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1ª AVALIAÇÃO PSICOLOGIA SOCIAL –

UM ENSAIO SOBRE IDENTIDADE DE GÊNERO

Yagor Gassen Machado


Disciplina: PSI162 - Psicologia Social I - A
2021\1
Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil
Prof. Dr. André O. Costa

Quando questionada sobre o tópico de “quem sou eu?”, uma pessoa tende a dar respostas
diferentes em contextos diferentes, pois o conceito de Identidade pode ser visto como a união de
todas as partes que formam um mesmo indivíduo. Porém, acima de tudo, Identidade é um fenômeno
social e até os aspectos mais intrínsecos à nossa existência são submetidos a um parâmetro
arbitrário de “normatividade” que afeta negativamente todos que possam ser identificados como
infratores desse “normal”. Mesmo com o passar das gerações e os diversos avanços na luta pela
aceitação das diferentes modos de existir, a identidade de gênero é um assunto que por algum
motivo ainda cria conflitos ao levantar uma simples pergunta: “E se alguém não se sentir
confortável com o gênero que a sociedade definiu que ele teria?” Transgeneridade é definida como
“uma pessoa que possui uma identidade de gênero que difere do sexo que lhe foi atribuído ao
nascer” e é um termo guarda-chuva para ambas pessoas trans binárias – homens que nasceram em
corpos designados como “de mulher” pela sociedade e vice-versa – e pessoas trans não-binárias ou
genderqueer, que não se identificam no conceito binário (homem ou mulher), mas sim como
alguma outra categoria no grande e complexo espectro existente.
Poderíamos ficar horas falando sobre todas as questões biológicas para definição de gênero
(que já foram refutadas) ou sobre as nuances do conceito de pronome neutro na língua portuguesa
(que já foi explicado exaustivamente), porém o foco desse ensaio será o segundo grupo citado e
como a não-binariedade como identidade de gênero é vivenciada em um meio cisnormativo e
binário, usando a alegoria apresentada na segunda temporada de “Infinity Train” (HBO Max) pela
protagonista e sua jornada de descoberta da própria identidade como referência, além de abordar os
textos de Antonio da Costa Ciampa no livro “Psicologia Social: O Homem em Movimento” e
contextualizar seus conceitos de Identidade no tema de gênero. Para que o estudo fique mais claro,
iremos examinar e elaborar em cima de cada metáfora individualmente e em ordem cronológica,
começando (obviamente) pelo começo.
A personagem, até o momento sem nome, é introduzida ainda na primeira temporada como
um reflexo de Tulip, protagonista da primeira temporada, que aproveita da mecânica do vagão para
se rebelar e escapar da realidade dos espelhos – um mundo onde todos são reflexos de pessoas reais
e independente da individualidade de cada um, devem seguir esse papel de ser outra pessoa sem
questionar – por não aguentar mais ter que viver todos os momentos de sua existência no corpo de
uma garota que não representa quem ela é de verdade. Após conseguir sua emancipação, ocorre
uma montagem mostrando a nova protagonista, agora nomeada “MT” (abreviação de “Mirror
Tulip”, apelido neutro usado para se identificar, mesmo que esse não seja seu nome real), mudando
completamente seu visual que ironicamente possui diversas características relacionadas a um
esteriótipo andrógeno: cabelo raspado, coturno, alargador, etc – para ficar o mais diferente possível
de Tulip.
Essa apresentação de MT como deslocada em seu meio e implorando pela liberdade de
poder ser ela mesma está diretamente ligada a uma das primeiras noções de identidade: diferença e
igualdade. No processo em que vamos nos entendendo como indivíduos, lentamente nos
diferenciamos e igualamos dos vários grupos sociais que observamos e participamos diariamente a
partir do reconhecimento recíproco dos indivíduos (ANTONIO CIAMPA, 1984). Da mesma forma
que MT saiu sem olhar pra trás no momento que descobriu um novo mundo onde poderia ser
genuinamente ela mesma após anos se sentindo desconfortável e sem se adequar aos grupos
existentes naquela sociedade de reflexos, muitas pessoas LGBTQ+ passam por uma experiência
parecida devido à hegemonia de representações “cishet” (cisgênero e heterossexual) no nosso
cotidiano: mídia, expectativas externas, etc. Devido a esse ambiente, pessoas de sexualidades e
gêneros não-conformativos tem dificuldade de perceberem suas reais identidades depois de anos
sendo forçadas a se moldar ao “padrão” e normalmente a primeira fagulha para essa examinação do
“eu” começa justamente na identificação com membros de grupos da comunidade queer.
Depois de sair do mundo dos espelhos e explorar mais alguns vagões – agora entrando na
segunda temporada, em que MT é a protagonista – ela esbarra em Jesse (e um cavalo mágico
nomeado de Alan Dracula… ele não tem nenhuma participação na metáfora...), um garoto que
possui seu próprio arco de personagem e, dentro do tema, serve o papel de amigo – tanto no
desenho quanto na alegoria – durante a jornada. Ele começa como uma inconveniência, uma pessoa
chata e enxerida que MT precisa usar para poder sair do trem, mas com o passar do tempo eles
começam a se aproximar até o ponto médio da história, quando ela relutantemente conta pra ele
sobre sua origem e desse ponto em diante a relação dos dois se torna uma aliança inabalável. Jesse
claramente cumpre a função do aliado na jornada de autodescobrimento da pessoa não-binária: um
amigo ou parente que independente de todas as adversidades continua dando apoio e criando um
ambiente seguro e estável para que a pessoa possa se sentir confortável no meio de uma sociedade
que nega sua existência. Uma cena excelente que explora essa relação é no vagão parque de
diversões, mesmo com tudo parecendo estar contra MT, Jesse se coloca do lado dela como apoio
moral, acalmando-a e lembrando ela do objetivo deles, mostrando que ela não tá sozinha nessa
batalha (vou adicionar o clipe na bibliografia).
Em vários momentos da história, a validade da existência de MT é duvidada de diversas
formas. Sendo no vagão parque de diversões, onde ela recebia menos pontos que Jesse mesmo
jogando os mesmos jogos, no shopping abandonado, onde os membros do Apex (grupo de
passageiros delinquentes que não tem como objetivo voltar pra casa, irrelevante pro tema)
desdenhavam de MT e a tratavam como inferior, ou na central de processamento de humanos, onde
o próprio sistema do trem negou a existência dela como pessoa, o fato dela ser uma criação do trem
(assim como Alan Dracula, são conhecidos como “denizens”), ou seja, de ter uma característica
essencial e que ela não tem controle sobre e ser diferente dos outros, é usado como argumento para
tratá-la como rejeitável em relação ao Jesse e outros humanos “normais”. Nos casos citados
brevemente, o preconceito e a invalidação vem diretamente da estrutura básica de funcionamento do
trem (sociedade) contra uma parte intrínseca de MT, o que mostra bem um dos pontos principais
levantados por estudiosos da teoria queer: (Identidade de) gênero nada mais é que um constructo
completamente social, e não algo natural e biológico.
Ao vermos gênero como uma identidade que você mesmo (ou alguém) atribui a si, muitas
das definições se mesclam e sobrepõem, como por exemplo o conceito de que ambos são
fenômenos sociais. Antonio Cimpa (1984, p. 65) fala que a identidade de um indivíduo está
intrinsecamente ligada a uma representação prévia imposta pelo seu contexto, e usa o exemplo da
representação de “filho”: esse rótulo já é dado ao bebê antes dele nascer, antes de ser ativamente
filho de alguém, e posteriormente esse título é internalizado e incorporado pela pessoa como uma
objetividade social, algo “natural” dessa pessoa, e o aspecto operativo dessa função de “filho”, o
comportamento, confirma essa representação. Essa descrição se aplica diretamente à experiência
trans na sociedade cisnormativa quando se considera que desde antes do nascimento existe uma
movimentação para definir o gênero do bebê, com chá revelação, decorações “de menino” ou “de
menina”, e todos os outros esteriótipos estéticos e comportamentais que se mantém desde a infância
até a morte. Portanto, quando uma pessoa – seja ela cis ou trans – não se estabelece nessa série de
concepções preestabelecidas, ela é recebida com negatividade e uma tentativa de forçar a adequação
ao status quo (“tu é menino, não pode brincar de boneca”, “se tu continuar se vestindo q nem
homem vão achar q tu corta pro outro lado”, “tu vai me ajudar aqui com o carro sim, tá mais que
hora de virar macho”, etc), e quando entramos no tópico da não-binariedade, onde a pessoa não se
sente totalmente acolhida por nenhum dos dois gêneros “padrões”, o preconceito é ainda maior.
Um detalhe omitido da história até agora – pois merece um tópico próprio para discutirmos
– é a presença dos “Flecs”, policiais do mundo dos reflexos que perseguem MT por toda a
temporada tentando forçá-la a voltar e se adequar às normas, abrindo mão de sua individualidade.
Eles podem se transportar a partir de qualquer superfície reflexiva na qual MT apareça – o que pode
ser visto como uma alegoria para a disforia de gênero, fazendo com que a pessoa evite se ver em
espelhos pois sua aparência é uma lembrança constante do fato de que ela não é vista pela sociedade
como “normal” - e tem como única função impedir sua libertação, tentando prendê-la, manipulando
Jesse para que ele a entregasse, fazendo gaslight (uma forma de abuso psicológico na qual
informações são distorcidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas para fazer a
vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade) em MT para que ela desistisse e,
depois de perceberem que ela não voltaria, ativamente buscando matar ela. Ao aplicarmos essas
informações no contexto da identidade como fabricação social, os “Flecs” passam a representar
claramente as estruturas e grupos conservadores da sociedade que trabalham para manter o status
quo, definido justamente por membros poderosos desses grupos.
Aqui cabe uma crítica direta à estrutura da nossa sociedade: identidades, mais
especificamente rótulos, são dados independente da vontade dos indivíduos e é esperado que eles se
mantenham verdadeiros e concretos, invalidando e criticando qualquer alteração que aconteça,
mesmo que nossa identidade esteja, na verdade, em constante transformação. Nas palavras de
Antonio Ciampa (1984, p. 68): “As atividades de indivíduos identificados são normatizadas tendo
em vista manter a estrutura social, vale dizer, conservar as identidades produzidas, paralisando o
processo de identificação pela re-posição de identidades pressupostas, que um dia foram postas.” A
aplicação desse conceito na experiência não-binária é clara: homens e mulheres cis passam por uma
socialização de homem e mulher respectivamente (que também é um problema, mas para outra
discussão), enquanto pessoas trans AMAB/AFAB (designadas homens/mulheres no nascimento)
passam por uma imposição de gênero, mesmo que passem pela mesma vivência, devido a
expectativa exigida pela sociedade, e a partir do momento que essa pessoa começa a explorar outras
manifestações de suas identidades, ela experiencia exatamente as mesmas ações que os “Flecs”
utilizam contra MT.
No final, após passar por todas as dificuldades da jornada e ainda ser negada a saída do trem
num primeiro momento, por ser uma “denizen” e não possuir o número que os passageiros usam
para sair, MT consegue ir para o mundo real ao usar sua pele refletora (uma característica única
dela) para refletir o número de Jesse (o apoio de seu amigo) e burlar (que é diferente de destruir) o
sistema, se livrando de todos os julgamentos e ordens do trem e finalmente podendo abraçar
completamente sua existência. Ao chegar do outro lado, ela toma um momento para assimilar seu
ambiente e observa seu reflexo em um lago; sem “Flecs”, sem trem, sem sistema, sem amarras,
apenas ela, enfim livre, e abandona o apelido “MT” – a última ligação com sua antiga e falsa
identidade – pelo nome “Lake”, a prova final da genuinidade do seu “eu”. Ou seja, ao examinarmos
a moral da história como um todo, podemos dizer que só somos representantes dos nossos “ser real”
quando paramos de apresentar uma versão pressuposta de nós que foi estabelecida em momentos
anteriores, quando nos tornamos genuínos, atuais e em constante mudança, a famosa “negação da
negação” (ANTONIO DA COSTA CIAMPA, 1984).
Para finalizar, o trecho a seguir do livro de crônicas “Um Apartamento em Urano”, onde o
escritor Paul Preciado escreve sobre seus pensamentos durante seu processo de transição de gênero,
fica muito bem colocado nesse tema de identidade e não-binariedade: “Não sou um homem. Não
sou uma mulher. Não sou heterossexual. Não sou homossexual. Tampouco sou bissexual. Sou um
dissidente do sistema sexo-gênero. Sou a multiplicidade do cosmos encerrada num regime político e
epistemológico binário gritando diante de vocês. Sou um uranista confinado nos limites do
capitalismo tecnocientífico. Nunca pensei que fosse uma mulher. Era vários. Não me considerava
transexual. Quis experimentar com a testosterona. Adoro sua […] capacidade, se as aplicações são
regulares, de desfazer a identidade, de fazer emergir estratos orgânicos do corpo que de outro modo
permaneceriam invisíveis.” Essa é uma experiência real de uma pessoa trans real e poderia
facilmente ter sido dita por Lake. Mesmo que só como uma alegoria não explícita, a história da
Lake é uma história de identidade e de gênero, algo que não é visto comumente, e vale ser lida e
mostrada como tal.
Querendo ou não, pessoas trans existem, crianças trans existem e merecem se identificar em
desenhos e filmes tanto quanto qualquer outra pessoa. Histórias como a da Lake e livros como os do
Paul Preciado são reafirmações dessa existência, que acima de tudo é válida e deve ser respeitada, e
ver essas representações é extremamente reconfortante para pessoas que se identificam com as
experiências apresentadas e podem ainda ajudar aquelas em dúvida sobre sua identidade e seu lugar
no mundo a finalmente se encontrarem (assim como aconteceu comigo). No fim, esse ensaio é
apenas uma exposição de ideias; a sociedade continuará com seu sistema heteronormativo e binário,
continuará impondo uma forma de agir baseada nos órgãos genitais desde o nascimento até a morte
e continuará criticando, isolando e matando quem desviar do “padrão”. Apenas por meio da luta e
da revolta conseguiremos mudar isso, e a representatividade na mídia é uma das formas de lutar.
Protejam pessoas trans.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CIAMPA, Antonio. Identidade. In: LANE, S. T. M. et al. Psicologia social: O homem em


movimento. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 58-75.
PRECIADO, Paul B. Um Apartamento em Urano: Crônicas da travessia. Tradução de
Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
TRANSGENDER. In: Wikipedia: A Enciclopédia Livre. Disponível em: <
https://en.wikipedia.org/wiki/Transgender >. Acesso em: 12 jul 2021.
NON-BINARY gender. In: Wikipedia: A Enciclopédia Livre. Disponível em: <
https://en.wikipedia.org/wiki/Non-binary_gender >. Acesso em: 12 jul 2021.
GRAVITY, Queen. A Celebration of Queer-Coded Lake (Infinity Train). Youtube, 14 mai
2021. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=6oeQF-zA6wg >. Acesso em: 12 jul
2021.
OMGITSKAVI. Your Fave is Trans: Lake from Infinity Train (Character Analisis).
Youtube, 10 dez 2020. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=uNoFaq1nqLQ >.
Acesso em: 12 jul 2021.
CHORUS, Sarcastic. Infinity Train Season 2 Sarcastic Summary. Youtube, 12 fev 2021.
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=yCbr_kAFRXU >. Acesso em: 12 jul 2021.
SHMEIDER, Games. Jesse and MT have a Moment. Youtube, 18 jun 2020. Disponível
em: < https://www.youtube.com/watch?v=w892qVsRNlA >. Acesso em: 18 jul 2021.
THE Apex. In: Infinty Train Wiki. Disponível em: < https://infinity-train.fandom.com/wiki/
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MACE. In: Infinity Train Wiki. Disponível em: <
https://infinity-train.fandom.com/wiki/Mace > Acesso em: 18 jul 2021.

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