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O macaco, que se chama Pedro Vermelho, conta como foi capturado por uma
expedição de caça organizada pelo circo Hagenbeck, como foi em seguida
transportado a Europa e como logo conseguiu converter-se em um homem.
Pedro Vermelho conta como aprendeu as linguagens humanas e como, para
fazê-lo, e entrar na sociedade da Europa de seu tempo, teve que esquecer sua
vida de macaco e tornar-se alcóolatra.
Uma vez capturados, os macacos, dizem que não havia outra opção, mas que,
ou bem morriam em uma jaula, ou bem viviam passando à jaula da
subjetividade humana; e é, a partir desta nova jaula da humanidade, que se
dirige à Academia científica.
Eu, enquanto corpo trans, enquanto corpo não binário, ao que nem a medicina,
nem o direito, nem a psicanálise, nem a psiquiatria reconhecem o direito de
falar nem a possibilidade de produzir um discurso uniforme de conhecimento
sobre eu mesmo; aprendi como Pedro Vermelho, a linguagem do patriarcado
colonial, vossa língua. Estou aqui para dirigir-me a vocês.
Dirão que recorro a um conto kafkiano para começar a falar-lhes, mas vosso
colóquio me parece mais próximo da época do autor de “A metamorfose” que
da nossa.
E mais, lhes peço alguns minutos de atenção, se vocês podem ainda, escutar
ainda, o gênero não binário, e conceder-lhe um potencial de razão e de
verdade.
Obrigado.
Mas esse processo não pode fazer-se sem uma análise exaustiva destes
pressupostos. Não os refoulent pas, não os neguem, não os reprimam, não os
desloquem. Não me digam que a diferença sexual não é crucial na experiência
da estrutura do aparato psíquico em psicanálise.
Mas não me digam que a instituição psicanalítica não tem considerado, e não
considera ainda, a homossexualidade como um desvio em relação à norma. Do
contrário, como explicar que até faz muito pouco tempo não haviam
psicanalistas podendo publicamente identificar-se como homossexuais? Lhes
pergunto: quantos de vocês se definem hoje, inclusive aqui mesmo, nesta
Escola da Causa Freudiana, publicamente, como psicanalista homossexual?
[silêncio... seguido de aplausos]
Eu não forço a revelação de posições subjetivas privadas [risos]... de qualquer
maneira, vejo que vocês não o fazem [risos], talvez não sirva, não sirva para
nada.
Tenho o prazer também de contar a vocês que tem apenas umas semanas,
minha amiga e colega, Judith Butler, se inscreveu no registro de estado civil da
Califórnia como pessoa de gênero não binário. As identificações de
heterossexualidade, homossexualidade, pensadas em relação com a
capacidade reprodutiva dos corpos de sexo oposto, parecem cada vez mais
obsoletas, de cara com a multiplicidade de técnicas de gestão da procriação
assistida. Não somente a pílula anticoncepcional ou a pílula do dia seguinte,
mas também a paternidade transexual, (...), gestação por outro, externalização
do útero, etc.
A epistemologia da diferença sexual está em plena mutação. Assistimos a um
processo de transformação na ordem da anatomia política e sexual,
comparável àquele que levou a passagem da epistemologia geocêntrica à
epistemologia heliocêntrica copernicana entre 1510 e 1730.
Vocês não podem recorrer – já termino... vocês não podem recorrer a cada vez
aos textos de Freud e de Lacan como se estes tivessem um valor universal,
não situado historicamente; como se este texto não tivesse sido escrito no
interior deste epistemologia patriarcal da diferença sexual. Fazer de Freud e de
Lacan a lei é também absurdo, como pedir a Galileu que retornasse aos textos
de Ptolomeo ou a Einstein para seguir pensando desde a física de Aristóteles.
Hoje... – sim, já sei, já termino -...; hoje meus queridos amigos psicanalistas, é
mais importante escutar os corpos excluídos pelo regime patriarcal colonial,
que reler Freud e Lacan. Não se refugiem nos pais da psicanálise. Vossa
obrigação política é cuidar das crianças, não a de legitimar a violência dos pais.
[Risos, aplausos]
A última coisa. Creio que a tarefa que nos resta por fazer é começar um
processo de des-patriarcalização, des-heterossexualização e de-colonização
da psicanálise. [Aplausos] (...) uma psicanálise mutante ao redor desta
mutação de paradigma. Talvez somente este processo de transformação, por
mais terrível e desmantelador que pareça, mereça hoje, de novo, chamar-se
psicanálise.