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Quem foi Nise da Silveira, a mulher que revolucionou o

tratamento da loucura no Brasil

Nise da Silveira, psiquiatra alagoana (1905-1999), enxergou a riqueza de seres humanos que
estavam “no meio do caminho”. No meio do caminho entre o existir e a dignidade. No meio do
caminho entre a loucura e a exclusão total. Entre o aceitável e o abominável. Essa mulher se
rebelou contra a psiquiatria que aplicava violentos choques para "ajustar" pessoas e propôs um
tratamento humanizado, que usava a arte para reabilitar os pacientes.

Esquizofrênicos marginalizados e esquecidos puderam ser autores de obras hoje expostas


no Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro (RJ). A arte marcou o renascimento
daquelas pessoas para a sociedade. Os ensinamentos de Nise nos falam de uma atualidade que
se repete a cada vez que a loucura é estigmatizada e polarizada: é ou não é louco(a). Cobramos
de nós mesmos, o tempo todo: sejamos funcionais. Como se não pudéssemos falhar ou viver
nossas escolhas fora da curva que definiram para nós.
Nise, essa senhorinha miúda, agigantou a humanidade ao cuidar de brasileiros rejeitados pelo
sistema e isolados do convívio.Como essa mulher fez a diferença no mundo, listamos algumas
razões pelas quais ela merece ser convocada à nossa memória:
Ela foi uma mulher pioneira
Em 1926, ao se formar na Faculdade de Medicina da Bahia, Nise era a única mulher em uma
turma de 157 alunos. Ainda na graduação ela apresentou o estudo Ensaio sobre a criminalidade
da mulher no Brasil.
Ela deu voz à loucura
“Na época em que ainda vivíamos os manicômios e o silenciamento da loucura, Nise da Silveira
soube transformar o Hospital Engenho de Dentro em uma experiência de reconhecimento do
engenho interior que é a loucura”, explica à revista Cult Christian Ingo Lenz Dunker,
psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP.
Nise era uma defensora da loucura necessária para se viver. “Não se cura além da conta. Gente
curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido:
vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi
com pessoas muito ajuizadas.”

Ela foi presa política


Nise ficou presa de 1934 a 1936, durante o Estado Novo, acusada de envolvimento com o
comunismo. Ela foi denunciada por uma colega de trabalho, que era enfermeira. No presídio
Frei Caneca, ela dividiu a cela com Olga Benário, a militante comunista alemã que na época era
casada com Luís Carlos Prestes, lembra a revista Cult.
Ela implementou a terapia ocupacional no manicômio
Em 1944, Nise passou a trabalhar no Hospital Pedro II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no
Rio de Janeiro. Ela se recusou a seguir o tratamento da época, que incluía choque elétrico,
cardiazólico e insulínico, camisa de força e isolamento. Ao dizer “não”, a psiquiatra foi
transferida, como “punição”, para o Setor de Terapia Ocupacional do Pedro II. A reportagem da
revista Cult lembra que esse era um espaço desprestigiado na época.
Porém, essa transferência foi fundamental para a revolução que Nise provocaria na psiquiatria:
foi nesse setor do hospital que ela implementou, junto com o psiquiatra Fábio Sodré, a Terapia
Ocupacional no tratamento psiquiátrico.

Ela usou a arte para tratar problemas graves de saúde mental


Nise percebeu que as artes plásticas eram o canal de comunicação com os pacientes
esquizofrênicos graves, que até então não se comunicavam verbalmente. As obras produzidas
por eles davam “voz” aos conflitos internos que viviam.

Ela revelou as emoções dos esquizofrênicos


Elizabeth Maria Freire de Araújo Lima, professora do Curso de Terapia Ocupacional da USP e
autora do livro Arte, Clínica e Loucura: Território em Mutação, explica à revista Cult que Nise
constatou que o mundo interno do esquizofrênico, considerado inatingível até então, poderia ser
acessado, revelando as emoções desses pacientes por meio das artes plásticas. “Nise afirmava
que o hospital colaborava com a doença e acreditava que caberia à terapêutica ocupacional parte
importante na mudança desse ambiente.”
Ela questionou os manicômios
Para Nise, a experiência em manicômios mostrou que havia uma confusão entre hospital
psiquiátrico com cárcere, com os pacientes tratados como presos. Avessa a essa abordagem
desde o começo, e defensora de um olhar humanista, em 1956, Nise fundou a Casa das
Palmeiras, a primeira instituição a desenvolver um projeto de desinstitucionalização dos
manicômios no Brasil. A Casa é lugar para o convívio afetivo e estímulo à criatividade dos
psiquiátricos. A clínica funciona em regime aberto, sem fins lucrativos, à base de doações.
Ela ajudou a escrever a história da psiquiatria
Nise apontou falhas na psiquiatria, contestou práticas e demonstrou soluções, dando novos
contornos e sentidos aos tratamentos e às relações entre psiquiatras e pacientes. Em seus 94
anos de vida, a alagoana publicou dez livros e escreveu uma série de artigos científicos.

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