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Psicopatologia em Psicologia de Trânsito

Brasília-DF.
Elaboração

Marcelo Henrique Marques de Souza

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


Sumário

Apresentação.................................................................................................................................. 4

Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa..................................................................... 5

Introdução.................................................................................................................................... 7

Unidade I
Conceitos Gerais............................................................................................................................. 13

Capítulo 1
O que é psicopatologia, neurose, psicose, transtornos de personalidade............... 13

Capítulo 2
A lei seca.............................................................................................................................. 56

Capítulo 3
Comportamento de risco no trânsito............................................................................ 60

Unidade ii
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de
Trânsito.................................................................................................................................... 64

Capítulo 1
Transtorno de ansiedade.................................................................................................. 64

Capítulo 2
Depressão............................................................................................................................ 68

Capítulo 3
Drogas e alcoolismo....................................................................................................... 72

Capítulo 4
Direção sob uso de drogas lícitas e ilícitas................................................................... 77

Capítulo 5
Distúrbio bipolar................................................................................................................. 81

Capítulo 6
Demência.............................................................................................................................. 85

Capítulo 7
Paciente com histórico de surto psiquiátrico sem diagnóstico definido................. 89

Referências................................................................................................................................... 92
Apresentação

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela
interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da
Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade


dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos
específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém
ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a
evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

4
Organização do Caderno
de Estudos e Pesquisa

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos
básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam a tornar
sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta, para
aprofundar os estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de
Estudos e Pesquisa.

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita
sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante
que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As
reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

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Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Para (não) finalizar

Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem


ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado.

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Introdução
A palavra “trânsito” carrega uma ambivalência que revela de saída à complexidade
da questão. De um lado, é sinônimo de “movimento” e “circulação”; porém, de outro,
carrega um sentido bem específico de “congestionamento” e “engarrafamento”, quando
se diz, por exemplo, “Estou preso no trânsito”. Isso porque no trânsito estamos sujeitos
tanto à velocidade, que diminui as distâncias, quanto aos obstáculos que desaceleram
os fluxos ─ e aqui temos a presença dos riscos, assim como dos meros percalços.

O fato é que a questão da circulação tem sido um foco cada vez maior de debates e
reflexões nos últimos tempos, nos quais vemos um aumento significativo de urbanização
nas cidades de todos os continentes. O aumento da velocidade é um paradigma da
nossa época, que atinge as mais diversas áreas, desde a troca de informações pela rede
da internet até a chamada “mobilidade urbana”, do fluxo dos veículos particulares e dos
transportes públicos, da circulação de mercadorias até a circulação de pessoas.
O mundo não para e a aceleração dos fluxos e do trânsito segue a mesma dinâmica,
cada vez mais.

Esse aumento de velocidade, de circulação, de mobilidade e de trânsito traz uma série


de consequências para todos os níveis e setores de uma sociedade. Há, por exemplo, um
aumento radical de informações disponíveis, que traz, junto, a aceleração da leitura,
que, segundo alguns autores, prejudica a construção de articulações mais amplas,
que percebam conexões e redes maiores de dados. No caso do trânsito de veículos
automotivos, temos a produção de carros mais rápidos e velozes, que, ao mesmo tempo
que encurtam as distâncias, acabam dificultando o controle dos motoristas, o que
aumenta o número de acidentes e mortes.

Figura 1.Trânsito no Brasil.

Fonte disponível em: <http://www.educacao.cc/wp-content/uploads/2011/10/transito-no-brasil.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

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Nas últimas décadas, esse contexto tem se tornado cada vez mais complexo. O aumento
da velocidade dos veículos é um dado tecnológico, mas também psicológico. Ele é fruto
de uma dinâmica que é quase uma exigência do mundo contemporâneo: “não perder
tempo”. Esse novo cenário contribui, automaticamente, para o aumento da pressa e
para a fragilização da paciência, o que leva, por sua vez, ao aumento do estresse, da
violência e dos acidentes no trânsito.

Os dados colhidos nas últimas décadas são alarmantes. Segundo Priscila Kichler
Pacheco, “o índice de mortes no trânsito do Brasil é um dos mais altos do mundo:
22 a cada 100 mil habitantes. A estimativa, aqui, é de uma morte a cada 12 minutos”
(PACHECO, 2014). Em matéria de janeiro de 2015, o site “Doutíssima” afirma que
“os acidentes no trânsito são a terceira maior causa de morte no mundo, perdendo
apenas para doenças cardíacas e câncer” (ENTENDA, 2015). E completa que “no Brasil,
o número de mortos em acidentes de trânsito cresceu 38,3% no período de 2002
a 2012” (Idem, 2015). O quantitativo mundial, em números absolutos, chega a 1,3
milhão de pessoas mortas por algum trauma de trânsito a cada ano, segundo a “World
Health Organization”. Ainda segundo a instituição, trata-se da “primeira causa de
mortes no mundo em jovens de 15 a 29 anos” (VIOLÊNCIA, 2013). No caso brasileiro,
foram registrados, segundo o Ministério da Saúde, 43.075 óbitos e 201.000 feridos
hospitalizados, só no ano de 2014 (ESTATÍSTICAS, 2016).

O problema é tão grave que a ONU, a Organização das Nações Unidas, marcou o dia
30 de janeiro como o “Dia Internacional da Não Violência”, englobando nesse conjunto
a questão da violência no trânsito. No Brasil, surgiu a Semana Nacional de Trânsito,
instituída em setembro do ano de 2013, para debater a relação das pessoas com o
trânsito e os diversos problemas dela derivados (Idem, 2013).

O aumento da complexidade tecnológica do trânsito não apaga o fato de que ele é


composto também de pessoas. Aliás, parte fundamental dessa “complexidade” reside
justamente nesse fato. Isso significa que qualquer análise que se pretenda ampla sobre
o problema do trânsito tem que levar em consideração a presença e a participação das
pessoas dentro desse processo. É aí que entra a contribuição fundamental do campo de
conhecimento denominado “psicologia de trânsito”.

Isso remete a um dado fundamental ligado aos índices apresentados: a maioria dos
acidentes de trânsito acontece a partir de erros humanos e não meramente tecnológicos.
A reportagem do site “Doutíssima” afirma que, ainda que tenhamos sérios problemas
de infraestrutura nas cidades e nas rodovias, “95% dos desastres viários do país são
o resultado de uma combinação de irresponsabilidade e imperícia” (ENTENDA,
2015). A precariedade das estradas, a falta de ciclovias e os problemas de sinalização

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respondem por apenas 5% dos acidentes, enquanto que as falhas humanas, dos mais
variados tipos, compõem todo o resto da amostragem.

José Carlos Oliveira afirma que “a maioria dos acidentes está ligada ao comportamento
humano. Falta de atenção (32% dos casos), velocidade incompatível com a via (20%)
e ultrapassagem indevida (12%) foram algumas das principais causas de acidentes nas
rodovias federais em 2014” (OLIVEIRA, 2015). O autor coloca ainda que “a Polícia
Rodoviária Federal notificou mais de um milhão e 200 mil infrações por velocidade
acima do limite máximo permitido nas estradas federais” (Idem, 2015), no mesmo
ano de 2014. Acompanhadas de 174 mil infrações pela ausência do uso do cinto de
segurança; 118 mil por dirigir pelo acostamento; e 46 mil por conduzir o veículo em
mau estado de conservação.

Priscila Kichler Pacheco cita uma importante reflexão feita pelo diretor-presidente
da Embarq Brasil, Luis Antonio Lindau: “acidentes de trânsito não são acidentes”
(PACHECO, 2014). É uma questão das mais importantes, porque nos coloca de frente
para o ponto nuclear do tema. A palavra “acidente” remete a algo “que não pode ser
previsto e que, portanto, não pode ser evitado” (Idem, 2014). Nesse caso encontramos
certas falhas mecânicas dos automóveis, problemas imprevistos ocorridos nas vias –
como um animal que surge de repente em uma estrada – ou algum problema de saúde
súbito – como um infarte ou evento do tipo. Todos os outros problemas não podem
ser enquadrados na categoria de “acidentes”, porque permitem um razoável grau de
previsibilidade por parte dos motoristas. Por isso, Pacheco afirma que “dirigir acima do
limite de velocidade, ultrapassar em locais proibidos ou sob efeito de bebidas alcoólicas,
algumas das principais causas das ocorrências chamadas de acidentes, são escolhas – e
não fatores imprevisíveis” (Idem, 2014, grifo nosso).

Diante disso, temos um cenário bem delimitado. Como já foi dito, o trânsito é composto
por vários aspectos tecnológicos, mas o fator humano é um elemento fundamental de
todo o seu enredo. Na maioria dos casos, não estamos diante de “acidentes” de trânsito, ou
seja, de acontecimentos absolutamente imprevisíveis que pegam as pessoas envolvidas
completamente de surpresa, mas sim de escolhas humanas, normalmente baseadas em
autoconfiança excessiva, irresponsabilidade para com a vida alheia e falta de habilidade
necessária para dirigir, articulada com a escolha de arriscar assim mesmo. Nesse grupo
de fatores temos, também, a combinação, sempre perigosa, de estados psicopatológicos
alterados com o volante, com um outro tipo de comportamento de risco, que em muitos
casos nasce também de uma escolha, a de unir a crise psicológica com a direção e o
trânsito. O fato é que, em todos esses casos, estamos diante de situações cujo núcleo
reside na questão humana e não meramente na tecnologia.

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Nesse contexto, aflora a relevância da psicologia de trânsito. A “psicologia de trânsito”
nasce e cresce com o objetivo de colaborar para uma melhor compreensão acerca dos
eventos e diversos fatores ligados ao fenômeno mais amplo da mobilidade urbana,
em especial no que diz respeito ao trânsito de veículos automotores e a todo o seu
entorno simbólico. Dentro desse universo encontramos a questão dos acidentes e
mortes causados por imprudência, imperícia, negligência e por uma série de causas
psicopatológicas, que vão desde a falta de atenção causada por estresse até as condutas
violentas oriundas de estados psíquicos traumáticos.

A compreensão da predominância dos fatores humanos no contexto da violência e


das mortes relacionadas ao trânsito transformou a psicologia do trânsito num aporte
altamente relevante para auxiliar no desenvolvimento de estratégias que atuem
no sentido de tentar diminuir e minimizar os prejuízos, materiais e especialmente
humanos, que decorrem do crescente contexto de negligência e irresponsabilidade ao
volante, que temos visto nas últimas décadas.

Esse trabalho é feito de forma conjunta, com a participação dos órgãos públicos
competentes e da justiça. Nos últimos anos, é possível verificar uma pequena melhora
em alguns índices, que, se não chegam a regredir radicalmente, apontam, ao menos,
para a importância de certas iniciativas, como por exemplo, a chamada “Lei Seca”, que
surgiu como resultado de uma rede de conhecimentos confluentes, da qual fazem parte
o trabalho de investigação da polícia e a utilização de estudos acadêmicos relacionados
ao uso excessivo de álcool e outras drogas, dentre outros elementos significativos.

Essa visão de conjunto é fundamental para avançar na percepção da questão. O trânsito


precisa ser visto como uma questão “humana”. Além disso, é preciso levar em conta
que um dia estamos de um lado do cenário, como motoristas, e no outro estamos
do outro lado, como pedestres. Denis Russo Burgierman cita um texto da jornalista
Natália Garcia, que afirma que, “nós não somos ‘ciclistas’, ‘pedestres’, ‘motoristas’,
‘motoqueiros’. Somos, antes de mais nada, pessoas” (BURGIERMAN, 2013). Segundo o
autor, é preciso saber “se colocar no lugar do outro” (Idem, 2013), inclusive para saber
que além de uma vida que está ali e deve ser respeitada, existe também uma situação na
qual podemos estar envolvidos em outra ocasião.

E é essa rede de fatores que comparece de forma ampliada nas considerações feitas
pela psicologia do trânsito. Os “acidentes” em muitos casos nascem de escolhas
irresponsáveis e em muitos outros aparecem como efeitos trágicos de episódios de
crises psicopatológicas, que merecem atenção. Uma das formas possíveis de avançar
na compreensão do problema é estudar as contribuições que possam advir da análise
psicopatológica da psicologia do trânsito. Através dela, podemos traçar um rico

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enquadramento de muitas das sintomáticas que atuam nesses episódios críticos, o
que pode trazer como efeito a proposição de uma série de medidas que auxiliem ainda
mais na diminuição da violência, do número de acidentes e de vítimas fatais no trânsito
brasileiro ─ e mesmo no mundial.

A existência de um significativo conjunto de sintomas que contribuem para o aumento


dos acidentes, o advento de leis e códigos que nascem para tentar criar contraponto a
isso e as ambiguidades, ambivalências e contradições das relações que se estabelecem
entre esses dois aspectos são temáticas fundamentais da psicologia de trânsito e, mais
especificamente, do estudo que aqui se pretende fazer, sobre as psicopatologias que
afetam a dinâmica do trânsito, em seus mais diversos níveis. Diante disso, mostra-se
nuclear a necessidade de aprofundar esses tópicos, de uma forma que concilie o olhar
histórico, o psicológico, o crítico, o jurídico e o nosológico. O exercício de análise dessa
complexidade é o principal objetivo deste curso.

Objetivos
»» Conceituar as principais psicopatologias registradas até hoje pela
pesquisa nos campos da psiquiatria, psicanálise e psicologia.

»» Situar os últimos avanços das medidas legislativas que incidem sobre o


trânsito, no Brasil – em especial a chamada “Lei Seca”.

»» Produzir e refletir uma articulação entre a psicologia do trânsito, as novas


leis e medidas produzidas para tentar minimizar os riscos de acidentes de
trânsito e os conceitos e a nosografia das principais psicopatologias.

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Conceitos Gerais Unidade I

Capítulo 1
O que é psicopatologia, neurose,
psicose, transtornos de personalidade

O que é psicopatologia
O termo “psicopatologia” foi criado pelo filósofo e jurista Jeremy Bentham (1748-
1832), no ano de 1817. É a junção de três termos gregos: “psyché”, que significa “alma”;
“páthos”, que representa as ideias de “doença”, “paixão”, “excesso” ou “sofrimento”; e
“lógos”, cujo sentido está ligado às noções de “estudo”, “ciência” ou “saber”. A partir
de seu surgimento, foi, aos poucos, se desenvolvendo como um campo científico
específico, com características próprias e um conjunto de aspectos normativos que lhe
emprestaram identidade e um modo de funcionamento particular.

Em um primeiro momento, mostra-se fundamental observar que o nascimento da


psicopatologia como uma ciência autônoma está cercado por um contexto. O século
XIX e o início do século XX foram arenas e palcos de intensos debates e medidas que
buscavam entender a mente humana e o seu comportamento. Esses debates e essas
medidas navegavam nas mesmas águas que outros debates, que estabeleciam as
mudanças e as bases que sustentariam a própria definição do que era “ciência”, num
sentido mais amplo. E essas articulações são nucleares para entender o tema de forma
mais profunda.

As origens médica e organicista da psicopatologia

A psicopatologia nasce herdeira do alarde causado pela obra do médico francês


Philippe Pinel (1745-1826). Este autor é considerado por muitos o pai da psiquiatria,
por ter sido o primeiro estudioso a declarar que os seres humanos que sofriam de
perturbações mentais deveriam ser tratados como doentes e não da forma violenta

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

como se os tratava até então, desde que passaram a ser encarcerados nos leprosários
e sanatórios da época. No início de sua carreira, Pinel trabalhou como tradutor de
textos médicos e professor de matemática, em Paris. Entretanto, uma tragédia pessoal
alteraria a rota de seus interesses. Um amigo próximo passou por uma violenta crise
nervosa e fugiu desesperado para uma floresta. Lá, foi devorado por uma matilha de
lobos. Esse evento dramático impressionou o médico francês, que passou, a partir daí,
a se interessar cada vez mais pelo tema das alterações de comportamento causadas por
distúrbios mentais.

Figura 2. Philippe Pinel, pioneiro da psicopatologia.

Fonte disponível em: <http://healthhamster.com/wp-content/uploads/2014/05/philippe-pinel1.jpg>.

Esse interesse geraria uma nova visão sobre a doença mental, que acarretaria em
novos tratamentos e no surgimento de um novo corpo de conhecimento ligado ao
tema. Duas mudanças iniciais foram as mais relevantes e significativas: em primeiro
lugar, Pinel combateu de forma sistemática a visão antiga, de base religiosa, que via
a loucura como o resultado de uma “possessão demoníaca”, ou seja, os loucos como
pessoas possuídas por “demônios”; e, segundo ponto, lutou também para modificar
a maneira como os seres humanos classificados como loucos eram tratados nos
sanatórios de sua época.

Em 1798, publicou uma obra chamada “Nosographie Philosophique”, na qual


propõe um novo método de classificação das doenças mentais, acompanhado de
um conjunto delas, descritas desta nova forma. No ano de 1801, publica então
seu trabalho mais importante, o “Traité médico-philosophique sur l›aliénation

14
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

mentale”, por meio do qual amplia as considerações colocadas no primeiro livro,


desenvolvendo novos elementos sobre o tema. Segundo Paulo Roberto Ceccarelli,
“obra revolucionária, o ‘Tratado’ modifica radical e definitivamente a visão da
loucura e inaugura uma nova especialidade médica que, mais tarde, chamar-se-á
psiquiatria” (CECCARELLI, 2005).

A partir de seus estudos, Pinel passou a trabalhar diretamente nos sanatórios. Uma vez
lá dentro, começou a colocar em prática a modificação de olhar e de tratamento que
desenvolvera em seus tratados. Uma de suas primeiras medidas foi libertar pessoas que
estavam presas e acorrentadas há mais de vinte, às vezes trinta anos, nessas instituições.
Conseguiu proibir vários métodos de tratamento violentos que eram utilizados, como
a sangria, o uso de vomitivos e purgantes e instituiu a mentalidade científica no trato
com o tema, além de uma ideologia de tratamento que abria espaço inclusive para uma
relação mais amistosa com os “pacientes”.

As inovações trazidas por Pinel ganhariam espaço significativo no decorrer do século


XIX. Entretanto, como toda mudança de mentalidade, não seria de um dia para o outro.
Segundo o psiquiatra Mário Eduardo Costa Pereira, até o final da década de 1830, o
nascente desenvolvimento do saber psiquiátrico, que se desenrolava especialmente na
França de Pinel e na Alemanha, ainda restava fortemente vinculado a visões “metafísicas”
e “religiosas”. Segundo o autor, entre os anos de 1830 e 1840, a psiquiatria resistia
“imersa em dogmatismo científico e religioso [e] permanecia, anacronicamente, em um
registro pré-pineliano” (PEREIRA, 2007, p. 2 [686]).

Duas obras publicadas nesse período contribuiriam para transformar o cenário de


forma definitiva. A primeira delas aparece no ano de 1838, com o título “Das doenças
mentais”. Foi escrita pelo mais importante discípulo de Pinel, Jean-Étienne Dominique
Esquirol (1772-1840). Esquirol foi o criador do termo “alucinação” e sucedeu Pinel como
chefe do conhecido Hospital de Salpêtriére, em Paris, no ano de 1811. E a segunda foi
o “Tratado sobre patologia e terapêutica das doenças mentais”. Publicado em 1845, o
livro surge como resultado das pesquisas do médico Wilhelm Griesinger (1817-1868),
então com apenas 28 anos. Esta obra de Griesinger é considerada por muitos como
o primeiro texto efetivamente “psiquátrico”, na acepção específica do termo. Como
coloca Mário Eduardo Costa Pereira, “trata-se (...) do ‘primeiro verdadeiro tratado
de psiquiatria’, uma vez que o texto de Pinel mantinha um estilo bastante literário e
filosófico e o de Esquirol constituía sobretudo um agrupamento de artigos diversos”
(Idem, 2007, p. 3 [687]).

15
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Figura 3. O Hospital de Salpêtriére, em Paris.

Fonte disponível em: <http://www.cmf-paris.com/resources/pisalp.jpg>

Essa distinção é fundamental para compreender de forma mais ampla o significado


das contribuições desses autores, porque remete ao quadro de saber da época. Pinel
e, de forma mais específica, Esquirol e Griesinger, são considerados os precursores da
psiquiatria porque tomaram para si a tarefa de sistematizar e legitimar cientificamente
os estudos feitos até então sobre os fenômenos que ganhavam a alcunha de “loucura”.
O tema já havia sido apropriado pela medicina, porém de uma forma muito frágil e
por vezes supersticiosa. Maria Vera Pacheco afirma que a principal transformação
metodológica trazida por Pinel e Esquirol estava “na observação clínica sistemática e
na delimitação de categorias psicopatológicas estáveis” (PACHECO, 2003, p. 2 [153]),
o que deslocava o cenário anterior, centrado em uma grande variação de padrões que
definiam os transtornos psíquicos. Já Griesinger trazia, com o seu “Tratado”, uma
divisão claramente médica, “que inaugura um formato que será seguido pela maioria
dos tratadistas posteriores no campo psiquiátrico: ‘considerações gerais, semiologia,
etio-patogenia, formas clínicas, anatomia patológica, prognóstico e tratamento’”
(PEREIRA, 2007: 3 [687]).

Importante notar um dado significativo: se por um lado as intervenções de Pinel,


Esquirol e Griesinger buscavam um afastamento das teses religiosas anteriores, por
outro, suas pretensões de formar um esquema “científico” para a análise dos distúrbios
mentais os empurrava para certa “dependência” das chamadas “ciências naturais”.
Griesinger foi o responsável pela consolidação daquilo que ficou conhecido como
a primeira ‘psiquiatria biológica’, ou seja, aquela que superava as teorias humorais
prévias, para, através dos alienistas do século XIX, passar a buscar “o estabelecimento
de relações clinicamente significativas entre o cérebro e determinados estados mentais”

16
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

(Idem, 2007, p. 4 [688]), a partir de um olhar epistemológico e metodológico próprio


das ciências naturais, incorporado graças à influência trazida exatamente pelo trabalho
de Griesinger.

Essa dependência é também ressaltada no trabalho do filósofo francês Michel Foucault


sobre a origem das chamadas “ciências humanas”, “As palavras e as coisas”. Segundo
o autor, “o recurso às matemáticas, sob uma forma ou outra, sempre foi a maneira
mais simples de emprestar ao saber positivo sobre o homem um estilo, uma forma,
uma justificação científica” (FOUCAULT, 1999 [1966], p. 485). Há autores, como Elie
Cheniaux Jr, que sugerem, inclusive, que a palavra “ciência” vige algo problemática
quando associada à psiquiatria. Ao comentar esse tópico, ele afirma que “a psiquiatria
não é uma ciência e, sim, uma especialidade médica, cujo fundamento é a psicopatologia”
(CHENIAUX Jr, 2002). É preciso, portanto, situar esse aspecto com rigor, porque
estamos falando de uma ciência que subsistia ainda por demais vinculada a referente de
matriz newtoniana e biológicos, como a ideia de “sistema” e o protagonismo do cérebro
como gênese e núcleo dos transtornos mentais. De qualquer forma, como já colocamos,
havia, igualmente, o mérito de tentar se deslocar dos misticismos religiosos, o que por
si só já se configura como um avanço.

Paulo Roberto Ceccarelli comenta que essa “tradição médica (...) se manifesta até
hoje nos tratados de psiquiatria e de psicopatologia médica” (CECCARELLI, 2005).
Entretanto, apesar da hegemonia desse traço, é possível verificar que, de lá para cá,
o diálogo da psicopatologia e da psiquiatria com os demais campos de conhecimento
tem florescido. O próprio Ceccarelli afirma que, “hoje, o termo ‘psicopatologia’
encontra-se associado a um grande número de disciplinas que se interessam pelo
sofrimento psíquico” (Idem, 2005). Isso gera uma dificuldade de diálogo, fruto da
heterogeneidade de visões sobre a questão, mas mostra e destaca, igualmente, a
irredutibilidade do fenômeno psíquico a uma única forma discursiva (Idem, 2005), o
que contribui para a diversidade de abordagens, de debates e de pesquisas.

Como vamos estudar, essa lógica, que flutua, da hegemonia da ciência médica, sistêmica
e de matriz biológica para as articulações com a filosofia, a psicanálise e as ciências
humanas, e vice-versa, vai influenciar diretamente na forma como as psicopatologias
vão definir suas visões sobre sua questão chave, qual seja, a da relação e distinção entre
o comportamento “normal” e o “patológico”. Além disso, esse esquema vai influenciar,
igualmente, a maneira como são descritos os sintomas e os diversos tipos de tratamento.
Antes de chegar a este ponto, vale, antes, garimpar um pouco o que a história etimológica
e epistemológica do campo tem para nos ensinar.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Figura 4. O louco (1904). Pablo Picasso.

Fonte disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/_dxuaCDxnsfM/TE9C4Fk6uQI/AAAAAAAAATA/HGHSDG9K2ik/s1600/o+loucooo.


jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

O termo “psicopatologia”, como já situamos, é a união dos termos gregos “psyché”, que
significa “alma”; “páthos”, que significa “doença”, “paixão”, “excesso” ou “sofrimento”;
e “lógos”, que tem o sentido de “estudo”, “ciência” ou “saber”. Um dos tópicos mais
relevantes para entender o ponto chave das contribuições ─ e também dos pontos
conflitivos ─ da psicopatologia está na análise do que representa a ideia de “páthos”.
Por isso, vale conhecê-la um pouco melhor.

O dicionário Aurélio nos diz que a palavra “paixão” está associada, dentre outros, aos
seguintes significados: “Sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade;
entusiasmo muito vivo; atividade, hábito ou vício dominador; o martírio de Cristo”
(FERREIRA, 2000, p. 509, grifos nossos). No Dicionário de Sinônimos, encontramos,
para além das mais conhecidas e óbvias, como “afeto”, “amor”, “desejo” e “entusiasmo”,
uma série de palavras igualmente reveladoras: “alucinação”, “chama”, “cólera”,
“doença”, fanatismo”, “furor”, “impaciência”, “ira”, “mágoa”, “mania”, “martírio”, “ódio”,
“raiva” e “sofrimento”, dentre outras (1977, p. 826). Algumas perguntas importantes
podem nortear o nosso estudo: Por que a palavra ganha significados tão díspares
quanto “sofrimento” e “entusiasmo”? Por que a paixão é sinônimo de “intensidade” e
“vida” e, ao mesmo tempo, de “martírio” e “alucinação”? Vamos compreender que as
respostas a estas perguntas são fundamentais para entender a importância do campo
da psicopatologia e sua relevância para os estudos e as práticas sociais que pretendam
melhorar a qualidade do trânsito, em seus mais variados aspectos.
18
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

O filósofo grego Aristóteles classificava a “paixão” como “uma ação que se sofre”, o
que a colocava em um grau de oposição à ação, no âmbito restrito da “passividade”
(JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001: 146). A origem da palavra remete ao mesmo sentido:
“paixão” deriva do latim “passione”, que significa “sofrimento” (MOURA, 2007, p.
558). O prefixo latino “passio” significa exatamente “paixão, sofrimento” (Idem, 2007,
p. 572). Da mesma forma, é preciso citar o termo grego “páthos”, que está ligado às
ideias de “paixão”, “afeto” e “desejo” (CAES, 2012, p. 5). Segundo o filósofo Valdinei
Caes, a etimologia da palavra grega “páthos” aponta para “o rigoroso sentido de ser
um termo que não é, de antemão, sistematizado pela razão”, ou seja, “algo que está
para além da sistematização da razão, por se caracterizar como vivência” (Idem, 2012,
p. 5). Em outras palavras, “o que não contém qualquer mediação, pois se trata do
incomensurável, inapreensível em uma situação, sobre o qual, em condições limítrofes
da existência, o pensamento não tem qualquer controle ou a possibilidade de exercer
qualquer domínio” (Idem, 2012, p. 5, grifos nossos). O que mostra que a origem da
palavra “paixão”, em seus primórdios gregos e latinos, estava vinculada diretamente
a um sentido de passividade e ausência de domínio e comando por parte do indivíduo
envolvido por ela.

O sentido não muda no período imediatamente posterior à Idade Média. René Descartes
sustenta a acepção aristotélica, afirmando a paixão como um estado da alma que não
possui nenhuma relação causal com a vontade. Para o autor francês, “tudo o que não
é ação é paixão” (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001, p. 146). E essa vertente se mantém
até os séculos XVII e XVIII. Segundo Nicola Abbagnano, os moralistas franceses desse
período, como Pascal, La Rochefoulcauld e Condillac, dentre outros, vão perceber a
paixão como uma emoção que penetra na personalidade de uma pessoa com a tendência
de dominá-la, fechando espaço para outras manifestações (ABBAGNANO, 1982, p. 709).
Mesma visão de Kant, que prossegue defendendo “a capacidade da paixão de dominar
todo o comportamento do homem, de apoderar-se de sua personalidade” (Idem, 1982,
p. 709). O filósofo alemão cria, então, uma distinção entre “paixão” e “emoção”.
A emoção seria uma força ativa, “como um jato que rompe um dique”; já a paixão seria
o lado passivo da força: Kant chega a classificá-la como “uma doença por intoxicação ou
deformação” (Idem, 1982, p. 709).

Com o Romantismo, essa distinção de Kant perde força e ganha espaço uma visão
ambivalente da paixão. Por um lado, se sustenta a visão de que ela seria “o domínio total
e profundo que um estado afetivo exerce sobre toda a personalidade (ou sujeição) do
indivíduo”; por outro, vai passar a ser vista como uma espécie de motor que impulsiona
à síntese, um aspecto da razão prática que auxilia a obter um foco, que determina a
particularização de um interesse qualquer da subjetividade. Para Hegel, por exemplo,
a paixão é “a totalidade do espírito prático enquanto se coloca em uma única entre as
muitas determinações limitadas as quais estão em oposição entre elas” (Idem, 1982, p.
710). E Nietzsche segue a mesma linha, afirmando, em seu trabalho sobre a “Vontade de

19
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Potência”, que “a paixão dominante (...) leva consigo a forma suprema da saúde”, e que,
com ela, “a coordenação dos sistemas interiores e sua ação a serviço de um só objeto
são melhor realizados”, o que seria, então, “quase a definição da saúde” (NIETZSCHE,
1880, p. 28).

Figura 5. Melancolia (1892). Edvard Munch.

Fonte disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-8echxPyYstY/TxVqP0mR_tI/AAAAAAAAAm4/5I_scjcwf7s/s640/Edvar+Munch+-


+Melankoli+-+Nasjonalgalleriet%252C+Oslo.png>

Essa ambivalência não é um dado qualquer. Mais amplamente, ela está no âmago de
grande parte das discussões históricas acerca do que significam as relações entre a
norma e a transgressão; o normal e a loucura; e o normal e o patológico. O filósofo
Michel Foucault tem importantes reflexões a fazer nesse sentido, em seu trabalho de
pesquisa sobre a “História da Loucura”. E antes de atingirmos o tópico que vai falar
sobre o que significa o conceito de “normalidade”, que é fundamental para entender
o papel da psicopatologia, vale a pena escutar o filósofo francês, em algumas de suas
considerações, tanto sobre a relação que os séculos XVIII e especialmente o XIX
começam a estabelecer entre a ideia mais específica de “loucura” e as “paixões”; quanto,
em outro ponto fundamental da questão, sobre as relações entre corpo e mente, nesse
mesmo enredo que defronta as ferrenhas dicotomias entre as normas, as paixões e a
loucura, e entre os pensadores que se orientavam por uma base “organicista” e os que
aos poucos buscavam entender o comportamento como um problema também mental
ou “psíquico”.

Há, como vimos, um período histórico no qual o pensamento científico e filosófico


começa a se ver diante de um impasse: a “paixão” é um excesso de passividade ou
um excesso de entusiasmo? Sabemos que ambas as formas comparecem na teoria

20
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

dos humores de Hipócrates, que se sustenta durante toda a Idade Média e domina a
medicina ocidental até o século XVII: “a bile amarela dos coléricos (quente e seca) e a
bile negra dos melancólicos (fria e seca)” (KEHL, In FREUD, 2011 [1917], p. 26).
A questão é que, como também já situamos, as formulações antigas sobre o “humor”
eram produzidas a partir de uma base de raciocínio que era ou fundamentalmente
religiosa ou baseada em uma lógica de pensamento que priorizava de forma hegemônica
o organismo. Cláudio Galeno (pp. 129-201), estudioso grego que seria um dos nomes
mais influentes da medicina medieval, afirmava, já no século II, que “as potências da
alma são consequência das misturas do corpo” (Idem, 2011 [1917], p. 26). Muitos autores
da área médica estabelecem um ponto de ruptura para a predominância do pensamento
de Galeno no médico inglês William Harvey (1578-1657), que, no ano de 1628, alterou
a maneira como se via a circulação humana até então. Entretanto, se considerarmos a
forma como pensadores como Pinel, Esquirol e Griesinger sustentavam o protagonismo
do corpo sobre a mente em pleno século XIX, é possível dizer que a sobrevida de Galeno
foi ainda maior.

No entanto, apesar da aparente verticalidade hierarquizada que se percebe nitidamente


nas teses dos primeiros autores da psicopatologia, o fato é que nos entremeios dos
pensamentos e das reflexões sobre as diferenças entre as condutas “normais” e as
“diferentes” navegava, sorrateira, uma ambivalência que estava longe de ser tão óbvia
assim. Esse ponto é explorado por Foucault de uma forma que pode ajudar a entender
ainda mais o lugar da psicopatologia no pensamento ocidental.

Um dos fatos trazidos por Foucault é o de que mesmo antes de Descartes o contato sem
hierarquia entre corpo e mente já era considerado. E esse contato peculiar tinha como
ponto de articulação exatamente a ideia da “paixão”. Antes de Descartes, e bem depois
dele, a paixão resistia como “a superfície de contato entre o corpo e a alma, o ponto
onde se encontram a atividade e a passividade desta e daquele, ao mesmo tempo em
que é o limite que ambos se impõem reciprocamente e o lugar da comunicação entre
si” (FOUCAULT, 2005 [1961], p. 226, grifo nosso).

O que o filósofo francês está apontando é que, desde antes do Renascimento, a questão
da “paixão” foi o eixo por onde corpo e mente conseguiam escapar, ao menos em parte,
de todos os reducionismos que os avaliavam ou como entes separados ou então como
excessivamente hierarquizados a partir de tendências organicistas. Segundo Foucault,
“sob o efeito da paixão e na presença de seu objeto, os espíritos circulam, se dispersam
e se concentram segundo uma configuração espacial que privilegia a marca do objeto
no cérebro e sua imagem na alma” (Idem, 2005 [1961], p. 227). Temos, então, o ponto
nuclear, que faz com que, na medicina dos sólidos e dos fluídos, que domina todo o
século XVIII, predomine um sistema que fecha em uma só unidade o corpo e a mente.

21
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

E todos os problemas que se inserem nesse contexto, como as tensões e relaxamentos,


a dureza e a moleza, a rigidez e o amolecimento, o ingurgitamento ou a secura, todos
passam a ser considerados como “estados qualitativos que pertencem tanto à alma
quanto ao corpo, e remetem em última instância a uma espécie de situação passional
indistinta e mista, que impõe suas formas comuns ao encadeamento das ideias, ao curso
dos sentimentos, ao estado das fibras, à circulação dos fluidos” (Idem, 2005 [1961],
p. 227, grifos nossos). Isso mostra que a paixão esteve sempre no protagonismo da
ambivalência entre o corpo e a mente, sendo um fator chave, que indicava não mais uma
situação de sucessão causal bem definida, mas, sim, a indicação mais profunda de que “a
alma e o corpo estão em um eterno relacionamento metafórico, no qual as qualidades
não têm necessidade de serem comunicadas porque já são comuns, e onde os fatos
de expressão não têm necessidade de adquirir valor causal simplesmente porque a
alma e o corpo são sempre expressão imediata um do outro” (Idem, 2005 [1961], p.
228, grifos nossos). Em outras palavras, o que podemos verificar com Foucault é que
a paixão fragiliza a oposição entre a alma e o corpo, instaurando, simultaneamente, “a
unidade e a distinção entre eles” (Idem, 2005 [1961], p. 228).

Figura 6. História da Loucura (1961). Michel Foucault.

Fonte disponível em: <http://ulbra-to.br/encena/uploads/foucault-michel-a-histria-da-loucura-na-idade-clssica-1-638_1.jpg> .


Acesso em: 19 jul. 2016.

Ou seja, a “paixão” passa a ser um verdadeiro ponto de conflito, que mantinha em


suspenso todas as conclusões sobre as complexas relações entre o corpo e a mente.
O que ficou posto de uma forma bem destacada e evidente quando analisamos a história
etimológica do termo e mesmo a forma como as ambiguidades e ambivalências se
sustentam no uso cotidiano dos sinônimos relacionados à palavra. Essa “simultaneidade”

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

inconclusa está no âmago do surgimento da psicopatologia. Isso porque a paixão


passava, cada vez mais, a se mostrar como um domínio dos relacionamentos entre a
alma e o corpo no qual causa e efeito e determinismo e expressão se entrecruzam em
uma trama tão densa que passa a aparentar, mais profundamente, a constituição de um
único e mesmo movimento, que só em momentos posteriores acaba se dissociando ou
dividindo. E mesmo na divisão ulterior, o que se observa a partir dali, nas paixões, é a
imposição dos mesmos valores ao orgânico e ao espiritual, e é aí que se reforça cada vez
mais a ideia dos fenômenos enquadrados como loucura vistos como doenças, “doenças
do corpo e da alma, doenças nas quais a afecção do cérebro é da mesma qualidade, da
mesma origem, da mesma natureza, enfim, que a afecção da alma” (Idem, 2005 [1961],
p. 228, grifo nosso). A partir do momento em que esse quadro começa a emergir na
percepção dos primeiros pensadores da psicopatologia, a noção de “doença mental”
passa a ganhar um status tão legítimo como objeto de investigação científica quanto o
das afecções físicas.

Importante situar ainda outro ponto. Apesar do tema da paixão ajudar a flexibilizar –
ainda que de uma forma debilmente elaborada – as hierarquias regidas pelo organicismo,
o fato é que isso não eliminou a complexidade da questão. Muito pelo contrário. O que
ocorre é que esse movimento, em certo sentido, amplia as ambivalências do tema, na
medida em que traz para o primeiro plano o fato de que, “se a união (...) entre a alma
e o corpo manifesta na paixão a finitude do homem, ela ao mesmo tempo abre esse
mesmo homem para o movimento infinito que o perde” (Idem, 2005 [1961], p. 229,
grifo nosso). A partir daí, vista como uma faceta da unidade conflituosa entre a alma e
o corpo, a loucura passa a ser uma nova forma de recolocar a paixão em questão, como
“uma dessas formas da unidade nas quais as leis são comprometidas, pervertidas,
transformadas — manifestando assim essa unidade como evidente e já dada, mas
também como frágil e já destinada à perdição” (Idem, 2005 [1961]: 229, grifos nossos).

Sob essa perspectiva, a paixão surge, então, como um fenômeno de entrecruzamento


que tem a dupla face de denunciar o que Foucault chama de “unidade entre a alma
e o corpo”, ao mesmo tempo em que se mostra, também, o foco potencial, o veneno
momentâneo, que pode empurrar essa mesma “unidade” para um estado de colapso,
seja como consequência de eventos de intensificação convulsiva, seja por fatores que
levem ao cúmulo da inércia – aceleração excessiva, desaceleração excessiva. Está
aberto, na esteira do aprofundamento das complexidades inerentes ao tema do páthos,
o cenário que vai justificar tudo o que depois passa a advir correlacionando a “loucura”
ao âmbito das “doenças mentais”, ou seja, as chamadas “psicopatologias”.

23
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

O advento da psicanálise

Como se pode perceber pelas descrições anteriores, o século XIX, que é o período
onde nasce e se desenvolve a psicopatologia como campo de pensamento e pesquisa,
foi profundamente marcado pela influência dos pensamentos organicistas e pela
medicina, que tomavam o corpo como origem e base de todos os problemas mentais.
Ainda que tenham trazido inegáveis avanços, especialmente no que se refere ao
âmbito do diálogo com os métodos científicos e ao consequente afastamento das
vertentes de matriz religiosa, o fato é que autores como Pinel, Esquirol e Griesinger
ainda estavam fortemente vinculados a um modelo organicista de pensamento,
que alocava no cérebro toda a responsabilidade por todos os tipos de transtornos
mentais e comportamentos desviantes, o que influenciava diretamente toda a sua
produção.

Contudo, como mostra bem a reflexão do filósofo Michel Foucault, a questão não
restava restrita ao âmbito da dicotomia separatista. Na esteira da complexidade
do problema do “páthos” se desenvolvia uma forte ambivalência, que aumentava
gradativamente tanto a crise dos fundamentos que separavam de forma sistemática
o corpo da mente quanto a crise da hegemonia do cérebro nas considerações
psicopatológicas. No final do século XIX, essa crise acaba por gerar novos focos de
reflexão, que passam a orientar o seu olhar em direção ao polo oposto da dicotomia,
ou seja, a mente, ou “psiquê”.

Vale ressaltar, ainda, que essa mudança de foco, que aparece sobretudo na Alemanha,
com os avanços trazidos por Sigmund Freud, não era exatamente uma novidade para
o debate germânico. Em importante trabalho de pesquisa, o historiador e psicanalista
Matt Ffytche demonstra que os estudos seculares a respeito da vida “interior” e
“subjetiva” já se desenvolviam de maneira bastante madura no Romantismo alemão,
cem anos antes de Freud. Segundo Ffytche, o Romantismo alemão da virada do século
XVIII para o XIX, e primeiras décadas deste, já voltava o seu olhar para a questão
dos fundamentos que regiam a consciência em seus estágios mais antigos, primitivos
e inconscientes, tanto no sentido do desenvolvimento individual quanto no da história
cultural como um todo. E isso acontecia na mesma intensidade em relação aos estágios
mentais patológicos, como as várias formas classificadas como “loucura”, e também o
sono, os sonhos e os transes, que passavam a ser investigados a partir de um novo tipo
de interesse psicológico (FFYTCHE, 2014, p. 14).

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Figura 7. O silêncio (1799-1801). Johann Heinrich Füssli.

Fonte disponível em: <http://www.olgapastor.com/wp-content/uploads/silence-by-henry-fuseli.jpg>

Em seu trabalho sobre a História da loucura, Michel Foucault não cita o Romantismo,
mas alerta para o fato de que os pensamentos de Pinel, Esquirol e outros não eram
eventos totalmente isolados, mas, em alguma medida, partes de um contexto maior, que
começava a destacar os chamados “loucos” das outras formas de desvios sociais, pela via
da rubrica da “doença mental” – rubrica essa que era, também ela, ambivalente, porque
ao mesmo tempo em que legitimava a pesquisa científica, justificava, no mesmo bojo, a
transformação da internação compulsória em prática institucional. Depois de descrever
alguns exemplos que mostram tentativas de separar os loucos dos outros detentos em
oficinas, prisões, asilos e outros estabelecimentos do tipo, Foucault chega a formular a
seguinte pergunta, em um trecho de seu livro: “Aquilo que o século XIX formulou com
repercussão (...), o século XVIII já não havia dito e repetido incansavelmente em voz
baixa? Não teriam Esquirol, Reil e os Tuke apenas retomado, num tom mais alto, aquilo
que era havia anos um dos lugares-comuns da prática dos asilos?” (FOUCAULT, 2005
[1961], p. 395).

O que fica evidente, aqui, é que, apesar da hegemonia do discurso organicista no


século XIX, o tema da loucura e suas possíveis vinculações com as bases “mentais”,
“inconscientes” ou “conscientes”, dos indivíduos já agitava a mentalidade dos europeus
daquela época. Esse quadro afetava diretamente a forma como os comportamentos
desviantes eram vistos, tanto pela população em geral, quanto pelas instituições e pelo
saber psicopatológico emergente, o que fica nítido, novamente frisamos, quando se
reflete sobre os conflitos gerados pela complexidade da noção de “páthos”.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

A ambivalência das contribuições de Pinel e de seus seguidores ao tema da loucura está


diretamente envolvida com a dicotomia corpo-mente. De um lado, a luta de Pinel pela
sistematização científica de um saber sobre a loucura não escapa de ser um cerceamento
aos corpos dos indivíduos encarcerados nos asilos e hospícios; entretanto, apesar disso,
essa mesma luta procurava, também, um meio de promover uma espécie de “diálogo”
entre as partes, por meio do qual os supostamente “sãos” pudessem aprender com os
supostamente “insanos” e vice-versa. Havia uma inegável arbitrariedade em jogo, mas
a questão não parece se resumir a isso.

E essa mudança ambivalente gera outra, de caráter “epistemológico”. Elisabeth


Roudinesco coloca a questão da seguinte forma: “Não esqueçamos que o louco, no
sentido de insensato, era considerado um animal cujo discurso não alcançava o registro
da razão: uma besta viva mas destituída de sentido. Ao contrário, o alienado, no sentido
de Pinel, tornava-se um estranho para si mesmo” (ROUDINESCO, 2009, p. 215, grifo
nosso). A autora então conclui que, “com a eclosão da noção de alienação, nascia uma
nova concepção do sujeito fundada na divisão imaginária entre um mundo dominado
pelo princípio da razão e um mundo submetido ao caos da desrazão” (Idem, 2009, p.
215). A noção de uma pessoa que é “estranha a si mesma” surge como um deslocamento
radical da ideia de “animalidade”, que excluía o louco de forma absoluta. Essa mudança
abre espaço para o que Roudinesco chama de “ideal utópico da cura” (Idem, 2009, p.
215), ou seja, a erradicação da estranheza e o chamado tratamento moral, que poderia
reconduzir o alienado ao mundo da razão. Nesse ponto, inclusive, vale observar o quanto
as noções de “cura” e “páthos” caminham juntas, uma justificando e alavancando a
outra – o que ficará ainda mais evidente quando discutirmos as relações entre as noções
de “normalidade” e “patologia”.

Outro problema impactante para os estudiosos da loucura da primeira metade do


século XIX estava no fracasso das investigações físicas dos pacientes. “Praticando
autópsias, os senhores do hospício não descobriam nenhuma lesão cerebral suscetível
de explicar [a] origem [da loucura]” (Idem, 2009, p. 217). A ausência de uma causa
física corporal para a alienação levou esses primeiros pesquisadores da história da
psiquiatria ao estudo autobiográfico dos loucos. Isso gerou uma grande quantidade de
escritos, produzidos pelos pacientes, e nos quais os médicos buscavam indícios que
levassem ao conhecimento de situações e acontecimentos de base que explicassem a
personalidade alienada. Também nada encontraram. Segundo Roudinesco, isso gerou
três consequências: a volta às investigações anatômicas – especialmente depois de
1840; o advento da noção de “incurabilidade”, que se materializava especialmente na
prática frequente do confinamento perpétuo dos loucos; e o uso da iconografia, para
tentar retratar e exibir, através de pintores e desenhistas, “sinais externos de um mal
cuja causalidade interna continuava desconhecida” (Idem, 2009, p. 217).

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

A presença destes três aspectos parece ser profundamente sintomática. O retorno à


anatomia; o surgimento da ideia de casos “incuráveis”; e o advento da representação
iconográfica como aporte científico. Isso porque, ao mesmo tempo em que retornava
aos parâmetros organicistas, a metade do século XIX chegava a um ponto autocrítico
limítrofe, no qual já começava a considerar a inviabilidade de suas próprias buscas,
que esbarravam, de uma forma que figurava intransponível nos casos tomados como
“incuráveis”. E então, a saída passou a ser o uso e o diálogo com as formas iconográficas.
Aqui, a curva da ambivalência chega em um limite radical e revelador: se por um lado às
pinturas e desenhos dos loucos sustentavam uma busca “corporal”, a visão e os suportes
funcionando orientados em direção ao corpo dos pacientes, por outro lado, essas
mesmas representações não escapavam, também, de serem inevitavelmente “externas”
a esses mesmos corpos. É um ponto de ebulição considerável, que pode explicar vários
eventos posteriores.

Entretanto, a força do organicismo era ainda muito grande, como se observa quando
lembramos as principais motivações epistemológicas de nomes como Esquirol e
Griesinger. Na segunda metade e fins do século XIX, essa força resistiria apegada
a outro parâmetro significativo, que também ganhava terreno com o fracasso
das investigações anatômicas: estamos falando das teses da hereditariedade e da
degenerescência. Segundo Elisabeth Roudinesco, o fim do século XIX “foi a época da
hereditariedade-degenerescência, que se impôs em diversos domínios do saber antes
de desmoronar, em 1905. Ela reduziu a doença mental a uma causalidade puramente
orgânica, condenando ao nada a própria ideia de subjetividade” (Idem, 2009, p. 218).

É importante destacar que, essas teorias da hereditariedade eram todas elas pré-genéticas
e anteriores ao uso mais amplo do microscópio. Todos os nomes mais conhecidos da
época que desenvolveram teorias da hereditariedade, como Gregor Mendel, Herbert
Spencer, Charles Darwin, Karl Wilhelm von Nägeli, Édouard-Gérard Balbiani, Edouard
van Benedem, Walter Flemming, August Schleicher e Eduard Strasburger, todos eles,
formularam teses que tinham uma base fundamentalmente especulativa de raciocínio
(JUSTINA, 2001, pp. 41-43). E ainda que apontem, mais amplamente, uma tendência,
não modificaram radicalmente a forma como se via a loucura naquela época.

As teses sobre a hereditariedade cumpriam um papel fundamental para as teorias


organicistas: na falta de sólidos argumentos anatômicos para justificar os internamentos,
era preciso achar uma forma de sustentar a eleição dos loucos como doentes. E se a
causa não estava no cérebro, não podia estar em outro lugar senão na herança biológica
do paciente. Isso gerou o desenvolvimento de uma série de visões que elegiam formas
biológicas mais aceitáveis que outras, o que desembocou nas diversas eugenias
conhecidas, que culminaram, em seu evento mais dramático, no nazismo alemão da
Segunda Grande Guerra.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Ao lado das teses da “raça pura”, mais evidentes e explícitas, caminhavam, junto, os
estigmas morais decorrentes de todo o desenvolvimento da psiquiatria, desde Pinel
até o fim do século XIX. A ponto de Michel Foucault afirmar que, “o que se chama
de prática psiquiátrica é uma certa tática moral, contemporânea do fim do século
XVIII, conservada nos ritos da vida asilar e recoberta pelos mitos do positivismo”
(FOUCAULT, 2005 [1961], p. 501). Isso porque, ao eleger um tipo moral e psíquico
como “superior”, automaticamente se elegia, junto, as formas de comportamento
“inferiores”, que deveriam ser combatidas e/ou curadas pelos tratamentos vigentes.
Cristiana Facchinetti coloca que, nesse contexto, o alienado passa a ser visto como “um
ser degenerado, passando a ser considerado como um ser inferior, subdesenvolvido e
suas faculdades morais [passam] a ser consideradas como funções vitais, delimitadas
na substância cerebral, sustentáculo das atividades mentais” (FACCHINETTI, sem
data, p. 3). O positivismo sustentava, portanto, a “tática moral” de que fala Foucault,
que acabaria, como consequência, nos eugenismos. O grande diferencial desse cenário
está no fato de que a justificativa moral preenchia a lacuna deixada pelos fracassos das
pesquisas anatômicas, auxiliando na sustentação da psiquiatria e, mais amplamente,
na própria manutenção dos internamentos como prática institucional.

Toda essa lógica, que alicerçava a psicopatologia em bases predominantemente


anatômicas, e portanto organicistas, sofreria um corte significativo com o surgimento
da psicanálise de Sigmund Freud. O que se deu como um processo complexo, fruto
das inúmeras crises pelas quais passou o pensamento psiquiátrico do século XIX,
notadamente de sua segunda metade. Como se pode observar no estudo da obra
freudiana, os fracassos que se sucederam nas investigações anatômicas da psiquiatria
daquele momento foram os mesmos que impactaram as crenças do estudante Freud,
em seus primeiros contatos com os métodos de tratamento tradicionais da medicina
mental de sua época.

Figura 8. Sigmund Freud (1856-1939).

Fonte disponível em: <http://carpediem101.com/wp-content/uploads/Sigmund-Freud-1935.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Em seu texto sobre A história do movimento psicanalítico, de 1914, Freud afirma que
sua primeira grande divergência com Joseph Breuer surgiu do fato de que este entendia
a histeria a partir de uma teoria que era, ainda, “até certo ponto fisiológica” (FREUD,
1997 [1914], p. 13). Em suas primeiras experiências com o tratamento de pacientes que
sofriam de afecções nervosas, Freud teria sua primeira grande decepção, ao utilizar
a fisioterapia, em especial a eletroterapia. Foi nessa época que o estudante alemão
começou a perceber, influenciado pelas ideias de Charcot, Liébeault e Bernheim, que
a sugestão parecia oferecer “um substituto satisfatório para o malogrado tratamento
elétrico” (Idem, 1997 [1914], p. 11).

Entretanto, a ruptura definitiva dar-se-ia através da histeria, ou seja, das experiências


de Freud com as neuroses histéricas das suas pacientes. Como coloca Cristiana
Facchinetti, a histeria representou “o ponto de falência do método anátomo-clínico
e [um] ponto de partida para as discussões em torno do normal e do patológico, da
degeneração e da sexualidade” (FACCHINETTI, sem data, p. 6) na trajetória de Freud.
A partir dela nascem três cortes, projetados pelo pensamento freudiano: o primeiro,
com o organicismo, já que Freud diferenciava, aos poucos, as paralisias orgânicas das
histéricas: “ao postular que a neurose está no plano do sentido, Freud parece estar,
implicitamente, separando o aparelho psíquico do seu funcionamento orgânico e
instaurando-o como aparelho de linguagem” (Idem, sem data, p.6); o segundo corte
era com a noção de “degeneração”, que, como vimos, em muitos casos era usada para
preencher a lacuna deixava pelos fracassos organicistas: ao romper com o organicismo
restrito, Freud rompia, no mesmo embalo, com as teses baseadas na hereditariedade,
que tinham na reprodução biológica um eixo fundamental. Para o pensador alemão,
a constituição mítica da estrutura psíquica e a lógica sexual da pulsão tinham um
peso muito maior na constituição das afecções nervosas do que qualquer elemento
hereditário; e temos, finalmente, o terceiro corte, que se dá diretamente na forma
como a loucura passa a ser vista. Cristiana Facchinetti descreve assim, esse importante
aspecto: “a psicanálise rompeu também com os campos da medicina e da psiquiatria ao
conceder à loucura o estatuto de verdade, considerando-a como portadora de sentido
e não como uma anomalia na estrutura do corpo” (Idem, sem data, p.8). Em outras
palavras, o freudismo institui um caráter de “verdade” para as experiências psíquicas
radicais, que inscreve a loucura, antes resumida ao campo das patologias, no âmbito da
representação heterogênea, carrega de significados e possibilidades de leitura.

De qualquer forma, o pensamento de Freud caminhava também na direção de


estabelecer a sua visão sobre o que seria e o que não seria uma “doença mental”. Para
entender essa visão é preciso passar pela forma como o autor alemão elabora o conceito
de “defesa” em sua obra. Hugo Silva Valente afirma que a psicanálise só pôde surgir
como um deslocamento dos fundamentos neurofisiológicos “a partir da aparição da

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

noção de defesa”, que passou a ser um marcador fundamentalmente “psicológico” para


ajudar a pensar o surgimento de psicopatologias (VALENTE, 2013, p. 48). Da noção de
”defesa” derivou o conceito de “recalque”, ou “repressão”, que, segundo o próprio Freud,
“é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise” (FREUD, 1997
[1914], p. 19).

Mas o que significa exatamente a noção de “defesa” em Freud? Há uma conexão


de ideias que precisa ser levada em conta nesse caso. Isso porque Freud partia do
pressuposto da existência de um evento “traumático” de base – a noção de “trauma” –,
o qual possuía forte ligação com um sentimento de “desprazer”. A partir da articulação
desses dois elementos, o autor alemão concluía, então, que a “defesa” é a forma como a
mente humana responde ao “desprazer” ocasionado por uma lembrança “traumática”.
Portanto, a “doença”, nesse caso, seria a suposta tendência da mente de tentar esconder
a causa de um desprazer, sem conseguir.

Figura 9. O grito (1893). Edvard Munch.

Fonte disponível em: <http://lounge.obviousmag.org/sphere/2012/08/27/EdvardMunch-TheScream-1893.jpg>. Acesso em: 19


jul. 2016.

Entretanto, a questão não é tão simples quanto parece. Por um lado, à primeira vista,
o conceito de defesa pode ser visto como “o conjunto de operações que visam diminuir
ou, de preferência, eliminar totalmente qualquer modificação capaz de pôr em risco
o equilíbrio na economia interna do sistema neuropsíquico” (VALENTE, 2013, p. 50,

30
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

grifos do autor). Porém, por outro lado, essas mesmas operações podem gerar, em
condições específicas, uma situação que a psicanálise vai entender como “patológica”.
Isso porque, como veremos, nada garante que uma substituição gere necessariamente
um “equilíbrio”. Além disso, vale frisar, também, que a própria ideia de “equilíbrio”
deve ser refletida de forma mais ampla, porque ela também não é tão simples.

Freud chama de “neuroses de defesa” aquilo que se distingue dos “estados afetivos
psíquicos normais”. Ele classifica a anormalidade das neuroses de defesa como sendo a
de estados que “não [conduzem] à resolução de coisa alguma, e sim a um permanente
prejuízo para o ego” (FREUD, 1896, p. 132). Entretanto, há, para ele, um estágio “normal”
e um estágio “patológico” de defesa. O estágio “normal” se baseia em uma “aversão
contra dirigir a energia psíquica de tal forma que daí resulte algum desprazer” (Idem,
1896, p. 132). É, segundo ele, uma das “condições mais fundamentais do funcionamento
psíquico” (Idem, 1896, p. 132). Já no estágio que ele classifica como “patológico”, o
que ocorre é que a própria defesa se torna prejudicial “quando é dirigida contra ideias
também capazes de, sob a forma de lembranças, liberar um novo desprazer” (Idem,
1896, p. 132). A força que move e “regula” esse prejuízo está alicerçada, para ele, nos
fenômenos da moralidade e da vergonha (Idem, 1896, p. 133). Ou seja, se a conexão
entre o ego e as lembranças não gera vergonha ou sentimento de inadequação moral,
é porque a defesa conseguiu substituir de forma satisfatória a lembrança, e estamos
diante de uma “defesa bem-sucedida, que é equivalente à saúde” (Idem, 1896, p. 133);
se a conexão, ao contrário, gerar a vergonha ou o sentimento de inadequação moral,
então a defesa passa a funcionar de uma forma que se abre para o retorno do recalcado,
um retorno que é envergonhado e, portanto, sujeito à autocensura e, no entendimento
de Freud, à classificação como “doença”.

A partir dessa distinção entre “normalidade” e “doença”, Freud vai distinguir alguns
tipos, nos quais vislumbra diferentes formas de manifestação da defesa patológica. Essas
construções vão desembocar naquilo que ele classifica como “neuroses” e “psicoses”
de defesa. Antes de estudar essas formas, entretanto, é preciso passar de forma mais
detida exatamente pela discussão sobre o que é o “normal” e o que é o “patológico”. É o
que faremos agora.

O normal, o patológico e os “transtornos mentais”

O tema das distinções entre o “normal” e o “patológico” faz parte daquele grupo de
assuntos que têm a aparência de ser simples, mas não são, muito pelo contrário.
A palavra “normal” deriva do latim “normalis” (MOURA, 2007, p. 532), termo que
carrega ligação com o esquadro e que se definia como aquilo que era “feito de acordo com
o esquadro do carpinteiro”, que era chamado norma e era usado para marcar ângulos

31
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

retos” (NORMAL). Aqui, já temos uma informação valiosa e reveladora, porque ajuda a
explicar boa parte de todo o senso comum que existe sobre o termo.

Em geral, a palavra “normal” aparece associada às ideias do que seria o “bom”, o


“constante”, o “costumeiro”, o “exemplar”, o “habitual”, o “natural”, o “ordinário”, o
“perpendicular”, “o regular”, o “usual” e o “vulgar” (DICIONÁRIO DE SINÔNIMOS,
1977, p. 801). Nicola Abbagnano define o verbete na mesma linha: “aquilo que está em
conformidade com a norma” e “aquilo que está em conformidade com um hábito ou
com um costume ou com uma média aproximada ou matemática ou com o equilíbrio
físico ou psíquico” (ABBAGNANO, 1982, p. 686, grifos nossos).

No que diz respeito à questão da saúde, o “normal” é comumente associado às


noções de “equilíbrio” e “harmonia” (CANGUILHEM, 2009 [1966], p. 12). A origem
da palavra “saúde” está ligada a um sentido de “salvação” e “preservação da vida”,
presente nos termos latinos “salute”, “salus” e “salutis” (MOURA, 2007, p. 679).
Nesse ponto já entramos no âmbito da polêmica, porque, como coloca Elie Cheniaux
Jr, “a distinção entre o normal e o patológico em medicina é bastante imprecisa”
(CHENIAUX Jr, 2002, p. 8). Segundo Georges Canguilhem, em seu importante
trabalho intitulado “O normal e o patológico”, as concepções gregas, notadamente a
de Hipócrates, seguida de toda a sua influência, partiam de uma base que entendia a
relação entre “saúde” e “doença” de uma forma bastante dinâmica. Segundo o autor
francês, nessa perspectiva, “a natureza (physis), tanto no homem como fora dele, é
harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença”
(CANGUILHEM, 2009 [1966], p. 12). Entretanto, a questão não é tão simples
quanto parece. Logo depois, Canguilhem reporta ao esquema grego de forma mais
específica, para situar um aspecto de maior complexidade, presente no tema: “o
que está em equilíbrio no homem, e cuja perturbação causa a doença, são quatro
humores, cuja fluidez é precisamente capaz de suportar variações e oscilações,
e cujas qualidades são agrupadas duas em duas, seguindo seu contraste (quente,
frio, úmido, seco)” (Idem, 2009 [1966], p. 12, grifo nosso). Portanto, ele continua,
a partir disso, “a doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também,
e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo
equilíbrio” (Idem, 2009 [1966], p. 12, grifo nosso). E então, nessa lógica dinâmica,
“a doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve
uma doença para se curar” (Idem, 2009 [1966], pp. 12-13).

O que a reflexão de Canguilhem aponta, e que se encontra nos entremeios das teorias
humorais antigas, é um fato que tem sido revisitado pelas mais diversas vertentes
médicas atuais, em muitas de suas áreas: o que está em questão em noções como
“equilíbrio” e “harmonia” não é exatamente uma lógica de, “hábito”, “repetição” ou

32
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

“preservação” pura e simples, mas sim, mais amplamente, uma dinâmica fluída e
oscilatória que busca no jogo constante entre a variação e o contraste a sua sustentação.
O interessante é que essa perspectiva não se familiariza muito com a rotina de ângulos
retos do esquadro do carpinteiro. O que mostra o que Cheniaux Jr quis dizer quando
situou a distinção entre o normal e o patológico em medicina no âmbito do “impreciso”.

Figura 10. Autorretrato com a orelha cortada (1889). Vincent van Gogh.

Fonte disponível em: <http://www.vangogh.net/images/paintings/self-portrait-with-bandaged-ear.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

Trata-se de um deslocamento importante, que atinge inclusive certos aspectos da


dinâmica que rege o trânsito. Um exemplo bem simples está no fato de que em algumas
metrópoles como o Rio de Janeiro e São Paulo, conhecidas por conviverem com uma
violência urbana mais “endêmica”, foi preciso relativizar a retidão da lei em alguns
trechos considerados mais perigosos, para que os motoristas não fossem multados por
avançarem o sinal de madrugada, por exemplo. Nesse sentido, inclusive, a “tensão” passa
a ser um componente de atenção e segurança, e não um indicativo de adoecimento. Isso
porque relaxar demais em certos trechos das metrópoles pode ser a deixa para acabar
sendo vítima de um assalto ou situação semelhante.

Essa lógica oscilatória comparece de forma bem ampla na forma como a psicopatologia
define a questão da relação entre o normal e o patológico. Paulo Dalgalarrondo chama
a atenção para o fato de que, apesar de existirem alterações de comportamento que
podem ser facilmente enquadradas como “patológicas”, é preciso cautela, porque as
ideias de “saúde” e “normalidade” em psicopatologia apresentam fortes controvérsias
(DALGALARRONDO, 2008, p. 31). O autor destaca que “há muitos casos limítrofes,
33
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

nos quais a delimitação entre comportamentos e formas de sentir normais e patológicos


é bastante difícil” (Idem, 2008, p. 31).

Um dos fatores fundamentais nesse caso tem a ver com o contexto sociocultural.
Toda sociedade estabelece, por meio de consenso ou de um convívio com as
padronizações da média de seus habitantes, certas visões pragmáticas sobre o
que tem aparência de normalidade e o que parece um comportamento “desviante”
ou “patológico”. É uma questão cultural e é possível observar inúmeras diferenças
nesse sentido entre os povos. A psicopatologia deve levar esse ponto em consideração,
porque ele ajuda a flexibilizar os critérios, que não podem ser tomados como verdades
inquestionáveis para o pensamento científico.

De qualquer forma, em nossa sociedade, como em todas as outras, existem critérios


específicos, com características próprias. Critérios de normalidade internos de nossa
cultura – ainda que muitos deles, é claro, tenham conexão com os de outras culturas,
também. Paulo Dalgalarrondo passa pelo assunto e lista um grupo de nove critérios
que servem para distinguir o normal do patológico. Vale a pena conhecê-los com mais
detalhes.

O primeiro critério é o da normalidade como “ausência de doença”. Assim como existem


os consensos sobre o que é “normal”, o mesmo acontece com o que é “patológico”.
E a partir desses consensos, e das dicotomias que deles se originam, é possível definir
uma pessoa como “saudável” se ela não possui nenhum sinal ou sintoma relacionado às
“doenças” classificadas e conhecidas por aquela cultura. Assim, “normal, do ponto de
vista psicopatológico, seria, então, aquele indivíduo que simplesmente não é portador
de um transtorno mental definido” (Idem, 2008, p. 32). Dalgalarrondo alerta que
esse critério tem uma faceta problemática, pois parte de uma lógica que carrega algo
de “redundante”, porque sustenta a ideia de normalidade baseada em seus próprios
códigos de representação (Idem, 2008, p. 32). É um aspecto importante, porque permite
demonstrar a relevância de se observar o máximo de critérios ao mesmo tempo, para
que a visão não reste demasiado “estereotipante”.

O segundo critério é o de “normalidade ideal”. É um critério sociocultural, geralmente


cristalizado por meio de uma base moral, que distingue um comportamento “sadio”
como aquele voltado para o “bem”, enquanto o seu oposto passa a ser classificado como
desviante do ideal, um “mal” para aquele grupo ou cultura. É outro critério que deve ser
utilizado com muito cuidado, porque também apresenta problemas. O principal deles
é o de que tende a marginalizar todo e qualquer comportamento que não se coadune
ao ideal como “imoral” e “perigoso” para a coletividade, o que pode gerar perseguições,
conservadorismo e atraso. Exemplos históricos não faltam: os homossexuais já foram

34
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

considerados doentes; os punks já foram considerados delinquentes; os “hereges”


eram queimados nas fogueiras da Idade Média; todos por se comportarem de uma
forma diferente daquela que aquele grupo cultural considerava a “ideal”. Interessante
comentar, inclusive, que, sem o comportamento desviante do ideal, provavelmente
a humanidade ainda estaria nas cavernas, porque a maioria das mudanças pelas
quais passam as culturas e sociedades normalmente sofrem a resistência dos grupos
conservadores, tradicionalistas e dogmáticos. E, diga-se de passagem, muitas dessas
resistências acabam sendo muito mais violentas do que o próprio desvio que tentam
impedir de se manifestar.

Figura 11. A partir do critério sociocultural, o movimento “punk” tende a ser considerado “contracultura”, por se

colocar em oposição aos parâmetros considerados “sadios” pela média das pessoas.

Fonte disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/-aSGT8aiTq-A/T3pKxBdhIxI/AAAAAAAAAAo/KXGznphIt_s/s1600/punk_sicopy2.


jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

Outro critério, muito utilizado para definir a ideia de normalidade é o “estatístico”.


Aqui, a base é a identificação de frequências de comportamento de mesmo tipo, que
passam a ser as referências do que é normal e do que é desviante. Trata-se, como fica
fácil de perceber, de um critério excessivamente “matemático” e “quantitativo”, e, aqui,
“o normal passa a ser aquilo que se observa com mais frequência. Os indivíduos que
se situam estatisticamente fora (ou no extremo) de uma curva de distribuição normal
passam, por exemplo, a ser considerados anormais ou doentes” (Idem, 2008, p. 33).
Também exige cautela, por dois motivos básicos: nem tudo o que foge à estatística é
“doentio” ─ muito pelo contrário, toda invenção, por exemplo, é um desvio da norma
─ e nem tudo o que é frequente é necessariamente “sadio”─muito pelo contrário, todo
excesso é geralmente considerado um sinal de enfermidade, o que se pode perceber
facilmente na ideia de “vício”.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

O quarto critério é o da normalidade como sinônimo de “bem-estar”. É um critério


que se sustenta respaldado na classificação da Organização Mundial da Saúde, que,
em 1946, definiu a “saúde” como “o completo bem-estar físico, mental e social” de uma
pessoa e não apenas a ausência de doenças (Idem, 2008, p. 33). Aqui, igualmente,
encontramos uma série de exceções, principalmente porque a noção de “bem-estar” é
muito imprecisa e inevitavelmente esbarra em referentes de ordem subjetiva.

No quinto critério aparece a “normalidade funcional”. É um parâmetro muito utilizado


nas considerações psicopatológicas sobre o trânsito, porque parte de uma base de
raciocínio explicitamente funcionalista, que privilegia a relação do comportamento
com as exigências contextuais de tal ou qual atividade. Um exemplo claro é a cegueira,
que é radicalmente “disfuncional” em relação às exigências do trânsito, que é uma
prática fortemente calcada na visão, na qual o sujeito é o tempo todo testado em suas
habilidades visuais.

O sexto critério citado por Paulo Dalgalarrondo é o da “normalidade como processo”.


Segundo o autor, esse critério tem como referência de base “os aspectos dinâmicos do
desenvolvimento psicossocial, das desestruturações e das reestruturações ao longo
do tempo, de crises, de mudanças próprias a certos períodos etários” (Idem, 2008,
p. 33). É muito utilizado na análise de crianças, adolescentes e idosos. Entretanto, se
trouxermos para cá uma articulação com o alerta que comparece na análise de Georges
Canguilhem, sobre a necessidade de “fluidez” para suportar as inúmeras variações
e oscilações pelas quais passamos durante toda a vida, tanto fisicamente quanto
mentalmente, isso tomado como sinônimo de “equilíbrio”, ele se torna, enfim, um
critério que pode ser utilizado de forma praticamente generalista. Isso porque todos
os seres humanos, independente da faixa etária, estão sujeitos a mudanças repentinas
de contexto, em todas as áreas da vida. Por conta disso, aliás, a ideia de “processo”
conectada à noção de “normalidade” é ambivalente: serve, porque todos estão o tempo
todo sujeitos às mudanças e variações ─ e nesse sentido o “processo” pode ser chamado
de “situação normal”; porém, não serve, porque o próprio princípio do “processo”
repele a noção de “normalidade”, na medida em que a dinâmica do processo é sempre
oscilatória, enquanto que a da normalidade, como sua história etimológica mostra
bem, é a da retidão, da repetição e dos padrões. De qualquer forma, a ambivalência é
rica, porque o fato de servir e não servir confere ao próprio termo uma dinâmica de
processo, que acaba por ser um referente de sua complexidade.

O sétimo critério é o da chamada “normalidade subjetiva”. É outro critério bastante


ambivalente. Seu ponto forte é o de flexibilizar as padronizações excessivas, inclusive as
de cunho social. A ideia de “normalidade subjetiva” minimiza os efeitos problemáticos
dos estereótipos, como no exemplo dos punks e dos homossexuais, que já citamos.

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Se a ideia de “normal” e “desviante” se limita a cada um, o risco de haver perseguições


a grupos marginalizados pelos padrões corriqueiros diminui. É possível verificar a
complexidade desse debate na questão contemporânea do “bullying” nas escolas, por
exemplo. Os alunos vítimas de ataques ganharam espaço para questionar a violência dos
preconceituosos, que normalmente tomam o seu critério subjetivo de “normalidade”
como aquele que tem que ser seguido por todos, sendo exatamente esta a causa do
comportamento violento. Sustentar o caráter “subjetivo” do critério é uma arma contra
o preconceito. Porém, o critério subjetivo também possui falhas. Uma delas é a de
que nem todo mundo que afirma estar se sentindo “saudável” apresenta indicativos
contundentes para sustentar a sua visão. O fato é que, para além da necessidade de se
estimular os critérios subjetivos, cumpre destacar também que todos vivemos em uma
sociedade. E isso implica o mergulho na dialética constante entre as visões subjetivas
e as culturais, entre as visões pessoais e aquelas que restam como consensos em
determinados contextos culturais específicos. Do ponto de vista subjetivo, é legítimo
querer avançar um sinal de trânsito; entretanto, do ponto de vista social, é também
legítimo que a coletividade decida que todo aquele que avançar um sinal em um
contexto que coloque os outros em risco deve ser multado. O que mostra que o normal
e o patológico ou desviante são sempre “subjetivos” até certo ponto.

Figura 12. Cartaz de campanha brasileira contra o bullying nas escolas.

Fonte disponível em: <http://www.eccoprime.com.br/arquivos/blog/1434568361_large.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

No oitavo critério encontramos a chamada “normalidade como liberdade”. Segundo


Paulo Dalgalarrondo, nesse critério, “a saúde mental se vincularia às possibilidades de
transitar com graus distintos de liberdade sobre o mundo e sobre o próprio destino.
A doença mental, [aqui,] é constrangimento do ser, é fechamento [e] fossilização das

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

possibilidades existenciais” (Idem, 2008, pp. 33-34). Trata-se de uma visão fortemente
marcada pela influência das filosofias existenciais e fenomenológicas, e que carrega
familiaridade com alguns pontos da normalidade subjetiva e também com a ideia de
“bem-estar”. A “saúde mental”, aqui, é vista como resultado de uma habilidade em
transitar do chamado “senso de realidade” ao senso de humor, conforme as situações da
vida o peçam. O que mostra, também, consonância com os princípios da normalidade
como processo, que já trouxemos anteriormente.

E temos o último critério apresentado por Paulo Dalgalarrondo, que é o da “normalidade


operacional”. É muito parecido com o critério funcional, com a diferença de que aqui a
base não é a função a ser exercida, mas sim a forma como tal ou qual discurso arbitra o
que é necessário para tal ou qual função. É possível que certo tipo de comportamento
não impeça uma determinada funcionalidade, sem que isso impeça que em certa
situação o mesmo comportamento surja como um empecilho, arbitrariamente definido
por uma escolha pragmática específica. Certos tipos de atividades que exigem força
física e que um idoso poderia fazer em uma velocidade mais cadenciada podem ser
classificados como operacionalizáveis apenas por pessoas mais jovens, dependendo da
intenção de quem seja o protagonista da demanda, como, por exemplo, uma empresa
ou órgão público.

É importante compreender como essas diferenças aparecem no interior das construções


da psicanálise, que, como vimos, é a teoria que toma as psicopatologias fundamentalmente
como resultantes de processos psíquicos. Retomando as considerações que fizemos no
tópico anterior, Freud vai classificar a normalidade como um estado no qual o ego escapa
da vergonha e do sentimento de inadequação moral, pela via da construção de uma “defesa”
que substitui a lembrança que poderia causar exatamente o desprazer da vergonha. Ao
contrário, há um estágio “patológico” quando essa substituição não gera o alívio desse
desprazer, convertendo-se, ela própria-substituição, em um evento de desprazer. Como
veremos, essas reações vão desenhar as definições de “neurose” e “psicose”.

Antes, porém, vale frisar que a noção de “normalidade” na psicanálise existe fortemente
vinculada a um sentido de “tradução satisfatória” do desejo. Em outras palavras, é possível
dizer que, para a psicanálise, um estado mental pode ser considerado “normal” se um
evento traumático foi bem ou razoavelmente bem “traduzido”, ou seja, foi “substituído”
para outra forma, a qual minimiza o desprazer ocasionado pela forma original. Freud
afirma que o conhecimento clínico do recalque pode ser explicado como “uma falha na
tradução”, e o motivo dessa falha “é sempre a produção de desprazer que seria gerada
por uma tradução; é como se esse desprazer provocasse um distúrbio do pensamento
que não permitisse o trabalho de tradução” (FREUD, 1892-1899, pp. 141-142, PDF).
A “defesa normal” produziria um desprazer menor em relação ao trauma, porque substitui

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

a forma traumática por outra que tem a vantagem de gerar algum tipo de identificação
com o mundo externo; e a “defesa patológica” seria aquela que não consegue deslocar
o trauma para uma tradução minimizante do sofrimento, gerando, como resultado, o
aumento da angústia, da vergonha e do sentimento de inadequação.

Os sintomas e os transtornos de personalidade


De um ponto de vista específico, a psicopatologia trabalha com critérios bem particulares
de classificação do “normal” e do “patológico”. É possível encontrar exemplos de
comportamentos ligados a todos os critérios citados por Paulo Dalgalarrondo, mas o
fato é que a base das distinções utilizadas pela psicopatologia tem vocação técnica e
científica. Nesse sentido, vale destacar que mesmo os critérios mais “científicos” são
também cercados por profundas influências socioculturais, por vários tipos de idealismo,
por pressões estatísticas e também por certas tendências culturais momentâneas. De
qualquer forma, apontam para aspectos relevantes presentes nos comportamentos
descritos; são também critérios que ganharam peso nos últimos dois séculos; e podem
ajudar a compreender melhor a relação entre “saúde” e “doença” e entre o “normal” e o
“patológico”, além de servirem, igualmente, como um relevante aporte para contribuir
na análise do trânsito e sua crescente complexidade, notadamente nas grandes cidades
urbanas do mundo atual.

Figura 13. A nau dos insensatos (1490-1500). Hieronymus Bosch.

Fonte disponível em: <http://notipoemas.com/wp-content/uploads/2011/01/El-barco-de-los-locos-Hieronymus-Bosch1.jpg>.


Acesso em: 19 jul. 2016.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Como já vimos, uma das mais importantes contribuições da psicanálise de Sigmund


Freud foi a de demonstrar que uma parte considerável das experiências que o século
XIX classificou como “loucura” ou “alienação” ─ e que eram confinadas nos hospícios,
em muitos casos por toda a vida dos pacientes ─ aparece, na verdade, em todos os
seres humanos. Essa modificação de olhar foi uma verdadeira revolução, porque
serviu não apenas para flexibilizar ─ ao menos no campo científico ─ a perseguição
aos pacientes antes classificados como “loucos”, mas, também e principalmente, para
ajudar a alavancar um enorme e novo campo de novas considerações acerca do tema
das chamadas “doenças mentais” e dos comportamentos tidos como “desviantes” dos
padrões.

Basicamente, é possível dizer que existem três grandes campos de investigação


psicopatológica no mundo atual. Dentro desses campos, vamos encontrar um sem-número
de variações, todas elas, entretanto, alicerçadas em uma mesma base. São elas as psiquiatrias;
as psicanálises; e as psicologias.

As formas de psiquiatria partem de uma noção de “doença mental” que é ligada


basicamente ao cérebro como elemento causador dos traumas e/ou como foco norteador
das formas de terapia. Como resultado disso, normalmente o psiquiatra busca a origem
do trauma em algum evento neurológico. Encontrando ou não essa causa orgânica, ou
seja, mesmo que esbarre com uma gênese inevitavelmente psíquica, ele passa para uma
segunda fase, na qual o que vigora é a busca por algum tipo de tratamento terapêutico,
que se caracteriza em primeiro lugar pelo uso dos chamados “psicotrópicos”, conhecidos
pelo símbolo da tarja preta, que carregam junto com os rótulos nas caixas de remédios
vendidas nas farmácias.

Ainda no âmbito da psiquiatria, existem outros métodos, como a chamada


“eletroconvulsioterapia”, mais conhecida como “eletrochoque”. No século XIX, e mesmo
em muitos casos de hospitais psiquiátricos que continuaram funcionando em pleno
século XX, esse método foi usado de forma indiscriminada para “acalmar” as crises
mais acentuadas dos pacientes considerados mais problemáticos. Hoje, ela continua a
ser usada, inclusive nos serviços psiquiátricos públicos, porém reformatada para novos
modos de funcionamento, que trabalham com cargas elétricas diferenciadas para cada
caso.

Outro campo de investigação e atuação sobre as doenças mentais é o das inúmeras


formas de psicologia. Aqui, temos uma infindável miríade de construções teóricas, como
as teorias gestaltianas, psicologias do comportamento, psicologias do ego, psicodrama
e até psicologias de matriz religiosa. Todas elas, entretanto, apresentam um alicerce
comum, ligado ao social como referência de base.

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Isso vai influenciar fortemente a forma como as psicologias constroem a sua visão sobre
como deve funcionar a condução terapêutica. As referências específicas mudam de
teoria para teoria, mas é possível encontrar como figura básica de terapia um processo
que engloba sempre a tentativa de construir um acordo satisfatório entre o desejo e a
adequação social. Por conta disso, existem várias críticas aos campos da psicologia, que
são acusados de reforçar estereótipos e rótulos sociais, sob a justificativa de que devem
atuar sempre no sentido de fortalecer a adequação dos indivíduos ao meio social em
que vivem. Como vimos no tópico anterior, os contextos socioculturais acabam sendo,
em muitas ocasiões, assentos radicais de sustentação estatística das frequências de
comportamento, sustentação essa da qual derivam, em muitos casos, diversas formas
de preconceito e de marginalização de condutas, tidas como “doentes” quando, em
vários contextos, são apenas desvios da norma padrão.

E há ainda outra crítica que é direcionada às psicologias. Por conta de sua base de
raciocínio ligada fundamentalmente à adequação e ao social, elas acabam trabalhando
com os problemas psíquicos como se estes fossem episódios de sofrimento que precisam
ser eliminados da vida do paciente, independentemente de sua complexidade. Em
muitos casos, o que isso gera é a adoção de formas de tratamento que não passam de
simples paliativos, que não fazem mais que esconder a amplitude do problema. Na
aparência imediata a solução surge posta, mas, nesse tipo de prática, a tendência é a de
que o problema volte, porque suas raízes e aspectos mais densos não foram atingidos.

E existem as psicanálises. Do ponto de vista estrutural, como já vimos, a grande virada


da psicanálise está no fato de que passa a enxergar os problemas psíquicos como eventos
fundamentalmente mentais. Nisso ela rompe com a psiquiatria e com a neurologia e
adota um viés que se diferencia também das diversas formas de psicologia, porque o
“social” passa a ser parte do enredamento mental e não uma estrutura absolutamente
independente e absolutamente determinante nos processos. Essa mudança de foco
vai alterar radicalmente as propostas de tratamento e análise, que, na psicanálise,
são tomados como experiências complexas e que não garantem necessariamente um
sucesso na empreitada.

A partir dessas diferenças, vai variar também a ideia que cada um desses campos tem sobre
o que é, por exemplo, um “sintoma”. No geral, essa palavra aparece sempre associada
à ideia de uma “manifestação subjetiva de uma doença” (FERREIRA, 2000, p. 639).
Porém, em cada um desses campos essa ideia vai vir fundamentada em bases diferentes.
Para a visão psiquiátrica padrão, a manifestação da doença é sempre um evento cuja
raiz é somática. Mesmo que a manifestação seja completamente comportamental, a
psiquiatria vai entender que se trata de um substrato comportamental, que esconde em
seu âmago uma causalidade neurológica. Para esse tipo de abordagem, o tratamento vai

41
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

ser sempre medicamentoso – ainda que algumas correntes trabalhem com a terapia ou
a análise como forma de tratamento adjunto.

No caso das psicologias, o sintoma vai ser visto quase sempre como a manifestação
de uma inadequação social. Inclusive quando, por exemplo, ele surgir como uma
“dificuldade de ser feliz”. Nesse caso, como em vários outros, o problema estaria em
não conseguir se adaptar às exigências de felicidade irrestrita que imperam em tal ou
qual sociedade, ou em tal ou qual discurso cultural – como é o caso, por exemplo, com
a retórica da propaganda de mercado, que aparece cada vez mais como um reclame
veemente e sistemático para que todos procurem a felicidade a todo instante, como se
esta fosse um valor inquestionável e de simples elaboração. Nesse contexto, o sintoma
aparece como a manifestação de uma dificuldade de se adequar ao prumo social, seja
ele qual for. As formas de tratamento vão variar no conteúdo, mas partirão sempre
do mesmo pressuposto, qual seja o de que o paciente deve caminhar em direção a
uma solução de conduta que leve em conta a conveniência e a conformidade com a
sociedade, o que em muitos casos não aprofunda o enredo para os seus matizes mais
amplos e complexos.

Figura 14. Um método perigoso (2011), de David Cronenberg. Filme sobre a relação entre Sigmund Freud e Carl

Gustav Jung.

Fonte disponível em: <http://br.web.img3.acsta.net/medias/nmedia/18/89/74/26/20064740.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Com a psicanálise, esse quadro se modifica. As manifestações orgânicas passam a


ser vistas como substratos da estrutura mental, que passa a ser a protagonista dos
processos. O mesmo acontece com as formas de inadequação social e/ou moral. Isso
vai alterar radicalmente a forma como a psicanálise vai enxergar o sintoma e também
o tratamento. Além disso, a própria noção de “doença” se torna mais complexa, porque
a mente humana passa a ser vista como essencialmente problemática, porquanto seja
essencialmente e inevitavelmente dinâmica.

A forma como a psicanálise vê o sintoma está diretamente ligada à forma como Freud
elaborou o seu conceito de “defesa”. Para Freud, os sintomas são mecanismos de defesa
que atuam como protetores da consciência, ou mais especificamente do ego, inibindo o
retorno dos conteúdos que foram recalcados para o inconsciente. Nessa perspectiva, o
sintoma aparece de uma forma ambivalente, porque é uma estrutura que, de um lado,
tenta proteger o ego do desprazer – o que lhe confere certo aspecto “positivo” – e, ao
mesmo tempo, na esteira desse mesmo processo de proteção, acaba, de outro lado, em
vários casos, inibindo uma melhor elaboração do problema que gerou o recalque, ou
seja, a tentativa de proteção.

Para compreender melhor essa complexidade é necessário aprofundar um pouco


mais a forma como Freud entendia a mente humana. Para ele, os processos mentais
são regidos por um enredamento que se dá entre três estruturas fundamentais:
o inconsciente, o ego e o superego. O inconsciente seria o campo onde reina
irrestritamente o “princípio de prazer”, ou seja, o desejo, o instinto; o ego seria uma
parte do inconsciente que foi modificada pelo mundo externo, pela via do sistema
perceptivo; e o superego seria a estrutura de repressão que povoa a mente com o
chamado “princípio de realidade”, que atua para tentar impedir a pulsão desejante que
decorre do inconsciente de atuar de forma irrestrita. Trata-se, aqui, de outro processo
ambíguo, porque, ao mesmo tempo em que reprime o inconsciente, o superego
apresenta ao ego certos elementos de “identificação”, notadamente os paternos, que
servem como mecanismos de adaptação ou “acordo”, que permitem o escoamento
de certas forças libidinais, mesmo e apesar das repressões (FREUD, 1997 [1923], p.
25). É, portanto, uma estrutura que funciona, ao mesmo tempo, como tirania e como
permissão para certos tipos de gozo localizado.

Essas três partes não existem separadas umas da outras, como se pode perceber.
A mente funciona em um confronto constante, porque o material que foi recalcado
está sempre lutando contra esse destino. Já o ego está sempre ali, em uma posição
intermediária e não definida, a receber estímulos desejantes do inconsciente e

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

exigências repressoras ou de acordo do superego. Essa “gangorra” não cessa nem


nos sonhos, como Freud mostrou largamente em seus trabalhos. Sendo assim, o ego
precisa o tempo todo negociar com o superego, para convencê-lo de que o desejo
pode conviver com as leis coletivas e/ou morais; e precisa, também, negociar com
o inconsciente, para criar uma rede de conexões que permita a satisfação de alguns
desejos, sem que isso ultrapasse certos parâmetros, o que evita a experiência de
frustração e flexibiliza a angústia da existência, ao mesmo tempo em que não agride
de forma violenta o superego.

Freud chama essa lógica de acordo entre o desejo e o mundo externo de “sublimação”.
Quando o ego acata os princípios existentes no superego, redirecionando o seu desejo
para substitutivos que sirvam, mesmo que parcialmente, tanto para um quanto para o
outro – desejo de um lado, cultura de outro –, ocorre aquilo que ele classificou como
um processo de sublimação. Ou seja, o ego sublima o desejo em uma forma aceitável
pelo mundo externo, para que possa gozar a satisfação demandada pelo inconsciente,
mesmo que de uma forma temporária, enquanto mantém certa deferência para com a
instância cultural, o superego.

A questão é que em muitos casos esse processo não se dá com essa simplicidade
toda. No senso comum, costumamos dizer que “quem quer agradar a todos, acaba
não agradando a ninguém”. E o fato é que é impossível satisfazer todas as demandas
desejantes do inconsciente, assim como é impossível satisfazer todas as demandas
repressivas do superego. Exatamente pelo fato de que ambos existem, o que impede
sempre que a balança penda apenas para um dos lados. Disso nasce, como se pode
depreender, um cenário deveras conflituoso, dentro do qual podem se desenvolver
estados mais problemáticos, quando a gangorra perde o equilíbrio e a maleabilidade
necessários.

O sintoma, como podemos concluir, é, então, um mecanismo de defesa que existe para
substituir o material mental desejante que foi recalcado por não se adaptar às exigências
do superego. O material recalcado não aceita o recalque e retorna. O ego então cria uma
substituição simbólica, que acaba permitindo a manifestação por uma via figurada.
Essa figuração, que é ao mesmo tempo uma “defesa”, é o sintoma. A forma como essa
substituição/defesa se manifesta vai variar de estrutura mental para estrutura mental.
E essa variação ganhou descrições na história da psicopatologia e, mais especificamente,
na história da psicanálise. Vamos falar agora sobre as duas formas mais importantes, a
neurose e a psicose.

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Figura 15. Freud além da alma (1963), de John Huston. Filme sobre Freud e o nascimento da psicanálise.

Fonte disponível em: <http://br.web.img2.acsta.net/pictures/210/556/21055606_20131106202254712.jpg>> Acesso em: 19


jul. 2016.

A neurose

A noção de neurose aparece pela primeira vez no final do século XVIII, mais
precisamente no ano de 1977. Formulada por um médico escocês chamado Willian
Cullen, essa ideia de neurose buscava representar “um conjunto heterogêneo de
doenças atribuídas a um ataque dos nervos” (POLETTO, 2012, p. 2), em cujo grupo
constavam não apenas as doenças mentais, mas também palpitações cardíacas, cólicas
e hipocondria, dentre outras. Essa indistinção com as manifestações físicas, típica do
período, permaneceria ainda no século XIX, que acrescentaria ao grupo os eventos
psicossomáticos e neurológicos, como por exemplo, o Parkinson e a epilepsia, dentre
outros (Idem, 2012, p. 2).

A história desse termo é reveladora de todos os deslocamentos que a psicopatologia


experimentou no decorrer do seu trajeto como campo de conhecimento. Trata-se
da junção do vocábulo grego neuron, que significa “nervo”, com o sufixo osis, usado
para designar “uma condição doente ou anormal”. Elisabeth Roudinesco e Michel
Plon dizem que a palavra “neurose” surge para preencher uma lacuna que foi deixava
pelos primeiros estudos de cadáveres, as autópsias, que, como já situamos em tópico
anterior, ao analisarem os corpos mortos de pessoas que eram consideradas doentes em
vida, não encontravam uma relação do problema com nenhum órgão (ROUDINESCO;
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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

PLON, 1998, p. 535). Segundo os autores, o conceito de “neurose” cresce, então, a partir
de uma construção nosográfica “pela negativa”, que passa a incluir em seu campo “o
domínio das doenças para as quais a nova medicina anatomopatológica não encontrava
nenhuma explicação orgânica” (Idem, 1998, p. 535).

Isso não significa que as neuroses não fossem consideradas doenças. Eram. Porém,
diante do fracasso das investigações anatômicas, elas permaneciam num espaço
à parte das classificações estratificadas, o que lhes conferia um status único, que
remetia inevitavelmente a um estado de enigma que sustentava a busca científica e o
questionamento das formas tradicionais. E é essa equação que, como vimos, vai gerar
a psicanálise.

Interessante notar que a primeira classificação utilizada por Freud estabelece a


expressão “psiconeuroses de defesa”, em uma clara tentativa de pensar a questão
já articulada com a estrutura psíquica dos pacientes (POLETTO, 2012, p. 2). Nessa
primeira abordagem, Freud distinguia três tipos de psiconeuroses. As primeiras foram
chamadas de “psiconeuroses atuais”: eram transtornos de inadequação social e sua
manifestação sintomática era exclusivamente somática; as segundas eram as chamadas
“psiconeuroses de transferência”, ou “psiconeuroses de defesa”: já influenciado por
suas primeiras formulações sobre a noção de “defesa”, Freud destacava, nesse grupo,
as psiconeuroses que permitiam a abertura para a transferência analítica: as histerias,
as fobias e as neuroses obsessivas; e as terceiras foram chamadas de “psiconeuroses
narcísicas”, ou seja, as “psicoses”, que, para Freud, não seriam passíveis de tratamento,
por não permitirem a transferência (Idem, 2012, pp. 2-3).

Não podemos esquecer também que outra grande contribuição da psicanálise freudiana
foi a de estender os fenômenos tidos como “anormais” a todos os seres humanos, a partir
da generalização da dinâmica oscilatória da condição mental. Isso significa que, de uma
forma ambivalente, a psicanálise pensa a neurose tanto como mecanismo conflituoso
de defesa quanto como uma condição “normal” do psiquismo. Essa ambivalência
desembocou no curioso fato de que, hoje, apesar de continuar portando o sufixo
designador de doença, a neurose não é mais considerada como tal pela Organização
Mundial de Saúde (LOPES, 1988, p. 5). Como veremos no próximo tópico, o estudo da
palavra “psicose” ajuda a esclarecer ainda mais esse tema. Antes, porém, vale entender
melhor o que é a neurose para a mais específica das psicopatologias, a psicanálise.

Com o passar de seus estudos, Freud abandona o termo “psiconeurose” e fica apenas
com a palavra “neurose”. Ela vai designar, a partir daí, os “mecanismos de defesa” que
conseguem gerar uma substituição razoavelmente satisfatória para as frustrações de
base da história psíquica. Em outras palavras, na gangorra que se dá entre o desejo

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

inconsciente, o ego e o superego, do qual já situamos, a forma como o desejo é


reelaborado no âmbito da defesa é que vai definir, primeiro, se há neurose, e segundo,
qual vai ser o tipo de neurose que vai alicerçar aquela estrutura psíquica.

A partir daí, Freud vai dizer, então, que existem três tipos de neurose, os mesmos tipos
que já constavam da formulação inicial, como psiconeuroses de transferência: a neurose
obsessiva, a neurose histérica e a neurose fóbica.

Essas três neuroses partem do mesmo esquema que já foi desenvolvido quando
falamos da noção de “defesa”: há um evento traumático de base; esse evento causa
um sentimento de desprazer; a mente recalca esse evento, substituindo-o por uma
figuração; e então, se a defesa falha e ela não consegue mantê-lo afastado da lembrança,
o recalcado retorna e está configurada a neurose. Entretanto, há variações nessa
equação. Vamos conhecê-las agora.

Figura 16. Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), de Woody Allen. Filme que traz elementos para pensar as

neuroses mais comuns.

Fonte disponível em: <http://www.cinemaniaco.com.br/wp-content/uploads/2010/11/noivo-neurotico-noiva-nervosa.jpg>.


Acesso em: 19 jul. 2016.

A neurose obsessiva parece ser a forma mais bem-sucedida de defesa. Para se proteger
do risco do retorno do conteúdo traumático recalcado, o neurótico obsessivo decalca na
face das exigências do superego a aparência de um objeto de desejo. Isso não elimina
totalmente a angústia, porque as limitações e restrições inevitáveis do ego permanecem.
Mas permite uma diminuição significativa do desprazer e uma dinâmica quase sempre
satisfatória de acordo entre a proibição e o gozo. Por conta disso, o obsessivo quase
sempre consegue adequar o seu desejo aos costumes sociais e as regras culturais ao seu

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

desejo. O sintoma obsessivo não é uma garantia absoluta contra o retorno do recalcado,
porque os acasos da vida muitas vezes suplantam qualquer tipo de previsão ou projeto.
Mas o fato é que a neurose obsessiva parece ser a forma mais adaptada de defesa entre
as neuroses.

No caso da neurose histérica acontece o processo inverso da obsessão. Na grande


maioria das vezes, as histéricas não conseguem decalcar na face das exigências do
superego a aparência de um objeto de desejo que lhes satisfaça. Isso acarreta em que
nenhum objeto substituto substitui de fato a angústia por uma aparência de satisfação.
Por conta disso, a defesa das histéricas vai ser muito mais “psicossomática” do que a
dos obsessivos, ou seja, vai ser mais pautada pela insatisfação e pela dificuldade de
controlar os movimentos físicos do que no outro caso. Isso torna mais difícil para a
histeria negociar com a proibição, o que aumenta consideravelmente o risco de fracasso
da defesa, especialmente se o superego for muito rígido, como nos casos das culturas
mais conservadoras. Nesses casos a histeria tende a ser mais severa e o número de
episódios de crise tende a ser maior. Além disso, o modo de funcionamento da histeria
pode ser visto, também, como uma espécie de “contradiscurso” das estruturações
superegóicas, na medida em que essa insatisfação permanente tende a confrontar o
excesso de proibições que eventualmente esteja presente em tal ou qual cultura.
É possível perceber facilmente esse enredo nos casos em que os movimentos “feministas”
ganharam voz e destaque na história.

E há a neurose fóbica. Neste caso, o cenário é ainda mais complicado. Acontece uma
fobia quando a substituição que recalca o evento traumático traz à cena uma nova
forma igualmente traumática. Isso porque a tendência, nesse caso, é a de que o símbolo
substituto gere tanta angústia quanto o retorno do conteúdo recalcado. O enredo passa
exatamente pelo fracasso da substituição, que, ao invés de gerar uma negociação do
desejo com o superego por meio de uma figuração razoavelmente satisfatória, dá origem
a uma situação tão angustiante quanto a primeira. O resultado é o de que o fóbico luta
para evitar tanto o trauma inaugural quanto a sua substituição, não encontrando, assim,
vazão para as suas angústias. No fundo, essa “compatibilidade” entre o trauma primeiro
e a substituição tem a mesma aparência do fracasso histérico e do fracasso obsessivo,
ou seja, a de não permitir que o psiquismo minimize a angústia. A diferença básica na
fobia é simplesmente a de que esse fracasso se dá como substituição do trauma pelo
medo. O fóbico se defende fugindo, pela via do medo. Uma fuga que não é nem mais
do trauma inicial, mas sim da construção simbólica que o substitui. E assim, a libido,
na fobia, é liberada como angústia e não como negociação entre o desejo e o superego.

A psicose

O termo “psicose” aparece bem depois de “neurose”. Cunhado no ano de 1845, foi
elaborado pelo médico, filósofo e poeta austríaco Ernst Von Feuchtersleben, como

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

parte de um livro chamado Tratado médico das manifestações anímicas. Neste


trabalho, Feuchtersleben propõe, dentre outras coisas, que se destaque as neuroses
das psicoses, e que se utilize este segundo termo para designar, de uma maneira geral,
as “doenças do espírito” (POLETTO, 2012, p. 3), em substituição ao termo “loucura”.
O autor sugeria que toda psicose seria também uma neurose, porque exigia a via nervosa
para a manifestação do problema psíquico. E colocava, também, que o oposto não seria
verdadeiro, porque nem toda neurose desembocaria, necessariamente, em uma afecção
da alma (MENDONÇA, 2012, p. 9).

Segundo Michele Poletto, o surgimento do conceito de “psicose” é um marco que faz


parte do movimento de transformação gradual do discurso psiquiátrico do século XIX,
que migrava, aos poucos, do organicismo estrito para a constituição de um domínio
autônomo das doenças mentais (POLETTO, 2012, p. 3), movimento esse que, como
vimos, desembocaria na psicanálise de Sigmund Freud. A autora frisa que o objetivo de
Feuchtersleben era separar as doenças mentais das enfermidades dos nervos e também
das do corpo de uma maneira geral (Idem, 2012, p. 3). Por isso a criação de uma palavra
tão nitidamente específica, já que “psicose” vem do grego psykhosis, que une psykhé,
que significa “mente, alma, espírito”, com o sufixo osis, que, como também já vimos,
representa a ideia de uma “condição anormal”.

Figura 17. Psicose (1960), de Alfred Hitchcock. Filme que retrata alguns elementos que podem ser relacionados ao

comportamento psicótico.

Fonte disponível em: <http://br.web.img3.acsta.net/medias/nmedia/18/92/64/59/20210517.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Para a psicanálise, o conflito psíquico que deflagra as neuroses e as psicoses é o mesmo:


um evento traumático original, que remete a uma experiência de desprazer, que dá
origem a uma tentativa de recalque e substituição, o que depois desemboca em uma
tentativa de acordo entre o inconsciente e o superego. Como se sabe nada garante o
sucesso dessa equação. E é então que, diante do fracasso da substituição e subsequente
retorno do recalcado, as crises aumentam de intensidade, deflagrando um quadro que
passa, a partir daí, a ser tratado como patológico.

Entretanto, no interior de sua elaboração da psicanálise, Freud vai estabelecer uma


distinção fundamental entre as duas. Em todos os casos de neurose, o fato principal
reside na tentativa que o ego faz de estabelecer um acordo entre o inconsciente e o
superego. Um acordo que, obviamente, nunca se dá por completo, mas que acha certas
válvulas de escape pontuais, que comparecem na forma de substituições razoavelmente
bem-sucedidas. A questão é que essa descarga, que na neurose obsessiva surge
como a aparência de um objeto de desejo decalcada nas exigências do superego; que
comparece de forma fortemente somática na histeria; e que emerge como medo na
fobia; simplesmente não acontece na psicose.

Cabe então a pergunta: se para Freud ambas, neurose e psicose, são mecanismos de
defesa, como se dá a “defesa” na psicose, se não há acordo? A resposta encontrada pelo
criador da psicanálise foi a seguinte: diante de um evento traumático, que envolve a
perda de algo, o que faz o ego quando se deflagra uma psicose? Ele constrói de forma
independente um “novo mundo externo” e um “novo mundo interno”. Isso significa, em
outras palavras, um rompimento radical com aquilo que Freud chamou de “princípio
de realidade” e que reina no superego. Como afirma Michele Poletto, na psicose, “o
sujeito não toma conhecimento da realidade externa, [ele simplesmente] não a percebe”
(POLETTO, 2012, p. 9). Isso porque sua resposta aos impedimentos intoleráveis da
realidade se dá a partir de uma reconstrução dessa mesma “realidade”, entretanto
dissociada do chamado “mundo externo”. O oposto do que ocorre nas neuroses, que
tomam o superego como referência intermitente para a tentativa da construção de um
acordo.

Essa diferença fundamental levou Freud a considerar a psicose um evento praticamente


“incurável” – a partir, é claro, de seus critérios de “normalidade”, como já colocamos.
O motivo estaria no fato de que, diante da desconexão com a “realidade”, o trabalho de
transferência da análise restaria impossibilitado, porque, no caso, residiria exatamente
no psicanalista a figuração do superego que exercitaria a tentativa de trazer o trauma
à tona. Como a psicose não leva o “princípio de realidade” em consideração, não faria
sentido a tentativa de análise, porque a figuração não se construiria na pessoa do
analista.

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Apesar de chegar à conclusão de que a psicose é incurável, Freud não considerava que
as respostas dos psicóticos fossem meros delírios ou simples alucinações. Depois de
várias observações clínicas, o fundador da psicanálise perceberia, naquilo que grosso
modo era considerado um destacamento absoluto do dito “mundo real”, na verdade
uma tentativa de reelaboração da situação traumática, que, se em muitos casos
apresentava contornos altamente incomuns, não deixava de ser, a seu modo, uma
forma de reconstrução (Idem, 2012, p. 9).

A divisão que Freud estabelece entre um “princípio de realidade”, no superego, e um


“princípio de prazer”, no inconsciente, vai ser reformulada pelo psicanalista francês
Jacques Lacan, especialmente a partir da década de 1950, quando ele estabelece sua tese
sobre os três registros essenciais da realidade humana, o real, o simbólico e o imaginário
(CLAVURIER, 2013, p. 1). Influenciado pela linguística e pelo estruturalismo, Lacan vai
dizer que a mente humana se estrutura por meio de uma lógica regida pelo significante
e pelos significados, que comparecem como “simbólico” pela via da assimilação cultural
e como “imaginário” pela via das construções subjetivas, restando sempre um “real”
que acaba sendo impossível, porquanto sempre escape a qualquer possibilidade de
simbolização.

Figura 18. Edição brasileira do Seminário 3 de Jacques Lacan, sobre as psicoses (1955-1956). Publicada no Brasil

no ano de 2008.

Fonte disponívele em: <http://statics.livrariacultura.net.br/products/capas_lg/339/160339.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

A forma como Lacan vai enxergar as psicoses não difere tanto assim da de Freud. Há
o mesmo evento traumático de base, uma tentativa de defesa e recalque e o insucesso
da empreitada. A diferença é que, se em Freud o que escapa do psicótico é o “princípio
de realidade”, em Lacan, como este ─ o “real” ─ resta impossível, o que escapa é, na
verdade, uma parcela fundamental do simbólico, que ele chama de “Nome-do-pai”. Em
outras palavras, para Lacan, o que se passa é que “previamente a qualquer articulação
simbólica haveria uma etapa em que uma parte da simbolização não se efetivaria na
psicose” (GUERRA, 2010, pp. 28-29). O resultado é que, “na psicose, algo de primordial
quanto ao ser do sujeito não ganha representação, sendo, antes, rejeitado, foracluído”
(Idem, 2010, p. 29).

Segundo Andréa Guerra, a partir dessa visão, fortemente baseada no significante, Lacan
vai enxergar, então, a psicose como um evento de “foraclusão do significante primordial
que veicula a Lei e a condição do desejo, e que ele denomina de significante Nome-do-pai”
(Idem, 2010, p. 30), que não é outra coisa senão o superego freudiano, reformatado pelo
registro ternário do real, simbólico e imaginário.

Dessa forma, ao invés de dizer que o psicótico “não reconhece a realidade”, o que Lacan
coloca é que, na psicose, o “real” se inscreve no inconsciente, através do furo deixado
pela foraclusão do chamado “Nome-do-pai”, e passa a coincidir com ele-inconsciente.
É bom lembrar que, para Freud, o “princípio de realidade” reside no superego, enquanto
que, para Lacan, o “real” é o impossível, diante da hegemonia do simbólico. E então,
se a base da tese lacaniana está no simbólico, é exatamente ele, ou seja, é exatamente a
representação simbólica enquanto acordo entre o sujeito e a linguagem cultural, que não
“se realiza” na psicose. O que sobra, então? “O nível imaginário não se remete ao campo
simbólico que desenharia seus contornos, assim como o real não estaria aí costurado,
ficando o inconsciente a céu aberto” (Idem, 2010, p. 34). Ou seja, a ausência estrutural
do chamado “Nome-do-pai” acarreta, como efeito psicótico, “uma coincidência entre os
campos do imaginário e do simbólico” (Idem, 2010, pp. 34-35).

Importante frisar que, assim como Freud, Lacan não enxergava as formulações
psicóticas como simples delírios, mas sim como tentativas de estabilização da angústia.
Em outras palavras, aquilo que normalmente era tomado como um delírio, Lacan via
como um processo de reelaboração da situação conflituosa, por meio da construção de
metáforas cujo papel seria, assim sendo, o de substituir a metáfora paterna ausente,
em sua função de nomeação e de escrita de si, por outra amarração que venha a dar
conta de minimizar o sofrimento (Idem, 2010, p. 36). Isso abriu espaço inclusive para
a proposta de Lacan de uma clínica da psicose.

De modo geral, o grupo das psicoses é formado por três tipos de sintomas: a paranoia;
a melancolia; e a esquizofrenia. Cada uma delas possui características específicas e vale

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Conceitos Gerais │ UNIDADE I

a pena comentá-las brevemente, sempre tendo em mente, para efeito de articulação, as


bases freudianas e lacanianas das quais mencionamos, que remetem ao esquema do evento
traumático, seguido da tentativa de se produzir uma defesa e um recalque e o fracasso
dessa tentativa, que acarreta no retorno do furo, ou seja, da chamada “foraclusão”.

O conceito de “paranoia” surgiu no ano de 1842, introduzido pelo médico alemão


Johann Christian August Heinroth (1773-1843). Trata-se da junção dos termos gregos
para, “ao lado, além”, e noos, “mente”, que tem, claramente, a função de representar a
ideia de uma mente que se posta “ao lado”, ou seja, “além” da normalidade, portanto,
“foracluído” dela.

O principal traço da paranoia reside na construção de um complexo “sistema delirante”


(ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 573), no interior do qual se desenvolvem outras
formas de alucinação, em especial formas de “delírio de grandeza, de perseguição, de
interpretação e de autoerotismo”, além de “uma defesa contra a homossexualidade”
(Idem, 1998, p. 573) e “delírios de ciúme” (Idem, 1998, p. 572). Além disso, atua também
um mecanismo de “projeção”, que tem a função de rechaçar a ideia que é incompatível
com o ego para fora, ou seja, para o “mundo externo” (BELL, 2005, p. 16). Na perspectiva
lacaniana, a paranoia vai ser vista como uma espécie de “onipotência do imaginário”,
desconectada de qualquer relação com o simbólico. O que, como já frisamos, não
significa que nem Lacan nem Freud enxergassem na paranoia um estado de loucura
absoluta. Ao contrário, destacavam que o que muitas vezes era traduzido como uma
alucinação pura e simples acabava sendo, na verdade, a tentativa de reelaboração do
conflito. Freud conclui, nesse sentido, que “a formação delirante, que presumimos ser o
produto da patologia, é na realidade uma tentativa de reestabelecimento, um processo
de reconstrução” (FREUD, 2002 [1911], p. 87).

Figura 19. Melancolia (2011). Filme de Lars von Trier.

Fonte disponível em: <https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn:ANd9GcRE76gxfTkRmFt1zvC9B8KdEpJo-FB4e0dQeaI_


Jf4gGpsELecz>. Aceso em: 19 jul. 2016.

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UNIDADE I │ Conceitos Gerais

O termo “melancolia” é bem mais antigo e remonta à teoria dos humores de Hipócrates,
do século V a.C., e aos textos de Platão e Aristóteles. Produto da união dos termos gregos
mélas, “negro”, e chole, “bile”, a melancolia dos antigos era curiosamente associada a
comportamentos de excitação extrema, comparados ao estado de embriaguez do vinho,
que fragilizava as defesas, para revelar traços grosseiros da personalidade da pessoa, ou
então para fazê-la agir de forma completamente diferente daquela habitual (LAMBOTTE,
2000, p. 33). Entretanto, havia também a percepção da “inibição” como um fator
constitutivo do estado melancólico. Esse fator, que já comparecia nas considerações
gregas, foi assimilado pelos medievais, pelo Renascimento e pelo Romantismo, que
passaram a associar a tristeza, a preguiça, o ócio, o tédio, a negligência e a indiferença
ao rol de aspectos constituintes da melancolia (Idem, 2000, p. 59). Roudinesco e Plon
colocam que desde a teoria hipocrática dos quatro humores já havia a descrição desses
sintomas, que incluíam ânimo entristecido, sentimento de um abismo infinito, extinção
do desejo e da fala, impressão de hebetude, seguida de exaltação, além de atração
irresistível pela morte, pelas ruínas, pela nostalgia e pelo luto (ROUDINESCO; PLON,
1998, p.506).

Essa mescla entre a exaltação e a inibição vai gerar a visão moderna da melancolia
como um estado de alternância entre a mania e a depressão (Idem, 1998, p. 506).
Freud não faz opção radical por nenhum dos dois lados, mas elabora sua visão sobre
o assunto, por meio da qual se aproxima-a do luto, ou seja, da ideia de um pesar por
alguma coisa perdida. Em outras palavras, para o inventor da psicanálise, o estado
melancólico é uma resposta da mente a uma perda qualquer importante, acompanhada
de uma regressão da libido para o ego, na qual este aparece como vítima de uma forte
inibição momentânea, que se origina de uma identificação prévia que o ego tinha para
com o objeto perdido, abruptamente cortada pela perda (FREUD, 2011 [1917], p. 85).
Nesse contexto, a melancolia parece ser um estado de “hibernação”, através do qual
o ego busca refúgio quando se sente órfão de uma identificação qualquer. O grande
problema reside no fato de que há uma tendência anestesiante na lógica da melancolia,
que dificulta bastante o desenvolvimento do trabalho de luto ─ e, de quebra, também
a análise. É uma ambivalência e um risco aparentemente inescapáveis, porque, ao que
parece, toda grande perda pressupõe esse estado de “entorpecimento” do ego, antes de
qualquer trabalho forçado de luto.

E há, por último, a esquizofrenia. É o conceito mais recente dos três e surge no ano
de 1911, cunhado pelo psiquiatra suíço Eugen Bleuler, a partir da junção dos termos
gregos schizen, “clivar, fender”, e phrenós, “pensamento”, para gerar o sentido de um
rompimento da capacidade de articulação intelectual por parte da pessoa afetada.
Dentro do rol de sintomas desse estado mental podemos encontrar uma incoerência
radical do pensamento, da afetividade e da ação, bem como “atividade delirante” e,

54
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

em alguns casos, o chamado “ensimesmamento” ou “autismo” (ROUDINESCO; PLON,


1998, p. 189).

Em verdade, a esquizofrenia é a descrição moderna daquilo que os psiquiatras do


século XIX denominavam “demência precoce” e na qual identificavam um processo
patológico que imobilizava subitamente todas as faculdades mentais da pessoa (Idem,
1998, p. 189). Vários sintomas adjuntos são descritos, como as “alucinações”, o “falar
sozinho”, “desorientação espaço-temporal”, “confusão”, “amnésia” (Idem, 1998, p. 189)
e “inadaptação radical ao mundo externo” (Idem, 1998, p. 190).

Tudo indica que a chamada “esquizofrenia” seja o estado extremo do que a psiquiatria
convencionou denominar como “doença mental”. Isso implica em alguns pontos
importantes. Em primeiro lugar, apesar de ser considerada incurável por várias
abordagens, a esquizofrenia é investigada, também, como um estado avançado de
mentalidade estética. Muitos autores, como Karl Jaspers, ponderam que os eventos
esquizofrênicos estão na raiz de muitas das grandes produções filosóficas e artísticas
da história da humanidade, como nos trabalhos de Friedrich Hölderlin (1770-1843),
Vincent van Gogh (1853-1890) e August Strindberg (1849-1912) (Idem, 1998, p. 191).
Além destes, Michel Foucault cita ainda o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) e o
dramaturgo e ator Antonin Artaud (1896-1948) como exemplos de gênios que passaram
por períodos de esquizofrenia que foram fundamentais para sua produção intelectual.

Outro ponto, é o de que vivemos hoje, uma certa prevalência do discurso farmacológico,
alicerçado em um poder cada vez maior da indústria farmacêutica, e que acaba
empurrando a visão do tratamento da esquizofrenia quase sempre para a estrita
utilização de medicamentos psicotrópicos. É uma tendência que deve ser constantemente
repensada e posta em questão, diante de sua complexidade.

55
Capítulo 2
A lei seca

No dia 19 de junho de 2008, o então presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva
sancionou a Lei no 11.705, que ficaria conhecida, a partir de então, pelo mapelido de “Lei
Seca”. O objetivo da lei era o de intensificar as medidas restritivas e punitivas ligadas
às pessoas que eventualmente dirigissem embriagadas, ou seja, sob o efeito de bebidas
alcoólicas.

Dentre outras medidas, o texto da lei destaca a intenção das instituições públicas de
lutar pelo estabelecimento de uma lógica de “alcoolemia zero” no trânsito brasileiro
e de “impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência do
álcool” (LEI SECA). Além disso, passa a obrigar os estabelecimentos comerciais que
vendem bebidas alcoólicas a estamparem, no interior de suas dependências, avisos
que alertem a população consumidora sobre os riscos penais decorrentes da direção
embriagada – estabelecendo uma multa de mil e quinhentos reais aos comerciantes que
não cumprirem a determinação.

Em seu art. 165, o texto da Lei Seca define ainda que a direção sob a influência de álcool
ou qualquer outra substância psicoativa que gere dependência deve ser classificada
como uma “infração gravíssima”, de acordo com as normas do código de trânsito
brasileiro, sendo passível de multa e suspensão do direito de dirigir por doze meses.

Figura 20. Blitz da Lei Seca.

Fonte disponível em: <http://www.4md.com.br/img_noticia/balao_lei_seca.jpg>. Acesso em: 18 jul. 2016.

56
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

Como veremos quando estudarmos a questão do alcoolismo, a concentração de álcool


no sangue acarreta em diminuição de uma série de potencialidades do ser humano.
Essa é, historicamente, uma das maiores causas de acidentes de trânsito, em todo o
mundo. E como já citamos na introdução de nossa apostila, nas últimas décadas, com o
aumento do número de veículos nas ruas das grandes cidades e nas rodovias, o número
de acidentes também acabou aumentando, o que chamou a atenção das instituições e da
população em geral para a necessidade da criação de medidas de contenção e prevenção
desses acidentes. A Lei Seca é uma delas.

Segundo Regina Martins e outros, a introdução de medidas legais para coibir a relação
entre o uso do álcool e o trânsito não é uma novidade brasileira. Já vem sendo utilizada em
vários outros países, como por exemplo o Japão, o Reino Unido, o Canadá e a Holanda,
dentre outros (MARTINS e outros, 2013, p. 3). Vários estudiosos internacionais, como
Hitosugi, Imai e outros, apontam para o fato de que essas medidas têm sido muito
eficazes no sentido de diminuir radicalmente a incidência de acidentes de trânsito
relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas. Essa redução é associada, na imensa
maioria dos casos, a um quadro complexo de medidas articuladas, que comporta, em
seu interior, a proibição legal, conectada ao aumento do rigor nas punições, multas
e prisões, e também ao aumento das pesquisas e medidas socioeducativas que se
orientem no sentido de prevenir e informar a população e os condutores sobre os riscos
da direção imprudente ligada ao álcool.

A Lei Seca vem sendo aperfeiçoada aos poucos. No início, a única forma de identificar
as quantidades proibidas de álcool no sangue dos condutores era através do conhecido
“bafômetro” e das dosagens sanguíneas dos níveis alcoólicos. Algumas mudanças
recentes ampliaram essas possibilidades, e hoje vários outros meios são aceitos para
comprovar a embriaguez do motorista, como, por exemplo, o testemunho dos policiais,
fotos, vídeos, relatos de outras testemunhas e testes clínicos, dentre outros (Idem, 2013,
p. 4). São alterações e aperfeiçoamentos que ampliam as possibilidades da lei, em sua
intenção de diminuir o número de acidentes.

Figura 21. Bafômetro usado nas blitz da Lei Seca.

Fonte disponível em: <http://portalmedquimica.com.br/images/noticias/thumbnails/Lei-Seca-Teste-do-Baf_metro_600x2000.


jpg>. Acesso em: 18 jul.2016.

57
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

Figura 22. Slogan de propaganda da operação da Lei Seca.

Fonte disponível em: <http://www.dicasdotimoneiro.com.br/wp-content/uploads/2013/02/Opera%C3%A7%C3%A3o-Lei-Seca2.


jpg> Acesso em: 18 jul.2016.

E os números mostram que ela tem conhecido êxito nessa empreitada. Vários estudos
têm sido feitos para avaliar os efeitos e resultados da aplicação da lei seca e todos eles
mostram algum tipo de queda no número de acidentes envolvendo o consumo abusivo
de álcool. Um dos levantamentos foi feito pelo Ministério da Saúde, já no ano de 2010,
dois anos depois do surgimento da lei. Segundo esse levantamento, “houve queda, em
média, de 6,2% nos índices de morte no trânsito, em todo o país” (SALGADO e outros,
2011, p. 2).

Outro estudo comparativo foi feito em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre os anos de
2005 e 2009. Ele é relevante porque é possível confrontar dados anteriores ao advento
da lei seca com outros posteriores à sua implantação. Segundo a verificação, feita por
uma parceria entre a Associação Brasileira Comunitária para Prevenção do Abuso de
Drogas e a Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas do Departamento de Psiquiatria
da Universidade Federal de São Paulo, se em 2005 os motoristas que apresentaram
taxa zero de álcool no sangue eram 61,8%, em 2009 esse número cresceu para 83,3%,
em uma redução significativa, causada pelo aumento do rigor na legislação (Idem,
2011, p. 3).

E há ainda uma reportagem mais recente, realizada neste ano de 2016, e que dá conta de
outros dados. Segundo o repórter Luciano Nascimento, da Agência Brasil, em matéria do
dia 11 de fevereiro deste ano de 2016, dados fornecidos pela Polícia Rodoviária Federal
mostram que o número de acidentes de trânsito e de mortes causadas pelo uso de álcool
tem diminuído. Em 2012, foram registrados 7594 acidentes no Brasil; esse número caiu,
em 2014, para 7391. o número de mortes também teve queda, de 5%, diminuindo de

58
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

42266 em 2013 para 40294 em 2014. Um dos principais fatores atribuídos a essa queda
é o do aumento do valor das multas, que, no caso da direção embriagada, passou a ser
de 1915,30 reais, o que ajuda a inibir ainda mais as condutas imprudentes no trânsito.
Segundo a reportagem, a queda nos números ainda é gradual, mas já demonstra uma
tendência, que deve ser reforçada pela manutenção da rigidez, associada ao crescimento
de novas medidas e campanhas socioeducativas (NASCIMENTO, 2016).

59
Capítulo 3
Comportamento de risco no trânsito

A Lei Seca surge como uma iniciativa voltada para a tentativa de diminuir o número de
acidentes que envolvem o uso de bebidas alcoólicas e demais substâncias do gênero.
Esse tipo de comportamento faz parte de um grupo de atitudes que normalmente são
classificadas como “comportamentos de risco”.

Assim como acontece com o caso da relação entre o álcool e a direção, no geral são feitas,
também, várias pesquisas voltadas para uma melhor compreensão acerca dos vários
fatores que contribuem para tornar o trânsito mais perigoso ou não. Essas pesquisas
são realizadas em todo o mundo e buscam avaliar o máximo de elementos possíveis que
estejam relacionados com o tema.

E trata-se, como claro fica, de um tema fundamental e urgente. Hoje já sabemos


que mais de 90% dos acidentes de trânsito são resultados de consequência de falhas
humanas, enquanto que apenas 10% envolvem falhas mecânicas, condições ambientais
adversas ou problemas com a manutenção das vias (PANICHI; WAGNER, 2006, p. 1).
É um número muito expressivo, o que demanda que se busque entender de forma mais
ampla a dimensão da questão.

Renata Panichi e Adriana Wagner chamam a atenção para o fato de que o comportamento
das pessoas no trânsito é sempre “multideterminado”, ou seja, é sempre o resultado
de uma série de elementos e aspectos entrecruzados. Dentre esses aspectos podemos
destacar um conjunto de variáveis individuais, comportamentais, sociocognitivas,
ambientais, sociais, e mesmo políticas, como é o caso com a já citada Lei Seca (Idem,
2006, p. 2). Em todos esses casos, temos elementos que contribuem para aumentar
ou diminuir o risco dos acidentes no âmbito do trânsito, especialmente nas grandes
cidades.

Dentre as causas comportamentais mais comuns que envolvem acidentes no trânsito


estão todas as psicopatologias que mencionamos e estudamos nos tópicos anteriores.
Quando uma pessoa decide dirigir atormentada por algum tipo de patologia psíquica,
ela faz uma escolha arriscada, que pode comprometer funções fundamentais exigidas
para o ato de controlar e dirigir um veículo automotivo.

Podemos encontrar um dos exemplos mais evidentes desse tipo de situação quando
a pessoa decide dirigir durante uma crise de estresse. Várias funções importantes,

60
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

como a percepção, a atenção, a capacidade de decisão, a paciência e a habilidade para


processar e articular várias informações ao mesmo tempo – sinais, outros veículos,
pedestres, placas etc. ─ fica radicalmente prejudicada. Nesses casos, configura-se, de
forma evidente, um exemplo típico de comportamento de risco.

Ainda que seja um ponto delicado da questão, porque trabalha com estereótipos e
rótulos, o fato é que existem, também, perfis que se apresentam como mais propensos
aos comportamentos de risco. Pesquisas apontam que os homens protagonizam muito
mais acidentes do que as mulheres, assim como os jovens em relação aos mais velhos.
O risco, nesses casos, se apresenta através da busca que os jovens do sexo masculino
empreendem por novas e estimulantes sensações, o que transforma o risco em algo
mais tolerado. Para ampliar a quantidade de estímulos excitantes no trânsito, os jovens
tendem a ser menos rigorosos e menos cuidadosos, o que contribui ainda mais para o
aumento dos riscos (Idem, 2006, p. 2).

Figura 23. O celular, um dos maiores inimigos da conduta segura ao volante.

Fonte disponível em: <http://www.4md.com.br/img_noticia/celular11.jpg>. Acesso em: 18 jul.2016.

É importante citar ainda os chamados aspectos “macrossociais”. Vivemos na era da


propaganda ostensiva. E no caso dos veículos, ficamos diante de um cenário dos mais
ambíguos: por um lado existe a lei, que acena com punições severas para aqueles que
infringem as regras estabelecidas para o trânsito; entretanto, na outra ponta, aparece
a propaganda, com seus inúmeros estímulos ao gozo sem limites, que, no caso da

61
UNIDADE I │ Conceitos Gerais

indústria automobilística, se materializa, dentre outras coisas, no incentivo incessante


à velocidade, alicerçado em um forte investimento no aspecto lúdico do veículo,
minimizando, no mesmo processo, as funções burocráticas do objeto de consumo.
É algo que faz parte do enredo. Porém, esses fatores devem ser levados em conta
na perspectiva de outros eventos macrossociais, como por exemplo, as campanhas
educativas utilizadas para fomentar uma postura mais cuidadosa no trânsito.

Existem outros fatores que aparecem nas estatísticas e que devem ser considerados com
atenção pelas campanhas educativas. Dentre eles podemos verificar, por exemplo, uma
maior incidência de acidentes durante a noite e durante os finais de semana, quando
aumenta, também, o consumo de bebidas alcoólicas e outras drogas. Um outro dado
curioso, apontado por Regina Panichi e Adriana Wagner, está no fato de que a presença
de outros passageiros no veículo também é um fator de risco, especialmente se esses
outros não são os pais do condutor, mas sim amigos ou afins. Segundo as autoras, “os
jovens conduzem de maneira mais arriscada quando os passageiros são seus amigos e
de maneira mais prudente quando os passageiros são seus pais” (Idem, 2006, p. 4).

O caso de sucesso da Lei Seca mostra que é possível articular medidas preventivas que
auxiliem a minimizar os riscos relacionados ao trânsito. Mas essas medidas não podem
ficar restritas ao âmbito jurídico. Elas devem atingir a conscientização das famílias
e também das escolas e dos meios de comunicação de massa, que, juntos, podem
desenvolver campanhas que sirvam para mobilizar a população, principalmente os
jovens – que estão no topo dos grupos de risco –, a um trânsito mais prudente e mais
inteligente.

Esse é, também, um dos principais objetivos deste curso, que, através do estudo
aprofundado das principais psicopatologias, e de sua relação com os problemas que se
originam no seio do trânsito brasileiro e mundial, tem a intenção de formar profissionais
que possam acrescentar ao seu conjunto de conhecimentos as habilidades suficientes
para avaliar as situações de risco com mais clareza e complexidade.

Apesar de existirem grupos de risco mais propensos aos acidentes, o fato é que o risco
é inescapavelmente universal. Quem dirige sabe que um milésimo de desatenção pode
ser fatal; que um breve período de sonolência causado pelo consumo de álcool pode ser
suficiente para acabar com uma vida; enfim, que a direção não combina com as falhas
que podem decorrer de um temperamento afetado por algum tipo de estado alterado, ou
pelas distrações habituais, como é o caso com os aparelhos celulares. O comportamento
de risco está sempre à espreita, pronto para gerar um acidente, muitas vezes fatal.

62
Conceitos Gerais │ UNIDADE I

E essa realidade deve estar sempre presente na percepção de todos os condutores, para
que os perigos diminuam, junto com os acidentes.

Figura 24. As placas de trânsito são fundamentais para a prevenção dos riscos no trânsito.

Fonte disponível em: <http://imagemsinalizacao.com/imgs_produtos/grand/6403169.jpg> Acesso em: 18 jul.2016.

63
Quadros e
transtornos
psicopatológicos e Unidade ii
suas repercussões na
Psicologia de Trânsito

Capítulo 1
Transtorno de ansiedade

A palavra “ansiedade” deriva dos termos latinos anxietas, que significa “angústia”,
anxius, “perturbado, carente, pouco à vontade”, e anguere, “apertar, sufocar”. Na
Ilíada, de Homero, no distante século VIII a.C., já podemos encontrar a descrição
daquilo que o poeta chama de “estados ansiosos”. Esses estados, que incluíam medos,
fobias e formas diversas de angústia, eram atribuídos, então, a visitas ou intrusões de
deuses no comportamento das pessoas (VIANA, 2010, p. 18).

O termo passaria por várias modificações contextuais durante a história, mas apenas
no final do século XIX ganharia uma formulação científica. Durante o desenvolvimento
da psiquiatria e das discussões acerca das bases científicas para estabelecer critérios
específicos para definir as patologias, durante o século XIX, os fenômenos de ansiedade
foram amplamente descritos e estudados por diversos autores. Nesse ínterim, foram
relacionados a alguns conceitos fundamentais para a história das ciências da mente,
como a “neurose”, a “neurastenia”, a “hipocondria”, a “melancolia” e a “histeria”
(Idem, 2010, pp. 21-22). Entretanto, é com os trabalhos de Sigmund Freud que o
termo ganha contornos mais nítidos. Ao estudar os aspectos que julgava patológicos
na ansiedade, Freud separou a ‘Angstneurose’ (traduzida como ‘neurose de angústia’
ou ‘neurose de ansiedade’) da neurastenia, e a ansiedade crônica, correspondente à
atual ‘ansiedade generalizada’, dos ataques de ansiedade, hoje ‘ataques de pânico’
(Idem, 2010, p. 37).

Uma das características mais específicas das manifestações de ansiedade que hoje são
descritas nos trabalhos de psiquiatria, psicologia e psicanálise é a antecipação de algum
perigo ou evento desconhecido ou estranho que gere pelo menos uma desconfiança mais
severa na pessoa. Nesse caso, o desconforto e a apreensão são consequências trazidas
64
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

pela precipitação intempestiva de alguma situação, que é “adiantada” na mente do


indivíduo, sob a forma de um perigo qualquer.

Os episódios e transtornos de ansiedade normalmente são vistos como eventos


“multifacetados”, ou seja, que possuem vários indicadores e causadores. De qualquer
forma, é possível observar alguns aspectos bem claros. Um deles é a presença
inevitável de algum tipo de somatização, que vai variar conforme o tipo, o grau e a
intensidade da ansiedade, como veremos quando analisarmos os casos específicos.
Essas diferenças de intensidade vão ajudar a estabelecer, inclusive, se estamos diante
de um evento efetivamente “patológico”, no sentido estrito do termo em suas acepções
ligadas às ciências psis, ou se o caso é apenas de um episódio passageiro, sem maiores
consequências.

Segundo Ana Castillo e outros, a ansiedade e seus efeitos, como o medo, ganham uma
conotação efetivamente patológica quando passam a ser “exagerados, desproporcionais
em relação ao estímulo, ou qualitativamente diversos do que se observa como norma
naquela faixa etária e interferem com a qualidade de vida, o conforto emocional ou o
desempenho diário do indivíduo” (CASTILLO e outros, 2000, p. 1).

Figura 25. Estudo do Retrato do Papa Inocêncio X segundo Velázquez (1953). Francis Bacon.

Fonte disponível em: <http://3.bp.blogspot.com/-MnlHnQ3I-A0/UO8mFCW8AzI/AAAAAAAACYo/CaupcAJXbx0/s1600/


bacon%5B1%5D.jpg>. Acesso em: 18 jul. 2016.

65
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

A partir daí, temos alguns tipos bem conhecidos de transtornos de ansiedade, definidos
pelas ciências psíquicas. Um deles é o chamado “transtorno de ansiedade generalizada”.
Neste caso, os principais sintomas são o medo e as preocupações excessivos e um
sentimento de pânico exagerado. As pessoas acometidas por esse tipo de problema
apresentam um comportamento constantemente tenso, associado a certos tipos bem
conhecidos de somatização, como tensões musculares e palidez, dentre outros. Ana
Castillo e outros destacam que, aqui, a preocupação e a tensão são constantes, mas não
necessariamente com o mesmo tema, que pode variar. O que não varia é justamente a
tensão, que se transforma em um fato cotidiano (Idem, 2000, p. 2).

As consequências trazidas pelo transtorno de ansiedade generalizada se materializam


como temperamento inquieto, cansaço, dificuldade de concentração, irritabilidade,
tensão muscular e insônia, dentre outros (VERSIANI, 2001, p. 4). Como é fácil perceber,
a maioria desses sintomas acaba se tornando profundamente incompatível com o
trânsito. Apesar da direção exigir uma certa capacidade de previsão e atenção dirigida,
o excesso de preocupação pode gerar um foco excessivo em determinado ponto, o que
pode acabar distraindo o motorista, que deve ter, em sua dinâmica, uma capacidade
considerável de variação, do foco aos elementos periféricos e vice-versa, o tempo todo.
O medo e o pânico devem ser deixados de lado diante de uma situação de trânsito, para
que se evite os acidentes.

Um segundo tipo bem comum de transtorno de ansiedade são as “fobias”. A psicanálise


vai tratá-las, como já vimos, como fenômenos neuróticos, enquanto outras linhas vão
dividir o tema em dois tipos, as “fobias específicas” e a “fobias sociais”. No caso das
fobias específicas, temos o surgimento de um medo excessivo e persistente direcionado
a um objeto ou situação específico. As reações a esse tipo de problema são bem diversas
e variam da imobilidade ao desespero. Os pesquisadores identificaram também a
presença de forte agitação psicomotora como sintoma, nesses casos (CASTILLO e
outros, 2000, p. 3).

No caso da fobia social, o medo e o pânico estão relacionados a situações nas quais a
pessoa se sente excessiva e moralmente exposta ao julgamento dos outros. Casos bem
típicos desse tipo de comportamento podemos encontrar em alunos, quando expostos
ao crivo dos professores; em professores, quando expostos à necessidade de falar
em público; e em qualquer situação que demande um convívio social com os outros,
especialmente se estes forem pessoas estranhas. Obviamente que o trânsito se encaixa
como uma luva nesse grupo. Segundo Versiani, a pessoa com fobia social, quando exposta
aos conflitos do contato com os espaços públicos, acaba sofrendo vários sintomas,
como “tremores, sudorese, enrubescimento, dificuldade de concentração (“branco na
cabeça”), palpitações, tonteira [e] sensação de desmaio” (VERSIANI, 2001, pp. 3-4).

66
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

Nos dois casos, ou seja, nas fobias específicas e nas sociais, os sintomas são claramente
impeditivos de uma boa condução dos veículos, e portanto, de um comportamento
seguro no trânsito.

Temos ainda outro tipo, que ficou muito comum nas últimas décadas, que é o “transtorno
de pânico”, também conhecido como “síndrome do pânico”. Ao contrário da ansiedade
generalizada, que se estende por tempos médios e longos, o pânico se inicia subitamente
e não costuma durar muito. Entretanto, é muito mais intenso e traz sempre consigo uma
forte reação somática, ou seja, sintomas físicos de relevância e importância significativa.
Versiani lista, entre esses sintomas físicos, “sensação de sufocação, de morte iminente,
taquicardia, tonteiras, sudorese, tremores, sensação de perda do controle ou de ‘ficar
louco’ [e] alterações gastrointestinais” (Idem, 2001, p. 3). O autor destaca ainda que o
quadro de pânico pode evoluir para uma agorafobia, que é a aversão aos locais públicos
por causa do medo de sofrer um ataque em público. Ele comenta que é comum que isso
aconteça em locais como túneis e engarrafamentos (Idem, 2001, p. 3), o que mostra
bem a sua conexão com a psicologia do trânsito.

E por último, vale citar o “transtorno de estresse pós-traumático”. Como o nome já


denuncia, trata-se de uma forte reação emocional a um evento problemático, que acaba
por gerar sintomas complicadores do comportamento, como inibição ou desinibição
excessiva, hipervigilância e pensamentos obsessivos. Os manuais de psiquiatria sugerem
que se trata de um problema que pode durar até mais de um mês, e comprometer
fortemente as atividades dos pacientes, o que também deve ser considerado pela
psicologia do trânsito (CASTILLO; outros, 2000, p. 3).

67
Capítulo 2
Depressão

É possível enquadrar com grande êxito o caso da depressão no grupo de psicopatologias


que possuem um forte fundo cultural e de época. Isso porque a aceleração trazida
pelas últimas décadas acarretou em um cenário fortemente propício ao surgimento
e agravamento de todos os sintomas que normalmente são observados nos casos
diagnosticados como depressão.

Leandro Tavares coloca que o cenário contemporâneo apresenta um movimento


vertiginoso incessante, no qual qualquer tipo de estabilidade e fixidez se tornou “algo
raro e escasso no mundo”. Ao contrário, somos atacados diariamente por um número
infindável de multipossibilidades, que transformam a nossa percepção em uma
experiência radicalmente transitória e inquieta (TAVARES, 2010, pp. 29-30). Ao mesmo
tempo, e como consequência direta, somos também confrontados sistematicamente
com a experiência da perda, porque, com tantas possibilidades de escolha, acaba se
tornando absolutamente impossível para o desejo acompanhar as ofertas ─ para além
do fato de que toda escolha acarreta inevitavelmente uma seleção e, portanto, uma
perda.

Tudo isso misturado ao inarredável dogma da felicidade do mundo contemporâneo,


ou seja, ao mantra do “ser feliz sempre”, acabou gerando, como uma de suas
consequências, uma verdadeira epidemia de frustrações, muitas delas enquadradas
nos diagnósticos de “depressão”. Leandro Tavares chega a afirmar que, a “depressão”
é o grande “mal-estar contemporâneo”, em uma apropriação da expressão freudiana.
Segundo o autor, “as condições de vida cotidiana a que estamos submetidos em nossa
atualidade pós-moderna emergem como dispositivos potencializadores de mal-estar,
em que a caricatura do ‘depressivo’, do ‘panicado’ e do ‘toxicômano’ evidencia o
extremo oposto dos ideais espetaculares” (Idem, 2010, p. 60).

Nesse sentido, não surpreende que o espectro de abrangência do conceito de depressão


seja tão vasto. Para se ter uma ideia, só o DSM V, a versão atualizada em maio de
2013, do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, traz 33 páginas
dedicadas exclusivamente às descrições de todos os tipos de transtornos depressivos
conhecidos pelo discurso psiquiátrico. Passar por todos eles exigiria pelo menos uma

68
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

nova disciplina acadêmica exclusiva. Portanto, vamos falar sobre os mais importantes
e mais incidentes, apontando características e sintomáticas, para depois analisar a sua
relação com a questão do trânsito.

Segundo o DSM V, a característica mais elementar desses transtornos é “a presença


de humor triste, vazio ou irritável, acompanhado de alterações somáticas e cognitivas
que afetam significativamente a capacidade de funcionamento do indivíduo” (DSM V,
2014, p. 155). José Alberto Del Porto coloca que essa associação, feita entre a tristeza e a
depressão, é a base da forma como se entende o problema no senso comum e na linguagem
corriqueira (DEL PORTO, 1999, p. 1). O autor destaca ainda que essa percepção muitas
vezes confunde os episódios de tristeza tidos como normais, notadamente os períodos
de luto frequentes em todo momento imediatamente posterior a uma perda grave, com
a depressão (Idem, 1999, p. 1) e que deve haver cuidado para que essa confusão não
afete as tentativas mais elaboradas de distinção.

Uma das principais diferenças, ainda segundo o autor, está no fato de que,
normalmente, no luto, não se observa sintomas relacionados às inibições motoras,
que são muito comuns quando os estados depressivos se efetivam na vida da pessoa
(Idem, 1999, p. 1).

Além disso, José Alberto Del Porto sugere que a depressão deve ser considerada a partir
de três contextos: enquanto “sintoma”; enquanto “síndrome”; e enquanto “doença”. No
primeiro caso, ela pode aparecer dentro de diversos outros quadros clínicos, como em
casos de transtorno de estresse pós-traumático, demência, esquizofrenia, alcoolismo
etc. Já enquanto síndrome, ela inclui notadamente as alterações humor conhecidas,
em especial o advento da tristeza profunda e da apatia, somadas a outros aspectos,
que vão desde as alterações cognitivas até as psicomotoras e modificações no ritmo
do sono etc. E na terceira, enquanto doença, a depressão aparece em várias formas,
descritas como “transtorno depressivo maior”, “melancolia” - que é basicamente a
forma como a psicanálise classifica os fenômenos ditos “depressivos” -, “distimia” etc.
(Idem, 1999, p. 1).

A característica fundamental dos estados depressivos é, como já colocamos, a


presença de tristeza ou vazio profundo. Entretanto, essa sensação nunca vem sozinha.
Normalmente, ela vem acompanhada de outros sintomas, que, quando avaliados com
cuidado, podem ajudar a distinguir uma forma de depressão da outra.

69
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

Figura 26. Aos portões da eternidade (1890). Vincent van Gogh.

Fonte disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-6C6ucvBg7yc/TbhcXEGltvI/AAAAAAAAABk/LYfnyqWfugk/s320/


Depress%25C3%25A3o.jpg>. Acesso em: 18 jul. 2016.

Dentre essas outras características, podemos vislumbrar tanto sintomas psíquicos


quanto fisiológicos. No grupo dos sintomas psíquicos, verificamos a presença constante
de um processo de autodesvalorização, em muitos casos, acoplado a um forte sentimento
de culpa. Além destes, podem surgir também incapacidade de sentir alegria ou prazer
na vida; apatia e indiferença profunda; fadiga ou sensação de perda de energia; déficit
de atenção; e, em casos extremos, até mesmo ideias de suicídio (Idem, 1999, p. 2).

No grupo dos sintomas fisiológicos, é comum encontrarmos a presença de alterações do


sono - normalmente insônia; e alterações do apetite - geralmente perda, mas também é
possível verificar casos em que o apetite se torna excessivo. Para além disso, observa-se
também queixas de cansaço exagerado, que podem chegar a um processo de lentificação
ou mesmo retardo psicomotor (Idem, 1999, p. 2).

Vale notar que, em geral, a sintomática da depressão se assemelha muito à da melancolia


descrita pela psicanálise, com leves e quase imperceptíveis diferenças. A presença
da tristeza profunda, articulada com a apatia, o retraimento social e o retardo motor
fazem eco evidente ao corpo de sintomas que comparecem descritos na abordagem
psicanalítica dos estados melancólicos. A análise cruzada e comparativa das duas
nosografias merece um estudo à parte.

José Alberto Del Porto cita ainda, a existência de três outros tipos de depressão
importantes. O primeiro tipo é o das chamadas “depressões catatônicas”. Nele, o quadro
clínico se apresenta através de intensas alterações da psicomotricidade, materializadas

70
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

em casos de imobilidade quase completa, negativismo extremo, mutismo, ecolalia ou


ecopraxia, além de obediência ou imitação automática (Idem, 1999, p. 3). Trata-se,
evidentemente, de uma forma psicopatológica bastante perigosa para o trânsito, que
demanda a atenção como um dos comportamentos mais importantes.

O segundo tipo citado pelo autor é o das “depressões crônicas”, também conhecidas
como “distimias”. São depressões de intensidade mais leve, que apresentam como
característica principal um sofrimento por não sentir mais prazer nas atividades
habituais, além de uma morosidade insistente (Idem, 1999, p. 4).

E existem, finalmente, as “depressões atípicas”. Não é difícil entender porque são


chamadas de “atípicas”. Elas aparecem assim classificadas porque o seu quadro
sintomático se caracteriza por apresentar traços que são opostos ao que geralmente
se enxerga nos outros tipos mais comuns de depressão. Como exemplo, Del Porto
cita os “sintomas vegetativos reversos”, como o aumento de peso e o apetite, além da
chamada hipersonia, que é o oposto da insônia, ou seja, a situação na qual o indivíduo
dorme demais, por não ter motivação para acordar. Além disso, é possível encontrar
também, ainda nesse grupo de fenômenos atípicos, casos de “extrema sensibilidade à
percepção do que consideram como rejeição por parte de outras pessoas” (Idem, 1999,
p. 4), emnuma lógica que possui alguma semelhança com aaparanoia descrita pela
psicanálise.

A partir do final da década de 1950 do século passado, a indústria farmacêutica passou


a produzir uma série de remédios que ganharam o nome de psicotrópicos, porque
atuam nas partes cerebrais ligadas ao comportamento e à motricidade. Dentre eles
estão os conhecidos “antidepressivos”, como os inibidores de serotonina e os inibidores
da enzima MAO. Apesar de demonstrarem serem eficazes em certo sentido, para certos
sintomas depressivos, esses remédios são acusados de viciar os pacientes, além de
trazer prejuízos cognitivos, quando usados em dosagens elevadas. E como modificam
de forma significa o comportamento, podem ser igualmente prejudiciais ao trânsito,
quando usados sem o devido cuidado.

71
Capítulo 3
Drogas e alcoolismo

A questão do uso de drogas é um dos problemas mais complexos das sociedades


contemporâneas. E ela atinge em cheio o campo das psicopatologias, de uma forma
altamente polêmica e ambivalente. Isso porque o saber psiquiátrico, especialmente ele,
é calcado fortemente no uso de psicotrópicos para o tratamento dos comportamentos
classificados como doenças pelas instituições da área. Isso implica que ele seja tanto
uma forma de tentar solucionar ou minimizar os prejuízos causados por outras drogas,
quanto o canal por onde se estimula uma grande parcela da população mundial ao uso
de outros tipos de drogas, estas tidas muitas vezes como menos perigosas por serem
receitadas por médicos qualificados pelos meios oficiais.

Normalmente, o campo das drogas é dividido em “drogas lícitas” e “drogas ilícitas”.


As drogas lícitas mais citadas são o tabaco e o álcool, enquanto que no grupo das
ilícitas aparecem drogas como a maconha, a cocaína, o crack, a heroína e o ecstasy
(NEVES; SEGATTO, sem data, p. 4), dentre várias outras menos conhecidas do
grande público. Entretanto, vale lembrar um dado que é senso comum, mas que
muitas vezes é esquecido: as farmácias são chamadas também de “drogarias” e isso
não se dá à toa. O fato é que os remédios vendidos nas farmácias são exatamente
isso, ou seja, “drogas”. Drogas lícitas. Ainda que a maioria dessas drogas não acarrete
maiores riscos para as pessoas, existe um grupo que merece atenção à parte, que é
justamente o grupo das chamadas drogas psicotrópicas.

Figura 27. O marketing da loucura: somos todos insanos? (2010). James Colquhoun.

Fonte disponível em: <http://1.bp.blogspot.com/-IGp6E4oK6Ig/UVOEAUI_-aI/AAAAAAAAA50/5nNv690KC8Q/s1600/


KIT+O+MARKETING+DA+LOUCURA.JPG>. Acesso em: 18 jul.2016.

72
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

No ano de 2010, o diretor James Colquhoun lançou um importante documentário


intitulado “O marketing da loucura”, por meio do qual faz uma denúncia elaborada
através de uma série de documentos, entrevistas e estudos, que, articulados, mostram
um envolvimento conjunto de setores da psiquiatria, dos laboratórios farmacêuticos
e dos meios de comunicação de massa na criação de váriossfactoides epistemológicos
sobre distúrbios de comportamento, que acabam por induzir a população a consumir
os psicotrópicos. O aumento vertiginoso do uso dessas drogas lícitas no mundo inteiro
nas últimas décadas mostra o sucesso da empreitada e a necessidade de que se reflita
melhor a questão. O documentário está disponível no youtube, narrado em português,
e merece atenção especial de todos aqueles que decidem estudar as psicopatologias na
atualidade.

Os efeitos causados pelo uso de drogas variam muito em cada caso. Todas elas
carregam um forte potencial de dependência, que, quando associado a outros eventos
psíquicos, podem trazer vários problemas para os indivíduos, para suas famílias e para
a sociedade como um todo, inclusive no que diz respeito ao trânsito. Um dos elementos
mais característicos da dependência química está na grande presença de sintomas
somáticos, como veremos nas descrições a seguir. Todos eles são acompanhados,
também, de constantes efeitos psicopatológicos, com graus variados de complexidade e
conexão com problemas sociais.

A cocaína e o crack, droga dela derivada, causam dependência compulsiva com rapidez.
Provocam vários efeitos orgânicos, como vasoconstrição periférica, dilatação das
pupilas, aumento da temperatura corporal, da frequência cardíaca e da pressão arterial.
Além disso, levam a uma rápida intensificação de efeitos hiperestimulantes, como a
euforia, que podem levar ao aumento da violência (Idem, sem data, p. 4).

O ecstasy possui fortes propriedades alucinógenas e gera agitação, perda da percepção


cotidiana e do “sentido de realidade”, elevação da temperatura corporal, insuficiência
renal e cardiovascular, além de carregar o risco de causar até mesmo lesões cerebrais e,
em casos extremos, a tipos específicos de paralisia (Idem, sem data, p. 4).

A heroína é outra droga que leva rapidamente à dependência. Induz à overdose e


pode causar complicações pulmonares e até pneumonia, além de obstrução dos vasos
sanguíneos dos pulmões, do fígado, dos rins e mesmo do cérebro. Está relacionada
a doenças infecciosas - como a AIDS e a hepatite -, a eventos de colapso nervoso e
também a abortos espontâneos (Idem, sem data, p. 4).

A maconha é um caso um pouco diferente. Algumas pesquisas indicam que os


componentes da droga afetam o funcionamento do sistema nervoso central. Ela pode
causar distúrbios de memória, de aprendizagem e de percepção, além de dificuldades

73
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

reflexivas e queda da coordenação motora (Idem, sem data, p. 4). Entretanto, outros
estudos apontam para benefícios trazidos pelo uso leve da droga, que tem a capacidade
de flexibilizar certos tipos de tensão psíquica, além de poder ser usada inclusive no
tratamento de certas doenças, como câncer, AIDS, glaucoma e esclerose múltipla,
dentre outras. Estudos apontam que o THC, o delta-9-tetra-hidrocanabinol, o composto
químico da maconha, ajuda a minimizar o sofrimento de pacientes que precisam fazer
quimioterapia, o que tem influenciado vários médicos a receitarem a droga como
anestésico, nessas situações.

No grupo das chamadas “drogas lícitas”, as que ganham mais destaque são o tabaco
e o álcool, que, junto com os fármacos, são as mais utilizadas. Os cigarros possuem
4027 substâncias químicas, das quais 200 são consideradas venenos para o organismo,
60 dessas sendo cancerígenas, segundo estudos feitos nas últimas décadas (Idem, sem
data, p. 5). A nicotina tem efeito tranquilizante e acarreta em rápida dependência.
E o alcatrão destrói os alvéolos pulmonares, o que pode causar doenças graves, como o
enfisema pulmonar, por exemplo. Além disso, existe ainda o problema do fumo passivo,
que afeta todas as pessoas que convivem com o indivíduo fumante e que, sem quererem,
sofrem as consequências de várias dessas substâncias (Idem, sem dat , p. 5).

Figura 28. Várias campanhas são feitas para diminuir os acidentes de trânsito causados pelo uso do álcool.

Fonte disponível em: <http://restaurantecervantes.com.br/wp/wp-content/uploads/2014/06/sebebernaodirija.jpg>. Acesso em:


18 jul. 2016.

O álcool é de longe a droga mais consumida em todo o mundo. E isso não é de hoje.
A origem do aumento vertiginoso do consumo está no início da chamada Revolução
Industrial, que facilitou e barateou a produção, o que, obviamente, aumentou o

74
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

consumo. Na virada do século XVIII para o XIX, já era possível encontrar alguns autores
que tentavam estudar os efeitos do álcool como um problema de saúde. O psiquiatra
norte-americano Benjamin Rush, dos Estados Unidos, publicou um livro, em 1790, no
qual descreve a relação excessiva com o álcool como um tipo de dependência, gerada
pela transformação do “hábito” numa “necessidade”. Este mesmo autor demonstraria,
em 1795, que “30% dos pacientes internados em instituições psiquiátricas americanas
faziam uso excessivo de álcool” (LARANJEIRA, sem data).

Outro pesquisador importante da mesma época, o inglês Thomas Trotter, também


produziu estudos sobre o tema. Trotter foi o primeiro a descrever a embriaguez como
uma “doença da mente”, iniciando um debate polêmico e complexo, que se estende até
os dias de hoje (Idem, sem data).

Nos dias de hoje, o diagnóstico mais aceito entre os pesquisadores é o da “Síndrome


de Dependência do Álcool”, criado no ano de 1976, por dois pesquisadores, o
norte-americano Milton Gross e o inglês Grifith Edwards. A proposta conceitual
dos dois autores é a de analisar o fenômeno da dependência do álcool a partir
de uma perspectiva “dimensional”, diferente da forma “categorial” como se
via a questão anteriormente. Em outras palavras, isso significa buscar não um
sintoma específico e característico da doença, mas sim um quadro de sintomas
entrecruzados, que eventualmente contribuam para o aumento ou a diminuição
da intensidade da dependência (Idem, sem data). A mudança de enfoque busca
dar conta da complexidade da questão, já que as causas e os efeitos do alcoolismo
nunca se colocam de forma isolada, sendo sempre partes de um enredo mais amplo,
com múltiplas implicações.

Outro ponto relevante destacado pelos autores é o da importância de se distinguir a


dimensão propriamente dita da dependência da série de problemas que são decorrentes
do uso excessivo do álcool que caracteriza essa mesma dependência. A dependência
propriamente dita pode ser causada por diversos fatores, tanto de ordem psicológica,
ligados à personalidade ou eventos traumáticos, quanto familiares ou culturais, ligados
à influência e aos estímulos do meio em que o indivíduo vive.

Os sintomas relacionados ao alcoolismo são bem definidos e é possível citá-los


com certa precisão. O primeiro reside no chamado “estreitamento do repertório do
beber” (Idem, sem data). Em outras palavras, a diminuição do repertório significa,
basicamente, que o indivíduo começa a não conseguir mais alternar entre dias com e
sem o álcool. O contato com a bebida passa a ser mais “estereotipado”, ou seja, depende
mais da bebida em si do que de eventos socais relacionados ao seu consumo.

75
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

Os momentos seguintes são o da “saliência do comportamento de busca do álcool” e o


“aumento da tolerância ao álcool”. Ou seja, a pessoa passa a beber mesmo em condições
socialmente inaceitáveis, como no trabalho, quando está doente ou dirigindo veículos;
e, como consequência desse aumento do uso, o organismo necessita de doses cada vez
maiores para alcançar os efeitos desejados.

Em seguida, aparecem os “sintomas repetidos de abstinência” e o “alívio ou evitação


desses mesmos sintomas”. Quanto maior a progressão da dependência, aumenta a
frequência e a intensidade de manifestação desses sintomas, que podem ser físicos,
como tremores leves ou generalizados, náuseas, vômitos, dores de cabeça, tonturas
ou câimbras; afetivos, como irritabilidade, ansiedade, fraqueza, inquietação ou
depressão; e sensorioperceptivos, como pesadelos e/ou alucinações. Com o aumento
da manifestação desses sintomas, sobrevém a necessidade de aliviá-los e o alcoólatra
associa essa necessidade imediatamente com a bebida (Idem, sem data).

Finalmente, depois de instaurado esse círculo vicioso, amplia-se a “sensação subjetiva


da necessidade de beber”, que é a compulsão pelo consumo da bebida, que vem
acompanhada de uma sensação de falta de controle, que acaba sendo mesclada ao
sentimento de prazer episódico gerado pelo uso. Um último efeito digno de nota é o da
chamada “reinstalação da síndrome após a abstinência”, que ocorre nos casos em que
o indivíduo conseguiu deixar a bebida momentaneamente, mas acaba vítima de uma
recaída, que pode ser gerada por uma série de eventos.

Diante de tudo o que foi exposto, é fácil verificar o porquê a combinação entre o álcool
e a direção é sempre um perigo para todos os envolvidos. Vamos desenvolver melhor
esse tema no próximo tópico.

76
Capítulo 4
Direção sob uso de drogas lícitas e
ilícitas

Como vimos no tópico anterior, o uso de drogas é normalmente dividido em “drogas


lícitas” e “drogas ilícitas”. O que significa que existem certas drogas que são mais
toleradas pelas sociedades do que outras. De qualquer forma, independentemente
da conexão legal ou não, o fato é que todas as drogas possuem potencial para causar
alterações no sistema nervoso central, que podem desencadear uma série de outras
alterações no comportamento e nas habilidades motoras das pessoas. Um quadro que
certamente pode causar inúmeros problemas quando os usuários se encontram em
situações como as do trânsito, que exigem competências bem específicas.

O uso de drogas tem sido cada vez mais debatido em todo o mundo, por uma série de
fatores, dentre os quais o grave problema do tráfico, que causa um sem-número de
mortes todos os anos no mundo todo. Diante do fato de que o consumo só aumenta,
alguns países têm adotado medidas diferentes, como por exemplo, a legalização de
certas drogas leves, como a maconha, com bons resultados. É o caso do Uruguai, que
tornou o consumo de maconha legal no final de 2014. O objetivo da lei é diminuir o
poder de influência do tráfico e, em certo sentido, “desmoralizar” a questão, na medida
em que se trata de um tema fortemente absorvido pelas posturas conservadoras, que
preferem sustentar leis repressoras que historicamente se mostram uma fachada inútil,
que não ajuda a diminuir o uso, do que enfrentar o problema de forma mais aberta.
Ainda não existem estudos feitos sobre a experiência uruguaia, mas ela recebe críticas
desses meios conservadores e elogios dos meios mais progressistas da sociedade.

Figura 29. O Uruguai se tornou, em 2014, o primeiro país do mundo a legalizar a produção, a distribuição e o

consumo de maconha.

Fonte disponível em: <http://coletivodar.org/wp-content/uploads/2013/12/Depois-da-legaliza%C3%A7%C3%A3o-da-


maconha-Uruguai-vive-clima-de-tens%C3%A3o-pol%C3%ADtica.jpg>.Acesso em: 18 jul. 2016.

77
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

Ainda sobre o caso do Uruguai, apesar de legalizada, a maconha continua proibida para
os motoristas. Lá, é proibido dirigir sob efeito da maconha nas dez horas seguintes ao
uso, que é o tempo que a substância demora para sair do sangue. Existem blitz policiais
específicas, que fazem esse tipo de avaliação.

Isso porque, apesar de ser uma verdade que a proibição das drogas não diminui o
consumo, é verdade também que, em conexão com a direção de veículos, ele geralmente
é o causador de milhares de acidentes, muitos deles com resultados fatais. Estudos
recentes têm mostrado essa realidade em números. Segundo Julio de Carvalho Ponce
e Vilma Leyton, os acidentes de trânsito são a nona maior causa de morte no Brasil, a
segunda entre as causas externas ─ atrás apenas dos homicídios. Além disso, é também
a primeira causa geral de mortes em crianças e adolescentes entre os 5 e os 14 anos e a
segunda dos 15 aos 29 anos (PONCE; LEYTON, 2008, p. 2).

Os mesmos autores citam vários estudos que associam diretamente o uso de drogas
aos acidentes de trânsito, muitos deles fatais. Importante notar que existem variáveis
culturais em jogo na produção desses dados, porque o uso das drogas tende a variar
de sociedade para sociedade. O fato marcante é o de que os números apontam para a
participação de todas as drogas, lícitas ou ilícitas, em uma quantidade significativa de
acidentes, em todo o mundo.

Alguns números são alarmantes. Na Escócia, por exemplo, 68% das vítimas fatais de
acidentes de trânsito apresentavam algum tipo de droga ilícita em seu organismo no
momento do acidente. Se Juntarmos as drogas lícitas e ilícitas, o número chega a 76%
nos Estados Unidos; 60% na Espanha; 57,3% no Canadá; 49,9% na Austrália; 47% na
Grécia; e 41,7% na Suécia. O álcool é a droga mais encontrada nessas vítimas, chegando
a 45,6% na Espanha; 41% nos Estados Unidos e na Grécia; e 36,6% no Canadá (Idem,
2008, p. 3).

No Brasil, o número de mortos vem caindo aos poucos, por conta da implantação da
Lei Seca, que já analisamos em tópico anterior. Se em 1997, 61% dos acidentados do
trânsito brasileiro tinham ingerido algum tipo de bebida alcoólica, esse número caiu
para 17,79% em 2013, quando já havia a Lei Seca em nosso país. Segundo reportagem
veiculada em 2015 na internet por Ludmilla Duarte, em 2013, 42.291 pessoas perderam
a vida em acidentes de trânsito no Brasil, sendo que destas, 7.526 estavam sob influência
do álcool. O número caiu um pouco mais em 2014, quando 7.391 vítimas tinham álcool
em seu organismo na hora do acidente (DUARTE, 2015).

O estudo feito por Julio de Carvalho Ponce e Vilma Leyton traz considerações importantes
sobre os efeitos das drogas no organismo e sobre sua relação com o risco de acidentes

78
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

no trânsito. Vale citar algumas dessas informações, especialmente no que diz respeito
às drogas ilícitas do Brasil, já que já passamos pelos efeitos do álcool no tópico anterior.

Segundo os autores, “a maconha é a droga ilícita mais comumente utilizada por


motoristas em todo o mundo” (PONCE; LEYTON, 2008, p. 2). É uma droga que
influencia na percepção, na performance psicomotora, na cognição e nas funções
afetivas. Algumas consequências significativas são a diminuição da vigilância e do
estado de alerta e os efeitos debilitantes da droga perduram no organismo por pelo
menos duas horas, podendo chegar a mais de cinco horas, dependendo da quantidade
utilizada. Os pesquisadores alertam ainda para o fato de que não é incomum encontrar
casos em que a maconha é utilizada combinada com o álcool, o que potencializa ainda
mais os riscos de acidentes no trânsito.

Figura 30.oVárias campanhas têm sido feitas para diminuir os acidentes de trânsito causados pelas drogas.

Fonte disponível em: <http://fetracan.org.br/wp-content/uploads/2013/08/combate-alcool-droga-volante.jpg>. Acesso em: 18


jul. 2016.

Outro caso analisado pelos autores é o da cocaína. No caso dessa droga, mais pesada
que a maconha, os prejuízos aparecem em relação à perda de concentração e atenção e à
maior sensibilidade à luz, por conta das pupilas dilatadas. E existe ainda a possibilidade
de surgirem sintomas psicológicos, como aaparanoia e as alucinações, que também
acarretam em modificações de comportamento e postura que constituem fatores de
aumento do risco de acidentes (Idem, 2008, p. 3).

Assim como acontece com a cocaína, o ecstasy é também uma droga que aumenta
consideravelmente a autoconfiança do condutor, influenciando comportamentos
arriscados, especialmente o aumento de velocidade, a falta do uso do cinto de segurança
e o uso de aparelhos celulares, dentre outros. Essas drogas tendem a deixar os usuários
muito agressivos no momento do efeito e apáticos quando o efeito começa a passar.

79
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

E é nesses períodos de apatia e fadiga que aparece o risco maior para o trânsito, na
medida em que os motoristas acabam perdendo a capacidade de prestar atenção que a
direção exige (Idem, 2008, p. 3).

Os autores citam ainda mais dois casos importantes: o da heroína e o dos alucinógenos,
como o LSD. No caso da heroína, os principais efeitos são a sedação, a indiferença a
estímulos externos, a constrição das pupilas – que atrapalha ainda mais se a pessoa está
dirigindo à noite – e o aumento do tempo de reação – além de perda de concentração,
nos casos de síndrome de abstinência, ou seja, mesmo quando a droga foi abandonada,
há pouco tempo. E os alucinógenos prejudicam fortemente a percepção e a performance
psicomotora, por produzirem alucinações, sonolência e reações psicóticas, que são
evidentemente incompatíveis com o ato de dirigir (Idem, 2008, p. 3).

80
Capítulo 5
Distúrbio bipolar

O distúrbio bipolar, também conhecido como “transtorno bipolar” ou, mais


recentemente, como “espectro bipolar”, se caracteriza pela ocorrência de episódios de
humor alternados e com frequência radicalmente opostos, nos quais essa variação se
dá de uma forma intensa e duradoura. Segundo dados estatísticos, afeta de 3 a 5% da
população. Diferente da maioria dos sintomas que descrevemos até agora, o distúrbio
bipolar tem uma estrutura de definição mais complexa, porque busca investigar
formas de comportamento entrecruzadas, que porventura afetem o individuo de várias
maneiras, em suas atividades cotidianas.

A história do conceito ilustra essa complexidade. Essa variação é descrita em suas


extremidades, na maioria dos casos, por meio dos conceitos de “mania” e “melancolia”.
A mania seria o extremo da excitação e a melancolia, como já vimos, o extremo da
inibição. Essas formas possuem algumas variações importantes, como no caso das
descrições da depressão, que nas últimas décadas tem substituído o de melancolia em
vários casos, como também já situamos. De qualquer forma, vale estudar um pouco a
história do conceito, para compreender melhor esse contexto.

No geral considera-se que a sintomatologia que hoje é classificada como “transtorno


bipolar” é uma forma contemporânea do que antes era chamado de “doença
maníaco-depressiva”. Os primeiros textos sobre essa doença foram escritos por
Areteu da Capadócia, que viveu no século I, na Grécia. Médico, Areteu escreveu
um tratado sobre doenças que é muito elogiado até hoje pelos psiquiatras, por sua
qualidade de observação e descrição. E foi “o primeiro a estabelecer um vínculo
entre estes polos [da mania e da melancolia], assumindo-os como partes de uma
mesma doença” (LOPES, 2012, p. 10). A medicina grega já conhecia os termos
“mania” e “melancolia” desde Hipócrates, nos séculos IV e V a.C. Entretanto, só
com Areteu é que eles foram pela primeira vez analisados como partes de um
mesmo problema.

Segundo Roudinesco e Plon, o primeiro autor pós-medieval a conectar os dois estados


opostos foi o médico inglês Thomas Willis (1621-1675). Ele juntou as duas formas “para
definir um ciclo maníaco-depressivo, o que então permitiu reunir emnuma mesma
doença mental a mania e a melancolia” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 623).

Pinel preferiu entender mania e melancolia como formas opostas e não cruzadas. Já
Esquirol abandonou o termo “melancolia” e passou a classificar as formas de perturbação
mental que se caracterizavam por inibição, sentimento de perda e “delírio” como uma

81
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

“lipemania”, a junção dos termos gregos lupe, de “tristeza”, “desgosto”, e mania. As


descrições de Esquirol articulam a tensão com aspectos de tristeza, como quando
descreve a expressão facial de um “lipemaníaco”, que apresenta uma fisionomia “fixa e
imóvel”, mas com os músculos da face “num estado de tensão convulsiva”, acompanhado
de uma expressão de “tristeza”, “temor” ou “terror” (ESQUIROL, 1820, p. 2).

Entretanto, apesar da articulação, Esquirol mantinha uma distinção da lipemania para


a mania, enquanto que a maioria dos outros autores do século XIX seguia a ideia da
melancolia como um subtipo de mania, “sendo vista como uma variação da mania ou
como um estágio evolutivo da doença, tendo como estágio final a demência” (PEREIRA
e outros, 2010, p. 3).

Figura 31. O transtorno bipolar é a forma como a psiquiatria representa as oscilações mais radicais de

comportamento.

Fonte disponível em: <http://static.quizur.com/i/b/577dd1bb735737.97434685bipolar22.jpg>. Acesso em: 18 jul.2016.

O quadro sofreria uma alteração importante na metade do século XIX, quando dois
autores franceses, Falret e Baillarger, descreveriam o que chamavam de “loucura
circular” e “loucura de dupla forma”. Os dois acreditavam que os quadros clínicos
de mania e depressão faziam parte de uma mesma doença. Diferiam em apenas
um ponto: Falret acreditava que “as crises separadas por ‘intervalos lúcidos’ fariam
parte do conceito de foile circulaire”; já para Baillarger, “apenas os quadros que se
sucedessem imediatamente seriam considerados” (LOPES, 2012, pp. 10-11). Ou seja,
a loucura circular de Falret seria um evento de crises intercalado por momentos de
lucidez, enquanto que a “loucura de dupla forma” de Baillarger seria um estado em que
as alterações de humor seriam imediatas, sem a presença de lucidez no processo.

Emil Kraepelin (1856-1926) mudou o cenário, quando diferenciou a “demência precoce”


da “psicose maníaco-depressiva”. Para ele, a “psicose maníaco-depressiva” tinha “curso

82
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

periódico ou episódico, prognóstico mais benigno e história familiar mais rica que a
demência precoce” (Idem, 2012, pp. 11). Hoje se entende que a “demência precoce”
descrita pelo psiquiatra alemão se enquadra, grosso modo, nos casos de esquizofrenia.
Uma das principais contribuições de Kraepelin, no que diz respeito á história do que hoje
se conhece pelo nome de “transtorno bipolar”, está em seu conceito de “estados mistos”.
Criada em 1896, essa definição buscava dar conta de vários tipos de sintomatologias
“maníaco-depressivas” que, quando analisadas de forma pormenorizada, apresentavam
“várias transições entre as formas básicas (a mania e a depressão), [com] reais
misturas entre o exaltamento maníaco e os sintomas depressivos” (ALMEIDA, 2006,
p. 2). Kraepelin afirmava ainda que, a existência de frequentes quadros de “estados de
passagem” que não seriam nem exatamente uma “excitação maníaca”, nem tampouco
“depressão”, “mas que representam uma mistura de sinais patológicos das duas formas
de manifestações da loucura maníaco-depressiva”. O autor concluía, então, que “é
nestes períodos de transição dedum estado para o outro, e que duram por vezes várias
semanas ou mesmo meses, que a mistura é mais clara” (Idem, 2006, p. 2).

Na década de 1970, surge o conceito de “espectro bipolar”. O psiquiatra norte-americano


de origem armênia Hagop Akiskal (1944-) é o criador do termo, que usa para descrever
estados mistos que emergem “quando um episódio afetivo se manifesta sobre um
temperamento de polaridade oposta”, ou seja, quando um episódio maníaco ocorre em
uma pessoa com temperamento depressivo; ou um episódio depressivo ocorre em uma
pessoa com temperamento hipertímico (LOPES, 2012, p. 12). Essa classificação é uma
das mais difundidas na atualidade, inclusive nos manuais como o DSM e o CID.

O fato é que o distúrbio bipolar é hoje considerado, pelos psiquiatras, como um


“transtorno crônico”, o que em outras palavras significa que é tido como “recorrente”
e “incurável”, ainda que possa ser “tratado” e “controlado” por medicamentos e outros
tipos de tratamento (PEREIRA e outros, 2010, p. 4). Segundo as classificações oficiais, o
problema é caracterizado pela ocorrência, em intervalos de pouca extensão, de episódios
nos quais o humor e a atividade geral da pessoa estão profundamente alterados,
apresentando-se em variações que migram de “uma elevação do humor e um aumento
da energia e da atividade (hipomania ou mania) [para] (...) um rebaixamento do humor
e uma redução da energia e da atividade (depressão)” (Idem, 2012, p. 4). Ambos os
estados são experimentados de forma densa e podem, eventualmente,rpersistirem
intercalados com períodos de estiagem dos sintomas, as chamadas “fases eutímicas”
(Idem, 2012, p. 4).

Os períodos de hipomania envolvem estados de euforia, que, entretanto, não são


absolutamente extremos. É caracterizado por estados de energia extremada, alta
excitabilidade e sensações de euforia acentuada, podendo levar a humor ou irritação

83
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

elevada, acompanhados de desorganização comportamental, profusão de ideias e


manifestações delirantes de grandeza, além de redução significativa do sono, aumento
considerável do apetite e impulsividade comportamental (Idem, 2012 pp. 4-5).

No extremo oposto do “distúrbio bipolar” estão as manifestações depressivas. Nelas, o


que aparece são os estados melancólicos e pessimistas, além de profunda desesperança.
Surgem então vários sintomas, como ansiedade, irritabilidade, comportamentos e
pensamentos lentificados ou agitação psicomotora, aumento ou redução do sono,
sensação de fadiga e outras queixas somáticas, como energia baixa, desinteresse por
atividades que antes eram apreciadas, ideias suicidas e o próprio suicídio, no limite
extremo (Idem, 2012, p. 5).

Os estudiosos afirmam que é preciso considerar sempre com cuidado a presença do que
chamam de “comorbidades” nos quadros classificados como “distúrbio bipolar”. Nesse
grupo aparecem várias definições, como a dos chamados “transtornos esquizoafetivos”,
as “psicosesscicloides”, as “epilepsias”, o chamado “transtorno de personalidade
borderline”, os diversos tipos de “transtornos de ansiedade”, como a “fobia social” e
o “transtorno obsessivo-compulsivo”, dentre muitos outros (Idem, 2012, p. 6). Isso
mostra o grau de complexidade que resta sempre associado ao âmbito das classificações
que buscam investigar os estados mistos, hoje conhecidos como “espectros bipolares”.

As consequências dessa complexidade para o trânsito são evidentes. Estados extremos,


como irritação elevada ou imobilidade profunda, não combinam com o equilíbrio que
se espera dos condutores de veículos. É preciso controlar a impulsividade e a agitação
motora, assim como não se pode sucumbir à fadiga ou aos pensamentos lentificados,
se o objetivo é evitar os acidentes. Porém, é preciso cautela ao analisar a relação desse
tipo de comportamento com o trânsito, porque ao mesmo tempo em que as mudanças
abruptas são perigosas, a manutenção de um único estado ininterrupto é igualmente
problemática, já que o ato de dirigir exige capacidade constante de se adequar a
diferentes situações, que em muitos casos acontecem num piscar de olhos.

84
Capítulo 6
Demência

A palavra demência” deriva da expressão latina dementis, que é a junção dos termos
de, que significa “falta”, “diminuição” ou “afastamento”, e mentis, de “mente”. Nos
dicionários e no cotidiano do senso comum, podemos encontrar facilmente a associação
da palavra a dois sentidos básicos: ao de “imbecilidade” e ao de “alienação”, “insanidade”
ou “loucura”.

Trata-se de um problema que ataca principalmente as populações idosas, de pessoas com


mais de 65 anos. Entretanto, alguns casos podem aparecer antes disso, dependendo da
forma como determinados sintomas se articulem. A incidência de casos que coincidem
com a classificação tem aumentado nas últimas décadas, por conta do aumento do
envelhecimento da população mundial. Atinge uma média de 1,6% dos indivíduos que
possuem entre 65 e 69 anos e pode chegar a 38,9% entre aqueles com mais de 84 anos
(CARAMELLI; BARBOSA, 2002, p. 1).

Segundo Claudia Araújo e Juliana Nicoli, as chamadas “síndromes demenciais”


normalmente são classificadas em dois grupos: as demências degenerativas e
não-degenerativas (ARAÚJO; NICOLI, 2010, p. 2). No primeiro grupo, o das
degenerativas, encontramos aquelas que são decorrentes de acidentes vasculares,
processos infecciosos, traumatismos, deficiências nutricionais, tumores e outras
patologias do tipo. E no segundo grupo, o das não-denegerativas, estão aquelas que
possuem uma causa predominantemente cortical, como é o caso da Doença de Alzheimer;
ou subcortical, como é o caso com a chamada Doença de Huntington (Idem, 2010, p. 2).

Figura 32. As demências afetam diretamente a memória e a cognição.

Fonte disponível em: <http://static.wixstatic.com/media/9268f2_ad5bb134836a44c585f965d0862fbcb2.jpeg/v1/fill/w_564,h_37


0,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01/9268f2_ad5bb134836a44c585f965d0862fbcb2.jpeg>. Acesso em: 18 jul. 2016.

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UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

Além dessa divisão, é possível classificar a demência também através dos sintomas
que surgem à observação. Os dois principais sintomas recorrentes nesses casos, e que
aparecem sempre juntos, são o declínio da memória e o déficit de pelo menos mais
uma outra função cognitiva importante, como a linguagem, a escrita, a marcha ou a
utilização de objetos cotidianos elementares (CARAMELLI; BARBOSA, 2002, p. 1).

Existem quatro tipos básicos de demência: a Doença de Alzheimer; a Demência Vascular;


a Demência com Corpos de Lewy; e a Demência Frontotemporal. Todas elas se encaixam
nos dois subtipos citados – degenerativas e não degenerativas – e apresentam os dois
sintomas citados no parágrafo anterior em seu rol de manifestações. Entretanto, há
diferenças pontuais e vale destacá-las.

A “demência vascular” é um problema ligado diretamente a fatores cerebrovasculares.


Está associada a lesões tromboembolíticas, estados lacunares em lesões únicas de locais
cerebrais, lesões extensas da substância branca, angioplastiaeamiloide e acidentes
vasculares cerebrais hemorrágicos (ARAÚJO; NICOLI, 2010, p. 7). Trata-se, portanto,
de uma patologia com origem fundamentalmente orgânica, ainda que possua, é claro,
consequências mentais diretamente vinculadas.

O início da deterioração é mais agudo do que na “doença de Alzheimer”, por exemplo,


e há a ocorrência de períodos abruptos de queda, seguidos de etapas de estabilidade.
Problemas como a afasia, a apraxia e distúrbios visoespaciais também surgem com
o tempo. Porém, a personalidade das pessoas afetadas permanece preservada até os
estágios mais avançados (Idem, 2010, p. 8).

O segundo tipo é o da “demência por corpos de Lewy”. Nesse caso, os quadros


problemáticos apresentam flutuações dos déficits cognitivos em questão de minutos
ou horas; alucinações visuais bem detalhadas ou claras, vividas e recorrentes; sintomas
parkinsonianos leves – ou seja, sem tremor; e rigidez e distúrbio na marcha (Idem,
2010, p. 5). Segundo os estudiosos, durante o diagnóstico devem aparecer pelo menos
dois desses sintomas para que esteja configurado o quadro padrão (Idem, 2010, p. 6).

É uma doença com declínio cognitivo progressivo, que interfere profundamente nas
funções executivas e na capacidade diária de resolução de problemas e de atividades
da pessoa atingida. A memória é preservada, mas são comuns a atrofia da atenção e as
síncopes, que prejudicam ainda mais o andamento cotidiano (CARAMELLI; BARBOSA,
2002, p. 3).

Como terceiro tipo encontramos a chamada “demência frontotemporal”. Como o nome


indica, suas principais características físicas são a disfunção e a atrofia dos lobos frontais
e temporais do cérebro. Possui um caráter progressivo, mas não chega a afetar de forma

86
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

significativa a memória episódica. Entretanto, acarreta em importantes alterações


comportamentais, na personalidade e no trato com a linguagem (ARAÚJO; NICOLI,
2010, p. 6).

Segundo os estudiosos, as modificações de comportamento mais comuns que se verifica


com a “demência frontotemporal” são o isolamento social, a apatia, perda de capacidade
crítica, desinibição, impulsividade, irritabilidade, inflexibilidade mental, sinais de
hiperoralidade, descuido da higiene corporal, sintomas depressivos, estereotipias
motoras, exploração sem controle de objetos no ambiente e distração excessiva, dentre
outros.

Um subtipo importante, aqui, é o da chamada “demência semântica”. Nela, ocorre uma


perda progressiva do reconhecimento visual, esquecimento do significado das palavras,
anomia e dificuldades em testes de nomeação e na fluência verbal (Idem, 2010, p. 7).

E temos, finalmente, o último e mais conhecido tipo de demência, a chamada “doença


de Alzheimer”. O nome é uma homenagem ao primeiro estudioso a reconhecer as
principais características da doença, o psiquiatra alemão Aloysius Alzheimer (1864-
1915), que inclusive trabalhou com Emil Kraepelin.

Nesse tipo, também conhecido como “Mal de Alzheimer”, ocorre um comprometimento


cerebral intenso, que caminha junto com o comprometimento cognitivo e a perda gradual
e incessante da memória. O problema afeta a fala articulada, a nomeação de objetos
cotidianos, a capacidade de julgamento e raciocínio, as habilidades visou-espaciais e
até mesmo a capacidade de executar movimentos voluntários coordenados. Nas fases
terminais, todas as funções cerebrais são profundamente afetadas, o que compromete
radicalmente o equilíbrio entre o sono e a vigília, a marcha e a realização dos cuidados
pessoais, dentre outras consequências, emnum quadro que debilita de forma inapelável
a autonomia do sujeito, que fica basicamente dependente dos outros para realizar as
atividades mais simples do dia a dia (Idem, 2010, p. 9).

Essa é talvez a classificação psicopatológica cujo quadro seja mais evidentemente


problemático em relação ao trânsito. Todas as quatro formas de demência apresentam
prejuízos cerebrais relevantes, que aparecem sempre articulados a problemas mentais
que enfraquecem gradativamente várias faculdades e habilidades fundamentais
para o ato de dirigir, como a atenção, a capacidade visual, a reflexão cognitiva, a
memória, a capacidade crítica, a flexibilidade mental e a capacidade de julgamento
e interpretação dos sinais cotidianos. O que significa que os casos de demência não
podem ser equacionados com o trânsito, sob pena de aumento considerável do risco
de acidentes.

87
UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

Figura 33. Aloysius Alzheimer, descobridor da demência que leva o seu nome.

Fonte disponível em : <http://d1.stern.de/bilder/wissenschaft/2006/44/alz_fitwidth_489.jpg>. Acesso em: 19 jul. 2016.

88
Capítulo 7
Paciente com histórico de surto
psiquiátrico sem diagnóstico definido

Todas as psicopatologias tratadas até aqui se caracterizam por períodos de médios a


longos de duração e persistência dos sintomas por tempo indeterminado. Entretanto,
existem casos em que as manifestações ocorrem de maneira absolutamente súbita e
não duram muito tempo. Podem ser desencadeadas por uma diversidade muito grande
de fatores, embora geralmente não tenham ligação com eventos de ordem orgânica.

Em geral, esses casos recebem, em princípio, ou seja, enquanto estão sendo investigados
em seu modo de funcionamento primário, como “episódios” ou “surtos” psicóticos.
A ideia de surto ou episódio vida dar a ideia de algo que ocorre sem previsão, de
maneira repentina, e que ganha contornos graves, de um arrebatamento impulsivo
e desmedido. E ele pode se dar tanto na direção de uma fúria veemente, quanto
no de um estado de pasmo. Interessante notar que a palavra “arrebatamento” está
associada, no dicionário de sinônimo, aos dois sentidos, “fúria” e “pasmo” (1977, p.
133).

Trata-se de um dos tópicos mais complexos do campo das ciências da mente. Isso porque
as psicopatologias conhecidas e descritas anteriormente nascem, em vários casos, de
eventos súbitos. O que significa que sua sintomatologia vai apontar para respostas que
muitas vezes vão ser parecidas com os surtos passageiros. Essa complexidade exige
sempre cautela na hora da investigação.

Outra hipótese que deve ser investigada nos primeiros momentos é a de se o indivíduo
utilizou medicamentos psicotrópicos em consonância com a crise ou surto. É uma
informação relevante, porque pode ajudar a descobrir se existe algo além do evento
psicológico em si, como, por exemplo, um quadro de abuso sistêmico de substâncias
psicoativas.

Descartadas essas alternativas iniciais, cumpre passar então para a etapa de avaliar
a possibilidade de que haja de fato um surto ou episódio psicótico. Nesse tipo de
transtorno, agudo e transitório, é muito comum o relato de sintomas de perplexidade
e confusão, tanto da pessoa em relação aos próprios atos, quanto em relação ao tempo
e ao espaço usuais que experimenta. Mais uma vez é preciso cuidado, porque para se
enquadrar na categoria dos surtos, é preciso que o evento não seja suficientemente
persistente ao ponto de esbarrar com outros tipos de diagnóstico.

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UNIDADE II │ Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito

Na maioria dos casos, os transtornos psicóticos agudos e transitórios apresentam,


como características básicas, os seguintes sintomas: um início agudo, em menos
de duas semanas, com a transição de um estado sem sintomas psicóticos para um
estado francamente psicótico; presença de síndromes bem características, tais como
os chamados “estados polimórficos” – que são sintomas variáveis que se modificam
rapidamente –, característicos das psicoses agudas descritas em diversos países, e os
sintomas característicos da esquizofrenia; e presença ou ausência de estresse agudo
durante as duas semanas que antecederam o início dos sintomas psicóticos.

Normalmente, a recuperação completa das pessoas que passam por esse tipo de situação
acontece depois de um a três meses do início do tratamento, se não acontecer nenhum
evento novo. E o diagnóstico pode levar em conta, também, o histórico pregresso
da pessoa, ou seja, toda e qualquer informação relevante sobre sua vida anterior ao
surto e aos eventos que o desencadearam. Além, é claro, de exames orgânicos e/ou
neurológicos, que podem auxiliar a detectar conexões físicas com o surto, como, por
exemplo, o uso de psicotrópicos.

Figura 34. A ilha do medo (2010). Filme de Martin Scorsese.

Fonte disponível em: <http://imagens.cinemacomrapadura.com.br/2014/08/20140827-ilha-do-medo-2010-poster-615x864.


jpg>. Acesso em: 18 jul. 2016.

Outro ponto importante a ser destacado nesses casos são as variáveis ligadas ao período
de tratamento. A participação da pessoa afetada é fundamental, mas não se descarta a
participação da família e dos amigos, quando for possível. Isso pode ajudar a minimizar
os riscos de regressão dos sintomas e a sustentar as ações estabelecidas no âmbito do
diagnóstico e do tratamento.

90
Quadros e transtornos psicopatológicos e suas repercussões na Psicologia de Trânsito │ UNIDADE II

Vale ressaltar, a importância fundamental que o diagnóstico tem nesses casos. Como
estamos no âmbito de uma questão que não tem qualquer origem orgânica – salvo
nos casos medicamentosos, já mencionados –, as entrevistas, inventários e anamneses
clínicos vão ser os critérios gerais a serem utilizados para uma melhor definição do
problema.

Nesse campo dos transtornos psicóticos breves o diagnóstico é sempre provisório –


como, aliás, deve ser em todos os casos, mesmo naqueles em que as evidências apontam
para um quadro de classificação mais óbvio. Na maioria dos casos, ou o período de
surto aos poucos diminui o ritmo até cessar, o que devolve o indivíduo às suas práticas
corriqueiras, ou então evolui para outros quadros, como o dos transtornos de humor e
mesmo a esquizofrenia (DEL-BEN e outros, 2010, p. 5).

A leitura dos sinais e dos sintomas que se apresentam nos casos de surto e episódio
psicótico se assemelha a um constante exercício de “educação continuada”. Isso porque,
ao contrário dos casos e das definições mais “enxutos”, ou seja, daqueles que se mostram
mais “evidentes” em relação ao seu quadro característico, nos casos episódicos a lógica que
rege a situação é completamente diferente, porque surge cercada de sutilezas e detalhes que
impedem uma classificação definitiva. Como o título busca situar, nesses casos, estamos
diante de um quadro e de uma situação sem diagnóstico definido. E aí está o grande desafio
dos psiquiatras, psicanalistas e demais cientistas da área, quando defrontados com esse
tipo de enredo.

Figura 35. Inferno (1879). Livro do dramaturgo sueco August Strindberg, no qual ele narra algumas de suas

experiências psíquicas mais profundas.

Fonte disponível em: <http://cdn.30porcento.com.br.s3-sa-east-1.amazonaws.com/capas/9788573264272.jpg>

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