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Da biopolítica à necropolítica:

notas sobre as formas de controles sociais contemporâneas


DANIELA CECILIA GRISOSKI*
BRUNO CÉSAR PEREIRA**

Resumo: O presente trabalho configura-se como um breve ensaio teórico que possuí como
objetivo geral problematizar as possíveis relações entre a concepção de necropolítica, cunhada
pelo teórico camaronês Achille Mbembe, e a noção elaborada pelo filósofo francês Michel
Foucault de biopolítica. Para tal, a pesquisa se pautou no viés qualitativo, se caracterizando como
uma pesquisa exploratória de materiais bibliográficos, em que foram usadas produções referentes
ao conceito de necropolítica e biopolítica, buscando realizar uma problematização acerca da
contraposição que perpassa ambos conceitos. A partir da análise realizada, percebe-se que o termo
cunhado por Mbembe como um contraponto à ideia de biopolítica, entretanto esta não é refutada.
As publicações de Mbembe concebem-se enquanto uma passagem de uma biopolítica à uma
necropolítica, no que se refere às realidades das periferias das sociedades capitalistas da
contemporaneidade, dando sentido a outros contextos sociais, os quais não se enquadram à
realidade europeia.
Palavras-chave: Necropolítica; Biopolítica; Controle Social; Pós-colonialismo.
From biopolitics to necropolitics: notes on the forms of contemporary social controls
Abstract: The present work is a brief theoretical essay that has as a general objective to
problematize the possible relations between the conception of necropolitics, coined by Achille
Mbembe, the Cameroonian theorist, and the notion elaborated by the French philosopher Michel
Foucault of biopolitics. For this, the research was based on the qualitative bias, being configured
as an exploratory research of bibliographical materials, being these productions referring to the
concept of necropolitics and biopolitics, seeking to carry out a problematization related to the
contraposition that permeates both concepts. From the analysis carried out, we can see that the
term coined by Mbembe as a counterpoint to the idea of biopolitics, however, is not refuted.
Mbembe's publications are conceived as a transition from a biopolitics to a necropolitical one,
with regard to the realities of the peripheries of contemporary capitalist societies, giving meaning
to other social contexts, which do not fit into the European reality.
Key words: Necropolítics; Biopolitics; Social Control; Postcolonialism.

*
DANIELA CECILIA GRISOSKI é psicóloga pela Universidade Estadual do Centro-Oeste -
UNICENTRO. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de
Londrina (PPGPSI/UEL).

**
BRUNO CÉSAR PEREIRA é mestrando do programa de Pós-Graduação em História e
Regiões da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná (UNICENTRO).

199
Achille Mbembe e Michel Foucault - Fonte: Google Imagens.

Introdução trabalhado em outras ocasiões anteriores


(LAUDINO, 2016).
O presente artigo configura-se como um
breve ensaio teórico que possuí como A biopolítica foi citada pela primeira vez
objetivo geral problematizar as possíveis por Foucault no último capítulo do livro
relações entre a concepção de História da sexualidade: a vontade de
necropolítica, cunhada pelo teórico saber (2017). Neste capítulo, o autor
camaronês Achille Mbembe (2018), e a compreende a biopolítica como um
noção elaborada pelo filósofo francês poder que gere a vida. Para nos
Michel Foucault (2008) de biopolítica.1 situarmos, é preciso ressaltar que,
anteriormente ao que Foucault
Duarte (2007), aponta que o conceito de
biopolítica se tornou uma importante denominou como biopolítica, fazia-se
presente um poder de soberania, o qual
ferramenta para que sejam traçados
diagnósticos das conjunturas políticas era pertencente a um único sujeito, o
soberano, que era a personificação do
contemporâneas. Foucault apresenta
concepções referentes à biopolítica em poder, o detentor dos direitos sobre a
distintas obras, como, por exemplo: Em vida. Era ele quem decidia entre o fazer
defesa da sociedade (1999), História da morrer ou deixar viver.
sexualidade: vontade de saber (2017), e A partir do século XVII, com o
O nascimento da biopolítica (2008), surgimento dos ideais liberais difundidos
sendo esta última a obra que aqui será no contexto europeu, o poder dissociou-
utilizada para abarcar tal concepção, se da figura de um soberano, passando a
levando em consideração que a mesma é estar pautado em diversas esferas de um
resultado de um curso ministrado no contexto social. Como apontado por
Collège de France entre os anos de 1978 Furtado e Camilo (2016, p. 35) ao
e 1979, e pode ser considerada como um discutirem o pensamento foucaultiano,
indicativo de amadurecimento do “[...] O poder opera de modo difuso,
conceito de biopolítica, que já havia sido capilar, espalhando-se por uma rede

1
Parte das discussões apresentadas neste artigo foram inicialmente exploradas em um resumo expandido
apresentado no “1º Congresso da Pós-Graduação em Psicologia da UEL”, realizado ao longo de 2018.

200
social que inclui instituições diversas tecnologias hospitalares que passaram a
como a família, a escola, o hospital, a atuar buscando proporcionar qualidade
clínica. Ele é, por assim dizer, um de vida nas pessoas.
conjunto de relações de força
multilaterais”. Com isso, “[...] pode-se Desta forma, ressalta-se a biopolítica
dizer que o velho direito de causar a como a regulamentação de uma
morte ou deixar viver foi substituído por população, voltando-se às tecnologias da
um poder de causar a vida ou devolver a vida, não levando em consideração os
morte” (FOUCAULT, 2017, p. 149). sujeitos apenas de uma forma individual,
mas a partir de um coletivo, formando
O conceito de biopolítica é tido, então, um corpo social (FURTADO; CAMILO,
como as tecnologias de gestão dos 2016). Essas tecnologias da vida são
corpos e da vida das populações, que se atreladas às tecnologias de si, que, por
configuram através de uma integração de sua vez, são formas de autorregulação, as
técnicas disciplinares, saberes médicos e quais tornam sujeitos responsáveis por si
práticas políticas, que se dispõem de mesmos, sem precisar de técnicas
forma sutil. Tais técnicas atuam como altamente restritivas e/ou coercitivas,
mecanismos de assistência social, pois há a internalização dessa
segurança e saúde de uma população, autorregulação (LEMKE, 2017).
visando um controle do Estado para com
Já com relação ao termo/conceito
a mesma (FOUCAULT, 2008). Assim
denominado necropolítica, de acordo
como as relações de poder, a biopolítica
com Hilário (2016), esse foi cunhado
perpassa diferentes instituições de um
pelo historiador e cientista político
corpo social, visando uma melhoria da
camaronês Achielle Mbembe, que possui
gestão da vida, tornando-a útil,
relação com o chamado pós-
produtiva, saudável; ela “[...] caracteriza
colonialismo, advindo do pensamento
um poder cuja função mais elevada não
social africano e latino-americano.2
é mais matar, mas investir sobre a vida,
de cima a baixo” (FOUCAULT, 2017, p. Ao longo dos séculos XIX-XX,
150). durante os períodos da colonização
europeia, descolonização e
Ferla, Oliveira e Ramos (2011), reorganização das sociedades
seguindo pressupostos teóricos de africanas, os intelectuais nascidos na
Foucault, enfatizam que, após meados do África apropriaram-se de um vasto
século XVIII, os saberes médicos conjunto de referenciais teóricos,
começaram a se modificar, dando espaço conceituais e metodológicos,
a uma medicina moderna, a qual passou empregando-os para expressar a
posição de seus coetâneos em
a ser pautada na organização hospitalar,
relação ao mundo. Paralelamente
dando atenção à saúde, configurando-se aos saberes orais, tradicionais, e à
através do investimento dos corpos experiência vivida que orientavam
individuais e coletivos, concretizando as formas de organização
novas formas de saber-poder em relação sociocultural dos povos anteriores
aos corpos e a vida. Essas formas de ao período de predomínio europeu,
saber-poder, dizem respeito às ganhou corpo um novo tipo de
2
Outra importante obra deste autor, que possui destacando que a visão do negro no mundo de
grande importância para os estudos pós- hoje foi construída pelo sistema escravista nos
coloniais, é Crítica da Razão Negra, obra na qual primórdios do colonialismo. Assim, a definição
o autor busca uma reflexão sobre o mundo de negro é uma categoria social que se confunde
contemporâneo, a partir da experiência negra, com os conceitos de escravo e de raça.

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saberes, eruditos, fundados em social é o próprio trabalho vivo, o qual é
pressupostos acadêmicos, voltado para a produção de mercadorias,
científicos, que deu sustentação ao desenvolvendo forças produtivas
que se tem denominado de (HILÁRIO, 2016).
pensamento social africano
(MACEDO, 2016, p. 281). Mbembe (2018) propôs um pensamento
sobre as diferenças e as formas de se
Além de Mbembe, vários outros autores julgar a vida a partir do poder da morte,
dão destaque ao movimento, como por baseando-se em reflexões no mundo
exemplo, Anibal Quijano, Frantz Fanon, contemporâneo. Para tal, levou em
Paulin Hountondji e Valentin Mudimbe. consideração que o sistema capitalista se
A corrente conhecida como respalda na produção de “massas
decolonialismo ou pós-colonialismo supérfluas”3, as quais são vistas como
possui como intuito principal propor indivíduos que não condizem com as
perspectivas que quebram com uma lógicas de esquemas de trabalho vivo,
visão de todo o globo voltado ao que, consequentemente, são excluídos da
pensamento “eurocêntrico”, trazendo a composição socioeconômica atual,
perspectiva de demais localidades ao passando a viver de formas consideradas
redor do mundo, sendo elas a África, precárias socialmente.
América Latina e parte da Ásia,
consequentemente enquadrando-se o Realizadas estas considerações iniciais,
contexto brasileiro (MACEDO, 2016). destacamos que o presente artigo foi
Assim, o que é tratado como traçado a partir de um viés qualitativo.
“pensamento decolonial [ou pós- Godoy (1995), ressalta que a forma de se
colonial] é um movimento de fazer pesquisa qualitativa se dá por uma
resistência- teórico, epistêmico, cultural, perspectiva de modo integrado, havendo
prático e político –, à lógica da uma preocupação com o ambiente social
Modernidade/Colonialidade” que compõe o objeto a ser pesquisado.
(ALMEIDA; SILVA, 2015, p. 43). Deste modo, esse trabalho apresenta-se
como uma pesquisa exploratória de
Achielle Mbembe, na obra Necropolitics materiais bibliográficos, de acordo com
(2018), desenvolveu o conceito a partir o objetivo proposto. Severino (2007),
da ideia de uma política centrada na caracteriza uma pesquisa exploratória
produção de morte em larga escala, como sendo o levantamento de
sendo característica de um mundo que informações sobre determinado objeto,
está passando por uma crise sistêmica. delimitando um campo de trabalho e
Essa concepção sobre produção de morte mapeando as condições em que esse
pode ser vista tanto de forma física, objeto se manifesta.
política ou simbólica (MBEMBE, 2014).
Neste sentido, a necropolítica é tida Para o desenvolvimento do artigo, foram
como uma estratégia de manter a utilizadas produções bibliográficas
sociedade em um modelo voltado à referentes ao conceito de necropolítica e
lógica de um mercado de consumo, ou biopolítica, sobre as quais realizamos
seja, à produção de trabalho e capital. Tal uma problematização quanto as
fato ocorre porque a base do sistema possíveis relações entre ambos. A obra
3
Compreende-se por “massas supérfluas”, a Arendt (2013, p. 120), supérfluo no sentido de
população que se encontra condições excesso, um excesso desnecessário. Sobre este
absolutamente precárias, são as "massas conceito consultar: Arendt (2013) e Hillani
economicamente supérfluas" como propõe (2018).

202
que referencia o conceito de biopolítica que ambos autores dão destaque às
chama-se O nascimento da biopolítica formas de controles sociais.
(FOUCAULT, 2008), que foi escolhida
pelo fato de se tratar de uma obra que Para Foucault (2008), o controle social
indica o amadurecimento do conceito das populações, a partir da constituição
por parte do autor, o qual já havia sido de lógicas liberais, passou a ser realizado
abordado em obras anteriores através de dispositivos de produção da
(LAUDINO, 2016). Já a referência para vida, como técnicas disciplinares,
o termo necropolítica, foi proposta na políticas e saberes médicos, além de
obra que leva o mesmo nome do outras formas de saber, que constituíram
conceito, Necropolitica (MBEMBE, uma concepção singular de saúde, ou
2018), que diz respeito à produção em seja, uma nova condução das condutas
que o termo foi melhor desenvolvido. dos sujeitos, o que o autor caracterizou
como biopolítica.
Além das duas obras citadas acima, Benevides e Carvalho (2015, p. 363),
foram analisados pressupostos teóricos descrevem a biopolítica como “[...] um
propostos por comentadores de ambos conjunto de problemas e/ou
autores, bem como demais produções acontecimentos relacionados à vida e à
que compõe o acervo teórico destes, espécie humana a partir de uma
complementando assim as discussões racionalidade governamental que possui
realizadas. a população como alvo, os dispositivos
de segurança como instrumento e a
O texto propõe realizar uma análise
otimização da vida como fim”. Com isso,
sobre as relações e divergências entre
os autores argumentam que houve uma
estes termos/conceitos, biopolítica e
redefinição da vida a partir da economia.
necreopolítica, enfatizando a abordagem
Estratégias específicas em relação ao
que cada um destes possui acerca do
funcionamento da vida dos sujeitos
“controle das populações”, mas também,
passaram a estar cada vez mais em
destacando sua relação com a realidade
evidência, tais como a satisfação, o
social. Como será explicitado no tópico
prazer, o consumo e a saúde. Os
a seguir, a construção do conceito de
contextos laborais ficaram cada vez mais
necropolítica, não se deu como forma de
associados a um ideal de humanização,
refutação ao conceito de biopolítica, mas
entretanto as prestações de serviços
sim, como forma de complementação
passaram a exigir demasiadamente uma
dele, ou seja, a criação deste termo serviu
doação integral por parte dos
como forma de observar uma realidade
trabalhadores.
social que se diferenciava daquela
analisada por Michel Foucault, qual seja Com essas transformações do corpo
o contexto europeu. social, houve uma captura das dimensões
subjetivas dos sujeitos (BENEVIDES;
Inter-relações entre a biopolítica e CARVALHO, 2015). É a ideia de viver
necropolítica trabalhando para que se possa ter
dinheiro para poder consumir, e se sentir
Tendo em conta as considerações acerca satisfeito com isso.
dos conceitos de necropolítica e
biopolítica, explicadas ao longo do Como já abordado, a biopolítica trata-se
primeiro tópico deste ensaio, é possível das estratégias de manutenção da vida.
identificar que as duas concepções se Todavia, cabe ressaltar que o
relacionam, no que diz respeito ao fato funcionamento da biopolítica não pauta-

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se exclusivamente na produção da vida, àqueles que obtiverem maior acúmulo de
mas também da morte. Como afirma capital, desconsiderando os demais,
Duarte (2007, p. 04): como se fossem, de fato, descartáveis.
[...] tal cuidado da vida de uns traz
Neste sentido, pessoas que não estão
consigo, de maneira necessária, a condizentes às construções de
exigência contínua e crescente da dispositivos de poder em um meio social,
morte em massa de outros, pois é são descartadas.
apenas no contraponto da violência
Devido à forte competitividade do
depuradora que se podem garantir
mais e melhores meios de mercado econômico que faz com que
sobrevivência a uma dada sujeitos adentrem-se à uma lógica
população. Não há, portanto, voltada ao acúmulo de capital, as
contradição entre o poder de condições de existência em sociedade
gerência e incremento da vida e o acabam, consequentemente, tornando-se
poder de matar aos milhões para cada vez mais fragmentadas, levando em
garantir as melhores condições consideração que o modelo que
vitais possíveis: toda biopolítica é apresenta-se em vigor conta com
também, intrinsecamente, uma características de um neoliberalismo, ou
tanatopolítica. seja, tem como objetivo primordial o
Neste sentido, é possível afirmar que as lucro por parte de indivíduos. A autora
estratégias de controle social tal qual enfatiza que a modernidade ocasionou
foram propostas por Foucault, também modificações no campo social, que
perpassam aspectos sobre a produção da passaram a se articular em uma lógica
morte. Aspectos esses que foram predominantemente econômica,
difundidos detalhadamente por Achille resultando em uma sociedade de
Mbembe ao estruturar o conceito de consumo (TÓTORA, 2011).
necropolítica.
Mbembe (2018), aborda que o controle
Mbembe (2018) compreende que há social das populações é produzido pela
certa insuficiência em relação à noção destruição, de forma concreta e
foucaultiana de biopolítica para com as simbólica, de corpos e grupos humanos
práticas contemporâneas, sendo assim, o julgados como supérfluos pelo sistema
conceito de necropolítica apresenta-se capitalistas. Em outras palavras, sujeitos
enquanto um desenvolvimento posterior que se encontram na parcela tida como
à biopolítica. O teórico enfatiza que há a mais empobrecida da sociedade, acabam
produção de morte em larga escala com sendo vistos como irrelevantes.
indivíduos que são considerados
Pela forma concreta, pode-se
“descartáveis” por um meio social
exemplificar a necropolítica a partir da
capitalista, o que produz uma crise
alta taxa de mortalidade em ambientes de
sistêmica (MBEMBE, 2018).
cárcere, através da execução de
Essa noção de sujeitos descartáveis pode indivíduos encarcerados por parte de
ser pensada a partir de colocações de facções existentes dentro dos próprios
Tótora (2011), que aborda que alterações presídios ou por profissionais
no “modelo de existência” da população responsáveis pela ordem destes lugares.
propuseram modificações no campo As penalidades de morte, sendo estas
social, que passou a se articular em uma legalizadas ou não, pois muitas vezes
lógica econômica. Assim, os sujeitos execuções como essas são pertencentes à
foram lançados em um mercado ideologia da “justiça com as próprias
competitivo, que gera elevado destaque mãos”. Outro exemplo são os massacres

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ocorridos em comunidades periféricas, (2007), a biopolítica passou a ser uma
existentes também por intermédio de ferramenta de diagnóstico das
facções, ou por ações de agentes do conjunturas políticas contemporâneas,
Estado. podendo ser compreendida como uma
tecnologia que gere a vida, dispondo de
Já a destruição pela forma simbólica novas conduções das condutas dos
(MBEMBE, 2003/2018), se dá pela sujeitos a partir de dispositivos de
morte simbólica, muitas vezes podendo produção e regulação dos modos de ser.
ocorrer pelas superlotações em presídios,
onde indivíduos são “descartados” e Já Mbembe (2018), ao formular a
esquecidos, vivendo em aglomerações concepção de necropolítica baseando-se
humanas dentro de pequenos espaços. em uma perspectiva de morte em larga
Bem como através do impedimento de escala, tanto de forma concreta quanto
investimento nas áreas de saúde, simbólica, em um modelo de existência
educação, assistência social, segurança, pautado em lógicas econômicas
etc., o que acaba causando um estado de capitalistas, que resultou em sociedades
precariedade. Com a diminuição do de consumo cada vez mais fragmentadas,
orçamento de políticas públicas de propôs que o pensamento foucaultiano
saúde, educação, assistência social e acaba por não condizer à todas as
segurança, um sistema social permite-se conjunturas sociais, mas à apenas uma
escolher suas vítimas, produzindo assim parte delas: o contexto europeu.
efeitos nas intersubjetividades cotidianas
contemporâneas. Esses apresentam-se Ao longo deste ensaio, destacamos que
como alguns exemplos de uma houve a compreensão de que Mbembe
necropolítica em sua forma simbólica. (2018) apresenta uma contraposição à
biopolítica, todavia não a refuta. Hilário
Ao apresentarmos as diferentes
(2016), aborda que Mbembe enfatiza que
concepções teóricas acerca do
houve uma passagem de uma biopolítica
comportamento político de sociedades
para uma necropolítica, no que se refere
contemporâneas, propostas pelos dois
às realidades das periferias de sociedades
referidos autores principais que este
capitalistas na contemporaneidade
artigo trata, ressaltamos que, apesar dos
(África, América Latina e parte do
distintos pontos de vista, os aparatos
continente asiático).
teóricos destacados não caracterizam-se
como contrários, mas complementares; Ressaltamos que Mbembe (2018),
tendo em conta que Achille Mbembe através de suas concepções sobre
toma o pensamento de Michel Foucault necropolítica, visa ampliar discussões
como uma das bases para a formulação acerca do controle social das populações,
de sua teoria, sendo uma posterior à enquadrando-se na linha de pensamento
outra. surgida na África denominada
Considerações finais “periferias do capitalismo”, como
ressalta Hilário (2016). De acordo com
O presente trabalho objetivou Mbembe, a perspectiva foucaultiana é
problematizar dois conceitos: o de cunhada em um contexto eurocêntrico,
necropolítica, desenvolvido pelo não conseguindo abarcar o
camaronês Achille Mbembe (2018), em cotidiano/realidade de populações
contraste à ideia do filósofo francês periféricas na contemporaneidade.
Michel Foucault (2008) sobre Sendo assim, perspectivas como a de
biopolítica. Como apontado por Duarte Mbembe cabem para dar sentido à

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realidade de outros cenários sociais que as abordagens epistemológicas
estejam destoados do âmbito europeu. referentes ao pós-colonialismo. A
exemplo destacamos a obra Não, Ele
Salientamos que as duas conjunturas Não Está, da pesquisadora Maíra de
políticas destacadas neste trabalho Deus Brito, que, entre suas análises,
capturam as dimensões subjetivas dos avança na caracterização das dimensões
sujeitos, visto que os indivíduos se que compõem o genocídio negro e, nesse
produzem subjetivamente e se caso, aposta na potência da noção de
reconhecem enquanto sujeitos de acordo necropolítica para articular questões
com o contexto social o qual estão relativas à: violência de estado,
vivenciando. Tanto a biopolítica quanto adoecimento e a debates sobre as
a necropolítica articulam-se de acordo relações de gênero. Sua obra se
com lógicas de controle populacionais, caracteriza como uma voz que responde
assim, os sujeitos vão produzindo-se as de mulheres negras residentes nas
subjetivamente de acordo com suas periferias urbanas brasileiras, que
experiências nessas lógicas. perderam seus filhos para a violência do
Também destacamos que, em uma breve estado.
pesquisa sobre produções acadêmicas Podemos ainda citar outros trabalhos
(como livros, dissertações, teses e acadêmicos, como o artigo de Sulen
artigos), podemos identificar um Aires Gonçalves, “Parem de nos
gigantesco número de trabalhos que matar”: sobre dor e necropolítica no
abordam a potencialidade dos conceitos Brasil, e o texto de Juliana Borges
de biopolítica e necropolítica. Necropolítica na metrópole: extermínio
Foucault, como salientou Paul Veyne de corpos, especulação de territórios.
(1998), em certa medida, revolucionou Ambos textos buscam relacionar os
os estudos das áreas das Ciências debates de Mbembe sobre a experiência
Humanas e Sociais. Sua produção africana com a realidade social
acadêmica, em especial seus conceitos brasileira, a qual, assim como a África,
sobre relações de saber-poder, biopoder, se encontra na periferia do capitalismo.
biopolítica e modos de subjetivação, Como proposto em parágrafos
influenciaram uma gama de anteriores, o presente ensaio buscou
pesquisadores brasileiros, que realizar um breve debate entre alguns
produziram inúmeras discussões, conceitos de importantes pesquisadores
problematizações e debates sobre contemporâneos, de um lado o clássico
diferentes aspectos da sociedade filósofo francês Michel Foucault, e do
brasileira desde o final da década de outro, um dos mais importantes
1970 até a atualidade4. precursores do pensamento social
africano Achille Mbembe.
Já com relação a Achille Mbembe, sua
produção acadêmica também tem A partir das discussões aqui
ganhado destaque no contexto brasileiro, apresentadas, cabe a problematização de
em especial a partir da consolidação de como pode-se perceber o contexto social
grupos de pesquisas que têm se dedicado brasileiro contemporâneo. Este estaria
4
Ainda ocorrem no contexto brasileiro, uma (organizada pela Universidade Federal
série de seminários, colóquios e congressos que Fluminense) e Colóquio Nacional de Estudos
tratam sobre os pressupostos teórico- Discursivos Foucaultianos (Organizado pela
metodológicos foucaultianos. Exemplos: Universidade Federal da Paraíba).
Colóquio Nacional de Filosofia Michel Foucault

206
dentro das lógicas propostas a partir do Ed.). Trad. Maria E. Galvão. São Paulo: Martins
ponto de vista de uma biopolítica? De Fontes, 1999.
uma necropolítica? Ou apresentaria _________. História da sexualidade I: a
características para uma nova vontade de saber. (13ª Ed.). Trad. Maria T. da
concepção? Com a analítica proposta a Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.
Rio de Janeiro: Edições Graal, 2017.
partir deste trabalho, ficam abertos
espaços para estudos posteriores sobre o _________. Nascimento da biopolítica: curso
tema, levando em consideração no Collège de France (1978-1979), (1ª Ed.) Trad.
Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
perspectivas da sociedade brasileira. 2008.
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