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Medicalização e normalização da sociedade

Medicalization and normalization of society

Medicalización y normalización de la sociedade

Flavia Cristina Silveira Lemos


Geise do Socorro Lima Gomes
Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira
Universidade Federal do Pará (UFPA), Belém, PA, Brasil

Dolores Cristina Gomes Galindo


Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil

Resumo

Este artigo é um ensaio temático e teórico sobre as práticas de medicalização, a partir das
análises de Michel Foucault sobre poderes e saberes da disciplina e da biopolítica, em um
campo da bio-história e da normalização da sociedade. O texto apresenta alguns aspectos que
sustentam processos de medicalização por meio da racionalidade patologizadora dos corpos e
das relações sociais, culturais e subjetivas. A docilização da existência e a gerência da vida
passaram a fazer parte dos cálculos no biopoder, se tornando dispositivos de governo das
condutas, na sociedade contemporânea. Governar a vida em nome da expansão da mesma e
do aumento da saúde implica um ato permanente de organizar os corpos e a saúde deles, de
acordo com os critérios do Estado sobre saúde.

Palavras-chave: Medicalização; Biopoder; Norma; Sociedade; Governo.

Abstract

This article is a thematic and theoretical essay on the practices of medicalization, based on
Michel Foucault's analysis of the powers and knowledges of discipline and biopolitics, in a
field of bio-history and the normalization of society. The text presents some aspects that
support processes of medicalization through the pathological rationality of bodies and social,
cultural and subjective relations. The docilization of existence and the management of life
became part of the calculations in biopower, becoming devices of governance of the conduct
in contemporary society. Governing life in the name of expanding it and increasing health
implies a permanent act of organizing their bodies and their health, according to the state's
health points.

Keywords: Medicalization; Biopower; Standard; Society; Government.

Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 77


Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
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Resumen

Este artículo es un ensayo temático y teórico sobre prácticas de medicalización, basado en el


análisis de Michel Foucault de los poderes y el conocimiento de la disciplina y la biopolítica,
en un campo de la biohistoria y la normalización de la sociedad. El texto presenta algunos
aspectos que apoyan los procesos de medicalización a través de la racionalidad patologizante
de los cuerpos y las relaciones sociales, culturales y subjetivas. La docilización de la
existencia y el manejo de la vida se convirtieron en parte de los cálculos en biopoder,
convirtiéndose en dispositivos para conducir conductas en la sociedad contemporánea.
Gobernar la vida en nombre de expandirla y aumentar la salud implica un acto permanente de
organizar sus cuerpos y su salud, de acuerdo con los criterios de salud del Estado.

Palabras-clave: Medicalización; Biopoder; Estándar; Sociedad; Gobierno.

Introdução que, por volta do século XVII, vão


objetivar o corpo a partir de uma
Este artigo tem o objetivo de preocupação com a vida, no sentido de
problematizar as práticas medicalizantes, a buscar recursos, estratégias, técnicas que
partir da normalização da sociedade. garantam o prolongamento desta. Ao
Busca-se analisar como as normas são conjunto que se cria com esses propósitos,
acionadas para operar processos de o autor vai designar de biopoder. Este
medicalização social por meio da conceito por sua vez, abarca dois diferentes
anatomopolítica e da biopolítica, modos de investimentos políticos do poder
considerando os aportes de Michel sobre a vida: em nível individual e
Foucault no campo da Filosofia e da coletivo. Às intervenções individuais
História. Foucault (2005a) vai chamar de
anatomopolíticas e às intervenções
Anatomopolítica, bio-história e coletivas de biopolítica. As duas formas se
medicalização atravessam, mas na análise mais
pormenorizada, percebemos que estão
A história do corpo humano se imanentes em suas funções
confunde com a das intervenções sobre o particularizadas. Rabinow e Rose (2006,
mesmo. A esse respeito Foucault (2011d) p. 28) explicam essas especificações
vai chamar de bio-história, a história do realizadas pelo filósofo:
homem e da vida e suas implicações.
O conceito de biopoder serve para trazer à
Dentro dessa bio-história, situa o
tona um campo composto por tentativas
desenvolvimento de tecnologias de poder
mais ou menos racionalizadas de intervir
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sobre as características vitais da existência na biopolítica, os artefatos foram


humana. As características vitais dos seres
direcionados para a regulamentação da
humanos, seres viventes que nascem,
população por meio do controle das taxas
crescem, habitam um corpo que pode ser
treinado e aumentado e, por fim adoecem e de morbidade e mortalidade, no uso de
morrem. E as características vitais das estatísticas e cálculos probabilísticos sobre
coletividades ou populações compostas de os supostos riscos que a população
tais seres viventes. E, enquanto Foucault é padeceria. Essa bipolaridade do poder, por
de algum modo impreciso em seu uso dos
sua vez ancorava-se ou era proveniente de
termos no campo do biopoder, podemos
usar o termo “biopolítica” para abarcar
saberes diversos: a epidemiologia, a
todas as estratégias específicas e psicologia, a estatística, o direito, a
contestações sobre as problematizações da medicina, a pedagogia, a economia e
vitalidade humana coletiva, morbidade e
outros (Foucault, 2008i). Um desses
mortalidade, sobre as formas de
saberes corresponde ao campo da
conhecimento, regimes de autoridade e
práticas de intervenção que são desejáveis,
medicina, que teve maior notoriedade a
legítimas e eficazes. partir do século XVIII, com o
aperfeiçoamento de instrumentos para
Esses autores chamam a atenção explorar com mais exatidão o corpo
para as condições em que esses conceitos humano (Ortega & Zorzanelli, 2010).
foram sendo forjados por Foucault, uma Foucault (2011a, 2011b) vai
vez que nasceram baseados em estudos afirmar que essa intervenção médica a
históricos, específicos, não caracterizando nível biológico vai deixar na humanidade
conceitos “trans-históricos”, mas que um rastro de medicalização, ou seja, sob a
pontuavam determinadas práticas e tutela dos saberes médicos e saberes
acontecimentos. Assim, para o domínio da biológicos, uma diversidade de discursos
anatomopolítica, Foucault (2008d) estudou sobre higiene, condutas, saúde,
e descreveu as estratégias e os mecanismos comportamentos são produzidos e
empregados para obter maior eficiência integram uma rede capilar de
dos corpos individuais, garantindo ao medicalização, interferindo por sua vez na
mesmo tempo a docilidade do sujeito. construção de instituições, sistemas de
Os mecanismos disciplinares são limpeza, transporte, conservação, etc., até
confeccionados, espalhados em diversas que nada escape às suas teias.
esferas da sociedade, por meio do exame, Foucault (2011a) situa quatro
da sanção normalizadora e da vigilância. Já grandes processos que vão caracterizar a

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medicina do século XVIII: 1) o século XVIII. Antes disso, era um lugar


aparecimento de uma autoridade médica; com fins assistenciais para pobres, um
2) o surgimento de um campo de lugar para morrer, um mecanismo de
intervenção da medicina distinto da exclusão, de conversão espiritual, menos
doença; 3) introdução de um aparelho de médico. Foucault (2011c) evidencia que o
medicalização coletiva: o hospital; 4) hospital ganha uma função terapêutica a
introdução de mecanismos de partir de uma nova prática que consistia na
administração médica. No primeiro caso, comparação entre os hospitais por meio de
teremos um saber que expande sua “área visitas e observações sistemáticas. No
de conhecimento” tornando-se uma texto “A incorporação do hospital na
autoridade social a decidir questões tecnologia moderna” (2011c) vai falar mais
relativas a uma cidade, a um bairro, criação detalhadamente desse processo,
de instituições e regulamentos. É uma exemplificando como que esta instituição
prática da medicina vinculada ao Estado, vai mudar de função a partir da introdução
exemplificada pelo pensador, com o de mecanismos disciplinares no espaço
exemplo do que ocorreu na Alemanha: “A desordenado do hospital. E por fim, na
criação de funcionários médicos nomeados criação de mecanismos de administração
pelo governo com responsabilidade sobre médica, Foucault (2011b) vai dar como
uma região, seu domínio de poder ou de exemplos, registros de dados, comparações
exercício da autoridade de seu saber” estatísticas, que vão compor e endossar o
(Foucault, 2008a, p. 84). campo da medicalização. Todos esses
Na segunda característica vão se elementos fazem a medicina, considerada
tornar objetos da medicina o ar, a água, os uma prática individual, alcançar um
esgotos, as construções. Intervenções na alastramento totalmente novo,
regulação das cidades e de seu configurando-se agora como uma prática
funcionamento, que tem essas social. Há, para Foucault nesse momento,
características, maior dimensionadas na um desbloqueio epistemológico da
França, como uma medicina urbana ou medicina, em que se abrem,
medicina das coisas, como afirma Foucault
[...] as possibilidades da anatomia
(2011a). O hospital, como terceiro
patológica, da grande medicina hospitalar
elemento, sendo um sistema de
e dos progressos simbolizados pelos nomes
confinamento coletivo vai se tornar uma de Bichat, Laennec, Bayle etc. Por
instituição de medicalização a partir do conseguinte, a medicina se dedica a outros

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domínios diferentes dos da doença e que tudo que se considera como desvio ou
não são regidos pela demanda do paciente.
anomalias é capturado pela intervenção
Esse é um velho fenômeno que faz parte
médica, mesmo, como ressalta o autor, sem
das características fundamentais da
medicina moderna (Foucault, 2011b, p. nunca alguém ter dito que anomalia sexual
385). é uma doença. Trata-se, portanto, de
observarmos que tudo que se diz referente
Esse acontecimento vai ser definido à saúde, acabou se tornando objeto de
por Foucault como “medicalização intervenção médica. Assim, se o ar está
indefinida” uma vez que seu contaminado ou não, se a organização
direcionamento ao longo dos séculos até a urbana atende a alguns critérios, os fluxos,
atualidade foi se espraiando para diversos o saneamento de água etc., ampliando a
espaços, embora, ressalte Foucault (2011b) intervenção autoritária da medicina nos
que no século XX tentou-se delimitar mais domínios da existência individual ou
o “campo da medicina”, a partir do doente, coletiva.
da sua dor, dos seus sintomas, do seu mal-
estar, circunscrevendo um conjunto de Normalização e medicalização dos
objetos considerados “doentes”. Essa corpos
“limitação” encontrou fissuras para escape
por meio das práticas autoritárias da Ewald (1993) traça uma importante
medicina, que exerce sobre o doente uma descrição do que significa esse conceito de
função de autoridade. “norma” para Foucault. Trata-se, pois, de
Nos cita como exemplo, os casos um elemento de ligação entre
de contratação que exigem parecer médico; individualidades e as instituições. A
as políticas sistemáticas e obrigatórias de norma, segundo Ewald (1993),
screening, de localização da doença no corresponde a uma medida, ou seja, a uma
conjunto da população e que não surgiram produção de medida comum. É graças à
de demandas de doentes; em alguns casos norma que podemos definir a
de julgamento judiciários, em muitos modernidade, uma vez que a sociedade
países solicita-se avaliações psiquiátricas. normativa interfere no funcionamento das
Outro exemplo, sobre intervenção médica disciplinas “normalizando-as”. Por essa
em objetos que não são da competência razão, Foucault vai dizer que não devemos
médica, Foucault cita o comportamento confundir “disciplinas” e “normas”. As
sexual ou a sexualidade. A esse respeito, disciplinas são formas de adestramento do

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corpo, e a norma é quem especifica o dizer que no espaço normativo não

sujeito, individualizando-o, tornando-o haja partilha possível, que não haja


lugar para um processo de
comparável.
valorização. As práticas da norma
não são relativistas. O normal opõe-
A norma permite abordar os desvios, se, de fato, ao anormal. Mas esta
indefinidamente, cada vez mais discretos, partilha é de um gênero especial:
minuciosos, e faz que ao mesmo tempo formula-se em termos de limiares e
esses desvios não enclausurem ninguém limites. [...] Compreende-se que ela
numa natureza, uma vez que eles, ao nunca exprimirá uma lei da natureza;
individualizarem, nunca são mais do que a tão-só pode formular a pura relação
expressão de uma relação, da relação do grupo consigo mesmo (Ewald,
indefinidamente reconduzida de uns com 1993, p. 87).
os outros (Ewald, 1993, p. 86).

Foucault, no livro “Os anormais”,


De acordo com Foucault (2008c),
inicia seus cursos sobre esse tema
nesse jogo das normalizações disciplinares,
apresentando os três primeiros elementos
o que é fundante não é o “normal” ou o
que se formaram ao longo dos séculos
“anormal”, mas sim a própria norma. É ela
XVII e XVIII, cujos investimentos de
que vai dar o caráter primitivo de
poder se debruçaram sob a forma de
prescrição, estabelecendo a descrição do
instituições, disciplinas e saberes
que é normal e do que não é, tornando-os
constituindo e refinando os sujeitos a
presumíveis. Portanto, a norma é uma
serem considerados dentro do campo das
referência, sem se tornar modelo fixo.
“anormalidades”. Esses três elementos são:
Ewald (1993) vai explicar ainda que a
1) o monstro humano – cujo contexto de
norma faz funcionar um sistema de
referência é a lei, a noção jurídica. Esse
comunicação que liga as individualidades,
elemento corresponde à figura que infringe
sem procurar uma origem ou um sujeito,
tanto as leis da sociedade quanto as leis da
“[...] manifesta antes a existência de um
natureza. 2) o indivíduo a ser corrigido –
possível”:
Foucault (2010a) vai dizer que seu
contexto é a própria família e que essa é
Do normal ao anormal, a linha é,
uma figura específica dos séculos XVII e
pois, incerta. Não reenvia a nada na
natureza. O anormal está na norma: o
XVIII) a criança masturbadora – cujo
gigante tal como o anão, o idiota tal contexto é mais estreito que a família: o
como o gênio. Mas isso não quer quarto, a cama, o corpo. As três figuras

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estiveram bem demarcadas por Se apresenta como sendo a corrigir na


medida em que fracassaram todas as
características específicas e saberes
técnicas, todos os procedimentos, todos os
determinados.
investimentos familiares e corriqueiros de
Foucault nesses cursos vai dizer educação pelos quais se pode tentar
que o monstro é uma exceção, um duplo de corrigi-lo. [...] E, no entanto,
animal e espécie humana, que se torna um paradoxalmente, o incorrigível, na medida

problema tanto para o saber médico quanto em que é incorrigível, requer um certo
número de correções específicas em torno
para o judiciário. Essa figura é importante
de si de sobreintervenções em relação às
porque ele representa a infração à lei, às técnicas familiares e corriqueiras de
leis da natureza desvelando suas educação e correção, isto é, uma nova
irregularidades possíveis. Logo, o monstro tecnologia de reeducação.

torna-se modelo de todas as discrepâncias


e vai levantar a questão “Descobrir qual o Desse modo, Foucault vai situar

fundo de monstruosidade que existe por essa figura como sendo um dos ancestrais

trás das pequenas anomalias, dos pequenos mais próximos do indivíduo anormal do

desvios, das pequenas irregularidades é o século XIX, servindo como suporte para

problema que vamos encontrar ao longo de todas as instituições criadas para abrigar os

todo o século XIX” (Foucault, 2010a, p. anormais. Em relação ao terceiro exemplo,

48). No segundo caso, do indivíduo a ser “o masturbador”, precisamente a criança

corrigido, sua taxa de frequência é mais masturbadora (aparece no fim do século

recorrente. Quem investe nesse sujeito é XVIII e início do XIX), vai encontrar um

uma economia de poder exercida pela investimento de poder em forma de

família e pelas instituições que lhe são microcélulas recaindo sobre o indivíduo e

próximas. Assim, afirma Foucault que a seu corpo. Para Foucault (2010a) a

escola, a oficina, a rua, a igreja e outras diferença entre este e os outros elementos,

vão compor uma malha por onde esse é que este aparece como uma figura

indivíduo passa e é capturado a fim de que universal, pois carrega consigo um

sejam investidos nele técnicas de correção. segredo, que é ao mesmo tempo um

Contudo, ressalta Foucault (2010a, p.50), segredo universal, já que se trata de uma

esse indivíduo a ser corrigido é na verdade prática que todos conhecem, contudo, não

incorrigível, já que, revelada, fazendo desse segredo um


segredo compartilhado.

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Ele vai nos dizer que a organização que ganhará sua regularidade científica em
dos saberes e das técnicas antropológicas meados de 1820 a 1830 (Foucault, 2010a).
do século XIX fará desse segredo universal Na passagem do século XVIII para o XIX,
a raiz para quase todos os males, Foucault (2010a) afirma que há uma
privilegiando as doenças ou males mudança nos mecanismos de poder, com o
corporais, doenças nervosas e psíquicas. advento de novas tecnologias científicas e
Ou seja, configura-se uma etiologia sexual industriais, bem como o surgimento de
que será suporte ou princípio de explicação políticas de governo (governamentalidade)
para todos os males e doenças. Em resumo, que engendram outras concepções de
Foucault nos diz com esses três exemplos Estado (Estado Liberal). Nesse ínterim,
que o anormal do século XIX é algumas alianças entre determinados
descendente dessas três figuras: o monstro, saberes acontecem, como foi o caso da
o incorrigível, o onanista. Apesar de suas psiquiatria com a justiça, da medicina com
especificidades, são figuras que se a psiquiatria e da psiquiatria e a higiene
comunicam entre si. pública.
Elas permanecem afastadas até o Foucault (2010a) assevera que é a
século XIX, por conta da separação entre psiquiatria o saber responsável por “criar”,
os saberes e os sistemas de poder que as “fabricar” o sujeito “anormal”. Ela
institui. Da feita que esses sistemas de inventaria esse sujeito a partir das sutis
poderes e de saberes também começam a transformações que fariam a passagem do
se comunicar o entrelaçamento entre elas monstro ao anormal. Essa passagem se
vai se tornando mais visível. Assim, o daria então do monstro (o bicho papão, o
monstro situa-se nos regimes de saber e de exagero) para as anomalias (a
poder político-judiciário, bem como na monstruosidade é dividida em pequenas
história natural, que busca distinguir as anomalias). Vale lembrar ainda, que nessa
espécies, os gêneros e os reinos, como passagem a psiquiatria não era um ramo
reitera Foucault (2010a). Já o incorrigível especializado da medicina geral. E que
situa-se no saber que está sendo inclusive para ganhar um lugar de
constituído ao longo do século XVIII, que visibilidade, a psiquiatria recorria a alguns
é o saber das técnicas pedagógicas, das princípios de estruturação e organização da
técnicas de educação coletiva, de formação medicina para explicar determinados
de aptidões. E o masturbador é capturado acontecimentos (situações de saúde a nível
por uma nascente biologia da sexualidade, mental). Contudo, um lugar de destaque só

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foi conseguido quando esta passou a Nasce assim o monstro moral que,
“elaborar” discursos que explicariam pertencendo à categoria jurídica, é
determinadas situações que ninguém mais apanhado pela psiquiatria que vai
conseguia pensar. Um exemplo sobre essa decodificá-lo nas análises sobre as
troca de posições de saber e autoridades, pequenas perversidades, maldades infantis,
encontramos na aliança do poder médico pequenos desvios, etc. E nesse afã para
com o poder judiciário quando se direciona poder existir como uma instituição de
para o sujeito considerado criminoso e se saber ela precisa realizar duas
pergunta por suas “condições de codificações: 1) codificar a loucura como
racionalidade”, ou “ausência de interesse”, doença; tornar patológico os discursos, os
tal como apontam os documentos erros, as ilusões da loucura e no trato das
estudados por Foucault (2010a). análises fazer a sintomatologia, a
A lei, para ser aplicada, exigia que nosografia, prognóstico, fichas clínicas,
se soubesse se esse sujeito a ser julgado era observações. 2) codificar a loucura como
louco ou não. Mas ela não possuía perigo: implantar o discurso que a doença
condições de materializar e nem de pode se tornar um perigo social, portanto, é
averiguar essa situação. Assim, recorre à preciso criar medidas de proteção social.
psiquiatria conferindo-lhe poder de fazer Desse modo, a proteção começa a
essa identificação. Então, o debate sobre funcionar em nome do saber médico e a
esse sujeito perscruta se ao cometer um psiquiatria age como um saber sobre a
crime há ou não racionalidade, ou seja, doença mental importante para a regulação
“interesse”, por parte do criminoso. Se sim, da higiene pública (Foucault, 2010a).
este é julgado de acordo com o código Outro ponto de ligação importante
penal. entre saberes da medicina para o
alargamento de suas práticas na sociedade
A questão do ilegal e a questão do
deu-se por meio da neurologia. Assim,
anormal, ou ainda a do criminoso e a do
epilepsia e os automatismos vão servir de
patológico, passam, portanto a ficar
ligadas, e isso não se dá a partir de uma suporte para todos os sintomas
nova ideologia própria, nem de um psiquiátricos. Foucault destaca ainda
aparelho estatal, mas em função de uma nesses cursos que a família vai se tornar
tecnologia que caracteriza as novas regras
um dos primeiros alvos de investimento
da economia do poder de punir (Foucault,
dessa medicalização, sobretudo, no
2010a, p. 78).
investimento feito sobre as crianças e

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adolescentes, a fim de controlar a sua num outro sentido: a norma como

masturbação. Interessante, diz ele, o regularidade funcional, como princípio de


funcionamento adaptado e ajustado; o
discurso inicialmente sobre essas situações
“normal” a que se oporá o patológico, o
não é moralizante, mas de somatização e mórbido, o desorganizado, a disfunção
de patologização. Ele descreve uma série (Foucault, 2010a, p. 138-139).
de situações que são realizadas pelos
médicos e de discursos elaborados a fim de Com esse pequeno resumo da

sustentar a masturbação ou o genealogia esboçada por Foucault sobre os

comportamento sexual como causa anormais, quisemos mostrar a emergência

etiológica das mais diferentes doenças. Daí desses conceitos importantes para nós,

em diante com essas alianças e a como os de “norma”, “normal”,

elaboração desses novos discursos a “anormalidade”, “medicalização”, e como

psiquiatria se atribui como tarefa percorrer foram o resultado de procedimentos

na direção de todas as desordens e instaura diversos, historicamente constituídos, e

a “explosão sintomatológica” na sociedade que em nossa contemporaneidade se

pondo em evidência, enfim, a norma, tal atualiza constituindo uma biopolítica

como destaca Foucault (2010a, p. 138): medicalizada, formadora de subjetividades


adentradas num jogo que se forma na
Organizando esse campo busca da saúde e de performances ideais,
fenomenologicamente aberto, mas capturadas cada vez mais por uma
cientificamente modelado, a psiquiatria vai
biopolítica empresarial tal como
por em contato duas coisas. De um lado,
ela vai introduzir efetivamente, em toda a
abordaremos no próximo tópico.
superfície do campo que ela percorre, essa
coisa que lhe era até então parcialmente Conclusões provisórias
alheia, a norma, entendida como regra de
conduta, como lei informal, como
Vamos encontrar um interessante
princípio de conformidade; a norma a que
se opõe a irregularidade, a desordem, a estudo com Ortega e Zorzanelli (2010)
esquisitice, a excentricidade, o sobre a visibilidade do corpo pela
desnivelamento, a discrepância. É isso que sociedade, que se institui por meio das
ela introduz pela explosão do campo práticas e saberes médicos. Tomando como
sintomatológico. Mas sua ancoragem na
referência temporal os séculos descritos no
medicina orgânica ou funcional, por
intermédio da neurologia, permite-lhe
tópico anterior, principalmente o século
chamar também a ela a norma entendida XVIII. Esses autores esboçam um breve

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resumo do surgimento da medicina na autores: “Os métodos de visualização se


esfera da visibilidade, a partir do advento baseiam na crença de que o objeto
de novas tecnologias e artefatos, representado está diretamente acessado
possibilitando o escrutínio do corpo e como ele realmente é.”, fazendo uma
alavancando os saberes médicos. O explícita relação entre “ver” e “realidade”,
desbravamento da viscerabilidade do nosso como se a realidade fosse algo a ser
corpo foi uma condição imprescindível “descoberta” ou “desvelada”, e a visão a
desde o século XVIII para o maneira mais eloquente de realizar essa
desenvolvimento das explorações médicas, “inteligibilidade”.
que culminaram nos alcances da medicina Essa passagem para o território da
na contemporaneidade. visão deu-se segundo esses autores quando
Esses autores destacam que a visão a pesquisa médica, que durante anos
ou uma racionalidade pautada na baseava-se na dedução morfológica e na
visibilidade possibilitou aos discursos comparação com outros animais, tem no
científicos privilégios capazes de situá-los método da observação outro caminho a
no centro dos jogos de verdade. No campo trilhar. Primeiro que, para isso, uma
da medicina esse acontecimento ganhou mudança de investimento sobre o corpo e
uma dimensão extraordinária se sobre a vida se fizeram importantes. Cresce
estendendo a todos os ramos que lhe a preocupação com o prolongamento da
compõem. É claro que esse procedimento é vida, evitando-se as doenças. O que já
herdeiro das práticas científicas das havia sido apontado por Foucault em
ciências naturais que sempre tiveram a Vigiar e Punir (2008d) e História da
“visão” como elemento crucial para a Sexualidade I: vontade de saber (2007)
comprovação da verdade. As ciências quando a vida passa a ser objetivada por
biológicas começaram a imitar os métodos investimentos políticos. Contudo, apesar
de dissecação, estratificação, organização e do alcance das máquinas ser maior do que
outros que compunham as “vantagens os dos sentidos, ressaltam os autores que
diagnósticas de ver”. mesmo com o uso das novas tecnologias
Diante dessa configuração Ortega e para quantificação/verificação do corpo, os
Zorzanelli (2010, p.17) se propõem médicos continuaram a usar das inferências
analisar o papel das tecnologias de para justificar evidências “médicas”.
visualização médica na construção social e Assim, “um olhar livre de interpretação é
cultural das doenças. Assim, declaram os uma ficção que oculta a adaptação às

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condições visuais estabelecidas com os problemas causados pelas situações


socialmente desde longa data” (Ortega & em que a descrição anatômica-fisiológica
Zorzanelli, 2010, p.38). não consegue encontrar registros no
Essa observação é importante para cérebro.
pensarmos em como o fascínio pela
visibilidade nos captura, a ponto de Esse campo tem um ponto de gatilho,
sobretudo nas décadas de 1950 e 1960,
sustentar determinados discursos no campo
quando os pesquisadores passaram a
da verdade oferecendo sem pestanejar a utilizar scans por tomografia
esses discursos credibilidade que vão ser computadorizada – que culminou nos anos
sancionadas por sua vez, culturalmente. 1970 no uso clínico dessas tecnologias.

Em “O nascimento da clínica” [...] A ressonância magnética funcional


tornou possível acompanhar, praticamente
encontramos com Foucault (2004b) uma
em tempo real, a ativação cerebral, ou seja,
arqueologia do olhar médico sobre a vida, para que áreas o sangue se desloca. O
precisamente sobre o corpo e suas conceito de base para as tecnologias de
alterações morfisiológicas e patológicas. O imageamento cerebral desenvolvidas mais
recentemente, como a ressonância
“olhar” seja ele entendido como um
magnética funcional e a tomografia por
recurso de percepção visual, seja como
emissão de prósitrons, é que uma mudança
uma produção de saber, foi fundante para a no fluxo sanguíneo regional pode refletir a
hegemonia da medicina no campo da atividade neural e as áreas desenvolvidas
cientificidade: “o olho torna-se o em determinada função ou tarefa (Ortega
& Zorzanelli, 2010, p. 50, grifo do autor).
depositário e a fonte da clareza; tem o
poder de trazer à luz uma verdade que ele
Essas visibilidades na saúde
só recebe à medida que lhe deu a luz”
formam um novo campo do cuidado de si e
(Foucault, 2004b, p.10). Da descoberta do
na gestão dos corpos disciplinados e na
Raio-X a outros instrumentos para a
regulação da população. Para Ewald
visualização interior do corpo, a
(1993), com a economia de poder
abrangência dessas práticas compõe uma
voltando-se para o corpo coletivo, cria-se
“tecnologização do diagnóstico” que vai
um novo dispositivo chamado “segurança”,
atingir o campo da doença mental (Ortega
que vai marcar a passagem então da
& Zorzanelli, 2010). É por meio da
microfísica para o plano biopolítico, tendo
neurologia, preferencialmente habituada ao
no conceito de “risco” um homólogo do
registro imagético do corpo “fora de
controle” que a medicina vai tentar lidar

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que era a “norma” para as disciplinas. acumulação de fatos, de dados que se


Portanto, amontoam desesperadamente. Porque, na
medida em que a rede habitual dos
O que é um risco? Na linguagem corrente,
significados foi suspensa, todos os fatos,
o termo é tomado como sinônimo de
até os que a instantes podiam parecer os
perigo, de acontecimento funesto que pode
suceder a qualquer um; designa uma
mais insignificantes, devem ser notados,
ameaça objectiva. Na segurança, o termo sem hierarquia e nem privilégio”.
de risco não designa nem um Nessa processualidade das
acontecimento nem mesmo um tipo de
multiplicidades o “número” torna-se um
acontecimento da realidade – os
elemento importante, porque ocupa o lugar
acontecimentos “funestos” – mas um
mundo de tratamento específico de certos
do sentido, ou seja, ele “faz sentido por si
acontecimentos que podem suceder a um mesmo. A noção de massa (de população,
grupo de indivíduos, ou mais exatamente a de coletividade) toma o lugar da natureza
valores ou capitais possuídos ou ou de essência” (Ewald, 1993, p. 91).
representados por uma coletividade de
Assim, de acordo com os autores, os fatos
indivíduos, ou seja, por uma população.
Em si mesmo, nada é um risco, não existe
se organizam por categorias, de acordo
risco na realidade. Inversamente, tudo com alguns nomes: “nascimento, morte,
pode constituir um risco, tudo depende da acidente, suicídio, avaliação”,
maneira como se analisa o perigo, como se
preocupando-se apenas com os efeitos dos
considera o acontecimento (Ewald, 1993,
riscos, sobrepujando as causas nessa
p. 88-89).
racionalidade das probabilidades. Foucault

E sobre essa noção de risco uma (2008c) vem falar das

racionalidade é conjecturada formalizando governamentalidades liberais que criam

o cálculo das probabilidades, em que essa racionalidade, ampliando os campos

diversos elementos começam a entrar num de exercício das tecnologias de poder. Para

jogo de lógica estatística a fim de se ele, nos dispositivos de segurança a

calcular os aparentes “riscos”. Para Ewald liberdade é elemento fundamental dessas

(1993, p. 90) tem-se um cálculo das tecnologias de poder das quais temos

regularidades em que cada evento ocorre e falado ao longo do texto. Primeiro que a

um cálculo das possibilidades de novas ideia ou como queiram a ideologia da

ocorrências. Esse duplo processo liberdade, foi quem deu condições de

transforma os eventos em “pura desenvolvimento dessas formas modernas

factualidade”: “Reduz a uma pura capitalistas de economia. Assim, a

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Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
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liberdade, nos afirma Foucault (2008c, p. acaso e das probabilidades, como forma de
63-64) é ao mesmo tempo uma ideologia e intervir na população, penetrá-la:
técnica de governo:
A população é, portanto, tudo o que vai se
estender do arraigamento biológico pela
Um dispositivo de segurança só poderá
espécie à superfície de contato oferecida
funcionar bem, [...] justamente se lhe for
pelo público. Da espécie ao público: temos
dado certa coisa que é a liberdade, no
aí todo um campo de novas realidades,
sentido moderno [que essa palavra]
novas realidade no sentido de que são, para
adquire no século XVIII: não mais as
os mecanismos de poder, os elementos
franquias e os privilégios vinculados a uma
pertinentes, o espaço pertinente no interior
pessoa, mas a possibilidade de movimento,
do qual e a propósito do qual se deve agir
de deslocamento, processo de circulação
(Foucault, 2008c, p. 99).
tanto de pessoas como das coisas. [...] um
poder que se pensa como regulação que só
pode se efetuar através de e apoiando-se na A medicalização encontra nessa
liberdade de cada um. racionalidade probabilística um ponto de
encontro para sua ancoragem: “Governar o
Desse modo, esse conceito de futuro traz a lógica da gestão do risco para
liberdade para Foucault extrapola a o presente em deslizamento com o perigo a
concepção ideológica porque ela atua evitar para defender e assegurar a
fundamentalmente como uma tecnologia sociedade daquilo que teme e, portanto,
de poder, numa gestão governamental cujo visa a se prevenir como tentativa de
saber predominante é a economia política. controle biologizante e político” (Galindo,
Essa economia política a partir do século Lemos & Rodrigues, 2014, p. 258). Essa
XVIII vai pensar e colocar em governamentalidade cria outros
funcionamento os dispositivos de espaços/tempos de experiências subjetivas
segurança que atuem no conjunto da cada vez mais marcadas por uma
população, dessa forma, um modo de lidar sociabilidade medicalizada, onde a
com as multiplicidades: crescimento e preocupação com o controle e regulação da
organização das cidades, circulação das vida está pautada em um dos aspectos da
pessoas, mercadorias, natalidade, lógica médica. Assim, se a noção de risco
mortalidades, fluxos, doenças etc. impõe à sociedade um “medo” do acaso,
(Foucault, 2008c). Essas multiplicidades do futuro, a medicalização é aceita ou
vão ser geridas por uma racionalização do naturalizada em diversos aspectos, porque
entra nessa lógica da segurança,

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convencendo as pessoas de que o melhor é medicalizante, mantido pelo pagamento


fazer um investimento em si mesmas, em regular de taxas para sua manutenção.
sua saúde, aderindo às diversas formas de Ressaltam ainda as autoras que a
“seguros”. Biopolítica empresarial e preocupação com o desenvolvimento das
governamentalidade neoliberal, portanto, crianças, a classificação desse
gerindo os eventos da vida e desenvolvimento em ciclos, gera um
transformando-os em mercadorias a serem capital a regular e administrar, operando ao
privatizados, tal como sugerem as autoras: mesmo tempo investimentos numa
“segurança pela prevenção” e numa
A privatização da vida como biocapital faz “docilização pela educação”. Ou seja,
parte de toda uma economia política que
temos aí, as duas tecnologias de poder,
entra em cena por meio do cálculo da
virtualidade, baseado em amostras e em disciplinar e biopolítica, operando
indicadores genéticos utilizados como um simultaneamente na gestão da vida.
mapa da gestão da vida, do fazer viver São duas formas de poder que
biopolítico, juntamente com a ampliação
capturam a vida por meio de discursos e
de habilidades futuras e produtivas da
saberes que põem em funcionamento uma
disciplina usada por antecipação, em
termos de controle dos corpos no tempo e
rede entrecruzada de forças, onde
no espaço (Galindo, Lemos & Rodrigues, transversalmente lhe tangenciam práticas
2014, p. 256). liberais que realizam um controle social
utilitarista tanto no plano coletivo quanto
Nesse mesmo trabalho, Galindo,
no microfísico, individual. De acordo
Lemos e Rodrigues (2014) discorrem sobre
Lemos, Cruz e Souza (2014, p. 09):
o mercado privado que se confeccionou em
torno da coleta das células-tronco do [...] é relevante problematizar a gestão
cordão umbilical. O material coletado é utilitarista dos corpos individuais e em

transformado em um capital de risco grupo no presente, materializada de forma


cada vez mais linear e determinista, em
biológico, pondo em circulação discursos
termos de medicalização da educação.
sobre a necessidade futura de crianças Estes procedimentos reducionistas da
virem a ter algum problema de saúde. biomedicina são intensificados na visão da
Criam-se argumentos em torno da escola e dos processos de ensino-
aprendizagem, limitadas às neurociências,
probabilidade do aparecimento de doenças
aos aspectos neurobiológicos e
que nem se quer existem e a promessa da
comportamentais apenas.
participação do cliente nesse controle

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Lemos, F., Gomes, G., de Oliveira, P. & Galindo, D.
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A objetivação da educação por age desde a esfera individual (marketing de


práticas medicalizantes é um assunto que si mesmo, empresário de si) quanto no
vem sido trabalhado desde a década de coletivo (conquista de novos mercados a
1980 (Collares & Moysés, 1982, 1992) e se todo tempo). No que tange a educação, ele
expõe em pesquisas na atualidade (Galindo cita “as formas de controle contínuo, a
et al, 2014, Facci & Souza, 2014, Moyses avaliação contínua, e a ação da formação
& Collares, 2014, Souza, 2014, 2009, permanente sobre a escola, o abandono
2005, 2000), por conta da enxurrada de correspondente de qualquer pesquisa na
procedimentos, tecnologias, fármacos, Universidade, a introdução da ‘empresa’
discursos, que operam nessa racionalidade em todos os níveis de escolaridade”
biomedicalizante, tendo na esfera da (Deleuze, 2008, p. 225). A esse respeito
educação, principalmente a educação ressaltam Lemos, Cruz e Souza (2014, p.
básica, seu maior expoente. 14):
A medicalização se generaliza
nesses domínios de poder e criam O marketing escolar e empresarial
modulará cada vez mais detalhadamente a
performances que são geridas por essas
vida e os pequenos atos cotidianos como
formas de controle pautadas por discursos
investimentos e marketing. Tudo pode se
de saúde, engendrados em enunciações tornar marca e signo de sucesso pessoal e
proferidas em nome da paz e da segurança. relacional e nome de um mercado
Contudo, estes são pautados pela lógica do crescente, que comercializa até mesmo os
sentimentos, as amizades, a docência, a
mercado uma vez que são ideias vendidas
educação familiar e religiosa, a
na educação, no trabalho e na saúde. Para
performance física e a cultural.
Deleuze (2008, p. 223) essa “sociedade de
controle” em que vivemos, produz um
Uma das consequências advindas
homem “ondulatório, funcionando em
desse tipo de racionalidade da vida,
órbita, num feixe contínuo”, contudo,
guiadas pela lógica mercadológica e
endividado, porque no capitalismo de
medicalizante, segundo estes autores é o
nossa atualidade, esse se volta para o
silenciamento das diferenças. Isto se dá
produto, para sua venda, transformando
pelo discurso de uma “educação para a
tudo em produtos venais por meio do
paz”, que está se materializando por meio
marketing.
de “[...] medidas médico-psicológicas e as
Essa noção de marketing opera
programações de risco de caráter
como ferramenta de controle social, que

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Medicalização e Normalização da Sociedade
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cognitivo-comportamentais ou ainda, as com elementos aos quais estamos


teorias das relações humanas, os utilizando como marco inicial para
psicotrópicos, os exercícios físicos e as problematizar as práticas medicalizantes
aulas de arte e lazer [...]” (Lemos, Cruz & que por meio de desníveis discursivos
Souza, 2014, p. 14). compõem o currículo de psicologia e que
Esses acontecimentos despertam atuam como filtro silenciador das
interesse e nos guiam na construção desse diferenças. A literatura levantada sobre a
trabalho doutoral e nos convida a pensar formação em psicologia no Brasil, por
que por mais que não haja uma relação de meio das diferentes perspectivas as quais
causalidade entre esses elementos e as foram trabalhadas, nos indicaram as
práticas produzidas nos documentos que condições históricas pelas quais teríamos
compõem o currículo de formação em que nos debruçar a fim de que fosse
psicologia, contudo, na malha que se forma possível transitar pelas histórias contadas
entre esses acontecimentos, as práticas em sobre o campo de tensões formadas por
funcionamento operadas por esse currículo diferentes grupos, sob o registro de
não são neutras, agenciam forças políticas, diferentes posicionamentos teóricos,
oriundas da produção e disputa de saberes almejando adentrar nas lutas empreendidas
que intencionam seu locus nesse currículo. para compor um projeto de sociedade.
Desse modo, como assinala Veyne (2008,
p. 248), é preciso estudar as práticas não Referências
como uma “instância misteriosa, um
subsolo da história, um motor oculto [...] Aquino, J. G. (2013). A difusão do
Existem regras estritas que sustentam as pensamento de Michel Foucault na
educação brasileira: um itinerário
práticas [...] que é uma certa política” bibliográfico. Revista Brasileira de
Logo, por meio dessa arqueogenealogia Educação. Rio de Janeiro, 18(53),
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que se pretende desenvolver nessa https://www.scielo.br/scielo.php?pid=
pesquisa, busca-se pela raridade desse S1413-
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acontecimento por meio da interpelação act&tlng=pt#:~:text=O%20presente%
das práticas que o produzem, ou seja, 20artigo%20tem%20o,per%C3%ADo
do%20entre%201990%20e%202012.
dando visibilidade as objetivações de
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professora associada II em psicologia
Monteiro, H. R. (2006). Medicalização da social/UFPA, bolsista de produtividade em
vida escolar. Dissertação (Mestrado). pesquisa CNPQ PQ2. Psicóloga-UNESP,
Programa de Pós-Graduação em mestre em Psicologia Social-UNESP e
Educação. Universidade Federal do doutora em História Cultural-UNESP.
Estado do Rio de Janeiro. E-mail: flaviacslemos@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6601-
Ortega, F.; Zorzanelli, R. (2010). Corpo 0653
em evidência: a ciência e a
redefinição do humano. Rio de Geise do Socorro Lima Gomes é
Janeiro: Civilização Brasileira. psicóloga pela UFPA, mestre em
(Coleção Contemporânea). Psicologia (UFPA) e também doutora em
Educação (UFPA).
E-mail: geisepsi@gmail.com

Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 96


Medicalização e Normalização da Sociedade
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ORCID: https://orcid.org/0000-0001-
9059-8568

Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira é


psicólogo ( UFPA), mestre e doutor em
Saúde do trabalhador na ENSP-FIOCRUZ.
É também coordenador do Programa de
Pós-graduação em Psicologia da UFPA e
professor associado II de Psicologia Social
do trabalho - UFPA.
E-mail: pttarso@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
1969-380X

Dolores Cristina Gomes Galindo é


psicóloga (UFPE), mestre e doutora em
Psicologia Social - PUC-SP e professora
associada II de Psicologia Social da
UFMT. É também professora no Programa
de Pós-graduação de Estudos da Cultura
Contemporânea-UFMT.
E-mail:
dolorescristinasilveiralemos@gmail.com
ORCID: http:orcid.org0000-0003-2071-
3967

Enviado em: 02/06/19– Aceito em: 07/07/20

Rev. Polis e Psique, 2020; 10(3): 77 - 97 97

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