Você está na página 1de 25

O etnocentrismo

Apresentação
Os seres humanos não vivem isolados, mas em constante contato e comunicação, seja por meio de
casamentos, comércio ou guerras. Esse encontro com o outro nem sempre resulta de espanto
positivo diante da diferença, porque em muitas situações essa acaba sendo mal suportada, gerando
o que se denomina de etnocentrismo. Esse mal-estar emerge, porque pensa-se de acordo com os
padrões que se aprendem na sociedade em que se vive. No sentido antropológico, isso significa que
estar inserido em uma determinada cultura implicará um processo de aprendizado, por meio da
socialização, dos costumes, dos valores, dos modos de agir e pensar próprios a essas culturas. Cada
comunidade considera a sua forma de pensar o mundo e os valores como o centro de referência a
partir desse aprendizado. Essa prerrogativa não diz respeito apenas ao cotidiano, mas também
esteve presente no interior do pensamento científico e contribuiu para a justificação das relações
de expansão colonial com os demais povos não europeus.

Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai aprender sobre o etnocentrismo, sua relação com o
processo colonial realizado pela Europa e as discussões desenvolvidas a partir do encontro colonial,
bem como o seu contraponto.

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Descrever o etnocentrismo.
• Relacionar o contexto colonialista europeu com o conceito
de etnocentrismo.
• Reconhecer os efeitos do modelo etnocentrista na modernização dos países emergentes e as
suas contrapropostas antropológicas.
Desafio
A Política Nacional de Assistência Social, aprovada em 2004, tem como diretriz a centralidade da
família como unidade de referência, por meio do principal serviço da Proteção Social Básica do
SUAS: o serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Assim, a operacionalização
desse sistema ocorre por meio do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que se
apresenta como a “porta de entrada” da proteção social básica e é um serviço territorializado cujo
objetivo é atuar preventivamente às situações de vulnerabilidade e risco social.

O serviço majoritariamente acompanha as mulheres como representantes da unidade familiar. Por


isso, observou que, com o passar do tempo, a presença dele, único homem que demandava
acompanhamento, passava a se tornar incômoda. Era constante o questionamento de colegas sobre
o porquê de um homem procurar auxílio no CRAS, o porquê de não estar procurando emprego,
entre outros aspectos. Diante disso, às vezes, de forma velada, outras explicitamente, ele passava
por situações de constrangimento e humilhação. Por isso, deixou de frequentar o serviço após
manifestar que se sentia discriminado.

Com o objetivo de compreender as dificuldades manifestas pela equipe em acompanhar esse


homem, você deve analisar as dificuldades e recomendar novas possibilidades para pensar cenários
semelhantes.
Infográfico
A noção de raça foi importante, no século XIX, para explicar a diferença hierarquicamente e, assim,
justificar políticas coloniais e formas de gestão das populações a partir do controle da reprodução.
Essa noção constituiu-se no bojo de um debate científico e, por isso, revestiu-se de cientificidade,
que lhe forneceu credibilidade e larga aplicação.

A seguir, no Infográfico, você vai conhecer as abordagens que influenciaram o racialismo na


Europa.
Aponte a câmera para o
código e acesse o link do
conteúdo ou clique no
código para acessar.
Conteúdo do livro
A antropologia estuda as mais variadas formas de etnocentrismo e tem proposto o relativismo
como um contraponto a essa dimensão das relações humanas. Mas, para compreender o
relativismo, antes é necessário entender o que significa etnocentrismo e os seus efeitos na relação
com a diferença. Seja no cotidiano ou na prática profissional, os valores e os modos de pensar e agir
aprendidos culturalmente perpassam as relações estabelecidas.

No capítulo Etnocentrismo, da obra Antropologia social, você vai ver o conceito de etnocentrismo e
o desdobramento dessa dimensão no desenvolvimento do pensamento ocidental sobre a diferença.

Boa leitura.
ANTROPOLOGIA
SOCIAL

Gabriela Felten da Maia


O etnocentrismo
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Descrever o etnocentrismo.
„„ Relacionar o contexto colonialista europeu ao conceito de
etnocentrismo.
„„ Reconhecer os efeitos do modelo etnocentrista na modernização dos
países emergentes e suas contrapropostas antropológicas.

Introdução
O contato com a diversidade cultural e a reação a ela integram a história
das relações entre diversas sociedades. Desse contato, surgiu o estranha-
mento diante de diferentes costumes, valores e comportamentos quando
comparados aos de outro grupo, portanto, provavelmente uma situação
nova ou estranha causará algum choque em quem não participa dela,
pois cada cultura possui noções próprias de comportamento, condutas
e valores. Essa condição se chama etnocentrismo.
Neste capítulo, você estudará o etnocentrismo, como esse conceito
ajuda a compreender as práticas cotidianas de relação com a diferença,
sua ligação com o contexto colonialista, seus efeitos na modernização
dos países emergentes e suas contrapropostas antropológicas.

Diferença e mal-entendido sociológico


O etnocentrismo representa uma forma de sentir, pensar e perceber que adota
um grupo, valores e modelos como o centro. Ele parte de uma relação entre
eu-outro, em que se utiliza os referenciais culturais da própria sociedade para
avaliar os modos de vida distintos de sua cultura. O cotidiano é permeado de
situações em que há comportamentos que causam estranheza ou rechaço, como
diferenças na experiência da sexualidade, de classe, geracionais, religiosas
ou geográficas.
2 O etnocentrismo

A percepção sobre infância e família a partir de um modelo de família


nuclear e da experiência de infância conforme o modelo médico-psicológico
formou o olhar e as intervenções realizadas em diferentes políticas públicas
na atenção às populações em situação de vulnerabilidade social. Assim, é
comum que a noção de crianças e adolescentes nessa situação seja orientada
pela dimensão da carência a partir da comparação com jovens que pertencem
às outras camadas sociais. Do mesmo modo, a ideia de família desestruturada
emerge em contextos de intervenção associados às condições de habitação, ao
número de filhos, emprego irregular, entre outras questões sociais adotadas
como critérios para avaliar o que é uma família “normal”.
Em ambas as situações, os modos de vida são valorizados a partir dos
padrões culturais compartilhados pelo grupo avaliador sobre o avaliado,
desconsiderando os fenômenos históricos resultados de determinadas circuns-
tâncias econômicas, políticas e sociais que constituem as condições concretas
da vida das pessoas e as formas como elas organizam seu cotidiano.
A intolerância às religiões de matriz afro-brasileiras é outro exemplo, nas
quais a compreensão de mundo e suas simbologias são experimentadas de
modo diferente das outras religiões, como a católica. As práticas religiosas,
por exemplo, o sacrifício de animais, são alvo de controvérsias, consideradas
absurdas, bárbaras e cercadas por temores. Contudo, elas compreendem uma
outra cosmovisão sobre o ser humano, a natureza e os espíritos, devendo ser
entendidas a partir da experiência daqueles que a praticam. Portanto, entende-se
que o preconceito que tais religiões enfrentam está relacionado à sua matriz
africana e vinculado a um grupo tradicionalmente estigmatizado, os negros.
No encontro com a alteridade, a existência de uma valoração sobre os
outros pode ser considerada como etnocêntrica quando há julgamento das
práticas sociais como certas ou erradas, boas ou ruins, normais ou anormais.
De acordo com Rocha (1988, p. 6–7):

Como uma espécie de pano de fundo da questão etnocêntrica temos a expe-


riência de um choque cultural. De um lado, conhecemos um grupo do “eu”,
o “nosso” grupo, que come igual, veste igual, gosta de coisas parecidas,
conhece problemas do mesmo tipo, acredita nos mesmos deuses, casa igual,
mora no mesmo estilo, distribui o poder da mesma forma, empresta à vida
significados em comum e procede, por muitas maneiras, semelhantemente.
Aí, então, de repente, nos deparamos com um “outro”, o grupo do “diferente”
que, às vezes, nem sequer faz coisas como as nossas ou quando as faz é de
forma tal que não reconhecemos como possíveis. E, mais grave ainda, este
“outro” também sobrevive à sua maneira, gosta dela, também está no mundo
e, ainda que diferente, também existe.
O etnocentrismo 3

Segundo o autor, a dificuldade em pensar na diferença implica em um


mal-entendido sociológico que se manifesta tanto no plano intelectual como
no plano afetivo, porque se refere a uma dificuldade em se pensar a diferença
e os sentimentos de estranheza, medo ou hostilidade.

Ao receber a missão de ir pregar junto aos selvagens um pastor se pre-


parou durante dias para vir ao Brasil e iniciar no Xingu seu trabalho de
evangelização e catequese. Muito generoso, comprou para os selvagens
contas, espelhos, pentes, etc.; modesto, comprou para si próprio apenas
um moderníssimo relógio digital capaz de acender luzes, alarmes, fazer
contas, marcar segundos, cronometrar e até dizer a hora sempre abso-
lutamente certa, infalível. Ao chegar, venceu as burocracias inevitáveis
e, após alguns meses, encontrava-se em meio às sociedades tribais do
Xingu distribuindo seus presentes e sua doutrinação. Tempos depois,
fez-se amigo de um índio muito jovem que o acompanhava a todos os
lugares de sua pregação e mostrava-se admirado de muitas coisas, espe-
cialmente, do barulhento, colorido e estranho objeto que o pastor trazia
no pulso e consultava frequentemente. Um dia, por fim, vencido por
insistentes pedidos, o pastor perdeu seu relógio dando-o, meio sem jeito
e a contragosto, ao jovem índio.
A surpresa maior estava, porém, por vir. Dias depois, o índio chamou-o
apressadamente para mostrar-lhe, muito feliz, seu trabalho. Apontando
seguidamente o galho superior de uma árvore altíssima nas cercanias
da aldeia, o índio fez o pastor divisar, não sem dificuldade, um belo
ornamento de penas e contas multicolores tendo no centro o relógio. O
índio queria que o pastor compartilhasse a alegria da beleza transmitida
por aquele novo e interessante objeto. Quase indistinguível em meio
às penas e contas e, ainda por cima, pendurado a vários metros de
altura, o relógio, agora mínimo e sem nenhuma função, contemplava
o sorriso inevitavelmente amarelo no roso do pastor. Fora-se o relógio.
Passados mais alguns meses o pastor também se foi de volta para casa. Sua
tarefa seguinte era entregar aos superiores seus relatórios e, naquela manhã,
dar uma última revisada na comunicação que iria fazer em seguida aos
seus colegas em congresso sobre evangelização. Seu tema: “A catequese
e os selvagens”. Levantou-se, deu uma olhada no relógio novo, quinze
para as dez. Era hora de ir. Como que buscando uma inspiração de última
hora examinou detalhadamente as paredes do seu escritório. Nelas, arcos,
flechas, tacapes, bordunas, cocares, e até uma flauta formavam uma bela
decoração. Rústica e sóbria ao mesmo tempo, trazia-lhe estranhas lembran-
ças. Com o pé na porta ainda pensou e sorriu para si mesmo. Engraçado
o que aquele índio foi fazer com o meu relógio (ROCHA, 1988, p. 9–11).
4 O etnocentrismo

As apreciações aos padrões culturais de outros grupos podem provocar


o que Rocha (1988) nomeia de etnocentrismo cordial, quando não existem
maiores consequências às relações entre esses grupos. Portanto, o estra-
nhamento diante da diferença nem sempre será vivido como racismo, pois
pode ser vivenciado como encantamento e curiosidade, mas também causa
uma reação depreciativa que considera o comportamento do outro absurdo,
imoral ou desviante.
Apesar de o etnocentrismo ser uma reação que acomete a todos em dife-
rentes épocas e lugares, ele pode produzir reações negativas, tanto configu-
rando uma depreciação das práticas estranhas como uma negação do status
de humano ao outro. Há exemplos na história das consequências deletérias
dessa reação, como a perseguição aos judeus, na Segunda Guerra Mundial,
pelos alemães, porque não correspondiam à visão que estes possuíam de
pureza racial.
Portanto, ele pode aproximar-se do preconceito quando, na convivência
cotidiana e no contato com uma diversidade de outros com os quais se tem
familiaridade, rotula e aplica os estereótipos que guiam a relação com a dife-
rença. Em algumas situações, essa apreensão reveste-se de uma forma muito
violenta e constitui o racismo, a intolerância, a xenofobia e os etnocídios,
justificando a violência praticada contra os demais (THOMAZ, 1995).

Etnocídio é a destruição sistemática de minorias étnicas a partir da eliminação ou proi-


bição das manifestações culturais e sua assimilação à cultura nacional (THOMAZ, 1995).

A história como Ocidente é marcada por esta experiência de apreensão e


relação com o outro. Embora o etnocentrismo não seja propriedade exclusiva
de uma sociedade, a reação diante da alteridade no contexto ocidental revestiu-
-se de um caráter de superioridade cultural que possibilitou a colonização de
outros povos.
O etnocentrismo 5

Nos links a seguir, veja a capa do livro “A massai branca: meu caso de amor com um
guerreiro africano”, publicado no Brasil pela Geração Editorial em 2007, e assista ao
trailer do filme de 2005 dirigido por Hermine Huntgeburth, baseado em fatos, que
conta a história de uma suíça que viaja ao Quênia e se apaixona por um guerreiro
massai. Essa produção explora a experiência de uma mulher branca europeia em
outro contexto e o choque cultural.

https://qrgo.page.link/5FBa1
https://qrgo.page.link/ZGudU

Questão da alteridade e expansão colonial


A emergência de refletir sobre a diferença é contemporânea às navegações e à
descoberta do Novo Mundo; já a questão que surge no pensamento ocidental
ao estar em contato com a alteridade se trata de saber se as pessoas encon-
tradas pelos europeus pertenciam à humanidade. De acordo com Laplantine
(2003), o critério utilizado para tal questionamento é religioso: os selvagens
teriam alma? O pecado original remeteria a eles? Essas questões não foram
solucionadas nesse período, mas elas começaram o esboço de duas correntes
que culminariam na ideia do mau selvagem e o bom civilizado e do bom
selvagem e o mau civilizado.
Na primeira corrente, expulsa-se da cultura para a natureza (ou a animali-
dade) os indivíduos que não são identificados como participantes da humani-
dade à qual o grupo do eu pertence e se identifica. Para isso, no século XIV,
segundo Laplantine (2003), os europeus usaram não apenas o critério religioso,
como também a aparência física (nudez), o comportamento alimentar (come-
rem carne crua) e a linguagem ininteligível. Assim, constitui-se o selvagem,
marcado pela falta, pois não teria moral, religião, lei, Estado, escrita, razão,
história e cultura. Nesse discurso sobre a alteridade, trata-se de um animal,
apreendido como uma besta e o inverso do civilizado.
6 O etnocentrismo

Contrapondo-se à visão apresentada anteriormente, o bom selvagem seria


aquele que vive em plenitude, no paraíso. Segundo Laplantine (2003), atribui-
-se a ele à ingenuidade original do estado de natureza, porque não saberia o
que é o mal, nem a cobiça, livre das características da civilização, marcadas
como negativas. Havia uma decepção com os benefícios realizados pelo pro-
gresso, tornando o modo de vida dos habitantes dos trópicos ou mares do sul
como paraísos perdidos, que as sociedades europeias teriam substituído pela
tecnologia.
As representações produzidas pelo Ocidente em relação à alteridade e a
si mesmo oscilou desde o século XV. A forma como a colonização moldou
esse encontro exigiu que se pensasse na diferença e contribuiu para o sen-
timento etnocêntrico ocidental, na medida em que essas imagens operaram
como objetos que foram mobilizados para exploração econômica, militarismo
político, conversão religiosa ou emoção estética. Portanto, “o outro não era
considerado para si mesmo. Mas se olha para ela. Olha-se a si mesmo nele”
(LAPLANTINE, 2003, p. 36).
Se no século XVI a questão colocada remetia a pensar que tipo de pessoa
seriam os outros, foi no século XVIII que emergiu a ideia de primitivo. Segundo
Schwarcz (1993), a partir do naturalista francês Buffon, no século XVIII, uma
ciência geral dos seres humanos começa a surgir por meio da tensão entre as
duas imagens apresentadas anteriormente sobre o selvagem. Considerando
que o ser humano não é composto de espécies diferentes, conforme Todorov
(1993), a defesa da monogênese marcará a produção do naturalista. Como
corolário de pensar a existência de apenas uma espécie de seres humanos, a
diferença será dada entre humano e animais.
Nessa perspectiva, há uma unidade do gênero humano, mas, a partir do
senso de hierarquia e da diferença, ela começa a ser explicada por meio do
grau de evolução, observando os critérios que unem a possibilidade de reco-
nhecer as hierarquias. Assim, além da racionalidade, Buffon afirma que um
dos traços que definem o elevado grau do ser humano será a sociabilidade,
e qualquer grupo que não possua lei, autoridade, ordem e costumes seria
bárbaro. Estabelece-se uma hierarquização que vai da selvageria à civiliza-
ção, em que “no cume se encontram as nações da Europa setentrional, logo
abaixo os outros europeus, depois vêm as populações da Ásia e da África,
e, na parte mais baixa da escala, os selvagens americanos” (TODOROV,
1993, p. 115).
Essas descrições focadas nas diferenças culturais também tinham uma
concepção de raça que influenciou o racialismo do século XIX, havia a con-
O etnocentrismo 7

vicção da natureza quase animal dos grupos humanos considerados inferiores.


Já a variedade na espécie humana era definida a partir de critérios como a
cor de pele, o tamanho e a forma do corpo e os costumes, assim, a Europa
tornou-se ponto de referência para comparar e estabelecer a separação entre
os diferentes povos. O primitivo tornava-se o branco, e a mudança na cor da
pele revelava uma degenerescência (SCHWARCZ, 1993; TODOROV, 1993).
A introdução da noção de degeneração teve forte influência a partir do
século XIX com a emergência da raça como uma noção para explicar as
diferenças. Essa reorientação intelectual marcou uma questão que já estava
em discussão: as origens da humanidade, um discurso racial que surgiu em
contraponto ao debate sobre a cidadania e a igualdade, aos pressupostos
das revoluções burguesas europeias e à visão unitária da humanidade. Duas
vertentes procuraram abranger essa discussão sobre a origem da humanidade:
as visões monogenista e a poligenista (SCHWARCZ, 1993).
A visão monogenista congregou autores que compreendiam a humanidade
como uma, originada de uma fonte comum, sendo a diferença apenas um
produto da degeneração ou perfeição do Éden. Nesse caso, a humanidade se
desenvolve em gradiente, do mais ao menos perfeito. Já a visão poligenista
foi fortalecida pela interpretação biológica e crítica ao pensamento anterior,
entendendo a origem como proveniente de vários centros que corresponde-
riam, consequentemente, às diferenças raciais. Há uma compreensão de que
diferentes raças humanas constituiriam espécies diversas (SCHWARCZ, 1993).
A influência da publicação de Charles Darwin “A origem das espécies”,
em 1859, foi um importante ponto de inflexão do debate anterior — as duas
perspectivas assumiam o modelo evolucionista no conceito de raça, aproxi-
mando questões culturais e políticas. Assim, a abordagem darwinista também
possibilitou vínculos ao imperialismo europeu, em que a ideia de seleção
natural foi utilizada como justificativa para a explicação do domínio ocidental
aos outros povos. Portanto, o darwinismo influenciou diferentes campos de
discussão, como o pensamento social e as teorias racialistas da época. A
consequência desse saber sobre as raças foi a formação de um ideal político
em que havia uma prática de intervenção sobre a reprodução humana para
controle e seleção populacional, chamada eugenia (SCHWARCZ, 1993).
Como você observou, a diferença tem sido uma questão discutida há vários
séculos, mas, no século XIX, houve sua naturalização a partir das teorias
das raças. Nesse contexto de debate, a conformação das nações e a ideia de
igualdade e solidariedade eram negadas em razão da compreensão de que a
diferença implicava uma divisão incomensurável entre as espécies.
8 O etnocentrismo

No século XVIII, Sarah Baartman, uma mulher sul-africana conhecida como “Vênus
Hotentote”, foi levada para a Europa para ser exibida como atração exótica em razão
da curiosidade sobre suas dimensões corporais. Após sua morte, foi dissecada e
colocada em exibição em um museu e, 200 anos depois, seu corpo (esqueleto, genitais
e cérebro) ainda estava em exibição no Museu do Homem, em Paris. Saiba mais sobre
Sarah no link a seguir.

https://qrgo.page.link/xW5Aq

Colonialidade, modernidade e críticas a partir


de perspectivas subalternas
Segundo Mignolo (2005), há uma retórica que naturaliza a modernidade com um
processo universal, global e ponto de chegada, que ocultaria a reprodução­cons-
tante da colonialidade. Os países do sul global, outrora colonizados, são julgados
de acordo com os padrões dos países industrializados do norte, isso significa
que a expansão colonial foi acompanhada por um modelo único de moderni-
zação aplicada aos colonizados, considerados atrasados ou subdesenvolvidos.
Assim, o colonialismo, segundo Quijano (2005), era a forma de dominação
direta, política, social e cultural dos europeus sobre os conquistados de todos os
continentes. Esse modo de dominação formal foi desfeito em muitos países, mas
a estrutura colonial de poder produziu as discriminações sociais que, posterior-
mente, foram codificadas como raciais, étnicas, antropológicas ou nacionais.
Se você observar as principais linhas de exploração e da dominação social
na escala global, a distribuição de recursos e trabalho entre a população,
notará que essa estrutura de poder ainda opera por meio de outras relações
sociais. A maioria dos explorados e discriminados pertence aos grupos sociais
racializados ou às nações que foram colonizadas, assim, ainda que se tenha
abolido o colonialismo político, a relação entre a cultura europeia e as outras
continua sendo de dominação colonial (QUIJANO, 2005).
De acordo com Quijano (2005), a consolidação da expansão colonial foi
acompanhada pela constituição de um complexo cultural conhecido como
racionalidade-modernidade, que se estabelecia como paradigma dominante
de conhecimento e relação com o restante do mundo. Trata-se de uma matriz
colonial de poder, conforme Mignolo (2005), que inclui a esfera econômica,
mas não apenas, possibilitando a naturalização da cosmovisão ocidental.
O etnocentrismo 9

Essa cumplicidade entre modernidade-racionalidade, de acordo com Qui-


jano (2005), torna-se excludente porque apaga as diferenças e a intersubjetivi-
dade, bem como a totalidade social como sede de produção de conhecimento,
omitindo a referência a qualquer outro sujeito que não seja do contexto europeu,
os demais são os outros, objetos de conhecimento ou práticas de dominação.
A partir dessas críticas, esses dois autores, juntamente aos outros grupos,
propõem um debate que procura formas de enunciação que reflitam a classi-
ficação étnica sob o qual os Estados-Nação se desenvolveram e os efeitos do
processo colonial. Assim, contrapondo-se a uma ideia de subalterno passivo
que não somente reage, sendo mobilizado apenas a partir de cima, como tam-
bém atua e produz efeitos sociais, ainda que não sejam sempre reconhecíveis.
Eles propõem a necessidade de releituras das narrativas nacionais e indicam
a ausência de representação da ação e de narrativas subalternas.
Já Spivak (2010) faz um chamado aos perigos da representação do sujeito
denominado Terceiro Mundo pelos intelectuais do Primeiro Mundo, os quais
marcaram a si como não representantes ausentes que deixam o oprimido falar,
uma prática que mantém o essencialismo e o imperialismo, que resultam em
uma violência epistêmica. Segundo Bahri (2013), as críticas do feminismo
pós-colonial demonstram como a tokenização, indivíduos que se colocam no
lugar de falar porque acreditam ser representantes de determinada categoria,
também produz um essencialismo que é acompanhado da guetização e do
silenciamento de outras pessoas.
Portanto, Spivak (2010) reflete sobre a história de uma viúva para abordar
a condição de subalternidade quando se articula a categoria gênero e a mar-
ginalização das mulheres na produção colonial, marcadamente masculina.
A autora problematiza a noção de sujeito homogêneo presente em algumas
abordagens sobre a agência e a resistência do subalterno. Essa leitura das
narrativas subalternas parece indicar que não haveria muitas possibilidades
para a agência desses sujeitos, considerando o lugar da mulher subalterna no
contexto colonial e pós-colonial colocado pela autora. Contudo, ao questionar
se o subalterno pode falar, ela provoca a reflexão dos modos de enunciação
sobre e do outro em um contexto de produção em que o subalterno não teria
como se representar, procurando pensar nas possibilidades de ele subjetivar-se.
O hibridismo identitário torna-se um recurso possível para se pensar e um
essencialismo estratégico. As duas categorias se referem a uma questão: como
não emudecer o subalterno nas representações produzidas nos trabalhos? Não
falar por, nem em lugar de significa assumir o lugar de fala e a posição de
sujeito a fim de trabalhar o hibridismo. Os debates epistemológicos colocados
pelas vozes subalternizadas, que ocupam a posição de eu e outros, tensionam
10 O etnocentrismo

o local do autor, confrontando política e eticamente as relações com a dife-


rença. Antes de tudo, essas relações são de desigualdade e se apresentam no
modo como está estruturado o contexto político e institucional de produção
do conhecimento (ABU-LUGHOD, 1991).
No pós-guerra, Césaire (2006) e Fanon (1975), homens negros martini-
quenhos, realizaram importantes críticas ao colonialismo e aos processos
corporificados de produção da relação eu-outro, em que os negros como uma
marca são produzidos pelo colonizador. Grandes influências para os debates
pós-coloniais e os estudos subalternos, ao refletir sobre o colonialismo difu-
samente nas relações subjetivas e no pensamento, demonstram que os saberes
modernos são coloniais. Esses projetos empreenderam críticas à epistemologia
ocidental a partir de outros lugares de enunciação ao mostrarem os efeitos
de poder da relação colonial eu-outro, na medida em que esta é violenta por
desumanizar o outro em sua materialização por meio de uma violência epis-
têmica, como apresenta Spivak (2010).

Em “Cultura e Imperialismo”, publicado pela Companhia das Letras em 1995, Edward


Said examina de forma brilhante as influências política e cultural do Ocidente por
meio de políticas imperiais ainda presentes. Na obra, ele aponta como os meios de
comunicação podem ser armas de colonização e mostra as vozes insurgentes na
literatura, vindas dos países colonizados.

ABU-LUGHOD, L. Writing against culture. In: FOX, R. (ed.). Recapturing anthropology:


working in the present. Santa Fe: School of American Research Press. p. 137–162.
BAHRI, D. Feminismo e/no Pós-Colonialismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,
v. 21, n. 2, p. 659–688, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/
article/view/S0104-026X2013000200018. Acesso em: 12 set. 2019.
CÉSAIRE, A. Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal, 2006. 222 p.
FANON, F. Do pretenso complexo de dependência do colonizado. In: FANON, F. (ed.).
Pele negra, máscaras brancas. Porto: A. Ferreira; Paisagem, 1975. p. 97–120.
O etnocentrismo 11

LAPLANTINE, F. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 2003. 205 p.


MIGNOLO, W. D. La colonialidad a lo largo y a lo ancho: el hemisferio occidental en
el horizonte colonial de la modernidad. In: LANDER, E. (comp.). La colonialidad del
saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Ai-
res: Clacso, 2005. p. 34–52. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-
-sur/20100708034410/lander.pdf. Acesso em: 12 set. 2019.
QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER,
E. (comp.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas
latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 122–151. Disponível em: http://biblio-
teca.clacso.edu.ar/clacso/sur-sur/20100708034410/lander.pdf. Acesso em: 12 set. 2019.
ROCHA, E. P. G. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. 95 p. (Coleção
Primeiros Passos, 124).
SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no
Brasil: 1870–1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 296 p.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010. 133 p.
THOMAZ, O. R. A antropologia e o mundo contemporâneo: cultura e diversidade. In:
SILVA, A. L.; GRUPIONI, L. D. B. A temática indígena na escola: novos subsídios para pro-
fessores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC; UNESCO; São Paulo: Mari — Grupo de Educação
Indígena/USP, 1995. p. 425–441. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pes-
quisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=26725. Acesso em: 12 set. 2019.
TODOROV, T. A raça e o racismo. In: TODOROV, T. Nós e os outros: a reflexão francesa
sobre a diversidade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 107–141.
Dica do professor
O pensamento ocidental sobre a diferença foi marcado pela busca por modelos explicativos. Entre
os vários modelos que surgem entre os séculos XVIII e XIX, a antropologia também produziu um
conhecimento sobre a diversidade. Essa perspectiva é conhecida como evolucionismo cultural.

Nesta Dica do Professor, você vai conhecer a primeira escola de pensamento antropológico do
evolucionismo cultural.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.
Na prática
Um dos desafios do trabalho com famílias em políticas públicas consiste na própria concepção de
família com que se opera. Embora as políticas públicas, especialmente a de assistência social,
tenham uma compreensão de família em seus documentos, os profissionais também colocam em
prática a compreensão hegemonicamente compartilhada de família no processo interventivo.

Na Prática, você vai conhecer um caso com base na discussão sobre concepções de família e
práticas de intervenção.
Aponte a câmera para o
código e acesse o link do
conteúdo ou clique no
código para acessar.
Saiba +
Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor:

Uma interpelação feminista indígena à “virada ontológica”:


“ontologia” é só outro nome para colonialismo
Neste texto, a antropóloga Zoe Todd discute as consequências das relações coloniais na
experiência de populações indígenas. Veja a seguir as considerações realizadas pela autora a
respeito do efeito de poder, as relações coloniais ainda presentes e o lugar da produção do
conhecimento nesse processo.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Chimamanda Ngozi Adichie: o perigo de uma única história


Assista à palestra da escritora Chimamanda Adichie para o TED sobre o perigo de uma única
história. Há uma importante problematização sobre o processo colonial, o encontro com a
alteridade e a formação das sensibilidades, arte e visão de mundo a partir dessa relação.

Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Projetos de modernidade: autoritarismo, eugenia e racismo no


Brasil do século XX
Neste artigo são apresentados discussões sobre racismo, teorias racialistas e o projeto de
modernização a partir da experiência brasileira.
Aponte a câmera para o código e acesse o link do conteúdo ou clique no código para acessar.

Você também pode gostar