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Efeito-território: Explorações

em torno de um conceito
sociológico

Luciana Teixeira Andrade


[doutora em Sociologia pelo Iuperj (Rio de Janeiro, RJ), professora do PPG em Ciências Sociais da PUC
Minas em Belo Horizonte, MG, Brasil, pesquisadora do CNPq, da Fapemig e do Observatório das
Metrópoles]

Leonardo Souza Silveira


[mestrando em Sociologia pela UFMG]
De origem norte-americana, os neighborhood effects
(Ellen, & Turner, 1997) também passaram a ser objeto de
pesquisa em outros países, como o efecto vicindário no Uruguai
(Kaztman, & Filgueira, 2006), effets territoire na França
(BidouZachariasen, 1996) e no Brasil, efeito-vizinhança ou
efeito-território …
OUTROS CONCEITOS

• Efeito de Lugar: se concebe o espaço social como fisicamente realizado, ou


objetivado, com a distribuição no espaço físico de distintas espécies de bens ou de
serviços e, também, de agentes individuais e de grupos fisicamente localizados (Iracema
Brandao Guimaraes, UFBA, 2018).

• Efeito de bairro (“efeito-bairro”): mudança nítida nas potencialidades da


existência, devida ao fato de viver em um bairro ou uma zona determinada, e não em
outro local. Esses efeitos podem então ser negativos ou positivos (Atkinson e Kintrea,
2001).

• Efeitos de vizinhança (“efeito-vizinhança”): efeitos relacionados com a composição


social e características específicas dos bairros. Assim, a forte concentração da
pobreza em determinados locais, também marcados pela sobreposição de outros
“problemas sociais”, faz multiplicar as desvantagens dos indivíduos residentes nestas
áreas. Considera que as interações de uma pessoa com outras, em um determinado
local ou ambiente, têm influência direta ou indireta em seu comportamento, atitudes e
intenções (William Julius Wilson, 1987).
ESTUDOS SOBRE O EFEITO DE BAIRRO

A dificuldade desse estudo concentra-se em dois aspectos:


primeiro, no que diz respeito à distinção,

• do que de fato é condicionado pelo bairro e do que é


resultado de características sociais dos indivíduos desse
bairro?;
• segundo, no que diz respeito à conceitualização e
delimitação do bairro (ROSE e SÉGUIN, 2006).

Vários estudos empíricos foram realizados no intuito de


responder a estes questionamentos.
No estudo britânico (ELLEN e TURNER, 1997), observou
que, mesmo se os efeitos de bairro tem um papel importante
para explicar as situações e percursos de vida de populações
pobres, esses efeitos não são tão significativos quanto às
características sociais e familiares desses indivíduos.

Divergindo, um estudo empírico canadense (HERTZMAN,


2002) constatou que, crianças com a mesma estrutura familiar
(monoparental e onde o adulto tem um nível de escolaridade
baixa), mas que vivem em bairros diferentes demonstra que os
níveis de desenvolvimento são distintos em função do bairro
onde estes vivem. Portanto, leva-se a concluir que efeito de
bairro existiria.
O termo “efeito-território” investiga, sob diferentes
perspectivas, as formas de sociabilidade e as relações
institucionais que se desenvolvem em um determinado
espaço e suas possíveis relações causais.
Além disso, pode ser entendido como os benefícios ou
prejuízos socioeconômicos que acometem alguns grupos
sociais em função da sua localização no espaço social das
cidades.
A hipótese sociológica a respeito do efeito-território não
pressupõe uma ação determinista do espaço sobre as
relações sociais, mas investiga as inter-relações entre as
características dos espaços, como infraestrutura urbana,
vizinhança, oferta de serviços e as características dos
grupos sociais (Andrade, & Silveira, 2013).
O artigo se propõe discutir as relações entre os moradores de
bairros e de favelas a partir dos conceitos de efeito-território e de
distância social (que pode ser exemplificado no texto de João H.
Costa Vargas sobre segregação residencial no Rio de Janeiro), uma
vez que se trata de um contexto de vizinhança marcado por grandes
disparidades sociais.
A proximidade física entre populações socioeconomicamente
distantes já foi analisada pelas ciências sociais em perspectivas
contraditórias. Simmel (1983), por exemplo, vê no contato entre
pessoas muito diferentes um fator de conflito.
Por outro lado, outros autores consideram a proximidade
como uma fonte de capital social para os menos privilegiados, em
oposição às situações socialmente mais perversas, como as de
isolamento social (Bidou-Zachariasen, 1996; Kaztman, 2001).
Para Kaztman (2001), a concentração de uma
população homogeneamente pobre em um território pode
resultar na reprodução da pobreza na medida em que a priva
da exposição a experiências bem-sucedidas de outros
grupos sociais, limitando os seus horizontes às experiência
locais de modelos de conduta pouco exitosos e de muitas
privações.

Os efeitos da territorialidade já foram objetos de estudos


em diferentes situações, nem sempre resultando em consensos,
relacionando a temática isolamento-proximidade espacial a
outras variáveis como estrutura familiar e cultura.
Atualmente, as grandes cidades brasileiras convivem com
diferentes escalas de segregação socioespacial. Num plano
macro, observamos a manutenção do padrão centro-periferia
(LOJKINE), que concentra nas periferias a maioria dos pobres
e nas áreas centrais os grupos de média e alta rendas
(Marques, Scalon e Oliveira, 2008).

Nesses casos, a distância física naturaliza a distância


social, como se cada grupo estivesse no seu devido lugar,
minimizando, assim, o conflito.

(VER OS OUTROS MODELOS p. 383)


CONDOMÍNIO ALPHAVILLE GRACIOSA – PINHAIS
Vila Zumbi dos Palmares
(“Ocupações irregulares” que tiveram as famílias realocadas para “condomínios populares da
região” – BOLSÃO AUDI-UNIÃO)
Jardim Marambaia – Unidades habitacionais entregues - 2013
FONTE: CURITIBA, METRÓPOLE CORPORATIVA: FRONTEIRAS DA DESIGUALDADE – Simone Aparecida Polli
(2007)
EFEITO-TERRITÓRIO EM CURITIBA
CONCURSO DE REMOÇÃO (SEED-PR) – Edital de Remoção 80/2014
CONCURSO DE REMOÇÃO (SEED-PR) – Edital de Remoção 80/2014
DISTRIBUIÇÃO DE PROFESSORES POR VÍNCULO (QPM E PSS)
DISTRIBUIÇÃO DE PROFESSORES POR VÍNCULO (QPM E PSS)
MAPEANDO A DESIGUALDADE
Figura: Infraestrutura Urbana dos bairros de Curitiba de acordo com o IBEU (2010)
MAPEANDO A DESIGUALDADE
RENDA
RENDA
DECOMPONDO ESTES DADOS: BATEL (MAIOR RENDIMENTO MÉDIO):
RENDA
DECOMPONDO ESTES DADOS: CAXIMBA (MENOR RENDIMENTO MÉDIO):
CONDIÇÕES DE HABITAÇÃO E SANEAMENTO DE ACORDO COM O IBEU (2010)
DENSIDADE HABITACIONAL
SANEAMENTO (% DE DOMICÍLIOS LIGADOS À REDE GERAL DE ESGOTO OU
PLUVIAL)
Outro indicativo da desigualdade social em Curitiba é a relação de habitantes
por veículos em bairros da região central e periférica, conforme demonstrado na
tabela abaixo.
Tempo médio de Viagem em Transporte Coletivo (TC) na Rede Integrada de
Transporte Coletivo de Curitiba (RIT)
MOBILIDADE URBANA
Figura: Rede Integrada de Transporte Coletivo de Curitiba (RIT)
EDUCAÇÃO
COMPARATIVO NÍVEL DE INSTRUÇÃO MATRIZ - (CAXIMBA)PINHEIRINHO
Os bairros periféricos que apresentam os piores Índices de Bem-Estar Urbano são,
também, os que apresentam as menores porcentagens de domicílios com acesso à internet, como
reforçam os dados apresentados no gráfico que mostram que as regionais da área central da
cidade (Matriz e Portão) apresentam percentuais de 75% e 72%, respetivamente, sendo estas as
únicas macro zonas com percentual superior à média do município. No entanto, em relação aos
bairros periféricos, verificou-se percentuais de 55% na regional Bairro Novo e 49% na regional
Tatuquara, as mais pobres do município.
Em Curitiba, 19,64% da população se autodeclara preta ou parda. Abaixo alguns
bairros com o percentual de pretos e pardos na capital, segundo o Censo 2010.
Taxa de Crimes contra o Patrimônio
Taxa de Crimes contra a Pessoa
Taxa de Crimes contra o Jovem
IVAB


O IVAB é calculado pela média aritmética entre os índices de 4 dimensões:
adequação do domicílio, perfil e composição familiar, acesso ao trabalho e
renda, condições de escolaridade.


A partir do IVAB, as Unidades Municipais de Saúde são ranqueadas sob a
lógica de intervalos regulares com base no conjunto de dados ordenados de
forma crescente, e divididas em três grupos a partir do cálculo dos tercis.
IVAB


As Unidades Municipais de Saúde localizadas no tercil 1 são denominadas
como de baixa vulnerabilidade (unidades de saúde com percentagem menor
que 3,91%),


no tercil 2 como de média vulnerabilidade (unidades de saúde com
percentagem maior ou igual a 3,91% e menor que 7,80%) e


no tercil 3 como de alta vulnerabilidade (unidades de saúde com percentagem
maior ou igual 7,80% até o limite superior, que pode atingir 100%) = AZUL
ESCURO NO MAPA.
Distribuição das unidades de saúde de acordo com o Índice de Vulnerabilidade das Áreas
de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde (IVAB)
Índice de Vulnerabilidade das Áreas de Abrangência das Unidades Municipais de Saúde
(IVAB) DOS BAIRROS PERIFÉRICOS DE CURITIBA
COVID-19 EM CURITIBA


Como se pode notar, 12 das 18 unidades básicas de saúde, apresentam IVAB
indicador de alta vulnerabilidade (com percentagem maior ou igual 7,80%), o
que representa 66,6% de todas as unidades analisadas.


Chama a atenção o IVAB da Unidade Básica de Saúde Caximba, que é a única
unidade do bairro e possui o maior IVAB de todas as U.S do munícipio, com
impressionantes 77,795, índice muito superior às demais U.S.
COVID-19 EM CURITIBA


Já o próximo mapa apresenta a incidência do coronavírus por bairro de Curitiba
na data de 03 de março de 2022.


Quanto mais escuro, maior é a incidência. Nota-se que o bairro Caximba, que
apresenta os piores índices de vulnerabilidade social da cidade, com uma
população de 2.578 habitantes e 1.091 casos confirmados, apresentava a maior
taxa de incidência por 10.000 habitantes do município (3.553), o que equivale a
42,32% de contaminados no bairro.
Incidência do Coronavírus por bairro de Curitiba em 03/03/2022
COVID-19 EM CURITIBA


Os índices analisados permitem uma melhor compreensão do crescimento
expressivo da doença e de mortes no bairro, uma vez que as principais medidas
de prevenção recomendadas pelas autoridades sanitárias são impraticáveis para
muitos moradores, os mais afetados, também, pelos efeitos econômicos da
pandemia.
COVID-19 EM CURITIBA


São trabalhadores – na sua imensa maioria, informais – que não podem ficar
em casa, dependem do transporte público (superlotado) e cuja renda, muitas
vezes, mal garante a alimentação de sua família, inviabilizando a compra de
produtos que garantam a desinfecção das mãos. São moradores de domicílios
de poucos cômodos que abrigam várias pessoas e onde o abastecimento de
água é intermitente.


Ou seja, estamos falando de um contingente da população que tem
demonstrado a seletividade social das medidas de contenção da pandemia de
covid-19 e comprovado que o território é uma variável importante nos estudos
sobre a produção e reprodução das mais diversas formas de desigualdade,
sendo estas determinantes na disseminação do novo coronavírus.
Apartheid brasileiro: raça e
segregação residencial no Rio de
Janeiro
João H. Costa Vargas

O autor descreve os eventos políticos principais que, em julho de 2001,
levaram à instalação de portões e câmeras em volta do Jacarezinho, a
segunda maior favela do Rio de Janeiro, e as imediatas reações negativas a
essas medidas na imprensa – especialmente jornais e redes de TV.


O autor analisa essas reações a partir de dados etnográficos que coletou desde
junho de 2001 no Rio de Janeiro, quando iniciou um trabalho de colaboração
com ativistas negras/os que, com a ajuda de ex-membros do grupo Panteras
Negras (EUA), ousaram desafiar a polícia, os traficantes de drogas e, de fato,
setores mais amplos da sociedade.

Através da análise da cobertura dos jornais sobre o “condomínio-
favela” e dos debates públicos que se seguiram, o autor
demonstra como tais discursos, ainda que de forma
frequentemente tácita, desumanizam negras/os ao associá-las/os
ao crime, à corrupção e às favelas – bairros das classes
trabalhadoras considerados como o local onde futuras gerações de
negras/os perigosas/os continuarão a aterrorizar a imaginação e a vida
daquelas pessoas que não moram em favelas.


Através de uma avaliação da literatura acadêmica sobre cidades
brasileiras o autor conclui sugerindo que é necessário dar atenção às
formas como raça e espaço urbano interagem se a pesquisa nessa
área pretende compreender e dialogar com ativistas moradores de
favelas que não têm outra saída a não ser confrontar sua contínua
desumanização.

Tudo começou com uma ideia inusitada: e se a favela fosse fechada
com portões e câmeras de segurança? Condomínios das classes
média e alta em todo o Rio de Janeiro – assim como nos grandes
centros urbanos no País (Caldeira, 2000; Zaluar, 1994) – são definidos
com base em tais medidas de proteção. Por que então não adotar as
mesmas estratégias em uma tentativa de limitar o abuso policial e
o tráfico de drogas?

Os ativistas que pensaram nessa ideia nem sequer se preocuparam em
consultar o resto da comunidade, pois estavam certos de que os
portões e as câmeras seriam aprovados por unanimidade. Assim, foram
em frente e instalaram os equipamentos de segurança em pontos-
chave da Favela do Jacarezinho. As câmeras, disse-me um dos
membros da Associação dos Moradores, foram doadas por um “cigano
que tinha ouvido falar de nosso trabalho”. Filmadoras camcorder
complementaram a estratégia para restringir o abuso policial e o
comércio de drogas.

O experimento ousado teve vida curta. Ativistas locais anteciparam as
reações negativas contra o condomínio-favela, e pôr a ideia em prática
foi uma medida calculada para criar um fato público-político
revelador das condições péssimas existentes naquela comunidade
pobre e marginalizada.


A notícia correu rápido não apenas na cidade e no estado do Rio de
Janeiro, mas também em São Paulo, onde, a despeito da violência
urbana crescente, a fascinação histórica com as favelas cariocas gerou
um artigo de página inteira em um dos principais jornais do País, a
Folha de S. Paulo.

Ainda assim, ativistas na favela ficaram surpresos com a forma visceral
com que a polícia, o público que não vive em favelas e os políticos,
incluindo os de esquerda, reagiram contra a ideia que viam como
lunática. Nos dois maiores centros urbanos brasileiros, as questões
essenciais por detrás das reações ao que ocorria no Jacarezinho
revelavam um profundo desconforto: como um bairro pobre,
majoritariamente negro, poderia ter a ousadia de monitorar e
restringir o trabalho da polícia?


Como a diretoria de uma associação de moradores, que muitos
acreditavam ser controlada por traficantes de drogas, poderia desafiar
aqueles que a haviam colocado no poder? Como uma favela poderia
se comparar aos condomínios cercados da elite?
PONTOS A SE DESTACAR DO ARTIGO


Através da análise da cobertura dos jornais sobre o “condomínio-favela”
e dos debates públicos que se seguiram, o autor argumenta que tais
discursos, ainda que de forma frequentemente tácita,
desumanizam as/os negras/os ao associá-los ao crime, à
corrupção e às favelas – bairros das classes trabalhadoras
considerados como os locais onde futuras gerações de negras/os
perigosas/os continuarão a aterrorizar a imaginação e a vida daquelas
pessoas que não moram em favelas.


Notícias não são feitas no vácuo; elas expressam ideias sobre
negras/os baseadas em um senso comum hegemônico (Gordon,
1998; Hall 1980, 1982). Utilizando-se de um idioma público para
descrever grupos racializados, o noticiário dos jornais e
televisionados dão voz e apoiam formas de discriminação
estrutural contra negras/os que são resultado de políticas públicas
e do comportamento cotidiano.

Curiosamente, no entanto, as notícias sobre os conflitos políticos no
Jacarezinho que apareceram no Rio e em São Paulo mostraram
negras/os nas favelas mas nunca mencionaram raça. Ainda assim,
estereótipos sobre negras/os eram articulados.


Quando comunidades pobres, crime, drogas e violência eram
abordados, a conexão tácita – mas sem dúvida poderosa – que se fazia
era com a população negra.


Esse silêncio, também presente no debate público que se seguiu, ao
impedir que certas concepções sobre as/os negras/os brasileiros
viessem à tona, reforçou os estereótipos e justificou a
discriminação.

Pleno de significado, assim, o silêncio sobre raça forma uma
atmosfera na qual o racismo respira e se mantém. Ademais, o
silêncio protege aquele que o produz de ser visto como alguém
abertamente preconceituoso e, como quase ninguém parece ser
preconceituoso, o mito brasileiro da democracia racial se mantém
(Goldstein, 2003; Guimarães, 1999; Nascimento, 1989; Twine, 1998).

As questões que estruturam o ensaio nos ajudam a entender esse
episódio no Jacarezinho, mas também fornecem ângulos pelos quais se
pode analisar categorias e experiências que se reforçam mutuamente,
são socialmente construídas e têm forte conotação política ao
relacionarem raça e espaço urbano. Essas questões são:


(1) Como noções sobre o espaço urbano brasileiro são influenciadas
por concepções hegemônicas de raça?


(2) Como concepções hegemônicas de raça matizam a compreensão
do espaço urbano?


(3) Quais são as consequências políticas do círculo cognitivo que
existe entre raça e espaço urbano no contexto brasileiro?

Essas três perguntas tentam responder à questão mais óbvia e
fundamental: Por que as câmeras no Jacarezinho causaram reações tão
passionais? Como o artigo demonstra, havia algo mais naquela
indignação do que apenas a convicção de que as câmeras e os
portões iriam dificultar o trabalho da polícia e proteger o tráfico de
drogas.


A indignação vinha, em grande medida, com a forma pela qual a
instalação daquele equipamento no Jacarezinho desafiava as relações
tácitas, frequentemente reprimidas, mas perfeitamente claras, entre
negritude e favela.


Em outras palavras, o uso do equipamento de segurança rompia com
a compreensão hegemônica de espaços urbanos racializados
definidos a partir de atividades ilícitas e de moradores desprovidos
de agência política legítima.

Concebidos dessa forma, moradores de favelas são, em última análise,
perigosos, subumanos e incapazes de ações políticas racionais e
organizadas. Favelas têm sido pensadas como áreas
necessariamente permeáveis e sujeitas às regras da lei a todo e
qualquer momento; como lugares onde medidas preventivas
violentas sancionadas pelo Estado e pela sociedade destinam-se a
conter os perigos que possuem – antes que tais perigos possam
infiltrar-se no espaço político mais amplo.

Para contextualizar o conflito político entre a favela e seus
adversários, e refletir sobre as possíveis agendas de
pesquisa que podem emergir a partir daí, o autor discute
como a produção acadêmica pertinente no Brasil e nos
Estados Unidos têm abordado raça e espaço urbano.


O autor conclui com uma discussão sobre as implicações
teóricas e políticas mais amplas de como raça e espaço
urbano são componentes essenciais de um senso
comum hegemônico que sustenta e se alimenta da
marginalização histórica imposta aos negros.
VANALI, Ana Crhistina. Outras histórias da negritude em Curitiba: volume 3. Editora Fi © 2022
 A Curitiba idealizada e cosmopolita, tão propagada pela mídia
nacional e internacional, principalmente entre as décadas de 1970 e 1990,
com os slogans “cidade modelo”, “cidade ecológica”, “união de etnias”,
entre outros, enquanto, falaciosamente, passou a ideia de um lugar perfeito
para se viver, mascarrou uma realidade que não confirmava essa versão.
Hoje, a maioria da população autodeclarada negra reside nas regiões mais
afastadas do centro da cidade e com menos acesso a equipamentos
públicos de educação, cultura, lazer, saúde e segurança. Simbolicamente,
esse dado se reproduz por meio da valorização seletiva, por esse nexo, não
só as populações, mas a história da população negra e indígena é
escondida do centro.
 A valorização de algumas etnias aparece em pontos estratégicos da
cidade, como o Bosque do Alemão, o Bosque do Papa, entre outros.
Enquanto o Parque Tingui, que homenageia uma personalidade indígena,
tem uma boa localização, na região norte da cidade, mas abriga em seu
interior o Memorial Ucraniano. E a Praça Zumbi dos Palmares, homenagem
à cultura afro-brasileira está localizada na região sul da cidade, distante do
centro.
Apesar de ser a capital com o maior número de
pessoas negras da região sul do Brasil – 24% da população -,
Curitiba ainda é uma cidade marcada pela segregação e
desigualdade racial que insiste em negar a história e cultura
afrodescendente que a formou. É o que evidencia a pesquisa
“A racialização do espaço urbano da cidade de Curitiba-
PR“, de Glaucia Pereira, Mestre em Geografia pela
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Desenvolvido em 2021 com o objetivo de expor que
Curitiba foi arquitetada para expulsar a população de
baixa renda e negra do centro da cidade, o estudo é um
dos poucos que discutem a segregação espacial urbana
circunscrita à questão racial e as territorialidades negras
na capital paranaense.

Conforme a pesquisa da geógrafa, embora Curitiba


mantenha indicadores de desenvolvimento humano e
condições de vida altos, a cidade passou por processos
de planejamento urbano de caráter segregacionista que
excluíram a população negra de determinados espaços.
ESTUDOS FEMINISTAS SOBRE A
QUESTÃO URBANA: Abordagens e
Críticas
(Carolina Alvim de Oliveira Freitas)
 Pesquisa bibliográfica sobre os estudos feministas que se
dedicaram ao espaço urbano. Autoras de diversas nacionalidades,
especialmente a partir da passagem da década de 1970 para 1980,
começaram a escrever a respeito das possibilidades de
entrecruzamento entre categorias fundamentais do pensamento
feminista e os conceitos empregados nas pesquisas sobre o
espaço da cidade.

 A intenção é apresentar as diferentes abordagens que


gerações de geógrafas, arquitetas, urbanistas e sociólogas urbanas
elaboraram, contribuindo para o avanço de conexões entre os dois
campos do conhecimento.

 Dicotomia entre feminino e masculino como parâmetro


para desenvolverem outras dualidades, como público
(MASCULINO) e privado (FEMININO), produção e reprodução e
tempo e espaço.
 Dolores Hayden, professora de arquitetura e urbanismo da Universidade
de Yale, é possivelmente a autora mais conhecida no tema. Foi responsável pela
primeira sistematização sobre as contribuições teóricas feministas na
questão urbana (HAYDEN, 1984) e é referenciada em diversos estudos a partir
de seu artigo What would a non-sexist city be like? Speculations on Housing,
Urban Design and Human Work [Como seria uma cidade não machista?
Especulações sobre Habitação, Design Urbano e Trabalho Humano] (HAYDEN,
1981), uma espécie de manifesto, publicado em 1981.

 Hayden desenvolve neste texto a disparidade entre o processo de


suburbanização nas cidades dos Estados Unidos no pós-guerra e a
evolução da participação das mulheres no mercado de trabalho no mesmo
período, especialmente a partir da década de 1970.

 Ela critica o processo de produção capitalista do espaço, a partir de


um padrão industrial de subúrbios residenciais, e analisa como este espaço
foi fabricado a partir de uma concepção hegemônica sobre a família,
sobre o consumo familiar e os papeis sociais femininos.
 A casa suburbana das famílias brancas era uma “caixa vazia a ser
preenchida por mercadorias” (HAYDEN, 1981). Os produtos que recheariam a
habitação deveriam ser consumidos pelas mulheres, considerando o zelo
doméstico como sua missão histórica, enquanto os homens ganhariam salários
como funcionários qualificados na indústria, suficientes para a garantia da renda
familiar e do padrão de consumo exigido.

 Esta representação espacial da família branca nos Estados Unidos,


embora produzida incessantemente pelas políticas governamentais,
pela indústria e seus mentores, não correspondia à realidade.

 Hayden alerta que as demandas novas de consumo impunham às


mulheres a necessidade de sair de casa para trabalhar e complementar a
renda familiar.
 Muitas mulheres trabalhadoras que passaram a morar nos novos
bairros suburbanos eram forçadas a longos deslocamentos, exigidos pela
segregação dos espaços de trabalho e de habitação. Desde ali, a
possibilidade que restava para a conciliação entre trabalho e família era a
compra de serviços de manutenção e cuidados.

 A mercantilização da educação das crianças, do acompanhamento


de idosos, do tratamento de doentes e da manutenção do ambiente
doméstico era feita mediante a exploração de outras mulheres, ainda mais
oprimidas do que estas trabalhadoras suburbanas.

 Isso é muito explorado nas pesquisas que analisam a questão de gênero e sua
relação com a Covid-19. O relatório “Gender and Health Analysis: COVID-19 in the
Americas”, lançado em 2022 durante um webinar para marcar o Dia Internacional da
Mulher, explora os efeitos da pandemia em mulheres e meninas e apresenta
resultados em áreas como saúde, emprego e bem-estar social. Durante a pandemia,
o papel de cuidadora expôs as mulheres a um risco aumentado de contrair COVID-
19.
 Hayden descreve, a partir dessa observação sobre o subúrbio residencial,
uma situação paradoxal produzida pelo modelo urbano que formatava a
condição feminina: a imposição do papel doméstico não poderia ser
superada a não ser no caso de a posição social da mulher ser transformada
e, por outro lado, esta posição social não poderia mudar caso as
responsabilidades domésticas continuassem sendo base de sustentação do
modelo hegemônico de família.

O GÊNERO NA GEOGRAFIA (Crítica ao “universalismo” de Harvey)

Ao abordar entusiasticamente a cidade moderna como a cidade sinônima do


espaço público, Harvey também estaria descrevendo uma cidade de homens,
sobreposta ao confinamento feminino no lar privado e nos subúrbios. Harvey
menciona diversas vezes a questão da suburbanização, mas sem considerá-la a
partir da divisão entre o público e o privado. A experiência da modernidade é
costumeiramente recordada por seus artefatos culturais principais, construídos por
formas particulares das relações, que também definem feminilidade e masculinidade,
mas que se mantêm omitidas.
 Numa sociedade limitada por classes como o capitalismo, (...) as práticas
espaciais adquirem um conteúdo de classe definido, o que não quer dizer que
todas as práticas espaciais possam ser assim interpretadas. De fato, como muitos
pesquisadores mostraram, as práticas espaciais podem e realmente adquirem
conteúdo de gênero, racial e burocrático-administrativo (para listar apenas um
subconjunto de possibilidades importantes). Mas sob o capitalismo, é a ampla
gama de práticas de classe ligadas à circulação do capital, à reprodução da força
de trabalho, às relações de classe, e à necessidade de controlar a força de
trabalho, que permanece hegemônica (HARVEY, 1989).

Massey se contrapõe a esta ideia, considerando que há muito mais na


experiência espacial do que aquilo que o capital determina (MASSEY, 1994, p. 148) –
por exemplo, o colonialismo, o racismo e as transformações nas relações de gênero.
O GÊNERO NOS ESTUDOS SOBRE O URBANO EM CONTEXTO
GLOBAL

 Marguerite van den Berg, professora da Universidade de Amsterdam, registra em


seu livro ‘The Gender in The Post-Fordist Urban’ [‘O gênero no urbano pós-
fordista’] (VAN DEN BERG, 2017) sua investigação sobre a cidade de Rotterdam
como exemplo das alterações nas relações sociais de gênero no ambiente
urbano europeu pós-fordista.

 Tradicionalmente ina cidade vem sendo divulgada em planos de marketing


como uma cidade moderna, própria para mulheres e para famílias de alta
renda criarem seus filhosdustrial,.

 Uma cidade para relações de gênero pós-fordistas cuja representação é


inovadora e feminina, enquanto que a cidade industrial era uma cidade de
representação acuradamente masculina.
GENERIFICAÇÃO: aspecto do processo de produção do espaço que contém noções
de gênero pós-fordistas.

O esforço na associação da nova cidade às mulheres faz parte de um


contexto de lutas feministas que transformaram a condição das mulheres e das
próprias cidades, mas também de uma situação geral mais ampla de
desindustrialização de cidades tradicionalmente fabris na Europa (Liverpool, Liège,
Rotterdam, Marseille etc.) e da situação global instaurada a partir da crise financeira
de 2008 e o regime de acumulação flexível daí acentuado.
A cidade como negócio, na concorrência internacional de cidades, gera uma
economia de serviços muito femininizada.

A autora questiona que tipo de representação feminina é utilizada nesse


contexto, visto que, adotando a teoria interseccional, assume que o gênero é um
dos elementos que se combinam para a formação das relações sociais e que
apenas um tipo de mulher é representado nesse processo de renovação das
cidades ocidentais pós-industriais.

Nesse sentido, o gênero seria utilizado para produzir uma imagem de


classe: famílias ricas e de classe média (branca) são representadas nos
instrumentos de marketing das cidades e só servem para obstar as imagens da
classe trabalhadora e das camadas mais precarizadas socialmente nas
periferias desses ambientes urbanos.
No ano de 2017, o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) publicou
dois materiais destinados especialmente ao debate entre espaço urbano e gênero, a
partir da reflexão de diferentes mulheres sobre a cidade, sob temas e abordagens
múltiplas. São textos curtos, em formato eletrônico, que agregam de forma plural
temas relacionados ao direito à cidade das mulheres como: mobilidade, habitação,
raça, políticas públicas, movimentos sociais, etc. Além de sistematizarem a
experiência nos diferentes campos de atuação do Instituto, os textos organizam uma
série de importantes dados e estatísticas sobre acessibilidade, violência e
desigualdades espaciais na vida cotidiana das mulheres nas cidades brasileiras. As
publicações são de grande relevância por constituir uma das poucas obras sobre o
tema no contexto brasileiro.
O livro pode ser obtido nesse link:
https://www.obmobsalvador.org/post/direito-%C3%A0-cidade-uma-vis%C3%A3o-por-g%C3
%AAnero

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