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Rita Cachado
rita.cachado@iscte.pt
CIES-IUL
Daniela Ferreira
daniela.alexandra.ferreira@iscte.pt
CIES-IUL
Resumo/Abstract
Este artigo pretende analisar a relação entre This article analyses the relationship be-
as diferentes componentes das desigualdades de tween the different components of resource
recursos, com especial enfoque para as condi- inequalities, with a special focus on housing
ções de habitabilidade e a autonomia financeira, and financial autonomy, as well as their contri-
e o seu impacto nas vulnerabilidades socais, bution towards the emergence of vulnerabilities
que tendem a agravar-se nos atuais tempos de which are being aggravated in the context of the
crise económico-financeira. Através dos dados actual economic and financial crisis. Using the
de um inquérito por questionário, realizado a data set obtained through a survey conducted
1500 residentes na AML, o estudo estabelecerá with 1500 residents of LMA, the study estab-
uma comparação entre diferentes contextos lishes a comparison between different spatial
socio-territoriais, tendo como referência uma contexts. The results of the study identify a
tipologia utilizada para a estratificação da relationship between inequalities and financial
amostra. Os resultados do estudo identificam as and housing vulnerabilities, and present a statis-
várias dimensões da relação referida e apresen- tical model which incorporates the various
tam um modelo estatístico que incorpora as analysis dimensions.
variáveis em análise.
Palavras chave: Desigualdades, vulnerabiliddes Keywords: Inequalities, housing vulnerabilities,
habitacionais, vulnerabilidades sociais, crise social vulnerabilities, economic and financial
económico-financeira, território crisis, territory
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Este artigo insere-se no projeto de investigação LocalWays “Trajetos de sustentabilidade local: mobilidade espacial, capital social e desi-
gualdade” (PTDC/ATP-EUR/5023/2012), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.
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Desigualdades em tempos de crise: vulnerabilidades habitacionais e socioeconómicas …
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cas de nível superior ou intermédio; Trabalha- sendo um autor central para a análise das cida-
dores Independentes (TI), exercem atividade des, desenvolveu o seu trabalho sobre os esti-
por conta própria, sem empregados, em profis- los de vida em bairros segregados. Além des-
sões administrativas e similares nos serviços e tes, destacamos Bourdieu que, sendo essencial
no comércio, compreendem os artífices e tra- para outros campos da sociologia, analisou a
balhadores similares, agricultores e trabalhado- questão da habitação (Bourdieu e Christin
res qualificados da agricultura e pescas; 1990). Importa notar ainda que a relação analí-
Empregados Executantes (EE), são trabalhado- tica entre cidade e habitação é classicamente
res por conta de outrem respeitante ao pessoal justificada no crescimento das cidades associa-
administrativo e similares, e pessoal dos servi- do ao crescimento das populações em situações
ços e vendedores; Operários (O), são trabalha- de acentuada diferenciação social (Wirth, 1997
dores manuais por conta de outrem nas profis- [1938]).
sões mais desqualificadas da construção, No contexto português em geral, há um
indústria e transportes, agricultura e pescas. conjunto de autores que trabalharam concreta-
A tipologia em causa tem sido testada por mente, em bairros e muitas vezes alargando a
diversos autores que vêm trabalhando sobre as discussão a um nível macro, a relação entre
mais variadas temáticas, utilizando diferentes desigualdade e habitação. Desde logo, a produ-
inquéritos e bases de dados. A elasticidade ção relevante dos anos 90, donde se salienta o
operacional demonstrada pelo seu uso adequa- trabalho de Guerra (1994, 1997, 1998, 2001).
se às mais distintas escalas territoriais: euro- A autora vê a habitação como um dos elemen-
peia (Carmo e Nunes, 2013; Almeida, 2013; tos que melhor refletem as desigualdades
Costa et al. 2009), nacional (Machado e Costa, sociais. Contudo, esse enfoque é dado con-
1998), concelhia (Carmo e Santos, 2014), mas soante a corrente de pensamento e, por isso, é
também à escala de um bairro de Lisboa (Cos- defendido que o conceito de habitação pode ser
ta, 1999). Aliás, é neste último estudo que a abordado sob diferentes perspetivas, tornando-
tipologia conhece uma das suas análises mais se multidisciplinar. Para além disso, faz uma
pormenorizadas e inovadoras. abordagem às políticas de habitação em Portu-
Uma das novidades do presente artigo passa gal do ponto de vista de uma execução que
pela operacionalização deste indicador à escala deve levar em conta não só as necessidades do
da AML. Por seu intermédio iremos tentar estado e do sector privado, mas que dialogue
medir até que ponto as desigualdades se inter- fortemente com as populações visadas. Tam-
relacionam com a vulnerabilidade das condi- bém o trabalho de Freitas tem lugar de desta-
ções de habitabilidade e as dificuldades eco- que na mesma década (Freitas 1990, 1994,
nómico-financeiras. 2001). Estas referências vão desde abordagens
Desde o célebre livro de Engels (1984 macro às questões do realojamento, a aborda-
[1887]) sobre a questão da habitação na cidade gens centradas na experiência concreta num
industrial do século XIX, e ainda com a obra, realojamento, possibilitando uma perspetiva
contemporânea daquela, de Booth (v. Spicker, que, à semelhança de Guerra, traz uma visão
1990) sobre o mapeamento da pobreza, que se não só teórica como prática à sociologia da
estabeleceu uma relação analítica entre as habitação. Os realojamentos em massa verifi-
desigualdades sociais, designadamente as desi- cados em Portugal no final dos anos 90 são os
gualdades de classe, e o acesso ou o direito à grandes motivadores destas reflexões. Porém,
habitação condigna como um mínimo de qua- não devem ser esquecidos no campo
lidade. Aliás, o acesso à habitação representa da habitação associada às desigualdades outros
um pressuposto básico do direito à cidade, pares colaboradores, como Ferreira (1988,
seguindo a conceção de Lefebvre (1968) e 1994), Gros (1994, 1998), ambos determinan-
de Castells (1973), com que concordamos. tes para a história da habitação social no país, e
Muitos dos mais célebres trabalhos que contri- Baptista (1999, 2001). Mais recentemen-
buíram para solidificar o vasto campo inter- te deve ser colocado em evidência o contributo
disciplinar dos estudos urbanos têm de resto da equipa de sociologia da Universidade do
por base empírica os contextos habitacionais Porto neste domínio (Pinto, 2012; Pereira
dos urbanitas. Salientamos o caso de Gans e Queirós, 2012, Queirós, 2013) e de alguns
(1968) sobre segregação e planeamento urba- trabalhos que, embora isolados, têm contri-
no, de Suttles (1968) sobre a ordem social em buído para recuperar a temática com a questão
bairros degradados e de Hannerz (1969) que, do realojamento em habitação social (Cachado
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Desigualdades em tempos de crise: vulnerabilidades habitacionais e socioeconómicas …
2012, 2013; Ascensão, 2013) e além dela, do forte crescimento da AML, relacionado não
como o papel da habitação na mudança social só com as migrações internas da população
ao longo da vida (Nico, 2014). com graves carências económicas e que foram
Relativamente aos estudos realizados sobre construir as suas casas em nascentes bairros de
a questão da habitação na AML é importante barracas a partir dos anos 50, como também
fazer uma resenha mais pormenorizada. Com associado às migrações provindas de países
múltiplas opções de abordagem, escolhemos africanos. Mas o crescimento da AML em
uma que procura sintetizar a questão da habi- termos habitacionais não se fez apenas pela via
tação no sentido de a relacionar com as ques- da habitação precária; pelo contrário, a maior
tões da desigualdade. De facto, sendo a habita- parte do crescimento habitacional deve-se às
ção um direito central dos cidadãos (à seme- migrações internas e externas das chamadas
lhança da saúde e da educação), esta ligação é classes médias (Fonseca 1990), que compra-
inerente e a análise, neste artigo, do cruzamen- ram e alugaram casas massivamente em toda a
to entre as dimensões da habitação e das desi- AML naquilo a que hoje comummente se
gualdades sociais é uma tautologia. Neste sen- chama processo de suburbanização (v.e.g.
tido, as políticas de habitação são naturalmente Nunes, 2011).
centrais para perceber a questão da habitação Há ainda um aspeto que não deve ser igno-
na AML (Ferreira, 1988, Gros, 1994, Baptista, rado tendo em conta o nosso propósito de aná-
1999). Na década de noventa desenvolveu-se lise cruzada entre condições de habitação e
em Portugal uma linha de estudos importante desigualdades sociais. É que a habitação
e, por vezes, não devidamente valorizada, no social3 em Portugal tem uma história muito
LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia marcada pelo Programa Especial de Realoja-
Civil), com a colaboração de cientistas sociais. mento (PER), legislado em 1993 e implemen-
Salientamos, a este respeito, Soczka (1988), tado nos 20 anos que se lhe seguiram. O PER
Freitas (1990), e Maia et al (1992). Ao mesmo nasceu de uma necessidade político-social
tempo, a academia produzia trabalhos sobre urgente ou, nas palavras da introdução do
núcleos residenciais na AML em várias univer- Decreto Lei 163/93 de 7 de Maio, que descreve
sidades, onde a maior preocupação eram os o seu objetivo central, o PER visa "a erradica-
bairros degradados, clandestinos. É interessan- ção das barracas, uma chaga ainda aberta no
te notar que, tanto no caso do LNEC como no nosso tecido social." Uma urgência que olhou
caso da sociologia e dos estudos urbanos, os pouco para as condições reais dos bairros ins-
académicos dedicados a este tema pelo menos critos no programa e mais para a vertente polí-
no contexto da AML estiveram muitos deles tica da transformação dos territórios degrada-
ligados a projetos no terreno, sobretudo através dos, isto é, imperou o estigma de que as popu-
de gabinetes municipais de apoio à habitação. lações residentes nestes bairros viviam um
Quando olhamos mais especificamente para estilo de vida associado à pobreza. Este aprio-
as questões da promoção imobiliária, de cariz rismo resultou não só da falta de estudos con-
social ou não, raramente são analisadas sem cretos sobre condições de vida nos bairros
refletir sobre as opções legislativas e proces- chamados de barracas, como também de um
suais entre o mercado e a intervenção pública. discurso de política da pobreza, ou a pobreza
No campo da sociologia, destacamos o traba- como mote político, assinalado na altura por
lho de Silva (1994), e de Baptista (1999). A exemplo por Guerra (1994).
questão mais concreta do acesso à habitação Este panorama da habitação, fortemente
relacionado com as classes sociais foi em Por- marcado pelas políticas de habitação social,
tugal abordada por Pereira (1994), entre outros, deve servir de acautelamento na análise cruza-
que ao estudar os pátios e vilas de Lisboa ilus- da entre habitação e desigualdades que preten-
tra esta relação entre classes sociais mais des- demos fazer neste artigo. Ou seja, embora este-
favorecidas e determinados tipos de habitação
3
(Carvalho, 2013). Este tema foi de resto explo- Não queremos aqui discutir a adequação ou não da expressão
política de habitação social ou da alternativa mais vezes
rado de diferentes maneiras a propósito do apresentada, política social de habitação. Defendemos contudo
crescimento de uma sociologia da habitação, que não se deve esquecer a utilidade da expressão habitação
nos anos 80 e 90 (Almeida, 1994). Nessa altu- social. De resto, concordamos com Luís Baptista quando diz que
“A constituição de um ‘campo social’ (P.Bourdieu) em torno da
ra, debatiam-se as condições de vida dos defesa e afirmação do ‘direito à habitação’ leva a que se
moradores em conjuntos residenciais degrada- desenvolva um universo morfológico e social de referência a este
propósito, que poderemos designar genericamente como
dos. O assunto estava na ordem do dia por via ‘habitação social’ (Baptista 1999, 8-9).
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jamos em presença de duas dimensões que do tos, o número aumentou em 567 mil alojamen-
nosso ponto de vista lucram em ser compreen- tos (10,6% de crescimento).
didas em conjunto, não concordamos com uma No que diz respeito às obras concluídas,
perspetiva que reforce o discurso sobre uma Portugal teve um decréscimo de 11% em rela-
cultura da pobreza. ção ao ano de 2012. Já as obras com fins de
Antes de se avançar para a análise que parte reabilitação tiveram um aumento de 26,8% em
dos nossos dados empíricos, é importante apre- 2012 para 29,1% em 2013, a que não são
sentar alguns dados inventariados pelo Institu- alheias as, ainda que poucas, políticas de pro-
to Nacional de Estatística sobre a composição moção da reabilitação urbana.
e a evolução do parque habitacional (INE, No mesmo sentido, relativamente às obras
2013), tanto ao nível do país como da região de licenciadas, a tendência é decrescente desde
Lisboa, desde o início dos anos 2000. Este 2008 até 2013, sendo que no último ano referi-
levantamento pretende enquadrar a reconfigu- do diminuiu cerca de 22,7% em relação ao ano
ração das dinâmicas ocorridas no sector nestes de 2012. À semelhança do que se passa com a
últimos anos, tendo como especial enfoque o conclusão de construções novas (72,3% em
período mais recente que coincide com o apro- 2008 e 58,2% em 2013) e com as obras de
fundamento da crise económico-financeira. reabilitação (34,5% do total de licenciamentos
Não cabendo aqui uma análise crítica da em 2013), também os licenciamentos de cons-
situação de decréscimo na construção de habi- truções novas têm vindo a diminuir, ao passo
tação no atual contexto de crise, importa con- que os licenciamentos de obras de reabilitação
tudo notar que a sua desaceleração é, per se, têm vindo a aumentar (dentro das obras de
positiva para o contexto português, onde se reabilitação, teve maior importância as obras
verificava uma desproporção acentuada entre de ampliação que em 2008 o seu peso relativo
as necessidades habitacionais e o parque habi- era de 14,6% e em 2013 aumentou para
tacional. Esta situação é denunciada desde a 24,0%).
década de 1960 (Pereira, 1963) e recentemente Se é verdade que, analisando os valores
confirmada, por exemplo, pelo INE em 2012. totais, as obras de reabilitação tenham dimi-
Apesar de continuarem a verificar-se necessi- nuído de 2008 para 2013, verifica-se um
dades habitacionais, não tem havido políticas aumento do peso relativo na realização destas
assertivas de compensação do desacerto entre obras no mesmo período (20,4% em 2008 e
parque existente e necessidades sociais de 29,1% em 2013). Convém ainda referir que, do
habitação4 (v. a este respeito, Miranda e Babo, total das obras de reabilitação realizadas em
2012). Como poderemos verificar, tendo por 2013, 64,9% foram realizadas em habitações
base o estudo do INE (2014a), onde foi feita familiares. Esta percentagem em 2008 era mais
uma estimativa para o ano 2013, neste período elevada, correspondendo a 70,8%.
é visível o impacto que a crise teve na inversão Focando-nos na região de Lisboa, observa-
de algumas tendências a partir de 2008. Portu- se que esta, juntamente com os Açores, foi das
gal obteve em 2013 uma taxa de crescimento únicas regiões em que o crescimento da cons-
inferior à dos anos anteriores, situando-se nos trução foi superior à média nacional, tendo um
0,3%. Analisando esta questão de forma mais crescimento de 14,3% para os edifícios e
pormenorizada, verifica-se que este decrésci- 14,6% para os alojamentos. Porém, a região de
mo se deu a partir de 2008 e que as taxas de Lisboa foi a aquela que obteve igualmente um
crescimento têm vindo a diminuir desde então. maior decréscimo do seu número de edifícios
Antes de 2008, a tendência era inversa, uma concluídos no ano de 2013 (-50,6%).
vez que a taxa anual média aumentou 1% até A região de Lisboa possuía em 2013 12,6%
ao ano referido. Traduzindo esta informação, do total dos edifícios do país e 25% dos aloja-
Portugal continental obteve, desde 2001 até mentos. Relativamente ao número médio de
2013, 396 mil edifícios, verificando-se um habitantes por alojamento, verifica-se que a
crescimento de 12,4%. Quanto aos alojamen- região de Lisboa possuía 2,1 em 2001 e passou
em 2013 para 1,9. Verifica-se portanto um
decréscimo. Quanto ao número médio de alo-
4
jamentos por edifício, constata-se que a região
Há contudo um esforço de resolução desta problemática num
documento intitulado Plano Estratégico da Habitação (disponível de Lisboa é aquela que possuiu valores mais
emhttp://www.portaldahabitacao.pt/pt/ihru/estudos/plano_estrate elevados a esse respeito. Tinha em 2001 um
gico/documentos_plano_estrategico_habitacao.html), que tem
servido de base a algumas políticas ad-hoc neste contexto.
valor de 3,31 e em 2013 estimou-se uma ligei-
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habitações. Apresenta também uma relação A amostra foi estratificada tendo por base a
negativa com o envelhecimento e consolidação tipologia e organizada a partir das seguintes
urbanos e um comportamento mais neutro com quotas selecionadas (o erro amostral é de
a renovação, sugerindo alguma dinâmica. 2,5%): idade, escolaridade, género e situação
Inclui portanto freguesias rurais, tanto as mais profissional. Isto significou, portanto, que
periféricas como sedes de concelho. todas as quotas foram utilizadas segundo a sua
representatividade em cada território classifi-
d) Urbano antigo e em renovação, cor-
cado na AML (ver quadro 1). Dentro de cada
responde a 26 freguesias urbanas antigas e
perfil foram selecionadas aleatoriamente um
apresenta a maior transformação: sendo defini-
número proporcional de freguesias. A aplica-
do pela associação ao envelhecimento e conso-
ção do inquérito decorreu segundo o método
lidação urbana é também um território, ainda
random route: em cada freguesia selecionada
que desqualificado, em renovação. Nestas fre-
foram identificados os “pontos de partida”
guesias reside apenas 4% da população da
(moradas) a partir dos quais se iniciou os itine-
AML, que correspondem predominantemente
rários de seleção de cada lar.
ao centro histórico de Lisboa.
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Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012
Se à escala do local de residência a aprecia- figura 3)6. Destes, o problema mais referido
ção é geralmente positiva, o mesmo se pode foi a ‘dificuldade em manter a casa adequa-
dizer sobre a identificação de problemas rela-
cionados com as condições de habitabilidade 6
A lista de problemas era composta por estes itens: teto que
do alojamento. De uma lista de seis problemas deixa passar água, humidade nas paredes ou apodrecimento das
janelas ou soalho; luz natural insuficiente num dia de sol; ruído
bem definidos, 63% dos inquiridos declarou sentido no alojamento, vindo dos vizinhos ou da rua; poluição,
que a sua habitação não detinha nenhum des- sujidade, mau cheiro ou outros problemas ambientais na zona
tes. Por seu lado, 15% identificou apenas um causados pelo trânsito ou indústrias; dificuldade em manter a
casa adequadamente aquecida; problemas frequentes de
e os restantes 22% entre 2 a 6 problemas (ver canalização.
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Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012
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por comparação aos outros territórios onde o porção de problemas: só em 37,5% das habita-
regime de arrendamento e subarrendamento é ções com menos de 60 m2 de área não se iden-
claramente minoritário. Não é portanto de es- tifica qualquer tipo de problema.
tranhar que seja precisamente nestes dois tipos Estabelece-se alguma relação entre a ava-
de território que se encontram as maiores per- liação mais negativa do local de residência e a
centagens relativas a problemas identificados amplitude dos problemas identificados no alo-
no alojamento. Isto é, são áreas onde existe um jamento, como se pode verificar na figura 6.
maior número de alojamentos mais antigos em Esta relação não é de estranhar, já que as con-
regime de arrendamento e que, por isso, apre-
dições de habitabilidade são um pressuposto
sentam maiores debilidades.
básico para a satisfação com a qualidade de
Em termos de dimensão, é nos alojamentos
vida da zona residencial.
mais pequenos que se observa uma maior pro-
Figura 5 - Número total de problemas no alojamento na AML segundo a tipologia territorial (%).
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012.
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012.
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do que já foi testado em inúmeros estudos habitação, continuam a ser em parte uma ques-
como referido antes. No âmbito do inquérito tão de classe, como aliás tem sido defendido
realizado à AML, construiu-se esse indicador a por uma série de autores (e.g. Castells 1973,
partir dos pressupostos metodológicos entre- Pereira 1994). Assim, observa-se que apesar do
tanto consolidados. nível geral de satisfação com o local de resi-
A figura 7 revela precisamente uma distin- dência - decorrente da melhoria geral das con-
ção saliente entre as classes mais favorecidas dições socais e residenciais que o país e a
(EDL e PTE) face às restantes no que diz res- AML conheceram nestas últimas décadas -
peito à identificação de problemas de habitabi- persiste, ainda assim, uma desigualdade no
lidade dos alojamentos. O que significa que o conforto e nas condições físicas dos alojamen-
acesso à habitação, assim como a qualidade da tos, que variam em função da classe social.
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012.
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qualquer problema no alojamento, esta propor- não uma despesa extra: 75% dos que podem
ção desce para menos de 50% no caso dos que pagar não identificaram qualquer problema de
declararam ter problemas de habitabilidade. A habitabilidade, por comparação a apenas
disparidade ainda é mais saliente quando se 38,8% dos que não podem pagar e responde-
compara os inquiridos que poderiam pagar ou ram no mesmo sentido.
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012.
Figura 9 – Número total de problemas no alojamento segundo a capacidade para pagamento de despesa
extra sem recorrer a empréstimo (%).
Fonte: PTDC/ATP-EUR/5023/2012.
Embora não detenhamos dados que reme- e habitacional. Utilizando a tipologia definida
tam para uma evolução diacrónica destes indi- pelo sociólogo Therborn (2006), podemos
cadores, é de crer que estas disparidades se dizer que se estabelece uma relação entre dis-
tenham acentuado com o decorrer da atual tintas componentes das desigualdades de
crise económico-financeira. De qualquer mo- recursos. Tendo em conta a persistência estru-
do, é muito claro que estes se relacionam com tural das desigualdades em Portugal, como se
dimensões estruturais de desigualdade, que referiu no ponto teórico, não será muito abusi-
teimam em persistir na sociedade portuguesa. vo avançar com a hipótese de que esta relação
Como foi demonstrado ao longo da análise detém um caráter sistémico que pode estar a
anterior, verifica-se uma relação entre diferen- ser agravado com o impacto da atual crise eco-
tes tipos de vulnerabilidade social, económica nómico-financeira. Para esta hipótese ser ple-
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namente testada, teríamos de efetuar uma aná- logística confirma a análise estatística anterior,
lise diacrónica sobre as variáveis identificando onde se salientou precisamente que as questões
a sua evolução nos últimos anos. Dado que não de ordem habitacional representam um dos
dispomos dessa informação, visto que se está a aspetos mais determinantes que estão associa-
trabalhar sobre dados de um inquérito aplicado dos a outros tipos de vulnerabilidade, nomea-
somente em 2013/14, é possível, de qualquer damente de ordem financeira. Aliás, o seu efei-
modo, construir um pequeno modelo estatístico to de predição é mais elevado quando compa-
do qual se poderá inferir algumas tendências rado com outras varáveis independentes como,
relacionais. por exemplo, o uso habitual de transporte par-
Para tal, iremos elaborar uma regressão ticular nas deslocações quotidianas. Na verda-
logística binária na qual se tentará medir a de, se este uso representa, de facto, a posse de
predição de uma série de varáveis independen- um recurso privilegiado perante a mobilidade
tes sobre a capacidade de assegurar uma des- diária, ele pode, simultaneamente, significar
pesa extra no valor de 415 euros. Ou seja, ten- em muitos casos um constrangimento devido à
tar-se-á perceber o sentido e a determinação maior carência de transporte público na área de
estatística entre a posse desigual de um conjun- residência, e não uma opção que derive de uma
to de recursos sobre a vulnerabilidade monetá- situação económico-financeira mais vantajosa.
ria declarada, na impossibilidade de se fazer Se encararmos os efeitos de predição como
face a uma dada despesa. De maneira a poten- tendências, estes resultados tornam-se particu-
ciar as possibilidades estatísticas e analíticas, larmente preocupantes no atual contexto, na
procedemos a uma dicotomização das variá- medida em que sugerem que, com a continui-
veis utilizadas de forma a captar as polaridades dade da crise e a consequente probabilidade de
mais vincadas8. aumentar a incapacidade de fazer face a despe-
O modelo com os diversos preditores é sas, pode depreender-se a prazo um agrava-
estatisticamente significativo para prever a mento nas condições de habitabilidade que
capacidade de pagar uma despesa extra e cerca devido a dificuldades financeiras não poderão
de 27% (Nagelkerke de 0,274) da variação ser devidamente resolvidas pelos particulares.
sobre essa capacidade é explicada pelo mode- Ou seja, o património habitacional da AML
lo9. Em termos de predição, este lê-se da pode conhecer uma degradação progressiva se
seguinte forma: o coeficiente de regressão as atuais condições socioeconómicas dos seus
(logged odds) da capacidade para pagar uma residentes não melhorarem entretanto. Isto é
despesa extra cresce 0,860 nas pessoas que particularmente notório nos alojamentos em
vivem em casa própria e decresce -1,188 nos regime de arrendamento ou sub-arrendamento.
que identificam problemas de habitabilidade O efeito preditor também é preocupante no que
nos seus alojamentos e assim sucessivamente diz respeito a quem está na situação de desem-
(ver quadro 2). pregado, mais exposto às vulnerabilidades
Tendo em conta estes parâmetros estatísti- económico-financeiras, em detrimento das
cos, depreende-se um efeito preditor entre a pessoas que detêm ensino superior (menos
posse diferenciada de recursos e a vulnerabili- vulneráveis ao desemprego, apesar dos sinais
dade face a despesas inesperadas. Isto é parti- de esbatimento desta garantia com a atual cri-
cularmente visível na relação determinada se) e pertencem às classes mais favorecidas
pelos fatores habitacionais (condições de habi- (EDL e PTE). Dito de outro modo, são as pes-
tabilidade e posse de casa própria pelo próprio soas menos escolarizadas e as que se encon-
ou familiar). Isto é, o modelo de regressão tram no desemprego aquelas que não só sofrem
mais com o impacto da crise, como dificilmen-
8
te conseguirão sair de um ciclo regressivo de
As variáveis utlizadas foram dicotomizadas: capacidade para
pagar despesa extra com o valor 1 e 0 para os restantes; casa
vulnerabilidades acumuladas10.
própria; problemas de habitabilidade; pertença às classes dos
EDL ou PTE; tem ensino superior; situação de desempregado;
uso habitual de automóvel.
9
O modelo classifica corretamente 73% dos inquiridos e não se
encontraram entre as variáveis problemas de multicolinearidade
(VIF <5 e Tolerance >0,2). Para além disso, o Omnibus Tests
apresenta um resultado <0,001. Quando às medidas de análise
dos resíduos, não existem valores acima de 1 na medida Cook’s
distance; o Leverage values não apresenta valores 2 a 3 vezes
10
superiores à média (0,004666); e não existem valores absolutos Este dado tem sido comprovado por outras análises (cf. INE,
superiores a 1 nos DfBeta(s). 2014b).
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Desigualdades em tempos de crise: vulnerabilidades habitacionais e socioeconómicas …
Quadro 2 – Capacidade para pagar despesa extra: fatores determinantes (regressão logística).
Capacidade para pagar
Variáveis preditoras despesa extra
Coeficiente de regressão (Odds ratio)
Casa própria 0,860**
Problemas de habitabilidade -1,188**
EDL e PTE 0,729**
Ensino superior 0,691**
Uso de automóvel 0,413*
Desempregado -,828**
Constante 0,221
X2 model 334,580
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Fonte: Autores
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Revista Portuguesa de Estudos Regionais, nº 40
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