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UNIVERSIDADE SALGADO DE OLIVEIRA


CURSO DE DIREITO

ANELENA FERREIRA DE MEDEIROS

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO COMO UM


DIREITO FUNDAMENTAL DA MULHER

Goiânia
2015
2

ANELENA FERREIRA DE MEDEIROS

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO COMO UM


DIREITO FUNDAMENTAL DA MULHER

Monografia apresentada à Disciplina Orientação


Metodológica para trabalho de Conclusão de Curso,
requisito imprescindível à obtenção do grau de Bacharel
em Direito pela Universidade Salgado de Oliveira.

Orientadora:
Professora Ma. Cecília Aires Pereira Lemes

Goiânia
2015
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ANELENA FERREIRA DE MEDEIROS

A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO COMO UM DIREITO


FUNDAMENTAL DA MULHER

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade Salgado de Oliveira


como parte dos requisitos para conclusão do curso.

Aprovada em ____ de junho de 2015.

BANCA EXAMINADORA:

Cecília Aires Pereira Lemes – Mestre em Direito, UFG/GO


Professora Orientadora - UNIVERSO

Examinadora - UNIVERSO
4

Dedico este trabalho a minha mãe Maria de Fátima, que confiou em mim e me
deu esta oportunidade de concretizar este sonho. Sei que ela não mediu esforços
pra que este sonho se realizasse, sem a compreensão, ajuda e confiança dela nada
disso seria possível hoje.
5

Agradeço primeiramente a DEUS, por me dar forças para conquistar mais uma
etapa de minha vida.
Ao meu pai Aécio Medeiros, que apesar de estar ao lado de Deus, sinto sua
presença me guiando e incentivando a não desistir dos meus objetivos.
A minha mãe Maria de Fátima, que com amor, apoio e carinho não me deixou
desistir nas horas difíceis.
Aos meus irmãos, minha sobrinha Marina e a minha prima Fabíola que muitas
vezes compartilhei momentos de tristezas, alegrias, angústias e ansiedade, mas que
sempre estiveram ao meu lado me apoiando e me ajudando.
A minha Orientadora, Cecília Aires Pereira Lemes, que teve um papel
fundamental durante a execução deste trabalho, me incentivando a continuar,
pesquisar e estudar com afinco a fim de alcançar um resultado exitoso.
A todos que, com boa intenção, colaboraram e possibilitaram a minha vitória.
6

“A mudança é a lei da vida. E aqueles que apenas olham para o passado ou


para o presente irão com certeza perder o futuro.”

John Kennedy
7

RESUMO

Aborda a descriminalização do aborto como um direito fundamental da mulher.


Apresentando os aspectos históricos dos direitos humanos, dos direitos
fundamentais da mulher, bem como toda história do aborto até os presentes dias.
Aponta como foi à evolução histórica e as conquistas das mulheres em relação ao
direito reprodutivo. Traz os documentos internacionais que de alguma forma,
trouxeram o debate sobre os direitos humanos das mulheres à tona. Analisa os
direitos reprodutivos das mulheres na legislação nacional e interpretações presentes
na Constituição Federal de 1988, e os princípios presentes no Código Civil de 2002.
Destaca como a reprodução feminina é tratada pelo Código Penal Brasileiro de
1940. Define como direito da fundamental mulher o direito de decidir sobre o seu
corpo e conseqüentemente sobre a continuidade de uma gestação. Discorre sobre a
descriminalização do aborto em outros países. Traz a realidade das mulheres que
foram processadas por ter feito um aborto no Brasil.

Palavras-chave: 1 Descriminalização do Aborto; 2 Direito Fundamental da Mulher; 3


Aborto na Legislação Brasileira; 4 O Direito de Decidir.
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LISTA DE ABREVIATURAS

ONU – Organização das Nações Unidas


ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
CNTS – Conferência Nacional dos Trabalhadores da Saúde
EUA – Estados Unidos da América
IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
PL – Projeto de Lei
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...............................................................................................................
1. ASPECTOS HISTÓRICOS.......................................................................................
1.1 Evolução histórica dos direitos humanos...........................................................
1.2 Evolução dos direitos fundamentais das mulheres...........................................
1.3 Evolução histórica do aborto................................................................................
2. A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES....................
2.1 Evolução histórica dos direitos reprodutivos das mulheres.............................
2.1.1 Primeira conferência mundial da mulher...............................................................
2.1.2 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher............................................................................................................................
2.1.3 Conferência mundial sobre direitos humanos de Viena........................................
2.1.4 Conferência internacional sobre população e desenvolvimento do Cairo............
2.1.5 Quarta conferência mundial sobre mulheres de Beijing........................................
2.2 Direitos reprodutivos das mulheres na legislação nacional..............................
2.2.1 Os direitos reprodutivos na constituição brasileira de 1988..................................
2.2.2 A liberdade de reprodução e o Código Civil..........................................................
2.2.3. A autonomia de reprodução feminina e o sistema criminal brasileiro..................
3. A DESCRIMINALIZAÇAO DO ABORTO COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL
DA MULHER.................................................................................................................
3.1 A legalização do aborto.........................................................................................
3.2 A dura realidade das mulheres processadas pelo aborto................................
3.3 Projetos de lei que tramitam a respeito do assunto...........................................
CONCLUSÃO................................................................................................................
REFERÊNCIAS ............................................................................................................
BIBLIOGRÁFICAS
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INTRODUÇÃO

Na atualidade muito se discute sobre o aborto, uma vez que envolve várias
questões morais, éticas e religiosas, já que este tema confronta opiniões diversas,
principalmente o fato de quando se inicia a vida humana, e até quando o direito da
mulher sobre seu corpo pode interferir nesse processo.
Neste caso, busca-se apreciar e discutir sobre os dados principalmente
nacionais e internacionais a respeito do aborto, da sua descriminalização,
analisando dados de outros países, ressaltando o abortamento como um direito
fundamental da mulher, observando as estatísticas das numerosas mortes e
mutilações ocorridas pelo motivo da criminalização do aborto, buscando
principalmente, assegurar a mulher, o seu direito individual de decidir.
Sendo assim, o aborto inseguro ou o clandestino deveria ser considerado
um problema de saúde pública, já que leva milhares de mulheres à morte como
conseqüência de um procedimento abortivo mal sucedido e de um atendimento
médico precário na rede pública de saúde, durante a realização da curetagem.
Desta forma, este trabalho pretende mostrar argumentos presentes em
tratados internacionais de proteção aos Direitos Humanos das Mulheres, e os
princípios constitucionais relacionados com a autonomia reprodutiva da mulher,
obtendo dados referentes ao aborto em âmbito nacional e internacional,
apresentando ainda, idéias, fatos e reflexões sobre o direito de a mulher decidir em
consonância com o que lhe for conveniente.
A proibição de impedir que a mulher possa decidir livremente sobre a
manutenção ou interrupção da gravidez afronta as normas previstas no art. 5 o da
Constituição Federal, e também todos os documentos internacionais que têm os
direitos humanos como objetivo central, violando assim, o princípio da justiça e da
igualdade. Os direitos humanos da mulher são feridos a partir do momento em que
restringem o direito de estar em pé de igualdade com os homens, visto que tratando
o aborto como criminalização, a discrimina, não dando a opção de escolha, sendo
exercido um controle discriminatório e injustificado sobre o corpo feminino, posto que
caiba à mulher a melhor decisão a ser tomada, até porque será em seu corpo que o
processo gestacional se desenvolverá. Portanto não é o Estado que deve assumir o
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papel decisivo, mas sua obrigação está em garantir que está decisão, seja
executada com garantia de sobrevivência.
Analisar-se-á os novos pensamentos a respeito dos direitos reprodutivos da
mulher, e a reprodução como um direito de escolha, sendo este um direito
fundamental desta.
Como observado, o assunto tratado é polêmico, por conseguinte o presente
trabalho foi dividido em três capítulos, com o intuito de promover uma análise geral
sobre o tema, tanto em ordem nacional como internacional.
No primeiro capítulo, tem-se a análise dos aspectos históricos, dos direitos
humanos e como se deu o início dessa seqüência de fatos, e quando houve a
origem nas civilizações antigas. Analisa-se também, a evolução dos direitos
fundamentais da mulher, a forma como ela era vista e tratada historicamente pela
sociedade. Como tópico deste capítulo, ainda tem-se o desenvolvimento histórico do
aborto, bem como os motivos pelos quais era tão condenado. Evidencia-se a prática
em acontecimentos recentes em alguns países da América Latina e no Caribe.
No segundo capítulo discute-se sobre os direitos reprodutivos das mulheres,
e a forma como elas evoluíram de acordo com os anos. Expõem-se também,
documentos internacionais que debatem sobre o tema dos direitos humanos das
mulheres. Além das relevantes documentações internacionais, há uma análise da
legislação brasileira, buscando uma interpretação sistemática nos princípios que
deram origem à Constituição Brasileira de 1988, os princípios presentes no Código
Civil de 2002, um exame do sistema criminal brasileiro, as formas como o aborto é
criminalizado, e uma dissecação dos artigos que são apenados.
No terceiro e ultimo capítulo, tem-se o mote principal deste trabalho: a
legalização do aborto como uma necessidade à proteção dos direitos sexuais e
reprodutivos da mulher. Analisam-se exemplos de países que legalizaram o aborto e
como este processo ocorreu, a legalização do aborto e a sua necessidade de
realização, assim como uma avaliação de pesquisas feitas no Brasil sobre abortos
realizados no país. Mostra-se a dura realidade de mulheres que realizaram o aborto
ilegal, finalizando com a apresentação dos projetos de lei existentes relacionados à
temática.
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A pesquisa utilizou a metodologia de abordagem dialética, sendo que o


método de procedimento empregado foi o estudo bibliográfico, análise de tratados e
artigos.
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1. ASPECTOS HISTÓRICOS

1.1 Evolução histórica dos direitos humanos

Inicialmente analisar-se-á a história dos direitos humanos, a forma que se


originou, onde foi seu marco inicial, e como eram os países que o implementavam.
Todavia, tem-se a evolução dos direitos fundamentais das mulheres, tal
como a história do aborto.
O direito fundamental surgiu pela necessidade de uma limitação e controle
sobre os abusos cometidos pelo poder do Estado, dando espaço para a criação dos
princípios básicos existentes hoje, como o de igualdade e da legalidade.
Segundo Alexandre de Moraes (2013, p. 1) :

A noção de direitos fundamentais é mais antiga que o surgimento da idéia


de constitucionalismo, que tão somente consagrou a necessidade de
insculpir um rol mínimo de direitos humanos em um documento escrito,
derivado diretamente da soberana vontade popular.

A partir da idéia de proteção da população vinda do direito fundamental de


cada um, temos então o surgimento do sistema jurídico, que futuramente deu origem
aos Direitos Humanos.
Os direitos humanos têm como marco inicial na história no antigo Egito e na
Mesopotâmia. A civilização egípcia foi a primeira a obter um sistema jurídico
essencialmente individualista, coube então aos mesopotâmios a elaboração de
textos jurídicos.
Já no mundo ocidental, tem-se Atenas que foi a primeira a impetrar
limitações ao poder político, e ter associações para que a população ficasse ciente
dos assuntos políticos.
Para Luís Roberto Barroso (2010, p.22):

Em Atenas por meio da Assembléia, foram concebidas e praticadas idéias e


institutos considerados atuais, como a divisão das funções estatais por
diversos órgãos, a existência de um sistema judicial e a preeminência da lei,
esta gerada por um processo formal adequado e válido para todos.
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Em 1690 a.C. criou-se o Código de Hamurabi, talvez o primeiro a ter direitos


comuns a todos os seres vivos, como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a
família. Este código consagrou o “olho por olho, dente por dente”. Porém, apesar de
todos os seres vivos terem direitos comuns, ocorria uma grande desigualdade, já
que os pobres eram punidos mais severamente que a elite dominante da época.
Na Grécia antiga, foi onde houve os primeiros estudos para a necessidade
de igualdade e liberdade dos homens.
Segundo João Batista do Nascimento Filho (2013, p.23) “Sófocles, em sua
Antígona (441 a.C.), defendeu a existência de normas não escritas e imutáveis, num
grau superior aquelas escritas pelo homem”.
Porém, coube ao Direito Romano estabelecer os primeiros textos escritos,
como exemplo tem-se a Lei das XII Tábuas, que consagrava os direitos
fundamentais de liberdade, propriedade e dos direitos do cidadão.
Após várias constituições, revoltas, no ano de 1948, estabeleceu-se a ONU
(Organização das Nações Unidas), que proclamou a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, onde reconhecia a necessidade dos direitos de toda pessoa,
independentemente do seu país de origem, da sua cor, do sexo, da religião ou da
orientação sexual.
Para Alexandre de Moraes (2013, p.17):

Os 30 artigos da Declaração consagraram, basicamente, os princípios da


igualdade e dignidade humanas; a vedação absoluta à discriminação de
qualquer espécie seja em razão de raça, sexo, língua, religião, opinião
política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento
ou qualquer outra condição; o direito à vida, à liberdade, à segurança
pessoal; a expressa proibição à escravidão, ao trafico de escravos ou
servidão; a proibição à tortura, ao tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante. O princípio do juiz natural; o acesso ao Judiciário. A vedação às
prisões, detenção e exílios arbitrários; os princípios da presunção de
inocência, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa; o
principio da reserva legal; a inviolabilidade à honra, à imagem e à vida
privada; à liberdade de locomoção; o asilo político; o direito a nacionalidade;
o direito de propriedade; a união de associações e de sindicalização; os
direitos políticos; o direito ao trabalho e à livre escolha de profissão. Com a
conseqüente justa remuneração que lhe assegure, assim como à família,
uma existência compatível com a dignidade humana; o direito ao repouso e
o lazer; direito à instrução e à vida cultural.

O texto da declaração dos Direitos Humanos está presente hoje na


Constituição Federal Brasileira de 1988. Tais direitos foram juntamente assegurados
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com os direitos de asilo, nacionalidade e direitos políticos, que trouxeram a


participação do cidadão para a condução do país.

1.2 Evolução dos direitos fundamentais das mulheres

Historicamente vê-se a mulher em uma sociedade socialmente autoritária,


machista e patriarcal, também demonizada, seja pela igreja, a medicina, os juristas,
a constante repressão pelo Estado, para que ela fosse dominada e domesticada
pela sociedade que ali existia.
Porém, quando se inicia a Era Cristã em que o controle feminino se
intensifica, a igreja transforma o pecado original em pecado sexual.
Segundo Jacques Le Goff e Nicolas Truong (2006, p.52):

O corpo até a Idade Média era sexuado, passa a ser desvalorizado e


reprimido, por meio de um sistema medieval dominado pelo pensamento
simbólico, em que os textos da bíblia se prestavam as mais variadas
interpretações.

Nesta época grande parte dos ideólogos ligados à Igreja Católica escrevia
sobre a inferiorização do feminino por meio de teorias de que a mulher seria um
“macho imperfeito”. No decorrer, a mulher passou de “Eva Pecadora” quando a
tornaram feiticeira, até o século XVII, quando se tornou “Maria Redentora”, ou seja, a
beleza profana diante da beleza sagrada.
Segundo Silvia Alexim Nunes (2000, p.32), Galeno, seguindo o pensamento
de Aristóteles dizia que “a mulher seria a representante inferior de um sexo cujo o
potencial máximo de realização só era elencado ao corpo masculino. A mulher seria,
portanto, um homem com algo “a menos”.
Já para Rousseau, a mulher não seria nem inferior, nem imperfeita, ela seria
perfeita para suas funções maternas e domésticas, enquanto os homens se
dedicariam à vida pública, ao trabalho e às atividades intelectuais.
Na Era Moderna, o corpo da mulher se torna objeto de estudo científico, de
intolerância coletiva e objeto de intervenção médica e judiciária, o que resultou em
teorias preconceituosas, que associavam as características da mulher com a moral
dos indivíduos. Nesta mesma época, a mulher se torna um ser inferior, perigoso,
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diabólico, sendo assim, deveria haver um domínio sobre o seu corpo e a sua
sexualidade e outros setores mais “perigosos”.
Segundo a autora Silvia Alexim Nunes (2000, p. 12):

Durante todo o século XIX, quando tentam fixar a mulher no casamento e na


esfera doméstica, os discursos médicos constroem uma dupla imagem
feminina. De um lado, colocam a mulher como um ser frágil, sensível de
dependente, construindo um modelo de mulher passiva e assexuada; por
outro, verifica-se o surgimento de uma representação de mulher como
portadora de uma organização física e moral facilmente degenerável,
dotada de um “excesso” sexual a ser constantemente controlado. Nessa
perspectiva procura-se patologizar qualquer comportamento feminino que
não correspondesse ao ideal de esposa e mãe, tratando-o como
“antinatural” e “anti-social”.

Chegando ao século XX após várias conquistas femininas, vê-se ainda


presente uma constante desigualdade entre homens e mulheres, principalmente no
que se refere a sua sexualidade e reprodução.
Para José Henrique Rodrigues Torres (2004):

Elas têm seus direitos garantidos formalmente por dispositivos legais e


constitucionais, mas não conseguem exercê-los em face a omissão do
Estado e, por isso, têm sido vitimizadas por uma terrível história de
violência, dominação e exclusão, especialmente no âmbito da expressão de
sua sexualidade.

Em suma, os pensamentos historicamente constituídos, serviram para


controlar a mulher, seu corpo e sua sexualidade, mantendo a hierarquização do
poder masculino sobre o feminino, satisfazendo os interesses, ora da igreja, ora de
conservadores e machistas presentes na sociedade da época. Muito foi conquistado
pelas mulheres, contudo a sociedade ainda mantém o pensamento ideológico
trazido de outras épocas.

1.3. Evolução histórica do aborto

Analisando a prática do aborto no Brasil Colonial, a preocupação da Igreja


Católica não era sobre a proteção do feto, mas sim a questão moral, e o
adestramento da mulher no interior do casamento, pois o sexo deveria ser utilizado
com uma única finalidade: à procriação.
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No ano de 1830 tem-se a primeira tipificação do aborto como crime, porém


naquela época o auto-aborto não era considerado crime, isto é, a mulher que
praticava aborto em si, não era passível de condenação.
No Brasil a pratica do aborto era a preocupação central da Igreja Católica,
entretanto esta inquietação não estava relacionada com o feto, mas sim com a
questão da moral bem como a procriação em um novo país. Com a valorização da
procriação, a igreja consagrou uma vez mais o pensamento sobre a maternidade
como uma função nobre da mulher. Segundo o autor Rullian Emmerick (2008, p.54),
“a condição feminina no Brasil Colônia estava associada aos interesses religiosos,
políticos, econômicos e sociais da época, ou seja, estritamente ligada ao projeto da
colonização do império colonial português”.
Todavia, o aborto, ainda causava um veemente desassossego na Igreja
Católica e no Estado, pois a prática vinha sendo usado por casais ilegítimos. Assim,
tudo leva a crer que o exercício do aborto era condenável, não por ser considerado
um crime contra a vida, mas por ser conseqüência de relacionamentos
extraconjugais, destruindo o principal interesse, o da procriação.
Haja vista que a execução do aborto sempre esteve presente tanto na
história do Brasil como na de Portugal, nas suas diferentes sociedades, coube à
Igreja Católica denunciar o aborto como um pecado abominável, sobretudo contra
Deus. Como no Brasil colonial não possuía tipificação do aborto como um crime,
havia grandes discursos moralistas e canonistas sobres as camadas populares,
demonizando assim, a prática do aborto.
Somente no século XIX, quando o Brasil passa a ser República, o auto-
aborto, vem a ser tipificado com crime, porém trazia alguns atenuantes, no caso do
crime ter sido cometido para ocultar desonra própria.
Segundo o Código Penal da República (1890):

O aborto foi tipificado no novo Código Penal da República de 1890, no


Capítulo IV, Título X, nos artigos 300 a 302, dispunha sobre a provocação
do aborto em si próprio, com a expulsão ou não do nascituro, previa
também o caso do aborto ter sido provocado por um médico ou uma parteira
legalmente habilitada com ou sem o consentimento da gestante.

Continuando, surge o novo, e o atualmente utilizado Código Penal Brasileiro


(1890), que dispõe sobre o aborto em seu Título I, Capítulo I, Dos Crimes contra a
vida, nos artigos 124 a 128, onde tratam:
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Art. 124. Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lhe


provoque:
Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Art. 125. Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Art. 126. Provocar aborto com consentimento da gestante:
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é
maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o
consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
Art. 127. As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas
de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados
para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são
duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém à morte.
Art. 128. Não se pune o aborto praticado por médico:
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento
da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Por fim, ao longo da história do Brasil, este tema sempre se restringiu a


espaço privado das relações conjugais e domésticas. Somente nas décadas de 60 e
70 é que a criminalização do aborto passa a ser objeto de intensos debates entre a
sociedade.
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2. A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS REPRODUTIVOS DAS MULHERES

Somente recentemente os direitos reprodutivos e sexuais foram incluídos e


reconhecidos como direitos humanos.
Para o autor João Batista do Nascimento Filho (2013, p.49), “podemos
denominar direitos reprodutivos o conjunto dos direitos básicos relacionados ao livre
exercício da sexualidade e da reprodução humana”.
A partir deste fato pode-se observar que cabe ao Estado garantir o acesso a
um serviço de saúde, proporcionando meios e as informações necessárias para
assegurar o controle da natalidade e da procriação como formas de preservar a
saúde.

2.1. Evolução histórica dos direitos reprodutivos das mulheres

Os direitos reprodutivos e os sexuais só foram reconhecidos como parte dos


direitos humanos há pouco tempo. Este assunto vem sendo discutido nos vários
encontros internacionais que ocorreram, e foi a Organização das Nações Unidas que
impulsionou para que o direito das mulheres fosse incluído nos direitos humanos,
estruturando uma sociedade mais igualitária.
A história traz a grande luta pelo direito à escolha da reprodução, que foi
movida pelas reivindicações das mulheres em torno da questão reprodutiva.
Segundo a autora Flávia Piovesan (2009, p. 251):

Os direitos reprodutivos refletiam a tensão entre a obrigação da


maternidade, que significava o poder masculino sobre a vontade feminina, e
a contracepção, compreendida pelas mulheres como forma de se libertar do
domínio masculino.

Os direitos reprodutivos são relacionados às mulheres, pois somente elas


podem suportar as conseqüências da decisão a ser tomada, optando pela gravidez
ou pela contracepção.
Pode-se então discutir sobre os primeiros documentos internacionais que
trouxeram o debate sobre os direitos humanos das mulheres à tona.
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2.1.1 Primeira conferência mundial da mulher

A Primeira Conferência Mundial da Mulher foi realizada entre os dias 19 de


junho e 2 de julho de 1975, no México. Esta Conferência não trouxe grandes
discussões sobre os direitos reprodutivos, mas foi importante como um instrumento
mundial sobre a grande necessidade de eliminação contra qualquer forma de
discriminação existente com as mulheres.
A Conferência do México então criou três objetivos prioritários: a) a
igualdade plena de gênero e a eliminação da discriminação por motivos de gênero;
b) a plena participação das mulheres no desenvolvimento; c) uma maior contribuição
das mulheres à paz mundial.
Assim houve diretrizes de como os Estados deveriam agir, garantindo às
mulheres o acesso à igualdade, à educação, ao trabalho, à participação política, à
saúde, à planificação familiar e à alimentação. Essas metas receberam um prazo
para serem alcançadas até o ano de 1980.

2.1.2 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a


mulher

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação


Contra a Mulher foi resultado do movimento feminista mundial que queria o
compromisso dos Estados para que houvesse o reconhecimento e a condenação de
qualquer tipo de discriminação contra as mulheres. Ela ocorreu no ano de 1979, com
a ajuda das Nações Unidas.
Segundo a autora Olga Espinoza (2007):

Cumpre ressaltar, todavia, que, antes da Convenção, outros instrumentos


de alcance geral referiam-se expressamente à igualdade de direitos entre os
gêneros, condenando-lhe a discriminação. Assim, já existiam a Carta das
Nações Unidas (1945), que propunham a promoção e o estímulo ao respeito
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais sem qualquer distinção
de raça, sexo, idioma ou religião (art. 1 o) e a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, do mesmo ano, que afirma que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (art. 1o) e que “toda pessoa
tem todos os direitos e liberdades proclamados sem distinção alguma (art.
2o).
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Segundo João Batista do Nascimento Filho (2013, p. 53) a discriminação


contra a mulher foi conceituada no art. 1o desta Convenção, que diz:

Toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por


objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício
pela mulher, independentemente de ser estado civil, com base na igualdade
do homem e da mulher dos direitos humanos e das liberdades fundamentais
nos campos políticos, econômicos, social, cultural e civil ou qualquer outro
campo.

Para João Batista do Nascimento Filho (2013, p.54), no preâmbulo da


Convenção vê-se a primazia dos princípios referentes a dignidade humana e da
igualdade. Onde salienta-se que:

A discriminação contra a mulher viola os princípios de igualdade de direitos


e do respeito da dignidade humana, dificulta a participação da mulher, nas
mesmas condições que o homem, na vida politica, social, econômica e
cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da
sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das
potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade.

Os Estados - Partes concordaram com os termos estabelecidos na


Conferência, vinculando-se à obrigação de que gradualmente seriam adotadas as
medidas previstas para a eliminação de todas as formas de discriminação referentes
ao gênero.
Conforme João Batista do Nascimento Filho (2013, p. 55 e 57):

O Estado Brasileiro implementou as medidas estabelecidas pela


Conferência para assim haver maior participação das mulheres.Então,no
ano de 1995, foi editada a lei no 9.100, que estabelecia, dentre outras
normas, que os Partidos Políticos deveriam ter obrigatoriamente 20% das
vagas para as mulheres. Esta medida teve um grande valor político e foi um
passo importante para o processo de igualdade dos gêneros. Porém, o
Brasil ratificou os termos da Convenção com reserva.

Segundo Flávia Piovesan (2009, p. 210), somente após a criação da


Constituição Federal de 1988 o governo brasileiro confirmou integralmente o texto:

Inúmeras previsões da Convenção também incorporam uma preocupação


de que os direitos reprodutivos das mulheres devem estar sob o controle
delas próprias, e que o Estado deve assegurar que as escolhas das
mulheres não sejam feitas sob coerção e não sejam elas prejudicadas no
que se refere ao acesso às oportunidades sociais e econômicas.
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A partir do que foi estabelecido pela Conferência, abriu-se então a


possibilidade de abolir a descriminalização do aborto, procurando erradicar todas as
formas de discriminação contra a mulher, buscando a igualdade entre os gêneros e
a dignidade humana, abrindo assim, portas para que o direito à reprodução ou a
contracepção começasse a ser visto como direito de autonomia, e podendo ser
exercido única e exclusivamente pelas mulheres.
Desta forma, países como Portugal, França, Espanha, Canadá Holanda,
Rússia e Estados Unidos, por exemplo, legalizaram a interrupção voluntária da
gravidez sem restrições, contudo países como Chile, Colômbia, Irlanda, Paraguai e
Brasil permitem apenas a interrupção da gravidez em casos como risco para a
gestante ou gravidez decorrente de estupro.

2.1.3 Conferência mundial sobre direitos humanos de Viena

A Conferência Mundial Sobre Direitos Humanos de Viena foi realizada no


ano de 1993 na cidade de Viena. No que se refere à igualdade de gênero, a
Conferência trouxe em grande parte o tema dos Direitos humanos e seus princípios,
não obstante reforçou a necessidade da adoção de medidas para combater a
discriminação entre os sexos.
Em uma das passagens João Batista do Nascimento Filho (2013, p.62),
afirma que:

Os direitos humanos das mulheres e crianças do sexo feminino constituem


uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais.
A participação plena das mulheres, em condições de igualdade, na vida
política, civil, econômica, social e cultural, aos níveis nacional, regional e
internacional, bem como a erradicação de todas as formas de discriminação
com base no sexo, constituem objetivos prioritários da comunidade
internacional.

Esta Conferência adotou a definição de saúde reprodutiva estabelecida pela


Organização Mundial de Saúde, denominando-a como um estado em que a pessoa
deve estar bem física, mental e socialmente, com a plena capacidade de ter uma
vida sexual satisfatória e segura, podendo decidir sobre sua reprodução, possuindo
a seu dispor todas as condições para o efetivo exercício de tal direito.
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2.1.4 Conferência internacional sobre população e desenvolvimento do Cairo

No ano de 1994 ocorreu a Conferência Internacional Sobre População e


Desenvolvimento do Cairo, no qual os direitos reprodutivos passaram a ser
reconhecidos como direitos humanos por 184 Estados, que admitiram como sendo
os direitos fundamentais o controle sobre as questões relativas à sexualidade e à
saúde sexual e reprodutiva, assim como a decisão livre sem que haja qualquer
coerção, discriminação e violência.
Conforme João Batista do Nascimento Filho (2013, p. 64), nesta conferência
ocorreu de forma inédita a elevação da decisão feminina sobre a reprodução como
um direito fundamental. Nos termos do art. 4o da Conferência:

Promover a equidade e a igualdade dos sexos e os direitos da mulher,


eliminar todo tipo de violência contra a mulher e garantir que seja ela quem
controle sua própria fecundidade são as pedra angular dos programas de
população e desenvolvimento. Os direitos humanos da mulher, das meninas
e jovens fazem parte inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos
universais. A plena participação da mulher, em igualdade de condições na
vida civil, cultural, econômica, política e social em nível nacional, regional e
internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação por
razões do sexo são objetivos prioritários da comunidade internacional.

A Conferência corroborou o entendimento de que toda mulher tem o direito


de decidir de forma livre, individual, responsável e sem nenhum tipo de coerção ou
discriminação sobre à maternidade, cabendo ao Estado apenas proporcionar os
meios para a efetivação de tal direito, como o acesso à área da saúde, onde tal
direito poderá assim ser exercido.
Contudo, houve grande pressão exercida pelo movimento feminista que
antecedeu a Conferência, que permitiu a legitimação da noção de direitos
reprodutivos, emergindo o tema, mostrando a necessidade de amplos programas
envolvendo as questões de saúde reprodutiva, e ainda, reconhecendo o aborto
como um grave problema de saúde pública.

2.1.5 Quarta conferência mundial sobre mulheres de Beijing


15

A Quarta Conferência Mundial Sobre Mulheres aconteceu no ano de 1995


na cidade de Beijing, na China, onde cerca de quarenta mil pessoas, entre homens e
mulheres, representaram 189 países. Este foi considerado o mais importante de
todas as conferências que trataram acerca do tema, reafirmando o compromisso
com os Direitos Humanos das Mulheres, dando continuidade ao progresso e ao
fortalecimento da condição feminina no mundo.
A Plataforma de Ação traz todos os conceitos que foram discutidos na
Conferência do Cairo sobre a saúde reprodutiva e os direitos reprodutivos e assume
ainda como um princípio básico a opção livre e informada, o respeito à integridade
física e o direito de não sofrer discriminação nem coerção em todos os assuntos
relacionados com a vida sexual e reprodutiva.
Para João Batista do Nascimento Filho (2013, p.69):

A Declaração reafirma o compromisso de combater as limitações e


obstáculos e promover o avanço e o fortalecimento da mulher em todo
mundo; garantir a plena observância dos direitos humanos das mulheres e
das meninas como parte inalienável, integral e indivisível de todos os
direitos humanos e liberdades fundamentais e garantir o acesso igualitário e
a igualdade de tratamento de homens e mulheres na educação e atenção
de sua saúde, promovendo a saúde sexual e reprodutiva das mulheres.

Por fim, a Conferência recomenda aos países que considerem a


possibilidade de que haja a revisão de suas leis que estabelecem medidas punitivas
as mulheres que praticam aborto ilegal.

2.2 Direitos reprodutivos das mulheres na legislação nacional

O debate sobre o aborto no Brasil concentra-se em geral no âmbito do


Direito Penal, já que o aborto encontra-se tipificado como crime contra a vida.
Porém, a análise deste tema deve ir além, buscando interpretações sistemáticas dos
princípios informadores da Constituição Brasileira de 1988, bem como princípios
presentes no Código Civil de 2002.

2.2.1 Os direitos reprodutivos na constituição brasileira de 1988


16

A nova Constituição Federal de 1988 fora considerada um marco, uma vez


que trouxe o término de duas décadas de militarismo, que serviu para mostrar a
população brasileira os seus direitos e suas garantias fundamentais, que nunca na
história do Brasil tinha se visto.
A Carta Magna traz em seu art. 1 o os princípios fundamentais que irão reger
o Estado Democrático de Direito, tem-se em destaque a cidadania e a dignidade da
pessoa humana.
Conforme a autora Flávia Piovesan (2009, p. 257):

Já no art. 3o, inciso IV, um dos objetivos fundamentais do Brasil é que não
haja preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação. A partir daí, temos evidências da relação entre a
Constituição Federal e os Direitos Reprodutivos, haja visto que eles também
se integram com o verdadeiro exercício de cidadania e de dignidade da
pessoa humana, pois opõem-se a qualquer tipo de preconceito ou
discriminações.

Conforme a Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de Outubro


de 1988 e partindo do art. 5 o em seu caput, temos a afirmativa: “todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Evidencia-se, portanto que a
norma garante o princípio da igualdade. No mesmo artigo em seu inciso I, tem-se a
reafirmação sobre a igualdade dos gêneros: “homens e mulheres são iguais em
direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”, fazendo com que todos os
textos que fossem discriminatórios em relação à mulher seriam considerados
revogados.
Segundo João Batista do Nascimento Filho (2013, p.73):

A igualdade é, pois, “o centro medular do Estado social”, sendo, de todos os


direitos fundamentais, aquele que mais tem subido de importância no Direito
Constitucional de nossos dias, sendo, como não poderia deixar de ser, o
direito-chave, o direito-guardião do Estado Social.

Analisando o mesmo art. 5o, em seu § 2o, da Constituição de 1988, tem-se a


possibilidade de outros direitos que não estão presentes nesta Constituição terem
condição de admissão. O texto afirma que “os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil
seja parte”, sendo assim o §2oestende o texto constitucional para os direitos
17

fundamentais, protegendo também os direitos expressos em documentos


internacionais subscritos pelo Brasil.
Segundo Ingo Wolfgang Sarlet (2014, p. 70):

A noção de que o conceito materialmente aberto de direito fundamentais


consagrados pelo art. 5º, § 2o, da Constituição Federal de 1988 aponta para
a existência de direitos fundamentais positivados em tratados internacionais,
como para a previsão expressa da possibilidade de se reconhecer direitos
fundamentais não-escritos.

Dessa maneira, a Constituição prevê um conceito formal, mas também um


conceito material, já que no corpo do texto constitucional encontramos o que não foi
previsto expressamente. Contudo, para que um documento internacional tenha
realmente algum efeito no Brasil, faz-se necessário que este seja submetido à
aprovação do Congresso Nacional, onde haverá dois turnos, que deverão ter no
mínimo três quintos dos votos dos respectivos membros.

2.2.2 A liberdade de reprodução e o Código Civil


No ano de 2002 começou a vigorar o novo Código Civil Brasileiro.Embora
tenha sido promulgado no dia 10 de janeiro de 2002, por meio da Lei n o10.406/02,
somente em 11 de janeiro de 2003 entrou em vigor no território brasileiro.
Com o novo diploma brasileiro, muito fora reformulado para que houvesse
adequação entre o Novo Código Civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988.
Para João Batista do Nascimento Filho (2013, p. 80):

Com efeito, a norma contida no art. 1.511, estabelece a igualdade de


direitos e deveres entre homens e mulheres durante a sociedade conjugal.
O art. 1.565 passou a prever que a regra para o acréscimo do sobrenome
do cônjuge – “concedido” apenas à mulher, segundo dispunha o revogado
art. 240 – permite que qualquer dos cônjuges acresça ao seu o sobrenome
do outro.

Tem-se então a igualdade dos gêneros presente no novo Código Civil


Brasileiro, onde prevê dentre outros deveres dos cônjuges, o respeito e
consideração mútuos, tal como a colaboração de ambos nas decisões para o
casamento.

2.2.3. A autonomia de reprodução feminina e o sistema criminal brasileiro


18

Encontra-se no Código Penal Brasileiro, nos art. 124 ao 128, a punição de


quem cometer o aborto. Está prevista a punição à gestante que praticar em si
mesma, dolosamente, atos tendentes à interrupção da gravidez, quando um terceiro
pratica o aborto com o consentimento da gestante, e ainda o abortamento praticado
por terceiro sem o consentimento da gestante.
As penas variam de acordo com a prática, assim quando o aborto for
executado pela gestante, ela poderá ter uma pena de um a três anos de detenção.
Se houver o auxílio de um terceiro com o consentimento da gestante, a pena varia
de um a quatro anos, porém se não ocorrer a concordância e o aborto for realizado
em uma gestante menor de 14 anos, alienada ou débil mental, ou se a permissão é
obtida mediante fraude, violência ou grave ameaça, a pena de reclusão é de três a
dez anos.
O Código Penal traz duas formas do crime qualificado: primeiro na hipótese
da gestante sobrevir com lesão corporal grave, eleva a pena em um terço, já se a
gestante vir a falecer, a reprimenda será em dobro.
Em seguida, o legislador trouxe as formas que são apenadas e encontram-
se previstas no art. 128 do Código Penal: o médico poderá realizar um aborto
quando impossível salvar a vida da gestante por outro meio, ou quando a gravidez é
decorrente de estupro, desde que a gestante consinta com a interrupção da
gestação, ou o incapaz seja autorizado por seu representante.
Porém, o que o legislador não previu foram outras suposições para que o
médico ou a mulher gestante fossem isentados. Tem-se como exemplo, o caso de
anencefalia, cuja enfermidade impossibilita a continuidade da vida do feto após a
sua expulsão do ventre materno.
Várias são as manifestações doutrinarias e judiciais que corroboram a ideia
de que não se deve obrigar uma mulher a seguir com uma gravidez que poderá
resultar sérias complicações de ordem física e psicológica. Neste sentido, podemos
ressaltar o voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Ayres de Brito no
julgamento que admitiu a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) sobre a descriminalização do aborto em casos de feto anencefálicos. A
ADPF foi ajuizada no ano de 2010 pela Conferencia Nacional dos Trabalhadores na
Saúde (CNTS) e o pedido de liminar foi concedido pelo Ministro Marco Aurélio, que
19

garantiu o direito de interrupção da gravidez às gestantes de fetos anencefálicos,


prescindindo, para tanto, de autorização judicial. No referido voto, Ayres Brito na
Revista Consultor Jurídico (2005) , afirma que:
A antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico é fato típico, sim, é
aborto, sim, mas sem configurar prática penalmente punível. Pois, se a
razão fundamentar desse tipo de despenalização reside na consideração
final de que o abalo psíquico e a dor moral da gestante são bens jurídicos a
tutelar para além da potencialidade vital do feto, essa mesma fundamental e
definitiva razão pode se fazer presente na gestação anencefálica; aliás pode
se fazer presente com uma força ainda maior de convencimento, se
considerados os aspectos de que o feto anencefálo dificulta sobremodo a
gravidez e nem sequer tem a possibilidade de viver extrauterinamente;
senão para debater nos estertores que são próprios daqueles que, já com
morte cerebral comprovada, se vêem desligados dos aparelhos hospitalares
que lhe davam a aparência de vida.

Porém, tem-se que levar em conta o fato de que apesar de haver a proibição
legal, anualmente milhares de mulheres no Brasil praticam o aborto ilegal, sendo
que muitas delas vêm a óbito ou acabam sobrevivendo com grandes seqüelas por
praticarem o aborto em condições inadequadas de higiene, sendo que a parte que
mais sofre com esse desamparo são mulheres pobres.
A interrupção da gravidez vem elencada no art. 128 do Código Penal, porém
de nada adiantará a concessão deste direito ás mulheres sem que o Estado esteja
preparado para possibilitar cessação da gravidez nas redes públicas,
proporcionando às mulheres de baixa renda o acesso a este procedimento médico.
Até hoje o Brasil criminaliza o aborto, pois o sistema penal não conseguiu
resolver este conflito. O que deveras ocorre é que o aborto não evita as mortes de
embriões ou fetos que tanto se fala em proteger, mas desampara as mulheres que
acabam buscando clandestinamente a realização de abortos, fazendo com que tais
práticas ocupem o primeiro lugar das causas de mortes maternas.
Segundo Mônica Bara Maia (2008, p. 33) , danos da Organização Mundial
da Saúde de 2003:

Para se ter uma idéia, estima-se que ocorram entre 46 a 55 milhões de


abortos espontâneos e induzidos, por ano, no mundo inteiro. Isso significa
aproximadamente 126.000 abortos diários, ou 5.000 por hora. Desses,
cerca de vinte milhões são realizados de maneira insegura. Estima-se que
68.000 mulheres morre, por ano, em todo o mundo, em decorrência do
aborto inseguro ou seja, oito mulheres por hora. Esses números levam à
estimativa de uma razão de mortalidade de 367 mortes por 100.000 abortos
inseguros, ou seja, infinitamente superior à taxa de mortalidade causada
20

pelo abortamento seguro, que é menos que uma morte para cada 100.000
procedimentos.

Ante o exposto, o aborto inseguro deveria ser considerado como um


problema de saúde pública, visto que leva milhares de mulheres à morte em função
de um ato mal sucedido e de um atendimento médico precário na rede pública de
saúde durante o processo de curetagem.
21

3. DESCRIMINALIZAÇAO DO ABORTO COMO UM DIREITO


FUNDAMENTAL DA MULHER

A legalização do aborto começou a ter reconhecimento, visto que havia


necessidade de proteção aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher.
Nos Estados Unidos da América (EUA) tem-se como exemplo, o caso ROE
VS WADE, no qual se discutiu o cabimento do direito de decisão da mulher sobre a
continuidade da gestação.
Para João Batista do Nascimento Filho, (2013. p. 93), esclarece que,
contudo, “a Constituição Federal dos EUA não trata diretamente sobre o assunto
aborto, possibilitando assim, aos estados federados decidirem sobre a
criminalização ou a legalização da interrupção voluntária da gestação”.
Segundo Ronald Dowrkin (2009):

Nos termos da constituição, o tribunal tem o poder de declarar


inconstitucionais as leis adotadas pelo congresso ou por qualquer estado,
isto é, podem ser invalidadas por serem incompatíveis com as restrições
que a constituição impõe ao governo. Uma vez que o supremo tribunal
tenha se manifestado, nenhuma outra instância governamental, pode
contrapor-se à sua decisão, por maior que seja a desaprovação popular a
ela. É verdade que as pessoas podem reverter a decisão do supremo
tribunal por meio de um emenda à constituição que confira explicitamente
aos legisladores o poder que o tribunal negou que possuíssem. Mais
extremamente difícil fazê-lo e, na prática, os políticos e as pessoas que
rejeitam uma decisão tomada pelo supremo tribunal só podem esperar pela
nomeação de novos juízes que concordem com eles, e que um dia um
supremo tribunal renovado anule suas próprias decisões anteriores, algo
que tem o poder de fazer.

No caso ROE VS WADE, a suprema corte decidiu pela inconstitucionalidade


da lei do estado do Texas que deliberava pela criminalização do aborto com apenas
uma exceção: a de risco de morte da mãe.
O tribunal deferiu exclusivamente à mãe, o direito de decidir sobre a
continuidade da gestação, desde que esta decisão ocorresse no primeiro trimestre
da gravidez, contando a gestante com acompanhamento médico. No segundo
trimestre, a mulher continuaria detentora do direito de interrupção, porém este direito
seria regulamentado pelo estado e, por fim, no terceiro trimestre os estados
poderiam decidir sobre a proibição da interrupção da gravidez.
22

Além disso, o tribunal decidiu que haveria inconstitucionalidade em qualquer


lei que proibisse o aborto sob alegação de proteção da vida do nascituro, nos seis
primeiros meses de gestação, conferindo ao estado apenas a prerrogativa de
impedir a interrupção da gravidez nos três últimos meses, sob alegação de proteção
da vida do nascituro.
Todavia, a decisão proferida pela Suprema Corte não foi pacificamente
adotada em todo território dos EUA. Há críticos que afirmam que o tribunal autorizou
o homicídio, pois segundo Ronald Dowrkin (2009, p.141) :

Para eles, o feto é uma pessoa a partir do momento da concepção, e seu


direito à vida é mais importante do que qualquer razão que uma mulher
possa ter para matá-lo. Contudo, muitos críticos mais sofisticados adotam
outro ponto de vista. Não argumentam que a opinião do tribunal sobre essas
grandes questões filosóficas tenha sido um erro, mas que não lhe cabia, em
absoluto, decidi-las em julgamento, pois a Constituição atribui às
assembléias legislativas estaduais, democraticamente eleitas, e não aos
juízes, que não são eleitos, o poder de decidir se e quando o aborto pode
ser legitimo.

Apesar da decisão da Suprema Corte Americana ter sido positiva,


posteriormente o mesmo tribunal deliberou que os estados não seriam obrigados a
fornecer em sua rede pública de saúde a realização de abortos de forma gratuita,
mesmo que o caso trate de mulheres carentes, sem a possibilidade de arcar com as
despesas médicas de tal procedimento.
Segundo João Batista do Nascimento Filho (2013, p.96-97), a decisão da
Suprema Corte garantiu à mulher o reconhecimento de que cabe à ela o direito à
liberdade de reprodução, fato assegurado pela Conferência Internacional do Cairo
que assegura:

Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todos os


casais e indivíduos de decidir livre e responsavelmente o número,
espaçamento e timing de seus filhos e de ter a informação e os meios para
fazê-lo, e o direitos de alcançar o mais alto padrão de assistência sexual e
saúde reprodutiva. Também inclui o direito de todos a tomar decisões sobre
a reprodução livre de discriminação, coerção e violência, como expressa
nos documentos de direitos humanos.

Na França, o direito à interrupção voluntária da gravidez foi estabelecido por


meio de uma ação do parlamento. A Lei no 75-17 (Lei Veil, em alusão à Ministra da
Saúde Francesa, Simone Veil) permitiu que o aborto poderia ocorrer nas dez
23

primeiras semanas, desde que as mulheres fossem acompanhadas por um médico e


mediante assistência e conselhos obrigatórios apropriados, a fim de auxiliá-las a
refletir sobre a prática, na tentativa de resolver os impasses que as levaram a tomar
tal decisão.
Conforme Daniel Sarmento (2007, p.11):

Com efeito, no ano de 1979, o disposto da Lei 75-17 foi declarado


compatível com a Constituição Federal e, em 1982, editou-se nova lei, desta
feita para determinar à Previdência Social o denominado reembolso, que é a
obrigação de custear até 70% das despesas médicas e hospitalares
decorrentes da interrupção da gestação.

Uma ativista e socióloga dos direitos humanos das mulheres, Michele


Ferrand, afirma sobre a legalização do aborto na França: A liberdade de procriação
permitiu uma verdadeira abertura no mundo social e profissional para as mulheres. A
difusão da contracepção feminina e, sobretudo, a possibilidade de recorrer ao aborto
em caso de gravidez não prevista inegavelmente participaram desta mutação da
relação das mães com a atividade profissional, o que lhes permitiu pensar numa
carreira de atividades contínuas.
No ano de 2001, o parlamento francês tratou novamente do aborto por meio
da Lei no 588, ampliando a possibilidade de interrupção da gestação de 10 semanas
para 12 semanas e retirou o que anteriormente era obrigatório: as consultas médicas
prévias.
Na Espanha, no ano de 1985, passou-se a permitir a interrupção da
gestação conferindo à mulher o direito de decidir sobre a continuidade ou não da
gravidez. Vários parlamentares acionaram a corte constitucional espanhola
declarando a inconstitucionalidade desta.
Segundo Daniel Sarmento (2007, p.19-20), a corte apreciou o pleito, porém
manifestou-se contra, declarando que:

Embora contando com a aprovação da constituição, a vida do nascituro não


possui o mesmo valor conferido à vida humana após o nascimento, de tal
forma que se julgou razoável a ponderação entre a vida do feto e outros
direitos da gestante, exceto sua própria vida.

No ano de 2010, o Senado Federal Espanhol aprovou uma nova lei no que
tange o aborto. Tal dispositivo passou a vigorar em 5 de junho de 2010, e seu texto
24

trazia que todas as mulheres, incluindo adolescentes entre 16 e 18 anos, passam a


ter o direito a interrupção voluntária da gravidez, de forma livre, caso estejam na 14 a
semana de gravidez, podendo ainda praticar o aborto até a 22 a semana se houver
hipótese de risco de morte ou à saúde, ou ainda, sérias anomalias no feto. No último
é necessário que dois médicos especialistas emitam parecer e nenhum deles pode
participar da prática abortiva.
A lei contou com uma grande oposição, que alegava que alguns artigos
fossem suspensos, já que o atingiam o direito do nascituro que era garantido
constitucionalmente.
Conforme João Batista do Nascimento Filho (2013, p.100):

Destarte, a Ministra da Igualdade Bibiana Aído acentuou que a nova lei é “o


mais equilibrada possível” e fruto de um intenso debate promovido entre o
Governo e especialistas, organizações, mulheres e profissionais de diversos
ramos.

Em Portugal o aborto foi descriminalizado com a edição da Lei n o 6, de


1984.Outorgou que a mulher poderia interromper a gravidez quando houvesse risco
de morte ou lesão grave para sua saúde física ou psíquica.Na hipótese de haver
doença grave ou malformação do feto teria até a 24 a semana para a interrupção da
gravidez.Se o caso fosse de estupro poderia decidir sobre a interrupção até a 12 a
semana.
O Tribunal Constitucional reconheceu a lei em questão, e afirmou que a
Constituição protegia a vida do nascituro, mas com uma intensidade menor de
alguém já nascido.
No ano seguinte o Tribunal Constitucional, por meio do acórdão n o 85,
manifestou-se sobre o direito de vida do nascituro:
No ano de 1997, uma nova lei que tratava sobre o tema do aborto foi
editada. Nela ampliou-se o prazo para a interrupção da gestação em casos de
malformação fetal e na hipótese de crime contra a liberdade e autodeterminação
sexual da mulher, passando de 12 semanas para 16 semanas.
No dia 11 de fevereiro de 2007, houve o terceiro referendo no País, e o
segundo abordando o tema aborto. A população deveria decidir se concordava com
a interrupção da gravidez até a 10 a semana e por decisão da mulher. A população
votou pelo sim. Como conseqüência do referendo, no dia 17 de abril de 2007,
25

passou a vigorar em Portugal a Lei no16, que determinava que a mulher poderia
escolher sobre a interrupção da gravidez até a décima semana de gestação.

3.1 A legalização do aborto

Quando uma mulher é impedida de decidir sobre ir adiante com uma


gestação ou não, isto vai de encontro às normas presentes na Constituição Federal
do Brasil no art. 5o, e também contra todos os documentos internacionais que têm os
direitos humanos como objeto central, os quais o Brasil se comprometeu a respeitar
e a implementar.
A mulher que tem este direito negado, não pode ser considerada uma
pessoa de direitos, pois vive em uma sociedade que a subjuga, este é o mesmo
entendimento de Ronald Dowrkin (2009, p.143):

As leis que proíbem o aborto, ou que o tornam mais difícil e caro para as
mulheres que desejam fazê-lo, privam as mulheres grávidas de uma
liberdade ou oportunidade que é crucial para muitas delas. Uma mulher
forçada a ter uma criança que não deseja porque não pode fazer um aborto
seguro pouco depois de ter engravidado não é dona de seu próprio corpo,
pois a lei lhe impõe uma espécie de escravidão. Além do mais, isso é só o
começo. Para muitas mulheres, ter filhos indesejados significa a destruição
de suas próprias vidas. (...) Decidir sobre um aborto não é um problema
isolado, independentemente de todas as outras decisões, mas sim um
exemplo expressivo e extremamente emblemático das escolhas que as
pessoas devem fazer ao longo de suas vidas, todas as quais expressam
convicções sobre o valor da vida e o significado morte.

A discriminação sobre a mulher, seu corpo, sua sexualidade, seu direito de


reprodução afronta um direito fundamental destinado a ela, já que é o seu corpo que
gestará o feto, e compete a ela a escolha da melhor decisão. Cabe ao Estado adotar
medidas que asseverem a garantia da autodeterminação das mulheres.
Quando defende-se a total liberdade da mulher, viola-se a vida do feto, tem-
se então nas mãos um autêntico conflito de direitos fundamentais, em que deve-se
ponderar para que nenhum direito fundamental prevaleça sobre o outro. Este fato
ocorre com os princípios, pois se um deles permite algo que em outro é
diametralmente vedado, deve um dos princípios ceder para que o outro conserve
sua força, sem que para isso o outro princípio seja totalmente invalidado. Tem que
26

haver um ponderamento entre esses princípios, na concepção de Ronald Dworkin


(2010, p.39-42):

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica.


Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da
obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto
à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira
tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é
válida, e neste caso em nada contribui para a decisão (...). Os princípios
possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou
da importância. Quando os princípios se entrecruzam, aquele que resolverá
o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um.

Analisando a Constituição Federal de 1988, onde há este conflito entre o


direito à vida do feto e os direitos à saúde e à liberdade de autonomia reprodutiva da
mulher, deve haver a ponderação dos princípios, de modo que haja uma prevalência
no direito da mulher sobre seu corpo, conforme estabelecido o direito interno e o
sistema internacional dos direitos humanos, cujos tratados foram ratificados pelo
Brasil.
Apesar de o Brasil ter confirmado todos os tratados internacionais que
recomendavam a descriminalização do aborto, a legislação continua criminalizando
a interrupção voluntária da gestação, o que viola os direitos humanos das mulheres.
A criminalização do aborto na legislação brasileira tem um forte aliado, a
Igreja Católica, e várias organizações conservadoras, acarretando um alto índice de
interrupção da gravidez, por meio da prática do abortamento inseguro, direcionando
as mulheres ao sistema público de saúde em busca de tratamento em função de
complicações.
Uma pesquisa realizada pela organização não governamental, Católicas
pelo Direito de Decidir (2005), nos anos de 1989 e 2002, constatou que:

Neste período, foram registrados 845 abortos legais no Brasil. A pesquisa


envolveu 58 instituições nas 24 unidades da federação e, em 78% dos
hospitais pesquisados, o máximo de procedimentos realizados foi de 30. Do
total de 845, 270 foram realizados no Estado de São Paulo. A pesquisa
também atestou que, embora o Código Penal Brasileiro autoriza o aborto
nas hipóteses de risco de morte à gestante ou no caso de gravidez
decorrente de estupro, somente a partir do ano de 1989 o serviço passou a
ser implantado na rede pública – e de forma precária -, ou seja, cinco
décadas após a entrada em vigor do Diploma Penal, revelando o descaso
do País quanto ao respeito e à proteção dos direitos reprodutivos femininos.
27

Os números evidenciam a problemática o Brasil, além de não proteger a vida


dessas mulheres, as conduzem a uma única opção: o aborto clandestino. Escolha
que pode levá-las a morte.
Em novembro de 2010, o IBOPE realizou uma nova pesquisa com a
finalidade de saber como a população brasileira percebia a prática do aborto.
NASCIMENTO (2013, p. 139) afirma que a pesquisa mostrou um avanço na opinião
da população, considerando a liberdade da mulher em decidir acerca da
continuidade ou cessação da gravidez. Foram entrevistadas duas mil e duas
pessoas em 14 capitais brasileiras, que responderam sobre: a) o direito de a mulher
interromper a gravidez em casos específicos; b) quem deve decidir pela interrupção
de uma gravidez não desejada e; c) a posição que deve ser adotada pelo Estado
frente a uma gravidez decorrente de estupro.
Conforme João Batista do Nascimento (2013, p.139-140):

Ao primeiro questionamento, 66% concordaram que a mulher tem o direito


de interromper a gravidez em caso de risco para sua vida, 65% quando o
feto não tem chance alguma de sobrevivência fora do útero e 52%
reconheceram o direito de a mulher praticar o aborto na hipótese de
gravidez decorrente de estupro.
Na pergunta sobre quem deve decidir pela interrupção de uma gravidez não
desejada, 61% declararam que cabe à mulher tal decisão e apenas 4%
concordam que o homem deve decidir. Houve ainda quem entendesse que
o poder de decisão cabe ao marido/parceiro (6%), à Igreja (3%), ao Poder
Judiciário (5%), ao Presidente da República (2%) e ao Congresso Nacional
(1%). Ao terceiro questionamento, sobre que posição deve ser adotada pelo
Estado no caso de uma gravidez decorrente de estupro, somente 4%
manifestaram-se favoráveis à prisão da mulher, enquanto 48% entenderam
que a mulher deveria ser convencida a prosseguir na gravidez, com o
recebimento de uma pensão paga pelo Estado e 40% opinaram que o
sistema público de saúde deveria prestar assistência à mulher para a prática
do aborto, caso esta fosse sua vontade.

Essa pesquisa nos mostra que muito já foi mudado, a população está vendo
que cabe a mulher a decisão sobre a continuação ou não da gestação, já que
independentemente do motivo, apenas ela saberá como a gravidez a afetará.

3.2 A dura realidade das mulheres processadas pelo aborto

Com a criminalização do aborto, muitas mulheres sofrem quando se tornam


criminosas por praticá-lo clandestinamente. Analisar-se-á então, casos de mulheres
28

que foram processadas por terem cometido tal ação, bem como uma situação em
que o Código Penal Brasileiro autoriza o aborto, e a forma como a Igreja Católica
reagiu sobre o fato.
Segundo Rullian Emmerick (2008, p.162), afirma que, “os processos por
criminalização do aborto são do estado do Rio de Janeiro, e dizem respeito a
mulheres que decidiram interromper a gestação de forma insegura e clandestina”.
O primeiro caso é de N.M.G., negra, profissão não informada, com 24 anos,
já com dois filhos, moradora de Campo Grande, Zona Oeste da Cidade do Rio de
Janeiro. Praticou o aborto no ano de 2003, sendo denunciada pela tia de seu
companheiro.
Segundo Rullian Emmerick (2008, p.163-164), no depoimento da vítima ela
afirma:
[...] que vive maritalmente com A.C. há cinco anos, tendo com o mesmo dois
filhos, um com quatro e outra com um ano e seis meses; que há quatro
meses ficou grávida e não tem como criar as crianças; que também em
razão das agressões físicas realizadas pelo seu companheiro, que a agride
constantemente, resolveu tomar chá para abortar; que seu companheiro não
possui emprego e que trabalha em qualquer ocupação para manter os filhos
e a declarante; que tomando conhecimento de que a declarante tomava chá
para abortar dizia para ela tomar “chumbinho”; que no dia (data) por volta de
(hora) realmente veio a abortar; que tal fato ocorreu no interior do banheiro
da declarante, tendo após a expulsão do feto dado descarga, indo a feto
parar na fossa; que a tia de A.C., Sra. L., veio a abrir a fossa, encontrando
no seu interior o feto expulso, recolhendo-o e colocando no interior de uma
caixa de sapatos; que posteriormente a Sra. L. acionou a polícia; que a
declarante quer deixar bem claro que provocou o aborto por desespero, não
sendo em momento algum instigada ou obrigada por quem quer que fosse;
que tomou chá de raiz agoniada, chá de bruxinha do norte, chá de fava com
raiz, chá de erva de São João, amoxilina 500mg e uma cartela de
anticoncepcional, tendo inclusive dormido com um canudo de mamona no
útero por uma noite.; que após o aborto não procurou nenhum socorro
médico.

Em um caso mais antigo, S.S.L., negra, doméstica, com trinta anos, já


possuía dois filhos, moradora da Cidade de São Gonçalo, Região Metropolitana do
Rio de Janeiro, que interrompeu a gravidez em 1993, sendo denunciada à policia por
seu próprio companheiro, cujo processo é do ano de 1998.
Segundo Rullian Emmerick (2008, p.163), no depoimento da vítima ela
afirma:

[...] Que vive maritalmente em companhia de D. há 12 anos, tendo dessa


união um casal de filhos, que já há muito tempo a declarante não deseja
mais conviver em companhia de seu companheiro em virtude de bebedeiras
e agressões e maus tratos contra os próprios filhos; que seu companheiro
29

não cumpre com suas obrigações de pai e de marido, faltando tudo para a
declarante e seus dois filhos, não possuindo nem uma cama para dormir;
que devido à vida de sofrimento que levava em companhia de seu
companheiro fez com que tomasse a decisão de abortar o terceiro filho que
estava para nascer; (...) que após receber seu salário, resolveu procurar a
Sra. E., tendo pago a quantia de Cr$ 700.000,00, pelo ‘serviço’, tendo
utilizado o método de matar o feto com uma sonda; (...) que no domingo
passando muito mal a declarante abortou no banheiro de sua residência;
(...) que não quis seu marido socorrê-la, nada alegando para tal, podendo
esclarecer a declarante que não vive bem com ele.

Em outro caso tem-se, L.S.R., negra, atendente de lanchonete, solteira, com


26 anos, já com um filho, moradora da cidade de Belford Roxo, região metropolitana
do estado do Rio de Janeiro, interrompeu a gravidez em 2003 e foi denunciada à
polícia por seu próprio namorado, uma vez que a mesma abortou sem comunicá-lo.
Segundo Rullian Emmerick (2008, p.166), no depoimento da vítima ela
afirma:
[...] que namorou L. durante um ano e três meses; que em janeiro de 2003 a
declarante descobriu que estava esperando um filho de L., após fazer
alguns exames; que explicou a situação para L. dizendo que não dava para
ter a criança, porque ele já tinha três filhos e estava desempregado, e não
tem responsabilidade com nada, e que a declarante também já tem um filho;
que L. disse que iria tentar arrumar o dinheiro para tirar a criança, pois ele
queria que a declarante fosse a uma clínica e não tomasse remédio em
casa; que disse para L. que iria dar um jeito, e ele respondeu que tudo bem,
mas no dia queria ir com a declarante para tirar a criança. A declarante
narra que trabalha em um restaurante; que lá no restaurante a declarante
sempre conversa com uma freguesa chamada N.; que contou para N. que
estava grávida, e lhe perguntou se conhecia algum remédio para abortar;
que N. indicou um remédio que a declarante não sabe ao certo o nome, mas
acha que é ‘cititek’; que deu duzentos reais para N. comprar tal remédio, e
no outro dia, ela trouxe e não deu troco para a declarante; que levou o
remédio para casa; que apesar de não se recordar ao certo a data, sabe
que num sábado à tarde a declarante ingeriu dois comprimidos de uma vez;
que nesta data a declarante estava sozinha em casa e umas três horas
depois foi ao banheiro urinar e quando olhou no vaso havia um sangue
pisado (...) que consegui o dinheiro através do seu trabalho (...); que esta
não é a primeira vez que tira um filho (...); que no ano de 2002 já havia
tirado um filho de L., o qual deu o dinheiro para fazer o aborto (...); que tirou
o primeiro filho pelos mesmos motivos que a levaram a tirar o segundo.

Percebe-se pelos depoimentos, que a maioria das envolvidas eram mulheres


que sofriam abuso em casa por parte de seu companheiro, com problemas
econômicos e sociais, cuja decisão de efetuar o aborto foi tomada sozinha sem que
a família ou amigos as apoiassem. Outro fator em comum entre os depoimentos é o
fato de não ser o primeiro filho, ou o primeiro aborto. Nota-se também que em um
dos acontecimentos, a envolvida sequer sabia o nome do remédio que havia
ingerido, mostrando total desinformação.
30

Mencionando outra circunstância sucedida de maneira distinta com


repercussão na mídia, Nascimento, (2013, p.136) ocorrido na cidade de Alagoinha,
estado de Pernambuco, uma menina de apenas 9 anos de idade – cujos os abusos
sexuais iniciaram-se aos 6 anos de idade -, foi estuprada por seu padrasto e
engravidou de gêmeos, em virtude de sua idade, sua gravidez era de risco.
Note-se que diferentemente dos casos apresentados acima, neste, o Código
Penal possui previsões legais para a interrupção da gestação, em razão da
presença de dois fatores: o da vítima ter sido estuprada, e ainda ser uma gravidez
que põe em risco sua vida.
Para Nascimento, (2013, p. 136), “a gravidez foi descoberta no dia 25 de
fevereiro de 2009 quando a criança se queixou de dores abdominais, vômitos, dores
de cabeça e tonturas. A gestação então foi descoberta, e a Policia foi comunicada”.
Continua Nascimento, (2013, p. 136), “ no dia 4 de março de 2009, o aborto
foi realizado na cidade de Recife, onde houve todos os cuidados médicos e
psicológicos que o caso exigia. Ocorre quando o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom
José Cardoso Sobrinho, soube do caso, manifestou-se contra o aborto que até o
momento não havia sido realizado na criança, afirmando que “a menina engravidou
de maneira totalmente injusta, mas devemos salvar vidas” desconsiderando o
trauma que a menina sofreu, bem como o risco de vida que ela estava correndo”.
Nascimento, (2013, 137), esclarece ainda que “após o procedimento, o
Arcebispo declarou que todos que participaram do aborto da criança, com exceção
da menor, seriam excomungados automaticamente da Igreja Católica. Quando o
Arcebispo foi perguntado porque o estuprador não sofreu a mesma punição, este
declarou que o aborto é pior que o estupro”.
Observa-se que a Igreja ignorou totalmente a proteção que deveria ser
concedida a uma menina de apenas 9 anos, desprovida de qualquer possibilidade,
seja física, emocional ou psicológica de dar continuidade à gravidez.
Outro caso que atualmente encontra-se com atenção da mídia é o de
Jandira.
Jandira Magdalena dos Santos, 27 anos, engravidou e buscou uma clínica
clandestina para a realização do aborto. De acordo com os parentes da jovem, ela
decidiu interromper uma gravidez de três meses e duas semanas e obteve êxito. A
jovem conseguiu o contato de uma mulher chamada Rose, que seria a responsável
31

por uma clínica clandestina de aborto.Jandira, que antes do procedimento pediu


oração por meio de uma mensagem, foi mais uma mulher que não se encaixou no
estereótipo esperado por quem criminaliza as mulheres que abortam, já que
contrariando a maioria, possuía condições de ter o filho. Mas, por causa da omissão
do Estado e do punitivismo da sociedade brasileira, acabou morta e carbonizada.
Na maioria dos casos que foram analisados, observam-se mulheres que
sofreram ou até morreram por realizarem o aborto, porque viram que não havia
meios econômicos, sociais, psicológicos para darem continuidade a uma gestação
que era indesejada.
A criminalização só as obriga à clandestinidade, proporcionando assim,
traumas que marcam suas vidas, em razão de passarem por verdadeiros
“açougues”, ou ingerirem medicamentos que provocam o aborto sem qualquer
assistência médica hospitalar, na busca de exercer seu direito de decidir, o direito
pelo seu corpo.
Cumpre reafirmar que criminalizar não obsta ou altera a decisão tomada por
mulheres acometidas de uma gravidez indesejada motivada por fatores diversos.
Essa procura ilegítima só provoca mais sofrimento para si e ônus para a saúde
pública.
Ainda não há o que se falar em interrupção de uma vida, haja vista que a
criminalização interrompe muitas vezes duas vidas: a de um embrião que acaba de
ser fecundado e de alguém que realmente faz parte dessa existência e que possui
alta relevância afetiva e amorosa diante de entes queridos e diante de um projeto de
vida que pode ser interrompida por não ter a assistência correta e necessária em
virtude de uma mera legislação que tipifica como crime ou por meros dogmas
religiosos.

3.3 Projetos de lei que tramitam a respeito do assunto

Podem-se dividir em dois tipos de projetos existentes, os que aumentam as


restrições atuais sobre o aborto, e os que diminuem.
Primeiramente têm-se os projetos que aumentam as restrições, sendo eles:
Os Projetos de Lei n 4.703, de 1998, n 4.917, de 2001 e n 7.443, de 2006, os quais
32

pretendem incluir a prática do aborto na Lei nº 8.072, de 1990, que trata dos crimes
hediondos; o PL 4.917/01 prevê, além da inclusão do aborto nos crimes hediondos,
um aumento de pena nos arts. 124, 125 e 126 do Código Penal.
O Projeto de Lei n 5.364, de 2005, pretende revogar o inciso II do art. 128 do
Código Penal, a fim de eliminar a exceção existente nos casos de gravidez
resultante de estupro. O PL n 7.235, de 2002, propõe revogar todo o art. 128 do
Código Penal, sendo que seu efeito seria o de criminalizar o aborto que é realizado
para salvar a vida da gestante.
O Projeto de Lei n 478, de 2007, e seu apenso, o Projeto de Lei n 489, de
2007, pretendem estabelecer o Estatuto do Nascituro. Os projetos com textos
idênticos, além de aumentar as penas para prática do aborto, incluem o aborto na
Lei n 8.072, de 1990, que trata dos crimes hediondos e estabelecem penas para
entre outras ações: “causar culposamente a morte de nascituro”; “anunciar processo,
substância ou objeto destinado a provocar aborto”; “fazer publicamente apologia do
aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática”; “induzir mulher
grávida a praticar aborto ou oferecer-lhe ocasião para que o pratique”, sendo que a
mulher que for vítima de violência sexual não poderá abortar, e ainda receberá a
pensão alimentícia do agressor, porém se este não for identificado, o Estado pagará
a pensão.
A aprovação de qualquer um destes projetos resultaria em um total
retrocesso sobre os direitos da mulher, sua autonomia de decisão, infringindo todas
as leis de proteção à mulher, bem como a Constituição Federal Brasileira e os
tratados internacionais que defendem a sua autodeterminação da mulher, e o seu
direito de igualdade.
Contudo, ainda há projetos que reduzem as restrições estabelecidas
atualmente sobre o aborto. O PL n 4.834/05 propõe inclusão no art. 128 do Código
Penal de inciso contemplando casos comprovados de anencefalia. O PL n 1.174/91
e o PL n 660/07 também pretendem a inclusão de inciso naquele artigo, porém não
se restringe unicamente a anencéfalos. Os Projetos de Lei n 3.280/92, n 1.956/96 e
n 4.304/96 têm semelhante intento, de permitir a realização do aborto em casos de
enfermidades incuráveis. Estes projetos de lei buscam a inclusão da possível
realização do aborto em casos de anencefalia ou de doenças incuráveis ao feto,
visto que não há possibilidade de vida após o nascimento.
33

O PL n 3.744/04 propõe a mudança da redação do inciso II do art.128 do


Código Penal, acrescendo a casos de estupro os de atentado violento ao pudor e
“outras formas de violência”.
Há, ainda, dois projetos que objetivam descriminalizar a prática do aborto
por qualquer razão:
O PL n 1.135/91 propõe suprimir o art. 124 do Código Penal, como efeito
pretendido de descriminalizar o aborto. Sua aprovação como se encontra criaria uma
clara contradição com o art. 126 daquele Código. Este projeto de Lei ficou apensado
no Projeto de Lei n 176, de 1995, que permite o aborto por livre opção da gestante
até o nonagésimo dia de gravidez e obriga a rede hospitalar pública a realizar o
procedimento.

(APENSE-SE AO PROJETO DE LEI N9 1.135, DE 1991)


O Congresso Nacional decreta:
Art 1° - É livre a opção de ter ou não ter filho, incluindo o direito de
interrupção da gravidez até 90 (noventa) dias.
Art 2°: Para realização do aborto basta a reivindicação da gestante.
Art 3° - A rede hospitalar pública, pertencentes ao governo Federal,
Estadual e ou Municipal, ou ainda com eles conveniada, fica obrigada,
obedecendo aos termos da lei, a realizar a prática do aborto naqueles
associados que assim o exigem.
Art 4° - Essa cirurgia, para efeitos de pagamento, obedecerá aos termos do
contrato firmado entre a instituição Hospitalar e os Governos Federal,
Estaduais e/ou Municipais, no caso de convênios: ou entre os governos e o
associado nos casos em que a instituição pertença a União aos Estados e
Municípios.
Art 5° - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
Art 6° - Revogam-se as disposições em contrário. (BRASIL, Lei nº 176 de
1995)

Para a sustentação deste projeto foram utilizados os seguintes argumentos:

a) a mulher é senhora de seu corpo e tem por direito determinar suas


práticas sexuais e reprodutivas; negar-lhe essa liberdade é atentar contra
sua dignidade e liberdade que a Constituição Federal protegem; b) a
descriminalização do aborto tem papel importante na diminuição do número
de mortes maternas; c) o aborto seria capaz de diminuir problemas sociais e
econômicos, como a pobreza e a violência; d) o aborto é um fato presente
na sociedade brasileira, o qual não é combatido eficazmente pelos
dispositivos penais e a repressão estatal; e) a criminalização do aborto
estigmatiza a mulher que o pratica; f) discussões morais sem convergência
na sociedade, lastreadas em convicções filosóficas profundas, não podem
ser resolvidas de modo arbitrário por um dos grupos, mesmo que
majoritariamente predominante; neste caso, a definição do impasse moral
cabe ao indivíduo, mais capaz de sanar a dúvida em seu caso concreto.
(BRASIL, Projeto de Lei nº 1.135, 1991)
34

Sendo assim, pode-se analisar que a mulher tem o direito e a liberdade de


determinar sobre sua vida sexual e reprodutiva, pois a Constituição Federal
Brasileira tutela sobre a liberdade e a dignidade da pessoa humana, assim como a
liberdade que o casal possui para decidir sobre sua prole. Tem-se então que garantir
o direito da mulher “sobre seu corpo”, seguindo a interpretação de que a gravidez e
o próprio feto são objetos do controle integral da gestante.
35

CONCLUSÃO

Este tema causa uma grande discussão entre as pessoas, seja por motivos
religiosos, éticos, pessoais e jurídicos. Quando se discute o aborto vários pontos de
vistas sobre quem devemos proteger surgem.
Quando se trata sobre a interrupção da gravidez, versa-se também sobre os
direitos sexuais e de reprodução feminina, sendo que estes direitos já foram
classificados como parte dos direitos humanos. E assim, reconhecido como Direitos
Humanos, a Conferência do Cairo (1994) ratificou que era garantia da mulher
controlar sua própria fecundidade, e ainda erradicar todas as formas de
discriminação por razões do sexo. Neste sentido o Estado Brasileiro assumiu a
responsabilidade de garantir à mulher a autonomia reprodutiva e sexual, cabendo-
lhe a melhor decisão a respeito de sua reprodução, asseverando-lhe ainda, a
deferência a seus direitos.
Alguns países legalizaram o aborto sem reservas, dando á mulher este
poder de decidir, e outros ainda impõem ressalvas. No Brasil, o tema ainda eleva
fortemente as discussões, seja por razões históricas, religiosas, políticas, morais,
jurídicas deixando que milhares de mulheres morram por se submeter a um aborto
sem condições de segurança.
Assim como analisado anteriormente, os países da América Latina e Caribe,
ainda possuem em sua maioria, formas de criminalização do aborto e constata-se
que é um grave problema de saúde pública, sendo uma das primeiras causas de
morbidade e morte materna. Percebe-se que nestes países há uma tendência de
endurecimento na regulação penal do aborto fortemente influenciados por grupos
religiosos e grupos conservadores.
Observa-se que em alguns países, como Uruguai, evoluíram através da
mobilização, frutos principalmente da articulação do movimento de mulheres e de
outros grupos progressistas ligados à defesa dos Direitos Humanos.Sendo, portanto,
raras as mortes maternas relacionadas ao aborto, uma vez que o país oferece
estrutura para a realização do mesmo.
Percebe-se que a violação dos Direitos Humanos reconhecidos nos tratados
internacionais ainda é uma realidade, especialmente na implementação inadequada
das políticas públicas voltadas para o atendimento da saúde das mulheres, não as
36

criando com o objetivo de garantir que a mulher exerça o direito de interromper ou


não uma gravidez indesejada, deixando para o Estado exercer um controle
injustificado e discriminatório, violando os direitos da mulher sobre seu corpo, sua
sexualidade e sua reprodução.
Cumpre somente a mulher, a difícil decisão de levar ou não uma gravidez
adiante, tendo em vista que o processo ocorre no interior do seu corpo. Diante de
suas expectativas e necessidades é sensato garantir o direito a livre
autodeterminação.
Em função de aspectos formais sustentados em convicções morais e
religiosas do julgador, o Poder Judiciário opõe-se ao Estado Democrático de Direito
e dos Direitos Humanos, pois retira da mulher o direito do exercício pleno da
cidadania.
No Brasil, as mulheres avançaram significativamente na conquista dos
direitos sexuais e reprodutivos, no entanto no que tange a interrupção da gravidez
não houve muitos progressos. Tem-se a aprovação do aborto anencéfalo, contudo
ainda é necessária a autorização judicial para o procedimento, onde a mulher tem
que travar uma verdadeira batalha judicial, que ainda corroborada com a morosidade
processual, passa por transtornos emocionais, físicos e psicológicos.
O que se vê não é a questão de proteção da vida do feto desde a concepção
e sim, um jogo de poder entre política e notadamente o movimento feminista, a
Igreja Católica e outros grupos religiosos. O foco não é priorizar a vida humana, pois
se assim fosse, estariam respeitando a vida humana da gestante não do quadro
gestacional.
Ressalte-se que na verdade possuem o intuito de manipular através da
fachada de protetores de um feto gestacional, sem qualquer prioridade a quem de
direito e pelos Direitos Humanos deveriam proteger, pois no propósito de exercer o
seu direito de decidir sobre o seu corpo, o aborto ilegal muitas vezes finda a vida
dessas mulheres.
O fato do aborto ser um crime não faz com que ele deixe de existir,
transformando mulheres, que estão exercendo o seu direito de decidir sobre o seu
corpo em criminosas.
A criminalização muitas vezes é justificada por crenças, ideologias ou
opinião, mas o fato é que autorizar o aborto não vai mudar a opinião de ninguém,
37

mas irá regular um direito da mulher, tratando-as como verdadeiras cidadãs,


responsáveis e conscientes de suas obrigações e direitos, conferindo-lhes todos os
direitos que elas possuem.
38

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