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Brasília-DF.
Elaboração
Produção
Apresentação.................................................................................................................................. 4
Introdução.................................................................................................................................... 7
Unidade I
Conceitos Gerais............................................................................................................................. 13
Capítulo 1
O que é psicopatologia, neurose, psicose, transtornos de personalidade............... 13
Capítulo 2
A lei seca.............................................................................................................................. 56
Capítulo 3
Comportamento de risco no trânsito............................................................................ 60
Unidade ii
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de
Trânsito.................................................................................................................................... 64
Capítulo 1
Transtorno de ansiedade.................................................................................................. 64
Capítulo 2
Depressão............................................................................................................................ 68
Capítulo 3
Drogas e alcoolismo....................................................................................................... 72
Capítulo 4
Direção sob uso de drogas lícitas e ilícitas................................................................... 77
Capítulo 5
Distúrbio bipolar................................................................................................................. 81
Capítulo 6
Demência.............................................................................................................................. 85
Capítulo 7
Paciente com histórico de surto psiquiátrico sem diagnóstico definido................. 89
Referências................................................................................................................................... 92
Apresentação
Caro aluno
Conselho Editorial
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Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa
A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de
Estudos e Pesquisa.
Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.
Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.
Atenção
5
Saiba mais
Sintetizando
6
Introdução
A palavra “trânsito” carrega uma ambivalência que revela de saída à complexidade
da questão. De um lado, é sinônimo de “movimento” e “circulação”; porém, de outro,
carrega um sentido bem específico de “congestionamento” e “engarrafamento”, quando
se diz, por exemplo, “Estou preso no trânsito”. Isso porque no trânsito estamos sujeitos
tanto à velocidade, que diminui as distâncias, quanto aos obstáculos que desaceleram
os fluxos ─ e aqui temos a presença dos riscos, assim como dos meros percalços.
O fato é que a questão da circulação tem sido um foco cada vez maior de debates e
reflexões nos últimos tempos, nos quais vemos um aumento significativo de urbanização
nas cidades de todos os continentes. O aumento da velocidade é um paradigma da
nossa época, que atinge as mais diversas áreas, desde a troca de informações pela rede
da internet até a chamada “mobilidade urbana”, do fluxo dos veículos particulares e dos
transportes públicos, da circulação de mercadorias até a circulação de pessoas.
O mundo não para e a aceleração dos fluxos e do trânsito segue a mesma dinâmica,
cada vez mais.
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Nas últimas décadas, esse contexto tem se tornado cada vez mais complexo. O aumento
da velocidade dos veículos é um dado tecnológico, mas também psicológico. Ele é fruto
de uma dinâmica que é quase uma exigência do mundo contemporâneo: “não perder
tempo”. Esse novo cenário contribui, automaticamente, para o aumento da pressa e
para a fragilização da paciência, o que leva, por sua vez, ao aumento do estresse, da
violência e dos acidentes no trânsito.
Os dados colhidos nas últimas décadas são alarmantes. Segundo Priscila Kichler
Pacheco, “o índice de mortes no trânsito do Brasil é um dos mais altos do mundo:
22 a cada 100 mil habitantes. A estimativa, aqui, é de uma morte a cada 12 minutos”
(PACHECO, 2014). Em matéria de janeiro de 2015, o site “Doutíssima” afirma que
“os acidentes no trânsito são a terceira maior causa de morte no mundo, perdendo
apenas para doenças cardíacas e câncer” (ENTENDA, 2015). E completa que “no Brasil,
o número de mortos em acidentes de trânsito cresceu 38,3% no período de 2002
a 2012” (Idem, 2015). O quantitativo mundial, em números absolutos, chega a 1,3
milhão de pessoas mortas por algum trauma de trânsito a cada ano, segundo a “World
Health Organization”. Ainda segundo a instituição, trata-se da “primeira causa de
mortes no mundo em jovens de 15 a 29 anos” (VIOLÊNCIA, 2013). No caso brasileiro,
foram registrados, segundo o Ministério da Saúde, 43.075 óbitos e 201.000 feridos
hospitalizados, só no ano de 2014 (ESTATÍSTICAS, 2016).
O problema é tão grave que a ONU, a Organização das Nações Unidas, marcou o dia
30 de janeiro como o “Dia Internacional da Não Violência”, englobando nesse conjunto
a questão da violência no trânsito. No Brasil, surgiu a Semana Nacional de Trânsito,
instituída em setembro do ano de 2013, para debater a relação das pessoas com o
trânsito e os diversos problemas dela derivados (Idem, 2013).
Isso remete a um dado fundamental ligado aos índices apresentados: a maioria dos
acidentes de trânsito acontece a partir de erros humanos e não meramente tecnológicos.
A reportagem do site “Doutíssima” afirma que, ainda que tenhamos sérios problemas
de infraestrutura nas cidades e nas rodovias, “95% dos desastres viários do país são
o resultado de uma combinação de irresponsabilidade e imperícia” (ENTENDA,
2015). A precariedade das estradas, a falta de ciclovias e os problemas de sinalização
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respondem por apenas 5% dos acidentes, enquanto que as falhas humanas, dos mais
variados tipos, compõem todo o resto da amostragem.
José Carlos Oliveira afirma que “a maioria dos acidentes está ligada ao comportamento
humano. Falta de atenção (32% dos casos), velocidade incompatível com a via (20%)
e ultrapassagem indevida (12%) foram algumas das principais causas de acidentes nas
rodovias federais em 2014” (OLIVEIRA, 2015). O autor coloca ainda que “a Polícia
Rodoviária Federal notificou mais de um milhão e 200 mil infrações por velocidade
acima do limite máximo permitido nas estradas federais” (Idem, 2015), no mesmo
ano de 2014. Acompanhadas de 174 mil infrações pela ausência do uso do cinto de
segurança; 118 mil por dirigir pelo acostamento; e 46 mil por conduzir o veículo em
mau estado de conservação.
Priscila Kichler Pacheco cita uma importante reflexão feita pelo diretor-presidente
da Embarq Brasil, Luis Antonio Lindau: “acidentes de trânsito não são acidentes”
(PACHECO, 2014). É uma questão das mais importantes, porque nos coloca de frente
para o ponto nuclear do tema. A palavra “acidente” remete a algo “que não pode ser
previsto e que, portanto, não pode ser evitado” (Idem, 2014). Nesse caso encontramos
certas falhas mecânicas dos automóveis, problemas imprevistos ocorridos nas vias –
como um animal que surge de repente em uma estrada – ou algum problema de saúde
súbito – como um infarte ou evento do tipo. Todos os outros problemas não podem
ser enquadrados na categoria de “acidentes”, porque permitem um razoável grau de
previsibilidade por parte dos motoristas. Por isso, Pacheco afirma que “dirigir acima do
limite de velocidade, ultrapassar em locais proibidos ou sob efeito de bebidas alcoólicas,
algumas das principais causas das ocorrências chamadas de acidentes, são escolhas – e
não fatores imprevisíveis” (Idem, 2014, grifo nosso).
Diante disso, temos um cenário bem delimitado. Como já foi dito, o trânsito é composto
por vários aspectos tecnológicos, mas o fator humano é um elemento fundamental de
todo o seu enredo. Na maioria dos casos, não estamos diante de “acidentes” de trânsito, ou
seja, de acontecimentos absolutamente imprevisíveis que pegam as pessoas envolvidas
completamente de surpresa, mas sim de escolhas humanas, normalmente baseadas em
autoconfiança excessiva, irresponsabilidade para com a vida alheia e falta de habilidade
necessária para dirigir, articulada com a escolha de arriscar assim mesmo. Nesse grupo
de fatores temos, também, a combinação, sempre perigosa, de estados psicopatológicos
alterados com o volante, com um outro tipo de comportamento de risco, que em muitos
casos nasce também de uma escolha, a de unir a crise psicológica com a direção e o
trânsito. O fato é que, em todos esses casos, estamos diante de situações cujo núcleo
reside na questão humana e não meramente na tecnologia.
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Nesse contexto, aflora a relevância da psicologia de trânsito. A “psicologia de trânsito”
nasce e cresce com o objetivo de colaborar para uma melhor compreensão acerca dos
eventos e diversos fatores ligados ao fenômeno mais amplo da mobilidade urbana,
em especial no que diz respeito ao trânsito de veículos automotores e a todo o seu
entorno simbólico. Dentro desse universo encontramos a questão dos acidentes e
mortes causados por imprudência, imperícia, negligência e por uma série de causas
psicopatológicas, que vão desde a falta de atenção causada por estresse até as condutas
violentas oriundas de estados psíquicos traumáticos.
Esse trabalho é feito de forma conjunta, com a participação dos órgãos públicos
competentes e da justiça. Nos últimos anos, é possível verificar uma pequena melhora
em alguns índices, que, se não chegam a regredir radicalmente, apontam, ao menos,
para a importância de certas iniciativas, como por exemplo, a chamada “Lei Seca”, que
surgiu como resultado de uma rede de conhecimentos confluentes, da qual fazem parte
o trabalho de investigação da polícia e a utilização de estudos acadêmicos relacionados
ao uso excessivo de álcool e outras drogas, dentre outros elementos significativos.
E é essa rede de fatores que comparece de forma ampliada nas considerações feitas
pela psicologia do trânsito. Os “acidentes” em muitos casos nascem de escolhas
irresponsáveis e em muitos outros aparecem como efeitos trágicos de episódios de
crises psicopatológicas, que merecem atenção. Uma das formas possíveis de avançar
na compreensão do problema é estudar as contribuições que possam advir da análise
psicopatológica da psicologia do trânsito. Através dela, podemos traçar um rico
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enquadramento de muitas das sintomáticas que atuam nesses episódios críticos, o
que pode trazer como efeito a proposição de uma série de medidas que auxiliem ainda
mais na diminuição da violência, do número de acidentes e de vítimas fatais no trânsito
brasileiro ─ e mesmo no mundial.
Objetivos
»» Conceituar as principais psicopatologias registradas até hoje pela
pesquisa nos campos da psiquiatria, psicanálise e psicologia.
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Conceitos Gerais Unidade I
Capítulo 1
O que é psicopatologia, neurose,
psicose, transtornos de personalidade
O que é psicopatologia
O termo “psicopatologia” foi criado pelo filósofo e jurista Jeremy Bentham (1748-
1832), no ano de 1817. É a junção de três termos gregos: “psyché”, que significa “alma”;
“páthos”, que representa as ideias de “doença”, “paixão”, “excesso” ou “sofrimento”; e
“lógos”, cujo sentido está ligado às noções de “estudo”, “ciência” ou “saber”. A partir
de seu surgimento, foi, aos poucos, se desenvolvendo como um campo científico
específico, com características próprias e um conjunto de aspectos normativos que lhe
emprestaram identidade e um modo de funcionamento particular.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
como se os tratava até então, desde que passaram a ser encarcerados nos leprosários
e sanatórios da época. No início de sua carreira, Pinel trabalhou como tradutor de
textos médicos e professor de matemática, em Paris. Entretanto, uma tragédia pessoal
alteraria a rota de seus interesses. Um amigo próximo passou por uma violenta crise
nervosa e fugiu desesperado para uma floresta. Lá, foi devorado por uma matilha de
lobos. Esse evento dramático impressionou o médico francês, que passou, a partir daí,
a se interessar cada vez mais pelo tema das alterações de comportamento causadas por
distúrbios mentais.
Esse interesse geraria uma nova visão sobre a doença mental, que acarretaria em
novos tratamentos e no surgimento de um novo corpo de conhecimento ligado ao
tema. Duas mudanças iniciais foram as mais relevantes e significativas: em primeiro
lugar, Pinel combateu de forma sistemática a visão antiga, de base religiosa, que via
a loucura como o resultado de uma “possessão demoníaca”, ou seja, os loucos como
pessoas possuídas por “demônios”; e, segundo ponto, lutou também para modificar
a maneira como os seres humanos classificados como loucos eram tratados nos
sanatórios de sua época.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
A partir de seus estudos, Pinel passou a trabalhar diretamente nos sanatórios. Uma vez
lá dentro, começou a colocar em prática a modificação de olhar e de tratamento que
desenvolvera em seus tratados. Uma de suas primeiras medidas foi libertar pessoas que
estavam presas e acorrentadas há mais de vinte, às vezes trinta anos, nessas instituições.
Conseguiu proibir vários métodos de tratamento violentos que eram utilizados, como
a sangria, o uso de vomitivos e purgantes e instituiu a mentalidade científica no trato
com o tema, além de uma ideologia de tratamento que abria espaço inclusive para uma
relação mais amistosa com os “pacientes”.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Paulo Roberto Ceccarelli comenta que essa “tradição médica (...) se manifesta até
hoje nos tratados de psiquiatria e de psicopatologia médica” (CECCARELLI, 2005).
Entretanto, apesar da hegemonia desse traço, é possível verificar que, de lá para cá,
o diálogo da psicopatologia e da psiquiatria com os demais campos de conhecimento
tem florescido. O próprio Ceccarelli afirma que, “hoje, o termo ‘psicopatologia’
encontra-se associado a um grande número de disciplinas que se interessam pelo
sofrimento psíquico” (Idem, 2005). Isso gera uma dificuldade de diálogo, fruto da
heterogeneidade de visões sobre a questão, mas mostra e destaca, igualmente, a
irredutibilidade do fenômeno psíquico a uma única forma discursiva (Idem, 2005), o
que contribui para a diversidade de abordagens, de debates e de pesquisas.
Como vamos estudar, essa lógica, que flutua, da hegemonia da ciência médica, sistêmica
e de matriz biológica para as articulações com a filosofia, a psicanálise e as ciências
humanas, e vice-versa, vai influenciar diretamente na forma como as psicopatologias
vão definir suas visões sobre sua questão chave, qual seja, a da relação e distinção entre
o comportamento “normal” e o “patológico”. Além disso, esse esquema vai influenciar,
igualmente, a maneira como são descritos os sintomas e os diversos tipos de tratamento.
Antes de chegar a este ponto, vale, antes, garimpar um pouco o que a história etimológica
e epistemológica do campo tem para nos ensinar.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
O termo “psicopatologia”, como já situamos, é a união dos termos gregos “psyché”, que
significa “alma”; “páthos”, que significa “doença”, “paixão”, “excesso” ou “sofrimento”;
e “lógos”, que tem o sentido de “estudo”, “ciência” ou “saber”. Um dos tópicos mais
relevantes para entender o ponto chave das contribuições ─ e também dos pontos
conflitivos ─ da psicopatologia está na análise do que representa a ideia de “páthos”.
Por isso, vale conhecê-la um pouco melhor.
O dicionário Aurélio nos diz que a palavra “paixão” está associada, dentre outros, aos
seguintes significados: “Sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade;
entusiasmo muito vivo; atividade, hábito ou vício dominador; o martírio de Cristo”
(FERREIRA, 2000, p. 509, grifos nossos). No Dicionário de Sinônimos, encontramos,
para além das mais conhecidas e óbvias, como “afeto”, “amor”, “desejo” e “entusiasmo”,
uma série de palavras igualmente reveladoras: “alucinação”, “chama”, “cólera”,
“doença”, fanatismo”, “furor”, “impaciência”, “ira”, “mágoa”, “mania”, “martírio”, “ódio”,
“raiva” e “sofrimento”, dentre outras (1977, p. 826). Algumas perguntas importantes
podem nortear o nosso estudo: Por que a palavra ganha significados tão díspares
quanto “sofrimento” e “entusiasmo”? Por que a paixão é sinônimo de “intensidade” e
“vida” e, ao mesmo tempo, de “martírio” e “alucinação”? Vamos compreender que as
respostas a estas perguntas são fundamentais para entender a importância do campo
da psicopatologia e sua relevância para os estudos e as práticas sociais que pretendam
melhorar a qualidade do trânsito, em seus mais variados aspectos.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
O filósofo grego Aristóteles classificava a “paixão” como “uma ação que se sofre”, o
que a colocava em um grau de oposição à ação, no âmbito restrito da “passividade”
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001: 146). A origem da palavra remete ao mesmo sentido:
“paixão” deriva do latim “passione”, que significa “sofrimento” (MOURA, 2007, p.
558). O prefixo latino “passio” significa exatamente “paixão, sofrimento” (Idem, 2007,
p. 572). Da mesma forma, é preciso citar o termo grego “páthos”, que está ligado às
ideias de “paixão”, “afeto” e “desejo” (CAES, 2012, p. 5). Segundo o filósofo Valdinei
Caes, a etimologia da palavra grega “páthos” aponta para “o rigoroso sentido de ser
um termo que não é, de antemão, sistematizado pela razão”, ou seja, “algo que está
para além da sistematização da razão, por se caracterizar como vivência” (Idem, 2012,
p. 5). Em outras palavras, “o que não contém qualquer mediação, pois se trata do
incomensurável, inapreensível em uma situação, sobre o qual, em condições limítrofes
da existência, o pensamento não tem qualquer controle ou a possibilidade de exercer
qualquer domínio” (Idem, 2012, p. 5, grifos nossos). O que mostra que a origem da
palavra “paixão”, em seus primórdios gregos e latinos, estava vinculada diretamente
a um sentido de passividade e ausência de domínio e comando por parte do indivíduo
envolvido por ela.
O sentido não muda no período imediatamente posterior à Idade Média. René Descartes
sustenta a acepção aristotélica, afirmando a paixão como um estado da alma que não
possui nenhuma relação causal com a vontade. Para o autor francês, “tudo o que não
é ação é paixão” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 146). E essa vertente se mantém
até os séculos XVII e XVIII. Segundo Nicola Abbagnano, os moralistas franceses desse
período, como Pascal, La Rochefoulcauld e Condillac, dentre outros, vão perceber a
paixão como uma emoção que penetra na personalidade de uma pessoa com a tendência
de dominá-la, fechando espaço para outras manifestações (ABBAGNANO, 1982, p. 709).
Mesma visão de Kant, que prossegue defendendo “a capacidade da paixão de dominar
todo o comportamento do homem, de apoderar-se de sua personalidade” (Idem, 1982,
p. 709). O filósofo alemão cria, então, uma distinção entre “paixão” e “emoção”.
A emoção seria uma força ativa, “como um jato que rompe um dique”; já a paixão seria
o lado passivo da força: Kant chega a classificá-la como “uma doença por intoxicação ou
deformação” (Idem, 1982, p. 709).
Com o Romantismo, essa distinção de Kant perde força e ganha espaço uma visão
ambivalente da paixão. Por um lado, se sustenta a visão de que ela seria “o domínio total
e profundo que um estado afetivo exerce sobre toda a personalidade (ou sujeição) do
indivíduo”; por outro, vai passar a ser vista como uma espécie de motor que impulsiona
à síntese, um aspecto da razão prática que auxilia a obter um foco, que determina a
particularização de um interesse qualquer da subjetividade. Para Hegel, por exemplo,
a paixão é “a totalidade do espírito prático enquanto se coloca em uma única entre as
muitas determinações limitadas as quais estão em oposição entre elas” (Idem, 1982, p.
710). E Nietzsche segue a mesma linha, afirmando, em seu trabalho sobre a “Vontade de
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Potência”, que “a paixão dominante (...) leva consigo a forma suprema da saúde”, e que,
com ela, “a coordenação dos sistemas interiores e sua ação a serviço de um só objeto
são melhor realizados”, o que seria, então, “quase a definição da saúde” (NIETZSCHE,
1880, p. 28).
Essa ambivalência não é um dado qualquer. Mais amplamente, ela está no âmago de
grande parte das discussões históricas acerca do que significam as relações entre a
norma e a transgressão; o normal e a loucura; e o normal e o patológico. O filósofo
Michel Foucault tem importantes reflexões a fazer nesse sentido, em seu trabalho de
pesquisa sobre a “História da Loucura”. E antes de atingirmos o tópico que vai falar
sobre o que significa o conceito de “normalidade”, que é fundamental para entender
o papel da psicopatologia, vale a pena escutar o filósofo francês, em algumas de suas
considerações, tanto sobre a relação que os séculos XVIII e especialmente o XIX
começam a estabelecer entre a ideia mais específica de “loucura” e as “paixões”; quanto,
em outro ponto fundamental da questão, sobre as relações entre corpo e mente, nesse
mesmo enredo que defronta as ferrenhas dicotomias entre as normas, as paixões e a
loucura, e entre os pensadores que se orientavam por uma base “organicista” e os que
aos poucos buscavam entender o comportamento como um problema também mental
ou “psíquico”.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
dos humores de Hipócrates, que se sustenta durante toda a Idade Média e domina a
medicina ocidental até o século XVII: “a bile amarela dos coléricos (quente e seca) e a
bile negra dos melancólicos (fria e seca)” (KEHL, In FREUD, 2011 [1917], p. 26).
A questão é que, como também já situamos, as formulações antigas sobre o “humor”
eram produzidas a partir de uma base de raciocínio que era ou fundamentalmente
religiosa ou baseada em uma lógica de pensamento que priorizava de forma hegemônica
o organismo. Cláudio Galeno (pp. 129-201), estudioso grego que seria um dos nomes
mais influentes da medicina medieval, afirmava, já no século II, que “as potências da
alma são consequência das misturas do corpo” (Idem, 2011 [1917], p. 26). Muitos autores
da área médica estabelecem um ponto de ruptura para a predominância do pensamento
de Galeno no médico inglês William Harvey (1578-1657), que, no ano de 1628, alterou
a maneira como se via a circulação humana até então. Entretanto, se considerarmos a
forma como pensadores como Pinel, Esquirol e Griesinger sustentavam o protagonismo
do corpo sobre a mente em pleno século XIX, é possível dizer que a sobrevida de Galeno
foi ainda maior.
Um dos fatos trazidos por Foucault é o de que mesmo antes de Descartes o contato sem
hierarquia entre corpo e mente já era considerado. E esse contato peculiar tinha como
ponto de articulação exatamente a ideia da “paixão”. Antes de Descartes, e bem depois
dele, a paixão resistia como “a superfície de contato entre o corpo e a alma, o ponto
onde se encontram a atividade e a passividade desta e daquele, ao mesmo tempo em
que é o limite que ambos se impõem reciprocamente e o lugar da comunicação entre
si” (FOUCAULT, 2005 [1961], p. 226, grifo nosso).
O que o filósofo francês está apontando é que, desde antes do Renascimento, a questão
da “paixão” foi o eixo por onde corpo e mente conseguiam escapar, ao menos em parte,
de todos os reducionismos que os avaliavam ou como entes separados ou então como
excessivamente hierarquizados a partir de tendências organicistas. Segundo Foucault,
“sob o efeito da paixão e na presença de seu objeto, os espíritos circulam, se dispersam
e se concentram segundo uma configuração espacial que privilegia a marca do objeto
no cérebro e sua imagem na alma” (Idem, 2005 [1961], p. 227). Temos, então, o ponto
nuclear, que faz com que, na medicina dos sólidos e dos fluídos, que domina todo o
século XVIII, predomine um sistema que fecha em uma só unidade o corpo e a mente.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Importante situar ainda outro ponto. Apesar do tema da paixão ajudar a flexibilizar –
ainda que de uma forma debilmente elaborada – as hierarquias regidas pelo organicismo,
o fato é que isso não eliminou a complexidade da questão. Muito pelo contrário. O que
ocorre é que esse movimento, em certo sentido, amplia as ambivalências do tema, na
medida em que traz para o primeiro plano o fato de que, “se a união (...) entre a alma
e o corpo manifesta na paixão a finitude do homem, ela ao mesmo tempo abre esse
mesmo homem para o movimento infinito que o perde” (Idem, 2005 [1961], p. 229,
grifo nosso). A partir daí, vista como uma faceta da unidade conflituosa entre a alma e
o corpo, a loucura passa a ser uma nova forma de recolocar a paixão em questão, como
“uma dessas formas da unidade nas quais as leis são comprometidas, pervertidas,
transformadas — manifestando assim essa unidade como evidente e já dada, mas
também como frágil e já destinada à perdição” (Idem, 2005 [1961]: 229, grifos nossos).
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
O advento da psicanálise
Como se pode perceber pelas descrições anteriores, o século XIX, que é o período
onde nasce e se desenvolve a psicopatologia como campo de pensamento e pesquisa,
foi profundamente marcado pela influência dos pensamentos organicistas e pela
medicina, que tomavam o corpo como origem e base de todos os problemas mentais.
Ainda que tenham trazido inegáveis avanços, especialmente no que se refere ao
âmbito do diálogo com os métodos científicos e ao consequente afastamento das
vertentes de matriz religiosa, o fato é que autores como Pinel, Esquirol e Griesinger
ainda estavam fortemente vinculados a um modelo organicista de pensamento,
que alocava no cérebro toda a responsabilidade por todos os tipos de transtornos
mentais e comportamentos desviantes, o que influenciava diretamente toda a sua
produção.
Contudo, como mostra bem a reflexão do filósofo Michel Foucault, a questão não
restava restrita ao âmbito da dicotomia separatista. Na esteira da complexidade
do problema do “páthos” se desenvolvia uma forte ambivalência, que aumentava
gradativamente tanto a crise dos fundamentos que separavam de forma sistemática
o corpo da mente quanto a crise da hegemonia do cérebro nas considerações
psicopatológicas. No final do século XIX, essa crise acaba por gerar novos focos de
reflexão, que passam a orientar o seu olhar em direção ao polo oposto da dicotomia,
ou seja, a mente, ou “psiquê”.
Vale ressaltar, ainda, que essa mudança de foco, que aparece sobretudo na Alemanha,
com os avanços trazidos por Sigmund Freud, não era exatamente uma novidade para
o debate germânico. Em importante trabalho de pesquisa, o historiador e psicanalista
Matt Ffytche demonstra que os estudos seculares a respeito da vida “interior” e
“subjetiva” já se desenvolviam de maneira bastante madura no Romantismo alemão,
cem anos antes de Freud. Segundo Ffytche, o Romantismo alemão da virada do século
XVIII para o XIX, e primeiras décadas deste, já voltava o seu olhar para a questão
dos fundamentos que regiam a consciência em seus estágios mais antigos, primitivos
e inconscientes, tanto no sentido do desenvolvimento individual quanto no da história
cultural como um todo. E isso acontecia na mesma intensidade em relação aos estágios
mentais patológicos, como as várias formas classificadas como “loucura”, e também o
sono, os sonhos e os transes, que passavam a ser investigados a partir de um novo tipo
de interesse psicológico (FFYTCHE, 2014, p. 14).
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Em seu trabalho sobre a História da loucura, Michel Foucault não cita o Romantismo,
mas alerta para o fato de que os pensamentos de Pinel, Esquirol e outros não eram
eventos totalmente isolados, mas, em alguma medida, partes de um contexto maior, que
começava a destacar os chamados “loucos” das outras formas de desvios sociais, pela via
da rubrica da “doença mental” – rubrica essa que era, também ela, ambivalente, porque
ao mesmo tempo em que legitimava a pesquisa científica, justificava, no mesmo bojo, a
transformação da internação compulsória em prática institucional. Depois de descrever
alguns exemplos que mostram tentativas de separar os loucos dos outros detentos em
oficinas, prisões, asilos e outros estabelecimentos do tipo, Foucault chega a formular a
seguinte pergunta, em um trecho de seu livro: “Aquilo que o século XIX formulou com
repercussão (...), o século XVIII já não havia dito e repetido incansavelmente em voz
baixa? Não teriam Esquirol, Reil e os Tuke apenas retomado, num tom mais alto, aquilo
que era havia anos um dos lugares-comuns da prática dos asilos?” (FOUCAULT, 2005
[1961], p. 395).
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Entretanto, a força do organicismo era ainda muito grande, como se observa quando
lembramos as principais motivações epistemológicas de nomes como Esquirol e
Griesinger. Na segunda metade e fins do século XIX, essa força resistiria apegada
a outro parâmetro significativo, que também ganhava terreno com o fracasso
das investigações anatômicas: estamos falando das teses da hereditariedade e da
degenerescência. Segundo Elisabeth Roudinesco, o fim do século XIX “foi a época da
hereditariedade-degenerescência, que se impôs em diversos domínios do saber antes
de desmoronar, em 1905. Ela reduziu a doença mental a uma causalidade puramente
orgânica, condenando ao nada a própria ideia de subjetividade” (Idem, 2009, p. 218).
É importante destacar que, essas teorias da hereditariedade eram todas elas pré-genéticas
e anteriores ao uso mais amplo do microscópio. Todos os nomes mais conhecidos da
época que desenvolveram teorias da hereditariedade, como Gregor Mendel, Herbert
Spencer, Charles Darwin, Karl Wilhelm von Nägeli, Édouard-Gérard Balbiani, Edouard
van Benedem, Walter Flemming, August Schleicher e Eduard Strasburger, todos eles,
formularam teses que tinham uma base fundamentalmente especulativa de raciocínio
(JUSTINA, 2001, pp. 41-43). E ainda que apontem, mais amplamente, uma tendência,
não modificaram radicalmente a forma como se via a loucura naquela época.
27
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Ao lado das teses da “raça pura”, mais evidentes e explícitas, caminhavam, junto, os
estigmas morais decorrentes de todo o desenvolvimento da psiquiatria, desde Pinel
até o fim do século XIX. A ponto de Michel Foucault afirmar que, “o que se chama
de prática psiquiátrica é uma certa tática moral, contemporânea do fim do século
XVIII, conservada nos ritos da vida asilar e recoberta pelos mitos do positivismo”
(FOUCAULT, 2005 [1961], p. 501). Isso porque, ao eleger um tipo moral e psíquico
como “superior”, automaticamente se elegia, junto, as formas de comportamento
“inferiores”, que deveriam ser combatidas e/ou curadas pelos tratamentos vigentes.
Cristiana Facchinetti coloca que, nesse contexto, o alienado passa a ser visto como “um
ser degenerado, passando a ser considerado como um ser inferior, subdesenvolvido e
suas faculdades morais [passam] a ser consideradas como funções vitais, delimitadas
na substância cerebral, sustentáculo das atividades mentais” (FACCHINETTI, sem
data, p. 3). O positivismo sustentava, portanto, a “tática moral” de que fala Foucault,
que acabaria, como consequência, nos eugenismos. O grande diferencial desse cenário
está no fato de que a justificativa moral preenchia a lacuna deixada pelos fracassos das
pesquisas anatômicas, auxiliando na sustentação da psiquiatria e, mais amplamente,
na própria manutenção dos internamentos como prática institucional.
28
Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Em seu texto sobre A história do movimento psicanalítico, de 1914, Freud afirma que
sua primeira grande divergência com Joseph Breuer surgiu do fato de que este entendia
a histeria a partir de uma teoria que era, ainda, “até certo ponto fisiológica” (FREUD,
1997 [1914], p. 13). Em suas primeiras experiências com o tratamento de pacientes que
sofriam de afecções nervosas, Freud teria sua primeira grande decepção, ao utilizar
a fisioterapia, em especial a eletroterapia. Foi nessa época que o estudante alemão
começou a perceber, influenciado pelas ideias de Charcot, Liébeault e Bernheim, que
a sugestão parecia oferecer “um substituto satisfatório para o malogrado tratamento
elétrico” (Idem, 1997 [1914], p. 11).
29
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Entretanto, a questão não é tão simples quanto parece. Por um lado, à primeira vista,
o conceito de defesa pode ser visto como “o conjunto de operações que visam diminuir
ou, de preferência, eliminar totalmente qualquer modificação capaz de pôr em risco
o equilíbrio na economia interna do sistema neuropsíquico” (VALENTE, 2013, p. 50,
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
grifos do autor). Porém, por outro lado, essas mesmas operações podem gerar, em
condições específicas, uma situação que a psicanálise vai entender como “patológica”.
Isso porque, como veremos, nada garante que uma substituição gere necessariamente
um “equilíbrio”. Além disso, vale frisar, também, que a própria ideia de “equilíbrio”
deve ser refletida de forma mais ampla, porque ela também não é tão simples.
Freud chama de “neuroses de defesa” aquilo que se distingue dos “estados afetivos
psíquicos normais”. Ele classifica a anormalidade das neuroses de defesa como sendo a
de estados que “não [conduzem] à resolução de coisa alguma, e sim a um permanente
prejuízo para o ego” (FREUD, 1896, p. 132). Entretanto, há, para ele, um estágio “normal”
e um estágio “patológico” de defesa. O estágio “normal” se baseia em uma “aversão
contra dirigir a energia psíquica de tal forma que daí resulte algum desprazer” (Idem,
1896, p. 132). É, segundo ele, uma das “condições mais fundamentais do funcionamento
psíquico” (Idem, 1896, p. 132). Já no estágio que ele classifica como “patológico”, o
que ocorre é que a própria defesa se torna prejudicial “quando é dirigida contra ideias
também capazes de, sob a forma de lembranças, liberar um novo desprazer” (Idem,
1896, p. 132). A força que move e “regula” esse prejuízo está alicerçada, para ele, nos
fenômenos da moralidade e da vergonha (Idem, 1896, p. 133). Ou seja, se a conexão
entre o ego e as lembranças não gera vergonha ou sentimento de inadequação moral,
é porque a defesa conseguiu substituir de forma satisfatória a lembrança, e estamos
diante de uma “defesa bem-sucedida, que é equivalente à saúde” (Idem, 1896, p. 133);
se a conexão, ao contrário, gerar a vergonha ou o sentimento de inadequação moral,
então a defesa passa a funcionar de uma forma que se abre para o retorno do recalcado,
um retorno que é envergonhado e, portanto, sujeito à autocensura e, no entendimento
de Freud, à classificação como “doença”.
A partir dessa distinção entre “normalidade” e “doença”, Freud vai distinguir alguns
tipos, nos quais vislumbra diferentes formas de manifestação da defesa patológica. Essas
construções vão desembocar naquilo que ele classifica como “neuroses” e “psicoses”
de defesa. Antes de estudar essas formas, entretanto, é preciso passar de forma mais
detida exatamente pela discussão sobre o que é o “normal” e o que é o “patológico”. É o
que faremos agora.
O tema das distinções entre o “normal” e o “patológico” faz parte daquele grupo de
assuntos que têm a aparência de ser simples, mas não são, muito pelo contrário.
A palavra “normal” deriva do latim “normalis” (MOURA, 2007, p. 532), termo que
carrega ligação com o esquadro e que se definia como aquilo que era “feito de acordo com
o esquadro do carpinteiro”, que era chamado norma e era usado para marcar ângulos
31
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
retos” (NORMAL). Aqui, já temos uma informação valiosa e reveladora, porque ajuda a
explicar boa parte de todo o senso comum que existe sobre o termo.
O que a reflexão de Canguilhem aponta, e que se encontra nos entremeios das teorias
humorais antigas, é um fato que tem sido revisitado pelas mais diversas vertentes
médicas atuais, em muitas de suas áreas: o que está em questão em noções como
“equilíbrio” e “harmonia” não é exatamente uma lógica de, “hábito”, “repetição” ou
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
“preservação” pura e simples, mas sim, mais amplamente, uma dinâmica fluída e
oscilatória que busca no jogo constante entre a variação e o contraste a sua sustentação.
O interessante é que essa perspectiva não se familiariza muito com a rotina de ângulos
retos do esquadro do carpinteiro. O que mostra o que Cheniaux Jr quis dizer quando
situou a distinção entre o normal e o patológico em medicina no âmbito do “impreciso”.
Figura 10. Autorretrato com a orelha cortada (1889). Vincent van Gogh.
Essa lógica oscilatória comparece de forma bem ampla na forma como a psicopatologia
define a questão da relação entre o normal e o patológico. Paulo Dalgalarrondo chama
a atenção para o fato de que, apesar de existirem alterações de comportamento que
podem ser facilmente enquadradas como “patológicas”, é preciso cautela, porque as
ideias de “saúde” e “normalidade” em psicopatologia apresentam fortes controvérsias
(DALGALARRONDO, 2008, p. 31). O autor destaca que “há muitos casos limítrofes,
33
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Um dos fatores fundamentais nesse caso tem a ver com o contexto sociocultural.
Toda sociedade estabelece, por meio de consenso ou de um convívio com as
padronizações da média de seus habitantes, certas visões pragmáticas sobre o
que tem aparência de normalidade e o que parece um comportamento “desviante”
ou “patológico”. É uma questão cultural e é possível observar inúmeras diferenças
nesse sentido entre os povos. A psicopatologia deve levar esse ponto em consideração,
porque ele ajuda a flexibilizar os critérios, que não podem ser tomados como verdades
inquestionáveis para o pensamento científico.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Figura 11. A partir do critério sociocultural, o movimento “punk” tende a ser considerado “contracultura”, por se
colocar em oposição aos parâmetros considerados “sadios” pela média das pessoas.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
possibilidades existenciais” (Idem, 2008, pp. 33-34). Trata-se de uma visão fortemente
marcada pela influência das filosofias existenciais e fenomenológicas, e que carrega
familiaridade com alguns pontos da normalidade subjetiva e também com a ideia de
“bem-estar”. A “saúde mental”, aqui, é vista como resultado de uma habilidade em
transitar do chamado “senso de realidade” ao senso de humor, conforme as situações da
vida o peçam. O que mostra, também, consonância com os princípios da normalidade
como processo, que já trouxemos anteriormente.
Antes, porém, vale frisar que a noção de “normalidade” na psicanálise existe fortemente
vinculada a um sentido de “tradução satisfatória” do desejo. Em outras palavras, é possível
dizer que, para a psicanálise, um estado mental pode ser considerado “normal” se um
evento traumático foi bem ou razoavelmente bem “traduzido”, ou seja, foi “substituído”
para outra forma, a qual minimiza o desprazer ocasionado pela forma original. Freud
afirma que o conhecimento clínico do recalque pode ser explicado como “uma falha na
tradução”, e o motivo dessa falha “é sempre a produção de desprazer que seria gerada
por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento
que não permitisse o trabalho de tradução” (FREUD, 1892-1899, pp. 141-142, PDF).
A “defesa normal” produziria um desprazer menor em relação ao trauma, porque substitui
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
a forma traumática por outra que tem a vantagem de gerar algum tipo de identificação
com o mundo externo; e a “defesa patológica” seria aquela que não consegue deslocar
o trauma para uma tradução minimizante do sofrimento, gerando, como resultado, o
aumento da angústia, da vergonha e do sentimento de inadequação.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Isso vai influenciar fortemente a forma como as psicologias constroem a sua visão sobre
como deve funcionar a condução terapêutica. As referências específicas mudam de
teoria para teoria, mas é possível encontrar como figura básica de terapia um processo
que engloba sempre a tentativa de construir um acordo satisfatório entre o desejo e a
adequação social. Por conta disso, existem várias críticas aos campos da psicologia, que
são acusados de reforçar estereótipos e rótulos sociais, sob a justificativa de que devem
atuar sempre no sentido de fortalecer a adequação dos indivíduos ao meio social em
que vivem. Como vimos no tópico anterior, os contextos socioculturais acabam sendo,
em muitas ocasiões, assentos radicais de sustentação estatística das frequências de
comportamento, sustentação essa da qual derivam, em muitos casos, diversas formas
de preconceito e de marginalização de condutas, tidas como “doentes” quando, em
vários contextos, são apenas desvios da norma padrão.
E há ainda outra crítica que é direcionada às psicologias. Por conta de sua base de
raciocínio ligada fundamentalmente à adequação e ao social, elas acabam trabalhando
com os problemas psíquicos como se estes fossem episódios de sofrimento que precisam
ser eliminados da vida do paciente, independentemente de sua complexidade. Em
muitos casos, o que isso gera é a adoção de formas de tratamento que não passam de
simples paliativos, que não fazem mais que esconder a amplitude do problema. Na
aparência imediata a solução surge posta, mas, nesse tipo de prática, a tendência é a de
que o problema volte, porque suas raízes e aspectos mais densos não foram atingidos.
A partir dessas diferenças, vai variar também a ideia que cada um desses campos tem sobre
o que é, por exemplo, um “sintoma”. No geral, essa palavra aparece sempre associada
à ideia de uma “manifestação subjetiva de uma doença” (FERREIRA, 2000, p. 639).
Porém, em cada um desses campos essa ideia vai vir fundamentada em bases diferentes.
Para a visão psiquiátrica padrão, a manifestação da doença é sempre um evento cuja
raiz é somática. Mesmo que a manifestação seja completamente comportamental, a
psiquiatria vai entender que se trata de um substrato comportamental, que esconde em
seu âmago uma causalidade neurológica. Para esse tipo de abordagem, o tratamento vai
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
ser sempre medicamentoso – ainda que algumas correntes trabalhem com a terapia ou
a análise como forma de tratamento adjunto.
No caso das psicologias, o sintoma vai ser visto quase sempre como a manifestação
de uma inadequação social. Inclusive quando, por exemplo, ele surgir como uma
“dificuldade de ser feliz”. Nesse caso, como em vários outros, o problema estaria em
não conseguir se adaptar às exigências de felicidade irrestrita que imperam em tal ou
qual sociedade, ou em tal ou qual discurso cultural – como é o caso, por exemplo, com
a retórica da propaganda de mercado, que aparece cada vez mais como um reclame
veemente e sistemático para que todos procurem a felicidade a todo instante, como se
esta fosse um valor inquestionável e de simples elaboração. Nesse contexto, o sintoma
aparece como a manifestação de uma dificuldade de se adequar ao prumo social, seja
ele qual for. As formas de tratamento vão variar no conteúdo, mas partirão sempre
do mesmo pressuposto, qual seja o de que o paciente deve caminhar em direção a
uma solução de conduta que leve em conta a conveniência e a conformidade com a
sociedade, o que em muitos casos não aprofunda o enredo para os seus matizes mais
amplos e complexos.
Figura 14. Um método perigoso (2011), de David Cronenberg. Filme sobre a relação entre Sigmund Freud e Carl
Gustav Jung.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
A forma como a psicanálise vê o sintoma está diretamente ligada à forma como Freud
elaborou o seu conceito de “defesa”. Para Freud, os sintomas são mecanismos de defesa
que atuam como protetores da consciência, ou mais especificamente do ego, inibindo o
retorno dos conteúdos que foram recalcados para o inconsciente. Nessa perspectiva, o
sintoma aparece de uma forma ambivalente, porque é uma estrutura que, de um lado,
tenta proteger o ego do desprazer – o que lhe confere certo aspecto “positivo” – e, ao
mesmo tempo, na esteira desse mesmo processo de proteção, acaba, de outro lado, em
vários casos, inibindo uma melhor elaboração do problema que gerou o recalque, ou
seja, a tentativa de proteção.
Essas três partes não existem separadas umas da outras, como se pode perceber.
A mente funciona em um confronto constante, porque o material que foi recalcado
está sempre lutando contra esse destino. Já o ego está sempre ali, em uma posição
intermediária e não definida, a receber estímulos desejantes do inconsciente e
43
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Freud chama essa lógica de acordo entre o desejo e o mundo externo de “sublimação”.
Quando o ego acata os princípios existentes no superego, redirecionando o seu desejo
para substitutivos que sirvam, mesmo que parcialmente, tanto para um quanto para o
outro – desejo de um lado, cultura de outro –, ocorre aquilo que ele classificou como
um processo de sublimação. Ou seja, o ego sublima o desejo em uma forma aceitável
pelo mundo externo, para que possa gozar a satisfação demandada pelo inconsciente,
mesmo que de uma forma temporária, enquanto mantém certa deferência para com a
instância cultural, o superego.
A questão é que em muitos casos esse processo não se dá com essa simplicidade
toda. No senso comum, costumamos dizer que “quem quer agradar a todos, acaba
não agradando a ninguém”. E o fato é que é impossível satisfazer todas as demandas
desejantes do inconsciente, assim como é impossível satisfazer todas as demandas
repressivas do superego. Exatamente pelo fato de que ambos existem, o que impede
sempre que a balança penda apenas para um dos lados. Disso nasce, como se pode
depreender, um cenário deveras conflituoso, dentro do qual podem se desenvolver
estados mais problemáticos, quando a gangorra perde o equilíbrio e a maleabilidade
necessários.
O sintoma, como podemos concluir, é, então, um mecanismo de defesa que existe para
substituir o material mental desejante que foi recalcado por não se adaptar às exigências
do superego. O material recalcado não aceita o recalque e retorna. O ego então cria uma
substituição simbólica, que acaba permitindo a manifestação por uma via figurada.
Essa figuração, que é ao mesmo tempo uma “defesa”, é o sintoma. A forma como essa
substituição/defesa se manifesta vai variar de estrutura mental para estrutura mental.
E essa variação ganhou descrições na história da psicopatologia e, mais especificamente,
na história da psicanálise. Vamos falar agora sobre as duas formas mais importantes, a
neurose e a psicose.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Figura 15. Freud além da alma (1963), de John Huston. Filme sobre Freud e o nascimento da psicanálise.
A neurose
A noção de neurose aparece pela primeira vez no final do século XVIII, mais
precisamente no ano de 1977. Formulada por um médico escocês chamado Willian
Cullen, essa ideia de neurose buscava representar “um conjunto heterogêneo de
doenças atribuídas a um ataque dos nervos” (POLETTO, 2012, p. 2), em cujo grupo
constavam não apenas as doenças mentais, mas também palpitações cardíacas, cólicas
e hipocondria, dentre outras. Essa indistinção com as manifestações físicas, típica do
período, permaneceria ainda no século XIX, que acrescentaria ao grupo os eventos
psicossomáticos e neurológicos, como por exemplo, o Parkinson e a epilepsia, dentre
outros (Idem, 2012, p. 2).
PLON, 1998, p. 535). Segundo os autores, o conceito de “neurose” cresce, então, a partir
de uma construção nosográfica “pela negativa”, que passa a incluir em seu campo “o
domínio das doenças para as quais a nova medicina anatomopatológica não encontrava
nenhuma explicação orgânica” (Idem, 1998, p. 535).
Isso não significa que as neuroses não fossem consideradas doenças. Eram. Porém,
diante do fracasso das investigações anatômicas, elas permaneciam num espaço
à parte das classificações estratificadas, o que lhes conferia um status único, que
remetia inevitavelmente a um estado de enigma que sustentava a busca científica e o
questionamento das formas tradicionais. E é essa equação que, como vimos, vai gerar
a psicanálise.
Não podemos esquecer também que outra grande contribuição da psicanálise freudiana
foi a de estender os fenômenos tidos como “anormais” a todos os seres humanos, a partir
da generalização da dinâmica oscilatória da condição mental. Isso significa que, de uma
forma ambivalente, a psicanálise pensa a neurose tanto como mecanismo conflituoso
de defesa quanto como uma condição “normal” do psiquismo. Essa ambivalência
desembocou no curioso fato de que, hoje, apesar de continuar portando o sufixo
designador de doença, a neurose não é mais considerada como tal pela Organização
Mundial de Saúde (LOPES, 1988, p. 5). Como veremos no próximo tópico, o estudo da
palavra “psicose” ajuda a esclarecer ainda mais esse tema. Antes, porém, vale entender
melhor o que é a neurose para a mais específica das psicopatologias, a psicanálise.
Com o passar de seus estudos, Freud abandona o termo “psiconeurose” e fica apenas
com a palavra “neurose”. Ela vai designar, a partir daí, os “mecanismos de defesa” que
conseguem gerar uma substituição razoavelmente satisfatória para as frustrações de
base da história psíquica. Em outras palavras, na gangorra que se dá entre o desejo
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
A partir daí, Freud vai dizer, então, que existem três tipos de neurose, os mesmos tipos
que já constavam da formulação inicial, como psiconeuroses de transferência: a neurose
obsessiva, a neurose histérica e a neurose fóbica.
Essas três neuroses partem do mesmo esquema que já foi desenvolvido quando
falamos da noção de “defesa”: há um evento traumático de base; esse evento causa
um sentimento de desprazer; a mente recalca esse evento, substituindo-o por uma
figuração; e então, se a defesa falha e ela não consegue mantê-lo afastado da lembrança,
o recalcado retorna e está configurada a neurose. Entretanto, há variações nessa
equação. Vamos conhecê-las agora.
Figura 16. Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), de Woody Allen. Filme que traz elementos para pensar as
A neurose obsessiva parece ser a forma mais bem-sucedida de defesa. Para se proteger
do risco do retorno do conteúdo traumático recalcado, o neurótico obsessivo decalca na
face das exigências do superego a aparência de um objeto de desejo. Isso não elimina
totalmente a angústia, porque as limitações e restrições inevitáveis do ego permanecem.
Mas permite uma diminuição significativa do desprazer e uma dinâmica quase sempre
satisfatória de acordo entre a proibição e o gozo. Por conta disso, o obsessivo quase
sempre consegue adequar o seu desejo aos costumes sociais e as regras culturais ao seu
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
desejo. O sintoma obsessivo não é uma garantia absoluta contra o retorno do recalcado,
porque os acasos da vida muitas vezes suplantam qualquer tipo de previsão ou projeto.
Mas o fato é que a neurose obsessiva parece ser a forma mais adaptada de defesa entre
as neuroses.
E há a neurose fóbica. Neste caso, o cenário é ainda mais complicado. Acontece uma
fobia quando a substituição que recalca o evento traumático traz à cena uma nova
forma igualmente traumática. Isso porque a tendência, nesse caso, é a de que o símbolo
substituto gere tanta angústia quanto o retorno do conteúdo recalcado. O enredo passa
exatamente pelo fracasso da substituição, que, ao invés de gerar uma negociação do
desejo com o superego por meio de uma figuração razoavelmente satisfatória, dá origem
a uma situação tão angustiante quanto a primeira. O resultado é o de que o fóbico luta
para evitar tanto o trauma inaugural quanto a sua substituição, não encontrando, assim,
vazão para as suas angústias. No fundo, essa “compatibilidade” entre o trauma primeiro
e a substituição tem a mesma aparência do fracasso histérico e do fracasso obsessivo,
ou seja, a de não permitir que o psiquismo minimize a angústia. A diferença básica na
fobia é simplesmente a de que esse fracasso se dá como substituição do trauma pelo
medo. O fóbico se defende fugindo, pela via do medo. Uma fuga que não é nem mais
do trauma inicial, mas sim da construção simbólica que o substitui. E assim, a libido,
na fobia, é liberada como angústia e não como negociação entre o desejo e o superego.
A psicose
O termo “psicose” aparece bem depois de “neurose”. Cunhado no ano de 1845, foi
elaborado pelo médico, filósofo e poeta austríaco Ernst Von Feuchtersleben, como
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Figura 17. Psicose (1960), de Alfred Hitchcock. Filme que retrata alguns elementos que podem ser relacionados ao
comportamento psicótico.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Cabe então a pergunta: se para Freud ambas, neurose e psicose, são mecanismos de
defesa, como se dá a “defesa” na psicose, se não há acordo? A resposta encontrada pelo
criador da psicanálise foi a seguinte: diante de um evento traumático, que envolve a
perda de algo, o que faz o ego quando se deflagra uma psicose? Ele constrói de forma
independente um “novo mundo externo” e um “novo mundo interno”. Isso significa, em
outras palavras, um rompimento radical com aquilo que Freud chamou de “princípio
de realidade” e que reina no superego. Como afirma Michele Poletto, na psicose, “o
sujeito não toma conhecimento da realidade externa, [ele simplesmente] não a percebe”
(POLETTO, 2012, p. 9). Isso porque sua resposta aos impedimentos intoleráveis da
realidade se dá a partir de uma reconstrução dessa mesma “realidade”, entretanto
dissociada do chamado “mundo externo”. O oposto do que ocorre nas neuroses, que
tomam o superego como referência intermitente para a tentativa da construção de um
acordo.
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Apesar de chegar à conclusão de que a psicose é incurável, Freud não considerava que
as respostas dos psicóticos fossem meros delírios ou simples alucinações. Depois de
várias observações clínicas, o fundador da psicanálise perceberia, naquilo que grosso
modo era considerado um destacamento absoluto do dito “mundo real”, na verdade
uma tentativa de reelaboração da situação traumática, que, se em muitos casos
apresentava contornos altamente incomuns, não deixava de ser, a seu modo, uma
forma de reconstrução (Idem, 2012, p. 9).
Figura 18. Edição brasileira do Seminário 3 de Jacques Lacan, sobre as psicoses (1955-1956). Publicada no Brasil
no ano de 2008.
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
A forma como Lacan vai enxergar as psicoses não difere tanto assim da de Freud. Há
o mesmo evento traumático de base, uma tentativa de defesa e recalque e o insucesso
da empreitada. A diferença é que, se em Freud o que escapa do psicótico é o “princípio
de realidade”, em Lacan, como este ─ o “real” ─ resta impossível, o que escapa é, na
verdade, uma parcela fundamental do simbólico, que ele chama de “Nome-do-pai”. Em
outras palavras, para Lacan, o que se passa é que “previamente a qualquer articulação
simbólica haveria uma etapa em que uma parte da simbolização não se efetivaria na
psicose” (GUERRA, 2010, pp. 28-29). O resultado é que, “na psicose, algo de primordial
quanto ao ser do sujeito não ganha representação, sendo, antes, rejeitado, foracluído”
(Idem, 2010, p. 29).
Segundo Andréa Guerra, a partir dessa visão, fortemente baseada no significante, Lacan
vai enxergar, então, a psicose como um evento de “foraclusão do significante primordial
que veicula a Lei e a condição do desejo, e que ele denomina de significante Nome-do-pai”
(Idem, 2010, p. 30), que não é outra coisa senão o superego freudiano, reformatado pelo
registro ternário do real, simbólico e imaginário.
Dessa forma, ao invés de dizer que o psicótico “não reconhece a realidade”, o que Lacan
coloca é que, na psicose, o “real” se inscreve no inconsciente, através do furo deixado
pela foraclusão do chamado “Nome-do-pai”, e passa a coincidir com ele-inconsciente.
É bom lembrar que, para Freud, o “princípio de realidade” reside no superego, enquanto
que, para Lacan, o “real” é o impossível, diante da hegemonia do simbólico. E então,
se a base da tese lacaniana está no simbólico, é exatamente ele, ou seja, é exatamente a
representação simbólica enquanto acordo entre o sujeito e a linguagem cultural, que não
“se realiza” na psicose. O que sobra, então? “O nível imaginário não se remete ao campo
simbólico que desenharia seus contornos, assim como o real não estaria aí costurado,
ficando o inconsciente a céu aberto” (Idem, 2010, p. 34). Ou seja, a ausência estrutural
do chamado “Nome-do-pai” acarreta, como efeito psicótico, “uma coincidência entre os
campos do imaginário e do simbólico” (Idem, 2010, pp. 34-35).
Importante frisar que, assim como Freud, Lacan não enxergava as formulações
psicóticas como simples delírios, mas sim como tentativas de estabilização da angústia.
Em outras palavras, aquilo que normalmente era tomado como um delírio, Lacan via
como um processo de reelaboração da situação conflituosa, por meio da construção de
metáforas cujo papel seria, assim sendo, o de substituir a metáfora paterna ausente,
em sua função de nomeação e de escrita de si, por outra amarração que venha a dar
conta de minimizar o sofrimento (Idem, 2010, p. 36). Isso abriu espaço inclusive para
a proposta de Lacan de uma clínica da psicose.
De modo geral, o grupo das psicoses é formado por três tipos de sintomas: a paranoia;
a melancolia; e a esquizofrenia. Cada uma delas possui características específicas e vale
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Conceitos Gerais │ UNIDADE I
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais
O termo “melancolia” é bem mais antigo e remonta à teoria dos humores de Hipócrates,
do século V a.C., e aos textos de Platão e Aristóteles. Produto da união dos termos gregos
mélas, “negro”, e chole, “bile”, a melancolia dos antigos era curiosamente associada a
comportamentos de excitação extrema, comparados ao estado de embriaguez do vinho,
que fragilizava as defesas, para revelar traços grosseiros da personalidade da pessoa, ou
então para fazê-la agir de forma completamente diferente daquela habitual (LAMBOTTE,
2000, p. 33). Entretanto, havia também a percepção da “inibição” como um fator
constitutivo do estado melancólico. Esse fator, que já comparecia nas considerações
gregas, foi assimilado pelos medievais, pelo Renascimento e pelo Romantismo, que
passaram a associar a tristeza, a preguiça, o ócio, o tédio, a negligência e a indiferença
ao rol de aspectos constituintes da melancolia (Idem, 2000, p. 59). Roudinesco e Plon
colocam que desde a teoria hipocrática dos quatro humores já havia a descrição desses
sintomas, que incluíam ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção
do desejo e da fala, impressão de hebetude, seguida de exaltação, além de atração
irresistível pela morte, pelas ruínas, pela nostalgia e pelo luto (ROUDINESCO; PLON,
1998, p.506).
Essa mescla entre a exaltação e a inibição vai gerar a visão moderna da melancolia
como um estado de alternância entre a mania e a depressão (Idem, 1998, p. 506).
Freud não faz opção radical por nenhum dos dois lados, mas elabora sua visão sobre
o assunto, por meio da qual se aproxima-a do luto, ou seja, da ideia de um pesar por
alguma coisa perdida. Em outras palavras, para o inventor da psicanálise, o estado
melancólico é uma resposta da mente a uma perda qualquer importante, acompanhada
de uma regressão da libido para o ego, na qual este aparece como vítima de uma forte
inibição momentânea, que se origina de uma identificação prévia que o ego tinha para
com o objeto perdido, abruptamente cortada pela perda (FREUD, 2011 [1917], p. 85).
Nesse contexto, a melancolia parece ser um estado de “hibernação”, através do qual
o ego busca refúgio quando se sente órfão de uma identificação qualquer. O grande
problema reside no fato de que há uma tendência anestesiante na lógica da melancolia,
que dificulta bastante o desenvolvimento do trabalho de luto ─ e, de quebra, também
a análise. É uma ambivalência e um risco aparentemente inescapáveis, porque, ao que
parece, toda grande perda pressupõe esse estado de “entorpecimento” do ego, antes de
qualquer trabalho forçado de luto.
E há, por último, a esquizofrenia. É o conceito mais recente dos três e surge no ano
de 1911, cunhado pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, a partir da junção dos termos
gregos schizen, “clivar, fender”, e phrenós, “pensamento”, para gerar o sentido de um
rompimento da capacidade de articulação intelectual por parte da pessoa afetada.
Dentro do rol de sintomas desse estado mental podemos encontrar uma incoerência
radical do pensamento, da afetividade e da ação, bem como “atividade delirante” e,
54
Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Tudo indica que a chamada “esquizofrenia” seja o estado extremo do que a psiquiatria
convencionou denominar como “doença mental”. Isso implica em alguns pontos
importantes. Em primeiro lugar, apesar de ser considerada incurável por várias
abordagens, a esquizofrenia é investigada, também, como um estado avançado de
mentalidade estética. Muitos autores, como Karl Jaspers, ponderam que os eventos
esquizofrênicos estão na raiz de muitas das grandes produções filosóficas e artísticas
da história da humanidade, como nos trabalhos de Friedrich Hölderlin (1770-1843),
Vincent van Gogh (1853-1890) e August Strindberg (1849-1912) (Idem, 1998, p. 191).
Além destes, Michel Foucault cita ainda o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e o
dramaturgo e ator Antonin Artaud (1896-1948) como exemplos de gênios que passaram
por períodos de esquizofrenia que foram fundamentais para sua produção intelectual.
Outro ponto, é o de que vivemos hoje, uma certa prevalência do discurso farmacológico,
alicerçado em um poder cada vez maior da indústria farmacêutica, e que acaba
empurrando a visão do tratamento da esquizofrenia quase sempre para a estrita
utilização de medicamentos psicotrópicos. É uma tendência que deve ser constantemente
repensada e posta em questão, diante de sua complexidade.
55
Capítulo 2
A lei seca
No dia 19 de junho de 2008, o então presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva
sancionou a Lei no 11.705, que ficaria conhecida, a partir de então, pelo mapelido de “Lei
Seca”. O objetivo da lei era o de intensificar as medidas restritivas e punitivas ligadas
às pessoas que eventualmente dirigissem embriagadas, ou seja, sob o efeito de bebidas
alcoólicas.
Dentre outras medidas, o texto da lei destaca a intenção das instituições públicas de
lutar pelo estabelecimento de uma lógica de “alcoolemia zero” no trânsito brasileiro
e de “impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do
álcool” (LEI SECA). Além disso, passa a obrigar os estabelecimentos comerciais que
vendem bebidas alcoólicas a estamparem, no interior de suas dependências, avisos
que alertem a população consumidora sobre os riscos penais decorrentes da direção
embriagada – estabelecendo uma multa de mil e quinhentos reais aos comerciantes que
não cumprirem a determinação.
Em seu art. 165, o texto da Lei Seca define ainda que a direção sob a influência de álcool
ou qualquer outra substância psicoativa que gere dependência deve ser classificada
como uma “infração gravíssima”, de acordo com as normas do código de trânsito
brasileiro, sendo passível de multa e suspensão do direito de dirigir por doze meses.
56
Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Segundo Regina Martins e outros, a introdução de medidas legais para coibir a relação
entre o uso do álcool e o trânsito não é uma novidade brasileira. Já vem sendo utilizada em
vários outros países, como por exemplo o Japão, o Reino Unido, o Canadá e a Holanda,
dentre outros (MARTINS e outros, 2013, p. 3). Vários estudiosos internacionais, como
Hitosugi, Imai e outros, apontam para o fato de que essas medidas têm sido muito
eficazes no sentido de diminuir radicalmente a incidência de acidentes de trânsito
relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas. Essa redução é associada, na imensa
maioria dos casos, a um quadro complexo de medidas articuladas, que comporta, em
seu interior, a proibição legal, conectada ao aumento do rigor nas punições, multas
e prisões, e também ao aumento das pesquisas e medidas socioeducativas que se
orientem no sentido de prevenir e informar a população e os condutores sobre os riscos
da direção imprudente ligada ao álcool.
A Lei Seca vem sendo aperfeiçoada aos poucos. No início, a única forma de identificar
as quantidades proibidas de álcool no sangue dos condutores era através do conhecido
“bafômetro” e das dosagens sanguíneas dos níveis alcoólicos. Algumas mudanças
recentes ampliaram essas possibilidades, e hoje vários outros meios são aceitos para
comprovar a embriaguez do motorista, como, por exemplo, o testemunho dos policiais,
fotos, vídeos, relatos de outras testemunhas e testes clínicos, dentre outros (Idem, 2013,
p. 4). São alterações e aperfeiçoamentos que ampliam as possibilidades da lei, em sua
intenção de diminuir o número de acidentes.
57
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
E os números mostram que ela tem conhecido êxito nessa empreitada. Vários estudos
têm sido feitos para avaliar os efeitos e resultados da aplicação da lei seca e todos eles
mostram algum tipo de queda no número de acidentes envolvendo o consumo abusivo
de álcool. Um dos levantamentos foi feito pelo Ministério da Saúde, já no ano de 2010,
dois anos depois do surgimento da lei. Segundo esse levantamento, “houve queda, em
média, de 6,2% nos índices de morte no trânsito, em todo o país” (SALGADO e outros,
2011, p. 2).
Outro estudo comparativo foi feito em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre os anos de
2005 e 2009. Ele é relevante porque é possível confrontar dados anteriores ao advento
da lei seca com outros posteriores à sua implantação. Segundo a verificação, feita por
uma parceria entre a Associação Brasileira Comunitária para Prevenção do Abuso de
Drogas e a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas do Departamento de Psiquiatria
da Universidade Federal de São Paulo, se em 2005 os motoristas que apresentaram
taxa zero de álcool no sangue eram 61,8%, em 2009 esse número cresceu para 83,3%,
em uma redução significativa, causada pelo aumento do rigor na legislação (Idem,
2011, p. 3).
E há ainda uma reportagem mais recente, realizada neste ano de 2016, e que dá conta de
outros dados. Segundo o repórter Luciano Nascimento, da Agência Brasil, em matéria do
dia 11 de fevereiro deste ano de 2016, dados fornecidos pela Polícia Rodoviária Federal
mostram que o número de acidentes de trânsito e de mortes causadas pelo uso de álcool
tem diminuído. Em 2012, foram registrados 7594 acidentes no Brasil; esse número caiu,
em 2014, para 7391. o número de mortes também teve queda, de 5%, diminuindo de
58
Conceitos Gerais │ UNIDADE I
42266 em 2013 para 40294 em 2014. Um dos principais fatores atribuídos a essa queda
é o do aumento do valor das multas, que, no caso da direção embriagada, passou a ser
de 1915,30 reais, o que ajuda a inibir ainda mais as condutas imprudentes no trânsito.
Segundo a reportagem, a queda nos números ainda é gradual, mas já demonstra uma
tendência, que deve ser reforçada pela manutenção da rigidez, associada ao crescimento
de novas medidas e campanhas socioeducativas (NASCIMENTO, 2016).
59
Capítulo 3
Comportamento de risco no trânsito
A Lei Seca surge como uma iniciativa voltada para a tentativa de diminuir o número de
acidentes que envolvem o uso de bebidas alcoólicas e demais substâncias do gênero.
Esse tipo de comportamento faz parte de um grupo de atitudes que normalmente são
classificadas como “comportamentos de risco”.
Assim como acontece com o caso da relação entre o álcool e a direção, no geral são feitas,
também, várias pesquisas voltadas para uma melhor compreensão acerca dos vários
fatores que contribuem para tornar o trânsito mais perigoso ou não. Essas pesquisas
são realizadas em todo o mundo e buscam avaliar o máximo de elementos possíveis que
estejam relacionados com o tema.
Renata Panichi e Adriana Wagner chamam a atenção para o fato de que o comportamento
das pessoas no trânsito é sempre “multideterminado”, ou seja, é sempre o resultado
de uma série de elementos e aspectos entrecruzados. Dentre esses aspectos podemos
destacar um conjunto de variáveis individuais, comportamentais, sociocognitivas,
ambientais, sociais, e mesmo políticas, como é o caso com a já citada Lei Seca (Idem,
2006, p. 2). Em todos esses casos, temos elementos que contribuem para aumentar
ou diminuir o risco dos acidentes no âmbito do trânsito, especialmente nas grandes
cidades.
Podemos encontrar um dos exemplos mais evidentes desse tipo de situação quando
a pessoa decide dirigir durante uma crise de estresse. Várias funções importantes,
60
Conceitos Gerais │ UNIDADE I
Ainda que seja um ponto delicado da questão, porque trabalha com estereótipos e
rótulos, o fato é que existem, também, perfis que se apresentam como mais propensos
aos comportamentos de risco. Pesquisas apontam que os homens protagonizam muito
mais acidentes do que as mulheres, assim como os jovens em relação aos mais velhos.
O risco, nesses casos, se apresenta através da busca que os jovens do sexo masculino
empreendem por novas e estimulantes sensações, o que transforma o risco em algo
mais tolerado. Para ampliar a quantidade de estímulos excitantes no trânsito, os jovens
tendem a ser menos rigorosos e menos cuidadosos, o que contribui ainda mais para o
aumento dos riscos (Idem, 2006, p. 2).
61
UNIDADE I │ Conceitos Gerais
Existem outros fatores que aparecem nas estatísticas e que devem ser considerados com
atenção pelas campanhas educativas. Dentre eles podemos verificar, por exemplo, uma
maior incidência de acidentes durante a noite e durante os finais de semana, quando
aumenta, também, o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas. Um outro dado
curioso, apontado por Regina Panichi e Adriana Wagner, está no fato de que a presença
de outros passageiros no veículo também é um fator de risco, especialmente se esses
outros não são os pais do condutor, mas sim amigos ou afins. Segundo as autoras, “os
jovens conduzem de maneira mais arriscada quando os passageiros são seus amigos e
de maneira mais prudente quando os passageiros são seus pais” (Idem, 2006, p. 4).
O caso de sucesso da Lei Seca mostra que é possível articular medidas preventivas que
auxiliem a minimizar os riscos relacionados ao trânsito. Mas essas medidas não podem
ficar restritas ao âmbito jurídico. Elas devem atingir a conscientização das famílias
e também das escolas e dos meios de comunicação de massa, que, juntos, podem
desenvolver campanhas que sirvam para mobilizar a população, principalmente os
jovens – que estão no topo dos grupos de risco –, a um trânsito mais prudente e mais
inteligente.
Esse é, também, um dos principais objetivos deste curso, que, através do estudo
aprofundado das principais psicopatologias, e de sua relação com os problemas que se
originam no seio do trânsito brasileiro e mundial, tem a intenção de formar profissionais
que possam acrescentar ao seu conjunto de conhecimentos as habilidades suficientes
para avaliar as situações de risco com mais clareza e complexidade.
Apesar de existirem grupos de risco mais propensos aos acidentes, o fato é que o risco
é inescapavelmente universal. Quem dirige sabe que um milésimo de desatenção pode
ser fatal; que um breve período de sonolência causado pelo consumo de álcool pode ser
suficiente para acabar com uma vida; enfim, que a direção não combina com as falhas
que podem decorrer de um temperamento afetado por algum tipo de estado alterado, ou
pelas distrações habituais, como é o caso com os aparelhos celulares. O comportamento
de risco está sempre à espreita, pronto para gerar um acidente, muitas vezes fatal.
62
Conceitos Gerais │ UNIDADE I
E essa realidade deve estar sempre presente na percepção de todos os condutores, para
que os perigos diminuam, junto com os acidentes.
Figura 24. As placas de trânsito são fundamentais para a prevenção dos riscos no trânsito.
63
Quadros e
transtornos
psicopatológicos e Unidade ii
suas repercussões na
Psicologia de Trânsito
Capítulo 1
Transtorno de ansiedade
A palavra “ansiedade” deriva dos termos latinos anxietas, que significa “angústia”,
anxius, “perturbado, carente, pouco à vontade”, e anguere, “apertar, sufocar”. Na
Ilíada, de Homero, no distante século VIII a.C., já podemos encontrar a descrição
daquilo que o poeta chama de “estados ansiosos”. Esses estados, que incluíam medos,
fobias e formas diversas de angústia, eram atribuídos, então, a visitas ou intrusões de
deuses no comportamento das pessoas (VIANA, 2010, p. 18).
O termo passaria por várias modificações contextuais durante a história, mas apenas
no final do século XIX ganharia uma formulação científica. Durante o desenvolvimento
da psiquiatria e das discussões acerca das bases científicas para estabelecer critérios
específicos para definir as patologias, durante o século XIX, os fenômenos de ansiedade
foram amplamente descritos e estudados por diversos autores. Nesse ínterim, foram
relacionados a alguns conceitos fundamentais para a história das ciências da mente,
como a “neurose”, a “neurastenia”, a “hipocondria”, a “melancolia” e a “histeria”
(Idem, 2010, pp. 21-22). Entretanto, é com os trabalhos de Sigmund Freud que o
termo ganha contornos mais nítidos. Ao estudar os aspectos que julgava patológicos
na ansiedade, Freud separou a ‘Angstneurose’ (traduzida como ‘neurose de angústia’
ou ‘neurose de ansiedade’) da neurastenia, e a ansiedade crônica, correspondente à
atual ‘ansiedade generalizada’, dos ataques de ansiedade, hoje ‘ataques de pânico’
(Idem, 2010, p. 37).
Uma das características mais específicas das manifestações de ansiedade que hoje são
descritas nos trabalhos de psiquiatria, psicologia e psicanálise é a antecipação de algum
perigo ou evento desconhecido ou estranho que gere pelo menos uma desconfiança mais
severa na pessoa. Nesse caso, o desconforto e a apreensão são consequências trazidas
64
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
Segundo Ana Castillo e outros, a ansiedade e seus efeitos, como o medo, ganham uma
conotação efetivamente patológica quando passam a ser “exagerados, desproporcionais
em relação ao estímulo, ou qualitativamente diversos do que se observa como norma
naquela faixa etária e interferem com a qualidade de vida, o conforto emocional ou o
desempenho diário do indivíduo” (CASTILLO e outros, 2000, p. 1).
Figura 25. Estudo do Retrato do Papa Inocêncio X segundo Velázquez (1953). Francis Bacon.
65
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
A partir daí, temos alguns tipos bem conhecidos de transtornos de ansiedade, definidos
pelas ciências psíquicas. Um deles é o chamado “transtorno de ansiedade generalizada”.
Neste caso, os principais sintomas são o medo e as preocupações excessivos e um
sentimento de pânico exagerado. As pessoas acometidas por esse tipo de problema
apresentam um comportamento constantemente tenso, associado a certos tipos bem
conhecidos de somatização, como tensões musculares e palidez, dentre outros. Ana
Castillo e outros destacam que, aqui, a preocupação e a tensão são constantes, mas não
necessariamente com o mesmo tema, que pode variar. O que não varia é justamente a
tensão, que se transforma em um fato cotidiano (Idem, 2000, p. 2).
No caso da fobia social, o medo e o pânico estão relacionados a situações nas quais a
pessoa se sente excessiva e moralmente exposta ao julgamento dos outros. Casos bem
típicos desse tipo de comportamento podemos encontrar em alunos, quando expostos
ao crivo dos professores; em professores, quando expostos à necessidade de falar
em público; e em qualquer situação que demande um convívio social com os outros,
especialmente se estes forem pessoas estranhas. Obviamente que o trânsito se encaixa
como uma luva nesse grupo. Segundo Versiani, a pessoa com fobia social, quando exposta
aos conflitos do contato com os espaços públicos, acaba sofrendo vários sintomas,
como “tremores, sudorese, enrubescimento, dificuldade de concentração (“branco na
cabeça”), palpitações, tonteira [e] sensação de desmaio” (VERSIANI, 2001, pp. 3-4).
66
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
Nos dois casos, ou seja, nas fobias específicas e nas sociais, os sintomas são claramente
impeditivos de uma boa condução dos veículos, e portanto, de um comportamento
seguro no trânsito.
Temos ainda outro tipo, que ficou muito comum nas últimas décadas, que é o “transtorno
de pânico”, também conhecido como “síndrome do pânico”. Ao contrário da ansiedade
generalizada, que se estende por tempos médios e longos, o pânico se inicia subitamente
e não costuma durar muito. Entretanto, é muito mais intenso e traz sempre consigo uma
forte reação somática, ou seja, sintomas físicos de relevância e importância significativa.
Versiani lista, entre esses sintomas físicos, “sensação de sufocação, de morte iminente,
taquicardia, tonteiras, sudorese, tremores, sensação de perda do controle ou de ‘ficar
louco’ [e] alterações gastrointestinais” (Idem, 2001, p. 3). O autor destaca ainda que o
quadro de pânico pode evoluir para uma agorafobia, que é a aversão aos locais públicos
por causa do medo de sofrer um ataque em público. Ele comenta que é comum que isso
aconteça em locais como túneis e engarrafamentos (Idem, 2001, p. 3), o que mostra
bem a sua conexão com a psicologia do trânsito.
67
Capítulo 2
Depressão
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Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
nova disciplina acadêmica exclusiva. Portanto, vamos falar sobre os mais importantes
e mais incidentes, apontando características e sintomáticas, para depois analisar a sua
relação com a questão do trânsito.
Uma das principais diferenças, ainda segundo o autor, está no fato de que,
normalmente, no luto, não se observa sintomas relacionados às inibições motoras,
que são muito comuns quando os estados depressivos se efetivam na vida da pessoa
(Idem, 1999, p. 1).
Além disso, José Alberto Del Porto sugere que a depressão deve ser considerada a partir
de três contextos: enquanto “sintoma”; enquanto “síndrome”; e enquanto “doença”. No
primeiro caso, ela pode aparecer dentro de diversos outros quadros clínicos, como em
casos de transtorno de estresse pós-traumático, demência, esquizofrenia, alcoolismo
etc. Já enquanto síndrome, ela inclui notadamente as alterações humor conhecidas,
em especial o advento da tristeza profunda e da apatia, somadas a outros aspectos,
que vão desde as alterações cognitivas até as psicomotoras e modificações no ritmo
do sono etc. E na terceira, enquanto doença, a depressão aparece em várias formas,
descritas como “transtorno depressivo maior”, “melancolia” - que é basicamente a
forma como a psicanálise classifica os fenômenos ditos “depressivos” -, “distimia” etc.
(Idem, 1999, p. 1).
69
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
José Alberto Del Porto cita ainda, a existência de três outros tipos de depressão
importantes. O primeiro tipo é o das chamadas “depressões catatônicas”. Nele, o quadro
clínico se apresenta através de intensas alterações da psicomotricidade, materializadas
70
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
O segundo tipo citado pelo autor é o das “depressões crônicas”, também conhecidas
como “distimias”. São depressões de intensidade mais leve, que apresentam como
característica principal um sofrimento por não sentir mais prazer nas atividades
habituais, além de uma morosidade insistente (Idem, 1999, p. 4).
71
Capítulo 3
Drogas e alcoolismo
Figura 27. O marketing da loucura: somos todos insanos? (2010). James Colquhoun.
72
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
Os efeitos causados pelo uso de drogas variam muito em cada caso. Todas elas
carregam um forte potencial de dependência, que, quando associado a outros eventos
psíquicos, podem trazer vários problemas para os indivíduos, para suas famílias e para
a sociedade como um todo, inclusive no que diz respeito ao trânsito. Um dos elementos
mais característicos da dependência química está na grande presença de sintomas
somáticos, como veremos nas descrições a seguir. Todos eles são acompanhados,
também, de constantes efeitos psicopatológicos, com graus variados de complexidade e
conexão com problemas sociais.
A cocaína e o crack, droga dela derivada, causam dependência compulsiva com rapidez.
Provocam vários efeitos orgânicos, como vasoconstrição periférica, dilatação das
pupilas, aumento da temperatura corporal, da frequência cardíaca e da pressão arterial.
Além disso, levam a uma rápida intensificação de efeitos hiperestimulantes, como a
euforia, que podem levar ao aumento da violência (Idem, sem data, p. 4).
73
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
reflexivas e queda da coordenação motora (Idem, sem data, p. 4). Entretanto, outros
estudos apontam para benefícios trazidos pelo uso leve da droga, que tem a capacidade
de flexibilizar certos tipos de tensão psíquica, além de poder ser usada inclusive no
tratamento de certas doenças, como câncer, AIDS, glaucoma e esclerose múltipla,
dentre outras. Estudos apontam que o THC, o delta-9-tetra-hidrocanabinol, o composto
químico da maconha, ajuda a minimizar o sofrimento de pacientes que precisam fazer
quimioterapia, o que tem influenciado vários médicos a receitarem a droga como
anestésico, nessas situações.
No grupo das chamadas “drogas lícitas”, as que ganham mais destaque são o tabaco
e o álcool, que, junto com os fármacos, são as mais utilizadas. Os cigarros possuem
4027 substâncias químicas, das quais 200 são consideradas venenos para o organismo,
60 dessas sendo cancerígenas, segundo estudos feitos nas últimas décadas (Idem, sem
data, p. 5). A nicotina tem efeito tranquilizante e acarreta em rápida dependência.
E o alcatrão destrói os alvéolos pulmonares, o que pode causar doenças graves, como o
enfisema pulmonar, por exemplo. Além disso, existe ainda o problema do fumo passivo,
que afeta todas as pessoas que convivem com o indivíduo fumante e que, sem quererem,
sofrem as consequências de várias dessas substâncias (Idem, sem dat , p. 5).
Figura 28. Várias campanhas são feitas para diminuir os acidentes de trânsito causados pelo uso do álcool.
O álcool é de longe a droga mais consumida em todo o mundo. E isso não é de hoje.
A origem do aumento vertiginoso do consumo está no início da chamada Revolução
Industrial, que facilitou e barateou a produção, o que, obviamente, aumentou o
74
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
consumo. Na virada do século XVIII para o XIX, já era possível encontrar alguns autores
que tentavam estudar os efeitos do álcool como um problema de saúde. O psiquiatra
norte-americano Benjamin Rush, dos Estados Unidos, publicou um livro, em 1790, no
qual descreve a relação excessiva com o álcool como um tipo de dependência, gerada
pela transformação do “hábito” numa “necessidade”. Este mesmo autor demonstraria,
em 1795, que “30% dos pacientes internados em instituições psiquiátricas americanas
faziam uso excessivo de álcool” (LARANJEIRA, sem data).
75
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
Diante de tudo o que foi exposto, é fácil verificar o porquê a combinação entre o álcool
e a direção é sempre um perigo para todos os envolvidos. Vamos desenvolver melhor
esse tema no próximo tópico.
76
Capítulo 4
Direção sob uso de drogas lícitas e
ilícitas
O uso de drogas tem sido cada vez mais debatido em todo o mundo, por uma série de
fatores, dentre os quais o grave problema do tráfico, que causa um sem-número de
mortes todos os anos no mundo todo. Diante do fato de que o consumo só aumenta,
alguns países têm adotado medidas diferentes, como por exemplo, a legalização de
certas drogas leves, como a maconha, com bons resultados. É o caso do Uruguai, que
tornou o consumo de maconha legal no final de 2014. O objetivo da lei é diminuir o
poder de influência do tráfico e, em certo sentido, “desmoralizar” a questão, na medida
em que se trata de um tema fortemente absorvido pelas posturas conservadoras, que
preferem sustentar leis repressoras que historicamente se mostram uma fachada inútil,
que não ajuda a diminuir o uso, do que enfrentar o problema de forma mais aberta.
Ainda não existem estudos feitos sobre a experiência uruguaia, mas ela recebe críticas
desses meios conservadores e elogios dos meios mais progressistas da sociedade.
Figura 29. O Uruguai se tornou, em 2014, o primeiro país do mundo a legalizar a produção, a distribuição e o
consumo de maconha.
77
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
Ainda sobre o caso do Uruguai, apesar de legalizada, a maconha continua proibida para
os motoristas. Lá, é proibido dirigir sob efeito da maconha nas dez horas seguintes ao
uso, que é o tempo que a substância demora para sair do sangue. Existem blitz policiais
específicas, que fazem esse tipo de avaliação.
Isso porque, apesar de ser uma verdade que a proibição das drogas não diminui o
consumo, é verdade também que, em conexão com a direção de veículos, ele geralmente
é o causador de milhares de acidentes, muitos deles com resultados fatais. Estudos
recentes têm mostrado essa realidade em números. Segundo Julio de Carvalho Ponce
e Vilma Leyton, os acidentes de trânsito são a nona maior causa de morte no Brasil, a
segunda entre as causas externas ─ atrás apenas dos homicídios. Além disso, é também
a primeira causa geral de mortes em crianças e adolescentes entre os 5 e os 14 anos e a
segunda dos 15 aos 29 anos (PONCE; LEYTON, 2008, p. 2).
Os mesmos autores citam vários estudos que associam diretamente o uso de drogas
aos acidentes de trânsito, muitos deles fatais. Importante notar que existem variáveis
culturais em jogo na produção desses dados, porque o uso das drogas tende a variar
de sociedade para sociedade. O fato marcante é o de que os números apontam para a
participação de todas as drogas, lícitas ou ilícitas, em uma quantidade significativa de
acidentes, em todo o mundo.
Alguns números são alarmantes. Na Escócia, por exemplo, 68% das vítimas fatais de
acidentes de trânsito apresentavam algum tipo de droga ilícita em seu organismo no
momento do acidente. Se Juntarmos as drogas lícitas e ilícitas, o número chega a 76%
nos Estados Unidos; 60% na Espanha; 57,3% no Canadá; 49,9% na Austrália; 47% na
Grécia; e 41,7% na Suécia. O álcool é a droga mais encontrada nessas vítimas, chegando
a 45,6% na Espanha; 41% nos Estados Unidos e na Grécia; e 36,6% no Canadá (Idem,
2008, p. 3).
No Brasil, o número de mortos vem caindo aos poucos, por conta da implantação da
Lei Seca, que já analisamos em tópico anterior. Se em 1997, 61% dos acidentados do
trânsito brasileiro tinham ingerido algum tipo de bebida alcoólica, esse número caiu
para 17,79% em 2013, quando já havia a Lei Seca em nosso país. Segundo reportagem
veiculada em 2015 na internet por Ludmilla Duarte, em 2013, 42.291 pessoas perderam
a vida em acidentes de trânsito no Brasil, sendo que destas, 7.526 estavam sob influência
do álcool. O número caiu um pouco mais em 2014, quando 7.391 vítimas tinham álcool
em seu organismo na hora do acidente (DUARTE, 2015).
O estudo feito por Julio de Carvalho Ponce e Vilma Leyton traz considerações importantes
sobre os efeitos das drogas no organismo e sobre sua relação com o risco de acidentes
78
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
no trânsito. Vale citar algumas dessas informações, especialmente no que diz respeito
às drogas ilícitas do Brasil, já que já passamos pelos efeitos do álcool no tópico anterior.
Figura 30.oVárias campanhas têm sido feitas para diminuir os acidentes de trânsito causados pelas drogas.
Outro caso analisado pelos autores é o da cocaína. No caso dessa droga, mais pesada
que a maconha, os prejuízos aparecem em relação à perda de concentração e atenção e à
maior sensibilidade à luz, por conta das pupilas dilatadas. E existe ainda a possibilidade
de surgirem sintomas psicológicos, como aaparanoia e as alucinações, que também
acarretam em modificações de comportamento e postura que constituem fatores de
aumento do risco de acidentes (Idem, 2008, p. 3).
Assim como acontece com a cocaína, o ecstasy é também uma droga que aumenta
consideravelmente a autoconfiança do condutor, influenciando comportamentos
arriscados, especialmente o aumento de velocidade, a falta do uso do cinto de segurança
e o uso de aparelhos celulares, dentre outros. Essas drogas tendem a deixar os usuários
muito agressivos no momento do efeito e apáticos quando o efeito começa a passar.
79
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
E é nesses períodos de apatia e fadiga que aparece o risco maior para o trânsito, na
medida em que os motoristas acabam perdendo a capacidade de prestar atenção que a
direção exige (Idem, 2008, p. 3).
Os autores citam ainda mais dois casos importantes: o da heroína e o dos alucinógenos,
como o LSD. No caso da heroína, os principais efeitos são a sedação, a indiferença a
estímulos externos, a constrição das pupilas – que atrapalha ainda mais se a pessoa está
dirigindo à noite – e o aumento do tempo de reação – além de perda de concentração,
nos casos de síndrome de abstinência, ou seja, mesmo quando a droga foi abandonada,
há pouco tempo. E os alucinógenos prejudicam fortemente a percepção e a performance
psicomotora, por produzirem alucinações, sonolência e reações psicóticas, que são
evidentemente incompatíveis com o ato de dirigir (Idem, 2008, p. 3).
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Capítulo 5
Distúrbio bipolar
Pinel preferiu entender mania e melancolia como formas opostas e não cruzadas. Já
Esquirol abandonou o termo “melancolia” e passou a classificar as formas de perturbação
mental que se caracterizavam por inibição, sentimento de perda e “delírio” como uma
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UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
Figura 31. O transtorno bipolar é a forma como a psiquiatria representa as oscilações mais radicais de
comportamento.
O quadro sofreria uma alteração importante na metade do século XIX, quando dois
autores franceses, Falret e Baillarger, descreveriam o que chamavam de “loucura
circular” e “loucura de dupla forma”. Os dois acreditavam que os quadros clínicos
de mania e depressão faziam parte de uma mesma doença. Diferiam em apenas
um ponto: Falret acreditava que “as crises separadas por ‘intervalos lúcidos’ fariam
parte do conceito de foile circulaire”; já para Baillarger, “apenas os quadros que se
sucedessem imediatamente seriam considerados” (LOPES, 2012, pp. 10-11). Ou seja,
a loucura circular de Falret seria um evento de crises intercalado por momentos de
lucidez, enquanto que a “loucura de dupla forma” de Baillarger seria um estado em que
as alterações de humor seriam imediatas, sem a presença de lucidez no processo.
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Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
periódico ou episódico, prognóstico mais benigno e história familiar mais rica que a
demência precoce” (Idem, 2012, pp. 11). Hoje se entende que a “demência precoce”
descrita pelo psiquiatra alemão se enquadra, grosso modo, nos casos de esquizofrenia.
Uma das principais contribuições de Kraepelin, no que diz respeito á história do que hoje
se conhece pelo nome de “transtorno bipolar”, está em seu conceito de “estados mistos”.
Criada em 1896, essa definição buscava dar conta de vários tipos de sintomatologias
“maníaco-depressivas” que, quando analisadas de forma pormenorizada, apresentavam
“várias transições entre as formas básicas (a mania e a depressão), [com] reais
misturas entre o exaltamento maníaco e os sintomas depressivos” (ALMEIDA, 2006,
p. 2). Kraepelin afirmava ainda que, a existência de frequentes quadros de “estados de
passagem” que não seriam nem exatamente uma “excitação maníaca”, nem tampouco
“depressão”, “mas que representam uma mistura de sinais patológicos das duas formas
de manifestações da loucura maníaco-depressiva”. O autor concluía, então, que “é
nestes períodos de transição dedum estado para o outro, e que duram por vezes várias
semanas ou mesmo meses, que a mistura é mais clara” (Idem, 2006, p. 2).
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UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
Os estudiosos afirmam que é preciso considerar sempre com cuidado a presença do que
chamam de “comorbidades” nos quadros classificados como “distúrbio bipolar”. Nesse
grupo aparecem várias definições, como a dos chamados “transtornos esquizoafetivos”,
as “psicosesscicloides”, as “epilepsias”, o chamado “transtorno de personalidade
borderline”, os diversos tipos de “transtornos de ansiedade”, como a “fobia social” e
o “transtorno obsessivo-compulsivo”, dentre muitos outros (Idem, 2012, p. 6). Isso
mostra o grau de complexidade que resta sempre associado ao âmbito das classificações
que buscam investigar os estados mistos, hoje conhecidos como “espectros bipolares”.
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Capítulo 6
Demência
A palavra demência” deriva da expressão latina dementis, que é a junção dos termos
de, que significa “falta”, “diminuição” ou “afastamento”, e mentis, de “mente”. Nos
dicionários e no cotidiano do senso comum, podemos encontrar facilmente a associação
da palavra a dois sentidos básicos: ao de “imbecilidade” e ao de “alienação”, “insanidade”
ou “loucura”.
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UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
Além dessa divisão, é possível classificar a demência também através dos sintomas
que surgem à observação. Os dois principais sintomas recorrentes nesses casos, e que
aparecem sempre juntos, são o declínio da memória e o déficit de pelo menos mais
uma outra função cognitiva importante, como a linguagem, a escrita, a marcha ou a
utilização de objetos cotidianos elementares (CARAMELLI; BARBOSA, 2002, p. 1).
É uma doença com declínio cognitivo progressivo, que interfere profundamente nas
funções executivas e na capacidade diária de resolução de problemas e de atividades
da pessoa atingida. A memória é preservada, mas são comuns a atrofia da atenção e as
síncopes, que prejudicam ainda mais o andamento cotidiano (CARAMELLI; BARBOSA,
2002, p. 3).
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Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
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Figura 33. Aloysius Alzheimer, descobridor da demência que leva o seu nome.
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Capítulo 7
Paciente com histórico de surto
psiquiátrico sem diagnóstico definido
Em geral, esses casos recebem, em princípio, ou seja, enquanto estão sendo investigados
em seu modo de funcionamento primário, como “episódios” ou “surtos” psicóticos.
A ideia de surto ou episódio vida dar a ideia de algo que ocorre sem previsão, de
maneira repentina, e que ganha contornos graves, de um arrebatamento impulsivo
e desmedido. E ele pode se dar tanto na direção de uma fúria veemente, quanto
no de um estado de pasmo. Interessante notar que a palavra “arrebatamento” está
associada, no dicionário de sinônimo, aos dois sentidos, “fúria” e “pasmo” (1977, p.
133).
Trata-se de um dos tópicos mais complexos do campo das ciências da mente. Isso porque
as psicopatologias conhecidas e descritas anteriormente nascem, em vários casos, de
eventos súbitos. O que significa que sua sintomatologia vai apontar para respostas que
muitas vezes vão ser parecidas com os surtos passageiros. Essa complexidade exige
sempre cautela na hora da investigação.
Outra hipótese que deve ser investigada nos primeiros momentos é a de se o indivíduo
utilizou medicamentos psicotrópicos em consonância com a crise ou surto. É uma
informação relevante, porque pode ajudar a descobrir se existe algo além do evento
psicológico em si, como, por exemplo, um quadro de abuso sistêmico de substâncias
psicoativas.
Descartadas essas alternativas iniciais, cumpre passar então para a etapa de avaliar
a possibilidade de que haja de fato um surto ou episódio psicótico. Nesse tipo de
transtorno, agudo e transitório, é muito comum o relato de sintomas de perplexidade
e confusão, tanto da pessoa em relação aos próprios atos, quanto em relação ao tempo
e ao espaço usuais que experimenta. Mais uma vez é preciso cuidado, porque para se
enquadrar na categoria dos surtos, é preciso que o evento não seja suficientemente
persistente ao ponto de esbarrar com outros tipos de diagnóstico.
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UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito
Normalmente, a recuperação completa das pessoas que passam por esse tipo de situação
acontece depois de um a três meses do início do tratamento, se não acontecer nenhum
evento novo. E o diagnóstico pode levar em conta, também, o histórico pregresso
da pessoa, ou seja, toda e qualquer informação relevante sobre sua vida anterior ao
surto e aos eventos que o desencadearam. Além, é claro, de exames orgânicos e/ou
neurológicos, que podem auxiliar a detectar conexões físicas com o surto, como, por
exemplo, o uso de psicotrópicos.
Outro ponto importante a ser destacado nesses casos são as variáveis ligadas ao período
de tratamento. A participação da pessoa afetada é fundamental, mas não se descarta a
participação da família e dos amigos, quando for possível. Isso pode ajudar a minimizar
os riscos de regressão dos sintomas e a sustentar as ações estabelecidas no âmbito do
diagnóstico e do tratamento.
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Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II
Vale ressaltar, a importância fundamental que o diagnóstico tem nesses casos. Como
estamos no âmbito de uma questão que não tem qualquer origem orgânica – salvo
nos casos medicamentosos, já mencionados –, as entrevistas, inventários e anamneses
clínicos vão ser os critérios gerais a serem utilizados para uma melhor definição do
problema.
A leitura dos sinais e dos sintomas que se apresentam nos casos de surto e episódio
psicótico se assemelha a um constante exercício de “educação continuada”. Isso porque,
ao contrário dos casos e das definições mais “enxutos”, ou seja, daqueles que se mostram
mais “evidentes” em relação ao seu quadro característico, nos casos episódicos a lógica que
rege a situação é completamente diferente, porque surge cercada de sutilezas e detalhes que
impedem uma classificação definitiva. Como o título busca situar, nesses casos, estamos
diante de um quadro e de uma situação sem diagnóstico definido. E aí está o grande desafio
dos psiquiatras, psicanalistas e demais cientistas da área, quando defrontados com esse
tipo de enredo.
Figura 35. Inferno (1879). Livro do dramaturgo sueco August Strindberg, no qual ele narra algumas de suas
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Referências
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ALMEIDA, Sandra. Os Estados Mistos: cem anos depois de Emil Kraepelin. Disponível
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<http://revistas.pucsp.br/index.php/kairos/article/view/4872>, 2010. Acesso em: 11
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BELL, David. Paranóia. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ediouro; Segmento Duetto,
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www.scielo.br/pdf/rcbc/v40n6/03.pdf>, 2013. Acesso em: 30 mai. 2016.
NEVES, Elcione; SEGATTO, Maria Luiza. Drogas lícitas e ilícitas: uma temática
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Referências
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