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A Psicanálise é uma Polícia de Fronteira?

O caso da transexualidade
Lu Mariano

(Apresentado no 5º encontro do coletivo Democracia em Análise. As notas foram


adicionadas depois)

Nesse coletivo sobre Psicanálise e Democracia nós nos habituamos a ouvir psicanalistas.
É verdade que existe uma variedade admirável entre aqueles que assumiram a palavra:
ouvimos psicanalistas negras, psicanalistas mulheres, psicanalistas jovens e psicanalistas
mais velhos. A verve democrática parece assim reafirmada. Mas eu não sou analista. E
pode ser que o nosso tópico só possa ser devidamente tratado se tensionamos
radicalmente, desde já, a própria psicanálise e seus lugares estabelecidos. Não só eu não
sou analista, como é particularmente como não-analista que eu falo a vocês hoje.
Meu objetivo é apresentar alguns aspectos de um problema. Esse problema tem
uma genealogia extensa que seria preciso expor: remonta às próprias origens da
psicanálise na clínica da histeria, passa pelo caso Schreber e se enuncia hoje como: o que
a psicanálise tem a ver com a transexualidade? Certamente, a literatura psicanalítica sobre
o tema é muito extensa e eu pretendo comentá-la parcialmente; mas também, e até mais
importante, o que a psicanálise pode fazer da transexualidade? E principalmente: o que a
transexualidade pode fazer da psicanálise? Será que a psicanálise consegue ser mais do
que uma polícia de fronteira?

1. Amplo, geral e irrestrito

A psicanálise tem um longuíssimo histórico de violência institucional contra


pessoas trans. Psicanalistas das mais diversas escolas sistematicamente praticaram – e
ainda praticam – terapia de conversão forçada com pessoas trans, muitas vezes às suas
próprias custas. Não estou falando de exceções ou de um problema de “má-análise”, como
se essas violências constituíssem faltas a uma clínica “padrão-ouro”. É hora de encarar a
possibilidade de que o problema seja mais embaixo, com os próprios horizontes éticos,
políticos, clínicos, institucionais e teórico-conceituais da psicanálise. Entre tantos outros,
lembremos do relato de Catherine Millot, psicanalista e amante de Lacan, sobre a relação
do analista com uma paciente trans. Eu cito:

“A um (sic) transexual que reivindicava sua condição de mulher, ele [Lacan] não parou
de lembrar durante a entrevista que ele era um homem, quisesse ou não, e que nenhuma
operação faria dele uma mulher. E, para terminar, chamou-o de “meu pobre velho” – o
que era mais uma vez afirmar sua masculinidade e ao mesmo tempo interpelá-lo de
maneira quase amistosa. Pois isso era dito sem condescendência, daquele lugar de onde
Lacan sempre se dirigia ao outro, o da humana condição em que cada um se confronta
com o impossível, destino comum que assume frequentemente a face do infortúnio.” (A
vida com Lacan, p. 25)

A reação de Lacan, com efeito, parece quase fóbica. Ficamos nos perguntando que
singular verleugnung não estaria em jogo ali. Eu pretendo comentar, no momento
oportuno, as relações mais específicas entre a clínica lacaniana e a questão trans, mas
antes quero me perguntar quantas mulheres trans já não passaram por situações análogas.
E perguntar a vocês, diante disso, quantos sujeitos a psicanálise já não deixou de ouvir.
O tema das subjetividades trans parece hoje relativamente bem-integrado à máquina
psicanalítica, ao menos entre analistas mais jovens. Escrevem livros e textos sobre nós
reconhecendo a transfobia dos mestres e falando, abstratamente, em clínica da
singularidade, escuta periférica, modos-de-gozo ou Sinthoma com H. Mas essa ideologia
do lacanismo bom-mocista não é suficiente, e é na verdade um jeito astuto de não discutir
o problema. É hora de pensar em maneiras concretas de fazer reparação. Sugiro, para
começo de conversa, que as instituições de formação em Psicanálise instituam bolsas
integrais para pessoas trans. Depois, que sejam pagos acadêmicos trans para ensiná-los
sobre as teorias e práticas que nós próprios produzimos, enquanto sujeitos de enunciação
e não somente do enunciado, enquanto falantes e não como falados. Esse tipo de conversa
sobre reparações concretas deve preceder qualquer debate propriamente teórico. Se a
Psicanálise quiser estar realmente à altura das lutas sociais do nosso tempo, o que é
também estar à altura da radicalidade do seu próprio gesto fundante, o primeiro passo é
um acerto de contas amplo, geral e irrestrito com a questão trans. O segundo é se deixar
transformar por ela no limite da auto-dissolução.

2. Figuras da transexualidade na Psicanálise

Acompanhemos agora a Psicanálise em algumas de suas teorizações. O responsável por


introduzir de modo mais amplo o tema da transexualidade e do gênero no campo
psicanalítico foi o norte-americano Robert Stoller, nos anos 60, com o relato de suas
pesquisas em uma clínica de sexologia da Universidade da California. Stoller parte da
ideia de uma “feminilidade originária” comum a meninos e meninas, oriunda do laço
simbiótico da criança com a mãe. No desenvolvimento normal, o menino é incitado a
separar-se da mãe e repudiar a feminilidade, enquanto a menina é desencorajada a sair de
sua posição de dependência. Mas há sempre a possibilidade de acidentes de percurso.
Para “produzir” uma mulher trans verdadeira, por exemplo, seriam necessárias três
gerações. A mãe do transexual é uma mulher cronicamente deprimida e com uma forte
“inveja do pênis”, ambas decorrentes de sua própria mãe distante e pouco afetuosa.
Quando dá à luz um “belo menino”, então, a mãe o “inunda”, criando um laço simbiótico
particularmente forte, em que o filho preenche as necessidades emocionais da mãe.
Contribui para esta “simbiose feliz” um casamento infeliz em que o pai, distante, não
ocupa o papel de interditor e tampouco serve como modelo identificatório. Eu cito:

“Mães de transexuais tem fantasias de suas próprias transformações sexuais


durante a latência, e, embora as abandonem e reconheçam que elas nunca se tornarão
realidade, as fantasias são reacesas de uma forma encoberta quando essas mulheres dão
à luz um belo menino. Por causa das necessidades inconscientes, criadas no passado
dessas mães, seus filhos estão fadados a servirem como o falo guardado como um tesouro
que elas ansiavam. Assim, eles serão a cura da solidão, da tristeza e da desesperança
nelas instaladas por suas próprias mães frias e poderosas e seus rejeitantes pais, e devem
também ser o pênis que equalizará o sentimento que tinham de serem inferiores por não
serem homens” (A Experiência Transexual, p. 43)

Quando fala de pessoas transmasculinas, por sua vez, que ele chama de
“transexuais femininos”, Stoller é muito mais contido: às vezes fala de um desejo
frustrado dos pais por um filho menino e suas consequências e outras vezes lança mão de
uma etiologia sistêmica como fizera com a transexualidade masculina. A mãe do
transexual feminino, segundo Stoller, é feminina, mas frequentemente se afastava do
contato com a criança por apresentar alguma doença emocional severa, como depressão.
O laço simbiótico inicial com a mãe, então, é interrompido e não houve figura materna
que a substituísse. O pai, por não suportar a esposa nos momentos de crise, se abstém, e
a menina é levada a se tornar um substituto do pai para cuidar da mãe, em busca de seu
reconhecimento.
Notemos que utilizamos acima a expressão “mulher trans verdadeira”. Stoller,
apesar de não ter criado a distinção, foi um dos mais importantes proponentes da ficção
epistemológica do “transexual verdadeiro”. O transexual verdadeiro, masculino ou
feminino, possui um núcleo de identidade de gênero inambíguo; exibe comportamentos
masculinos ou femininos desde a infância; têm horror aos próprios genitais, e fantasias
heterosexuais em que ocupa o lugar do sexo oposto (em tal combinatória, então, a
demanda cirúrgica era a demanda pela assunção de uma heterossexualidade normal,
genital e saudável). Além disso, as próprias hipóteses etiológicas eram critérios de
distinção: os transexuais deviam se adequar a elas para serem considerados verdadeiros.
À categoria de “pseudo-transexuais”, “travestis” ou “fetichistas” eram relegados todos
aqueles que não se conformassem ao tipo clínico. Ou seja: todas as mulheres trans
lésbicas, todos os homens trans gays, todos aqueles que não odiavam os próprios corpos,
todos aqueles que tinham dúvidas ou que oscilavam em sua identificação de gênero, todos
aqueles que se descobriram “tarde demais”. Se, diante dos “transexuais verdadeiros”, a
posição de Stoller era de relativa condescendência, reconhecendo-os como portadores de
uma “condição” incurável e atendendo às demandas por procedimentos médicos, os
“travestis” eram descritos como homens perversos ou mulheres falicizadas e tinham suas
demandas negadas. No entanto, mesmo diante das concessões relativas à “transexualidade
verdadeira”, encontramos ao longo de seus livros diversos relatos de tentativas de “cura”,
principalmente com crianças e adolescentes. Sustentava que o objetivo do terapeuta, com
crianças “afeminadas”, era ajudar a induzir uma identificação com a masculinidade, por
vezes na figura do terapeuta, e disparar um complexo de Édipo até então inexistente1. O
primeiro índice de sucesso, sintomaticamente, seria uma crescente agressividade para
com as mulheres. Stoller também afirma que o terapeuta é um representante da sociedade,
da “saúde” e da conformidade com a “realidade externa”, e que está, no caso dos
meninos, do lado de sua masculinidade.
Bem, o que fazer com essa parafernália? A noção de “transexualidade verdadeira”
fez carreira no discurso psiquiátrico e psicanalítico, como uma dobra dos discursos
médicos sobre o sexo verdadeiro que marcaram boa parte do século XIX. E vamos
encontrá-la ainda hoje (vide os trabalhos recentes de Rafael Kalaf Cossi e Marco Antônio
Coutinho Jorge). Corresponde, no fundo, a uma tentativa elaborada do discurso médico
de enquadrar a transexualidade na ideologia geral da heterossexualidade; um dispositivo
biopolítico que regula o acesso às tecnologias médicas de transição. Mas será que
devemos jogar Stoller no lixo? Parcialmente, sim. Era um exemplar policial de fronteira.
Em outra chave, aquela da teoria feminista, sujeitos se constituem em torno de práticas.
Definamos, então, certas práticas chamadas de “práticas transexuais”, e compreendamos

1
Notemos como Stoller diverge da narrativa freudiana: sem um primeiro senso de “virilidade” nascido da
rejeição da feminilidade originária, o menino não se sente ameaçado pelo pai e portanto não toma a mãe
como objeto. A assunção da virilidade deve preceder o disparo do complexo de Édipo. Já em Freud, a mãe
é um objeto para o menino desde o início e a castração incide sobre essa relação, produzindo a virilidade
como efeito. Para uma revisão das diferenças entre Stoller e Freud sobre Édipo, cf. Corpo em Obra, de
Rafael Kalaf Cossi, p. 70 em diante.
como “transexuais” todos aqueles sujeitos que se constituem na vizinhança de tais
práticas. Assim, o que precisamos não é de uma tipologia diagnóstica, mas uma ecologia
política das práticas transexuais avaliadas de modo imanente. O que elas fazem, que
efeitos produzem nos sujeitos que elas constituem? Que relação estabelecem com o
parentesco e com o desejo, sim, mas ainda mais importante, que relação elas estabelecem
com o gozo e a vida? Quando Deleuze e Guattari repetiam que o desejo não era, em si
mesmo, edipiano, não queriam dizer com isso que não houvessem investimentos
edipianos, mas que a família está desde o início aberta por todos os lados ao campo social.
“Toda criança sabe ao seu modo”, eles dizem, “que o pai tem um patrão que não é pai do
pai”, e que “a família não engendra seus próprios cortes: as famílias são cortadas por
cortes que não são familiares [mas histórico-mundiais]: a Comuna, o caso Dreyfus, a
religião, o ateísmo, a Guerra da Espanha” 2. Poderíamos continuar a lista com territórios
e acontecimentos marcantes da história travesti no Brasil: a Ditadura, o terreiro, a
prostituição, a crise da AIDS, a Operação Tarântula, o teatro transformista. Stoller deve
ser lembrado como aquele que fez a importante descoberta de que a transexualidade é
uma posição no sistema de parentesco, põe em jogo uma relação com a mãe, com o pai,
mesmo com a avó, com os amores, os desamores e os sofrimentos de cada um; mas o
parentesco não é o destino e não deve subsumir as múltiplas práticas transversais que
possuem como efeito a emergência de um sujeito trans.3
Por fim, o próprio parentesco teria que ser entendido como um lugar complexo
em que circulam não apenas repetições e modos de sofrimento, mas inadequações e
desejos de transformação. Notemos como, ao longo de suas obras, Stoller nos oferece um
fascinante maternário. As mães de Stoller são frias, cronicamente deprimidas, solitárias,
resignadas, presas em casamentos infelizes e elas mesmas infelizes; a ponto de que, lendo
sua obra, é difícil não se perguntar com quantas mulheres infelizes se faz um transexual.
Se, por um lado, é preciso denunciar em Stoller o familismo e o imperialismo do
parentesco, por outro é preciso notar que o próprio parentesco é um campo de batalha
político, o que Stoller não percebe; ou percebe mal quando assume a posição
conservadora. Afinal, o que significa dizer que a transexualidade está diretamente ligada
aos sofrimentos da mãe em sua condição de mulher? As elaboradas etiologias sistemáticas
de Stoller parecem consistir, em última instância, na descrição da transmissão matrilinear
de um desejo de transformação, como se, muito antes dos transexuais, suas mães já
portassem, mesmo que em silêncio, o desejo de uma vida reinventada. O sujeito trans, se
levamos Stoller às últimas consequências, é aquele que está diretamente implicado em
uma contestação silenciosa e transgeracional de que ele não é o autor, mas o suporte; o
portador de um desejo de transformação que em muito lhe antecede. Não se trata, este
desejo, de curá-lo ou suprimi-lo, como queria Stoller; mas de fornecer a ele o seu campo
de produtividade.

3. As estruturas descem às ruas

2
O Anti-Édipo, seção II.5.6
3
Lembremos que a noção de transversalidade foi primeiro elaborada por um – então – psicanalista, Felix
Guattari, para descrever a natureza da transferência psicótica. Se o psicótico parecia incapaz de
estabelecer uma transferência edipiana com a figura do analista, isso não o impedia de estabelecer laços
com instituições, territórios e grupos que tinham efeito de transferência. Transversalidade, então, é a
propriedade de um efeito de poder ser produzido por muitas cadeias causais diferentes (como no
conhecido exemplo do porre de Henry Miller, em que se atinge a embriaguez bebendo água). Cf. Félix
Guattari em Psicanálise e Transversalidade e Gilles Deleuze em Conversações.
Desejo me dirigir agora especialmente aos lacanianos. Stoller não era lacaniano. Suas
principais referências eram nomes da escola inglesa e um recurso singular às teorias
comportamentais e etológicas. Mas nos anos subsequentes à publicação de seus primeiros
livros, analistas lacanianos e o próprio Lacan se utilizam deles à sua maneira.
Lacan faz referência direta a Stoller e à questão da transexualidade em duas
ocasiões, ambas no Seminário 18. Na primeira, após fazer menção a Stoller e elogiá-lo
por fornecer em seus livros “observações absolutamente utilizáveis”, Lacan o censura
porque “a face psicótica desses casos é completamente eludida pelo autor, (...) já que
nunca lhe chegou aos ouvidos a foraclusão lacaniana”. Na segunda ocasião, Lacan tenta
remeter a transexualidade a um certo regime de relação (ou não-relação) do sujeito
transexual com o falo, que se daria a ver por meio da demanda de transgenitalização.
Recusando a posição de falo da mãe, o transexual cometeria um erro, “justamente o erro
comum”4, de tomar o significante (falo) pelo órgão (pênis).
Muito já se disse sobre a associação entre transexualidade e psicose, e o sentido
de “falo” em Psicanálise é uma disputa escolástica que já ocupa dezenas de volumes, de
modo que não quero aqui mais do que fazer algumas considerações. A primeira delas é
estritamente interior ao campo psicanalítico e diz respeito à noção de estrutura clínica.
Com que noção de estrutura se opera quando se assimila, sem maiores ressalvas,
comportamento, sintoma e estrutura? Nem todo comportamento é um sintoma; nem todo
sintoma tem estrutura de comportamento; estruturas não se definem por sintomas, e
sintomas não são diferenciais de estrutura. Quando confrontados com a exigência de
repensar seus modos de descrição do patológico, os lacanianos geralmente recorrem à
uma diferença definitiva que faria com que seus diagnósticos fossem radicalmente
estranhos aos diagnósticos da Psiquiatria. De direito, concedo-lhes o benefício da dúvida.
Mas de fato, os diagnósticos psicanalíticos são frequentemente utilizados com o mesmo
pendor patologizante dos diagnósticos psiquiátricos. É preciso uma avaliação crítica da
relação da diagnóstica estrutural psicanalítica com a racionalidade diagnóstica da
psiquiatria, e uma outra avaliação crítica mais ampla sobre o papel das estruturas na
clínica. O livro recente de Coutinho Jorge e Natália Travassos põe que sua grande
inovação teórica teria sido abrir a possibilidade de localizar a transexualidade não mais
em uma estrutura psicótica, mas na estrutura histérica, como se fosse uma simples questão
de subsumir o fenômeno à estrutura; mas deve-se antes perguntar com que direito se
converteu as estruturas em destino. A diagnóstica estrutural não é um dado transcendental
da subjetividade ou do sofrimento, mas efetivamente uma territorialização que só
funciona na medida em que operacionaliza certos vetores de subjetivação (a castração, a
fantasia, o objeto a, etc.).
E será coincidência que neste “erro comum” que Lacan atribui às transexuais, a
saber, confundirem falo e pênis, elas se aliem justamente a certas críticas feministas? Eu
não poderia me esquivar de tecer algumas considerações sobre o falo, este operador
clínico e teórico maior na psicanálise. Nós todas já ouvimos que o falo não é o pênis.
Entre os lacanianos, essa tem sido a estratégia standard para evitar considerar com mais
atenção as críticas feministas, dispensando-as como se tributárias de um erro conceitual
básico. No entanto, aprumem-se em vossos divãs e limpem os ouvidos. Digam mais uma
vez: “o falo não é o pênis”. O que está em jogo aqui? Em um primeiro nível, é evidente
que o falo não é o pênis: afinal, são dois significantes diferentes; dois sons diferentes e
duas grafias diferentes. Mas vocês sabem muito bem o que quer dizer automatismo do
significante. É preciso se perguntar: em que operação a Psicanálise se encontra tomada
quando procura controlar o uso de um significante, e, ainda mais, separá-lo, negá-lo
4
Lacan, Seminário 18: ou pior, sessão de 8 de dezembro de 1971.
radicalmente de um outro? Isso lembra vocês de alguma coisa? De fato, a insistência da
Psicanálise em repetir a negação de que o pênis seja o falo parece uma variação exemplar
do conhecido “esta mulher em meu sonho não é a minha mãe”, que Freud comentou em
seu texto de 19255. As reiteradas tentativas de negar um significante não podem senão
fazer com que ele retorne pela porta dos fundos, e assim o pênis, expulso do falo, não
cessa de retornar na forma das críticas feministas nas quais a Psicanálise nem sequer se
reconhece. E mais: as tentativas de controlar o uso de um significante são elas mesmas
sintomáticas de um desejo fálico do discurso psicanalítico, que pretende se situar na
origem da linguagem e do significado; e o fracasso em fazê-lo é ele mesmo uma figura
da castração. Ao fim do dia, a Psicanálise é que agora parece tomada em uma ampla e
generalizada denegação da castração.
Por fim, eu gostaria de fazer uma consideração geral. Acredito que se discute mal
a relação entre Psicanálise e Política, tema de nosso coletivo, quando as tomamos como
dois polos separados e que devem ser reunidos. Não. A Psicanálise não se estende até a
Política, nem a Política penetra na Psicanálise como algo extrínseco. A Psicanálise é
desde o começo um dispositivo de intervenção política sobre a subjetividade.
Contemporânea das principais vanguardas estéticas do século XX, ambas respondiam a
um mesmo clamor, a um mesmo desejo de uma vida reinventada, primeiro anunciado
talvez pelos movimentos revolucionários e pelos grandes poetas malditos do século XIX.
Lembremos que em Lacan, é Rimbaud quem dá a fórmula do ato analítico. Rimbaud:
trata-se do poeta da comuna e das insurreições populares, que não cessará de escrever
sobre os presos, as prostitutas e os revolucionários e de repetir que o amor só é possível
reinventado. Não há como separar um livro como Uma Temporada no Inferno da Comuna
de Paris, “da denúncia das genealogias da Europa, da admiração pelo condenado, da
intensa travessia dos limiares da história, (...) desse ‘deslocamento de raças e continentes’
(...) e, sobretudo, dessa vontade deliberada, obstinada e material, de ser ‘de raça inferior
desde toda a eternidade’”6. O que significa dizer que este mesmo poeta é quem possui a
fórmula da operação psicanalítica mais decisiva de todas, a saber, o ato analítico?
Sintomaticamente, no entanto, o seminário sobre o ato analítico (o seminário XV)
termina exatamente com o início das revoltas de maio de 1968, e os dois seminários
seguintes estão cheios de alusões críticas e irônicas ao influxo e refluxo dos
acontecimentos. Sabemos que Lacan assume, diante de 68, diante deste evento que os
franceses dizem ter sido o único acontecimento depois da Comuna, Lacan assume uma
posição marcadamente conservadora. Lacan famosamente disse aos revoltosos: “o que
vocês aspiram como revolucionários é a um novo mestre. E vocês o terão”. Será que esta
afirmação não denuncia um compromisso silencioso com a posição do mestre,
precisamente aquela que o discurso histérico contesta? Discutir as contradições próprias
às revoltas de 68 e aos posicionamentos de Lacan excederia em muito o objetivo do nosso
encontro. Mas estabeleçamos taxativamente, desde já: enquanto a Psicanálise não estiver
à altura de maio de 68, não vai estar à altura das subjetividades que 68 catalisou. É
evidente que 68 acabou e pertence irrevogavelmente ao passado. No entanto, como
lembrava Deleuze em um belíssimo texto, os filhos de 68 são nossos contemporâneos, e
não é difícil reconhecê-los nas principais dificuldades com as quais a Psicanálise se bate
hoje: as novas histerias, os transexuais, os revolucionários, os quadros limítrofes, as
psicoses brancas e ordinárias, a atrofia do simbólico. “Os filhos de 68 podem ser
encontrados dispersos por aí, ainda que eles próprios não saibam, e que cada país os
produza à sua maneira. A situação deles não é muito animadora. Não são jovens bem-

5
A Negação.
6
O Anti-Édipo, II.5.2
sucedidos. São estranhamente apáticos e, no entanto, muito bem informados. Deixaram
de ser exigentes, ou narcisistas, mas sabem muito bem que nada responde atualmente à
sua subjetividade”7...
A Psicanálise não é avessa às dissidências de gênero, mesmo se as
compreendemos, ou talvez especialmente, como psicóticas ou histéricas. Em verdade, a
Psicanálise, se souber estar à altura de sua própria radicalidade, se souber operar no limite
de sua autodissolução, pode vir a ser uma grande aliada. A Psicanálise deve retomar o
lugar do protesto, do escândalo e da agitação, que é seu lugar de nascimento. Sua
conversão em um saber de manual corresponde efetivamente à sua morte. É preciso não
esquecer, por detrás do Lacan dos grafos e matemas, o Lacan surrealista de 1936. Em
outras palavras, é preciso não esquecer que o que importa é reinventar o amor, a vida e o
cotidiano. Uma vez mais e ainda, é preciso dizer: vida longa às histéricas, as verdadeiras
militantes da Psicanálise.

7
Maio de 68 não aconteceu. Em: David Lapoujade (org.), Dois Regimes de Loucos.

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