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DESCONSTRUINDO RASPUTIA: RACISMO, SEXISMO E

GORDOFOBIA ATRAVÉS DA REPRODUÇÃO DE IMAGENS DE


CONTROLE NO FILME “NORBIT”
Renata Argolo dos Santos 1

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo refletir a respeito da experiência de violência
interseccional vivenciada por mulheres negras gordas a partir das representações midiáticas
estereotipadas construídas em torno de suas imagens. Tomando como caso de análise a
personagem Rasputia no filme ‘‘Norbit - uma comédia de peso’’. A obra será analisada à luz
do conceito de imagens de controle, cunhado pela intelectual estadunidense Patrícia Hill
Collins, a fim de analisar os estereótipos violentos reforçados por essa representação, com
foco nos intercruzamentos do racismo, sexismo e gordofobia. Portanto, a partir de uma olhar
crítico e alinhado aos estudos anti gordofóbicos e com um arcabouço feminista negro, busco
desconstruir o percurso narrativo sobre a estética e características morais da personagem, afim
de contribuir com reflexões que auxiliam no aprofundamento e complexibilização do campo
de estudos sobre vivências gordas através de perspectivas interseccionais.

Palavras-chave: Imagens de controle. Gordofobia. Interseccionalidade. Mídia.

1. Introdução

Lançado em 2007 pela DreamWorks, ‘‘Norbit - Uma comédia de peso’’ é um filme


estadunidense roteirizado e estrelado por Eddie Murphy. Seu enredo gira em torno do
personagem Norbit Rice e de sua relação, apresentada como abusiva e absurda, com Rasputia
Latimore, a personagem que analiso no presente trabalho. Tanto Rasputia, quanto sua família,
são representados como um problema não apenas para Norbit mas para toda a cidade. Um
cenário trágico que só começa a mudar com a chegada de Kate Thomas, a ‘‘mocinha’’.
No processo de pesquisa sobre o filme me deparei com um verbete no site Dicionário
Informal (2018) que me chamou atenção, ele indicava o uso da palavra Rasputia como uma
gíria ou xingamento, e a definia como ‘‘[...] além de obesa, [Rasputia] é uma mulher
espaçosa, agressiva, mal-humorada, dominadora, preguiçosa, ciumenta e muito grosseira com
todos ao seu redor’’. É possível observar desde já, que classificá-la como obesa faz parte do
rol de características negativas associadas a ela, elemento central na construção da
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Mestranda e bolsista CAPES com pesquisa em desenvolvimento sobre masculinidades e gordofobia no
Programa de Pós graduação em Ciências Sociais: Identidade, Diversidade e Cultura (PPGCS\UFRB), Bacharela
e Licencianda em Ciências Sociais (CAHL\UFRB), integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Socialização e
Expressões Culturais (ECCOS\UFRB) e do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Lesbianidade, Gênero, Raça
e Sexualidade (LES\UFRB). Email: renataargolo@aluno.ufrb.edu.br, Cachoeira - BA, Brasil.

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personagem. Além disso, o verbete sinaliza o impacto da sua representação na vida fora das
telas, visto que é usada como referência negativa para ofender, com reforço de estereótipos
gordofóbicos, sexistas e racistas, especialmente contra mulheres negras e gordas maiores.
Diante disto, o objetivo desse artigo é desenvolver uma analise da construção estética
e moral da personagem, a partir de um arcabouço teorico feminista negro, através do conceito
de imagens de controle, desenvolvido pela intelectual estadunidense Patrica Hill Collins,
como chave interpretativa em dialogo com estudos anti gordofóbicos, visto que a maneira
como esses elementos se apresentam na construção da personagem é configurada pela
gordofobia como violência que interage com as demais intersecções de raça, classe e gênero.
Patricia Hill Collins (2019) afirma que o fato de mulheres negras historicamente
desafiarem o status quo teve como resposta punitiva a criação de uma série de estereótipos
negativos sobre elas, estereótipos estes que a autora conceitua como imagens de controle,
elaborações complexas e adaptadas aos contextos sociais, que articulam e perpetuam
opressões. Imagens que são usadas como justificativas ideológicas que visam sustentar
violências interseccionais, ‘‘[...] traçadas para fazer com que o racismo, o sexismo, a pobreza
e outras formas de injustiça social pareçam naturais, normais e inevitáveis [...]’’ (p. 136).
A primeira imagem de controle relevante a narrativa é a da mammie, apresentada como
uma serviçal fiel e obdiente, ligada a exploração domestica de mulheres negras na escravidão
e a sua continuidade atual. A mammie representa um lugar de subordinação ideal, ela é,
segundo Collins (2019), a face pública que a branquitude espera que as mulheres negras
demonstrem. Nesta análise me interessa de maneira particular sua representação imagética
que “[...] é comumente retratada com uma mulher obesa de pele escura e características
tipicamente africanas [...]’’ (p. 158), assim como Rasputia. No entanto, veremos no
desenvolver do artigo que a personagem não se aproxima dos ideais esperados das mammies e
essa é um elemento que identifico como chave para construir sua rejeição perante o público.
A segunda figura usada para analisar Rasputia é a da Sapphire ou, como é mais
comummente conhecida, ‘‘mulher negra raivosa’’. Esse é um estereótipo comum em
produções estadunidenses, que na obra de Collins não se apresenta exatamente com esse
termo, mas elementos centrais desse estereótipo são acionados em duas imagens de controle,
a “dama negra’’ e da ‘‘matriarca negra’’. Segundo a autora, essas duas caricaturas tem em
comum a noção de serem simbolicamente lidas como‘‘castradoras de homens negros’’, ou

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seja, apresentadas como mulheres que assumem uma ‘‘masculinidade’’ indesejada por conta
da sua assertividade, independencia, superioridade financeira e falta de passividade.
Por fim, a Jezebel, ou sua versão moderna a hoochie, diretamente associadas à ideia de
uma sexualidade feminina desviante, com um apetite sexual excessivo e descontrolado,
imagem de controle também oriunda da escravidão, útil para ‘‘justificar’’ exploração sexual.
A manutenção atual da imagem de mulheres negras, especialmente as pobres e periféricas,
enquanto hipersexualizadas e interesseiras continua perpetuando uma série de violências que
Collins (2019) analisa inclusive em exemplos de produções audiovisuais populares.
Além dessa base conceitual, dialogo com análises de minha pesquisa monográfica
(SANTOS, 2021), que também teve como foco aprofundar perspectivas interseccionais a
respeito das vivências de mulheres gordas, bem como artículo análises com a obra da
socióloga estadunidense Sabrina Strings, que argumenta a respeito da relação íntima entre a
ascensão de um padrão de magreza e ideais racistas na colonização dos Estados Unidos.
Por fim, o presente trabalho é desenvolvido em três etapas, onde primeiro analiso a
construção imagética da personagem, seu corpo e a escola das imagens em cena, em seguida
debato mais especificamente sobre a construção moral que caracteriza Rasputia como uma
figura odiada e como etapa final realizo uma breve comparação da construção das
personagens, Rasputia e Kate, que são lidas como ‘‘vilã’’ e ‘‘mocinha’’, a fim de explicitar de
que forma essa narrativa constrói uma representação negativa de mulheres negras e gordas.

2. Construção imagética da personagem

Não há como começar a analisar essa personagem sem dedicar atenção ao fato dela
não ser interpretada por uma atriz gorda, e sim pelo ator Eddie Murphy com o uso do fat suit,
uma técnica problemática e difundida no audiovisual. Fat suit em uma tradução aproximada
pode ser entendido como um ‘‘traje de gordo’’ e consiste na combinação de figurinos,
maquiagem e próteses de silicone para simular um corpo gordo em atores ou atrizes magras.
Seu uso é questionado em primeiro lugar pela perpetuação de um preterimento de
pessoas gordas até em papéis que deveriam representá-las fisicamente e em segundo pelo fato
dessa técnica ser majoritariamente usada de maneira caricata, para construir personagens
gordos ridicularizados, uma situação análoga ao uso do blackface, onde pessoas brancas se
‘‘disfarçavam’’ de negras de maneira estereotipada para a construção de shows racistas.

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Não é a primeira vez que Eddie Murphy faz uso do fat suit em seus filmes, outro
personagem popular que ficou conhecido no Brasil como ‘‘Professor Aloprado’’ é
interpretado pelo ator através da mesma técnica, e também apresenta mensagens gordofóbicas
que mereceriam uma análise própria. Muitas produções famosas de comédia já utilizam o fat
suit, como o exemplo do filme ‘‘O amor é cego’’ (Shallow Hal no original em inglês), além
do exemplo da novela brasileira ‘‘Saramandaia’’ com a personagem Dona Redonda, que tem
um fim que não podia ser mais trágico e gordofóbico, ‘‘explodindo de tanto comer’’.
Murphy é um comediante e ator premiado, com destaque em diversas funções como
dublador, roteirista, produtor, diretor e músico, mas no filme ‘‘Norbit’’ apesar da atuação
surpreendente com três personagens diferentes (Norbit, Rasputia e Sr.Wong) o artista expôs
um conteúdo que além da gordofobia gritante, apresenta também racismo, sexismo,
homofobia e xenofobia, um filme que chegou a lhe render uma Framboesa de Ouro, paródia
do Oscar que elege as piores produções de cinema. Contudo, apesar das críticas
especializadas, o público recebeu bem o filme, que foi sucesso de bilheteria e em 2020 ainda
foi eleito na 8ª posição entre os 10 filmes mais assistidos da Netflix (OLIVEIRA, 2020).
Ao pesquisar sobre o processo de montagem física da personagem me deparei com
imagens das supostas peças usadas pelo ator no filme à venda em um site. Fotos que me
causaram grande impacto, pois pareciam, e de certa forma são, partes mutiladas e expostas de
um corpo negro e gordo. Uma representação que me remeteu às exposições e museus do
século XIX, comuns na Europa, mas não apenas lá, onde corpos considerados anormais foram
expostos ao público, geralmente advindos das expedições coloniais e dos experimentos de
antropologia física, frenologia e outras áreas nascidas de um crescente racismo científico e
outros processo que hoje nomeamos também como capacitistas e gordofóbicos.
A imagem das peças que formam o corpo de Rasputia me recordam a cruel história de
Sarah Baartman, mulher da etnia Khoikhoi que foi trazida da África do Sul para a Inglaterra a
fim de ser exposta em shows que exploravam principalmente o fato dela ter nádegas grandes,
elemento que representava para os europeus um sinal de selvageria, hipersexualidade e
exoticidade. Mesmo após sua morte, Baartman continuou a ser explorada e exposta, partes do
seu corpo foram preservadas para estudo e exposição, seus órgão genitais permaneceram no
Museu do Homem de Paris até 1974, seus restos mortais só foram repatriados em 2002 e um
molde de gesso foi feito do seu corpo antes dele ser dissecado, imagem que apresento abaixo.

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Figura 1 - Corpos expostos

Montagem elaborada pela autora. Na primeira imagem peças de fat suit de Rasputia a venda no site
PropstoreAuction (2022) e ao lado o molde de gesso feito do corpo de Sarah Baartman (PARKINSON, 2016).

Um dos elementos centrais que identifico na representação de Rasputia é o processo


de animaliza-la, uma das estratégias para isso é apresentá-la como portadora de uma força e
resistência que são sobre humanas, como nas cenas em que levanta personagens e os
arremessa para longe, destrói paredes e outras estruturas resistentes, sai ilesa de uma acidente
de carro, entre outras cenas que a mostram como forte, bruta e indestrutível. O que dialoga
diretamente com o estereótipo de que mulheres negras são mais fortes e resistentes à dor e ao
cansaço, principalmente quanto mais retintas são.
Estereótipo esse que quando se refere a mulheres negras gordas ganha outra camada
de complexidade, o que pude observar em minha pesquisa monográfica, ‘‘SOMOS MUITAS:
Uma análise interseccional da gordofobia a partir das vivências de mulheres gordas’’ (2021),
ao debater sobre feminilidade e gordofobia, e analisar como certas mulheres gordas também
são vistas como ‘‘fortes’’, ‘‘brutas’’ e ‘‘grandes demais’’ para receber atenção e cuidado.

Tipo assim, tá na rua e vim com sacola e aí perguntar… Passar algum amigo: ‘Ah,
você é gorda, você aguenta, você é forte, você guenta!’. Ninguém fica: ‘Oh pra ali,
vou ali ajudar’. Não, você é gorda, você guenta, e é punk ouvir esses comentários.
Pior que às vezes se torna contínuo, eu acho que é um dos motivos também que eu
evito muito tá saindo de dentro de casa. [...] Porque eu já fico com medo: ‘Não, eu
vou passar mal. Meu Deus! Se eu passar mal eu vou cair e eu vou ficar lá no chão,

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porque ninguém vai me prestar socorro’. A gente já tem esse medo, já fica com isso
na cabeça [...] (Paula, 21 anos, negra e heterossexual). (SANTOS, 2021, p. 83 )

Para reforçar esse conteúdo imagético, em muitos momentos Rasputia é verbalmente


comparada com animais não humanos. Além de baleia, vaca e jamanta, king kong e gorila são
expressões usada mais de uma vez para se referir a ela, explicitando o encontro de duas vias
de subordinação (CRENSHAW, 2022), onde o racismo e gordofobia atuam de forma conjunta
na maneira como esse xingamento é direcionado a corpos como o dela. Além de Norbit
também associá-la a um leitão guloso que ele interpreta em um teatro de fantoches.
É como um ‘‘animal odiado’’ que Rasputia é ferida e expulsa da cidade na cena
violenta em que o Sr.Wong, que já havia sinalizado sobre seu ‘‘hobbie de caçar baleias’’, atira
um arpão que atinge Rasputia no seu ânus e comemora dizendo ‘‘Bingo, bem no respiradouro
!’’. Essa é uma cena de poucos segundos mas que sinaliza muitas coisas, a mais explícita
delas é o ódio a esse corpo e o tipo de destino humilhante e doloroso reservado a ele, destino
que o filme cumpre tão bem o papel de preparar os espectadores para desejar e celebrar.
A associação de Rasputia a animais não humanos é intrinsecamente ligada ao objetivo
de construir sua personagem com algo monstruoso, o que irei explorar também no próximo
tópico a respeito da sua construção moral, mas pensando ainda na forma como as cenas dela
são produzidas, me chama atenção o uso de momentos considerados grotescos, situações que
tentam reforçar o sentimento de nojo, medo e repulsa a essa personagem. Cenas como as que
ela aparece suja de comida, roncando, peidando, fazendo depilação íntima, entre outras coisas.
Poderia listar e comentar uma série de outras cenas que carregam um conteúdo
extremamente gordofóbico, contudo, com a extensão do presente artigo cabe aqui destacar os
elementos que se repetem nessa construção. Um dos mais óbvios é o reforço da associação de
corpos gordos com a descontrole alimentar, Rasputia aparece comendo em diversas cenas, de
maneiras exageradas e, como comentei acima, com um apelo a causar nojo. Além disso, uma
segunda escolha recorrente é de usar situações de falta de acessibilidade como reforço cômico
das cenas, onde vemos durante todo filme ela se esforçando para caber no próprio carro,
quebrando brinquedos de parques e catracas, fortes gatilhos para pessoas gordas,
especialmente as gordas maiores2 que enfrentam situações análogas em seu cotidiano.

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Gorda maior e gorda menor é uma expressão que tem sido usada, principalmente nos movimentos anti
gordofóbicos, para pensar sobre as diferenças de corporalidade entre pessoas gordas, dando foco principalmente
às questões de acessibilidade que os distinguem e localizam em lugares de discriminação distintos.

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Por fim, desenvolvo aqui minha percepção de como a construção imagética de
Rasputia tem uma ligação com a imagem de controle da mammie, contudo fazendo uma
construção moral reversa, como mecanismo utilizado na trama para gerar um choque de
expectativas no público e causar ainda mais rejeição à personagem. Afinal, apesar de Rasputia
remeter ao que esteticamente ficou fixado como uma ‘‘mãe preta’’, uma mulher gorda e
retinta, ela desvia completamente das características principais que tornam essa imagem
satisfatória para a branquitude, não cumprindo o papel de uma mulher subserviente, maternal
e que abdica do próprio prazer em prol do cuidado de outros, a personagem é oposto disso.
É exatamente a apresentação de Rasputia como uma mulher egoista, insubimissa,
sexualmente ativa, aversa a maternidade e ao cuidado, que causa maior estranheza a esse
corpo que se espera que seja assexuado e servil. O figurino também cumpre esse papel de
deslocá-la, com roupas vistas como sensuais demais para ‘‘alguém como ela’’ e por isso
cômicas. Destaco então para análise, três cenas principais que considero que cumprem bem
esse papel de situar que Rasputia é uma construída no filme como uma ‘‘mammie estragada”.
As duas primeiras cenas carregam um impacto simbólico muito marcante, são as que a
personagem quase cai em cima de menininhas brancas, uma vez propositalmente ao brigar
com crianças no pula pula e outra acidentalmente ao voar em uma piscina depois de descer
em um tobogã no parque aquático. Que mensagem essas cenas querem passar? Elas me
remetem a ideia de que aquele é um corpo perigoso, um corpo que ao ser combinado com
uma personalidade nada servil ou amável representa risco e não a segurança de uma ‘‘mãe
substituta’’, como descreve Collins (2019). Um corpo que pode ser facilmente transformado
em motivo de medo caso assuma a personalidade da ‘‘mulher negra raivosa’’ e nada mais
simbólico que contrapor esse corpo retinto, grande e ‘‘raivoso’’ com a suposta fragilidade e
delicadeza socialmente alicerçadas na imagem de meninas brancas, magras e loiras.
A outra cena diz diretamente sobre o desdém de Rasputia a maternidade. Há uma
passagem do filme em que Norbit diz que vai deixá-la e ela alega estar grávida, comovendo o
personagem e o convencendo a ficar. Contudo, além da gravidez ser falsa,essa informação é
revelada de uma forma que pode ser considerada grotesca e insensível, quando Norbit se nega
a trazer vinho, preocupado com a gestação, Rasputia ''peida'' e diz que esse é o filho que
estava esperando. Assim, a narrativa busca explicitar sua falta de interesse na maternidade,

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elemento que teoricamente poderia redimi-la, ela não quer ser a mammie e ao longo do filme
isso é reforçado pela sua aproximação com outras imagens, como a da Jezebel e da Sapphire.
O que nos leva ao segundo tópico, onde analiso como essa personagem é construída
para simbolizar não só o que hegemonicamente é considerado como um desvio estético, mas
também para explicitar um desvio moral, e consequentemente através dessa combinação,
associar noções extremamente negativas para pessoas com corpos como o de Rasputia.
Afinal, ‘‘há muito o belo se associa moralmente a noções de saúde e bondade, enquanto o feio
é considerado mais próximo das doenças e maldades.’’ (SANTOS, 2021, p. 9).

3. Construção moral da personagem

No tópico anterior me dediquei a pensar significados atrelados a estética de Rasputia, e


como as cenas são construídas para transformá-la num indivíduo abjeto, mas sua
‘‘monstruosidade’’ está baseada não apenas na exposição negativa do seu físico, ela é
resultado da associação do seu corpo a atitudes consideradas também moralmente
monstruosas. Como apontado na introdução, os sinônimos para Rasputia seguem uma linha
bastante negativa, e no filme seu caráter é construído a partir da representação de uma pessoa
folgada, agressiva, descontrolada, mentirosa, manipuladora, enfim, mau em muitos sentidos.
Norbit a define como ‘‘fria, egoísta, cruel, sem coração’’ e no filme esse elemento da
maldade é explicitado através de três relações principais, sua violência contra crianças, idosos
e animais de estimação (mais especificamente um cachorrinho). É muito simbólico a escolha
desses três grupos, tendo em vista que são considerados, de maneira geral, como vulneráveis e
adoráveis, como aqueles que necessitam de maior cuidado, então mais uma vez vemos uma
contradição com o ideal da mammie. Rasputia não só não está disposta a cuidar desses
sujeitos, como é explicitamente violenta com eles. Atropela e deixa paraplégico o cachorro da
vizinha, ataca as e os comerciantes idosos da cidade e as crianças, especialmente as brancas.
A violência vinda de Rasputia e da sua família é uma constante durante toda a
narrativa, eles erguem o império corrupto da Construtora Latimore através de ameaças e
agressões físicas contra todos ao redor. Mas é sobre a violência destinada a Norbit que
gostaria de refletir, pois ela é um elemento importante para explicitar as características das
próximas imagems de controle com a qual analisarei a construção da personagem.

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A angry black woman (mulher negra raivosa) é fruto da construção racista de um
estereótipo que tem perseguido mulheres negras há muito tempo. De acordo com texto do Dr.
David Pilgrim (2012) esse estereótipo retrata mulheres negras como ‘‘rudes, barulhentas,
maliciosas, teimosas e autoritárias’’, mulheres que nos programas de comedia tem como alvo
principal de suas criticas os proprios homens negros. Conhecidas também como ‘‘sassy
mammies’’, essa caricatura ganha fama com o nome de Sapphire a partir do programa de rádio
Amos 'n' Andy , um sitcom racista norte americano de 1928.
Essas personagens continuaram a ser reinventadas em produções audiovisuais,
especialmente nas comédias, e Rasputia cumpre bem esse papel ao ser representada sempre
reclamando, sendo agressiva com todos ao redor e de maneira específica humilhando Norbit
através de xingamentos, ameaças e violências físicas durante todo filme. Mesmo na cena onde
se conhecem na infância e ela salva Norbit de dois meninos que praticavam bullying contra
ele, o que poderia ser o começo de uma relação de cuidado, é na verdade sinalizado como
uma relação de posse, onde ela passa a controlar a vida dele em diversos aspectos.
O controle financeiro de Rasputia também faz parte dessa construção, visto que
Norbit trabalhar na empresa da família dela, cumpre os papéis que ninguém quer cumpri e é
caracterizado no filme como um homem ingênuo, controlado e submisso, um homem que
teria sua ‘‘masculinidade castrada’’ por essa presença que é mais forte e violenta do que ele.
Segundo Collins (2019; 148) ‘‘A imagem da matriarca ou da mulher negra excessivamente
forte também tem sido usada para influenciar o modo como os homens negros entendem a
masculinidade negra.’’, e a rejeição delas enquanto conjuguê envia um sinal a mulheres
negras, e também brancas, sobre como não se comportar. Um sinal de que a assertividade,
força e insubmissão são punidas com a rejeição e a exclusão social por seus pares.
Esse tipo de mensagem não é nova, e a socióloga Sabrina Strings (2014) trás à tona
uma perspectiva muito relevante para pensá-la em sua associação com a gordofobia. De
maneira geral, ela argumenta que em sua pesquisa foi possível localizar na história dos
Estados Unidos a ascensão do comércio transatlântico de escravos e a expansão do
protestantismo como elementos chaves para a consolidação do fetiche pela magreza e da
aversão à gordura, e que esse fenômeno foi usado para legitimar hierarquias de raça, sexo e
classe, através da eleição ou rejeição dos corpos considerados corretos para a nação.

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Segundo ela, a rejeição de corpos negros gordos também faz parte da construção de
ideias hegemonicos de feminilidade intrinsecamente projetados em oposição aos esteriotipos
sobre a suposta agressividade e hipersexualidade de mulheres negras. Assim, ao associarem a
gordura de pessoas negras a incivilidade, selvageria, falta de controle, pecado e imoralidade,
se criam ferramentas que atuam tanto na função de degradar as mulheres negras, quando de
disciplinar as mulheres brancas, que deveriam evitar se comparar a elas, seja na sua
insubmissão, seja nos seus corpos que tenderiam a ser ‘‘grandes e grosseiros”. Assim, ‘‘[...] as
imagens associadas à condição da mulher negra servem como reservatório dos medos da
cultura ocidental, como ‘‘um local de despejo para aquelas funções femininas que uma
sociedade fundamentalmente puritana não conseguia confrontar’’. (COLLINS, 2019, p. 142).
Um discurso que parece ser atualizado na representação de Rasputia, onde sua
sexualidade é outro elemento acionado como sinal de uma construção moral negativa. Como
comentei no tópico anterior, a figura da mammie é idealizada como ‘‘[...] uma mulher
assexuada, uma mãe substituta [...]’’ (COLLINS, 2019. p. 142), diante disto, é possível
compreender como a postura de Rasputia, esteticamente associada a mammie, causa espanto e
rejeição ao demonstrar ser sexualmente ativa. Nesse processo, dois movimentos podem ser
identificados: a ridicularização desse exercício da sexualidade e sensualidade de um corpo
gordo maior e a mobilização de uma noção de hipersexualidade acionada pelo racismo.
A Jezebel ou hoochie está, segundo Collins (2019), sempre em risco de ser imaginada
como uma aberração, principalmente por cruzar a linha arbitrária que divide as expressões de
masculinidades em ativas e de feminilidades em passivas, de maneira que essa imagem é
socialmente masculinizada por seu desejo sexual ativo. Um fenômeno visível no filme, que
insinua não apenas uma ‘‘masculinização’’ de Rasputia, como também uma ‘‘feminilização’’
de Norbit a partir de critérios binários do que deveria ser o comportamento de ambos.
Collins utiliza em seu texto um termo que dialoga muito bem com a apresentação de
Rasputia, que é a de ‘‘sexualmente agressiva’’, uma noção que permeia todas as cenas que
demonstram alguma prática sexual envolvendo a personagem, a exemplo da sequência que
começa com sua lua de mel e mostra ela literalmente voando pra cima de Norbit e sempre
quebrando a cama e o machucando. Além disso, Rasputia também é apresentada como uma
mulher adúltera, que trai Norbit com seu instrutor de dança, sinalizando que seu apetite sexual
é insaciável e que seu caráter moral é questionável também pela traição de um marido fiel.

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Em minha pesquisa monográfica (SANTOS, 2019), debato sobre a noção gordofóbica
de que corpos gordos estariam fora do âmbito da sexualidade, excluídos do desejo, ao menos
publicamente. Tendo em vista que foi recorrente nas entrevistas com as interlocutoras relatos
de parceiros que as desejavam mas exigiam que suas relações fossem escondidas, não
assumidas em público. Além disso, elas relataram ser relegadas a um lugar de fetichização,
elemento também presente na cena final do filme, quando Rasputia, após fugir da cidade,
acaba virando uma stripper no México, em um contexto que parece ser projetado para
sinalizar sua sensualidade como algo desviante, pervertido e passível de ser ridicularizado.
Há outros aspectos de personalidade da personagem que poderiam ser analisados a fim
de explicitar os elementos moralmente negativos que foram empregados em sua construção.
Contudo os exemplos apresentados acima já cumprem com o objetivo do presente tópico,
demonstram como Rasputia é idealizada para ser uma personagem odiada, que além de não
cumprir com os requisitos de um padrão estético hegemônico, também é vista como
desagradavél, folgada e malvada, uma combinação que parece ser naturalizada no filme.

4.Vilã e ‘‘mocinha’’: analisando o contraste entre Kate e Rasputia

A presença de vilãs e ‘‘mocinhas’’ faz parte do universo audiovisual, muitas novelas,


filmes e desenhos desenvolvem sua narrativa através das relações entre essas personagens e
há no processo de decisão de quem pode ocupar cada um desses lugares um padrão estético
que já vem sendo questionado, seja pela exclusão racial, pelo capacitismo, pela gordofobia e
por vezes pelo intercruzamento deles. De maneira geral se segue a lógica dicotômica de
associação do que é hegemonicamente considerado belo e saudável com o bem, e do que é
considerado feio, anormal ou doente com o mal e o filme Norbit não foge a essa ordem.
Aqui me interessa pensar então a construção da figura de Kate Thomas enquanto
oposição ao que Rasputia representa, não apenas fisicamente, mas também em suas
‘‘qualidade morais’’. Kate é extremamente magra, menos retinta e com um fenótipo
considerado ‘‘mais fino’’ do que o de Rasputia, ela sem dúvida é uma mulher negra e como tal
também está objetivada a partir de padrões racistas, contudo em um espectro colorista de
aproximação ou afastamento do ‘‘ideal’’ ela é considerada mais bonita e feminina do que

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Rasputia. Uma lógica de construção de feminilidade, beleza e bondade, baseada em padrões
racistas, sexistas e gordofóbicos, que é acionada para diferenciar as personagens no filme.
Como já apontado por Collins, ‘‘as mulheres mais escuras enfrentam situações em
que são julgadas como inferiores e recebem o tratamento oferecido a uma ‘menina negra
grandalhona do cabelo preto pixaim’.’’ (2019, p. 169). Inclusive, a forma como os cabelos das
personagens são apresentados durante a obra também contribuem nessa distinção e hierarquia
entre as mesmas. Em todos os momentos do filme Kate está com os cabelos extremamente
lisos, compridos e controlados, enquanto Rasputia aparece por vezes com os cabelos curtos e
crespos, principalmente nas cenas em que a narrativa quer reforçar sua ‘‘monstruosidade’’.
Além disso, Kate é adjetivada com características morais muito diferentes, ela é
apresentada como bondosa gentil, aquela que ama as crianças e é cuidadosa com todos ao seu
redor. Essa personagem apresenta, inclusive, uma ingenuidade quase infantil, até nas cenas
em que seus elementos de sensualidade são trazidos à tona. Essas características a posicionam
como dócil e manipulável. Raramente a vemos se posicionando de forma mais assertiva ou
agressiva, exceto em alguns momentos em que rivaliza com Rasputia, ainda assim sendo boa.
Em meio a essa construção de uma ‘‘feminilidade mais adequada’’ e uma
‘‘feminilidade desviante’’, a masculinidade de Norbit também é questionada durante a
narrativa. Assim, é apenas quando ele fica com a ‘‘mulher certa’’ que pode afirmar estar
‘‘sendo homem pela primeira vez’’. Sua masculinidade é deslegitimada por ter um
comportamento apresentado como passivo e submisso, e só começa a se afirmar quando ele
conquista a “mulher troféu”, aquele que lhe garante um status de “homem de verdade”.
Durante o filme é possível localizar muitas cenas que contrastam a experiência de estar
com cada uma delas. O tempo com Kate é marcado por momentos agradáveis, gentileza de
quem os atende, lazer e ternura, enquanto com Rasputia é pela vergonha, medo e frustração.
Um desses momentos é muito simbólico, a ida a um restaurante, onde enquanto no jantar com
Kate, que é muito romântico e receptivo, vemos Norbit sinaliza que não vai mais a esse lugar
com Rasputia, já que ela foi expulsa pelo chef porque havia comido demais em um rodízio.
Como comentado anteriormente, a representação de mulheres negras como muito
assertivas e agressivas também influencia na forma como a masculinidade de seus cônjuges é
caracterizada e por vezes essas mulheres são punidas com o abandono ou o preterimento.

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Processo que quando pensado nas vivências de mulheres gordas, especialmente de gordas
maiores, aciona outros estigmas e exclusões, como analiso em minha pesquisa monográfica.

Ao debater sobre estigma, Erving Goffman (2004) pontua como é comum que se evite
relacionamentos com pessoas que são socialmente estigmatizadas por medo de ser
também marcado por esse estigma. Assim, estar com essas pessoas, caminhar de
mãos dadas na rua ou sentar à mesa de um restaurante com elas é um incômodo, visto
que ‘[...] em certas circunstâncias, a identidade social daqueles com quem o indivíduo
está acompanhado pode ser usada como fonte de informação sobre a sua própria
identidade social [...]’ ( p. 43). (SANTOS, 2021, p.99)

Outras cenas, com o passeio no parque aquático, também exploram experiências


vexatórias associadas a estar com essa pessoa gorda maior. Assim como a cena do pós
casamento, quando Norbit não consegue carregar Rasputia no colo, um símbolo do
matrimônio heteronormativo, irrealizável com aquela parceira visto que se pressupõe sempre
mulheres menores e ‘‘mais delicadas’’ que seus parceiros. Um contraste explícito com o
‘‘final feliz’’ dele casando com a mulher magra e dócil, um símbolo de sucesso.
Assim, a narrativa nos transmite uma mensagem sobre relacionamentos, sobre uma
hierarquia no mercado afetivo e a solidão dos corpos considerados inadequados para viver
um romance. A noção de que há um ‘‘tipo certo’’ de corpo e comportamento para conquista
do relacionamento ‘‘bem sucedido’’, de que para ser amada é preciso se adequar ao mais
próximo possível de um padrão, que no caso das duas personagens não era completamente
comprido nem pela “mocinha”, visto que esse padrão se baseia em um ideal de feminilidade
intrinsecamente ligado a branquitude (COLLINS, 2019; SANTOS, 2021; STRINGS, 2019).
A partir de um olhar pouco crítico sobre a obra pode ser dizer que ‘‘não há como
defender Rasputia’’, que suas atitudes são ruins e ‘‘não é uma questão de preconceito’’,
argumentos que encontrei em comentários sobre o filme em diversas plataformas (youtube,
blogs, redes sociais), tendo em vista que seu comportamento é realmente exposto de forma
caricatural e absurda. Mas cabe perguntar, porque a escolha daquele corpo para dar vida a
essa personagem? Será que comumente vemos o contrário? Quantas ‘‘mocinhas’’ gordas
maiores conhecemos? Quantas protagonistas com histórias de amor bem sucedidas?
Quando esse corpo retinto e gordo maior é ausente de representações positivas e
constantemente enquadrado em papéis degradantes, cômicos e odiosos, há uma mensagem
explícita sendo transmitida a mulheres com esse biotipo, alerta para que tentem ‘‘compensar’’
a existência dos seus corpos, com comportamentos mais dóceis, permissivos, servis. Na

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encruzilhada interseccional, onde esteticamente se exige que ‘‘[...] já que é gorda, seja pelo
menos branca e feminina. Se é negra, pelo menos seja magra ou mais “arrumadinha”.’’
(SANTOS, 2021, p. 56), mulheres como Rasputia são sempre vistas como inadequadas.
Por fim, é relevante compreender como essas imagens são reproduzidas e distribuídas,
seja massivamente vinculadas a uma indústria cultural hegemônica, seja habitando produções
culturais também já subalternizadas. Segundo Collins (2019) os Estados Unidos exportam de
maneira transnacional uma cultura popular vinculada a imagens de controle, como é o caso da
própria obra que analiso neste artigo, que ganhou popularidade no Brasil, compondo também
nossas representações sobre mulheres negras gordas. Como argumenta a autora ‘‘[...] essas
imagens são dinâmicas e cambiantes, cada uma é um ponto de partida para abordarmos novas
formas de controle em um contexto transnacional no qual a comercialização da imagem no
mercado internacional tem sido cada vez mais importante.’’ ( p. 139-140).
Portanto, analisar essa obra é um exercício relevante para refletir a respeito de como a
gordofobia se constrói e articula em um contexto de violências interseccionais e como a mídia
tem um papel de destaque na perpetuação de imagens que servem ao controle dos nossos
corpos e que visam naturalizar relações de opressão, principalmente através dessa lógica que
associa no imaginário social certas estéticas a comportamentos considerados negativos,
impactando diretamente na vivência das pessoas que possuem essas corporalidades.

5.Considerações finais

No presente artigo, que teve como objetivo analisar a construção de Rasputia á partir
do diálogo com o conceito de imagens de controle de Patricia Hill Collins, foi possível
identificar elementos de violência interseccional que se apresentam na construção estética e
moral da personagem, e na narrativa como um todo, que reafirma estereótipos usados contra
mulheres negras e tem como fio condutor uma premissa gordofóbica, ao utiliza como recurso
cômico elementos caricatos sobre sua corporalidade e comportamentos.
Argumento, então, que a quebra de expectativa entre a estética da personagem
associada à imagem de controle da mammie e seu comportamento associado a outros
estereótipos de agressividade, hipersexualidade e descontrole são uma combinação criada para
torná-la mais abjeta ao público. Rasputia não ‘‘compensa nada’’, ela nega os elementos que

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poderiam teoricamente redimi-la. Assim, a personagem parece ser criada apenas para
fomentar uma associação entre sua estética e elementos de personalidade\caráter rejeitáveis.
Não é raro encontrarmos personagens que contribuem com estereótipos a respeito de
grupos subalternizados, analisá-los e desconstruir o seu percurso de criação é relevante para
desnaturalizar as narrativas opressivas que suas representações sustentam. Bem como realizar
análises interseccionais a respeito das vivências de pessoas gordas é urgente a um campo de
estudos anti gordofóbicos crítico e comprometido com realidades diversas. Portanto foi
também a fim de contribuir com essas análises que o presente trabalho questionou e expôs o
humor de um filme que, 15 anos após seu lançamento, já deveria estar ‘‘fora de moda’’.

Referências

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. São Paulo: Boitempo. 2019.

CRENSHAW, Kimberlé. “Documento Para O Encontro De Especialistas Em Aspectos Da


Discriminação Racial Relativos Ao Gênero”. Estudos Feministas, 1/2002. p 171-188.

NORBIT (2007) - Rasputia (Eddie Murphy) Body Lot. PropstoreAuction. 2022. Disponível
em: https://propstoreauction.com/lot-details/index/catalog/22/lot/2924/ Acesso: 04 set. 2022.

OLIVEIRA, Rafaele. ‘Norbit’: apesar de críticas, o filme de 2007 é destaque na Netflix.


FALA UNIVERSIDADES. 2020. Disponível em:
https://falauniversidades.com.br/norbit-apesar-de-criticas-filme-de-2007-destaque-na-netflix/.
Acesso em: 4 set. 2022.

PARKINSON, Justin. The significance of Sarah Baartman. BBC. 2016. Disponível em:
https://www.bbc.com/news/magazine-35240987. Acesso em: 04 de set. 2022.

PILGRIM, David. The Sapphire Caricature. 2012. Disponível em:


https://www.ferris.edu/HTMLS/news/jimcrow/antiblack/sapphire.htm. Acesso em: 10 de set.
2022.

RASPUTIA. Significado de Rasputia. Dicionário Informal. 2018. Disponível em:


https://www.dicionarioinformal.com.br/significado/rasputia/15497. Acesso em: 28 ago. 2022.

SANTOS, Renata Argolo dos. SOMOS MUITAS: Uma análise interseccional da vivência de
mulheres gordas. Monografia (Graduação no Bacharelado em Ciências Sociais) – Centro de
Artes, Humanidades e Letras, Universidade Federal da Bahia. Cachoeira. 2021.

STRINGS, Sabrina. Fearing the Black Body: The Racial Origins of Fat Phobia. NYU Press.
2019.

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