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CURSO: PREPARATÓRIO PARA O CONCURSO DA SAÚDE MENTAL – (CAPS E RAPS) FORTALEZA

LEGISLAÇÃO DA SAÚDE E DA SAÚDE MENTAL

Professora: Talita Lemos

TEXTO AUTOR PÁGINAS

Legislação Federal Voltada Às Pessoas Com Transtornos 01 a 05


Mentais

Legislação Em Saúde Mental No Brasil (1966-2001): Gessica Greschuk Ribeiro


Trajeto Das Campanhas De Saúde Às Reformas Na Guilherme Bertassoni Da Silva
Assistência 01 a 18
Adriano Furtado De Holanda
1
Democracia E Reforma Psiquiátrica No Brasil Paulo Gabriel Godinho Delgado 01 a 06

A Saúde Mental Infantil Na Saúde Pública Brasileira: Maria Cristina Ventura Couto 01 a 09
Situação Atual E Desafios Cristiane S Duarte

Pedro Gabriel Godinho Delgado

Apoio Matricial E Equipe De Referência: Uma Metodologia Gastão Wagner De Sousa Campos 01 a 09
Para Gestão Do Trabalho Interdisciplinar Em Saúde
Ana Carla Domitti

Apoio Matricial, Projeto Terapêutico Singular E Produção Maria Salete Bessa Jorge, 01 a 09
Do Cuidado Em Saúde Mental1 Alexandre Melo Diniz

Leilson Lira De Lima

Jardeliny Corrêa Da Penha

Consultório De/Na Rua: Desafio Para Um Cuidado Em Mário Francis Petry Londero 01 a 10
Verso Na Saúde Ricardo Burg Ceccim

Luiz Fernando Silva Bilibio

Saúde Mental E Atenção Básica À Saúde: Alejandra Pizarnik 01 a 08

O Apoio Matricial Na Construção De Uma Rede Mariana Dorsa Figueiredo


Multicêntrica
Rosana Onocko Campos

Além Das Portarias: Desafios Da Política De Saúde Mental Cristina Amélia Luzio 01 a 10

Silvio Yasui
ARTIGO 1

LEGISLAÇÃO FEDERAL
VOLTADA ÀS PESSOAS COM
TRANSTORNOS MENTAIS
Odila Paula Savenhago Schwartz1, Giannine Roberta Marcelino de Souza França1, Mariluci Camargo Ferreira da Silva Cândido2, Adailson da
Silva Moreira3, Ramon Moraes Penha3, Elizabeth Gonçalves Ferreira Zaleski4, Marco Antônio Cândido5, Dorisdaia Carvalho de Humerez6,
Sebastião Junior Henrique Duarte7

Objetivo: verificar a influência da legislação federal voltada à pessoa com transtorno mental no exercício profissional da
enfermagem. Metodologia: estudo descritivo, documental, exploratório, com abordagem qualitativa. Busca em meio eletrônico,
utilizando-se de legislações federais brasileiras relacionadas à pessoa com transtorno mental, independente da data da
publicação. Dados organizados pelo método da análise de conteúdo de Bardin. Resultados: emergiram três categorias temáticas:
saúde mental em serviços comunitários; saúde mental em serviços hospitalares e implicações ao exercício da enfermagem.
Conclusão: a verificação da legislação retratou avanços nos direitos humanos, em especial a saúde, mesmo assim há carência
de legislação que amplie o propósito de atuação da equipe de enfermagem no campo da saúde mental.
Descritores: Legislação, Transtornos Mentais, Enfermagem.

BRAZILIAN LEGISLATION ORIENTED TO PEOPLE WITH MENTAL DISORDERS


Objective: to verify the influence of federal legislation aimed at a person with mental disorder in the professional practice of
nursing. Methodology: descriptive, documentary, exploratory study with a qualitative approach. Search is done electronically,
using Brazilian federal legislation related to a person with .commental disorder, regardless of the publication date. Data
organized by the Bardin content analysis method. Results: three thematic categories emerged: mental health legislation in
community services; mental health legislation in hospital services and implications for the nursing practice. Conclusion: the
verification of the legislation portrayed advances in human rights, especially health, although there is a lack of legislation that
broadens the scope of action of the nursing team in the field of mental health.
Descriptors: Legislation, Mental Disorders, Nursing.

LEGISLACIÓN FEDERAL BRASILEÑA ORIENTADA HACIA A LAS PERSONAS CON TRANSTORNOS MENTALES
Objetivo: evaluar la influencia de las leyes federales dirigidos a las personas con trastornos mentales en la práctica de enfermería.
Metodología: Estudio descriptivo, documental, exploratorio, con enfoque cualitativo. Busca en sitios electrónicos, usando las
leyes federales brasileñas relacionadas con los pacientes mentales, independientemente de la fecha de publicación. Los datos
fueron organizados por el método de análisis de contenido de Bardin. Resultados: tres categorías temáticas: la legislación
destinada a los servicios comunitarios de salud mental; la legislación a los servicios del hospital de salud mental e implicaciones
para la labor de enfermería. Conclusión: la verificación de las leyes retrata avances en materia de derechos humanos, en
particular la salud, sin embargo, hay una falta de legislación para ampliar el ámbito de acción del personal de enfermería en el
campo de la salud mental.
Descriptores: Legislación, Trastornos Mentales, Enfermería.

1
Enfermeira. Mestranda em Enfermagem. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Enfermagem. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
2
Enfermeira. Docente. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Enfermagem. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas.
3
Enfermeira. Docente. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
4
Enfermeira. Universidade Católica Dom Bosco, Campo Grande, MS
5
Enfermeira. Colaborador na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
6
Enfermeira. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica. Conselheira do Concelho Federal de Enfermagem
7
Enfermeiro. Docente. Programa de Pós-Graduação Mestrado em Enfermagem. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Email: sjhd.ufms@gmail.com

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ARTIGO 1 LEGISLAÇÃO FEDERAL VOLTADA ÀS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS
Odila Paula Savenhago Schwartz, Giannine Roberta Marcelino de Souza França, Mariluci Camargo Ferreira da Silva Cândido, Adailson da Silva Moreira,
Ramon Moraes Penha, Elizabeth Gonçalves Ferreira Zaleski, Marco Antônio Cândido, Dorisdaia Carvalho de Humerez, Sebastião Junior Henrique Duarte

INTRODUÇÃO Federativa do Brasil (Planalto), do Ministério da Saúde (Saúde


O crescente acometimento de transtorno mental na Legis) e do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), no
população levou os líderes da Organização das Nações período de dezembro de 2015 a fevereiro de 2016.
Unidas (ONU) a incluírem o tópico saúde mental nas metas Utilizaram-se 15 Descritores em Ciência da Saúde (DeCS)
dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Foi para as buscas: saúde mental, psiquiatria, transtornos
estipulado que, até 2030, os países membros da ONU reduzam mentais, drogas ilícitas, usuários de drogas, depressão,
a mortalidade prematura por doenças não transmissíveis, por transtorno bipolar, esquizofrenia, transtornos relacionados
meio de ações de prevenção e de tratamento, incluindo a ao uso de substâncias, cocaína, cocaína/crack, serviços de
promoção da saúde mental, do bem estar, entre outras metas saúde mental, transtornos de ansiedade, transtornos da
para assegurar uma vida saudável para todos em todas as alimentação, suicídio e a palavra-chave: psicossocial.
idades(1). Incluíram-se as legislações relacionadas à pessoa com
A literatura(2,3,) alerta que, até o ano 2030, a depressão transtorno mental em vigência, excluindo-se as legislações
será a segunda maior causa de incidência de doenças em revogadas e repetidas.
países de renda média. No Brasil, a ocorrência de doenças Um formulário foi elaborado pelos autores, o qual guiou
mentais atinge, aproximadamente, 12% da população(4). a coleta de dados, contendo as seguintes variáveis: data
Portanto, são relevantes estudos que possam contribuir com de publicação, fonte da pesquisa, tipo de documento,
a reorganização da atenção à saúde mental, bem como com conteúdo relativo ao transtorno mental, áreas contempladas,
os profissionais que assistem esse grupo populacional. disposição das áreas contempladas, disposições dos artigos,
Nesse sentido, a Portaria no 3.088/2011, do Ministério enfoque e resumo dos dispositivos.
da Saúde, estrutura a Rede de Atenção Psicossocial (RAPs) Os resultados foram analisados e categorizados, a partir
e prioriza as pessoas com transtorno mental e as com da análise de conteúdo(8).
necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras
drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)5. RESULTADOS
Para o atendimento das pessoas acometidas por doenças Localizaram-se 451 documentos, conforme ilustra a figura 1.
mentais, é necessário que a RAPs e seus componentes Figura 1 - Panorama geral do processo de busca documental,
tenham equipes multiprofissionais para efetuar os Campo Grande, 2017.
atendimentos com qualidade e integralidade. Nesse sentido,
o cuidado de enfermagem em saúde mental vem evoluindo
consideravelmente no decorrer dos anos(6).
O enfermeiro é considerado agente terapêutico, por
participar nas relações interpessoais, promover o cuidado
holístico e estabelecer interação em grupo. No entanto,
a complexidade do trabalho em saúde mental requer
legislações que assegurem, além dos direitos da pessoa com
transtorno mental, o exercício profissional, visando atender
integralmente o paciente, seus fatores sociais e a reinserção
sociocultural desses indivíduos(6).
Objetivou-se verificar a influência da legislação federal
voltada à pessoa com transtorno mental no exercício
profissional da enfermagem.

METODOLOGIA
Trata-se de um estudo de revisão integrativa. É parte da
dissertação de mestrado “Saúde Mental, Direitos Humanos e
o Exercício da Enfermagem: Instrumentos Legais Brasileiros”
do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul(7).
Partiu-se da seguinte pergunta: quais legislações federais
brasileiras são relacionadas à pessoa com transtorno mental?
A busca foi realizada nos sites da Presidência da República

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LEGISLAÇÃO FEDERAL VOLTADA ÀS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS
Odila Paula Savenhago Schwartz, Giannine Roberta Marcelino de Souza França, Mariluci Camargo Ferreira da Silva Cândido, Adailson da Silva Moreira, ARTIGO 1
Ramon Moraes Penha, Elizabeth Gonçalves Ferreira Zaleski, Marco Antônio Cândido, Dorisdaia Carvalho de Humerez, Sebastião Junior Henrique Duarte

Excluíram-se 23 normativas que não dispunham de Saúde mental em serviços hospitalares


texto na íntegra, restando 428 documentos e, desses, Documentos da década de 1940, como o Decreto de
foram construídas três categorias, apresentadas a Lei no 7.055, de 18 de novembro de 1944, trazem, em seu
seguir: texto, a criação de hospitais psiquiátricos adultos e infantis,
ressaltando que esses ainda estão vigentes, embora
Saúde mental em serviços comunitários promulgados antes da reforma psiquiátrica: “Fica criado [...] o
Essa categoria reuniu normas referentes aos serviços Centro Psiquiátrico Nacional (CPN), ao qual compete assistir,
comunitários de saúde mental que foram implementados distribuir e internar doentes mentais, no Distrito Federal, e
após a consolidação da Reforma Psiquiátrica. A maior parte realizar pesquisas e estudos sobre as psicopatias”(12).
desses instrumentos traz expressamente conteúdos como Após a Lei 10.216 de 6 de abril de 2001, que dispõe sobre a
a habilitação de serviços extra-hospitalares de saúde mental proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais
nos municípios, seguida daquelas que versam sobre incentivos e redireciona o modelo assistencial em saúde mental(13), surgiu
financeiros para investimento, conforme Portaria n° 904, de o Serviço Hospitalar de Referência para atenção às pessoas
16 de setembro de 2014: “Ficam habilitados os Centros de com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades
Atenção Psicossocial [...] para realizarem os procedimentos decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, um
específicos previstos na tabela de procedimentos, ponto de atenção do componente Atenção Hospitalar da
medicamentos, órteses e próteses e materiais especiais do Rede de Atenção Psicossocial.
SUS(9). Nas legislações sobre a habilitação de leitos em hospitais,
Levando em consideração a necessidade de estruturação destacam-se algumas estabelecendo uma nova classificação
e fortalecimento de uma rede de assistência centralizada na hospitalar, como a Portaria no 2.644, de 24 de outubro de
atenção comunitária, o Ministério da Saúde instituiu a Rede 2009: “[...] estabelecer nova classificação dos hospitais
de Atenção Psicossocial: “[...] Instituir a Rede de Atenção psiquiátricos de acordo com o porte [... ](14).
Psicossocial com a criação, ampliação e articulação de Foram encontradas legislações que tratam da
pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou incorporação de medicações no âmbito do SUS, para
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso tratamento do paciente com transtornos mentais, como
de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS”(5). a Portaria no 364, de 9 de abril de 2013: “Fica aprovado,
Os resultados evidenciaram que o SUS responsabiliza-se na forma do Anexo a esta Portaria, o Protocolo Clínico e
pela atenção à saúde de doentes mentais decorrente do uso Diretrizes Terapêuticas – Esquizofrenia”(15).
de álcool e outras drogas, e oferece assistência junto a RAPs Observa-se a vigência de legislações antigas, anteriores
por equipe multiprofissional, dentre eles, os profissionais de à Lei do exercício profissional da enfermagem. Esse dado
enfermagem. A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006: “[...] remete à necessidade de verificar se há divergência com
institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas o atual modelo de atenção à saúde mental, também se
(Sisnad); prescreve medidas para prevenção do uso indevido, traz implicações profissionais, visto que a Lei do exercício
atenção e reinserção social de usuários e dependentes de profissional de enfermagem em vigor é do ano de 1986(16).
drogas [...]”(10).
Outro dado relevante à sociedade e que conta com a Implicações ao exercício da enfermagem
atuação da enfermagem são as instituições terapêuticas, As legislações que fazem relação com o exercício da
inseridas na RAPs através da Portaria no 121, de 25 de janeiro enfermagem trazem, em seu conteúdo, a presença do
de 2012: “Fica instituída a Unidade de Acolhimento para enfermeiro nos serviços de saúde mental, tal como a Portaria
pessoas com necessidades decorrentes do uso de crack, no 336, de 19 de fevereiro de 2002, o que provavelmente
álcool e outras drogas, no componente de atenção residencial incrementou as especializações nesse campo específico:
de caráter transitório da RAPs”; [...] “Entende-se por unidade “[...] equipe mínima [...]1(um) enfermeiro com experiência e/ou
de atenção em regime residencial, o estabelecimento de formação na área de saúde mental”(17).
saúde que presta serviço de atenção em regime residencial O Enfermeiro é um dos profissionais que compõe o
de caráter transitório, incluída a comunidade terapêutica [...] Conselho Nacional Antidrogas (CONAD), estabelecido
(11)
. pelo Decreto no 5.912, de 27 de setembro de 2006: “[...]
É evidente o avanço na atenção à pessoa com transtorno representante de organizações, instituições ou entidades
mental, propiciado por políticas públicas de saúde que nacionais da sociedade civil: [...] um enfermeiro, de
também fortalecem os seus direitos, bem como o exercício comprovada experiência e atuação na área de drogas,
profissional da enfermagem. indicado pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)”(18).

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Odila Paula Savenhago Schwartz, Giannine Roberta Marcelino de Souza França, Mariluci Camargo Ferreira da Silva Cândido, Adailson da Silva Moreira,
Ramon Moraes Penha, Elizabeth Gonçalves Ferreira Zaleski, Marco Antônio Cândido, Dorisdaia Carvalho de Humerez, Sebastião Junior Henrique Duarte

A única legislação localizada na base de dados do áreas, serviços e profissionais de saúde.


Cofen, a Resolução no 427, de 7 de maio de 2012, embora Percebeu-se, na análise das legislações, o reconhecimento
não reporte diretamente à pessoa com transtorno mental, dos direitos humanos da pessoa com transtorno mental, por
é aplicável para essa população: “Os profissionais da meio do tratamento digno, baseado em princípios científicos,
Enfermagem, excetuando-se as situações de urgência legais e na reinserção social. Fundamentado nisso, os grandes
e emergência, somente poderão empregar a contenção hospitais e manicômios do tipo carcerário foram substituídos
mecânica do paciente sob supervisão direta do Enfermeiro por serviços comunitários, apoiados por leitos psiquiátricos
e, preferencialmente, em conformidade com protocolos em hospitais gerais(13). A internação hospitalar, em qualquer
estabelecidos pelas instituições de saúde, públicas ou de suas modalidades, só será indicada quando os recursos
privadas, a que estejam vinculados”(19). extra-hospitalares forem insuficientes, conforme disposição
legal(13).
DISCUSSÃO Um dos serviços substitutivos do modelo assistencial
Os resultados evidenciaram os preceitos da Reforma em saúde mental são os CAPs, nas modalidades: CAPs I (em
Psiquiátrica Brasileira, que teve como marco a Lei nº municípios com população de até 5 mil habitantes), II (em
10.216/2001, em promover os direitos da pessoa com municípios cuja população excede 5 mil habitantes) e III (em
transtorno mental, e modificar o modelo assistencial asilar municípios com população superior a 200 mil habitantes),
e excludente. Antes da Reforma, essas pessoas ficavam CAPs i (para atendimento de crianças e adolescentes) e CAPs
encarceradas em manicômios, ad (atendimento de pessoas
por anos, sofrendo abusos e com transtornos decorrentes
violações de seus direitos. Em do uso e dependência de
decorrência das condições
insalubres (superlotação dos
“Evidente que, no substâncias psicoativas).
Conforme a Portaria n°
hospitais, más condições
de higiene, de alimentação
caos das instituições 336/2002, a composição da
equipe mínima imprescindível
e psicofarmacoterapia
inadequadas, entre outros),
manicomiais, a equipe é o médico e o enfermeiro
no serviço substitutivo de
com violação dos direitos
humanos, como o direito à
de enfermagem sofria assistência em Saúde Mental.
Acredita-se ser essencial que o
liberdade, à higiene pessoal
e ambiental, alimentação,
violação de direitos e enfermeiro tenha formação em
saúde mental (1).
tratamento medicamentoso
e psicoterapêutico, lazer, e
deveres profissionais” Esse estudo desvelou
que há, ainda, carência de
de habitação da pessoa com documentos oficiais por
transtorno mental, houve o parte do Conselho Federal
descredenciamento de vários hospitais. de Enfermagem que possam ampliar o escopo de atuação
Evidente que, no caos das instituições manicomiais, a da equipe de enfermagem para além do que consta na Lei
equipe de enfermagem sofria violação de direitos e deveres no 7.498/86(16). Em que pese a amplitude das legislações
profissionais, e também de seus direitos humanos, por ser a do COFEN, é preciso que o órgão máximo da enfermagem
categoria profissional que tem por essência o cuidado ao ser brasileira coloque em discussão a necessidade da legislação
humano, tanto que se juntou ao grupo de luta pelos direitos relacionada à assistência de enfermagem específica em saúde
da pessoa em sofrimento psíquico. mental, para continuar acompanhando a evolução nacional.
Cabe ressaltar que o cuidado de enfermagem em Aponta-se, como limitações, as fontes de buscas,
saúde mental não está restrito aos serviços e nem aos tendo em vista que não abrangeram legislações estaduais e
profissionais especialistas em saúde mental, mas refere-se municipais, tornando-se em motivação para que, em outros
a todo ambiente e qualquer serviço de saúde e outros, em estudos, sejam incorporadas legislações regionalizadas e
que ocorra o exercício da enfermagem. A ideia da Reforma locais.
Psiquiátrica Brasileira é trabalhar em rede de atenção à saúde
mental, principalmente em serviços comunitários de saúde, CONCLUSÃO
como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) e a Unidade A análise das legislações relacionadas à pessoa com
de Atenção Básica à Saúde (UBS), envolvendo as diversas transtorno mental, disponíveis em meio eletrônico, revelou os

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LEGISLAÇÃO FEDERAL VOLTADA ÀS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS
Odila Paula Savenhago Schwartz, Giannine Roberta Marcelino de Souza França, Mariluci Camargo Ferreira da Silva Cândido, Adailson da Silva Moreira, ARTIGO 1
Ramon Moraes Penha, Elizabeth Gonçalves Ferreira Zaleski, Marco Antônio Cândido, Dorisdaia Carvalho de Humerez, Sebastião Junior Henrique Duarte

avanços voltados à parcela de uma população que, por muitos no modelo de atenção à saúde mental e psiquiátrica, bem
anos, sofreu estigma social e violação dos direitos humanos. como o acentuado crescimento das pessoas com transtorno
Contudo, chama-se atenção para a indispensabilidade de mental.
as profissões ampliarem o alicerce legal para o cuidado Esse estudo mostrou o progresso da assistência a esses
em saúde mental, de modo a acompanharem o momento indivíduos, assegurando o seu direito de cidadania, e a serem
histórico vivido pelo país, principalmente a partir da reforma tratados com dignidade e respeito.

REFERÊNCIAS

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Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou Estabelece novo reagrupamento de classes para os hospitais psiquiátricos,
transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool reajusta os respectivos incrementos e cria incentivo para internação
e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF, de curta duração nos hospitais psiquiátricos e dá outras providências.
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Habilita centros de atenção psicossocial para realizar os procedimentos Atenção Psicossocial. Diário Oficial da União 2002; 20 fev.
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Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com Decreto/D5912.htm Acesso em: 02 out 2016.
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html Acesso em: 06 nov 2016. cofen-n-4272012_9146.html Acesso em: 12 out 2016.

Recebido em: 20/11/2016


Aceito em: 10/05/2017. Enferm. Foco 2017; 8 (2): 07-11 11
Artigos

LEGISLAÇÃO EM SAÚDE MENTAL NO BRASIL (1966-2001): TRAJETO DAS


CAMPANHAS DE SAÚDE ÀS REFORMAS NA ASSISTÊNCIA

BRAZILIAN STATUTORY LEGISLATION IN THE MENTAL HEALTH FIELD (1966-2001):


THE PATH FROM THE HEALTH CAMPAIGNS TO HEALTHCARE REFORMS
Gessica Greschuk Ribeiro1
Guilherme Bertassoni da Silva2
Adriano Furtado de Holanda3

RESUMO

Estudamos neste artigo o trajeto dos movimentos sociais e ações públicas na área da saúde
mental que se sucederam no Brasil, a partir das Campanhas de Saúde em 1966, até os últimos
acontecimentos considerados relevantes para a construção das políticas públicas em saúde
mental, conforme previstas na legislação atual. Este trabalho permite compreender a evolução das
estratégias adotadas pelo governo. Apresenta uma perspectiva histórica que foi traçada a partir da
legislação e documentos oficiais, de forma descritiva e imparcial, levando também em consideração
as influências teóricas desse movimento, advindas principalmente da reforma psiquiátrica italiana.
Destacam-se como produtos finais das tensões deste período, a Lei Orgânica da Saúde (Lei n.
8080/1990), e a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei n. 10.216/2001).
Palavras-chave: Legislação; Saúde Mental; Psiquiatria.

ABSTRACT

In this article it will be studied the path of social movements and public actions in the mental health
field, as occurred in Brazil, from the Health Campaign in 1966, until the latest events considered
relevant to the construction of public policy in mental health, provided by the current Law. This
work enables the reader to understand the development of government’s strategies. It presents
a historical perspective made from the body of laws and official documents, in a descriptive and
impartial purpose. As well, it takes into account the theoretical influences of this movement, which
came from the Italian psychiatric reform, mainly. It can be made salient, as final productions of this
period and its stresses, the Organic Law of Brazilian Health (Act 8.080/1990) and the Psychiatric
Reform Act (10216/2001).
Keywords: Law; Mental Health; Psychiatry.

1
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba-PR, Brasil. E-mail: gr_gessi@yahoo.com.br
2
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Perito Criminal na Polícia Científica do
Paraná. Curitiba-PR, Brasil. E-mail: silvapsi@hotmail.com
3
Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). Professor Adjunto e
Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade da Universidade Federal do Paraná (LabFeno-UFPR).
Curitiba-PR, Brasil. E-mail: aholanda@yahoo.com.br
14
INTRODUÇÃO

No Brasil, o período de 1960 a 2001 foi marcado por grandes mudanças na forma de pensar
e praticar a psiquiatria. Foram alcançados importantes avanços para a implementação de políticas
públicas na área da saúde mental, conforme reconhecemos hoje, de caráter psicossocial. Este artigo
pretende identificar a política pública oficial brasileira na área da saúde mental desse período, a partir
de uma perspectiva histórica.
O nosso recorte cronológico se dá a partir da implantação das Campanhas de Saúde,
estratégia utilizada pelo gestor federal a partir de 1966. A política das Campanhas desloca a
centralidade da clínica médica para o sentido da atuação comunitária em saúde pública, embora
ainda carregue consigo o caráter asilar, herança do período anterior quando, no final do século
XIX e início do século XX, as inovações da psiquiatria europeia se disseminaram no Brasil. Esse
período foi marcado pela implantação de grandes hospitais psiquiátricos, com referencial de
diagnóstico no isolamento do paciente e na descrição de sintomas, e referencial de tratamento
em técnicas como a eletroconvulsoterapia, choque insulínico e lobotomia. Apenas em meados
dos anos 50, quando o advento da psicofarmacologia permitiu o uso de medicações no campo
da medicina psiquiátrica, se deu origem a um novo modo de relação entre paciente, psiquiatra
e equipamento de saúde.
As próprias estratégias das Campanhas de Saúde Pública e Campanha Nacional de Saúde
Mental (1966) permitiram o desenvolvimento do fenômeno descrito por Amarante (2007) como
“Indústria da Loucura”, quando do fortalecimento da psiquiatria de viés biomédico e substituição
dos asilos psiquiátricos públicos por hospitais privados, a indústria médica (psiquiátrica) passou a
receber grandes lucros, enquanto os trabalhadores da área de saúde mental sofreram com crescente
precarização das condições de trabalho.
Foi nesse cenário que se iniciou um movimento pela reforma sanitária e psiquiátrica em
oposição à privatização da assistência psiquiátrica e ao modelo hospitalocêntrico, influenciado
pela reforma italiana, inspirada no modelo de Psiquiatria Democrática de Franco Basaglia. Os
movimentos contrários à lógica manicomial nasceram o por muito tempo permaneceram como
minoritários e contra-hegemônicos. As décadas de 70 e 80 foram marcadas pela disseminação
da proposta antimanicomial em diversos encontros e congressos, dentre os quais o I Congresso
Nacional de Trabalhadores de Saúde Mental, em 1978, tornou-se um marco da Reforma
Psiquiátrica Brasileira.
Outro marco determinante para o desenvolvimento das políticas públicas de assistência
à saúde mental, conforme a temos hoje, seria a promulgação da Constituição Cidadã de 1988,
que traz em sua concepção de saúde pública os princípios da universalidade, integralidade e
equidade, servindo como base para o desenvolvimento da Lei Orgânica de Saúde brasileira, Lei
n. 8080 de 19 de setembro de 1990.
O presente artigo descreve o trajeto das ações e políticas de saúde mental brasileiras até a
aprovação da Lei n. 10216 de 2001, que direciona os tratamentos a instâncias extra-hospitalares
e garante direitos aos portadores de transtornos mentais. Optamos por este recorte de fim por
entender que não há marco legal mais recente que referende mudança tão significativa: as novas
legislações partem da Lei n. 10216/2001.

Revista PsicoFAE
15

Foram selecionados portarias, decretos e leis que apresentam pontos marcantes da


solidificação da política oficial de saúde mental, como definições administrativas, de organização
de serviços e do modelo assistencial ou de tratamento. Este recorte metodológico se dá por
conta da possibilidade de verificação desses documentos, mantidos acessíveis pelos sítios oficiais
das instituições públicas estatais, a exemplo da Câmara e Senado Federal. Outros textos serão
acrescidos de modo complementar.
O estudo da legislação em sua letra oficial ilustra e exemplifica a política pública da área
de saúde mental desenvolvida no período citado, oferecendo a este trabalho a fidedignidade
para poder descrever o modelo de tratamento adotado, com dados oficiais para a comprovação.
Convém ressaltar que esta busca pela oficialidade dos textos tem também como função
compreender o trajeto das políticas acerca do tema, distanciando-se de leituras apriorísticas
de caráter político-ideológico, presentes na maior parte dos movimentos que versam sobre a
temática da Saúde Mental nos dias de hoje.

A ESTRATÉGIA CAMPANHISTA (A PARTIR DE 1966)

Apontaremos, no Quadro 1, a legislação pesquisada neste artigo, a partir da lei que define
a estratégia das campanhas nacionais de saúde, apontando o trajeto legislativo subsequente.
Quadro 1
Legislações referentes à área de saúde mental, entre os anos de 1966 e 1991

Ano Tipo e número Ementa


Estabelece normas gerais para a instituição e execução de
1966 Lei n. 5026 Campanhas de Saúde Pública exercidas ou promovidas pelo
Ministério da Saúde e dá outras providências.
Institui no Ministério da Saúde a Campanha Nacional de Saúde
1967 Decreto n. 60252
Mental e dá outras providências.
1987 Anteprojeto de Lei n. 195 Sem ementa.
1988 Constituição Federal Sem ementa.
Dispõe sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua
1989 Projeto de Lei n. 3657 substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta a
internação compulsória.
Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
1990 Lei n. 8080 recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos
serviços correspondentes e dá outras providências.
Aprova a estrutura do Ministério da Saúde e dá outras
1991 Decreto n. 109
providências.
Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras
2001 Lei n. 10216 de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em
saúde mental.

Pluralidades em Saúde Mental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 13-30, jun./jul. 2017


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Nos anos de 1966 e 1967 foram editadas duas regulamentações, complementares e
hierarquizadas entre si, com respeito à prestação de serviços e que trouxeram a necessidade de
intensificação das atividades e da ampliação do acesso aos serviços em saúde. A Lei n. 5026,
que estabelece normas gerais para a instituição e execução de Campanhas de Saúde Pública
exercidas ou promovidas pelo Ministério da Saúde, datada de 14 de junho de 1966, especifica
o modo de ação que será dado em relação à saúde em todo território nacional, delineando o
formato da política pública do Ministério da Saúde. Em sua ementa, esta lei define que o chefe
do poder executivo “estabelece normas gerais para a instituição de Campanhas de Saúde Pública
exercidas ou promovidas pelo Ministério da Saúde e dá outras providências” (Brasil, 1966). O
art. 2o da Lei n. 5026/1966 clarifica o objetivo e objetos das Campanhas de Saúde Pública:

A instituição e o desenvolvimento de Campanhas de Saúde Pública, na forma desta Lei,


atenderão, sempre, à necessidade de se intensificar e coordenar, em todo o território
nacional, ou em regiões definidas, as atividades públicas e particulares de prevenção
e combate, inclusive tratamento e recuperação, relativamente a doenças que, por sua
natureza, constituam problema de interesse coletivo e exijam, para seu atendimento,
providências especiais (Brasil, 1966).

Na medida em que legislado o formato da política pública a ser implementada, as áreas


específicas da atenção em saúde formularam suas regulamentações, na forma de decreto baseado
no disposto na Lei n. 5026/1966. A área de saúde mental teve esta especificação legislada pelo
Decreto n. 60252, publicado já em 21 de fevereiro de 1967. Este decreto implanta a Campanha
Nacional de Saúde Mental (CNSM), que viria a ser o compêndio das ações governamentais e de
seus parceiros na área:

Art. 1º Fica instituída, no Ministério da Saúde, nos termos dos artigos 1º e 2º da Lei
n. 5.026, de 14 de junho de 1966, e de acordo com o plano aprovado pelo Ministro
da Saúde, a Campanha Nacional de Saúde Mental (CNSM) diretamente subordinada
ao Diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais do Departamento Nacional de
Saúde e destinada a intensificar e coordenar, em todo o território nacional, as atividades
públicas e particulares de prevenção e combate, inclusive de tratamento e recuperação,
relativamente às doenças mentais em geral, em todos os seus aspectos, graus e variedades,
com a finalidade de reduzir-lhes a incidência, bem como a dos estados mórbidos correlatos
(Brasil, 1967).

A CNSM vem vinculada à legislação anterior e mais abrangente, como se percebe neste
primeiro artigo, que cita a Lei n. 5026/1966. O diretor do Serviço Nacional de Doenças Mentais,
órgão responsável pela execução da assistência em saúde mental no país, é o responsável direto
pela implantação e andamento desta nova política pública, nomeado, por esta legislação,
superintendente desta Campanha (Brasil, 1967). Importante salientar, nesse ponto, que o
texto da Lei n. 5026/1966 e do Decreto n. 60252/1967, por consequência, prevêem o fim das
Campanhas somente em duas situações. O art. 19 deste decreto expõe de maneira bastante

Revista PsicoFAE
17

objetiva as formas de extinção: “[...] a) pela execução integral de seu Plano; b) por ato do
Presidente da República” (Brasil, 1966).
Torna-se ainda mais importante a verificação disposta na CNSM, uma vez que esta seria a
política a ser desenvolvida pelo poder público, em esfera nacional, pelos 25 anos subsequentes,
substituída somente quando da implementação das ações do Sistema Único de Saúde. Retornemos,
então, ao estudo legislativo anterior.
As ações previstas na Campanha, para a consecução de sua finalidade, estão definidas
em seu artigo segundo, o qual se divide em três pontos, que podem ser identificados com
as definições de atenção primária, secundária e terciária em saúde. Passamos a estas ações,
observando-as uma a uma:

I – Medidas de cooperação para a melhoria e ampliação das condições de socorro,


assistência, tratamento e reabilitação de psicopatas, sua hospitalização e atendimento
ambulatorial ou de outra natureza, em estabelecimentos públicos ou de interesse público
(Brasil, 1967).

Neste ponto da definição legal das ações da Campanha vemos colocada a disposição
acerca da atenção terciária (o nível de complexidade responsável por ações do tipo curativa,
o mais complexo do sistema) nos termos de estruturação e prestação de serviços. Entende-
se que também está aqui colocada a centralidade do tratamento hospitalar, bem como existe
a percepção da possibilidade de divisão das responsabilidades da prestação dos serviços com
entes não governamentais. Este apontamento já constava nos termos da Portaria 16145/1961 e
mantém seu conteúdo, permitindo a participação das esferas privadas neste contexto assistencial.

II – Promoção e realização, em todo o País de ampla e contínua atividade de psiquiatria


preventiva, através de medidas e campanhas de higiene mental e de combate aos fatores
que afetam a saúde psíquica do povo (Brasil, 1967).

Aqui a legislação traz definições que dizem respeito à atenção primária e secundária
(promoção de saúde e prevenção em saúde). As modificações teóricas na área de saúde mental,
que apontam no sentido da prevenção, a partir dos anos de 1950, deslocam a centralidade
da clínica médica para o sentido da atuação comunitária em saúde pública, sob influência das
políticas de saúde mental desenvolvidas nos Estados Unidos, nessa época.
Esse movimento parte dos programas de saúde, elaborado pela política do Pres. Kennedy,
chamado psiquiatria preventiva, que tem por objetivo a prevenção primária, secundária e
terciária, a partir de um viés biomédico, a saber: promover programas para reduzir a incidência
de transtornos mentais em uma comunidade, reduzir a duração dos transtornos mentais, e reduzir
a deterioração causada pelos transtornos mentais (Jorge, 1997).

III – Medidas, inclusive educacionais, destinadas à prevenção e combate ao alcoolismo, à


dependência e à toxicomania e ao tratamento e recuperação de alcoólatras, dependentes
e toxicômanos (Brasil, 1967).

Pluralidades em Saúde Mental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 13-30, jun./jul. 2017


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Neste terceiro item, vemos definidas, pela primeira vez em lei, as questões relativas à
educação em saúde, ainda que esta esteja apontada apenas no que se refere ao alcoolismo e
dependências químicas.
O Decreto n. 60252/1967, em resumo, abrange questões de tratamento, prevenção e
promoção em saúde mental; aponta para a educação em saúde e mantém intenções anteriormente
legisladas como a capilarização dos serviços e a possibilidade de participação de entes privados
na prestação dos serviços. A CNSM foi um:

[...] instrumento que propiciou maior obtenção de recursos extra-orçamentários e maior


maleabilidade na administração pública. A Campanha Nacional de Saúde Mental era um
instrumento apropriado para a obtenção de recursos extra-orçamentários, possibilitando
convênios, acordos de cooperação, contratação de pessoal, aquisição de materiais e
equipamentos e também autorizando a execução de serviços e obras (Jorge, 1997, p. 44).

Este decreto geraria, também, críticas à possibilidade da implantação de serviços


conveniados, em especial com relação aos convênios de clínicas particulares, que recebiam
recursos advindos da Previdência Social para a internação psiquiátrica. Nesse momento (entre
os anos de 1960 e 1970) solidificou-se a assistência privada; o modelo asilar tem seu auge em
número de internações psiquiátricas:

O número de internações por neurose em hospitais psiquiátricos, que em 1965 era de 5.186,
em 1970 passou para 18.932. No ano de 1975, esse valor se elevou para 70.383 e, em 1977,
já estava em 200.000. Estima-se que, no período de 1950 a 1970, a população de doentes
mentais tenha aumentado em 213%, enquanto o crescimento da população geral no Brasil foi
de 82% (Guimarães, Fogaça, Borba, Paes, Larocca & Maftum, 2010, p. 277).

O número de internações por neurose é um dado que por si só demonstra o crescimento,


em números, das internações hospitalares, já sob influência da política pública aplicada a partir
de 1967. Contudo, este cenário fica mais esclarecido quando vemos os dados relativos aos leitos
contratados, bem como a comparação entre serviços públicos e privados:

Nos anos seguintes, a escalada do número de hospitais psiquiátricos e leitos contratados


infelizmente não parou por aí. Nesse período, chegamos em 1971 a 72 públicos e
269 privados com 80.000 leitos; em 1981, 73 públicos e 357 privados, chegando a
100.000 leitos ao longo desta década, começando a diminuir o ritmo somente a partir da
redemocratização do país e início do processo de Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica
(Costa, 2003, p. 10).

Este crescimento observado e a sedimentação do modelo de asilamento, isolamento


e centralismo no manicômio, que já vem como política desde o início da legislação acerca
do tema e confirmados pela Campanha Nacional de Saúde Mental, gerariam consequências
nos campos teórico e prático, entre profissionais de saúde mental e suas teorias, com caráter
indissoluvelmente político.

Revista PsicoFAE
19

É importante ressaltar que a esta época se vivia a implantação do DSM (Manual de Diagnóstico
e Estatística de Transtornos Mentais), que teve sua primeira versão no início dos anos de 1950 e foi
revisado em 1968. Da primeira versão, de 1952, às mais recentes há um gradual deslocamento
na compreensão do distúrbio mental no sentido de relegar a presença de elementos simbólicos da
concepção psicossocial em favor de explicações de cunho biológico, pretensamente empíricas e
a-teóricas (Barreto, 2005), bem como um significativo aumento do número de patologias registradas,
representando uma pulverização do entendimento da complexidade do campo, além de outras
consequências, tais como um declínio cada vez maior do próprio ensino de uma avaliação clínica
cuidadosa – desde o DSM-III, na década de 1980 –, levando a um afastamento cada vez maior
dos aspectos subjetivos e psicossociais do sofrimento mental e ao que se chamou de “morte da
fenomenologia da América” (Andreasen, 2007).
Neste sentido, o viés de uma psiquiatria biomédica se fortalecia. O modelo asilar e sua aplicação
crescente geram também novos contingentes de usuários, admitidos pelo discurso em vigência:

[...] mais dois novos tipos de crônicos chegam à soleira dos novos serviços: o cortejo de
pessoas histéricas, que novamente se avoluma depois de um tempo de banimento a que
poucas podiam escapar pelo funil dos consultórios de psicanálise e que agora, depois
de implodida a fortaleza da histeria nas novas versões do DSM, voltam aos serviços,
nos quais são frequentemente rediagnosticadas pelo novo discurso psiquiátrico como
deprimidas ou distímicas, com transtornos de personalidade mais ou menos imprecisos
ou, mais raramente, como portadoras de vagos distúrbios somatoformes de ansiedade
(Barreto, 2005, p. 48).

Nesse sentido, a estratégia campanhista foi efetiva e em paridade com a psiquiatria


biomédica, ampliando os serviços e vagas em locais destinados à internação. É importante ressaltar,
ainda, que o momento político brasileiro era de um regime militar, onde o discurso dominante
centrava-se na ordem e na hierarquia. Assim, a estrutura institucional do país, onde se encaixam
os hospitais psiquiátricos e serviços de internação, estava voltada para este discurso. A expansão
da privatização do hospital psiquiátrico se estabeleceu desde 1966, com “[...] a unificação, na
estrutura do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), dos Institutos de Aposentadoria e
Pensões, até 1981, quando foi interrompido pela chamada ‘crise da Previdência’” (Delgado,
2008, p. 62). Stockinger (2007) resume esta posição, da seguinte maneira:

Tais fatos geraram como características marcantes deste período a criação de um grande
complexo médico assistencial de base hospitalar e uma prática médica orientada em termos
da lucratividade, numa evidente capitalização da medicina através do privilegiamento do
setor privado em detrimento dos serviços médicos próprios da Previdência Social. [...] Nos
anos 80, tendo alcançado o ápice de déficit financeiro e operacional, e influenciado pela
crítica oriunda de movimentos sociais emergentes, tal centralismo autoritário começa a
ceder (p. 61-62).

Pluralidades em Saúde Mental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 13-30, jun./jul. 2017


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A extinção das Campanhas de Saúde Pública se deu, oficialmente, apenas em 1991, com
a entrada em vigor das legislações que vieram a embasar o Sistema Único de Saúde (SUS). O
texto que traz a extinção das Campanhas é o Decreto n. 109/1991, o qual “aprova a estrutura
regimental do Ministério da Saúde e dá outras providências” (Brasil, 1991). O ato de extinção
das Campanhas consta da seguinte maneira:

Art. 21. São extintas as Campanhas de Saúde Pública de que trata a Lei n. 5.026, de 14
de junho de 1966, consoante o disposto na alínea “b” do art. 19 do mesmo diploma legal.
Parágrafo único. Os programas desenvolvidos através das Campanhas de Saúde Pública
referidas no art. 21 serão absorvidos pelo SUS.

O MOVIMENTO PELA REFORMA SANITÁRIA E PSIQUIÁTRICA (1978-1987)

No contexto do aumento de número de internações e serviços, bem como da privatização


dos serviços, está o nascimento de questionamentos e alternativas ao sistema vigente, com
movimentos dentro da psiquiatria e áreas afins (capitaneadas por personalidades diversas como
Basaglia, Szasz, Laing, Cooper e outros). Portanto, foi na década de 1970 que começaram a
surgir possibilidades de modificação do sistema centrado na internação e segregação no Brasil.
Em 1972, por exemplo, houve um encontro de ministros da saúde das Américas, organizado
pela Organização Pan-Americana de Saúde, no qual se firmou o Plano Decenal de Saúde
para as Américas, que estabelecia recomendações para os países. Na área de saúde mental,
recomendava:

– Prevenção primária, secundária e terciária em saúde mental;


– Criação de serviços para diminuir a tendência de aumento de alcoolismo e fármaco-
dependência;
– Planejamento de leitos psiquiátricos para cada 1.000 habitantes;
– Priorizar o atendimento ambulatorial e hospitalização breve, de preferência em
hospitais gerais;
– Criação de Centros Comunitários de Saúde Mental em cidades com mais de 100.000
habitantes e estimular a participação da comunidade em torno deles;
– Modernização da legislação psiquiátrica;
– Modernização dos tratamentos, utilizando especialmente técnicas grupais;
– Estimular o ensino de saúde mental em escolas de medicina e de outras escolas que
formam profissionais de saúde (Yasui, 2010, p. 35)
Essas recomendações iam ao encontro das proposições reformistas brasileiras na área da
saúde mental, que encontram no pressuposto teórico da Psiquiatria Democrática Italiana seu
maior ponto de apoio. Franco Basaglia, principal psiquiatra dessa tradição, esteve no Brasil no
final dos anos 1970. Essa linha de contribuição teórica é indicada também entre estudiosos da

Revista PsicoFAE
21

psiquiatria preventiva, por exemplo, em Sheldon Korchin, que propõe como caracterização da
atuação de profissionais de saúde mental uma forma prioritariamente comunitária, destacando
uma maior eficácia de ações produzidas na proximidade dos ambientes nos quais aparecem os
problemas, e a necessidade de os clínicos trabalharem em ambientes familiares, na proximidade
das pessoas demandantes; ou, em suas palavras:

As clínicas da comunidade deveriam ir ao encontro dos clientes, antes que ficar passivamente
à espera de que eles o procurem profissionalmente. Sua atuação profissional deveria ser
flexível, facilmente acessível no local e tempo onde a necessidade surge e oferecida numa
atmosfera que reduza, ao invés de aumentar, a distância social entre o profissional e a
pessoa ajudada. A ajuda deveria ser acessível àqueles que dela necessitam e não só aos que
a procuram (Korchin, citado por Andery, 1984, p. 206).

Porém, aponta Basaglia na Carta de Nova Iorque, publicada em 1969, que as reformas
propostas pela psiquiatria preventiva não passam de soluções parciais, que não demandam ações
anti-institucionais, portanto não revolucionam a ideologia vigente em saúde mental, tão pouco
superam as contradições sociais evidenciadas nesse sistema, mas acobertam a problemática
com soluções técnico-institucionais de forma a “reduzir gradualmente a sociedade inteira a uma
enorme instituição tolerante, sutilmente controlada” (Basaglia, 2005).
A mobilização social e os desdobramentos teóricos eram crescentes neste período
histórico. Os encontros e congressos se multiplicavam, com destaque para o I Congresso Brasileiro
de Psicanálise de Grupos e Instituições (realizado no Rio de Janeiro, em 1978), o I Congresso
Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental (em São Paulo, 1979) e o II Encontro Nacional de
Trabalhadores de Saúde Mental, realizado em 1980, em Salvador. A importância desses encontros
se deu pela participação de figuras importantes do pensamento crítico contemporâneo – como
Felix Guattari, Franco Basaglia, ErvingGoffman e Robert Castel, presentes no Rio de Janeiro, em
1978 –, ou por:

[...] favorecer articulação desse movimento com outros movimentos sociais organizados,
como aqueles em prol da anistia política [o segundo evento]; e o terceiro, por favorecer
o aparecimento da defesa dos direitos humanos dos pacientes, tendo como porta-voz
grupos de direitos humanos, atores ainda inéditos neste processo (Sidrim, 2010, p. 39).

A insatisfação dos profissionais da saúde mental, em especial no Rio de Janeiro – a partir


do Centro Psiquiátrico Pedro II – com a política então adotada e com questões trabalhistas
(fundamentalmente relacionadas a condições precárias de trabalho e baixa remuneração) acabaria
por gerar, no ano de 1978, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, marcando o início
do movimento conhecido como “reforma psiquiátrica brasileira”, que incorpora críticas ao modelo
hospitalocêntrico e às precárias condições de trabalho e tratamento, bem como à privatização da
assistência psiquiátrica (Amarante, 1995). O movimento pela reforma sanitária estava em seu auge,
e teria, em 1986, importante momento na 8ª Conferência Nacional de Saúde.

Pluralidades em Saúde Mental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 13-30, jun./jul. 2017


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A reforma sanitária é um conjunto de princípios técnicos e políticos, e seu relatório final
serviu de base para a política brasileira de saúde que seria implementada em 1990 (Amarante,
2007). A reforma sanitária brasileira objetiva um sistema de saúde igualitário, descentralizado,
universal, com os serviços organizados de forma regionalizada e hierarquizada. A integralidade
e a participação social são princípios fundamentais, coerentes com o conceito de saúde como
direito inerente à cidadania (Alves, Seidl, Schechtman & Correia & Silva, 1994). O relatório final
da 8ª Conferência Nacional de Saúde traz, em seu texto, esta indicação:

[...] deverá ser deflagrada uma campanha nacional em defesa do direito universal à saúde,
contra a mercantilização da medicina e pela melhoria dos serviços públicos, para que se
inscrevam na futura Constituição:

– A caracterização da saúde de cada indivíduo como interesse coletivo, como dever do


Estado, a ser contemplado de forma prioritária por parte das políticas sociais;
– A garantia da extensão do direito à saúde e do acesso igualitário às ações e serviços de
promoção, proteção e recuperação da saúde, em todos os níveis, a todos os habitantes
do território nacional;
– A caracterização dos serviços de saúde como públicos e essenciais (Brasil, 1986, p. 8-9).

Entre esses princípios podemos citar que a reforma sanitária priorizava a difusão de uma nova
consciência sanitária e alterações em leis, visando um sistema único de saúde e a democratização
de práticas institucionais. Nesse processo social e político, o campo da saúde mental e sua nascente
“reforma” encontram-se contemplados. Dentro um processo maior na saúde, a saúde mental
segue os mesmos passos. A mobilização dos trabalhadores de saúde, no cotidiano de suas práticas
institucionais e nas universidades, politizou a questão da saúde mental, especialmente na luta contra
as instituições psiquiátricas; produziu reflexões críticas que provocaram uma ruptura epistemológica;
criou experiências de cuidado contra-hegemônicas; conquistou mudanças em normas legais e buscou
produzir efeitos no campo sociocultural (Yasui, 2010).
A reforma sanitária tem grande importância para o processo da reforma psiquiátrica, sendo
a segunda complementar e parte da primeira. Não haveria a reforma nos serviços de saúde mental
sem as discussões e a politização que ocorreu na Saúde como um todo. Os atores envolvidos nos
processos de conferências e das mobilizações paralelas a estas foram fundamentais para estabelecer
as bases sólidas das reformas em saúde e que se tornariam princípios de política pública.
Dentro do processo de discussão e de reforma é inaugurado, em 1987, o primeiro Centro
de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil, pensado como dispositivo substitutivo ao modelo asilar
predominante. O CAPS Professor Luiz da Rocha Cerqueira, conhecido também como CAPS da
Rua Itapeva, no município de São Paulo, iniciou seus serviços em março daquele ano. O CAPS
Luiz Cerqueira foi organizado a partir de técnicos advindos de ambulatórios do município e ao
longo de sua formação incorporou profissionais que participavam da plenária de trabalhadores
de saúde mental, iniciada no ano anterior, e que tinham experiências nascentes de transformação
institucional na assistência em saúde mental (Yasui, 2010, p.42).

Revista PsicoFAE
23

Na mesma época, serviço semelhante havia sido inaugurado na cidade de Bauru, interior
do Estado de São Paulo, o Núcleo de Atenção Psicossocial (NAPS). A cidade de Bauru, dispondo
de momento progressista no campo da saúde, priorizando as reformas sanitária e psiquiátrica,
foi escolhida para sediar a I Conferência Nacional de Saúde Mental (I CNSM), que ocorreu em
dezembro de 1987. A temática desta I CNSM foi bastante incisiva: “Por uma sociedade sem
manicômios”, que marca uma posição política bastante reformista, tanto na Saúde quanto em
outras áreas.
Na leitura do relatório final, observa-se que o direcionamento iniciado pela movimentação
social de reforma sanitária foi mantido em sua totalidade, com propostas aprovadas, por exemplo,
de ampliação do conceito de saúde; a formação de um sistema único de saúde pública, incentivo
à participação popular e formação de rede de atendimento extra-hospitalar e multiprofissional;
e promoção de saúde mental como forma de prática cidadã. Este texto final ainda apresenta
“Recomendações à Constituinte” e proposta de “Reformulação das leis ordinárias” (Brasil,
1988a, p. 21-27). O relatório apresenta estas propostas de maneira significativamente ideológica
e politizada, enfatizando as relações de poder e se colocando de forma antimanicomial.
Este movimento visava à desconstrução do modelo adotado, marcando momento
histórico em 1987, quando são realizadas a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II
Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental (II CNTSM), na esteira dos movimentos
de redemocratização do país, que visavam, na área de saúde, à reforma sanitária, à implantação
de um sistema único e público de saúde e à reforma da atenção em saúde mental. O resultado
do II CNTSM é publicado em carta aberta, denominada “Carta de Bauru” (local onde ocorreu
o Congresso).
Este documento fundamenta os apontamentos políticos contrários ao manicômio,
prevendo uma reforma na atenção em saúde mental. Ainda envolto em pensamentos reformistas
em outras áreas, defende a reforma agrária, a sindicalização, entre outros. Na esfera política,
em fevereiro de 1987 estava formada a Assembleia Nacional Constituinte, composta por 559
membros entre deputados e senadores, com vistas à discussão e aprovação, pelo Congresso
Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), de uma nova Constituição para o país, após
21 anos de ditadura militar (Brasil, 1988b).
A Assembleia Nacional Constituinte contava com a Comissão da Ordem Social, a qual era
derivada de uma subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente. A subcomissão emitiu
um Anteprojeto de Lei acerca dos três temas. Na seção reservada à saúde, neste documento,
estavam presentes 14 artigos (Brasil, 1987b), dos quais se entrevê princípios do que viria a ser um
sistema único de saúde brasileiro.

A CONCEPÇÃO DE SAÚDE PÚBLICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

O resultado final dos 20 meses do processo da Assembleia Nacional Constituinte foi a


promulgação, em 5 de outubro de 1988, da nova Constituição Federal da República Federativa
do Brasil (Brasil, 1988b), feita em ambiente de comoção política e dos meios de comunicação,
trazida a público com a conotação de “constituição cidadã”.

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No seu Capítulo II, que se refere à seguridade social (que abarca as áreas de saúde,
assistência social e previdência social), o texto constitucional assevera, em seu art. 196, que
“a saúde é direito de todos e dever do Estado”. Os artigos que seguem – arts. 197 a 199 –,
trazem os princípios de um sistema único de saúde, como se vê, especificamente no art. 198:
descentralização, integralidade do atendimento e participação social (Brasil, 1988b).
Decorre da Constituição Federal toda e qualquer legislação posterior a esta, estando,
portanto, toda legislação na área de saúde submetida aos princípios nela apresentados. A
partir desse marco legal estão estabelecidas as diretrizes para a Lei Orgânica da Saúde e para a
constituição do Sistema Único de Saúde, que viriam a ser regulamentados pela Lei n. 8080 de
1990. A Lei n. 8080/90 “Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da
saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”
(Brasil, 1990, ementa).
Com esta seara política e com a realidade do modelo assistencial colocado em prática,
abre-se caminho para as modificações que virão a partir da implantação da Constituição Federal
de 1988 e da Lei Orgânica da Saúde, que marca o nascimento de um Sistema Único de Saúde,
em 1990.

O PROJETO DE LEI N. 3657/1989 E SEU TRAJETO DE APROVAÇÃO: A


LEI N. 10216/2001

Entre a promulgação da Constituição e a aprovação da lei do Sistema Único de Saúde


houve um importante projeto na área de Saúde Mental: no ano de 1989 foi apresentado um
Projeto de Lei que tratava da temática da Reforma Psiquiátrica. Assim, faz-se necessário breve
retorno cronológico para apresentar este PL.
O Projeto de Lei n. 3657/1989 foi apresentado pelo deputado federal Paulo Delgado,
vinculado ao Partido dos Trabalhadores pelo estado de Minas Gerais, e trazia em sua ementa
disposição acerca da “[...] extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros
recursos assistenciais e regulamenta a internação psiquiátrica compulsória” (Brasil, 1989). O
Projeto de Lei representa a tentativa de se legislar o que fora proposto, especificamente com
relação à assistência em saúde mental, na I CNSM de 1987.
O texto do Projeto de Lei apresentado é fortemente influenciado pela Lei Italiana n. 180, de
1978, que extinguiu os hospitais naquele país (Amarante, 2007). O deputado federal que apresentou
o PL fazia parte de movimentação social antimanicomial, adepto da teoria do psiquiatra italiano
Franco Basaglia, este último responsável pela construção e aprovação da lei italiana, bem como
principal teórico da Psiquiatria Democrática. Não foi por acaso, mas por semelhança ideológica
e pressuposto teórico, que o projeto do deputado Paulo Delgado traz elementos que estavam já
legislados na Itália, desde 11 anos antes. A ideia de extinção do manicômio havia sido conquistada
pelo movimento da Psiquiatria Democrática Italiana por ações políticas, ideológicas e, acima de
tudo, com práticas renovadoras da atenção em saúde mental.
Apesar da semelhança entre o Projeto de Lei n. 3657/1989 e a Lei n. 180/1978, este
projeto pareceu demasiado revolucionário para nossa realidade, no momento em que foi

Revista PsicoFAE
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apresentado. A temática de proibição de novos hospitais psiquiátricos, bem como o tempo de


aplicação da lei projetada foram itens que, ainda que apoiados pelos movimentos sociais citados,
não encontraram suficiente acolhimento no Congresso Nacional. A tramitação deste projeto
iniciou em 1989, na Câmara dos Deputados e foi encaminhada ao Senado Federal, em 1991.
Ficou estagnada nesta Casa até o ano 1999.
Nesse período (e por conta da estagnação do PL), parlamentares favoráveis ao projeto de
lei encaminharam, em sete estados e no Distrito Federal, projetos similares que foram aprovados
nas Assembleias Legislativas estaduais/distrital, aprovando, portanto, leis de caráter reformista
na saúde mental, com abrangência nos entes federados. As leis aprovadas preservam fortes
semelhanças entre si, e com o PL n. 3657/1989. Estas leis foram aprovadas entre 1992 e 1996
(BRASIL, 2004, p. 28-66), de acordo com o demonstrado no Quadro 2.
Quadro 2
Leis reformistas nas UF por ano
Ano Estado Lei Estadual/Distrital

1992 Rio Grande do Sul 9716/1992

1993 Ceará 12151/1993


1994 Pernambuco 11065/1994
1995 Rio Grande do Norte 6758/1995
1995 Minas Gerais 11802/1995
1995 Paraná 11189/1995
1995 Distrito Federal 975/1995

1996 Espírito Santo 5267/1996

Este movimento político, de caráter nacional, também levou o Ministério da Saúde a


publicar a primeira portaria em que aparecem serviços de saúde mental indicando “uma rede
descentralizada e hierarquizada de cuidados em saúde mental” (Brasil, 2004, p. 245), a Portaria
n. 224/1992 “teve a particularidade de ter sido aprovada pelo conjunto dos coordenadores/
assessores de saúde mental dos estados, para que, entendida como regra mínima, pudesse ser
cumprida em todas as regiões do País” (Brasil, 2004, p. 252).
No âmbito do controle social, houve a formação da Comissão Nacional de Reforma
Psiquiátrica do Conselho Nacional de Saúde (pela Resolução n. 93/1993), substituída em 1999
pela Comissão de Saúde Mental do Conselho Nacional de Saúde (Resolução n. 298/1999).
Fazia-se necessária aprovação de uma Lei Federal para que as iniciativas dos entes federados
se fizessem válidas em território nacional, tanto quanto que as portarias, resoluções e outras
regulamentações tivessem lei a qual fossem subordinadas juridicamente.
O Projeto de Lei n. 3657/1989 foi, então, apresentado na Câmara dos Deputados no
final de 1989 e encaminhado ao Senado Federal em 1991. O Senado, por sua vez, apresentou

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um substitutivo ao projeto original apenas em 1999, quando a tramitação na Câmara foi
retomada e o substitutivo veio a se tornar norma jurídica, em abril de 2001 (Brasil, 1989). A Lei
aprovada, n. 10216/2001, que “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de
transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”, reflete a possibilidade
de ajustamentos que um projeto substitutivo apresenta: se por um lado redireciona o modelo
assistencial, por outro perde as características do projeto inicial com relação ao fim dos
manicômios, já que não apresenta texto nesse sentido. A lei elenca direitos básicos dos “portadores
de transtornos mentais” e regulamenta a internação, avançando ao incluir o Ministério Público
como ator indispensável nos casos de internação involuntária; avança ainda quando define que a
internação deverá ser utilizada como tratamento somente “quando os recursos extra-hospitalares
se mostrarem insuficientes” (Brasil, 2001, art. 4º).
O direcionamento dado por esta Lei é o de uma atenção em Saúde Mental preferencialmente
comunitária, com equipamentos territorializados, seguindo a lógica do Sistema Único de Saúde
(SUS). A partir dessa proposta, diversos serviços e equipamentos foram implantados visando
atendimento substitutivo ao Hospital Psiquiátrico: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os
Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura, os Ambulatórios
de Saúde Mental e leitos de atenção integral em Hospitais Gerais (Brasil, 2005).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A estratégia campanhista afere à assistência em saúde mental maior abrangência geográfica,


com ampliação quantitativa dos serviços. A alteração do foco de uma prestação de serviço que
era essencialmente público para um viés privatista do mesmo foi alvo de críticas de teóricos e de
trabalhadores da área de saúde mental. Esta crítica vem, principalmente, com a compreensão de
que houve, com esta mudança, um enviesamento para a obtenção de grande lucro dos serviços
privados com a internação de pacientes psiquiátricos.
O processo de reestruturação da assistência em saúde mental, em andamento no Brasil,
tem suas origens nas reformas ocorridas em outros países, com importante influência da psiquiatria
democrática italiana, a qual teoriza que os hospitais psiquiátricos não são necessários para a
estrutura de prestação de serviços em saúde mental, e que o internamento de prazo prolongado
não encontra justificativa científica.
A crítica ao modelo vigente durante os anos de 1970, com o fato de que os hospitais
eram ambientes pouco produtivos de tratamento efetivo, leva ao enfrentamento do modelo
centrado no hospital. Esta tendência se radicaliza com as movimentações sociais reformistas na
área da saúde, a partir do movimento de reforma sanitária. A reforma sanitária se estabelece,
legalmente, com a implantação da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8080/1990). Nos mesmos
moldes, a movimentação por uma mudança de modelo significativa na saúde mental cresce e
toma corpo com o Projeto de Lei (Federal) n. 3657/1989 e com as leis estaduais que foram criadas
com base neste. Este projeto, tornado lei em 2001, com significativas alterações, incorpora aos
tratamentos de saúde mental as bases para um cuidado efetivado em ambiente outro que o do
hospital psiquiátrico, reconhecendo, ainda, os direitos dos portadores de transtornos mentais.

Revista PsicoFAE
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Recebido em: 09-03-2017


Primeira decisão editorial: 27-03-2017
Aceito em: 01-05-2017

Pluralidades em Saúde Mental, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 13-30, jun./jul. 2017


4701

OPINIÃO OPINION
Democracia e reforma psiquiátrica no Brasil

Psychiatric Reform and Democracy in Brazil

Paulo Gabriel Godinho Delgado 1

Abstract In this article I reflect on the reasoning Resumo Neste artigo reflito sobre as razões da
behind Law 10.216/2001. I highlight the role of Lei 10.216/2001. Destaco o papel do Movimento
the Anti-Asylum Movement as a determinant for da Luta Antimanicomial como determinante para
the development of the Law. I hold up Dra. Nise apresentação do Projeto de Lei original. Lembro a
da Silveira as being the true pioneer of Brazilian Dra. Nise da Silveira como a verdadeira pioneira
Psychiatric Reform. I point out that psychiatric da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Situo que a
reform is not hegemonic in Brazil. I stress the com- reforma psiquiátrica não é hegemônica no país.
plexity of mental suffering and the humility nec- Alerto para a complexidade do sofrimento mental
essary for anyone planning to attempt to treat it. I e para necessária humildade a quem se propõe a
draw attention to the fact that the principles of cuidá-lo. Lembro que os princípios da Reforma
psychiatric reform are the Unified Health Servic- são os do SUS, sobretudo a universalidade e a in-
es (SUS), especially the universality and compre- tegralidade no cuidado. Reitero a existência de
hensiveness of care. I reiterate the existence of in- normas internacionais consagradas de direitos das
ternational standards enshrining the rights of peo- pessoas portadoras de transtornos mentais e o ne-
ple with mental disorders and the necessary com- cessário compromisso com os direitos decorrentes
mitment to the duties imposed by Brazilian law. da lei brasileira.
Key words Psychiatric Reform, Law 10.216/2001, Palavras-chave Reforma Psiquiátrica, Lei
Legislative, Brazil 10.216/2001, Legislativo, Brasil

1
Universidade Federal de
Juiz de Fora. Rua José Maria
Mendes 7, Bairro São
Mateus. 70.374-010 Juiz de
Fora MG.
contato@paulodelgado.com.br
4702
Delgado PGG

Permitam-me iniciar lembrando dúvida clássica Não havia ainda nas Nações Unidas e sua
sobre o sentido da vida: o mundo é digno de riso Organização Mundial de Saúde uma compreen-
ou de lágrima? Padre Antonio Vieira, interpre- são e um consenso sobre o novo tratamento, nem
tando lenda grega que envolvia dois filósofos, mesmo sobre direitos de doentes mentais, pon-
decidia: ¨Demócrito ria, porque todas as coisas tos essenciais que iniciaram o debate mundial pela
humanas lhe pareciam ignorâncias; Heráclito reforma. Muito embora, desde os anos 50, aqui
chorava, porque todas lhe pareciam misérias; no Rio de Janeiro já havia a experiência da Casa
logo, maior razão tinha Heráclito de chorar, que das Palmeiras, liderada por doutora Nise da Sil-
Demócrito de rir; porque neste mundo há mui- veira, a quem presto homenagem neste artigo.
tas misérias que não são ignorâncias, e não há Doutora Nise foi uma pioneira ao não consi-
ignorância que não seja miséria¨. derar o tratamento da época único, suficiente e
Uma lei fundadora? Não! Fundadora da lei é capaz de compreender toda a complexidade da
o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial loucura. Foi ela quem mais nos ajudou a perceber
e seus fundamentos: humanismo, ciência, técni- no estudo da esquizofrenia “onde a gata encontra
ca, comunidade, afeto e história. Era preciso con- seus filhotes” (Lacan, sobre a psicanálise).
tinuar o trabalho de todos aqueles, profissionais Além dela, também, é impossível desconhe-
e leigos, que alertas e sensíveis, buscavam reori- cer o Manual de Psiquiatria Social de Luiz Cer-
entar a medicina moderna na direção que apon- queira e seu combate à “indústria da loucura”.
ta para a unidade corpo-espírito e querer, assim, O humanista e perseguido Ulisses Pernam-
encontrar a origem, a fabricação das doenças bucano dizer aos seus alunos para não deixarem
orgânicas, físicas e mentais. de lado a cultura geral e... lerem Proust e Moliére.
O Centro Médico Social de São José do
I Murialdo, RS, com a medicina comunitária do
Dr. Ellis Busnello.
Agradeço a Revista Ciência e Saúde Coletiva A primeira lei brasileira de assistência aos lou-
da Associação Brasileira de Pós-Graduação em cos, em 1902, do médico negro e baiano Juliano
Saúde Coletiva/Abrasco o convite para partici- Moreira, que entrou na Universidade antes de
par deste número especial e a oportunidade de acabar a escravidão e não admitia camisa de for-
escrever a respeito do que penso sobre a reorien- ça nos serviços que dirigia.
tação do modelo assistencial brasileiro em saúde A visita de Franco Basaglia a Barbacena e o
mental, dez anos depois da promulgação da Lei filme “Em nome da razão” de Helvécio Ratton.
10.216 . Vejo iniciativas como essa na área de A desconstrução do Anchieta em Santos pela
Saúde sempre como uma saudável advertência: ação do sanitarista David Capistrano.
o retorno da verdade na falha de um saber. Con- A Declaração de Caracas, de 1990, propondo
tinuamos em transição onde o modelo antigo um novo paradigma de Atenção e Reestrutura-
não domina, mas o novo ainda não predomina. ção da Assistência Psiquiátrica, dentro dos Siste-
A sociedade ainda não se deu conta do alerta que mas Locais de Saúde.
nos fez Freud em Análise Terminável e Intermi- A Portaria 189, de l991, de Domingos Sávio,
nável: “na verdade, toda a pessoa normal é ape- coordenador de Saúde Mental do Ministério da
nas normal na média. Seu ego aproxima-se do Saúde, que passou a financiar procedimentos e
ego psicótico num lugar ou noutro, e em maior dispositivos de incentivo a outras formas de as-
ou menor extensão, e o grau de afastamento de sistência.
determinada extremidade da série e da sua pro- O protagonismo do Ministério da Saúde na
ximidade da outra, nos fornecerá uma medida gestão de Pedro Gabriel Delgado, que conduziu
provisória daquilo que tão indefinidamente de- com habilidade e determinação todo o processo
nominamos de alteração do ego”. Há quem diga de aprovação no Congresso e a sanção Presiden-
que são nossas neuroses que nos salvam das psi- cial da Lei que agora faz dez anos, consolidando
coses! (Wilfred R.Bion) e expandindo os princípios da Reforma.
A impiedade do tratamento de pacientes com
transtorno mental estava baseada numa legisla- II
ção dos anos 30 e refletia o nível e o grau de
compreensão que a medicina mundial entendia A extinção progressiva dos manicômios e a
ser o modelo de atenção possível a ser oferecido sua substituição por outros recursos assistenci-
- e como se revelou - imposto aos doentes men- ais, regulamentando a internação compulsória
tais no mundo todo. foi a primeira lei de desospitalização e desmani-
4703

Ciência & Saúde Coletiva, 16(12):4701-4706, 2011


comialização em discussão em parlamento lati- dois valores fundamentais: a escuta do sofrimen-
no-americano. to e o seu modelo de financiamento. Quem não
Ela é uma lei social, a mais ampla e incompre- gostar de doente mental não tem condições de
endida da medicina, que envolve o maior núme- trabalhar com sua angústia. Essa é a ideia essen-
ro de pessoas na sociedade - usuários, técnicos, cial da reforma: construir um centro de gravida-
críticos, adeptos, entusiastas e pessimistas. Uma de baseado no paciente e em suas possibilidades
lei da medicina, se esta for vista como a mais terapêuticas. É no sistema aberto que se vislum-
social e comunitária das ciências, quando se ori- bra o futuro da psiquiatria moderna. E as criti-
enta pela atenção preventiva, curativa, reabilita- cas e o combate que ainda se faz à reforma são,
dora, continuada, personalizada e participativa. em muitos casos, mais resultado da obsolescên-
Se compareço a qualquer serviço de medicina cia econômica do serviço que prestam do que de
e não tenho perspectiva de cura, não sou eu que sua sustentação científica ou humanista. Pois
estou doente, quem adoece é o hospital, é ele o sempre foi “muito mais difícil ocupar-se da saú-
doente e a doença. A ideia de que existem pessoas de do que da doença” (D.W.Winnicott)
sem perspectiva de cura é uma impotência da Um novo modelo de financiamento exige cons-
medicina que deveria fazer-se mais modesta. truir o federalismo sanitário e a humanização do
Mesmo o tratamento moral de Philip Pinel per- SUS exigindo que os governos federal, estadual e
mitia ao alienado, estranho de si mesmo, ser ca- municipal estimulem os novos serviços do siste-
paz de ver-se tratado pelo seu resto de razão. ma aberto. A Autorização de Internação Hospi-
Mas essa idéia de um hospital fechado que talar tem que se transformar progressivamente
encerra, estigmatiza, isola, não tem mais razão em Autorização de Internação Domiciliar. E os
de ser. Só a reforma detém a má fé dos que utili- recursos devem migrar do hospital para o pacien-
zam o dispositivo psiquiátrico por razões não te e para os novos serviços.
psiquiátricas para internar desprotegidos inde- E estar atento ao conservadorismo clínico da
sejáveis ou fazer poderosos inimputáveis. psiquiatria tradicional e alerta para os movimen-
Nem todos os problemas humanos são psi- tos restauradores do Congresso Nacional e no
quiatrizáveis ou psicologizáveis. A humanização gestor local - que sempre podem fazer a lei recuar
do tratamento do doente mental não convive ao regulamentá-la contra o seu espírito. Combi-
com o tratamento psiquiátrico sem necessidade. nar diálogo e regulação é sempre o melhor cami-
Nem produz lei médico-social para competir com nho. E expandir novos programas, como o De
a prerrogativa das organizações e instituições de Volta para Casa, o Consultório de Rua e os Cen-
caráter social. A reforma tem forte sentido cultu- tros de Convivência, bons exemplos de vitalidade
ral, mas essencialmente tem sustentação técnica e eficácia da lei.
e científica, e na evolução da medicina compre- A reforma psiquiátrica é, pois, uma transição
endida socialmente. com um sentido mais diretivo do que imperativo
A designação de doente mental ainda produz que deve conquistar as famílias ainda iludidas com
estigma sem estima, como são igualmente estig- os preconceitos que a especialização médica insti-
matizantes as estratégias farmacológicas e hos- tuiu. Pois se esta foi um avanço para a medicina,
pitalocêntricas com seus procedimentos e dosa- fez também muito mal ao lançar a fragmentação
gens brutais e inadequadas. Crimes e erros do entre o corpo e a alma das pessoas que a psiquia-
mau tratamento que querem apaziguar a socie- tria biológica e a ultraespecialização elevaram a
dade, recalcando a personalidade e os ritmos de pensamento único. A desintegração entre o corpo
homens e mulheres diferentes. A psiquiatria não e a mente, filosoficamente indivisíveis, que a seda-
foi feita para confrontar e punir a personalidade ção química permanente provoca.
e suas manifestações múltiplas, transformando- A medicina psiquiátrica tem que se dar conta
as em sintomas da loucura. Da mesma maneira da existência da psiquiatria plural e humanista.
o avanço técnico não deve servir para desinte- Como não estudar Melanie Klein, Donald
grar o paciente diante do saber médico e de seus W.Winnicott, Michel Foucault, Franco Basaglia,
medicamentos. A camisa-de-força literal ou quí- Ronald Lang, Jacques Lacan, Julia Kristeva e tantos
mica deve ser abolida. outros? E o mundo de redes multidisciplinares e
intersetoriais o que pode sustentar a reforma.
III Este é um trabalho para o qual precisamos
de aliados nas Universidades, para abalar as cer-
O sofrimento mental é incompreensível se sua tezas dos seus aparelhos acadêmicos, currículos
abordagem não está ancorada em pelo menos ultrapassados e chefes que insistem em desco-
4704
Delgado PGG

nhecer a Lei. E sufocam o vigor da juventude pela so alcance. Em terceiro, a descentralização. Evitar
rotina que é perseguir traços da personalidade a desterritorialização e ter serviços descentraliza-
individual, encaixar um sintoma, capturar o so- dos cada vez mais perto das pessoas. Alas psiqui-
frimento das pessoas e seus familiares para a vi- átricas em hospital geral, portas de entrada uni-
são carceral da psiquiatria biológica. Tratando a versal, integração programada na saúde da famí-
mente de forma positivista, como o físico vê a lia e ver a internação, quando necessária, como
matéria, um órgão à parte, mutilado, para então proteção e acolhimento pessoal, e não como ho-
prescrever medicamentos soldadores como se ras leito, inadequada à natureza do cuidado psi-
fossem goma-arábica. Uma psiquiatria conser- quiátrico.
vadora, subjugada e cobaia da indústria de me- O quarto princípio é a integralidade dos servi-
dicamentos... Se poupar a Universidade a refor- ços e dos dispositivos para o paciente e suas ne-
ma não se sustentará ! cessidades. Da vacina ao transplante, do velho
É preciso também criar espaços protegidos, calmante aos neurolépticos de última geração,
ambientes onde possa emergir a história do pa- todos têm que estar à disposição do paciente, para
ciente como cidadão com nome e sobrenome, que ele crescentemente possa sair do tratamento
protegê-lo da manipulação de sua identidade. compulsório e caminhar para o voluntário.
Mudar o paradigma e transitar dos serviços de O quinto é o controle social derivado de dis-
recolhimento de problemas para os serviços de cussões e decisões de Congressos, Conferências e
acolhimento de pessoas. Conselhos protegendo os Conselhos de Saúde
E estar sempre atento às “estruturas abertas” da manipulação política e da desinformação.
de crianças e adolescentes que cada vez mais vi-
vem dentro da inconsistência da interdição, da V
autoridade e da lei - e movidos pela paixão, o
amor e suas formas de resolvê-lo - reativa, de- O sentido mais profundo da Lei nº 10.216 de
pressiva, eufórica ou maníaca. Agravadas pela 2001 é o cuidado. Como substantivo, adjetivo ou
evolução da família moderna, a ambiguidade dos interjeição é zelo dos preocupados, esmero, pre-
papeis sexuais e parentais, a flexibilização dos cos- caução, advertência para o perigo, vigilância, de-
tumes religiosos e morais, as perversões, o dese- dicação, encargo, lida, proteção. Atenção, tomar
jo-delírio cotidiano dos registros ligeiros da mí- conta, acolher. Cuidado é o princípio que norteia
dia, o aumento da depressão e do isolamento indi- essa lei. Evoluir a clínica, fazer do intratável o
vidual pela desconstrução do narcisismo criativo. tratável. É essencial o apoio social e familiar que
Atentos para não manicomializar os CAPS influencie comportamentos, mude hábitos, con-
por conduzi-los em ordem unida. Estes devem fronte preconceitos, classificações, nosologia, ca-
estar abertos à renovação constante e atentos à tálogos de interdições. Dedicada a cidadãos en-
agenda de quem chega, pede e precisa e não pre- fermos vistos como sem vontade, liberdade, au-
sas ao modelo interventor que não adormece tonomia porque foram colhidos pelo mal de vi-
nunca ou engessadas aos serviços que oferece. ver. Não é a doença mental que a lei questiona,
Um corolário da reforma é a Lei das Cooperati- mas a maneira de tratá-la. A sociedade cria e re-
vas Sociais, para ampliar os espaços de coopera- cria normas para definir o que rejeita e o que
ção e de ação entre os agentes comunitários, os consagra. Faz-se progressista na área de saúde
pacientes e seus familiares. São os princípios do mais por atitudes de bons profissionais, do que
trabalho assistido e da vida comunitária e local por atos de rotina médica. Assim, inscrever o
que podem permitir novas relações sociais, a so- doente mental na história da saúde pública é au-
brevivência extra-hospitalar e a vida útil dos usuá- mentar sua aceitação social, diminuir o estigma
rios dos serviços. da periculosidade e incapacidade civil absoluta e
contribui para elevar o padrão de civilidade da
IV vida quotidiana. Já é hora do parlamento brasi-
leiro se movimentar outra vez e avançar na ela-
São os princípios do SUS que norteiam a re- boração de leis correlatas, essenciais e inadiáveis,
forma psiquiátrica sobre a inimputabilidade e as medidas de segu-
Primeiro deles, a universalidade do atendimen- rança para o louco infrator.
to. Todos têm direito ao atendimento pleno. O A doença mental não é contagiosa, dispensa
segundo princípio é a equanimidade, a ideia da isolamento. Não pode ser compreendida como
justiça. Não podemos estigmatizar, deixar de fora estritamente orgânica apaziguada só pela quimi-
ninguém que por algum motivo não esteja a nos- oterapia e os remédios. Não há necessidade da
4705

Ciência & Saúde Coletiva, 16(12):4701-4706, 2011


psiquiatria biomédica se agarrar à farmacologia quadas ao entendimento mais rico e complexo
para se fazer científica. Mas é claro que é o avan- das doenças de longo percurso. Saúde não é au-
ço da medicina e dos medicamentos que permite sência de doenças. É um estado geral de bem-
a reinserção social e a convivência, restituindo o estar físico, psíquico e social como bem define a
indivíduo, sua alma e desejos, ao mundo dos vi- Organização Mundial de Saúde. A doença não é
vos. O que não significa esquecer que muitas ve- um fracasso. É um evento na vida da pessoa que
zes água com açúcar dada com amor faz mais não cria para ela um estatuto de exilado em rela-
efeito do que remédio dado com indiferença. A ção ao que é ou que está normal. A doença é um
medicina não deve ser carceral para não ampliar processo que exige observação tolerante, adver-
a solidão moral do paciente como se sua doença tência, preservação de direitos onde a internação
criasse para ele um mundo do não direito. Para é parte do tratamento, mas não seu sinônimo. A
o humanismo sanitário a técnica só pode ser um medicina da mente tem que se abrir a uma certa
instrumento da medicina se usada com respeito imprecisão e passar a duvidar que a cada compor-
e bondade. Pois a expectativa de cura ou melhora tamento corresponda um medicamento. Há mui-
que pertence ao corpo é bem menor do que a ta depressão e sociopatia na sociedade que é im-
esperança que pertence à alma. paciente com os seus doentes, tanto quanto com
Acolhimento e tratamento precoce melhoram crianças, mendigos, idosos, pobres e deficientes.
a evolução e a direção da doença. Agir antes do A sofisticação do diagnóstico é que relativiza
surto para não ferir, ferir-se, quebrar. Sintomas a classificação da doença, eis o paradoxo atual. É
físicos, queixas, mal-estar, sempre foram indícios preciso modéstia diante do sofrimento. Não é
de várias enfermidades. Melhorar a escuta geral porque não sabe, mas porque sabe que a psiqui-
dos sintomas aparentemente sem importância atria, a psicanálise, a psicologia e a psicoterapia
dores de cabeça, tremores, dores abdominais, can- modernas, baseadas em valores humanos, a psi-
saço extremo, falta de ar, agravado pelo embru- copatologia da experiência, fundam e confor-
lho e o ruído da adolescência: álcool, droga, confli- mam a reforma psiquiátrica. A internação como
to de gerações, esquisitices, vazio existencial, impa- privação da liberdade, monoterapia, só prevale-
ciência com o diferente. E estar sempre aberto para ce em serviços despreparados. Tudo isso porém
os novos paradigmas que se impõem diante da estará incompleto se daí não brotar uma nova
urgência que é compreender o fracasso das estru- economia solidária. Capaz de incorporar, no rit-
turas simbólicas dos jovens no mundo do crack. mo e na sabedoria própria da saudável competi-
Qual o código cultural no qual se assenta a regu- ção pela vida, o talento e o esforço dos egressos
lação da existência de tantas pessoas em tão pou- dos serviços e, assim, contribuir para aumentar
co tempo? Não adianta, pois, querer medicalizar a vantagem dos estão em desvantagem. Ofere-
problemas sociais e manipular a política pública cendo serviços e instituições novas que sejam
para enfrentamento tão complexo. O Ministério parte integrante do universo terapêutico.
da Saúde deve continuar resistindo aos que que- O doente mental é também beneficiário do
rem se apropriar do Plano Nacional de Combate ambiente jurídico oriundo da Declaração Uni-
ao Crack para ressuscitar o manicômio. versal dos Diretos do Homem e do Cidadão,
A tradição de tutela sobre pessoas doentes, como qualquer outro paciente. Seu tratamento
agravada pela sedação e pelo isolamento, está não é um ato cirúrgico desde que foi abolida a
culturalmente arraigada e é especialmente grave lobotomia. Só a avaliação permanente do trata-
nas áreas da Saúde Mental, toxicomanias e alco- mento livra a psiquiatria da ideologia. Não há
olismo. Mas a internação e o isolamento só en- sucesso médico-terapêutico sem afeto, cultura,
contram aceitação social se a sociedade não dis- história da doença, escuta do sofrimento, subje-
põe de serviços descentralizados, comunitários, tividade. Como ainda não sabem – mas preci-
abertos com a mesma facilidade que encontra o sam ser conquistados para esse novo horizonte
mal que a desampara. É inaceitável, assim, usar do saber e da justiça – muitos membros do Po-
o terror e o pânico para buscar legitimidade para der Judiciário e do Ministério Público, que com
a internação prolongada própria da obsoleta desabrida ousadia invadem o saber médico e sa-
cultura manicomial. nitário, violam a integridade do indivíduo, pro-
A instituição nova criada com a lei da reforma tegidos pelo preconceito inconstitucional de tu-
psiquiátrica não tem retorno e tem o nome do telar. Ousadia para a qual não teriam coragem
acolhimento, o tratamento em liberdade. A cida- em outras áreas da medicina – e imaginando pro-
dela da lei é a solidariedade e cidadania. Sustenta- teger direitos decidem, por verdadeiras cartas
do por ações múltiplas e intersetoriais, mais ade- régias, mandar internar os incômodos e, na prá-
4706
Delgado PGG

tica, vão reconstruindo hospícios contra a lei.


Assim provocam mais mal, imaginando fazer o
bem. O silencio das Universidades e alguns exces-
sos do Judiciário ameaçam a evolução do trata-
mento quando buscam legitimidade para suas
críticas atravessando com desrespeito os funda-
mentos humanistas e técnicos da lei. Esta é uma
lei da sociedade e de seus movimentos por pro-
gresso, liberdade, justiça e felicidade.

VI

Em todas as decadências, seja social, econô-


mica, política ou afetiva, o primeiro sintoma que
aparece é a depravação do sentimento de amizade
e do respeito ao outro. O ódio e a destrutividade
mais fortes do que o amor e o afeto. Muitas vezes
sofrer é amar quem não se tem mais como ami-
go. A reforma psiquiátrica necessária só será feita
por profissionais e gestores que sejam relíquias e
tenham dedicação integral ao semelhante vendo a
dor do outro como se fosse a própria dor. Dis-
postos a se criticarem e reverem posições, já que
não há batalha vencida nem vigor que não arrefe-
ça entre pessoas informadas e livres.
E a tarefa de todos nós é conquistar os in-
conquistáveis para a reforma e ver a lei como se
fosse uma luva: pelo lado de fora em contato
com o mundo, por dentro sendo o próprio paci-
ente. Os dois só existem a partir do momento
em que vestimos a luva em nossa própria mão.
(parafraseando Lygia Clark sobre sua arte e a de
Hélio Oiticica).
Volto a Vieira: uma coisa é viver, outra é du-
rar. O que deve pretender a medicina?
390

ARTIGO ESPECIAL

A saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira:


situação atual e desafios
Child mental health and Public Health in Brazil:
current situation and challenges
Maria Cristina Ventura Couto,1 Cristiane S Duarte,2 Pedro Gabriel Godinho Delgado3,4

Resumo
Objetivo: Descrever e analisar a situação atual de desenvolvimento da política pública brasileira de saúde mental infantil e juvenil,
com foco nos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil e na rede intersetorial potencial de atenção à saúde mental infantil e
juvenil que engloba outras políticas relacionadas à criança e ao adolescente em âmbito nacional. Método: Análise de publicações e
dados oficiais do governo brasileiro sobre a implantação e/ou distribuição de serviços públicos nacionais relacionados à criança e ao
adolescente. Resultados: A política brasileira de saúde mental infantil e juvenil tem como ação central a implementação de Centros de
Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil para atendimento dos casos de transtornos mentais que envolvem prejuízos funcionais severos e
persistentes. Existe uma rede intersetorial potencial de cuidado que pode se efetivar com a articulação das ações específicas de saúde
mental infantil e juvenil nos setores da saúde geral/atenção básica, educação, assistência social e justiça/direitos. Esta articulação será
de grande importância para o atendimento de problemas mais freqüentes, que envolvem prejuízos mais pontuais. Discussão: No Brasil,
o incremento do sistema de cuidados depende da expansão da rede de serviços de saúde mental infantil e juvenil, dos mais aos menos
especializados, e de sua articulação efetiva com outros setores públicos dedicados ao cuidado da infância e adolescência.

Descritores: Saúde mental; Criança; Adolescente; Serviços de saúde mental; Saúde pública

Abstract
Objective: To describe and analyze current developments in the Brazilian child and adolescent mental health public policy, focusing
on the Centers for Psychosocial Care for Children and Adolescents and in a potential child and adolescent mental health care system,
derived from other child and adolescent public policies in the national context. Method: Examination of publications and official data
produced by the Brazilian government about the implementation and/or distribution of public services for children and adolescents in the
country. Results: The Brazilian child and adolescent mental health policy has as one of its main strategies the implementation of Centers
for Psychosocial Care for Children and Adolescents to cover persistent child psychiatric disorders with severe levels of impairment. In
addition, there is a potential intersectorial system which would become effective once specific child mental health actions are articulated
with the sectors of general health, education, child welfare and justice/rights. This articulation will play an important role in responding
to psychiatric disorders which are frequent with impairment of very specific areas of functioning. Discussion: In Brazil, improvement
of the child and adolescent mental health care system relies upon the expansion of the mental health specialty sector as well as in its
articulation with other public sectors responding to child and adolescent needs.

Descriptors: Mental health; Child; Adolescent; Mental health services; Public health

1
Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental, Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro
(RJ), Brasil
2
Division of Child & Adolescent Psychiatry, Columbia University, New York, NY, EUA
3
Coordenador Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde do Brasil, Distrito Federal (DF), Brasil
4
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil

Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental (NUPPSAM), Instituto de Psiquiatria (IPUB), Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Correspondência
Maria Cristina Ventura Couto
Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental (NUPPSAM/UFRJ)
Avenida Venceslau Brás, 71 – fundos - Botafogo
22290-140 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Submetido: 30 Março 2008 Tel/Fax: (+55 21) 2543.3101
Aceito: 13 Agosto 2008 E-mail: crisventura@alternex.com.br
Rev Bras Psiquiatr. 2008;30(4):390-8
Saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira 391

Introdução obstáculos para a formulação de ações e políticas de saúde mental


No contexto de diferentes países, é evidente uma marcada infantil no contexto nacional e mundial, e prossegue-se com a
defasagem entre a necessidade de atenção em saúde mental para descrição das duas principais ações em saúde mental infantil
crianças e adolescentes e a oferta de uma rede de serviços capaz citadas acima, com base na análise de documentos e dados oficiais
de responder por ela.1,2 Esta defasagem está presente em nações de disponíveis. Conclui-se com uma avaliação crítica da informação
todas as regiões do mundo, independente de seus níveis econômicos coletada e sugestões para os próximos passos.
e de distribuição de renda, mas é especialmente significativa no
grupo de países em desenvolvimento. 1. A saúde mental infantil e a saúde pública
A constatação desse déficit assistencial contrasta com a magnitude A inclusão tardia da saúde mental infantil e juvenil na agenda das
dos problemas de saúde mental em crianças e adolescentes e das políticas de saúde mental, nacional e internacionalmente, pode ser
conseqüências a eles associadas.3 A que se deve esta disparidade atribuída a diversos fatores. Em primeiro lugar, à extensa e variada gama
no caso específico da população de crianças e adolescentes? A de problemas relacionados à saúde mental da infância e adolescência,
ausência de políticas oficiais de saúde mental infantil e juvenil na que incluem desde transtornos globais do desenvolvimento (como
extensa maioria dos países vem sendo destacada como fator de o autismo) até outros ligados a fenômenos de externalização (como
extrema relevância neste quadro.1,4,5 transtornos de conduta, hiperatividade), internalização (depressão,
De modo geral, as políticas de saúde mental existentes estão transtornos de ansiedade), uso abusivo de substâncias, e demais. Além
relacionadas aos problemas da população adulta. Na população de da sintomatologia, há considerável variação no período de incidência -
crianças e adolescentes, os tipos de transtorno, principais fatores alguns transtornos eclodem na infância e outros apenas na adolescência
de risco e de proteção, estratégias de intervenção e organização –, e nos tipos de prejuízos relacionados, adicionando complexidade à
do sistema de serviços têm especificidades que não podem ser avaliação diagnóstica e situacional. Nesta população, a formulação
contempladas pela simples extensão das estratégias de cuidado da de um diagnóstico de qualidade exige procedimentos de avaliação
população adulta à população infantil e juvenil.6 Tais especificidades específicos que incluem, além das próprias crianças e adolescentes, o
tendem a permanecer invisíveis na agenda mais geral das políticas recurso a fontes de informação diversas, como familiares, responsáveis,
de saúde mental, requerendo, assim, a proposição de uma agenda professores, e outros.3,14
política específica. A inexistência de políticas de saúde mental Um segundo fator, relacionado às dificuldades acima, diz respeito
infantil em quase todas as partes do mundo torna o desenvolvimento ao caráter recente do conhecimento sistematizado sobre freqüência,
de políticas nacionais de saúde mental para infância e adolescência persistência, prejuízo funcional e conseqüências na vida adulta
um empreendimento não apenas necessário, como urgente.1 associadas aos transtornos mentais da infância e adolescência.
Uma política de saúde mental específica para este segmento Mesmo considerando os avanços metodológicos ocorridos na
auxiliaria substancialmente a ampliação do sistema de serviços, última década em relação às estratégias de definição e avaliação
daria institucionalidade à construção de dados e de informações da severidade nas patologias mentais infantis e juvenis,15,16 grande
culturalmente relevantes acerca das questões que lhe são próprias, parte dos países carece de estudos rigorosos e abrangentes sobre
e contribuiria para o avanço das pesquisas nesta área. o tema. Pesquisas epidemiológicas consistentes, que considerem
No Brasil, é fato recente o reconhecimento, pelas instâncias a especificidade de fatores regionais/culturais na proteção ou risco
governamentais, de que a saúde mental de crianças e jovens é à saúde mental de crianças e jovens, ainda constituem um desafio
questão de saúde pública e deve integrar o conjunto de ações do a ser enfrentado em diversos países do mundo.2,3 Em relação à
Sistema Único de Saúde (SUS) – responsável pelo desenvolvimento América Latina e Caribe, em 2003, foram identificados apenas 10
da política geral de saúde mental brasileira. Historicamente, as estudos epidemiológicos que empregavam estratégias de avaliação
ações relacionadas à saúde mental da infância e adolescência padronizadas, reportando taxas de prevalência de problemas
foram, no país, delegadas aos setores educacional e de assistência mentais entre 15 e 21%.17 No Brasil, entre 1980 e 2006, nove
social, com quase ausência de proposições pela área da saúde publicações registraram taxas de prevalência de 12,6 a 35,2%18
mental.7-9 quando os informantes foram os pais ou a criança; quando utilizada
Com o objetivo de superar esta delegação silenciosa e os uma entrevista diagnóstica, a taxa variou entre 7 e 12,7%.19
problemas assistenciais que lhe são inerentes, existem hoje ações Internacionalmente, há dados disponíveis indicando a persistência
em direção à implantação de uma política de saúde mental para e conseqüências prejudiciais dos transtornos da infância na vida
infância e adolescência como um plano específico, integrado à adulta.20,21 Entretanto, não foi ainda quantificado o impacto das
política geral de saúde mental do SUS.9-11 A principal finalidade condições psicopatológicas da infância e adolescência em termos
desta política é a construção de uma rede de cuidados capaz de tempo geral de vida perdido (anos ou dias) e/ou carga global das
de responder com efetividade às necessidades de crianças e doenças.22 Uma vez efetuado, este procedimento – que foi decisivo
adolescentes. Duas ações principais estão em curso nos últimos para a inclusão da saúde mental de adultos na esfera da saúde
anos: 1) a implantação pelo SUS de novos serviços de saúde mental pública – poderá revelar mais claramente a magnitude dos danos
para crianças e adolescentes, os Centros de Atenção Psicossocial em questão, e ratificar a urgência no enfrentamento do problema,
Infanto-Juvenil (CAPSi);12,13 e 2) a construção de estratégias para já que grande parte dos transtornos psiquiátricos diagnosticados em
articulação intersetorial da saúde mental com setores historicamente adultos tem história de início na infância ou juventude.23
envolvidos na assistência à infância e adolescência: saúde geral, Um terceiro aspecto é a inexistência até bem pouco tempo atrás,
educação, assistência social, justiça e direitos,9,11 com vistas à em todos os países, de evidências empíricas de qualidade sobre
integralidade do cuidado. Esta última ação será denominada ao a eficácia e a efetividade de tratamentos para transtornos mentais
longo deste artigo como ‘rede intersetorial potencial’. infantis. Na última década, a ação de intervenções terapêuticas vem
O presente artigo visa descrever e analisar a situação atual sendo comprovada para condições debilitantes na população infantil
do desenvolvimento da política de saúde mental para crianças e juvenil,24-26 assim como a efetividade de estratégias comunitárias,
e adolescentes no Brasil. Parte-se da listagem dos principais psicossociais e familiares, particularmente em situações de risco.27
Rev Bras Psiquiatr. 2008;30(4):390-8
392 Couto MCV et al.

Entretanto, há ainda um significativo hiato a ser recoberto quanto e também sobre a de outras políticas públicas relacionadas ao
ao desenvolvimento de modalidades de intervenção para o cuidado cuidado de crianças e adolescentes. As fontes utilizadas encontram-
à saúde mental de crianças e adolescentes2 que sejam aplicáveis se relacionadas na Tabela 1. Especificamente, com a finalidade
a diferentes contextos.28 de descrever o processo e atual estado de implantação dos
Um quarto fator merece ser destacado na dificuldade de inclusão da CAPSi, considerando o período de 2002-2007, foram utilizados
saúde mental infantil no campo da saúde pública: a particularidade documentos oficiais da Área Técnica de Saúde Mental do Ministério
do sistema de cuidado. Este, especificamente no caso de crianças e da Saúde (MS). Estes dados foram suplementados por uma
adolescentes, freqüentemente envolve a atividade de vários setores produção acadêmica específica sobre CAPSi.13
autônomos em relação à saúde mental propriamente dita, como os Para o entendimento da cobertura potencial ao atendimento à
setores da saúde geral/atenção básica, educação, assistência social, infância e adolescência foram compiladas informações oficiais sobre
justiça e direitos. Esses setores tradicionalmente operam isolados serviços em saúde mental e serviços específicos em quatro setores
uns dos outros, mas todos provêem serviços ou agem de alguma de cuidado (saúde geral, educação, assistência social, justiça/
forma sobre crianças e adolescentes com problemas mentais.29 direitos), referentes ao período 2006-2008.
O uso simultâneo de serviços de diferentes setores ocorre com Os serviços selecionados foram aqueles considerados estratégicos
freqüência.30 Muitas vezes, o cuidado, especializado ou não, de nas respectivas políticas setoriais e planejados a partir de bases
problemas mentais em crianças e adolescentes ocorre num único populacionais. São eles:
setor, vocacionado ou não a exercer este trabalho específico.8,17 1) Saúde Mental: dispositivos de base territorial – ambulatórios
Por exemplo, não é incomum que crianças ou adolescentes com de saúde mental e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
problemas de conduta sejam atendidos exclusivamente pelo setor da em suas diferentes tipologias (I, II, III, Infanto-Juvenil e Álcool/
justiça, sem participação da saúde mental. Da mesma forma, não Drogas) –, já que mesmo aqueles não dirigidos especificamente
é raro que problemáticas ligadas à depressão,31 hiperatividade32 e para crianças e adolescentes recebem orientação da política para,
outras fiquem restritas ao contexto escolar e não obtenham avaliação nos locais onde não existem outros recursos da saúde mental,
e cuidado mais qualificado pela saúde mental. Esta forma de uso dos responder pela cobertura a esta população11 quando necessitada
serviços revela ausência de racionalidade na oferta dos recursos e, de tratamento.
na maioria das vezes, resulta em impropriedade ou subutilização do 2) Saúde Geral: Atenção Básica/Primária, representada pelo
cuidado.17 Concorre ainda para agravar a situação o fato de setores Programa de Saúde da Família (PSF), ícone da mudança de modelo
tão distintos terem limitada capacidade de produzir informações para para assistência em saúde no país, e estratégico para ações de
instrumentalizar os gestores da área de saúde mental na construção prevenção e detecção precoce de questões ligadas à saúde mental
de estratégias para melhoria da qualidade da assistência. de crianças e adolescentes.11
No contexto internacional atual tem sido reiteradamente afirmada 3) Educação: a) Estabelecimentos públicos da educação básica
a necessidade de uma rede que articule serviços dos mais aos que incluem a educação infantil, ensino fundamental e médio -
menos especializados, prioritariamente de base comunitária e sob planejados para cobertura universal da população; b) Instituições
fundamento intersetorial, formando um continuum de resposta para filantrópicas com número significativo de estabelecimentos em
a efetividade do cuidado em saúde mental infantil e juvenil.2-4 A todas as regiões do país que oferecem ações educacionais e de
função das escolas, de serviços da saúde geral e assistência social reabilitação para alunos especiais – representadas pela Associação
para detecção de problemas e organização do suporte assistencial de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE).
a essa população tem merecido destaque em diversos estudos 4) Assistência Social: Centros de Referência da Assistência
dedicados ao tema.2,3 Nas escolas são privilegiadas as ações para Social (CRAS), propostos em 2004 pela atual Política Nacional
redução de riscos e aumento dos fatores protetivos relacionados à de Assistência Social, sob gestão do Sistema Único de Assistência
saúde mental de crianças e jovens.2,3 A saúde geral, particularmente Social (SUAS), em processo de consolidação no país, e que têm
a atenção básica, educação e a assistência social, são considerados por finalidade o desenvolvimento de ações de proteção em áreas de
programas estratégicos para acesso de crianças e adolescentes ao vulnerabilidade social, sob o princípio da intersetorialidade.
cuidado em saúde mental, dentre outros fatores, porque são mais 5) Justiça/Defesa de direitos: Conselhos Tutelares (CT),
acessíveis à população e tendem a gerar menos estigma3 tanto para estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
os usuários quanto para suas famílias. em 1990, e encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos
A existência de desafios específicos envolvidos no atendimento à da população infantil e juvenil.
saúde mental infantil e juvenil indica que apenas o conhecimento
consubstanciado das particularidades dos diferentes contextos, das Resultados
ações concretas realizadas pela atenção especializada, e da distribuição No caso específico do Brasil, a implantação de CAPSi (para
de serviços nos diferentes setores pelo território nacional podem guiar atendimento de transtornos mentais que envolvem prejuízos severos
a construção de uma política pública que proporcione efetiva melhoria e persistentes) e o estabelecimento de diretrizes para articulação
do atendimento e do cuidado à infância e adolescência. intersetorial da saúde mental com outros setores públicos (visando
A seguir, serão descritos e analisados criticamente o estado atual a cobertura de problemas mais freqüentes que envolvem prejuízos
e o contexto da recente política pública brasileira de saúde mental mais pontuais) constituem, atualmente, os pilares da saúde mental
infantil, por meio do exame de seus dois componentes centrais: os pública para crianças e adolescentes. A noção que embasa a
CAPSi e a rede intersetorial potencial. Particular ênfase será dada montagem de recursos é a de uma rede pública ampliada de
à identificação dos principais desafios a serem enfrentados. atenção à saúde mental infantil e juvenil, onde devem estar
articulados serviços de diferentes setores, com graus diferenciados
Método de complexidade e níveis distintos de intervenção, capazes de
Foram consultados e sistematizados documentos oficiais emitidos responder pelas diferentes problemáticas envolvidas na saúde
pelo governo brasileiro sobre a área específica de saúde mental, mental de crianças e jovens.
Rev Bras Psiquiatr. 2008;30(4):390-8
Saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira 393

Tabela 1 – Fontes de informação consultadas sobre a política específica de saúde mental de criança e adolescente (CA) e outras
políticas públicas relevantes

Documentos/Dados Conteúdo relevante a CA Ano Fonte


Saúde mental
Relatório Final da III Conferência Deliberações para atenção à saúde mental de 2002 Requisição ao Ministério da Saúde: saudemental@saude.gov.br
Nacional de Saúde Mental CA
Portaria 336/2002 Instruções técnicas para funcionamento de 2002 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/legislacao_mental.pdf
CAPSi
Portaria 189/2002 Instruções financeiras para custeio de CAPSi 2002 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/legislacao_mental.pdf
Portaria 1608/2004 Constitui Fórum Nacional de Saúde Mental CA 2004 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/legislacao_mental.pdf
Caminhos para uma Política de Diretrizes operacionais para todos os serviços 2005 http://dtr2001.saude.gov.br/editora/produtos/livros/pdf/05_0379_M.
Saúde Mental Infanto-Juvenil de saúde mental para CA pdf
Portaria 1174/2005 Financiamento regular de supervisão clínico- 2005 http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2005/GM/GM-
institucional para CAPSi 1174.htm
Declaração de Brasília Diretrizes para organização e expansão da 2006 Requisição ao Ministério da Saúde/ Fórum Nacional de Saúde
rede de cuidados em saúde mental para CA Mental Infanto-Juvenil: saudemental@saude.gov.br
Saúde Mental no SUS: Acesso ao Relatório de Gestão da Área Técnica de Saúde 2007 http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/07_0416_M.pdf
Tratamento e Mudança do Modelo Mental do Ministério da Saúde 2003-2006
de Atenção
Boletim Informativo da Saúde Número de CAPS por Estado da Federação 2007 Requisição ao Ministério da Saúde: saudemental@saude.gov.br
Mental. MS/DAPES/Coordenação
Geral de Saúde Mental Ano VI, nº26
Saúde Mental em Dados, nº 4 Número de ambulatórios de saúde mental por 2007 Requisição ao Ministério da Saúde: saudemental@saude.gov.br
Estado
Outras
População por Estado População residente 2006 http://www.ibge.gov.br
Índice de Desenvolvimento Humano IDH 2000 http://www.undp.org.br/hdr/atlas.htm
Programa de Saúde da Família Cobertura do PSF por Estado 2006 http://dtr2004.saude.gov.br/dab/docs/abnumeros/historico_2006.pdf
(PSF)
Escolas Públicas/Educação Básica Número de estabelecimentos da educação 2006 http://www.inep.gov.br/basica/censo/escolar/sinopse/sinopse.asp
básica por Estado
Associação de Pais e Amigos dos Número de APAE por Estado 2008 Requisição à Associação Federal das APAE:
Excepcionais (APAE) fenapaes@apaebrasil.org.br
Número de Centros de Referência Número de CRAS por Estado 2006 http://www.mds.gov.br/suas/guia_protecao/cras-centros-
da Assistência Social (CRAS) dereferencia-da-assistencia-social/habilitacao-por-estado
Conselhos Tutelares (CT) Número de Conselhos Tutelares por Estado 2007 http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/conselho
/conanda

Serão apresentados a seguir os resultados da compilação de dados Os CAPSi são também encarregados de desenvolver ações para
e informações sobre os CAPSi e a rede intersetorial potencial. conhecimento e ordenação das diferentes demandas que concernem
à saúde mental da infância e adolescência no território sob sua
1. Os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis responsabilidade. Esta inflexão para o território, conjugada ao
(CAPSi) atendimento dos casos, imputa a estes serviços um duplo mandato:
Os CAPSi foram propostos a partir de 2002, sob os mesmos terapêutico e gestor. Este último deve ser realizado por meio: 1) do
princípios que regem as demais tipologias de CAPS no país. São levantamento das reais necessidades em saúde mental presentes
serviços territoriais, de natureza pública, financiados integralmente no contexto social específico onde está inserido e nos equipamentos
com recursos do SUS,13 com a função de prover atenção em saúde públicos locais como, por exemplo, escolas, conselhos tutelares,
mental baseados na integralidade do cuidado. Foram planejados abrigos, postos de saúde e demais, por intermédio de reuniões
inicialmente para as cidades com 200.000 habitantes ou mais, regulares e/ou outras estratégias pertinentes; 2) da pactuação de
com a finalidade de atender casos de maior gravidade, conforme fluxos pelos diferentes serviços/setores, visando à melhor cobertura
deliberação da III Conferência Nacional de Saúde Mental realizada das demandas que, mesmo não requerendo tratamento diário e
em 2001,7 e ordenar a demanda em saúde mental infantil e juvenil intensivo, exigem cuidado e tratamento.
no seu território de abrangência. Os indicadores disponíveis sugerem que a expansão da rede
Compostos por equipes multiprofissionais - contendo no mínimo CAPSi está aquém da necessária e constitui um importante desafio
um psiquiatra, neurologista ou pediatra com formação em saúde a ser enfrentado.10 A Figura 1 ilustra a evolução no país do número
mental infantil, um enfermeiro, quatro profissionais de nível de CAPSi, por ano, desde sua criação. Existiam, ao final de 2007,
superior (entre: psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, um total de 86 CAPSi em funcionamento. Em cinco anos, de 2002
fonoaudiólogo, pedagogo) e cinco profissionais de nível médio - os a 2007, 54 novos serviços foram disponibilizados. O parâmetro
CAPSi devem se responsabilizar pelo atendimento regular de um populacional estabelecido pela base normativa (200.000 habitantes
número limitado de pacientes e de suas famílias, em regimes ou mais) incide diretamente sobre 130 cidades no país, sendo 14
diferenciados de tratamento, segundo as necessidades de cada com mais de um milhão de habitantes, onde, certamente, e não
caso (intensivo, semi-intensivo e não intensivo), desenvolvendo um somente nelas, o número de CAPSi deveria ser maior do que um.
elenco diversificado de atividades terapêuticas.12 São prioritários os O percentual de CAPSi em relação à totalidade dos CAPS
atendimentos para autistas, psicóticos e para todos aqueles cuja (todas as tipologias) em funcionamento no país tem se mantido
problemática incida diretamente em prejuízos psicossociais severos inalterado ao longo dos anos, média de 7%, conforme Figura 1. A
(na socialização, inclusão escolar, familiar/comunitária etc.). existência no SUS de recursos financeiros extra-teto [Autorização

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da área da saúde mental do MS, com a finalidade de potencializar


esse processo: o Fórum Nacional de Saúde Mental Infanto-
Juvenil,35 composto por gestores de diferentes instituições, setores
públicos, da justiça e organizações da sociedade civil, concreta
ou potencialmente relacionados ao cuidado em saúde mental
da população em questão. Esta experiência de gestão na esfera
federal foi precedida por uma de formato equivalente, e exitosa
em seus efeitos, desenvolvida desde 2000 pela instância estadual
da saúde mental no Estado do Rio de Janeiro. A expansão desta
modalidade de gestão é considerada de fundamental importância
para consolidação e efetividade da política de saúde mental infantil
e juvenil em todas as unidades da federação.
No presente artigo, com o objetivo de instrumentalizar e ampliar
a discussão sobre a intersetorialidade como fundamento do cuidado
à saúde mental infantil, foram reunidas informações, por estados e
regiões do país, sobre a presença de serviços públicos nos diferentes
setores envolvidos com o cuidado de crianças e adolescentes.
A Tabela 2 resume o número e a taxa de presença por 100.000
de Procedimentos Ambulatoriais de Alta Complexidade (APAC), do habitantes dos diferentes serviços de atendimento à infância e
Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (FAEC)], isto é, com adolescência nas regiões e estados da federação para os anos de
dotação específica,13 para custeio dos CAPS, não correspondeu para 2006 ou 2007.
os CAPSi (e CAPS III) ao aumento esperado no número de serviços.10 Os serviços de saúde mental, representados pela soma dos CAPS
A partir de 2005, apenas 24% dos CAPSi pleitearam recurso junto (todas as tipologias, incluindo CAPSi) e ambulatórios, apresentam
ao MS para financiamento de supervisão clínico-institucional, objeto em três regiões taxas próximas de 1:100.000 – Nordeste, Sudeste
do programa de qualificação do atendimento e gestão dos CAPS, e Sul – indicando uma situação potencialmente favorável de acesso
com dotação financeira regular.33 ao tratamento em saúde mental quando comparadas com as regiões
Nas cidades onde não está prevista, no momento, a implementação Norte e Centro-Oeste. Entretanto, a efetividade das estratégias
de CAPSi, a orientação atual da política indica que a cobertura para voltadas para crianças e adolescentes nos serviços de saúde mental
tratamento de crianças e adolescentes deverá ser executada pelas não especificamente dirigidos a elas, em quaisquer das regiões, não
demais tipologias de CAPS (I, II, III, AD),12 pelos ambulatórios de pode ser identificada por meio destes indicadores.
saúde mental e/ou outros recursos intersetoriais existentes.11 Esta Em todas as regiões do país, as escolas, em primeiro lugar,
estratégia, relevante no sentido da cobertura, requer, entretanto, seguidas pelas Equipes de Saúde da Família, apresentam as maiores
um rigoroso processo de acompanhamento e análise de impacto, taxas de presença em relação aos demais serviços, sinalizando a
ainda não realizado. importância destes dispositivos na construção de uma rede de
Na literatura, são escassas as publicações contendo avaliação mais cuidados em saúde mental, ampliada e inclusiva. Os setores da
detalhada sobre o funcionamento dos CAPSi. Um estudo recente, de educação e da atenção básica - como integrantes de uma rede
caráter descritivo, realizado com dados secundários obtidos das APAC pública ampliada de atenção à saúde mental infantil - podem ter
para o ano de 2003, de sete CAPSi,34 encontrou 1.455 pacientes em função de destaque no desenvolvimento de ações preventivas, de
atendimento (62,3% do sexo masculino e idade média de 11,1 anos), promoção de saúde, e na identificação de casos para os quais
representando uma média de 208 pacientes por serviço. Destes, 49,3% intervenções precoces podem reverter ou evitar o agravamento de
estavam em atendimento não-intensivo, 40,2% em semi-intensivo e problemas mentais.36,37
10,5% em regime intensivo. Em relação aos agrupamentos diagnósticos Os dispositivos da educação especial/filantrópica, saúde mental,
propostos pela CID-10, foram encontrados: 44,5% dos pacientes no assistência social e defesa de direitos apresentam taxas que variam
grupo dos transtornos do comportamento e transtornos emocionais entre 0,43 (educação especial, na região Nordeste) e 4,1 (conselhos
(F90-F98); 19,8% no dos transtornos neuróticos (F40-F49); 14,2% tutelares, na região Sul). Estes programas estão direcionados a
nos transtornos do desenvolvimento psicológico (F80-F89); 3% com populações específicas, sob diferentes situações de risco. Para estas
esquizofrenia e transtornos esquizotípicos (F20-F29); e 8,7% no dos populações, a articulação com a área da saúde mental tem papel
transtornos do humor (F30-F39). Em relação às normas estabelecidas de relevo se consideradas as diversas formas de agravo a que estão
para composição da equipe, a única discrepância identificada foi o submetidas (violência, miséria, abuso, desfiliação etc.),38 reforçando
menor número de profissionais de nível médio. Mesmo circunscrito a importância da intersetorialidade para um cuidado efetivo.
e baseado em informações apenas do primeiro ano de existência dos Diferenças regionais na distribuição dos diversos serviços
CAPSi no SUS, o estudo indica pontos de convergência entre o serviço são visíveis na Tabela 2. Tais diferenças importam porque têm
e sua missão público-institucional. Em relação à função gestora dos implicações na formulação de políticas adequadas às realidades
CAPSi, não há referência neste ou em outros trabalhos registrados na específicas. Na região Norte, destaca-se a importância das redes
literatura. de saúde (taxa: 12,8) e de ensino (159,7), e a necessidade de
expansão da rede de saúde mental (apenas 0,46). A região Nordeste
2. Rede intersetorial potencial apresenta a mais elevada taxa em saúde geral (21,6) e a segunda
O sistema de cuidados preconizado no momento atual da política mais alta na educação (144,7). A taxa de presença do setor
de saúde mental infantil e juvenil brasileira tem como componente educação nas regiões Norte e Nordeste é entre duas e três vezes
central a articulação entre serviços de diferentes setores.9 Uma maior que as taxas das outras regiões, o que contrasta notavelmente
estratégia de gestão foi instituída recentemente, sob a coordenação com os indicadores sociais desfavoráveis destas regiões. Com
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Tabela 2 - Distribuição Regional e Estadual da Rede Pública Potencial de Atenção à Saúde Mental da Infância e Adolescência no Brasil

Saúde Mental Saúde geral Educação Assistência social Justiça/Direitos


Nº 7
Amb. Saúde Equipes de Saúde Escolas Públicas Educação Especial CRAS Conselhos
4
Regiões/Estados municípios Populacão1 IDHM2 Mental + CAPS da Família (Ed. Básica)5 Filantrópica6 Tutelares8
(todas as tipologias)3
N :100.000 N :100.000 N :100.000 N :100.000 N :100.000 N :100.000
Amazonas 32 3.311.026 0,71 5 0,15 427 12,9 5.156 155,7 10 0,30 65 2,0 30 0,9
Roraima 15 403.344 0,75 3 0,74 92 22,8 731 181,2 0 0,00 11 2,7 6 1,5
Amapá 16 615.715 0,75 3 0,49 104 16,9 713 115,8 3 0,49 10 1,6 12 1,9
Acre 22 686.652 0,70 6 0,87 127 18,5 1.693 246,6 3 0,44 23 3,3 14 2,0
Rondônia 52 1.562.417 0,74 12 0,77 176 11,3 1.735 111,0 23 1,47 35 2,2 45 2,9
Pará 143 7.110.465 0,72 28 0,39 649 9,1 12.003 168,8 27 0,38 132 1,9 98 1,4
Tocantins 139 1.322.441 0,71 12 0,90 350 26,3 1.964 147,4 35 2,63 50 3,8 80 6,0
TOTAL Norte 449 115.022.060 69 0,46 1.925 12,8 23.995 159,7 101 0,67 326 2,2 285 1,9
Alagoas 102 3.050.652 0,65 47 1,54 698 22,9 3.215 105,4 2 0,07 97 3,2 77 2,5
Bahia 417 13.950.146 0,69 144 1,03 2.180 15,6 20.651 148 66 0,47 336 2,4 129 0,9
Ceará 184 8.217.085 0,70 72 0,88 1.531 18,6 9.874 120,2 27 0,33 203 2,5 164 2,0
Maranhão 217 6.184.538 0,64 46 0,74 1.592 25,7 12.974 209,8 46 0,74 205 3,3 112 1,8
Paraíba 223 3.623.215 0,66 45 1,24 1.185 32,7 6.087 168,0 16 0,44 184 5,1 114 3,1
Pernambuco 185 8.502.603 0,71 96 1,13 1.605 18,9 8.774 103,2 8 0,09 191 2,2 118 1,4
Piauí 223 3.036.290 0,66 42 1,38 1.028 33,9 7.032 213,6 38 1,25 134 4,4 142 4,7
Rio Grande do Norte 167 3.043.760 0,71 24 0,79 828 27,2 3.800 124,8 13 0,43 128 4,2 58 1,9
Sergipe 75 2.000.738 0,68 36 1,80 503 25,1 2.249 112,4 5 0,25 65 3,2 65 3,2
TOTAL Nordeste 1.739 51.609.027 552 1,07 11.150 21,6 74.656 144,7 221 0,43 1.543 3,0 979 1,9
Distrito Federal 1 2.383.784 0,84 4 0,17 21 1,0 619 26,0 1 0,04 10 0,4 1 0,0
Goiás 246 5.730.753 0,78 28 0,49 996 17,4 3.532 61,6 42 0,73 94 1,6 203 3,5
Mato Grosso do Sul 78 2.297.981 0,78 20 0,87 347 15,1 1.122 48,8 55 2,39 57 2,5 74 3,2
Mato Grosso 141 2.856.999 0,77 35 1,23 471 16,5 2.500 87,5 57 2,00 68 2,4 129 4,5
TOTAL Centro Oeste 466 13.269.517 87 0,66 1.838 13,9 7.773 58,6 155 1,17 229 1,7 407 3,1
Espírito Santo 78 3.464.285 0,77 46 1,33 487 14,1 3.390 97,9 40 1,15 52 1,5 76 2,2
Minas Gerais 853 19.479.356 0,77 206 1,06 3.422 17,7 13,911 71,4 408 2,09 321 1,6 529 2,7
Rio de Janeiro 92 15.561.720 0,81 151 0,97 1.328 8,5 6.532 42,0 61 0,39 178 1,1 83 0,5
São Paulo 645 41.055.734 0,82 384 0,94 2.780 6,8 969 41,3 295 0,72 313 0,8 591 1,4
TOTAL Sudeste 1.668 79.561.095 787 0,99 8.037 10,1 40.802 51,3 804 1,01 864 1,1 1.279 1,6
Paraná 399 10.387.378 0,79 129 1,24 1,545 14,9 7.228 69,6 324 3,12 123 1,3 399 3,8
Rio Grande do Sul 496 10.963.219 0,81 211 1,92 1.040 9,5 8.390 76,5 205 1,87 111 1,0 416 3,8
Santa Catarina 293 5.958.266 0,82 178 2,99 1.194 20,0 5.592 93,9 188 3,16 44 0,7 293 4,9
TOTAL Sul 1.188 27.308.863 518 1,90 3.779 13,8 21.210 77,7 717 2,63 287 1,1 1.108 4,1
TOTAL BRASIL 5.564 186.770.562 0,77 2.013 1,08 26.729 14,3 168.436 90,2 1.998 1,07 3.249 1,7 4.058 2,2

1 Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), estimativa das populações residentes em julho de 2006 - http://www.ibge.gov.br
2 Índice de Desenvolvimento Humano por Município. Fonte: IDHM, 2000. Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil - http://www.undp.org.br/HDR/Atlas.htm
3 Fonte: MS/DAPES/CSM. Saúde Mental em dados, n.4, ago 2007 e Informativo da Saúde Mental, ano VI, n.26, dez 2007 - http://www.saude.gov.br
4 Fonte: Ministério da Saúde / Departamento de Atenção Básica / Secretaria de Atenção à Saúde, dezembro de 2006 - http://www.saude.gov.br
5 Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, março de 2006 - http://www.inep.gov.br
6 Fonte: APAE - Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais - http://www.apaebrasil.org.br
7 Conselho Regional de Assistência Social. Fonte: Ministério do Desenvolvimento Social / Sistema Único de Assistência Social, julho de 2006 - http://www.mds.gov.br
8 Fonte: Secretaria Especial dos Direitos Humanos / Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, dezembro de 2007 - http://www.presidencia.gov.br/estrutura_presidencia/sedh/conselho/conanda

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396 Couto MCV et al.

algumas exceções, serviços voltados para populações de risco não A gestão territorial das demandas – ação que envolve diretamente
são freqüentes nas regiões Norte e Nordeste. outros setores - constitui um segundo desafio e requer urgência
Assim, em que pesem diferenças relativas às escolas nas diferentes na construção de metodologias compatíveis com a verificação de
regiões, é possível afirmar que as melhores taxas de presença de sua real potência, efeitos e viabilidade. O caráter abrangente do
serviços são encontradas nos serviços básicos (educação e saúde) mandato dos CAPSi exige acompanhamento, avaliação e revisão
das áreas com menores índices de desenvolvimento (IDMH). Neste crítica permanentes. Vale ressaltar que este mandato, se efetivado
aspecto, a região Centro-Oeste apresenta situação desfavorável, adequadamente, poderá viabilizar soluções locais em relação às
já que a presença da educação e saúde geral não é comparável diferentes ordens de problemas que afetam a saúde mental de
às do Norte e Nordeste, e os demais serviços também não são crianças e jovens.
numerosos nesta região. O terceiro desafio diz respeito à orientação de estender aos CAPS
A região Sudeste, onde está concentrado o maior percentual I, II, III, AD e aos ambulatórios de saúde mental a cobertura para
da população residente no país (42,6%), e onde os índices de tratamento de crianças e adolescentes, na ausência de recursos
desenvolvimento são melhores do que os das regiões Norte e específicos. Esta orientação deverá induzir a formação permanente
Nordeste, concentra as piores taxas em educação básica, saúde de recursos humanos e a proposição de metodologias para avaliação
geral, assistência social e conselhos tutelares, e apenas mediana na de sua efetividade. Nesse sentido, a saúde mental infantil e juvenil
saúde mental e educação especial, sugerindo sobrecarga em quase tem na própria saúde mental geral um setor a ser conquistado e
todas as áreas de cuidado. Ressalte-se que foram analisados apenas integrado às suas necessidades.
os serviços públicos e filantrópicos, não se incluindo o componente No que tange à intersetorialidade no cuidado à saúde mental de
privado, especialmente significativo na área de educação das crianças e adolescentes, o principal problema brasileiro parece estar
regiões economicamente mais desenvolvidas do país, como a situado na presença desarticulada de serviços públicos para infância
Sudeste. Finalmente, a região sul apresenta os melhores índices e adolescência, e não na ausência absoluta de recursos. O exame
nos serviços dirigidos às populações específicas: saúde mental, panorâmico e preliminar realizado neste artigo indica que há no
educação especial e conselhos tutelares. país base concreta para construção de caminhos conseqüentes e
efetivos em prol de uma rede pública ampliada de atenção à saúde
Discussão mental das crianças e jovens. A transformação desta matéria bruta,
O processo brasileiro de desenvolvimento da política de saúde mas potencial, em realidade assistencial depende, no entanto, de
mental e as peculiaridades regionais indicam avanços e desafios que as estratégias de cuidado à saúde mental infantil e juvenil
a serem enfrentados. possam ser expandidas e articuladas nas diferentes ações setoriais,
Os CAPSi são a principal ação brasileira porque respondem à considerando as diferenças regionais e os mandatos próprios a
necessidade de ampliação de acesso ao tratamento para casos que cada setor.
até então estavam fora do sistema formal de saúde mental8 – como Constitui, assim, um desafio central, relacionado diretamente ao
casos de autismo - e, ao mesmo tempo, visam a melhorias no fundamento intersetorial do sistema de cuidados, a necessidade
conhecimento clínico, epidemiológico e sobre organização de serviços de integração e articulação efetivas entre os diferentes serviços e
no campo da saúde mental infantil e juvenil. Vale ressaltar que a programas existentes com as ações de saúde mental. O exame
montagem de serviços multiprofissionais, de base comunitária, e mais da realidade brasileira, baseado em dados oficiais, indicou haver
especializados para tratamento de jovens com múltiplas e complexas serviços públicos em diferentes setores dirigidos à infância e
necessidades decorrentes de transtornos mentais vem sendo reafirmada juventude na extensa maioria dos Estados, sem que se possa afirmar
internacionalmente.2 O fundamento intersetorial do sistema de serviços a existência no país uma rede conseqüente de cuidados.
constitui relevante estratégia para o cuidado de crianças e adolescentes, A constatação da existência de serviços é fundamental para
mas a complexidade de sua operacionalização permanece como tarefa a superação de imobilidades políticas e gestoras, dentre outras
a ser efetivamente realizada. – sempre possíveis quando apenas ausências são reiteradas
Os dados reunidos neste artigo sugerem a existência de três -, substituindo-as por proposições afirmativas, e realísticas,
principais desafios a serem enfrentados pelo setor específico de estratégias capazes de articular uma rede assistencial. Esta
da saúde mental infantil e juvenil: um primeiro, originado da articulação vem sendo sublinhada nas recomendações mais
situação atual de implantação de dispositivos para atenção à recentes em prol da melhor cobertura em saúde mental para
saúde mental infantil e juvenil, é a necessidade de expansão dos crianças e adolescentes, mas é visceralmente dependente do vigor
diferentes serviços que compõem a rede de cuidados. É urgente de uma política pública de saúde mental dirigida a este segmento.
o aumento do número de CAPSi, assim como o de ambulatórios Integrar as intervenções de saúde mental infantil com todos os
e demais dispositivos de saúde mental, em particular daqueles outros programas setoriais, sem descaracterizá-los, depende de
especificamente voltados para infância e adolescência. Este desafio uma direção pública clara e afirmada, cuja garantia é dada pela
está colocado para todas as regiões do país, especialmente Norte vigência real de uma política de âmbito nacional.
e Centro-Oeste, e particularmente para as cidades de grande porte Há muitos obstáculos a esta integração, como o estigma, a
onde, conseqüentemente, é maior o quantitativo de crianças e falta de qualificação profissional, dentre outros. Só uma direção
jovens que requerem atendimento. O enfrentamento deste problema publicamente afirmada, que se constitua como eixo organizador
depende, dentre outros fatores, da maior conscientização dos da intersetorialidade, pode produzir diferenças nessa realidade. A
gestores locais e regionais, e da sociedade em geral, em relação aos intersetorialidade, portanto, não se reduz à simples presença de
problemas mentais nesta população e da carga a eles associada; da serviços, mas efetiva-se quando uma linha de ação comum pode
ampliação da oferta de programas de formação para qualificação de ser pactuada, partilhada e verificada entre diferentes programas.
trabalhadores nesta área; do aumento e regularidade dos recursos Fundamento principal da saúde mental infantil e juvenil, e imagem-
financeiros; e da ampliação da base de defesa dos direitos humanos objetivo do futuro da saúde mental geral,39,40 a intersetorialidade é
para a população em questão. tributária do esforço para encontrar uma direção comum, no vasto
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Saúde mental infantil na Saúde Pública brasileira 397

mundo das diferenças setoriais, sob a perspectiva das necessidades Os desafios aqui descritos, em grande parte comuns aos de outras
da saúde mental. regiões do mundo, foram examinados com maior detalhamento do que
Evidentemente, o panorama aqui descrito deve ser considerado o usualmente encontrado na literatura mundial sobre as políticas de
em conjunto com as limitações da análise aqui realizada. Uma saúde mental infantil porque tomou como foco uma realidade nacional
limitação importante diz respeito ao fato de grande parte dos dados particular, com suas diferentes ordens de desafios específicos associadas
compilados e discutidos serem originados de fontes governamentais, às estratégias de superação em operação. Espera-se que a veiculação
refletindo, portanto, uma perspectiva específica. Vale ressaltar, desta temática incite a produção de pesquisas e de conhecimento
entretanto, que, até o momento, para o objeto da discussão em consubstanciado para qualificação das ações da saúde mental infantil
pauta neste artigo, tais dados constituem as únicas informações sob o marco da saúde pública.
disponíveis.
Deriva desta limitação um desafio complementar ao campo Agradecimentos
da saúde mental infantil, comum à saúde mental de adultos e a Ministério da Saúde, pelo auxílio no acesso aos dados públicos relativos à
várias outras políticas públicas: a necessidade de construção de saúde mental de crianças e adolescentes.
um sistema eficaz de monitoramento e avaliação para o conjunto Renata Weber, da Coordenação Nacional de Saúde Mental do Ministério
das ações e diretrizes que constituem o escopo dessas políticas, da Saúde do Brasil.
e o da saúde mental da infância e adolescência em especial. A Apoio do Institute for Latin American Studies and Center for Brazilian Studies,
complexidade inerente a esta tarefa não deve desencorajar seu Columbia University.
enfrentamento. Auxílio editorial de Flávia Colombo e Ana Soledade Graeff-Martins.

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ARTIGO ARTICLE 399

Apoio matricial e equipe de referência: uma


metodologia para gestão do trabalho
interdisciplinar em saúde

Matrix support and reference team: a


methodology for interdisciplinary
health work management

Gastão Wagner de Sousa Campos 1

Ana Carla Domitti 1

Abstract Introdução

1 Faculdade de Ciência
The authors discuss a theoretical and conceptu- Os conceitos de apoio matricial e equipe de re-
Médicas, Universidade
Estadual de Campinas,
al management methodology based on reference ferência foram propostos por Campos 1 dentro
Campinas, Brasil. teams and matrix support. Reference team is a da linha de pesquisa voltada para a reforma das
structural organization intended to combine organizações e do trabalho em saúde. Posterior-
Correspondência
G. W. S. Campos
managerial power and interdisciplinary work. mente, essa metodologia de gestão do cuidado
Departamento de Medicina Matrix support changes the way traditional foi adotada em serviços de saúde mental 2, de
Preventiva e Social, health systems work, with specialists organically atenção básica e da área hospitalar do Sistema
Faculdade de Ciência
Médicas, Universidade linked to other teams who periodically require Único de Saúde (SUS) de Campinas, São Paulo,
Estadual de Campinas. specialized consultation. Besides care support, Brasil 3. Algum tempo depois, alguns programas
Cidade Universitária Zeferino
there is another goal: to build new knowledge do Ministério da Saúde – Humaniza-SUS 4, Saú-
Vaz, C. P. 6111, Campinas, SP
13084-971, Brasil. for each health professional through a continu- de Mental 5 e Atenção Básica/Saúde da Família 6
gastaowagner@mpc.com.br ing education process. The article analyzes the – também incorporaram essa perspectiva. Este
structural, political, cultural, theoretical, and trabalho objetiva descrever esses dois arranjos
subjective obstacles to this new model. organizacionais, indicar conceitos e teorias sobre
os quais se apóiam essa metodologia de traba-
Health Management; Methodology; Epistemol- lho, bem como identificar obstáculos epistemo-
ogy lógicos e da estrutura dos serviços que essa alter-
nativa propõe-se a enfrentar. Tal estudo servirá
de elemento de base para apoiar pesquisas que
avaliem limitações e potência dessa modalidade
organizacional.

O que é e como funcionam o apoio


matricial e a equipe de referência

O apoio matricial em saúde objetiva assegurar


retaguarda especializada a equipes e profissio-
nais encarregados da atenção a problemas de
saúde. Trata-se de uma metodologia de trabalho

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400 Campos GWS, Domitti AC

complementar àquela prevista em sistemas hie- do o poder de gestão da equipe interdisciplinar.


rarquizados, a saber: mecanismos de referência e Procura fazer coincidir a unidade de gestão que
contra-referência, protocolos e centros de regu- compõe as organizações de saúde com a unidade
lação. O apoio matricial pretende oferecer tanto de produção interdisciplinar. No caso, a menor
retaguarda assistencial quanto suporte técnico- unidade organizacional passaria a ser a equipe
pedagógico às equipes de referência. Depende de referência. A equipe de referência é composta
da construção compartilhada de diretrizes clí- por um conjunto de profissionais considerados
nicas e sanitárias entre os componentes de uma essenciais para a condução de problemas de
equipe de referência e os especialistas que ofe- saúde dentro de certo campo de conhecimen-
recem apoio matricial. Essas diretrizes devem to. Dentro dessa lógica, a equipe de referência é
prever critérios para acionar o apoio e definir o composta por distintos especialistas e profissio-
espectro de responsabilidade tanto dos diferen- nais encarregados de intervir sobre um mesmo
tes integrantes da equipe de referência quanto objeto – problema de saúde –, buscando atingir
dos apoiadores matriciais. objetivos comuns e sendo responsáveis pela re-
A equipe ou profissional de referência são alização de um conjunto de tarefas, ainda que
aqueles que têm a responsabilidade pela con- operando com diversos modos de intervenção. O
dução de um caso individual, familiar ou comu- máximo de poder delegado à equipe interdisci-
nitário. Objetiva ampliar as possibilidades de plinar. Não todo o poder, porque há o poder dos
construção de vínculo entre profissionais e usuá- gestores e usuários, necessários para o cumpri-
rios 7. O termo responsabilidade de condução re- mento da função de coordenação, de integração
fere-se à tarefa de encarregar-se da atenção ao e de avaliação do trabalho das distintas equipes
longo do tempo, ou seja, de maneira longitudinal, de referência. Em organizações maiores, faz-se
à semelhança do preconizado para equipes de necessário a agregação de equipes de referên-
saúde da família na atenção básica 8. O conceito cia em departamentos estruturados dentro da
de equipe de referência pressupõe a adoção de mesma lógica: as unidades de produção seriam
lógica análoga para profissionais que trabalhem a agregação de um conjunto de equipes de refe-
em policlínicas ou hospitais, como é o caso de te- rência e de apoiadores matriciais que comparti-
rapeutas ocupacionais, psiquiatras e psicólogos lhem de um mesmo campo de intervenção.
que trabalham em centros de apoio psicossocial; A gestão do trabalho interdisciplinar em
de infectologistas, enfermeiros e assistentes so- equipes de referência depende de uma série de
ciais no programa de DST/AIDS; de ortopedistas, instrumentos operacionais. Para que ocorra cla-
cirurgiões e enfermeiros em departamentos de ra definição da responsabilidade sanitária e se
trauma etc. ampliem as possibilidades de construção de vín-
Apoio matricial e equipe de referência são, culo, é fundamental valer-se da metodologia de
ao mesmo tempo, arranjos organizacionais e adscrição de clientela à equipe de referência. No
uma metodologia para a gestão do trabalho em caso, cada equipe de referência terá um registro
saúde, objetivando ampliar as possibilidades de e um cadastro de casos sob sua responsabilidade.
realizar-se clínica ampliada e integração dialógi- O manejo desse cadastro permitirá avaliação de
ca entre distintas especialidades e profissões. A risco e vulnerabilidade, identificando-se aqueles
composição da equipe de referência e a criação casos que mereceriam a elaboração de um pro-
de especialidades em apoio matricial buscam jeto terapêutico singular, ou mesmo alteração da
criar possibilidades para operar-se com uma am- avaliação diagnóstica ou dos procedimentos de
pliação do trabalho clínico e do sanitário, já que cuidado.
se considera que nenhum especialista, de modo A equipe de referência manterá uma relação
isolado, poderá assegurar uma abordagem inte- longitudinal no tempo com esse conjunto de
gral. Essa metodologia pretende assegurar maior usuários, para isso é fundamental que a inser-
eficácia e eficiência ao trabalho em saúde, mas ção dos profissionais no serviço dê-se de modo
também investir na construção de autonomia horizontal, contratação como diaristas. A inser-
dos usuários. Sua utilização como instrumento ção vertical justificar-se-ia somente para aqueles
concreto e cotidiano pressupõe certo grau de re- profissionais em regime de plantão. Com essa
forma ou de transformação do modo como se metodologia, a equipe de referência permanece
organizam e funcionam serviços e sistemas de responsável pela condução dos casos inscritos
saúde. Isso indica a existência de dificuldades e em seu cadastro, mesmo quando algum tipo de
obstáculos para a reorganização do trabalho em apoio especializado foi acionado. Como a pro-
saúde a partir dessas diretrizes. posta de equipes de referência é extensiva aos
A equipe de referência é um rearranjo orga- hospitais, centros de referência, enfermarias,
nizacional que busca deslocar o poder das pro- unidades de urgência ou de terapia intensiva,
fissões e corporações de especialistas, reforçan- fica evidente que a adscrição de clientela em

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METODOLOGIA PARA GESTÃO DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR EM SAÚDE 401

cada um desses casos terá uma temporalidade rarquizados, o profissional de referência aciona o
distinta daquela das equipes de saúde da família, apoio matricial, de preferência por meios diretos
em geral, mais longa. Um paciente em tratamen- de comunicação personalizados, contato pes-
to de AIDS deveria permanecer adscrito a uma soal, eletrônico ou telefônico e não apenas por
equipe de referência de um centro especializado meio de encaminhamento impresso entregue ao
enquanto persistir seu problema; um outro em paciente, solicitando-se algum tipo de interven-
uma enfermaria permanecerá referido a deter- ção ao apoiador. Nessas circunstâncias, é reco-
minada equipe enquanto durar seu tratamento mendável proceder-se a uma avaliação de risco
no hospital. para se acordar uma agenda possível.
O funcionamento dialógico e integrado da O apoio matricial implica sempre a constru-
equipe de referência pressupõe tomá-la como ção de um projeto terapêutico integrado, no en-
um espaço coletivo, que discute casos clínicos, tanto essa articulação entre equipe de referência
sanitários ou de gestão, e participa da vida da e apoiadores pode desenvolver-se em três planos
organização. fundamentais:
O apoiador matricial é um especialista que a) atendimentos e intervenções conjuntas entre
tem um núcleo de conhecimento e um perfil o especialista matricial e alguns profissionais da
distinto daquele dos profissionais de referência, equipe de referência;
mas que pode agregar recursos de saber e mesmo b) em situações que exijam atenção específica
contribuir com intervenções que aumentem a ao núcleo de saber do apoiador, este pode pro-
capacidade de resolver problemas de saúde da gramar para si mesmo uma série de atendimen-
equipe primariamente responsável pelo caso. O tos ou de intervenções especializadas, manten-
apoio matricial procura construir e ativar espaço do contato com a equipe de referência, que não
para comunicação ativa e para o compartilha- se descomprometeria com o caso, ao contrário,
mento de conhecimento entre profissionais de procuraria redefinir um padrão de seguimento
referência e apoiadores. complementar e compatível ao cuidado ofereci-
O apoio matricial busca personalizar os siste- do pelo apoiador diretamente ao paciente, ou à
mas de referência e contra-referência, ao estimu- família ou à comunidade;
lar e facilitar o contato direto entre referência en- c) é possível ainda que o apoio restrinja-se à
carregada do caso e especialista de apoio. Nesse troca de conhecimento e de orientações entre
sentido, essa metodologia altera o papel das Cen- equipe e apoiador; diálogo sobre alterações na
trais de Regulação, reservando-lhe uma função avaliação do caso e mesmo reorientação de con-
na urgência, no zelo pelas normas e protocolos dutas antes adotadas, permanecendo, contudo, o
acordados e na divulgação do apoio disponível. caso sob cuidado da equipe de referência.
A decisão sobre o acesso de um caso a um apoio Essa dinâmica presta-se tanto para ordenar
especializado seria, em última instância, tomada a relação entre os níveis hierárquicos do sistema
de maneira interativa, entre profissional de refe- quanto para facilitar a comunicação e integração
rência e apoiador. O regulador à distância teria de equipes de saúde da família e especialistas,
um papel de acompanhar e avaliar a pertinência ou mesmo entre distintas especialidades e pro-
dessas decisões e de tomá-las somente em situa- fissões de saúde que trabalhem em um mesmo
ções de urgência, quando não haveria tempo pa- serviço, hospital ou centro de referência. Em
ra o estabelecimento de contato entre referência Campinas foram criados Núcleos de Saúde Co-
e apoio matricial. letiva na atenção básica, que deveriam fornecer
Há duas maneiras básicas para o estabeleci- apoio matricial em saúde pública (vigilância,
mento desse contato entre referências e apoia- promoção, projetos de intervenção comunitá-
dores. Primeiro, mediante a combinação de en- rios ou intersetoriais, avaliação e planejamento
contros periódicos e regulares – a cada semana, de programas etc.) para as equipes de saúde da
quinzena ou mais espaçados – entre equipe de re- família. Organizou-se também apoio em áreas
ferência e apoiador matricial. Nesses encontros, clínicas como, saúde mental, nutrição e reabili-
objetiva-se discutir casos ou problemas de saúde tação física 9.
selecionados pela equipe de referência e procu- O termo apoio matricial é composto por dois
ra-se elaborar projetos terapêuticos e acordar li- conceitos operadores. O segundo deles – matri-
nhas de intervenção para os vários profissionais cial – indica uma mudança radical de posição
envolvidos. Recomenda-se reservar algum tem- do especialista em relação ao profissional que
po para diálogo sobre temas clínicos, de saúde demanda seu apoio. Na teoria de sistemas de
coletiva ou de gestão do sistema. Segundo, além saúde, há o princípio da hierarquização 10, em
desses encontros, em casos imprevistos e urgen- que se prevê uma diferença de autoridade entre
tes, em que não seria recomendável aguardar a quem encaminha um caso e quem o recebe; o
reunião regular, como na lógica dos sistemas hie- nível primário dirige-se ao secundário e assim

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402 Campos GWS, Domitti AC

sucessivamente, havendo ainda uma transferên- quanto incorporando demandas trazidas pelo
cia de responsabilidade quando do encaminha- outro também em função de seu conhecimento,
mento. Tratar-se-ia de relações do tipo vertical, desejo, interesses e visão de mundo.
em que a comunicação entre os níveis ocorre por Procura-se criar espaços coletivos protegidos
meio de informes escritos – no caso, a planilha que permitam a interação dessas diferenças, bus-
de referência –, apenas para transferir uma res- cando-se construir uma análise e uma interpre-
ponsabilidade e receber algum informe ao final tação sintética, bem como se acordando linhas
do procedimento – o formulário de contra-refe- de intervenção e distribuição de tarefas entre os
rência. Esse estilo de relação entre trabalhadores vários sujeitos envolvidos no processo.
foi concebido pela administração clássica, indu-
zindo sistemas burocráticos e pouco dinâmicos.
Ao criticar esse modelo de gestão do trabalho, Obstáculo estrutural
alguns teóricos sugeriram pensar-se as organi-
zações como uma matriz 11, em que a inevitável Há obstáculos na própria maneira como as or-
departamentalização, que estipula uma linha de ganizações vêm se estruturando, que conspiram
comando e de gestão vertical, induzindo uma contra esse modo interdisciplinar e dialógico de
fragmentação do processo de trabalho, pode- operar-se. Esses obstáculos precisam ser conhe-
ria ter seus efeitos atenuados se fossem criadas cidos, analisados e, quando possível, removidos
ações horizontais que atingissem vários desses ou enfraquecidos para que seja possível traba-
departamentos. Pensavam em projetos, comis- lhar-se com base em equipe interdisciplinar e
sões ou supervisores que atuassem de maneira sistemas de co-gestão.
horizontal, em vários departamentos, mas sem O apoio matricial e a equipe de referência são
autoridade gerencial sobre as pessoas que cons- metodologias de trabalho, modo para se realizar
tituem esses departamentos. a gestão da atenção em saúde, mas são, ao mes-
O termo matriz carrega vários sentidos; por mo tempo, arranjos organizacionais que buscam
um lado, em sua origem latina, significa o lugar diminuir a fragmentação imposta ao processo
onde se geram e se criam coisas; por outro, foi de trabalho decorrente da especialização cres-
utilizado para indicar um conjunto de núme- cente em quase todas as áreas de conhecimento.
ros que guardam relação entre si quer os ana- Para que a interdisciplinaridade ocorra de fato
lisemos na vertical, na horizontal ou em linhas e contribua para aumentar a eficácia das inter-
transversais 12. Pois bem, o emprego desse no- venções, é importante não somente se facilitar a
me – matricial – indica essa possibilidade, a de comunicação entre distintos especialistas e pro-
sugerir que profissionais de referência e espe- fissionais 15, como também montar um sistema
cialistas mantenham uma relação horizontal, e que produza um compartilhamento sincrônico
não apenas vertical como recomenda a tradição e diacrônico de responsabilidades pelos casos e
dos sistemas de saúde. Trata-se de uma tentativa pela ação prática e sistemática conforme cada
de atenuar a rigidez dos sistemas de saúde quan- projeto terapêutico específico. O papel de cada
do planejados de maneira muito estrita segun- instância, de cada profissional, deve ficar bem
do as diretrizes clássicas de hierarquização e re- claro. Alguém deve se responsabilizar pelo se-
gionalização 13. guimento longitudinal e pela construção de uma
O primeiro termo – apoio – sugere uma ma- lógica que procure integrar a contribuição dos
neira para operar-se essa relação horizontal me- vários serviços, departamentos e profissionais.
diante a construção de várias linhas de transver- Em geral, esse papel cabe a integrantes da equipe
salidade, ou seja, sugere uma metodologia para de referência. Com certeza, não é essa a tradição
ordenar essa relação entre referência e especia- de funcionamento dos serviços de saúde.
lista não mais com base na autoridade, mas com Em Medicina e na saúde em geral houve uma
base em procedimentos dialógicos. O termo foi crescente divisão do trabalho que dificulta a inte-
retirado do método Paidéia 14, que cria a figura gração do processo de atenção e cuidado às pes-
do apoiador institucional e sugere que tanto na soas, já que as distintas especialidades médicas
gestão do trabalho em equipe quanto na clínica, e profissões de saúde definiram objetos de inter-
na saúde pública ou nos processos pedagógicos, venção e campos de conhecimento sem grandes
a relação entre sujeitos com saberes, valores e compromissos com a abordagem integral de pro-
papéis distintos pode ocorrer de maneira dialó- cessos saúde e doença concretos 16.
gica. No caso, o apoiador procura construir de Em decorrência dessa realidade vieram se
maneira compartilhada com os outros interlocu- estruturando organizações de saúde com eleva-
tores projetos de intervenção, valendo-se tanto do grau de departamentalização. Analisando a
de ofertas originárias de seu núcleo de conhe- estrutura de duas organizações prototípicas da
cimento, de sua experiência e visão de mundo, área da saúde – o hospital e o ambulatório – ve-

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METODOLOGIA PARA GESTÃO DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR EM SAÚDE 403

rificamos que elas, em geral, dividem-se em de- dicos especialistas, o psiquiatra chefe; há outro
partamentos ordenados segundo lógica das pro- chefe de enfermagem; outro comanda os psicó-
fissões e especialidades médicas 17. Estudiosos logos, outro os fisioterapeutas, outro a assistente
da administração têm identificado várias racio- social; a disciplina, regras para visitas, a limpeza
nalidades que vêm sendo empregadas para divi- e suprimento serão comandados por um outro
dir responsabilidades em organizações contem- chefe da área administrativa; e caso haja ainda
porâneas. Há organizações com departamentos casos clínicos complicados, o médico internista
ordenados segundo produtos – tipos de bens ou terá ainda um décimo diretor diferente.
serviços produzidos –, outras de acordo com eta- Esse tipo de estrutura também contribui para
pas do processo de trabalho ou ainda com a fun- diluir a responsabilidade sanitária sob os casos
ção de cada área da empresa, outras se dividem acompanhados. Há uma dupla fragmentação,
segundo a clientela a ser atendida, há também do processo de trabalho e da unidade de gestão,
aquelas que se organizam segundo o território que dificulta a identificação clara do responsável
onde o trabalho se realiza 18. clínico, bem como torna quase impossível a in-
Pois bem, em hospitais, ambulatórios e ou- tegração comunicativa das abordagens diagnós-
tros serviços de saúde tem predominado uma ticas e terapêuticas. Esse fenômeno está sendo
lógica que leva ao extremo a fragmentação do denominado de obstáculo estrutural à prática de
cuidado. Verifica-se na área da saúde que a cons- uma clínica ampliada, bem como do trabalho in-
trução de unidades de gestão obedece antes de terdisciplinar. Valeria proceder-se maiores inves-
tudo à lógica corporativa e das profissões. Esse tigações para esclarecer o peso que esse tipo de
fato é marcante em áreas voltadas para a assis- obstáculo teria na tendência a custos crescentes,
tência ao usuário, que se organizam em depar- perda de eficácia e aumento da iatrogenia verifi-
tamentos, diretorias ou coordenações recortadas cada em serviços de saúde 21.
segundo profissão ou especialidade médica 19. Não é lógico, parece pouco racional, mas as-
Em áreas-meio, em geral, observa-se uma agre- sim vem funcionando há décadas na maioria dos
gação maior, identificando-se unidades de ges- serviços de saúde. Vem funcionando, porque a
tão recortadas segundo funções: departamento administração sanitária tem se utilizado de vários
de administração e finanças, lavanderia, nutri- instrumentos para atenuar os efeitos negativos
ção e dietética, laboratório etc. 20. No entanto, desses obstáculos estruturais. Entre os recursos
nos departamentos voltados diretamente para gerenciais que se contrapõem a essa tendência,
a atenção ao usuário, encontra-se departamen- ressalta-se o papel integrador do corpo de enfer-
to de enfermagem, de ortopedia, de psiquiatria, magem, que ainda que organizado de maneira
infectologia etc. Nesses serviços, há uma com- vertical e paralela às demais profissões – daí ad-
posição multiprofissional de pessoal, com baixo vém o conceito utilizado de “corpo” –, espalha-se
grau de coordenação, comunicação e integração por todo o hospital, compensando, com seu zelo,
entre as distintas especialidade e profissões. Até a extrema fragmentação imposta pela circulação
mesmo o desenho arquitetônico da maioria dos vertiginosa de especialistas entre usuários 22.
ambulatórios reflete essa lógica de ferro: uma Outros recursos freqüentemente adotados para
sucessão de pequenas salas para consultório atenuar esse tipo de fragmentação são normas,
ou procedimentos que, de tão desconectados, sistemas de acreditação e protocolos que pro-
bem poderiam funcionar em espaços geográfi- curam padronizar condutas e definir fluxos por
cos distintos. onde deveriam circular os pacientes 23.
Essa estrutura cria dificuldades gerenciais Essas tendências à descontinuidade e a frag-
extremas e constitui-se em um obstáculo estru- mentação dos projetos terapêuticos acentuam-
tural à adoção do método de trabalho de apoio se quando a intervenção depende de mais de um
matricial. Um mesmo espaço de trabalho, uma serviço integrante do sistema de saúde. O recurso
enfermaria hospitalar, por exemplo, com res- gerencial utilizado para conectar esses pedaços
ponsabilidade sanitária, objetivos, métodos de são os sistemas de referência e contra-referência
trabalho e funções, todos muito bem definidos; e os Centros de Regulação com seus protocolos e
quando a organização obedece a essa lógica de regulamentações. Alguns sistemas criam instân-
departamentos corporativos, não se constitui em cias de decisão – gestão de caso – distanciadas do
uma única unidade de gestão. Ao contrário, essa atendimento direto ao paciente: são os famosos
mesma enfermaria tende a ser comandada por, reguladores a distância ou gerentes de casos 24.
no mínimo, meia dúzia de gerentes que não estão Que potência teria a reestruturação das orga-
obrigados a se compor em colegiados ou a coor- nizações de saúde segundo equipes interdiscipli-
denar e integrar seus planos de trabalho. Em uma nares apoiadas por especialistas matriciais? Há
mesma enfermaria destinada à Psiquiatria, por evidências teóricas de que contribuiria bastante
exemplo, pode haver um comandante dos mé- para melhor definir os padrões de responsabili-

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404 Campos GWS, Domitti AC

dade sanitária, permitindo com isso o estabeleci- Obstáculo político e de comunicação


mento de programas com coeficiente de vínculo
entre profissionais e usuários mais humanos e As organizações de saúde têm a tradição de fun-
eficazes, além de criar espaço onde uma integra- cionar com concentração de poder: concentrado
ção interdisciplinar seja possível, ainda que não nos diretores, nos médicos e nos especialistas.
automática ou de simples execução. O SUS introduziu a diretriz do controle social,
no entanto a idéia de gestão compartilhada foca
instâncias do sistema de saúde – conferências
Obstáculos decorrentes do excesso de e conselhos em municípios, estados e união
demanda e da carência de recursos – e não necessariamente internas aos serviços
ou programas 28. As criações de espaços coleti-
A implantação do SUS é parcial. Há evidências vos, em que equipes de saúde compartilhem a
indicando que o volume de serviços oferecidos elaboração de planos gerenciais e de projetos
à população brasileira ainda é insuficiente 25. terapêuticos, depende ainda de uma ampla re-
De qualquer modo, reconhece-se que esses re- formulação da mentalidade e da legislação do
cursos poderiam ter um uso mais adequado e sistema de saúde. As políticas de humanização
racional, caso ocorressem reordenações no mo- têm igualmente tentado ampliar o poder dos
delo de gestão e de atenção 26. Ressalte-se, nesse usuários no cotidiano dos serviços de saúde.
aspecto, o papel que a construção de uma rede Ressalta-se, nesse momento, que são tendências
básica com ampla cobertura populacional e ca- ainda não consolidadas e que o apoio matricial e
pacidade de resolver problemas tem tido na via- mesmo o funcionamento de equipes de referên-
bilidade de sistemas nacionais de saúde 27. Entre cia dependem de um importante grau de com-
outros arranjos, também o apoio matricial poder partilhamento do poder entre distintos profissio-
ser relevante para racionalizar o acesso e o uso nais componentes de uma equipe e desses com
de recursos especializados, alterando-se ainda outros especialistas.
a ordenação predominantemente multidisci- A circulação de informações, os contatos in-
plinar do sistema para uma outra mais consen- terprofissionais e a preocupação em captar as
tânea com a interdisciplinaridade. Esse arranjo várias dimensões do sujeito com problema de
permite um uso racional de recursos, quando saúde têm dimensões bastante restritas no mo-
cria oportunidade para que um único especia- delo tradicional de estruturação do poder em
lista integre organicamente seu trabalho com o organizações de saúde. Não é fácil acordar-se
de várias equipes de referência. Por exemplo: um sobre o que está ou não em discussão, ou seja,
único clínico geral ou um fisioterapeuta poderia até onde vai o poder de influência, ou mesmo de
assegurar apoio matricial a várias (quatro, cinco, deliberação conjunta, entre os distintos especia-
seis?) equipes especializadas em trauma e com- listas. A equipe de referência e o apoio matricial
posta por cirurgiões, ortopedistas e enfermeiros, diminuem o peso da influência “paterna” na so-
contribuindo tanto para a avaliação conjunta do lução de conflitos, ou seja, as autoridades exter-
estado clínico dos casos quanto para o contro- nas – chefes, leis e regras – são reinterpretadas
le de infecções pós-cirúrgicas ou de outras in- na horizontalidade dos irmãos reunidos em uma
tercorrências clínicas. Com esse tipo de relação, fratria 29. Por outro lado, há poucos serviços or-
no decorrer do tempo, a equipe de trauma iria ganizados em sistemas de co-gestão, com equi-
incorporando em seu campo de conhecimento pes e colegiados com poder de deliberação e com
aspectos antes delegados aos clínicos ou fisio- sistemas interdepartamentais e interequipes de
terapeutas, ampliando com isso sua capacidade construção de pactos de gestão.
de resolver problemas de saúde e indicando com Resumindo: o método do apoio matricial de-
mais sensibilidade e precisão os casos que neces- pende da existência de espaços coletivos, ou seja,
sitariam de apoio especializado. do estabelecimento de algum grau de co-gestão
Como o apoio é dinâmico e depende de re- ou de democracia institucional.
lações interpessoais, esses especialistas como
que passariam a fazer parte dessa meia dezena
de equipes de trauma, possibilitando, em tese, Obstáculo subjetivo e cultural
uma ampliação da visão sobre o processo saúde,
doença, intervenção, sem que haja uma diluição O trabalho interdisciplinar depende também de
da responsabilidade sobre os casos. Também certa predisposição subjetiva para se lidar com
nesse aspecto esse obstáculo funciona como um a incerteza, para receber e fazer críticas e para
empecilho para o apoio matricial, no entanto o tomada de decisão de modo compartilhado. É
apoio matricial é, ao mesmo tempo, uma manei- mister reconhecer que não é esse o padrão de
ra de reduzir a potência desse obstáculo. subjetividade dominante em ambientes de con-

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METODOLOGIA PARA GESTÃO DO TRABALHO INTERDISCIPLINAR EM SAÚDE 405

corrência exacerbada, modo predominante de pe, toda essa circulação de informação, obriga
funcionamento das instituições contemporâne- a todas as profissões de saúde a repensarem
as 30. Nesses casos, as pessoas tendem a cristali- o tema das relações entre eles e deles com os
zar-se em identidades reativas, que as induzem usuários. Que aspectos de uma história colhida
a desconfiar do outro e a defender-se de modo em um atendimento individual, um médico ou
paranóico da concorrência alheia. Por outro uma psicóloga ou um enfermeiro podem regis-
lado, é comum o profissional construir identi- trar no prontuário ou comunicar aos demais
dade e segurança, apegando-se à identidade de membros da equipe ou do apoio? Observação
seu núcleo de especialidade, o que dificulta a que um agente de saúde recolhe durante uma
abertura para a interação inevitável em espaços visita familiar, como e em que grau divulgá-la
interdisciplinares. a outros colegas de equipe? Cada profissional
Nesses ambientes, a descoberta de problemas teria um registro particular e outro comparti-
ou de faltas costuma ser identificada à falha ou lhado com a equipe? Como lidar com o coletivo
erro e ser utilizada para luta política ou em defesa e com a circulação de informação, sem com-
de interesses particulares 31. Não há cultura, en- prometer o direito à privacidade de cada caso
tre gestores e entre equipes, sobre métodos para ou de cada família?
programar trabalho dialógico e interativo, crian-
do instâncias de mediação, espaços protegidos
e processos de contrato em que se estabeleçam Obstáculo epistemológico
metas e critérios para avaliação do trabalho.
Os profissionais habituaram-se a valorizar A maioria das especialidades e profissões de
a autonomia profissional, julgando-a conforme saúde trabalha com um referencial sobre o pro-
o direito que teriam de deliberar sobre casos cesso saúde e doença restrito. Predominam os
de modo isolado e definitivo. O apoio matricial filiados à racionalidade biomédica, o que os
promove encontro entre distintas perspectivas, leva a pensar e a agir segundo essa perspectiva
obrigando os profissionais a comporem projetos restrita 32. Outros tendentes a valorizar o social
terapêuticos com outras racionalidades e visões na explicação desse fenômeno também geram
de mundo. Note-se que, em casos de impasse, soluções restritas a essa linha de interven-
e se o impasse se referir ao terapêutico, não há ção 33. O mesmo se pode observar entre aque-
instâncias superiores para resolver o conflito. O les adeptos de explicação subjetiva (desejo ou
gerente em saúde, em geral, tem pequena capa- cognição) que pensam linhas de trabalho res-
cidade de interferir sobre conduta específica do tritas a esses planos. O enfoque de clínica am-
especialista, cabendo aos envolvidos no conflito pliada, ou clínica do sujeito, sugere maneiras
encontrar uma saída que não prejudique o usuá- para integrar essas perspectivas em um méto-
rio nem paralise o projeto terapêutico. do de trabalho que reconheça a complexidade
O conceito de projeto terapêutico tem se e variabilidade dos fatores e dos recursos en-
mostrado útil para mediar esse tipo de relação. volvidos em cada caso específico, seja ele um
Trata-se de uma discussão prospectiva de caso, problema individual ou coletivo. Pois bem, no-
em que, depois de uma avaliação de risco e de vamente o apoio matricial é um dispositivo im-
vulnerabilidade compartilhada, são acordados portante para ampliação da clínica; ao mesmo
procedimentos a cargo de diversos membros da tempo, para se trabalhar em uma perspectiva
equipe. Ainda que seja possível uma descrição interdisciplinar, pressupõe-se algum grau de
singela desse tipo de trabalho em grupo, não é adesão a um paradigma que pense o proces-
simples, no cotidiano, estabelecer-se esse tipo so saúde, doença e intervenção de modo mais
de diálogo, com decisões e tarefas definidas de complexo e dinâmico.
modo compartilhado.

Obstáculo ético

Se o método de trabalho com base em equipe


de referência e apoio matricial busca definir de
maneira precisa a responsabilidade sanitária,
ao mesmo tempo, complica-se o tema da pri-
vacidade e do segredo sobre a história do pa-
ciente, da família ou de grupos comunitários.
A utilização de prontuário único pela equipe
interdisciplinar, a discussão de casos em equi-

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406 Campos GWS, Domitti AC

Resumo Colaboradores

Os autores apresentam uma reconstrução teórico-con- Todos os autores participaram desde a revisão biblio-
ceitual da metodologia de gestão do trabalho em saú- gráfica e análise documental até a redação final do
de baseada em equipes de referência e apoio matricial. artigo.
Equipe de referência é um rearranjo organizacional
que procura coincidir o poder de gestão com a equipe
interdisciplinar. O apoio matricial sugere modificações
entre as relações dos níveis hierárquicos em sistemas
de saúde; nesse caso, o especialista integra-se organi-
camente a várias equipes que necessitam do seu tra-
balho especializado. Além da retaguarda assistencial,
objetiva-se produzir um espaço em que ocorra inter-
câmbio sistemático de conhecimentos entre as várias
especialidades e profissões. São apontados obstáculos
estruturais, éticos, políticos, culturais, epistemológicos
e subjetivos ao desenvolvimento desse tipo de trabalho
integrado em saúde.

Gestão em Saúde; Metodologia; Epistemologia

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Recebido em 31/Out/2005
Versão final reapresentada em 28/Abr/2006
Aprovado em 20/Jun/2006

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 23(2):399-407, fev, 2007


- 112 - Artigo Original
http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072015002430013

APOIO MATRICIAL, PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR E PRODUÇÃO


DO CUIDADO EM SAÚDE MENTAL1

Maria Salete Bessa Jorge2, Alexandre Melo Diniz3, Leilson Lira de Lima4, Jardeliny Corrêa da Penha5

1
Pesquisa relacionada à dissertação - Projeto terapêutico singular de usuários da atenção básica: resolubilidade,
corresponsabilização, autonomia e cuidados, apresentada ao Programa de Mestrado Acadêmico em Saúde Pública da
Universidade Estadual do Ceará (UECE), em 2012.
2
Doutora em Enfermagem. Professora Titular dos Cursos de Graduação em Enfermagem e Medicina da UECE. Fortaleza,
Ceará, Brasil. E-mail: maria.salete.jorge@gmail.com
3
Mestrando do Programa de Mestrado Acadêmico em Saúde Pública da UECE. Fortaleza,Ceará, Brasil. E-mail: amd_psi@
yahoo.com.br
4
Doutorando do Programa de Pós-Graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde da UECE. Professor Substituto do
Curso de Graduação em Medicina da UECE. Fortaleza, Ceará, Brasil. E-mail: leilson.lira@yahoo.com.br
5
Mestranda do Programa de Pós-graduação Cuidados Clínicos em Enfermagem e Saúde da UECE. Fortaleza, Ceará, Brasil.
E-mail: deinhapenha@hotmail.com

RESUMO: O estudo objetivou compreender como se conformam o apoio matricial, projeto terapêutico singular, e sua interface
com a produção do cuidado em saúde mental. Trata-se de uma investigação qualitativa, realizada em Fortaleza-CE, no Centro de
Atenção Psicossocial e no Centro de Saúde da Família. Participaram 17 sujeitos, entre profissionais e usuários. Utilizou-se a entrevista
semiestruturada e a observação sistemática. A análise envolveu compreensão de narrativas, embasada pela teoria de Ricoeur. Os
resultados evidenciaram o acolhimento, o vínculo e a corresponsabilização no cotidiano assistencial, promovendo cuidado. Desvelaram-
se, contudo, excessivos encaminhamentos, atendimento médico-centrado, dependência do Centro de Saúde ao suporte da atenção
especializada, deficiência de espaço físico, desarticulação da rede, terceirização e despreparo dos profissionais do Centro de Saúde,
como dificuldades com a produção do cuidado. O apoio matricial e o projeto terapêutico singular, portanto, acontecem no cotidiano
dos serviços, porém com dificuldades que incidem na organização e produção do cuidado.
DESCRITORES: Saúde mental. Atenção primária à saúde. Serviços de saúde mental.

MATRIX SUPPORT, INDIVIDUAL THERAPEUTIC PROJECT AND


PRODUTION IN MENTAL HEALTH CARE

ABSTRACT: The study aimed to understand how to conform the Support Matrix and Individual Therapeutic Project and its relation with
the production of mental health care. This is qualitative research conducted in Fortaleza-CE, Center for Psychosocial Care and Center for
Family Health. 17 people participated, between professionals and patients. It was used as for dates collecting semi-structured and systematic
observation. The findings were analyzed by narrative analysis, grounded theory by Ricoeur. The results reveal themselves excessive
referrals, medical-centered, dependence Health Center to support the specialized care, deficiency of physical space, network disconnection,
outsourcing and professional unpreparedness of the Health Center as the production difficulties of care. The Support Matrix and Individual
Therapeutic Project therefore happen in everyday services, but with difficulties that affect the organization and production of care.
DESCRIPTORS: Health mental. Primary health care. Mental health services.

APOYO MATRICIAL, PLAN TERAPÉUTICO SINGULAR Y PRODUCCIÓN


DEL CUIDADO EN SALUD MENTAL

RESUMEN: La investigación objetivó comprender el Apoyo Matricial y Plan Terapéutico Singular y su relación con la producción del
cuidado en salud mental. Se trata de investigación cualitativa, en la ciudad de Fortaleza-CE, desarrollada en un Centro de Atención
Psicosocial y en un Centro de Salud de la Familia. 17 sujetos participaron, entre profesionales y usuarios. Se utilizaron como técnicas
de recolección de informaciones la entrevista semiestructurada y la observación sistemática. Los datos se analizaron por análisis de
narrativas, basada en la teoría de Ricoeur. Los resultados revelaron remisiones excesivas, atención centrada en el médico, dependencia
del Centro de Salud al apoyo de la atención especializada, desconexión de la red, vínculos de empleo frágil y falta de preparo de los
profesionales del CSF como dificultades a la producción del cuidado. El Apoyo Matricial y el Plan Terapéutico Singular ocurren en
el cotidiano de los servicios con dificultades que afectan a la organización y producción del cuidado.
DESCRIPTORES: Salud mental. Atención primaria de salud. Servicios de salud mental.

Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jan-Mar; 24(1): 112-20.


Apoio matricial, projeto terapêutico singular e produção... - 113 -

INTRODUÇÃO recolhe a contribuição de várias especialidades e de


A Estratégia Saúde da Família (ESF) repre- profissões distintas.5 De fato, o que se busca com o
senta avanços para a consolidação da Reforma AM e o projeto terapêutico é a assistência integral
Psiquiátrica Brasileira e, consequentemente, para do usuário e sua demanda, desde sua entrada na
a reorientação de serviços e práticas à assistência APS até seu percurso em toda a rede assistencial.
integral e resolutiva em saúde mental. Dentre os Desse modo, o PTS é elaborado, levando
aspectos que caracterizam esses avanços, citam- em consideração as necessidades de saúde de
se: ações de cuidado no território, facilidade no cada usuário, seu modo de compreender a vida,
estabelecimento de vínculo entre equipe e usuário, suas subjetividades e singularidades. Por meio
acolhimento, acessibilidade, tratamento continua- de interação horizontal dos agentes envolvidos
do e desenvolvimento de ações coletivas, como no cuidado (trabalhadores e usuários), devem ser
iniciativas culturais, educativas e de participação alicerçados nas tecnologias das relações, tais como
e protagonismo político.1 acolhimento, escuta e vínculo, propondo novos
Sendo assim, a discussão sobre os avanços modos de cuidado em saúde mental nos diferentes
das políticas públicas de assistência em saúde níveis de atenção.6
mental centra-se na articulação dos serviços Vale salientar que em vários países são
substitutivos ao hospital psiquiátrico, tais como constantes as preocupações e várias são as estra-
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e as tégias para viabilizar cuidados em saúde mental
Residências Terapêuticas (RT), com a rede as- na atenção primária. Estudos internacionais 7-8
sistencial da Atenção Primária à Saúde (APS), demonstram que as políticas de integração entre
coordenada pela ESF. 2 Essa articulação deve APS e saúde mental, em consonância com o trei-
constituir-se, portanto, de espaços onde possam namento das equipes de saúde da APS, aumento
ser expressas formas de pensar e agir em saúde na disponibilidade de medicamentos psicotrópicos
mental, condizentes com a valorização do sujeito nos centros de atenção primária e atividades de
em adoecimento psíquico, seu contexto de vida e atenção à saúde mental na comunidade, propor-
suas demandas e necessidades. cionam redução das internações em hospitais
Por conseguinte, o Apoio Matricial (AM) psiquiátricos, induzem a reinserção na sociedade
constitui-se tentativa de consolidar o cuidado em e interpelam processos de estigmatização.8
saúde mental na APS e potencializar o protagonis- No Brasil, a literatura demarca importantes
mo de profissionais da ESF e de usuários. Ele busca avanços no cuidado em saúde mental na APS,
assegurar retaguarda especializada, por meio das por meio do AM. Entretanto, ainda permanecem
equipes do CAPS, à assistência direta ao usuário, muitos desafios. Entre os avanços, pode-se men-
bem como fornecer suporte técnico-pedagógico cionar: estabelecimento de vínculo entre usuários
aos profissionais da ESF, instrumentalizando-os e equipes e entre as equipes do CAPS e da ESF,9
para o cuidado adequado à referida demanda. desconstituição da lógica dos encaminhamentos
Ademais, o AM procura aumentar o grau de e, por meio da elaboração coletiva, favorecimento
resolubilidade das ações de saúde mental, pro- da corresponsabilização e avaliação contínua no
pondo reformulação no modo de organização dos tratamento do usuário.10 Como desafios, a pouca
serviços e das relações horizontais entre a equipe integração entre as redes de cuidados em saúde
do CAPS (especialistas) e a equipe da ESF, numa mental e da APS11 e a pouca habilidade de comu-
perspectiva interdisciplinar.3 nicação e escuta para com as necessidades em
Esse arranjo organizacional prevê que cada saúde mental6,12 são realidades que ainda tolhem
profissional, ou a equipe interdisciplinar, seja a efetividade da estratégia de apoio matricial.
referência de determinado número de usuários, Em consonância com esses achados, exis-
responsabilizando-se pela elaboração, imple- tem, ainda, dificuldades em desenvolver o PTS
mentação e avaliação de um Projeto Terapêutico como o suporte no cuidado interdisciplinar, com
Singular (PTS), elaborado conjuntamente entre a valorização da dimensão subjetiva e incentivo
equipes, usuários e familiares. Portanto, almeja a à participação do usuário.4,6 Ademais, a relação
criação de um plano compartilhado, o qual assu- interpessoal da equipe/profissional de referência
me o acompanhamento do usuário, considerando na articulação do tratamento e identificação de
aspectos sociais, familiares e psíquicos.3-4 necessidades dos pacientes é mencionada como
O PTS é uma discussão de caso em equipe, um ação centrada no profissional de referência e não
grupo que incorpora a noção interdisciplinar e que num processo relacional.4
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jan-Mar; 24(1): 112-20.
- 114 - MSB Jorge, Diniz AM, Lima LL, Penha JC

Não obstante, considera-se que a consolida- são organizadas pelas equipes da ESF. Nesse CSFs
ção do modelo de atenção psicossocial perpassa são realizadas atividades de AM desde a sua im-
o reconhecimento da dimensão subjetiva dos plantação no município, em 2007. Além disso, a
usuários/familiares na elaboração do projeto tera- gestão municipal incorporou processos de educa-
pêutico e pela valorização dos cuidados primários ção permanente com o intuito de instrumentalizar
em saúde mental, que podem ser viabilizados pela as equipes para a prática do AM, proporcionando,
prática do apoio matricial e construção do PTS. principalmente aos profissionais da ESF, técnico-
Considerando que as contribuições desses ar- científico para acompanhar usuários com quadro
ranjos incidem na condução de uma terapêutica em psicopatológico estabilizado.15
saúde mental não restrita a fármacos, e sim aliada Participaram 17 sujeitos, distribuídos em
a outros recursos terapêuticos como escuta, acolhi- quatro grupos: grupo I – dois profissionais do
mento, vínculo e corresponsabilização, questiona-se: CAPS geral (médico e psicólogo); grupo II – qua-
como se conformam o AM e o PTS no cotidiano da tro profissionais do CSF integrantes da ESF (dois
ESF e do CAPS? De que maneira, pois, tencionam a enfermeiros, um médico, um ACS e um auxiliar
produção do cuidado em saúde mental? de enfermagem) e grupo III – três profissionais do
Ante os aspectos apontados e a restrita pro- Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (um
dução científica2,4,9 sobre essas estratégias e sua psicólogo, um assistente social e um terapeuta
relação com o cuidado na APS, este artigo tem o ocupacional) que prestavam cuidados diretos
objetivo de compreender como se conformam o aos usuários, participavam do AM e atuavam há
AM e o PTS e sua interface com a produção do mais de um ano; grupo IV – oito usuários com
cuidado em saúde mental. Seu objeto de análise demandas em saúde mental participantes do ma-
recai sobre a produção do cuidado, a qual ocorre triciamento há mais de um ano.
pelas tecnologias leves (acolhimento, vínculo, Vale salientar que a abordagem teórico-meto-
corresponsabilização e autonomia), relações esta- dológica deste estudo permite estabelecimento dos
belecidas entre as equipes, bem como entre estas diálogos entre as narrativas, a interpretação, a teoria
e os usuários.13 e as experiências individuais dos participantes.
Sendo assim, a busca do entendimento das relações
entre as partes do texto e o todo, num processo
MÉTODO que perpassa do geral ao particular e vice-versa,16
Esta investigação foi de natureza qualitativa, dispensa a saturação teórica como balizadora final
com eixo na Hermenêutica Fenomenológica.14 Para do número de participantes da pesquisa.
tanto, centrou-se na compreensão das narrativas, A coleta dos achados ocorreu dos meses de
procurando entender a multiplicidade de signifi- junho a setembro de 2012, após o envio do projeto
cados presentes nos discursos dos entrevistados. ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade
A pesquisa foi realizada no município de Estadual do Ceará, que avaliou a pertinência deste,
Fortaleza-CE. Este se encontra dividido política os objetivos da pesquisa e os riscos e/ou benefícios
e administrativamente em seis Secretarias Execu- a que estariam submetidos os participantes da
tivas Regionais (SERs), todas responsáveis pela investigação, de acordo com a Resolução 196/96,
gestão dos serviços de saúde na sua respectiva área do Conselho Nacional de Saúde,17 e lhe forneceu
de abrangência. As redes de atenção à saúde do parecer favorável em 30 de abril de 2012, com
cenário investigado têm como eixo estruturante/ número 17963.
organizativo a Atenção Primária, com a Estratégia Com o intuito de preservar o anonimato dos
Saúde da Família (ESF), e no que concerne às ações participantes, as narrativas que emergiram das
e aos serviços de saúde mental, o município conta entrevistas foram identificadas da seguinte forma:
com apenas seis Centros de Atenção Psicossocial profissionais de saúde do CAPS (médico CAPS e
Geral (CAPSs Geral) do tipo II, um em cada secre- psicólogo CAPS), profissionais da ESF (enfermeiro
taria executiva; seis CAPSs álcool e outras drogas ESF, médico ESF, ACS e auxiliar de enfermagem
(CAPSs ad), um em cada regional e dois CAPSs ESF), profissionais do NASF (psicólogo NASF,
infantil (CAPSs i), instalados nas SERs III e IV.15 assistente social NASF e terapeuta ocupacional
Desse modo, o locus da pesquisa foi um NASF) e usuários (usuário – numerados de 01 a 08).
Centro de Atenção Psicossocial Geral, voltado Foram utilizadas como técnicas de coleta
para adultos com transtornos mentais severos, e das informações a entrevista semiestruturada e a
um Centro de Saúde da Família (CSF) cujas ações observação sistemática, realizando-se visão direta
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Apoio matricial, projeto terapêutico singular e produção... - 115 -

das peculiaridades do apoio matricial em saúde recebido. Os usuários voltam-se ao processo rela-
mental na ESF, a elaboração do projeto terapêu- cional estabelecido entre eles e os trabalhadores no
tico singular (PTS) e a produção do cuidado em projeto terapêutico, demonstrando a importância
saúde mental (acolhimento, vínculo, corresponsa- que as relações intersubjetivas possuem no traba-
bilização e autonomia). A entrevista privilegiou lho em saúde.
aspectos relacionados ao tratamento, atividades Considerando a complexidade que envolve
desenvolvidas pelos serviços, condução do AM e os problemas de saúde mental, seus determinan-
formulação do PTS. tes e sua influência nos aspectos biopsíquicos e
Para a análise dos achados, optou-se pela sociais, esses dispositivos instrumentalizam os
análise de narrativas baseada na teoria de Ricou- trabalhadores de saúde para o acompanhamento
er,19 a qual prevê que o processo analítico diz res- terapêutico das pessoas em adoecimento psíqui-
peito ao distanciamento, apropriação, explicação co, pois viabilizam o cuidado integral, permitem
e compreensão das experiências vividas em cinco a apropriação dos trabalhadores às condições de
etapas: transcrição das entrevistas em texto; distan- vida desses usuários, garantem acesso e cuidados
ciamento (distanciação), interpretação superficial; no território e promovem a adesão ao tratamento,
análise estrutural e compreensão abrangente do farmacológico e não farmacológico.
texto, denominada de interpretação profunda.18 Observa-se, portanto, que essa organização
Com base no material constituído com as das ações em saúde mental amplia o horizonte
entrevistas dos quatro grupos de participantes, clínico das equipes. Essa clínica ampliada baseia-
procedeu-se a aproximação com o texto por meio se nas tecnologias leves e ancora-se na articulação
de leituras entre as várias narrativas a fim de esta- das equipes (ESF e CAPS), além de reconhecer a
belecer unidades de sentidos e significados. Esse complexidade do sujeito em processo de adoeci-
processo culminou na elaboração dos seguintes mento e compreender a necessidade de interven-
temas: “Construção do projeto terapêutico sin- ções clínicas pactuadas entre profissionais durante
gular e apoio matricial - produção do cuidado a elaboração do projeto terapêutico do usuário.19
e integralidade das ações em saúde mental” e Essa confluência entre o uso de tecnologias
“Apoio matricial, projeto terapêutico singular e leves e a ampliação da clínica remete ao cuidado
os obstáculos à produção do cuidado em saúde integral em saúde mental na ESF. Com isso, os
mental”, os quais foram interpretados e analisados trabalhadores da ESF implicam-se na produção do
em articulação com o referencial teórico. cuidado integral por meio da clínica ampliada, pois
consideram o sujeito em seu contexto e singularida-
RESULTADOS E DISCUSSÃO de, contrapõem-se ao modelo biomédico, centrado
na doença e no cuidado fragmentado.19 Por meio das
Tema 1 – Construção do projeto terapêutico tecnologias leves, os trabalhadores aproximam-se da
integralidade do cuidado, que se revela e se mani-
singular e apoio matricial: produção do cuida-
festa, entre outros dispositivos, pelo acolhimento e
do e integralidade das ações em saúde mental vínculo, corresponsabilização e autonomia.20
De modo geral, as narrativas revelam que o Essas evidências são respaldadas pela lite-
cuidado em saúde mental é demarcado pelo uso ratura. Alguns autores6,20 salientam que as tecno-
de tecnologias leves e pelo esforço, por parte das logias leves são dispositivos fundamentais para a
equipes, de articular ações de saúde mental entre produção do cuidado integral em saúde mental,
os serviços de atenção primária e especializada, pois facilitam a permanência do usuário no ser-
além de buscar apoio em recursos do território do viço e, consequentemente, no tratamento. Clínica
CSF, tais como igrejas e escolas. ampliada e uso de tecnologias leves permitem
A construção do PTS, assinada nesse modus pensar o cuidado em saúde na integralidade do
operandi, centra-se em acolhimento, escuta e vín- sujeito, do ambiente e das relações, pois o cuidado
culo que, articulados com o AM, consideram o é construto de aspectos sociais, econômicos, fami-
cuidado na atenção primária como necessário para liares, biológicos, psicológicos e culturais.6 Assim,
a produção do cuidado em saúde mental. implicar-se com a produção do cuidado integral é
As tecnologias leves, tais como acolhimento e avançar nas práticas transformadoras do campo
vínculo, aparecem como símbolos do cuidado em da saúde mental.
saúde mental e se articulam com o sentimento de O encontro entre trabalhadores e usuários,
satisfação do usuário em relação ao atendimento transversalizados pelas ferramentas relacionais,
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direciona o cuidado em saúde para uma resolu- implantação do AM, também propicia satisfação
bilidade emanada das evocações reais da subjeti- entre esses sujeitos. Pessoas com transtornos men-
vidade20 e proporciona satisfação. Desse modo, o tais graves, outrora excluídas dos cuidados em
cuidado produzido, no diálogo, próximo de cada saúde mental, passaram a receber atendimento
singularidade, possibilita entender o real, o vivido pela equipe do CAPS, articulada com a equipe
no espaço micropolítico de cada encontro, e po- de referência. Narrativas de trabalhadores e
tencializa a utilização das tecnologias leves, bem usuários, que ilustram essa evidência, dizem
como o manejo da clínica ampliada na ESF para respeito a um usuário residente no território de
estabelecer ações de saúde mental mais próximas abrangência da ESF.
do cotidiano e de cada subjetividade. Sem acesso aos cuidados e acompanhamento
Ainda no concernente à satisfação, alguns necessários, esse usuário, quase sempre em crise,
usuários demonstraram em suas narrativas o con- vivenciou períodos de internação psiquiátrica até
tentamento da nova possibilidade de ser cuidado: ser identificado no território por um ACS: eu vivia
receber atendimento no posto (Usuário 06). Usuários sendo internado, aí o agente me achou e me levou pro
que abandonaram o tratamento, o qual era realiza- posto. Fui encaminhado pro CAPS pelo médico daqui
do no CAPS, voltam-se, de maneira queixosa, ao [CSF]. Eu estava há cinco meses sem dormir, tomando
acompanhamento que recebiam naquele serviço. só os remédios, estava doido. Agora não, eu estou bom.
Práticas medicamentalizantes,21 centradas em Sei que eu peguei uma crise bem forte (Usuário 03); nós
procedimentos, prescrições e com ausência de in- o identificamos e fizemos a acolhida dele aqui no posto e
terações subjetivas, desmotivaram esses usuários encaminhamos pro CAPS [...] a gente faz meio que um
a aderirem ao tratamento. acompanhamento dele. A gente sempre pede ajuda do
A narrativa de uma usuária descreve esses CAPS para esses casos mais graves (Enfermeiro ESF).
dois momentos de seu tratamento. Em alusão ao Em face do exposto, observa-se que o Centro
antigo tratamento, há mais de cinco anos (Usuário de Saúde promove acesso aos cuidados de saúde
08), recebido no CAPS, ela é enfática em revelar mental e ainda funciona como coordenador do
práticas centradas somente na prescrição far- fluxo terapêutico dos usuários com transtornos
macológica, sem espaços para diálogo, escuta e mentais graves. Esse processo envolve a tomada
acolhimento e com significativa desvalorização de decisão clínica, por parte da equipe da ESF,
do usuário como sujeito de seu processo de adoe- que perpassa a escuta qualificada, com o intuito
cimento: o atendimento foi assim: ‘qual o remédio que de identificar a gravidade do caso e a possível
a senhora toma?’, eu disse: tal [...]. Aí passou a receita, necessidade de resolução no Centro de Saúde e/
me entregou e pronto. Eu digo: puxa vida, não vou ficar ou encaminhamento para o CAPS.20
aqui, o homem não olhou nem pra mim (Usuário 08). Além disso, para compor o PTS, as equipes
A usuária, por conseguinte, revela satisfação com articulam-se com os dispositivos do território a fim
seu acompanhamento na ESF, enfatizando vínculo de ampliarem o potencial de resolução dos casos
e empatia com os profissionais do CSF: aí eu vim clínicos de saúde mental: teve um apoio matricial que
pra cá [...] e me identifiquei muito com os profissionais a menina que tinha TA [transtorno de ansiedade]
daqui (Usuário 08). reclamava muito que ela era muito só, que ela não tava
Percebe-se que há intensa influência da psi- conseguindo sair de casa, aí a gente entrou em contato
quiatria de conteúdo clássico no atendimento do com a escola dela pra inserir ela em atividades e até no
CAPS. As práticas da psiquiatria contemporânea coral da igreja a gente conseguiu [...] (Psicólogo CAPS).
ainda objetivam somente que o usuário faça uso Embora seja pontual, nota-se uma tentativa
da medicação, ou seja, essas práticas asilares conti- de articulação intersetorial no cuidado em saúde
nuam a ocorrer mesmo nos serviços substitutivos. mental. Esses resultados confirmam-se às evidên-
Além disso, aos usuários não lhes perguntam o que cias de outros estudos7,12 cujos objetivos foram
pensam a respeito dos tratamentos que recebem compreender/analisar a elaboração do projeto
ou das rotinas a que são submetidos.22 Isso implica terapêutico singular. Nesses estudos, escolas, igre-
assinalar que não há uma desinstitucionalização jas e associações de moradores caracterizaram-se
de fato, pois esta não se refere apenas ao processo como espaços importantes de cuidados em saúde
de desospitalização, mas à desconstituição dos mental no território. Com isso, os serviços assisten-
conceitos e ações da Psiquiátrica de teor clássico.21 ciais do Sistema Único de Saúde (SUS) devem se
Ressalta-se, ainda, que o acompanhamento articular com tais instituições para compor pactos
de alguns usuários no CAPS, conseguido após a de atuação integrada,12 sobressaindo, inclusive,
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Apoio matricial, projeto terapêutico singular e produção... - 117 -

a possibilidade de reduzir os processos medica- do caso para, conforme a necessidade, encaminhá


mentalizantes que ainda permeiam as ações de -lo ao CAPS ou apenas buscar informações nas
saúde mental.22 reuniões de apoio matricial sobre determinado
Como se pode perceber nessa unidade temá- usuário encaminhado: se o médico achar que aqui
tica, o apoio matricial e a construção do PTS são resolve, ele fica. Se ele achar que tem um perfil mais
determinantes para o cuidar em situações indivi- elevado a nível de CAPS, ele encaminha pro CAPS
duais e sociais. A ESF é um importante dispositivo (Psicólogo NASF).
de oferta de cuidado aos usuários com transtornos Outros estudos 9,12 também evidenciaram
mentais: promove a equidade e o acesso, garante que na abordagem dos casos de saúde mental na
fluxos terapêuticos de acordo com as vulnerabili- ESF os transtornos e sua gravidade entornam o
dades e potencialidades de cada usuário e formula atendimento, que precede uma ordem de resolu-
projetos terapêuticos para cada situação singular.11 ção ou encaminhamento. Sumariamente, as ações
são voltadas para a manutenção do equilíbrio,
se o caso for leve; ou, para o encaminhamento
Tema 2 – Apoio matricial, projeto terapêutico
ao CAPS, para casos moderados ou graves, que
singular e os obstáculos à produção do cui- serão posteriormente acompanhados pela equipe
dado em saúde mental na atenção primária de referência.
Nesta unidade temática, as narrativas reve- Esse entendimento de que o CAPS deve
lam que a estratégia de AM e a condução do PTS, atender o usuário com transtorno grave ou em
no cenário investigado, possuem desafios relacio- crise e devolvê-lo à ESF, ao seu território, remete
nados à organização das ações de saúde mental, ao ao modelo manicomial, isto é, oferta atendimento
apego à lógica de encaminhamentos, centralidade dentro de um local específico para depois devolvê
na figura do médico e dependência do suporte da -lo à sociedade, enquanto a intervenção terapêutica
equipe especializada do CAPS. no contexto social das pessoas possui maior efeti-
Com relação ao primeiro aspecto, a com- vidade, sendo necessária, portanto, a articulação
preensão e interpretação das narrativas permitem entre esses serviços.12
analisar as ações em saúde mental no CAPS e na A dificuldade, entretanto, em promover cui-
ESF, bem como na interação desses dois cenários. dados de saúde mental também está relacionada
Desvelam-se, portanto, os ruídos do cotidiano da com o contexto social e político em que os agentes
organização dos serviços, das equipes e das prá- das práticas de saúde estão envolvidos. A saúde
ticas e saberes envolvidos no AM e na elaboração mental no cenário estudado, não diferindo de ou-
do PTS. tras realidades, é prejudicada com a desarticulação
A dinâmica dos serviços revela-se dissonante das políticas destinadas ao setor.10 É bem difícil
das propostas da Reforma Psiquiátrica, no que esse matriciamento [...], espaço que a gente não tem,
concerne à necessidade de efetivar os cuidados pri- porque a gente faz na sala da enfermeira e fica lotada!
mários em saúde mental. A equipe da ESF refere (Assistente Social NASF); Não é culpa das pessoas que
dificuldades em ofertar, de modo contínuo e com trabalham não, é do próprio sistema [...] os profissionais
qualidade, cuidados aos usuários com transtornos da unidade, eles são a sua maioria terceirizados, então
mentais em razão das várias atividades desenvol- a gente também tem essa rotatividade de profissionais
vidas no cotidiano assistencial, como as consultas (Terapeuta ocupacional NASF).
destinadas aos programas de saúde pública: [...] Portanto, as dificuldades em efetivar o AM
a gente tenta atender essa demanda [casos de saúde e em construir o PTS estão também relacionadas
mental], mas é difícil [...] a agenda é muito cheia, à deficiência de espaço físico para que sejam
muita coisa pra atender, é hipertenso, é pré-natal [...] realizadas as reuniões, desarticulação da rede
(Enfermeiro ESF). assistencial de atenção primária e terceirização
Nesse sentido, as narrativas, entre os quatros dos profissionais, que induz a maior rotatividade
grupos, não são coincidentes, pois seus signifi- de profissionais, tanto no CAPS quanto na ESF,
cantes ora se estruturam no cuidado centrado em repercutindo na ampliação do vínculo e apreensão
tecnologias leves e ora desponta a inexistência de dos problemas do território.
atitudes de corresponsabilização. De fato, a equipe Essa conjuntura produz obstáculos para se
maneja práticas de acolhimento perante alguns efetivar a estratégia de apoio matricial. Visuali-
casos clínicos de saúde mental existentes no ter- zam-se dificuldades em consolidar o modelo de
ritório, mas se restringe em realizar uma triagem atenção psicossocial, refletidas na pouca articula-
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ção da rede de atenção primária e nos excessivos cos em saúde mental são obstáculos no processo
encaminhamentos para outros serviços, exigindo de cuidar dos enfermeiros na atenção primária.24
o envolvimento de usuários, gestores e trabalha- Esses obstáculos incidem na formação do
dores de saúde na luta em defesa do SUS e com a projeto terapêutico dos usuários com transtornos
finalidade de transformar a saúde pública, sobre- mentais. As narrativas, consoante as observações
tudo o campo da saúde mental.10,23 em campo, revelam que a participação do usuário
Ao vivenciarem essa realidade, trabalha- não se efetiva, isto é, esse processo não possibilita
dores reportam a um sentimento de despreparo o protagonismo, tampouco promove a autonomia
e impotência para lidar com os casos clínicos de do sujeito. Em um dos momentos da elaboração
saúde mental que cotidianamente chegam ao do PTS, observou-se que o usuário foi convidado
serviço, dificultando as ações pactuadas no apoio a se ausentar do espaço para que os profissionais
matricial: tem casos aqui que é drogadição, a pessoa tá definissem entre si o seu tratamento. Ele [usuário]
desempregada e fica com depressão. [...] tem muito disso fala muitas vezes uma coisa, mas quer dizer outra, então
e às vezes é complicado. (Médico ESF). Parte desses a gente vê essa necessidade dele, no momento que ele sai,
profissionais permanece com práticas embutidas a gente faz essa discussão desse projeto terapêutico, o
na clínica tradicional apreendida sua formação. que é que a gente pode tá encaminhando pra ele, tá até
Ante os determinantes sociais do processo saú- facilitando pra ele (Enfermeiro ESF).
de-doença, aos quais a população adscrita está Nesse sentido, nega-se a dimensão singu-
submetida, médicos recorrem à terapia farmaco- lar, que é a essência do projeto terapêutico. É
lógica como terapêutica valiosa à somatização da com amparo no singular que os trabalhadores de
vulnerabilidade social dos usuários. saúde podem promover uma relação dialógica e
Adita-se, ainda, a dificuldade que os médicos interativa com o usuário, centrarem-se em suas
da atenção primária têm em prescrever psicotró- pretensões, suas experiências de vida e de seu
picos, ficando dependentes da equipe do CAPS. processo saúde-doença, opiniões e necessidades,
Alguns casos que se encaminhava pra cá [CAPS], via contribuindo, assim, para a constituição de prá-
que não era paciente de atendimento em CAPS. [...] por ticas não medicamentalizantes no cuidado em
alguma dúvida ou do enfermeiro ou do médico, questão saúde mental.
de medicação, eles encaminhavam o paciente ao CAPS No que concerne à centralização de poder, o
(Médico CAPS). Como se pode perceber, mesmo médico ocupa lugar central na tomada de decisões
os transtornos classificados como “leves”, ansie- clínicas e condução dos casos no AM. Ainda que as
dade e episódios depressivos, demandam suporte equipes sejam formadas por outros profissionais,
a fim de que sejam prescritos os medicamentos como enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupa-
necessários. cionais e agentes comunitários de saúde, a comuni-
Embora seja possível que o AM se refira à tro- cação e o suporte ocorrem somente pela interação
ca de conhecimento (suporte técnico-pedagógico), médico CAPS–médico ESF. A monopolização do
de orientações entre as equipes e reorientação de saber médico sobre determinado caso,4 portanto,
condutas antes adotadas,3 como é o caso das pres- constitui prática corriqueira no campo estudado.
crições, considera-se de fundamental importância Essa centralidade no trabalho médico in-
o investimento na formação em saúde mental viabiliza a construção de projetos terapêuticos
dos profissionais da ESF.2,4 Pautada na dimensão integrados com os núcleos de saberes dos vários
teórico-prática das intervenções, os processos de profissionais que compõem as equipes. Conside-
educação permanente devem privilegiar aspectos rando que outros trabalhadores são decisivos no
biopsíquicos e sociais do adoecimento, haja vista a acompanhamento de usuários com transtornos
formação biomédica dos profissionais da atenção mentais e na formação e condução das ações de
primária que focaliza ações de cuidado no bioló- saúde mental na comunidade, tal ação “médico-
gico e na prescrição. centrada” pode distanciar o centro de saúde da
Essa realidade não se aplica somente aos pro- população atendida.
fissionais médicos. Os enfermeiros, por exemplo, Os ACSs, por exemplo, são sujeitos de ação
referem dificuldades de produzir cuidado integral singular, que integra comunidade e serviço de
em saúde mental no cenário da ESF. Cuidados com saúde, pois produzem um território vivo e comum,
ênfase no aspecto biológico, ou procedimentos bem como assumem atividades que extrapolam
com o corpo, dificuldade em mobilizar habilidades as ações determinadas nas normas do Ministério
e conhecimentos para a condução dos casos clíni- da Saúde ou nos protocolos gerenciais do centro
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Apoio matricial, projeto terapêutico singular e produção... - 119 -

de saúde. Eles flexibilizam tarefas na tentativa de trabalho interdisciplinar, flexibilização do crono-


responder às demandas da população.25 grama de atendimento dos serviços para que seja
Vários estudos2,12,26 salientam a importância dada oportunidade de acolhimento e condução
do ACS nos cuidados em saúde mental na APS. dos casos de saúde mental e melhor estruturação
Sendo assim, alguns autores26 enfatizam a ideia dos centros de saúde, constituem possibilidades
de que, para intervenções de promoção à saúde de organização e fortalecimento das práticas ino-
mental e vínculo com os familiares no território, vadoras no campo da saúde mental.
a função do ACS é precípua e estratégica, uma Quanto aos limites do estudo, as possibili-
vez que identifica dispositivos na comunidade e dades de contribuição de familiares precisam ser
propicia escuta e acolhimento de maneira mais consideradas a fim de se obter relatos diversifica-
próxima da população. dos, pois muitas vezes esses sujeitos participam
Além disso, a participação de enfermeiros ativamente do cuidado de pessoas com transtornos
nos cuidados em saúde mental na APS é descrita mentais, sendo importante também considerar
na literatura internacional como bastante promis- suas opiniões, desejos e anseios na elaboração do
sora no enfrentamento de doenças e adesão ao tra- projeto terapêutico. Com origem nos resultados
tamento nesse nível de atenção. Estudo7 realizado aqui produzidos, são necessários estudos avalia-
no Canadá, cujo objetivo foi avaliar a eficácia de tivos da organização da saúde mental que privi-
um programa de intervenção destinado a usuários legiem políticas, estratégias, práticas de cuidado,
não psicóticos, demonstrou que a participação clínica e gestão.
desses profissionais foi decisiva na ampliação de
vínculos e na diminuição das dificuldades enfren- REFERÊNCIAS
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buscam a qualidade e efetividade das ações de MGF, Cavalcante CM, Flores AZT, et al. Projeto
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Entre as estratégias a serem desenvolvidas, a
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implementação de processos de educação perma- chronic patients and nurses in outpatient mental
nente com vistas ao “empoderamento” dos traba- health care: a controlled pilot study on feasibility
lhadores da ESF para a resolução dos problemas and effects. International Journal of Nursing Studies.
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Saúde, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. 2012 Jan; 46(1):43-50.

Correspondência: Maria Salete Bessa Jorge Recebido: 28 de agosto de 2013


Rua Doutor José Lourenço, 2835, ap. 301 Aprovado: 27 de janeiro de 2014
60115-282 – Bairro Aldeota, Fortaleza, CE, Brasil
E-mail: maria.salete.jorge@gmail.com
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2015 Jan-Mar; 24(1): 112-20.
DOI: 10.1590/1807-57622013.0738

Consultório de/na rua:


desafio para um cuidado em verso na saúde

Mário Francis Petry Londero(a)


Ricardo Burg Ceccim(b)
Luiz Fernando Silva Bilibio(c)

Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultation office of/in the street: challenge for a
healthcare in verse. Interface (Botucatu).

This paper discusses healthcare practices Este artigo discute práticas de cuidado do
relating to consultation offices in the Consultório de/na rua, serviço que se
street, which are a service delineated delineia no Sistema Único de Saúde,
within the Brazilian National Health destinado à atenção às pessoas em
System that is directed towards caring for situação de rua. A intenção é
people living on the streets. The intention problematizar as estratégias de
was to pose questions regarding acolhimento e cuidado em saúde, bem
healthcare and reception strategies, along como as diretrizes ou valores desse
with the guidelines or values of this work. trabalho, muitas vezes destoantes entre
These are often discordant with each si, como: as ações programadas de
other, like the programmed actions of rastreamento e autoridade moral sobre
tracking and moral authority over people pessoas com vida na rua e as ações
living on the streets and the disruptive disruptivas do modelo urbano de cidade
actions of the urban model for healthy saudável e segura, para uma forte
and safe cities, in relation to strong inclusão de pessoas que, por variados
inclusion of people who, for various motivos, levam esse tipo de vida. Como (a)
Centro Universitário
reasons, live in such situation. Field recurso de análise, estão diários de campo UNIVATES, Centro de
diaries written by workers at one these escritos pelos trabalhadores de um desses Ciências Biológicas e da
consultation offices, located in Porto consultórios – localizado em Porto Alegre, Saúde. Avenida Avelino
Brasil – que, em seu cotidiano, percorrem Talini, 171,
Alegre, Brazil, comprise an analysis
Universitário. Lajeado,
resource. In these workers’ day-to-day as ruas e redes de saúde e intersetorial RS, Brasil. 95900-000.
routine, they pass through the streets and com todas as suas dificuldades e francislonder@hotmail.com
health and intersectoral networks with all potências. (b)
Programa de Pós-
Graduação em Educação,
their difficulties and strengths.
Palavras-chave: Consultório na rua. Rede Universidade Federal do
Keywords: Consultation office in the de Atenção Psicossocial. Rede de Atenção Rio Grande do Sul.
Porto Alegre, RS, Brasil.
street. Psychosocial care network. Primary Básica à Saúde. Moradores de rua. burg.ceccim@ufrgs.br
care network. Street dwellers. (c)
Curso de Educação
Física, Universidade do
Vale do Rio dos Sinos.
São Leopoldo, RS, Brasil.
fernandobilibio@
uol.com.br

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CONSULTÓRIO DE/NA RUA: ...

Anunciando o campo problemático

O presente texto versa sobre um serviço relativamente novo no cenário do Sistema Único de Saúde
(SUS), o Consultório de/na Rua (CR). Ele entra em cena diante de um panorama intrincado em termos
de assistência à saúde para pessoas em situação de rua, com uso problemático de crack, álcool e outras
drogas. A desinstitucionalização, que ganhou efetividade nos anos 1990 no Brasil, enfocando a
população segregada em manicômios, pouco aportou sobre os segmentos que não experimentaram a
internação manicomial ou portadores de agravos psíquicos sem acesso aos serviços regulares de atenção
à saúde mental, sobre quem incide, então, a ação de aparelhagens do Estado, como o judiciário e a
polícia. Mesmo em face da desinstitucionalização, não houve, de maneira relevante, uma política social
e de saúde que pensasse sobre o sofrimento ou transtorno psíquico e o acolhimento da população em
situação de rua, a qual foi crescendo de maneira expressiva nas grandes cidades do país nas últimas
décadas, sendo também estigmatizada. Não é difícil constatar que pessoas em situação de rua
passaram, no imaginário social, a serem vistas como os “novos desviantes da sociedade”, como
perigosas, devido ao seu consumo de crack, álcool e outras drogas, e porque perambulam pelas ruas,
pedindo ou roubando para sustentar sua droga-dependência, deixando de ser “sujeitos desejantes para
serem meros objetos inertes e irresponsáveis, quanto aos seus próprios atos”1 (p. 9).
Varanda e Adorno2 citam uma série de designações no imaginário social, específicas para as pessoas
em situação de rua: maloqueiros, mendigos, pedintes, indivíduos em estágio de degradação, sem rumo.
O que as une é a noção de pessoas vivendo nas ruas e sem ganho definido, o que as tem traduzido
como “descartáveis urbanos”: indivíduos/grupos “vitimizados pelos problemas estruturais”, com uma
situação agravada “pela contínua permanência em condições insalubres, sujeitas à violência ou ainda
sob a ação contínua de álcool e drogas”, tidos, nas sociedades urbanizadas, como “uma presença
inoportuna e ameaçadora”2 (p. 66).
Merhy1, quanto aos coletivos formados pelos usuários de drogas, comenta quanto tais ocupantes das
ruas e praças, em qualquer cidade, podem ser pensados como os novos anormais à luz do pensamento
foucaultiano na atualidade, “quando há um enorme esforço, por parte de setores conservadores, de
conduzir à construção de um imaginário social que torne visíveis os usuários de drogas como zumbis,
não humanos” (p. 9). Os moradores de rua ou drogados viriam “se tornando um prato cheio para a
construção de um medo atávico pelo não controlado”, levando de roldão qualquer tipo de movimento
que se alie a uma aposta em uma vida livre, “vítimas da captura-dependência que as substâncias
químicas ilícitas provocam” 1 (p. 9).
Conforme Romaní3, no campo das drogas, pode-se atuar ou desenvolver intervenções segundo dois
grandes modelos: um de abordagem prescritiva e outro de abordagem participativa. No primeiro, uma
“sabedoria das instituições”, estatuto legítimo, mas parcial, pois requer condições específicas de
produção e gestão (estrutura ou estratégia científica, legal, administrativa, por exemplo). No segundo, a
criação de diferentes vias de interlocução entre as instituições e as opiniões e saberes das populações
com que se trabalhe. O primeiro é aquele em que “o profissional, legitimado por um saber que lhe
confere certo poder social, indica o que há por fazer; ainda que a população saiba, por experiência
própria, que aquilo que ontem era do mal, hoje pode ser são e conveniente, e vice-versa” 3 (p. 303).
A revista do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul ratifica o primeiro modelo, um tipo de política
em saúde que coloca o Consultório de Rua num patamar “paliativo”4, onde “não servem para muita
coisa, pois o importante são os leitos psiquiátricos para a internação”, a única forma de tratamento
reconhecida. Da mesma forma, é possível notar uma forte campanha de apelo midiático como a do
Crack nem Pensar (lançada em 2006 pela principal empresa de comunicação do Rio Grande do Sul),
numa prática discursiva de erradicação das drogas.
Romaní3 mostra que há uma série de fatores a que os especialistas estão submetidos – desde a
lógica das instituições – que não necessariamente correspondem às reais necessidades de intervenção,
nem às necessidades da vida cotidiana das pessoas. Ao fim e ao cabo, segundo o primeiro modelo, “a
população tem que aceitar aquilo que lhe diz o especialista” (p. 303). O modelo participativo, ao
contrário, decorre de propor-se a “incorporar o conjunto de necessidades da população e identificar
com a comunidade os problemas e critérios de abordagem” (p. 303).

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Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS

Diante deste cenário, podem-se observar, de um lado, propostas de internação compulsória e


desmantelamento dos lugares de consumo de drogas (“cracolândias”), via ofensiva policial, sem um
mínimo de planejamento que inclua tal população em programas de acolhimento de suas necessidades
sociais. O que se vê é um movimento de expulsão e maior exposição. Do outro lado, fazem-se
presentes ações do Ministério da Saúde (MS) em composição com representantes dos trabalhadores da
saúde e da assistência social, e de movimentos ligados à população em situação de rua, as quais
oferecem práticas de cuidado a partir da afirmação e criação de serviços em saúde e intersetoriais que
venham a dar conta da demanda vinda das ruas. Encontra-se, nessa segunda via, a afirmação de redes
de saúde e intersetorial, desde a Política Nacional de Atenção Básica e da instituição da Rede de
Atenção Psicossocial (Portaria GM/MS nº 3.088/2011), para pessoas com sofrimento ou transtorno
mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas no âmbito do SUS.
As estratégias de interação dentro de um ou de outro dos dois modelos mencionados (o prescritivo e
o participativo) são bastante distintas, conforme declara Romaní3 em referência ao campo das drogas: de
um lado, “o nível das consignas das campanhas publicitárias e os conselhos emitidos pelos entendidos”;
de outro, “a discussão grupal, que vai permitindo a definição distinta dos problemas, conforme contextos
distintos”. Para o autor, o modelo prescritivo pauta “campanhas globais do tipo ‘não às drogas’ nos
grandes meios de comunicação de massa”, enquanto o modelo participativo “delineia objetivos a partir
de problemas mais concretos, detectados em setores específicos da população”3 (p. 303).
Tais modelos se expressam claramente nas diferentes práticas vigentes na atual conjuntura brasileira.
Para Romaní3, ao modelo participativo toca “o conjunto de esforços que uma comunidade põe em
marcha para reduzir, de forma razoável, a probabilidade de que, em seu seio, apareçam problemas
relacionados com os consumos de drogas”. O autor sublinha: “não se trata aqui de uma perspectiva
dicotômica do tipo bom-mau, branco-negro, drogas e não-drogas propiciado pelo proibicionismo”;
pretende-se “um enfoque mais realista e profissional, centrado na possibilidade de solucionar alguns
aspectos ou de fazer frente aos efeitos mais danosos derivados de certos consumos de drogas”3
(p. 304). Por conseguinte, faz-se relevante a diversificação de critérios, como as políticas de redução de
danos que traçam um cuidado correspondente ao desejo daquele que se encontra em sofrimento e
solicita/requer cuidado. O aspecto central, para o autor, é projetar uma intervenção coincidente com os
diferentes consumos e os diferentes grupos consumidores, desenvolvendo capacidade em assumir certo
nível de autocontrole, ao mesmo tempo, alguma normatividade dos grupos de pertencimento sobre o
indivíduo e sua relação com o consumo (de drogas e de outras coisas).
Para que funcione uma abordagem de redução de danos e de prevenção do consumo e
dependência provocados pelo uso de crack, álcool e outras drogas, “é necessário o ponto de partida na
cultura e no conhecimento dos mundos locais de significados”3 (p. 304). Haveria mais chances de
atenção e cuidado, seja por alcançar os objetivos daquilo que se quer conseguir, evitando os
“utopismos fabricados em gabinete, mais que por sábios, por burocratas do controle de drogas”; seja
por atuar em conformidade com uma prática que respeite e diga respeito à vida das pessoas3 (p. 304).
Na atualidade, a partir desses dois grandes modelos até aqui expostos, há uma crescente demanda
sobre como dar conta das necessidades sociais em saúde das populações vivendo na rua, constatando-se
ações divergentes no seio da sociedade a partir das posições de cidadãos, do Estado, da mídia, dos
serviços de saúde e das organizações coletivas, como o próprio Movimento Nacional da População de
Rua, hoje organizado. Na tentativa de produzir uma prática de cuidado abrangente e que possa
adequar-se à realidade de cada usuário de saúde e seu contexto social, o MS configurou a Rede de
Atenção Psicossocial, que deve encadear serviços especializados de saúde e de assistência social:
Centros de Referência Especializada de Assistência Social, Unidade Básica de Saúde (UBS) e Estratégia
Saúde da Família, Núcleo de Apoio em Atenção Básica, CR, Centros de Atenção Psicossocial (para
usuários de álcool e outras drogas – Caps-ad e para atendimento à infância e adolescência – Caps-i),
Unidades de Acolhimento e Serviços Residenciais Terapêuticos, além das Comunidades Terapêuticas,
todos potencialmente matriciados (apoiados colaborativamente) pelos Caps-ad, com equipe profissional
mais diversificada e especializada, com funcionamento ininterrupto (Caps-ad III).
Dentro desse campo apontado, o CR desponta como um dispositivo criado para produzir cuidado às
populações em situação de rua. O CR faz parte das redes de saúde e intersetorial, nas quais insere-se

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CONSULTÓRIO DE/NA RUA: ...

na intenção de produzir uma terapêutica singular para cada pessoa/coletivo em situação de rua.
Contudo, diante da fragilidade dessas redes, sempre em movimento e a construir-se, o CR, além de
servir como um serviço de atenção aos moradores ou pessoas em situação de rua, torna-se um
importante instrumento de problematização dos modos de cuidado que atravessam a assistência em
saúde. Com sua prática em trânsito, percorre a rede de saúde e intersetorial, mesclando-se à mesma –
não raras vezes, sob tensão –, buscando articulação para o atendimento daqueles que, até então,
encontravam-se invisíveis nos/aos cenários do SUS.
Num certo sentido, a iniciativa de, efetivamente, configurar uma equipe multiprofissional em trânsito
na cidade – nômade e no entre das paisagens socioculturais de cada território (geográfico, cultural,
existencial, profissional, disciplinar) –, coloca o sistema de saúde em xeque ao trazer à tona um tipo
diverso de população, que problematiza os modos estruturados de produzir saúde e as características de
rede utilizadas na organização dos serviços e suas prioridades. O CR, ao interagir em diferentes cenários
com a população de rua, presentifica, no cotidiano, um conjunto inusitado de necessidades em saúde
para a rede de cuidados.
São estranhas as histórias de vida na rua e suas necessidades de saúde também. O CR, ao acolher,
em exercício de alteridade, as pessoas em situação de rua e ao levar tais casos à rede de cuidados,
produz, cotidianamente, estranhamentos na própria rede. Com o estranhamento, emergem situações
observadas e sentidas, para as quais não se têm respostas prontas e pelas quais somos significativamente
arrastados para fora de nossa zona de conforto do diagnóstico e recomendações ao autocuidado no
domicílio. A rede é tensionada por uma demanda, por ora invisível, de uma população até então
inexistente. O CR mostra uma nova cara, um novo ponto de conexão de rede ou de redes, recoloca
desafios e interroga a construção de que participamos para um SUS que diga respeito a todos.

Criação do Consultório de/na Rua

O primeiro Consultório de Rua surge em 1999, em Salvador, na Bahia. Um projeto-piloto criado em


decorrência da problemática de crianças e adolescentes que se encontravam na rua e sob uso
problemático de drogas. A experiência foi do Centro de Estudos e Terapia do Abuso de Drogas. Em
maio de 2004, um CR foi implantado no primeiro Centro de Atenção Psicossocial para o atendimento
em álcool e outras drogas (Caps-ad) de Salvador, estruturando o modelo assistencial dessa unidade. Em
2009, o MS propõe que o CR torne-se uma das estratégias do Plano Emergencial de Ampliação de
Acesso ao Tratamento em Álcool e outras Drogas, sendo incluído, em 2010, no Plano Integrado
Nacional de Enfrentamento ao Crack, com o objetivo de ampliar o acesso aos serviços assistenciais e
qualificar o atendimento oferecido às pessoas que usam crack, álcool e outras drogas por intermédio de
ações de saúde na rua. Para o MS, “a retaguarda do CR” favorecia “o fluxo de encaminhamentos e a
inserção na rede” dos usuários de drogas mais comprometidos com esse uso e “em situação de maior
vulnerabilidade social”5 (p. 8).
Outra experiência brasileira na base dos CR foram os Programas Saúde da Família sem Domicílio –
PSF Sem Domicílio, mais tarde Equipe de Saúde da Família para População em Situação de Rua – ESF
Pop Rua. Pode-se referir, a partir de 2004, o PSF sem Domicílio, de Porto Alegre, seguido das ESF sem
Domicílio de Belo Horizonte e de São Paulo e a ESF Pop Rua do Rio de Janeiro. O PSF Sem Domicílio de
Porto Alegre estava voltado para a população em situação de rua, com atendimento de forma itinerante,
como parte da rede de Atenção Básica à Saúde e do Programa de Atenção Integral à População Adulta
de Rua, da área de assistência social, devendo abordar moradores de rua, identificar as causas da sua
situação, acionar os diversos setores que pudessem auxiliar na busca por um vínculo familiar e
ocupação, além do atendimento visando à promoção da saúde, com tratamento e exames clínicos.
Hoje, as Estratégias de Saúde da Família sem Domicílio para População em Situação de Rua funcionam
como “Consultório na Rua”.
Um Consultório de/ ou na Rua, hoje, representa a convergência, sob diferentes modalidades, da
experiência com a Redução de Danos e com o PSF Sem Domicílio. A passagem do CR, que estava
vinculado à Política Nacional de Saúde Mental até 2012 para a Política Nacional de Atenção Básica, não
representa apenas uma mudança de nomenclatura (Consultório “de” para Consultório “na” Rua), mas

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Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS

uma mudança nas diretrizes estratégicas deste dispositivo, atendendo, ainda, à prioridade do Governo
do Brasil, de prevenção do consumo e da dependência de crack, álcool e outras drogas. Cabe lembrar a
posição contrária à extinção do PSF Sem Domicílio pelo Movimento Nacional da População de Rua, que
entende que não é apenas a atenção em relação ao consumo e dependência de crack, álcool e outras
drogas que a população em situação de rua necessita.
Em 2011, como desdobramento do Decreto Presidencial nº 7.053/2009, que instituiu a Política
Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento, o MS adotou o CR como um serviço estratégico da Atenção Básica, fazendo a
composição entre os dispositivos da Saúde Mental e da Saúde da Família ao invés de extinguir um em
detrimento do outro. Em 2012, com a interposição do conceito de Rede de Atenção Psicossocial para
pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e
outras drogas, a rede básica participa com as UBS e os CR.
Atualmente, a rede pública de saúde tem mais de cem CR implantados em todo território brasileiro,
com uma prática clínica de cuidado que percorre a rede ao promover a atenção e a inclusão da
população em situação de rua. Devido à ampla ação que se passa na rua, o CR é um serviço transversal,
produzindo tanto uma atenção em relação à especialidade da saúde mental, como a disposição de
práticas da Atenção Básica. Pode-se constatar a produção de uma assistência primária, com o “uso de
práticas de prevenção de doenças e promoção da saúde”, assim como a “melhora do acesso aos
serviços de saúde e a tentativa de proteção da qualidade de vida” 5 (p. 5).
Em relação a Porto Alegre, em termos de atenção à saúde existe uma grave situação para se dar
conta daqueles que moram/transitam pelas ruas com o consumo de crack, álcool e outras drogas, bem
como outras problemáticas que acometem tal população em termos de saúde e inclusão social. Em
2009, a direção do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), acolhendo a necessidade da capital, convida os
trabalhadores da “Linha de Cuidado de Saúde Mental” para a elaboração e implantação do projeto de
um Centro de Atenção em Álcool e outras Drogas. Tal projeto previa a composição de cinco serviços:
Caps-ad III, Caps-i, CR, Unidade de Tratamento em Álcool e outras Drogas para adolescentes e um
Centro de Estudos e Pesquisa em Álcool e outras Drogas. A partir de tal projeto, foi implantado, em
2010, o CR “Pintando Saúde” ou CR-GHC.
São, sobretudo, as experiências e experimentações de produção do cuidado no Pintando Saúde que
alimentam as problematizações presentes neste artigo. O trabalho do Pintando Saúde iniciou-se em
agosto de 2010, percorrendo a região norte da cidade, tendo em vista analisar territórios onde existiam/
viviam pessoas em situação de rua. Tal trabalho começou a ser feito junto à rede de saúde e assistência
social, com a finalidade de mapear possíveis lugares que seriam estratégicos para a presença do CR-
GHC. A partir da demanda da rede de saúde e de assistência social da região, foram se materializando
os espaços nos quais o CR-GHC iniciaria seu trabalho de assistência em saúde. Com mapeamento
devidamente encetado para a região, iniciaram-se, a partir de novembro de 2010, as intervenções
propriamente ditas de cuidado em saúde com a população em situação de rua.
Logo nas primeiras intervenções, ficou claro que tal população não necessitava de atenção apenas na
abordagem quanto ao uso problemático de crack, álcool e outras drogas, precisava de cuidados em
saúde de maneira ampliada devido aos agravos decorrentes da situação de rua.

A produção do cuidado

O CR-GHC oferta, para seus usuários, um serviço aberto e de demanda espontânea, busca acolher
aquilo que pessoas em situação de rua estão necessitando. As ações são construídas de acordo com as
particularidades da pessoa e vulnerabilidades. Isso implica o desafio de produzir um cuidado capaz de
absorver, em suas intervenções, o inesperado ou o não-programado em termos da atenção prevista.
Num certo sentido, este desafio está colocado para todo e qualquer serviço de saúde, porém, estas
exigências, na rua, parecem impor-se de forma intensa, persistente e inusitada.
A falta de paredes. A não presença da mesa. O encontro em locais moventes. A luz do sol, o vento,
o frio, o calor. A sujeira, o forte odor. A conversa sobre saúde em roda de uso de drogas. O medo da
polícia e da chuva. Estranhas sensações, intempestivas alegrias. Intervenção no desejo, produção de

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desejo. O encontro com histórias de vida em contextos angustiantes no seu próprio desenrolar.
Acontecimentos que exigem um exercício de alteridade fortemente marcado pela “transvaloração dos
valores”6. O acolhimento ou os projetos de cuidado no CR-GHC acontecem nestas circunstâncias.
Há poucas condições prévias para coordenar a assistência de saúde, o caminho está sempre por se
fazer junto ao usuário acolhido (no encontro real e a seu tempo), de modo que os ditos lugares
identitários de cada profissão são reconfigurados em ato, ou melhor, o profissional é enredado em
acontecimentos que oportunizam uma desconstrução do modo disciplinar que até então o delimitava
como terapeuta. Um processo de trabalho que convoca a emergência de um cuidador que beira a
“anomalia, que foge às abordagens fragmentadas”7 (p. 25). Conforme o MS, “o contexto da rua é
dinâmico e a equipe deve ajustar seu trabalho frente ao inesperado”5 (p. 16).
Produzir um serviço de saúde que ultrapasse o esperado, o programado, o prescrito, dentro de uma
equipe, tornava-se um grande desafio, sobretudo porque um CR não trabalha isoladamente, ele
necessita da rede de saúde e intersetorial para abarcar o cuidado integral, universal e igualitário
preconizado pelo SUS. Esse modo dinâmico de operar o cuidado no CR pode reverberar nos serviços
com que entra em contato, tensionando uma cadeia de cuidados que, muitas vezes, sequer espreita um
horizonte mais longínquo que o seu próprio cotidiano de atuação. Olhar para mais longe, suportar a
imprevisibilidade e investir em ações de cuidado, abarcando particularidades e engendrando desejo no
outro, são práticas difíceis de serem realizadas num cotidiano de atenção em saúde extremamente
normatizado, balizado por um atendimento que se pauta por saberes profissionais, com mínima
oportunidade de intersecção com os usuários que chegam com seus padecimentos difusos ou confusos.
Como investir numa lógica de atenção em saúde que seja porosa à imprevisibilidade? Como
provocar trabalhadores e serviços de maneira que a implicação com a prática de cuidado seja aberta à
imprevisibilidade, conectada ao desejo e atenta às particularidades? São questões-desafio que
perpassam o desenvolvimento desses trabalhadores e o acolhimento dessa população; questões cada
vez mais anunciadas à rede de saúde.
Para dar qualidade à discussão, é oferecido um “caso-pensamento” ocorrido no processo de cuidado
do CR-GHC, envolvendo um usuário em situação de rua. A ferramenta do “caso-pensamento” coloca
em composição uma “teia-conceitual”8 (p. 55), apostando numa estratégia de escrita mais encarnada
que o simples relatar fidedignamente determinada cena. Destarte, os casos-pensamentos são versões
que emergem do plano intensivo da memória da equipe do CR-GHC, ao expressarem um desconforto
ou um estranhamento que não cansa de fazer função, de fruir. O caso-pensamento traz à tona um
acontecimento no que ele tem de “atual e virtual”9 (p. 51); algo que não cai no absoluto, no exato ou
já dado, mas possibilita um vir a ser. Fala-se de mil formas sobre uma mesma situação.
As marcas, as sensações, os signos vivenciados e estranhados no acontecimento, são configurados no
caso-pensamento como a afirmação da memória de elementos escolhidos-inventados e que pretendem
deflagrar uma problematização. Entende-se que os encontros com o usuário acolhido pelo CR-GHC
podem ajudar a problematizar a condição ética e os limites que a rede de saúde encontra quando entra
em contato com as pessoas em situação de rua. A utilização do caso-pensamento pretende explicitar a
intensidade do tema problematizado, a saber, as tensões constitutivas pelas quais a rede de saúde está
prestes a passar no desafio do cuidado em saúde junto às populações em situação de rua.
Tal ética e limite, aqui expostos, se passam no sentido de oferecer um serviço de saúde no qual, a
partir das intervenções, exista um investimento afetivo por parte dos profissionais que, muitas vezes,
têm dificuldade em lidar com essa carga relacional, extrapolando ou não a noção de cuidado profissional
e humanizado, acolhendo ou não afetos investidos na situação. Por ser um serviço desprovido de uma
casa para centralizar suas ações – de ordem itinerante e com uma temporalidade singular em relação à
lógica instituída no cuidado –, há um sofrimento pela angústia inerente a tal prática desterritorializada.
É claro que investimento afetivo e angústia se processam em qualquer relação profissional em saúde,
entretanto, trabalhar com essas populações e com o que elas demandam invoca um investimento
“afetivo” que parece peculiar a esse serviço, pois tal trama de cuidado ocorre em lugares inesperados,
em tempos ora acelerados e ora vagarosos, com pessoas a quem os serviços não viam. Por que não
viam? Este é o afeto (affectio) como um aprender e sentir por “afecção”, não o mesmo que o afeto
(affectus) relativo a um possível sentimento de ternura.

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Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS

Qual foco para sustentar o cuidado?

Sepé não sabe há quanto tempo se encontra em situação de rua – há três anos habita os escombros
de uma antiga UBS. Seu cotidiano envolve catar latinhas e outros tipos de lixo para poder revender e se
sustentar. Vida difícil, sob sol e chuva quando está trabalhando, e com uma escuridão noturna (por falta
de luz) no lugar em que reside, onde só percebe as sombras daqueles que por ali passam pela
madrugada na intenção de achar um lugar abandonado para o consumo de drogas.
Sepé não fuma, somente bebe uma pinga. Por vezes, fica trêmulo se, ao catar o material reciclável,
não utiliza um pouco desse energético. Contudo, perto do que se percebe em outros atendimentos,
parece que o álcool de todos os dias não é algo que o prejudique de maneira preocupante. Não é um
uso “problemático”, mesmo que excessivo. Ao menos não é o foco atualmente.
Foco... Essa é uma das problemáticas que se enfrenta no atendimento às pessoas em situação de
rua. Como focar a atenção em saúde num sujeito que apresenta diversas necessidades de cuidado?
Cuidado em álcool e outras drogas, cuidados básicos em relação a feridas e outras lesões, depressão,
agressividade e surtos, e cuidados de ordem social, como confecção de documentos, albergagem/
habitação e renda.
O “foco” atual em relação ao Sepé está voltado para os resultados de seus exames de HIV e
tuberculose, que deram positivo. Dentre outras ações de cuidado, se está trabalhando para recuperar
uma parte de seus direitos civis ao se confeccionar sua certidão de nascimento, bem como o contato
com sua família no interior. Há um forte trabalho e tensionamento junto à equipe básica de saúde,
alojada ao lado de onde reside, e que, até então, fechava os olhos para o seu acolhimento, assim como
para o restante da população de rua que está ao seu redor, nas bordas da cidade e da sociedade.
Sociedade que “deixa morrer” nos dias de hoje de maneira muito próxima “ao fazer morrer” da época
do poder soberano, como diria Foucault10. Contudo, tal prática, atualmente aprimorada, se passa de
maneira discreta, sutil, eliminando quem não está regulamentado, quem está submetido aos vários
descasos que perpassam as práticas de cuidado em saúde10. Em defesa da sociedade ainda continuamos
a matar quem a ela não se agrega!
Voltando ao “foco”, pode-se comentar que a equipe de saúde é tensionada em relação ao
investimento “afetivo” de cuidador em relação à pessoa acolhida, experimentando, muitas vezes,
angústia e sofrimento. Nas diversas intervenções realizadas pelo CR-GHC, em certos momentos,
ultrapassam-se os limites do que e para que cuidar requerido pelo usuário, onde o cuidador acaba
transparecendo sentimentos de raiva, frustração e ansiedade na tentativa de resolução. O cuidador sofre
com a condição de completo desamparo do usuário em situação de rua, sente necessidade de resolver
tal problemática o mais rápido possível, e acaba atropelando o tempo daquele a quem “acolhe”. Os
cuidadores, atravessados pela lógica do cuidado prescritivo em saúde, têm ações que prezam pela
objetividade e resolutividade.
Que resolução seria essa? Resolução daquilo que o usuário requer ou daquilo que os cuidadores,
balizados pelo saber da saúde, imaginam ser o correto? Ainda mais em se tratando de pessoas que
romperam quase que totalmente com os contratos sociais, vivendo de maneira distante de toda lógica
que os cuidadores compartilham em seu mundo. Como acessar esse outro espaço-tempo tão distante
da urbanidade de uma “cidade segura e saudável”? Existe a possibilidade de se deixar contaminar por
uma lógica outra de sentidos, a do cotidiano dos moradores de rua?
Difícil responder... Somente no acolhimento experimentado ao longo das “abordagens” é que se
percebem as sutilezas, as impossibilidades de se “conectar” com os usuários e as possíveis aberturas
que vão compondo aprendizados ou enunciando o que há por se desenvolver na medida em que o
cuidador entrega seu corpo para esse tipo de encontro. É nessa abertura de corpo para o outro que o
próprio trabalhador do CR pratica novas formas de cuidado até então não visibilizadas e com as quais
passa a processar encontros de maneira inventiva. É num acompanhar afetivo que se torna possível
“ressignificar a existência do sujeito, criando modos de subjetivação inéditos”11 (p. 55), ponto de
inflexão entre os afetos do cuidador e do sujeito em situação de rua. Contato tomado em apreensão
corporal que faz reverberar, um no outro, quantas de potência de vida, emergência de um bom
encontro, troca afetiva que ponha os corpos em movimento de composição.

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CONSULTÓRIO DE/NA RUA: ...

Numa das abordagens com Sepé, essa tensão do desejo transpareceu com a proposta de uma
intervenção combinada na equipe do CR-GHC. A intervenção estava pautada em fazer um exame de
tuberculose que poderia ser realizado na rua, junto ao locus de Sepé, e que já estava demorando a
acontecer. Porém, as coisas não saíram da forma esperada, como conta uma das cuidadoras:

“Fomos até sua casa, onde nos recebeu de maneira acolhedora. Fui apresentada pelo colega
como a técnica de enfermagem que coletaria o seu escarro para fazer o exame de
tuberculose. Explicamos o procedimento, mas ele ficou apreensivo. Pedimos que bebesse
água, mas ficou dando desculpas e parecia receoso.
Sepé pediu camisinha, pois estava acompanhado e chamou sua companheira para vir até a
porta. Como a conhecia, dei um abraço nela e conversamos um pouco. Depois de algum
tempo, retomamos a ideia de fazer a coleta com o Sepé, porém não estava convencido.
Conversamos sobre o Raio X alterado que precisava da confirmação por via do exame,
questionamos se tinha emagrecido nos últimos dias ou se tinha suor noturno. Respondeu
que a noite transpirava muito. Informamos que poderiam ser sintomas de tuberculose.
Referia não ter tosse nem catarro. Havia almoçado há pouco e tinha medo de vomitar se
fizesse o exame.
As horas passavam e logo tínhamos que ir embora, assim a pressão por fazer o exame ficava
maior. Sepé começou a fazer, ficou agitado, trêmulo e sudorético. Percebi que não
conseguiria, pois estava muito ansioso. Tentei tranquilizá-lo, perguntei se queria sentar-se,
toquei em seu braço e ele disse que estava bem. Afirmei que não faríamos o exame naquele
momento.
Senti minha consciência pesar por ter insistido tanto em fazer algo que para mim era
simplesmente inspirar, expirar e escarrar no pote, mas que para ele soava como algo
apavorante. Estava mais preocupada em confirmar a suspeita de doença do que acolher o
medo pronunciado em relação à coleta de escarro.
Ficamos conversando por alguns instantes e falei que às vezes precisamos dizer não para o
outro quando não queremos fazer algo. Ele, então, nos disse que nem seu pai, que já estava
morto, nem sua família, nem ninguém se preocupava como o meu colega que todas as
semanas o visitava acompanhando-o nos serviços e percorrendo a rede com ele.
Conversamos mais um pouco, ele relaxou, sentindo-se melhor. Depois desse insucesso, ao
menos no que diz respeito à coleta de exame, orientamos que se conseguisse coletar o
escarro no pote fornecido, poderia entrar em contato com nosso serviço ou com a UBS ao
lado de sua casa. Despedimo-nos e fomos embora”. (diário de campo, março de 2012)

Essa intervenção faz pensar a forma impactante como as pessoas dizem não ao que se propõe em
termos de cuidado, por vezes, expressando-se agressivamente, outras passando mal. Quanto dessa
forma tem a ver com a nossa atitude de propor ou, talvez, de delicadamente impor certo/s cuidado/s?
Será que agem assim porque acham que não entendemos o que realmente desejam? Se dissessem o
que almejam, os cuidadores entenderiam? Parece necessário desenvolver certa sensibilidade de
acolhimento para conectar a subjetividade do usuário, mesmo que sem palavras. É importante estar
atento à maneira com a qual é proposta uma oferta de cuidado, de maneira que ela seja compatível
para com o usuário, não a escuta para fins de convencimento quanto aos exames, medicamentos e
procedimentos que julgamos importantes para o ‘seu’ bem-estar.
Outra questão produzida a partir dessa intervenção é que Sepé colocou que não se importava com a
doença ou com suas consequências, pois morrer todos morreríamos. Entretanto, Sepé foi capaz de
tentar fazer algo que não queria em razão do receio que tinha de opor-se a alguém que demonstrava
preocupação por ele (todos morrerão, mas ele ainda não o quer...). Será que os objetivos do CR em
oferecer um serviço de cuidado em saúde inclusivo são compatíveis com o querer do usuário (o “seu”
não morrer)? E se ele quiser apenas ser importante para alguém (o “seu” estar vivo), ele terá de ficar
participando de ações que não quer? Esta é a única maneira de conseguir certa atenção? Até quando?

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Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS

E, se não atender as expectativas da equipe de saúde, o usuário será deixado de lado porque não
cumpre as combinações sobre o cuidado (então pode/deve morrer)?

Conclusões e confluências das ruas: o sensível do instante!

Encontros sensíveis estes ocorridos na rua e que remetem a questionamentos que percorrem o
imaginário angustiante de todos que compartilham dessa proposta de cuidado. É importante salientar, no
caso-pensamento apresentado, o momento da abordagem ao usuário em que a cuidadora, por um
instante, reflete sobre o que estava propondo. Faz pensar quanto os profissionais como um todo
deveriam ter mais momentos de pausa em meio às intervenções. Pausa que dá guarida ao outro, pois,
nas pausas, produzimos maior proximidade com os usuários – com sua intimidade, com seus
significados. Nesses instantes de desaceleração, em que o sensível emerge sob o que se encontrava
instituído, parece que os cuidadores se colocam ao lado daqueles que estão a cuidar, numa
“composição” de cuidados.
Essa seria a perspectiva do cuidado alteridade-centrado, que se passa numa “zona mestiça, capaz de
escapar ao limite disciplinar das profissões e de se expor à alteridade com os usuários”, permitindo
produções inéditas12 (p. 261). Instantes de coragem que nos autorizam a adentrar em uma lógica
caotizada ao invés do lugar habitado pelas normas disciplinares e formações demasiadamente duras de
“profissional”. Talvez, na correria das intervenções, na urgência requerida pela lógica prescrita do
cuidado que atravessa a ação em saúde, perca-se o senso do acompanhar e do compartilhar questões
com aquele em necessidade de atenção e acolhimento.
Os momentos de pausa são, justamente, os instantes em que se freia o tempo arraigado na lógica
prescrita, oportunizando a produção de outro tipo de escuta. Isso é difícil, a limitação é o sentimento
que mais abarca os profissionais, pois não se conseguem respostas imediatas, necessitando-se aguardar
para compor com o tempo do outro, o que limita certa intervenção programada em saúde.
Cuidado em composição ao invés da lógica costumeira que tenta sempre organizar o tempo dos
pacientes a partir dos saberes profissionais. Não à toa, muitos usuários resistem ao acolhimento
oferecido – ficam impacientes – e, de certa forma, dentro da lógica em que vivem, têm um ato de
saúde ao resistir ao que lhes “invade”, mesmo que seja na melhor das intenções. Infelizmente – e por
incrível que pareça –, essa resistência e reação ativa dos usuários aparece como agressão gratuita a ser
combatida e contida sem a carga de compreensão para com o contexto de vida ali instalado. Na rua,
tanto o CR como a rede de saúde necessitam da exposição, do fora, do outro lado, da surpresa, do
estranhamento, do reverso ou do ‘inverso’ ou do ‘em verso’, composição “poiética” do cuidado.

Colaboradores
O autor Mário Francis Petry Londero foi o responsável pela pesquisa junto aos
trabalhadores do Consultório na Rua, recolhendo e analisando os diários de campo
que foram escritos para a produção do artigo. Luiz Fernando Silva Bilibio foi
responsável por supervisionar as intervenções e escritas da pesquisa do então residente
Mário Francis Petry Londero, onde também colaborou com a escrita. Ricardo Burg
Ceccim foi responsável por avaliar o texto resultante da pesquisa para aprovação do
então residente Mário Francis Petry Londero em seu TCR, colaborando com o
fechamento do artigo, sugerindo e enriquecendo o texto final.

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CONSULTÓRIO DE/NA RUA: ...

Referências
1. Merhy EE. Anormais do desejo: os novos não humanos? Os sinais que vêm da vida
cotidiana e da rua. In: Conselho Federal de Psicologia. Grupo de Trabalho de Álcool e
outras Drogas. Drogas e cidadania: em debate. Brasília, DF: CFP; 2012. p. 9-18.
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população de rua e o desafio para políticas de saúde. Saude Soc. 2004; 13(1):56-69.
3. Romaní O. Políticas de drogas: prevención, participación y reducción del daño. Salud
Colect. 2008; 4(3):301-18.
4. Sindicato Médico do Rio Grande do Sul. Consultórios de rua: apenas marketing. Vox
Med. 2012; 11(60):14-5.
5. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de Saúde Mental. Consultórios de Rua
do SUS: material de trabalho para a II Oficina Nacional de Consultórios de Rua do SUS.
Brasília, DF: EPSJV-Fiocruz; 2010.
6. Bilibio LFS. Por uma alma dos serviços de saúde para além do bem e do mal:
implicações micropolíticas à formação em saúde [tese]. Porto Alegre (RS): Universidade
Federal do Rio Grande do Sul; 2009.
7. Merhy EE. Desafios de desaprendizagens no trabalho em saúde: em busca de
anômalos. In: Lobosque AM, organizadora. Cadernos Saúde Mental 3. Belo Horizonte:
ESP/MG; 2010. p. 23-36.
8. Siegmann C, Fonseca TMG. Caso-pensamento como estratégia na produção de
conhecimento. Interface (Botucatu). 2007; 11(21):53-63.
9. Deleuze G. O atual e o virtual. In: Alliez E, organizador. Deleuze: filosofia virtual. São
Paulo: 34; 1996. p. 47-58.
10. Foucault M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976).
2a ed. São Paulo: WMF, Martins Fontes; 2010.
11. Kupermann D. A libido e o álibi do psicanalista: uma incursão pelo diário clínico de
Ferenczi. Pulsional Rev Psicanal. 2003; 16(168):47-57.
12. Ceccim RB. Equipe de saúde: a perspectiva entre-disciplinar na produção dos atos
terapêuticos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Cuidado: as fronteiras da
integralidade. Rio de Janeiro: Abrasco; 2004. p. 259-78.

Londero MFP, Ceccim RB, Bilibio LFS. Consultorio de/en la calle: desafío para el cuidado
de la salud en verso. Interface (Botucatu).
Este articulo discute prácticas de cuidado del “Consultorio de/en la calle”, un servicio
delineado en el Sistema Brasilleño de Salud destinado a la atención de las personas que
viven en la calle. La intención es problematizar las estrategias de acogida y de cuidado
de la salud, así como las directrices o valores de este trabajo que muchas veces no
concuerdan entre sí, como las acciones programadas de rastreo y autoridad moral sobre
personas que viven en la calle y las acciones disruptivas del modelo urbano de ciudad
saludable y segura para una fuerte inclusión de personas que viven en esa situación.
Como recursos de análisis están los diarios de campo escritos por los trabajadores de
uno de estos consultorios, localizado en Porto Alegre, Brazil, que en su cotidiano
recorren las calles y las redes de salud e intersectorial con todas sus dificultades y
puntos fortes.
Palabras clave: Consultorio de/en la calle. Red de atención psicosocial. Red de atención
básica a la salud. Personas que viven en la calle.

Recebido em 26/08/13. Aprovado em 17/02/14.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO


Saúde em Debate
ISSN: 0103-1104
revista@saudeemdebate.org.br
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Brasil

Dorsa Figueiredo, Mariana; Onocko Campos, Rosana


Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede
multicêntrica
Saúde em Debate, vol. 32, núm. 78-79-80, enero-diciembre, 2008, pp. 143-149
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=406341773014

Como citar este artigo


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ARTIGO ORIGINAL I ORIGINALARTICLE 143

Saúde Mental e Atenção Básica à Saúde:


o apoio matricial na construção de uma rede multicêntrica
Mental Health andprimary health care:
the matrix support building a multicentric net

"En medio de la marafia, Dios, la arafia':

Mariana Dorsa Figueiredo I


A1ejandra Pizarnik
Rosana Onocko Campos 2

1Mestre; doutoranda em Saúde RESUMO Neste artigo discute-se a inserção da Saúde Mental na Atenção Bdsica
Coleriva pelo Departamento de como uma das necessidades atuaispara a continuidade da Refàrma Psiquidtrica,
Medicina Preventiva e Social da
considerando que a atenção em Saúde Mental deve serfeita dentro de uma rede
Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas ampla e interligada de cuidados capaz de agenciar as demandas dos usudrios. Em
(DMPSI FCMI UNlCAMI'). seguida, éproblematizado oapoio matricial como arranjo de gestãopara organizar
madorsa@hormail.com
as ações de Saúde Mental na Atenção Básica esua potencialidade como disparador
da ampliação da clínica das equipes interdisciplinares para as dimensões subjetiva
2 Doutora em Saúde Coleriv3;

professora do DMPS/FCM/UNICAMI'. e social dos sujeitos, a fim de produzir uma assistência resolutiva à saúde.
rosanaoC@mpc.com.br
PALAVRAS-CHAVE: Gestão; Saúde Mental; Atenção bdsica à saúde; Apoio
matricial.

ABSTRACT ln this article, it is argued the insertion 01Mental Health in the


basic system, as one 01the current necessities fór the continuity 01the Psychiatric
Refórm, considering that the attention to Mental Health must be made inside
an ample and linked net 01cares. After that, the matrix support is analyzed as a
powerful management arrangement to organize the actions 01Mental Health in
the basic attention and as a triggerfór the amplification olthe clinic in the health
teams, in order to produce a more resolute assistance to the health system.

KEYWORDS: Management; Mental Health; Primary health care; Matrix


support.

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80, p. 143-149. jan.ldt."Z. 2008


144 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

INTRODUÇÃO disciplinar, por meio de wna rede inrerligada de serviços


de saúde, a qual permira a arriculação das ações que, em
Saúde Menral, é uma necessidade inquesrionável.

Uma rede ou um emaranhado?


Duranre as últimas duas décadas, a implemenração UMA REDE MULTICÊNTRICA
do modelo dos Cenrros de Atenção Psicossocial (CAPS)
tem sido o principal investimento da política de Saúde Considerando a complexidade das demandas em
Mental no Brasil. O processo de extensão da cobertura Saúde Mental, há atualmente uma grande discussão
desses serviços demonstra a crescenre e inrensiva difusão sobre a necessidade de arricular a assistência prestada
da rede substitutiva de Saúde Menral pelo país, numa nos CAPS com outros serviços de saúde, equipamentos
trajetória frutífera de teversão do modelo assistencial cen- sociais e a rede social nos territórios, na construção de
trado no hospital psiquiátrico para um modelo baseado no
uma diversidade de possibilidades de produção de saúde,
restabelecimento das relações afetivas e sociais dos sujeitos
desenvolvimento da autonomia e fortalecimento dos
e na reconquista de seu poder social. Com o desafio de
vínculos sociais.
desconstruir conceitos sobre a loucura e romper com as
Ainda que a clínica das psicoses e das neuroses
formas de tratamento já há muito tempo arraigadas na
graves esteja baseada em cuidados intensivos de especifi-
lógica sanitária hegemônica (AMARANTE, 2001), o modelo
cidade de equipamentos como os CAPS (TEN6RJo, 2002),
dos CAPS ganhou grande visibilidade no decorrer da Refor-
a Atenção Básica rem um imporrante papel no processo
ma Psiquiátrica brasileira, ocupando wn lugar de destaque
de reinserção social, já que está imersa nos territórios e
na reorganização da assistência em Saúde Mental.
é, afinal, um espaço de produção de saúde, tanto para os
Porém, essa rede de atenção à doença mental grave,
usuários, quanto para suas famílias. Além disso, atende
ainda que inserida no rol das políticas públicas de saúde
a uma diversidade de demandas em Saúde Mental e
e alinhada aos princípios do SUS, veio se constituindo
de forma bastante afastada da rede de Atenção Básica é o espaço de promoção, prevenção e tratamento dos

à saúde, resultando num cerro descompasso entre as principais problemas de saúde. A questão mencionada

práticas de Saúde Mental e as práticas de saúde em sua aqui vai além da definição de qual serviço deveria se

acepção mais ampla. Essa configuração traz desdobra- incumbir das demandas de maior gravidade, se os CAPS

mentos imporrantes para o SUS, enquanto sistema ou a Atenção Básica, também, e está na relação a ser

unificado e integral, assim como para a eficácia ranto da construída entre os dois tipos de serviços.

Atenção Básica, quanto dos CAPS, devido a dificuldade O Ministério da Saúde, em sua Portaria 336, define
de estabelecer parcerias necessárias para uma atenção que um CAPS deve:
resolutiva em Saúde Mental.
Uma atenção integral, como a pretendida pelo SUS, responsabilizar-se { ..} pela organização da demanda
e da rede de cuidados em saúde mental no âmbito do
só poderá ser alcançada através da troca de saberes, prá-
seu território e{ ..} desempenhar opapel de regulador
ticas e de profundas alterações nas estrururas de poder da porta de entrada da rede assistencial. (BRASIL,
estabelecidas, instiruindo uma lógica do trabalho inter- 2004, p. 126).

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 145

Ora, se os CAPS forem considerados ordenadores da miséria em que se encontra a maior parte da população
rede, como propõe o Ministério, não estará se reiterando brasileira, sobretudo na periferia das grandes cidades, se
o foco nesse equipamento e o seu isolamento em relação traduz em condições de existência favoráveis às dificul-
àquela rede ampla e entrelaçada de saúde que é tanto dades afetivas, emocionais e relacionais.
almejada? Neste caso, seria mais apropriado trabalhar Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)
com O conceito e imagem de uma rede multicêntrica, os problemas de Saúde Mental respondem por 12% da
em que o CAPS pode funcionar como agenciador das carga mundial de doenças (OMS, 2001). No Brasil, o
demandas em Saúde Mental, mas no qual, por outro Ministério da Saúde avalia que cerca de 3% da popula-
lado, cada um dos atores sociais e serviços envolvidos ção apresenta transtornos mentais severos e necessita de
na atenção se destacam, em determinado momento, de cuidados contínuos, intensivos (específicos dos CAPS).
acordo com O andamento do Projeto Terapêutico de cada Nove por cento da população apresenta transtornos
usuário, tendo uma rede que permita o entrelaçamento mentais leves e de 6 a 8% apresentam transtornos de-
das ações e relações. Uma rede pulsante e viva, que se correntes do uso prejudicial de álcool e outras drogas,
movimente para dar sustentação às necessidades dos pelos quais a Atenção Básica que deve responsabilizar-se
usuários, que seja sem centralidade, porém suficiente (BRASIL, 2003).
para agenciar as demandas dos usuários, e se transformar Existe, ainda, um componente subjetivo associado
em um suporte efetivo para as dificuldades que esses ao processo de adoecimento. Muitas vezes ele atua como
, . entrave ao tratamenro, à adesão as práticas preventivas e
usuanos possuem.
Assim, destaca-se a necessidade da integração dos até mesmo como intensificador da doença. Por exemplo,
serviços, há casos com uns entre os serviços, ou si tuações uma pessoa que já não vê tanto valor na vida e não mais
que dizem respeito tanto aos CAPS quanro à Atenção se importa se o cigarro potencializa sua doença cardíaca;
• A _ • A •
Básica. Seria o caso do usuário do CAPS, aquele da ou o paciente com cancer que nao encontra reslstenCla
região de abrangência de determinada equipe da UBS para enfrentar a doença. Esses casos poderiam se bene-
ou o garoto usuário de drogas que em dado momento ficiar com a ampliação da clínica das equipes do PSF
precisa de uma contensão de crise. Nestas situações é (CAMPOS, G.WS., 2003).
fundamental a articulação dos serviços, a discussão do Atualmente, o desenvolvimento do PSF na rede de
caso comum e o envolvimenro dos diversos arores no Atenção Básica vem tencionando a incorporação das
caso em q uestao. - dimensões subjetiva e social na prática clínica, através
É emergente a discussão sobre a inserção da Saúde do princípio da atenção integral ao sujeito e por meio
Mental no Programa de Saúde da Família (PSF), já do vínculo, a fim de propiciar maior resolutividade
que tem sido crescente a demanda pela atenção aos aos problemas de saúde. Isso faz com que as equipes
transrornos psíquicos leves, mais prevalentes, manifestos se deparem cotidianamente com problemas de Saúde
geralmente sob a forma de queixas somáticas e 'nervosas', Mental. Uma pesquisa do Ministério da Saúde mostra
transtornos de ansiedade, quadros depressivos, relacio- que 56% das equipes de PSF referem realizar 'alguma
nados a problemas sociais e familiares, decorrentes do ação de Saúde Mental' (BRASIL, 2003), ainda que essas
abuso de psicotrópicos. Para além destes transtornos, equipes nem sempre estejam capacitadas para lidar com
são diversos os problemas advindos das faltas concretas esta demanda. Por outro lado, por sua proximidade
na vida, geradas pela ordem socioeconâmica vigente. A com as famílias e as comunidades, elas se constituem

Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80. p. 143-149. jan.ldt."Z. 2008


146 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

num recurso estratégico para o enfrentamento do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008) aprovou a criação
sofrimento psíquico. dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Similar
Além disso, a OMS e o Ministério da Saúde esti- ao modelo do apoio matricial que ora apresentamos, os
mam que quase 80% dos usuários encaminhados aos NASF são compostos por profissionais de diferentes áreas
profissionais de Saúde Mental não trazem, a priori, especializadas as quais atuarão no apoio às Equipes de
uma demanda específica que justifique a necessidade Saúde da Família, ampliando a abrangência das ações e
de uma atenção especializada (BRASIL, 2003). É o caso resolutividade dessas equipes.
da senhora que se costuma denominar 'poli-queixosà,
e que representa uma demanda freqüente para a Aten-
ção Básica. Se for ampliada a escuta, é possível deparar
com sua existência pobre de sentido, com a ausência de O APOIO MATRICIAL: IMBRICANDO SAÚDE
espaços de convivência, lazer e trabalho. Nesses casos, E SAÚDE MENTAL
o empreendimento de longos processos psicoterápicos
e a administração de antidepressivos são insuficientes
"Onde a brasa mora e devora o breu
como únicas respostas, sendo preciso mobilizar outros
Como a chuva molha o que se escondeu
dispositivos de atenção, disparadores de produção de O seu olhar melhora o meu"
vida, de fortalecimento da auto-estima e de sociabilidade Arnaldo Antunes e Paulo Tatit
(CAMPOS; NASCIMENTO, 2003).
Assim, na continuidade da Reforma Psiquiátrica Na proposta de Campos (1999), profundas refor-
... ..
e para propIcIar maIOr conSlstenCla as Intervençoes
-,,','
mas estruturais seriam necessárias para produzir saúde
em Saúde Mental, torna-se fundamental desenvolver com maior grau de resolutividade e desalienar os tra-
estratégias que modulem a inserção da Saúde Mental balhadores em relação ao objetivo de seu trabalho. O
na Atenção Básica, promovendo a interlocução entre autor propõe uma rotação dos organogramas, de modo
os diferentes profissionais e serviços de saúde e qualifi- que os antigos departamentos especializados (outrora
cando as equipes de Saúde da Família para uma atenção verticais) passam a ser horizontais, oferecendo apoio
ampliada em saúde que contemple a subjetividade e o especializado às equipes interdisciplinares.
conjunto de relações sociais que determinam desejos, Essas equipes, denominadas pelo autor como
interesses e necessidades, conforme Gastão Wagner de Equipes de Referência, têm como princípio a adscri-
Souza Campos (2000; 2003). ção de clientela, garantindo um sistema de referência
Campos (1999) propôs, ainda, a reorganização da e valorizando o vínculo entre profissionais e usuários.
Atenção Básica, a partir do arranjo de gestão denominado A relação terapêutica, horizontal no tempo, passa en-
por ele como apoio matricial. Esse arranjo permite se inse- tão a ser a linha reguladora do processo de trabalho.
rir a Saúde Men tal e outras áreas especializadas na Atenção Assim, toda vez que o usuário procura o serviço, ele
Básica, ao mesmo tempo em que opera como disparador é atendido por sua Equipe de Referência, o que per-
da ampliação da clínica das equipes locais de saúde. Trata- mite o acompanhamento do processo saúde/doença/
se de uma importante discussão na atualidade, já que a intervenção (CAMPOS, 1999). Gradativamente, isto es-
estratégia do apoio matricial foi recentemente incorporada timula a responsabilização pela produção de saúde, pois
em nível nacional a partir da Portaria nO 154, na qual o quando o usuário passa a ter um nome e uma história,

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan.ldez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menral e Atençáo Básica à Saúde: o apoio matricial na construção de uma rede mulricênrrica 147

a implicação da equipe rende a aumentar e as resposras ciplinar. A rransdisciplinaridade que, no sentido dado
profissionais a serem menos esrereoripadas. As Equipes por Passos e Barros (2000) é urna das grandes apostas
de Referência, porranro, seriam responsáveis por realizar do apoio matricial.
os projeros rerapêuricos, promovendo, assim, o vínculo
e a responsabilização. A noção de transdisciplinaridade subverte o eixo de
sustentação dos campos epistemológicos, graças ao efeito
Dessa forma, o apoio marricial seria uma ferramen-
de desestabilização {..} da unidade das disciplinas e
ra para agenciar a indispensável insrrumentalização das dos especialismos. (p. 76).
equipes na ampliação da clínica', subverrendo O modelo
médico dominanre que se rraduz na fragmentação do A Saúde Mental sai do eixo das especialidades e passa
rrabalho e na produção excessiva de encaminhamentos, a compor a rede matricial de apoio. Consumi uma linha
muiras vezes desnecessários, às diversas especialidades, de interseção entre as diferentes áreas, a fim de superar a
segundo Rosana Onocko Campos (2003). lógica da especialização e da fragmentação do trabalho e
O apoio marricial se configura como um suporre romper com o sistema de referência e contra-referência,
récnico especializado (CAMPOS, 1999) que é oferrado a que produzem encaminhamenros consecutivos para as
uma equipe inrerdisciplinar de saúde, a fim de ampliar diferentes especialidades e que se traduzem em desrespon-
seu campo de amação e qualificar suas ações. Ele pode sabilização pela produção de saúde (CAMPOS, 1999).
ser realizado por profissionais de diversas áreas especia- A parrir de discussões clínicas conjuntas, apoio para
lizadas, mas esramos romando aqui a especificidade da a construção de projeros terapêuricos ou mesmo inter-
Saúde Mental, considerando que as questões subjerivas venções conjuntas concretas com as equipes (consultas,
transpassam quaisquer problemas de saúde e devem ser visiras domiciliares, entre outras), os profissionais matri-
abordadas em roda relação rerapêutica. ciais podem contribuir para o aumento da capacidade
A proposta é que os profissionais possam aprender a resoluriva das equipes, qualificando-as para uma arenção
lidar com os sujeiros em sua complexidade, incorporan- ampliada em saúde que contemple a complexidade da
do as dimensões subjeriva e social do ser humano, mas vida dos sujeiros.
que esrejam acompanhados por alguém especializado Os atendimentos conjuntos com o profissional ma-
que lhes dê suporre para compreender e intervir nesre rricial têm uma imporrante função pedagógica, já que as
campo. No apoio matricial da Saúde Mental, conhe- equipes podem aprender in loco a inrervir no campo da
cimentos e ações, hisroricamente reconhecidos como Saúde Mental e se aurorizar nas ações que nem sempre
inerentes à área 'psi', são oferrados aos profissionais de cabem nos prorocolos, lidando com situações de exclu-
saúde de uma equipe, de modo a auxiliá-los a ampliar são social, violência, luro, as mais diversas perdas, que
sua clínica e a sua escuta, a acolher o sofrimenro psí- não devem ser encaminhadas e sim acolhidas durante a
quico e a lidar com a subjetividade dos usuários. Seria própria consulta clínica. Ou ainda quando se trata de um
uma oferta do núcleo profissional 'psi' ao campo dos usuário de referência do CAPS que está em tratamenro na
profissionais de saúde (CAMPOS, 2000), na construção Atenção Básica: muitas vezes, os profissionais sentem-se
de um novo saber, um saber que se pretende transdis- inseguros para lidar com pacientes psicóticos ou com

ICampos, G. WS. (2003) denomina clínica ampliada, uma resignificação da clínica tradicional, de modo a deslocar sua ênfase na doença para cenrrâ-Ia num
sujeiro concreto e singular, porrador de cerra enfermidade. Ampliar a clínica significa que os profissionais possam aprender a lidar com os sujeiros em sua tota-
lidade, considerando o biológico como dererminanre do processo saúde e doença, mas rambém incorporando em suas práticas as dimensões subjetiva, social e
cultural como outros determinanres.

Smidum ~bnt~, Rio de Janeiro, v. 32, n. 7809/80, p. 143-149, jan.ldez.. 2008


148 FIGUEIREDO, M.O.; CAMPOS, R.O. • Sallde Mental e Atenç.ío Básica 11. Saúde: o apoio matricial na cOllsrruçáo de lima rede mulricêntrica

quadros psiquiátricos mais graves e o atendimenro Segundo Campos (1999), essa reordenação do
conjunto com O apoiador matricial pode proporcionar desenho institucional da rede de Atenção Básica per-
um encontro desmistificador do sofrimento psíquico e mite que a complexidade da vida dos sujeitos e de suas
da doença mental, ajudando a diminuir O preconceito necessidades seja trazida para o coletivo e possa ser
e a segregação da loucura. enfrentada através do trabalho conjunto, favorecendo
Nesse sentido, o trabalho na lógica matricial permi- a gestão do processo de trabalho e a formação de outra
te distinguir as situações individuais e sociais, comuns subjetividade profissional, centrada no diálogo e na
à vida cotidiana, que podem ser acompanhadas pela transdisci plinaridade.
Equipe de Referência e por outros recursos sociais do No entanto, deve-se reconhecer que a mudança
entorno, daquelas demandas que necessitam de uma da lógica de trabalho proposta pelo apoio matricial
atenção especializada da Saúde Mental a ser oferecida não é fácil de ser assumida pelas equipes e não ocorre
na própria Unidade Básica pelos profissionais matriciais automaticamente. Ela deve ser especificamente traba-
ou de acordo com o risco, vulnerabilidade e gravidade, lhada junto às equipes, instalando espaços destinados
pelo CAPS da região de abrangência. Pretende-se, com à reAexão e análise crítica sobre o próprio trabalho, e
isso, produzir co-responsabilização entre Equipe de que possam ser continentes aos problemas na relação
Referência e profissionais matriciais, de modo que o entre a equipe, aos preconceitos em relação à loucura,
encaminhamento preserve o vínculo e possa ser feito à dificuldade de entrar em contato com o sofrimento
de forma dialogada. do outro e à sobrecarga trazida pela lida diária com
Assim, é possível promover a eqüidade e o acesso, a pobreza e a violência. Todas essas questões podem
garantindo coeficientes terapêuticos de acordo com as dificultar o trabalho com o apoio matricial, se os pro-
vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário, fa- fissionais não tiverem espaços de reAexão e formação
vorecendo a construção de novos dispositivos de atenção permanentes para processá-las, que sejam capazes de
em resposta às diferentes necessidades dos usuários e a realimentar constantemente a potencialidade do apoio
articulação entre os profissionais na elaboração de proje- matricial, enquanto arranjo transformador das práticas
tos terapêuticos pensados para cada situação singular. hegemônicas na saúde.
O apoio matricial, portanto, provoca e explicita Assim, afirmamos a importância de espaços
uma intensa imprecisão das fronteiras entre os diversos coletivos em que se possa agenciar uma rede na qual
papéis e as diversas áreas de atuação profissional. Quando saúde e Saúde Mental sejam tomadas como instân-
as questões subjetivas não se encaixam na rigidez dos cias interligadas e complementares. Uma rede que,
diagnósticos, como as dificuldades afetivas e relacionais, sobretudo, incite o movimento de acordo com as
a capacidade maior ou menor de enfrentar os problemas necessidades sociais e de saúde das pessoas às quais
cotidianos, a potência do apoio matricial está justamente ela se destina. Uma rede efetiva de ajuda e socorro ao
em desfazer a delimitação entre as diferentes disciplinas e usuário da Saúde Mental e não uma teia na qual ele
tecnologias, e, através das discussões de caso e da regulação fique preso, sem acesso, perdido nos emaranhados da
de Auxo, evitar práticas que levam à 'psiquiatrização' e à desresponsabilização, uma rede de salvamento e não
'medicalização' do sofrimento humano. de captura e impotência.

Stltid~ ~m Debau, Rio de Janeiro, 1/. 32. 11. 78/79/80, p. 143-149, jan./dez. 2008
FIGUEIREDO, M.D.; CAMPOS, R.O. • Saúde Menml e Atençáo Básica à Sallde: o apoio mauiciaJ na consrruçáo de uma rede multicêntrica 149

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Sll1,dum D~bau, Rio de Janeiro, v. 32. n. 78/79/80. p. 143-149. jan.ldt.oz. 2008


ARTIGOS

ALÉM DAS PORTARIAS: DESAFIOS DA POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL1


*
Cristina Amélia Luzio
#
Silvio Yasui

RESUMO. O presente trabalho pretende analisar algumas portarias da Política Nacional de Saúde Mental implementadas no país no
período de 1990/2006, pois elas se constituíram em importantes dispositivos para induzir mudanças do modelo assistencial na Saúde
Mental. Aponta-se para os documentos mais relevantes e destacam-se suas consequências e problemas para a construção da atenção
psicossocial. Ao final, conclui-se que o avanço da Reforma Psiquiátrica brasileira não pode ficar descolado de ações no interior do SUS.
Dessa forma, os gestores de saúde, ao lado dos demais segmentos da sociedade, passaram a ser atores importantes na utilização dos
recursos contidos na nova legislação de fato voltados para a construção de um novo modo de cuidado na saúde mental que possibilite o
reposicionamento do sujeito no mundo, considerando-se sua dimensão subjetiva e sociocultural.
Palavras-chave: Política de saúde; reforma psiquiátrica; atenção psicossocial.

BEYOND THE GOVERNMENTAL DECREES: THE CHALLENGES


OF MENTAL HEALTH POLICY

ABSTRACT. The present work intends to analyze some of the Governmental decrees of the National Mental Health Policy
implemented in the country in the 1990/2006 period, so they establish themselves in important devices to induce changes in
Mental Health´s care model. It indicates to the most relevant document and highlights its consequences and problems for the
construction of psychosocial care. It was concluded at the end that the advancement of Brazilian Psychiatric Reformation is
increasingly linked to the construction and consolidation of the Unified Health System (SUS). In this way, the health
managers, along with the others segments of society, had started to be important actors in the use of the resources contained
in the new legislation actually focused on the construction of a new way of care in the mental health that makes possible a
new position of the citizen in the world, considering its subjective, social and cultural dimension.
Key words: Health policy; psychiatric reform; psychosocial care; mental health.

MÁS ALLÁ DE LAS NORMAS: LOS DESAFÍOS DE LA POLÍTICA DE SALUD MENTAL

RESUMEN. Este trabajo pretiende analizar algunas Normas de la Política Nacional de Salud Mental practicadas en el país en
el período de 1990/2006, puesto que ellas se constituyeron en importantes dispositivos para inducir a cambios del modelo
asistencial en la Salud Mental. Se señalan los documentos más relevantes y se destacan sus consecuencias y problemas para la
construcción de la atención psicosocial. Al final se concluye que el avance de la Reforma Psiquiátrica brasileña se acerca
cada vez más a la construcción y consolidación del Sistema Único de Salud (SUS). De tal manera, los encargados de la salud,
al lado del los otros segmentos de la sociedad, habían comenzado a ser agentes importantes en el uso de los recursos
contenidos en la nueva legislación se vuelven hacia la construcción de una nueva manera del cuidado en la salud mental y eso
él hace posible el nuevo lugar del ciudadano en el mundo, considerándose su dimensión subjetiva y sociocultural.
Palabras-clave: Política de salud; reforma psiquiátrica; atención psicosocial; salud mental.

1
Texto elaborado a partir das teses de doutorado dos autores e uma versão revista e ampliada da exposição no III Congresso
Internacional e IX Semana de Psicologia - coletividade e subjetividade na Sociedade Contemporânea nos dias 18 a 21 de
setembro de 2007. Maringá-Pr, no período de 18 a 21 de setembro de 2007.
*
Psicóloga, Doutora em Saúde Coletiva. Professora da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista/Assis.
#
Psicólogo, Doutor em Saúde Pública. Professor da Faculdade de Ciências e Letras, da Universidade Estadual Paulista/Assis.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 1, p. 17-26, jan./mar. 2010


18 Luzio e Yasui

Foi em um cenário desfavorável de ampliação organizada e realizada após intensas pressões e já sob
global das políticas econômicas neoliberais que, o quadro de crise institucional que conduziria o
paradoxalmente, a Reforma Sanitária foi se presidente Collor ao seu impeachment, no ano de
consolidando como uma política pública ao longo da 1992. O lema não oficial daquela conferência, retirado
década de 1990, com a criação de práticas inovadoras de um documento preparatório, foi: A Ousadia de
que fortaleceram a implantação do Sistema Único de Fazer Cumprir a Lei.
Saúde (SUS). Paralelamente, alguns governos Mesmo após o impeachment de Collor, a política
municipais procuraram construir uma nova rede de econômica continuou a seguir o modelo de reforma
serviços e cuidados que oferecessem possibilidades de neoliberal imposto pelos organismos internacionais. É
prestar a atenção psicossocial, implantando e nesse quadro economicamente desfavorável e de
implementando as propostas da Reforma Psiquiátrica, retrocesso em relação aos avanços conquistados na
até então apenas um intenso movimento social década de 80 que a Reforma Sanitária foi
constituído por trabalhadores da saúde mental. As implementando um de seus mais relevantes eixos do
experiências inovadoras e exitosas realizadas em SUS: a descentralização.
algumas cidades inspiraram e influenciaram a Levcovitz, Lima e Machado (2001) afirmam que,
configuração de um novo desenho da política, por apesar das diferenças nas análises, há um consenso
intermédio de vários mecanismos e instrumentos sobre os avanços no âmbito da descentralização em
institucionais. saúde predominante no Brasil, caracterizando-a como
O Ministério da Saúde, a partir de 1990, editou sendo do tipo político-administrativo, envolvendo a
várias Portarias, tanto para modificar a sistemática de transferência da esfera federal para a esfera estadual e
remuneração das internações psiquiátricas, visando a a municipal não apenas de serviços, mas também de
reduzir o tempo de internação, como para criar outros responsabilidades, poder e recursos. Ressaltam,
procedimentos relativos à saúde mental, além das porém, que a descentralização “não garante o caráter
internações e consultas ambulatoriais, dando início à democrático do processo decisório e necessita ainda
atual Política Nacional de Saúde Mental.
do fortalecimento das capacidades administrativas e
O presente artigo pretende apresentar em qual
institucionais do governo central na condução do
contexto de implantação do SUS as portarias da
processo” (Levcovitz, Lima & Machado, 2001, p.
Política Nacional de Saúde Mental foram publicadas e
272).
analisar as principais portarias implementadas no país
Destarte, consolidação do SUS requer a existência
entre 1990/2006, pois se constituíram em dispositivos
de mecanismos de regulação que dêem conta do
para introduzir mudanças do modelo assistencial em
dinamismo desse processo. Nesse sentido, as Normas
Saúde Mental.
Operacionais Básicas, que tratam dos aspectos de
divisão de responsabilidades, relações entre gestores e
A DÉCADA DE 1990: A BUSCA DA MUDANÇA DO critérios de transferência de recursos federais para
MODELO ASSISTENCIAL estados e municípios, passaram a representar
instrumentos fundamentais para a concretização da
No Brasil, a década de 1990 começou com a descentralização estabelecida pela Constituição e
posse do governo do presidente Fernando Collor de constante na legislação do SUS.
Mello, que logo apresentou os aspectos que marcariam Tal processo colocou em cena milhares de
a sua administração: início da implementação da gestores municipais de saúde que passaram a se
política neoliberal, retardando o avanço da Reforma constituir, por vontade própria, ou compulsoriamente,
Sanitária, que havia obtido importantes conquistas nos por força da função que exerciam, em atores
anos anteriores. fundamentais no campo da saúde. O Conselho
Como exemplo dessas conquistas podemos citar a Nacional de Secretários Municipais de Saúde
aprovação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8080), (CONASEMS), o Conselho Nacional de Secretários
aprovada graças a uma intensa mobilização e Estaduais de Saúde (CONASS) e os Conselhos
articulação das forças políticas em favor da Reforma Estaduais de Secretarias Municipais de Saúde
Sanitária. Contudo, todos os artigos referentes à (COSEMS), passaram a desempenhar um importante
participação social foram vetados, obrigando a uma papel, especialmente a partir de 1994, ano em que
nova mobilização e à aprovação de uma nova lei, a Lei foram constituídas as Comissões Intergestores
8142, que dispõe sobre a realização das Conferências Bipartites, reunindo municípios e governos estaduais,
de Saúde e sobre os Conselhos de Saúde, tornando-os e a Comissão Intergestores Tripartite, reunindo
obrigatórios. A IX Conferência Nacional de Saúde foi municípios, governos estaduais e o governo federal.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 1, p. 17-26, jan./mar. 2010


Desafios da política de saúde mental 19

No âmbito dos municípios, a descentralização Psicossocial (NAPSs) e Centros de Atenção


fortaleceu a constituição dos Conselhos Municipais de Psicossocial (CAPSs); hospital-dia de psiquiatria;
Saúde, órgãos colegiados, de composição paritária serviço de urgência psiquiátrica em hospital geral;
entre representantes do governo e da sociedade, com a leito ou unidade psiquiátrica em hospital geral; e
função de controlar e deliberar sobre as questões hospital especializado em psiquiatria (Brasil, 2004).
referentes à implantação e implementação das ações Essa portaria cumpriu o importante papel de ser o
de saúde do SUS. São mecanismos de participação e documento de orientação e referência, nos sistemas
controle popular, buscando democratizar as relações locais de saúde, de implantação dos novos serviços
entre o Estado e a sociedade. substitutivos. Embora contivesse limitações, a Portaria
A descentralização colocou o Ministério da Saúde 224/92, junto com outras portarias publicadas nos
e as secretarias municipais e estaduais de saúde como anos subsequentes, que estabeleciam diferentes
os principais atores indutores do processo da Reforma remunerações das autorizações de internação
Sanitária, deslocando os movimentos sociais para um hospitalar do SUS (AIH-SUS), de acordo com uma
papel secundário. A definição do arcabouço jurídico- classificação em termos de adequação às exigências
legal e da engenharia institucional, associada à mínimas de funcionamento, foi um instrumento de
questão sempre problemática do financiamento, fiscalização dos hospitais psiquiátricos, levando ao
transformou esse complexo processo em uma questão descredenciamento de centenas de leitos e de hospitais
administrativo-gerencial. A lógica do financiamento e pelo País.
da administração ocupou um lugar de destaque, na O desenho institucional proposto por essa Portaria
agenda das mudanças. era de uma organização da assistência em saúde
Nesse contexto, a Reforma Psiquiátrica se mental segundo a lógica da hierarquização por níveis
construiu mediante a articulação dos novos serviços de assistência. Na descrição do NAPS/CAPS, que
com outros segmentos dos movimentos sociais, tais surge como um procedimento do SIA/SUS, a Portaria
como as associações de usuários e familiares, ONGs, colocava aqueles serviços como “unidades de saúde
sindicatos, etc. Essa estratégia estabeleceu uma locais/regionalizadas, que contam com uma população
diferença, principalmente nos anos noventa, entre a adstrita definida pelo nível local e que oferecem
Reforma Psiquiátrica e a Reforma Sanitária: por um atendimento de cuidados intermediários entre o regime
lado, ocupou espaços no aparelho estatal e por outro ambulatorial e a internação hospitalar(…)” (Brasil,
manteve uma identidade de movimento social, por 2004, p. 244). Assim, os NAPSs/CAPSs deveriam
meio do Movimento da Luta Antimanicomial e das compor uma rede assistencial constituída de diversas
associações de usuários. Nutrindo-se das cotidianas unidades que tinham entre si uma relação hierárquica,
questões que surgiam no embate da construção da incluído o hospital psiquiátrico. Não há, na Portaria,
transformação da assistência, a Reforma Psiquiátrica nenhuma menção a serviços substitutivos ou a uma
se atualizava, também, com as questões sociais de seu mudança de modelo assistencial; e – o que é mais
tempo histórico. relevante, do ponto de vista da remuneração - não se
A ocupação dos espaços no interior do aparelho caracterizava como um serviço, uma unidade, e sim
estatal guiou-se pelas mesmas trilhas da Reforma como um procedimento. Dessa forma, vários
Sanitária, com os mesmos riscos e problemas. No ambulatórios de saúde mental se credenciaram com o
contexto da descentralização e da municipalização, a “procedimento NAPS/CAPS”, mas continuaram
transferência de recursos financeiros da saúde mental atendendo como um ambulatório. Houve uma
se destinava apenas à internação e às consultas ampliação do “menu” de ofertas de tratamento.
ambulatoriais. Serviços altamente complexos e Amarante e Torre (2001) destacam que essa
modelos de propostas assistenciais, como o Centro de Portaria iguala experiências distintas, os CAPSs e os
Atenção Psicossocial (CAPS) e os Núcleos de NAPSs, cujas inspirações teórico-conceituais e
Atenção Psicossocial (NAPS), não existiam para o técnico-assistenciais foram diferentes, tornando-as
SUS. apenas uma modalidade de serviço, aparentemente
Em janeiro de 1992 foi publicada a Portaria n.º advinda de modelos idênticos, perdendo-se a
224/92, a qual reafirmava os princípios do SUS, pluralidade contida naqueles dois sistemas.
estabelecia diretrizes, regulamentava o funcionamento Entre as diferenças que caracterizam as
de serviços de saúde mental existentes à época e instituições CAPS e NAPS podem-se salientar alguns
fixava normas para: equipes de saúde mental em aspectos. O CAPS foi implantado como um serviço
unidades básicas de saúde e centros de saúde; intermediário entre o ambulatório e a internação
ambulatórios de saúde mental; Núcleos de Atenção psiquiátrica, funcionando em cinco dias da semana,

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 1, p. 17-26, jan./mar. 2010


20 Luzio e Yasui

por no máximo oito horas diárias, cuja proposta Por outro lado, foram realizados vários encontros
terapêutica era a de uma prática clínica centrada na nacionais do Movimento da Luta Antimanicomial, os
vida cotidiana da instituição, de modo a permitir o quais o fortaleceram enquanto movimento social,
estabelecimento de uma rede de sociabilidade para firmando-o como um dos condutores do processo de
fazer emergir a instância terapêutica. Buscava transformação da Reforma Psiquiátrica nos campos
inspiração essencialmente na análise institucional, na assistencial, cultural e conceitual e mantendo um
psiquiatria de setor. distanciamento crítico em relação à Política Nacional
O NAPS foi criado como um serviço substitutivo de Saúde Mental. O Movimento da Luta
ao hospital psiquiátrico, portanto para funcionar Antimanicomial (MLA) tem defendido uma posição
durante as vinte e quatro horas. Ficava responsável de independência em relação ao aparelho estatal, ainda
pelo atendimento integral à demanda de Saúde Mental que muitos de seus atores tenham sido gestores das
de uma região, principalmente aos casos graves, políticas municipais de saúde. É nessa condição que o
através de uma multiplicidade de ações, as quais MLA define sua participação, como representante do
tinham como objetivo a restituição do poder contratual segmento da sociedade civil, nas comissões de
do usuário, de modo a possibilitar a ampliação de sua reforma psiquiátrica criadas pelos Conselhos de Saúde
autonomia. Os NAPSs foram inspirados nos vários níveis de governo.
essencialmente na experiência da psiquiatria Nesse período ocorreram também diversos
democrática italiana. encontros nacionais de Usuários e Familiares de
Neste sentido podem-se observar, em ambas as Serviços de Saúde Mental. De maneira geral, tais
experiências, diferenças importantes quanto ao lugar encontros fazem contundentes críticas às práticas
da abordagem clínica nos serviços assistenciais. As terapêuticas segregadoras e invasivas – como, por
práticas criadas no NAPS decorriam de críticas exemplo, o eletrochoque –, bem como a defesa dos
severas à clínica psiquiátrica e psicológica como o direitos dos usuários.
encontro de identidades predefinidas, nas quais o Yasui (1999) destaca que tais encontros
médico e psicólogo são os detentores do saber e o consolidaram a entrada desses atores no cenário da
paciente um mero objeto e, portanto, responsáveis Reforma Psiquiátrica e reafirmaram seus princípios,
pela reprodução de poderes, de ideologias e de uma vez que modificavam a posição de objeto dos
doenças. As práticas desenvolvidas no CAPS usuários, construída historicamente pelas políticas
sustentavam-se também na crítica dessa visão de públicas e pelas práticas psiquiátricas.
clínica e procuravam a construção de uma clínica Em síntese, a partir de inúmeras experiências
ampliada como encontro, capaz de produzir sentidos municipais inovadoras, associadas às reflexões e às
(Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003). propostas operadas pelo Movimento Reforma
Cumpre, não obstante, repetir que, mesmo assim, Psiquiátrica, foi possível propiciar sua maior
foi um passo fundamental. Por ser um documento do visibilidade e sua disseminação entre os gestores,
Ministério da Saúde, a Portaria 224/92 deu profissionais, usuários e a sociedade civil. Além disso,
legitimidade e legalidade a importantes experiências houve avanços no processo de transformação da
que estavam ocorrendo e possibilitou que estas fossem atenção em Saúde Mental nos campos assistencial,
financiadas pelo SUS. jurídico e cultural, com base na construção de um
Ainda em 1992, foi realizada a II Conferência projeto de atenção em Saúde Mental com
Nacional de Saúde Mental (II CNSM). Precedido de características radicais e na criação de normas de
etapas municipais, regionais e estaduais, o evento fiscalização, vistoria e qualificação dos hospitais
contou com o envolvimento direto de cerca de vinte psiquiátricos. A Reforma Psiquiátrica igualmente se
mil pessoas. As deliberações contidas em seu relatório consolidava como um movimento reivindicatório de
estão em sintonia com as transformações ocorridas até transformações que ultrapassavam as especificidades
aquele momento na assistência em Saúde Mental da área.
(Conselho Regional de Psicologia- 6ª Região/SP, Tal situação provocou reações contrárias nos
1997). setores dominantes, principalmente entre os donos dos
Muitas propostas elaboradas na II CNSM se hospitais psiquiátricos. Esses grupos ampliaram os
concretizaram na edição de portarias ministeriais e na campos de sua ação, até então voltadas para atividades
criação da Comissão Nacional da Reforma de lobistas nos corredores do poder. Procuraram
Psiquiátrica, fatos que representaram a conquista de construir estratégias de ocupação dos espaços
estratégicos espaços institucionais, transformando a coletivo-públicos. Uma das estratégias adotadas por
Reforma Psiquiátrica em uma política pública oficial. esse segmento foi a ampliação da participação de seus

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 1, p. 17-26, jan./mar. 2010


Desafios da política de saúde mental 21

representantes nas instâncias responsáveis pela Essa portaria exige igualmente um projeto
definição dos princípios e diretrizes para Saúde terapêutico centrado nas necessidades do usuário da
Mental, especialmente nas conferências de Saúde Saúde Mental, com o objetivo de desenvolver sua
Mental em suas diferentes etapas e nos Conselhos de autonomia em sua vida cotidiana e sua consequente
Saúde, em seus diversos níveis. reinserção social, bem como garantir os direitos dos
Por outro lado, o grupo das indústrias usuários em geral, estabelecendo, ainda, normas e
farmacêuticas também tem procurado adaptar-se a critérios para a inclusão desses serviços no SUS.
esse novo cenário político-assistencial. Não tem Embora represente um importante instrumento
medido esforços para mostrar sua adesão ao lema “Por para os municípios poderem consolidar e ampliar suas
uma Sociedade sem Manicômio”. Alguns laboratórios redes de atenção psicossocial, essa portaria recebeu
farmacêuticos realizam concursos com produção dos muitas críticas.
usuários de serviços de Saúde Mental e propõem Os representantes dos empresários da assistência
verbas para o patrocínio de eventos identificados com psiquiátrica, temendo o deslocamento dos recursos
a luta antimanicomial. financeiros das internações para as residências
Essas reações contrárias ou de aparente adesão terapêuticas e a consequente perda da sua fonte de
encontram muitas vezes aliados em outros campos, ganhos fáceis, apontavam, entre outros problemas,
como, por exemplo, a resistência dos segmentos para o risco da desassistência dos usuários internados.
contrários ao SUS, a resistência dos trabalhadores a Os representantes do Poder Judiciário, juízes e
aderir e realizar as transformações no interior das promotores, questionavam a legalidade de passar aos
instituições de Saúde Mental e a resistência cultural a usuários o dinheiro destinado anteriormente à
romper com a lógica manicomial. internação. Influenciados ainda pela cultura da
De maneira geral, pode-se afirmar, a partir dos exclusão da doença mental e da periculosidade da
acontecimentos até aqui destacados, que o confronto pessoa considerada doente mental, receavam que esse
de posições, embora possa reativar a inércia do novo serviço ferisse os direitos tanto dos usuários
instituído, possibilitou a emergências de novos atores como da sociedade. Essa mesma cultura manicomial
e novos caminhos e a construção de ações permeia as reações da população, pois muitos
transformadoras. municípios que implantaram as residências
terapêuticas têm encontrado resistências dos
moradores vizinhos. Finalmente, muitos gestores e até
A ENTRADA NO SÉCULO XXI: mesmos trabalhadores responsáveis diretos pela
CONCRETIZANDO A ATENÇÃO PSICOSSOCIAL implantação dos novos serviços, não assumem a
criação das residências terapêuticas, nem mesmo
Nos primeiros anos do século XXI a Política reconhecem nelas um recurso terapêutico importante
Nacional de Saúde Mental manteve seu processo de para a atenção em Saúde Mental (Luzio, 2003).
consolidação por intermédio do Ministério da Saúde, Em 2001, durante as comemorações do Dia
que continuou criando novas portarias e resoluções, Mundial da Saúde, cujo tema foi Saúde Mental:
ampliando e aumentando a complexidade da rede de Cuidar, sim. Excluir, não, o Congresso Nacional
serviços. Assim foi publicada, em fevereiro de 2000, a aprovou, depois de mais de dez anos de intensa
Portaria n.º 106/2000, propondo a criação, no âmbito
discussão, a Lei n.º 10.216, que dispõe sobre a
do SUS, de serviços residenciais terapêuticos. Como
proteção e os direitos das pessoas portadoras de
uma estratégia de inserção social, as residências
transtornos mentais, redirecionando o modelo
terapêuticas devem constituir
assistencial em Saúde Mental.
uma modalidade assistencial substitutiva da Embora saudada como a lei da Reforma
internação psiquiátrica prolongada, de Psiquiátrica, seu texto final está muito distante do
maneira que, a cada transferência de paciente saudável radicalismo do projeto original, de autoria do
do Hospital Especializado para o Serviço de deputado Paulo Delgado, aprovado em 1989, o qual
Residência Terapêutica, deve-se reduzir ou propunha claramente a “extinção progressiva do
descredenciar do SUS, igual nº. de leitos manicômio e sua substituição por outros serviços”.
naquele hospital, realocando o recurso da Neste, tínhamos uma proposta de substituição de
AIH correspondente para os tetos
modelo e, na lei sancionada em 2001, a substituição
orçamentários do estado ou município que se
responsabilizará pela assistência ao paciente transforma-se em proteção de direitos e
e pela rede substitutiva de cuidados em redirecionamento. A mudança não foi apenas
Saúde Mental (Brasil, 2000, p. 49). semântica, mas de essência. Transformada em um

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texto tímido, a lei aprovada mantém a estrutura porte/complexidade e abrangência populacional”; o


hospitalar existente, regulando as internações CAPS passou a ser o articulador central das ações de
psiquiátricas, e apenas acena para uma proposta de saúde mental do município ou do modulo assistencial,
mudança do modelo assistencial. de acordo com a Norma Operacional de Assistência à
Também, naquele mesmo ano, foi publicada a Saúde (NOAS).
Portaria 469/GM, em 6 de abril, alterando a A forma de financiamento foi alterada, passando
sistemática de remuneração dos procedimentos de este a ser realizado mediante o processo de
internação em hospital psiquiátrico. Além disso, entre Autorização de Procedimentos de Alto Custo
outras providências, propunha um processo de (APAC). Dessa forma, os recursos disponíveis para o
avaliação denominado Programa Nacional de pagamento dos procedimentos do CAPS não estão
Avaliação do Sistema Hospitalar (PNASH, 2002). contidos nos tetos financeiros dos estados e
Embora essa portaria tivesse como uma de suas municípios e funcionam como recursos “extrateto”.
justificativas a necessidade de qualificação técnica dos Se, por um lado, esse modelo de financiamento
serviços de internação psiquiátrica, assim como a representou um avanço, já que colocou a proposta de
melhora de seus indicadores de qualidade, pela mudança de modelo assistencial, implícita no CAPS,
valorização dos hospitais menores, observa-se que ela como uma política de relevância e uma ação
permitiu a manutenção dos macro-hospitais estratégica do Ministério da Saúde, por outro lado
psiquiátricos, apontando apenas que estes deveriam, trouxe problemas, porque mantém a mesma lógica de
futuramente, integrar-se a um programa de produtividade, ao remunerar atos vinculados a um
humanização e reestruturação (Brasil, 2001). determinado diagnóstico psiquiátrico de um indivíduo,
Ainda em 2001 aconteceu a III Conferência ignorando toda uma série de ações realizadas no
Nacional de Saúde Mental, em Brasília. O relatório âmbito do território, previstas na Portaria 336/02, tais
final é extenso e a leitura de seus itens já demonstra a como a supervisão de unidades hospitalares, o apoio
complexidade em que se transformou o campo da matricial a equipes da Atenção Básica, a articulação
Reforma Psiquiátrica. Os aspectos mais importantes e com outros setores e segmentos sociais, etc. Continua-
as questões mais polêmicas estão contemplados em se a financiar a doença e não a promoção da saúde.
suas páginas, tais como: a reorientação do modelo Se, ao longo dos anos 1990, a Reforma
assistencial em Saúde Mental pautada em uma Psiquiátrica manteve uma estreita relação com os
concepção de saúde compreendida como processo, na movimentos sociais, no raiar deste novo milênio
perspectiva de produção de qualidade de vida, começa a padecer do mesmo mal que acometeu a
enfatizando ações integrais e promocionais de saúde; Reforma Sanitária. O processo de institucionalização
política de recursos humanos, salientando a relevância da Reforma Sanitária, por um lado, foi um passo
da formação e a valorização e importância do importante e decisivo para a consolidação de um
trabalhador de saúde mental na produção dos atos de projeto de saúde que se contrapõe ao modelo
cuidar; acessibilidade, reafirmando a meta de garantia hegemônico, mas, por outro lado, esse processo
de equidade de acesso a todos os serviços de saúde do encaminhou a Reforma Sanitária para longe dos
SUS aos portadores de transtorno mental, movimentos e das organizações sociais, deslocando
incorporando-a nas agendas de saúde e na seu principal foco de luta da sociedade civil para o
programação das ações de saúde; direitos e cidadania, interior do aparelho estatal. Stotz (1994) afirma que o
ressaltando a prioridade para a formulação de políticas Estado passa a ser visto como um sujeito diante do
que fomentem a autonomia dos portadores de qual se situam outros sujeitos, estes despojados de
transtornos mentais, incentivando, desse modo, o suas encarnações sociais e de poder para produzir a
exercício de cidadania plena, no lugar de iniciativas política pública. Tem-se a impressão de que os
tutelares, além de propostas sobre financiamento e principais atores estão nos gabinetes ministeriais,
controle social (Brasil, 2002). produzindo normas e portarias, e não mais nas forças
Em 2002, como consequência da III CNSM, uma vivas da sociedade, nas instituições e nos serviços,
nova portaria foi publicada, a 336/02, com importantes como ativos protagonistas políticos.
diferenças em relação à anterior: abandonou o termo Essa ênfase nos processos de regulação como
NAPS, propondo um novo modelo de assistência, indutores da política do SUS transforma a
definindo o CAPS como “serviço ambulatorial de potencialidade criativa e transformadora daqueles
atenção diária que funcione segundo a lógica do atores em uma servidão às normas e portarias. Não há
território”; criou três diferentes tipos: “CAPS I, CAPS mais oposição, tensão, questionamento - pelo
II e CAPS III, definidos por ordem crescente de contrário, as críticas, geralmente oriundas dos setores

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Desafios da política de saúde mental 23

acadêmicos, passam a ser vistas como ataque ou vista dos gestores municipais, a Portaria 336/2002
obstáculo a um processo que, ao se institucionalizar, vem despertando grande interesse, muito mais como
perdeu a sua dimensão histórica, parecendo obedecer fonte de captação, para a saúde, de recursos fora do
apenas a uma lógica de administração dos recursos teto do que pela mudança do modelo assistencial.
financeiros disponíveis e afetando de maneira danosa Essa velocidade pode induzir a um perigoso e
o modelo assistencial. Sérgio Arouca sublinha a crucial equívoco: o CAPS ser considerado e
urgente necessidade de se retomarem os princípios implantado como mais um serviço de saúde mental,
básicos do SUS, entre eles o conceito de saúde/doença isto é, uma unidade isolada, em que se executam em
ligado ao trabalho, ao saneamento, ao lazer e à cultura, nível ambulatorial ações próprias de profissionais. O
o que implica discutir “a saúde não como política do CAPS é um dispositivo no contexto da mudança do
Ministério da Saúde, mas como uma função de Estado modelo assistencial em Saúde Mental, e como tal,
permanente”. Arouca destaca o dano das políticas deve articular as instâncias de cuidados em Saúde
econômicas ao SUS da seguinte forma: Mental desenvolvidas na Atenção Básica em saúde, no
Programa de Saúde da Família, na rede de
O modelo assistencial é anti-SUS. Aliás, o ambulatórios e nos hospitais, bem como as atividades
SUS como modelo assistencial está falido, de suporte social, como trabalho protegido, lazer,
não resolve nenhum problema da população. residências terapêuticas e atendimento das questões
Essa lógica transformou o governo num
previdenciárias e de outros direitos. Neste sentido, é
grande comprador e todas as outras
instituições em produtores. A Saúde virou mais do que um serviço: é uma estratégia de mudança
um mercado, com produtores, compradores e do modelo de assistência que inclui necessariamente a
planilhas de custos. O modelo assistencialista reorganização da rede assistencial a partir de uma
acabou universalizando a privatização lógica territorial, o que significa ativar os recursos
(Arouca, 2002, p.19). existentes na comunidade para compor e tecer as
múltiplas estratégias de cuidado implícitas nessa
Campos (1997) já alertava, no início dos anos 90, proposta. Além disso, mais do que reorganização, tal
para a necessidade de se repensar a Reforma Sanitária, estratégia se relaciona intimamente com uma proposta
recolocando a importância do cotidiano dos serviços, política de organização e de assistência à saúde
com seus processos de trabalho e de gestão, com seus (Brasil, 2002).
atores com necessidades, potencialidades e demandas, Outra consequência do relatório da III CNSM foi
enfim, com sua micropolítica como estratégia de o início do processo de avaliação dos hospitais
transformação. psiquiátricos, através do Programa Nacional de
A Reforma Psiquiátrica se ressentiu desse mesmo Avaliação do Sistema Hospitalar (PNASH). O MS
problema. A sua institucionalização transformou o editou a Portaria n.º 251/GM, de 31 de janeiro de
Ministério da Saúde em seu principal ator e indutor- 2002, e a Portaria n.º 77, de 01 de fevereiro de 2002,
chefe dos ritmos e dos rumos do processo. Parece não começando o processo de avaliação e reclassificação
haver mais espaço para experiências que não sigam os dos hospitais psiquiátricos, o qual teve como objetivo
parâmetros estabelecidos nas portarias, que, melhorar a qualidade do tratamento aos usuários
ironicamente, têm como inspiração as experiências do internados, de modo a viabilizar maior remuneração
CAPS e dos NAPSs, as quais trazem a marca da para os hospitais que prestavam melhores serviços
invenção e da criação que se construíram e obtiveram (Brasil, 2004).
seu reconhecimento antes dessas regulações. Os hospitais psiquiátricos integrantes do SUS
Se a Portaria 224/92 incentivou a criação de foram avaliados por intermédio do
diversas unidades assistenciais espalhadas pelo país - PNASH/psiquiatria, no primeiro semestre de 2002,
muitas com o nome de NAPS ou de CAPS - que sob a responsabilidade dos Grupos Técnicos de
acabaram por se transformar em sinônimos de Organização e Acompanhamento das Ações
unidades assistenciais de vanguarda, a Portaria Assistenciais das Secretarias Estaduais, com a
336/02, em função da mudança no financiamento, está participação de outros profissionais convocados por
contribuindo para a ampliação do número de CAPSs decisão do gestor local. A metodologia do processo
em um ritmo muito mais veloz. No período de 1992 a contemplou a avaliação do gestor e dos usuários. A
2001 o número de serviços credenciados como avaliação do gestor consistia na análise de
NAPS/CAPS subiu de 22 para 295, enquanto o informações e documentos e vistoria criteriosa
número de CAPSs credenciados até o ano de 2.006 realizada pela equipe técnica, acompanhada pela
atingiu a marca de 1.011 (Brasil, 2007). Do ponto de direção dos hospitais. A avaliação dos usuários foi

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24 Luzio e Yasui

feita pela equipe técnica, por meio de entrevistas com fazer avançar a Reforma Psiquiátrica no SUS. O
os pacientes de longa permanência e com alta redirecionamento dos recursos, sendo de competência
hospitalar recente (Brasil, 2002). dos estados e municípios, deslocou o espaço político
Por fim, no período de 2002 a 2006, diversas de negociação para os fóruns do SUS, como, por
outras portarias foram publicadas, e, consolidando o exemplo, o Conselho Municipal de Saúde, o Conselho
programa das residências terapêuticas, foi promulgada Estadual de Saúde, comissões bipartites e tripartites.
a Lei 10.708/2003, que instituiu o auxílio-reabilitação Neste sentido Capistrano Filho (2000) enfatiza:
psicossocial para pessoas acometidas de transtornos “Temos que entender que lutamos para isso e vamos
mentais egressos de internações. Também destacamos: ter que travar essa batalha cultural, social e política
a Portaria 52/2004, que dispõe sobre o Programa pelo avanço da Reforma Psiquiátrica de município a
Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar município. (...) porque é lá, sobretudo (...) municípios
Psiquiátrica, no SUS, e reafirma a política de redução que têm a chamada gestão plena, que vamos poder
de leitos (Brasil, 2004); a Portaria GM 245/2005, que avançar, independente das variações das políticas
cria um incentivo financeiro para os municípios que federal ou estaduais, o processo da Reforma
estão implantando o CAPS (Brasil, 2005a); a Portaria Psiquiátrica (...)” (Capistrano Filho, 2000, p. 24-5).
Interministerial 353/2005, que nomeia o Grupo de Por outro lado, o avanço não pode restringir-se ao
Trabalho de Saúde Mental e Economia Solidária
âmbito das ações e dos mecanismos administrativos ou
(Brasil, 2005b); a Portaria 1174/2005, que institui o
regulatórios, pois é urgente a necessidade de
Programa de Qualificação dos CAPSs, possibilitando
transformação do modelo assistencial. O novo modo
que a equipe pudesse contar com supervisão clínico-
de cuidado na saúde mental deve orientar-se pela
institucional (Brasil, 2005c); a Portaria 678/2006, que
institui a Avaliação, Monitoramento, Supervisão e superação do paradigma doença/cura e colocar entre
Apoio Técnico aos Centros de Atenção Psicossocial e parênteses a doença mental (o diagnóstico e todo o
outros serviços da rede pública de saúde mental do aparato de tratamento do modelo psiquiátrico),
SUS (Brasil, 2006a); e por fim, a Portaria entrando em contato com o sujeito para conhecê-lo em
Interministerial 3347/2006, que cria o Núcleo sua experiência-sofrimento, com a finalidade de
Brasileiro de Direitos Humanos e Saúde Mental possibilitar seu reposicionamento no mundo,
(Brasil, 2006b). considerando-se sua dimensão subjetiva e
Essas recentes portarias demonstram que a sociocultural (Rotelli, 2001).
construção da política pública de saúde mental, por Nessa perspectiva, outro aspecto a ser observado
um lado, está se ampliando, com uma preocupação em relação ao avanço da Reforma Psiquiátrica é que
com a qualificação das equipes e com a redução dos os novos serviços devem se constituir em rede, com
leitos psiquiátricos, e por outro, vai se tornando cada espaços que favoreçam um distanciamento adequado
vez mais complexa, apontando para ações que das condições de vida dos usuários em situação de
transcendem o âmbito da saúde. necessidade de proteção ou continência. Tornam-se
necessárias múltiplas ações terapêuticas e uma rotina
institucional ágil e plástica, capaz de responder ao
CONSIDERAÇÕES FINAIS pedido de auxílio do usuário ou dos seus familiares.
Como tal, essa rede de serviços deve situar-se em um
O avanço do processo de municipalização,
dado território e orientar-se pelos princípios da
principalmente com a implantação da NOB/96,
integralidade de ações e da intersetorialidade.
quando houve o deslocamento da condução e
Também é necessário que os diversos segmentos
gerenciamento das ações de assistência para os estados
da sociedade (gestores, trabalhadores de saúde,
e municípios, teve como consequência uma vinculação
do avanço da Reforma Psiquiátrica à criação e população em geral) possam conhecer os avanços em
consolidação do SUS. A superação do modelo termos de legislação referente à doença mental,
psiquiátrico tradicional e a construção de um novo permitindo aos usuários um tratamento eficaz, em que
modo de atenção em Saúde Mental não podem ficar sejam contemplados o exercício da cidadania, o acesso
descoladas de ações no interior do SUS. ao trabalho e a inclusão social. Para isso, ações
Dessa forma, as secretarias municipais de saúde, o voltadas a um melhor conhecimento da população
Conselho Estadual de Secretários Municipais de internada, submissão dos hospitais psiquiátricos aos
Saúde (COSEMS), o Conselho Nacional de serviços territoriais - via central de vagas - e
Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), fiscalização e avaliação continuada dos hospitais e de
entre outros, passaram a ser atores importantes para seus projetos terapêuticos são dispositivos

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Endereço para correspondência: Cristina Amélia Luzio. Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, Departamento de
Psicologia Evolutiva, Social e Escolar, Av. D. Antônio, 2100, Pq. Universitário, CEP 19806-
900, Assis-SP, Brasil. E-mail: caluzio@assis.unesp.br.

Psicologia em Estudo, Maringá, v. 15, n. 1, p. 17-26, jan./mar. 2010

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