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O fazer antropológico.

Apresentação
Nesta Unidade de Aprendizagem, trataremos de mais algumas maneiras do fazer antropológico,
evidenciando métodos e mostrando questões éticas concernentes à lida antropológica.

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Identificar as influências do trabalho do antropólogo.


• Distinguir as novas metodologias do fazer antropológico.
• Reconhecer os dilemas éticos do antropólogo.
Desafio
Neste Desafio você deverá opinar a respeito de como devem se portar os antropólogos diante dos
cenários de guerra, ou seja, sobre a forma de fazer antropologia em territórios em guerra.

Orientações ao aluno:

1 - Contextualizar os problemas de se trabalhar em um território assim.


2 - Construir novas ideias para os dilemas.
3 - Trabalhar o texto tendo em vista os comandos éticos da profissão.
Infográfico
Neste infográfico você poderá visualizar alguns dos tipos de abordagem utilizados na
contemporaneidade.
Conteúdo do livro
Aprofunde seus conhecimentos com a leitura de trecho O Fazer Antropológico do livro Estudos
Culturais e Antropológicos.

Boa Leitura!
ESTUDOS
CULTURAIS E
ANTROPOLÓGICOS

Priscila Farfan Barroso


O fazer antropológico
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar as influências do trabalho do antropólogo.


 Distinguir as novas metodologias do fazer antropológico.
 Reconhecer os dilemas éticos do antropólogo.

Introdução
Neste capítulo, você vai conhecer algumas influências metodológicas e
conceituais do fazer antropológico enquanto disciplina científica. Como
você pode imaginar, a transformação da antropologia em uma disciplina
científica não se deu de uma hora para outra. Assim, é preciso entender
as etapas desse processo.
Ao longo do texto, você também vai conhecer algumas metodologias
utilizadas no fazer antropológico que podem ser usadas em outras áreas
de conhecimento. São elas: a etnografia, o estudo longitudinal e o survey.
Além disso, você vai ver os dilemas e limites éticos do fazer antropológico,
que envolve desde a construção do tema de pesquisa até a produção
do relatório ou a publicação da pesquisa em livro.

Influências do trabalho antropológico


O trabalho do antropólogo foi se constituindo como disciplina com o passar dos
anos. Para a realização de uma pequena genealogia desse processo, é neces-
sário considerar a história e retomar o momento em que povos de continentes
diferentes se encontraram pela primeira vez. Um marco dessa trajetória foram
as grandes navegações do século XV. Nesse período, como você sabe, surgiu
o interesse dos europeus por povos que habitavam terras afastadas das suas.
Naquele momento histórico, a ideia dos europeus não era somente conhe-
cer como os povos até então desconhecidos moravam e o que faziam. Eles
desejavam principalmente se familiarizar com o modo de vida desses povos
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para melhor dominá-los, subordiná-los e até escravizá-los, já que eram tidos


como “primitivos”. Assim, para os europeus, esses povos que viviam além-mar
eram considerados menos humanos e deveriam se submeter à civilização para
acessar o “progresso”, o “conhecimento” e a “ciência”.
Esse pensamento dos europeus é o que se chama de etnocentrismo. Segundo
Rocha (1984, p. 5), “Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio
grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos
através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência”.
Assim, o etnocentrismo não é característico somente dos europeus, mas
de todo grupo social existente, como reforça Laraia (2001, p. 75):

O etnocentrismo, de fato, é um fenômeno universal. É como uma crença de


que a própria sociedade é o centro da humanidade, ou mesmo a sua única
expressão. As autodenominações de diferentes grupos refletem este ponto de
vista. Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se autodenominavam
"os entes humanos"; os Akuáwa, grupo Tupi do Sul do Pará, consideram-se
"os homens"; os esquimós também se denominam "os homens"; da mesma
forma que os Navajo se intitulavam "o povo". Os australianos chamavam as
roupas de "peles de fantasmas", pois não acreditavam que os ingleses fossem
parte da humanidade; e os nossos Xavante acreditam que o seu território tri-
bal está situado bem no centro do mundo. É comum assim a crença no povo
eleito, predestinado por seres sobrenaturais para ser superior aos demais. Tais
crenças contêm o germe do racismo, da intolerância e, frequentemente, são
utilizadas para justificar a violência praticada contra os outros. A dicotomia
"nós e os outros" expressa em níveis diferentes essa tendência. Dentro de uma
mesma sociedade, a divisão ocorre sob a forma de parentes e não parentes. Os
primeiros são melhores por definição e recebem um tratamento diferenciado.
A projeção desta dicotomia para o plano extra grupal resulta nas manifestações
nacionalistas ou formas mais extremadas de xenofobia. O ponto fundamental
de referência não é a humanidade, mas o grupo. Daí a reação, ou pelo menos
a estranheza, em relação aos estrangeiros.

Então, o encontro entre colonizadores e outros povos permitiu a coleta de


descrições, desenhos e materiais de outras culturas. Mas tudo ainda ocorria de
maneira bastante exploratória e sem uma metodologia específica. Os materiais
coletados não tinham status de veracidade e eram tidos mais como relatos, cartas e
romances que contavam, de forma até fansiosa e macabra, a vida de outros povos.
Somente no século XVIII é que a antropologia começa a se consolidar como
disciplina, definindo seu objeto de estudo, delimitando formas de estudá-lo e pro-
duzindo análise científica sobre esse objeto. É o que explica Laplantine (2003, p. 7):
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[…] apenas no final do século XVIII é que começa a se constituir um saber


científico (ou pretensamente científico) que toma o homem como objeto de
conhecimento, e não mais a natureza; apenas nessa época é que o espírito
científico pensa, pela primeira vez, em aplicar ao próprio homem os mé-
todos até então utilizados na área física ou da biologia. Isso constitui um
evento considerável na história do pensamento do homem sobre o homem.
[…] Trata-se, desta vez, de fazer passar este último do estatuto de sujeito do
conhecimento ao de objeto da ciência. […] Para que esse projeto alcance suas
primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início
de legitimidade entre outras disciplinas científicas, será preciso esperar a
segunda metade do século XIX, durante a qual a antropologia se atribui ob-
jetos empíricos autônomos: as sociedades então ditas “primitivas”, ou seja,
exteriores às áreas de civilização europeias ou norte-americanas. A ciência,
ao menos tal como é concebida na época, supõe uma dualidade radical entre
o observador e seu objeto.

Para conhecer mais sobre a constituição da antropologia como disciplina, sugerimos a


leitura do livro Textos básicos de Antropologia, de Celso Castro. Esse livro apresenta a
história do pensamento antropológico e destaca alguns antropólogos que
constituíram estudos importantes na disciplina.

Você também deve atentar à contribuição das ciências biológicas para a


constituição da disciplina da antropologia. Afinal, a metodologia de classifica-
ção e comparação realizada pelas ciências biológicas influenciou os primeiros
ensaios sobre o homem em sociedade. Eriksen e Nielsen (2007, p. 28) trazem
mais informações sobre esse período:

Finalmente, surgiu a ciência internacionalizada. O pesquisador global se


torna uma figura popular — e o protótipo é, naturamente, Charles Darwin
(1809–1882), cuja Origem das espécies (1859) se baseava em dados coleta-
dos durante uma circum-navegação de seis anos ao redor do globo. […] Não
surpreende que a antropologia tenha surgido como disciplina nesse período.
O antropólogo é o pesquisador global prototípico que depende de dados de-
talhados sobre pessoas do mundo todo. Agora que esses dados se tornavam
disponíveis, a antropologia podia estabelecer-se como disciplina acadêmica.
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Assim, a antropologia passa a desenvolver estudos sobre o homem, mas


esses estudos não são algo focado em um ou outro homem, e sim nas socie-
dades humanas como um todo. Com isso, a pretensão da antropologia é de
“[...] constituir os ‘arquivos’ da humanidade em suas diferenças significativas”
(LAPLANTINE, 2003, p. 12).

Metodologias do fazer antropológico


Mas o que faz o antropólogo? Ele vai a campo e faz etnografia ao conversar com
as pessoas, anotar o que vê e o que dizem, tirar fotos ou fazer vídeos e pesquisar
documentos. Posteriormente, ele produz relatórios, discute com seus pares e
reflete sobre o que viu e ouviu. Ou seja, essa disciplina envolve o fazer antro-
pológico, que é aprendido na teoria e também no cotidiano de trabalho. Agora
você pode se perguntar o seguinte: quem não é antropólogo pode utilizar algumas
metodologias próprias do fazer antropológico? A resposta é sim. Contudo, para
haver legitimidade, deve-se ter o cuidado de não banalizar as metodologias do
fazer antropológico. É o que evidencia Oliveira (2011, p. 120–121):

A apropriação, por outras áreas, das teorias e metodologias antropológicas


nos levam a pensar e repensar nossa identidade intelectual, bem como o fazer
antropológico nesta era pós-tudo, como diria Geertz. A ampliação do que
vem sendo produzido, em termos de conhecimento acadêmico, na interface
entre a antropologia e as diversas áreas do conhecimento, longe de constituir
uma ameaça para o campo da antropologia, perfaz um engrandecimento da
produção acadêmica nesta área, ainda que devamos tomar cuidado com o
que se está produzindo, quais os limites e quais os diálogos travados com a
literatura antropológica, com seus conceitos e referenciais teóricos, afinal,
como nos coloca Dauster (2007), não podemos resumir o diálogo da antropo-
logia com as demais áreas do conhecimento a uma utilização instrumental da
etnografia, até mesmo porque esta constitui mais que “técnica” de coleta de
dados, mas sim uma forma de interpretar a realidade social, cujo substrato
encontra-se atrelado a um campo de conhecimento específico e a questões
suscitadas pela antropologia.

Desse modo, você pode perceber que o fazer antropológico implica conhecer
as ferramentas e teorias da área da antropologia, mas também requer certa
postura do pesquisador em meio ao grupo social estudado. Afinal, como o
objeto de estudo é o ser humano, os desafios da pesquisa incluem as formas
de relacionamento entre pesquisadores e pesquisados. A seguir, você vai ver
algumas metodologias do fazer antropológico que compõem a cientificidade
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da disciplina e que a consolidam como mais um dos campos de estudos das


ciências humanas.
A primeira metodologia que você vai conhecer aqui é a etnografia. Ela
propõe a observação e a participação em grupos sociais orientadas por proble-
mas de pesquisa. Assim, o pesquisador busca se inserir no grupo com certas
ideias preconcebidas, podendo retificá-las ou modificá-las completamente. A
proposta de Malinowski (1998) inclui ficar um longo período de tempo com
o grupo para compreendê-lo, evitando fazer apenas viagens rápidas. Cuche
(1999, p. 45) reforça essa mesma ideia ao dizer que “A transformação de uma
etnografia de viajantes ‘que apenas passam’ em uma etnografia de estada de
longa duração modificou completamente a apreensão das culturas particulares”.
Então, ainda que o modo de pesquisar cada grupo social tenha suas especi-
fidades, cabe compreender os principais pontos a que o pesquisador deve estar
atento a fim de encarnar uma postura condizente com o fazer antropológico
proposto. Eckert e Rocha (2008, p. 2) explicam melhor essa questão:

A pesquisa etnográfica, constituindo-se no exercício do olhar (ver) e do


escutar (ouvir), impõe ao pesquisador ou à pesquisadora um deslocamento
de sua própria cultura para se situar no interior do fenômeno por ele ou por
ela observado através da sua participação efetiva nas formas de sociabilidade
por meio das quais a realidade investigada se lhe apresenta.

A segunda metodologia que pode ser realizada no âmbito do fazer antro-


pológico é a pesquisa longitudinal. Aqui, a ideia é que as “[...] pessoas de
um único grupo são estudadas em diferentes épocas de suas vidas” (BOYD;
BEE, 1977, p. 42). Contudo, nem sempre um trabalho acadêmico realizado
por estudantes, por conta dos prazos, permite esse tipo de estudo. Assim,
esse tipo de metodologia não é tão comum, ainda que alguns pesquisadores
optem por ela.
Cunha (2014, p. 411) discorre sobre essa questão ao evidenciar as possibi-
lidades e potencialidades do estudo longitudinal na etnografia:

Mudando a conjuntura, uma nova investigação terá provavelmente de formular


novas questões, em vez de limitar-se a alimentar as mesmas questões com novos
dados ao longo do tempo. Ao prosseguir no rumo traçado de início, o risco é,
paradoxalmente, o de distorcer a historicidade que se procura captar precisa-
mente através de uma revisitação do terreno. Revisitação não equivale, pois,
a replicação. É precisamente a ausência de rigidez da abordagem etnográfica
que se pode revelar a mais adequada para captar o sentido das transformações.
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Por último, você deve conhecer a metodologia do survey (questionário).


Ela é a mais utilizada em pesquisas sociológicas e pode ajudar o antropólogo
a mapear aspectos da cultura e analisar comportamentos a partir da amostra
de um grupo social.
Nesse sentido, pode-se utilizar o survey para pesquisas políticas, questões
sociais, situações de consumo, entre outros. A ideia é desvendar aspectos que não
são facilmente explicáveis. Além disso, um mesmo questionário pode ser aplicado
em diferentes públicos. Dessa forma, é possível apreender o que muda de um
para outro. Bryman (1989, p. 104) sistematiza as informações sobre o assunto:

[...] a pesquisa de survey implica a coleção de dados [...] em um número de


unidades e geralmente em uma única conjuntura de tempo, com uma visão
para coletar sistematicamente um conjunto de dados quantificáveis no que diz
respeito a um número de variáveis que são então examinadas para discernir
padrões de associação [...].

Essas variáveis têm de ser analisadas previamente pelos pesquisadores


para que eles possam verificar se elas podem ajudá-los a compreender a rea-
lidade. Afinal, “[...] uma variável, por definição, deve ter variação; se todos os
elementos na população têm a mesma característica, esta característica é uma
constante na população e não parte de uma variável” (BABBIE, 1999, p. 124).

Dilemas éticos do antropólogo


Agora que você já conhece os principais aspectos e metodologias que envolvem o
fazer antropológico, deve considerar que essas práticas têm diversos limites. Tais
limites devem provocar a reflexão do pesquisador sobre os desafios da pesquisa.
Além disso, o pesquisador deve buscar soluções possíveis para que a pesquisa se
realize a contento. Estes são os três principais limites da prática antropológica:

1. o limite dos prazos acadêmicos;


2. os limites do encontro com o outro;
3. os limites surgidos após a produção do trabalho.

O primeiro deles considera o fazer antropológico circunscrito ao trabalho


acadêmico. Antes mesmo de iniciar o estudo, essa questão se impõe como
desafio para o pesquisador. Isso ocorre porque o contexto de realização da
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pesquisa afeta diretamente os resultados do estudo. Silva (2009, p. 28) explica


melhor esses pontos:

[...] não se pode esquecer que a antropologia é uma forma de conhecimento


definida segundo os limites impostos pelas regras da academia. O desenvolvi-
mento do trabalho de campo sofre, portanto, os constrangimentos relacionados
com o modo pelo qual a escolha do tema, das hipóteses e das perspectivas
teóricas, para citar apenas alguns itens presentes num projeto de pesquisa, é
negociada na academia que o acolhe e legitima. E nessa negociação, além dos
“méritos científicos” inerentes ao projeto de pesquisa, deve-se considerar a
influência das políticas acadêmicas (linhas de pesquisa institucionalizadas,
estabelecimentos, reorganização ou fortalecimento dos núcleos de pesquisa-
dores, afirmação de lideranças intelectuais, etc.) na escolha dos temas, regiões
geográficas, grupos sociais, etc. que compõem o “recorte” das pesquisas.

Mesmo que se trate de uma pesquisa pontual de disciplina, cabe refletir


sobre os pontos evidenciados a fim de que se possa realizar um exercício
fidedigno à proposta do fazer antropológico. Assim, o pesquisador não tem
controle total de sua pesquisa, mas pode direcioná-la da maneira mais adequada,
de acordo com os objetivos em questão.
O segundo ponto a ser ilustrado enfoca justamente o diálogo entre o pes-
quisador e o grupo pesquisado. Segundo Oliveira (2000, p. 24), esse diálogo
“Faz com que os horizontes semânticos em confronto — do pesquisador e do
nativo — abram-se um ao outro, de maneira a transformar um tal conjunto em
um verdadeiro ‘encontro etnográfico’”. Em algumas situações, esses diálogos
possibilitam trocas mais densas; em outras, essas trocas são mais truncadas por
conta de questões subjetivas. Nesse sentido, não apenas o pesquisador escolhe
quem vai pesquisar, mas também precisa ser escolhido pelos nativos, uma vez
que a pesquisa envolve o relacionamento entre seres humanos.
Assim, esse diálogo implica não somente um pesquisador que demanda
algo do pesquisado. O próprio pesquisador tem de aprender, de negociar e de
compreender como se dá a comunicação discursiva de quem ele pesquisa.
Ferreira (2010, p. 147) evidencia essa questão quando argumenta que o diálogo
antropológico implica uma aprendizagem da conversa com o nativo:

Já que as metodologias usadas pelos antropólogos dependem fundamentalmen-


te de processos linguísticos, é preciso considerar as dimensões comunicativas
da aquisição de informações como requisito tanto para a adequação da me-
todologia aos contextos culturais a serem estudados (BRIGGs, 1986) quanto
para a garantia de uma postura ética na relação de pesquisa. Dessa forma,
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podemos evitar situações em que as questões formuladas pelo pesquisador


são incompatíveis com o sistema de comunicação nativo.

Ao mesmo tempo, é importante você considerar a possibilidade de utilizar


o termo de consentimento livre e esclarecido ao travar relações com os inte-
ressados em participar da pesquisa, conforme exige a Resolução nº 196/1996
do Conselho Nacional do Ministério da Saúde. Afinal, a pesquisa com seres
humanos implica certos cuidados do pesquisador. Esse termo deve ser elaborado
pelo pesquisador, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa e assinado pelo
pesquisador e pelo pesquisado. Depois, destina-se uma via para cada um.

Para aprofundar a discussão e conhecer mais sobre o debate nacional relacionado à ética
em pesquisa antropológica, leia Antropologia e ética: o debate atual no Brasil, organizado
pela Associação Brasileira de Antropologia. Nessa obra, são discutidos aspectos gerais
da ética em pesquisa e também questões envolvendo a multidisciplinaridade.

Entretanto, você deve notar que, na área de antropologia, há dificuldade


de seguir à risca essa resolução, já que ela é baseada em pesquisas da área das
ciências biológicas. Contudo, a pesquisa antropológica se relaciona às ciências
humanas e se realiza durante o fazer antropológico. Nesse processo, nem sempre
se tem o controle de quais caminhos são percorridos e de quais pessoas são
encontradas. Então, o essencial é que você se guie pelos princípios éticos e que
informe aos seus interlocutores, de forma clara, quais são as suas intenções
e os objetivos da pesquisa. Ferreira (2010, p. 143) aprofunda essa discussão:

Nas pesquisas antropológicas, a ética está vinculada ao plano das relações


sociais; portanto, diz respeito à linguagem e à comunicação. No empreen-
dimento etnográfico, o antropólogo conversa, interage e consolida vínculos
com as pessoas. Essa relação não está dada a priori, mas sim emerge duran-
te a própria interação do antropólogo com os participantes da pesquisa. A
reflexão ética [...] deve orientar a construção dessa relação e o processo de
interação dialógica voltado para a compreensão do outro. Nesse sentido, o
consentimento dado por determinado grupo social para a realização de um
estudo antropológico advém da relação estabelecida em campo.
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O terceiro ponto se refere aos limites éticos decorrentes da produção do


trabalho escrito e da veiculação pública desse trabalho. Ao escrever sobre
a vida das pessoas, o pesquisador deve ter o cuidado de manter o sigilo das
suas identidades. Por exemplo, na tese de Machado (2008) sobre bebês que
nascem com a genitália ambígua — dita como intersexo —, a antropóloga
optou por trocar os nomes dos envolvidos por nomes de anjos, fazendo um
paralelismo com o fato de o senso comum dizer que os anjos não têm sexo.
Esse é um exemplo de estratégia e subterfúgio que os pesquisadores podem
utilizar para manter a ética de pesquisa.
Quando você escreve um relatório sobre aqueles que pesquisa, é importante
não só disponibilizar o produto final para eles, que gentilmente lhe concederam
seu tempo e sua convivência, como também buscar saber a opinião deles sobre
os resultados da pesquisa. Esse processo é conhecido como restituição dos
dados. Veja:

Na pesquisa, podemos pensar que a restituição dos dados também pode ser
uma forma de prolongar o trabalho de campo, as interações, a relação com os
nativos. Nesse caso, a receptividade da pesquisa e a restituição confundem-se
em relação às interações estabelecidas, engajamento e responsabilidade com
o campo. O duplo produto final da enquete, seja sob a forma de relatório para
o projeto de financiamento ou artigo para a revista científica, sublinha a dis-
tinção entre dois papéis: ciência “pura” versus ciência “aplicada”. Entretanto,
trata-se de distinção ideal. Nas situações concretas, observa-se ambiguidade
entre esses dois papéis, uma vez que um ou outro é reivindicado e um ou outro
argumento pode ser utilizado segundo o contexto. A publicação de artigos e
livros é uma forma importante de difusão da pesquisa no meio acadêmico,
no entanto, essas publicações tendem a repercutir pouco para os pesquisados
(FERREIRA, 2015, p. 2.645).

Portanto, evidencia-se que o pesquisador produz seus trabalhos finais sem


saber da repercussão da publicação dos dados. Mesmo assim, ao apresentar a
sua análise aos pesquisados, ele deve construir esse processo de restituição.
Muitas vezes, esse é o momento positivo em que o pesquisador é reconhecido
pelo seu esforço de compreender o grupo social que pesquisou. Em outros
casos, os pesquisados podem não gostar de algumas interpretações. Nessa
situação, é necessário negociar a respeito do que fazer com publicações futuras.
Você deve ter em mente que o produto da pesquisa não vai sempre agradar
a todos. Por isso, cabe ao pesquisador ter o cuidado de não expor os pesqui-
sados a situações perigosas. Logo, o debate sobre ética em pesquisa não está
finalizado. Ele é uma problemática de reflexão importante e deve ser sempre
considerado pelo pesquisador.
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BOYD, D. B.; BEE, H. A criança em crescimento. São Paulo: Harper & Row do Brasil, 1977.
BABBIE, E. Métodos de pesquisas de survey. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
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Leituras recomendadas
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GUILHEM, D.; DINIZ, D. O que é ética em pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 2012.
MINAYO, M. C. S., GUERRIERO, I. C. Z. Reflexividade como éthos da pesquisa qualitativa.
Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 4, 2014.
SANTOS, R. J. Antropologia para quem não vai ser antropólogo. Porto Alegre: Tomo, 2005.
SARTI, C.; DUARTE, L. F. D. (Org.). Antropologia e ética: desafios para a regulamentação.
Brasília: ABA, 2013.
VÍCTORA, C. Antropologia e ética: o debate atual no Brasil. Niterói: UFF, 2004.
Conteúdo:
Dica do professor
Neste vídeo você poderá observar diferentes técnicas do fazer antropológico e vislumbrar questões
éticas que envolvem essa prática.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.
Na prática
O trabalho a que se dá o antropólogo possui várias funções, no entanto, hoje parece-nos que sua
atuação junto aos locais de tensão bélica pode ser realmente importante.
Saiba +
Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor:

Antropólogos, estado e povos indígenas em fins do segundo


milênio: o fazer antropológico frente à identificação de terras
indígenas
Aprofunde seus conhecimentos por meio da leitura deste artigo que busca entender a
especificidade do fazer antropológico no contexto do procedimento administrativo de identificação
e delimitação de terras indígenas.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Análise do antropólogo enquanto interpretação


no vídeo a seguir você vai entender um pouco mais sobre a prática antropológica

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