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É importante que nós percebamos que estas podem muito bem ser “não-questões” e que
a única resposta que podemos dar a elas é quenós sabemos quem somos. Nós sabemos
que somos mulheres que nasceram com cromossomos e anatomia feminina, e que sendo
ou não socializadas para sermos a chamada “mulher normal”, o patriacado tem nos
tratado e vai nos tratar como mulheres. Transsexuais não têm tido esta mesma história.
Nenhum homem pode ter essa história de vida de ter nascido e ter sido situado nessa
cultura como uma mulher. Ele pode sim ter tido em sua história a vontade de ser uma
mulher ou de agir como uma mulher, mas essa experiência de gênero é a de um
transsexual, não a de uma mulher. Cirurgias podem dar os órgãos femininos internos e
externos artificiais, mas não podem lhe conceder a história de ter nascido uma mulher
nesta sociedade.
Mas e as pessoas que nasceram com órgãos sexuais ambíguos ou com anomalias
cromossômicas que os põem na situação de serem biologicamente interssexuais? É
preciso notar que praticamente todos eles são alterados cirurgicamente para se tornarem
machos ou fêmeas anatomicamente e são criados de acordo com a identidade e o papel
de gênero social que acompanha seus corpos. Pessoas cuja ambiguidade sexual é
descoberta mais tarde são alteradas conforme têm sido seu gênero de criação (masculino
ou feminino) até aquele momento. Então, aqueles que foram alterados logo depois do
nascimento têm a história de praticamente terem nascido como homens ou mulheres, e
aqueles alterados tardiamente têm seu corpo cirurgicamente conformado à sua história.
Quando e se submetem às mudanças cirúrgicas, eles não se transformam no sexo oposto
depois de uma longa história atuando e sendo tratados de forma diferente.
Os transsexuais seriam mais honestos se lidassem com sua forma específica de agonia
de gênero que os inclina a quererem uma operação transsexualizante. Essa agonia de
gênero provêm do fato de ter nascido com cromossomos XY e querer ter nascido XX, e
da história de vida particular que produz este tipo de aflição. O lugar para lidar com este
problema, no entanto, não é na comunidade de mulheres. O lugar para confrontar e
resolver isto é entre os próprios transsexuais.
As pessoas devem poder fazer escolhas em relação a quem querem ser. Mas devem
poder fazer qualquer tipo de escolha?
Uma pessoa branca deve tentar se tornar negra, por exemplo? Essa é uma questão
moral, que trata basicamente da validade de tal escolha, não da possibilidade dela ser
feita.
Uma pessoa deve poder fazer escolhas que camuflam para os outros certas facetas de
nossa existência que os outros têm direito de saber — escolhas que se alimentam das
energias dos outros, e reforçam a opressão?
Jill Johnston comenta que “muitas mulheres estão dedicadas a trabalhar pelo ‘homem
reconstruído'” [2]. Isso normalmente significa mulheres gentil ou fortemente
estimulando seus homens a comportamentos e ações andróginas.
Mulheres que aceitam estas “feministas lésbicas” transexualmente construídas dizem
que estes homens são realmente “reconstruídos” no mais básico sentido que as mulheres
podem esperar — isto é, eles pagaram com suas bolas para lutar contra o sexismo. Em
última análise, porém, o “homem reconstruído” se torna a “mulher reconstruída” que
obviamente se considera um igual e uma semelhante às mulheres genéticas em termos
de “mulheridade”. Um transsexual expressou abertamente que ele sentia que homens
transsexuais cirurgicamente construídos como mulheresultrapassaram as mulheres
genéticas.
Mulheres genéticas não podem possuir esta coragem muito especial,
brilho, sensibilidade e compaixão — e visão geral — derivada da
experiência transsexual. Livre das amarras da menstruação e da
maternidade, mulheres transsexuais são obviamente muito superiores às
genéticas em muitos sentidos.
Jill Johnson escreveu sobre feministas lésbicas: “A essência da nova definição política é
o agrupamento de semelhantes. Mulheres e homens não são semelhantes e muitas
pessoas duvidam seriamente se já fomos ou se algum dia poderemos ser” [4].
Transsexuais não são nossos semelhantes em virtude de suas histórias.
As várias “raças” de mulheres que a ciência médica consegue criar são infinitas. Há
mulheres que estão hormonalmente dependentes em doses contínuas de terapias de
reposição de estrogênio. Tais terapias supostamente irão garantir à elas uma nova vida
de feminilidade eterna [9]. Há mulheres histerectomizadas, purificadas de seus órgãos
“potencialmente letais” por motivos “profiláticos” [10]. Finalmente, há a “she-male” —
o homem transsexual cirurgicamente construído como mulher. E o desdobramento dessa
“raça” é a “feminista lésbica” transsexualmente construída.
Todos estes eventos apontam para o papel particularmente instrumental que a medicina
tem desempenhado no controle das mulheres desviantes. O “Império Transsexual” é um
última análise um império médico, baseado no modelo médico patriarcal. Este modelo
médico forneceu um “dossel sagrado” de legitimações para o tratamento e a cirurgia
transsexualizante. Em nome da terapia, este modelo medicalizou questões morais e
éticas da opressão dos papéis sexuais, apagando assim seu significado mais profundo.
[1] Um paralelo com a questão do aborto, que pode ser notado neste contexto. A questão-chave,
perguntada pelos homens há séculos, é “quando a vida começa?” Esta questão é feita pelos homens em
seus termos e em seus territórios, e é essencialmente irrespondível. As mulheres têm se torturado tentando
respondê-la e, dessa forma, não fazemos e nem mesmo desenvolvemos nossas próprias questões sobre o
assunto.
[2] Jill Johnson, Lesbian Nation: The Feminist Solution (Nova York: Simon & Schuster, 1973), p. 180.
[3] Angela Douglas, Letter, Sister, Agosto-Setembro de 1977, p. 7.
[4] Johnston, Lesbian Nation, p. 178.
[5] Ibid., p. 279.
[6] Vide, por exemplo, o portifólio do fotógrafo J. Frederick Smith, “com deslumbrantes retratos
inspirados por poemas da Grécia Antiga sobre o amor entre mulheres”, na Playboy de outubro de 1975,
pp. 126-35.
[7] Um fotógrafo que é particularmente obcecado por “capturar” mulheres em poses pseudolésbicas é
David Hamilton. Ele é o criador dos seguintes livros de fotografia: Dreams of a Young Girl, texto de
Alain Robbe-Grillet (Nova York: William Morrow and Co., 1971). Sisters, texto de Alain Robbe-Grillet
(Nova York: William Morrow and Co., 1971). Este livro tem uma seção pictórica ultrajante entitulada
“Charms of the Harem” [Charmes do Harém]. Hamilton’s Movies — Bilitis (Zug, Suíça: Swan
Productions AG, 1977).
[8] Lisa Buck (notas não publicadas a respeito do transsexualismo, outubro de 1977), p. 3.
[9] Um exemplo deste tipo de literatura é o livro Feminine Forever, de Robert Wilson (Nova York: M.
Evans, 1966). Esse livro vendeu 100.000 cópias em seu primeiro ano, e foi citado na Look e na Vogue.
[10] Vide Deborah Lamed, “The Greening of the Womb”, New Times, 12 de dezembro de 1974. pp. 35-
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