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Tire Sua Régua Cis Do Meu Corpo Trans E/Ou Transfobia Nossa De Cada Dia

21 de agosto de 2016Beatriz Transmisoginia1


Texto de Magô Tonhon
Não viaja, colega! “a pessoa lá” não roubou direito de ninguém por ter barba e reivindicar seu nome social.
Sinto desapontar-te caríssimx colegx mas quem “roubou” esse direito foram os deputados que se utilizando
de seus respectivos ‘nomes fantasia’: dentre Tias Eron, Pastores de uma ovelha só, de nomes no diminutivo
que sentam no próprio rabo (leia-se privilégios) e tentam derrubar o decreto-tardio que a presidenta assinou
antes mesmo de, ao sair do congresso, apagar a luz para viajar ao rio grande do sul e continuar pedalando
pelas manhãs!
O Decreto garante a travestis e transexuais que trabalham no serviço da administração pública federal
(funcionários e também usuários de órgãos públicos, autarquias e empresas estatais federais) a utilização de
nome social em crachás e documentos oficiais como atas e formulários por exemplo.

28 de abril de 2016, Dilma assina decreto o Decreto nº 8.727/2016. Foto: Roberto Stuckert Filho-PR. (Fonte:
http://migre.me/uIUM2)

É potente debater e pontuar a estrutura escrota e meritocrática que estamos inseridxs? Sem dúvida!
É importante falarmos, enunciarmos nossos privilégios e acessos [SEM QUE ISSO SEJA MOTIVO PRA
QUALQUER ATAQUE, VALE LEMBRAR] ? Sim, sem dúvida! Pra quê? não pra pódio, deixa isso pro brasil
que é ouro em transfobia, mas pra denunciar a dialética que envolve esse cis-tema complexo no qual nos
inserimos, todas, todos e todes.
Todo o debate que tenha CONSCIÊNCIA do caráter estrutural dessas opressões todas é bem
vindx. CONSCIÊNCIA muda a relação que se tem com qualquer objeto. Aprendi com uma professora de
história da arte, que ante à indústria cultural que mastiga os processos e nos oferece mercadorias de volta,
que toda consciência deveria ser enunciada. Ela dizia que quando tenho CONSCIÊNCIA de que a mercadoria
se apresenta inserida nessa estrutura, quando tenho CONSCIÊNCIA de sua origem e da maneira como é
colocada para as pessoas consumirem, essa relação já muda. Eu consumir um produto porque ele é
empurrado para mim como se eu de fato necessitasse dele pra viver é diferente de eu, consciente dessa
estrutura, escolhe-lo por julgar que em mim ‘cairá bem’, por exemplo.
E essa consciência deve ser também enunciada quando falamos de pessoas trans, qualquer que seja. As
que se enunciam por uma negação do que NÃO É (como as pessoas trans não-binárias), ou aquelas que
brigam pois não são outra categoria de pessoa (como aquelas que não diferenciam ao enunciar suas
identidades “sou pessoa como qualquer outra”; “somos gente”), ou até mesmo aquelas que acreditam ser
importantes as diferentes categorias identitárias (“sou pessoa trans, sim!”). Todas as pessoas que não se
reconhecem com o gênero atribuído. Atribuição esta estabelecida pela existência de um genital que lembre
ou se assemelhe àquilo que entendemos ser ou um pênis ou uma vagina (sem falar do quão compulsória é
esta lógica com as pessoas intersexo). O discurso médico atravessa nossas identidades de gênero,
naturalizando em palavras e termos problemáticos como ‘sexo biológico’ toda uma construção que também é
social. Os saberes científicos esquecem-se do quão social é também o conhecimento da Biologia enquanto
nos dizem sobre o ‘gênero com o qual nascemos’. Ninguém nasce generificado. Nascemos, as pessoas
privilegiadas e já tem-se um quarto. E os objetos costumam falar mais por nós, quando não acessamos ainda
a estrutura da palavra, da linguagem para enunciarmos a nós mesmxs.

The pink and blue project. Autor: JeongMee Yoon – Link: jeongmeeyoon.com (Fonte: http://migre.me/uIVdP)
O gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre “o que é
masculino e o que é feminino”. Dentro deste entendimento uma das ‘facetas’ do gênero, veja bem UM DOS
ELEMENTOS por meio do qual podemos identificar e localizar o gênero é a autodeterminação, a identidade
subjetiva individual. Quando a gente entra nessa seara, todo tipo de enunciação pode acontecer. E eu não
me dou o direito de zombar de quem quer que seja, pela pessoa não se enquadrar em qualquer elemento
que para mim seja possível de assimilar a identidade que reivindica pra si. Sabe por quê? Porque a pessoa
já nega um primeiro enquadramento quando se reivindica trans. Não seria incoerente que se houvessem
outros com o qual essa pessoa devesse cumprir, feito uma tabela? Daí a incoerência de uma possível receita
de como se tornar uma pessoa trans verdadeira!
Percebo que não é possível separar o mundo numa dicotomia bem definida entre pessoas privilegiadas e
pessoas não privilegiadas. Se 1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta
(fonte: http://migre.me/uIVDL) todas as outras 99% da população desfruta de igual situação entre si? Creio
que não.
Se não podemos quantificar exatamente qual é a porcentagem de pessoas trans/travesti por não estarmos
nos censos de nossos territórios, deste modo, eu preciso respeitar aqueles que me dizem: ‘Magô eu sou um
dragão!’.
Bonjour, dragão! Cuidado com essas ventosas faiscantes no meu cabelo cheio de frizz por gentileza.
Eu poderia dizer: Não, queride, você não é um dragão!?
Não creio que caiba a mim, esse tarefa!
E quando digo que a autodeterminação é UMA DAS MANEIRAS de se pensar o gênero, eu não posso deixar
de olhar o gênero enquanto uma categoria passível de análise histórica, que destina lugares bem definidos e
desiguais à determinadas pessoas. Afinal, a identidade subjetiva é um dos elementos que se relaciona com
outros tal como: os símbolos culturais que evocam representações; os significados destes
símbolos expressos geralmente nas doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e que
tipicamente tomam a forma de uma oposição binária fixa (o homem masculino e a mulher feminina). E
também o caráter político que o gênero assume nas instituições e na maneira como a sociedade se
organiza, o que potencialmente coloca em questão o caráter fixo do gênero, como se não variasse de
acordo com o tempo histórico e os diferentes lugares onde as sociedades se organizam. (ler a definição de
gênero em: “Gênero: Uma categoria útil de análise histórica” de Joan Scott de 1990).

Temer no dia da posse dos novos ministros. (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil. Fonte:
http://migre.me/uIW3s)

Aí então, não há exatamente uma estrutura que destine um lugar desigual aos ‘dragões’, por exemplo. E não
somente nesses casos mais ‘peculiares’. É possível identificarmos a mesma necessidade de assimilação que
as próprias pessoas transexuais e travestis atravessam ante à norma cisgênera. Até que ponto podem as
mulheres e homens trans serem classificados enquanto ‘binários’? Não creio ser possível de se separar em
tão grande abismo! O fato de atravessarmos tais expectativas depositadas sobre nós já é grande indicativo
de não conformidade com o dito ‘binário’. Essa binariedade cis não nos cabe, não nos assimila. E daí
outras questões se podem levantar: as pessoas ditas não-binárias, ao que vejo, atravessam a mesma
necessidade de assimilação. Se é não-binária mas tem um nome que seja feminino, então ‘é uma mulher
trans que não se assume’, dizem.
É necessária a CONSCIÊNCIA à esses processos dolorosos de assimilação. E há muita dor! Essa
assimilação toda também recai sobre parte da invisibilidade bissexual, quando estamos a falar das
orientações afetivo-sexuais não monosexuais [hetero e homo] por exemplo. Não por acaso bissexuais ‘são
pessoas homossexuais que não se assumem’ dentro dessa lógica. ‘São confusas’ e por aí vai toda a sorte de
afirmações pedantes que se recai sobre a tentativa de se enquadrar o desejo, tarefa difícil e bastante
paradoxal.
O que a pessoa trans do Rio Grande do Sul subtraiu de qualquer outra pessoa trans? Nada! Se uma vez
aprovada a lei de identidade de gênero que possibilitará que a gente CORRIJA nossos documentos pessoais
sem necessidade de recorrer à justiça e sim apenas recorrendo à um cartório, quais seriam os limites? É o
cartorário que vai olhar pra minha cara e dizer MAS VOCÊ É TRANS MESMO? Não acredito! Pois qual avanço
teremos se tal atribuição hoje centralizada na figura do juiz passasse à quem nos atendesse nos cartórios?
Nenhum! Nossas identidades trans/travestis continuariam sob o crivo de um agenciador supremo.
Quais são esses limites? É preciso termos consciência do que estamos a reivindicar.

1ª Caminhada pela Paz: “Sou Trans e Quero Dignidade e Respeito” realizada no dia 30 de janeiro de 2016
pelo Centro de Apoio e Inclusão Social de Travestis e Transexuais (CAIS), em São Paulo. (Foto: Alex
Bencke Bonotto)

Não é a toa que já atravessamos processos dolorosos dentro mesmo dessa categoria de pessoas a qual
pertencemos. Não é raro encontrarmos algumas travestis olhando para pessoas trans e as chamando de
“DOENTES”. Ou as mulheres transexuais que desejam o redesenho genital olhando para pessoas
trans/travestis que não a desejam e classificando-as de “VIADINHO AFEMINADO” como se toda legitimidade
estivesse atrelada à relação que se tem com a sua configuração genital. Quantas histórias ouvimos de
pessoas trans/travestis que estão há mais tempo no movimento social organizado e que olham com maus
olhos o surgimento dessa geração mais atual, barulhenta e cheia de opinião e torcem o nariz para isto? Quase
que é possível ouvi-las balbuciar “QUEM PENSAM QUE SÃO? QUANDO NASCERAM EU JÁ ESTAVA NA
PISTA!” Embora seja importante lembrar que não estamos nós inaugurando a nada. Toda organização e
movimento social tem história, somos muitos e muitas ancestrais na batalha. O conhecimento e legitimidade
destas existências que nos antecederam no entanto não deve servir para hierarquizar posicionamentos nem
opiniões ante aos desafios que se apresentam! Há tensões, não há exatamente um consenso. Não somos
uma categoria única de pessoas.
Será que vamos esquecer desses embates, e dessas tensões que existem entre nós? Não somos uma
categoria passível de assimilação fácil, sem que para isso sejam esquecidas e deixadas muitas outras
pessoas para trás. Esse exercício de alteridade com relação a esse outro, a essa outra pessoa trans/travesti
que muitas vezes não assimilamos, ela é potente e é nela que eu prefiro investir. Pois me reconecta com as
feridas que outrora me habitaram. Outrora sangraram-me os olhos, nesse deserto que é conjugar o verbo
NÃO CABER. É como se eternamente estivéssemos a tentar caber numa ‘roupa que não nos serve mais’ ou
então que ‘nunca nos serviu’ mas que era apenas a que tínhamos disponível.
Em conversa com uma pessoa trans negra e nordestina, me lembrei das inúmeras Macabéas (personagem
de Clarice Lispector no romance “A Hora da Estrela”) que nos habitam. Lembrei-me da minha dor,
do meu processo, de tentar caber em uma roupa menor do que eu, eu que sempre fui de grandes dimensões!
Ajudou-me a lembrar que não faz sentido algum agora eu tentar caber em outras novas roupas que não mais
as antigas. Lembramos da necessidade de afrouxar certas categorias, de tensiona-las e assim abrir espaço
para identidades não hegemônicas, sem esquecer dos processos históricos, de injustiças históricas que
devem ser reparadas e superadas. Faço de sua dor, a minha dor. Por crer que a dialética estrutura nossas
relações. Por acreditar que todas carregamos incongruências, incoerências e paradoxos. Por acreditar na
necessidade de entrelaçar essas estruturas, essas fobias, essas normas, essas categorias, essas identidades
também.
O papo que eu tive com essa pessoa trans me fez rememorar, que mesmo privilegiada por ter entrado em um
mestrado numa universidade elitista e racista como a USP, das inúmeras batalhas diárias que sou obrigada
a enfrentar e ainda assim, um semestre depois de ser admitida no processo seletivo, meu nome
social ainda constar em parênteses na lista de presença, ao lado do meu nome de registro fora do parênteses.
Assim, como se fosse uma abstração!
Me fez lembrar o fato de que para aparecer apenas MAGÔ SEM R E COM ^ na lista, eu terei que passar pela
‘trindade de conselhos’: dos discentes, dos docentes e da reitoria da pós, respectivamente. Mesmo a lei sendo
clara quando diz que meu nome de registro deve ser apenas um dado administrativo. Pergunto: AQUI EU
NÃO SOU SÓ UM NÚMERO?
Essa conversa, desabafo, deflagrou também a minha dor, que sei que não é só minha, diante do equivoco
dos decretos e normas aprovadas que dizem respeito ao nome social no SUS, por exemplo. Lembrei da minha
carteirinha do SUS que ainda tem o meu nome de registro ao lado do nome dito ‘social’ e com o meu ‘sexo’
bem definido ali: MASCULINO.

Cartão Nacional de Saúde padrão, com nome de registro da pessoa e constando “sexo”. (Fonte:
http://migre.me/uIWRF)
Mesmo contrariando a NOTA TÉCNICA de número 18 lançada pelo Ministério da Saúde em 2014,
instrumentalizando e praticamente desenhando como deve ser a ‘confecção’ dos cartões nacionais de saúde
da população T. Isso tudo muito embora a identificação pelo nome social em todos os documentos dos
usuários, o que inclui o cartão SUS, seja um direito garantido desde 2009 pela carta de Direitos dos Usuários
do SUS (Portaria 1.820 de 13 de agosto de 2009).

Trecho da Nota Técnica 18/2014 lançada pelo Ministério da Saúde instrumentalizando o registro das
Carteiras Nacionais de Saúde para a população T. (acesse: http://migre.me/uIWVP)

O que estou a pleitear não é o silenciamento das pessoas trans que se sentiram ofendidas pela conquista de
uma pessoa trans com barba e que se auto intitula ‘viada’ em uma foto com o parceiro em sua página do
Facebook. O que estou a pleitear é que esse direito seja estendido e não cerceado, inclusive a mim mesma,
que mesmo privilegiada por ter acesso a estas normas, leis e decretos, ainda não consegui fazer valer as
letras destes dispositivos legais para que pudesse ter plenamente respeitado meu nome dito social
enquanto ainda não corrigi meus documentos. E o que a nova Geni tem a ver com isso? Nada. E o que
tem a ver com isso o cis-tema? Quase tudo!
Abaixo algumas palavras trocadas com uma pessoa trans, negra e nordestina cujo a minha ligação é íntima
e pessoal, de coração estamos juntas.
“Sei bem dessas idas e vindas, desses caíres e levantares, e dessas potências que se manifestam
pela própria vida sem por isso se confundir a um individualismo…
nossas vidas, nossas feridas, por pessoais que sejam, são coletivas, históricas e estão ligadas. poxa,
ando mesmo às voltas com isso, cheia de crise e dor, por não saber onde estou no que diz respeito à
historia do meu corpo e do meu gênero. me arrisco nos campos da não binariedade, mas cheia de
inseguranças sem saber quão falsa e oportunista eu posso estar sendo, sem saber o quão verdadeira
é a minha experiência. e eu sei o quão toxicas são essas categorias. mas eu sei também o quão difícil
é escapar delas! circulando por territórios tão codificados. quer dizer, sei dos meus privilégios, não
quero apagá-los: minha fala é situada, minha posição é parcial, e eu assumo isso. mas eu preciso de
um espaço de trânsito, todas merecemos esse espaço, todas merecemos existir, MESMO QUE À
MANEIRA DE GERMES! eu não tiro seu direito ao exercer o meu. Privilégios não são superpoderes. E
eles não operam isolados. Privilégios são tão interseccionais quanto opressões”.
Sábias e honestas palavras. Resgatei outras também: “sigo acreditando na possibilidade de coligar, e de
tecer redes pra que consigamos co-habitar o colapso da colônia sem nos destruirmos umas às
outras”.

Juprincess Do Bairro e Linn da Quebrada, pessoas trans e negras, cantorxs e compositorxs da cidade de
São Paulo, durante a realização do ‘TRANSarau do Cursinho Popular Transformação’. (Foto: Mayra Azzi)

Às pessoas cisgêneras de todo tipo de ativismo que antes desse bafafá todo raramente tocava nos assuntos
referentes à população T, plural e diversa é preciso lembrar que dentre os inúmeros entrelaçamentos
possíveis, de raça/etnia, classe social, gênero e sexualidade, existe materialmente a população T. Ao falar de
cada uma dessas ‘categorias’ é possível falar de pessoas trans também. É sempre bom adotarmos uma
postura onde exercitamos melhor nossa capacidade de OUVIR mais do que a de julgar. Do que supor e
apontar o dedo sem que se esqueça que TER CONSCIÊNCIA é parte fundamental na estrutura toda. Eu não
posso ser isenta de consciência quando não me importo para o fato de que toda pessoa cis é uma pessoa
transfóbica em potencial! Quando não dou atenção para essa potencialidade e esqueço de enuncia-la estou
a fazer a mesma coisa que qualquer fascista: parto de um sentido que já está dado, fixado e não encontrado,
vasculhado, questionado! A transfobia é estrutural em nossa sociedade, portanto que adianta focar no
indivíduo e esquecermos da estrutura em si?
Nossas experiências são tateadas diariamente.
Escavamos todo dia um pouco mais o buraco de nossas existências.
★★★★★
★ Magô Tonhon é mulher transexual, bissexual, arquiteta e urbanista mestranda em Cultura, Educação e
Saúde pela Universidade de São Paulo (USP); pesquisa gênero e sexualidade e é criadora do canal Voz
Trans* no Youtube, por meio do qual discute questões relacionadas à população LGBT. É produtora do projeto
[SSEX BBOX], trabalhou na 1a Conferência Internacional [SSEX BBOX] & Mix Brasil, e desenvolve ações
pontuais para o projeto.
Deixe Como Está: Sobre O Corpo-Discurso De Pessoas Trans E Travestis
11 de fevereiro de 2017Beatriz Cultura e Comportamento0
Texto de Alessandra Ramos Makkeda.
Deixe como está.
Fico muitas vezes incomodada com pessoas que tem tendências ao messianismo teórico.
Nenhuma teoria da(rá) conta inteiramente das microvisões políticas das pessoas trans e das travestis, e de
como elas e eles se colocam no mundo.
Não vamos tentar cair na loucura de pensar que tudo aquilo que estudamos e aprendemos vai nos servir até
a morte. Falo isso pois tenho percebido que algumas expressões sobre o que deveria ser o fenômeno trans,
e as opiniões sobre o corpo-ativismo, o corpo-discurso das pessoas trans e travestis sendo tidos como
sentenças finais, por parte de quem as profere.
Daí, cabe lembrar da história. Nós, as pessoas, criamos dentro de nós convicções, atitudes, defesas e
discursos diários relacionados àquilo que recebemos, mas também daquilo que decidimos para nós.
É exatamente pela capacidade difusa – aquela que exacerba a norma, justamente por propor o impensável,
por dizer que as normas podem ser vividas no dia-a-dia, de forma muito diferente daquela prescrita pelo
patriarcado, é que instauramos a não-regra. Nossos corpos dizem mais do que qualquer construto teórico
poderá jamais exprimir por completo.
É exatamente a capacidade de denunciar o sistema opressor de gênero vigente, que pode ser descrito
sexista, heteronormativo e cisnormativo, é que somos trans. Somos transgêneros, travestis, transexuais e
ainda uma infinidade outra de coisas, justamente porque aqui, em nosso território, somos nós quem ditamos
as regras.
E essa é uma reflexão que venho fazendo há algum tempo. Por me ver sempre com posicionamentos mais
moderados em alguns casos, é que me veio a vontade de escrever e afirmar que existem uma infinidade de
pessoas, por mais desconstruídas que sejam, que ainda insistem em ditar as regras de como as coisas devem
ser.
Quer um exemplo mais claro? Essa mania que as pessoas tem de criticar mulheres trans, transgêneras,
mulheres travestis ou seja lá que raio forem, por definir o que é uma pessoa trans. Isso, aliás, acompanhado
da visão acomodada do pensador em questão. E, convenhamos, é de um fundamentalismo tão nocivo quanto
qualquer outro preciosismo levado ao extremo.
Esse tipo de prescrição, de vaticínio é nocivo, pois divide a comunidade. Ainda mais, é autoritário, pois não
consegue alcançar os processos internos, o amadurecimentos de cada subgrupo específico.
As travestis sofrem por serem acusadas de não respeitarem os estudos internacionais de gênero, uma nova
didática que tem sido introduzida em nosso sul global, que em muitas vezes, é tão colonizadora quanto o
pensamento, a forma de organizar as identidades trans (dentro da lógica patologizante). Deveriam ser todas
Travestis? Deveriam ser todas Trans? Pelo amor da Santa! Nunca vi um discurso mais revolucionário do que
quando uma travesti diz que Ela pode ser o que quiser, que ela tem prazer de ser quem é, e principalmente,
quando ela diz que não é Homem, Nem Mulher, que é TRAVESTI. Isso é muito mais revolucionário, e mais
antigo do que toda essa coisa dos estudos de gênero, de genderfuck, mais do que quaisquer outra dessas
modernidades que o público médio brasileiro / “queer” tem consumido (sem moderação) nas últimas décadas.
As trans – por sua vez, quando confrontadas, acusadas de quererem ser aquilo que não são, tanto pela
modernidade avassaladora (que acha um absurdo qualquer pessoa trans se enxergar numa ótica binária –
de escolher uma identidade social enquanto mulher ou homem trans), quanto pelos ativistas do movimento
organizado tradicional, que ainda, em sua maioria, sustentam a rejeição ao modelo (mesmo com suas
variações) proposto pelos estudos de gênero globais.
Sempre existirá dentro da comunidade trans visões distintas de como apresentar a sua identidade política.
Ela se divide basicamente na maneira como as pessoas trans se compreendem, e tem desdobramento prático
a partir daquilo que demandam. Sempre existirá pessoas trans confortáveis nas categorias de gênero – seja
lá o que isso significar. Há pessoas trans que não caberão nessa classificação.
O gênero e seus signos só podem ser compreendidos a partir de sua própria matriz. Quem utiliza esses signos
para se entender no mundo não deveria ser penalizado. Nem pra lá, nem pra cá. Somos aquilo que pudermos
fazer do que somos. Aquilo que nossa imaginação permitir.
A verdade é que esse terreno, pessoal e único, que é o campo das identidades político-sociais, precisa ser
metrizado pela compreensão do conjunto das identidades trans, e sob os pontos que temos em comum, ao
invés daqueles que nos separam. Ou seja, os fatos de que TODAS as pessoas trans sofrem
transfobia/homofobia; TODAS as pessoas trans infligem normas de gênero, não importa qual o modo pessoal
e interno como o indivíduo se expressa. Nenhum termo êmico de assujeitamento pode ser maior do que o
conjunto de nossas experiências. Não pode ser maior do que nossa determinação de se engajar no enfrentar
das pautas que garantem o mínimo de dignidade para todas as pessoas trans e para as travestis também.
Imagem: ANTRA -Associação Nacional de Travestis e Transexuais.
Meu Corpo Não Existe
23 de fevereiro de 2017Beatriz Saude e Corpo0
por Paul B. Preciado. Traduzido e adaptado por Inaê Diana Lieksa
Se a lei não reconhece a minha nova identidade de trans, minha voz, meu visual, meu sexo desafiam
diariamente os ditames da diferença sexual.
A administração contínua de testosterona provoca mutações cada vez mais evidentes no meu corpo, ao
mesmo tempo que empreendo um processo legal de redesignação sexual que deverá me permitir, se o juiz
aceita o meu pedido de mudança do prenome na minha carteira de identidade. Os dois procedimentos – bio-
morfológico e político-administrativo- não são convergentes. Embora o juiz considere as mudanças físicas
(suportado por um indispensável diagnóstico psiquiátrico) como as condições de redesignação de prenome
ou de sexo à minha pessoa legal, essas mudanças não podem em nenhum caso ser reduzidas à
representação dominante do corpo masculino, de acordo com a epistemologia da diferença sexual. Conforme
me aproximo da aquisição do novo documento, eu percebo consternado que o meu corpo trans não existe
aos olhos da lei. Realizando o ato do idealismo político-científico, os médicos e os juízes negam a realidade
do meu corpo trans a fim de continuarem a afirmar a verdade do regime binário sexual. Então existe a nação.
Então o juiz existe. Então o arquivo existe. Então a carteira existe. Então o documento existe. A família existe.
A lei existe. O livro existe. O centro de internação existe. A psiquiatria existe. A fronteira existe. A ciência
existe. Mesmo Deus existe. Mas o meu corpo trans não existe.
Meu corpo trans não existe nos protocolos administrativos que asseguram o estatuto de cidadania. Ele não
existe como encarnação da soberania masculina ejaculante na representação pornográfica, nem como meta
de vendas nas campanhas publicitárias das indústrias têxteis, nem como referente das segmentações
arquitetônicas da cidade. Meu corpo trans não existe como variante possível e vital do humano nos livros de
anatomia, nem nas representações do aparelho reprodutivo saudável dos manuais de biologia do liceu.
Discurso e técnicas de representação não acreditam na existência do meu corpo trans, que é tratado como
espécime pertencente a uma taxonomia da desviação que deve ser corrigido. Eles afirmam que ele só existe
como corolário de uma etnografia da perversão. Eles declaram que os meus órgãos sexuais não existem,
senão como défice ou prótese. Fora da patologia, não há representação apropriada dos meus seios, da minha
pele, da minha voz. O meu sexo não é nem um macroclitóris, nem um micropênis. Mas se o meu sexo não
existe, então o que faz meus órgãos permanecerem humanos?. o crescimento do cabelo não está em
conformidade com as instruções de uma retificação da minha subjetividade no sentido de masculinidade: no
rosto, o cabelo cresce em lugares que não têm significado óbvio, ou param de crescer onde a sua presença
indicaria a presença “correta” de uma barba. O rearranjo da massa corporal e do músculo não me tornam
mais viril. Simplesmente mais trans: embora essa designação não cumpra a tradução imediata em termos do
binômio homem-mulher. A temporalidade do meu corpo trans é o presente: não se define pelo que foi nem
pelo que lhe é suposto se tornar.
Meu corpo trans é uma instituição insurgente livre de constituição. Um paradoxo epistemológico e
administrativo. Devir sem teologia nem referente, sua existência inexistente é a destituição tanto da diferença
sexual, quanto da oposição homossexual/heterossexual. Meu corpo trans se volta contra a língua daqueles
que lhe nomeiam pela negação. Meu corpo trans existe como realidade material, como um conjunto de
desejos e práticas, e sua existência inexistente coloca tudo em jogo: a nação, o juiz, o arquivo, a carteira, o
documento, a família, a lei, o livro, o centro de internação, a psiquiatria, a fronteira, a ciência, deus. Meu corpo
trans existe.
Dois Pesos E Duas Medidas: Corpos Cis Vs Trans
22 de setembro de 2017Beatriz Saude e Corpo0
Por Samie Carvalho.
Sobre essa autorização do juiz pra “cura gay” deixa eu relembrar vcs de uma coisa que parece que pouca
gente sabe:
TODAS as pessoas trans AINDA são consideradas “doentes” e obrigadas a fazem acompanhamento
psicológico compulsório por no mínimo 2 anos para que uma junta de psicólogos “comprovem” que ela é
“trans de verdade” pra pessoa ter direitos a TENTAR retificar documentos, tomar hormônios e até fazer
cirurgia.
Se um homem cis com seios (ginecomastia) quiser fazer uma mastectomia para retirar deus seios, ok, ele
pode. É só marcar com o cirurgião.
Até pode haver um acompanhamento psicológico mas o fato dele ser cis JAMAIS será colocado como
empecilho ou fator de dúvida “se a pessoa talvez se arrependerá”. Justamente porque a norma diz que
homens não tem seios, logo ele não “sentirá falta” dos seios removidos.
Entretanto…
Se um homem trans quiser fazer o MESMO procedimento, ele precisa passar por esse processo pra ter
autorização de terceiros. Pq nesse caso no fundo e num primeiro momento ele nunca é considerado
“homem de verdade” e sim uma “mulher confusa”. Logo surgem o questionamento, “e se ela(e) se
arrepender?”
O mesmo vale pra mulheres trans.
Outra questão é que muitas pessoas trans são proibidas de adotar crianças por serem acusadas de não
serem psicologicamente saudáveis pra criar uma criança. Na prática toda pessoa trans é tratada como uma
doente mental crônica.
Todas as cirurgias e hormônios que pessoas trans utilizam foram criados para pessoas cis. Não existem
nenhum medicamento específico para pessoas trans.
Mulheres cis com altas taxas de testosterona ou baixas taxas de estrogênio, tomam os mesmos hormônios
que as mulheres trans tomam. Estes feitos para a fisiologia de uma mulher cis.
A diferença é que a pessoa trans precisa de autorização, a cis não.
A testosterona dos homens trans, é feita para homens cis com baixa taxa de testosterona. Os homens cis
podem tomar sem autorização de psicólogos, os trans não.
A vaginoplastia foi desenvolvida para mulheres cis que nasceram com malformações no genital, como
ausência de canal vaginal ou clitóris hipertrofiado. Se uma mulher cis quiser fazer uma vaginoplastia ela
pode, as mulheres trans precisam de autorização.
Numa sociedade patriarcal e falocêntrica é inconcebível uma pessoa rejeitar o próprio pênis. E de novo vem
os questionamentos sobre um possível arrependimento por parte da pessoa trans.
Pense como a ciência é cisnormativa e nem um pouco neutra na hora de avaliar corpos cis e trans:
Quando uma mulher cis tem seios, ela tem apenas “seios naturais”.
Quando um homem cis tem seios, aí já patologizam e ele passa a ter “ginecomastia”.
Quando um homem cis tem pelos na face, é natural.
Quando uma mulher cis tem pelos na face, aí tem que fazer uma porrada de exame pra detectar alguma
doença.
(Isso sem contar as cirurgias compulsórias em bebês intersexo…)
Ou seja, dois pesos e duas medidas. Isso parte do fato de que a sociedade normatiza as identidades cis e
patologiza as trans, como se fossem os “anormais”, a isso chamamos de cisnormatização compulsória.
Onde toda identidade cis é compulsoriamente tratada como normal (correta) e as identidades trans como
um defeito ou erro. Assim como já foi com as orientações sexuais desviantes da heterossexualidade. A raiz
do problema é a mesma!
Nesse contexto joga-se no lixo conceitos como autonomia do indivíduo sobre o próprio corpo e direito de
auto-identificação. Pessoas trans são tratadas pela medicina e pala justiça como incapazes de terem
autonomia sobre seus próprios corpos. Muito parecido com o que fazem com as mulheres em relação ao
direito ao aborto. Da mesma forma que temos homens decidindo sobre o corpo das mulheres, temos cis
decidindo sobre os corpos trans. E héteros decidindo sobre a sexualidade de homossexuais e bissexuais.
“Mas até o SUS autoriza a operação. Não faz sentido se for considerada patologia.”
Vc pode dizer…
Bem…
O SUS “autoriza” depois que vc passar por todo esse processo compulsório com psicólogos, psiquiatras e
endocrinologistas que pode levar no mínimo 2 anos ou mais.
Aí DEPOIS disso, se vc conseguir a autorização, vc espera pela cirurgia. A fila demora no mínimo 8 anos
mas a média é pra lá de 12 anos de espera. Muita gente morre sem ter conseguido fazer…
Enquanto isso a pessoa vai sobrevivendo com todo tipo de restrições de direitos e liberdades, uma vez que
na maioria esmagadora dos casos elas só conseguem retificar seus documentos (num processo que pode
durar uns 2 anos ou mais) DEPOIS da cirurgia.
Agora faz as contas.
Isso tudo, em geral num contexto de estigma social, desemprego, rejeição familiar, perda de amizades,
relacionamentos e violências físicas e verbais.
Sem documentos de acordo, a maioria dessas pessoas fica renegada a marginalidade.
Vale salientar por exemplo que no caso dos homens trans a cirurgia genital ainda está em caráter
experimental e a maioria dos hospitais não oferecem essa cirurgia. Resta a muitos deles não fazer a cirurgia
genital (muitos nem querem) e por isso acabam ficando impossibilitados de retificar seus documentos.
Esqueci de incluir um detalhe importante, todo esse processo custa dinheiro, MUITO dinheiro.
É importante também apontar que esse processo é padrão e praticamente o mesmo no mundo todo, com
algumas raras exceções…
Corpos E Saúde Trans
21 de setembro de 2019Beatriz Saude e Corpo0
Textos de Beatriz P. Bagagli.
É comum vermos a representação das alterações corporais por pessoas trans em discursos transfóbicos
como algo não saudável. A ideia é de que a intervenção médica, neste caso, produz doença, porque você
tem que fazer acompanhamento hormonal por exemplo, quando se é trans. A página “no corpo certo”
acabou de falar isso.
Acontece que essa representação é profundamente equivocada. Essa ideia só se sustenta por um discurso
bem mequetrefe a respeito de uma defesa de “corpos naturais” que simplesmente não se sustenta. É
agressivo, transfóbico impor que a única noção de saúde seja você ter que simplesmente evitar ir ao
médico. É impreciso também – é equivocado achar que os corpos de pessoas trans são essencialmente
mais dependentes da tecnologia do que os corpos de pessoas cis. É preciso desnaturalizar o corpo cis.
Todos os corpos são frutos dos avanços tecnológicos – quer você queira ou não, quer você perceba ou não.
Não deveria fazer sentido – a menos que você simplesmente naturalize o corpo cisgênero como o único
possível e legítimo de ser habitado.
A ideia de que pessoas trans estariam sendo “escravizadas” pelos procedimentos médicos é transfóbica.
Ignora a agência de pessoas trans, nos representa como pessoas alienadas que precisam ser salvas pela
teoria radfem. Não precisamos sermos salvas. Nenhuma feminista radical precisa me dizer o que eu devo
ou não fazer com o meu corpo. Você vir me dizer que eu estaria sendo mais “saudável” se eu não fosse
trans é uma ideia transfóbica. É uma noção autoritária sobre saúde, uma falsa noção de saúde que visa
apenas tornar as vidas trans inviáveis.
Ao contrário: é a negligência médica que impacta negativamente na vida e saúde de pessoas trans. É ela
que empurra às pessoas trans para a auto-medicação e verdadeiramente precariza a nossa saúde. A ideia
de que intervenções médicas são “perigosas” é uma desculpa esfarrapada para a transfobia mesmo e a
pseudo-naturalização grotesca do corpo cisgênero.
***
Muito me espanta pessoas cis (em especial, feministas) acusarem as pessoas trans de serem “criações
artificiais” ao passo que os corpos cis passam como transparentes. Se esquecem que todos os corpos,
incluindo os cis, são tão produtos de artifícios tecnológicos quanto os corpos trans.
A pergunta que fica é: o que faz dos corpos cis, corpos tidos como transparentes, naturais? O que faz com
que o corpo cis aparente uma continuidade assombrosa entre o seu produto real e o seu imaginário de
corpo natural (como se o corpo cis que conhecêssemos agora fosse uma espécie de extensão espontânea
da própria natureza)?
Todos os corpos são produtos de uma cadeia complexa de relações sociais que não podemos prever
linearmente, tampouco calcular. A descoberta das vacinas, a industrialização, a informatização,
medicamentos, etc. Todo o complexo social produz igualmente o seu corpo e o meu. Você realmente acha
que seu corpo, por não sofrer determinadas sanções jurídicas e biomédicas sobre a transexualidade, está
acima de todo esse complexo social? Resposta… não, não está.
O que acontece aqui é uma objetificação específica de corpos e identidades trans. Ao nos colocar na
posição de objetos construídos — ao passo que a cisgeneridade é posta de lado, como impensado dessa
construção social — nós somos destituídas de qualquer possibilidade de agenciamento subjetivo, de
tomada de consciência de si. Somos meros produtos, não sujeitos que também interferem nesta
construção.
Colocar pessoas trans como “meros produtos da sociedade patriarcal” é a extensão do próprio discurso
patriarcal que tira qualquer possibilidade de constituição subjetiva e de resistência. É transfobia também.
Leiam também nas blogueiras feministas.
SENÃO NOSSOS CORPOS
26 de janeiro de 2016Beatriz Transmisoginia0
Texto de Amara Moira para a blogagem coletiva do dia de visibilidade trans – 29 de janeiro. Créditos
da foto: Lígia Francisco.
Quem piamente acredita que a essência da pessoa (o que ela é de fato, no seu mais profundo) se localiza no
cérebro, quem acredita que bastaria congelar esse cérebro para manter vivo o que de mais importante essa
pessoa tem, não poderia senão ser alguém completamente dentro dos padrões mais opressores dessa
sociedade, homem cisgênero branco heterossexual magro sem deficiência criado nas classes abastadas ou
coisa bem próxima disso. Pessoas trans não, elas sabem que são antes de mais nada seus corpos, sabem
que a sociedade não lhes deixará esquecer disso em momento algum, em especial as travestis.
O que importa o que nós travestis tenhamos a dizer sobre o que somos? Acaso se dissermos que somos
homens deixaremos de ser expulsas de casa, estupradas no banheiro masculino da escola, deixaremos de
ver as portas do mercado de trabalho fechadas, de ver na prostituição mais precária o quase que exclusivo
caminho para conseguir nossa subsistência, deixaremos de ser tratadas como lixo ou pedaço de carne
ambulante? Não importa o que digamos, se homem, se mulher, se nenhum dos dois, seremos sempre e antes
de mais nada os nossos corpos, e onde quer que estejamos seremos lembradas disso. A luta para nos
encaixarmos no padrão feminino cis (coisa que nos faz ser acusadas de “reproduzir estereótipos de gênero”)
é a forma que encontramos para diminuir a violência a que estamos sujeitas: quanto mais sucesso tivermos
nisso, mais deixaremos de ser alvo da transfobia para sê-lo apenas da misoginia, o que diz muito sobre o
mundo a que temos direito.
A metralhadora de olhares, entre curiosos e hostis, tentando entender o que somos, tentando nos enquadrar
dentro de uma ou outra categoria (“é mulher ou homem?”), ao invés de simplesmente legitimar a maneira
como vivemos nossas vidas, a maneira como construímos nossos corpos, nossa identidade, metralhadora de
olhares que facilmente se converte em violência verbal (“traveco”, “ê João”, “seu lixo”, “vaza”) e física,
metralhadora de olhares que nos recorda a todo momento que, por conta do corpo que somos, por conta de
não sermos senão nossos corpos, não temos direito de ocupar as ruas à luz do dia, de ter família, de
frequentar escolas, de conseguir trabalho. O trabalho a que nos relegam, aliás, sequer é considerado trabalho:
não se esqueçam disso, a gente não esquece nunca. Dizer que, congelando cérebros, estarão conservando
o mais essencial das pessoas é só mais outra dessas violências que se acostumaram a cometer contra nós.
Afinal, o que somos nós senão a zona cinzenta no rosto por não termos como arcar com a depilação a laser,
nossa mão grande, gogó, ombros largos, testa protuberante, voz característica? O que somos nós senão o
genital com que nascemos, espremido numa calcinha apertada, e que tratam como se estivesse estampado
em nossa testa? O que somos nós senão esse peito que se recusa a crescer mesmo com doses cavalares
de hormônio? O que somos senão a cicatriz dos socos, facadas, tiros que levamos?
Acreditar que seu cérebro resume o que você é diz muito do corpo que você tem, diz muito da vida que te
permitiram viver, mas não diz nada sobre nós.
Os Abusos Dos Regimes Normativos De Gênero: Uma Proposta De Fuga Com Os Corpos Que Sobram
5 de agosto de 2016Beatriz Transmisoginia0
Texto de Léo Araruna
Imbuídas em um organismo vivo chamado social, somos rendidas a regimes normativos que nos cospem
suas leis. Chegar nessa terra povoada já é receber pulsões, impulsos e desejos de controle e molde do corpo.
A partir de nossa carne infantil, somos organizadas a corresponder aos olhares dominantes: o que é ser um
homem e uma mulher, e só. Vítimas do continuísmo podre, o embocetamento conduz à mulheridade, e os
penianos que se façam de viris. Se houver deturpação, que a repulsa e o asco dos Outros repreendam tal
infante. Nada além é permitido. O regime acalma os olhos, faz tudo ser lido e compreendido. O masculino
para o feminino, a fêmea para o macho. Tudo certo. Tem-se a Verdade.
Contar a história da Heteronormatividade e da Cisgeneridade como regimes regrantes do mundo social pode
requerer um maior período temporal e demais palavras para caber neste texto que prometo síntese. Por isso,
busco, aqui, permissão para analisar determinada perspectiva desses regimes. Aquilo que eu e demais
companheiras nos achamos repetindo em demasiados encontros: o abuso, o assédio, e a precarização de
nossos corpos.
Os dois regimes ditados acima atuam em permanência e de forma mútua. A fim de se fazerem fortes e
necessários, registram-se em nossos corpos, seja pela estética corporal, pela expressão gestual, pela
performance, ou pelo invocativo das vontades e sugestões que o corpo expulsa. O gênero ─ material
produzido nessas regras ─ se apresenta por tudo aquilo que nos adentra como socialização e por tudo aquilo
que jorramos e que exteriorizamos ao entrar em contato com os devaneios e experiências do psíquico.
Dessa forma, vê-se que somos criaturas construídas, entalhadas e imitativas. Somos despossuídas, só
chegamos com as tripas que nos comporta, e, assim, somos validadas e nos tornamos possíveis devido à
interpretação e à leitura social que o próximo nos invoca a partir dessa generificação corporal realizada por
esses regimes. Assim, há violência. Todas nós somos ajustadas, desde o instante em que chegamos ao
território do social.
Contudo, a gana deste texto está em gritar outra Violação. Aquela que se mostra após a construção dos
corpos, a que se apresenta na interação destes. Então, através da observância, da experimentação e do
testemunho, faço uma aposta: encontro uma dualidade desigual e violenta na interação e transa de corpos
em meio à sociedade. Vejo corporalidades capazes, proprietárias, consumidoras, e que comem; por outro
lado, vejo bichos fracos que se destinam a objeto ou à objeção, que tem seus corpos raspados, tolhidos e
divididos, os que são comida. É melhor eu repetir em outro tom, com uma gramática de gênero: vejo os
abusadores ─ os Homens heterossexualizados e cisgenerizados ─ e todo o resto que sobra.
A rendição desse resto de povo às vontades desses homens se apresenta em contextos alarmantes. É na
epidêmica violência doméstica que inúmeras mulheres vivenciam, é na economia da prostituição destinada
às travestis nos cantos de rua, é no estupro corretivo que vitimam lésbicas e homens trans.
Os regimes de controle apontados, ao fabricarem nossa matéria corpórea, não apresentam somente a
necessidade de dois corpos distintos, um feminino e outro masculino, que devem se complementar e se
pertencer. Eles, também, rearranjam o lugar e a territorialização de cada corpo produzido no mundo, até
mesmo daqueles que desafiam suas estruturas de regulação e que desobedecem a suas legislações
compulsórias: os corpos trans os quais possuem uma textura corporal imprópria para sua genitália ou os
corpos lésbicos, gays e bissexuais os quais possuem um afeto indevido de ser exposto e compartilhado.
Sendo assim, o espaço em que essas pessoas devem ocupar dentro do organismo social é delimitado. Há
dificuldade de se impor, ser um ente possível e capaz de alcançar, quando não se é esse Homem, ou quando
não se respeita esses regimes.
Surgimos ao sermos reguladas. E nossa disposição no mundo, devido à nossa composição de gênero, é
desigual. Surgimos em meio à desigualdade. Surgimos para sermos desiguais. E, em meio a essa
desproporção, têm-se os abusos, as violações, a angústia, o medo.
A princípio, o impossível nos chega como resposta à tentativa de falência desse mundo. Como ruir com essa
organização tardia que nos destrói, que nos caça, que nos alimenta? Como deturpar as desigualdades dos
regimes da Heteronormatividade e da Cisgeneridade, para que dominantes se desfaçam e subordinados se
ergam? Que espécie de afetividade deveremos atiçar para fundar a revolução corporal, a qual rompa de vez
com essa repetição cansativa, violenta e abusiva?
Estratégias e planos aos montes são traçados, a fim de ruir ou, ao menos, desmontar, os pesadelos dessas
relações e desses marcos políticos que nos agridem. Mas, hoje, aqui, invoco uma pequenez. Lanço uma
disputa mínima nesse jogo que descrevo. Vou dialogar com o mutável, com o que me passa, me atravessa;
com o que nos transpõe. Vou pensar o impossível com os outros corpos que me aproximam. Vou fazer uma
política com aquele resíduo de gente que me sobrou. Pensarei experiências de abertura e de libertação com
aqueles restantes de pessoas que são a negativa daqueles Homens que nos afligem. Vou me fortalecer pela
desigualdade que nos foi dada. É mergulhando naquele impossível que me apresenta, muitas vezes, como
única resposta que descubro mulheres e homens que são feitos à subordinação como eu. Deixar-me-ei levar
por suas descrições sobre mim. Farei dessa pele que me cobre uma construção Nossa, plural, coletiva.
Deixarei que me componham, que me descrevam, que entrem em mim. Poderemos ser construídas pelas
diferenças que já nos formam. Serei atualizada pelo que juntas produziremos. Não serei minha. Serei bicho
solto, despossuída pelas companheiras que caminham junto. O pequeno que, aqui, peço é que nos tornemos
coletivo com aqueles corpos em excesso. Um aglomerado de povo que destoa do organismo total chamado
social. Um amontoado que não seja nação ─ um geral, composto, sem especificidade ─, mas uma grandeza
que seja dúvida, ideia e estratégia de realização política formada por corpos afastados. Deixe-me seguir,
enquanto posso e tenho calmaria, ao lado das invenções de fuga e de desordem de mulheres e homens que
sangram comigo.
Léo Araruna, 21, é estudante de Direito, travesti, e militante da Coletiva LGBT Corpolítica.
Imagem: Portal Terra Alta.

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