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Começo o texto com um título um pouco pretensioso, como um exercício de

imaginação que permite a possibilidade de fabulação dos diversos encantos e perguntas que o
próprio ato de pesquisa nos dispõem. Mas, para compor essa reciprocidade entre leitor e
autor, quero que compreendam este texto como uma conversa, fugindo daquele estilo de
narrativa proposta pela “grande racionalidade” da ciência eurocêntrica branca que impera no
nosso século de tecnocratas. Adquiro com a escrita um sentido de práxis (constroi-me
enquanto construo este texto). Portanto, a primeira pergunta se delineia no horizonte do
restante do texto: o que é pesquisa?
Ou, para deixar mais interessante, o que é pesquisa negra?
Talvez aqui precisemos de um mergulho na história.
Lá atrás, quando os “humanos” “descobriram” a “América”, com seus barquinhos e
armas fedidos, se descobria uma nova carga de gente. Vejam, não irei negar um caráter de
descobrimento neste primeiro momento, afinal, para aquele branco que chegava com metade
da tripulação morta chegava extremamente impotente, abismados, curiosos… Os indígenas
eram para eles algo incomensurável, não tipologizado, um processo que precisava, gritava a
construção. Aquelas pessoas eram, então, tratadas como algo, coisa, oriunda de uma forma de
espécie inspirada naquilo que Charles Darwin determinou em As origens das espécies, o
famoso livrinho que o criacionismo foge de se confrontar. O evolucionismo, então, imperava
na constituição moderna do mundo da “Europa” às “Américas”. E, como o costume da
ciência branca era facilitar o próprio trabalho e compor a necessidade de apagar o lado
sangrento que sujou suas mãos por grande parte da historiografia ocidental, o branco tratou as
“novas” gentes como sem alma, selvagens, descabidos de inteligência. Animais puros, mas
não completamente pecaminosos. Ou seja, capazes de serem doutrinados e catequizados,
ensinados a modo civil.
Não preciso nem discorrer que o processo se deu numa falta de reciprocidade absurda,
querido leitor. Os brancos entraram nessas terras olhando cada pedacinho de corpo nu,
abismados, exotizados, pulsando desejo, e recobraram os seus próprios medos pelos contratos
que fizeram consigo mesmo pela simples idiossincrasia de não compor uma solidariedade
cultural própria, sem a criação de uma diferenciação. Lembremos, os brancos europeus
sempre estiveram à mercê de uma hierarquização abissal, a época do colonialismo, as forças
simplesmente se expressaram com um sentido e uma forma diferente, carregando em pesos
mercantis e moedas o sangue derramado do “Paraíso dos Trópicos”.
A antiga Santa Cruz chamada Brasil, era um paraíso dos inocentes, embora também
culpados. “Precisamos salvá-los”, um padre gritou do outro lado do mundo, e o porco de
chapéu olhou para aquela gente e acenou com a cabeça. Eu poderia discorrer sobre isso
utilizando o pensamento racista de inúmeros “intelectuais” brancos entre o século XV e o
século XIX: Herbert Spencer, Immanuel Kant, Auguste Comte, Silvio Romeiro…
Darwinismo social, Teoria dos Três Estados, Esclarecimento da razão, Mito das três raças
fundadoras. Enfim, deixo claro aqui que todo esse pensamento, das cartas de emissários,
padres e literatos na sua exploração das “novas terras”, até os intelectuais abraçados pela
academia branca como puros, contribuíram para a história racista presente no pensamento
moderno. E com moderno eu quero dizer desde o início do colonialismo, em termos
historiográficos.
O significado de pesquisa, neste caso, está invariavelmente ligado com as
experiências históricas que limitam o nosso pensamento de hoje a solucionar as demandas
que a própria realidade social compõe, isto é: como pensar uma história que seja verídica aos
movimentos e antagonismos entre a racialização e o pensamento?
Calma, eu explico.
A racialização foi o processo instaurado para a conceitualização do termo “raça”.
Então, a raça foi uma invenção primordialmente europeia. Com que base digo isso? Bom, já é
provado a lejos que as teorias higienistas e eugenistas, defendidas no Brasil em meio e final
do século XIX, inclusive, que comporão a natureza projetista da infraestrutura do governo
Vargas, eram escrachadamente chamadas de racismo científico. Não sei se gosto desse termo,
porque há cientificidade no discurso, da forma que foi escrito, mas o conteúdo em sua relação
com essa forma de pensamento é apenas racista, ou seja, infundado de qualquer verdade,
mais defendido pela necessidade de poder e de divisão do que outra coisa. É retórico.
Essas teorias, junto com o pensamento social predominante na época, compôs
inúmeros arcabouços de classificações e articulações possíveis frente a uma divisão sumária
que já era predominante na Europa desde a Antiguidade Clássica: aquele que domina e aquele
que é dominado. Não vou brincar com esses termos hoje. A maneira pela qual as formas de
dominação vão se encaixando nas tramas sociais são diferentes, contraditórias e ambíguas.
Em solo brasileiro, por exemplo, elas resultaram no que Lélia Gonzalez chamou de
Democracia Racial, uma espécie de idealização sem conflitos raciais que configura uma
alienação da ideia de diferenciação produzida desde o período colonial.
Aqui já podemos perceber que a base que rege a epistemologia (fundamentos) do
pensamento europeu, mesmo que marginal, caro Marx, bebeu das formas de diferenciação
necessárias à dominação dos povos latino-americanos, africanos e asiáticos. Portanto, a
racialização é uma faceta material, que segrega, separa e permite a dominação, ao mesmo
tempo que o pensamento funda suas limitações por não conseguir superar essa contradição
base que é usada como fundamento de ensino de toda as nossas ciências no campo da
universidade, ou melhor, da institucionalidade.
Finalmente, a problemática surge: a ciência então é racista?
A resposta é: depende.
Acredito que a real limitação quando se pensa em “objetos” de pesquisa, é seguir a
norma diferenciadora que articulamos quando vamos pesquisar determinado assunto. Essa
lógica de separação, vista desde Descartes até os pensamentos conservadores imperativos do
nosso século, decompõe uma visão materialista, histórica, em movimento da realidade social,
tornando-a apenas um receptáculo de condições determinadas, encaixadas nos pressupostos
de pesquisa e da metodologia, sem questionar, de fato, as condições históricas dos problemas
analisados. Isto é, enquanto a ciência estiver olhando para as coisas através da razão
instrumental, ou seja, definida pelo olhar num processo de coisificação do mundo, as
condições de diferenciação não compõem a diferença entre o que é real do que é observado.
Mas sim, constroi uma espécie de diferenciação que se alia a uma ideologia que ronda a
nossa sociedade, e o racismo é fundamentalmente isso: uma ideologia.
E isso se mistura em qualquer outro tema de pesquisa utilizado pelas ciências
“humanas” ou ciências “sociais” necessárias, até nas ciências naturais e na arte isso pode ser
observado. Mas esse consenso que liga o nosso aprendizado sobre ciência ainda é muito
limitado a se autoquestionar. A instituição não questiona os métodos empregados pelos seus
profissionais porque a criação de um ambiente que fomente essa autocrítica perpétua
desmancharia algumas bases que a própria universidade, como centro de poder, precisa para
se manter de pé.
Quando eu conclamo uma ciência negra, uma pesquisa negra, eu expresso os gritos
dos Condenados da Terra, que não veem as narrativas construídas pela ciência apenas como
um meio de esclarecimento frente ao que se teme, ao desconhecido; ao contrário, carrego
neste discurso a possibilidade de ampliar as formas de encarar os problemas e os
antagonismos da nossa sociedade a um nível além de expositivo. Isto é, combativo, que se
ancora no conflito, na construção mútua entre sujeito e objeto, que bebe tanto das bases da
raça como estrutura fundamental no processo de mundialização, da complexa rede da divisão
do trabalho social, racial, sexual, internacional, e os mecanismos que nos fazem vivenciar a
realidade cotidiana. Não há separações fáceis para compor uma pesquisa, por isso o racismo é
estrutural.
Os “Caminhos” no título demarca um trabalho inconcluso, que está a devir,
preparando-se para compor. Longe de me considerar qualquer tipo de intelectual relevante,
me considero sim construtor de uma voz, assim como todos do NEABI Bagé devem se
articular com as ideias de construção da própria reivindicação científica, que tanto tira de nós
a carga real da experiência, que se confronta com o racismo, com as circunstâncias do
trabalho, dos relacionamentos, dos apagamentos e da violência, da experiência factual do
nosso trabalho intelectual. O trabalho intelectual negro é essencialmente um trabalho
revolucionário e militante porque precisa estar alinhado a confirmação contínua do que a
ciência branca nega desde a sua consolidação: os conflitos que não podem ser escondidos.
Ao compormos caminhos decoloniais, originários das ciências sociais latino-
americanas, ao construirmos redes de significado institucional e externos, ao beber do
pensamento negro brasileiro, norte-americano, africano, latino-americano, principalmente da
visão contracolonial do falecido Nego Bispo, estamos, em primeiro lugar, reivindicando uma
existência que nos é negada em perpétuo embate entre as nossas formas de resistência e a
violência arbitrária branca.
Por isso a memória para nós negros e a ancestralidade vale muito. A reivindicação da
nossa história é a reivindicação da oposição, da possibilidade de um novo futuro. A utopia
aqui sempre volta como um respiro, mas não um idealista, e sim um prático que se expressa
na nossa pesquisa. A utopia é expressada pelo estilo das nossas atividades frente ao racismo.
Queremos o fim do racismo, o fim das bases racistas, das divisões racistas, dos estilos de
pensamento racistas, por isso que o negro é a figura revolucionária que tanto a esquerda
ocidental falhara em enaltecer. Questionar essa razão e essa pesquisa branca, colocaria os
espaços sociais em risco.Queremos o lugar que sempre foi nosso.
A pesquisa negra é uma forma de resistência, das milhares existentes.
E é por meio desta que reivindicamos a voz daqueles que sangraram pela mesma luta.

Henrico dos Santos Iturriet é homossexual, negro (pardo), queer, bacharelando em Sociologia
pela UNINTER, licenciando em Química pela UNIPAMPA e membro do Núcleo de Estudos
Afrobrasileiros e Indígenas (NEABI) do campus Bagé. Email: henricoi@hotmail.com

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