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29/05/2021 Assexualidade, arromanticidade e a falta de representação na cultura pop | Valkirias

Assexualidade, arromanticidade e a falta de representação na


cultura pop
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em agosto 12, 2020

Nós já passamos da discussão sobre se, de fato, representatividade importa. A cada personagem que sai um
pouco do padrão imposto, mais pessoas se identificam com algumas das características apresentadas por ele e
se sentem representadas. A representatividade serve para que as pessoas se vejam e se identifiquem com partes
delas que talvez ainda não conheçam, auxilia discussões e espalha conscientização. Porém, para que ela tenha
um efeito positivo, é preciso que essa representatividade seja bem feita.

Quando se trata da comunidade LGBTQI+ conseguimos observar uma mudança positiva — ainda que lenta —
na forma como esses grupos estão sendo representados na mídia, seja em filmes, livros ou seriados. No
entanto, quando falamos da representação assexual e arromântico, existe não apenas a falta de
representatividade como também uma representatividade mal feita.

A discussão mais recente sobre a representatividade assexual aconteceu quando os produtores do seriado
norte-americano Riverdale anunciaram que Jughead Jones (Cole Sprouse) não seria canonicamente
assexual, como o personagem é retratado na série de quadrinhos, escrita por Chip Zdarsky, desde 2016. Em
paralelo, um comentário que demonstra como precisamos de mais representatividade assexual e arromântico
na cultura veio de Steven Moffat, escritor, criador e produtor executivo do seriado da BBC Sherlock: para ele,
o protagonista de sua série não é arromântico assexual como diversos atores da produção sugeriam, porque
“não haveria tensão, não haveria graça” caso ele assim fosse.

Abordar o sexo e as diversas sexualidades é muito importante para promover discussões sobre a saúde sexual
de todos, porém é preciso entender que a não-atração sexual também é uma questão de saúde. Quando
mantemos os pensamentos de que personagens não podem ser assexuais pois “não teria graça” ou que eles
precisam estar em um relacionamento para que haja um enredo, nós apagamos as narrativas de pessoas
assexuais e arromânticas que podem ou não estar em relacionamentos. É importante lembrar que pessoas no
espectro aro e ace também podem se apaixonar ou apresentar em algum nível uma atração por outra pessoa, e
estas são histórias que também devem ser contadas. É como no livro Tash & Tolstói, de Kathryn Ormsbee,
em que a personagem principal, Tash, é assexual heterorromântica e desenvolve um relacionamento com um
dos personagens; ou no livro Além-Mundos, de Scott Westerfeld, onde Darcy Patel é demirromântica e
possivelmente demissexual, e também desenvolve um relacionamento com outra personagem ao longo da
narrativa.

Por outro lado, quando personagens implicitamente assexuais e/ou arromânticos são retratados nas mídias,
eles são frequentemente desumanizados: personagens não-humanos, como é o caso do Doctor, da série Doctor
Who, e Michael, de The Good Place, são considerados assexuais, como se esta característica não fosse humana.
Há também a percepção de que pessoas que não sentem atração sexual ou romântica são apáticas e frias, e por
isso são muitas vezes retratadas como sociopatas na ficção, como o personagem Dexter Morgan (Michael C.
Hall), do seriado Dexter, um assassino em série que ainda na primeira temporada não mostra interesse sexual
e diz que não entende sexo — importante notar que o personagem ao longo da série é humanizado por meio de

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relacionamentos amorosos e sexuais. Outro personagem que é repetidamente apontado como assexual é Lord
Voldemort (Ralph Fiennes), da série de livros e filmes Harry Potter, o grande vilão, dito ser incapaz de
amar. Ou Sheldon Cooper (Jim Parsons), de The Big Bang Theory, que é indicado como demissexual, sendo
retratado na maior parte da série como alguém que não entende convenções sociais e não demonstra uma
conexão afetiva com ninguém; em diversos momentos os outros personagens brincam que Sheldon não seja
humano pela falta dessas habilidades, mas seu comportamento muda um pouco ao longo da série quando ele
desenvolve um relacionamento com a personagem Amy Farrah Fowler (Mayim Bialik).

A assexualidade na mídia é frequentemente usada como um obstáculo para outros personagens ou como uma
ferramenta de comédia. Em 2003, o programa Late Late Show apresentou um quadro de comédia chamado
“Sebastian, the Asexual Icon”, que contava com comentários maldosos apenas para fazer o seu público rir. Em
2012, na oitava temporada do seriado House vimos a assexualidade ser clinicamente apagada pelo protagonista
House (Hugh Laurie) ao contestar que uma paciente sua seria assexual. O seriado norte-americano Sirens
apresentou, em 2014, a personagem assexual Voodoo (Kelly O’Sullivan), que causou uma discussão dentro
da comunidade ao ver a ambiguidade no seu desenvolvimento: ela é decidida sobre a sua sexualidade e não tem
nenhum problema com isso, mas é questionada por colegas que não acreditam que a assexualidade seja real.
Além disso, sua orientação é usada como um obstáculo que Brian (Kevin Bingley) precisa superar para ficar
com a personagem. No mesmo ano, Game of Thrones indicou que o personagem Lord Varys (Conleth Hill)
poderia ser assexual, ligando esta característica com o fato do personagem ser um eunuco e que a sua falta de
atração sexual lhe fazia ser superior aos outros ao argumentar que o desejo carnal faz mal aos humanos e ele
não quer fazer parte disso.

No Brasil, a representação de personagens assexuais e arromânticos é quase zero. A novela teen Malhação
apresentou em 2009, em sua temporada nomeada de Malhação ID, o Alê (William Barbier), personagem
que se dizia não ter nenhum interesse em garotas como seus amigos e ao longo da trama tenta entender se é
hétero ou gay. Durante a temporada, Alê diz repetidamente que não tem interesse em garotas e que não se
mostra interessado em sexo; o que poderia ser um ótimo início de conversa sobre a assexualidade entre os
adolescentes se o termo usado fosse o correto (a produção usa o termo assexuado para se referir a Alê) e se a
orientação do menino não fosse ferramenta para o desenvolvimento da personagem Maria Cláudia (Isabella
Dionísio) e a sua inabilidade de fazer o jovem “sentir algo”. Quase uma década depois, a temporada de 2017
do programa, Malhação: Viva a Diferença trouxe Guto (Bruno Gadiol) que disse em um dos episódios que
não gostava de sexo e não pensava sobre o assunto como os seus amigos; mesmo sem ter colocado em palavras
a assexualidade do garoto, é claro que ela existe em algum grau. Ao longo da temporada é interessante ver o
desenvolvimento do seu relacionamento com Benê (Daphne Bozaski) e como os dois navegam pela novidade
do relacionamento sem ultrapassar barreiras que deixam os dois desconfortáveis ou sem forçar um estereótipo.

Assim como em Malhação: Viva a diferença, o seriado norte-americano Shadowhunters, baseado na série
best-seller Os Instrumentos Mortais, de Cassandra Clare, mostra o personagem Raphael Santiago (David
Castro) insinuando sua assexualidade quando o personagem diz para Isabelle Lightwood (Emeraude
Toubia) que ele não tem interesse em sexo ao negar um beijo a ela. Quando Isabelle pergunta se isso tem a ver
com ele ser um vampiro, Raphael nega dizendo que ele já era assim antes de se transformar. Isso mostra que a
assexualidade não está ligada com a sua condição de imortal e não-humano, e mesmo após sua transformação
ainda é uma característica que faz parte de sua vida. Mais recentemente é no seriado animado da Netflix,

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BoJack Horseman, que vemos o personagem Todd Chavez (Aaron Paul) se identificando como assexual e
realmente dizendo com todas as palavras. Durante três temporadas, o personagem insistiu em se identificar
como nada, uma vez que ele não é hétero ou gay; já na quarta temporada, Todd revela que na verdade é
assexual; ao longo da série ele vai a um encontro de assexuais e aceita namorar uma outra personagem que
também se identifica como assexual.

Na segunda temporada do seriado Sex Education, somos apresentados a personagem Florence (Mirren
Mack) que procura Otis (Asa Butterfield) para ser aconselhada sobre a sua falta de desejo em sexo e a
pressão que ela sente dos colegas no ensino médio para fazer sexo. Infelizmente, o conselho de Otis é algo que
pessoas assexuais já estão cansadas de ouvir, o discurso do “você apenas não encontrou a pessoa certa”. Não
sentir atração sexual ou romântica não tem nada a ver com a outra pessoa ou não estar pronta para sentir ou
experimentar alguma coisa. Felizmente, quando Florence procura Jean (Gillian Anderson), a real terapeuta
sexual, e diz que se sente quebrada, Jean fala sobre assexualidade e nos deixa com uma fala que todo mundo
deveria refletir sobre: “Sexo não nos faz inteiros. Então, como você pode estar quebrada?”

No mais recente relatório da GLAAD sobre a representação na televisão, constatou que com o cancelamento do
seriado Shadowhunters e com a finalização de Bojack Horseman após seis temporadas não existe atualmente
seriados com representação assexual em um papel de destaque. Em análise podemos chegar também a
conclusão que a maioria dos personagens representados são homens, brancos e cisgêneros.

Na mídia, a assexualidade e arromanticidade também estão muito ligadas com a heterossexualidade e o


heterorromanticidade, o que leva para um discurso afóbico questionando se as comunidades aro e ace fazem ou
não parte da comunidade LGBTQI+. Assexuais e arromânticos fazem, sim, parte desta comunidade e podem
também se identificar como héteros, assim como existem os que se identificam com outros rótulos dentro das
orientações sexuais, românticas e de gênero. Assexuais e arromânticos podem sim desenvolver
relacionamentos bem-sucedidos com outras pessoas que se identificam da mesma forma ou de forma diferente.

As grandes mídias tem o poder de influenciar as pessoas e de iniciar uma conversa positiva sobre diferentes
assuntos. Ao longo dos últimos anos, nós observamos a mudança da representatividade de outras comunidades
LGBTQ+ e como isso influenciou pessoas a se identificarem e a assumirem sua sexualidade, muito graças aos
filmes e seriados que estamos consumindo. Especialmente durante a nossa adolescência, esses personagens
podem nos inspirar a ver parte de nós que ainda não conhecemos e ainda estamos tentando entender. Ter uma
representação assexual e arromântica dentro dessas mídias significa mudar positivamente a vida de diversas
pessoas, mostrar para elas que não há nada de errado e normalizar esse discurso. Já está na hora da
comunidade assexual e arromântica ter exemplos de histórias bem sucedidas que possam nos inspirar e existir
no mundo sem tantos preconceitos.

** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.

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