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A construção do “outro” através da história.

Uma análise sobre a hegemonia da branquitude no programa de Antropologia.


Victória Cristina dos Santos Lage (RA: 202587)

Introdução
Busco analisar as propostas de leitura dentro do programa da matéria de Antropologia I:
Natureza e Cultura enquanto um corpo negro, neurodivergente dentro de um espaço acadêmico,
passando por conceitos clássicos e modernos dentro da antropologia relatando minhas
experiências de interação não somente com os textos, mas também com meus colegas de classe.
Observando os temas principais das aulas é possível traçar um padrão da hegemonia branca
ocidental e também identificar fenômenos de agência e resistência à esse modelo do saber.
Descrevendo o processo de entendimento antropológico busco problematizar a visão
cientificista dada de um lugar neutro de conhecimento.
Palavras-chave: Antropologia, Conhecimento, Hegemonia, Branquitude.

Um primeiro olhar à antropologia

Entrei em contato com o conceito do fazer antropológico logo no primeiro dia na Unicamp,
todos celebravam as “calouradas” e a primeira aula que teríamos seria a de antropologia, eu,
como uma pessoa que tinha escolhido ciências sociais porque achou que sabia demais sobre a
sociedade e cultura, afirmei numa conversa “antropólogos são os missionários das ciências”,
todos riram e agora percebo que cheguei com noções preconcebidas sobre a antropologia e
expectativas baixíssimas sobre o que iriamos estudar e, acima de tudo, quem iríamos estudar.
Como uma mulher negra, bissexual, diagnosticada com TDAH e um transtorno de
personalidade não me é incomum sentir a experiência de ser o “outro”, afinal minhas vivências
nunca são universais e eu aprendi isso desde pequena, acostumada a sempre ser o objeto de
pesquisa e não a pesquisadora não fiquei surpresa com a leitura de “Os Argonautas do Pacifico”,
onde em seus esforços de ser o mais objetivo possível, Malinowski deixa claro em seus escritos
de onde acha que está falando, de um espaço de pesquisador superior às outras sociedades, pois
estudar uma outra sociedade era uma prova de sua evolução, um lugar que conforme os meses
foram se passando na faculdade eu descobri que apenas o branco pode ocupar de forma
completamente natural. A exposição feita por James Clifford despertou meu interesse com
relação a matéria estudada, tudo que eu pensava lendo o fragmento de “Os Argonautas do
Pacifico” foi confirmado pelo autor, Malinowski foi afetado por sua etnografia e sua visão de
mundo alterou sua pesquisa, a critica ao Diário nos comprova que nenhuma ciência é feita sem
um viés do acadêmico.
Viés esse que é determinado pelo espaço onde o indivíduo ocupa e de onde ele está falando e
é validado na história através de todos os meios, inclusive na manipulação por imagens como
demonstrou o texto “’Ver’ e ‘dizer’ na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a
fotografia”, percebi que o autor de “Argonautas do Pacifico” estava contando uma história, o
saber cientifico se mesclando com uma narrativa bem construída e sua visão passada como
natural é demonstrado de formas complexas através não somente de palavras, como de imagens
também. Na aula de Etienne também foi dado o texto de Donna Haraway, onde a autora
questiona a verdade e cientificidade partindo de um olhar feminista em trechos como estes:

A História é uma estória que os entusiastas da cultura ocidental contam uns aos outros; a ciência
é um texto contestável e um campo de poder; o conteúdo é a forma. Ponto. A forma na ciência é
retórica artefactual-social de fabricar o mundo através de objetos efetivos. (HARAWAY; Donna.
1995 p. 10,11)

Assim, fui compelida a reconhecer a antropologia como um fazer mais profundo de


conhecimento que poderia, talvez, me abarcar também.
Depois de severas criticas em nosso grupo privado de graduação ao texto de Donna Haraway,
fui percebendo a relutância dos meus colegas (em sua maioria brancos) em aceitar o programa
introduzido e a fenda entre nós começou a se aprofundar, enquanto eu estava feliz em questionar
os textos e quem coordena os saberes, as pessoas ao meu redor estavam incomodadas de serem
tiradas de seu local de conforto que sempre foi lhes dado e pediam por textos mais clássicos.

O fazer etnográfico

A minha noção prévia de antropologia estava completamente baseada no pouco que sabia
sobre a etnografia, seu trabalho de campo. Em primeira análise esse conceito da matéria ilustra
bem quão carregado do olhar eurocentrista de progresso Ocidental de quem produz
conhecimento pode estar, pois sua base é analisar uma cultura diferente.
O que eu não sabia e fui estimulada a pensar sobre, era que um trabalho etnográfico engloba
os vários aspectos de uma cultura e a magnitude desse fato, recém saída de um curso de Letras
onde tive contato com a linguagem como a uma manifestação da cultura de um povo, posso
afirmar que tive minha visão expandida através da pesquisa etnográfica estudada, alguns autores
retratavam que desvendar a linguagem os ajudava a desvendar a visão de mundo de outro povo e
os conceitos chaves para o entendimento vão além da linguagem, como a religião, imagem,
economia, psicologia e todos esses tiravam o pesquisador de sua zona de conforto como
indivíduo que tem uma própria cultura.
Ao entrar em contato com a primeira metodologia da etnografia pode-se notar um problema
estrutural, pois o fazer etnográfico pertence a quem faz a ciência acadêmica e assim carrega uma
herança colonial significativa, eu viria a descobrir com a antropologia que as raízes da
colonização são mais profundas do que esperava e a construção social disso vêm das referências
dentro da área.
O fazer foi criado sem a relativização cultural ser pensada, isso pode ser notado com
Malinowski, o homem que propôs um método cientifico da etnografia é o mesmo que afirmou
“Os nativos, é verdade, não são os companheiros naturais do homem civilizado.”
(MALINOWSKI, 1922, p. 21). Apenas por esse trecho, eu posso formular questões como: O
que é um povo “civilizado”? “Como se pode considerar uma cultura superior a outra? Quem
está fazendo essa colocação e de onde?, mal sabia que através destes questionamentos, estava
fazendo antropologia.
Por trás de uma leitura superficial da pesquisa do autor, há um homem branco que se põe no
papel de herói ao estudar uma nova cultura e ignora em seu trabalho oficial os impactos que essa
pesquisa teve em cima de si, se colocando numa posição elevada e neutra no saber, a reprodução
sem criticas (como pediram alguns colegas) dessa forma de fazer ciência contribui para a
hegemonização da branquitude. Porém, a resistência à essa forma clássica de etnografia foi se
fazendo clara conforme o programa avançava.
Dentro da universidade muito se fala sobre revolução e resistência, essas descritas no âmbito
mais popular da Politica como ações grandiosas, mas com a Antropologia pude entender que
esse fenômeno pode ser dado de forma simples por meio de indivíduos diversos e isso pode ser
ilustrado pelo trabalho etnográfico de Luena Pereira. A tentativa de descentralização das
ciências sociais de uma visão etnocêntrica ocidental construída e a visão do outro levando em
conta seu processo e contexto histórico de modo institucional é extremamente revolucionário.
Em “Alteridade e raça entre África e Brasil: branquidade e descentramentos nas ciências
sociais brasileiras”, Luena Pereira descreve um pouco de seu trabalho de campo na Angola e a
interação entre o espaço e a posição da autora subvertem o olhar colonial neutro visto nos
espaços acadêmicos e dá espaço para novos questionamentos como a autora coloca em:

Na antropologia a gente pensa essas situações como experiências de alteridade, de


estranhamento, de familiaridade, quer dizer, são jogos de aproximações e afastamentos que
fazemos para compreender as lógicas classificatórias e pensar como se constroem as diferenças,
as percepções da diferença, para pensar o chamado “outro” que é, como todos nós sabemos, um
processo relacional. (PEREIRA, 2020, p. 3)

A neutralidade do conhecimento é carregada do privilégio branco e coloca distância entre


você e o impacto de sua pesquisa, ao reconhecer o conceito de alteridade e através desse
humanizar sua pesquisa de campo, a autora fomenta uma expansão nos olhares antropológicos e
adiciona novas formas do fazer etnográfico e de conhecimento, podendo levar em conta a
construção social brasileira em especifico.
A comparação que tracei entre Malinowski e Luena Pereira me tocou profundamente,
enquanto todos na faculdade clamam por estudar somente autores racistas clássicos, aqui estava
eu vendo uma mulher parecida comigo falando sobre pertencimento e raça num texto de leitura
obrigatória dentro da Unicamp. O que é mais antropológico quanto o pertencimento num espaço
não pensado para pessoas iguais a você e a falta de entendimento desse fato em seu próximo?

Pertencimento

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