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GILLES DELEUZE

MICHEL FOUCAULT: O PODER

AULA 1
Ó Da tradução: Editora Filosófica Politeia, 2020

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D348m Deleuze, Gilles

Michel Foucault: o poder / Gilles Deleuze ;


traduzido por Mario A. Marino, Iracy Ferreira dos Santos Júnior –
São Paulo editora filosófica politeia, 2020
420 p. ; 14cm x 21cm.

Tradução de: Foucault: le pouvoir


Inclui índice e bibliografia.

1. Filosofia Francesa. 2. Michel Foucault.


I. Mario A. Marino. II. Iracy Ferreira dos Santos Júnior. III. Título.

CDD 194

2017-549 CDU 1 (44)

Índice para catálogo sistemático:


1. Filosofia francesa 194
2. Filosofia francesa 1(44)

ISBN: 978-85-94444-10-3
GILLES DELEUZE

MICHEL FOUCAULT: O PODER

TRADUÇÃO E NOTAS: MARIO ANTUNES MARINO

REVISÃO: IRACY FERREIRA DOS SANTOS JÚNIOR

1ª EDIÇÃO • SÃO PAULO • 2020


Aula 1: 7 de janeiro de 19861

Muitos de vocês fizeram seus cursos em um momento ou outro, foram marcados por ele e o amaram.
Acredito que uma homenagem a ele, aquela que nos é possível fazer, é reler seus livros para avaliar sua
importância, desde o Nascimento da história.2 Pois acho que ele realmente realizou uma obra.
A partir de agora, começamos a segunda parte deste estudo sobre Foucault. A segunda parte é o
segundo eixo do seu pensamento. Esse segundo eixo diz respeito ao poder e era exigido pelo primeiro
eixo, que dizia respeito ao saber. Durante todo o trimestre anterior fomos levados a ver como o domínio
do saber exigia, em condições muito precisas, uma resposta que devia vir doutro lugar. 3 E apenas
pressentimos que, sem dúvida, essa resposta de outro lugar só podia vir de uma analítica do poder.
Eu vou resumir mais uma vez o que estudamos na precedente análise do saber. O primeiro ponto é
que as formações históricas se apresentam como estratos, como formações estratificadas. Veremos talvez
que, em relação ao problema do poder, essa noção de estrato ou estratificação, tal qual aparece muito
rapidamente no início de A arqueologia do saber, assume uma nova importância em relação ao problema
do poder. Vocês sentem imediatamente, em todo caso deveriam senti-lo imediatamente, que a pergunta
seria: e o poder? É estratificado? Mas ainda não estamos lá. Como essas formações estratificadas se
mostram? Elas são apresentadas como verdadeiras camadas sedimentares. Camadas de quê? De ver e
falar. Palavras se amontoam, visibilidades se amontoam. Camadas de ver e de falar.
Segundo ponto: essas camadas remetem a duas formas: ver e falar; mais precisamente, a forma do
visível e a forma do enunciável. E cada formação estratificada é feita do entrelaçamento dessas duas
formas. O visível e o enunciável, ou sua condição formal, a luz e a linguagem.
Terceiro ponto: embora essas duas formas se entrelacem para constituir as formações estratificadas,
há uma heterogeneidade entre ambas. São duas formas irredutíveis, sem medida comum. O visível não é

1
De outubro de 1985 a maio de 1986 Gilles Deleuze ministrou um curso sobre Foucault. As aulas foram gravadas e a
transcrição encontra-se disponível online no site da Universidade Paris-8. Deleuze dividiu o curso em três eixos, intitulados
As formações históricas, O poder e A subjetivação. As primeiras 8 aulas cobrem o primeiro eixo e compõem o curso que
intitulamos Michel Foucault: as formações históricas (online em: http://editorapoliteia.com.br/as-formacoes-historicas e em
https://n-1publications.org/aulas-1). As onze aulas seguintes cobrem o segundo eixo e compõem o presente curso, Michel
Foucault: o poder. As últimas 6 aulas abordam o terceiro eixo – A subjetivação. Elas serão publicadas futuramente pela
Editora Politeia.
2
Na gravação: “depuis la naissance de l’histoire”. Trata-se de um lapso de Deleuze, que desejava se referir talvez a História
da loucura ou a Nascimento da clínica.
3
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas.

4
o enunciável. Falar não é ver. De modo que o entrelaçamento das duas formas é uma verdadeira batalha
e só pode ser concebida como abraço, corpo a corpo, luta. No fim das contas, praticamente, não é isso o
que interessa a Foucault e o que explica muito do seu estilo? Ou seja: tudo se passa como se para ele se
tratasse um pouco de ouvir gritos sob o visível e, inversamente, arrancar das palavras cenas visíveis.
Relâmpagos sob as palavras, gritos sob o visível, abraço perpétuo de ambos. Nós o vimos a respeito de
Raymond Roussel, é isso o que Foucault vai buscar em Roussel. Os relâmpagos escapando das palavras,
e em Brisset – outro autor insólito que Foucault comenta mais brevemente do que Roussel – vai buscar
gritos sob as palavras.4
Abro um parêntese muito rápido, porque falei pouco de Brisset e do texto sobre Brisset, mas...
Brisset, este livro sobre a linguagem, tem operações muito curiosas que não deveríamos tomar por
exercícios de etimologia fantasiosa. Há uma bela página de Brisset acerca da palavra saloperie
[imundice]. O que nos diz Brisset? Ele diz, bem, o que é a imundice? Está sujo, não limpo, sujo; eau
[água] – porque a água é a origem universal, de onde saem as rãs e nós somos todos rãs. É a grande ideia
de Brisset sal-o-pris, estar preso [être pris]. Isso significa que os cativos, na guerra, são colocados em
uma espécie de terreno úmido, são jogados na água suja, os cativos são colocados na água suja: sale-eau-
pris, preso na água suja. Vocês veem a abordagem? Se fosse etimologia, seria um truque miserável, mas
é melhor que isso, da palavra ele arrancará uma cena visível: o cativo que toma banho numa espécie de
poço com água suja. Então, nessa cena visível, ele solta um grito: os vencedores, em torno desse poço,
gritam repetidamente “imundice!”. Eles insultam os cativos. Novo retorno a uma cena visível: sale eau
pris torna-se salle aux prix [sala dos preços, leilão]. Os vencedores não se contentam em insultar os
cativos dizendo “presos na água suja”, eles os compram para fazê-los escravos. Eu me detenho porque
isso não tem fim em Brisset.
Mas em que sentido não é um exercício etimológico? Vejam que ele sempre começa com palavras,
extrai uma cena visual, sonoriza a cena visual. O efeito sonoro, o primeiro som da cena visual, induz
outra cena visual e operará os efeitos sonoros da segunda cena visual. É um processo poético muito
interessante que faz as mais belas páginas de Brisset, e há perpetuamente esse tipo de história animada
que salta de um grito para uma cena visual, uma visibilidade, da visibilidade para um grito, motivo pelo
qual Foucault não podia ignorar Brisset. Assim, heterogeneidade das duas formas que estão
perpetuamente em relação de captura, abraço, corpo a corpo, uma com a outra.

4
FOUCAULT, M. “Sept propos sur le septième ange” 1970]. In: BRISSET, J-P. La grammaire logique. Reproduzido em
FOUCAULT, M. Dits et écrits v. I, p. 881.

5
Quarto ponto: mesmo que se diga, são relações de batalha, o que torna possível o corpo a corpo,
como é possível o abraço, visto que ambas as formas são irredutíveis? A resposta, nesse quarto ponto,
não pode ser outra coisa: deve haver uma relação entre as duas formas sem relação, a visível e a
enunciável, luz e linguagem. É preciso que haja uma relação entre essas duas formas não relacionadas;
logo, a relação só pode vir de outra dimensão, a qual fará surgir a relação na não relação entre as duas
formas. Insisto porque será muito importante para nós, mesmo antes de entendermos do que se trata. Não
tenho escolha, é preciso que essa outra dimensão seja informal e não estratificada, caso contrário ela não
seria uma resposta para o problema. É preciso que essa dimensão seja diferente daquela do saber. E que
difira do saber, entre outras coisas, por isso: não será estratificada, não será formal. Em outras palavras
– escutem bem –, não pode haver forma do poder. É preciso entender abstratamente antes de ver
concretamente.
Por fim, último ponto, vimos por que e como o saber ultrapassou a si na direção de outra dimensão.
Esse foi o objeto da nossa última aula: como o saber vai além, para outra dimensão? A resposta foi a
análise de AZERT, com a qual terminamos [o curso anterior].5 E a análise desse exemplo insólito, AZERT,
foi a contribuição de Foucault ao lado dos exercícios de Roussel e de Brisset, aquelas páginas muito
curiosas de Foucault, em que ele se diverte com AZERT, dizendo: “pedem um exemplo de enunciado, eu
dou: AZERT. E vão se catar!”.
Pois bem, em minha opinião ele sabia para onde isso o levava: à ideia de que a fronteira, a distinção
a fazer, não é entre o enunciado e o que designa, nem entre o enunciado e o que significa, mas entre o
enunciado e o que o incarna, o atualiza. E o que o atualiza? O que é essa fronteira entre o enunciado e o
que o atualiza? O enunciado é definido por uma regularidade, ou seja, é análogo a uma curva. Mas o que
faz uma curva? Regulariza relações entre pontos singulares, regulariza relações entre singularidades. [Por
exemplo,] AZERT regulariza as relações entre pontos singulares, ou seja, as relações entre as letras na
língua francesa e os dedos, entre a frequência das letras, as vizinhanças das letras e as relações dos dedos.
Eis as relações entre singularidades. AZERT é o enunciado, como a curva que passa pelas vizinhanças
dessas singularidades. Em outras palavras, o enunciado AZERT remete a quê? Ele atualiza relações de
força. São relações de força entre as letras e os dedos na língua francesa.
Eu diria, precisamente: é assim que o saber ultrapassa a si na direção do poder. Por quê? Porque o
poder é relação, e a relação de poder é estritamente a mesma coisa que uma relação de força. Em Foucault,

5
Cf. Michel Foucault: as formações históricas, aula 8. AZERT refere-se à sequência das teclas na máquina de escrever
francesa. Em nosso teclado a sequência equivalente é QWERT.

6
relação de poder, no singular, e relações de força, no plural, são estritamente sinônimos. Se o saber se
ultrapassa na direção do poder, é porque as relações das duas formas (forma do visível e forma do
enunciado) ultrapassam a si na direção das relações de força elas encarnam. De modo que temos a
fórmula abstrata da relação saber-poder, antes de entendermos concretamente o que é o poder.
Vejam então a importância, para tudo o que virá, da observação de Foucault: o enunciado como
elemento do saber, o enunciado é sempre uma relação com outra coisa, embora essa outra coisa difira
infinitamente pouco dela. É exatamente como dizer: as relações [relations] de saber remetem
fundamentalmente a outra coisa que são as relações [rapports] de poder. Mesmo que as duas coisas,
relação [rapport] de poder e relações [relations] de saber, distingam-se infinitamente pouco. “Outra coisa
quase semelhante”. Só é um “quase”.6 Donde nosso problema torna-se: o que é poder? Já sabemos a
resposta fundamental de Foucault: o poder é relação. Assim como o saber é relação de forma, o poder é
relação de força. Vocês me dirão que não é muita coisa, poder é relação de força. Depende, depende,
vamos ver. Então devemos pensar que, se tivéssemos entendido o que significa relação de força, a
concepção de poder teria mudado radicalmente. Ora, vocês diriam com razão: mas Foucault não é o único
que definiu o poder como relação de força. Felizmente. Se existe originalidade de Foucault nesse nível,
está para além da concepção da relação de força.
Pronto, tentei reunir o que aprendemos. Agora lanço um forte apelo: há questões sobre o que
falamos no primeiro trimestre ou tudo vai bem? Outra pergunta: em sua leitura de Foucault, vocês
concordam com a maneira como o problema do conhecimento é representado? Mas vamos guardar isso
para o final do ano se... eu não sei. Enfim, agora é a hora de conversar, se quiserem... Sim?
PERGUNTA: O termo “formação discursiva” nunca esteve em sua análise. Você fala em formação
histórica... [inaudível na gravação].
DELEUZE: Isso não está errado. “Nunca” é talvez um pouco severo. Parece-me que falei sobre isso. Eu
prefiro, utilizei sobretudo a expressão “regime de enunciado”. Sim. Eu vou te dizer porque, eu acredito...
porque na verdade você está absolutamente certo. Mas, afinal, sempre fazemos nossa escolha na
terminologia. Por outro lado, Foucault raramente usa a palavra estrato, e eu dei uma importância essencial
ao estrato. Evidentemente, são pequenas escolhas que fazemos... assim. Mas tenho uma razão pela qual
falei muito pouco de formação discursiva: é porque temo um pouco a ambiguidade a esse respeito. Pelo

6
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 17 de dezembro de 1985, p. 7. A colocação de Foucault
em A arqueologia do saber (p. 100) é: “uma série de signos se tornará enunciado com a condição de que tenha com “outra
coisa” (que lhe pode ser estranhamente semelhante, e quase idêntica como no exemplo escolhido) uma relação específica que
se refira a ela mesma – e não à sua causa, nem a seus elementos”.

7
contrário, suponho que Foucault gostava muito da ambiguidade a esse respeito. Pois “discursivo” tem
um significado preciso em francês e em terminologia filosófica. É um certo sistema de dedução, um certo
sistema dedutivo, que define um discurso. Ele mesmo retomará a palavra “discurso”, por exemplo, em
seu livro A ordem do discurso. Escusado dizer que faz dos discursos uma concepção completamente nova.
Qual é a novidade da formação discursiva em Foucault? É que uma formação discursiva é uma família
de enunciados. Assim, uma vez dito, é uma concepção paradoxal e completamente nova do enunciado.
Desse modo, “discursivo” é em Foucault uma certa maneira de transmitir sua concepção do enunciativo.
Eu não tinha motivos para retomar o termo discursivo dele, porque é um termo enganador, é um tipo de
palavra relativamente neutra, onde se pode colocar muitas coisas e por meio da qual ele coloca suas
coisas, a saber, os enunciados, a família de enunciados, o regime de enunciados. Mas quase toda vez que
eu falei sobre “família de enunciados”, você poderia dizer “formação discursiva”. Procurei mostrar que
uma família de enunciados em Foucault – que não era de forma alguma definida por uma semelhança
entre os enunciados, mas quase pela possibilidade de prolongar séries de singularidade, o que é bem
diferente – foi uma concepção ainda mais original. Então, de fato, “formação discursiva” é “família de
enunciados”. Mas seu comentário está absolutamente certo. Em muitos outros casos, parece-me que sou
levado a fazer...
Cada um tem sua leitura. Sou levado a privilegiar certos termos... Eu não sei. Isso acontecerá
novamente para o poder, com certeza. Há uma página de Foucault na qual ele usa uma vez uma palavra
que parece tão importante para mim, tão esclarecedora para toda a sua teoria, é a palavra diagrama.
Insistirei enormemente no diagrama, embora essa palavra seja usada por Foucault apenas uma vez, em
uma página essencial. Então, tudo depende também, vocês sabem, cada um de nós é assim... Se somos
levados a privilegiar certos termos em comparação com outros quando lemos, é também na medida em
que concedemos a essa ou aquela página uma importância decisiva. Um livro nunca é homogêneo, um
livro é feito de tempos fortes e fracos, sendo os tempos fracos às vezes brilhantes. Falo ritmicamente,
batidas fracas no sentido rítmico. Logo, é óbvio que duas pessoas que leem apaixonadamente um livro,
basta que a paixão esteja lá, não tenho certeza de que a distribuição de destaques e de tempos fracos seja
a mesma em duas leituras. Pois as diferenças entre as leituras precedem muito os problemas de
interpretação. As diferenças entre as leituras, quando um livro é rico e bonito, já acontecem no nível do
ritmo da leitura. Você pode ler em voz baixa, não há leitura que não seja rítmica, ou seja, mesmo antes
de entender o que estava sendo discutido, há sinais que chegam até você e esses sinais são coisas que,
como pequenas luzes, acendem e você diz: “Oh, isso é algo importante”. É verdade, ler é todo um

8
exercício respiratório, um exercício rítmico, antes de ser um exercício intelectual. Daí o critério de
escolha de alguém, para dizer: “Ah, isso é essencial”, não é porque há frases em itálico, porque quando
o autor coloca em itálico, significa que é a leitura dele, significa que ele está lendo a si mesmo e
informando o leitor: “Isso é importante”. Então é preciso ouvi-lo, porque o autor tem um ponto de vista
privilegiado. Ele é quem sabe, hein? Mas muitas vezes você é levado a pular o itálico. Então há uma
questão sobre esse tema do ritmo, a distribuição dos altos e baixos dos tempos, o que faz com que,
novamente, a interpretação decorra dessa rítmica. É bem aqui que o leitor participa da criação do autor.
Vocês sabem, quando leem filosofia, ou mais ainda quando vocês leem literatura, é muito próximo
de quando se ouve música. A rigor, você não ouve música se não capta o ritmo. Ou até outra coisa. Tem
sido dito com frequência, e parece-me uma precisão óbvia: não ouvimos Mozart, rigorosamente não
ouvimos, se não somos sensíveis à distribuição dos acentos. Na literatura e na filosofia também é assim.
Penso em um autor como Leibniz, uma página de Leibniz. Mesmo antes de lê-la, você não pode deixar
de se perguntar qual é a altura, como na música, qual a altura e em que nível. Como um pensamento tem
sempre vários níveis, ele é exposto em vários níveis. Ler é atribuir a cada página um nível. Um
pensamento tem sempre vários níveis, ele se expõe em vários níveis. Ler é atribuir a cada página um
nível.
Retomo Foucault. “Formação discursiva”, eu a colocaria no nível mais baixo, não por ser má noção,
mas porque é uma noção armadilha. Concebo muito bem alguém que, pelo contrário, a poria no centro.
Seria uma distribuição inteiramente diferente de ritmos, altos e baixos. Por isso a única coisa que desejo
é não impor uma leitura, é realmente lhes oferecer uma, para que façam a sua. Neste momento não seria
pertinente dizer “mas ele está errado” (vocês foram gentis e nunca disseram isso [a meu respeito]) se os
acentos são distribuídos de modo diverso na leitura.
Obviamente existem leituras insustentáveis, sempre, são leituras que trivializam, são leituras que
transformam as coisas novas em coisas prontas, vejam o que os imbecis dizem hoje sobre Foucault. Nesse
momento deve-se dizer: nem são leituras insustentáveis, são não leituras. Eles nunca leram, não sabem
ler. Assim como existem pessoas que não sabem ouvir música, é um sentido que lhes falta. É irritante
fazer um livro sobre Foucault quando se carece de qualquer leitura. Mas, caso contrário, todas as
verdadeiras leituras são boas.
Bem, termino as observações gerais dizendo: tudo o que encontramos, de uma certa maneira, e aqui
também é uma questão de ritmo, tudo o que encontramos no nível do eixo do saber irá como que se
deslocar no nível do outro eixo, o eixo do poder, e assumirá novas ressonâncias. Ou seja, no nível do

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eixo do saber, havíamos encontrado o que? Foram encontradas três coisas que diziam respeito às duas
formas do saber. Primeira coisa: há diferença de natureza ou heterogeneidade entre duas formas; segunda,
isso não impede que haja pressuposições recíprocas e abraços mútuos, o visível supõe o enunciável e
este supõe o visível, os dois, corpo a corpo, perpetuamente; terceira, há o primado do enunciado sobre a
visibilidade. Era necessário manter esses três acentos tônicos: heterogeneidade, pressuposição recíproca,
primazia. Primazia de um sobre o outro. Pois bem, esses três temas, esses três acentos, iremos encontrá-
los desta vez no nível das relações poder-saber. Para isso, será necessário que entre o poder e o saber haja
heterogeneidade, diferença de natureza e, de certa maneira, não relação. Também será necessário que
exista pressuposição recíproca: nenhum saber sem poder e nenhum poder sem saber. Ainda será
necessário haver primazia de um sobre o outro, quero dizer, que o poder seja determinante. Se há
heterogeneidade, vocês verão imediatamente o que isso significa: o poder em si mesmo não é conhecido
[n’est pas su], não é objeto de saber.
No primeiro trimestre fiz uma aproximação entre Foucault e Kant, precisamente no nível da
irredutibilidade da heterogeneidade de duas formas, que em Kant não são o visível e o enunciado, mas a
intuição e o entendimento. Aqui poderia também fazer uma conexão com Kant. Pois Kant foi sem dúvida
o primeiro a colocar uma diferença de natureza entre duas funções da razão. Uma heterogeneidade radical
entre duas funções da razão, as chamava de razão prática e razão teórica. Ambas são heterogêneas, mas
a razão prática tem primazia sobre a razão teórica. E a primazia da razão prática é fundamental para Kant.
Entretanto, a heterogeneidade das duas funções da razão (função prática e função teórica) leva a quê?
Que a razão prática não seja conhecida e não se dê a conhecer. A razão prática é determinada pela lei
moral, de acordo com Kant, mas a lei moral não é conhecimento ou objeto de conhecimento. Não há
nada a conhecer no campo da razão prática. Em Foucault é diferente porque tanto o saber quanto o poder
se referem a práticas. Para Foucault, existem apenas práticas. Ainda assim, as duas práticas, a prática do
saber e a prática do poder, são irredutíveis. Portanto, esse poder não pode ser conhecido. No entanto, há
pressuposição recíproca ou, pelo menos, o poder será indiretamente conhecido, será conhecido nas
relações de saber. É o saber que nos dará conhecimento do poder.
Bem, vocês veem que todos os termos que encontramos como relação entre as duas formas do
saber vão se deslocar seguindo o outro eixo. De modo que se eu tivesse que apresentar o pensamento de
Foucault, por enquanto ele teria dois eixos, com deslocamento, um tipo de problema, de um eixo para
outro, eixo do saber, eixo do poder. O que acontece em seguida? Aparece um terceiro eixo. Foi necessário
que algo resultasse insuficiente para Foucault na distribuição dos dois eixos, que um problema mais ou

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menos urgente se tornasse para ele cada vez mais urgente para que acrescentasse esse terceiro eixo e
remanejasse seu pensamento no final. Mas ainda não estamos lá. Eu gostaria que durante todo esse
momento em que permanecemos no problema do poder, vocês sintam se perfilar, ainda que de maneira
muito confusa, a necessidade de um terceiro eixo. Mas, no momento, lutaremos com os dois eixos, ou
seja, esse tipo de excrescência sobre o saber [excroissance sur le savoir]: o eixo do poder, que vem
recortar [recouper] o eixo do saber. Será mais e mais um pensamento em três dimensões, a partir do
momento em que Foucault encontrar três dimensões.
Bem, o que é poder? Gostaria que nos detivéssemos hoje, quase com o que Foucault não fez. Ou
seja, uma exposição dos princípios do poder. Por que ele não fez uma exposição dos princípios? Porque,
é evidente, de certa maneira, todo seu pensamento consiste em dizer: o poder não tem princípio. Ademais,
ele escolheu o ponto de vista da imanência na redação de seus livros. Isso quer dizer: o poder está
imbricado [le pouvoir est pris] nas relações de saber. Portanto, devemos compreendê-lo em sua
imanência ao saber. Mas, como sabemos desde o início, a imanência não impede a diferença de natureza
entre poder e saber. Portanto, vou considerar o outro aspecto, vou me concentrar na diferença de natureza
entre poder e saber. Nessa altura, tenho o direito de tentar extrair princípios de poder a partir dos textos
de Foucault. A única tarefa para mim será simplesmente não esquecer, a todo momento, que tudo isso é
muito bom, mas não impede que o poder exista apenas em relações de imanência com o saber. Vejam,
creio que Foucault privilegie em seus textos as relações de imanência com o saber, mas mantendo uma
diferença de natureza entre poder e saber. Para esclarecer o pensamento de Foucault, e apenas para esse
fim, gostaria de fazer o contrário: enfatizar a diferença de natureza, sem nunca esquecer que há imanência.
Bem, quando eu digo “princípio do poder”, o que é? O que é o poder é uma pergunta legítima?
Quero dizer, o poder é passível de se perguntar o que é, uma vez dito que poder é como o saber, é uma
prática? Em outras palavras, para levar a sério, o poder se pratica. O saber também é praticado, é ver e
falar, e nada preexiste ao ver e falar. O poder também é praticado, simplesmente são duas práticas que
diferem em sua natureza. Não basta dizer que a pergunta “o que é poder?” refere-se a uma prática. A
inspiração da pergunta deve ser ela própria uma prática. E o que isso significa? Significa: o que se passa
hoje?7 Aqui tocamos em algo do método de Foucault. De certa forma, Foucault nunca colocou nada senão
problemas históricos. No entanto, ele nunca apresentou um problema histórico sem que o centro de seu

7
No original: “qu’en est-il aujourd’hui?”, que pode também ser traduzido por “o que é hoje?”. Cf. FOUCAULT, M. “Qu’est-
ce que les Lumières?”. In: Dits et écrits v. II, p. 1498. Esse texto foi extraído da aula de 5 de janeiro de 1983 do curso O
governo de si e dos outros, onde Foucault examina o tema da atualidade a partir do opúsculo de Kant Resposta à pergunta: o
que é o esclarecimento?.

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pensamento não fosse hoje, aqui e agora. Por que ele admira Kant? Sem dúvida pelo conjunto de sua
filosofia. Mas ele o admira particularmente porque Kant, segundo Foucault, foi sem dúvida um dos
primeiros filósofos a pôr a questão do sujeito nas coordenadas do aqui e agora. O sujeito transcendental,
o sujeito universal em Kant, é inseparável de um sujeito aqui e agora, isto é: o que é hoje, na época de
Kant, o que é o século das Luzes? Foucault opõe Kant a Descartes dizendo: Descartes se limitou a um
eu [moi] universal. O sujeito do cogito é um sujeito qualquer, ao passo que o sujeito kantiano será sempre
um sujeito do eu no século das Luzes.8 Por que o problema histórico de Foucault está fundamentalmente
relacionado à pergunta “o que é hoje”? Precisamente pela noção de prática. É a noção de prática, a prática
é a única continuidade da história até agora, até o presente. O encadeamento de práticas é a única
continuidade histórica. Dadas as rupturas, mudanças nas práticas etc., é o elemento prática que vai desde
os tempos antigos, que vai do passado ao presente.
Isso me permitiria responder a uma pergunta que me interessa muito: em que sentido o que não faz
explicitamente parte de uma obra – era uma pergunta que Foucault tinha colocado muito bem, e também
Klossowski,9 sobre Nietzsche –, de que maneira as cartas de Nietzsche, por exemplo, fazem parte da obra?
Elas fazem ou não parte da obra de Nietzsche? A pergunta que eu faria é: em que sentido as entrevistas
de Foucault fazem ou não parte de sua obra? Se surgisse o problema da publicação de suas entrevistas,
que sentido elas teriam? Parece evidente para mim. As entrevistas sempre desenvolvem o aqui-agora que
corresponde a um livro. O livro tratando de um período histórico. Portanto, existe uma correlação estrita
entre entrevistas e os livros, e é isso que eu gostaria de começar antes mesmo de desenvolver de fato
minha análise: desenvolver a importância dessas duas perguntas: o que aconteceu em tal época? E hoje?
Haverá continuidade, mas uma espécie de continuidade subterrânea, sendo que só a prática pode capturar
essa continuidade – não como continuidade reflexiva. É por isso que Foucault não fala sobre isso em
seus livros. Mas a atualidade de seus livros vem do fato de que o aqui-agora se impõe com toda evidência.

8
Nos primeiros parágrafos de “Qu’est-ce que les Lumières?” Foucault diferencia o significado do presente para Descartes e
Kant. Ele afirma que, para Descartes, o presente é uma situação histórica na ordem do conhecimento e das ciências que orienta
suas decisões pessoais e de ordem filosófica. Porém, em Descartes não se encontra a questão kantiana, do que é precisamente
esse presente ao qual o filósofo pertence e que adquire sentido para a própria reflexão filosófica.
9 Deleuze refere-se provavelmente ao livro Nietzsche e o círculo vicioso, onde Pierre Klossowski vincula a biografia e o
pensamento filosófico de Nietzsche: a doença do corpo como sintoma e a cultura vivida, a saúde como trégua da luta, os
estados de depressão e o abandono às tonalidades da alma; em meio à efervescência de sua época, a Europa burguesa e cristã
da qual é sintoma e inimigo. Segundo Klossowski, “a euforia experimentada por Nietzsche ao sair de cada uma de suas crises,
de 1877 a 1881, o leva cada vez mais a escrutar as forças que se exprimem através das perturbações de seu organismo” (p.
35). É sabida a importância da noção de diagnóstico em Nietzsche (“de agora em diante, serei meu próprio médico”, diz ele
em carta à mãe), que guarda semelhança com a ideia foucaultiana da filosofia como diagnóstico do presente. Daí a referência
de Deleuze ao opúsculo kantiano.

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Por isso a coerência de Foucault do ponto de vista de sua vida e de seu trabalho me parece muito clara.
O que está acontecendo?
Consideremos o livro Vigiar e punir. Como vimos, essa obra lida com uma curta duração (do final
do século XVIII ao início do século XIX). Do que trata? Do direito penal e da prisão. Bom. Paralelamente,
nas entrevistas da época, do que Foucault se ocupa? Da prisão naqueles dias. Praticamente, Vigiar e punir
pode ser considerado o livro que diz respeito a uma prática. Qual? Nessa época, por volta dos anos 1970,
Foucault formou um grupo, chamado de “esquerdista”, que eu acho muito importante porque foi a única
formação depois do maio de 68, parece-me, que propôs um funcionamento muito particular – aqui
também é uma questão de prática. Trata-se do Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP).10 Digo que é
o único grupo esquerdista que funcionou, talvez eu exagere. De todo modo, ele se espalhou, uma vez que,
no modelo do GIP, formou-se um Grupo de Informação sobre a Psiquiatria, grupos de informação sobre
os imigrantes, e naquele momento houve um grande florescimento.
Entre os que falam hoje do maio de 68, não é bom o que eles fazem, uma espécie de fenômeno
intelectual, esquecendo-se de que era um fenômeno mundial e de prática mundial. E que o maio de 68
foi a expressão na França de algo que aconteceu ou aconteceria na Itália, no Japão, nos Estados Unidos
etc., e que agora não podemos pensar nesse período sem globaliza-lo.
Ora, o que se passa depois de 68? Houve reformação de grupos relativamente centralizados.
Lembro que o grupo Gauche Prolétarienne era muito centralizado. Havia chefes lá (risos), chefes que
queriam sangue. O que Foucault fez naquela época? Falo das práticas, mas não creio que seja um modo
de abrir parênteses. É muito difícil entender, vivê-lo hoje, se você não tiver ao menos um pequeno
pressentimento de que isso sempre permaneceu para nós: um problema prático.
Tenho a sensação de que primeiro houve uma avaliação de Foucault, uma avaliação prática: algo
vai acontecer nas prisões. Bem, é uma avaliação política. Em minha opinião é muito difícil entender
alguma coisa em política sem ser percorrido por essas avaliações: o que vai acontecer, hein? A impressão
de que algo iria acontecer nas prisões... Vocês me dirão que não é difícil, que houve movimentos. Sim,
os movimentos começavam. Mas retomo o mesmo discurso que fiz para a leitura: o difícil é dizer: isso é
importante, não vai abortar. Houve uma ótima avaliação de Foucault dizendo: há algo. Como se no torpor

10
Cf. Manifesto do GIP, assinado por Foucault e outros e distribuído para a imprensa em 8 de fevereiro de 1971. O GIP
decidiu se dissolver em dezembro de 1972. Vigiar e punir foi publicado somente em 1975, mas Foucault já tratara do tema da
prisão em seu curso A sociedade punitiva em 1973. Foucault multiplicará suas intervenções em favor dos presos políticos
(sobretudo do grupo maoísta Gauche Prolétarienne) ao longo de 1971. Cf., por exemplo, “Manifeste du G.I.P.”, “Sur les
prisons”, “Enquête sur les prisons: brisons les barreaux du silence” e “La prison partout”. In: Dits et écrits v. I, pp. 1042, 1043,
1044 e 1061 respectivamente, todos do primeiro semestre de 1971.

13
do pós-68, estranhamente, um fogo fosse reavivado, desta vez nas prisões, precedido pelo grande
movimento de prisões nos Estados Unidos. Foucault trabalhava sobre as prisões, parecia trabalhar
teoricamente sobre a prisão nos séculos XVIII e XIX, ele era muito sensível ao movimento das prisões
nos Estados Unidos, era muito sensível ao caso Jackson, 11 que foi de grande importância, e ele
pressentiu... algo vai acontecer na França.
A ideia de Foucault sobre o GIP consistiu na formação de um grupo não centralizado. Bom. Sob
esse aspecto, é uma descendência do 68, pois o 68 apresenta-se como um movimento não centralizado,
tem em vista ser um movimento não centralizado. Digamos imediatamente: um novo tipo de luta.
Guattari, antes de 68, lançou uma interpretação das formas de luta que surgiram, 12 a ideia de lutas
transversais, em oposição às lutas centralizadas do tipo clássico (isto é, centralizadas em torno de um
sindicato, em torno de um partido – tratava-se obviamente do Partido Comunista e da CGT).13 Parece-
me que maio de 1968 foi a explosão de uma rede transversal onde as lutas deixaram de ser centralizadas.
Então, um novo tipo de luta, veremos como é importante quando voltarmos à teoria. E o GIP foi formado
como? O que é uma luta transversal em oposição às lutas centralizadas? É uma luta em que não há
representantes. Ninguém é representado. Ninguém pode dizer: eu represento estes aqui.
Vejam, se vocês acreditam em filosofia, nunca pensarão que falar de uma crítica da representação
hoje em dia seja uma questão de intelectuais. Não podemos criticar a representação se não formos
sensíveis à prática que a crítica implica. A prática de tais críticas é muito simples, significa “nunca falarei
pelos outros”, “nunca acreditaria no representante de alguém”. Isso era estranhamente novo. Foucault,
eu acho – há pessoas que não têm o direito de criticar a representação, porque quando elas criticam a
representação, é realmente da boca prá fora, pois elas criticam a representação fingindo representar algo
ou alguém. Eu diria que é a crítica acadêmica da representação. Não há crítica senão a prática. Se eu
critico a representação como filósofo, eu também me comprometo com algo: não fazer parte de nenhuma
comissão. É simples assim: nunca representar nada, senão não funcionará. Como se pode dizer “a
representação não funciona, é preciso fazer uma filosofia que não seja uma filosofia da representação” e

11
George Lester Jackson foi um militante, ativista e autor de Soledad Prison. Preso aos 18 anos por roubar 70 dólares, passou
por diversos processos prisionais, até ser morto na prisão em agosto de 1971. Foucault prefaciou o livro de Bruce Jackson
Leur prisons. Autobiographies de prisonniers américains [In the Life: Versions of the Criminal Experience, de 1972], que
retrata o arquipélago carcerário estadunidense nos anos 1960 e 1970. Cf. “Préface” [1975]. In: Dits et écrits v. I, p. 1555.
12
Deleuze convidou Guattari para participar da última aula do curso, quando ambos discutem uma série de temas, dentre eles
o maio de 68, a história das lutas (anti)psiquiátricas na França e o caráter das lutas no 68. Cf. Deleuze e Guattari: um diálogo
sobre a subjetivação em Foucault. Online em: editorapoliteia.com.br/blog.
13
A CGT (Confédération Générale du Travail) é uma organização sindical próxima do Partido Comunista Francês. Note que
Foucault tem uma concepção diferente do significado de “transversal”, tanto do ponto de vista organizativo quanto epistêmico.
Cf. FOUCAULT, M. “Genealogia e poder”. In: Microfísica do poder, pp. 264 sq.

14
depois continuar tranquilamente a representar? [risos] Não é muito sério. Quero dizer, se pomos a questão
da vida e da obra, não é que tenhamos que ser consistentes a todo custo, mas não podemos ter ideias
muito boas se não percebermos que ainda estamos na representação quando dizemos “abaixo a
representação”.
O que Foucault captou? Ele compreendeu algo de crucial estudando as prisões. Ele percebeu que
as pessoas continuavam falando em nome das prisões e que os prisioneiros nunca falavam. Mas é preciso
repor essa colocação. Esses fatos não são antigos, mas as coisas mudaram muito, em poucos anos, porque
agora não é mais verdade, existem os pequenos textos no [jornal] Libération, por exemplo. Os
prisioneiros falam por si mesmos. Bom. Mas vocês sabem, mesmo depois de 68 foi chocante! Na TV,
havia sempre programas sobre as prisões, porque já era um assunto da moda. Estritamente todos falavam:
os advogados de esquerda, os advogados de direita, os visitantes da prisão, eles eram incríveis, muitas
vezes eram senhoras maravilhosas e tudo isso, juízes, pessoas na rua, o porteiro... Qualquer um, exceto
os prisioneiros. E mais: exceto antigos prisioneiros. Havia só uma pessoa que não tinha permissão para
falar sobre a prisão: a pessoa que lá estava.
A crítica à representação significava: os presos não precisavam de representantes para dizer o que
tinham a dizer. Era preciso simplesmente organizar um grupo. Um grupo transversal. Um grupo não
centralizado. Eles começaram com uma hipótese de trabalho: Foucault e outros elaboraram um
questionário – quero dizer o que era uma prática para Foucault. Parece engraçado, mas não é, porque o
questionário, o que fazer com ele? Onde o colocaria? Primeiro, ele faz seu questionário, uma série de
hipóteses, e depois são os prisioneiros que respondem e reescrevem o questionário. Como é construída
uma rede? Não é segredo: teve que entregar o questionário às mulheres e pais que faziam fila para visitar
os prisioneiros. Eles se perguntavam o que as pessoas eram. É óbvio que os guardas entenderam
rapidamente, e assim que tiveram uma cópia do questionário, tudo começou a dar errado. Bem, era uma
prática e Foucault constituía a sua. Ela começou nas filas das prisões, nos desfiles de pessoas que faziam
fila e, muitas vezes, bem, são como todo mundo, não querem história, não entendem como, é estranho o
que lhes perguntam, e então, se lhes for pedido que passem o papel para os próprios prisioneiros ou que
eles mesmos respondam... Então, pouco a pouco, funcionou. Foram necessárias equipes... não foi
centralizado, não foi piramidal, havia um grupo, outro grupo, relação transversal, as pessoas que faziam
fila nas prisões. Bom e depois os grupos se espalharam, houve até um terceiro grupo, juntaram-se ex
detentos. Foi uma grande contribuição, com tensões, relações de poder, não foi fácil. Quando os ex
prisioneiros falavam, havia tensão entre eles, havia relações de poder – que já davam razão a Foucault!

15
–, houve relações de poder em todos os lugares. Havia um prisioneiro entrando, ele foi o primeiro a
chegar. Bom. Ele tinha prestígio e Foucault teve seu prisioneiro [risos] ao mesmo tempo em que foi o
grande desfile de tudo isso... o departamento de filosofia tinha seu trabalhador [risos] e havia o prisioneiro
de Foucault. Quando o segundo prisioneiro chegou, ficou com ciúmes do primeiro! E Foucault sabia
muito bem disso, organizou tudo. Mas foi muito cansativo. Nova relação transversal com um novo grupo,
ex detentos.
Em seguida era preciso procurar os advogados, os magistrados. Então, no sindicato da magistratura
a rede deslocava-se, com novas relações de força, relações de poder, tudo isso. Isso transbordou, houve
movimentos nos países vizinhos; e depois transbordou nas províncias. E não foi necessário restaurar uma
organização piramidal. Como fazer? como fazer, por exemplo, que o GIP em Lyon fosse absolutamente
senhor de suas iniciativas, da coleta de dinheiro, dos folhetos, tudo isso? E especialmente que fossem os
prisioneiros a falar. Não é fácil buscar prisioneiros nas prisões para que falem, não é nada fácil.
Houve uma inspiração de Foucault, que então fez os grupos de perguntas sobre asilos, asilos
psiquiátricos, nos hospitais psiquiátricos. Tudo isso se desenvolveu. Eu tenho a hipótese de que uma das
razões do silêncio de Foucault, do tipo de depressão, do declínio da esperança, mais tarde, muito mais
tarde, foi o que podemos chamar de o fracasso desse movimento, o fato de que, por volta de 1971-1972,
muitas pessoas sentiram que, como a pressão fora grande, algo mudaria no sistema penitenciário. E
depois que isso fez parte do pós-68, quando a tampa se fechou, foi, foi... houve mudanças, não podemos
dizer que elas não existiram. Acho que houve muito mais do que Foucault pensava, mas Foucault, que
teria gostado que houvesse mais, ficou bastante abatido com o que considerou (errado, em minha opinião)
como um fracasso. Mas num ponto, vou acrescentar – vocês vão ver para onde estou indo – tudo isso em
um ponto, gerou muito interesse em fazer uma conexão com os movimentos americanos. Se essa rede de
GIP cresce, leva uma espécie de transversal, sempre uma espécie de relação de transversalidade, com a
América. O que aconteceu? Aqui encontro metáforas espontâneas: estava quase sozinho, eis que surge
Jean Genet. Genet, que era muito próximo dos Panteras Negras, que não era um intelectual refletindo
sobre as prisões, mas uma experiência notória e sólida de prisioneiro, desempenha muito bem seu papel.
Genet não atua no GIP como um autor ou intelectual de prestígio. Sem dúvida houve prestígio,
obviamente, mas é ativo e não como intelectual. É como um intermediário com os Panteras Negras. Eu
quero chegar a isso: existem três problemas práticos do aqui e agora. E sem esse longo parêntese no GIP,
não conseguiria identifica-los. Primeiro, que novo tipo de luta, se houver, que novo tipo de resistência ao
poder. Vocês me dirão: mas você fala sobre resistência ao poder antes de falar sobre poder. Sim, isso não

16
importa. Existem focos [foyers] de poder, lugares de resistência ao poder, e viveiros de resistência ao
poder são viveiros de poder. É óbvio. Bom. Quando digo resistência ao poder, digo poder. Então: um
novo tipo de vida, hoje, aqui e agora, qualquer que seja o tempo. Segunda pergunta: Existe um papel
particular hoje, aqui e agora, para o intelectual? Outra pergunta: aqui e agora, o que significa ser um
sujeito? Por que digo que são essas as três perguntas? Deixe-me ir devagar. Se vocês olharem atentamente
para essas três perguntas, eu diria: uma obviamente diz respeito ao poder (qual novo tipo de luta, hoje?);
a segunda obviamente diz respeito ao saber (qual é o papel do intelectual?). E a terceira pergunta?
Tudo isso não está na cabeça de Foucault, assim como o maio de 68 não está na mente dos
intelectuais. O que é então? É preciso voltar muito no tempo, isso faz parte de nossa história. O que faz
parte da nossa história, penso – faço uma história muito breve, mas... –, tudo o que começa a se mover a
partir e em torno dos anos 1950. Em função de quê? Da experiência e do rompimento ocorridos na
Iugoslávia. Esta é a grande data do primeiro questionamento do centralismo, parece-me, nos países
comunistas. O que está presente neste momento é a experiência da autogestão iugoslava. Com um
teórico-praticante: Djilas, que naquele momento é companheiro de Tito, e que Tito poria na prisão mais
tarde. Foi a ruptura da Iugoslávia o grande detonador. Desde a ruptura Iugoslava a questão que sem
dúvida era subjacente explodiu na forma de uma nova política não centralizada, e da possibilidade de se
instaurar lutas de um novo tipo num país capitalista. O tema da transversalidade começa a surgir em 1950.
Se o ponto de partida – finalmente, a grande partida – foi a experiência iugoslava, por quais
caminhos ela se espalhou? Não foi por um movimento de cima para baixo, ela se espalhou por redes, por
linhas quebradas. Passou pela Itália, e a reinterpretação do marxismo pelos italianos, especialmente por
um italiano – veremos, porque está bastante ligado a Foucault – que eu acho muito importante chamado
Mario Tronti, que era membro do Partido Comunista e tentou uma reinterpretação do marxismo de acordo
com as condições italianas. Quais eram as condições italianas? As condições econômicas italianas eram
muito diferentes das da Iugoslávia, mas a existência de um tipo de mercado duplo na economia italiana,
um setor negro, trabalho temporário, trabalho negro etc. que havia tomado na Itália, muito cedo, uma
espécie de forma institucional, era fundamental para a formação do tema da autonomia. Esse tema partiu
de Tronti. Também foi atravessado pela ideia de uma nova forma de luta não centralizada. Ora, desde o
início, esse tema das lutas transversais, não centralizadas, inspiradas na autogestão da Iugoslávia e em
seguida na autonomia italiana, foi misturado a uma pergunta mais confusa e mais difícil, que era algo
como: rumo a uma nova subjetividade.

17
Somos sujeitos da mesma maneira que há 40 anos, 50 anos? O que significa ser sujeito? Podemos
tentar nos libertar da centralização sem que sejamos sujeitos de uma nova forma, sem que haja um novo
estilo de subjetividade? E Tronti foi muito longe ao reintroduzir uma nova subjetividade no marxismo.
Para ele o marxismo foi a promoção de uma nova subjetividade. Com Tronti, é claro, havia um certo
vínculo com a Escola de Frankfurt. Tudo isso é muito complexo. Mas, ao mesmo tempo que na Itália, e
um influenciando o outro, houve o equivalente na França com Sartre. Em torno de Sartre havia o tema
“em direção a uma nova classe trabalhadora”. Em particular com um próximo de Sartre, cujo um dos
pseudônimos era Gorz.14 Com Gorz surgia o tema “para uma nova classe trabalhadora”, um duplo sentido
de novas lutas, novas formas de luta e resistência ao poder e uma nova subjetividade.
Na própria França, outros grupos antes de 68 desenvolviam essas questões. Essa tripla questão:
novas formas de luta, novo papel do intelectual, nova subjetividade. Parece-me os três grandes polos do
que gira em torno de 68, do que eclodirá em 68 – e novamente essas são questões teóricas somente se
você não perceber que elas não esperam respostas teóricas, mas se fazem praticamente. Elas se
desenhavam praticamente na história. Na França, também serão as três perguntas. Havia Sartre, mas
também havia [a revista] Socialismo e Barbárie, que girava bastante em torno dessas três perguntas;
havia também o situacionismo e finalmente os dissidentes do PCF, a saber, A Via Comunista. Havia Félix
Guattari, que lançou seu tema da transversalidade e que já lançava seu tema de uma micropolítica do
desejo. Obviamente haverá um eco em Foucault quando ele lançar seu tema da microfísica do poder.15
Vejam como precisamente as lutas transversais não centralizadas secretam um tipo de elemento que deve
ser analisado. Microfísico, uma micropolítica.
Pois bem, é aqui que eu queria chegar: com as devidas ressalvas, as três perguntas correspondem
às três famosas perguntas kantianas: o que posso saber? – Crítica da razão pura –, o que devo fazer? –
Crítica da razão prática –, O que posso esperar? É preciso admirar a perspicácia de Kant quando ele
pensou que essas eram as três questões fundamentais, pois muitos anos depois tornamos a elas. O que
devo fazer, ou seja, quais são os novos tipos de lutas hoje, quais são os novos focos de resistência ao
poder? O que posso conhecer ou saber, isto é, qual é o papel do intelectual? O que posso esperar, ou seja,
há uma nova subjetividade? Talvez vocês sintam que meu terceiro eixo está plantado aqui, ele está
nascendo neste terreno.

14
André Gorz (1923-2007), vinculado ao existencialismo sartriano, rompeu com ele em 1968 e passou a se interessar por
ecologia política. Foi autor de livros sobre a questão operária no capitalismo. É autor do belíssimo Lettre à D. Histoire d'un
amour.
15
Cf., por exemplo, FOUCAULT, M. “Verdade e poder”. In: Microfísica do poder, p. 35. É uma entrevista concedida por
Foucault em junho de 1976.

18
Então, o que Foucault fará? Não é de maneira alguma, eu acredito, diminuir a profundidade de sua
originalidade dizer que Foucault é o último a retomar todas essas perguntas para levá-las a um ponto em
que jamais haviam sido levadas. Mas essas questões têm sua origem em 1950 e cruzam o marxismo
italiano, iugoslavo, os círculos sartreanos e os do maio de 68. Foucault as ecoará após 68 e talvez na
primeira pergunta (novos tipos de lutas) ele não trará – ele expressará esse tema com muita força –
novidade muito radical. Será muito mais pelo fato de tê-la feito prática, ou seja, ter constituído o GIP sob
a forma de um novo tipo de luta. Mas as lutas transversais das quais Foucault, no final de sua vida,
recapitulará os caracteres principais, acredito que não seja o mais novo nele. Por outro lado, para as duas
outras questões (papel do intelectual e renovação), propôs o seguinte esquema que me parece de grande
valor histórico: terminou o tempo em que o intelectual era o guardião dos valores.16 Na verdade, não tinha
terminado porque a velha figura do guardião intelectual dos valores na forma do guardião intelectual dos
direitos humanos iria se despertar, ressuscitar. Mas Foucault pôde pensar em certo momento que essa
figura do intelectual desaparecera. E ele opôs a essa antiga figura do “intelectual universal” o que ele
chamou de “intelectual específico”. Ou que podemos chamar de intelectual singular se tivermos em
mente o tema da singularidade em Foucault. O intelectual não agia mais em nome da própria
universalidade, mas em nome de sua especificidade ou singularidade. O que isso significa?
Se vocês perguntassem quando o intelectual começa a ser portador de “universal”, seria preciso
fazer muito muito bem a história, e eu não sei. Pode-se já dizer que o intelectual do Renascimento é
portador de um tipo de universalidade? Não sei, porque a universalidade é em primeiro lugar o
catolicismo. Então o intelectual católico, o clérigo católico já é uma figura do intelectual do universal?
Talvez, eu não sei, é muito complicado, mas enfim... No século XVIII, se você considerar as intervenções
altissonantes de Voltaire na política, há algo como um intelectual portador de universalidade. Em nome
de quê ele se intromete em assuntos jurídicos? Das Luzes, da justiça. Se eu der um grande salto na história,
pulo para Zola, em sua famosa intervenção no caso Dreyfus, apresenta-se explicitamente como guardião
dos valores da universalidade: nenhuma razão nacional pode justificar um julgamento falso, o tráfico de
provas. Mas seria preciso seguir adiante, e eu considerar ainda aqueles que tiveram um grande papel
intelectual, André Gide, quando denuncia as condições de um júri em um famoso julgamento da época,

16
Cf. ibid., pp. 45 sq., onde Foucault afirma que, assim como o proletariado, pela necessidade de sua posição histórica, “era
portador do universal”, havia a figura do intelectual “universal”, portador teorético da universalidade proletária e da qual
decorria o caráter da luta da classe proletária, igualmente universal. Porém, diz Foucault, há anos intelectuais “específicos”
estabeleceram “um novo modo de ligação entre teoria e prática”, não mais focada no “universal”, “exemplar” e “justo para
todos”, mas em campos específicos vinculados às suas condições de vida e trabalho. Assim, Foucault caracteriza as lutas de
sua atualidade como “transversais”: não se dão em nome de toda uma classe, mas de grupos específicos (tais como gênero,
raça), de questões específicas e num marco geográfico e temporal limitado.

19
as condições da justiça, o trabalho colonial: são intervenções de grande intelectual, têm um grande
impacto e que nunca serão perdoadas: sua homossexualidade, ele teria sido perdoado mil vezes na época,
mas a história do Congo era mais difícil de lhe perdoar. E mais recentemente, Sartre. Não é errado nem
hostil afirmar que em Sartre havia algo relativamente próximo a Voltaire ou Zola. Que a coragem desse
homem passou... talvez em Sartre houvesse ambos: o nascimento de um novo papel do intelectual e a
manutenção e o acabamento da antiga figura do intelectual guardião dos valores do universal. Mas há
um momento da análise de Foucault em que ele se situa no nível da bomba atômica, quando os físicos
intervêm contra a bomba atômica. Seu ato foi muito curioso, não era em nome dos valores do universal,
era em nome de sua situação específica, de físicos: “nós, que sabemos do que estamos falando, afirmamos
que...”. O intelectual não reivindicou valores (justiça etc.), mas sua situação específica: “nós que fizemos
a bomba, sabemos disso e eis o que estão lhes escondendo”. Da sua situação singular, do fundo do
laboratório onde estavam... era uma nova figura do intelectual que Foucault capta muito bem. Quando
Genet ia falar sobre prisões, não era em nome da lei e dos valores eternos, mas em nome de sua
experiência singular, que podia estar ligada à experiência singular dos Panteras Negras na América, dos
franceses na prisão e assim por diante. Era em nome da singularidade, de sua própria singularidade
intelectual, que o intelectual podia falar. De certa forma, não era mais em nome de direitos, mesmo se
eram os direitos do homem, eram em nome da vida e de uma vida singular.
Então, eu realmente acredito que em Foucault as três perguntas estão reunidas. Pela última vez
agora, não pela última vez para sempre. Mas o momento atual é muito ruim, de modo que os problemas
se desuniram novamente em uma espécie de noite da não questão. Mas elas se reuniram pela última vez
da maneira mais forte em Foucault, e novamente não se tratava de reflexões abstratas. No horizonte da
questão “novos tipos de lutas” está a experiência do GIP. No horizonte de “existe alguma chance de uma
nova subjetividade”, certamente há a atração que sentia pelas comunidades americanas, o interesse por
formas tanto solitárias quanto comunitárias nas quais ficou muito claro que, para ele, de fato, o problema
da formação de uma nova subjetividade, concretamente, era uma maneira de se despir da identificação.
As formas de evitar a identificação eram tanto formas comunitárias quanto subjetividades de grupo. Os
grupos americanos hoje elaboram... Vocês sabem, as coisas são elaboradas na mediocridade, na nulidade
tanto quanto na grandeza, é, como disse aquele outro, ainda é uma porcaria [risos]... Nas comunidades
americanas de hoje, existe uma nova forma de subjetividade? Será muito esperto aquele que responder...
aqui também não são questões teóricas, é preciso ver.

20
Portanto, pode ser que, em sua própria vida, Foucault tenha passado de uma questão à outra, que
tenha descoberto muito tardiamente as questões práticas: as novas subjetividades. Ele tinha que entender
à sua maneira, e acho que ele entendeu mais profundamente a necessidade de uma nova situação dos
intelectuais. Daí as relações muito ambíguas entre Foucault e Sartre. Quero dizer, eram relações muito
boas, Foucault certamente tinha grande admiração por Sartre, mas nenhuma afinidade com o pensamento
de Sartre; ele tinha uma afinidade muito grande, veremos mais tarde, acho, com Heidegger, mas não com
Sartre; isso não o impede de nutrir respeito muito grande por Sartre, nem que entre eles tudo andasse
bem. Mas essa ambiguidade vinha de Foucault considerar Sartre a última figura do intelectual, e de que
Foucault pessoalmente tinha que viver sob outra imagem – não melhor, mas outra coisa – na medida em
que se considerava um intelectual, que aceitava ser considerado um intelectual.
PERGUNTA:[inaudível]
DELEUZE: Suponho que Foucault não queira dizer “em função de si” como indivíduo, a si mesmo como
pessoa. Não. Posso considerar que encarno singularidades, mas apenas as encarno. Então eu personifico
um pequeno número de singularidades, somos todos assim, hein? O que significa dizer um sujeito? Sem
dúvida, um sujeito é uma encarnação de singularidades. É a partir deste ponto que eu gostaria que vocês
intuíssem a presença do terceiro eixo, o eixo da subjetivação.
Então, finalmente estamos prontos. Volto a dizer que a única continuidade histórica dos tempos
passados para agora, qual é? É a prática. Em que sentido? Prática de luta, prática de saber, prática de
subjetividade. Isso estabelece a correlação entre as formações históricas e o aqui e agora. Pois, finalmente,
quando se faz a pergunta do aqui-agora, pode-se dizer: mas a história não foi perpetuamente feita por
lutas transversais? A história não era perpetuamente um tecido, uma rede de lutas transversais, antes que
essas lutas fossem centralizadas? O centralismo, a cada vez, não veio para recobrir sob sua pirâmide e
sufocar tudo o que tinha sido rico e o que havia sido criado em transversalidade, numa forma transversal?
Não quero convencê-los, apenas digo que, assim... não tenho simpatia pelo movimento surrealista, nem
pelo surrealismo porque vejo uma suja organização centralizada, com tribunal, excomunhão etc. O que
houve antes? Vemos a sucessão muito bem? Houve o Dada, houve o Dadaísmo, e o Dadaísmo é uma
rede. O dadaísmo é uma rede transversal que inclui todos os países, da Europa à América... O Dadaísmo
percorrerá o mundo todo, precisamente porque não é centralizado. Mas o que André Breton faz? Quem
ama André Breton que se corrija, hein? O que Breton faz? Recoloca a ordem, põe as coisas em ordem e
faz um movimento nacional, uma coisa bem francesa. O surrealismo cheira a francês. Ele cria seus
tribunais e lança suas excomunhões. Além disso, colocará todos em trabalho forçado para conhecer as

21
páginas da escrita automática e os joguinhos cretinos... e tudo mais. Bom. Ele coloca ordem. Ele faz disso
um centralismo francês. O Dadá não. Quero dizer, se houver uma política na arte ou na literatura, vocês
podem pegar este exemplo, porque foi realmente uma luta política. O Dadá se deixou comer, devorar
completamente, o Dadá não foi mais possível por causa da reordenação operada pelo surrealismo.
Bem, se é assim, podemos dizer que afinal as lutas transversais não datam de 68. Então damos um
grande salto na história. Ademais, trata-se de algo que Foucault pressentiu muito fortemente: na época
da Reforma, mas antes de Lutero fazer seu surrealismo, ou seja, sua centralização, antes que fizesse sua
reforma apoiado pelos senhores, houve todo tipo de lutas transversais envolvendo citadinos, camponeses
e assim por diante. O período da Reforma foi um grande momento de lutas transversais. 17 Então
descobrimos que talvez as três questões – os novos tipos de lutas, a situação do intelectual, os novos
modos da subjetividade – ocorreram sem cessar ao longo da história, e esta é a verdadeira continuidade
da história: somente a prática é a continuidade da história.
Podemos então dizer que tudo isso nos fornece as regras de precaução necessárias para pôr a
questão: quais são os princípios do poder em geral? Pois não mais corremos o risco de cair na resposta
baseada na centralização. O que procurei fazer... como se diz, qual a palavra para afastar o diabo?
LUCIEN GOUTY: exorcizar!
DELEUZE: exorcizar! Tentei exorcizar a resposta central para a pergunta “o que é poder?”. A única
resposta que pode convir é uma resposta transversal, que esmigalha o poder numa multiplicidade de focos
[foyers]. E qual será?
[interrupção na gravação. Provavelmente houve pergunta de um aluno]
... em Pierre Rivière que matou sua família... Como ele distribuiu o que concerne ao caderno –
imagem escrita ou sonora – e o próprio crime – imagem visual? Se haveria uma relação entre o enunciado
e a visibilidade, e saber se é possível encontrar uma solução original, sabendo-se que as soluções muito
originais foram encontradas no cinema para explicar as relações entre o visível e o enunciado. Sobretudo
porque, no caso do assassinato cometido por Pierre Rivière, assassinatos de Pierre Rivière... o caderno
em que ele narra toda a sua história tem um papel muito móvel, às vezes concebido como posterior ao
crime, às vezes como anterior etc. Há todos esses tipos de pergunta. Portanto, para o problema das
relações ver/falar, interessa-me muito rever o filme [de Allio], como Allio tratou cinematograficamente

17
Foucault trata as lutas na época da Reforma como “revoltas de conduta” no contexto mais amplo do pastorado cristão (cf.
FOUCAULT, M. Segurança, território, população, aula de 1º de março de 1978) e dentro da chave analítica do poder que
chama de “governo”, desenvolvida pela primeira vez neste curso, na aula de 1º de fevereiro. O curso foi publicado
integralmente apenas em 2008, mas o texto da aula de 1º de fevereiro já fora publicado na coletânea italiana Microfisica del
potere [1977, trad. bras.: Microfísica do poder] com o título “La governamentalità”.

22
as relações entre ver e saber? Mas para assistir ao filme é preciso que vocês não sejam muitos, senão não
haverá lugar [na sala].
ESTUDANTE: como assim?
DELEUZE: é assim, então vocês poderão ser numerosos. Bem, continuemos, é como se estivéssemos
voltando à questão: os princípios, o que é ... O que é poder? Bem, há princípios, obviamente serão
princípios de prática. Mas se existem princípios, o princípio que Foucault lembra o tempo todo, o que é?
Bem, estranhamente, nos textos de Foucault, não há muito estudo ao nível dos princípios, eu lhes dizia.
Existem algumas páginas... duas ou três páginas que vão muito rapidamente no início de Vigiar e Punir
páginas 30-33 e em A vontade de saber, páginas 108-112...18 Bem, vamos fazer o oposto, vamos nos
afastar do centro, mas apenas com a ideia de que sirva para sermos mais claros, e vamos dedicar mais
tempo a esta questão dos princípios sob os quais podemos pensar o poder.
Mas o maior desses princípios em Foucault, parece-me – ele lembrará o tempo todo em suas
análises concretas –, é: não devemos partir dos grandes conjuntos. O que é isso, grandes conjuntos? Bem,
no mundo moderno, são, por exemplo, as grandes instituições. Para avaliar o poder, não devemos tomar
as instituições grandes e prontas do tipo: o Estado, a lei, as classes. Finalmente, Foucault é o único que
criou uma teoria esquerdista [gauchiste] do poder, eu acredito. Ele não foi o único a propor, mas foi o
único a realiza-la. Por que não partir dos grandes conjuntos? Sem dúvida, porque os grandes conjuntos
já se dão todos feitos. O que é preciso mostrar são a gênese e o exercício. A lei, o Estado, as classes já
são entidades, por assim dizer, grandes demais. Isso explica imediatamente seu recurso à microfísica já
desde o início de Vigiar e punir. Uma vez disse que a microfísica consistia em dizer, no campo da ciência
física, que, para além dos grandes conjuntos – que são estatísticos, se eu fizer um resumo muito
rudimentar da microfísica –, para além dos grandes conjuntos estatísticos era necessário alcançar e
constituir uma ciência das moléculas corpusculares.
O que são, então, corpúsculos? Devemos compreender o poder no nível das moléculas e
corpúsculos e não no nível das grandes instituições. É isso que “microfísica do poder” significa acima de
tudo, algo muito simples na aparência, mas o que é esse poder molecular? O Estado, as classes, a lei,
18
FOUCAULT, M. História da sexualidade v. I: a vontade de saber. Trata-se das sessões IV.1 e IV.2. O curso de 1973, La
société punitive [2013] (trad. bras.: A sociedade punitiva), é rico em considerações de método. Cf. aulas de 10 de janeiro de
1973 e 28 de março de 1973. Nessa última Foucault afirma: “não creio que o poder possa ser descrito de um modo adequado
como algo que seria localizado no interior dos aparelhos de Estado. [...] Parece-me antes que o aparelho de Estado é uma
forma concentrada, ou ainda uma estrutura de apoio, de um sistema de poder que vai muito além e mais profundamente. [...]
Um sistema de poder que percorre a totalidade do corpo social. Ele não pode funcionar senão engrenado, ligado a poderes
distribuídos no interior das famílias (autoridade paterna), comunidades religiosas, grupos profissionais etc. E é porque
existiam essas microinstâncias de poder na sociedade que algo como esse novo aparelho de Estado pode efetivamente
funcionar”.

23
esses são poderes que chamaríamos de molares. Não e não! Para conceber o poder, precisamos ir às
moléculas. É uma metáfora. Eu leio A vontade de saber, página 120: “A análise em termos de poder não
deve postular como dados iniciais a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de uma
dominação”. Em outras palavras, a teoria do poder deve ser local, não global, deve ser molecular, não
estatística. “Estas (a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global de um domínio) são apenas
formas terminais”. Não é que não haja Estado, lei, mas porque são expressões estatísticas de uma agitação
de outra natureza. O poder é agitação molecular antes de ser organização estatística. Portanto, mais uma
vez, justifico apenas a expressão “microfísica do poder”. Mas se a palavra microfísica deve ser levada a
sério, é porque nela encontraremos a grande unidade microfísica, a saber, onda, corpúsculo. O poder não
é uma questão de grandes conjuntos, é uma questão de ondas e corpúsculos. Existem ondas políticas e
corpúsculos. Portanto, ele deve nos lembrar de algo ou alguém de quem Foucault, no entanto, nunca fala.
Hoje conto uma história, uma série de histórias que nos ajudarão.
No final do século XIX e início do século XX, dois sociólogos travam uma guerra incessante.
Diabo! É isso, literalmente. É preciso acreditar que havia não apenas a questão de saber, mas a questão
de poder. Um será esmagado pelo outro, mas, como sempre, aquele que foi esmagado é o melhor. Trata-
se de Durkheim, o grande Durkheim e de Gabriel Tarde. Gabriel Tarde é o fundador da microssociologia,
que desaparecerá da França e irá para a América, de onde voltará para a França, sem que se saiba que a
América estava apenas nos devolvendo o que nos levou. Ó dor! Bem, o que estava acontecendo entre
Durkheim e Tarde? Quando digo que Durkheim esmagou Tarde, foi uma guerra real e foi uma conquista
que fez Durkheim vencer, conquistando a educação primária, a moral secular e a universidade. Os
decanos eram durkheimianos. Quero dizer, estatisticamente, o número de decanos de faculdades que
eram durkheimianos... eles eram grandes funcionários do Estado. Tarde não era acadêmico de formação,
era um juiz de paz. Felizmente ele foi acolhido pelo Collège de France – havia uma oposição muito forte
entre a Sorbonne e o Collège de France na época –, ministrava seus cursos, que deviam ser maravilhosos,
mas... bem, sua influência... seus discípulos não durkheimianos foram massacrados, a ponto de se
retirarem para o direito e, muito estranhamente – hoje estou cheio de anedotas –, os discípulos de Tarde
foram muito importantes na formação de movimentos europeus e também em disciplinas jurídicas. Por
exemplo, um grande jurista chamado Aurioux, não o Aurioux jovem, mas seu pai – que tinha muita
importância na época dos acordos de Matignon, que teve influência política – era um discípulo direto de
Tarde. Tarde agiu em duas direções, ao lado dos acordos de Matignon e ao lado da Europa. Muito estranho.
Ele era federalista, anunciou a Europa federal. Isso não importa!

24
O que Durkheim estava fazendo? Se houve uma sociologia de grandes conjuntos, é isso. E como
Durkheim fundou a sociologia como ciência? Ele dizia: é muito simples, existem dois tipos de
representações. Há a representação individual, que diz respeito à psicologia, que não vale nada, aliás,
uh... e há as representações coletivas. Ambas são de naturezas diferentes. A sociologia é a ciência das
representações coletivas. Eu simplifico muito, mas a noção de representação coletiva é fundamental em...
Posso dizer que ela é tipicamente sociologia molar. É a sociologia do grande conjunto. E foi maravilhoso,
é muito bonita a sociologia de Durkheim, quero dizer, para quem gosta dela.
Tarde, o que ele dizia? Que sim, o que Durkheim dizia é muito interessante, mas as representações
coletivas, esses conjuntos grandes não nascem todos prontos. De onde vêm? Então Durkheim ficava
colérico, a pergunta “de onde vêm?” não devia ser feita e talvez ele estivesse certo. Mas Tarde voltava à
carga dizendo: “não, não, tudo o que é feito socialmente, não pressupõe os grandes conjuntos. Sob os
grandes conjuntos há correntes de imitação e há momentos de invenção. E acrescentava: veja, o que me
interessa é a maneira como um funcionário do ministério... faz sua rubrica. Há um momento, por exemplo,
há uma época em que muda o tipo de rubrica de um funcionário do ministério. Esta coisinha é uma
pequena invenção social. A sociedade é formada por correntes de imitação e movimentos de invenção,
há sempre pequenas imitações e pequenas invenções”. Vocês veem que eu nem faço teoria, só digo o que
interessa a Tarde. Bem, e o que é tudo isso?
Sobre isso recai o julgamento inexorável de Durkheim e dos durkheimianos: “morte a Tarde! Ele
quer trazer a sociologia de volta à psicologia”. De fato, ele quer explicar representações coletivas, isto é,
fenômenos sociais, por imitações e invenções. Ou seja: ele quer explicar o social pelo indivíduo; um
indivíduo imita outro, um indivíduo inventa. Vocês veem? Tarde nunca se destacou na França. No entanto,
ele dizia algo que não tinha absolutamente nada a ver com o que Durkheim o fazia dizer, porque em
Tarde a imitação social não vai de um indivíduo para outro, e a invenção social não depende de um
indivíduo. Então o que ele chama de imitação e invenção? É aqui que fica muito bonito. Então, o que ele
quis dizer? Que a imitação é uma onda ou uma corrente de propagação. É uma corrente de propagação.
Bem, aceitemos, podemos entender vagamente, vamos ver o que acontece. É uma onda de
propagação. O que é a invenção? Ela é um encontro entre duas correntes imitativas diferentes. Bom.
Invenção, está sempre na encruzilhada de duas ordens. Portanto, a imitação é uma onda de propagação
qualquer; a invenção é o ponto de encontro entre duas correntes, duas ondas de propagação. Então, é
claro, a questão... isso ainda não é nada. A questão que se torna séria é: tudo bem, mas entre o que e o
que se faz a imitação? De onde parte a corrente de propagação, para onde vai? Nós esperamos a resposta,

25
mas Durkheim lhe diz: “bem, veja, isso vai de um indivíduo para outro, então você faz psicologia. Você
pode dizer: a imitação é uma corrente de propagação, essa corrente de propagação só pode ir de um
indivíduo para outro, pois você rejeita as representações coletivas”. Porém, Tarde dizia que uma corrente
de imitação ou de propagação não vai de um indivíduo para outro. Vai de um estado de crença para um
estado de crença ou um estado de desejo para um estado de desejo. O que é propagado é crença ou desejo.
Vocês veem onde quero chegar? Não se trata de fazer uma sociologia da representação, e sim
fazer uma sociologia do que há sob as representações e o que elas pressupõem. O que a representação
pressupõe é crença e desejo. Uma representação não se propaga, é por isso que é necessário para
Durkheim que ela já esteja toda pronta. Mas crenças e desejos são inseparáveis das ondas de propagação,
e fazer a verdadeira sociologia, isto é, a microssociologia, é estudar as ondas de propagação de crenças
ou desejos que percorrem um campo social. Isso torna-se uma grande ideia, que não tem nada a ver com
psicologia, tem muito a ver com microssociologia. Crenças e desejos são corpúsculos sociais. Vejam a
força da crítica contra Durkheim: ele permanece nas representações, ele não vê o que está sob a
representação... A representação é um grande conjunto, é uma instância molar. Sob as representações,
existem os corpúsculos de crença e desejo, e os corpúsculos de crença e desejo são inseparáveis das ondas
de propagação, e a onda de propagação de crença e desejo é a imitação. Então é secundariamente que se
pode dizer que o crente imita alguém. Trata-se da conversão. Alguém se converte ao Cristianismo nos
primeiros momentos da Igreja, isso significa que o cristianismo como crença, ou seja, como molécula,
como partícula social, se espalha ao longo de uma onda de propagação. Essa é a imitação. A invenção
será a formação de um novo desejo no ponto de encontro de duas correntes de propagação de crença ou
de desejo, ou a formação de uma nova crença.
Detenho-me aqui. Eu sonho em fazer um curso sobre Tarde... É muito bonito, muito bonito, Tarde.
É a verdadeira microssociologia, ou seja, os americanos, eles nunca chegaram a esse ponto da não
psicologia. Sim, só Tarde conseguiu manter uma microssociologia, especialmente seu grande tema: as
representações nunca são quantificáveis, ao passo que existe uma quantificação social de crenças e
desejos. Ele faz uma grande teoria da quantificação social que envolve toda uma lógica, refaz tudo a
partir de sua microssociologia porque reprovará a lógica por ser uma lógica de representação, em vez de
ser uma lógica de crença e desejo. Mas agora, se a lógica se tornar uma lógica de crença e desejo, devemos
introduzir novos quantificadores na lógica, e Tarde esboça uma surpreendente lógica de crença e desejo.

26
Então, isso é para dizer a importância... Não quero de modo algum dizer que houve influência,
que em Foucault19 existe frequentemente um verdadeiro tom “tardeano”. Eu diria precisamente que a
imitação e invenção em Tarde correspondem exatamente – vocês entenderão mais adiante o que quero
dizer – ao que Foucault chama de relações de força, porque, digo imediatamente para evitar um mal-
entendido, para Foucault – ele é formal a esse respeito – as relações de forças não têm nada a ver com a
violência, ou seja, não conduzem, elas não se reduzem à violência. Elas têm uma natureza diferente. Por
que chamá-las de “relações de força”, se não podem ser explicadas pela violência? Porque as relações de
forças excedem a violência de todos os lados. Vocês entendem que, se as relações de força excedem a
violência, posso muito bem dizer: a imitação é relação de força, a invenção é relação de força, é evidente.
A imitação implica relação de forças entre o que imita e o que é imitado. A invenção envolve relação de
força entre as correntes cujo encontro produz a invenção. Bom. Digo que, com muita frequência, o tom
de Foucault lembra estranhamente Tarde. Foucault tem um gosto extraordinário, por exemplo, pelo que
ele chama... uma vez... há uma passagem em Vigiar e punir na qual ele fala das pequenas invenções
sociais e ele diz: o carro celular [voiture pénitentiaire],20 nunca falamos sobre isso, ele diz, mas é uma
pequena invenção engraçada. É claro que falamos do alto-forno, de grandes invenções técnicas e não das
pequenas invenções sociais. Acho que Foucault conhecia Tarde, acho que ele devia conhecê-lo, mas
ainda que não o conhecesse, seria um encontro incrível. Porque, aí, é quase um texto que seria assinado
por Tarde. O carro celular é como uma pequena invenção social, ao contrário das grandes invenções
técnicas, bem, é puro Tarde. Então, tudo isso apenas como ponto de partida. Vejam, as relações de poder
são relações moleculares, microrrelações entre elementos que funcionam como corpúsculos. Bem, é com
isso que teremos que lidar.
Sendo assim, ao tentar classificar corretamente os textos de Foucault, eu diria que a partir da sua
microfísica de poder podemos extrair seis princípios. Seis, é muito. Esses seis princípios são igualmente
denúncias do que ele considera como postulados nas teorias clássicas do poder. Assim, pudemos
identificar seis postulados denunciados por Foucault.
O primeiro princípio chamaremos de postulado da propriedade. Foucault nos diz: as teorias
políticas agem como se o poder fosse propriedade de algo ou de alguém. Mas o poder não é propriedade
de ninguém. Propriedade de quem? Bem, por exemplo, mesmo os marxistas, à primeira vista, em todo
caso, fazem do poder propriedade da classe dominante. Vigiar e punir, p. 31: “o estudo desta microfísica

19
Cf. DELEUZE, G. As formações históricas, aula de 5 de novembro de 1985. Existe uma única referência de Foucault a
Gabriel Tarde em “Linguistique et sciences sociales” [1969]. In: Dits et écrits v. 1, n. 70, p. 854.
20
Cf. FOUCAULT, M. Vigiar e punir, pp. 243 e 249.

27
supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia”.21
É a primeira vez que encontramos essa palavra, que se tornará cada vez mais importante em Foucault.
Em outras palavras, existe um funcionalismo absoluto do poder. O poder não se possui, não é uma
propriedade, ele é exercido.
Se vocês entenderam tudo o que foi dito, não isso não deve surpreendê-los, porque se é verdade
que o poder é fundamentalmente relação, então não pode ser propriedade. Se o poder é relação e se
levarmos a sério a expressão “relações de forças”, e se alguém disser “o poder é a própria relação”, não
pode ser propriedade. É exercido, ou seja, o poder é uma estratégia.
Bom, Estratégia, estratégia... Essa nova palavra deve nos fazer pensar o que? Mas muito cuidado,
não confundir estratégia e estrato. Pois o conhecimento se refere a estratos e estratificações, mas o poder
se refere a estratégias. Além disso, a estratégia aparece onde não há estratificação, onde não há
propriedade. As camadas sedimentares podem ser possuídas, o poder não é possuído, é exercido. Como
Foucault definirá a estratégia? “definem inúmeros pontos de luta, focos de instabilidade comportando
cada um seus riscos de conflitos, de lutas e de inversão pelo menos transitória da relação de forças”.22 É
bem forçado, mas não usa “foco de instabilidade” por prazer ou esperteza, mas porque no campo
micrológico, no campo microfísico, não há equilíbrio, por natureza é uma área que repudia o equilíbrio.
Os estratos estão em equilíbrio, o não estratificado nunca está em equilíbrio. Não há equilíbrio
corpuscular. Não há equilíbrio ondulatório. Não há equilíbrio microfísico. Não há estabilidade. Há
estabilidade apenas [do ponto de vista] estatístico, isto é, o estável, é o grande conjunto. Os grandes
conjuntos sim, são possuídos, mas vocês podem intuir que o poder é fundamentalmente difuso, fluente,
instável, no nível da microfísica.
No nível de grandes conjuntos, é claro que ele é possuído, é claro que é estável, que está em
equilíbrio. Mas essa não é a fonte do poder. Não é isso, precisamos chegar a essa camada microfísica que
não se deixa sedimentar, que é pura estratégia, não estrato, inúmeros pontos de enfrentamento, focos de
instabilidade, o que isso significa? O que são esses inúmeros pontos de confronto, esses focos de
instabilidade? Como vimos anteriormente, são singularidades, não indivíduos psicológicos. Tarde diria:
são quantidades de crença e desejo, são corpúsculos de crença e desejo, fundamentalmente instáveis,
fluentes, levados por ondas etc. Inúmeros pontos de confronto, focos de instabilidade. Em outras palavras,

21
Ibid., p. 29. Foucault acrescenta: “Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é o
‘privilégio’ adquirido ou conservado da classe dominante, mas o conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado
e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados”.
22
Ibid., p. 30.

28
as relações de forças são relações entre singularidades, são as ondas de singularidades. Assim como a
microfísica nos fala sobre ondas corpusculares, isto é, ondas que pilotam um corpúsculo, as relações de
poder conduzem singularidades.23
Ora, você ainda não terá feito nada se se apegar aos grandes conjuntos que essa microfísica
formará. Não se trata de dizer que grandes conjuntos não existem; os grandes conjuntos serão
efetivamente constituídos por essa microfísica. Em outras palavras, a microfísica constitui uma
macrofísica. Os grandes conjuntos, nada mais são do que fatos compostos desses corpúsculos e dessas
ondas, mas, ao mesmo tempo, os estratificam, ou seja, fazem grandes conjuntos dos quais não
consideramos senão os efeitos gerais. Os grandes conjuntos são o efeito geral da microfísica.
Tudo bem até aqui? Abro um parêntese novamente, pela última vez. Há uma coisa da qual
Foucault nunca fala. Faremos um pequeno teste de confirmação usando um exemplo diferente daqueles
de Foucault. Ele nunca falou de sociedades que chamamos de primitivas. Por que? Por uma razão muito
simples. Não é porque não gostava da etnografia, da etnologia, mas porque queria operar em séries curtas
e bem definidas, como vimos.24 Foucault tinha tanto horror com a história universal que receava cair em
uma espécie de visão universal da história se não desse exemplos de séries bem ordenadas e bem
determinadas. Mas, se não temos medo, podemos sempre tentar, pois gostaria de encontrar na etnologia
moderna o mesmo que ocorreu entre Durkheim e Tarde, porque afinal as mesmas histórias se reencontram.
Na etnologia moderna, é sabido que as sociedades primitivas são chamadas de sociedades sem
Estado. Foucault poderia dizer: sim, elas são talvez sem Estado, mas não sem poder. Bem, finalmente,
se as sociedades ditas “primitivas” não apresentam um grande conjunto que as exceda, elas ainda
apresentam grandes conjuntos. Quais são? São as grandes linhas de filiação. Como dizem os marxistas,
o parentesco substitui o Estado nas sociedades primitivas. Bem, as principais linhas de parentesco, as
principais linhas de filiação, que são chamadas precisamente de grandes linhagens. Eu diria que as
grandes linhagens nas sociedades primitivas são as representações coletivas de base ou, se vocês
preferirem, os grandes conjuntos. Nas sociedades modernas, os grandes conjuntos são o Estado e a lei,
para dizê-lo rapidamente.
Assinalo que uma obra tão admirável quanto a de Lévi-Strauss... Não falo de Mitológicas porque
neste livro talvez tudo mude, Mitológicas é uma história engraçada... Falo de As estruturas elementares

23
Nos termos de Foucault, as relações de poder se caracterizam como “agir sobre a ação dos outros” e “condução de condutas”.
Cf. FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”, pp. 291 e 294. A edição original deste livro em inglês é de 1982. Nesse texto
Foucault dá importantes indicações metodológicas sobre a análise do poder.
24
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 17 de dezembro de 1985.

29
de parentesco, livro já antigo. No nível e no momento de As Estruturas elementares de parentesco, não
há dúvida de que Lévi-Strauss elabora um estruturalismo baseado em grandes conjuntos, e evidentemente
existem apenas estruturas molares.
Aqui, notem que estamos no ponto em que talvez possamos confirmar nossas análises da
diferença entre Foucault e o estruturalismo. As estruturas estão fundamentalmente em equilíbrio. Um
desequilíbrio estrutural, bem, acontece, acontece, mas um desequilíbrio é sempre a estrutura em questão.
A estrutura enquanto estrutura designa um estado de equilíbrio. Em outras palavras, Lévi-Strauss o diz
explicitamente quando afirma que disfunções, desequilíbrios são consequências, consequências de outra
coisa. Portanto, Lévi-Strauss faz no nível das sociedades primitivas uma macrossociologia fundada nas
grandes linhagens de parentesco, as grandes linhagens de filiação. E o que ele nos diz? Que existem
relações entre as grandes linhas de filiação. Essas relações são as alianças – cujo caso privilegiado são
os casamentos –, casamentos e formas de troca entre uma linhagem de filiação e outra. Por fim ele nos
diz que, se considerarmos a totalidade das trocas em um espaço social suficiente, perceberemos que há
uma troca generalizada – é isso que ele chama de troca generalizada, diferente da troca restrita a duas
linhagens, a relação de duas linhagens – e que a troca generalizada forma um ciclo fechado: ciclo fechado
= estrutura.
Vários etnólogos reagiram e, mesmo dizendo que o trabalho de Lévi-Strauss, no nível das
estruturas elementares do parentesco, era muito admirável na sistematização dos dados da etnologia, mas
na opinião deles nunca uma sociedade primitiva havia funcionado assim. Funciona assim na cabeça de
Lévi-Strauss, tudo bem, mas nunca uma sociedade primitiva pode funcionar assim. Aqueles que se
opuseram a Lévi-Strauss invocaram um funcionalismo, uma prática: quais são as práticas sociais reais?
Em outras palavras, eram ingleses e estadunidenses. Em particular, um dos maiores etnólogos, com Lévi-
Strauss, era um inglês chamado, que ainda é chamado Leach, um grande etnólogo. Então, assim como
houve uma controvérsia entre Tarde e Durkheim, houve outra controvérsia entre Leach e Lévi-Strauss na
qual cada um mostrava um certo gênio na arte de não entender o que dizia o outro.
O primeiro ponto de Leach é que a grande preocupação das sociedades primitivas consiste em
fazer com que aquilo que acontece não se pareça com uma troca. Este é o seu primeiro tema: não deve
parecer uma troca, e quando lhes falamos de troca não ficam felizes. Por exemplo, para eles, uma mulher
não é trocada, nunca. Uma mulher é dada ou roubada ou, às vezes, as duas coisas. Deve ser roubo ou
doação. Mas a troca não é... É doar e receber, é doar que obriga e assim por diante, todo o tema bem
conhecido que Leach retoma à sua maneira. O que Lévi-Strauss, de certa maneira, reconhece ao dizer: a

30
troca é inconsciente. E a força de Leach está em dizer: mas por que ela é inconsciente? Se fosse troca,
por que eles se importariam tanto em esconder? É estranho, não há vergonha no trocar. Então Lévi-
Strauss é forçado a dizer: é porque, se reconhecessem que é troca, entenderiam que o ciclo está fechado
e não querem que o ciclo seja fechado. Leach diz: mas se eles não querem que o ciclo seja fechado, pode
ser porque ele não está fechado, ou seja, porque não há estrutura.
Bem, isso se torna interessante. Por que o ciclo não estaria fechado? Porque toda a hipótese de
Lévi-Strauss supõe que as relações de aliança são deduzidas de uma linha de filiação e decorrem das
linhas de filiação. Há primeiro as linhas de filiação e depois elas trocam alguma coisa. Eles trocam
mulheres, trocam produtos, títulos, emblemas. A troca é entre duas linhas filiativas. Bom. A aliança é
uma troca? Sim, a aliança é uma troca se ocorrer entre linhas filiativas, entre linhagens. Mas nunca uma
sociedade primitiva funcionou com base na linhagem. Linhagens, ninguém acredita nisso. Esquematizo
um pouco aqui. Nunca, elas nunca funcionaram assim, diz Leach. Elas funcionam de maneira bem
diferente. Eles funcionam, de fato, por alianças. Mas as alianças não são trocas porque não pressupõem
as grandes linhas de filiação, são feitas de maneira diferente e noutros lugares. As alianças não podem
ser deduzidas das linhas de filiação porque são autônomas. De fato, elas são, literalmente, trucadas,
manipuladas por grupos que Leach chama de grupos locais, os grupos locais de Leach, em oposição aos
grupos de filiação.25 Os grupos locais não recobrem os grupos de filiação, e são os grupos locais que
organizam casamentos. São os grupos locais que decidem sobre doações e retribuições.
Notem, muitos etnólogos tinham esse ponto de vista, mas é Leach que reúne tudo. Alianças dizem
respeito a uma prática. Há um etnólogo26 que dirá e que usará a palavra muito curiosa, ele dirá: não é
uma estrutura, é um processo [un procédé]. É uma questão de prática, de um processo. Digamos, de
passagem, uma estratégia. Uma sociedade estrategiza antes de se estruturar.
Diante disso Leach faz sua grande pergunta: a posição de um indivíduo no campo social deve-se
ao fato de ele pertencer à linhagem de seu pai ou à linhagem de sua mãe ou a ambas? Ou senão – o que
é completamente diferente –, a posição dele vem do fato do pai e da mãe serem aliados? É uma pergunta
muito boa, porque se vocês lerem atentamente As estruturas elementares do parentesco, verão que Lévi-
Strauss defende a primeira resposta. Se lerem Leach atentamente, o verão defender a segunda: a posição

25
LEACH, E. Rethinking Anthropology. London: Athlone Press, 1961, p. 38. Trad. bras.: Repensando a antropologia. Leach
argumenta, por exemplo, que o “local de residência poder ser um fator mais fundamental de agrupamento social do que a
linhagem”.
26
BERTHE, L. “Aînés et cadets: l’alliance et la hiérarchie chez les Baduj (Java Occidental)”. In: Homme, julho de 1965.

31
do indivíduo no campo social advém do fato de seus parentes serem aliados, de modo nenhum porque
ele participa das linhagens do pai, da mãe ou de ambas.
Em outras palavras, o tema perpétuo de Leach é: as grandes linhagens formam uma estrutura
vertical. É indiscutível. Lévi-Strauss é imbatível neste ponto e deu o status dessa estrutura vertical de
maneira definitiva. Mas a rede de alianças não pode ser deduzida dessa estrutura vertical. A rede de
alianças e, aqui, cito Leach de cor, a rede de alianças é uma rede lateral 27 ou, dito doutro modo,
transversal. Perpendicular, diz Leach, a estrutura, a estrutura filial, irredutível a essa estrutura, organizada
por pequenos grupos locais e constituindo não uma troca de ciclo fechado, mas em permanente
desequilíbrio, ou seja, constituindo um microssistema físico em instabilidade perpétua. De fato, alianças
são constantemente quebradas em favor de outras alianças etc. É no nível das alianças que você encontra
a microfísica do poder. Eu diria, nas sociedades primitivas, qual é a relação de forças? A relação de forças
passa pela rede de alianças irredutíveis à estrutura, irredutíveis à estrutura filial. Ainda mais, existe tal
oposição entre os dois, há evidências de que a rede de alianças não pode ser deduzida e sempre questiona
as estruturas filiativas, a ponto de estas serem retrabalhadas de acordo com a rede de alianças a qualquer
momento. Haverá um efeito e, finalmente, as linhas, as linhas de filiação traduzirão sempre o estado da
rede de alianças. Existe uma microfísica da aliança trabalhando sob a macrofísica da filiação. Em outras
palavras, existem as séries sob a estrutura. Vejam como Foucault, que não tem nada a ver com este
exemplo, pode opor estratégia e estrutura e dizer que um campo social não se define por uma estrutura,
mas pelo conjunto de suas estratégias.

Numa sociedade primitiva, as redes de alianças são realmente as relações de forças, e isso pode
envolver violência, mas não a implica necessariamente. As relações de forças são outra coisa. Se lhes der
uma coisa, já é uma relação de forças. Nós o sabemos bem, mesmo em nossa sociedade. Se eu lhe der
algo, é todo o sistema de doação e contradoação, mas dentro de uma relação de forças, seria tolice medir
uma relação de forças com a violência. Dou-lhe um presente, você diz: oh la la, o que ele me pedirá em
seguida? Você diz: não não, eu não quero, você é muito gentil, demais. Ou você diz: faço questão. Mas
que relação de forças! Ponho na sua mão, enfio no seu bolso: sim! Fique com ele! Não, eu não quero
isso! É uma fantástica relação de forças, não há violência. Enfim, não há violência aparente. Se a relação
de força fosse um soco na cara, mas seria... o mundo seria tão claro! Mas, não é nada disso!
Compreendam, um homem e uma mulher, se relação de força fosse simplesmente o momento em que
dizem coisas duras, se batem... mas o mundo seria encantador! Então viva Tarde, viva a microssociologia

27
LEACH, E. Rethinking Anthropology, p. 122.

32
de Tarde! Porque fazer sociologia, precisamente, é isso, é compreender as relações de forças. Não tem
nada a ver com psicologia.

Tudo o que quero dizer é: vejam em que sentido Foucault pode dizer – e tomei esse exemplo de
sociedades primitivas, novamente, que não corresponde a nada em Foucault – que nas sociedades
modernas não é diferente. Aqui também, a rede de alianças excede infinitamente as principais instâncias
como o Estado etc. Se vocês considerarem o que chamaremos de família importante, a rede de suas
alianças, verão como isso vai além das instituições. É necessário usar eventos recentes, o que é mais
surpreendente e alegre do que o caso Boutboul? [risos] É uma maravilha, o caso Boutboul.28 É uma
maravilha, o que você vê? Lá você pode fazer sua rede transversal: esposa jóquei, então eu coloco aqui,
mulher jóquei. Um marido advogado, advogado, mas com raças mistas, então eu faço minha linha lá,
cruzo. Bom. Marido assassinado. Bem, com isso, uma sogra, advogada, estranha, expulsa da ordem, um
advogado deu o fora. Ahh, ela está em contato com... – então a rede tende a um ramo que vai ao infinito
– com as missões dos jesuítas. Eles são jesuítas, o que estão fazendo lá? Foram eles que cancelaram o
[registro de advogada]... Em seguida, o advogado está morto, então quem é? Foi a sogra que matou o
advogado ou é o jesuíta visto pela sogra, ela diz que os jesuítas são terríveis assassinos [risos]... Bom:
uma mistura. Arranjos sociais são misturas e têm estratégias de todos os lados. As declarações da sogra,
Madame Boutboul são declarações de alta estratégia, é evidente. Todo mundo estrategiza e depois nos
mostram na TV. É realmente o programa de variedades no estado puro... Ah! Esqueci o pai morto no
canto dele! Então, por que ele estava [fingindo estar] morto? Ele faz sua estratégia, ele diz: ah, é porque
eu estava separado da minha esposa, então não era necessário que a menina sofresse. Isso é muito
estranho.

CLAIRE PARNET: Ele fez uma declaração ainda mais estranha, dizendo que aos 45 anos não dominamos
nossas ações como aos 73 anos, então não sabemos a que idade isso começa!
DELEUZE: oh sim, isso também é bom. Para não machucar a menininha ele fingiu estar morto, em vez de
fingir estar separado da esposa, é muito interessante! É uma alta estratégia. Bem, é assim que um campo
social funciona, uma sociedade. Isso é bom. Tudo isso para concluir: uma sociedade, sim, é estratégica.
Portanto, entendam, a consequência é realmente grande: o poder não é propriedade de ninguém, é o
exercício de todos. É isso que significa estratégia, o princípio estratégico. Começamos a entender como

28
Famoso caso policial que culminou em 27 de dezembro de 1985 com a morte do advogado Jacques Perrot, marido de uma
jóquei, cuja mãe, Marie-Élisabeth Cons-Boutboul, advogada cassada pela Ordem, teria assassinado Perrot porque temia que
suas escroquerias com uma missão de jesuítas fossem denunciadas pelo genro. Anteriormente, Marie-Élisabeth se separara
do marido, pai da jóquei, mas forjaram a morte deste para manter as aparências.

33
a estratégia se opõe à estrutura, mas, de maneira mais fina e profunda, se opõe aos estratos.

Segundo princípio: localização. É o segundo postulado denunciado, ou seja, a tendência de


localizar poder em um aparelho. Aqui, Foucault, obviamente se contrapõe às teses de Althusser, que, na
mesma época, em um texto muito bonito, mostrou ou tentou mostrar que mesmo os poderes privados
tinham apenas uma aparente dispersão e funcionavam como aparelhos de Estado especiais.29 Foucault é
a antítese, literalmente, dessa ideia. Aqui não trato da pergunta – a que leva essa diferença entre Althusser
e Foucault? – porque devemos voltar à maneira como Althusser colocou o problema. Quero apenas
sublinhar o ponto de vista de Foucault, de que até os poderes públicos têm origem, têm processos,
exercícios, ou seja, tudo o que é essencial ao poder, que o Estado sem dúvida controla ou recobre, mas
não constitui. Vejam em que sentido é o anti-Althusser. Althusser dizia: mesmo os aparelhos, mesmo os
poderes privados são aparelhos de Estado especiais. Para Foucault, mesmo o aparato estatal gerencia
apenas os processos de poder que vêm de outros lugares. De fato, vocês adivinham o porquê: se o
aparelho estatal é um elemento que constitui os grandes conjuntos, se forma grandes conjuntos, o
aparelho de Estado, por definição, pressupõe as relações de poder, não as explica. Ele supõe relações de
poder vindas de alhures.

Aqui Foucault é muito forte, tem evidentemente exemplos muito concretos. Ele diz: pegue uma
engrenagem no aparato estatal como a polícia. Bem, é óbvio. Uma engrenagem no aparato estatal como
a polícia... Seria fácil demais se tomasse instituições mais ambíguas. Mas, se algo pertence, parece
pertencer ao Estado e fazer parte de seu aparelho, é a polícia. Todos aqueles que definem o Estado como
monopólio da força assim o entendem. Bem, ele diz, não. Se olharmos concretamente para as técnicas
policiais, veremos que os processos de poder policial são por natureza, não por exceção, constantemente,
sempre e até mesmo na origem, cobertos pelo Estado, reutilizados pelo Estado, mas o Estado não é
absolutamente a origem. A polícia tem suas técnicas de poder, a polícia tem seus processos de poder.
Vocês me dirão: mas então, o que quer dizer a polícia? Bem, há focos de polícia que se revelam já no
nível das comunidades sem aparato estatal. Vocês dirão: sim, mas há a comunidade, sempre há outro
poder. Não necessariamente. De qualquer forma, mesmo quando existe outro poder, a polícia se define
por sua independência com relação aos outros focos de poder. Ela própria é uma fonte de poder
autônomo, sempre foi, é assim que ela afirma trabalhar. O Estado, de fato, pode globalizar o poder da
polícia ou pode se apropriar deles. Os poderes policiais não vêm do Estado. Da mesma maneira, Foucault
mostrará o porquê. Porque os poderes da polícia são poderes disciplinares e as disciplinas sempre

29
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado.

34
precederam o momento em que o Estado os apropriou. O Estado se apropria das disciplinas, não está na
origem das disciplinas. As disciplinas da escola, do exército, as disciplinas particulares, as disciplinas da
Igreja etc. sempre precederam o Estado. As técnicas disciplinares são recuperadas pelo Estado. Eles não
encontram sua origem no Estado.

Em Vigiar e punir Foucault mostrará a mesma coisa, especialmente sobre a prisão. Como vimos,
a prisão não faz parte do horizonte do direito penal, ela é irredutível ao poder jurídico, é relativamente
independente do poder jurídico. Ela tem seu próprio poder, poder da prisão, com o qual o juiz e a lei não
têm nada a ver. É o que Foucault chamará de “suplemento disciplinar”.30 Nessa técnica disciplinar, não é
tanto que a prisão seja uma engrenagem do Estado, mas sim que o Estado recobre a prisão.

Em outras palavras, observem, aqui o poder não se deixa localiza em um aparelho. É preciso prestar
atenção à palavra “local”, porque Foucault a usará em dois sentidos. Não há contradição entre esses dois
tipos de sentenças de Foucault: “o poder não pode ser localizado, ou seja, é difuso, significa que o poder
não pode ser localizado, é difuso, ou seja, se espalha no campo social” e “o poder sempre consiste em
focos locais”, a afirmação do caráter local do poder, o que significa, desta vez, que o poder nunca é
global. Ambas são perfeitamente coerentes. Não é localizado porque é difuso, mas é sempre local, pois
o global são os grandes conjuntos, e o poder, as relações de poder operam sob os grandes conjuntos.

Terceiro postulado denunciado por Foucault: postulado da subordinação. É o postulado segundo o


qual o poder está subordinado a um modo de produção como infraestrutura. Ou seja: haveria relações de
produção que definem uma infraestrutura, e o poder, que seria apenas político, expressaria essa
infraestrutura, qualquer que fosse a complexidade dessa expressão. A ideia de Foucault é muito simples:
não se pode falar de relações de produção sem já colocá-las e sem entrelaçá-las com relações de poder.
Portanto, as relações de poder obviamente não decorrem das relações de produção, porque não existem
relações de produção definíveis independentemente do entrelaçamento que elas têm com as relações de
poder.

Voltemos então ao exemplo em nossas sociedades primitivas. As relações de produção são


estritamente inseparáveis das relações de aliança, da rede transversal da qual acabamos de falar, pois essa
rede transversal de alianças determinará quem trabalha para quem, quem são os membros de tal filiação
que trabalha com quais membros dessa outra filiação. É simples assim: recusa de qualquer subordinação
das relações de poder às relações chamadas de “econômicas”.

30
FOUCAULT, M. Vigiar e punir, p. 257.

35
Quarto postulado: postulado de essência ou do atributo. O poder teria uma essência e seria um
atributo, e Como atributo, qualificaria aqueles que o possuem, os dominantes, distinguindo-os daqueles
sobre os quais é exercido, os dominados. A resposta de Foucault – aqui eu posso ir rápido – afirma que
o poder não tem essência, é funcional, operatório. Ele não tem essência nem interioridade, não é um
atributo, é uma relação. É por ser relação que não é um atributo. Em outras palavras, a relação de poder
é o conjunto de relações de força em um campo social e, portanto, o poder não passa nem pelas forças
dominadas nem pelas forças dominantes. Vejam: não é um atributo que distingue o dominante e o
dominado, é um relacionamento que relaciona o dominante com o dominado e o dominado com o
dominante. Eis um extrato de A vontade de saber ou de Vigiar e punir, não sei mais: “Esse poder, por
outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que ‘não têm’;
ele os investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra
esse poder, apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança”.31

Usei o exemplo da prisão para o postulado anterior. Eis agora um dos exemplos mais precisos
analisados por Foucault, o exemplo das lettres de cachet, das quais já lhes falei.32 As lettres de cachet –
que são realmente uma instituição própria da monarquia francesa, acredito que, segundo Foucault, não
havia equivalente no período – aparentemente indicam uma transcendência do poder. Elas são
frequentemente apresentadas como a expressão da pura arbitrariedade do rei, independentemente de
qualquer procedimento investigativo, o rei decide a prisão, a internação de alguém e, sem dúvida, isso é
verdade em alguns casos, isto é, no caso, em particular, de grandes senhores. Mas a técnica da lettre de
cachet é completamente diferente. O que ela mostra? Que o processo verdadeiro da lettre de cachet é
este: um membro da família, um vizinho, um colega, um colega de trabalho, qualquer coisa, envia uma
solicitação e diz: um tal é completamente louco, é preciso trancá-lo. Coloque-o na cadeia, meu Senhor.
Nesse caso, há investigação, não é a arbitrariedade do rei, é a maneira pela qual os dominados participam

31
Ibid., p. 29.
32
Cf. DELEUZE, G. Michel Foucault: as formações históricas, aula de 29 de outubro de 1985. Na França pré-Revolução, as
lettres de cachet eram cartas assinadas pelo rei e lacradas com o selo (cachet) real. As cartas continham ordem emitidas pelo
rei em resposta a um demandante, frequentemente para forçar ações, contra as quais não havia apelo. “Ao examinar as lettres-
de-cachet mandadas pelo rei em quantidade bastante numerosa notamos que, na maioria das vezes, não era ele que tomava a
decisão de enviá-las. Ele o fazia em alguns casos como nos assuntos de Estado. Mas a maioria delas [...] eram, na verdade,
solicitadas por indivíduos diversos: maridos ultrajados por suas esposas, pais de família descontentes com seus filhos, famílias
que queriam se livrar de um indivíduo, comunidades religiosas perturbadas por alguém, uma comuna descontente com seu
cura etc. [...] De forma que a lettre-de-cachet se apresenta, sob seu aspecto de instrumento terrível da arbitrariedade real,
investida de uma espécie de contrapoder, poder que vinha de baixo e que permitia a grupos, comunidades, famílias ou
indivíduos exercer um poder sobre alguém. [...] A lettre-de-cachet consistia, portanto, em uma forma de regulamentar a
moralidade cotidiana da vida social, uma maneira do grupo ou dos grupos – familiares, religiosos, paroquiais, regionais, locais
etc. – assegurarem seu próprio policiamento e sua própria ordem”. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas, pp. 96-
7.

36
da arbitrariedade do rei. O poder passa pelos dominados tanto quanto pelos dominantes. A lettre de cachet
é fundamentalmente requerida pelas famílias, vizinhos, para qualquer criatura que perturba um pouco,
ou seja, contra a qual não podemos opor um processo legal. Deve ser o pequeno problema, como em
Tarde, é um microproblema. Se fosse um grande problema, se houvesse crime, o procedimento normal
seria usado. O procedimento da lettre de cachet é feito para a microfísica do delito, para pequenas ofensas
que não são sancionáveis do ponto de vista da lei.

Foucault dá um exemplo muito comovente de lettre de cachet, a súplica enviada pela esposa de
Nicolas Bienfait, no século XVII. Aqui está: “Tomo a liberdade de representar muito humildemente ao
Monsenhor que o dito Nicolas Bienfait, cocheiro, é um homem muito dissoluto que me mata com socos
e que vende tudo, já tendo matado suas duas mulheres, a primeira das quais matou seu filho no corpo. A
segunda, depois de comer e de vender tudo, fez morrer com seus maus tratos. A terceira ele quer comer
seu coração assado, sem mencionar outras mortes que causou. Meu senhor, coloco-me aos pés de Vossa
grandeza para implorar vossa misericórdia; espero de Vossa bondade que me faça justiça, pois minha
vida está em risco a todo momento. Não cesso de rezar pela saúde do Senhor”. 33 Não havia nada
condenável perante a lei. O que a mulher podia fazer?

Como eu lhes dizia, o que se passa hoje quando se faz um internamento voluntário? Uma mulher
se faz massacrar pelo marido, o que pode fazer? Ela pede uma lettre de cachet ao rei, ou seja, ela pede
que o marido seja internado. Há uma investigação, a polícia vem falar com o zelador, há um psiquiatra,
tudo isso. O poder passa, é uma relação de força, passa pelos dominantes, pelos dominados não menos
do que pelos dominantes. É a denúncia do postulado do atributo: o poder não é atributo, é relação.

Quinto postulado: postulado da modalidade. Em muitas teorias clássicas o poder assume duas
modalidades: ou procede pela violência, ou se dá pela ideologia. Repressivo ou ideológico. Repressão
ou ideologia, sentimos que é uma alternativa muito pobre, porque Foucault nunca para de mostrar que o
poder pode agir sobre almas e corpos, mas mesmo quando age sobre almas, age de outra maneira que a
ideologia. Quando age sobre os corpos, age de outro modo que violência e repressão. Se esperássemos
que o poder fosse repressivo, vocês sabem... há muito tempo não haveria mais poder. Ele acontece de
maneira bem diferente. É repressivo em última instância, sim, quando não pode fazer o contrário, mas,
caso contrário, ele evita ser repressivo. Há meios mais sutis que não são nem ideologia nem repressão.
Por quê?

33
Cf. FOUCAULT, M. “La vie des hommes infâmes” [1977]. In: Dits et écrits v. II., p. 237.

37
Esse talvez seja o ponto essencial, mas será necessário retornar a ele, agora eu o apresento muito
rapidamente. A relação de força não é a violência. Por que não é violência? Porque a relação de forças é
a relação da força com a força. Isso é muito importante, porque se eu disser: a força é essencial na relação,
significa que existe uma razão na noção de força para que a força nunca esteja sozinha, que a força
sempre faça parte de uma multiplicidade, cabe à força estar em relação com uma outra força. Logo, toda
força é relação de forças. Não há força, há relações de forças. O que é a violência? É uma relação de
forças? Não, a violência não é a relação de uma força com outra força. A violência é a relação da força
com um ser ou um objeto. Isso é fundamental, obviamente, na análise de Foucault, que nem sequer insiste
muito nisso, para ele é evidente, mas, enfim, devemos sublinhar. Quando eu sofro violência, não é a
minha força que sofre violência, é o meu corpo que é talvez a sede de uma força, minha, mas o que é
destruído pela força? Não é outra força, outra força não é destruída pela força, isso significa que uma
força destrói outra? Uma força é incapaz de destruir outra força. Por outro lado, uma força pode muito
bem destruir um corpo. A força de uma bomba destrói uma cidade como um corpo ou um corpo vivo. A
violência expressa a relação de uma força com uma coisa, um objeto ou um ser.

O que chamamos uma relação de forças? É a relação de uma força com uma força. O que é a
relação de uma força com outra força? Foucault dirá em uma entrevista – em seus livros ele não
desenvolve a ideia – que a relação de uma força com uma força, é uma ação sobre uma ação.34 Não é
uma ação sobre um corpo, é uma ação sobre uma ação, sendo a segunda ação real ou possível. É muito
valioso [inaudível na gravação] voltar a isso. Ação sobre uma ação não é violência, nunca a violência
agiu em uma ação, a violência é exercida no apoio de uma ação, no objeto de uma ação. A violência não
age sobre ação. Ele dá exemplos. É uma entrevista reproduzida no livro de Dreyfus e Rabinow sobre
Foucault. Dá exemplos muito incomuns para nós, mas será uma oportunidade para investigarmos. Ele
diz: as relações de forças, não são do tipo “fazer violência” ou “reprimir”, são do tipo: incitar, suscitar,
combinar. Parece não ser nada, mas aqui teremos que pesquisar. Vejam o que ele quer dizer à primeira
vista: sim, uma força não provoca violência à outra força, mas uma força pode incitar outra. Uma força
pode combinar outras forças. Isso sim, isso são relações de forças.

Portanto, as relações de forças são do tipo incitar, suscitar, combinar. Deixemos isso, é muito
obscuro para nós quando ainda não temos meios para comentar; nós os teremos em breve. Eu pergunto:
em Vigiar e punir, quais são as relações de forças que Foucault estuda? Tomando o conjunto do livro,
tento fazer a lista. É organizar o espaço, do tipo do fazer fila na escola. Pôr em ordem [mettre en rang],

34
É um “agir sobre a ação dos outros”. Cf. FOUCAULT, M. “O sujeito e o poder”, p. 291.

38
isto é, arrumar, fechar, esquadrilhar, serializar. Para fazer uma série, não é a mesma coisa que pôr em
ordem. Serializar é, por exemplo, fazer uma lista para a dissertação: primeiro, segundo, terceiro. Em
outras palavras, eis um primeiro aspecto: dividir o espaço As funções que Foucault enumera em Vigiar e
punir, o primeiro grande tipo de função: repartir o espaço, encerrar, esquadrilhar, organizar, serializar.

Segundo grande tipo de função: ordenar no tempo, subdividir o próprio tempo, hora, meia hora,
minuto, segundo, programar o ato, decompor um gesto. São funções de ordenação no tempo, não mais
repartição no espaço. Onde isso acontece? Bem, o lugar onde claramente isso acontece são as oficinas,
as primeiras fábricas. A decomposição do gesto, o trabalho mecânico. É uma função da ordenação no
tempo. Bem, pode haver uma intensa violência subjacente, não há chicotadas, não formamos os operários
com chicotadas. Em certo sentido, foi pior.

Terceira grande função: compor no espaço-tempo. O que é? É produzir um efeito dito “útil” maior
do que a soma das forças elementares, das forças componentes. Produz o chamado efeito útil maior que
a soma das forças, as forças componentes. Isso é a relação de forças, não é repressão nem ideologia.
Assim, isso se reconecta com A vontade de saber, lembrem-se de todo o nosso tema. O que havia em A
vontade de saber? Se ficamos nas palavras e nas frases, podemos sempre acreditar que a sexualidade foi
reprimida. Mas, se soubermos ler, depreender das afirmações da época, percebemos que, pelo contrário,
a sexualidade foi perpetuamente solicitada, convidada a se expressar e a falar. Sob qual condição?
Precisamente sob a condição de permitir distribuir-se no espaço, ordenar-se no tempo e compor no
espaço-tempo. Isso Foucault traduz dizendo em linhas gerais: as sociedades modernas não agem por
meio da ideologia ou da repressão, elas procedem pela normalização. O que é normalizar? Normalizar é
relação de forças por excelência, a saber, é repartir no espaço, ordenar no tempo, compor no espaço-
tempo. Eis a denúncia do quinto postulado. Finalmente, haveria um sexto postulado denunciado por
Foucault, o postulado da legalidade. O elo que a maioria das teorias faz entre o Estado e a lei. Como esse
é mais complicado que os anteriores, deixarei para a próxima aula. É o último.

39

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