Você está na página 1de 49

1

CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE DO RIO DE JANEIRO


Unilasalle – RJ

Direito

O FENÔMENO SUCESSÓRIO NA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM

Julianna dos Santos Sardenberg

Niterói/RJ
2017
2
3

CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE DO RIO DE JANEIRO


Unilasalle – RJ

Direito

O FENÔMENO SUCESSÓRIO NA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL POST MORTEM

Julianna dos Santos Sardenberg

Monografia apresentada ao Curso de


Direito como requisito parcial para
obtenção do certificado de Bacharel.

Orientador: Prof. Dr. André Luiz Miranda de Abreu

Niterói/RJ
2017
4

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer a minha avó, por todo esforço


financeiro, paciência e empenho na minha criação e preparo acadêmico, para que
chegasse até aqui totalmente realizada.
Merece ser lembrado também, o meu avô que, até o momento de sua morte,
sempre esteve ao lado e com certeza se aqui estivesse presente ficaria muito feliz
com este agradecimento.
Aos meus pais e meu irmão, obrigada por todo amor e carinho que sempre
me deram – inclusive todas as broncas e castigos, pois sem elas eu não saberia o
que é ter que lutar pelos meus objetivos.
Um agradecimento especial a todos os meus amigos da faculdade que
fizeram esses cinco anos de graduação inesquecíveis e especiais, principalmente as
minhas amigas Carolina Campanário e Fernanda Caffarate, sempre me apoiando,
fazendo com que eu me tornasse uma pessoa melhor.
Quero agradecer também às minhas amigas maravilhosas da PGE – Grace,
Valéria e Manuella – que, apesar do pouco tempo de convivência, sempre estiveram
ao meu lado.
Por fim a todos os professores que fizeram parte dessa jornada,
principalmente o meu orientador André Miranda, que tem toda a minha admiração
tanto como professor quanto como pessoa, pois através de seus ensinamentos em
sala de aula fez eu me apaixonar ainda mais pelo direito.
5

SARDENBERG, Julianna dos Santos. O Fenômeno Sucessório na Inseminação


Artificial Post Mortem – Niterói: Unilasalle-RJ, 2017, 47 p. Orientador: Prof. Dr. André
Luiz Miranda de Abreu. Trabalho de conclusão de curso (Bacharel em Direito) –
Unilasalle-RJ – Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro.

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo apresentar o instituto do direito sucessório e


as técnicas de reprodução assistida, bem como suas implicações na inseminação
artificial post mortem. Outro ponto é estudar acerca da problemática existente
advinda da omissão legislativa que nem permite e nem proíbe este tipo de
reprodução assistida e deixa uma lacuna na lei a ser preenchida através de analogia
e princípios. Por conseguinte, a abordagem chega à divergência doutrinária quanto
da capacidade sucessória da criança nascida após o falecimento do pai, que, a
priori, não pode ser chamada a suceder, tendo em vista o princípio da segurança
jurídica. Porém, ao dar um significado mais amplo à palavra concepção, seria
possível abrir uma brecha para que criança nascida da inseminação artificial post
mortem fosse chamada a suceder, uma vez que esta estaria concebida no momento
de abertura da sucessão.

Palavras chaves: Direito Sucessório. Inseminação Artificial Post Mortem. Nascituro.


Legislação.
6

ABSTRACT

The present study aims to present the institute of inheritance law and techniques of
assisted reproduction, as well as its implications for postmortem artificial
insemination. Another point is to study about the existing problem of legislative
omission that neither allows nor prohibits this type of assisted reproduction and
leaves a gap in the law to be fulfilled through analogy and principles. The approach
therefore comes to doctrinal divergence about the succession capacity of the child
born after the death of the father, which, a priori, cannot be called to succeed, in view
of the principle of legal certainty. But by giving a wider meaning to the word "unborn",
it could open a loophole for a child to be called to succeed, since it would be
conceived at the moment of opening the succession.

Keywords: Succession Law. Artificial Insemination Post Mortem. Unborn.


Legislation.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................7
1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS.....................................................................................9
1.1 CARACTERIZAÇÃO DO FENÔMENO SUCESSÓRIO......................................9
1.2 REGRAS DE SUCESSÃO E ESPÉCIES DE SUCESSÕES (LEGÍTIMA E
TESTAMENTÁRIA)..................................................................................................11
1.3 A CAPACIDADE PARA SUCEDER NA SUCESSÃO LEGÍTIMA E NA
SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA: A EXPRESSÃO “JÁ NASCIDOS OU
CONCEBIDOS NO MOMENTO DA ABERTURA DA SUCESSÃO”.......................13
2 O PROCESSO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA E A FECUNDAÇÃO E
IMPLANTAÇÃO POST MORTEM..............................................................................19
2.1 TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA....................................................19
2.2 A QUESTÃO DA FECUNDAÇÃO E/OU IMPLANTAÇÃO POST MORTEM.....21
3 SUCESSÃO POST MORTEM: ANÁLISE DOS EFEITOS DA SUCESSÃO DO
NASCIMENTO DE FILHO APÓS A MORTE DO AUTOR DA HERANÇA...............29
3.1 DISPOSIÇÕES LEGAIS SOBRE O TEMA.......................................................29
3.2 POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO................................................................33
3.3 O ENUNCIADO DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL..............................37
4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA TEMÁTICA....................................39
CONCLUSÃO.............................................................................................................42
REFERÊNCIAS...........................................................................................................44
8

INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca mostrar a problemática que envolve os embriões


criopreservados e a sua implantação post mortem. A ausência de regulamentação
faz com que essa seja uma questão controvertida dentro do direito pátrio, pois
infelizmente, o mesmo não conseguiu alcançar os avanços científicos. O Código
Civil de 2002, apesar de inovador trazendo ideias nunca antes cogitadas no
ordenamento jurídico, como por exemplo, o biodireito no que tange as técnicas de
reprodução assistida, não conseguiu suprir a lacuna legislativa existente, uma vez
que só previu a possibilidade da inseminação post mortem, mantendo-se silente
acerca da capacidade sucessória do filho assim concebido.
Até a década de 80, acreditava-se que a ideia de filiação era consequência
das relações sexuais entre o homem e a mulher, entretanto, com o desenvolvimento
da biotecnologia, surgem técnicas de reprodução assistida, que ajudam aqueles
casais que por algum motivo biológico, como por exemplo, a infertilidade ou
esterilidade, não conseguem ter filhos. Porém, estas pessoas que antes não
conseguiam deixar descendentes, hoje podem realizar o sonho da filiação através
de técnicas de reprodução assistida como a inseminação artificial ou a fertilização in
vitro.
O trabalho aqui apresentado busca fazer uma construção de entendimento
sobre o que é sucessão, passando pelas técnicas de reprodução assistida até
chegar ao ponto controverso, que é o direito sucessório do filho concebido por
inseminação post mortem. O ponto central da questão é saber qual o direito da
criança concebida nestas condições e o que a doutrina e jurisprudência tratam
acerca do tema, visto que este não possui regulamentação expressa no direito
pátrio.
O objetivo é esclarecer o leitor sobre o que é reprodução assistida, dando
ênfase à inseminação artificial homologa post mortem, que pressupõe um vínculo
conjugal e é essencial para explicar as controvérsias decorrentes do uso desse tipo
de técnica de reprodução.
A pesquisa define objetivos e busca maiores esclarecimentos sobre o tema
estudado. A princípio, destacam-se quais são as modalidades sucessórias e a
9

importância no direito de se delimitar o significado da palavra nascituro, posto que,


dependendo da interpretação, esta pode abranger os embriões que estão
congelados em laboratório e não só os que já estão sendo gerados dentro da barriga
da mãe. Isto feito se busca mostrar ao leitor informações acerca das técnicas de
reprodução assistida e da fecundação e /ou implantação post mortem, de suma
importância para o entendimento do presente tema.
Ademais, a pesquisa busca mostrar o quão grave é a omissão legislativa
brasileira acerca do tema, pois tal fato deixa a cargo do operador do direito a
interpretação que na maioria das situações acaba passando por cima do princípio do
melhor interesse da criança e do princípio da dignidade da pessoa humana.
Por fim, o presente trabalho procurou trazer as disposições legais sobre o
tema, as duas correntes doutrinárias, bem como a análise de jurisprudência de
alguns casos que se tem conhecimento dentro do direito brasileiro.
O tema é de suma relevância, pois traz a tona uma realidade pouco
conhecida por todos, que é a reprodução assistida post mortem, bem como reproduz
a problemática da falta de legislação do direito brasileiro que não acompanhou os
avanços científicos, deixando de lado a questão acerca da capacidade sucessória
da criança.
Em relação ao tema, a literatura referente aos livros é ínfima, visto que o tema
ainda é pouco abordado pelos autores brasileiros, restando assim, a possibilidade
de estudos dos artigos jurídicos disponíveis na internet, que se mostram bem
eficazes e cada vez mais numerosos, o que mostra interesse por parte do mundo
jurídico acerca dos questionamentos produzidos pela reprodução assistida.
10
11

1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

1.1 CARACTERIZAÇÃO DO FENÔMENO SUCESSÓRIO

Segundo a definição de Aurélio 1, em seu sentido mais amplo, sucessão pode


ser entendida tendo como base a ideia de continuação, ato pelo qual uma pessoa
assume o lugar da outra adquirindo assim a titularidade de bens. Esse fenômeno
pode se dar de diversas formas, como, por exemplo, no direito das obrigações
quando o comprador sucede o vendedor, obtendo assim todos os direitos
pertencentes a ele, no direito das coisas quando ocorre a tradição, que é a forma de
transmissão de um bem. As hipóteses mencionadas são casos em que ocorre a
sucessão inter vivos, que é o ato jurídico realizado entre pessoas vivas.
Vistas essas possibilidades, podemos estabelecer uma definição dentro do
direito das sucessões, em que o vocábulo tem um sentido mais estrito, ao passo que
é usado quando ocorre a morte de alguém, nestes casos temos a sucessão causa
mortis, que pode ser entendida como o conjunto de regras que disciplinam a
transferência do patrimônio do de cujus ou autor da herança, depois de sua morte,
ao herdeiro, em virtude de lei ou testamento.
A expressão latina de cujus é abreviatura da frase de cujus sucessione, que
significa “aquele de cuja sucessão se trata”. De forma mais simples, pode-se dizer
que é o falecido cujos bens estão em inventário. Em consonância com o descrito,
Clóvis Beviláqua2 conceitua como “O complexo dos princípios segundo os quais se
realiza a transmissão do patrimônio de alguém que deixa de existir”.
Deste modo, fica clara a importância da sucessão hereditária para o direito
civil, pois sendo a morte um acontecimento inevitável, fazem-se necessárias normas
que regulem o destino do patrimônio daquele que se foi e o direito dos herdeiros,
que têm direito subjetivo ao patrimônio deixado.
Ainda dentro desse tema é importante saber quem são os legitimados a
suceder, uma vez que estes vão dar continuidade ao patrimônio deixado. A regra

1 AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa


corresponde à 3. Ed. 1. Impressão da Editora Positivo, revista e atualizada do Aurélio Século XXI, O
dicionário da Língua Portuguesa, contendo 435 mil verbetes, locuções e definições. 2004. by Regis
Ltda.
2 BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Sucessões. 4. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, p. 2.
12

geral, segundo o Código Civil em seu art. 1798 é de que “Legitimam-se a suceder as
pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”, a
sucessão que o referido artigo faz menção é a legitima e decorre da lei, quando o
falecido não deixa testamento, como veremos de forma mais aprofundada
posteriormente. Deste modo, apenas as pessoas naturais são legitimadas a
suceder, não sendo possível neste tipo de sucessão que pessoas jurídicas
sucedam, pois a lei não confere legitimidade às mesmas. Porém, na sucessão
testamentária, a pessoa jurídica pode ser chamada a suceder, conforme o artigo
1799 do Código Civil que diz:

Art. 1799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a


suceder: I- Os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas
pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; II- As
pessoas jurídicas; III- As pessoas jurídicas, cuja organização for
determinada pelo testador sob a forma de fundação.

A pessoa jurídica também não tem capacidade de testar, pelo mesmo motivo
que não tem legitimidade para suceder na sucessão legítima: esta não está sujeita a
morte. Sua extinção ou falência interessa apenas ao Direito Empresarial, não sendo
objeto do Direito das Sucessões. Entretanto, existe a exceção aos Municípios,
Distrito Federal e União, conforme consagra o art. 1844 do Código Civil, que diz:

Não sobrevivendo cônjuge ou companheiro, nem parente algum


sucessível; ou tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao
município ou ao Distrito Federal, se localizada nas respectivas
circunscrições, ou a União Federal, quando situada em território
Federal.

Ainda em relação ao Código Civil, este qualifica o término da existência da


pessoa natural em seu art. 6º que diz “A existência da pessoa natural termina com a
morte, presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a
abertura da sucessão definitiva”. Sendo assim, fica claro que a pessoa natural
sucede em decorrência do fenômeno da morte. Não há possibilidade de se falar em
herança de pessoa viva, abre-se a sucessão apenas com o óbito real ou presumido.
13

1.2 REGRAS DE SUCESSÃO E ESPÉCIES DE SUCESSÕES (LEGÍTIMA E


TESTAMENTÁRIA)

O Código Civil define claramente o que é sucessão, conforme explicitado no


artigo 1786 que diz “A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade“,
bem como define suas espécies, no art. 1788:

Morrendo a pessoa sem testamento, transmite a herança aos


herdeiros legítimos; o mesmo ocorrerá quanto aos bens que não
forem compreendidos no testamento; e subsiste a sucessão legítima
quanto aos bens que não forem compreendidos no testamento; e
subsiste a sucessão legítima se o testamento caducar, ou for julgado
nulo.

Diante do exposto, conclui-se que no ordenamento jurídico Brasileiro existem


dois tipos de sucessões, a legítima ou ab intestato, quando se dá em virtude da lei e
a testamentária, que decorre do ato de manifestação da última vontade, expressa
em testamento ou codicilo.
Estudar-se-á de forma aprofundada cada uma delas, começando pela
sucessão legítima, que é a mais difundida entre os brasileiros, tendo em vista que os
brasileiros não possuem o costume de dispor seu patrimônio através de testamento.
Como já foi dito acima, esta ocorrerá em virtude da lei, quando não houver
testamento ou quando o mesmo for considerado inválido. Nestes casos houve uma
presunção do legislador quanto à vontade de cujus em deixar seu patrimônio para
seus filhos e cônjuge, sendo certo que estes seguem a ordem de vocação
hereditária - são os chamados herdeiros necessários sendo os primeiros do rol do
art. 1829 do Código Civil, como se pode observar a seguir:

Art. 1829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:


I- Aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente,
salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão
universal, ou na separação obrigatória de bens (art. 1649, parágrafo
único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança
não houver deixado bens particulares; II- Aos ascendentes, em
concorrência com o cônjuge; III- Ao cônjuge sobrevivente; IV- Aos
colaterais.

Essa presunção de vontade se dá pelo fato de que, se o de cujus não tivesse


interesse em deixar seu patrimônio para as pessoas elencadas na lei, teria deixado
14

testamento. Este tipo de sucessão sempre será a título universal, pois não existe
legado se não há testamento, o que significa dizer que o herdeiro receberá a
universalidade de bens, o patrimônio pode ser recebido de forma integral ou uma
fração dele se houver outros herdeiros. Neste caso, o herdeiro sub-roga-se na
posição do falecido, como titular do todo ou da fração daquele patrimônio. Insta
salientar que o legatário, ou seja, aquele que recebe o legado, não é sinônimo de
ser herdeiro. Diferenciando sucintamente os dois, pode-se dizer que este último
sucede a titulo universal, enquanto que o legatário sucede ao falecido a título
singular.
Em relação à sucessão testamentária, essa se dá por disposição de última
vontade. Assim sendo, ela pode ser tanto a título universal quanto a título singular,
ou seja, quando se recebe na sucessão um bem ou direito específico. Se houver
testamento, a sucessão testamentária predomina sobre a sucessão legítima,
observando-se os limites estabelecidos pelo legislador.
Fazendo um breve comentário sobre a sucessão a título singular, pode-se
definir como a transferência do testador ao beneficiário apenas os objetos certos
determinados. Aqui é o legatário que sucede ao de cujus, porém sem sub-rogar-se
no lugar do falecido, uma vez que neste tipo de sucessão o legatário não responde
pelas dívidas, diferentemente da sucessão a título universal em que se têm os
herdeiros assumindo a posição do falecido, sendo responsáveis pelas dívidas.
É necessário observar até onde vai a liberdade de testar, pois esta não é
absoluta, visto que o testador só pode dispor de 50% de seu patrimônio - essa
metade chama-se porção disponível e pode ser deixada para qualquer pessoa,
inclusive para estranhos. A outra parte constitui a legítima, e é assegurada aos
herdeiros necessários. Quem não possui herdeiros necessários terá a liberdade
plena de testar a universalidade de seus bens em favor de qualquer pessoa,
podendo inclusive, afastar a sucessão dos herdeiros colaterais.
É importante salientar que se o testador for casado no regime de comunhão
universal de bens, o patrimônio do casal deve ser dividido em dois, sendo certo que
o testador só poderá dispor integralmente do patrimônio em testamento se não tiver
herdeiros necessários, e da metade, correspondente a um quarto do patrimônio do
casal, se os tiver.
Assim confirma o autor Washington de Barros quando diz,
15

[...] não se deve perder de vista que, se o testador é casado pelo


regime da comunhão universal (art. 1667), a metade dos bens
pertence ao outro cônjuge; portanto, para o cálculo da legítima de da
porção disponível ter-se-á em vista, exclusivamente, a meação que
toca ao testador. Por igual, de acordo com o art. 1790, há que ser
considerada a parte que ao companheiro ou companheira caiba
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união
estável, que a ele ou a ela já pertence como condômino3.

Fazendo um cotejo sobre as duas espécies de sucessão, é de suma


importância enfatizar que ambas podem ocorrer simultaneamente, quando o
testamento não compreender todos os bens do de cujus. Nos casos em que não
estiverem incluídos no testamento, a transmissão se dará para o patrimônio dos
herdeiros legítimos, bem como nos casos em que o testador só dispõe da sua
legítima, ou seja, sua metade disponível, nessa situação há presunção de que os
herdeiros ficarão com a herança remanescente. Não havendo herdeiros
necessários, o restante será tido como herança jacente à fração da quota disponível
não distribuída no testamento.
Por todo exposto, conclui-se que o fenômeno da sucessão só pode vir de lei
ou testamento. O direito brasileiro não admite a chamada sucessão contratual,
conforme exposto no artigo 426 do Código Civil que diz: “Não pode ser objeto de
contrato a herança de pessoa viva”. A sucessão legítima será sempre a título
universal, transmitindo-se aos herdeiros a totalidade ou fração do patrimônio do
falecido, enquanto que na sucessão testamentária podemos ter as duas hipóteses,
tanto a título singular quanto a título universal.

1.3 A CAPACIDADE PARA SUCEDER NA SUCESSÃO LEGÍTIMA E NA


SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA: A EXPRESSÃO “JÁ NASCIDOS OU
CONCEBIDOS NO MOMENTO DA ABERTURA DA SUCESSÃO”

O direito sucessório é baseado na transmissão imediata dos bens aos


herdeiros ou legatários, desde que tenham capacidade ou legitimação sucessória
para tal.

3 MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito: Direito das Sucessões. Vol. 6. 35 Ed. São
Paulo: Saraiva, 2003, p. 10-11.
16

A priori, cabe fazer uma distinção entre capacidade civil e capacidade


sucessória, uma vez que não se podem confundir as duas, pois representam coisas
distintas.
A capacidade civil se apresenta no ordenamento jurídico brasileiro como a
capacidade plena que tem uma pessoa para praticar os atos da vida civil, é o poder
de ação no mundo jurídico. De forma resumida, isso consiste na capacidade de
assinar contratos, comprar e vender, casamento, entre outras diversas
possibilidades.
No tocante a capacidade sucessória, esta consiste na aptidão que o indivíduo
tem para fazer parte de uma sucessão, seja como testador, como herdeiro ou
legatário, quando receber os bens deixados pelo de cujus. Trata-se, portanto na
qualidade virtual de suceder na herança.
Em suma, diz-se que uma pessoa pode ser incapaz de exercer os atos da
vida civil, mas pode ser considerada capaz para suceder - basta que lhe seja dada
legitimidade. Do mesmo modo, alguém plenamente capaz civilmente pode ser
incapaz de suceder, como acontece, por exemplo, no caso do indigno. Este não tem
a sua capacidade civil diminuída, porém não a tem para herdar patrimônio da
pessoa pela qual foi considerado indigno. Uma declaração de vontade, nesse
sentido, será considerada nula. Como assevera Caio Mário da Silva Pereira, a
incapacidade sucessória identifica-se como impedimento legal para adir a herança.
A legitimação para suceder ocorre no momento da abertura da sucessão, que
se dá no momento da morte do de cujus. Em consonância com isso, existe o direito
de Saisine, princípio de origem francesa que de forma bem sucinta significa dizer
que a posse dos bens do de cujus transmite-se imediatamente, após a sua morte,
aos herdeiros legítimos e testamentários, sendo essa a forma mais justa de
transmissão. Este princípio é consagrado no art. 1784 do Código Civil, que diz:
“Aberta a sucessão, a herança transmite-se desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários.”
A lei vigente no tempo será responsável por regular a sucessão e a
legitimação para suceder ao tempo de sua abertura. Como consagra Maria Helena
Diniz4,

4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 7: responsabilidade civil, 17. Ed. São


Paulo, Saraiva, 2003.
17

Com a morte do de cujus aberta estará a sucessão, transmitindo-se o


domínio e posse da herança, de imediato, aos herdeiros, que
passam a ser titulares de direitos adquiridos. Nenhuma alteração
legal, anterior ou posterior ao óbito, pode modificar o poder aquisitivo
dos herdeiros, visto que a lei do dia do óbito, pode modificar rege a
sucessão e o direito sucessório do herdeiro legítimo ou
testamentário. A capacidade sucessória não se altera, ante o fato de
ser o herdeiro apto a herdar, na data da morte ou no tempo em que
se verificou o implemento de alguma condição suspensiva ou
resolutiva, imposta pelo testador.

Para que ocorra a capacidade sucessória, deve se analisar alguns


pressupostos: o primeiro seria a morte do de cujus, pois seria impossível a
transmissão da posse da herança aos herdeiros legítimos e testamentários se o
evento morte não ocorrer. O segundo a ser analisado seria a sobrevivência do
sucessor no momento da morte, pois é lógico pensar que para a herança ser
transmitida, deve haver um herdeiro para receber, pois o patrimônio não pode ser
transmitido ao nada. Se ocorrer o evento morte do sucessor, antes do autor da
herança, perderá o herdeiro a capacidade de suceder, pois como já visto
anteriormente, no art. 1798 do Código Civil, os legitimados são apenas as pessoas
vivas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Esta regra aplica-se,
inclusive, na sucessão testamentária, em que o herdeiro deve estar vivo a época da
morte do testador, pois não ocorrendo esse fato o testamento será considerado
inválido.
Esse pressuposto denomina-se princípio da coexistência, conforme alude
Carlos Maximiliano5: “Herdar é adquirir a propriedade do espólio; ora o nada não
pode adquirir. A sucessão transmite-se no momento da morte; logo nesse momento
é preciso haver sucessor, coexistirem hereditando e herdeiro, testador e legatário”.
Não basta, aduz o mencionado autor, “que no momento da morte do de cujus o
sucessor já viva; é indispensável, também, que ainda viva. Continua de pé a mesma
regra - da coexistência necessária do hereditando e do herdeiro; deve este
sobreviver àquele”.
Nos casos expostos acima, a legitimidade para suceder será conferida aos
outros herdeiros de sua classe, ou da classe imediata, se ele for o único.
Insta salientar que no art. 1798 do Código Civil, quando o legislador usou a
expressão “pessoas”, excluiu assim as coisas inanimadas e os animais, salvo

5 MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. Vol. I. Rio de Janeiro, 2016, p. 130.
18

indiretamente, quando houver um encargo a herdeiro testamentário que fique


responsável pelo animal.
A pessoa ainda não concebida ao tempo da abertura da sucessão, também
não pode herdar, porém, existe uma hipótese excepcional, que é a capacidade
sucessória do nascituro, este apesar não ter nascido no momento da abertura da
sucessão, tem seus direitos garantidos, pois o art. 2º do Código Civil diz “A
personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a
salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Deste modo, é possível se
observar o interesse do legislador em garantir os direitos do nascituro, desde a
concepção, pois se entende que desde este momento já está sendo formado um
novo ser. Os nascituros podem ser chamados a suceder tanto na sucessão legítima
como na testamentária, porém isto só ocorre se os mesmo nascerem com vida.
Segundo a definição de Silvio Rodrigues 6, nascituro “é o ser já concebido,
mas que ainda se encontra no ventre materno. A lei não lhe concede personalidade,
a qual só será conferida se nascer com vida. Mas, como provavelmente nascerá
com vida, o ordenamento jurídico desde logo preserva seus interesses futuros,
tomando medidas para salvaguardar os direitos que, com muita probabilidade, em
breve serão seus”, ou seja, os direitos que lhe são assegurados estão sob condição
suspensiva, sendo efetivados após o nascimento com vida. Se este fato não
ocorrer, não haverá aquisição de direitos, pois será como se nunca tivesse existido,
não tendo capacidade de adquirir e transmitir direitos. Nessa hipótese, a herança
volta aos herdeiros legítimos do de cujus, ou ao substituto testamentário, desde que
tenha sido indicado.
Todavia, no art. 1799 do Código Civil, no inciso I, faz-se uma exceção à regra
geral ao permitir que os filhos não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador,
desde que vivas no momento da abertura da sucessão. Esses filhos não concebidos
são chamados de prole eventual, posto que se trata de um ser já concebido, ou seja,
o nascituro . Neste caso, a transmissão da herança se dá de modo condicional, sua
aquisição está subordinada a evento futuro e incerto.
A frase “nascidos ou concebidos” é uma antiga expressão do Código Civil
para trabalhar com as pessoas que podem suceder, porém é necessário fazer um
cotejo acerca do referido termo. No direito pátrio existem três teorias acerca do

6 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol.1. São Paulo, 2012, p. 36.


19

momento em que nasce a personalidade para o direito civil. São elas a natalista,
personalidade condicional e teoria concepcionista.
A teoria natalista entende que o início da personalidade civil se dá através do
nascimento com vida. Deste modo, o nascituro teria apenas uma expectativa de
direito, conforme leciona Flávio Tartuce 7, “a teoria natalista nega ao nascituro até
mesmo seus direitos fundamentais, relacionados com a sua personalidade, caso do
direito à vida, à investigação de paternidade, aos alimentos, ao nome e até a
imagem”.
Já a teoria da personalidade condicional, como o próprio nome sugere,
entende que os nascituros estão sujeitos a uma condição suspensiva, ou seja, o
nascimento com vida. Assim como a teoria natalista, ela também entende que a
personalidade civil da pessoa natural começa com o nascimento com vida, a
diferença é que a teoria da personalidade condicional resguarda os direitos do
mesmo, com a condição que o nascituro nasça com vida. Flávio Tartuce8 salienta o
seguinte em relação a essa teoria:

O grande problema da corrente doutrinária é que ela é apegada a


questões patrimoniais, não respondendo ao apelo de direitos
pessoais ou da personalidade a favor do nascituro. Ressalte-se, por
oportuno, que os direitos da personalidade não podem estar sujeitos
a condição, termo ou encargo, como propugna a corrente. Além
disso, essa linha de entendimento acaba reconhecendo que o
nascituro não tem direitos efetivos, mas apenas direitos eventuais
sob condição suspensiva, ou seja, também mera expectativa de
direitos.

Por fim, existe a teoria concepcionista, que entende que a personalidade civil
já existe no nascituro, sem que seja necessário o seu nascimento com vida. Este é o
entendimento majoritário da doutrina contemporânea, confirmado pelo 1º Enunciado
da I Jornada de Direito Civil: “1 – Art. 2º: A proteção que o Código defere ao
nascituro alcança o natimorto no que concerne aos direitos da personalidade, tais
como: nome, imagem e sepultura.”
Deste modo, é possível perceber que não há dúvidas acerca da expressão
“nascidos”. Na primeira respiração, começam os direitos da personalidade civil da
pessoa natural. Entretanto, para o direito civil, surge a dúvida acerca do momento da
concepção e qual o sentido desta palavra para o direito sucessório.
7 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4. Ed. Elsevier/Método. 2014, p. 79
8 Ibid., p. 79
20

Não há uma efetiva definição no Código Civil acerca do momento da


concepção. Para muitas pessoas a concepção só ocorre no momento do nascimento
com vida, para outras se dá desde o momento da fecundação do óvulo pelo
espermatozoide, entretanto, pouco se fala sobre o embrião excedente que restou
congelado em clinica médica, para implantação posterior. O Código Civil Brasileiro
excluiu estes embriões do rol de legitimados a suceder, posto que para o direito
pátrio, eles ainda não foram concebidos.
21

2 O PROCESSO DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA E A FECUNDAÇÃO E


IMPLANTAÇÃO POST MORTEM

2.1 TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA

É de conhecimento geral que os avanços científicos são um marco presente


na sociedade, tanto no Brasil quanto em outros lugares do mundo. Estes avanços se
dão em todas as áreas de conhecimento, principalmente na saúde e medicina, haja
vista a necessidade de se aprimorar cada vez mais o estudo a respeito da ciência e
a fim de proporcionar melhor qualidade de vida a todos que dela necessitam. O
presente capítulo tem como objetivo exemplificar e explicar noções acerca das
técnicas de reprodução assistida, tendo em vista a necessidade de entendimento
acerca do tema para compreensão do presente estudo.
Deste modo, cumpre-se o deve de elucidar o que é a reprodução assistida.
Esta consiste no conjunto de técnicas capazes de oferecer um tratamento para
mulheres que por algum motivo não conseguem engravidar da forma convencional,
ou seja, o coito programado.
Isto posto, as formas de reprodução assistida podem ser dividas em dois
grupos, a fertilização in vivo ou intracorpórea e a fertilização in vitro ou
extracorpórea. Essas duas técnicas podem ocorrer através da fecundação
homóloga ou heteróloga: a primeira significa dizer que a inseminação artificial foi
feita com o material genético do marido ou companheiro, nestes casos pressupõe-se
o vinculo matrimonial e ocorre intracorporea, ou seja, dentro do corpo feminino.
Diferenciando-se da inseminação artificial heteróloga, pois nesta, o material genético
utilizado advém de terceira pessoa, que pode ser um doador desconhecido ou não.
Vale ressaltar que fertilização artificial heteróloga é indicada nos casos em que há a
possibilidade de transmissão de doenças hereditárias graves ou nos casos de
infertilidade grave ou definitiva. Neste caso a inseminação se dá de forma
extracorpórea, ou seja, fora do corpo feminino.
Na inseminação intrauterina ou inseminação artificial, como é comumente
chamada, a fecundação ocorre sem a relação sexual, somente com o auxilio de
métodos mecânicos que introduzem o sêmen no útero da mulher. O seu
22

procedimento consiste na coleta e preparação do sêmen, a fim de concentrar maior


quantidade de espermatozoides e eliminar substâncias que impedem a sua
captação e fertilização. Após, estimulam-se os ovários para que haja um aumento da
produção de ovócitos através da manipulação de hormônios. Assim que os óvulos
forem liberados, o sêmen será injetado na cavidade uterina através de um cateter.
Este tipo de inseminação possui três modalidades, que são: a inseminação
clássica – técnica na qual o sêmen é diretamente injetado na cavidade uterina, a
inseminação intraperitoneal direita – que consiste na inserção do sêmen na cavidade
abdominal, próximos aos ovários, para estimular as tubas interinas a captar os
espermatozoides do mesmo modo que capturam os óvulos e a inseminação
intrafolicular direita – diferentemente da última, o sêmen é injetado no folículo
ovariano antes de ocorrer a ovulação.
Ainda dentro da fertilização in vivo, existe a transferência de gametas. A priori
essa técnica se assemelha muito à fertilização in vitro. Primeiro é necessário que
haja a estimulação da ovulação e a preparação e coleta do esperma, para que haja
a captação dos óvulos através da sucção. Feito este procedimento os óvulos são
misturados ao esperma através de um cateter e essa mistura é imediatamente
introduzida nas trompas da mulher.
A respeito desse tema conceitua Reinaldo Pereira e Silva 9:

A inseminação artificial consiste em técnica de procriação assistida


mediante a qual se deposita o material genético masculino
diretamente na cavidade uterina da mulher, não através de um ato
sexual normal, mas de maneira artificial. Trata-se de técnica indicada
ao casal fértil com dificuldade de fecundar naturalmente, quer em
razão de deficiências físicas (impotentiacoeundi, ou seja,
incapacidade de depositar o sêmen, por meio do ato sexual, no
interior da vagina da mulher; má-formação congênita do aparelho
genital externo, masculino ou feminino; ou diminuição do volume de
espermatozoides [oligoespermia], ou de sua mobilidade
[astenospermia], dentre outras), quer por força de perturbações
psíquicas (infertilidade de origem psicogênica).

Em relação às técnicas de reprodução extracorpórea ou in vitro, este


procedimento se dá à medida que possibilita o encontro do óvulo com o
espermatozoide, fora do organismo feminino, em tubos de ensaios nos quais são

9 SILVA, Reinaldo Pereira e. Os direitos humanos do concebido. Análise biojurídicas das técnicas de
reprodução assistida. Porto Alegre: Síntese Publicações, 2002, CD-Rom n. 40. Produzida por
Sonopress Rimo Indústria e Comércio Fonográfico Ltda.
23

reproduzidas as condições e ambiente de uma tuba uterina. Após isso, os embriões


são transferidos para o útero da mãe. Esta técnica é a mais utilizada para tratar a
infertilidade feminina, isto posto, é importante salientar que a mesma não trata a
infertilidade, apenas supre as consequências do problema biológico. Existem quatro
hipóteses para utilização da fertilização in vitro: a doação de óvulo, a doação de
esperma, doação de embrião e empréstimo de útero.
A doação de óvulos se dá de maneira semelhante à doação de espermas,
porém os avanços na ciência ainda não foram capazes de garantir a técnica de
congelamento necessária para assegurar a integridade dos óvulos. A doação de
embriões também se dá pela forma das duas últimas hipóteses. Já a doação de
útero, como o próprio nome sugere, implica no empréstimo do útero por terceira
pessoa que possa gerar o filho, tendo em vista a incapacidade de gestação da futura
mãe. Esta técnica é comumente conhecida como barriga de aluguel.
Dentre esses métodos citados o mais usado nos procedimentos de
inseminação artificial post mortem é a inseminação intrauterina e a fertilização in
vitro, pois envolvem um doador conhecido, ou seja, o cônjuge ou companheiro que
está deixando seu material genético para ser usado posteriormente.

2.2 A QUESTÃO DA FECUNDAÇÃO E/OU IMPLANTAÇÃO POST MORTEM

Muito se tem discutido, recentemente, acerca da reprodução assistida e seus


desdobramentos. O procedimento pode se demonstrar como algo simples, sendo
utilizado nos casos em que exista a impossibilidade de realização do desejo materno
por vias naturais, ou seja, a concepção dentro de seu próprio útero. Com o avanço
da ciência e das novas tecnologias, surgiu a oportunidade da implantação de
embriões post mortem, ou seja, após a morte do doador homólogo, nos casos em
que o mesmo deixou seu material genético congelado e criopreservado para
posterior implantação.
Para começar uma discussão acerca do tema é de suma importância
evidenciar um caso que foi considerado o marco inicial da discussão acerca da
implantação de embriões post mortem. Este foi chamado de “AFFAIR PARPALAIX”,
e ocorreu na França no ano de 1984, quando um jovem casal, Corine Richard e
Alain Parpalaix, que mantinham um relacionamento amoroso, foram abalados pela
notícia de que Alain sofria de uma doença incurável, câncer nos testículos. Em razão
24

da doença e da quimioterapia, o rapaz descobriu que não poderia ter filhos. Assim,
decidiu procurar um banco de sêmen para deixar o seu material genético
depositado, a fim de que posteriormente pudesse ser usado pela sua companheira
para gerar seu herdeiro. Passado isso, o casal decidiu se casar, mas devido a
complicações de sua doença, Alain Parpalix faleceu sem conseguir gerar o seu
primogênito.
Após a morte de seu marido, Corine Richard procurou o banco de sêmen para
proceder à inseminação artificial, obtendo resposta negativa do mesmo, que alegou
não haver previsão legal para tal, começando assim uma disputa judicial, para que
ela pudesse gerar o seu herdeiro.
Durante a referida disputa judicial, o banco de sêmen insistia na alegação de
falta de previsão legal e no fato de não haver contrato de depósito entre o laboratório
e o casal, não sendo possível a comercialização de material genético de pessoa
morta na França, ou seja, não existia lei específica que regulasse a inseminação
artificial post mortem.
Após o término da disputa judicial, o tribunal Francês condenou o bando de
sêmen, determinando o envio do material genético ao médico para que fosse
procedida a inseminação, contudo, devido à demora no litígio judicial, os embriões
não estavam mais aptos para concluir a fecundação.
Este caso, como já foi dito, foi considerado o marco inicial para as discussões
acerca do assunto, inclusive para o Brasil, que não tem lei específica que regularize
este tipo de procedimento.
No direito Pátrio, principalmente no Código Civil de 2002, não há previsão
legal, mas existe a possibilidade de paternidade presumida, conforme conceitua o
art. 1957:

Art. 1597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os


filhos: I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de
estabelecida a convivência conjugal; II – nascidos trezentos dias
subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte,
separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III – havidos
por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV
– havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção homóloga; VI – havidos
por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia
autorização do marido.
25

Analisando-se o referido artigo, pode-se concluir que não há dúvida quanto à


paternidade daquele que tem filhos advindos de inseminação artificial homóloga,
tendo em vista que o material genético fornecido é do próprio casal. Entretanto, a
discussão se inicia quando se põe a questão dos embriões criopreservados na
inseminação post mortem, pois surgem controvérsias no âmbito do direito
sucessório, uma vez que o Código Civil se manteve silente acerca da problemática,
conceituando apenas a sua existência, deixando uma lacuna, ou seja, sem dar uma
solução efetiva. Nestes casos, começa a surgir o questionamento acerca da
capacidade sucessória da criança, haja vista que esta só será concebida após a
morte do pai.
Um dos problemas a ser encarado logo de início é a presunção de
paternidade. Ora, se o artigo em seu inciso III afirma existir a presunção de
paternidade dos filhos concebidos por inseminação homóloga, mesmo que falecido o
marido, entende-se que a criança advinda desse processo será reconhecida e será
capaz de receber todos os seus direitos, entretanto, esse conceito esbarra na norma
que prevê o momento de abertura da sucessão, que segundo o direito de Saisine, se
dará com o evento morte, onde os direitos e deveres serão transmitidos aos
herdeiros nascidos ou concebidos.
O art. 1798 do Código Civil dispõe acerca dos legitimados a suceder,
entendendo que devem ser as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da
abertura da sucessão, excluindo assim a concepção após a morte do de cujus.
Deste modo, conceitua Carlos Alberto Ferreira Pinto 10 ao dizer que

O legislador ao elaborar a regra contida no art. 1798 do Código Civil,


não cogitou os avanços científicos aplicados à reprodução humana,
apenas reproduziu o art. 1798 do antigo Código, referindo-se apenas
as pessoas já concebidas, não fez previsão do futuro filho ainda não
ter nascido ou sequer ter sido concebido no momento da abertura da
sucessão.

Em consonância, doutrina Carlos Roberto Gonçalves 11:

10 PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução Assistida: Inseminação Artificial Homóloga Post
Mortem e o Direito Sucessório. Recanto das Letras. São Paulo, 2008, p. 7. Disponível
em:<http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/879805>. Acesso em: 7/11/2017.
11 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 324.
26

Em princípio não se pode falar em direitos sucessórios daquele que


foi concebido por inseminação artificial post mortem, uma vez que a
transmissão da herança se dá em consequência da morte (CC, art.
1784) e dela participam as pessoas nascidas ou já concebidas no
momento da abertura da sucessão (art. 1798).
Ao redigir a regra, o legislador brasileiro não se atentou aos avanços
científicos e na possibilidade da concepção ocorrer após a morte do marido ou
companheiro. Ele não conseguiu prever a possibilidade de um futuro filho ainda não
ter nascido ou sequer ter sido concebido no momento ideal para a abertura da
sucessão. É de suma importância que a legislação acompanhe os avanços
científicos, de modo que não haja possibilidade de deixar lacunas como essa que foi
apresentada.
Muito embora exista uma resolução feita pelo Conselho Federal de Medicina
nº 1.358/92, V, 3, que regula o procedimento acerca da ciopreservação, ao passo
que obriga os cônjuges a deixar expressamente escrita a sua vontade acerca do
destino dos embriões congelados, seja para técnicas de reprodução assistida ou
para uso em células troncos; esta norma é médica e não jurídica, o que acentua
ainda mais a divergência. Existe também a lei nº 11.105, chamada lei de
Biossegurança, porém, ela não regulamenta a matéria, mas determina normas de
segurança e fiscalização acerca de atividades que envolvam organismos
modificados e seus derivados.
Em relação à resolução do Conselho Federal de Medicina , Eduardo de
Oliveira Leite12 tece o seguinte comentário:

No Brasil, como se sabe, o Conselho Federal de Medicina baixou a


Resolução nº 1352/2, passando a adotar um conjunto de normas
éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida e,
dentro de seu campo de atuação, agiu corretamente. No entanto, tal
corpo de regras não possui caráter vinculante, especialmente no
sistema jurídico brasileiro, em respeito ao disposto no artigo 5º,
inciso II, da Constituição Federal, daí mais uma vez premente
necessidade da edição de lei referente ao tema. Há, no entanto,
alguns reflexos das normas previstas na Resolução não na
topografia normativo-legal do sistema jurídico, mas como fonte de
norma consuetudinária.

Para melhor entendimento, cumpre fazer um breve comentário sobre o direito


comparado, ou seja, como a regra é aplicada em outros países que regulam

12 LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. Volume XXI: do direito das
sucessões, 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.649.
27

especificamente esse assunto, fato esse que mostra o quão atrasada está a
legislação brasileira em relação aos demais países do mundo. A partir do caso
“Parpalaix” que foi mostrado acima, surgiram várias produções legislativas que
versam acerca do tema.
Deste modo, temos as soluções encontradas por alguns países. A Alemanha
e a Suécia vedam expressamente o uso de embriões para a inseminação post
mortem. Já a França veda na medida em que entende que o consentimento perde o
efeito quando ocorre o evento morte. O direito Espanhol também veda, porém,
garante os direitos do nascituro, quando houver declaração escrita por escritura
pública ou testamento. Indo contra esse movimento, a Inglaterra permite a
inseminação post mortem, ainda que não garanta os direitos sucessórios se não
houver um documento que expresse a vontade nesse sentido.
Em consonância com esse entendimento José Carlos Teixeira Giorgis 13
esclarece que “a possibilidade de aproveitamento do material depositado para uso
depois da morte do doador é assunto controvertido nos diversos ordenamentos
jurídicos” acrescentando que “é procedimento vedado nas legislações alemã, sueca,
francesa; as regras espanholas também a proíbem, embora garanta os direitos do
nascituro, desde que haja declaração feita por escritura pública ou testamento; as
normas inglesas a aceitam, mas sem direitos hereditários, salvo documento
expresso; a lei portuguesa também o interdita, seja no casamento ou na união de
fato”.
Apesar de, na maioria dos casos, a legislação ser contra a utilização de
embriões criopreservados na inseminação post mortem, a norma utilizada mostrou-
se eficaz na resolução da problemática, diminuindo assim as controvérsias
existentes no tocante ao assunto.
Acerca deste tema, conceitua Eduardo de Oliveira Leite 14 que

[...] quanto à criança concebida por inseminação post mortem, ou


seja, criança gerada depois do falecimento dos progenitores
biológicos, pela utilização de sêmen congelado, é situação anômala,
quer no plano do estabelecimento da filiação, quer no do direito das
sucessões. Nesta hipótese a criança não herdará de seu pai porque
não estava concebida no momento da abertura da sucessão.

13 GIORGIS, José Carlos Teixeira. A inseminação póstuma. 2005, p. 1. Disponível em:


<http://www.arpensp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MjkwNA>. Acesso em 2/11/2017.
14 LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. Volume XXI: do direito das
sucessões, 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.110.
28

E conclui que a “solução favorável à criança ocorreria se houvesse


disposição legislativa favorecendo o fruto de inseminação post mortem”.
Por fim, conclui-se que, no Brasil, a questão é controversa e encontra
posicionamentos doutrinários distintos, conforme se comprovará mais a frente. Não
existe permissão nem vedação legal acerca do assunto, o que deixa uma lacuna
enorme a ser preenchida de acordo com o caso concreto.
É uma questão polêmica, à medida que não se conseguiu definir a natureza
jurídica do nascido advindo da inseminação artificial post mortem. Deste modo é
mais difícil estabelecer o vínculo de paternidade, uma vez que o doador homólogo já
está morto.

2.3 REGRAMENTO DO USO DO MATERIAL GENÉTICO DE PESSOA MORTA

Levando-se em conta os aspectos mencionados, tem-se ciência de que não


há regramento expresso no direito pátrio que regularize a inseminação artificial post
mortem. Contudo, insta mostrar a legislação já existente e os projetos de lei que
podem vir a fazer parte do ordenamento jurídico.
A priori, a resolução do Conselho Federal de medicina é o único regramento
existente no direito pátrio acerca da reprodução assistida, e como já mencionada,
trata-se de normal médica, não jurídica, ou seja, não possui caráter coercitivo;
embora mereça ser estudado, tendo em vista a sua importância para a questão.
Esta norma não traz grandes inovações para o sistema jurídico, porém trata-se de
legislação pioneira à medida que obriga a existência de consentimento por parte do
paciente que deseja congelar os embriões, ou seja, aquele que não deixar expresso
o termo de consentimento encontrará impedimentos para fazer uso das técnicas de
reprodução assistida. Essa regra faz-se necessária, pois esses procedimentos são
considerados de risco e só devem ser utilizados nos casos em que haja
comprovação por especialistas da impossibilidade de transmissão de doenças
genéticas.
Apesar de a referida resolução ser a única legislação oficial acerca do tema,
existe também a interpretação dada ao inciso III do art. 1957 do Código Civil, pela 3ª
Jornada de Direito Civil, realizada no Superior Tribunal de Justiça no mês de Junho
de 2002. Neste sentido, ela entende que para que haja a presunção de paternidade
29

do cônjuge ou companheiro falecido, a mulher deste deve estar na condição de


viúva, sendo certo de que a mesma deve ter por escrito a autorização do falecido
para que possa usar o seu material genético após a sua morte.
Sobre esse tema, Maria Helena Diniz15 adverte que:

O filho concebido post mortem terá, por ficção jurídica, um lar,


possibilitando a sua integração familiar e social, tendo em vista que a
família monoparental é protegida constitucionalmente. Mas, por outro
lado, o uso do material fertilizante depende de anuência prévia do
doador, uma vez que tem propriedade sobre as partes destacadas do
seu corpo.

Nesse mesmo sentido, conceitua Paulo Luiz Netto Lobo 16, ao dizer que

O princípio da autonomia dos sujeitos, como um dos fundamentos do


biodireito, condiciona a utilização do material genético do falecido ao
consentimento expresso que tenha deixado para esse fim. Assim,
não poderá a viúva exigir que a clínica de redução assistida lhe
entregue o sêmen armazenado para que seja nela inseminado, por
não ser objeto de herança. A paternidade deve ser consentida,
porque não perde a dimensão da liberdade. A utilização não
consentida do sêmen deve ser equiparada à do doador anônimo, o
que não implica atribuição de paternidade.

É importante mostrar também a existência do Projeto de Lei nº 1184/2003,


que, se for aprovado, será a primeira legislação especifica que regularizará o tema
da reprodução assistida. Este projeto encontra-se em trâmite no Congresso Nacional
e atualmente aguarda o parecer do Relator na Comissão de Constituição e Justiça e
de Cidadania desde 2011.
Este Projeto é de autoria do Senado federal e está sujeito à apreciação do
plenário. Ele trata da questão da inseminação artificial post mortem, bem como
também trata da prática de clonagem e barriga de aluguel, visando proibir esta
prática, porém viabilizaria a inseminação artificial post mortem, desde que se
obtenha prévia autorização ou termo de consentimento informado que deixe claro as
condições que o doador ou depositante autoriza o uso de seu material genético,
inclusive após a sua morte.

15 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 5. Direito de Família. 24. Ed. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 459.
16 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 223.
30

Entretanto, ainda que aprovado, o referido projeto de lei fará permanecer a


lacuna acerca dos direitos sucessórios do nascituro advindo de reprodução assistida
post mortem. Estes direitos não foram sequer abordados pelo referido projeto de lei,
deixando assim a lacuna a ser resolvida pelos doutrinadores e aplicadores do direito.
31

3 SUCESSÃO POST MORTEM: ANÁLISE DOS EFEITOS DA SUCESSÃO DO


NASCIMENTO DE FILHO APÓS A MORTE DO AUTOR DA HERANÇA

3.1 DISPOSIÇÕES LEGAIS SOBRE O TEMA

Como pôde ser constatado no capítulo acima, no direito pátrio não há


regulamentação expressa sobre o uso de embriões criopreservados na inseminação
post mortem. Não existe lei que regulamente tal situação, deixando a lacuna a ser
preenchida por parte dos aplicadores do direito. O direito das sucessões é a parte do
Código Civil que dispõe acerca do patrimônio de um indivíduo após a sua morte.
Nesta parte especial do referido código dispõe em seu artigo 1597

Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I –


nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a
convivência conjugal; II – nascidos trezentos dias subsequentes à
dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial,
nulidade e anulação do casamento; III – havidos por fecundação
artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV – havidos, a
qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários,
decorrentes de concepção homóloga; V – havidos por inseminação
artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Tão logo, se podem destacar os incisos III em que se autoriza a fecundação


artificial homóloga, e V que dispõe sobre a inseminação artificial heteróloga, em que
o legislador admitiu a ocorrência do fenômeno sucessório post mortem, mas não
ofereceu uma solução acerca do futuro da criança que venha a existir dessa
situação, ou seja, a sua capacidade sucessória.
Existe também o artigo 1798 do Código Civil, que polemiza ainda mais a
questão ao dizer que “Somente as pessoas vivas podem herdar no momento da
abertura da sucessão”, excluindo assim a hipótese prevista no inciso III do artigo
1597 do Código Civil.
Tendo em vista a ausência de regulamentação específica, é interessante
buscar princípios constitucionais que são basilares e poderiam ser usados ao tratar
do tema. A Constituição no direito pátrio é tida como lei maior e fundamental dentro
de um Estado, deste modo, seus princípios devem ser observados toda vez que
sobrevier um fato novo, como é o caso exposto no presente estudo.
32

O artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil conceitua que “quando a lei
for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os
princípios gerais do direito” (grifo meu). Deste modo, pode-se compreender que,
enquanto restar à omissão legislativa, podem-se e devem-se ser usados os
princípios constitucionais para chegar a uma conclusão adequada.
Dentre os princípios que podem ser úteis acerca da resolução do tema, o
primeiro, e até mais importante, que rege todas as relações entre indivíduos, é o
princípio da dignidade da pessoa humana. Este é considerado um princípio basilar
para todas as constituições consideradas democráticas, posto que foi proclamado
pela primeira vez na declaração universal de direitos humanos em 1948. Logo em
seu primeiro artigo, a Constituição da República conceitua que este princípio é um
dos fundamentais para um Estado democrático.
Este princípio concede a todo e qualquer cidadão direitos como o direito à
vida, a existência que pode ser entendido como o direito de viver bem, com um
mínimo existencial para qualquer pessoa, ou seja, ter uma vida digna.
Em consonância com esse entendimento, conceitua Inga Wolfganf Sarlet 17:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e


distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres
fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todos e qualquer
ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir
as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover a sua participação ativa e co-responsável nos
direitos da própria existência e de vida em comunhão com os demais
seres humanos.

Este direito é assegurado a todos, inclusive àqueles que ainda não nasceram,
pois é garantido desde o momento da concepção até a hora da morte. É inerente à
vida, independentemente de qualquer concepção moral ou religiosa. Deste modo,
pode se chegar a conclusão de que, se toda pessoa é detentora de direitos inatos,
os embriões também seriam detentores de tais direitos, uma vez que estão incluídos
na mesma categoria das pessoas humanas já nascidas.
Outro princípio a ser observado, desta vez em relação à futura mãe que tem
interesse de gerar uma criança a partir de uma inseminação post mortem, é o direito

17 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2001, p. 60.
33

a procriação. Tal se resume basicamente à possibilidade de gerar um ou mais


descendentes e o poder de decidir em qual momento fazê-lo, bem como a forma.
Como é de conhecimento geral, muitos casais, infelizmente, não conseguem gerar
uma criança, tendo em vista a infertilidade. Deste modo, cabe ao Estado fornecer
modos de auxiliar as mulheres que desejam realizar o sonho de engravidar, mesmo
após a morte do marido. Dentro deste princípio, cabe fazer um adendo ao livre
planejamento familiar, conforme estabelece o artigo 226, §7º da Constituição da
República, que diz:

[...] fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da


paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

A respeito disso, leciona Paulo Luiz Netto Lobo 18, ao dizer que

[...] não se pode negar a possibilidade de a pessoa sozinha ter um


projeto parental que atenda perfeitamente aos interesses da criança,
o que vem de encontro ao contido na Lei n.º 9263/96, que prevê, no
seu artigo 3º, caput, que o planejamento familiar é parte integrante
de várias ações em prol da mulher, do homem ou do casal, numa
perspectiva mais abrangente que a do texto constitucional, mas
perfeitamente adequada ao nosso sistema jurídico. Nos termos da
legislação supracitada entende-se por planejamento familiar o
conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta iguais
direitos de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher,
pelo homem ou pelo casal, enquanto no plano governamental, o
planejamento familiar deverá ser dotado de natureza promocional,
não coercitiva, orientado por ações preventivas e educativas.

Existem vários outros princípios que podem ser usados para nortear o
fenômeno sucessório na inseminação artificial post mortem, porém, para fim de
igualdade. Logo em seu artigo 5º, a Constituição da república dispõe que “todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Todavia, esta afirmação
deve ser relativizada, pois o ser humano deve ser observado à medida de sua
individualidade. Deste modo, deve-se tratar de maneira desigual aqueles que são

18 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito de família, relações de parentesco, direito patrimonial. In: Código
Civil Comentado. São Paulo, Atlas, 2003, p. 44.
34

desiguais. Estendendo esse entendimento para aqueles que ainda não nasceram,
leciona Jussara Maria Leal de Meirelles19 ao dizer que:

O valor da pessoa humana que informa todo o ordenamento


estende-se, pelo caminho da similitude, a todos os seres humanos,
sejam nascidos, ou desenvolvendo-se no útero, ou mantidos em
laboratório, e o reconhecimento desse valor dita os limites jurídicos
para as atividades biomédicas. A maior ou menos visibilidade em se
caracterizarem uns e outros como sujeitos de direito não implica
diversificá-los na vida que representam e na dignidade que lhe é
essencial.

Reconhecer esse dado significa respeitar o ser humano em si mesmo,


durante todo o seu desenvolvimento, e para além dele próprio, nos seus
semelhantes.
Realizando-se uma leitura integral da declaração de direitos humanos, é
possível perceber que ela não faz distinção entre os seres nascidos e os já
concebidos. Deste modo, fazendo-se uma interpretação em conjunto do artigo 1º,
§2º, do Pacto de São José da Costa Rica que diz:

Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos 1. Os Estados-partes


nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e
liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício
a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação
alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões
políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social,
posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. 2.
Para efeitos desta Convenção, pessoa é todo ser humano.

Pode-se perceber que não se faz distinção entre a vida uterina e extra-
uterina. Se se adota a teoria concepcionista, ou seja, que o termo inicial da vida se
na concepção, pode-se chegar à conclusão de que os embriões criopreservados
teriam os mesmos direitos dos seres humanos concebidos, porém ainda não
nascidos.
Cabe também, dentro do âmbito da igualdade, fazer um adendo ao princípio
da igualdade entre filhos. Em suma, é a proibição legal de fazer diferenciação entre
os filhos advindos de qualquer natureza, os quais não podem ser tratados de formas

19 MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Os Embriões Humanos Mantidos em Laboratórios e a


Proteção da Pessoa: O Novo Código Civil Brasileiro e o Texto Constitucional. In: BARBOZA, Heloísa
Helena; MEIRELLES, Jussara M. L.; BARRETTO, Vicente de Paulo. (org.). Novos temas de biodireito
e bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 94.
35

diferentes. O artigo 227, §6º, da Constituição da República conceitua que: “Os filhos,
havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos
e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação”. Assim sendo, é possível fazer uma analogia aos filhos concebidos após a
morte de seu genitor, ao passo que esses não poderiam sofrer uma diferenciação
para com aqueles já nascidos.

3.2 POSICIONAMENTO DOUTRINÁRIO

Não bastasse a falta de previsão legal acerca do tema, o posicionamento


doutrinário também se mostra muito divergente. Existem dois posicionamentos
doutrinários de autores renomados.
A primeira corrente entende que o embrião não teria capacidade sucessória,
pois como já foi visto, ao artigo 1798 do Código Civil expõe a necessidade da
pessoa estar viva na época da abertura da sucessão, excluindo assim a hipótese
dos embriões criopreservados, posto que ainda não foram concebidos. Para essa
corrente, presa pelo princípio da segurança jurídica, conceder capacidade
sucessória à criança concebida post mortem seria exigir que os herdeiros capazes
de suceder tivessem que aguardar um tempo indeterminado pelo nascimento da
criança; além da possibilidade de já ter ocorrido a partilha dos bens, antes mesmo
da concepção, trazendo assim insegurança jurídica àqueles que foram agraciados
pela partilha.
Para o doutrinador Guilherme Calmon Nogueira da Gama 20, seria impossível,
no atual estágio do direito pátrio, permitir a legitimidade do acesso da viúva ou ex-
companheira aos embriões congelados a fim de proceder com a técnica de
reprodução post mortem, mesmo existindo o princípio de igualdade entre os filhos, e
ainda leciona que

É inegável a vedação do emprego de qualquer das técnicas de


reprodução assistida no período de pós-falecimento daquele que
anteriormente forneceu seu material fecundante e consentiu que o
embrião formado ou seu material fosse utilizado para a formação de
nova pessoa humana. A violação aos princípios da dignidade da
pessoa humana e do melhor interesse da futura criança, além da
própria circunstancia de ocorrer afronta ao princípio da igualdade
material entre os filhos sob o prisma (principalmente) das situações
20 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 1000.
36

jurídicas existências, não autoriza a admissibilidade do recurso a tais


técnicas científicas. Assim, a questão se coloca no campo da
inadmissibilidade, pelo ordenamento jurídico brasileiro, das técnicas
de reprodução assistida post mortem. Daí não ser possível sequer a
cogitação da capacidade sucessória condicional (ou especial) do
embrião congelado ou do futuro embrião (caso fosse utilizado o
material fecundante deixado pelo autor da sucessão) por problema
de inconstitucionalidade.

Para o mestre e jurista Sílvio de Salvo Venosa 21, o Código Civil de 2002, no
que tange a inseminação post mortem, não priorizou o direito sucessório daqueles
gerados nessa situação, tendo em vista que na legislação atual só é herdeiro aquele
nascido ou concebido ao tempo da abertura da sucessão. Afirmando expressamente
que aqueles concebidos sob essa condição não terão direito ao status de herdeiro.
Entretanto, apesar de fazer parte dessa corrente doutrinária, o referido mestre
teceu um comentário em relação ao Código Civil de 2002 que mostra uma exceção:

Permitindo que unicamente na sucessão testamentária possam ser


chamados a suceder o filho esperado de pessoa indicada, mas não
concebido, aguardando-se até dois anos sua concepção e
nascimento, após a abertura da sucessão, com reserva de bens da
herança.

O professor e jurista Eduardo de Oliveira Leite 22 entende que o assunto trata


de uma situação atípica, tanto no âmbito da filiação, quanto no aspecto sucessório.
Deste modo, aduz que a melhor solução seria através de criação de lei que fosse a
favor daquele concebido post mortem, e assim leciona: “Quanto à criança gerada
depois do falecimento dos progenitores biológicos, pela utilização de sêmen
congelado, é situação anômala, quer no plano do estabelecimento de filiação, quer
no direito das sucessões.” Deste modo, pode-se perceber que autor conclui que
nessa situação a criança não herdará, pois ainda não havia sido concebida no
momento da abertura de sucessão. Isto posto, o autor afirma não ser aconselhável
esse tipo de inseminação, pois poderia ocasionar perturbações mentais a criança
gerada, e conclui:

A inseminação post mortem (também denominada inseminação


intermediária, já que não é homóloga ou heteróloga) não se justifica
porque não há mais o casal, e poderia acarretar perturbações

21 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 7. Ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 224.
22 LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil, volume XXI: do direito das
sucessões, 2º Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.110.
37

psicológicas graves em relação à criança e à mãe, daí a conclusão


quanto ao desaconselhamento de tal prática.

Em consonância com esses entendimentos, a professora e jurista Maria


Helena Diniz23 entende que, muito embora a criança gerada seja filha biológica do
casal, tendo em vista a sua condição de concepção post mortem esta não teria,
juridicamente, o direito ao registro, pois seria advinda de uma relação
extramatrimonial, tendo em vista que o casamento se dissolve com o evento morte,
razão pela qual a prática deveria ser proibida. Sendo assim, expressa em sua obra
que:

É preciso evitar tais práticas, pois a criança, embora possa ser filha
genética, por exemplo, do marido de sua mãe, será juridicamente,
extramatrimonial, pois não terá pais, nem poderá ser registrada como
filha matrimonial em nome do doador, já que nasceu depois de 300
dias da cessação do vínculo conjugal em razão da morte de um dos
consortes. E além disso, o morto não mais exerce direitos, nem
deveres a cumprir. Não há como aplicar a presunção de paternidade,
uma vez que o matrimônio se extingue com a morte, nem como
conferir direitos sucessórios ao que nascer por técnica conceptiva
post mortem, pois não estava gerado por ocasião da morte de seu
pai genético [...] Por isso, necessário será que se proíba legalmente
a reprodução assistida post mortem, e, se, por ventura, houver
permissão legal, dever-se-á prescrever quais serão os direitos do
filho, inclusive sucessórios.

Os autores que entendem pela segunda corrente são mais permissivos. Esse
posicionamento doutrinário compreende que poderia ser dada ao embrião
capacidade sucessória, uma vez que a Constituição da República veda a distinção
entre filhos, bem como o Código Civil em seu artigo 1597 admite a presunção de
paternidade dos filhos havidos na Constância do casamento. Deste modo, essa
corrente mostra-se com um grande apego a princípios constitucionais como a
igualdade entre filhos e o livre planejamento familiar.
O mestre José Luiz Gavião de Almeida 24 entende pela possibilidade da
criança nascida da inseminação artificial post mortem, ter capacidade sucessória,
inclusive na sucessão legítima. Em consonância com esse entendimento, o referido
autor teceu o seguinte comentário:

23 DINIZ, Maria Helena. A ectogênese e seus problemas jurídicos. São Paulo: Max Limonad, 1995, p.
91.
24 ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado: direito das sucessões, sucessão em
geral, sucessão legítima. São Paulo: Atlas, 2003, p. 104.
38

E reconhecendo o legislador efeitos pessoais ao concepturo (relação


de filiação), não se justifica o prurido de afastar os efeitos
patrimoniais, especialmente hereditário. Essa sistemática é
reminescência do antigo tratamento dado aos filhos, que eram
diferenciados conforme a chancela que lhes era aposta no
nascimento. Nem todos os legítimos ficavam sem direitos
sucessórios. Mas os privados desse direito também não nasciam
relação de filiação. Agora, quando a lei garante o vínculo, não se
justifica provar o infante de legitimação para recolher a herança. Isso
mais se justifica quando o testamentário tem aptidão para ser
herdeiro.

A professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka 25 vai além, ao falar


que o conceito de nascituro compreende o conceito de embrião e que a
separação jurídica dos significados dos referidos termos traria mais confusão a
problemática, uma vez que o operador do direito responsável pela análise pode
fazer uma interpretação errada, se entende que trata de casos diferentes. A
professora define embrião como sendo aquele que está em estágio de evolução
para óvulo, mesmo que ainda não tenha sido implantado, estaria concebido, e que
desde que fosse identificado com os doadores de gametas, estaria apto a suceder,
pois teria sido concebido na época da abertura da sucessão.
Conclui a doutrinadora no trecho a seguir:

Supondo que tenha havido a autorização e que os demais requisitos


tenham sido observados, admitindo-se, assim a inseminação post
mortem, operar-se-á o vinculo parental de filiação, com todas as
consequências daí resultantes, conforme a regra basilar da
Constituição Federal, pelo seu artigo 226, §6º, incluindo os direitos
sucessórios relativamente à herança do pai falecido.

Francisco José Cahali26 mostra que de acordo com a regra do Código Civil de
1916, era inadmissível e impossível a geração de vínculo de parentesco entre a
criança nascida e o pai falecido, que teve o seu material genético utilizado, sob o
fundamento de que o evento morte é causa de extinção da personalidade. Porém,

25 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. As inovações biotecnológicas e o direito das sucessões.


IBDFAM 24/04/07 Palestra proferida no I Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da
Cidade do Rio de Janeiro "Interpretação do Direito Civil contemporâneo: novos problemas à luz da
legalidade constitucional", sob a coordenação científica do Professor Gustavo Tepedino (UERJ), em
23 de setembro de 2006, p. 19. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=290>.
Acesso em: 15/11/2017.
26 CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil. Vol. 6: direito das sucessões/ Francisco
José Cahali. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2003, p.131.
39

tendo em vista a regra do artigo 1597 do Código Civil de 2002, aduz assim o referido
autor:

Nesse contexto, embora a contragosto, concluímos terem os filhos


assim concebidos o mesmo direito sucessório que qualquer outro
filho, havido pelos meios naturais. E estaremos diante de tormentoso
problema quando verificado o nascimento após anos do termino do
inventario, pois toda a destinação patrimonial está comprometida.

Deste modo, Cahali27 aponta que a solução para a controvérsia seria:

Por isso, quer parecer que a solução que melhor se amolda à


hipótese é a que determina o rompimento do testamento na hipótese
de virem um ou mais desses embriões a aderir a um útero apto a
garantir-lhes desenvolvimento saudável e posterior nascimento.

Com isso, estará adequada à norma legal às novas exigências sociais


decorrentes da evolução científica. E o mesmo se alcançará quando, inexistindo
testamento, vier o herdeiro nascido depois de pleitear e receber seu quinhão
hereditário, como se fosse um filho reconhecido por posterior ação de investigação
de paternidade.
Tendo em vista as correntes apresentadas, pode haver a impressão de que
há uma tendência ao posicionamento da primeira corrente doutrinária, fato que não
se confirma, posto que a segunda corrente mostra-se mais atual, uma vez que
acompanhou os avanços tecnológicos, bem como se encontra baseada dos
preceitos constitucionais que regem o direito pátrio.

3.3 O ENUNCIADO DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL

Acerca do presente tema, existe o enunciado nº 267 do Conselho da Justiça


Federal, que vai de encontro à segunda corrente doutrinária exposta acima. Ele diz
que

A regra do art. 1.798 do Código Civil deve ser estendida aos


embriões formados mediante o uso de técnicas de reprodução
assistida, abrangendo, assim, a vocação hereditária da pessoa

27 CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil. Vol. 6: direito das sucessões/ Francisco
José Cahali, Gizelda Maria Fernandes Novaes Hironaka. São Paulo: Editora Revista dos tribunais,
2003, p. 346.
40

humana a nascer cujos efeitos patrimoniais se submetem às regras


previstas para a petição da herança.

O referido enunciado apenas faz menção aos embriões formados mediante o


uso de técnicas de reprodução assistida in vitro, levando em consideração o óvulo já
fecundado pelo material genético do falecido. No entanto, existe uma omissão
acerca da capacidade sucessória do filho havido de fecundação post mortem.
Deste modo, a fim de se buscar uma solução para a problemática, deve-se
procurar embasamento dentro da Constituição da República ao analisar princípios,
como por exemplo, o da dignidade da pessoa humana e o do melhor interesse da
criança, conferindo assim aos filhos nascidos dessa situação os mesmos direitos
reservados aos filhos já concebidos a época da abertura de sucessão.
Outra possibilidade seria permitir que o sujeito nascido desse tipo de
inseminação tivesse capacidade para entrar com a ação de petição de herança, que
tem o prazo de dez anos a partir da data de abertura da sucessão, frisando que não
ocorre prescrição e decadência para os incapazes, ou seja, o prazo de 10 anos
estende-se enquanto perdurar a incapacidade.
Entretanto, este entendimento não está pacificado, pois como já foi visto, para
alguns juristas o embrião criopreservado está em situação diferente do nascituro,
não merecendo assim tratamento de equidade.
41

4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL ACERCA DA TEMÁTICA

Por fim, faz-se necessária uma análise jurisprudencial acerca da temática


relativa à sucessão post mortem, dada a ausência de previsão legal e a grande
divergência doutrinária. A priori, cumpre salientar a posição do Supremo Tribunal de
Federal em sua ADI 3.510, que declarou constitucional o art. 5º da Lei de
Biosseguranca (Lei 11.105/2005), ao entender que as pesquisas com células-tronco
embrionárias não violam o direito à vida ou ao princípio da dignidade da pessoa
humana, porém não coloca em situação de equidade o embrião criopreservado e o
nascituro, conforme se confirma por parte do texto a seguir:

O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou


o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer
estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida
que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria
‘natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da
‘personalidade condicional’). E quando se reporta a ‘direitos da
pessoa humana’ e até a ‘direitos e garantias individuais’ como
cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do indivíduo-
pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais ‘à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’, entre outros
direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da
fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar).
Mutismo constitucional hermeneuticamente significante de
transpasse de poder normativo para a legislação ordinária. A
potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o
bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas
levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica.
Mas as três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o
feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não
existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa
humana. O embrião referido na Lei de Biosseguranca (in vitro
apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova,
porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras
terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem
factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível. O Direito
infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do
desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida
humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo
direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido,
mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere a
Constituição.28

28 ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010.
42

Em consonância com esse entendimento outros dois acórdãos, ambos


proferidos pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal:

DIREITO CIVIL. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL.


EMBARGOS INFRINGENTES. UTILIZAÇÃO DE MATERIAL
GENÉTICO CRIOPRESERVADO POST MORTEM SEM
AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DOADOR. AUSÊNCIA DE
DISPOSIÇÃO LEGAL EXPRESSA SOBRE A MATÉRIA.
IMPOSSIBILIDADE DE SE PRESUMIR O CONSENTIMENTO DO
DE CUJUS PARA A UTILIZAÇÃO DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL
HOMÓLOGA POST MORTEM. RESOLUÇÃO 1.358/92, DO
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 1. Diante da falta de
disposição legal expressa sobre a utilização de material genético
criopreservado post mortem, não se pode presumir o consentimento
do de cujus para a inseminação artificial homóloga post mortem, já
que o princípio da autonomia da vontade condiciona a utilização do
sêmen criopreservado à manifestação expressa de vontade a esse
fim. 2. "No momento da criopreservação, os cônjuges ou
companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao
destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso
de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de
ambos, e quando desejam doá-lo" (a Resolução 1.358/92, do
Conselho Federal de Medicina) 3. Recurso conhecido e desprovido. 29

AÇÃO DE CONHECIMENTO - UTILIZAÇÃO DE MATERIAL


GENÉTICO CRIOPRESERVADO POST MORTEM SEM
AUTORIZAÇÃO EXPRESSA DO DOADOR - AGRAVO RETIDO
NÃO CONHECIDO - PRELIMINAR DE LITISCONSÓRCIO
NECESSÁRIO AFASTADA - MÉRITO -AUSÊNCIA DE DISPOSIÇÃO
LEGAL EXPRESSA SOBRE A MATÉRIA - IMPOSSIBILIDADE DE
SE PRESUMIR O CONSENTIMENTO DO DE CUJUS PARA A
UTILIZAÇÃO DA INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HOMÓLOGA POST
MORTEM.1. Não se conhece do agravo retido diante da ausência do
cumprimento do disposto no art. 523, § 1º, do CPC. 2. Afasta-se a
preliminar de litisconsórcio necessário entre a companheira e os
demais herdeiros do de cujus em ação de inseminação post mortem,
porquanto ausente reserva a direito sucessório, vencido o
Desembargador Revisor. 3. Diante da falta de disposição legal
expressa sobre a utilização de material genético criopreservado post
mortem, não se pode presumir o consentimento do de cujus para a
inseminação artificial homóloga post mortem, já que o princípio da
autonomia da vontade condiciona a utilização do sêmen
criopreservado à manifestação expressa de vontade a esse fim. 4.
Recurso conhecido e provido Verificação: 2014ACO9JLA5YA5J45YD
AASG1QN GABINETE DO DESEMBARGADOR GETÚLIO DE
MORAES OLIVEIRA 1Fls. _____Apelação 20080111493002APC.30

29 TJ-DF - EIC: 20080111493002, Relator: CARLOS RODRIGUES, Data de Julgamento: 25/05/2015,


1ª Câmara Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 18/06/2015. Pág.: 82
30 TJ-DF - APC: 20080111493002 DF 0100722-92.2008.8.07.0001, Relator: NÍDIA CORRÊA LIMA.
Data de Julgamento: 03/09/2014, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 23/09/2014
Pág.: 139
43

Ao analisar conjuntamente a decisão do STF e os dois acórdãos, conclui-se


que imprescindível é a expressa autorização do cônjuge e que, mesmo esta feita,
tem seus efeitos extintos com o evento morte, pois não se pode presumir a
autorização daquele que já faleceu, bem como a ausência de previsão legal impede
o reconhecimento do filho concebido post mortem.
44

CONCLUSÃO

Com os avanços científicos, surgiram as técnicas de reprodução assistida e o


direito pátrio não conseguiu acompanhar tais avanços, havendo uma grande lacuna
legislativa acerca da problemática do direito sucessório do filho concebido por
inseminação artificial post mortem. A ausência de regulamentação legal juntamente
com divergência doutrinária, faz com que o tema ainda seja considerado
controverso.
Tendo em vista a lacuna deixada pela lei, a Constituição da República pode
ser usada para preenchê-la, viabilizando o projeto parental através dos artigos 226,
que prevê a proteção da família pelo estado e seu §7º, que garante o direito ao livre
planejamento familiar, proibindo qualquer forma de restrição ou coerção pelas
entidades públicas ou privadas, sendo certo que esse direito é fundamental junto
com o direito a reprodução. Tais conceitos se desdobram do direito a liberdade, que
está previsto no artigo 5º do mesmo diploma.
Em relação ao direito sucessório, a controvérsia também é grande, pois não é
possível conceder capacidade sucessória ao embrião criopreservado, tendo em vista
que ainda não foi concebido. Para que ele adquira a capacidade sucessória, deve-se
expandir o significado da palavra concepção, a fim de que atinja não só aqueles que
já estão na barriga da mãe, como aqueles que ainda estão congelados no
laboratório.
O presente trabalho permitiu fazer uma análise sobre o tema que não tem
tanta repercussão no mundo jurídico, mas que se mostra cada dia mais presente
nas relações humanas atuais, tendo em vista os avanços no biodireito.
Ao analisar as situações expostas, percebe-se o quão injusto é impedir o
nascimento daquele embrião que foi planejado e desejado durante a constância do
casamento e que por algum motivo só pode ser realizado após a morte do
companheiro. Pior ainda é a situação em que, nos casos de implantação do embrião
que esse venha a ser privado dos direitos sucessórios, sendo esta uma clara
violação ao princípio da igualdade entre filhos.
Nos dias atuais, família significa muito mais do que o laço sanguíneo, significa
o laço de afeto e este existe independentemente da sobrevivência do pai. O princípio
da segurança jurídica em relação aos herdeiros não pode sobrevir ao princípio do
45

melhor interesse da criança, que se mostra mais importante à medida que a situação
lida com crianças que precisam ter o seu direito à filiação e à herança reconhecidos.
O presente trabalho buscou informar ao leitor aspectos acerca do direito
sucessório, da reprodução assistida e do direito de família, fazendo uma análise
crítica à ausência de legislação no direito pátrio acerca da capacidade sucessória da
criança nascida de uma inseminação post mortem. Essa ausência precisa ser
suprida o quanto antes para não deixar de lado a questão dos embriões
criopreservados.
46

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, José Luiz Gavião de. Código Civil Comentado: direito das sucessões.
São Paulo: Atlas, 2003, p.104.

AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Novo dicionário Aurélio da Língua


Portuguesa corresponde à 3. Ed. 1. Impressão da Editora Positivo, revista e
atualizada do Aurélio Século XXI, O dicionário da Língua Portuguesa, contendo 435
mil verbetes, locuções e definições. 2004. By Regis Ltda.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito: Direito das Sucessões. Vol.


6. 35 Ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

BERNARDO, Felipe Antonio Colaço; CUNHA, Mariana Galvão Rodrigues


da. Aspectos jurídicos da reprodução humana assistida. Revista Jus Navigandi,
ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3588,28 abr. 2013. Disponível
em: <https://jus.com.br/artigos/24261>. Acesso em: 15/11/ 2017.

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Sucessões. 4. Ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1962.

BRASIL. Código Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2002.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de


1988. Brasília, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao>. Acesso em: 10/11/2017.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília, 2002. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em:
1/11/2017.

CAHALI, Francisco José. Curso Avançado de Direito Civil. Vol. 6: Direito das
Sucessões/ Francisco José Cahali. São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2003.

AGUIAR, Ruy Rosado de. Enunciado n. 267 da III Jornada de Direito Civil.
Conselho da Justiça Federal, Brasília. 2003. Disponível em:
<http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/526>. Acesso em: 04/11/2017.

DELFIM, Marcio Rodrigo. As implicações jurídicas decorrentes da inseminação


47

artificial homóloga "post mortem". Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/


portal/conteudo/implica%C3%A7%C3%B5es-jur%C3%ADdicas-decorrentes-da-
insemina%C3%A7%C3%A3o-artificial-hom%C3%B3loga-post-mortem>. Acesso em:
11/11/2017.

DINIZ, Maria Helena. A ectogênese e seus problemas jurídicos. São Paulo: Max
Limonad, 1995, p. 91.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Vol. 5. Direito de Família.
24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.

GIORGIS, José Carlos Teixeira. A inseminação póstuma. 2005. Disponível em:


<http://www.arpensp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MjkwNA>.
Acesso em 2/11/2017.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Direito de Família. São


Paulo: Saraiva, 2012, p. 324.

GUIMARÃES, Luis Paulo Cotrim; MEZZALIRA, Samuel. Artigo 1798. Disponível em:
<https://www.direitocom.com/codigo-civil-comentado/artigo-1798>. Acesso em:
7/11/2017.

HELENA, Maria. Curso de Direito Civil Brasileiro. 17. Ed. 2003.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes. As inovações biotecnológicas e o direito


das sucessões. IBDFAM 24/04/07 Palestra proferida no I Congresso Internacional
de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro "Interpretação do Direito
Civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional", sob a
coordenação científica do Professor Gustavo Tepedino (UERJ), em 23 de setembro
de 2006. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=290>. Acesso
em: 15/11/2017.

LEITE, Eduardo de Oliveira. Comentários ao Novo Código Civil. Volume XXI: do


direito das sucessões, 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.110.
48

LIMA, José Heleno de; CARVALHO, Dimitre Braga Soares de; LIRA, Daniel Ferreira
de. O tratamento jurídico da prole eventual no Brasil: da inquietação sucessória
às indiferenças. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/ ?
n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12152>. Acesso em: 7/11/2017.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito de família, relações de parentesco, direito


patrimonial. In: Código Civil Comentado. São Paulo, Atlas, 2003.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

MAXIMILIANO, Carlos. Direito das Sucessões. Vol. I. Rio de Janeiro, 2016.

MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Os Embriões Humanos Mantidos em


Laboratórios e a Proteção da Pessoa: O Novo Código Civil Brasileiro e o Texto
Constitucional. In: BARBOZA, Heloísa Helena; MEIRELLES, Jussara M. L.;
BARRETTO, Vicente de Paulo. (org.). Novos temas de biodireito e bioética. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003.

PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução Assistida: Inseminação Artificial


Homóloga Post Mortem e o Direito Sucessório. Recanto das Letras. São Paulo, 28
Fev. 2008. Disponível em:<http://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/
879805>. Acesso em: 7/11/2017.

RIGO, Gabriella Bresciani. O Status de Filho Concebido Post Mortem Perante o


Direito Sucessório na Legislação Vigente. Portal Jurídico Investidura,
Florianópolis/SC, 08 Jul. 2009. Disponível em: <www.investidura.com.br/biblioteca-
juridica/obras/monografias/3849-o-status-de-filho-concebido-post-mortem-perante-o-
direito-sucessorio-na-legislacao-vigente>. Acesso em: 11/11/ 2017

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Vol.1. São Paulo, 2012.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. Ed. Porto


Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

SILVA, Reinaldo Pereira e. Os direitos humanos do concebido. Análise


biojurídicas das técnicas de reprodução assistida. Porto Alegre: Síntese
Publicações, 2002, CD-Rom n. 40. Produzida por Sonopress Rimo Indústria e
Comércio Fonográfico Ltda.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4. Ed. Elsevier/Método. 2014.


49

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. 7. Ed. São Paulo: Atlas,
2007.

Você também pode gostar