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A Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR),

instituída pelo Decreto n. 7.053, de 23 de dezembro de 2009, caracteriza


como “população em situação de rua”: “o grupo populacional
heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária
ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite
temporário ou como moradia provisória” (Art. 1, parágrafo único).

Contudo, como veremos adiante, a definição da situação em que se


encontra essa população não define a sua subjetividade e seus
predicados, que perpassam por como a sociedade o vê e como o próprio
sujeito se vê (Rodrigues & Fernandes, 2020).

As pessoas em situação de rua, apesar de desenvolverem atividades


informais, são, sob a ótica do trabalho, frequentemente consideradas
improdutivas, inúteis, preguiçosas e vagabundas. São assim
estigmatizadas, pois as contradições básicas do modo capitalista de
produção escancaram as contradições e a falácia de que todos possuem
iguais oportunidades e a evidência de que, embora a produção seja
social, a apropriação dos ganhos é sempre individual.

Em um mecanismo de culpabilização (Mattos apud Guareschi, 1999 )


diante da (pseudo) igualdade e da competitividade inerente ao ideal
liberal, qualquer problemática que envolva a inserção do indivíduo no
sistema produtivo é alvo de um reducionismo que o descontextualiza da
sociedade e transfere-lhe a culpa e responsabilidade por sua condição,
por parte da sociedade no geral e até por outras pessoas em situação de
rua.

Uma armadilha bastante importante diretamente relacionada à da


naturalização do uso da expressão “populações vulneráveis” para rotular
determinados grupos populacionais como base para focalização de
políticas sociais em uma perspectiva de tutela e, nesse sentido, de uma
diferenciação depreciativa de suas capacidades e estatuto social, uma
discriminação só aparentemente positiva (Ayres, Castellanos & Baptista,
2018).

Uma rotulação que acaba por vitimizar as pessoas e diminuir a própria


capacidade de ação delas, encapsulando-as no lugar da não ação, como
sujeitos que simplesmente estão sofrendo determinações externas que
não podem ser contrapostas (Ayres, Castellanos & Baptista, 2018).

Segundo Ayres, Castellanos & Baptista (2018), a primeira coisa para se


pensar em vulnerabilidade é se perguntar: “vulnerabilidade a quê?”. Não
existe vulnerabilidade em geral. É possível pensar em sinergias entre
vulnerabilidades, mas sempre temos de nos perguntar vulnerabilidades
“de quem?”, “a quê?”, “quando?”, “onde?”, para que não naturalizemos a
questão.
A vulnerabilidade é sempre relacional. Então, na verdade, seria mais
adequado pensarmos em relações de vulnerabilização do que em
populações vulneráveis.

Segundo Ayres, Castellanos & Baptista (2018), a primeira coisa para se


pensar em vulnerabilidade é se perguntar: “vulnerabilidade a quê?”. Não
existe vulnerabilidade em geral. É possível pensar em sinergias entre
vulnerabilidades, mas sempre temos de nos perguntar vulnerabilidades
“de quem?”, “a quê?”, “quando?”, “onde?”, para que não naturalizemos a
questão.

A vulnerabilidade é sempre relacional. Então, na verdade, seria mais


adequado pensarmos em relações de vulnerabilização do que em
populações vulneráveis.

É a própria população vulnerabilizada que tem de nos dizer o caminho


para as relações de vulnerabilização que estão em questão, e aí
trabalharmos sobre essas relações.

Enfim, o que se espera com as estratégias de redução de vulnerabilidade


é emancipação, é reconhecimento mútuo.

Vulneráveis somos todos nós, porque faz parte da condição humana ser
vulnerável, ou seja, ser dependente.

São conteúdos simbólicos de cunho ideológico, na medida em que


favorecem a cristalização de relações de exploração e dominação
(Mattos apud Guareschi, 1996, 2002).

Esses “estigmas e rótulos” precedem à interação com o outro e o modela,


sendo transmitidos entre gerações e perpetuando a representação social
de um grupo antes mesmo de conviver com ele.

Compreendemos “representação social” como “uma forma de


conhecimento, socialmente elaborada e partilhada com um objetivo
prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um
conjunto social. Igualmente designada como ´saber de senso comum´
ou, ainda, ´saber ingênuo´, natural, essa forma de conhecimento é
diferenciada, entre outras, do conhecimento científico” (Mattos apud
Jodelet, 2001, p. 22).

As representações sociais sobre as pessoas em situação de rua reforçam


a construção de identidades articuladas com valores negativamente
afirmados.

Assim, as representações sociais acerca de pessoas em situação de rua


repercutem na construção de suas identidades e adentram no campo
ideológico de dominação, pois se “reproduzem” e se cristalizam em
relações concretas de dominação incessantemente por meio de uma fala,
um gesto, um encontro, em nosso universo cotidiano (Mattos, 2004),
minando a possibilidade da construção de identidades mais críticas e
autônomas.

Veja a seguir a concepção de Vulnerabilidade Social considerando o


Índice de Vulnerabilidade Social (IPEA), dos determinantes sociais da
saúde:

“Art. 3º Para fins do disposto nesta Portaria, consideram-se as seguintes definições:


(...) II - Vulnerabilidade social: condições individuais e coletivas de respostas diante
aos riscos decorrentes do contexto econômico, social e político. Conceito alinhado à
concepção dos Determinantes Sociais de Saúde e às dimensões de infraestrutura
urbana, capital humano, renda e trabalho constantes no Índice de Vulnerabilidade
Social (IVS/IPEA) que se expressam por meio da exclusão, discriminação, barreiras
de acesso às políticas públicas, violação dos direitos humanos, dentre outros.”
(Política Nacional de Promoção da Equidade em Saúde, normativa em tramitação na
CIT)

Acesso à alimentação, serviços e cidadania

Alimentação

A maioria (79,6%) consegue fazer ao menos uma refeição por dia. 27,4%
compram comida com seu próprio dinheiro.

Não conseguem se alimentar todos os dias (ao menos uma refeição por
dia) 19% dos entrevistados.

Condições de saúde

29,7% dos entrevistados afirmaram ter algum problema de saúde


(gráfico).

Entre os problemas de saúde mais citados, destacam-se: hipertensão


(10,1%), problema psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/Aids (5,1%) e
problemas de visão/cegueira (4,6%).

Quando doentes, 43,8% dos entrevistados procuram em primeiro lugar o


hospital/emergência. Em segundo lugar, 27,4% procuram o posto de
saúde.

É significativo o número de pessoas em situação de rua que dizem não ter


problemas de saúde (62%). Um ponto a mais para a atenção dos profissionais
de saúde, tendo em vista as condições de vida dos sujeitos, o que recoloca a
questão do estigma, pois os próprios sujeitos podem não se “avaliarem como
merecedores” de cuidados, ou mesmo só julgar-se doentes, quando não
conseguem mais trabalhar.

Trabalho e renda

A população em situação de rua é composta, em grande parte, de


trabalhadores: 70,9% exercem alguma atividade remunerada.

Dessas atividades, destacam-se: catador de materiais recicláveis


(27,5%), flane- linha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e
carregador/estivador (3,1%).

Apenas 15,7% das pessoas pedem dinheiro como principal meio para a
sobrevivência. Esses dados são importantes para desmistificar o fato de
que a população em situação de rua é composta de “mendigos” e
“pedintes”. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem
minoria.

Desse modo, a maioria tem profissão: 58,6% dos entrevistados


afirmaram ter alguma profissão.

Entre as profissões mais citadas, destacam-se aquelas ligadas à


construção civil (27,2%), ao comércio (4,4%), ao trabalho doméstico
(4,4%) e à mecânica (4,1%).

Trabalho e renda

A população em situação de rua é composta, em grande parte, de


trabalhadores: 70,9% exercem alguma atividade remunerada.

Dessas atividades, destacam-se: catador de materiais recicláveis


(27,5%), flane- linha (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza (4,2%) e
carregador/estivador (3,1%).

Apenas 15,7% das pessoas pedem dinheiro como principal meio para a
sobrevivência. Esses dados são importantes para desmistificar o fato de
que a população em situação de rua é composta de “mendigos” e
“pedintes”. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem
minoria.

Desse modo, a maioria tem profissão: 58,6% dos entrevistados


afirmaram ter alguma profissão.
Entre as profissões mais citadas, destacam-se aquelas ligadas à
construção civil (27,2%), ao comércio (4,4%), ao trabalho doméstico
(4,4%) e à mecânica (4,1%).

A Tabela 4, por sua vez, apresenta a estimativa de pessoas em situação


de rua por porte populacional, distinguindo, ainda, as capitais e
apresentando a taxa de crescimento no período para cada grupo. Fica
claro que o fenômeno segue apresentando características
eminentemente urbanas. Ou seja, é nos grandes municípios que essa
população se concentra e é neles que se observa uma taxa de
crescimento maior. Não obstante, observa-se que, em 2020, 18,5% da
população em situação de rua estão em municípios pequenos ou médios,
indicando a necessidade de se pensar em políticas públicas adequadas a
essas localidades.

O crescimento mais intenso nos grandes municípios sugere que a crise


econômica e, em particular, o aumento do desemprego e da pobreza
sejam fatores importantes para a explicação do ocorrido.

Recursos utilizados para a higiene

Os principais locais utilizados pelas pessoas em situação de rua para


tomar banho são a rua (32,6%), os albergues/abrigos (31,4%), os
banheiros públicos (14,2%) e a casa de parentes ou amigos (5,2%).

Nota:

“PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA COMO SUJA”

O estereótipo é clássico: roupa esfarrapada, pele encardida com


dermatoses, às vezes abrindo em feridas, corpo marcado por cicatrizes,
unhas das mãos e dos pés enegrecidas, compridas e, por vezes,
deformadas, dentes em parte caídos, em parte cariados, cabelos
ensebados, olhos congestionados, etc. São signos genéricos que contam
a trajetória social e tornam evidente que o indivíduo faz parte da
população pobre que habita as ruas.

Entretanto, o que ocorre na verdade é que a grande maioria dos


indivíduos que habitam as ruas não compartilha desses atributos.

Não obstante, o que se observa é a constante demanda dos cidadãos em


solicitar a remoção de moradores de rua que estão localizados perto de
suas residências. Nesses casos, o lema é: “vamos recolher as pessoas,
vamos dar banho, vamos tirar a sujeira” (Mattos, 2004).

O “discurso psiquiátrico” (Mattos apud Stoffels, 1977) identifica as PSRs


como doentes mentais, loucas e desviantes sociais. Esse conteúdo,
difundido no senso comum, assume que a mendicância pode ser
considerada, de modo geral, como gênese e produto de distúrbios de
personalidade, doenças mentais ou psicopatia e “desajustados sociais”.
Vistos como “loucos” ou “casos de internação”, o diferente passa a ser
objeto de estranhamento e repulsa.

Ora, se morar em uma residência fixa, trabalhar formalmente e constituir


família são padrões sociais que caracterizam os indivíduos “normais”,
logo, sem residência fixa, sem família e trabalho formal, as pessoas em
situação de rua são alvos de investidas ideológicas que acentuam suas
“anormalidades”.

“PSR COMO INVISÍVEL”

Dessa forma, o mito do invisível cai por terra. Enquanto a “invisibilidade”


dessa população é tratada apenas como omissão do Estado e da
sociedade, ignoramos as ações repressoras, de intolerância que
mobilizam ações policiais, por exemplo, tão relatadas e comungadas
pelos indivíduos em situação de rua em seus cotidianos intensos de
humilhação e violência, seja esta física ou simbólica, por parte da
sociedade ou do Estado (Rodrigues & Fernandes, 2020).

Posse de documentação

24,8% das pessoas em situação de rua não possuem quaisquer


documentos de identificação, o que dificulta a obtenção de emprego
formal, o acesso aos serviços e programas governamentais e o exercício
da cidadania.

Acesso aos programas governamentais

A grande maioria não é atingida pela cobertura dos programas


governamentais: 88,5% afirmaram não receber qualquer benefício dos
órgãos governamentais.

Entre os benefícios recebidos, destacaram-se a aposentadoria (3,2%), o


Programa Bolsa Família (2,3%) e o Benefício de Prestação Continuada
(1,3%).

Discriminações sofridas

As pessoas em situação de rua sofrem muitas discriminações, que se


expressam, por exemplo, no fato de serem frequentemente impedidas de
entrar em certos locais (gráfico).

É importante ressaltar que a mensuração dessa informação se deu com


base, apenas, em informações sobre impedimentos sofridos, sem
considerar as possíveis não tentativas vindas do fato de que muitos
indivíduos nem tentam entrar em certos locais para evitar o
constrangimento decorrente da provável negativa.

Como veremos adiante, este curso perpassará constantemente pela


desconstrução de mitos e estigmas e, especialmente, pela
instrumentalização do aluno que permita o acesso desses cidadãos à
Atenção Básica

Participação em movimentos sociais e cidadania

A grande maioria (95,5%) não participa de qualquer movimento social ou


atividade de associativismo. Apenas 2,9% confirmaram participação em
algum movimento social ou associação.

A maioria (61,6%) não exerce o direito de cidadania elementar que é o


voto para a escolha dos representantes parlamentares e dos executivos
governamentais, uma vez que não possui título de eleitor.

Principais afecções e prevalências para a


PSR
PNAB, 2017

A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) estabelece a revisão de


diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema
Único de Saúde (SUS).

A PNAB está na Portaria n. 2.436, de 21 de setembro de 2017, e traz,


dentre as atribuições comuns a todos os membros das Equipes que
atuam na Atenção Básica:

- “Participar do processo de territorialização e mapeamento da área de


atuação da equipe, identificando grupos, famílias e indivíduos expostos
a riscos e vulnerabilidades”.
- “Realizar o cuidado integral à saúde da população adscrita,
prioritariamente no âmbito da Unidade Básica de Saúde, e, quando
necessário, no domicílio e demais espaços comunitários (escolas,
associações, entre outros), com atenção especial às populações que
apresentem necessidades específicas (em situação de rua, em
medida socioeducativa, privada de liberdade, ribeirinha, fluvial, etc.).”
- “Realizar visitas domiciliares e atendimentos em domicílio às famílias e
pessoas em residências, Instituições de Longa Permanência (ILP),
abrigos, entre outros tipos de moradia existentes em seu território,
de acordo com o planejamento da equipe, necessidades e prioridades
estabelecidas”.
A PNAB estabelece Responsabilização Sanitária no Território, entendida como
“papel que as equipes devem assumir em seu território de referência
(adstrição), considerando questões sanitárias, ambientais (desastres, controle
da água, solo, ar), epidemiológicas (surtos, epidemias, notificações, controle de
agravos), culturais e socioeconômicas, contribuindo por meio de intervenções
clínicas e sanitárias nos problemas de saúde da população com residência fixa,
os itinerantes (população em situação de rua, ciganos, circenses,
andarilhos, acampados, assentados, etc.) ou mesmo trabalhadores da área
adstrita”.

Atendimentos na UBS

As equipes de consultório na rua (eCR) são equipes de natureza


itinerante, que exercem sua atividade no ambiente da rua, nas UBS, e
que atuam de forma interinstitucional de modo a melhorar o acesso da
PSR a serviços de saúde, a equipamentos púbicos do Estado e à
comunidade.

Cada equipe tem vínculo com uma UBS de referência, submetendo-se ao


mesmo processo de cadastramento e financiamento das demais equipes
da Atenção Básica.

As UBS são espaços privilegiados para ações mais complexas por parte
das eCR, que atendem exclusivamente a PSR.

Dados coletados do SISAB, no período de 12 meses (agosto de 2019 a


julho de 2020), mostram que, numa amostra significativa (cerca de 84
milhões de atendimentos realizados no período), as ofertas principais
que ocorrem no ambiente da UBS diferenciam-se entres as equipes de
Saúde da Família (eSF), equipes de Atenção Básica (eSB) e as eCR.
Embora as condições de saúde mental estejam entre os principais
motivos de visita à UBS pela PSR, não são exclusividade dessa
população. As especificidades de saúde da PSR não só fazem parte da
carteira de serviços da Atenção Básica como podem ser realizadas tanto
quanto as demais ações programáticas para as principais
condicionalidades de saúde da população geral.

Atendimentos na rua

Dados coletados do SISAB, no período de agosto de 2019 e julho de


2020, mostram que dos problemas abordados na rua por todas as
equipes da APS, usuário de álcool (23,6%), tabagismo (21,2%), saúde
sexual e reprodutiva (10,4%), puericultura (9,0%), hipertensão arterial
(8,5%), reabilitação (6,1%), usuário de outras drogas (5,8%), saúde
mental (5,6%), IST (4,3%) perfazem 94,5% de todos os 172.381
atendimentos realizados no período.

Enquanto usuários de álcool (33%), tabagismo (30%), saúde sexual e


reprodutiva (9%) e usuário de outras drogas (8%) foram os principais
problemas abordados na rua pela eCR. Para as demais equipes da APS,
puericultura (23%), hipertensão arterial (19%), reabilitação (16%), saúde
sexual e reprodutiva (14%) e IST (10%).

Desse total de atendimentos no cenário da rua, 120.685 (70%) foram


realizados por 190 equipes de Consultório na Rua (ECR) no país e
51.696 (30%), pelas demais 117.736 (99,8%) equipes da ESF (Eq. de
Saúde da Família - ESF, Eq. Ag. Com. de Saúde - EACS, NASF, Eq. da
Atenção Básica - EAB, Eq. de Saúde Bucal - SB, Eq. AB Prisional –
EABp).

A constatação de que apenas 0,2% das equipes da Atenção Básica


realiza a maioria (70%) de todos os atendimentos na rua infere a
importância e o subutilizado potencial de acesso pela ampliação dos
atendimento a essa população pela ESF na visita ao seu território.

As maiores disparidades entre as equipes ocorrem em relação à


abordagem na rua para uso de substâncias. (Essa diferença tão
significativa pode se justificar pelo fato de as equipes da ESF não verem
a rua como cenário propício para o trabalho na perspectiva da redução
de danos.

Um grande estudo realizado nos EUA com base na análise de mais de


64.000 entrevistas utilizando o questionário VI-SPDAT (Vulnerability
Index - Service Prioritization Decision Assistance Tool), em 2019 consiste
no mais abrangente estudo de pessoas em situação de rua nos Estados
Unidos até o momento e compara os indivíduos em situação de rua
abrigados e não abrigados (moradia/habitação instável).

Os indivíduos abrigados relatam em média melhores condições de saúde


física e mental, embora os dados não suportem conclusões de que o
abrigo é a causa de melhorias na saúde. É provável que as pessoas que
ficam desabrigadas por longos períodos sejam aquelas que não podem
acessar um abrigo por uma série de razões.

Não obstante, os resultados reforçam a importância da estabilidade


habitacional como um determinante social de saúde essencial para
combater o desabrigamento crônico para as pessoas em ambos os
grupos.

Ou seja, quanto mais um indivíduo permanece desabrigado, menor a


chance de ressocialização e abrigamento estáveis e mais agravadas
serão suas condições de saúde mental e física (Rountree, Hess & Lyke,
2019).

Pessoas não abrigadas - especialmente mulheres relatam desafios


sanitários maiores, experimentam mais violência e traumas e
permanecem períodos mais longos desabrigadas do que as pessoas em
situação de rua que estão em abrigos.

Indubitavelmente, os não abrigados são abordados mais frequentemente


pela força policial e pelo Estado e frequentam mais os serviços de
emergência do que indivíduos abrigados. Fonte: Adaptado de Rountree,
Hess & Lyke, 2019.

Pessoas sem abrigo continuam a ter condições de saúde graves e


agravantes enquanto desabrigadas.
PSRs desabrigadas têm mais de quatro vezes mais probabilidade de
relatar uma doença física do que pessoas abrigadas (84% vs. 19%),
quase uma vez e meia mais probabilidade de relatar uma doença mental
(78% vs. 50%), mais de cinco vezes mais probabilidade de relatar abuso
de substância (75% vs. 13%) e 25 vezes mais probabilidade de relatar
todas as três condições simultaneamente (50% vs. 2%).

Mesmo as PSRs desabrigadas há menos de um ano relatam uma


presença muito maior de problemas de saúde do que as que estão em
abrigamentos há mais de três anos (75% vs. 37%).

Acolhimento e técnicas de escuta


“Longitudinalidade do cuidado: pressupõe a continuidade da relação
de cuidado, com construção de vínculo e responsabilização entre
profissionais e usuários ao longo do tempo e de modo permanente e
consistente, acompanhando os efeitos das intervenções em saúde e de
outros elementos na vida das pessoas, evitando a perda de referências e
diminuindo os riscos de iatrogenia que são decorrentes do
desconhecimento das histórias de vida e da falta de coordenação do
cuidado.” (Brasil, 2017).

Quando cuidamos de uma pessoa em situação de rua, estamos


observando o momento atual e, por vezes, esquecemo-nos de que, além
dessa característica, por trás há uma história, alegrias, tristezas, família,
amores, amigos, trabalho, adoecimentos físicos e mentais.

Para Seixas et al. (2019), trazem uma reflexão: a de que temos o desejo


de que todos os nossos usuários sejam “pessoas-cordeiras”, os que são
às vezes retiram suas peles de cordeiro e revelam-se, seja por não
cumprirem o combinado, seja por faltarem à consulta. Nem sempre a
construção do vínculo será algo fácil e espontâneo. Os achados sobre
estabelecimento de vínculo dizem que vínculos podem ser construídos,
desconstruídos ou, até mesmo, nunca alcançados.
O que seria importante para que possamos construir um vínculo positivo
entre profissional de saúde e usuário?
Algo fundamental para estabelecimento do vínculo é a escuta, que
adjetivamos como qualificada. A escuta é um processo dialético, escutar
e ser escutado e, em consequência, gradativamente, ir construindo
coletivamente a díade profissional-usuário. Merhy et al. (2019)
problematizam a dificuldade de simetria nessas relações, a complexidade
que usuários e profissionais sigam na mesma direção, mas sinalizam que
uma forma desse encontro seguir para os mesmos caminhos seria o
reconhecimento das dificuldades de encaixar usuários, protocolos, fluxos
e até mesmo planos terapêuticos singulares unilaterais, sem a
participação do usuário.
O que seria então uma escuta qualificada? É a escuta na qual o
profissional está aberto e disponível a entender a demanda trazida pelo
usuário, tentando se desprender de expectativas morais, para escutar a
história por trás da sua vinda até a unidade de saúde e só ai apresentar a
esse usuário as possibilidades de cuidado e as formas de funcionamento
dos serviços. A escuta é muitas vezes menosprezada, mas, como
apresentamos, possibilita o vínculo, e é este que possibilitará pactuar o
tratamento proposto.

Escutar a história, para além da queixa de saúde, conecta o profissional


ao usuário, pode auxiliar no desenvolvimento da confiança e apresenta
as prioridades desse usuário, dinâmica do cotidiano, bem como nos dá
dicas por onde começar.

Clique aqui para assistir o vídeo Maria Lúcia – Filha da Rua

Segundo o dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa:

Acolher: 

1. oferecer ou obter refúgio, proteção ou conforto físico; abrigar(-se), amparar(-se).


2. dar ou receber hospitalidade; hospedar(-se), alojar(-se). 3. prestar cerimônia a;
recepcionar. 4. receber, admitir (algo); aceitar. "5. dar crédito a, levar em
consideração (pedido, requisição etc.); atender.

Escutar:  

1. estar consciente do que está ouvindo. 2. ficar atento para ouvir; dar atenção a. 3.
esforçar-se para ouvir com clareza. 4.levar em consideração.

O vínculo também possibilita que o usuário traga outros usuários para o


atendimento, se for possível construir a confiança entre todos, tudo fica
mais fácil. Entre a população em situação de rua, o velho marketing boca
a boca ganha bastante significado.
Lembre-se

Quando foram apresentados os dados sobre o perfil, vimos que 24,8%


das pessoas em situação de rua não possuem documentos de
identificação. Isso, contudo, não pode impedir de que haja atendimento a
um usuário.

Muitos profissionais de saúde ainda não sabem da mudança ocorrida em


relação a exigência de documentos de comprovante de residência para
pessoas em situação de vulnerabilidade social. A exigência de
documentação de residência tem o sentido de organizar territórios e
pensar de forma estratégia no cuidado em saúde da população de um
determinado território. Seja este território um estado, cidade ou bairro.
Porém pensar em um determinado território é incluir aqueles que não
possuem meios e formas de comprovar que nele residem. Lei nº 13.714,
de 24 de agosto de 2018 Art. 2º O art. 19 da Lei nº 8.742, de 7 de
dezembro de 1993, passa a vigorar acrescido do seguinte parágrafo
único: "Art. 19. Parágrafo único. A atenção integral à saúde, inclusive a
dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, às
famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade ou risco social e
pessoal, nos termos desta Lei, dar-se-á independentemente da
apresentação de documentos que comprovem domicílio ou inscrição no
cadastro no Sistema Único de Saúde (SUS), em consonância com a
diretriz de articulação das ações de assistência social e de saúde a que
se refere o inciso XII deste artigo." (NR) (grifo nosso)

Dicas
Técnicas de escuta

Para uma boa escuta, precisamos estar presentes no momento do


atendimento escutando de forma atenciosa o que está sendo falado pelo
usuário.

Deve-se prestar atenção no que ele diz nas entrelinhas. Por vezes, ele
repete uma mesma informação para nos contar algo de que tem
vergonha ou que acredita que não entenderemos...

Não tenha medo ou vergonha de perguntar o que o usuário está


querendo dizer ou contar. É possível perguntar o que não entendeu.

Às vezes, alguns termos usados, como linguagens regionais, gírias, etc.,


são desconhecidos por nós e podem ser perguntados.

Acolhimento e vínculo como estratégias de


cuidado
O acolhimento das pessoas que buscam ou necessitam de atendimento
em saúde deverá ocorrer em todo e qualquer espaço de cuidado, seja ele
dentro do consultório médico, no corredor da UBS, debaixo de um
viaduto ou dentro de um equipamento da assistência social.

Acolher o outro é incluí-lo no processo de cuidado, é escutá-lo


atentamente para cuidar de forma responsável, integral e resolutiva.
(Marcelo Pedra, reunião de trabalho - 10/07/2020).

E quem deve acolher a população em situação de rua? Todo e qualquer


trabalhador do SUS. Temos a certeza de que não precisamos de
especialistas para acolher e cuidar da população em situação de rua, e
sim de trabalhadores informados, disponíveis para o cuidado,
conhecedores de técnicas e ferramentas que os apoiem nesse processo.

As técnicas de escuta, o acolhimento, o vínculo e a ferramenta do


matriciamento são alguns desses instrumentos necessários para tal
cuidado.

Nas cenas apresentadas, poderemos verificar diferentes formas de


acolhimento realizadas por Sandro (vigilante), Marcos (agente de saúde)
e Ana Lúcia (médica), esses dois últimos trabalhadores do SUS, no
encontro com Catarina, mulher trans em situação de rua.

É importante destacar que a forma como a pessoa é acolhida será


fundamental para estabelecimento de uma relação de confiança,
fortalecimento ou não de vínculo, essencial para os cuidados de saúde.

Você sabia?
Significado de Acolher

Receber alguém; hospedar, agasalhar. Abrigar-se de; refugiar-se.


Etimologia (origem da palavra acolher ). Do latim accolligere, “recolher,
receber, retirar”.

Sinônimos de Acolher

Acolher é sinônimo de: acomodar, abrigar, albergar, alojar, asilar,


hospedar, amparar, apoiar, gasalhar, receber, aceitar

Antônimos de Acolher

Acolher é o contrário de: expulsar

O que é acolhimento?

Acolhimento é uma diretriz da Política Nacional de Humanização (PNH),


que não tem local nem hora certa para acontecer, nem um profissional
específico para fazê-lo: faz parte de todos os encontros do serviço de
saúde. O acolhimento é uma postura ética que implica a escuta do
usuário em suas queixas, o reconhecimento do seu protagonismo no
processo de saúde e adoecimento e a responsabilização pela resolução,
com ativação de redes de compartilhamento de saberes. Acolher é um
compromisso de resposta às necessidades dos cidadãos que procuram
os serviços de saúde. (BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE, 2008).

Se o primeiro encontro do profissional de saúde com o paciente acontecer de


forma respeitosa, com escuta atenta e disponibilidade para o cuidado
favorecerá o estabelecimento de vínculo e confiança, o que interfere
positivamente nas relações posteriores estabelecidas com os demais membros
da equipe. O acolhimento, como ética para o cuidado, pode e deve ser
realizado por todo e qualquer membro da equipe de saúde, desde o profissional
que trabalha na recepção administrativa, equipe de segurança patrimonial,
agente comunitário de saúde, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, médico a
demais trabalhadores da equipe de saúde.

É fundamental a qualificação/formação em saúde de todos os trabalhadores de


saúde do SUS, inclusive a equipe que é responsável pelo primeiro contato com
os pacientes, geralmente equipe da segurança/vigilância dos serviços, e a
recepção administrativa dos serviços. Esses trabalhadores podem facilitar a
entrada e recepção dos pacientes agindo de forma gentil e receptiva, ou ainda
“expulsá-los” agindo de forma hostil e pouco receptiva, interferindo positiva ou
negativamente no cuidado longitudinal e acompanhamento das pessoas.

O profissional de saúde, ao mostrar-se humilde no contato e próximo de seus


pacientes, atento e disponível para compreender suas histórias, dinâmicas de
vida, favorece positivamente a adesão deles ao serviço de saúde e,
consequentemente, a continuidade dos seus cuidados.

Acolhimento como organizador da clínica e


do serviço
Neste tópico, trataremos do acolhimento como instrumento organizador
da clínica e do serviço, como delineador de fluxos e caminhos de cuidado
a serem percorridos dentro do serviço de saúde. Assim, o foco da
narrativa será o acolhimento com classificação de risco, que acontecerá
dentro da Unidade Básica de Saúde, especificamente em uma sala de
atendimento de demanda espontânea.

Também discutiremos a ambiência do serviço de saúde, como um espaço


de relações de cuidados, e como essa ambiência pode representar
barreiras de acesso ao cuidado em saúde.

É importante dizer que o acolhimento não pressupõe uma sala específica


para acontecer, bem como não existe um profissional específico para
fazê-lo, pretendemos discutir aqui a porta de entrada da Unidade Básica
de Saúde e refletir a nomenclatura utilizada em muitos serviços: sala e
equipe de acolhimento! Será que, em ambientes dos serviços em que
não existe a sala de acolhimento, não existe acolhimento?

Acolhimento com classificação de risco

A classificação de risco é um dispositivo da PNH, uma ferramenta de


organização da "fila de espera" no serviço de saúde, para que aqueles
usuários que precisam mais sejam atendidos com prioridade, e não por
ordem de chegada.

E quem  precisa mais?

Os usuários que têm sinais de maior gravidade, aqueles que têm maior
risco de agravamento do seu quadro clínico, maior sofrimento, maiores
condições de vulnerabilização e que estão mais frágeis.

BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE. Acolhimento. BVS, Brasília, nov.


2008. Disponível
em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/dicas/167acolhimento.html . Acesso
em: 21 ago. 2020.

E como saber quem precisa mais?


A classificação de risco é feita por enfermeiros, de acordo com critérios
preestabelecidos em conjunto com os médicos e os demais profissionais.
A classificação de risco não tem como objetivo definir quem vai ser
atendido ou não, mas define somente a ordem do atendimento. Todos
são atendidos, mas há atenção ao grau de sofrimento físico e psíquico
dos usuários e agilidade no atendimento a partir dessa análise.

Como faço para que o acolhimento aconteça no serviço de


saúde?

Essa discussão com toda a equipe vai mostrar o que pode ser mudado
para que o usuário seja melhor acolhido. Assim, a partir dessa reunião,
pode haver mudanças na entrada, na sala de espera, por exemplo, para
que haja um profissional de saúde que acolha o usuário antes da
recepção, forneça as primeiras orientações e o encaminhe para o local
adequado.

A recepção também pode mudar, utilizando-se a classificação de risco e


também um pós-consulta, ou seja, uma orientação ao usuário depois da
consulta, a partir do encaminhamento que tiver sido feito na consulta.

BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE. Acolhimento. BVS, Brasília, nov.


2008. Disponível
em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/dicas/167acolhimento.html . Acesso
em: 21 ago. 2020.
“Para a concretização dos processos de trabalho em saúde são utilizadas
diferentes tecnologias que podem ser classificadas em tecnologias leves (como
no caso das tecnologias de relações do tipo produção de vínculo,
autonomização, acolhimento, gestão como uma forma de governar processos
de trabalho), leves (como no caso de saberes bem estruturados que operam no
processo de trabalho em saúde, como a clínica médica, a clínica psicanalítica,
a epidemiologia, o taylorismo, o fayolismo) e duras (como no caso de
equipamentos tecnológicos do tipo máquinas, normas, estruturas
organizacionais) (Merhy, 2002).

A utilização das tecnologias leves contempla a existência de um objeto de


trabalho dinâmico, em contínuo movimento, não mais estático, passivo ou
reduzido a um corpo físico. Esse objeto exige dos profissionais da saúde,
especialmente do enfermeiro, uma capacidade diferenciada no olhar a ele
concedido, a fim de que percebam essa dinamicidade e pluralidade, que
desafiam os sujeitos à criatividade, à escuta, à flexibilidade e ao sensível
(Rossi & Lima, 2005).

Temos, em síntese, que o acolhimento-diálogo corresponde a uma


espécie de protocolo geral de comunicação entre todos os elementos que
compõem a rede. Assim, não se trata necessariamente de uma atividade
em particular, mas de um conteúdo de qualquer atividade assistencial. É
dessa forma, então, que o acolhimento-diálogo desempenha papel
fundamental na dinâmica organizacional, redundando em
encaminhamentos, deslocamentos, trânsitos pela rede assistencial, que
são, em última instância, o resultado do que se passa e das decisões
tomadas num encontro pautado pelas já mencionadas disposições
“morais” e “cognitivas”

Trata-se rigorosamente de uma técnica de conversa, um diálogo


orientado pela busca de uma maior “ciência” das necessidades de que o
usuário se faz portador e das possibilidades e dos modos de satisfazê-
las (Teixeira, 2003).

A escuta qualificada leva em conta sinais e sintomas dos agravos em saúde,


mas também a história que vem com esses sintomas.

Acolher não requer espaço físico ou exigência de escolaridade específica,


requer disponibilidade, escuta ativa, respeito às individualidades, devendo ser
realizado por todo e qualquer trabalhador do serviço de saúde. O bom
acolhimento favorece o vínculo e, consequentemente, maiores chances de
cuidado longitudinal de pessoas em situação de rua.

As tecnologias leves são tecnologias de relações, como acolhimento, vínculo,


autonomização, responsabilização e gestão como forma de governar processos
de trabalho.

O que é matriciamento?
Em alguns momentos, há necessidade do matriciamento, em razão da
dificuldade de aplicar protocolos que são usados diariamente para as pessoas
domiciliadas. Quando falamos sobre atendimento a pessoas em situação de
rua, precisamos entender seus hábitos, culturas e como ocorrem seus vínculos
afetivos.

“O matriciamento ou apoio matricial é um modo de produzir saúde em


que duas ou mais equipes, num processo de construção compartilhada,
cria uma proposta de intervenção pedagógico-terapêutica” (MS, 2011).
São encontros entre profissionais de diferentes equipes e de diferentes
áreas de conhecimento objetivando a construção coletiva que, além da
construção de um projeto terapêutico para melhor resolutividade dos
casos atendidos, amplia o cuidado e o conhecimento em saúde de todos
os envolvidos.

Esses encontros devem ser precedidos de levantamento de dados do


usuário, histórico de tratamentos, dinâmica do cotidiano desses usuários,
levantamento das dificuldades encontradas para colocar em prática
estratégias de cuidado para que, dessa forma, saberes e conhecimentos
possam ser trocados de modo a atender às necessidades em saúde. No
caso da população em situação de rua, por vezes, necessidades sociais,
para que possa realizar o tratamento para melhoria na qualidade de vida
dessas pessoas de forma mais adequada.

Em alguns momentos ou por muito tempo, a verticalização da saúde


tornou-se a “armadilha” na qual todos caímos, ou seja, repassar o caso
para um serviço mais especializado ou até mesmo “devolvê-lo” para a
equipe de referência da ESF. Sabemos que todas as pessoas residentes
ou que ocupem um local no território, mesmo que esse local seja uma
calçada na marquise de um comércio, ou uma casa abandonada, sempre
deverão ser assistidas por sua equipe de ESF. Essa equipe, em alguns
momentos, poderá apresentar dúvidas ou dificuldades na condução do
tratamento.

Tais dúvidas ou dificuldades, quando falamos de PSR, podem ser na


complexidade em aplicar o protocolo para determinado tratamento, como
o caso de um tratamento de tuberculose ou mesmo um egresso de um
hospital psiquiátrico que necessite de medicação e acompanhamento. As
condições de ocupar as ruas tornam a guarda da medicação, horários
para o Dot ou presença em consultas médicas algo inviável. É nessa
hora que a equipe de ESF pode recorrer ao apoio matricial para
compartilhar responsabilidades, dividir expertises, trocar experiências,
repartir o cuidado e, por fim, solucionar os problemas.

No caso de pessoa em situação de rua, o matriciamento pode ser


composto de diversos seguimentos do setor público e até mesmo
privado, como entidades que fornecem alimentos ou pernoite a esse
público. Já os profissionais das equipes de ESF podem participar desses
encontros, pois as dúvidas e o cuidado são compartilhados por todos os
membros da equipe, profissional médico, enfermeiros, técnicos de
enfermagem, agentes comunitários de saúde, podendo ser incluídos
outros profissionais da unidade que sejam importantes para pensar as
estratégias de cuidado ou mesmo para entender a complexidade do caso.
Cada profissional pode ter uma dúvida específica acerca de suas
próprias especificidades e apresentar seus saberes. Por exemplo, o
médico pode ter dúvidas sobre a medicação a ser administrada, ou o
ACS, se deve abordar ou não uma pessoa em situação de rua – e, depois
de abordado e cadastrado, sobre qual a forma de interação que possa
manter com esse usuário.

Na prática os encontros de matriciamento podem acontecer como:

 Discussão de casos clínicos;


 Atendimento conjunto/compartilhado entre profissionais;
 Capacitação sobre temas relevantes para as equipes (demanda explícita
ou percebida/pactuada);
 Construção de protocolos com as equipes;
 Suporte na implantação/incorporação de novas práticas (ex: grupos
terapêuticos e educativos, técnicas de escuta);
 Suporte na construção de projetos terapêuticos singulares (PTS);
 Suporte no manejo de questões do território

Em relação à população deste curso, é preciso ter como horizonte seus


hábitos, costumes e necessidades que, por vezes, diferem muito em relação à
população domiciliada. A dinâmica de obtenção de alimentos, ou de higiene
pessoal, assim como alguns que possam fazer uso de álcool ou de outras
substâncias psicoativas, tudo isso não pode ser impeditivo para os tratamentos.
(Veremos melhor quando tratarmos das questões de redução de danos).

Dica

As propostas devem estar ligadas à realidade da pessoa em situação de


rua. E sempre que possível negociadas com a pessoa. Lembre-se das
dicas que foram pautadas quando tratamos sobre a escuta. Sempre
avaliando a capacidade de autocuidado e de autonomia do usuário para
o qual estamos prestando o serviço de saúde. E quais objetivos traçamos
como prioridades para o seu tratamento.

Para um melhor matriciamento, além das equipes de saúde de diversos


níveis de complexidade, equipes de outros serviços podem contribuir
para a melhor resolutividade do caso. Principalmente quando falamos de
PSRs que precisam de uma rede de apoio fortalecida.

Como se opera a lógica de trabalho baseada


no matriciamento?
Checklist da reunião de matriciamento:

  Casos a serem levados para o matriciamento.


  Levantamento dos dados: pode ser utilizado como modelo o roteiro de
matriciamento.
  Levantamento de quais são as principais dúvidas sobre o caso. Podem
ser clínica, social, psicossocial, etc.

O matriciamento pode ser de um indivíduo, de uma família ou de um


território.

Vamos conversar um pouco sobre a nossa reunião de matriciamento. Ela


seguiu sem problemas e com muita harmonia. Nem sempre teremos
todos os integrantes da reunião concordando ou soluções fáceis. Às
vezes, poderemos ter dificuldades por lacunas na rede de atendimento
ou de saúde ou social, incluindo não ter parceiros no terceiro setor.

Como vimos, a população em situação de rua muitas vezes nos traz


desafios que ultrapassam os protocolos, os fluxos, pois ela apresenta
casos clínicos complexos e cheios de intercorrências, dificuldades para
guardar material de curativos, guardar medicamentos. Em consequência
disso, poderemos nos deparar com uma complexidade de dúvidas,
algumas com respostas iniciais e outras sem.

No item de vínculo e acolhimento, observamos que a manutenção do


vínculo é algo de que precisamos ficar atentos, pois é o vínculo que
possibilitará a continuidade no tratamento. Lembra-se de quando a ACS
teve a ideia de retirar o Jonny do senhor Miguel? Seria um grave erro, e
talvez impedisse a continuidade do tratamento. O que a equipe entendeu
como sendo o ponto mais importante neste momento.

Ao analisarem um caso complexo, as equipes precisam elencar


prioridades, levando em conta o desejo do usuário e a avaliação técnica
da equipe que o acompanha. Dessa forma, conseguimos avançar
construindo e fortalecendo o vínculo.

Oliveira e Campos (2015) nos dão uma dica em relação à dinâmica do


matriciamento: não existe um roteiro rígido. É possível ter exemplos e um
roteiro base para construção das reuniões de matriciamento, mas é
preciso desenvolver uma lógica de trabalho condizente com o problema
apresentado.

Fique ligado!

O processo do matriciamento tem a função de ampliar a visão do caso.


Por vezes, o que necessitamos é flexibilizar os protocolos e fluxos.

nstrumentos para reuniões de matriciamento.


Plano terapêutico singular:

A construção de um plano terapêutico singular deve ser a linha condutora


do matriciamento, analisar o caso de forma ampla e criar estratégias para
o cuidado em saúde. O plano terapêutico singular pode ser de um
território, de um grupo, de uma família e de um indivíduo.

Vamos pensar na população em que estamos focando os estudos. Em


alguns momentos, podemos ter um grupo de pessoas que ocupa um
mesmo local para dormir ou que passa a maior parte do tempo em uma
mesma região da cidade. Uma calçada, uma praça, uma casa
abandonada.... Nesses casos, podemos pensar em um plano terapêutico
singular que englobe todas as pessoas desse território delimitado. “O
destaque está na compreensão da produção de vida do sujeito, pois o
PTS se coloca como uma ferramenta-conceito, um dispositivo, capaz de
por em análise as articulações interprofissionais, as redes de produção
de saúde no serviço e outros equipamentos intersetoriais, amplificando a
comunicação entre sujeitos e pontos de atenção” (GRIGOLO, 2015 p.,
71).

Portanto, ao pensarmos em um plano terapêutico singular, devemos


elencar as necessidades do sujeito, suas redes de proteção sejam elas
equipamentos públicos ou privados, como lanchonetes e restaurantes, a
dinâmica de funcionamento desses sujeito ou grupo ao qual queremos
propor uma ação em saúde, as potencialidades, as dificuldades. As
ações devem ser pautadas em dados reais e possíveis. Sempre que
necessário, o PTS tem de ser reavaliado para que seja possível a sua
realização. A fim de que ele seja mais factível, podemos iniciar com
pequenas ações e, com a conclusão delas, ir avançando gradativamente
a cada reavaliação.
Checklist

  Levantar as necessidades.
  Avaliar as potencialidades do serviço e do usuário.
  Avaliar e refletir sobre as dificuldades.
  Pautar em bases reais, cuidando para não cair em idealizações.
  Reavaliar periodicamente, ou quando atingidos os objetivos, ou quando
se tornar impossível a continuidade.

Interconsulta

Envolver diversos profissionais, com diversos saberes, com vistas a


intercambiar esses saberes, possibilitando, assim, uma melhor resolução
para os conflitos. “É o principal instrumento do apoio matricial na atenção
primária sendo, por definição, uma prática interdisciplinar para a
construção do modelo integral do cuidado.” (Guia de apoio, p. 25).

Segundo Martins (2010), a interconsulta tem como objetivo maior


melhorar a qualidade da assistência prestada ao usuário, porém também
visa a modificar a estrutura assistencial centrada na doença e torná-la
centrada no usuário. É preciso que os profissionais que atendem ao
usuário tenham um maior conhecimento sobre a situação do paciente.

Além disso, a interconsulta tem um viés pedagógico e pode ser discutida


em casos mais comuns, que servirão como base para resolução de novos
casos semelhantes. A interconsulta pode ter diferentes apresentações:
em intervenções pedagógicas, como o tele saúde, consultorias, estudos
de caso e outras intervenções, como consultas compartilhadas e visitas
conjuntas.

Reunião de matriciamento
Discussão de casos: 

Podemos usar as reuniões de matriciamentos separando-as em dois


tipos de caso a serem discutidos:

  casos complexos;
  casos mais comuns, os quais podem servir de base para casos semelhantes.
Ambos necessitam de uma organização prévia de levantamento de dados
da história do usuário, histórico de tratamentos, dinâmica de
funcionamento, redes de apoio. Sugerimos o roteiro adaptado do “Guia
de matriciamento”.

Após a discussão de casos, as estratégias de resolução do caso podem


incluir a construção de Projeto Terapêutica Singular - PTS, intervenções
entre as equipes envolvidas e até mesmo solicitar consultoria de outros
serviços ainda não envolvidos.
Consultas compartilhadas e visita conjunta

Após a discussão de um caso, essas duas possibilidades de intervenção


se mostram viáveis para ampliar o entendimento do caso pelos
profissionais envolvidos no cuidado. Algo que precisamos deixar claro no
processo de intervenção conjunta é o objetivo para utilização desse
recurso.

Essas duas estratégias podem ser utilizadas para auxiliar no


estabelecimento de vínculo entre o usuário e um profissional que precise
ser inserido no cuidado. Por vezes, quando se deseja que o usuário
comece a frequentar um novo serviço e ele apresenta resistência,
a visita conjunta pode ser um bom instrumento para que o profissional
que já possui vínculo com o usuário apresente o novo profissional ao
usuário, possibilitando, desse modo, um elo para esse novo vínculo do
usuário. Às vezes, é necessário, para um outro serviço, entender a
dinâmica na qual o usuário está inserido para, assim, desenvolver um
atendimento com maior eficácia para esse usuário.
A consulta compartilhada, por sua vez, deve ser planejada com o
objetivo e as estratégias a serem usadas. É importante ressaltar que a
consulta compartilhada não são dois profissionais de áreas diferentes
tendo consultas em um mesmo horário, é por meio do compartilhamento
do caso que surgirá o processo interdisciplinar no qual um profissional
auxilia o outro com seus saberes específicos para a construção de um
entendimento único a respeito da demanda levantada. Esse recurso deve
ser utilizado toda as vezes em que ocorra a necessidade de ampliação
do olhar do caso, podendo ser entre profissionais de diferentes
especialidades, até mesmo de diferentes setores, como, por exemplo,
uma consulta compartilhada entre saúde e assistência social.
Telessaúde e consultorias
As consultorias podem ser definidas pelo suporte de um profissional
especializado. Esse suporte pode ser fornecido presencialmente,
requerendo a avalição de um profissional especializado. No entanto, o
Ministério da Saúde tem investido na modalidade com a utilização da
redes de computadores – são as salas de telessaúde. Nelas, pode ser
utilizado o recurso de consultoria especializada nas mais diversas
especialidades, dermatologia, endocrinologia psiquiatria, entre outras
especialidades.

Esse recurso pode facilitar o suporte a profissionais da atenção primária


das mais diversas localidades brasileiras, das regiões mais distantes de
recursos de saúde especializados, como no interior do Estado do
Amazonas, ou até mesmo em grandes cidades como São Paulo. Serve
para o profissional de saúde que possua dúvidas e questionamentos
acerca da condução de um caso que esteja acompanhando.

As telessaúde são gerenciadas pelas secretarias estaduais de saúde e


são vinculadas a universidades federais. Ao lado, você poderá ter acesso
à lista dos endereços da telesaúde de seu Estado. As telessaúde
fornecem capacitações de temas através de webconferências e suporte
na modalidade de consultorias, podendo ser síncronos ou assíncronos.

Usaremos as imagens da Telessaúde no Estado de Santa Catarina, mas


que são semelhantes no diversos estados do país.

Operar na lógica do matriciamento é compartilhar responsabilidades e


cuidado do usuário com os diversos atores que compõem a rede de
proteção desse usuário. Podem ser atores governamentais, não
governamentais, como ONGs, e até mesmo entidades privadas que
possibilitem algum cuidado voluntário a essa pessoa em situação de rua.

O matriciamento pode ser realizado com toda a rede de proteção do


usuário que tenha alguma contribuição na melhor condução do caso.

O que é um serviço de baixa exigência?


Serviços de baixa exigência? O que significa isso?  

Todo serviço público ou privado possui regras de acesso, sejam elas


convenções sociais, morais ou legais. Por exemplo, em um
supermercado, não se pode entrar sem camisa, ou se você quer levar
alguma mercadoria do supermercado deve pagar por ela. Esses
exemplos simples e aparentemente distantes das regras de saúde
facilitam para entendermos algumas regras que colocamos e refletir
sobre elas. Ao nos referirmos às regras, referimo-nos às exigências.

Pense um pouco: o que é necessário para que um usuário acesse a


unidade básica de saúde que você atua? Como ele faz para conseguir
uma avaliação médica ou psicológica? E para realizar teste de gravidez?
Uma mulher costuma fazer teste de gravidez quando apresenta um
atraso na menstruação, pois é a primeira hipótese a ser confirmada ou
descartada. E falando nisso, vamos ver o caso da Amanda.

Amanda é uma jovem mulher, acredita estar gestante, ela quer confirmar
a gravidez. E o senhor Miguel que já vem frequentando a UBS falou para
ela ir lá e conversar com o pessoal. Ela está sem documento e acha que
não será atendida. Ela já teve o primeiro filho no ano passado e ele foi
“retirado”. O processo que pode terminar na perda do pátrio poder segue
na justiça. O que faz com que ela tenha várias dúvidas, ansiedades e
medo de ser atendida por qualquer serviço público. Espositi et al. (2020)
apontam, em sua pesquisa com gestantes, que mulheres com
experiências negativas em pré-natais anteriores diminuem as chances de
acessar o novo pré-natal.

O que podemos fazer para melhorar a relação de Amanda com os


serviços públicos de saúde?

Segundo Pacheco (2015), o atendimento de saúde pode ter a potência


para que a pessoa retome vínculos e reorganize a vida. Podemos falar
que, ao ser atendida por um serviço de saúde, a pessoa pode vir a sentir-
se um sujeito de direito e, com isso, ressignificar sua relação com sua
própria vida, suas relações, seu desejos.... Dessa forma, pode vir a
despertar o desejo de reorganização de vida. Quer dizer que é regra?
Não. Nunca podemos estabelecer regras sobre os caminhos percorridos
pelas pessoas, mas podemos deixar nossas ferramentas disponíveis para
que nossos usuários possam tomar suas decisões.

Vamos voltar a pensar sobre a situação de Amanda. Observe que,


mesmo que o senhor Miguel fale para ela que o pessoal da unidade
básica de saúde é legal, Amanda sempre retruca que não possui
documentos. Ela é jovem e sua experiencia anterior não foi boa. Quando
lhe retiraram o primeiro filho, ninguém conversou com ela sobre isso. O
filho apenas foi retirado na maternidade e, em seguida, iniciou-se o
processo judicial. Ela já chorou muito e tem pensado que não vai
conseguir mais ver seu filho porque seu uso de álcool tem piorado a cada
dia.

Temos vários pontos a serem pensados a respeito dos cuidados de


saúde dos quais Amanda necessita, mas, neste primeiro momento, o que
estamos precisando fazer é descobrir como faremos para trazer Amanda
à unidade de saúde a fim de iniciarmos o pré-natal e fortalecê-la para
que ela possa tomar as decisões sobre sua vida.

Para Assis e Jesus (2012), se o atendimento em saúde fosse dividido em


fases, o acesso seria o primeiro obstáculo a ser superado pelo usuário.

Qual seria a melhor opção para uma pessoa que tem medos e receios
sobre a garantia do acesso? Deixar para lá? Pensamos que sim, que, se
uma pessoa tem a certeza de que não será atendida, ou se a dificuldade
do atendimento for um pouco maior que ela possa cumprir,
possivelmente, será um usuário que iremos “perder”. E se fôssemos um
supermercado? Não iríamos oferecer facilidades para uma pessoa vir até
nós? Quem sabe iríamos criar formas para a pessoa comprar e pagar
nossas mercadorias de uma maneira que ficaria melhor para todos. É
isso que vamos nos propor para iniciar a reflexão sobre serviços de baixa
exigência.

m geral, os serviços da atenção primária exigem uma documentação


mínima para serem acessados, como RG e documento de comprovação
de endereço. O Ministério da Saúde deixa livre aos municípios a forma
de exigência desses documentos, mas, para que o município receba as
verbas, precisa cumprir metas de atendimentos, essas metas são
avaliadas pelo número do cartão do SUS.

Em relação à comprovação de residência para serviços territorializados,


alguns municípios cobram que o documento de residência esteja em
nome da pessoa, outros aceitam que esteja em nome de qualquer pessoa
da família e há algumas cidades que exigem inclusive que o
comprovante, se não estiver em nome da pessoa, tenha uma
comprovação em cartório. Qual a exigência de documentação do seu
município? E qual a contribuição dessa exigência para dificultar o acesso
ao serviço de atenção primária? Você já pensou na sua unidade sobre
como proceder se um usuário chegar com uma demanda que exija
acompanhamento e não possuir RG ou comprovante de residência?

A exigência da documentação pode ser o primeiro empecilho para que


um usuário acesse o serviço, ou mesmo retorne ao serviço. Pode ser que
seu serviço consiga prestar o atendimento ao usuário sem documentação
ou até o momento que ele consiga fazer nova documentação, mas
podemos nos deparar com essa exigência em outro serviço parceiro e
necessário para continuidade do tratamento do nosso usuário. Um
debate muito intenso com equipes de Consultório na Rua de todo o país
ocorria com a comprovação do diagnóstico de HIV, assim como a
disponibilização da medicação retroviral para tratamento dessa doença.

O programa nacional de HIV/AIDS tem uma resolução na qual exige


documento de identidade do usuário tanto para realização do exame
laboratorial de HIV, do exame de controle da carga viral, chamados CD4
e CD8, assim como disponibilização da medicação. Essa exigência
impedia que muitos usuários em situação de rua iniciassem o tratamento
ou até mesmo dessem continuidade a tratamentos. É muito comum que
pessoas em situação de rua extraviem ou percam seus documentos,
como também é comum que sejam furtados. Após muitos debates, no
ano de 2017 foi editada uma Nota Conjunta
(http://www.aids.gov.br/pt-br/legislacao/nota-informativa-conjunta-no-
102017-diahvsvsms-e-dabsasms ) que alinha o cuidado de pessoas em
situação de rua que vivem com HIV/AIDS, possibilitando redução das
exigências de documentação.

Reflita: Quais foram as exigências da equipe para fornecer


cuidados de saúde ao senhor Miguel?

Vamos pensar: qual a exigência que essa equipe cobrou do senhor


Arthur? Apenas que ele deixasse o enfermeiro ver o pé e fazer um
curativo. Nesse primeiro contato, não foi feita nenhuma exigência ao
usuário. Mas pensou-se em ofertar um serviço de saúde como “isca” para
começar um processo de vínculo. Lembra quando discutimos vínculo
profissional–usuário? Requer muita paciência nossa e muita dedicação.

É claro que algumas exigências teremos ao longo do acompanhamento,


mas podemos usar o processo de vínculo e contato com a rede para ir
gradativamente auxiliando na organização desses usuários, como
documentação, combinados para banho, controle do uso de álcool antes
da consulta. Quais regras que vamos criando que são indispensáveis ao
processo de trabalho e quais regras acabam apenas por dificultar o
acesso do usuário?

Um dado bastante importante que pode colaborar com a nossa reflexão é


a informação de que grande parte das pessoas em situação de rua
acessa algum dispositivo da saúde, mas que, em geral, esses
equipamentos são serviços de pronto atendimento, ou seja, que atendem
à demanda do usuário sem cobrar muita contrapartida dele. Farias et al.
(2017) identificaram que homens em situação de rua não acessam a
atenção primária devido a questões burocráticas e discriminatórias,
desconhecimento dos direitos e dos serviços ofertados, assim como o
fato de não serem acolhidos; portanto, não conseguem resolutividade
para suas questões de saúde. Nesse caso, a opção é recorrer a serviços
de pronto atendimento que exigem, de modo geral, uma menor
contrapartida do usuário e solucionam as queixas imediatas de saúde.
Reflita: Faça uma avaliação com sua equipe em relação aos
processos de acesso à unidade e quais contrapartidas a equipe
exige do usuário. Existe diferença entre as pessoas com maior e
menor vulnerabilidade do território atendido pela sua unidade?
Autonomia do usuário

Um outro ponto que precisamos avaliar em relação a nossas exigências


quanto ao comportamento do usuário ou à burocracia que solicitamos é o
grau de autonomia desse usuário. Mas o que é autonomia? Poder de
escolha? Tomada acertada de decisão? Segundo Chistino (1997), para
Kant a autonomia reside na vontade do homem de escolher e submeter-
se às leis universais. Lembra do caso da Amanda? É uma escolha ir ou
não à unidade. Por vezes, podemos pensar que ela não está fazendo a
escolha certa, mas podemos fornecer subsídios adequados para auxiliar
em sua escolha. Apenas a informação, contudo, não faz com que a
escolha esteja dentro do que consideramos acertado.

Carl Hart (2014) analisa em sua pesquisa a manutenção da racionalidade


dos usuários de metanfetamina e conclui que essa mantém-se presente
desde que as escolhas façam sentido para o usuário. Avaliar
gradativamente o grau de autonomia de nossos usuários nos possibilita
avaliar o que é possível solicitar, combinar com ele. Com base nesse
poder de escolha, podemos citar o exemplo do extinto programa “De
Braços Abertos”, da cidade de São Paulo. Um serviço que fornecia
cuidado, moradia, trabalho e renda a pessoas que ocupavam a região
conhecida como “cracolândia”. A contrapartida do usuário era mínima, e
a contrapartida do poder público poderia ser considerada alta por alguns
observadores. Os resultados obtidos nesse programa possibilitaram
observar que, quando o usuário tem alguma opção entre usar ou não a
droga, em muitos casos, ele pode optar por outras opções, como pode
ser o caso da opção por frequentar um serviço de saúde.

Engstrom et al. (2019) observaram que a construção do PTS conjunta


com o usuário, estabelecendo baixas exigências, fortalece o vínculo e
potencializa o cuidado em saúde fornecido pela equipe de consultório na
rua.
O acolhimento é fundamental para início do estabelecimento de vínculo.
E as exigências podem ser colocadas gradativamente conforme
autonomia do usuário e estabelecimento de vinculo. Nesse caso, o
usuário tem um histórico de hepatite e já teve internações anteriores,
mas abandonou o tratamento, pois haviam informado que, se ele não
parasse com o uso do álcool, a equipe não iria mais acompanhá-lo.
Como construir pactuações e regras
coletivas (assembleias)?
Vamos pensar sobre formas de pactuações coletivas na atenção
primária. Para tanto, podemos nos inspirar em modelos de pactuações já
experimentadas no SUS.

O SUS preconiza a participação coletiva construída com usuários,


profissionais e gestores. A participação da sociedade na organização do
SUS está prevista na Lei n. 8.142/1990, na forma de conselhos de saúde,
nos três níveis de governo, municipal, estadual e nacional. Já os
conselhos locais de saúde são descritos apenas na Resolução n.
453/2012, exigindo do gestor municipal uma regularização por meio de
decreto municipal, lei municipal ou portaria do secretário de saúde do
município.

Os conselhos locais de saúde são ligados a uma unidade básica de


saúde ou a unidade distrital e devem seguir a mesma paridade dos
demais conselhos, ou seja, 50% do seguimento de usuários, 25% do
seguimento dos profissionais e 25% da gestão. Mas qual a vantagem de
a unidade de saúde ter um conselho local de saúde? Craco e Almeida
(2004), ao analisarem conselhos locais de saúde, visualizaram que a
participação da população pode atuar como um instrumento de
transformação.

Pactuações coletivas

Tirar o usuário da passividade e torná-lo um sujeito crítico auxilia tanto o


serviço, quanto nossos personagens, mas também transforma o entorno,
ou seja, família, rua, bairro. Ao falarmos sobre saúde coletiva, pensamos
que nem todas as pessoas adoecem da mesma forma, mas observamos
que os determinantes sociais de saúde têm impacto na saúde de um
determinado território. No nosso caso, estamos falando de um bairro ou
de um delimitado território.

Como sabemos, cada território apresenta-se com suas características,


tais como número de grávidas na adolescência, número de pessoas que
fazem uso abusivo de substâncias psicoativas e, igualmente, número de
pessoas que ocupam as ruas como forma de moradia ou que
permanecem muito tempo em situação de rua.

O que cabe ao conselho local de saúde? Entendendo as proporções, as


atribuições são semelhantes às dos demais conselhos, ou seja, fiscalizar
a aplicação do dinheiro de verbas, verificar se as ofertas de saúde
atendem às demandas da população e se as ações de saúde estão
sendo orientadas pela política nacional de saúde. A essas ações
chamamos de controle social das políticas públicas.
Segundo Correia (2020), o “controle social’ é do povo sobre o Estado
para a garantia da soberania popular”.

Quais usuários podem participar do conselho local de saúde? Assim


como nos demais conselhos, o cidadão não representa o indivíduo, mas
um segmento populacional, órgãos de classes, entidades sociais... O que
deve ser lembrado é que a função de um representante no conselho é
pensar no coletivo do qual participa. O conselho de saúde local é
constituído por usuários, profissionais e gestores e tem o objetivo, além
de ser e de realizar o controle social, de servir como um instrumento
transformador do indivíduo e, consequentemente, do entorno desse
usuário.

Outra forma que podemos pensar em relação à mobilização dos usuários


foi citada pelo assistente social, as assembleias de usuários do centros
de atenção psicossocial (CAPS). A reforma psiquiátrica brasileira começa
a crítica sobre a dicotomia cartesiana que separa o homem do corpo e,
consequentemente, sujeito/doença. Essas dicotomias também se
apresentam em outras áreas da vida como um ser social e um ser
individual. Como ser social, implica o processo de autocuidado e de
construção de um serviço que atenda à população do seu território, isso
pode resultar em um ser transformador, potencializando como um sujeito
político.

O importante é que a unidade esteja aberta para sua comunidade ao


mesmo tempo que pode fomentar a participação da população a fim de
que, uma vez sentindo-se participante da política local de saúde, esta
auxilie na construção e qualificação das ações de saúde.

Conselhos locais de saúde são compostos de profissionais, usuários (que


representam um grupo, movimentos, entidade) e gestores. As
assembleias são compostas de trabalhadores e usuários interessados
sem necessidades de organização por classe ou movimentos.

A composição dos conselhos é de 25% de representantes de


profissionais, 25% de gestores e 50% de representantes dos usuários. As
assembleias são amplas e aceitam o debate com diversas pessoas.

Modos de flexibilizar as ofertas em saúde


Dois pontos precisamos retomar para pensar a flexibilização do
atendimento. 

O primeiro ponto a ser retomado é no item que tratou sobre serviços de


baixa exigência refletindo acerca das contrapartidas do usuário, da
documentação necessária, da frequência no serviço, do comportamento
que desejamos do usuário, entre tantas outras exigências que fazemos
dele. Baixar o nível de exigência pode nos possibilitar uma vinculação do
usuário com os serviços de saúde, ampliando o cuidado em saúde.

O segundo ponto a que precisamos estarmos atentos, e que vem sendo


repetido a cada tópico, são as formas de fortalecimento da vinculação
entre profissionais e usuários. Essa vinculação nos permite um avanço
no cuidado em saúde, é por meio da vinculação que conseguimos
estabelecer algumas regras e alguns combinados com o usuário. Dessa
forma, conseguimos ir gradativamente avançando no cuidado e no
acompanhamento da saúde. Lembrando que essas regras devem fazer
sentido para o usuário e para o funcionamento do serviço, ou seja,
devem ser baseadas na pactuação.

O senso comum costuma reforçar que as regras fazem parte da nossa


sociedade e que, portanto, todos precisamos segui-las. E as
argumentações estão sempre ligadas à normatização do comportamento
em nossa sociedade. Sim, nossa sociedade possui muitas regras de
convivência, umas dizem respeito ao melhor convívio, mas outras
atendem a outros interesses, como produtividade.  

Nessa linha, algumas regras não fazem sentido para os usuários que
estão em situação de rua, pois, como visto no módulo 1, que abordou o
perfil das pessoas em situação de rua, muitas dessas pessoas possuem
algum tipo de trabalho e renda, outras fazem uso de algum tipo de
substância psicoativa, outras têm um local mais adequado que ocupam
como moradia e, por fim, outras dormem em qualquer calçada ou casa
abandonada.  

Mais uma característica é que umas pessoas vivem em pequenos grupos


e outras vivem isoladas. Quando vamos ofertar um serviço de saúde, é
necessário estarmos atentos a essas características, entendendo qual a
necessidade real dessas pessoas, o que são suas prioridades e a
capacidade de autonomia do sujeito.

Uma outra característica a que precisamos estar atentos é que a grande


maioria das pessoas em situação de rua avalia seu estado de saúde
como bom e, quando percebem a necessidade de algum atendimento de
saúde, recorre habitualmente a serviços de urgência e emergência. Em
geral, esses serviços resolvem a queixa em saúde imediata e possuem
baixa exigência, mas, assim como com qualquer pessoa do nosso
território, precisamos desenvolver estratégias para garantia do cuidado
longitudinal e contínuo visando à prevenção em saúde, à promoção de
saúde e a cuidados de agravos já instalados.

Vamos pensar na flexibilização de atendimento iniciando a reflexão sobre


a rotina da sua unidade. Você conhece a rotina da sua unidade? Como
ocorre o acesso dos seus usuários da porta de entrada até entrar na sua
sala? A equipe de saúde é composta de todos aqueles que estão dentro
da unidade, o vigilante, a ACS, o profissional médico e demais
profissionais que compõem a equipe. Podemos incluir a equipe do NASF
e outras equipes que podem compor o nosso cuidado em saúde com
algum usuário específico, como, por exemplo, algum serviço da
assistência social, que pode servir como potencializador de saúde em
determinado momento.

Flexibilizar o atendimento é olhar a partir do usuário, conforme indicado


na PNAB: “Cuidado Centrado na Pessoa: aponta para o desenvolvimento
de ações de cuidado de forma singularizada, que auxilie as pessoas a
desenvolverem os conhecimentos, aptidões, competências e a confiança
necessária para gerir e tomar decisões embasadas sobre sua própria
saúde e seu cuidado de saúde de forma mais efetiva” (BRASIL, 2017).
Atender a uma demanda trazida pelo usuário de forma a apresentar
possibilidades de cuidado que alcancem às expectativas do usuário e as
necessidades que o quadro clínico exija.

Portanto, ampliar a clínica é, além de criar estratégias de flexibilizar o


atendimento, pensar junto com o usuário ], reconhecendo os limites dele
e do serviço, mas colocando-se à disposição para construir juntos uma
forma de atenção. Pensar em um plano terapêutico singular de cuidado.
A Política Nacional de Humanização do SUS - HumanizaSUS entende
que “a busca de autonomia para os usuários, é a capacidade de
equilibrar o combate à doença com a PRODUÇÃO DE VIDA” (BRASIL,
2008, p. 15).

O atendimento pode ter apenas o objetivo de estabelecer vínculo com o


usuário para que ele estabeleça confiança nos profissionais. Assim,
gradativamente, podemos ir negociando com o usuário melhores formas
de cuidado e atenção dentro das necessidades que ele observe
importantes.

Nossa ansiedade em apresentar uma resolutividade para o caso pode


colocar o estabelecimento de vínculo em risco, podemos antecipar ações
que o usuário pode ainda não estar disposto a cumprir ou não conseguir,
como é o caso do senhor Arthur.

Lembre-se de que quando ele encontrou o Enfermeiro e falou que poderia fazer
qualquer coisa, mas que não tomaria medicação. A clínica pode ocorrer em
qualquer lugar e não necessariamente dentro do ambiente da UBS. Mas pode
ter a ida a uma consulta tradicional como horizonte, pois sabemos que a
unidade possibilita melhores condições de cuidado tanto para o usuário quanto
para o profissional. Portanto, para flexibilizar o atendimento, precisamos pensar
e construir junto com o usuário, por vezes modificar protocolos e normas
preestabelecidas.

Acolher o usuário, avaliar o quadro geral e negociar o acompanhamento


possível dentro das limitações apresentadas por ele.Flexibilizar o
atendimento podendo atender às demandas do usuário.

Conceito de redução de danos


As pessoas tendem mais a dar múltiplos pequenos passos do que poucos
passos enormes, e pequenos ganhos para muitos têm mais impacto
comunitário do que grandes ganhos para poucos selecionados.

Dessa forma, possui uma hierarquia de priorizações em que as ações


mais possíveis de fazer vêm em primeiro lugar, de forma a manter a
saúde e evitar danos permanentes e a morte das pessoas. As mais
difíceis, como a abstinência, embora desejável e uma opção dentro da
perspectiva da RD, vêm apenas no final, se vierem.

As intervenções são facilitadoras, não coercitivas, e são fundamentadas


nas necessidades e centradas no indivíduo, aceitando-os “como” eles
são e “onde” eles estão, evitando julgamentos e estereótipos
marginalizantes, como alguns dos termos: “drogados”, “viciados”,
“noiados”, “melhor droga”, “pior droga”, ou similares, que contribuem para
criar barreiras para o cuidado.

Como os Direitos Humanos (DH) se destinam a qualquer pessoa,


pessoas que usam drogas têm preservados seus direitos: o direito ao
melhor padrão de atendimento de saúde possível, direito a serviços
sociais, direito ao trabalho, aos benefícios dos avanços científicos, de
gozar de liberdade, além do direito de não ter prisão arbitrária,
tratamento cruel ou desumano, não podendo tais direitos serem negados
ou minimizados.

Estratégias

  terapias de substituição (de drogas “pesadas” por drogas “leves”). A


substituição de drogas pode incluir tanto drogas lícitas (por exemplo:
prescrição de metadona para usuários de opioides e de
benzodiazepínicos para dependentes de álcool) ou ilícitas (por exemplo:
acompanhar o uso de maconha que usuários de crack e cocaína fazem
no sentido de tentar controlar sua ‘fissura’);
  terapias de redução do consumo; 
  aconselhamento sobre os riscos presentes no uso; 
  mudança na via de administração; 
  compartilhamento (o usuário e seus familiares tomados enquanto
parceiros no tratamento);
  resgate da cidadania e da autoestima; 
  estabelecimento de parcerias (farmácias, igrejas, centros comunitários,
entre outros);
  ações desenvolvidas especificamente com grupos considerados de
risco (travestis e prostitutas; usuários de drogas injetáveis; pessoas em
situação de rua);
  campanhas de vacinação; 
  monitoramento em ambientes controlados (salas de injeção
segura, “coffee shops”, etc.);
  campanhas de relegitimação do uso tradicional de substâncias
psicoativas.
Quadro - Princípios éticos para tomadas de decisão:

  Agir com Justiça.


  Agir no melhor interesse do paciente:
Princípio da não maleficiência.Manter a confidencialidade.
Evitar desilusões.
  Agir com respeito:
Autonomia.Consentimento informado (compreender os riscos e
benefícios dos tratamentos).
  Integridade das relações: "Ética de Cuidar“.
  Consequências das decisões.

O acesso a um tratamento adequado para o uso de drogas é importante


para pessoas que fazem uso problemático delas, mas muita gente não
tem acesso ou não consegue parar de usá-las.

Além do mais, a maioria das pessoas que usam drogas não precisa de
tratamento, porém, mesmo para o uso recreacional, devemos prover às
pessoas que usam drogas opções que minimizem os riscos de acabarem
causando danos a elas próprias ou a outrem.

A RD possui intenção de abranger toda sorte de drogas psicoativas,


incluindo drogas controladas, álcool, tabaco e drogas farmacêuticas, que
possuem em comum com as demais drogas o potencial reconhecido de
danos ao organismo.

Deixar as pessoas morrerem ou adoecerem por uma causa evitável não é


uma opção.

Muitas pessoas que usam drogas preferem utilizar maneiras informais e


“não clínicas” para diminuir seu consumo ou pelo menos diminuir os
riscos associados ao consumo.

Princípios

Baseia-se num forte compromisso com a saúde pública e os direitos


humanos.

Baseia-se em três princípios norteadores: pragmatismo, tolerância e


compreensão da diversidade (Camargo, 2019).

Requer perguntar para cada tipo de droga:

  Quais são as consequências e riscos do uso?


  O que causa essas consequências e riscos?
  Como reduzir esses riscos e consequências? 

A partir desses princípios, a construção de intervenções apropriadas leva


também em conta fatores que podem tornar as pessoas que usam drogas
ainda mais vulneráveis, assim como idade e gênero, doenças
preexistentes, a situação de rua, entre outros, ou mesmo a combinação
de vulnerabilidades.

CARACTERÍSTICAS

Tem o compromisso de basear suas políticas e práticas na mais forte


evidência científica existente. A maior parte das ações de redução de
danos é de baixo custo, fácil de implementar e tem um alto impacto na
saúde individual e comunitária.

A Redução de Danos aparece na PNAB 2017 em cinco contextos


diferentes. A primeira vez ligada a caracterização da Atenção Básica,
compondo assim uma das características dos saberes e práticas da
AB/APS. Em seguida, faz parte da caracterização de um dos princípios
da AB/APS, a integralidade, na PNAB 2017 descrita como:

“o conjunto de serviços executados pela equipe de saúde que atendam


às necessidades da população ... nos campos do cuidado, da promoção
e manutenção da saúde, da prevenção de doenças e agravos, da cura,
da reabilitação, redução de danos e dos cuidados paliativos. Inclui a
responsabilização pela oferta de serviços em outros pontos de atenção à
saúde e o reconhecimento adequado das necessidades biológicas,
psicológicas, ambientais e sociais causadoras das doenças, e manejo
das diversas tecnologias de cuidado e de gestão necessárias a estes
fins, além da ampliação da autonomia das pessoas e coletividade.”
(PNAB, 2017)

Em sua terceira aparição na PNAB 2017, a Redução de Danos é trazida


no texto como elemento que distingue o processo de trabalho na
AB/APS, que descreve este nível de atenção e cuidado como contato
preferencial dos usuários na rede de atenção à saúde, considerando as
pessoas em suas singularidades (o que incluí as especificidades dos
processos da rua no processo de trabalho da AB/APS), assumindo em
diferentes contextos funções e características específicas, para o
trabalho junto à população atendida, considerando também as múltiplas
inserções socioculturais e por meio da promoção da saúde, da prevenção
de doenças e agravos, do diagnóstico, do tratamento, da reabilitação e
da redução de danos ou de sofrimentos que possam comprometer a
autonomia das pessoas, ofertando atenção integral à saúde.

Ainda tratando da caracterização do processo de trabalho na AB/APS, A


Redução de Danos surge na PNAB 2017, para compor com a
resolutividade, na PNAB (2017)entendida como a capacidade de
identificar e intervir nos riscos, necessidades e demandas de saúde da
população, atingindo a solução de problemas de saúde dos usuários. A
equipe deve ser resolutiva desde o contato inicial, até demais ações e
serviços da AB de que o usuário necessite.
Por último, a Redução de Danos é mencionada na PNAB 2017, ainda na
caracterização do processo de trabalho na AB/APS para se ligar ao item
sobre a Implementação da Promoção da Saúde. Este item é descrito na
PNAB 2017, como “um princípio para o cuidado em saúde, entendendo
que, além da sua importância para o olhar sobre o território e o perfil das
pessoas, considerando a determinação social dos processos saúde-
doença para o planejamento das intervenções da equipe”, também
contribuindo na qualificação e na diversificação das ofertas da AB/APS.
Tendo como horizonte o respeito à autonomia das pessoas, afirmando
“formas de andar a vida e comportamentos” que incorporem “o saudável
e o prejudicial” no processo de cuidado, de modos singulares e viáveis
para cada sujeito. Neste contexto, a Redução de Danos é apresentada
como um referencial ético e metodológico que pode contribuir para a
acepção de um contexto mais amplo de entendimento dos processos
saúde-doença, como uma estratégia transversal, junto com outros temas
como “alimentação adequada e saudável; práticas corporais e atividade
física; enfrentamento do uso do tabaco e seus derivados; enfrentamento
do uso abusivo de álcool; promoção da mobilidade segura e sustentável;
promoção da cultura de paz e de direitos humanos; promoção do
desenvolvimento sustentável” (PNAB, 2017).

Nova Política Nacional sobre Drogas (PNAD)

NOTA

Embora a ênfase e a meta a partir da nova Política Nacional sobre


Drogas (PNAD) sejam a abstinência, as medidas de redução de danos
não estão totalmente excluídas. A troca de seringas, a terapia de
substituição de opioides e a testagem de HIV ainda são previstas na
nova PNAD.

Segundo a última PNAD, o tratamento que passa a ser adotado parte da


premissa de que o dependente químico não reúne condições para
controlar o uso de substâncias nocivas, é passivo no processo de seu
próprio tratamento e fortalece as comunidades terapêuticas e a
internação, enquanto enfraquece as iniciativas de base comunitária.

Ao considerar a abstinência como estratégia única, a nova PNAD


desconsidera as múltiplas facetas e determinantes existentes na questão.

CONCLUSÃO

Muitas políticas e práticas, intencionalmente ou não, na verdade


aumentam os riscos e problemas das pessoas que usam drogas. Isso
inclui: a criminalização do uso de drogas (enquanto outras, como álcool e
tabaco não o são); discriminação contra pessoas que usam drogas (como
se não existe uso recreacional de drogas, que abrange a maioria, a
exemplo do álcool); corrupção e abuso de práticas policiais; políticas
públicas e leis restritivas; iniquidades sociais; bem como a inexistência
de serviços apropriados que podem salvar vidas e o não oferecimento de
programas de redução de danos (Princípio da Tolerância).

A RD não só se trata de fomentar mudanças de comportamento, como


também amplia a discussão sobre contextos sociais que criam
vulnerabilidades que culminam com a prática do uso de drogas (Princípio
da Compreensão da Diversidade).

Requer do profissional reavaliação de suas convicções pessoais, lidar


com incertezas e manter-se consistente e íntegro quando lidar com
questões éticas envolvendo a RD (Princípio do Pragmatismo)

O objetivo das ações de redução de danos deve ser a inclusão social, o


rompimento da marginalização dos usuários de drogas, o respeito aos
direitos individuais, o protagonismo do usuário, a minimização de danos
ao usuário e à sociedade e cuidar, considerando que tratar é reconstituir
a história pessoal e coletiva não é uma questão de usar ou deixar de
usar drogas, abrindo a possibilidade de que cada um se aproxime daquilo
que é.

Ferramentas e modos para analisar as


especificidades da PSR local
A narrativa acontece em uma reunião de equipe, na qual se propõe a
realização do planejamento semestral, com foco no trabalho a ser
desenvolvido com a população em situação de rua local.

A gestora da UBS solicitou que cada uma das equipes de ESF


apresentasse um relatório de perfil e atendimento para populações de
maior vulnerabilidade de seu território, a partir da análise de algumas
das fichas do e-SUS, a saber:

 Ficha de cadastro;
 Ficha de cadastro domiciliar;
 Ficha de atendimento individual;
 Ficha de procedimentos;
 Ficha de atendimento odontólogico individual;
 Ficha de atividade coletiva;
 Ficha de vacinação;
 Ficha de visita domiciliar;
 Ficha de marcadores de consumo alimentar;

A partir desse relatório, as equipes de ESF poderão apresentar o


planejamento semestral de cuidado, com ações prioritárias, dessa
população. Tal apresentação será feita em uma reunião geral da Unidade
de Saúde. As ESFs levantam todas as fichas dos pacientes que estão
cadastrados como em situação de rua e fazem uma minuciosa avaliação
delas.
As equipes, ao observarem os dados encontrados por meio de algumas
das fichas do e-SUS (CDS – Sistema de Coleta de Dados Simplificada),
compreendem a importância dessa análise para o planejamento do seu
dia a dia de trabalho com a população em situação de rua.

O Sistema de Coleta de Dados Simplificada (CDS), sistema de


transição/contingência, que apoia o processo de coleta de dados por
meio de fichas e um sistema de digitação, é um dos componentes da
estratégia e-SUS AB, adequada para UBS com cenários sem
informatização, ou quando essa está temporariamente indisponível (falta
de energia elétrica, etc.).

O objetivo é ser uma estratégia de preenchimento de fichas que coletam


dados de cadastros, visitas domiciliares, atendimentos e atividades
desenvolvidas pelas equipes de AB.

O CDS é composto de doze fichas para o registro de informações:

 Cadastro individual;
 Cadastro domiciliar;
 Ficha de atendimento individual;
 Ficha de procedimentos;
 Ficha de atendimento odontólogico individual;
 Ficha de atividade coletiva;
 Ficha de vacinação (nova);
 Ficha de visita domiciliar;
 Marcadores de consumo alimentar;
 Ficha complementar
 Ainda existem mais duas fichas exclusivas para o Serviço de Atenção
Domiciliar (SAD):
 Ficha de avaliação de elegibilidade
 Ficha de atenção domiciliar

(BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.


Departamento de Atenção Básica. e-SUS atenção básica: manual do
sistema com coleta de dados simplificada – CDS – Versão 3.0. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2018).

Ficha de cadastro individual

Objetivo da ficha: registrar as condições de saúde, características


sociais, econômicas, demográficas, entre outras, dos usuários no
território das equipes de AB.

É composta de duas partes:

  Informações de identificação/sociodemográficas;
  Condições de saúde autorreferidas pelo usuário.
Profissionais que utilizam esta ficha: Todos os membros das Equipes que
atuam na Atenção Básica. Todos os profissionais são habilitados a
preencher a ficha de cadastro individual.

(BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.


Departamento de Atenção Básica. e-SUS atenção básica: manual do
sistema com coleta de dados simplificada – CDS – Versão 3.0. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2018).

Ficha de cadastro individual

2.1.6.2 Cidadão em situação de rua

Este bloco deverá ser preenchido pelo agente de ação social das equipes
de Consultório na Rua (eCR) ou pelo agente comunitário de saúde
(ACS), quando este desenvolver suas atividades junto a elas.

Nos casos de o agente de ação social não participar da composição das


eCR ou quando estas não possuírem nenhum ACS agregado à sua
formação mínima, essa ficha poderá ser preenchida por qualquer
profissional da eCR.

O bloco também poderá ser preenchido pelo ACS ou outro componente


da equipe de Atenção Básica nos casos de existirem usuários em
situação de rua no território adscrito da UBS, mas se não tiver nenhuma
equipe de Consultório na Rua vinculada.

(BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.


Departamento de Atenção Básica. e-SUS atenção básica: manual do
sistema com coleta de dados simplificada – CDS – Versão 3.0. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2018).

Registro de emergência em saúde pública síndrome neurológica


por Zika/microcefalia

Objetivo da ficha: registro do acometimento de síndrome neurológica


por Zika ou de microcefalia. O preenchimento dessa ficha é
complementar à ficha de atendimento individual para os casos de
atendimento do profissional de nível superior a crianças que apresentam
microcefalia (código CID10 Q02).
Profissionais que utilizam esta ficha: profissionais de nível superior da
equipe de atenção básica.
(BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde.
Departamento de Atenção Básica. e-SUS atenção básica: manual do
sistema com coleta de dados simplificada – CDS – Versão 3.0. – Brasília:
Ministério da Saúde, 2018).
Centro POP

O que é? É uma unidade pública voltada para o atendimento


especializado à população em situação de rua. Deve ofertar,
obrigatoriamente, o Serviço Especializado para Pessoas em Situação de
Rua, que realiza atendimentos individuais e coletivos, oficinas e
atividades de convívio e socialização, além de ações que incentivem o
protagonismo e a participação social das pessoas em situação de rua.

O Centro POP deve representar espaço de referência para o convívio


social e o desenvolvimento de relações de solidariedade, afetividade e
respeito.

(BRASIL. Ministério da Cidadania. Centro de Referência Especializado


para Pessoas em Situação de Rua - Centro POP. Ministério da
Cidadania, Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, Brasília, 16
jul. 2015. Disponível
em: http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/unidades-de-
atendimento/centro-pop . Acesso em: 20 ago. 2020.)
Modos de organizar as demandas para ter
ofertas de demanda espontânea e também de
demanda programada/ações programáticas
para a PSR
Estratégias para estratificar os riscos e
vulnerabilidades, para elencar as ações
prioritárias
Modelos de agenda semanal e mensal para o
trabalho com a PSR
Repertório de Boas Práticas em saúde com a
PSR
Como monitorar o trabalho com a PSR?

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