parceiro Jonas Rocha. / Jonas Rocha, dono do selo Zoo Records,
produtor musical e DJ, já tocou em grandes festivais e, com experiência internacional, é
considerado uma das grandes referências da música house no Brasil./Este espetáculo (...)

243
trouxe numa nova linguagem estética à formação tradicional de uma pista de dança do século
XXI, onde, em total sinergia, a dupla toca imagem e som (Zavareze, 2007:29).

Muitos coletivos também se apresentaram nesses dois anos e ganharam uma definição no catálogo,
como Kabum!, Embolex Coletivo Media Sana, entre outros. Relativamente à performance do coletivo
Apavoramento Sound System, formado pelo DJ Nepal, pelos VJs Rodrigo Lima e Cila Macd – e que,
ao som de eletro‐funk e break‐beat, se criou uma história em quadrinhos com personagens virtuais
e, ainda, foi contratada a lutadora de boxe Ana Maria para brigar com o vilão virtual – , pela
primeira vez aparece um coletivo assim autoidentificado, e lhes foi dada uma definição:

Apavoramento Sound System é uma produtora de vídeos e eventos, formada por DJs e
designers. Se autointitulam um “coletivo”; denominação dada a grupos compostos por artistas
de diferentes formações que se juntam para produzir trabalhos multidisciplinares (ibidem31).

Se esses novos personagens são definidos por Batman, há também o uso da estética sampler sendo
acionada para outros universos. Como, por exemplo, na edição Multi 03 2008, Chelpa Ferro & Jaques
Morelenbaum apresentaram o espetáculo “A autópsia da cigarra gigante”, o qual era dividido em
duas partes. A primeira, chamada “Vale o Escrito”, era, literalmente, uma “colagem musical” feita
pelo coletivo Chelpa Ferro a partir de peças de Schubert, Mahler, Mozart, Wagner, Beethoven,
Mendelssohn, Mussorgsky (cf. Zavareze, 2009:39). Esta peça foi tocada por uma orquestra de 16
músicos, regidos por Morelenbaum. Como ele afirma em seu depoimento mais adiante no catálogo:

É você juntar dois compassos de Beethoven e entrar um Stravisnky, e depois partir para um
Mendelssohn e virar um Mussorgsky (...) Apesar de os elementos serem antigos e conhecidos,
as junções e estas novas edições que foram loucamente coladas exigiram (...) uma maturidade
musical enorme para você transitar. Tocar uma sinfonia de Beethoven já é complicado. Mas
tocar dois compassos de Beethoven e saltar para Stravinsky, em outro tempo, em outro
espírito, em outro ambiente... Ou, ainda, saltar de uma orquestra clássica de Beethoven que
tinha muito menos instrumentos para orquestra moderna do Mussorgsky (...) Tive a função de
criar uma maneira prática para a gente transitar nesses tempos, estilos e ambientes com
facilidade. Tive que transformar estas orquestras sinfônicas (Zavareze, 2009:101).

O “desafio” para o regente foi “transformar estas orquestras sinfônicas” de uma forma que fosse
possível transmitir com instrumentos ao vivo a experiência do procedimento de sampling criado no
computador, assim produzindo algo que poderíamos chamar de uma “orquestra sampler”. A
experiência dessa ampla discussão e diálogo entre estéticas se manifesta também explicitamente
nas edições em que junta literalmente duas gerações com pais e filhos em uma performance, como
nos casos em que reuniu o pianista João Donato (na primeira vez, virtualmente e, na segunda,
244
presencialmente) e seu filho Donatinho (que Batman considera um “maestro digital”), e também a
pianista Clara Sverner e o designer Muti Randolph.

Os catálogos, assim, formam uma pesquisa que amplia o termo tecnologia ao mesmo tempo em que
acentua o tom de manifesto do universo digital. Dessa forma, com esse procedimento, Batman
Zavareze inventa uma arte ao cristalizar definições sobre um fenômeno que estava surgindo nesse
momento e, nesse processo de inventar o Multi, ele também se inventa.

O festival Multiplicidade atrai, reúne e promove quase todos os artistas multifacetados surgidos
nesta virada de século em nosso país. Para este festival parecem confluir todos os "ciborgues" de
nossa atualidade. E seu criador, Batman Zavereze, como que "condensa" as principais características
constitutivas dos personagens por mim selecionados para serem etnografados neste trabalho. Eis
por que me pareceu adequado apresentá‐lo no final.

245
Plug‐in I.4.

Samples reflexivos

Logo que “encontramos” um “nativo”, a sensação é a de que ele “caiu na rede do


antropólogo”. Nosso alvo parece inicialmente ter sido “capturado”, articulado, “objetificado”
dentro do campo de relações em que se produz o conhecimento antropológico (Wagner,
1981). Mas, com a sequência de encontros com esse “nativo” aparentemente tão “bem
pescado”, percebemos que fomos nós que caímos em sua “rede”. As primeiras objetificações
vão, ao longo do trabalho de campo, perdendo a tranquilidade da rede inicial, lançada pelo
antropólogo. O termo rede funciona aqui de um modo ambíguo, devir: ele pode ser uma rede‐
vida, uma rede‐política, uma rede‐estética e, em inúmeros casos, a rede é fabricada a partir de
uma mistura desses elementos. Enquanto se cai na emaranhada malha nativa, continuamos
sem saber exatamente a quem as redes realmente pertencem. O resultado é terminarmos
realizando uma série peixe‐pescador.

No desenrolar da pesquisa fui me perguntando se não havia fetichizado os produtores como


artistas. Afinal, essa havia sido uma das advertências de Ricardo Cutz quando o entrevistei.

Nos anos 90, realmente há algo significativo: a massificação do loop; o computador


possibilita quebrar com a ideia de linearidade na criação. Apesar de que já havia
maneiras de criar de forma não linear, realmente, a partir desse momento a forma de se
relacionar com o material muda. Talvez tenha sido mesmo nos anos 2000, com a
portabilidade total. Talvez uma mudança ou um parâmetro atual pode se pensar a partir
de manipulação de imagens e sons em tempo real. Mas, assim mesmo, é necessário
perguntar no que o tempo real é significativo enquanto estética? O teatro já faz isso.
Qual a ação do artista que estetiza a ação? Eu sou um cara que é fixado em tecnologia,
estou sempre fazendo pesquisa de novos softwares. Há coisas que o mouse permite: um
gestual, uma mudança no corpo, como você disse. Assim mesmo, na banca de minha
dissertação, isso ficou muito claro: temos que tomar cuidado com o fetiche tecnológico e
com o fetiche do ato de criar.

O que teria acontecido se Batman Zavareze tivesse me levado para o palco da Sport TV, onde
criou o cenário da Copa do Mundo? O que teria acontecido se eu tivesse realizado a etnografia
de uma trilha sonora feita por Daniel para um programa de televisão? Ou mesmo se o tivesse

246
acompanhado como violonista? O que teria sido a minha pesquisa se eu tivesse assistido às
aulas de Fernando Salis, na UFRJ? Quem começou a criar essa rede na qual a maioria das
apresentações descritas se dão, no interior do espaço do Oi Futuro? Eu, quando expliquei a
minha pesquisa, ou eles, privilegiando o que queriam me mostrar? O único que é possível dizer
ao certo é que essa rede foi tecida de maneira conjunta, à medida que fomos privilegiando
determinados encontros em vez de outros.

Talvez exista uma operação sendo realizada ao colocar esses personagens em relação. Em
vários momentos, ao longo do desenvolvimento da pesquisa e da escrita da tese, eu imaginava
que seria interessante montar uma exposição com trabalhos, projetos, vídeos e sons criados
pelos meus personagens. Idealizava uma sala em alguma galeria em que a cada momento
seriam associados os projetos dos produtores em diferentes classificações. De alguma forma, a
exposição imaginária se concretizaria nesta outra exposição em formato de tese, a partir do
agrupamento selecionado que ora apresento. E, nessa tarefa, poderia aproximar a atividade
do antropólogo com a do curador. É significativo que, no processo de construção da rede,
tenha surgido na pesquisa o festival Multiplicidade, pelo fato de DJs e produtores de música
eletrônica constarem em seus catálogos, inclusive alguns que integraram como protagonistas a
minha dissertação de mestrado, e de outros que conheci de nome, ou de quem frequentei as
festas que organizavam entre 2000 e 2003. Quando perguntei a Batman Zavareze se ele sentia
que o seu festival dera visibilidade à cena da música eletrônica, ele me respondeu que, em sua
concepção, todos os convidados para participar do festival não criavam uma festa em seus
espetáculos, mas se envolveram em outras modalidades de apresentação não usualmente
realizadas por DJs e VJs. É neste ponto específico que o projeto de Batman encontra
ressonâncias com o meu. Porque, se eu estava há poucos anos antes (de 2005, quando começa
o Multiplicidade e quando ingresso ao doutorado) realizando etnografias em festas de música
eletrônica, entrevistando o DJ e jornalista Camilo Rocha, Gil Barbara em São Paulo, ou
frequentando as festas de Jonas Rocha, tentando marcar uma entrevista com o DJ Markinhos
Mesquita aqui no Rio, e não perdendo nenhuma edição da Festa Moo, alguns anos depois,
quando nasceu o meu projeto de doutorado, estes profissionais foram convocados para
realizar outra coisa que não era propriamente música eletrônica no festival de Batman. Assim,
quando eu passo a me interessar por criadores que definiram sua trajetória a partir de um
encontro estético com a cena da música eletrônica ‐ mas que se dedicam a outros modos de
performance ‐ , estes personagens também adentravam o festival de Batman. E não somente
os DJs e VJs eram chamados para se juntar com outros artistas. O produtor musical Kassin
(personagem desta tese) não somente se apresentou com seu projeto Artificial, mas lançou o
247
disco Free USA em uma das edições do Multi; assim também o fez Tejo Damasceno (do mesmo
coletivo ‐ o Instituto ‐, a que pertence Rica Amabis, outro dos entrevistados para esta tese).
Claramente estou descontextualizando as combinações específicas que foram tecidas para
privilegiar a coincidência de artistas que se apresentavam no festival ‐ o Multi ‐ e eram
buscados na minha pesquisa. Assim também se agregavam os artistas sonoros, como os
integrantes do Chelpa Ferro ‐ grupo estudado por Felipe Vaz e por Ricardo Cutz em suas
dissertações de mestrado acerca da Arte Sonora ‐, e ainda o VJ Jodele Larcher, e outros artistas
visuais, que simultaneamente atuam como designers, como, por exempo, Mutti Randolf. Por
outro caminho, Batman já havia encontrado ressonâncias entre VJs, artistas visuais, artistas
sonoros, designers, web artists, DJs, ressonâncias estas que eu também procurava por meio de
um percurso conceitual, ao metaforizar (Wagner, 1981) a categoria "produtor".

Assim, na primeira parte desta tese, narro as condições de encontro com as pessoas que se
qualificaram por adotar uma autodenominação ambígua, pela multiplicidade de
agenciamentos de suas atividades, bem como uma distribuição de si através de diferentes
plataformas de criação, e a identificação com as tecnologias digitais para elaborar seus
trabalhos. Esse desenho permitiu pensá‐los como autores ciborgues (Strathern, 2001), pela
forma que marcava cada uma de suas atribuições parciais, por não ganharem eles uma
autoridade a partir de uma obra sediada em um único espaço de manifestação artística ou
acadêmica, e por sempre tenderem à incompletude.

Os PLUG‐INS, por sua vez, evidenciam alguns elementos pontuais dessa rede. Vale a pena
explicitá‐los. No caso da performance de Fernando Salis, quando ele expressou uma certa
frustração por não ter alcançado o nível de interação desejado, do público com as imagens
projetadas em múltiplas telas, essa interatividade não tinha nada a ver com as tecnologias
digitais disponíveis. A interatividade teria podido realizar‐se se ele pudesse ter deixado o seu
computador trabalhando sozinho, enquanto se aproximasse do público, teatralmente,
comandando e incentivando a interação. Ou seja, em sua percepção, não havia nada de
naturalmente interativo/interfacial no ato de usar equipamentos digitais. Por outro lado, a
funcionalidade de sua performance se realizou por ter gerado uma “caixa preta” com seus
multi‐samples de imagens (e o dos sons, do produtor Maga BO) que “enfeitiçou” o público,
deixando‐o quase integralmente num estado de sonhar acordado. Ali residia a força de sua
apresentação. O desenho especial dessa performance remete ao fato de como humanos e
máquinas foram afetados por uma relação específica entre a tecnologia digital, os performers
e o público.

248
Dessa mesma forma, na extensão‐plug‐in 1.1, a riqueza dos personagens reside na
ambiguidade de seus julgamentos: acham normal crackear softwares ‐ porque é “simples e
cômodo”‐ , e consideram importante redefinir o estatuto dos direitos autorais. Mas, ao mesmo
tempo, expressam sentimentos “possessivos” com alguma obra “sua”, como no caso de
Fernando Salis. Ou ao comprar um Ipod para o filho, enquanto se perdem os direitos autorais,
como no caso de Lúcio Maia, que se mostra quase “silenciado” diante do mundo
contemporâneo, mas concomitantemente cria uma “linha de fuga” rizomática ao elaborar um
projeto indvidual‐digital – feito com um software pirata, nas horas vagas da estrutura
hierárquica e arbórea da banda Nação Zumbi. Como cada caso é um pouco variante em
relação ao outro, estes exemplos apontam as condições do “e”, “e”, “e”, como afirma o
manifesto Literatura Sampler de Fred Coelho e Mauro Gaspar Filho (2006):

Uma escrita não começa nem conclui, ela se encontra sempre no meio, entre as coisas,
inter‐ser, intermezzo. Tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’ Há nesta conjunção
força suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Viajar e se mover a partir do
meio, pelo meio, entrar e sair, não começar nem terminar. Instaurar uma lógica do E,
reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e começo. Uma escrita
pragmática. É que o meio não é uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas
adquirem velocidade. Entre as coisas designa um movimento transversal que carrega
uma escrita e outra (Coelho e Gaspar, 2006).

Porque, como diz o próprio Lúcio Maia, estamos maquinados pelos gadgets, assim como estes
ganham autonomia quase humana. Como modo de distribuição conjuntiva “e”, “e”, “e”,
realizam‐se as séries “humanas e não humanas" nesta tese. Essa operação é também
demonstrativa no caso de Daniel Castanheira, que não aparentava ter nenhuma “dor” autoral.
Mas foi exatamente o “trabalho de arte” do Hapax que ele desejou me mostrar, fazendo surgir
uma situação interessante, e me dando a oportunidade de descrever o modo de operação de
um coletivo. Ser coletivo é ao mesmo tempo ser grupo, ser banda, ser um, ser “muitos muitos”
mesmo quando se é um; ser coletivo outorga a possibilidade de poder optar entre gradações
de grupo e autor, nunca se fechando em quaisquer das categorias em oposição, mas jamais
formado uma síntese. Algo que também deve ser dito sobre o estatuto da pesquisa de campo
com Daniel é que, fora os encontros rituais com ele, a parte relativa à criação de imagens, ou
seja, a de observação de campo sobre as obras do coletivo, se deu pela Internet, as quais
foram distribuídas pelos sites do Hapax e o do Ricardo Cutz, que igualmente opera o site do
Hapax.

249
Batman Zavareze organizou um projeto autoral que consiste em propiciar tecnicamente com
sua participação expressiva as condições para criações únicas de artistas que devem operar
como um “coletivo” para apresentar‐se. A lição dos catálogos é que o festival Multiplicidade
não pode ser categorizado como um espaço de arte digital com os seus típicos personagens –
os coletivos de DJs, VJs e designers – , ou como uma mera continuidade com artistas que
incorporam fortes relações com a música popular no Brasil, como Jards Macalé, Tom Zé, Naná
Vasconcelos, João Donato, Fausto Fawcett, Walter Alfaiate, Arnaldo Antunes e o poeta Chacal,
entre outros. Enquanto fontes de pesquisa, os catálogos terminam por afrouxar todos os
enrijecimentos que costumamos dar ao sentido "tecnologia". Assim também vemos como as
oposições criadas entre a tecnologia analógica e digital na extensão plug‐in 2.1 não criam uma
oposição definida, mas operam a partir da desestabilização dessas categorias, porque os
personagens demonstram estar usando as duas como estéticas ao mesmo tempo.

Os produtores parecem enfatizar, com a própria falta de uma autodenominação específica, as


suas características distributivas em que metaforizam e inventam o digital a partir das
atribuições que fazem em suas operações míticas à tecnologia como fetiche, ferramenta e
estética. Enquanto criam com ferramentas digitais, num processo de acúmulo de habilidades,
também são povoados por gadgets (“pessoas distribuídas”) que fetichizam estes personagens
enquanto criadores de uma “estética contemporânea”. E assim, o alerta de Ricardo Cutz sobre
o perigo de fetichizar a tecnologia é resolvido pelos próprios produtores que, ao longo do
nosso convívio, performatizam uma espécie de projeto de metaforizar sempre o sentido de
tecnologia. A força de invenção dos produtores como autores “desta época” é manifestar um
certo conforto em pertencimentos a contextos aparentemente “puros” e “contraditórios”. O
que aprendemos com os produtores é a força de invenção que reside nas categorias de
“tecnologia” e “autor”.

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