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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Faculdade Mineira de Direito

Grayce Kelly de Oliveira Caldeira

HERMENÊUTICA JURÍDICO-PENAL: a (in)existência de fundamentos para a


criminalização do abortamento eletivo no Brasil

Betim
2023
Grayce Kelly de Oliveira Caldeira

HERMENÊUTICA JURÍDICO-PENAL: a (in)existência de fundamentos para a


criminalização do abortamento eletivo no Brasil

Monografia apresentada ao curso de Direito da


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
como requisito parcial para obtenção do título de
bacharela em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Renato Patrício Teixeira

Betim
2023
Grayce Kelly de Oliveira Caldeira

HERMENÊUTICA JURÍDICO-PENAL: a (in)existência de fundamentos


para a criminalização do abortamento eletivo no Brasil

Monografia apresentada ao curso de Direito da


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
como requisito parcial para obtenção do título de
bacharela em Direito.

______________________________
Prof. Dr. Renato Patrício Teixeira - PUC Minas (Orientador)

______________________________
Prof. Dr. Xxx - PUC Minas (Banca Examinadora)

_______________________________
Prof. Dr. Xxx - PUC Minas (Banca Examinadora)

Betim, 04 de dezembro de 2023


AGRADECIMENTOS

A quem aguarda um discurso metafísico ocidental aqui, sinto muito. Quero


agradecer, primeiramente, a mim, por ter me sustentado até aqui, por ter me
esforçado, por ter feito escolhas muito razoáveis no passado, por ter decidido confiar
mais em mim, por sempre ter sido sensível à causa das mulheres.
Agradeço com todo o meu coração à minha amada família, Maria Aparecida
de Oliveira e Danilo Celso de Oliveira Caldeira, por ter lutado por mim enquanto eu
pensava que só trazia problemas.
Agradeço ao Fernando Martins Teixeira Rodrigues, por todo apoio e suporte
emocional que conseguiu me dar.
Ao meu orientador, Professor Renato Patrício Teixeira, pessoa pela qual tenho
enorme apreço, tanto pelo seu comprometimento com a docência quanto pela sua
competência.
À Denise Maria Silva da Fonseca, colega de turma por alguns semestres
dessa graduação em Direito e grande amiga que pagou meses de aluguel para mim,
para que eu pudesse continuar os estudos em Betim. Sem a Denise, eu não teria
chegado até aqui.
À todos os meus amigos que, com muita solidariedade, dispuseram do seu
tempo para criticar este trabalho.
Por fim, agradeço a todos os cidadãos brasileiros que sabiamente elegeram,
em 2003, um governo cuja agenda política impulsionou a chegada de jovens pobres
nas universidades. Sou fruto de política pública para educação, sou ProUni e sou
muito grata.
A existência precede a essência
(SARTRE, 1984)
RESUMO

O intuito desta monografia é discorrer sobre as boas razões e a necessidade


jurídicas da legalização da prática do abortamento eletivo até o terceiro mês de
gestação no Brasil, com base no uso da hermenêutica jurídica. Para tanto, faz-se
uso, como argumento principal, da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) nos
autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 54, que
tratou do abortamento de feto anencefálico, e do conceito de morte adotado pelo
ordenamento jurídico brasileiro, como vetor hermenêutico justificativo da legalização
do abortamento voluntário. O procedimento metodológico eleito foi, principalmente, a
revisão da literatura, embora se tenha procedido também à análise de decisão, a fim
de compreender melhor os argumentos utilizados na mencionada ação de controle
de constitucionalidade concentrado. Esta monografia goza de certo grau de
interdisciplinaridade, pois presente o direito e algumas discussões da filosofia, de
forma a contextualizar o leitor quanto ao caráter ontológico, interpretativo e moral do
problema do aborto. Conclui-se que a legalização da prática do aborto eletivo
afigura-se necessária para promover a harmonização de todo o sistema jurídico,
com seus princípios e regras e o precedente de suma importância analítica e
hermenêutica que representa a ADPF n. 54.

Palavras-chave: abortamento; legalização; ADPF n. 54; hermenêutica


ABSTRACT

The purpose of this monograph is to discuss the good reasons and the legal
need for legalizing the practice of elective abortion up to the third month of pregnancy
in Brazil, based on the use of legal hermeneutics. To this end, we use, as the main
argument, the decision of the Federal Supreme Court (STF) in the records of the
ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) n. 54, which dealt
with the abortion of an anencephalic fetus, and the concept of death adopted by the
Brazilian legal system as a hermeneutic vector justifying the legalization of voluntary
abortion. The methodological procedure chosen was mainly the literature review,
although decision analysis was also carried out, in order to better understand the
arguments used in the aforementioned concentrated constitutionality control action.
This monograph enjoys a certain degree of interdisciplinarity, as it presents the law
and some discussions of philosophy, in order to contextualize the reader regarding
the ontological, interpretative and moral character of the abortion problem. It is
concluded that the legalization of the practice of elective abortion appears necessary
to promote the harmonization of the entire legal system, with its principles and rules
and the precedent of utmost analytical and hermeneutical importance that represents
ADPF n. 54.

Keywords: abortion; legalization; ADPF n. 54; hermeneutics


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO...................................................................................................8

2 TEORIA ANALÍTICA E O CONCEITO DE CRIME NO BRASIL.................... 10


2.1 Aspectos gerais sobre o ato típico, a ilicitude e a culpabilidade..............12

3 ABORTAMENTO: DA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL AO TRATAMENTO


LEGAL CONFERIDO À PRÁTICA NO BRASIL.............................................16
3.1 Abortamento: Conceitos elementares no âmbito da Medicina e do
Direito..............................................................................................................16
3.2 Espécies de abortamento previstos na legislação brasileira....................20
3.2.1 O Abortamento do feto anencefálico: as discussões travadas nos autos
da ADPF n. 54.................................................................................................29
3.2.1.1O conceito de morte adotado pela legislação pátria....................................... 37
3.2.2 Posicionamento do Conselho Federal de Medicina e o aborto de
anencéfalo...................................................................................................... 41

4 HÁ RAZÕES HERMENÊUTICO-JURÍDICAS PARA DESCRIMINALIZAR


E/OU LEGALIZAR A PRÁTICA DE ABORTAMENTO NO BRASIL?............ 45
4.1 Descriminalização versus legalização: distinções necessárias............... 45
4.2 A Lei n. 9.434/1997 e as definições de início e fim da vida........................48
4.2.1 As mais relevantes proposições teóricas formuladas...............................49
4.3 Autonomia privada e liberdade sobre o próprio corpo..............................56
4.4 A decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos da ADPF n.
54: vetor de hermenêutica jurídico-penal autorizativo da legalização da
prática de abortamento eletivo no Brasil.................................................... 61

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 67

REFERÊNCIAS............................................................................................... 68
8

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, até então, há três permissivos legais que autorizam a prática do


abortamento. Dois estão positivados no Código Penal (CP) desde 1940 e um passou
a existir a partir do julgamento em 2012 da ADPF n. 54, que versa sobre a
descriminalização da prática do aborto de feto anencéfalo. Respectivamente, quais
sejam: a) aborto necessário, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante
(inciso I, art. 128, CP); b) aborto no caso de gravidez resultante de estupro, quando
a gravidez é fruto de estupro e o abortamento é feito com o consentimento da
gestante ou de seu representante legal, se esta for incapaz (inciso II, art. 128, CP); e
c) aboto de feto diagnosticado com anencefalia, com o consentimento da gestante e
feito por profissional da saúde.
A despeito dessas três hipóteses supramencionadas no caso brasileiro, as
legislações sobre o aborto vêm sofrendo alterações em países ao redor do mundo
há algum tempo, na maioria das vezes no sentido de acolher o discurso da liberdade
e autonomia privada da mulher, bem como colocando em jogo as noções de vida.
Seu início e fim, se sua proteção é absoluta, se o feto a pertence ou a partir de que
momento a pertence e, se pertence, se a vida intrauterina é digna da mesma
proteção dispensada a da mulher (DWORKIN, 2003). É o que se infere, por
exemplo, das recentes flexibilizações ocorridas na legislação de países da América
Latina, como Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Argentina, Chile e Colômbia, esses
três últimos mais recentemente (JÚNIOR OLIVEIRA, 2022).
O problema que enfrenta este trabalho é: a criminalização da prática do
abortamento, materializada no conjunto normativo ensejado pelos arts. 124 a 127 do
CP, pelo menos no que se refere ao aborto voluntário realizado por volta do terceiro
mês de gestação, ainda hoje, está em conformidade com o ordenamento jurídico,
entendido este como um conjunto integral e vivo de regras e princípios?
O objetivo macro foi o de analisar as possibilidades de descriminalização e/ou
legalização da prática do abortamento, mas para isso lançamos mão dos seguintes
objetivos específicos: analisar os precedentes mais relevantes no judiciário brasileiro
sobre o tema, analisar a decisão proferida nos autos da ADPF n. 54, como,
efetivamente, vetor hermenêutico para este trabalho, analisar as discussões sobre
9

início e fim da vida, levando em consideração o conceito de morte adotado pelo


direito brasileiro e suas conexões com a autonomia da mulher.
Para tanto, foi utilizado a revisão da literatura, bem como a técnica de análise
de decisão, com ênfase, por óbvio, na decisão da ADPF n. 54. Destarte,
categorizamos a abordagem do trabalho monográfico, grosso modo, da seguinte
forma: a) a teoria analítica e o conceito de crime no Brasil, onde se fala sobre o fato
típico, ilícito e culpável; b) os conceitos elementares à temática, como os de aborto e
abortamento e suas significações para a medicina e o direito, assim como o
tratamento legal conferido à morte e à prática do abortamento no Brasil; e c) se há
razões hermenêutico-jurídicas para descriminalizar e/ou legalizar a prática do
abortamento no Brasil.
O referido tema goza de relevância jurídica pois pretende, com a
descriminalização/legalização do abortamento, dar continuidade à esteira
hermenêutica que o STF veio construindo quando indagado em algumas ações de
controle concentrado de constitucionalidade sobre a vida humana. Mas também
goza, demasiadamente, de relevância social, visto tratar-se de assunto muito caro à
autonomia física, ética e política da mulher, clase sexual diretamente atingida e
principal destinatária de qualquer legislação sobre o aborto, visto ser o sexo uma
categoria de status com implicações políticas (MILLET, 1971).
10

2 TEORIA ANALÍTICA E O CONCEITO DE CRIME NO BRASIL

Em teoria do crime e no estudo da dogmática jurídica penal sempre


analisamos, antes de mais nada, qual é, afinal, o conceito de crime, até por que “A
primeira tarefa que tem a dogmática jurídico-penal é a de conhecer o sentido dos
preceitos penais, seguindo as pautas de uma elaboração sistemática” (BUSATO,
2015, p. 5).
Tal conceito é de suma importância para elaborações mais sofisticadas dentro
do Direito Penal enquanto ciência autônoma, para proporcionar maiores e melhores
análises para as ciências correlatas como a criminologia p. ex., e, em termos
práticos, para criar segurança jurídica. Esse é o pensamento de Cezar Roberto
Bitencourt e de outros autores que o mesmo referencia, quando diz:

Com efeito, pela dogmática jurídico-penal podemos chegar à elaboração de


conceitos que, uma vez integrados, permitem a configuração de um sistema
de Direito Penal para a resolução dos conflitos gerados pelo fenômeno
delitivo. Nesse sentido, concordamos com Silva Sánchez que o estudo da
dogmática proporciona ‘uma segurança jurídica que de outro modo seria
inexistente’172, e que, para o conhecimento das categorias jurídicas, ‘a
dogmática jurídico-penal constitui a ciência do Direito penal por excelência’
(BITENCOURT, 2023, p. 52).

Ademais, o conceito de crime importa demasiadamente a este estudo por


razões óbvias, uma vez que estamos tratando de uma conduta até então
incriminada. Desse modo, passaremos a uma abordagem sintética sobre seu
significado no Brasil e os elementos que o integra.
A palavra crime pode ser conceituada sob o aspecto formal, material e
analítico (ANDREUCCI, 2021). O autor Ricardo Antônio Andreucci resume da
seguinte forma: “Conceito material de crime: violação de um bem penalmente
protegido. Conceito formal de crime: conduta proibida por lei, com ameaça de pena
criminal. Conceito analítico de crime: fato típico, antijurídico e culpável”
(ANDREUCCI, 2021, p. 81).
O conceito analítico é aquele que propõe uma estratificação dos elementos
da infração penal. Nada mais é do que o conceito formal fragmentado de forma que
permite sua análise mais apurada (ANDREUCCI, 2021). Além do mais, “Os
conceitos formal e material são insuficientes para permitir à dogmática penal a
11

realização de uma análise dos elementos estruturais do conceito de crime”


(BITENCOURT, 2023, p. 139).
Novamente e em outros termos, o conceito material seria o clamor da
civilização que perante uma situação entendida como naturalmente injusta, grita:
“Isso é um crime!”, o conceito formal é a formalização da vontade e valoração sociais
por meio do poder legislativo, concretizando nada mais nada menos que o princípio
da reserva legal (nullum crimen nulla poena sine lege) (NUCCI, 2022) e o conceito
analítico é invenção de uma sociedade ilustrada sedenta por critérios objetivos,
observáveis e repetíveis, em que, por meio da divisão metódica do crime em partes -
fato típico, ilícito e culpável -, seria possível que pessoas diferentes e em casos
diferentes, conseguissem percorrer o mesmo caminho, não ficando mais o indivíduo
à mercê de julgamentos religiosos ou arbitrários (BITENCOURT, 2023).
Durante os anos, principalmente desde o Iluminismo, movimento jusfilosófico
em que muito se estudava o direito penal e seu uso como limite ao poder estatal
(BITENCOURT, 2023), foram elaborados diversos sistemas visando explicar a
melhor estratificação do delito e, então, poder conceituá-lo, sendo os principais o
Sistema Causal-Naturalista, Sistema Neoclássico, Sistema Finalista, Sistema Social
e Sistema Funcionalista (ANDREUCCI, 2021).
Registre-se, no entanto, que o conceito analítico de crime não está
necessariamente vinculado ao sistema x ou y (NUCCI, 2022) e que “Esse conceito
analítico de crime continua sendo sustentado em todo o continente europeu, por
finalistas e não finalistas” (BITENCOURT, 2023, p. 139), isso porque o conceito
analítico é um método e como tal pode ser usado por quaisquer desses sistemas.
No Brasil, a doutrina majoritária adota a Teoria Finalista em seu caráter
tripartite, para quem crime é: fato típico, antijurídico e culpável; mas há também a
teoria finalista bipartida, a qual defende que crime é o fato típico e ilícito apenas,
pois, para essa subteoria, em resumo: “a culpabilidade não é requisito do crime, mas
pressuposto de aplicação da pena” (ANDREUCCI, 2021, p. 83).
No entanto, para Andreucci (2021, p. 84), “o nosso Código Penal seguiu a
orientação da Teoria Finalista Bipartida”.

embora a Teoria Finalista Tripartida seja a mais aceita pelos estudiosos do


Direito Penal, inclusive na doutrina pátria, os fundamentos da Teoria
Finalista Bipartida são inafastáveis, ainda mais à luz da redação de certos
dispositivos do Código Penal, excluindo a culpabilidade através da utilização
12

da expressão é isento de pena. Percebe-se claramente que inserir a


culpabilidade como elemento do crime faz remontar à teoria clássica, onde o
dolo e a culpa, como elementos subjetivos do injusto, integravam a
culpabilidade (ANDREUCCI, 2021, p. 84).

Observa Bitencourt, por outro lado, que “o atual Código Penal (1940, com a Reforma
Penal de 1984) não define crime, deixando a elaboração de seu conceito à doutrina
nacional” (2023, p. 140), que, a saber, entende crime como fato típico, ilícito e
culpável (NUCCI, 2022).
Por fim, tendo em vista ser nacionalmente e internacionalmente mais adotada
a concepção finalista e ainda tripartida de crime e, para fins de compreendermos no
que consiste cada uma dessas três “etapas” fracionadas do conceito analítico,
falaremos a seguir, também de maneira não exaustiva, sobre o significado de
tipicidade, ilicitude e culpabilidade.

2.1 Aspectos gerais sobre o ato típico, a ilicitude e a culpabilidade

O consenso praticamente majoritário da doutrina em conceituar crime como


sendo uma ação típica, ilícita e culpável, além de que o mesmo possa
eventualmente pressentir de requisitos específicos de punibilidade, é justamente
produto do estudo e categorização de cada um desses elementos, com seus
significados e limites e a forma como se relacionam entre si (BITENCOURT, 2023),
e, por causa de tamanha importância, passaremos a falar individualmente de cada
um.
O fato típico nada mais é do que a conduta humana, a ação da vida real (ou a
omissão da mesma) que tem implicação jurídico penal, ou seja, uma conduta que
provoca um resultado previsto na lei penal como sendo um tipo penal (ANDREUCCI,
2021). Para ser um fato típico, é necessário que essa conduta humana se enquadre
perfeitamente em alguns elementos, que são: “a) conduta humana dolosa ou
culposa; b) resultado; c) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado; d)
enquadramento do fato material a uma norma penal incri­minadora” (ANDREUCCI,
2021, p. 94).
Tipo é o conjunto de elementos descritivos que juntos formam um molde, no
qual pode se encaixar a conduta humana. Quando ocorre o perfeito encaixe da
13

conduta no tipo penal, ocorre o que chamamos de adequação típica (ANDREUCCI,


2021). De forma didática, o autor Andreucci elenca as características do tipo penal:

a) cria o mandamento proibitivo;


b) concretiza a antijuridicidade;
c) assinala o injusto;
d) limita o injusto;
e) limita o iter criminis, marcando o início e o término da conduta;
f) ajusta a culpabilidade ao crime considerado;
g) constitui uma garantia liberal, pois não há crime sem tipicidade
(ANDREUCCI, 2021, p. 96).

Percebemos também essas características na conceituação do tipo em


Bitencourt, ao afirmar que o tipo desempenha uma “função limitadora e
individualizadora” das ações humanas que ferem bens jurídicos penalmente
relevantes. Estes, são construção humana, frutos do poder legislativo quando
descreve em tipos penais diversos e únicos as ações humanas indesejadas. É uma
descrição abstrata, sendo que cada tipo possui características e elementos próprios,
com funções específicas cada qual, o que, inclusive, impede o julgador de usar
analogia ou interpretação extensiva na falta de adequação típica (BITENCOURT,
2023).
Bitencourt faz um apontamento útil sobre a diferença entre tipo e crime que
vale a pena transcrever:

Nesses termos, optamos claramente por manter o tipo como categoria


sistemática autônoma frente à antijuridicidade. Ademais, seguindo o modelo
valorativo escalonado do fenômeno delitivo, entendemos que o conceito de
tipo não tem o mesmo significado de crime, pois, para identificar uma
conduta como crime, é necessário, ainda, analisar se a conduta típica é
antijurídica e culpável (BITENCOURT, 2023, p. 172).

A tipicidade, por sua vez, “pode ser definida como a correspondência exata ou
a adequação perfeita entre o caso concreto (fato da vida real) e a descrição contida
na norma penal incriminadora (tipo penal), produzindo o fato típico” (JALIL;
GRECO FILHO, 2023, p. 66, grifo nosso).
Saliente-se portanto que, como produto do perfeito enquadramento do fato da
vida ao tipo penal, o fato típico dá concretude à ideia de delinear “o direito de punir
abstrato e o jus libertatis a ele concernente” (ANDREUCCI, 2021, p. 96), revelando,
pois, a segurança jurídica aspirada quando da formulação das teorias do delito.
14

A segunda “categoria” do moderno conceito de delito, a antijuridicidade ou


ilicitude consubstancia-se, basicamente, na contrariedade entre o fato típico e a lei,
ou seja, além do fato estar tipificado na lei penal, deve também a ela contrariar, bem
como não ter resguardo em qualquer excludente, em qualquer situação previamente
descrita na lei que retire o caráter ilícito da conduta. Isso ocorre porque o fato típico
já carrega consigo uma carga de ilicitude presumida, que só será efetivamente
apurada quando da análise de causa excludente de ilicitude que eventualmente se
aplique ao caso concreto (ANDREUCCI, 2021). Em resumo: “As causas de exclusão
da antijuridicidade são causas de justificação da prática do fato típico, que o tornam
jurídico, ou seja, não vedado nem proibido pelo ordenamento jurídico”
(ANDREUCCI, 2021, p. 127).
Por fim, no terceiro elemento do crime, em sua conceituação analítica
conforme discorrido alhures, temos a culpabilidade. A culpabilidade, por ter tido
inicialmente uma conceituação baseada em características subjetivas, composta
também por atributos do estado anímico do sujeito autor do crime, foi ressignificada
diversas vezes, acompanhando as teorias (BITENCOURT, 2023).

Com o finalismo, a teoria do delito encontra um dos mais importantes


marcos de sua evolução. A contribuição mais marcante do finalismo, como
já indicamos, foi a retirada de todos os elementos subjetivos que integravam
a culpabilidade, nascendo, assim, uma concepção puramente normativa
(BITENCOURT, 2023, p. 139).

Em outras teorias diversas do finalismo, a culpabilidade foi entendida de


formas diferentes. Andreucci menciona como exemplo o sistema clássico com a
teoria psicológica da culpabilidade e o sistema neoclássico com a teoria
psicológico-normativa ou normativa da culpabilidade, em que a análise do dolo e da
culpa posicionava-se na culpabilidade. Com a metodologia posta pelo finalismo e
sua teoria normativa pura da culpabilidade, então, a culpabilidade foi esvaziada,
ficando incubida apenas das “circunstâncias que condicionam a reprovabilidade da
conduta contrária ao Direito” (BITENCOURT, 2023, p. 139), ou seja, apenas com
elementos normativos, e o dolo e a culpa, então, ficaram a cargo do “injusto”, hoje
chamado de fato típico (BITENCOURT, 2023).
A par dessa introdução histórica da evolução da culpabilidade, ficamos agora
com o seu conceito. Primeiramente, como se já não estivesse presumido no
parágrafo anterior, registre-se que culpa e culpabilidade não são sinônimos.
15

Andreucci faz essa ressalva: “Culpabilidade não se confunde com culpa. Culpa é
elemento subjetivo do crime, encontrando-se situada no fato típico, juntamente com
o dolo” (ANDREUCCI, 2021, p. 138).
Em linhas gerais, até porque pode-se conceituar a culpabilidade de forma
normativa, mas também funcional (Roxin e Jakobs), a culpabilidade é “a reprovação
pessoal que se faz contra o autor pela realização de um fato contrário ao Direito,
embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez” (BITENCOURT,
2023, p. 222). E tem hoje em dia como sendo seus elementos a imputabilidade, a
potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa (ANDREUCCI,
2021).
Estes são, então, considerando-se as principais teorias, os elementos do
crime em sua forma analítica, metódica, a forma que nos interessa aqui. Assim,
crime que é, falaremos a seguir sobre o abortamento, tanto para o direito, quanto
para a medicina, uma vez tratar-se de assunto também (e principalmente) afeto à
saúde.
16

3 ABORTAMENTO: DA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL AO TRATAMENTO LEGAL


CONFERIDO À PRÁTICA NO BRASIL

Neste capítulo será abordado: os conceitos de aborto e abortamento e a


diferença desses conceitos para a medicina e para o direito, as espécies de
abortamento, as principais discussões travadas nos autos da ADPF n. 54 e o que o
ordenamento jurídico brasileiro atualmente entende como morte.

3.1 Abortamento: Conceitos elementares no âmbito da Medicina e do Direito

É necessário esclarecer alguns conceitos elementares a esta pesquisa, dentre


eles está o de aborto e o de abortamento. “A palavra aborto tem sua origem no latim
abortus e significa privação (ab) do nascimento (ortus)” (SÁ; NAVES, 2023, p. 20).
Aborto, na verdade, é a consequência da prática do abortamento, sendo esta, em si,
a terminologia adequada para o tratamento jurídico-penal. O abortamento, por sua
vez, é a interrupção natural ou não da gestação. Porém, no dia a dia usa-se o termo
aborto, que veio a ser aceito como o próprio ato (PRADO, 1985).
Também para Damásio de Jesus, a palavra abortamento tem maior
significado técnico que aborto. Abortamento seria a conduta de abortar, a prática. O
aborto, por sua vez, é o produto da concepção cuja gestação foi interrompida.
(1999). Porém, reiterando, observa-se que a expressão aborto é mais comum e foi
empregada pelo CP (Código Penal) em vigor, vide artigos 124 a 128 do CP.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o conceito de aborto em
1977, com o fito de unificar critérios e assim não subestimar a morte fetal. Dessa
forma, definiu como sendo a expulsão ou extração uterina de um embrião ou feto de
500g ou menos (FREITAS, 2011). Depois, estabeleceu-se a idade gestacional para
se configurar o aborto como sendo de vinte e duas semanas, por volta de quando o
feto estará com o peso mencionado, colocando ainda a condição de o feto ainda não
ser viável fora do ventre da mãe (FREITAS, 2011).
A viabilidade extra uterina é um conceito que já se alterou algumas vezes e
depende do estado da arte da medicina e da tecnologia (SILVA, 2015). Segundo
Freitas (2011), atualmente, a viabilidade extra uterina é compreendida em torno do
limite das vinte e duas semanas de gestação. Nesse entorno, o feto se encontra na
famosa zona cinzenta.
17

A zona cinzenta de viabilidade neonatal compreende os RN com idade


gestacional (IG) entre 20(°/7) e 25(6/7) semanas.3,4 Para esse grupo, a linha
que separa a autonomia do paciente - e, nesses casos, dos pais - das
possibilidades terapêuticas não é bem-definida, tornando o processo de
decisão médica complexo e carente da consideração de diversos fatores,
inclusive dos aspectos éticos envolvidos (PEIXOTO; ARAÚJO; BUENO;
QUINTANS, 2019, p. 11).

A Sociedade Brasileira de Pediatria, por meio de seu Programa de


Reanimação Neonatal estabelece como sendo entre 22 a 23 semanas de idade
gestacional (IG) o limite de viabilidade extra uterina no Brasil (SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PEDIATRIA, 2016).

As possibilidades de se garantir a vida e de postergar a morte aumentaram


segundo os avanços das pesquias e descobertas médicas. A viabilidade da
vida extra-uterina depende, em caso de necessidade além do natural, de
suporte tecnológico disponível (oxigênio, assistência respiratória mecânica,
assistência vasomotora, nutrição, hidratação). Há 20 anos, um feto era
considerado viável ao completar 28 semanas. Hoje, bastam 24 semanas ou
menos (BRASIL, [2013], p. 192 de 433).

Assinala Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves


que "A caracterização do aborto não é unânime. Porém, medicamente, costuma-se
considerar aborto, ou abortamento, a interrupção da gravidez até a 20ª ou 24ª
semana" (SÁ; NAVES, 2023, p. 20).
Percebe-se até aqui que, definir o acontecimento aborto, ainda sem
implicações sociais, aplicadamente jurídicas, exige um certo limite temporal, visto
que sem este poderíamos não estar tratando de aborto, mas de nascimento
prematuro. Como se percebe, a medicina trabalha com linhas e limites de tempo. No
Direito, por sua vez, o aborto ganha (ou perde) contornos temporais diferentes, tal
qual veremos a frente.
Para falarmos melhor sobre esses conceitos no que tange ao direito, frize-se,
primeiramente, que o aborto pode ser espontâneo/natural ou induzido (também
chamado de procurado, voluntário, autoaborto, eletivo ou interrupção voluntária da
gravidez). O abortamento espontâneo ou involuntário é “a morte embrionária ou fetal
não induzida ou a eliminação dos produtos da concepção antes de 20 semanas de
gestação” (DULAY, 2022).
Ou seja, um aborto espontâneo ocorre quando interrompe-se a gestação de
maneira abrupta, por vontade do próprio organismo da mulher. O diagnóstico se dá
18

por critérios clínicos e exame de imagem e o tratamento geralmente é a observação


das ameaças de abortamento ou, se já ocorreu ou é inevitável, realiza-se também
observação ou evacuação uterina (DULAY, 2022). Oito até quinze por cento do total
de abortos ocorre dessa forma. Muitos pesquisadores afirmam, inclusive, que
cinquenta por cento do total de gravidezes podem terminar involuntariamente
(ARNAUD, 2008).
O feto vindo a ser expulso ou perecer naturalmente e involuntariamente é fato
da vida real que não dá vazão à ação do Direito Penal, uma vez não ter se
configurado o fato típico, não ter tido ação da mulher que ocasionou a morte do feto.
A saber, este aborto involuntário, além de não ser repreendido juridicamente,
também não o é moralmente, ao contrário do aborto voluntário. Segundo a
professora doutora em História do Brasil Colonial Mary Lucy Murroy Del Priore,

Alinhada ao lado da Igreja, a ciência médica tratava do que, aos olhos de


‘Cristo Nosso Senhor’, fosse suscetível de cura, e o aborto involuntário
enquadrava-se nesta lógica. Do outro lado deste limite quase geográfico,
proliferavam os abortos voluntários, perpetrados por comadres e parteiras
em mulheres cuja ética não se enquadrava nos pressupostos da mesma
Igreja. A disputa entre o saber e o saber fazer acabava por caricaturar e
enxovalhar tanto a mulher vítima do aborto voluntário quanto a parteira que
o realizava (DEL PRIORE, 2009, grifo nosso).

De outro modo, no aborto voluntário, ocorre a morte do feto por uma ação
humana deliberada. A conduta, então, incorrerá num dos enquadramentos penais
dispostos nos arts 124 e 126 do CP, que serão oportunamente comentados. Neste
caso, faz-se necessário uma conceituação do aborto pelas lentes do Direito Penal.
O Código não define exatamente o que significa aborto, nem mesmo aponta
os limites temporais para sua ocorrência dolosa (PRADO, 2021). Portanto, segundo
Luiz Regis Prado (2021), pode ser considerado como elemento normativo
extrajurídico do tipo, já que sua exata definição exige um juízo de valor não
exatamente jurídico, mas empírico-cultural, que é fornecido pelas ciências médicas e
biológicas.
Nesse mesmo sentido, Cezar Roberto Bitencourt também fala que o nosso
Código se limita “a adotar a fórmula neutra e indeter­minada ‘provocar aborto’, algo
semelhante a, somente para exemplificar, ‘provocar homicídio’, em vez de ‘matar
alguém’” (BITENCOURT, 2022, p. 126).
19

Por causa dessa inexatidão, Prado critica a visão de muitos doutrinadores que
entendem suficiente para a configuração do crime em comento a mera interrupção
da gravidez a qualquer tempo antes do nascimento, já que “a mera interrupção da
gestação, por si só, não implica aborto, dado que o feto pode ser expulso do ventre
materno e sobreviver ou, embora com vida, ser morto por outra conduta punível
(infanticídio ou homicídio)” (PRADO, 2021, p. 109). Para tanto, o autor comenta
sobre as modernas técnicas de reprodução assistida, aduzindo que o embrião pode
ser transferido para outra mulher, e que no caso de uma gravidez múltipla, a
destruição de um dos fetos não necessariamente vai interromper o processo de
gestação (PRADO, 2021).

também a expulsão do feto não é imperiosa para a configuração do


aborto.185 Nos primeiros meses de gravidez, é possível que o embrião seja
objeto de um processo de autólise, que termina com sua reabsorção pelo
organismo materno. Ademais, pode o embrião passar por um processo de
calcificação (litopédio) e permanecer no útero como um corpo anexo
(PRADO, 2021, p. 109).

Portanto, tais fenômenos, analisados isoladamente, não permitem


compreender com exatidão o aborto (PRADO, 2021). Nessa toada, após apresentar
as razões de suas crítcas, o autor finalmente descreve o que entende por aborto. Ele
ensina: “O aborto consiste, portanto, na morte dada ao embrião ou feto humanos no
claustro materno ou pela provocação de sua expulsão prematura” (PRADO, 2021, p.
109). Nesta última hipótese, exige-se a falta de viabilidade e de maturidade do feto
expulso (PRADO, 2021).
Na conceituação de Hélio Gomes, diferentemente de Luiz Regis Prado “É a
interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão,
qualquer que seja seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do
parto” (GOMES, 2003, p. 44).
A tipificação do aborto criminoso tem como bem jurídico a tutela da vida
intrauterina. Nas palavras de Luiz Regis Prado: “O bem jurídico tutelado pelos
artigos 124, 125 e 126 do Código Penal é a vida do ser humano dependente, em
formação – embrião ou feto. Protege-se a vida intrauterina, para que possa o ser
humano desenvolver-se normalmente e nascer” (2021, p. 107). Adiante o autor
assinala que “A vida humana, dependente ou independente, não é um bem jurídico
coletivo, mas individual por excelência” (PRADO, 2021, p. 109).
20

César Roberto Bitencourt, a seu turno, conceitua o bem jurídico tutelado da


seguinte forma:

O bem jurídico protegido é a vida do ser humano em formação, embora,


rigorosamente falando, não se trate de crime contra a pessoa. O produto da
concepção — feto ou embrião — não é pessoa, embora tampouco seja
mera esperança de vida ou simples parte do organismo materno, como
alguns doutrinadores sustentam, pois tem vida própria e recebe tratamento
autônomo da ordem jurídica (BITENCOURT, 2022, p. 126).

O que se pode concluir após essa breve e indispensável conceituação do


aborto consoante a ótica das ciências naturais, bem como do Direito, é que a
Medicina considera aborto apenas o ocorrido quando ainda não há viabilidade do
feto sobreviver fora do corpo da mãe, quando são apenas um, portanto. Isso porque,
após determinado momento, pode ocorrer o nascimento prematuro. O Direito Penal,
embora haja críticas a tal entendimento, a seu turno, criminaliza a prática do
abortamento a entendendo como sendo a expulsão deliberada do feto a qualquer
momento da gestação e não apenas quando o feto é dependente do organismo da
mãe, dado que a lei penal tutela a vida intrauterina da concepção ao nascimento.

3.2 Espécies de abortamento previstos na legislação brasileira

Embora tenhamos diferenciado o aborto espontâneo do induzido no tópico


anterior, diferenciação basilar que nos permite compreender se, a princípio, o fato
ocorreu por vontade ou não da gestante e, ato contínuo, se é crime ou não, cabe
ainda falar sobre os vários tipos e nomenclaturas relacionadas ao abortamento.
Essas espécies de aborto, variam a depender do período gestacional, se da
linguagem técnico-jurídica, das ciências naturais ou se das ciências sociais.
O período gestacional por que passa uma mulher, dura em média 38 a 40
semanas, contados a partir da última ovulação da mulher até o parto. Os
especialistas da Biologia usam variados termos para categorizar as várias etapas
dentro de uma gestação, ou seja, as várias etapas da vida pré-natal: zigoto,
pré-embrião, embrião e feto (DWORKIN, 2003).
Para cada uma dessas fases, como também a depender da área do
conhecimento, pode haver uma ou outra terminologia para designar o produto da
concepção. Adianto que nessa pesquisa como um todo, não obstante, usaremos o
21

termo feto para designar a vida intrauterina, sem adentrar às diferenciações técnicas
da literatura das ciências naturais.
As primeiras (e mais importantes a este estudo) espécies de abortamento a
serem comentadas são previstas expressamente no CP, onde encontramos tanto as
práticas proibidas quanto as permitidas. Hoje no Brasil uma mulher só pode abortar,
com os respaldos que a lei a confere, em três situações. Duas delas são
expressamente previstas no Código Penal desde 1940, no capítulo dos crimes
contra a vida e a terceira hipótese passou a figurar no ordenamento jurídico
brasileiro por meio do julgamento da ADPF n. 54, consubstanciada numa causa
excludente de tipicidade (PIERANGELI apud PRADO, 2021), que é supralegal. Se
trata essa hipótese de uma interrupção terapêutica da gravidez quando o feto é
anencéfalo, que será melhormente explicada em tópico próprio.
As situações supramencionadas são normas penais permissivas, ou seja, são
normas que excluem a tipicidade ou a antijuridicidade do fato, a culpabilidade do
sujeito ou a punibilidade do crime (JESUS, 1999). Estas normas estão esculpidas no
art. 128 do Código Penal, in verbis:

Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:


Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal
(BRASIL, [2023]).

Nesses incisos, portanto, encontramos as figuras do aborto necessário e do


aborto de gravidez advinda de estupro. Aquele, também chamado de terapêutico,
não é proibido desde que seja a única forma de salvar a vida da gestante e este,
também chamado de aborto sentimental ou humanitário, também permitido, trata-se
do abortamento do produto da concepção de um estupro (JESUS, 1999).
Para Guilherme de Souza Nucci, a excludente de ilicitude do inciso I trata-se
de “uma modalidade especial de estado de necessidade”, enquanto a do inciso II,
que o doutrinador também chama de piedoso, “representa uma forma especial de
exercício regular de direito'' (NUCCI, 2022, p. 558). Nessas duas hipóteses, vale
dizer, apenas um médico pode realizar o procedimento, por ter o conhecimento
técnico adequado para saber exatamente se se trata da única forma de salvar a vida
da gestante e para fazer o procedimento com a segurança que é devida (NUCCI,
22

2022). Até porque, no caso do aborto terapêutico, o procedimnto é evacuar, através


de técnicas controladas e científicas, a cavidade uterina, esvaziando-a por completo
(ARNAUD, 2008), o que demanda especial conhecimento técnico.
Embora o Código Penal seja taxativo ao dizer que cabe ao médico, se o
procedimento for feito por outros profissionais da saúde como por exemplo por uma
enfermeira ou até mesmo por uma parteira, a mulher “poderá ser absolvida por
estado de necessidade (causa genérica de exclusão da ilicitude) ou até mesmo por
inexigibilidade de conduta diversa (causa supralegal de exclusão da culpabilidade),
conforme o caso” (NUCCI, 2022, p. 558).
No caso específico do inciso I, em face do conflito entre o direito da mãe e o
direito do feto, “o direito fez clara opção pela vida da mãe. Prescinde-se do
consentimento da gestante neste caso (art. 128, I, CP)” (NUCCI, 2022, p. 558).
No caso do inciso II, “Em nome da dignidade da pessoa humana, no caso a
da mulher que foi violentada, o direito permite que pereça a vida do feto ou embrião.
São dois valores fundamentais, mas é mais indicado preservar aquele já existente
(art. 128, II, CP)” (NUCCI, 2022, p. 558). Aqui, vale ressaltar que não se exige
condenação, quiçá trânsito em julgado em processo por estupro, pois o que importa
é o fato e não a sua autoria (NUCCI, 2022).
A título de curiosidade e informação, vale lembrar que, a despeito do inciso II
prever essa legalidade no caso do estupro, ainda assim é recorrente casos no Brasil
e também na América do Sul (vide caso n. 161-02 submetido à Comissão
Interamericana de Direitos Humanos) em que juízes e juízas criam óbices para que
mulheres e até mesmo crianças possam concretizar o procedimento, a ser realizado
por médico, que na verdade não requer sequer autorização. É o caso, por exemplo,
do ocorrido no mês de junho de 2022 no Brasil, quando uma juíza de Santa Catarina
ignorou a lei para tentar convencer uma criança de 10 anos, estuprada já há alguns
anos pelo tio a aguentar “mais um pouquinho” para ter o bebê, pois a tristeza dela
seria a alegria de um família, disse a magistrada (BORGES; BATÌSTELA, 2022).
Em casos como esse é que compreendemos perfeitamente Simone de
Beauvoir quando ela diz, ao falar sobre a condição da mulher enquanto o outro, que
a mulher não é compreendida em si mesma, mas relativamente ao homem e que:
“Mesmo quando os direitos lhe são abstratamente reconhecidos, um longo hábito
impede que encontrem nos costumes sua expressão concreta” (p. 14, 1946).
23

Superada tal lembrança, por assim dizer, voltemos ao estudo das espécies de
abortamento. Pois bem. Ainda se tratando de hipóteses permissavas, vale dizer que
a doutrina também conceitua um tal aborto acidental. Resumidamente, Nucci aponta
que “é a cessação da gravidez por conta de causas exteriores e traumáticas, como
quedas e choques” (NUCCI, 2022, p. 553).
No mais, todo e qualquer outra conduta de abortamento que não importe nas
excludentes de ilicitude e de tipicidade supramencionadas, é criminalizada pela
ordem vigente. São os abortos criminosos. O aborto criminoso está disposto no que
se chamou na ADPF n. 54 de “conjunto normativo ensejado pelos artigos 124 a 127
do CP”, a seguir transcrito:

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento


Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho
provoque: (Vide ADPF 54)
Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de três a dez anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: (Vide ADPF
54)
Pena - reclusão, de um a quatro anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é
maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o
consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas
de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados
para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são
duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.
(BRASIL, [2023]).

Como crime de forma livre, qualquer meio e manobras abortivas podem ser
utilizadas para induzir o aborto, desde que tenha capacidade de produzir o
resultado. Por isso, benzedeiras, rezas, chás que não funcionam para tal finalidade e
similares não são aptos a provocar o aborto e por isso configuram o crime
impossível, por completa ineficácia do meio (art. 17 do CP) (BITENCOURT, 2022).
Hoje, devido ao avanço das tecnologias e à disseminação das informações, as
mulheres passaram a usar meios mais sofisticados, ou pelo menos mais eficazes.

Metade das mulheres aborta usando medicamentos. O aborto foi realizado


com medicamentos em 48% (115) dos casos válidos. A proporção é a
mesma observada em 2010 (48%). Se considerados os 4% (10) de
não-resposta ao quesito, a proporção seria ainda próxima, 46%. O principal
medicamento utilizado no Brasil é o Misoprostol13, recomendado pela
24

Organização Mundial da Saúde para a realização de abortos seguros


(DINIZ; MEDEIROS; MADEIRO, 2017, p. 656).

No art. 124 do CP temos o aborto voluntário ou procurado por excelência, em


que a gestante pratica em si própria o abortamento, ou permite que outro o faça.
Neste caso, o “Sujeito ativo do crime de autoaborto (art. 124, CP) é a própria mãe –
mulher grávida (delito especial próprio). Nas demais hipóteses – aborto consentido e
não consentido – sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (delito comum)” (PRADO,
2021, p. 107).
A conduta típica no autoaborto consiste em provocar o aborto em si mesma,
mas ainda assim a gestante pode praticar o mesmo crime com outra conduta,
consentindo que outrem lhe provoque o aborto. Para Bitencourt, “O art. 124 tipifica
duas condutas por meio das quais a própria gestante pode interromper sua gravidez,
causando a morte do feto: com a primeira, ela mesma provoca o abortamento; com
a segunda, consente que terceiro lho provoque” (2022, p. 127). Na segunda
exige-se o consentimento da gestante e a execução do aborto por terceiro, que
responderá como autor do crime do art. 126 (provocar aborto com o consentimento
da gestante). Notadamente, tal estruturação em que a gestante e o terceiro
concorrem para o mesmo fim, porém respondem por tipos penais diferentes, é uma
clara exceção à teoria monista da ação, adotada pelo nosso Código Penal
(BITENCOURT, 2022).
Prosseguindo, o art. 125 tipifica o crime do aborto provocado por terceiro sem
o consentimento da vítima.

Assinala-se, de modo geral, que no aborto provocado por terceiro (com ou


sem o consentimento da gestante) tutelam-se também – ao lado da vida
humana dependente (do embrião ou do feto) – a vida e a incolumidade
física e psíquica da mulher grávida. Todavia, apenas é possível vislumbrar a
liberdade ou a integridade pessoal como bens jurídicos secundariamente
protegidos em se tratando de aborto não consentido (art. 125, CP) ou
qualificado pelo resultado (art. 127, CP) (PRADO, 2021, p. 107).

Isso porque o consentimento da gestante é incompatível com uma suposta


violação de sua liberdade ou integridade física, uma vez que ela assim o teria
desejado. Ou porque, no caso do 127, o procedimento ou os meios para abortar
podem ter causado até mesmo a morte da mulher.
25

Como se viu, o art. 127 traz a forma qualificada do crime de aborto. Nucci lista
as consequências dessa modalidade:

a) aumentar de um terço a pena, se, em razão do aborto ou dos meios


empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza
grave;
b) provocar a duplicação da pena, se, por qualquer dessas causas, houver a
morte da gestante.
Se fosse empregado o art. 127 também ao tipo previsto no art. 124
(autoaborto), estar-se-ia punido a autolesão, o que não ocorre no direito
brasileiro (NUCCI, 2022, p. 557).

Luiz Régis Prado enriquece o debate apontando que essa qualificação tem
um histórico, pois existiam formas qualificadas já no Código Penal de 1890. Naquela
legislação, fazia-se a distinção entre o aborto com e sem expulsão do feto,
cominando ao primeiro pena mais gravosa. As penas eram igualmente aumentadas
se resultasse a morte da mulher (PRADO, 2021).
Para além das normas penais permissivas e incriminadoras e suas análises
já expostas, há também outras espécies de aborto elencadas pela doutrina e por
autores das ciências sociais, que convém sucintamente mencionarmos. É o caso do
aborto honoris causa, aborto econômico ou social e o aborto seletivo ou interrupção
seletiva da gravidez.
O abortamento honoris causa ou por motivo de honra é comentado por Luiz
Régis Prado com uma ótica também histórica:

Com o Iluminismo, a equiparação entre os delitos de aborto e homicídio foi


abandonada. Postulou-se, a partir de então, a redução das penas
cominadas ao aborto – especialmente se praticado pela gestante – quando
presente o motivo de honra (causa honoris) (PRADO, 2021, p. 169).

Esse aborto é feito para resguardar a honra da mulher em caso de uma


gravidez adulterina, mas é proibido, já que, embora goze de uma certa tolerância
social, não implica nenhuma causa excludente de ilicitude. Del Priore relata que,
tendo em vista a necessidade de que a coroa portuguesa promovesse o crescimento
demográfico de sua colônia, a igreja repreendeu com maior intensidade a
homossexualide e as relações extraconjugais no Brasil Colonial, com o fito de evitar
relações que não gerassem prole. Com essa ética cristã em mente, mulheres
solteiras à época (assim como ainda hoje), ao se depararem grávidas, precisavam
26

desesperadamente se livrar do fruto da concepção, para salvaguardar sua honra


(DEL PRIORE, 2009). Nas palavras da autora:

Via de regra praticado por mulheres em estado desesperador diante de uma


gravidez indesejada, numa situação de dificuldade ou miséria, o aborto
significou nos tempos modernos - como também na Antiguidade e Idade
Média - a arma de controle dos casais ilegítimos. Diz o historiador francês
Jean-Louis Flandrin que, tal como o infanticídio e a contracepção, ele era
utilizado sobretudo no quadro das relações extraconjugais (DEL PRIORE,
2009).

Ainda, ela comenta que

Incorporando esta hipótese, podemos compreender porque no Brasil


colonial a perseguição ao aborto teria uma especificidade: mais do que
atacar o homicídio terrível que privava uma alma inocente do batismo, e
portanto, da salvação eterna, caçavam-se os desdobramentos condenáveis
nas ligações fora do matrimônio. E tais ligações, em forma de concabinatos
e mancebias, então recorrentes, comprometiam a vertente ordenadora da
‘multiplicação das gentes’, uma vez que nela reproduziam-se bastardos e
mestiços ameaçadores à ordem que a metrópole lusa desejava instaurar
nas terras brasileiras, para delas extrair toda a riqueza necessária ao
sistema mercantilista (DEL PRIORE, 2009).

Segundo afirma Prado, inclusive, no Código Penal de 1830, o autoaborto,


embora tipificado, tinha pena menor se praticado para ocultar desonra própria
(2021).
O aborto socioeconômico, por óbvio, é também criminalizado, haja vista que
“A indicação socioeconômica também não está elencada entre as hipóteses de
aborto legal previstas pelo Código Penal brasileiro” (PRADO, 2021, p. 123). Miséria,
família numerosa, falta de acesso ao direito de moradia, dívidas, grave enfermidade
física e/ou psíquica da mãe ou de algum integrante da família, gravidez fruto de
relações extramatrimoniais, gravidez precoce ou já na idosidade, falta de condições
de assumir a maternidade e suas consequências etc são possíveis causas para o
abortamento socioeconômico (PRADO, 2021). Acrescento eu, também como fator
social nesse complexo socioeconômico, a violência doméstica, uma vez que a
mulher, já exausta psicologicamente e fisicamente, mal consegue prover dignamente
a própria existência e, no auge da solidão, medo, estigma, revitimização das
instituições e desespero, pode buscar pelo abortamento.
A atmosfera de uma relação onde está presente a violência doméstica,
27

além de expor a mulher a problemas psicossexuais e ao risco de contrair


doenças sexualmente transmissíveis (DST), pode ter como consequência a
gravidez não planejada e, portanto, possivelmente indesejada, pois pode
ocorrer num contexto totalmente adverso de sua vida [conjugal] ou até
mesmo contra a sua vontade (SANDI; BRAZ, 2010, p. 138).

As condições socioeconômicas são fatores para o abortamento já há muito e,


fazendo um recorte de raça, Angela Davis salienta que

Quando números tão grandes de mulheres negras e latinas recorrem a


abortos, as histórias que relatam não são tanto sobre o desejo de ficar livres
da gravidez, mas sobre as condições sociais miseráveis que as levam a
desistir de trazer novas vidas ao mundo (2016).

O aborto seletivo, interrução seletiva da gravidez (ISG) ou para alguns,


eugênico, também não é acolhido pela legislação pátria. Ele ocorre, na visão de Luiz
Régis Prado, quando existem riscos fundados do feto ser portador de graves
anomalias genéticas de qualquer natureza ou de outros defeitos físicos ou psíquicos
decorrentes da gravidez. Por isso, poderia configurar uma exclusão da culpabilidade,
por inexigibilidade de conduta diversa, haja vista não se poder exigir, argumenta,
que uma mãe dedique sua própria vida a cuidar de alguém portador de severas
anomalias (2021); acrescento, cujo encargo não será dividido pelo Estado que a
obriga e nem pela sociedade que a estigmatiza. Já para Guilherme Nucci, “aborto
eugênico, eugenésico ou embriopático: é a interrupção da gravidez, causando a
morte do feto ou embrião, para evitar que a criança nasça com graves defeitos
genéticos. Há controvérsia se há ou não crime nessas hipóteses” (2022, p. 553).
A eleição interpretativa do aborto de feto anencefálico ao status jurídico de
fato atípico pelo STF, como será posteriormente comentado, nos faz confundir a ISG
com o abortamento de feto anencefálico, já que este não deixa de ser, também,
seletivo; ainda que sua descriminalização se sustentou em outros argumentos. No
entanto, a professora Débora Diniz, clássica moderna estudiosa do tema no Brasil -
por assim dizer - faz uma importante ressalva de caráter filosófico, quando examinou
as ideologias e discursos presentes em alvarás judicias que concederam permissão
para a ISG, no artigo intitulado “Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais”:
28

a anencefalia sustenta seu reinado dentre as patologias por seu caráter


clínico extremo: a ausência dos hemisférios cerebrais. Mas esta, no meu
entender, não é a razão suficiente para fazer dos fetos portadores de
anencefalia a metáfora do movimento em prol da legitimação do aborto
seletivo. A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum ‘a
ausência de cérebro’, torna o feto anencéfalo a representação do subumano
por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido
dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível do humano. Ou, como
prefere Jacquard (6), aqueles não aptos a compartilharem da ‘humanitude’,
a cultura dos seres humanos. Os fetos anencéfalos são, assim, alguns
dentre os subumanos os que não atingiram o patamar mínimo de
desenvolvimento biológico exigido para a entrada na humanitude aos quais
a discussão da ISG vem ao encontro (DINIZ, 2009).

Registre-se, no entanto, que, embora hoje tratamos o aborto eugênico como


aquele que visa “impedir a continuação da gravidez quando há possibilidade de que
a criança nasça com anomalias graves” (ANDREUCCI, 2021, p. 312),
historicamente, o termo eugenia tinha uma concepção tão somente ideológica, muito
diferente do que estamos tratando aqui. Criado em 1883 pelo antropólogo inglês
Francis Galton, o termo significava “bem nascido” e buscava apurar a raça humana
(ANDREUCCI, 2021). Porém, como se viu, o termo hoje empregado juridicamente
cuida da possibilidade de interromper gestação cujo feto é portador de graves
anomalias genéticas.
Se pararmos para analisar a situação da bioética no Brasil, principal área de
estudo que reflete interdisciplinarmente sobre o estado jurídico, médico, social etc do
abortamento (BARCHIFONTAINE ; TRINDADE , 2019), veremos que o fato social
direito não acompanha a evolução das ciências médicas. Esse descompasso é
criticamente abordado no artigo “O descompasso entre o avanço da ciência e da lei”
de Thomaz Rafael Gollop, professor e pesquisador renomado da área da Medicina
Fetal e Genética Humana, atualmente Professor de Genética Médica no Instituto de
Biociências da USP, que também discursou na audiência pública do STF quando do
julgamento da ADPF n. 54.
No entanto, vamos nos limitar aqui, embora haja muito mais “pano pra
manga”, a apenas informar que, atualmente, essa espécie de abortamento não é
permitida no ordenamento jurídico nacional.
Finalmente, podemos dizer que essas são as principais espécies de
abortamento, sendo as primeiras expressamente contidas no Código Penal e as
demais gozam apenas de nomenclatura própria, para designar a situação em que
ocorre a conduta do abortamento, as circunstâncias ou coisa do tipo. Cabe agora
29

comentar, especificamente, o abortamento de feto anencefálico, cuja repercussão


social, quando sua prática ainda era criminosa, resultou numa das ações de controle
de constitucionalidade mais em polvorosa já tramitada na Suprema Corte brasileira.

3.2.1 O Abortamento do feto anencefálico: as discussões travadas nos autos


da ADPF n. 54

Para nos situarmos, a ADPF n. 54 foi proposta em 2004 pela Confederação


Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS), entidade legitimada para tal
propositura, em concordância com o art. 103 da CF/88 (Constituição Federal de
1988). Visava uma interpretação conforme a Constituição dos arts. 124, 126, caput,
e 128, incisos I e II, para tornar permitida a prática de abortamento de feto
anencefálico e com isso evitar que médicos que fizessem o procedimento fossem
alvos de persecução penal.
O julgamento se deu em abril de 2012, oito anos depois e, ao cabo, foi
procedente às pretensões da requerente, por maioria dos votos (8x2). Os Ministros
Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Gilmar
Mendes e Celso de Mello acompanharam o relator Marco Aurélio Mello, que votou
pela autorização. Os Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso, este à época
presidente do STF, votaram contrariamente (BRASIL, [2013]).
É interessante destacar o contexto em que se deu as votações no STF, para
entender as discussões travadas também pela população. Durante todos os dias de
votação, estiveram presentes vários grupos protestando, uns se posicionando a
favor da autorização, os institulados “pró-escolha” e outros, os “pró-vida”, contra as
pretenções da requerente. Essas mesmas nomenclaturas estão longe de serem
inéditas, pois foram usadas nas movimentações e negociações políticas que
ocorreram em torno do julgamento do caso Roe X Wade nos EUA em 73: pro-choice
x pro-life (DWORKIN, 2003).
Aqui, de forma parecida como lá, os grupos pró-escolha eram formados,
principalmente, por cidadãs feministas, que defendiam o direito de escolha da
mulher (LUNA, 2018). Os vários argumentos deste grupo foram voltados à ideia de
autonomia sobre o próprio corpo, laicidade do estado e suas repercussões práticas,
dignidade da mulher e vedação à tortura, uma vez que manter dentro de si feto que
30

jamais poderá viver é inserir a mulher numa situação torturosa, relegando-a a uma
condição de “caixão ambulante”, como defendeu Débora Diniz, no seu discurso na
tribuna do Supremo (BRASIL, [2013]).
Os grupos pró-vida, representados a maioria por católicos, evangélicos e, em
menor grau, espíritas, com todo um ritual, símbolos, vigílias e discursos metafísicos,
a seus turnos, tinham como principais argumentos questões da ética cristã,
manutenção de valores religiosos, preservação da família, sacralidade da vida etc, à
excessão de alguns poucos argumentos técnico-jurídicos, como a ilegitimidade do
STF para “legislar” sobre a questão, pois a função estatal designada e constituída
para tanto é o Legislativo; e, também, a questão do direito à vida como direito
humano, já alçado como tal em diversos documentos de direito internacional público
(LUNA, 2018).
No que concerne a estes grupos e suas encenações coletivas, Pierre
Bourdieu já tratava deste hábito em sua obra O Senso Prático. Para ele, as
encenações religiosas, além de proporcionar uma representação solene do grupo,
teriam uma intenção mais obscura e que, por serem esquemas motores e
automatismos corporais, essas práticas são absorvidas pelo senso comum e seus
agentes nem têm ciência de “que o que fazem tem mais sentido do que imaginam”
(BOURDIEU, 2009, p. 113). A operação dessa “intenção mais obscura” ele descreve
como

o ordenamento rigoroso das práticas, a disposição regulada dos corpos, e


especialmente da expressão corporal da afeição, como risos ou lágrimas. A
eficácia simbólica deria encontrar seu princípio no poder que dá sobre os
outros, e especialmente sobre seu corpo e sua crença, a capacidade
coletivamente reconhecida de agir, por meios bem diversos, sobre as
montagens verbo-motores mais profundamente ocultas, seja para
neutralizá-las, seja para reativá-las fazendo-as funcionar mimeticamente
(BOURDIEU, 2009, p. 113-114)

Tal ritualização que se deu nos arredores do STF à época refletem uma
problemática bastante temerária do ponto de vista da laicidade do estado brasileiro e
que também importa a esta pesquisa, que é o que o sociólogo José Casanova (apud
LUNA, 2018) chamou de “desprivatização da religião”. A partir dessa
desprivatização, a religião se coloca na esfera pública como força de contestação
moral e política. É o que temos hoje com a figura da bancada evangélica no
Congresso Nacional.
31

Arnaldo Antunes, compositor da música “porque eu sei que é amor” da banda


Titãs, com muita, como diria Jane Austen, razão e sensibilidade, nos alerta de que
“cada palavra importa” (2009). Por isso, vale a pena refletir sobre a semântica
dessas nomenclaturas atribuídas aos manifestantes (pró-vida e pró-escolha), ditas
conflitantes. Para Renata de Lima Rodrigues,

Na verdade, o debate sobre o aborto não pode ser reduzido em ‘ser contra’
ou ‘ser a favor’ de sua prática. Trata-se de uma visão maniqueísta que reduz
as complexidades em torno do tema, transformando-o em uma falácia que se
resume à distinção entre aqueles que são pro-vida e aqueles que se
denominam pro-eleição. Falácia, vale dizer, porque não há lógica em afirmar
que os defensores do direito ao aborto são contra a vida. O aborto não é um
bem jurídico em si mesmo e, portanto, defender o direito ao aborto não
equivale à defesa do aborto ou à sua elevação ao status de bem jurídico
tutelável (RODRIGUES, 2015, p. 154).

Nucci também comenta essa impropriedade: “a pessoa que tem um ponto de


vista a respeito da descriminalização de um crime, ao expor suas ideias, em público
ou particularmente, não está incitando à prática de delito, mas manifestando um
pensamento, o que é constitucionalmente assegurado” (2022, p. 286).
Com essas ponderações fáticas e até mesmo antropológicas, finalmente
falaremos sobre as discussões técnicas travadas nos autos do processo.
Primeiramente, esclarecemos o que é anencefalia. A anencefalia ocorre quando

o embrião ou o feto apresentam um processo patológico de caráter


embriológico que se manifesta pela falta de estruturas cerebrais
(hemisférios cerebrais e córtex), o que impede o desenvolvimento das
funções superiores do sistema nervoso central (PRADO, 2021, p. 122).

De acordo com o Instituto Nacional de Distúrbios Neurológicos e Derrame dos


EUA (apud DINIZ, 2007) a anencefalia é um distúrbio de fechamento do tubo neural
diagnosticável nas primeiras semanas de gestação. Por diversas razões, o tubo
neural do feto não se fecha, deixando o cérebro exposto.

O líquido amniótico gradativamente dissolve a massa encefálica, impedindo


o desenvolvimento dos hemisférios cerebrais. A imagem ecográfica de um
feto anencefálico assemelha-se à de um sapo ou de uma coruja pelo
profundo achatamento da cabeça devido à ausência dos ossos do crânio e
da massa encefálica. Não há tratamento, cura ou qualquer possibilidade de
sobrevida de um feto com anencefalia. Em mais da metade dos casos, os
fetos não resistem à gestação, e os poucos que alcançam o momento do
parto sobrevivem minutos ou horas fora do útero (DINIZ, 2007, p. 23).
32

Como se vê, a anomalia é diagnosticada com facilidade por exame de


ultrassonografia, tendo inclusive sido formulado diretrizes para este diagnóstico pelo
Conselho Federal de Medicina (CFM), conforme comentários adiante.
A impetrante sustentou com diversos argumentos suas pretensões e aqui
discorreremos sobre o principal deles, qual seja: a atipicidade da conduta de abortar
fetos anencéfalos. O racícinio argumentativo utilizado nos autos da ADPF n. 54, foi o
de que o fato não poderia sequer ser considerado aborto, tendo em vista que para
tanto exige-se potencialidade de vida, da qual o anencéfalo não goza. Com esse
argumento, a CTNS propôs na verdade uma outra nomenclatura para a prática:
interrupção terapêutica da gravidez.
Ao relatório do Ministro Marco Aurélio, fica explicitado tal argumento:

A requerente, à folha 984, sustenta o não enquadramento da antecipação


terapêutica da gravidez de anencéfalo às hipóteses previstas nos artigos
124 a 126 do Código Penal brasileiro. Segundo alega, a conduta não
constitui aborto, considerada a inviabilidade do feto e a equivalência ao
morto, presente a similitude com o conceito versado na Lei nº 9.434/97,
relativa à remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para
fins de transplante e tratamento (BRASIL, [2013], p. 29-30 de 433, grifo
nosso).

Gazzola e Mello relembram a sustentação nesse sentido do, à época,


advogado da CTNS e hoje ministro do Supremo Luís Roberto Barroso:

Em plenário, o então advogado Luís Roberto Barroso sustentou a evolução


do direito das mulheres na sociedade contemporânea, em defesa do pedido.
Barroso alegou que a possibilidade jurídica de antecipar licitamente o
parto de fetos anencéfalos não consiste propriamente em aborto e que
essa tem sido a posição de todos os países democráticos e desenvolvidos
do mundo, e a crescente criminalização é um fenômeno do
subdesenvolvimento (GAZZOLA; MELLO, 2015, p. 497, grifo nosso).

Nelson Hungria, que já advogava essa tese desde 1950, foi citado pela
requerente. Tal citação refletiu uma relevância argumentativa valiosa dentro de todo
o processo, de modo que o Ministro relator transcreveu a citação em seu relatório.
Vejamos:

Evocou Nelson Hungria, em ‘Comentários ao Código Penal’: Não está em


jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir
normalmente vida própria, de modo que as conseqüências dos atos
praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para
que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico e não
33

patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente


mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que
pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja
existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida
do feto (BRASIL, [2013], p. 4 de 433).

Luiz Regis Prado coaduna com tal raciocínio, na medida em que escreve no
seu manual que o critério da morte neocortical privilegia os aspectos da humanitude,
em detrimento do aspecto puramente biológico da vida e que, em casos como esse,
o feto quiçá pode ser considerado “tecnicamente vivo” e, portanto, não há vida
intrauterina objeto de tutela penal (PRADO, 2021).
Para que essa argumentação primordialmente pautada na biologia tivesse
validade, os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello entenderam ser necessário a
existência de critérios diagnósticos para que a gestante de feto anencéfalo tivesse o
direito de interromper a gravidez. Diante da decisão do STF e da necessidade de
garantir segurança ao ponto de a gestante eximir-se de pedir autorização judicial, o
CFM aprovou por unanimidade a Resolução CFM 1.989/2012, atendendo a
importante demanda jurídica e social (GAZZOLA; MELLO, 2015).

Tal norma definiu diretrizes para o diagnóstico da malformação fetal,


ressaltando que ele deverá ser realizado por meio de exame
ultrassonográfico, a partir da 12a semana de gestação. Esse exame deverá
conter duas fotografias, devidamente datadas e identificadas: uma com a
face do feto em posição sagital e a outra visualizando o segmento cefálico
(cabeça) em corte transversal, para demonstrar a ausência de calota
craniana e de parênquima (tecido) cerebral identificável. O laudo deverá,
ainda, ser assinado por dois médicos capacitados para tal diagnóstico, a fim
de assegurar o direito à segunda opinião e não retirar a suficiência do
diagnóstico feito por apenas um médico (GAZZOLA; MELLO, 2015, p. 498).

Curiosamente, a edição dessa resolução pelo CFM após a decisão da ADPF


n. 54 fez parecer que a questão do aborto ia saindo aos poucos da seara penal e
caminhando para a seara médica. É o que se pode perceber pela exposição de
motivos da mencionada resolução:

A partir dessa decisão, a interrupção da gravidez saiu do âmbito de uma


decisão jurídica, ou estritamente judicial, para tornar-se um protocolo dos
programas de atenção à saúde da mulher, exigindo, deste Conselho, a
definição dos critérios médicos para o diagnóstico dessa malformação fetal,
bem como a criação de diretrizes específicas para a assistência médica à
gestante (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2012).
34

O então ministro da saúde José Gomes Temporão, durante sua fala nas
audiências públicas, garantiu que o SUS detinha toda a instrumentalidade adequada
para operacionalizar o diagnóstico de anomalias com 100% de certeza e de atender
a mulher, qualquer que seja a decisão quanto a manter ou não a gravidez (BRASIL,
[2013]). Para entender melhor o brilhantismo da invenção que permite tais
diagnósticos, Gollop informa que

O Diagnóstico Pré-Natal (DPN) de anomalias fetais foi uma aquisição


incorporada à medicina na década de 50 nos países desenvolvidos, e
iniciada no Brasil no final dos anos 70. Nos últimos anos desenvolveu-se
uma nova área multidisciplinar de atuação, denominada Medicina Fetal, que
incorporou às técnicas de diagnóstico as possibilidades de terapêutica
intra-uterina (GOLLOP, 1994, p. 54).

Basicamente, foi a partir dos esclarecimentos de médicos especialistas,


biólogos, geneticistas, obstetras, representantes de entidades médicas e demais
profissionais e pesquisadores da área da saúde nas audiências públicas, que alguns
argumentos se tornaram unânimes entre os ministros, quais sejam: a existência da
anencefalia é facilmente detectada por meio de exame de imagem, que é
disponibilizado facilmente no SUS quando dos exames de rotina da grávida; que não
há vida clínica nesse caso; e que a chance de morte no nascimento ou poucos
minutos depois é de 100% de acontecer (BRASIL, [2013]). O Ministro Marco Aurélio
até replicou o que Thomaz Gollop asseverou na audiência:

O anencéfalo, tal qual o morto cerebral, não tem atividade cortical.


Conforme exposição do Dr. Thomaz Rafael Gollop[26] – representante da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Professor Livre Docente
em Genética Médica da Universidade de São Paulo e Professor de
Ginecologia da Faculdade de Medicina de Jundiaí –, no eletroencéfalo dos
portadores da anamolia, há uma linha isoelétrica, como no caso de um
paciente com morte cerebral. Assim, concluiu o especialista, ‘isto é a morte
cerebral, rigorosamente igual. O anencéfalo é um morto cerebral, que tem
batimento cardíaco e respiração’ (BRASIL, [2013], p. 44 de 433).

A CNTS também envolveu com o argumento supramencionado alguns


princípios derivados da dignidade humana e aplicáveis à temática, conforme consta
no relatório do ministro Marco Aurélio, a seguir transcrito:

Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos fundamentais,


concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade,
em seu conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade, bem como os
relacionados com a saúde. [...] A permanência de feto anômalo no útero da
35

mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde e


à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de
carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não
sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em
violência às vertentes da dignidade humana – a física, a moral e a
psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de
colocar em risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial
da Saúde – o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a
ausência de doença (BRASIL, [2013], p. 6 de 433).

A impetrante argumentou o fato de já ser consolidado no STF o entendimento


de que nem mesmo o direito a vida é um direito absoluto e que

a proteção a ele conferida comporta diferentes gradações consoante


enfatizou o Supremo no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade
nº 3.510. Para reforçar essa conclusão, basta observar a pena cominada ao
crime de homicídio (de seis a vinte anos) e de aborto provocado pela
gestante ou com seu consentimento (de um a três anos)[74], a revelar que o
direito à vida ganha contornos mais amplos, atraindo proteção estatal mais
intensa, à medida que ocorre o desenvolvimento (BRASIL, [2013], p. 59 de
433).

Houveram pessoas e entidades contrários à autora, defendendo que se


trataria de aborto eugênico e que existe o direito à vida dos anencefálicos, ainda que
seja uma vida intrauterina e precária, basicamente uma vida apenas biológica. Para
esses argumentos o relator e, concordando com ele os demais ministros, ponderou
que

Cumpre rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto


anencéfalo consubstancia aborto eugênico, aqui entendido no sentido
negativo em referência a práticas nazistas. O anencéfalo é um natimorto.
Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o
qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões
imoralmente eleitos. Nesta arguição de descumprimento de preceito
fundamental, não se trata de feto ou criança com lábio leporino, ausência de
membros, pés tortos, sexo dúbio, Síndrome de Down, extrofia de bexiga,
cardiopatias congênitas, comunicação interauricular ou inversões viscerais,
enfim, não se trata de feto portador de deficiência grave que permita
sobrevida extrauterina. Cuida-se tão somente de anencefalia. Na expressão
da Dra. Lia Zanotta Machado, ‘deficiência é uma situação onde é possível
estar no mundo; anencefalia, não’[52]. De fato, a anencefalia mostra-se
incompatível com a vida extrauterina, ao passo que a deficiência não
(BRASIL, [2013], p. 48 de 433).

E, quanto ao argumento do direito à vida:

Enfim, cumpre tomar de empréstimo o conceito jurídico de morte


cerebral previsto na Lei nº 9.434/97[72], para concluir ser de todo
36

impróprio falar em direito à vida intrauterina ou extrauterina do


anencéfalo, o qual é um natimorto cerebral.
De qualquer sorte, Senhor Presidente, aceitemos – apenas por amor ao
debate e em respeito às opiniões divergentes presentes na sociedade e
externadas em audiência pública – a tese de que haveria o direito à vida dos
anencéfalos, vida predominantemente intrauterina. Nesse contexto, uma vez
admitido tal direito – premissa com a qual não comungo, conforme exposto
à exaustão –, deve-se definir se a melhor ponderação dos valores em jogo
conduz à limitação da dignidade, da liberdade, da autodeterminação, da
saúde, dos direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres em
favor da preservação do feto anencéfalo, ou o contrário (BRASIL, [2013], p.
58 de 433, grifo nosso).

Aqui, percebe-se novamente a questão do significado de vida, dado a partir da Lei


de Transplante de Órgãos, que será melhor comentada posteriormente.
Como se sabe, o Estado e seus respectivos atos estatais deve adotar uma
postura cética quando da elaboração das suas normas e, logicamente, da
manutenção delas no ordenamento jurídico (FERNANDES, 2020). “os atos estatais
devem se basear em razões públicas, não em argumentos religiosos, dogmas ou
crenças individuais” (FERNANDES, 2020). Sabe-se, no entanto, que grande parte
do parlamento brasileiro é composto por representantes de grupos conservadores e
religiosos, que na maioria das vezes não conseguem ou não têm interesse em
traduzir seus argumentos apaixonados e metafísicos em termos de razões públicas,
algo essencial para o debate jurídico-constitucional, que visa atualizar os sentidos
que conferimos à Constituição (BRASIL, [2013]).
É nessa linha que o Ministro Relator defende, também, o seu voto favorável.
Vejamos:

Ao Estado brasileiro é terminantemente vedado promover qualquer religião.


Todavia, como se vê, as garantias do Estado secular e da liberdade religiosa
não param aí – são mais extensas. Além de impor postura de
distanciamento quanto à religião, impedem que o Estado endosse
concepções morais religiosas, vindo a coagir, ainda que indiretamente, os
cidadãos a observá-las. Não se cuida apenas de ser tolerante com os
adeptos de diferentes credos pacíficos e com aqueles que não professam fé
alguma. Não se cuida apenas de assegurar a todos a liberdade de
frequentar esse ou aquele culto ou seita ou ainda de rejeitar todos
eles[23]. A liberdade religiosa e o Estado laico representam mais do
que isso. Significam que as religiões não guiarão o tratamento estatal
dispensado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à
autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à
privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de
orientação sexual e o direito à liberdade no campo da reprodução
(BRASIL, [2013], p. 43 de 433, grifo nosso).
37

Esse trecho do voto do Ministro é muito adequado ao tema tendo em vista o


caráter que ele imprime ao postulado do estado laico. Se torna imperioso, então, que
esse postulado não somente informe a omissão do estado quanto à religião, a
tolerância quanto a existência de diversas religiões, mas também que oriente o
tratamento estatal dado aos demais direitos fundamentais, como por exemplo a
autonomia privada.
Como dito, houveram outros argumentos suscitados pela requerente, como
por exemplo o de que o Código Penal não ter positivado a excludente de ilicitude do
feto anencefálico apenas porque não havia tecnologia suficiente à época (1940) para
o diagnóstico. O princípio da autonomia da vontade, a vedação à tortura, pois
equiparou-se a obrigação de carregar um feto por nove meses para, então, o
enterrar, à tortura psicológica. O fato de o feto não ter expectativa de vida, enquanto
a gestante já ser uma vida em perfeitas condições e que essa vida deve ser digna.
Defendeu-se também que não faz sentido o Estado obrigar uma mulher a parir um
feto que o próprio Estado não poderá fazer absolutamente nada para o salvar, pois o
quadro é irreversível (BRASIL, [2013]).
Da leitura da ADPF n. 54, então, deduz-se que o argumento primordial, como
já dito, foi aquele pautado no debate sobre o que é e o que pode ser considerado
morte e o que é a vida e quando ela se inicia, que, a propósito, coincide com o início
da atividade cerebral (BRASIL, [2013]); sendo o feto anencéfalo, então, morto. Foi
também o argumento pedra angular para a procedência da ação, visto que a maioria
dos ministros acompanharam o relator em seu voto, a exemplo da Ministra Carmen
Lúcia, que assim resumiu tal argumento: “Não haveria, pois, ‘aborto do feto
anencéfalo’ pela ausência de tipicidade, ausente o objeto jurídico tutelado,
inexistindo sujeito passivo” (BRASIL, [2013], p. 215 de 433).
Uns acrescentaram uma ou outra questão, comentaram um outro argumento,
mas, dentre os que votaram positivamente, foi unânime o principal deles: se não há
atividade cerebral, não há vida e, ato contínuo, não há fato típico.

3.2.1.1 O conceito de morte adotado pela legislação pátria

Sabe-se que a morte é a única certeza de tudo que está vivo, visto seu
caráter natural e, logo, determinado. Sabe-se também que, no entanto, a forma
38

como encaramos e lidamos com ela pode variar de cultura para cultura, pois a
produção dos sentidos e da linguagem já não é mais do reino animal, mas do reino
humano, dos signos (CHAUÍ, 2000). Portanto, para cada código moral, poderá
corresponder uma forma de luto diferente ou talvez nenhum luto.
Uma coisa, porém, parece ser observada em todas as culturas. As várias
visões sobre a morte sempre tentam definir em que momento ela acontece, mas
também e principalmente o que acontece com a alma após a morte. O termo alma
geralmente é utilizado para designar o indivíduo ou o que faz de uma pessoa ela
mesma e, com isso, o entendimento de diversas culturas sobre a morte é a de que o
corpo e o indivíduo/alma não são a mesma coisa, podem ser separados com a
eventualidade da morte (ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES
NETO; LEHMANN; SIQUEIRA, 2022).

fica claro que a evolução do entendimento médico e legal acerca da morte


segue essa definição. Diante da comprovação da irreversibilidade do dano
ao encéfalo do indivíduo, não é mais possível que este retorne, pois
segue-se a isso uma cascata natural de eventos que leva à parada
cardiorrespiratória e, posteriormente, à decomposição do indivíduo. Logo,
uma vez definida a morte encefálica, o entendimento de que essa transição
já ocorreu (apesar de o coração estar batendo e o corpo estar ‘vivo’) é
apenas natural (ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES
NETO; LEHMANN; SIQUEIRA, 2022, p. 273).

Treinados somente para diagnosticar doenças e tratá-las, restabelecendo o


status quo da saúde do paciente, médicos não são também treinados, na mesma
medida ou de forma suficiente, para enfrentar, discutir e refletir sobre a morte. É
como se houvesse uma negação do tema, o que posteriormente causa uma
dificuldade de diagnosticar a morte encefálica e agir corretamente mediante tal
diagnóstico (ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES NETO;
LEHMANN; SIQUEIRA, 2022).

há vários trabalhos que provam que não é um assunto comentado nas


diretrizes de ensino em diversos locais. Por exemplo, em 1968, a morte
encefálica foi consolidada como um diagnóstico, de acordo com os critérios
de Harvard. No Reino Unido, em relatório sobre o ensino médico da
Commition on Medical Education 9 , nada constava acerca da morte e do ato
de morrer. Nos Estados Unidos, foi somente em 1980, por orientação do
Standing Medical Advisory Committee 10, que pacientes terminais passaram
a ser tema no ensino médico, porém, sem mencionar objetivamente o
conteúdo a ser seguido.
[...]
39

Vale ressaltar que as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de


Graduação em Medicina 13,14 trazem apenas orientação acerca da
compreensão fisiológica da morte, sem fazer qualquer referência a uma
compreensão mais filosófica e cultural. Então, médicos passam a
decepcionar-se diante de pacientes com doenças incuráveis, pois são
educados a subestimar as ações de cuidado e conforto a pacientes (mesmo
quando possíveis) e buscar constantemente a cura 19. Essa formação
excessivamente curativa pode contribuir para o problema da
dificuldade de avaliação e conduta diante da morte encefálica
(ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES NETO; LEHMANN;
SIQUEIRA, 2022, p. 276-277, grifo nosso).

Antes do critério da morte encefálica, a Medicina entendia como o momento


da morte aquele após a falência cardiorrespiratória. No entanto, o desenvolvimento
da tecnologia e de técnicas que poderiam recuperar a vida do paciente após a
parada cardiorrespiratória fez a medicina repensar seus conceitos. A partir daí
identificou-se que era o funcionamento do cérebro que viabiliza a recuperação e era
a falência desse órgão que impossibilitava a recuperação, já que irreversível. Por
isso, o indivíduo cujo cérebro faleceu é considerado morto pela Medicina, pois a
falência dos demais órgãos é iminente e sem nenhuma forma conhecida de
recuperação (BRASIL, [2013]).
Com isso, percebemos não só a evolução do conceito de morte atribuído pela
medicina, mas também uma certa dificuldade de aceitação da morte encefálica, até
mesmo por profissionais que estudam o corpo humano, de forma dessacralizada,
espera-se. Se o conceito da morte cerebral é, por vezes, conflitante e angustiante
para os próprios médicos, quem dirá para os estudiosos e aplicadores do direito,
geralmente sempre atrasados em relação às mudanças sociais.
De qualquer forma, muito embora verificamos dificuldades na aceitação da
morte encefálica e as repercussões práticas e hermenêuticas de tal aceitação, o
ordenamento jurídico coaduna com a Medicina. Isso porque a

Lei de Transplantes de Órgãos (Lei n. 9.434/97) determina como morte a


chamada morte encefálica, quando não há mais atividade cerebral no
indivíduo, e remete os critérios clínicos do diagnóstico da morte ao
Conselho Federal de Medicina (art. 3º da Lei n. 9.434/97) (BRASIL, [2013]),
p. 108 de 433).

Ou seja, a própria legislação expressamente determina o conceito de morte e


também atribui a responsabilidade por seus procedimentos diagnósticos ao
Conselho Federal de Medicina. Vê-se:
40

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo


humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de
diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos
não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a
utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do
Conselho Federal de Medicina.
§ 1º Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos
exames referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos
documentos de que tratam os arts. 2º, parágrafo único; 4º e seus
parágrafos; 5º; 7º; 9º, §§ 2º, 4º, 6º e 8º, e 10, quando couber, e detalhando
os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão mantidos nos
arquivos das instituições referidas no art. 2º por um período mínimo de cinco
anos (BRASIL, [2007]).

Como se depreende, essas disposições visam trazer todo um rigor


procedimental para o processo de diagnóstico e pós diagnóstico. Os “critérios
clínicos e tecnológicos” a serem utilizados serão definidos por resolução do CFM,
conforme leitura da redação do caput do art. 3°. O CFM já havia definido tais
critérios em Resolução anterior, que foi revogada e deu espaço para a atual
Resolução CFM n. 2.173/2017, cuja ementa é justamente: “Define os critérios do
diagnóstico de morte encefálica” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017). O
atual documento resolve que:

Art. 1º Os procedimentos para determinação de morte encefálica (ME)


devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não
perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente, e
que atendam a todos os seguintes pré-requisitos:
a) presença de lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e
capaz de causar morte encefálica;
b) ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico de
morte encefálica;
c) tratamento e observação em hospital pelo período mínimo de seis
horas. Quando a causa primária do quadro for encefalopatia
hipóxico-isquêmica, esse período de tratamento e observação deverá ser
de, no mínimo, 24 horas;
d) temperatura corporal (esofagiana, vesical ou retal) superior a 35°C,
saturação arterial de oxigênio acima de 94% e pressão arterial sistólica
maior ou igual a 100 mmHg ou pressão arterial média maior ou igual a
65mmHg para adultos, ou conforme a tabela a seguir para menores de
16 anos:
[...]
Art. 2º É obrigatória a realização mínima dos seguintes procedimentos
para determinação da morte encefálica:
a) dois exames clínicos que confirmem coma não perceptivo e
ausência de função do tronco encefálico;
b) teste de apneia que confirme ausência de movimentos respiratórios
após estimulação máxima dos centros respiratórios;
c) exame complementar que comprove ausência de atividade encefálica
(CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2017).
41

Conclui-se, portanto, que para o diagnóstico da morte cerebral, há diversos


critérios e protocolos a serem observados pelos profissionais envolvidos e que,
embora haja dificuldade da sociedade e de alguns profissionais da saúde para se
determinar frente a ela, esse é o delineamento do momento da morte no Brasil: a
falta da atividade cerebral. É o que temos hoje em termos de regramento positivado
no ordenamento jurídico brasileiro.

3.2.2 Posicionamento do Conselho Federal de Medicina e o aborto de


anencéfalo

O Conselho Federal de Medicina chegou a juntar procuração e


substabelecimento nos autos da ADPF n. 54, por meio da petição 11411/2011. No
entanto, a assessoria do Ministro Relator Marco Aurélio certificou o seguinte: “Anoto
não estar a entidade requerente regularmente credenciada no processo” (BRASIL,
[2013]) e então, o Relator decidiu por desentranhar as peças: “Ante a circunstância
de o Conselho Federal de Medicina não integrar a relação subjetiva, procedam à
devolução das peças, sem prejuízo da sequência normal do processo” (BRASIL,
[2013]).
No entanto, nas audiências públicas ocorridas foram ouvidas não só as
entidades que requereram o ingresso no processo como amicus curiae, mas
também outras, dentre elas o Conselho Federal de Medicina (BRASIL, [2013]). “As
sessões ocorreram em 26 e 28 de agosto de 2008 e em 4 e 16 de setembro
imediato” (BRASIL, [2013], p. 20 de 433). E, como representante do CFM, em 28 de
agosto, foi ouvido o Dr. Roberto Luiz D’Ávila, que, segundo o relator,

fez referência à chamada judicialização da medicina – não é mais o médico


e o paciente que resolvem os respectivos problemas ou questões, mas um
magistrado, cuja opinião só será conhecida ao final de determinado período.
Especificamente no tocante ao caso dos pais de feto portador de
anencefalia, declarou que, em geral, as decisões não se coadunam com o
desejo e não respeitam a autonomia dos pais e são constantemente
postergadas a ponto de, quando proferidas, o bebê já ter nascido e morrido.
Informou que, a partir da décima semana de gestação, é possível o
diagnóstico da anencefalia. Alertou para o fato de que parcela dos médicos,
não obstante se mostrar favorável à tese de não ser a interrupção de
gravidez de feto anencéfalo enquadrável no Código Penal, recusa-se a
realizar a intervenção por recear a responsabilização no âmbito criminal
(BRASIL, [2013], p. 22 de 433).
42

Pelo que se infere do anotado sobre as falas do representante do CFM, não


houve uma defesa expressa à tese da parte autora, tendo sido apenas pontuadas
questões bastante relevantes à matéria, como o temor de médicos de tratarem seus
pacientes, devido à extrapolação de casos de saúde pública do consultório para a
instância do estado-juiz.
Em 21/03/2013, o CFM, por meio de sua assessoria de imprensa, demonstrou
seu posicionamento sobre a problemática do aborto, chegando a noticiar em seu
portal institucional a seguinte “nota”, intitulada “CFM esclarece posição a favor da
autonomia da mulher no caso de interrupção da gestação”:

‘Somos a favor da vida, mas queremos respeitar a autonomia da mulher


que, até a 12ª semana, já tomou a decisão de praticar a interrupção da
gravidez’, afirmou o presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM),
Roberto Luiz d´Avila, que esclareceu a posição tomada pelo CFM e pelos 27
conselhos regionais de medicina (CRMs), tomada por maioria durante o I
Encontro Nacional de Conselhos de Medicina 2013, acerca de ampliação
dos excludentes de ilicitudes penais em caso de interrupção de aborto.
[...]
Por maioria, os Conselhos de Medicina concordaram que a Reforma do
Código Penal, em processo de discussão, deve afastar a ilicitude da
interrupção da gestação em uma das seguintes situações: a) quando
‘houver risco à vida ou à saúde da gestante’; b) se a ‘gravidez resultar de
violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de
reprodução assistida’; c) se for ‘comprovada a anencefalia ou quando o feto
padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida
independente, em ambos os casos atestado por dois médicos’; e d) se ‘por
vontade da gestante até a 12º semana de gestação’.
O presidente do CFM também esclareceu que o limite de 12 semanas para
que possa haver a interrupção de gravidez se deve ao fato de que, segundo
a experiência médica, a partir desse tempo há um risco maior para a mãe.
‘O outro fator é que a partir de então o sistema nervoso central já estará
formado’, explicou.
[...]
Roberto d´Avila enfatizou que até a sociedade brasileira tomar a decisão
sobre a descriminalização do aborto, ‘o CFM continuará a julgar os médicos
que praticam o ato’. Um dos fatores que levou o CFM a defender mudanças
no Código Penal diz respeito ao princípio da justiça, ‘já que as mulheres de
classe média e alta conseguem interromper suas gravidezes com
segurança, enquanto as pobres se arriscam e sofrem as consequências de
abortos mal feitos’, afirmou. Atualmente, abortos são a quinta causa de
mortalidade materna (CFM ESCLARECE [...], 2013).

Se vê que, para além de registrar seu posicionamento sobre aborto e


anencefalia, ratificando que a atividade cerebral começa após a terceiro mês de
gestação, o CFM também deixou claro seu posicionamento quanto ao abortamento
voluntário, independentemente de anomalia fetal, um vez que desejava também ver
43

lícito o aborto “por vontade da gestante até a 12º semana de gestação”, conforme
citado.
No entanto, em 10/07/2018, por meio de uma nota de esclarecimento
constante no portal oficial do CFM com o nome “CFM esclarece sua posição sobre
interrupção da gestação”, em atenção às discussões da sociedade a respeito da
ADPF n. 442 proposta pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) visando a
descriminalização do aborto por não recepção parcial dos artigos 124 e 126 do
Código Penal pela CF/88, o CFM posicionou-se de forma contrária à de 2013: “Com
respeito à interrupção antecipada da gestação, o Conselho Federal de Medicina
(CFM) esclarece publicamente que não se manifestou a favor do aborto” (CFM
ESCLARECE [...], 2018).
Apesar dessas aparentes contradições, corroborando a ideia de que o feto
anencéfalo é um feto sem a formação mínima do cérebro apta para ser ele
considerado vivo, o CFM, por meio da Resolução n. 1.949/10, revogou a Resolução
CFM n. 1.752/04, que dispunha sobre o transplante de órgãos e tecidos de
anencéfalos, com autorização dos pais, inclusive dizendo:

CONSIDERANDO que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em


decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários
os critérios de morte encefálica;
CONSIDERANDO os precários resultados obtidos com os órgãos
transplantados;
[...]
RESOLVE:
Art. 1º Revogar a Resolução CFM nº 1.752/04 (CONSELHO FEDERAL DE
MEDICINA, 2010, grifo nosso).

Essa resolução, não obstante, também foi revogada, o que ocorreu por meio
da resolução CFM n. 2.293/2021, que foi criada “com o propósito de consolidação
das normas em vigência” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2021). Essa
resolução de 2021 tem como ementa: “Revoga resoluções que perderam o objeto” e
isso ocorreu porque, segundo a exposição de motivos ofertada pelo próprio
Conselho: “alterações promovidas por leis, decretos, resoluções do CFM ou
decisões judiciais fazem com que seja inapropriado ao CFM manter em vigência
resoluções conflituosas com instrumentos legalmente superiores” (CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA, 2021). No entanto, conforme se constata a partir desta, a
44

Resolução CFM n. 1.989/2012, aquela aprovada logo após o julgamento da ADPF n.


54, anteriormente mencionada, não foi revogada.
Portanto, podemos concluir pela pesquisa sobre a participação do CFM nessa
trajetória e pelas normatizações feitas pelo próprio que, embora o Conselho tenha
pouco se expressado, não contrariou o alegado pela CNTS na ADPF n. 54, do
mesmo modo que se retirou da arena normatizadora, em face do decidido pelo STF
nestes autos, mantendo de pé, inclusive, sua Resolução n. 1.989/2012, que informa
os critérios de diagnóstico de anencefalia para fins da antecipação terapêutica do
parto.
45

4 HÁ RAZÕES HERMENÊUTICO-JURÍDICAS PARA DESCRIMINALIZAR E/OU


LEGALIZAR A PRÁTICA DE ABORTAMENTO NO BRASIL?

Neste último capítulo analisaremos, tendo por base todos os conceitos já


expostos, a possibilidade da legalização do abortamento no Brasil. Para tanto,
procederemos a um exercício verdadeiramente reflexivo, lógico, hermenêutico, para
tratar dessa hipótese.

4.1 Descriminalização versus legalização: distinções necessárias

Ao comentar as “virtudes” da criminalização do assédio sexual, o autor Luiz


Flávio Gomes (apud PRADO, 2021, p. 605) faz uma ponderação sobre a
criminalização: “a criminalização tem a função de motivar concretamente as pessoas
rumo à obediência da norma”. De fato. No entanto, nem toda conduta deveria ser,
necessariamente, evitada a qualquer custo. Talvez, o melhor caminho pode ser a
redução de danos ou a regulamentação de determinadas condutas, pautando-se na
autonomia da vontade.
O ato de criminalizar pode não ser o melhor caminho, visto que a sociedade
pode não concordar unanimemente com os valores que fundam um tipo penal. Em
uma

sociedade aberta e pluralista, as profundas divergências de opinião acerca


das normas sociais devem ser aceitas não só como uma questão inevitável,
mas também como legítima expressão da livre discussão dos problemas
sociais. Por isso, é incompatível criminalizar uma conduta que se oponha à
concepção da maioria ou ao padrão médio de comportamento. A
estigmatização de um comportamento como delituoso deve limitar-se à
violação daquelas normas sociais em relação às quais existe um consenso
praticamente ilimitado e com as quais, no mínimo, em geral, é possível as
pessoas se conformarem (STRATENWERTH apud PRADO, 2018, p. 78).

Nessa mesma linha, Luiz Regis Prado afirma que “Em face da dimensão
sociocultural do bem jurídico, a orientação do processo
criminalização/descriminalização subordina-se às regras axiológicas imperantes em
cada momento histórico” (2018, p. 77).
46

O autor Juarez Tavares entende que não há nenhum critério científico na


criação de leis penais, pois estas atendem à atual conjuntura de tudo que forma a
opinião pública, o que inclui a mídia e a classe dominante (TAVARES, 1992).

Estudos de Haferkamp na Alemanha e Weinberger na França demonstram


que, com a institucionalização do poder político, a elaboração das normas
se expressa como evento do jogo de poder efetuado no marco das forças
hegemônicas atuantes no Parlamento. A norma, portanto, deixaria de
exprimir o tão propalado interesse geral, cuja simbolização aparece como
justificativa do princípio representativo para significar, muitas vezes,
simplesmente manifestação de interesses partidários, sem qualquer vínculo
com a real necessidade da nação (TAVARES, 1992, p. 1).

Tendo em vista todas as problemáticas apontadas pelos estudiosos do direito


penal a respeito do movimento de criminalização, algumas delas mencionadas, o
fenômeno da descriminalização se torna tema patente nos estudos penais, sendo
pauta recorrente em congressos de Direito Criminal e de trabalhos acadêmicos no
Brasil e até mesmo mundo afora. Será também aqui mencionado.
Luiz Luisi ensina que a descriminalização retira o caráter penal de condutas
que, até então, configuram fato típico. Segundo Luisi, ela pode se dar por lei que
revogue expressamente condutas típicas, ou pela substituição da sanção penal por
formas de sanção que não penais, ou pela derrogação fática (LUISI, 2003). Para
Paulo de Souza Queiroz, a descriminalização, além de ser feita através de lei
posterior - abolitio criminis -, da seara penal ou não, que revogue o tipo penal ou o
torne menos abstrato e abrangente, pode concretizar-se pela hermenêutica, com
interpretações judiciais restritivas das leis repressoras, ou pelo controle de
constitucionalidade, se houver declaração de inconstitucionalidade de lei penal
(QUEIROZ, 2002).
Um exemplo claro é o caso do adultério.

Até bem pouco tempo, o adultério era tipificado como crime no Código
Penal, mas, a partir de 2005, deixou de o ser. Isso não significa que o
adultério passou a ser amplamente aceito por toda a sociedade, bem ao
contrário, é causa de separação de inúmeros casais de diferentes classes
sociais. Com a descriminalização, o adultério deixou de ser crime, mas não
se tornou conduta automaticamente autorizada, nem tampouco um direito
para aquele que o pratica. A descriminalização tem um único efeito: ao
retirar da legislação penal, o Estado não pode mais intervir publicamente
naquela situação e o agente não pode mais sofrer nenhuma persecução de
natureza criminal (JÚNIOR IBAIXE, 2021).
47

Legalização, a seu turno, é uma terminologia técnica que significa prever a


legalidade de determinada conduta, expressar uma faculdade do indivíduo por meio
de lei. Aqui, a lei, ao autorizar a prática de determinada prática, também a
regulamenta, podendo prever requisitos e condições (JÚNIOR IBAIXE, 2021). “O
exemplo clássico é o consumo do cigarro, que é legalizado, mas possui restrições,
possuindo regras específicas para produção, divulgação, venda e consumo”
(JÚNIOR IBAIXE, 2021).
A legalização é diferente da descriminalização, que implica apenas em tornar
a prática de algo isenta de penalização pelo ordenamento jurídico-repressivo,
embora possa haver sanções civis e administrativas. O tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios, no seu site institucional esclarece melhor essa distinção:

Descriminalização significa que o ato ou conduta deixou de ser crime, ou


seja, não há mais punição no âmbito penal, mas ainda pode ser
considerada como ilícito civil ou administrativo, e pode sofrer sanções como
multas, prestação de serviços ou frequência em cursos de reeducação. Por
exemplo, a Lei n. 12.408/11 alterou a redação do artigo 65 da Lei n.
9.605/98 e acrescentou um novo parágrafo no dispositivo com a expressa
intenção de descriminalizar o ato de grafitar, que era uma conduta
considerada como crime.
Legalização significa que o ato ou conduta passou a ser permitido por meio
de uma lei, que pode regulamentar a prática e determinar suas restrições e
condições, bem como prever punições para quem descumprir as regras
estabelecidas pela legislação. Por exemplo, o consumo de álcool e tabaco é
legalizado, mas possui restrições, pois não podem ser vendidos a menores
e possuem regras de produção e venda (DISTRITO FEDERAL, [2018?]).

Ferrajoli fala que, talvez, a principal influência do iluminismo na esfera penal


tenha sido “a mitigação e minimização das penas” (2002, p. 317). Por conseguinte,
levando em consideração as características da modernidade, com a razão e
liberdade humanas no centro das tomadas de decisão e a atividade estatal que não
deve mais se pautar pelas diversas profissões de fé, a legalização de determinadas
condutas emerge como necessidade de acompanhar o avanço da racionalidade
humana e o anseio do indivíduo pela “liberdade de ação na sua vida privada para
poder escolher o que é melhor para si e quais riscos correr” (BRASIL, [2013], p. 115
de 433).
Embora saibamos que “o Parlamento não legisla o ideal; trabalha de maneira
emergencial” (NUCCI, 2022, p. 180) e que, por isso, “haveremos de conviver com
tipos inúteis por muito mais tempo” (NUCCI, 2022, p. 180), no caso do abortamento
especificamente, entendemos ser a legalização uma saída mais prudente para lidar
48

com o assunto, em relação à mera descriminalização. Isso porque, legalizando,


acabamos por regulamentar a prática, prevendo condições mínimas sanitárias,
médicas, limite temporal para o exercício do novo direito etc. Podendo-se lançar
mão, igualmente, de eventual regulamentação administrativa do procedimento. Claro
que, antes de tudo, a prática deveria ser uma conduta pelo menos não incriminada.

4.2 A Lei n. 9.434/1997 e as definições de início e fim da vida

Com relação estritamente à biologia, o fim da vida inicia quando um


organismo para de funcionar e finaliza com a decomposição (ANTONUCCI;
CANDIDO; RODRIGUES NETO; SCHIAVINI; LEHMANN; SGANZERLA;
SIQUEIRA, 2023).

O organismo é um arranjo bem-sucedido de células em diferentes fases de


evolução, com funções e tempos de colapso distintos. Após a privação de
nutrientes, como glicose, e de oxigênio, que eram distribuídos prontamente
pela circulação sanguínea, elas entram em um caos intracelular que leva
inevitavelmente à morte, deteriorando um órgão, um sistema e, por fim, o
corpo completo (ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES
NETO; LEHMANN; SIQUEIRA, 2023, p. 4).

É na verdade um processo gradativo e não um acontecimento único. Trata-se


de uma cadeia de eventos consecutivos em cascata e que, por causa disso, torna-se
difícil precisar o fim da vida. A partir dos avanços nos estudos de transplantes de
órgãos e tecidos foi necessário definir melhor as fases desse processo e fixar enfim
o momento em que a situação é irreversível e pode ser constatada a morte
(ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES NETO; LEHMANN;
SIQUEIRA, 2023).

dois eventos distintos ocorrem do ponto de vista biológico quando se analisa


a morte. O primeiro, imediato, consiste na perda da consciência e dos
sentidos e na parada da respiração e circulação, culminando na cessação
do funcionamento cerebral e na morte encefálica. Se não houver suporte
respiratório e circulatório artificial, esse quadro evoluirá para o segundo
evento, composto por fenômenos progressivos que se iniciam com rigidez e
esfriamento e terminam na putrefação do corpo. Quanto mais se progride no
processo de decomposição, mais sensível se torna o diagnóstico de morte
(ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; RODRIGUES NETO; LEHMANN;
SIQUEIRA, 2023, p. 6).
49

Após vários anos, simpósios, estudos, estabelecimentos de critérios clínicos,


publicações científicas, comitês de pesquisa etc, então chegamos à definição do fim
da vida como sendo a morte encefálica. E quais evidências utiliza-se para inferir que
há morte encefálica? “Associam-se à parada das funções cerebrais as evidências
por sinais clínicos de morte encefálica (coma aperceptivo, ausência de reflexos de
tronco) 15 e a ausência de atividade elétrica ou fluxo sanguíneo cerebral”
(ANTONUCCI; SGANZERLA; SCHIAVINI; NETO, LEHMANN; SIQUEIRA, 2023, p.
5).
A Lei n. 9.434/97, também chamada de Lei de Transplantes de Órgãos, já
mencionada alhures, é uma legislação importante para entendermos as definições
de início e fim da vida. Sua ementa é: “Dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos
e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras
providências” (BRASIL, 1997).
Conforme já mencionamos, temos nessa lei uma referência explícita à morte
encefálica, cuja configuração é irreversível e é o que conceitua o momento da morte
no Brasil.

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo


humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de
diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos
não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a
utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do
Conselho Federal de Medicina (BRASIL, [2007]).

Os critérios clínicos mencionados na disposição supra já foram expostos e


comentados em tópico anterior.
Com isso, podemos (re)afirmar com tranquilidade que a morte se dá com o
término das atividades cerebrais Entretanto, afinal de contas, quando começa,
então, a vida? A Lei n. 9.434/1997 não responde, e nem mesmo a Constituição
Federal,a saber. Embora o raciocínio contrario sensu de que, a vida merecedora de
proteção estatal, então, começaria no momento a partir do qual há atividade
cerebral, existem diversos argumentos e teorias que visam elaborar melhor essa
questão. É o que veremos a seguir.

4.2.1 As mais relevantes proposições teóricas formuladas


50

Dada a complexidade do tema que se constitui o debate sobre o início da


vida, até mesmo para os estudiosos das ciências naturais, proponho aqui que
estabeleçamos alguns fatos e raciocínios que parecem fazer bastante sentido à
nossa discussão, antes mesmo de qualquer coisa.
Segundo pontua, resumidamente, Débora Diniz numa discussão sobre
humanos e sub humanos e a anencefalia,

os anencéfalos são fetos que não possuem o órgão-sede que, por seu
desenvolvimento evolutivo, diferencia os seres humanos de outros animais.
É o cérebro que permite ou possibilita a personalização da humanitude,
tarefa impossível para aqueles que não o possuem (DINIZ, 2009).

É bastante comum lermos sobre como o cérebro da espécie homo sapiens, por seu
desenvolvimento e capacidade de cognição, propiciou ao ser humano se diferenciar
completamente das demais vidas no planeta Terra. A mente humana nos permite a
produção dos sentidos, que caracteriza a nossa humanitude e que permite a
fabricação da cultura. Donceel apud Dworkin fala sobre isso utilizando a terminologia
“atividade espiritual”, vejamos:

Se forma e matéria são estritamente complementares, como sustenta o


hilemorfismo, uma verdadeira alma humana só pode existir em um corpo
dotado dos órgãos necessários às atividades espirituais do homem.
Sabemos que o cérebro, e especialmente o córtex, é o órgão principal
dessas mais elevadas atividades dos sentidos sem as quais nenhuma
atividade espiritual é possível (2003, p. 58).

E sobre a fabricação da cultura, esclarecemos, pois, seu conceito dado por


Marilena Chauí:

A cultura é a criação coletiva de idéias, símbolos e valores pelos quais uma


sociedade define para si mesma o bom e o mau, o belo e o feio, o justo e o
injusto, o verdadeiro e o falso, o puro e o impuro, o possível e o impossível,
o inevitável e o casual, o sagrado e o profano, o espaço e o tempo. A
Cultura se realiza porque os humanos são capazes de linguagem, trabalho
e relação com o tempo. A Cultura se manifesta como vida social, como
criação das obras de pensamento e de arte, como vida religiosa e vida
política (CHAUÍ, 2000, p. 61).

Tudo isso, enfim, só é possível ao ser humano ao lançar mão da linguagem


que, longe de ser um mecanismo involuntário, determinado, puramente biológico e
instintivo, é produto da inteligência humana, da atividade intelectual do ser humano
51

(CHAUÍ, 2000). Sem essa capacidade de exercer sua inteligência, o ser humano
perderia aquilo que mais o faz ser humano, e esse também foi pensamento utilizado
na crescente consideração do critério da morte encefálica mundo afora.

com a morte da função cerebral, não é mais possível existir um eu


psicológico, sendo permitido manter um corpo vivo e operado para coleta de
órgãos. Não se trata mais do indivíduo que um dia viveu – pois ele está
morto, apenas seu corpo vive – e, por isso, seus órgãos e tecidos podem
ser retirados sem agredir uma pessoa viva (ANTONUCCI; CANDIDO;
RODRIGUES NETO; SCHIAVINI; LEHMANN; SGANZERLA; SIQUEIRA,
2023, p. 7).

A famosa frase de Epicuro que diz que a morte nada é para nós: quando
existimos a morte não é e quando a morte existe, nós não somos (EPICURO,
2002), embora seja essencialmente voltada para explicar mais sobre sua filosofia
helenista e para transmitir a ideia de que não devemos ver a vida como um fardo e
nem a morte com medo, de certa forma parece ratificar o nosso pensamento, pois
também demonstra que o corpo e a pessoa são instâncias separadas, mas
dependentes: assim que a morte se instalar (corpo humano perde suas funções
vitais), a pessoa não estará mais presente, visto que o cérebro estará morto. Por
isso concordamos com Luigi Ferrajoli quando ele diz: “Que há um tipo de vida antes
do nascimento é correto, um dado da realidade, mas passar dessa constatação a
sustentar que o que existe no interior materno é uma pessoa implica um salto lógico,
uma falácia argumentativa” (FERRAJOLI, 2020), visto que a palavra pessoa
prescinde de aspectos valorativos e não meramente biológicos (FERRAJOLI, 2020).
Além do mais, apesar de que exista uma vida biológica ali no iniciozinho da
gestação, sem nem mesmo dispor de atividade cerebral desenvolvida a ponto de se
criar sentimentos e significados e até mesmo sensação de dor (DWORKIN, 2003),
essa vida - em desenvolvimento - tem um valor intrínseco? A ideia de que a vida tem
um sentido e um valor intrínsecos, inerentes, é uma concepção proveniente das
religiões, visto que nós os seres humanos somos tidos como criação, e tudo que é
criado, é criado com algum propósito (QUAL O [...], 2022). De fato, a pespectiva
cristã é um bom exemplo: para o cristianismo, a vida representa um dom divino,
sacralizado e intangível, donde se forja que o início da vida humana se dá com a
concepção e, em decorrência, que entre o embrião, o feto e o recém nascido não há
diferenças, assim como entre o aborto e o homicídio (TESSARO, 2008).
52

No entanto, face ao estado laico, tal ideal não pode ser aplicado a todos como
uma lei o é, uma vez que não cabe ao governo o poder, ex officio, de proteger
valores intrínsecos, os quais devem ficar a cargo da consciência individual
(DWORKIN, 2003).

Por que, então, fazer um aborto não é semelhante a fazer uma


tonsilectomia? Por que uma mulher deveria sentir-se arrependida depois de
abortar? Por que deveria sentir-se mais arrependida do que se sentiria
depois de fazer sexo tendo antes recorrido a algum anticoncepcional? A
verdade é que a opinião liberal, como a conservadora, pressupõe que a vida
humana tem em si mesma um significado moral intrínseco, de modo que é
um erro, em princípio, pôr fim a uma vida mesmo quando não estão em jogo
os interesses de ninguém (DWORKIN, 2003, p. 47).

Também em sua obra Império do Direito, Dworkin, sempre bastante


interdisciplinar (filosofia, direito e política estão sempre presentes), aponta sobre a
moralidade. Para ele, a sociedade seria a personificação da moral e que, no entanto,
cada membro desta comunidade moral tem obrigações de imparcialidade uns com
os outros, sendo as autoridades tidas como agentes dessa comunidade ao
exercerem este papel (DWORKIN, 2007). Ou seja, mais do que esperar de cada um,
devemos esperar do Estado a imparcialidade quanto aos assuntos da moral privada.
Pegando o gancho na questão da sensação de dor mencionada, justamente
por trata-se de situação vedada pelo direito e também por ser bastante mencionada
como discurso político pelos grupos religiosos, principalmente no caso
estadunidense Roe X Wade, detalhadamente comentado por Dworkin em sua obra
“Domínio da Vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais”, o autor, com sensatez,
vai dizer que:

Sem dúvida, as criaturas capazes de sentir dor têm interesse em evitá-la.


Contraria frontalmente os interesses dos animais o fato de submetê-los à
dor, quando se os apanham em armadilhas ou se fazem experiências com
eles, por exemplo. Da mesma maneira, infligir dor a um feto que já possui
um sistema nervoso suficientemente desenvolvido também contraria
frontalmente seus interesses. Mas um feto só tem consciência da dor
quando sua mãe se encontra em estado avançado de gravidez, uma vez
que antes disso seu cérebro ainda não está suficientemente desenvolvido
(DWORKIN, (2003, p. 21).

Então, não há de se argumentar que a mulher que deseja abortar é suja e egoísta a
ponto de deliberadamente infligir dor a um ser inocente, caso exerça sua autonomia
e proceda ao abortamento no início da gestação.
53

Embora a vida não tenha um sentido inerente (concordamos com as filosofias


existencialistas e materialistas para as quais, por alto, não há que se falar em
sentido inerente à vida, mas talvez em sentidos, os quais cada um possa criar o seu
a partir de sua existência e liberdade), no ventre da mãe há uma potencialidade de
vida, que poderá se desenvolver e futuramente adquirir um sentido próprio, e este é
um argumento bastante usado pelos que acreditam que a vida começa e deve ser
absolutamente protegida desde a fertilização ou concepção.

Este argumento, embasado na potencialidade, segundo Harris7 sofre no


entanto de vários tipos de dificuldade que lhe são fatais. O primeiro deles é
o simples fato de que se algo inexoravelmente vai se tornar Zé (o que ainda
assim não é o caso do óvulo fertilizado) isso não implica em que devamos,
necessariamente, tratá-lo como se, de fato, ele já fosse Zé. Todos nós
estaremos mortos inexoravelmente um dia, mas isto é (supomos) uma
razão muito inadequada para nos considerar agora como se já
fôssemos todos mortos (ALMEIDA; MUÑOS, 1999, p. 4).

Feita essa - um pouco extensa - introdução sobre questões marginais


atinentes à problemática do início da vida, falaremos sobre algumas proposições
teóricas relevantes no cenário científico sobre o início da vida humana e, para tanto,
nos apoiaremos no artigo científico intitulado: ‘Nas fronteiras do "humano": os
debates britânico e brasileiro sobre a pesquisa com embriões’, também citado pelo
Ministro Celso de Mello em seu voto na ADPF n. 54. O artigo é escrito por Letícia da
Nóbrega Cesarino, à época doutoranda e hoje doutora em Antropologia pela
Universidade da Califórnia em Berkeley e goza de um poder de síntese que muito
serve a este trabalho.
Conquanto o mencionado artigo trate especificamente sobre a questão da
pesquisa com o embrião humano e os lobbies correspondentes a cada lado da
disputa, tanto no Reino Unido quanto no Brasil, quando de seus processos
legislativos sobre o assunto; e não sobre o feto, a autora se vê obrigada a falar
sobre a questão do início da vida, para então tratar do estatuto do embrião. Para ela,
“a tensão central que envolve a definição de regras para o uso do embrião na
pesquisa científica diz antes respeito a se (ou quando) ele é sujeito humano ou não”
(CESARIANO, 2007, p. 348).
Para tal fim, ela faz um apanhado sintético das principais teorias,
esquematizado em formato de quadro (Quadro 1), deixando registrado de antemão
que: “É claro que não contemplei aqui toda a controvérsia e a especifidade que
54

animam o debate sobre o início da vida no seio da própria comunidade científica, o


que provavelmente multiplicaria e complexificaria ainda mais a categorização
trazida” (CESARIANO, 2007, p. 365).

Fonte: Cesariano (2007, p. 365).


55

Como se depreende do esquema, cada teoria tem como fundamento um


valor, que é próprio da produção de sentido humana, e sua autora sabe muito bem
disso:

Não obstante a cientificidade das definições biológicas acima apresentadas,


qualquer antropólogo é capaz de nelas discernir com facilidade uma série
de traços cosmológicos definidores do ‘indivíduo moderno’: a racionalidade
(na tese neurológica), a individualidade (na tese embriológica), a
identidade (na tese genética) e a autonomia (na tese ecológica). No caso da
tese gradualista, Strathern (1992:123-4) identificou a ressonância da
concepção ocidental segundo a qual ‘as relações [são] posteriores à
condição de pessoa do indivíduo, e não integrantes dela’ na dupla
orientação atribuída ao desenvolvimento embrionário: a um tempo genética
(através de uma programação cromossômica ‘dada’) e epigenética (através
da interação com o ambiente). Entre carga genética e ambiente dar-se-ia o
mesmo que entre indivíduo e sociedade: uma relação entre termos
substancializados de antemão. A dualidade entre as âncoras morais e as
biológicas de que fala a autora parece, assim, ser constitutiva de tais
propostas sobre o estatuto do embrião (CESARIANO, 2007, p. 364-366,
grifo nosso).

E não teria como ser diferente, afinal de contas, perguntar quando começa a
vida humana é equivalente a perguntar por que razão um indivíduo no Brasil com 17
anos, 11 meses e 29 dias não pratica crime, contudo no dia seguinte sim, caso mate
alguém. Linhas convencionais para fins sociais e jurídicos sempre podem ser
formuladas (ALMEIDA; MUÑOS, 1999), até porque a finalidade das normas é o ser
humano.
A antropóloga Letícia da Nóbrega Cesarino cita a filósofa inglesa Mary
Warnock, que parece concordar com essa ideia e, após, faz um comentário
importante sobre a vida ser um processo contínuo:

Como notou a autora a respeito da lei britânica, a ciência não tem a


necessidade, por si, de definir um marco para o início da vida humana
individual: ‘A biologia não nos diz que uma linha deve ou não ser traçada. É
tarefa da legislação traçar as linhas’ (:118). Mas os cientistas, quando
chamados a tomar parte no debate público sobre a regulamentação de suas
atividades de pesquisa, são forçados a introduzir um marco discreto no
processo contínuo que é a vida biológica (CESARIANO, 2007, p. 364).

Como processo contínuo que é, então, entendemos ser interessante, mais


que buscar o mero momento biológico onde a vida inicia, verificar quando a vida
passa a ter significado moral, significado que a distingua, efetivamente, das demais
vidas presentes no universo (ALMEIDA; MUÑOS, 1999). E, também, entendemos
ser interessante nos referenciarmos num momento desse continuum que tenha o
56

condão de propiciar um fenômeno verdadeiramente harmônico do ponto de vista


jurídico-hermenêutico, considerando-se as disposições da Lei n. 9.434/1997, bem
como de continuidade e construção lógica de conceitos para o meio jurídico, ferindo
o menos possível eventuais outros direitos existentes na equação do problema do
abortamento, como por exemplo os direitos de autonomia privada e liberdade sobre
o próprio corpo da mulher, única classe sexual passível de vulnerabilidade direta
pela criminalização do abortamento voluntário.

4.3 Autonomia privada e liberdade sobre o próprio corpo

Ao discorrer sobre as confrontações entre bioética e biodireito, Maria de


Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves aduzem que a bioética é
uma disciplina, ética e campo de estudo mais abstrato, permitindo uma investigação
vasta, com pesquisas mais abertas, visto seus variados objetos de pesquisa (saúde
humana, saúde ocupacional, saúde mental, animais e vegetais, meio ambiente,
comportamento, terapias, vida e morte etc). Enquanto isso, o biodireito detém um
método mais restrito de pesquisa e investigação, por estar mais atrelado à
dogmática jurídica do que com a zetética e a moral (SÁ; NAVES, 2023).
O biodireito seria, então, uma espécie de reflexo judicializado da bioética, que
é mais ampla e faz questionamentos transdisciplinares, não se limitando a normas
vigentes (SÁ; NAVES, 2023). "Biodireito e Bioética são ordens normativas, e, como
tais, têm caráter prescritivo. A distinção, todavia, está na forma de abordagem e na
força cogente" (SÁ; NAVES, 2023, p. 16). Por isso é que, quando da abordagem de
questões existenciais, de autonomia e liberdade, sobre o início da vida, e sobre
saúde, recorreremos com maior ênfase ao conceito/princípio da bioética, ao invés do
biodireito. Dessa forma, mantém-se, efetivamente, o caráter amplo e discutível dos
referidos assuntos, já que a bioética, “Como conhecimento filosófico, [...] não se
detém nos pressupostos e limites colocados pelas áreas do saber” (SÁ; NAVES,
2023, p. 16).
Sabemos que as liberdades individuais, bem como os preceitos de
integridade, solidariedade e igualdade são o âmago dos direitos humanos
(MORAES; CASTRO, 2014). Todavia, a autonomia privada e a liberdade sobre o
próprio corpo também são princípios da bioética:
57

Kovács 2 destaca que o desenvolvimento da bioética como ramo do saber


científico tem se fundamento no tripé denominado por Pessini e
Barchifontaine de ‘trindade bioética’, calcada nos ideais de autonomia,
beneficência e justiça. A autonomia é definida por Ramos 3 como o direito
do ser humano de se autogovernar, exercendo o papel de protagonista
quanto a saúde e enfermidades. [...] O cumprimento desses preceitos traz à
tona temas complexos, como a eutanásia 3 (BARCHIFONTAINE; TRINADE,
2019, p. 440).

A autonomia traz à tona também, acrescento eu, o tema do aborto. Aliás, não
só por mim, mas também por Sandi e Braz: “Por serem braços dialéticos da bioética
latino-americana, os conceitos de vulnerabilidade e autonomia podem ser, também,
princípios bioéticos orientadores das discussões sobre o aborto” (2010, p. 145). Ou
seja, princípios específicos que vêm informar sobre questões muito caras ao
exercício da gestão da própria saúde e corpo, até mesmo em sua seara existencial.
Assim, fica posta a sua especial importância para a temática abordada neste
trabalho.

A Bioética surge como corolário do conhecimento biológico, buscando o


conhecimento a partir do sistema de valores. Embora se refira,
frequentemente, aos problemas éticos derivados das descobertas e das
aplicações das ciências biológicas, que tiveram grande desenvolvimento na
segunda metade do século XX, mister ressaltar que referida ciência tem,
entre suas preocupações principais, a questão da autonomia do paciente e
a questão ambiental (SÁ; NAVES, 2023, p. 16, grifo nosso).

Abstratamente falando, para Marilena Chauí, a palavra autonomia

vem do grego: autos (eu mesmo, si mesmo) e nomos (lei, norma, regra).
Aquele que tem o poder para dar a si mesmo a lei, a norma, a regra é
autônomo e goza de autonomia ou liberdade. Autonomia significa
autodeterminação. Quem não tem a capacidade racional para a autonomia
é heterônomo. Heterônomo vem do grego: hetero (outro) e nomos; receber
de um outro a lei, a norma ou a regra (CHAUÍ, 2000, p. 566).

Conforme se infere da conceituação dada pela filósofa, quem tem o poder para se
auto governar goza, então, de liberdade.
Sobre liberdade, a princípio, registre-se que é impraticável enumerar as
liberdades às quais uma pessoa tem direito, uma vez que o terreno da liberdade é
estabelecido de forma negativa, como tudo o que não é proibido (ROSS, 2000).
Robert Alexy, embora exponha as objeções à teoria do direito geral de liberdade em
sua obra Teoria dos Direitos Fundamentais, concorda: “a concepção de um direito
58

geral de liberdade tem mais vantagens que desvantagens” (ALEXY, 2006, p. 345).
Ele o compreende como não apenas o direito que protege o “fazer” humano (ações,
situações e posições jurídicas do titular de direitos fundamentais), mas também o
“ser” fático e jurídico dos seres humanos contra intervenções, para o exercício mais
amplo possível da liberdade (ALEXY, 2006).
Temos, então, que esses direitos de autonomia privada e liberdade sobre o
próprio corpo são abstratos, “os dispositivos constitucionais que impõem a liberdade
e a igualdade são abstratos” (DWORKIN, 2003, p. 207). E que, portanto, a negação
deles traduz-se num ataque também de proporções muito maiores, verdadeiramente
simbólicas. Dworkin fala até mesmo de um ataque à democracia.
Tal qual categoriza Dworkin (apud BONFIM, 2021), existem três princípios
caracterizadores da democracia e um deles é o chamado “princípio da
independência”. Este princípio informa que a independência ética e moral dos
membros da comunidade é a marca de uma democracia comunitária (DWORKIN,
apud BONFIM, 2021). Ao explicar este princípio em Dworkin, Bonfim ainda enfatiza
que:

Consiste em dizer, primeiramente, que uma democracia genuína deve criar


incentivos e condições propícias para que os cidadãos construam suas
próprias convicções e reflexões sobre temas de política, ética e moral.
O que se busca vedar, com tal princípio, é que a comunidade, por outro
meio que não o legítimo debate argumentativo, intente mudar as convicções
de um cidadão. O emprego de meios coercitivos ou obscuros para incutir no
indivíduo uma moral comunitária faria da ação coletiva um totalitarismo.
E a abrangência do princípio da independência vai mesmo além disso.
Implica não apenas em incentivar que o indivíduo tenha suas próprias
reflexões, mas também em assegurar que ele possa viver sob elas. Por
vezes o ter concepções autônomas de ética e moral e o agir conforme elas
são coisas tão intimamente conectadas que pretender dissocia-las seria
consagrar uma independência apenas artificial (BONFIM, 2021, grifo nosso).

E continua dizendo, apontando as consequência práticas da última afirmação,


que existem setores onde determinadas decisões sobre si mesmo estão tão afeitas
a preferências pessoais, que evadi-las do domínio privado, prescrevendo
concepções morais comunitárias, seria o equivalente a negar a própria existência do
indivíduo enquanto ser ético e, então, suprimi-lo da comunidade democrática
(BONFIM, 2021).
Com isso em mente, ao comentar a ADPF n. 442, de forma conclusiva,
Bonfim pontua que “a criminalização do aborto ofende ‘the principle of stake’. Isso
59

pois impõe à mulher uma concepção moral coletiva cujos efeitos deletérios são
suportados integralmente por elas” (2021).
A instância política da negação da autonomia é comentada por Rubens
Casara. Para ele, o totalitarismo e o fascismo são, antes de tudo, uma linguagem,
que pode muito bem se concretizar quando o estado ignora, subestima ou mesmo
nega a autonomia dos seus indivíduos:

O Estado Total é, antes de tudo, uma fórmula, uma linguagem, que se
propõe a anunciar um novo Estado, síntese e unidade de todo valor489. Em
apertada síntese, o Estado Total é a bússola norteadora dos movimentos
fascistas, cujo discurso oficial preconiza que tudo está no Estado. Nesse
contexto de reflexão, enquadram-se no ideário fascista as práticas que se
direcionam ao Estado Total, definido em oposição ao indivíduo, ao mesmo
tempo em que negam sua alteridade de autonomia. Há, portanto, em cada
ato facista uma parcela daquilo que Mussolini chamou de ‘feroz vontade
totalitária’490 (CASARA, 2015, p. 273).

Um exemplo clássico, não prático, mas literário, do que Casara diz é a


entidade ficcional criada por George Orwell em “1984” do totalitário Grande Irmão,
descrita pelo autor como onipresente e onipotente. O Big Brother é o líder do Partido
daquela sociedade politicamente organizada, chamada de Oceania, em que se
proibia tudo, negando veementemente qualquer esboço de alteridade e autonomia
dos indivíduos daquela sociedade. Para se ter uma ideia, nem mesmo demonstrar
fortes sentimentos genuínos era permitido. Qualquer atitude que exprimisse vontade
de ficar sozinho, insatisfação, histeria, amor, desejo, alegria e quiçá liberdades
sexuais, era suspeita e perigosa de tal modo que, se descoberta, poderia levar o
indivíduo à tortura ou à morte, não havendo possibilidade razoável de defesa
(ORWELL, 2021).
Luis Felipe Miguel aponta o caráter misógino e suas consequências ante ao
desprezo à autonomia e liberdade da mulher, principalmente quando esta
encontra-se grávida, corroborando também com o que Dworkin diz sobre a afetação
disso no domínio público da vida da mulher:

A soberania sobre si mesmo é um direito fundante da possibilidade de ação


autônoma da arena política. Mas permanece uma grave assimetria entre
homens e mulheres, gerada por aquilo que podemos chamar de gravidez
compulsória, que representa uma limitação potencial permanente à
soberania das mulheres sobre si mesmas. Então o cidadão, isto é, o
homem, ingressa na esfera política dotado de soberania sobre si mesmo,
mas para a mulher, tal soberania é condicional. Sob determinadas
circunstâncias, ela deixa de exercer arbítrio sobre seu próprio corpo e se
60

torna um instrumento para um fim alheio. Nesse processo ocorre uma


inversão: em vez da sociedade ficar com a obrigação de garantir as
condições para que as mulheres possam levar a cabo gestações livremente
decididas, a gravidez passa ser uma obrigação perante a sociedade
(MIGUEL, 2012, p. 666).

Numa sociedade patriarcal, não é raro a culpabilização do próprio oprimido


por todo e qualquer contingente social que ocorra justamente pelo sistema de
opressão em que ele está inserido. Assim, Sandi e Braz (2010) chamam nossa
atenção para um certo discurso que visa ocultar as causas da vulneração por que
passam as mulheres e que “fazem da autonomia um discurso que responsabiliza as
vítimas por suas próprias feridas” (SANDI; BRAZ, 2010, p. 145). Como as autoras
dizem, esses são verdadeiros danos acessórios que duplicam a estigmatização
sociossexual (SANDI; BRAZ, 2010) e que demonstram a não consideração da
mulher em si mesma. A saber, Beauvoir em sua filosofia feminista e existencialista,
aponta que o sexo feminino não goza de autonomia, visto que não é compreendido
em si, mas relativamente ao outro. É o que ela chama de O Segundo Sexo
(BEAUVOIR, 1946).
Também na defesa da autonomia da mulher como garantia de cidadania se
posiciona Angela Davis. Apesar das perspicazes críticas ao racismo dentro do
movimento pela legalização do abortamento nos Estados Unidos e até mesmo no
movimento sulfragista, ela entende que “O controle de natalidade – escolha
individual, métodos contraceptivos seguros, bem como abortos, quando necessários
– é um pré-requisito fundamental para a emancipação das mulheres” (DAVIS, 2016).
Ao trabalhar os diversos aspectos da relação corpo e intervenção do estado e
do direito sobre as práticas privadas que o indivíduo pode adotar para si, a autora
Mariana Alves Lara defende que há um direito fundamental de liberdade de uso e
manipulação do corpo como forma de auto realização, uma vez que a pessoa é o
fundamento e também a finalidade de todas as leis, sendo que, portanto, os direitos
de personalidade devem ser experimentados com base nas escolhas pessoais dos
indivíduos (2014). E, como podemos perceber neste nosso tema, esse ainda é um
dilema: “Considerando que o viver singular pressupõe o corpo como um espaço de
liberdade, é no Direito que os limites da autonomia corporal formam um dos maiores
dilemas jurídicos contemporâneos” (MORAES; CASTRO, 2014, p. 780).
Ainda que possa representar este tema uma questão controvertida no meio
jurídico, devemos, como dito anteriormente, nos valer de determinados exercícios de
61

pensamento de modo que os preceitos fundamentais da autonomia e da liberdade


da mulher sejam colocados na equação, quando da análise das possibilidades de
descriminalização ou legalização do abortamento.
Portanto, se o feto cujo sistema nervoso central estiver incompleto não for
considerado como uma vida para os fins legais, e se não concebermos um feto
humano com tamanha sacralidade, não caberia, então, à mulher, no exercício de
sua liberdade e autonomia, decidir pelo abortamento assim como poderia
plenamente decidir por uma remoção de verruga do seu corpo?

4.4 A decisão do Supremo Tribunal Federal proferida nos autos da ADPF n. 54:
vetor de hermenêutica jurídico-penal autorizativo da legalização da prática de
abortamento eletivo no Brasil

A palavra hermenêutica vem do grego hermeneuein, que deriva de Hermes,


um mensageiro divino que, ao transmitir a mensagem, a esclarece para os seus
destinatários mortais. Ao longo da história, a palavra hermenêutica recebeu variadas
significações, contudo, na modernidade, a hermenêutica jurídica, especificamente,
tem sido compreendida como a arte ou técnica que produz efeitos diretivos sobre a
lei. E por causa desses efeitos, sempre houve para a hermenêutica jurídica uma
tensão sobre o texto e o sentido que sua aplicação alcança na realidade (STRECK,
2017).
Essa tensão na verdade é criatura do processo interpretativo clássico, que
entendia a interpretação como sendo produto de uma estratificação em partes, algo
parecido com o que prescreve o conceito analítico de crime, em que o sujeito
primeiro compreende, depois interpreta e, após, aplica (STRECK, 2017). “Como se
fosse possível primeiro o intérprete ter acesso a uma realidade nua e crua e depois
a ela (ou sobre ela) colocasse um sentido” (STRECK, 2017, p. 122). Para Lênio
Streck, esse fatiamento epistêmico é impossível, pois, segundo ele:

O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes,


porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos
horizontes para si mesmo. E essa atribuição de sentido não se dá em dois
‘terrenos separados’, como o sentido da lei e dos fatos. Não. Tudo se dá
em um processo de compreensão, em que sempre já existe uma
précompreensão. Ninguém pode falar em inconstitucionalidade sem saber o
que é constituição.
62

Temos uma estrutura do nosso modo de ser no mundo, que é a


interpretação. Podemos dizer, então, que estamos condenados a interpretar
(STRECK, 2017, p. 123).

Sempre haverá, sim, uma pré-compreensão, afinal de contas, “Todo ponto de vista é
a vista de um ponto” (BOFF, 2014, p. 12).
Ousamos dizer, inclusive, que os estudantes de direito e seus operadores têm
um certo vício em dar ênfase para a famosa “vontade do legislador” como se isso
bastasse, numa simplicidade de pensar que no texto estará todo o sentido. E esse
vício, para Eros Grau, advém de uma longa tradição que nos faz pensar que apenas
interpretamos a norma quando ela é de difícil compreensão, sendo que, quando não
o é, não interpretamos, pois bastaria simplesmente seguir a tal vontade do legislador
(2006). Entretanto, este é um erro:

O fato é que praticamos sua interpretação não - ou não apenas - porque a


linguagem jurídica seja ambígua e imprecisa, mas porque interpretação e
aplicação do direito são uma só operação, de modo que interpretamos para
aplicar o direito e, ao fazê-Io, não nos limitamos a interpretar (=
compreender) os textos normativos, mas também compreendemos (=
interpretamos) os fatos (GRAU, 2006, p. 2).

Continua:

O texto, preceito, enunciado normativo é alográfico. Não se completa no


sentido nele impresso pelo legislador. A ‘completude’ do texto somente é
realizada quando o sentido por ele expressado é produzido, como nova
forma de expressão, pelo intérprete.
Mas o ‘sentido expressado pelo texto’ já é algo novo distinto do texto. É a
norma (GRAU, 2006, p. 83).

Lênio Streck, também em suas “Lições de Crítica Hermenêutica do Direito”,


segue esse entendimento, usando como exemplo as súmulas:

Nesse ponto, cabe outra advertência: a afirmação de que a súmula é


(também) um texto deve ser compreendida a partir de um olhar
hermenêutico. Destarte, quando afirmo que a súmula é um texto, quero
dizer que este texto, ao ser interpretado, deverá ensejar uma norma
(sentido) que respeite, de forma radical, a coerência e integridade do direito.
Caso contrário, ela será aplicada de forma objetificada, entificadamente, isto
é, será uma categoria a partir da qual se fará deduções e subsunções
(STRECK, 2014, p. 143).

O que se pode concluir pela lição dos autores é que a norma jurídica é
produto do texto que se transforma com a interpretação, concomitantemente
63

considerada a realidade. Sendo assim, texto e norma não se confundem. Apenas


para cristalizar este raciocínio: “O que em verdade se interpreta são os textos
normativos; da interpretação dos textos resultam as normas. Texto e norma não se
identificam. A norma é a interpretação do texto normativo” (GRAU, 2006, p. 84).
Somada a esta questão, temos ainda o problema, já abordado alhures, de que
o Parlamento não legisla o ideal e, por causa disso, estamos sempre à mercê de
conviver com regramentos que já não exprimem a demanda real da sociedade
(NUCCI, 2022). Teríamos então que apenas continuarmos aplicando o texto
normativo como se matemática fosse, usando de preceitos dessa hermenêutica que
apresenta resquícios “de um positivismo jurídico que convive com uma total
discricionariedade no ato interpretativo” (STRECK, 2017, p. 124)?
Consoante veremos a seguir, não foi dessa forma que o STF encarou a
releitura do abortamento de feto anencéfalo, frente à interpretação conforme a
Constituição. Abordaremos algumas questões periféricas sobre a importância da
ADPF n. 54 para nossa análise e, após, trabalharemos o cerne da questão.
Ao analisar os fundamentos contidos na ADPF n. 54, Teresinha Pires (2016)
entende que tal julgado representou um substancial progresso quanto à
concretização das liberdades individuais na instância da jurisdição constitucional
brasileira, que representa a Suprema Corte. Para ela, as cortes constitucionais, ao
se depararem com a temática, vem delimitando cada vez mais o âmbito de proteção
de direitos reprodutivos e sexuais, bem como considerando a evolução da Medicina
e das novas demandas femininas na sociedade. E no nosso caso com a ADPF n. 54
não foi diferente, pois ela seguiu preceitos estipulados internacionalmente que vem
acatando cada vez mais a autonomia moral e a liberdade sobre o próprio corpo da
mulher. Então, para a autora, trata-se de um precedente que aprimorou os critérios
de análise para se pensar sobre o aborto no Brasil. A ADPF n. 54, constitui,
portanto, incontestável parâmetro analítico para a descriminalização/legalização do
abortamento (PIRES, 2016).
Outrossim, Bonfim discorre que:

analisando os precedentes da Suprema Corte acerca do tema (HC 84.0257;


ADI 3.5108; ADPF 549; HC 124.30610), se extrai facilmente que, de forma
coordenada e harmônica, o ‘povo’ enuncia e dá especial ênfase ao princípio
da autodeterminação da mulher em detrimento da vida do feto. Exige-se,
assim, que siga neste caminho, caso, é claro, adotada a integridade
hermenêutica, constrição à atitude interpretativa aventada por Dworkin.
64

O que se retira destas decisões judiciais é que, ao ver do STF, ao longo de


anos de prática jurídica coerente, a criminalização do aborto ofende o
princípio da independência (BONFIM, 2021).

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.510, que tratou sobre a


constitucionalidade ou não da pesquisa em células tronco obtidas de embriões
humanos, o STF julgou improcedente o pedido do Ministério Público Federal, que
postulou a inconstitucionalidade do artigo 5º da Lei de Biossegurança, em que se
está positivado a permissão para as pesquisas. Com esse julgamento, o plenário do
STF, por maioria dos votos, declarou constitucional o referido artigo, reconhecendo
que a vida não começa na fertilização (BRASIL, [2010?]).
Em 2016, ao revogar a prisão preventiva de réus pelo crime de aborto (HC
124.306), o STF abriu o precedente de que o referido ilícito, se praticado até o
terceiro mês de gestação, não deve ser considerado crime (PRADO, 2021). Em seu
voto, o Ministro Luis Roberto Barroso, defendeu que os artigos 124 a 126 do CP
devem ter sua constitucionalidade repensada, uma vez que a criminalização do
aborto realizado até esse marco temporal, fere direitos fundamentais das mulheres,
tais como a autonomia, integridade física e psíquica, direitos reprodutivos e sexuais
(BRASIL, [2017]).
No seu voto vista, inclusive, o ministro relator Barroso resume novamente o
debate sobre o início da vida:

Há duas posições antagônicas em relação ao ponto. De um lado, os que


sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o espermatozoide
fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De outro lado,
estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso central
e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá após
o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em
sentido pleno (BRASIL, [2017], p. 16 de 49).

Para ele, todavia, assim como para os autores mencionados no tópico


antepenúltimo a este, a resolução desta controvérsia dependerá sempre da escolha
da escola religiosa ou filosófica que se aderir a pessoa (BRASIL, [2017]). O
desfecho foi que a 1º Turma do Supremo concedeu a liberdade dos funcionários da
clínica clandestina de aborto ao concluir que o status de pessoa constitucional é
reconhecido após o nascimento com vida (BRASIL, [2017]).
Para o Ministro Marco Aurélio em seu voto na ADPF n. 54, o que importa não
é o mero funcionamento orgânico do corpo humano ou do corpo humano em
65

desenvolvimento, mas as atividades psíquicas que viabilizam o convívio social para


o indivíduo. O direito não tem interesse em proteger a vida orgânica (BRASIL,
[2013]), até porque

sem o cérebro, o organismo não sobrevive por muito tempo e, ainda que
sobrevivesse, não teria característica subjetiva alguma a ser partilhada
intersubjetivamente. Funções orgânicas e atos reflexos não interessam ao
Direito como objeto de proteção daquilo que se designa por vida na
linguagem jurídica (BRASIL, [2013], p. 108 de 433).

Reitera-se, sem o funcionamento do cérebro não há convívio social,


humanitude, sociabilidade. E sem estes fatores não haveria os conflitos, que são a
razão de ser do Direito: “ubi homo, ibi societas, ubi societas, ibi jus; ergo, ubi homo,
ibi jus (onde há o homem há a sociedade; onde há a sociedade, há o direito; logo,
onde o homem, aí o direito)” (MATA-MACHADO, 1986, p. 14). Paulo Dourado de
Gusmão também menciona esse antigo brocado:

Da natureza do agrupamento social depende a natureza do direito, que a


reflete e a rege. Do tipo de sociedade depende a sua ordem jurídica,
destinada a satisfazer as suas necessidades, dirimir possíveis conflitos de
interesses, assegurar a sua continuidade, atingir as suas metas e garantir a
paz social. Ubi societa ibijus: onde há sociedade há direito; poderia ser
assim adaptado o velho brocardo (GUSMÃO, 2018, p. 31).

Para a Ministra Carmen Lúcia, a demanda proposta pela CNTS constituía um


conflito normativo aparente, uma vez que permitimos até mesmo o transplante de
órgãos quando detectada a morte cerebral (com todos os requisitos para tal,
obviamente). Então seria incoerente, nas palavras dela: “não incluir nas excludentes
de ilicitude o aborto do feto que apresentar ausência do encéfalo” (BRASIL, [2013],
p. 214 de 433). E, asseverando a importância hermenêutica da Lei n. 9.434/97 para
aquela demanda (e, logicamente, também para essa), ela continua:

Desde que a Lei n. 9.434/97 dispôs que o diagnóstico de morte encefálica


seria o marco para declarar-se determinada pessoa como morta, o aborto
do feto desprovido do encéfalo sequer poderia ser considerado conduta
penal típica, porque se teria verdadeiro crime impossível em face da
absoluta impropridade daquele sobre o qual recai a conduta do agente, a
saber, o feto morto, porque anencéfalo (BRASIL, [2013], p. 214 de 433).

Novamente, desta vez no voto do ex Ministro Celso de Mello, vemos este


argumento: “A atividade cerebral, referência legal para a constatação da existência
66

da vida humana, pode, também, ‘a contrario sensu’, servir de marco definidor do


início da vida” (BRASIL, [2013], p. 350 de 433).
Percebe-se que os ministros em seus votos estiveram a usar bastante a
expressão “a contrario sensu”, em virtude de ser uma “Forma de argumentação
dialética por analogia: do contrário se conclui o contrário. (Se a A convém um
predicado B, a nâo-A é provável que convenha um predicado não-B)”
(ABBAGNANO, 2007, p. 15). É uma forma de argumentação válida, portanto.
Trata-se, ademais, de um raciocínio lógico que coaduna muito bem ao tema
da ADPF n. 54, dando expressão ao princípio da integridade do direito proposto por
Dworkin, visto que seria não íntegra a postura de perseguir criminalmente médicos
que realizassem a antecipação terapêutica do parto de um feto tido como morto,
pois sem atividade cerebral. Ainda mais considerando o conceito de morte adotado
pelo direito brasileiro, dado pela Lei n. 9.434/97.
Deve todo o ordenamento jurídico brasileiro, então, numa evolução cívica e
jurídica, harmonizar seus entendimentos de forma a dar concretude ao princípio da
integridade proposto por Dworkin, o qual defende uma teoria do direito que visa a
integridade do sistema jurídico. Lança-se mão, para tanto, de uma interpretação
construtiva do direito, ao não vê-lo como meras regras estáticas do passado, mas
como um sistema de princípios que, como tais, são produtos do exercício
interpretativo comum da sociedade no tempo presente, criadora do direito e também
a sua finalidade (DWORKIN, 2007).
67

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando-se que o fato típico é elemento essencial do crime em seu


caráter analítico, caráter próprio do exercício científico, é necessário que a conduta
do abortamento represente, de fato, objeto passível de enquadramento
jurídico-penal para, assim, concretizar-se a tipicidadade e justificar a manutenção do
crime de aborto no ordenamento jurídico brasileiro. Este objeto passível de
enquadramento, como já falado, é a vida humana em desenvolvimento.
No entanto, embora haja teorias a respeito do início da vida humana,
verifica-se que há um caminhar hermenêutico do judiciário brasileiro, especialmente
representado pela ADPF n. 54, em que foi traçado uma linha definidora do início da
vida como sendo o início da atividade cerebral, por volta do terceiro mês de
gestação em diante.
Desse modo, face à Lei n. 9.434/1997, que estabelece a morte como sendo a
falta da atividade cerebral, e à toda interpretação constante na decisão do Supremo
Tribunal Federal nos autos da ADPF n. 54, que delimitou a início da vida como
sendo, a contrario sensu, o início da atividade cerebral, reverberando em nova
nomenclatura para o feto anencefálico como morto cerebral e para o aborto deste
feto como antecepição terapêutica da gravidez, bem como o princípio da integridade
proposto por Dworkin, pode-se dizer que o abortamento de feto no primeiro trimestre
de gestação constitui-se fato atípico, visto a ausência do objeto do crime de aborto,
que é um feto vivo, com atividade cerebral.
Presente a atipicidade, pois inexistente a adequação típica, portanto,
dever-se-ia operar o instituto da legalização, com a consequente retirada do
conjunto normativo ensejado pelos artigos 124 a 127 do Código Penal,
concomitantemente à regulamentação da prática, cujo limite abarcado pela
atipicidade é o início da atividade cerebral, lapso temporal necessário quando se fala
em regulamentação.
Dessa forma, confirma-se a hipótese de inexistência de fundamentos para a
criminalização do abortamento voluntário realizado antes de o feto desenvolver
atividade cerebral, pois, ausente algum dever jurídico imposto à mulher de manter a
gravidez, trata-se o abortamento, nas circunstâncias descritas acima, de mero
exercício regular e legítimo de sua autonomia e liberdade individual.
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