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FACC – FACULDADE CONCÓRDIA

CURSO DE BACHARELADO EM DIREITO

MARÍLIA DA COSTA

(RE) APROPRIANDO-SE DE SEUS CORPOS:


DIREITO DAS MULHERES AO ABORTO SEGURO E À DIGNIDADE
REPRODUTIVA

Concórdia- SC
2023
MARÍLIA DA COSTA

(RE) APROPRIANDO-SE DE SEUS CORPOS:


DIREITO DAS MULHERES AO ABORTO SEGURO E À DIGNIDADE
REPRODUTIVA

Projeto de pesquisa apresentado como


requisito para aprovação na disciplina curricular
de ***** do Curso de Graduação em Direito da
Faculdade Concórdia – FACC, Sob a
orientação do Prof. Ricardo Utrabo Pereira.

Concórdia - SC
2023
1 DADOS DE IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO

NOME: Marília da Costa


TEMA: (Re) Apropriando-Se De Seus Corpos: Direito Das Mulheres Ao Aborto
Seguro E À Dignidade Reprodutiva
ÁREA DE PESQUISA: Direito Civil
ORIENTADORA DO TCC I: Ricardo Utrabo Pereira
ORIENTADOR DO TCC II: Ricardo Utrabo Pereira

2 TEMA

(Re) apropriando-se de seus corpos: direito das mulheres ao aborto seguro e


à dignidade reprodutiva.

Para discorrer sobre o aborto é preciso rever a complexidade do ser humano


como um todo, bem como fazer um estudo sobre a condição humana, controle sobre
sua existência, como indivíduos e enquanto espécie. É um tema extremamente
censurado, pois, envolve questões políticas, sociais e religiosas e sempre que
exposto para a sociedade não se faz democracia, muito menos se discute no meio
legislativo.
O aborto traz reflexos sociais em virtude das discussões que permeiam
somente entre bancadas religiosas conservadoras, pautas politicas visando os
interesses políticos e movimentos liberais, de gênero e feministas que vão para as
ruas para serem ouvidos, por falta de um debate democrático e honesto com a
sociedade, prevalecendo o controle da Igreja e do clero sobre a vida intelectual e
moral, sobre as instituições, serviços públicos e principalmente ao ser humano.
O presente trabalho propõe um debate sobre a discriminação em torno do
aborto, pois, as mulheres abortam independentemente de a Constituição prever leis
que proíbem e punem e independente de causarem na mulher marcas psicológicas,
físicas, jurídicas que atingem famílias e a sociedade de um modo geral.
Portanto, as leis vigentes apenas barram que as mulheres decidam sobre o
aborto seguro e acabam realizando tal procedimento de modo ilícito, causando
riscos para sua vida bem como para sua saúde reprodutiva. A legislação brasileira
do suporte e fornece informações sobre os riscos e proteção em caso de
necessidade.

3 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA

A criminalização do aborto é um assunto de grande relevância social, bem


como no ordenamento jurídico que causa muitos conflitos relacionado ao direito a
vida e ao interesse da mulher. A cerca do aborto, o presente trabalho levanta a
seguinte problematização: É possível a mulher ter opção de escolha sobre seu corpo
e sua vida e isso ser um direito constitucional garantido para todos os indivíduos?

4 HIPÓTESES

Como se controla o corpo da mulher na normatividade patriarcal, seja pela


normatividade estatal em si.
Quando e como deve-se iniciar a tutela jurídica da vida, quando a vida
humana passa a ter interesse para o Direito e para a normatividade estatal.

5 OBJETIVOS

5.1 OBJETIVO GERAL

Investigar os argumentos para justificar a tutela criminal e qual o amparo


constitucional em relação a discriminação do aborto e do direito de a mulher decidir
sobre seu corpo e sua vida.

5.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS


 Fazer uma análise econômica e social a respeito do tema;
 Apresentar quais são os efeitos legislativos;
 Investigar quais são as expectativas sociais da mulher dentro do contexto
cultural;
6 JUSTIFICATIVA

Desenvolver um trabalho nesse âmbito é fundamental em virtude de o Brasil


ter uma legislação igualitária para os homens e para as mulheres, o ordenamento
jurídico assegura e garante a autodeterminação dos corpos, proteção da vida, ao
acesso a saúde e resguardo a liberdade, sendo assim, se tratando do aborto,
mesmo tendo proibições e punições ele acontece, causando muitas vezes danos
irreversíveis para a vida das mulheres que não possuem condições para custear os
procedimentos.
Portanto, é valido destacar que para Figueiredo e Farias (2022) o aborto legal
é um procedimento de interrupção de gestação autorizado pela legislação
brasileira e que deve ser oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de
Saúde (SUS), deve ser permitido quando a gestação apresenta riscos à vida da
gestante, quando a gravidez aconteceu por meio de um estupro, ou quando
diagnosticado morte encefálica do feto.
Sendo assim, com o desenvolvimento do trabalho pretende-se demostrar que
é preciso um novo olhar sobre o direito de a mulher decidir sobre seu corpo e sobre
sua vida, pois, em meio a problemas econômicos, sociais, psicológicos muitas
mulheres procuram procedimentos clandestinos, causando mortes ou deixando
sequelas. Mesmo que existam leis que defendem o aborto legal, muitos profissionais
da saúde são contra e se tratando especificamente dos médicos se recusam a fazê-
lo.
A relevância do presente estudo é buscar formas de chamar a atenção para
tal problema que acompanha a história do homem e do país, e não direcionar o
amplo debate somente para o cenário jurídico. Sendo assim, a escolha do tema
justifica-se pelo fato de a sociedade evoluir em muitas áreas, é válido, se fazer uma
reflexão acerca da mulher, no direito de ter controle sobre seu corpo, isso, evitaria
os altos índices de morte na busca de procedimentos inseguros e do aborto
clandestino, e importante se discutir a questão da mulher ter opção de escolha, pois,
muitas mães não tem apoio familiar ou do parceiro quando descobre uma gravides
que não foi planejada.
7 METODOLOGIA

O presente trabalho é uma pesquisa qualitativa exploratória descritiva. Para


Godoy (2015) a função da pesquisa exploratória qualitativa está em descobrir as
bases e trazer informações que permitam chegar ao resultado esperado, ou que
pelo menos nos permita formular uma hipótese, permite também definir de forma
mais completa o problema de pesquisa, quando colocamos em prática uma
pesquisa exploratória qualitativa, conseguimos ter uma visão geral ou aproximada a
respeito de uma determinada realidade.
A partir dos estudos exploratórios qualitativos são geradas as pesquisas
descritivas, aonde se faz um estudo descritivo, se seleciona uma série de variáveis e
medidas, cada uma delas, independentemente das outras (LÜDKE; ANDRÉ, 2016).
A pesquisa exploratória qualitativa e descritiva é realizada quando o tema que se
quer pesquisar têm pouco embasamento na área, ou seja, foi pouco explorado por
outros estudiosos, também pode ser útil quando surge algo novo ou talvez porque os
recursos são insuficientes para empreender um trabalho mais profundo (GODOY,
2015).
O método de pesquisa é o hipotético-dedutivo, elaborado a partir de reflexões
de quando se deve tutelar juridicamente a vida, selecionando os fatores centrais e
periféricos da argumentação, através de dados empíricos, sequencialmente
analisando o mérito legal. Lüdke e André (2016), descrevem que o método hipotético
dedutivo, consiste em se perceber problemas, lacunas ou contradições no
conhecimento prévio ou em teorias existentes. A partir desses problemas, lacunas
ou contradições, são formuladas conjecturas, soluções ou hipóteses.
Por fim, o embasamento teórico foi realizado por meio de bibliografia, artigos
científicos e eletrônicos, também foram realizadas buscas por intermédio PubMed,
Scielo, e Google Acadêmico, TSJ, TSF, Código Penal Brasileiro, Leis,
Jurisprudências, eleitos os artigos publicados entre os anos de 2012 a 2023, e
excluídos os artigos que não tivessem assuntos relacionados ao tema.
8 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O embasamento teórico abordará conceitos relacionados ao aborto, concepções


históricas sobre o aborto no ordenamento brasileiro, direitos fundamentais, colisão
de direitos fundamentais no aborto, expectativas sociais da mulher, propriedade
sexual e autoderminação do próprio corpo e aborto como exercício de
autodeterminação e dignidade reprodutiva.

8.1 CONCEITO DE ABORTO

A palavra aborto está relacionada ao ato de interromper uma gestação, seja


ela natural ou não. O aborto ocorre antes do feto se desenvolver por completo.
Capez (2014, p.108) descreve que:

O aborto é a interrupção da gravidez com a consequente destruição do


produto da concepção, consiste na eliminação da vida intrauterina, a lei não
faz distinção entre o óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação),
embrião (3 primeiros meses), ou feto (a partir de 3 meses), pois em
qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer
desde o início da concepção até o início do parto.

A palavra aborto vem do latim ab-ortus que significa privação do nascimento a


interrupção voluntária da gravidez com a expulsão do feto do interior do corpo
materno, tendo como resultado a destruição do produto da concepção, assim
também conceitua, ou seja, o aborto é a interrupção do desenvolvimento do feto
durante a gravidez (PIERANDELI, 2015).
O aborto está classificado de acordo com o tempo de gestação e poder ser
espontâneo, acidental ou induzido. Para Nucci (2010) aborto espontâneo, é a
interrupção da gravidez oriunda de causas patológicas, que ocorre de maneira
espontânea. Diniz (2019, p.30) descreve que: “ o aborto espontâneo é geralmente
causado por doenças no curso da gravidez por péssimas ou precárias condições de
saúde da gestante preexistentes a fecundação, alguns exemplos são: sífilis, anemia
profunda, cardiopatia, diabetes, nefrite crônica entre outras.
O aborto espontâneo também pode ocorrer quando o feto ou embrião
apresentar defeitos ou má formações. Aborto acidental acontece quando inexiste
qualquer propósito em interromper o ciclo gravídico, geralmente provocado por um
agente externo, como emoção violenta, susto, queda, ocasionando traumatismo, não
existindo ato culposo, ou seja, negligência imprudência ou imperícia (TELES, 2016).
Belo (2019) discorre que, o aborto espontâneo ou por acidente, não são
puníveis, no primeiro a interrupção espontânea da gravidez, ocorrendo por exemplo,
quando presente alguma anormalidade no crescimento do feto, ou, uma doença
infecciosa, ou ainda um distúrbio glandular, o segundo o aborto acidental, ocorre
com interferência externa involuntária, como por exemplo a queda.
E por fim, se tem o aborto induzido, que para Teles (2016) o aborto induzido é
aquele provocado por uma ação humana, ou seja, a interrupção voluntária de uma
gravidez, pode ocorrer por ingestão de medicamentos ou por métodos mecânicos.
Para realizar o aborto induzido existem duas formas, seguro ou não seguro. Belo
(2019) descreve que:

O aborto seguro aquele que é realizado com devido cuidado médico


indicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), podem ser
classificados em: aborto farmacológico: uso de remédios abortivos que
provocam a interrupção da gravidez e a expulsão do embrião; aborto
cirúrgico: curetagem, dilatação, aspiração. E o aborto não seguro é aquele
que pode causar efeitos graves na mulher, e até mesmo a morte da mãe e
do bebê, a OMS classifica como abortos não seguros aqueles realizados
por indivíduos sem formação e podem ser realizados por meio de:
introdução de instrumentos não cirúrgicos como cabides de ferro, agulhas e
prendedores de roupas no útero; remédios abortivos sem orientação médica
ou de origem duvidosa e clínicas clandestinas.

Nessa ressalva, destaca-se que o aborto não seguro é uma das principais
causas de morte entre as mulheres em todo o mundo. Para Diniz (2019) no Brasil o
aborto não é considerado crime, quando a gravidez representa risco de vida para a
gestante, quando a gravidez é o resultado de um estupro, quando o feto for
anencefálico, ou seja, não possuir cérebro. Sendo assim, a gestante que apresentar
algum tipo de situação como as citadas por Diniz tem o apoio do Estado e tem o
direito a realizar de forma gratuita o aborto legal através do Sistema Único de Saúde
- SUS.

8.1.1 Concepções Históricas Sobre O Aborto No Ordenamento Brasileiro

Na antiguidade, não existia na legislação brasileiro o crime de aborto, pois,


para o Estado a mulher tinha total domínio e posse do seu corpo e poderia sem ter
punição interromper a gravidez a qualquer tempo. Capez (2014) cita que, somente
com o Código Penal do Império de 1830 em que abortar era crime grave contra a
segurança das pessoas e da vida, o aborto foi incluído nos crimes contra a
segurança da pessoa e da vida, em seus arts. 199 e 200, nesses artigos eram
detalhados dois tipos de figura criminosa: Aborto consentido e aborto sofrido, neste
sentido o aborto provocado não era punido.
Segundo Delmanto (2017, p. 56-57) o referido código do Império do Brasil
estabelecia no Art. 199:

Ocasionar aborto por qualquer meio empregado anterior ou exteriormente


com o consentimento da mulher pejada. Pena: Prisão com trabalho de 1 a 5
anos. Se o crime for cometido sem o consentimento da mulher pejada.
Penas dobradas. Art 200. Fornecer, com o consentimento de causa, drogas
ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que este não se verifique.
Pena: Prisão com trabalho de 2 a 6 anos. Se esse crime for cometido por
médico, boticário ou cirurgião ou ainda praticantes de tais artes. Penas:
dobradas.

Sendo assim, entende-se que o Código Penal de 1830 punia apenas o


aborteiro e ficava isento de punição quando o aborto era praticado pela própria
gestante. Para Capez (2014) no Brasil, o código do Império de 1830 nada previa
sobre o crime de aborto, praticado pela própria gestante, mas apenas criminalizava
a conduta de terceiros que realizassem o ato, com ou sem o consentimento dela já
o, código de 1890, passou a prever o crime de aborto praticado pela gestante e
somente com o Código Penal de 1940, que tipificou o crime de aborto provocado,
sofrido, e o consentido.
Somente o Código Penal da República no ano de 1890 considerou como
crime o aborto praticado pela própria gestante. Bitencourt (2017) descreve que
quando o aborto era praticado para ocultar desonra própria a pena não tinha muita
gravidade, este código passou a autorizar o aborto para salvar a vida da gestante,
neste caso, punia eventualmente imperícia do médico ou parteira que culposamente
causassem a morte da gestante.
De acordo com Delmanto (2017, p. 60) o referido Código Penal do Império de
1890 prescrevia:

Art.300 provocar aborto haja ou não a expulsão do produto da concepção.


No primeiro caso: pena de prisão celular por 2 a 6 anos. No segundo caso:
pena de prisão celular por 6 meses a 1 ano. §1º Se em consequência do
Aborto, ou dos meios empregados para provocá-lo, seguir a morte da
mulher. Pena de prisão de 6 a 24 anos. §2º Se o aborto foi provocado por
médico, parteira legalmente habilitada para o exercício da medicina. Pena: a
mesma procedente estabelecida e a proibição do exercício da profissão por
tempo igual ao da reclusão. Art.301 Provocar Aborto com anuência e acordo
da gestante. Pena: prisão celular de 1 a 5 anos. Parágrafo único: Em igual
pena incorrera a gestante que conseguir abortar voluntariamente,
empregado para esses fins os meios; com redução da terça parte se o crime
foi cometido para ocultar desonra própria. Art.302 Se o médico ou parteira,
praticando o aborto legal, para salvar da morte inevitável, ocasionam-lhe a
morte por imperícia ou negligencia. Penas: prisão celular de 2 meses a 2
anos e privado de exercício da profissão por igual tempo de condenação.

Código Penal do Império de 1890 foi fundamental para oficializar o aborto


como crime no Brasil, deu origem a punição para o auto aborto e legalidade para o
aborto quando necessário para salvar a vida da gestante. Foi no ano de 1940 que o
Código Penal de classificou o aborto provocado (CP, art.124 –a gestante assume a
responsabilidade pelo abortamento), aborto sofrido (CP, art.125- o aborto é realizado
por terceiro sem o consentimento da gestante) e aborto consentido (CP, art.126-o
aborto é realizado por terceiro com o consentimento da gestante (DELMANTO,
2017).
Sobre este código Bitencourt (2017, p.129) descreve que:

O código Penal de 1940 foi publicado segundo a cultura, costume e hábitos


na década de 30. Passaram mais de 60 anos, e, nesse lapso, não foram
apenas os valores da sociedade que se modificaram, mais principalmente
os avanços científicos e tecnológicos, que produziram verdadeira revolução
na ciência médica. No atual estágio, a medicina tem condições de definir
com absoluta certeza e precisão, eventual anomalia, do feto e,
consequentemente, a viabilidade da vida extrauterina. Nessas condições, e
perfeitamente defensável a orientação do anteprojeto de reforma da parte
especial do Código Penal, que autoriza o aborto quando o nascituro
apresentar graves e irreversíveis anomalias físicas ou mentais, ampliando a
abrangência do aborto eugênico ou piedoso.

Portanto, no decorrer da história da humanidade, muitas mudanças foram


feitas para classificar e definir o aborto no ordenamento brasileiro, mas, foi após a
revolução industrial com as inovações científicas e tecnológicas que muitas
transformações aconteceram, historicamente essas mudanças se mostraram
inevitáveis, pois, o ordenamento precisa acompanhar as transformações sociais,
políticas e culturais do país.

8.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS


A constituição Federal descreve em vários artigos sobre os direitos
fundamentais, para Bahia (2017) estão dispostos no Título II, Dos Direitos e
Garantias Fundamentais, bem como em diversos outros artigos espalhados pela
Constituição, são os direitos mais importantes para todo ser humano como direito à
vida, à segurança, à liberdade, por exemplo.
O Título II da Constituição menciona direitos e garantias fundamentais;
direitos seriam disposições declaratórias legais que imprimem existência e tutela de
um determinado bem jurídico e a todo direito implica um dever; já as “garantias” não
seriam propriamente direitos garantidos às pessoas, mas sim às instituições, como,
por exemplo, a maternidade, a família, dentre outros, (BAHIA, 2017).
Os direitos fundamentais estão relacionados diretamente com o direito a
dignidade humana, Moraes (2017) descreve que os direitos fundamentais são o
conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por
finalidade básica o respeito a sua dignidade, por meio de sua proteção contra o
arbítrio do poder estatal, e o estabelecimento de condições mínimas de vida e
desenvolvimento da personalidade humana pode ser definido como direitos
humanos fundamentais.
Os direitos fundamentais acompanham o homem no decorrer da história,
surgiram para que o homem tivesse garantias aos direitos humanos fundamentais.
Para Moraes (2017, p. 78) os direitos fundamentais podem ser:

Individuais e coletivos, que são aqueles relacionados ao conceito de pessoa


humana e de sua própria personalidade como direito à: vida, dignidade,
liberdade, honra, segurança, dentre outros e estão previstos em maior
número no art. 5o da CRFB/88 embora não se encerrem por ali, também
tem-se os direitos sociais (art. 6o a art. 11), os direitos de nacionalidade (art.
12), os direitos políticos (art. 14 a art. 16), os direitos de organização em
partidos políticos (art.17), por fim, tem-se: direitos econômicos (art. 170),
direitos ambientais (art. 225), direito à educação (art. 205), direitos à saúde
(art. 196), dentre outros direitos.

Mendes e Branco (2017) elencam que os direitos fundamentais exercem


funções de direitos: de defesa, de prestação e de participação. A função de direitos
de defesa tem como característica impor ao Estado um dever de abstenção, de não
interferência, de não intromissão no espaço de autodeterminação do indivíduo,
sendo essa função a de impor limites à figura do Estado; já a função de prestação
refere-se a uma atuação estatal; enquanto a função de participação diz respeito a
participação do cidadão na vontade política do país, fazendo uso máximo de seus
direitos políticos.
Canotilho (2013) ensina que a principal função dos direitos fundamentais é a
defesa da pessoa humana e de sua dignidade perante os poderes, sendo assim,
destaca-se que os direitos fundamentais são normas reguladoras de relações
jurídicas, são essenciais para o ordenamento jurídico brasileiro.

8.2.1 Colisão de direitos fundamentais no aborto

A colisão de direitos fundamentais no aborto é complexa, pois, existem alguns


bens jurídicos garantidos e tutelados pela Constituição Federal como o direito à vida,
direito primordial de todo o ser humano, liberdade, igualdade, autonomia,
privacidade, dentre outros, sendo assim, é nítido que esses bens poderão se
encontrar em colisão ou conflito. Para Moraes (2017) o conflito entre direitos e bens
constitucionalmente protegidos resulta do fato de a Constituição proteger certos
bens jurídicos que podem vir a envolver-se numa relação de conflito ou colisão.
Uma alternativa para solucionar esses conflitos é conciliar as normas
constitucionais, para que todas tenham aplicabilidade. Para Mendes e Branco (2017)
fala-se em colisão de direitos fundamentais quando se identifica conflito decorrente
do exercício de direitos fundamentais por diferentes titulares. A colisão pode
decorrer de conflito entre (a) direitos individuais, (b) direitos individuais e bens
jurídicos da comunidade, e (c) entre bens jurídicos coletivos.
Para Garcia (2015) será divisada a colisão de direitos quando o seu exercício
por diferentes titulares gerar uma situação de incompatibilidade entre a liberdade de
expressão e direito à honra; direito do feto à vida e direito à intimidade da mãe que
pretende interromper a gravidez etc. ao contemplar uma série de direitos
potencialmente colidentes e necessariamente coexistentes, a Constituição anui com
a adoção de medidas que permitam a sua concordância prática.
Para solucionar a colisão e os conflitos entre os direitos fundamentais é
preciso usar a técnica da ponderação. Garcia (2015) cita que deve-se buscar uma
harmonização entre os direitos, sempre que possível, pela atividade interpretativa,
de acordo com a unidade constitucional, não sendo possível a harmonização, far-se-
á a ponderação entre os direitos, atribuindo-se um peso de valores a cada um deles,
o que acarretará, com a prevalência de um deles, a eliminação dos demais.
Com isso, nota-se que o princípio da dignidade acabará limitando alguns
direitos humanos fundamentais. Em relação a colisões de direitos fundamentais no
aborto é preciso analisar o direito à vida do feto versus os direitos das mulheres em
decidir sobre o seu próprio corpo.
Segundo as concepções de Montano (2015, p. 38):

Não há direito mais inerente à condição de ser humano quanto o direito à


vida, sem vida humana não há necessidade de outros direitos e, tampouco,
de um sistema jurídico instituído para resguardá-los, o direito à vida é o
primeiro dos direitos do homem, trata-se de um direito inalienável para o
desenvolvimento de todo o povo livre e soberano, o direito dos direitos, a
liberdade das liberdades.

Sendo assim, é fundamental analisar o ser humano além das perspectivas


celulares e físicas, é preciso fazer uma análise sobre a dignidade humana. Para
Moraes (2017) a vida deve ser protegida por ser o bem maior que o ser humano
possui, sem vida e vida digna, os demais direitos fazem pouco ou nenhum sentido, a
vida humana é anterior ao direito.
É papel do Estado e do ordenamento jurídico, tutelar e proteger a vida
daqueles que atentam contra. Para Diniz (2014) o direito ao nascimento é um direito
fundamental do nascituro e decorre do direito à vida conexo com o princípio da
dignidade humana, a vida é um direito fundamental de todo ser da espécie humana,
não importando em qual fase da vida se encontre, pois, o ser humano encontra-se
em desenvolvimento desde o instante em que a vida inicia (concepção) até o
instante em que a vida cessa (morte).
Portanto, não importa em qual fase da gestação a mulher está, tanto o
embrião como o feto têm o direito de se desenvolver e nascer. O direito de nascer,
que deriva do direito a que a vida humana seja respeitada e protegida por todos,
Estado e particulares, é de titularidade do nascituro, o princípio da tutela do
concebido também é elemento essencial da milenária tradição do Direito Comum,
este princípio é sintetizado pelo brocado medieval Conceptus pro iam natu habetur si
de eius commodo agitur, ou seja, o concebido considera-se já nascido quando for
em seu proveito (VARI, 2015).
O feto não pode falar se quer ou não viver, portanto, segundo Reis (2012, p.
40):

O nascituro tem, inclusive, direitos de “pleitear ação por danos patrimoniais


e extrapatrimoniais, por decorrência das ofensas que poderá sofrer em seu
corpo físico e espiritual, especialmente, quanto ao seu direito de nascer, e
que as lesões no plano físico ou espiritual que atinjam direta ou
indiretamente o nascituro serão consideradas, como ofensas que ferem a
dignidade do nascituro, especialmente quanto ao seu direito de nascer, ora,
a maior dignidade da pessoa é, certamente, o direito à vida, que foi eleita
como norma fundamental no caput do art. 5 o de nossa Carta Magna. Todos
os seres humanos aspiram a viver, superando doenças e deformidades
congênitas ou, decorrentes de múltiplos acidentes.

De acordo com o autor, qualquer ação contra a vida do nascituro violara o


direito à vida, violando o direito da dignidade do ser humano. Para Andrade e
Conrado (2012, p. 89), o direito à vida e à vida digna, segue com o direito de existir e
prossegue com o direito de nascer, segundo pode-se conferir abaixo: O direito à
existência digna integra o núcleo da vida humana, inclusive do conceptus,
resguardando-lhe o direito de prosseguir na sua evolução natural, partindo do direito
de existir, chegando ao direito de nascer e, após, os demais direitos ínsitos à
proteção da vida humana: o direito à integridade físico-corporal, o direito à
integridade moral, o direito à filiação e o direito à privacidade.
Percebe-se que com as transformações históricas e sociais novos direitos
foram surgindo, novas concepções a respeitos das mulheres também foram
elaboradas, inclusive sobre o seu papel social como está descrito no próximo tópico.

8.2 EXPECTATIVAS SOCIAIS DA MULHER

Quando se fala no poder de escolha e decisões, a mulher nunca teve muito


espaço, Perrot (2016) descreve que no século XVIII ainda se discutia se as mulheres
eram seres humanos como os homens ou se estavam mais próximas dos animais
irracionais, elas tiveram que esperar até o final do XIX para ver reconhecido seu
direito à educação e muito mais tempo para ingressar nas universidades. No século
XX descobriu-se que as mulheres têm uma história e, algum tempo depois, que
podem conscientemente tentar toma-la nas mãos, com seus movimentos e
reivindicações.
Tiburi (2016) descreve que os gregos descreviam que a mulher tinha somente
a função de reprodutora, Aristóteles foi quem mais se destacou como machista
descrevendo que a mulher está mais próxima dos animais que dos homens, elas
são modelagens inacabadas, imperfeitas, e os homens, estes sim símbolos da
perfeição e finalização.
Sendo assim, desde a antiguidade a mulher estava relacionada as emoções e
o homem a razão. Tiburi (2016, p. 78) cita que:

O pensamento aristotélico foi orientador, na condição de clássico que é, do


que se considera na diferença de sexos na ocupação de posições de poder
e espaços decisórios, sendo tal pensamento justificador da dicotomização
dos espaços uma vez que à mulher em sua inferioridade na participação
necessária na reprodução humana, tem-se que o local adequado seja o da
reclusão em casa, no espaço da vida zoé (vida animal, estruturante, de
procriação, tal qual escravos e animais, em âmbito privado), enquanto ao
homem, por ser o acerto da natureza (é possível que haja uma mulher
inteligente, mas tão somente como exceção, já que é fato contranatural),
fica reservada a vida da pólis, a vida do cidadão, vida pública – que aos
gregos é o que realmente importa.

Na idade média, aos poucos a mulher começou a participar da vida pública e


social da nobreza, mas sempre vista como um erro. Del Priore (2011) cita que
Rousseau se refere à mulher na obra Emílio, onde disserta sobre a formação e
educação de meninos, já que as meninas não precisam ser educadas desde a
infância à vida adulta, formando o homem político preparado para a sociedade
europeia que se forma em razão de seus tempos revolucionários.
Sendo assim, entende-se que para o autor as mulheres não deveriam ser
visíveis, pois são sinais de vergonha e desonra. Mary Woollstonecraft teria
discussões sobre a igualdade de oportunidades e a defesa de uma educação
igualitária para homens e mulheres até certa idade, como defeso em sua obra
Reivindicação dos Direitos das Mulheres, considerado o primeiro grande manifesto
feminista, devendo ser lido guardadas as proporções do período histórico (PERROT,
2016).
A autora em seu livro confronta as indiferenças em relação aos sexos e isso
marca o progresso da civilização, tornando-se essa diferença insignificante. Para
Lino (2018) Immanuel Kant, figura central da filosofia moderna, por sua vez, dá às
mulheres a condição de naturalmente servirem para enfeitar, associa as mulheres
ao belo, e os homens.
Lombroso e Ferrero (1903) cientificamente afirmam que a principal
inferioridade da inteligência feminina em relação à masculina é a deficiência da
potência criativa. Existem várias passagens históricas negativando a imagem da
mulher pelo fato ela não estar associada ao poder e sim à loucura e s
inconfiabilidade.
De acordo com Denora (2018, p. 78):

A maior parte dos homens que apoiavam a Revolução Francesa, não


achavam que a liberdade, a fraternidade e a igualdade estendiam-se às
mulheres, e que, apesar de sua importância considerável para a
consolidação da Revolução, deveriam voltar para a vida doméstica, onde
desfrutariam dos benefícios da Revolução sem subverter a ordem natural
das coisas, como o papel das mulheres fora relegado ao lar, suas primeiras
lutas estavam relacionadas com os seus interesses de donas de casas,
reivindicando o controle dos preços e que o Estado tivesse postura mais
protetiva com os menos favorecidos. Suas reivindicações não foram
atendidas.

O livro Segundo Sexo, escrito por Simone de Beauvoir foi o marco do


feminismo, foi ela quem desestrutura a natureza feminina e observa a questão de
secundarização da mulher ao longo da história, ela retira a marcação biológica como
destino naturalizada em lugares comuns reiterados pelo tempo e vestidos de
cientificidade pela construção misógina ainda dominada pela produção masculina
(BEAUVOIR, 2016).
Para a autoras as mulheres são marcadas pelo sexo e vão se transformando
e se construindo como mulher no decorrer dos anos. A humanidade é masculina, e o
homem define a mulher não em si, mas relativamente a ele; ela não é considerada
um ser autônomo, ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o
“sexo” para dizer que ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para
ele a fêmea é sexo, logo ela o é absolutamente (BEAUVOIR, 2016)
Inevitavelmente a questão da igualdade de gênero, conduz a perguntas no
sentido de busca de uma identidade feminina, nesse sentido, em meio a tantos
questionamentos a identidade do que é ser mulher passa então por uma crise.
Nesse sentido, Butler (2015), em Problemas de Gênero, cria um diálogo entre
sexo e gênero justamente para problematizar a questão da identidade, portanto, o
papel dessa identidade não pode simplesmente ser negado, portanto uma
identidade feminina, no contexto do feminismo em nossa cultura é uma identidade
histórico-circunstancial que deve ser pensada em termos políticos.
De acordo com Butler (2015), ser mulher é um dever de autoafirmação e
somente assim cabe proceder se isso servir como estratégia política, ela nega tanto
o gênero como o sexo, considerando ambos construção cultural da humanidade.
Nesse sentido, as Ciências Jurídicas e teorias democráticas tornam-se importantes
para o desenvolvimento de uma sociedade plural entendidas sob uma perspectiva
feminista do Direito aonde a democracia representa as invisíveis no decorrer da
história.

8.3 PROPRIEDADE SEXUAL E AUTODERMINAÇÃO DO PRÓPRIO CORPO

Quando se trata da mulher, muitas reflexões vem a toda em relação aos seus
corpos e em relação a posição social, para Perrot (2016) a diferença dos sexos que
marca os corpos ocupa uma posição central na história, haja vista que não é o
mesmo ser mulher na idade média e ser mulher no século XXI (PERROT, 2016, p.
41).
Muitas atribuições foram dadas para as mulheres como a de ser mãe, ficar
mais tempo dentro de casa que os homens, ser a pessoa responsável pelas tarefas
domesticas, cuidar dos filhos. Perrot (2016) cita que desde muito jovens seus
processos de aprendizado são dedicados ao “cuidar”. Por muitos longos anos a
mulher tinha que seguir os preceitos religiosos e negar seus desejos e sexualidade e
estar voltada somente para a fé.
Para Tiburi (2018, p. 50):

O poder patriarcal é exercido através da violência, seja física ou simbólica


aos corpos das mulheres, a virgindade das moças é cobiçada, cuja
obsessão na preservação de tal “qualidade” é uma tarefa social e familiar,
implicando desgraça àquela que sucumbe aos desejos da carne. Infeliz
daquela que se deixa capturar. Torna-se para sempre suspeita de ser uma
mulher fácil. Uma vez deflorada, principalmente se foram muitos os que o
fizeram, não encontrará quem a queira como esposa. Desonrada, está
condenada à prostituição. No século XIX, somente o estupro coletivo é
suscetível de punição pelos tribunais. No caso de estupro cometido por
apenas um homem, a jovem (ou a mulher) é quase sempre considerada
complacente: ela poderia ter-se defendido. O Estupro é julgado em tribunais
correcionais, a título de agressão com ferimentos”. Será qualificado como
“crime” pela lei apenas em 1976.
O estupro demostra claramente a diferenciação e força machista, pois, a
mulher além da violência sofrida, é humilhada e oprimida aonde o masculino no ato
sente-se dominador do corpo da mulher, machucando-a e muitas vezes autoriza
ainda sua divulgação em vídeo, como forma de vitória e triunfo comprovada num
ritual de virilidade, como exemplificativamente ocorreu no caso da jovem que teria
sofrido estupro coletivo por cerca de 30 (trinta) homens, no Rio de Janeiro
(WEIGERT, 2017).
Sabe-se que para o homem, a mulher é um fetiche, em sua mente sua
identidade relaciona-se somente ao corpo e ao sexo. No decorrer da historia o
mundo tem duas referências de mulher, segundo Denora (2018, p. 90-91):

Por um lado Joana D’Arc adentrou historicamente como figura de liderança


louvada como donzela heroica, símbolo de pureza e inspirada nas virtudes
da mãe de Cristo e posteriormente considerada santa pela Igreja, num ato
de mera culpa após queimá-la na fogueira da Inquisição por se vestir como
homem e a Cleópatra, por sua vez, sempre que retratada, não obstante ser
exímia estrategista política, que fica relegado a segundo plano, tendo seus
predicados de sedução sempre citados como meio para manutenção de seu
poder, necessariamente vinculando a mulher a seu corpo para se estar em
evidência.

A partir do século XX o casamento passou a ser romantizado, aonde o amor


acontecia, mas, o problema que as mulheres saiam da dependência dos pais e
passavam a ser dependentes do marido, no qual deveriam cuidar da casa aonde
moravam e dar filhos. Para Del Priore (2011) a maternidade retira a sensualidade
da mulher e a coloca no patamar sacralizado de mãe, cuidadora, que se nega pela
prole, e tal negação é em todos os aspectos da sua vida: em sua condição feminina,
na negação das possibilidades de progressão de carreira, se negar como sujeito.
A partir do século XX a sua identidade passa a ser definida como mãe, tornar-
se mãe é uma dádiva e um desejo de muitas mulheres, que depositam suas
expectativas nesse momento da vida, e o aguardam com ansiedade, a maternidade
é uma realidade multiforme; é fonte de identidade e diferenciação reconhecida, é um
momento e um estado, portanto a necessidade de se promover o sentimento
maternal, que foi delineado e generalizado a partir dos séculos XVIII e XIX como
método de poder e controle (DENORA, 2018).
Para Perrot (2016) como a função materna é um pilar da sociedade e da força
dos Estados, torna-se um fato social, a política investe no corpo da mãe e faz do
controle da natalidade uma questão em evidência. Em todas as ações do homem,
sejam públicas, privadas, midiáticas, educativas, quando se fala em “mulher” a
primeira palavra que relaciona-se diretamente é ser “mãe”.
Del Priore (2011) cita que a mulher é um ser assexuado envolta do útero com
uma única função: ser mãe, como ninguém foi perguntar a elas sobre tal condição
posta de maternidade, com frequência se conheceu a recusa a tanto, na França do
Século XVII infanticídios e abortos eram bastante praticados, inclusive como método
de regulação de natalidade, o infanticídio era uma prática rural que também ocorria
nas cidades, não obstante sua maior dificuldade, e foi veementemente reprovado a
partir do século XIX, o aborto, no entanto, era muito mais tolerado, posto que o feto
não representava nada.
Segundo Perrot (2016, p. 71):

Parteiras, curandeiros, médicos clandestinos, prestavam-se a tal prática,


mas o faziam às ocultas e em condições sanitárias quase sempre
deploráveis, ligadas à clandestinidade, Era praticado não somente por
mulheres que não eram casadas, mas também por mães de família
multíparas que viam no aborto o único meio de limitar o tamanho de uma
família que elas consideram já suficientemente numerosa. Após a
hecatombe da Primeira Guerra Mundial, as leis de 1920 e 1923 reforçam
uma repressão que visa não somente a coibir o aborto, mas também a
propaganda anticoncepcional, que tem muita dificuldade em se fazer ouvir.

Percebe-se que no Brasil, o anticoncepcional passou também a ser um


método contraceptivo com a finalidade de repovoar o Estado, sendo assim, para
Tiburi (2018) a vedação do aborto no Brasil implica na obrigação de levar a gravidez
adiante, portanto, no Brasil a maternidade é compulsória porque a partir do momento
em que a mulher se vê grávida a ela não cabe mais decidir se aquele é ou não um
bom momento para ela suportar uma nova vida em sua vida.
Sendo assim, é valido destacar que no Brasil o aborto não existe a
legalização do aborto e também se tem poucos investimentos em creches publicas
tornando-se obrigatório a mãe ser mãe, independente dela ter condições financeiras
de assumir a maternidade ou não. Para Perrot (2016) essa é mais uma forma de
dominação nos corpos das mulheres exercidos pelo Estado, posto que gerar uma
nova vida imputa custos sociais e econômicos elevados.
Assumir a maternidade impacta diretamente mulheres de classe baixa, negras
e sem escolaridade causando instabilidade, e mesmo com a carga exaustiva
acabam optando por assumir empregos instáveis como babas, domesticas, diaristas
para gerar renda. Denora (2018, p. 96) descreve que:
A história nos é narrada como se somente a partir da década de 1960 as
mulheres foram trabalhar, o que é uma inverdade, nem mesmo tal ocorreu
após/durante a Segunda Guerra pela necessidade de mão de obra bélica,
as mulheres sempre trabalharam, o problema é que seus ofícios não
tinham valores econômicos, do trabalho doméstico passaram a ser alocadas
no mercado e pagas por sua mão de obra, inicialmente em trabalhos
menores como cuidadoras, enfermeiras, secretárias, professoras do ensino
fundamental e magistério e mais recentemente em cargos mais nobres,
como cargos de liderança, médicos, advogados, etc.

Sendo assim, cabe ao Direito e ao Estado controlar os atos machistas e


investir em políticas públicas voltadas a conscientização do espaço da mulher na
sociedade e no seu direito em ter poder de decisão sobre sua vida e seu corpo e
seus atos, também mantê-la em ambientes estruturados longe de preconceitos e
sem perder a sua essência feminina.

8.4 ABORTO COMO EXERCÍCIO DE AUTODETERMINAÇÃO E DIGNIDADE


REPRODUTIVA

O aborto é um tema complexo perante a sociedade, sendo assim, limitar o


direito da mulher em realizar um aborto seguro é ferir a sua integridade de forma
integral, como nos descreve Biroli (2016, p. 9-10):

A decisão sobre realizar ou não um aborto incide diretamente sobre a


integridade física e psíquica das mulheres, é sua condição de sujeito
autônomo, de sujeito responsável por sua própria vida, que é colocada
em questão quando as normas correntes retiram dela essa decisão,
motivações de caráter moral e religioso são ativadas para justificar que
cerca da metade da população, as mulheres, seja privada do direito
básico a tomar decisões sobre o que se passa no seu corpo. A noção
liberal de “propriedade de si”, importante na construção de sentidos
para a individualidade e na determinação de direitos civis no mundo
moderno, permanece frágil diante de legislações que criminalizam o
direito das mulheres ao aborto. De uma perspectiva democrática, há
inconsistências sérias se uma sociedade se orienta por normas que
determinam a igualdade entre mulheres e homens como cidadãos em
alguns âmbitos da vida social e política, mas chancela uma
compreensão desigual e hierárquica da sua condição de agentes
morais.

Sendo assim, entende-se que a mulher deveria ter o direito de decidir


sobre seu corpo e sobre a decisão de abortar e isso seria um direito enquanto
cidadã, assim, como o homem tem total domínio sobre seu corpo e seus atos.
Biroli (2016) destaca que o direito das mulheres de definir o que se passa com
seu corpo e qual será sua trajetória é construído como oposto à preservação da
vida (do feto) e, nesse sentido, como uma espécie de direito de morte.
Nessa ressalva percebe-se que o direito à vida tem peso muito forte
quando se trata do aborto e fundamenta-se nas questões religiosas e
históricas. Scavone (2018) explica que de um lado, esse reconhecimento pode
ser importante para expor as estratégias dos grupos religiosos, que restringem
o sentido da vida, procurando construir negativamente as posições favoráveis
ao direito ao aborto, de outro, parece importante deixar claro que a história das
garantias políticas seculares aos indivíduos está baseada fundamentalmente
em uma valorização ímpar da vida de cada indivíduo.
Com isso se posiciona no sentido de que o aborto não ser criminalizado é
uma das condições de dignidade e valorização da vida das mulheres já existentes,
que como cidadãs devem ter garantidas sua integridade física e psíquica, tal
reconhecimento de cidadania da mulher como tal parte da premissa necessária de
considera-la parte fundamental da construção de um Estado Democrático de Direito
inclusivo, e não apenas um meio de fomento populacional desse Estado (BIROLI,
2016).
Pensando na contemporaneidade, o aborto é uma questão de direito
individual, das lutas em busca do direito da mulher voltadas a autonomia e
liberdade de escolha. Scavone (2018) explica que o aborto trata do princípio
democrático liberal do direito que se difundiu internacionalmente a partir dos países
centrais e marcou as lutas feministas relacionadas à sexualidade, à contracepção e
ao aborto, manifestando-se que a apropriação do corpo também significava para as
mulheres a possibilidade da livre escolha da maternidade.
No caso brasileiro, essa influência foi clara no início do feminismo
contemporâneo (1970/85) e, posteriormente, será ressignificada na adoção do
conceito de direitos reprodutivos, a partir de meados dos anos 1980, considerar
esse direito na perspectiva da expansão dos direitos humanos – como é tido
pela corrente feminista brasileira dos direitos é aceitar sua ascendência nos
direitos individuais que nos remete à apropriação do próprio corpo (SCAVONE,
2018).
Destaca-se que a dignidade da pessoa humana é a base do direito
fundamental de liberdade, Ferrajoli (2014, p. 85) descreve que:
Se tratando da mulher é necessário a existência de direitos fundamentais
exclusivos das mulheres, com base em seus direitos reprodutivos pela
diferenciação biológica, por tratar-se de um direito que é ao mesmo tempo
fundamental e exclusivo das mulheres por motivos múltiplos e bem
fundamentados: (a) porque forma um todo com liberdade pessoal, que não
pode deixar de envolver a autodeterminação das mulheres para se tornar
mãe porque expressa, o que John Stuart Mill chama de "soberania" de cada
um sobre a própria mente e o próprio corpo; (b) porque qualquer decisão
heterônoma, justificado por interesses alheios aos das mulheres, equivale a
uma lesão no segundo imperativo kantiano no qual ninguém pode ser
tratado como um meio ou instrumento, ainda que de procriação, para fins
não próprios, mas somente como um fim em si mesmo; (c) porque, em
suma, ao contrário de qualquer outra proibição criminal, a proibição do
aborto equivale a uma obrigação – a obrigação de tornar-se mãe, suportar a
gravidez, dar à luz, criar uma criança - em contraste com todos os princípios
liberais do direito penal.

Abortar e não ser mãe não é apenas uma liberdade fundamental negativa,
mas, para Ferrajoli (2014) se trata de uma imunidade de construções e servidões
pessoais que é complementar a uma liberdade positiva fundamental: o direito-
poder de gerar, trazer pessoas ao mundo, que é um poder, por assim dizer, de
natureza pré ou meta-jurídica, pois é o reflexo de um poder natural inerente
exclusivamente à diferença feminina.
Portanto é preciso de obrigações públicas sobre o direito de liberdade,
bem como garantias voltadas a assistência e cuidados para o momento do
aborto e não somente da maternidade como visivelmente acontece. Mendes
(2017) destaca que homens e mulheres não são juridicamente iguais no quesito
de direitos reprodutivos, tal defesa de diversidade de tratamento em relação ao
sexo não contradiz o paradigma normativo da igualdade e é justamente através e
pela igualdade que deve ser reivindicado.
Ferrajoli (2014) descreve que o direito à maternidade voluntária como
autodeterminação das mulheres sobre o próprio corpo pertence exclusivamente
a ela, onde a decisão de trazer ou não trazer ao mundo através de um corpo
feminino também foi subordinada ao acordo com os potenciais pais, a decisão
dos mesmos seria sobre o corpo de outra pessoa e equivaleria ao exercício de
um poder do homem sobre a mulher que violaria ao mesmo tempo a liberdade
das mulheres e o igual valor das pessoas.
Se tratando da descriminalização do aborto a Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental nº 54 - ADPF 54, é a decisão final produzida em um
processo judicial que tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) que garantiu, no
Brasil, a interrupção terapêutica da gestação de feto anencéfalo, sendo
um precedente que contribuiu para a formação de uma jurisprudência sobre o tema
no Brasil. A decisão do STF não descriminaliza o aborto, bem como não cria
nenhuma exceção ao ato criminoso previsto no Código Penal Brasileiro, a ADPF 54
decidiu, porém, que não deve ser considerado como aborto a interrupção
terapêutica induzida da gravidez de um feto anencéfalo (BRASIL, 2023).
As discussões da ADPF 54 é considerada como uma decisão judicial
fundamental para o modo como o debate sobre o aborto é tratado no Brasil, torna-
se um divisor de águas se tratando da opinião pública brasileira. Para Friedan
(2019, p. 78-79):

A pretensão da mulher de assumir o domínio do processo reprodutivo


redimensiona o debate sobre o aborto, de modo que a categoria de
autonomia moral se conecte à consciência do prejuízo social impingido
ao “ser” feminino, ainda uma realidade inegável, a sustentação do
direito ao aborto, em caráter fundamental, torna-se robusta pela
referência aos critérios equitativos de justiça, a manifestação de
vontade da gestante representa a única voz que deve ser ouvida
quando se trata da decisão de ter ou não ter um filho.

Portanto, para o aborto se torna legal e deixar de ser crime é preciso


moldar as leis de acordo com os três princípios constitucionais: liberdade,
igualdade e dignidade. Davis (2016) liberdade e igualdade se fundem em seus
papéis protetivos da autonomia individual em contraposição à intervenção do
Estado, como Estado legislativo, na medida em que se afirmam na qualidade
de elementos básicos da dignidade humana e da personalidade moral.
Considerar a dignidade reprodutiva, envolve considerar que a opção pelo
aborto em momento inadequado da vida da mulher seja voltada a fim de que não
impeça gestações futuras desejadas, tratar da defesa da autodeterminação da
mulher e de sua dignidade reprodutiva: que aquela só ocorrerá de fato, como direito
fundamental das mulheres, quando for uma realidade para todas as mulheres,
independentemente de raça e classe, o que somente se confirmará através do
caminho de observância da dignidade reprodutiva da mulher, respeitando seu
desejo de inclusive ser mãe quando em momento oportuno (DAVIS, 2016).
Por fim, percebe-se que o direito de a mulher tomar as suas próprias
decisões em relação ao seu corpo e ao aborto é um assunto com muitos
questionamentos, mas, espera-se que as transformações sociais contribuam para
que o STF e o STJ abram espaços para que novas decisões sejam aceitas pelos
jurisprudentistas objetivando melhorar e ampliar as leis voltadas aos direitos das
mulheres.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

10 CRONOGRAMA DE ATIVIDADES

ATIVIDADES MAR ABR MAI JUN AGO SET OUT NOV


FEV JUL
Escolha do tema e
x x
do orientador
Encontros com o
orientador x x

Pesquisa
bibliográfica
preliminar
Leituras e elaboração
de resumos

Elaboração do
projeto x x

Entrega do projeto de
x
pesquisa
Revisão bibliográfica
complementar
Coleta de dados
complementares

Redação do TCC

Revisão e entrega
oficial do trabalho
Apresentação do
trabalho em banca

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