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31/01/24, 14:49 UÉ, MAS VIADO E TRAVESTI SÃO A MESMA COISA?

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UÉ, MAS VIADO E TRAVESTI SÃO A


MESMA COISA?
Por Amara Moira - 20 de outubro de 2023

Aposto que um pessoalzinho deve ter ficado confuso com a minha última coluna,
sobretudo quem só ali descobriu que travesti e viado podem ser sinônimos. Devem
pensar, mas viado não é uma palavra masculina? Sim, e é aí se revela um dos pontos
mais intrigantes da travestilidade, a anarquia de gêneros, a incapacidade de se
adequar a um binarismo empobrecedor. Quem convive com travestis, certamente já
viu alguma de nós chamando a colega por “bicha” ou “viado” e, se a opinião corrente
no Brasil, ainda hoje, é a de que essas palavras significam “gay cis”, isso só revela o
pouco contato que se tem com a cultura travesti. Desconhecimento que começa a
afetar a própria memória da comunidade trans, aliás.

Digo isso porque já vi gente que se diz travesti, dessas novas gerações mais militudas
de internet, falando que “nenhuma travesti gosta de ser chamada de bicha e viado”.
Gata, do que você tá falando? Com quem você aprendeu o sentido de travesti, hein?
Longe de mim querer cagar regra em identidade alheia, mas se você encanou que é
justo essa palavra que te define, seria legal pelo menos ir atrás da história dela,
conviver com gente que a utiliza há mais tempo.

As ambivalências de gênero
Uma coisa que me dá raiva, p.ex., é quando alguém diz “o travesti”, seja por mero
deslize ou porque foi assim que aprendeu, e é tratado como a pessoa mais
transfóbica do mundo. Já vi até gente desdenhando de obras incontornáveis LGBTI+
porque aparecia algum “o travesti” em suas páginas, obras com as quais a gente têm
muito o que aprender. As novas gerações parecem não fazer ideia de que, até uns 20
anos atrás, essa terminologia era usada pelo próprio movimento organizado de
travestis e que, na prostituição das ruas, onde essa cultura efetivamente se forjou, ela
é usada ainda hoje. Lógico que já se vê muita mona usando “a travesti”, a maioria

https://fatalmodel.com/blog/colunistas/viado-e-travesti-sao-a-mesma-coisa/ 1/3
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talvez, mas daí a concluirmos que o oposto disso é obrigatoriamente transfobia é


absurdo.

De qualquer forma, será que travestis que usam “o travesti” ainda não aprenderam
que podem usar a palavra no feminino ou será que são pessoas com quem podemos
aprender a lidar de forma mais leve com as nossas ambivalências de gênero? Isso
me traz à memória uma discussão que tive com uma das militantes mais incríveis
que conheci, Janaína Lima. Eu tentava argumentar com ela que travesti era um
gênero feminino e ela batia a o pé que isso era uma visão simplista. Daí perguntei:
“então, que banheiro você usa?” E ela: “depende… se eu quero fazer pegação, vou no
masculino”.

Brincadeiras à parte, o que ela estava dizendo é que a luta era para que travestis
pudessem usar o banheiro feminino, não para que fossem obrigadas a isso. Até
porque o clima de desconfiança e hostilidade faz com que muitas de nós prefiram
usar o masculino mesmo. Lá não vai ter ninguém se dizendo ameaçado, pelo
menos… além da fila andar mais rápido.

Fico pensando nos sentidos profundos, inconfessáveis talvez, dessa cobrança


militante para que “a travesti” seja a única forma aceitável da expressão. De um lado,
a pressão serve para reforçar que travestis não são, como se diz entre nós, “viadinhos
de saia” e “gays montados”, o que em alguns momentos pode ser importante (digo
“em alguns momentos” porque a obsessão por diferenciar categorias e criar termos
cada vez mais precisos não existe no nosso meio… a gente parece conviver bem com
a polissemia). Agora eu me pergunto se, junto disso, não há também uma pressão
para que as próprias travestis passem a se entender (e se comportar) como uma
identidade 100% feminina, uma espécie de subcategoria de “mulher”. Em suma, para
que abram mão dessa anarquia de gêneros que é uma de suas características mais
notórias e se transformem, finalmente, em irmãs siamesas das “mulheres
trans(exuais)”.

Mulheres Trans x Travestis


Eu mesma já defendi, em mais de uma oportunidade (aqui no blog da Fatal Model,
inclusive), a necessidade de borrarmos as fronteiras entre o que seria “travesti” e
“mulher trans”, mas, quando o fiz tinha como alvo a diferenciação genitalizante e
patologizadora que a medicina criou. Ou seja, eu estava defendendo que não faz
sentido dividirmos o espectro feminino da comunidade trans entre pessoas que têm
aversão ao genital com que nasceram (supostmente as mulheres trans) e pessoas
que lidam bem com esse genital (supostamente as travestis). No entanto, apesar de
eu rejeitar essa diferenciação e defender uma certa indiferenciação entre essas
palavras, é importante perceber que elas adquiriram vida própria no contexto
brasileiro e que, nesse contexto, elas têm sim suas diferenças.

“Viado” e “bicha”, p.ex., são sinônimos de “travesti”, não de “mulher trans” e, se


começam a surgir casos de mulheres trans que não se ofendem quando chamadas
por essas palavras, é porque elas já foram seduzidas pelo lado travesti da força. O

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mesmo com o bajubá, que é a língua das travestis, nada a ver com a comunidade
trans ampla (mais fácil encontrar um gay cis que fala bajubá do que uma mulher
trans; homem trans piorou). Aliás, podem esperar umas colunas sobre o bajubá pras
próximas semanas.

Amara Moira é natural de Campinas, mas decidiu morar em São Paulo após se
assumir travesti. Ela é doutora em crítica literária pela Unicamp, pesquisadora de
gênero e sexualidade e, além disso, uma escritora que traz o putafeminismo para o
centro de suas obras, como se vê em: “E se eu fosse puta” (n-1 edições, 2023),
autobiografia sobre suas experiências como trabalhadora sexual, e “Neca + 20
Poemetos Travessos” (O Sexo da Palavra, 2021), que reúne seu monólogo em bajubá,
a língua das travestis, e sua produção poética sobre vivências LGBTI+.

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Amara Moira é travesti, putafeminista, doutora em teoria e crítica literária pela Unicamp e autora de "E se
eu fosse puta" (n-1, 2023), onde escreve sobre suas experiências como trabalhadora sexual, e "Neca + 20
Poemetos Travessos" (O Sexo da Palavra, 2021), obra que reúne o seu monólogo em bajubá, a língua das
travestis, e sua produção poética sobre vivências LGBTI+.

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