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PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO ¹ A VII

(1781)

A razão humana, num determinado domínio dos seus


conhecimentos, possui o singular destino de se ver atormentada
por questões, que não pode evitar, pois lhe são impostas pela sua
natureza, mas às quais também não pode dar resposta por
ultrapassarem completamente as suas possibilidades.
Não é por culpa sua que cai nessa perplexidade. Parte de
princípios, cujo uso é inevitável no decorrer da experiência e, ao
mesmo tempo, suficientemente garantido por esta. Ajudada por
estes princípios eleva-se cada vez mais alto (como de resto lho
consente a natureza) para condições mais remotas. Porém, I logo A VIII

se apercebe de que, desta maneira, a sua tarefa há-de ficar sempre


inacabada, porque as questões nunca se esgotam; vê-se obrigada,
por conseguinte, a refugiar-se em princípios, que ultrapassam
todo o uso possível da experiência e, não obstante, estão ao
abrigo de qualquer suspeita, pois o senso comum está de acordo
com eles. Assim, a razão humana cai em obscuridades e
contradições, que a autorizam a concluir dever ter-se apoiado em
erros, ocultos algures, sem contudo os poder descobrir. Na
verdade, os princípios de que se serve, uma vez que ultrapassam
os limites de toda a experiência, já não reconhecem nesta
qualquer pedra de toque. O teatro destas disputas infindáveis
chama-se Metafísica.
Houve um tempo em que esta ciência (a metafísica) era
chamada rainha de todas as outras e, se tomarmos a intenção pela
realidade, merecia amplamente esse título honorífico, graças à
importância capital do seu objeto. No nosso tempo
____________

¹ Omitido em B.
tornou-se moda testemunhar-lhe o maior desprezo e a nobre dama,
repudiada e desamparada, lamenta-se como Hécuba:

A IX ... Modo maxima rerum, I


Tot generis natis que potens...
Nunc trahor exul, inops.

OVÍDIO, Metamorfoses ¹

Inicialmente, sob a hegemonia dos dogmáticos, o seu poder era


despótico. Porém, como a legislação ainda trazia consigo o vestígio
da antiga barbárie, pouco a pouco, devido a guerras intestinas, caiu
essa metafísica em completa anarquia e os céticos, espécie de
nômades, que tem repugnância em se estabelecer definitivamente
numa terra, rompiam, de tempos a tempos, a ordem social. Como,
felizmente, eram pouco numerosos, não puderam impedir que os
seus adversários, os dogmáticos, embora sem concordarem num
plano prévio, tentassem repetidamente, restaurar a ordem destruída.
Nos tempos modernos houve um momento em que parecia irem
terminar todas essas disputas, graças a uma certa fisiologia do
entendimento humano (a do célebre Locke) e a ser decidida
inteiramente a legitimidade dessas pretensões. Embora essa suposta
rainha tivesse um nascimento vulgar, derivasse da experiência
comum e, por isso, com justiça, a sua origem tornasse suspeitas as
suas exigências, aconteceu, no entanto, que esta genealogia tinha
sido imaginada falsamente e, assim, a metafísica continuou a
AX afirmar as suas pretensões; I pelo que de novo tudo caiu no
dogmatismo arcaico e carcomido e, finalmente, no desprestígio a
que se tinha querido subtrair a ciência. Agora, depois de serem
tentados todos os caminhos (ao que se vê) em vão, reina o enfado e
um indiferentismo, que engendram o caos e a noite nas ciências,
mas também, ao mesmo tempo, são origem, ou pelo menos
prelúdio, de uma próxima transformação e de uma renovação dessas

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¹ Tradução: Ainda há pouco a maior de todas, poderosa por tantos genros


e filhos... eis-me agora exilada, despojada.
ciências, que um zelo mal entendido tornara obscuras, confusas e
inúteis.
É vão, com efeito, afetar indiferença perante semelhantes
investigações, cujo objeto não pode ser indiferente à natureza
humana. Esses pretensos indiferentistas, por mais que busquem
tornar-se irreconhecíveis, substituindo a terminologia da Escola por
uma linguagem popular, não são capazes de pensar qualquer coisa
sem recair, inevitavelmente, em afirmações metafísicas. Porém, esta
indiferença, que se produz no meio do flores-cimento de todas as
ciências e ataca precisamente aquela, a cujos conhecimentos, se
pudéssemos adquiri-los, renunciaríamos com menos facilidade I do A XI

que a qualquer outro, é um fenômeno digno de atenção e de


reflexão. Evidentemente que não é efeito de leviandade, mas do
juízo* amadurecido da época, que já não se deixa seduzir por um
saber aparente; é um convite à razão para de novo empreender a
mais difícil das suas tarefas, a do conhecimento de si mesma e da
constituição de um tribunal que lhe assegure as pretensões legítimas
e, em contrapartida, possa condenar-lhe todas as presunções
infundadas; I e tudo isto, não por decisão arbitrária, mas em nome A XII

das suas leis eternas e imutáveis. Esse tribunal outra coisa não é que
a própria Crítica
da Razão Pura.
Por uma crítica assim, não entendo uma crítica de livros e de
sistemas, mas da faculdade da razão em geral, com

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* De vez em quando, ouvem-se queixas acerca da superficialidade do
modo de pensar da nossa época e sobre a decadência da ciência rigorosa. Pois
eu não vejo que as ciências, cujo fundamento está bem assente, como a
matemática, a física, etc., mereçam, no mínimo que seja, uma censura. Pelo
contrário, mantêm a antiga reputação de bem fundamentadas e ultrapassam-na
mesmo nos últimos tempos. Esse mesmo espírito mostrar-se-ia também eficaz
nas demais espécies de conhecimentos, se houvesse o cuidado prévio de
retificar os princípios dessas ciências. À falta desta retificação, a indiferença, a
dúvida e, finalmente, a crítica severa são outras provas de um modo de pensar
rigoroso. A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se.
A religião, pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem
igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas
suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a
quem pode sustentar o seu livre e público exame.
respeito a todos os conhecimentos a que pode aspirar,
independentemente de toda a experiência; portanto, a solução do
problema da possibilidade ou impossibilidade de uma metafísica
em geral e a determinação tanto das suas fontes como da sua
extensão e limites; tudo isto, contudo, a partir de princípios.
Assim, enveredei por este caminho, o único que me restava
seguir e sinto-me lisonjeado por ter conseguido eliminar todos os
erros que até agora tinham dividido a razão consigo mesma, no seu
uso fora da experiência. Não evitei as suas questões, desculpando-
me com a impotência da razão humana; pelo contrário,
especifiquei-as completamente, segundo princípios e, depois de ter
descoberto o ponto preciso do mal-entendido da razão consigo
A XIII mesma, resolvi-as com a sua inteira satisfação. I Não dei, é certo,
àquelas questões as respostas que o exaltado desejo dogmático de
saber desejaria esperar, pois é impossível satisfazê-lo de outra
forma que não seja por artes mágicas, das quais nada entendo. Tão-
pouco residia aí o objeto do destino natural da nossa razão; o dever
da filosofia era dissipar a ilusão proveniente de um mal-entendido,
mesmo com risco de destruir uma quimera tão amada e enaltecida.
Neste trabalho, a minha grande preocupação foi descer ao
pormenor e atrevo-me a afirmar não haver um só problema
metafísico, que não se resolva aqui ou, pelo menos, não encontre
neste lugar a chave da solução. Com efeito, a razão pura é uma
unidade tão perfeita que, se o seu princípio não fosse suficiente
para resolver uma única questão de todas aquelas que lhe são
propostas pela sua natureza, haveria que rejeitá-lo, pois não se
poderia aplicar a qualquer outra com perfeita segurança.
Ao falar assim, julgo perceber na fisionomia do leitor um
A XIV misto de indignação e desprezo I por pretensões aparentemente tão
vaidosas e imodestas; e, contudo, são incomparavelmente mais
moderadas do que as de qualquer autor do programa mais vulgar,
que pretende, por exemplo, demonstrar a natureza simples da alma
ou a necessidade de um primeiro começo do mundo; realmente, tal
autor assume o compromisso de estender o conhecimento humano
para além de todos os limites da experiência possível, coisa que,
devo confessá-lo com humildade,
ultrapassa inteiramente o meu poder; em vez disso, ocupo-me
unicamente da razão e do seu pensar puro e não tenho necessidade
de procurar longe de mim o seu conhecimento pormenorizado, pois
o encontro em mim mesmo e já a lógica vulgar me dá um exemplo
de que se podem enunciar, de maneira completa e sistemática, todos
os atos simples da razão. O problema que aqui levanto é
simplesmente o de saber até onde posso esperar alcançar com a
razão, se me for retirada toda a matéria e todo o concurso da
experiência.
Julgo ter dito o bastante acerca da perfeição a atingir em cada
um dos fins e a extensão a dar à investigação de conjunto de todos
eles, que não constituem um propósito arbitrário, mas que a
natureza mesma do conhecimento nos propõe como matéria da
nossa investigação crítica.
I Há ainda a ter em conta a certeza e a clareza, dois requisitos A XV
que se reportam à forma e se devem considerar qualidades essen-
ciais a exigir de um autor que se lança em empresa tão delicada.
No respeitante à certeza, a lei que impus a mim próprio
obriga-me a que, nesta ordem de considerações, de modo algum
seja permitido emitir opiniões e que tudo o que se pareça com uma
hipótese seja mercadoria proibida, que não se deve vender, nem
pelo mais baixo preço, mas que urge confiscar logo que seja
descoberta. Com efeito, todo o conhecimento que possui um
fundamento a priori anuncia-se pela exigência de ser absolutamente
necessário; com mais forte razão deve assim acontecer a respeito de
uma determinação de todos os conhecimentos puros a priori que
deve servir de medida e, portanto, de exemplo a toda a certeza
apodítica (filosófica). Só ao leitor competirá julgar se me mantive
fiel, neste ponto, ao meu compromisso, pois ao autor apenas
convém apresentar razões e não decidir dos efeitos delas sobre os
juízes. Contudo, para que nada possa, inocentemente, ser causa de
que se enfraqueçam estas razões, I seja permitido ao autor que ele A XVI
próprio assinale as passagens que poderiam ocasionar alguma
desconfiança, embora apenas tenham importância secundária, a fim
de prevenir a
influência que o mais leve escrúpulo do leitor poderá exercer mais
tarde no seu juízo, relativamente ao fim principal.
Não conheço investigações mais importantes para estabelecer
os fundamentos da faculdade que designamos por entendimento e,
ao mesmo tempo, para a determinação das regras e limites do seu
uso, do que aquelas que apresentei no segundo capítulo da Analítica
transcendental, intitulado Dedução dos conceitos puros do
entendimento; também foram as que me custaram mais esforço, mas
espero que não tenha sido o trabalho perdido. Esse estudo,
elaborado com alguma profundidade, consta de duas partes. Uma
reporta-se aos objetos do entendimento puro e deve expor e tornar
compreensível o valor objetivo desses conceitos a priori e, por isso
mesmo, entra essencialmente no meu desígnio. A outra diz respeito
ao entendimento puro, em si mesmo, do ponto de vista da sua
A XVII possibilidade e das faculdades cognitivas em que assenta: I estuda-o,
portanto, no aspecto subjetivo. Esta discussão, embora de grande
importância para o meu fim principal, não lhe pertence
essencialmente, pois a questão fundamental reside sempre em saber
o que podem e até onde podem o entendimento e a razão conhecer,
independentemente da experiência e não como é possível a própria
faculdade de pensar. Uma vez que esta última questão é, de certa
maneira, a investigação da causa de um efeito dado e, nessa medida,
também algo semelhante a uma hipótese (embora de fato não seja
assim, como noutra ocasião mostrarei) parece ser este o caso de me
permitir formular opiniões e deixar ao leitor igualmente a liberdade
de emitir outras diferentes. Por isso devo pedir ao leitor para se
lembrar de que, se a minha dedução subjetiva não lhe tiver criado a
inteira convicção que espero, a dedução objetiva, que é a que aqui
me importa principalmente, conserva toda a sua força, bastando, de
resto, para isso, o que é dito de páginas 92 a páginas 93 ¹.
Finalmente, no que respeita à clareza, o leitor tem o direito de
exigir, em primeiro lugar, a clareza discursiva (lógica) por

________________
¹ Paginação de A. Kant refere-se à Passagem à dedução transcendental
das categorias.
conceitos; seguidamente, também a clareza I intuitiva (estética) por A XVIII
intuições, isto é, por exemplos e outros esclarecimentos em
concreto. Cuidei suficientemente da primeira, pois dizia respeito à
essência do meu projeto, mas foi também a causa acidental que me
impediu de me ocupar suficientemente da outra exigência, que é
justa, embora o não seja de uma maneira tão estrita como a
primeira. No decurso do meu trabalho encontrei-me quase sempre
indeciso sobre o modo como a este respeito devia proceder. Os
exemplos e as explicações pareciam-me sempre necessários e no
primeiro esboço apresentaram-se, de fato, nos lugares adequados.
Contudo, bem depressa vi a grandeza da minha tarefa e a multidão
de objetos de que tinha de me ocupar e, dando conta de que,
expostos de uma forma seca e puramente escolástica, esses objetos
dariam extensão suficiente à minha obra, não me pareceu
conveniente torná-la ainda maior com exemplos e explicações,
apenas necessários de um ponto de vista popular; tanto mais que
esta obra não podia acomodar-se ao grande público e aqueles que
são cultores da ciência não necessitam tanto que se lhes facilite a
leitura, coisa sempre agradável, mas que, neste caso, poderia
desviar-nos um pouco do nosso fim em vista. Diz com verdade o
Padre Tarrasson que, se avaliarmos I o tamanho de um livro, não A XIX
pelo número de páginas, mas pelo tempo necessário a compreendê-
lo, poder-se-á afirmar de muitos livros, que seriam muito mais
pequenos se não fossem tão pequenos. Mas se, por outro lado, for
proposto como objetivo a inteligência de um vasto conjunto de
conhecimentos especulativos, embora ligados a um princípio único,
poder-se-ia dizer, com igual razão, que muitos livros teriam sido
muito mais claros se não quisessem ser tão claros. De fato, os
expedientes para ajudar a ser claro são úteis nos pormenores,
embora muitas vezes distraiam de ver o conjunto, impedindo o
leitor de alcançar, com suficiente rapidez, uma visão desse
conjunto; com o seu brilhante colorido encobrem, por assim dizer, e
tornam invisível a articulação ou a estrutura do sistema, que é o
mais importante para se poder julgar da sua unidade e do seu valor.
Parece-me que pode ser para o leitor coisa de não pequeno
atrativo juntar o seu esforço ao do autor, se tiver a
intenção de realizar inteiramente e de maneira duradoura uma obra
A XX grande e importante, de acordo com o plano que lhe é proposto. I
Ora a metafísica, segundo os conceitos que dela apresentaremos
aqui, é a única de todas as ciências que pode aspirar a uma
realização semelhante e isto em pouco tempo e com pouco
trabalho, desde que se congreguem os esforços, de tal modo que
nada mais reste à posteridade que dispor tudo de uma maneira
didática, de acordo com seus propósitos, sem por isso poder
aumentar o conteúdo no que quer que seja. Na verdade, a
metafísica outra coisa não é senão o inventário, sistematicamente
ordenado, de tudo o que possuímos pela razão pura. Nada nos pode
aqui escapar, pois o que a razão extrai inteiramente de si mesma
não pode estar-lhe oculto; pelo contrário, é posto à luz pela própria
razão, mal se tenha descoberto o princípio comum de tudo isso. A
unidade perfeita desta espécie de conhecimentos, derivados de
simples conceitos puros, sem que nada da experiência, nem sequer
mesmo uma intuição particular, própria a conduzir a uma
experiência determinada, possa exercer sobre ela qualquer
influência no sentido de a estender ou de a aumentar, torna esta
integridade incondicionada não somente possível como ainda
necessária.

Tecum habita et noris, quam sit tibi curta supellex

PÉRSIO ¹

A XXI I Eu próprio espero publicar, com o título de Metafísica da


Natureza, um tal sistema da razão pura (especulativa) que, embora
não tenha metade da extensão da Crítica, deverá, no entanto, conter
uma matéria incomparavelmente mais rica. Esta crítica teve
primeiro que expor as fontes e as condições de possibilidade desta
metafísica e necessitou de limpar e de alisar um terreno mal
preparado. Espero aqui, do meu leitor, a paciência e a
imparcialidade de um juiz; porém, na Metafísica da Natureza, terei
necessidade da boa vontade e do concurso de

______________
¹ Tradução: Regressa a ti mesmo e saberás como é simples para ti o
inventário.
um auxiliar. Com efeito, por mais completa que tenha sido na
Crítica a exposição de todos os princípios que servem de base ao
sistema, o desenvolvimento deste exige que também se esteja de
posse de todos os conceitos derivados, impossíveis de enumerar a
priori e que é necessário investigar um por um. Como na Crítica
foi esgotada toda a síntese dos conceitos, o mesmo será
paralelamente exigido aqui, relativamente à análise, o que será
fácil de conseguir e mais um entretenimento que um trabalho.
Resta-me ainda dizer alguma coisa com respeito à impressão.
Como o começo desta foi um tanto atrasado, pude somente
receber, para revisão, cerca de metade I das provas; nelas encontro A XXII
algumas gralhas, que não alteram o sentido, exceptuado o da
página 374, linha 4 a partir de baixo ¹, onde se deve ler specifisch
em vez de skeptisch. A antinomia da razão pura, de página 425 à
página 461², encontra-se disposta sob a forma de quadro, de
maneira a tudo o que pertence à tese estar sempre à esquerda e o
que pertence à antítese, sempre à direita. Adotei esta disposição
para mais facilmente ser possível estabelecer comparação entre
ambas.

______________

¹ Paginação de A. Kant refere-se à Passagem à dedução transcendental


das categorias.
²
Paginação de A.
TÁBUA DE MATÉRIAS ¹ A XXIII

Introdução

I. Doutrina transcendental dos elementos.

PRIMEIRA PARTE. Estética transcendental.

SECÇÃO PRIMEIRA. Do espaço.


SECÇÃO SEGUNDA. Do tempo.

SEGUNDA PARTE. Lógica transcendental.

PRIMEIRA DIVISÃO. Analítica transcendental em dois


livros com seus títulos e suas subdivisões.

SEGUNDA DIVISÃO. Dialéctica transcendental em dois


livros com seus títulos e suas subdivisões.

II. Doutrina transcendental do método. A XXIV

CAPÍTULO I. Disciplina da razão pura.

CAPÍTULO II. Cânone da razão pura.

CAPÍTULO III. História da razão pura.

____________

¹ Apenas em A.
B1 INTRODUÇÃO (B)

DA DIFERENÇA ENTRE CONHECIMENTO PURO


E CONHECIMENTO EMPIRICO

Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa


pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e
pôr em ação a nossa capacidade de conhecer senão os objetos que
afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as
representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa
faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-
las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis
num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem
do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é
com esta que todo o conhecimento tem o seu início.
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência,
isso não prova que todo ele derive da experiência. Pois bem poderia
o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do
que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a
nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por
impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não
B 2 distinguimos dessa I matéria-prima, enquanto a nossa atenção não
despertar por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los.
Há pois, pelo menos, uma questão que carece de um estudo
mais atento e que não se resolve à primeira vista; vem a
ser esta: se haverá um conhecimento assim, independente da
experiência e de todas as impressões dos sentidos. Denomina-se a
priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é
a posteriori, ou seja, na experiência.
Esta expressão não é, contudo, ainda suficientemente definida
para designar de um modo conveniente todo o sentido da questão
apresentada. Na verdade, costuma dizer-se de alguns
conhecimentos, provenientes de fontes da experiência, que deles
somos capazes ou os possuímos a priori, porque os não derivamos
imediatamente da experiência, mas de uma regra geral, que todavia
fomos buscar à experiência. Assim, diz-se de alguém, que minou os
alicerces da sua casa, que podia saber a priori que ela havia de ruir,
isto é, que não deveria esperar, para saber pela experiência, o real
desmoronamento. Contudo, não poderia sabê-lo totalmente a priori,
pois era necessário ter-lhe sido revelado anteriormente, pela
experiência, que os corpos são pesados e caem quando lhes é
retirado o sustentáculo.
Por esta razão designaremos, doravante, por juízos a priori,
não aqueles que não dependem desta ou daquela experiência, I mas B3
aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e
qualquer experiência. Dos conhecimentos a priori, são puros
aqueles em que nada de empírico se mistura. Assim, por exemplo, a
proposição, segundo a qual toda a mudança tem uma causa, é uma
proposição a priori, mas não é pura, porque a mudança é um
conceito que só pode extrair-se da experiência.

II

ESTAMOS DE POSSE DE DETERMINADOS CONHECIMENTOS


A PRIORI E MESMO O SENSO COMUM NUNCA DELES
É DESTITUIDO

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos


distinguir seguramente um conhecimento puro de um
conhecimento empírico. É verdade que a experiência nos ensina,
que
algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não
possa sê-lo diferentemente. Em primeiro lugar, se encontrarmos
uma proposição que apenas se possa pensar como necessária,
estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa
proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno
tenha o valor de uma proposição necessária, então é absolutamente
a priori. Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos
seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas
universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo
que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos
B4 foi dado I verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela
regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa
universalidade, quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se
admite como possível, não é derivado da experiência, mas é
absolutamente válido a priori. A universalidade empírica é, assim,
uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a
totalidade dos casos a validade da maioria, como, por exemplo, na
seguinte proposição: todos os corpos são pesados. Em
contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente,
uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte
particular do conhecimento, a saber, de uma faculdade de
conhecimento a priori. Necessidade e rigorosa universalidade são
pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são
inseparáveis uma da outra. Porém, como na prática é umas vezes
mais fácil de mostrar a limitação empírica do que a contingência
dos juízos e outras vezes mais conveniente mostrar a
universalidade ilimitada, que atribuímos a um juízo, do que a sua
necessidade, é aconselhável servirmo-nos, separadamente, dos dois
critérios, cada um dos quais é de per si infalível.
É fácil mostrar que há realmente no conhecimento humano
juízos necessários e universais, no mais rigoroso sentido, ou seja,
juízos puros a priori. Se quisermos um exemplo, extraído das
ciências, basta volver os olhos para todos os juízos da matemática;
B5 se quisermos um exemplo, tirado do uso I mais comum do
entendimento, pode servir-nos a proposição, segundo a qual todas a
mudanças têm que ter uma causa. Neste último, o conceito de uma
causa contém, tão manifestamente, o conceito
de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa
universalidade da regra, que esse conceito de causa totalmente se
perderia, se quiséssemos derivá-lo, como Hume o fez, de uma
associação freqüente do fato atual com o fato precedente e de um
hábito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas
subjetiva) de ligar entre si representações. Poder-se-ia também
demonstrar, sem haver necessidade de recorrer a exemplos
semelhantes, a realidade de princípios puros a priori no nosso
conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a
própria possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua
necessidade a priori. Pois onde iria a própria experiência buscar a
certeza, se todas as regras, segundo as quais progride, fossem
continuamente empíricas e, portanto, contingentes? Seria difícil, por
causa disso, dar a essas regras o valor de primeiros princípios. Neste
lugar podemo-nos bastar com ter exposto, a título de fato,
juntamente com os seus critérios, o uso puro da nossa capacidade de
conhecer. Todavia não é apenas nos juízos, mas ainda em alguns
conceitos, que se revela uma origem a priori. Eliminai, pouco a
pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo tudo o que
nele é empírico, a cor, a rugosidade ou macieza, o peso, a própria
impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse corpo (agora
totalmente desaparecido) ocupava e que I não podereis eliminar. De B6
igual modo, se eliminardes do vosso conceito empírico de qualquer
objeto, seja ele corporal ou não, todas as qualidades que a
experiência vos ensinou, não poderíeis contudo retirar-lhe aquelas
pelas quais o pensais como substância ou como inerente a uma
substância (embora este conceito contenha mais determinações do
que o conceito de um objeto em geral). Obrigados pela necessidade
com que este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua
sede a priori na nossa faculdade de conhecer.
III

A FILOSOFIA CARECE DE UMA CIÊNCIA QUE DETERMINE


A POSSIBILIDADE, OS PRINCIPIOS E A EXTENSÃO DE TODO
O CONHECIMENTO A PRIORI

O que é mais significativo 1 ainda [do que as precedentes


considerações] é o fato de certos conhecimentos saírem do campo
A3 de todas I as experiências possíveis e, mediante conceitos, aos quais
a experiência não pode apresentar objeto correspondente,
aparentarem estender os nossos juízos para além de todos os limites
da experiência.
É precisamente em relação a estes conhecimentos, que se
elevam acima do mundo sensível, em que a experiência não pode
dar um fio condutor nem correção, que se situam as investigações
B7 da nossa razão, as quais, por sua importância, consideramos I
eminentemente preferíveis e muito mais sublimes quanto ao seu
significado último, do que tudo o que o entendimento nos pode
ensinar no campo dos fenômenos. Por esse motivo, mesmo
correndo o risco de nos enganarmos, preferimos arriscar tudo a
desistir de tão importantes pesquisas, qualquer que seja o motivo,
dificuldade, menosprezo ou indiferença. [Estes problemas
inevitáveis da própria razão pura são Deus, a liberdade e a
imortalidade e a ciência que, com todos os seus requisitos, tem por
verdadeira finalidade a resolução destes problemas chama-se
metafísica. O seu proceder metódico é, de início, dogmático, isto é,
aborda confiadamente a realização de tão magna empresa, sem
previamente examinar a sua capacidade ou incapacidade.]
Ora, parece sem dúvida natural que, abandonando o terreno da
experiência, se não proceda imediatamente à construção de um
edifício, com os conhecimentos que se possuem sem saber donde e
a crédito de princípios cuja origem se ignora, sem que primeiro se
tenham assegurado os seus fundamentos mediante cuidadosas
investigações e [o que é mais], sem que já
________________

¹ A: Mas o que é mais significativo.


de há muito se não tivesse levantado a questão de saber como
poderia o entendimento ter atingido esses conhecimentos a priori e
qual a extensão, o valor e o preço que possuem. I De fato, nada A4
seria mais natural, se por esta palavra [natural] entendermos o que I B8
de modo razoável e justo deveria suceder; mas, se por ela se
entende o que habitualmente acontece, então nada de mais natural
e compreensível do que se ter omitido por muito tempo esta
indagação. Pois que uma parte desses conhecimentos, [como sejam
os de] a matemática, há muito que é do domínio da certeza, dando
assim favorável esperança para os outros, embora estes últimos
possam ser de natureza completamente diferente. Além disso,
quando se ultrapassa o círculo da experiência, há a certeza de não
ser refutado pela experiência. O anseio de alargar os
conhecimentos é tão forte, que só uma clara contradição com que
se esbarre pode impedir o seu avanço. Esta contradição, porém,
pode ser evitada se procedermos cautelosamente na elaboração das
nossas ficções, sem que por isso deixem de ser menos ficções. A
matemática oferece-nos um exemplo brilhante de quanto se pode ir
longe no conhecimento a priori, independente da experiência. É
certo que se ocupa de objetos e de conhecimentos, apenas na
medida em que se podem representar na intuição. Mas facilmente
se deixa de reparar nesta circunstância, porque essa intuição
mesma pode ser dada a priori e, portanto, mal se distingue de um
simples conceito puro. Seduzido ¹ por uma tal prova de força da
razão, I o impulso de ir mais além não vê limites. A leve pomba, ao A5
sulcar livremente o ar, cuja resistência sente, poderia crer que no
vácuo melhor ainda conseguiria I desferir o seu vôo. Foi B9
precisamente assim que Platão abandonou o mundo dos sentidos,
porque esse mundo opunha ao entendimento limites tão estreitos 2
e, nas asas das idéias, abalançou-se no espaço vazio do
entendimento puro. Não reparou que os seus esforços não
logravam abrir caminho, porque não tinha um ponto de apoio,
como que um suporte, em que se pudesse firmar e aplicar as
____________________

¹ A: Encorajado.
² A: opõe ao entendimento demasiados obstáculos diversos.
suas forças para mover o entendimento. É, porém, o destino
corrente da razão humana, na especulação, concluir o seu edifício
tão cedo quanto possível e só depois examinar se ele possui bons
fundamentos. Procura então toda a espécie de pretextos para se
persuadir da sua solidez ou [até] para impedir [inteiramente]
semelhante exame, tardio e perigoso. Enquanto construímos, algo
nos liberta de todo o cuidado e suspeita, e até falsamente nos
convence de aparente rigor. E que uma grande parte, talvez a maior
parte da atividade da nossa razão, consiste em análises dos
conceitos que já possuímos de objetos. Isto fornece-nos uma porção
de conhecimentos que, não sendo embora mais do que
esclarecimentos ou explicações do que já foi pensado nos nossos
conceitos (embora ainda confusamente), são apreciados, pelo menos
no tocante à forma, como novas intelecções, embora, no tocante à
matéria ou ao conteúdo, não ampliem os conceitos já adquiridos,
B 10 apenas os decomponham. I Como este procedimento dá um
conhecimento real a priori e marca um progresso seguro e útil, a
razão, sem que disso se aperceba, faz desprevenidamente
afirmações de espécie completamente diferente, em que acrescenta
a conceitos dados ¹ outros conceitos de todo alheios [e precisamente
a priori,] ignorando como chegou a esse ponto e nem sequer lhe
ocorrendo pôr semelhante questão. Eis porque tratarei
primeiramente da distinção dessa dupla forma de conhecimento.

[IV]
DA DISTINÇÃO ENTRE JUIZOS ANALITICOS
E JUIZOS SINTÉTICOS

Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre um


sujeito e um predicado (apenas considero os juízos afirmativos,
porque é fácil depois a aplicação aos negativos), esta relação é
possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao sujeito A
_____________________

¹ Em A acrescenta-se: a priori.
como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B
está totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele. No
primeiro caso chamo analítico ao juízo, no segundo, I sintético. A7
Portanto, os juízos (os afirmativos) são analíticos, quando a ligação
do sujeito com o predicado é pensada por identidade; aqueles,
porém, em que essa ligação é pensada sem identidade, deverão
chamar-se juízos sintéticos. I Os primeiros poderiam igualmente B 11
denominar-se juízos explicativos; os segundos, juízo extensivos;
porque naqueles o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito
e apenas pela análise o decompõe nos conceitos parciais, que já nele
estavam pensados (embora confusamente); ao passo que os outros
juízos, pelo contrário, acrescentam ao conceito de sujeito um
predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído
por qualquer decomposição. Quando digo, por exemplo, que todos
os corpos são extensos, enuncio um juízo analítico, pois não preciso
de ultrapassar o conceito que ligo à palavra corpo para encontrar a
extensão que lhe está unida; basta-me decompor o conceito, isto é,
tomar consciência do diverso que sempre penso nele, para encontrar
este predicado; é pois um juízo analítico. Em contra-partida, quando
digo que todos os corpos são pesados, aqui o predicado é algo de
completamente diferente do que penso no simples conceito de um
corpo em geral. A adjunção de tal predicado produz, pois, um juízo
sintético.
[Os juízos de experiência, como tais, são todos sintéticos, pois
seria absurdo fundar sobre a experiência um juízo analítico, uma
vez que não preciso de sair do meu conceito para formular o juízo e,
por conseguinte, não careço do testemunho da experiência. Que um
corpo seja extenso é uma proposição que se verifica a priori e não
um I juízo de experiência. Porque antes de passar à experiência já B 12
possuo no conceito todas as condições para o meu juízo; basta
extrair-lhe o predicado segundo o princípio de contradição para,
simultaneamente, adquirir a consciência da necessidade do juízo,
necessidade essa que a experiência nunca me poderia ensinar. Pelo
contrário, embora eu já não incluía no conceito de um corpo em
geral o predicado do peso, esse conceito indica, todavia, um objeto
da experiência
obtido mediante uma parte desta experiência, à qual posso ainda
acrescentar outras partes dessa mesma experiência, diferentes das
que pertencem ao conceito de objeto. Posso ainda previamente
conhecer o conceito de corpo, analiticamente, pelas características
da extensão, da impenetrabilidade, da figura, etc., todas elas
pensadas nesse conceito. Ampliando agora o conhecimento e
voltando os olhos para a experiência de onde abstraí esse conceito
de corpo, encontro também o peso sempre ligado aos caracteres
precedentes e, por conseguinte, acrescento-o sinteticamente, como
predicado, a esse conceito. E pois sobre a experiência que se funda
a possibilidade de síntese do predicado do peso com o conceito de
corpo, porque ambos os conceitos, embora não contidos um no
outro, pertencem, contudo, um ao outro, se bem apenas de modo
contingente, como partes de um todo, a saber, o da experiência, que
é, ela própria, uma ligação sintética das intuições.] 1.
A9 I Nos juízos sintéticos a priori falta, porém, de todo essa ajuda.
B 13 Se ultrapasso o conceito A ² I para conhecer outro
__________________

¹ Em lugar desta alínea lia-se em A: Donde resulta claramente: 1.° que


pelos juízos analíticos o nosso conhecimento não é ampliado mas o conceito,
que já possuo, é desenvolvido e tornado compreensível para mim próprio; 2.°
que nos juízos sintéticos devo ter, além do conceito do sujeito, alguma coisa de
diferente, X, sobre o qual se apóia o entendimento para conhecer que o
predicado, que não está contido nesse conceito, todavia lhe pertence.
Nos juízos empíricos, ou de experiência, não há dificuldade alguma,
pois este X é a experiência completa do objeto que eu penso pelo conceito A, o
qual exprime apenas uma parte dessa experiência. Na verdade, embora não
inclua já no conceito de um corpo em geral o predicado do peso, esse conceito
não designa menos uma parte da experiência total e a essa parte posso, pois,
acrescentar ainda outras partes dessa mesma experiência, como pertencentes ao
conceito do objeto. Posso previamente conhecer o conceito de corpo,
analiticamente, pelos caracteres da extensão, de impenetrabilidade, de figura,
etc., que são todos pensados nesse conceito. Se alargar agora o meu
conhecimento e me voltar para a experiência, donde extraí este conceito de
corpo, encontro também o peso, unido sempre aos caracteres precedentes. A
experiência é, portanto, aquele X que está fora do conceito A e sobre o qual se
funda a possibilidade de síntese do predicado B do peso com o conceito A.

² A: Se devo sair do conceito A.


conceito B, como ligado ao primeiro, em que me apoio, o que é que
tornará a síntese possível, já que não tenho, neste caso, a vantagem
de a procurar no campo da experiência? Tomemos a proposição:
Tudo o que acontece tem uma causa. No conceito de algo que
acontece concebo, é certo, uma existência precedida de um tempo
que a antecede, etc. e daí se podem extrair conceitos analíticos. Mas
o conceito de causa está totalmente fora desse conceito e mostra
algo de distinto do que acontece; não está, pois, contido nesta
última representação. Como posso chegar a dizer daquilo que
acontece em geral algo completamente distinto e reconhecer que o
conceito de causa, embora não contido no conceito do que acontece,
todavia lhe pertence e até necessariamente? Qual é aqui a incógnita
X em que se apóia o entendimento quando crê encontrar fora do
conceito A um predicado B, que lhe é estranho, mas todavia
considera ligado a esse conceito? ¹. Não pode ser a experiência,
porque o princípio em questão acrescenta esta segunda
representação à primeira, não só com generalidade maior do que a
que a experiência pode conceder, mas também com a expressão da
necessidade, ou seja, totalmente a priori e por simples conceitos.
Ora é sobre estes princípios sintéticos, isto é, extensivos, que
assenta toda a finalidade última do I nosso conhecimento A 10
especulativo a priori, pois os princípios analíticos sem dúvida que
são altamente importantes e necessários, mas apenas servem I para B 14
alcançar aquela clareza de conceitos que é requerida para uma
síntese segura e vasta que seja uma aquisição verdadeiramente
nova 2.
_________________
¹ A: mas que se encontra, contudo, ligado a esse conceito?
² Em A a este parágrafo seguia-se apenas a seguinte alínea,
substituída em B pelos §§ V e VI:
Há aqui, pois, um certo mistério *, cujo descobrimento tão-só pode
fazer seguro e digno de confiança o progresso no campo ilimitado do
conhecimento intelectual puro; a saber, descobrir, com a universalidade
apropriada, o fundamento da possibilidade dos juízos sintéticos a priori,
penetrar as condições que tornam possível cada espécie, e ordenar todo esse
conhecimento (que constitui o seu gênero próximo) num sistema, englobando
as suas fontes originais, divisões, extensão e limites, sem se restringir a um
esboço rápido, mas
[V]

EM TODAS AS CIÊNCIAS TEÓRICAS DA RAZÃO


ENCONTRAM-SE, COMO PRINCÍPIOS, JUÍZOS
SINTÉTICOS A PRIORI

1. Os juízos matemáticos são todos sintéticos. Esta proposição


parece até hoje ter escapado às observações dos analistas da razão
humana e mesmo opôr-se a todas as suas conjecturas; é, contudo,
incontestavelmente certa e de conseqüências muito importantes.
Como se reconheceu que os raciocínios dos matemáticos se
processam todos segundo o princípio de contradição (o que é
exigido pela natureza de qualquer certeza apodítica), julgou-se que
os seus princípios eram conhecidos também graças ao princípio de
contradição; nisso se enganaram os analistas, porque uma
proposição sintética pode, sem dúvida, ser considerada segundo o
princípio de contradição, mas só enquanto se pressuponha outra
proposição sintética de onde possa ser deduzida, nunca em si
própria.
Antes de mais, cumpre observar que as verdadeiras
proposições matemáticas são sempre juízos a priori e não
empíricos, porque comportam a necessidade, que não se pode
B 15 extrair da experiência. I Se não se quiser admitir isso, pois bem,
limitarei a minha tese à matemática pura, cujo conceito já de si
exige que não contenha conhecimento empírico, mas um
conhecimento puro e a priori.
À primeira vista poder-se-ia, sem dúvida, pensar que a
proposição 7 +5 = 12 é uma proposição simplesmente analítica,
resultante, em virtude do princípio de contradição, do conceito
________________

determinando-o de maneira completa e suficiente para todos os usos. Basta por


agora acerca dos caracteres particulares que têm em si os juízos sintéticos.
* Se houvesse ocorrido a uma antigo levantar somente esta questão,
ter-se-ia esta, por si só, fortemente oposto a todos os sistemas da razão pura até
aos nossos dias e poupado tantos ensaios vãos, que tão cegamente se
empreenderam, sem saber do que propriamente se tratava.
da soma de sete e de cinco. Porém, quando se observa de mais
perto, verifica-se que o conceito da soma de sete e de cinco nada
mais contém do que a reunião dos dois números em um só, pelo
que, de modo algum, é pensado qual é esse número único que reúne
os dois. O conceito de doze de modo algum ficou pensado pelo
simples fato de se ter concebido essa reunião de sete e de cinco e,
por mais que analise o conceito que possuo de uma tal soma
possível, não encontrarei nele o número doze. Temos de superar
estes conceitos, procurando a ajuda da intuição que corresponde a
um deles, por exemplo os cinco dedos da mão ou (como Segner na
sua aritmética) cinco pontos, e assim acrescentar, uma a uma, ao
conceito de sete, as unidades do número cinco dadas na intuição.
Com efeito, tomo primeiro o número sete e, com a ajuda dos dedos
da minha mão para intuir o conceito de cinco, adicionei-lhes uma a
uma, mediante este processo figurativo, as unidades que primeiro
juntei I para perfazer o número cinco e vejo assim surgir o número B 16
doze. No conceito de uma soma de 7 + 5 pensei que devia
acrescentar cinco a sete, mas não que essa soma fosse igual ao
número doze. A proposição aritmética é, pois, sempre sintética, do
que nos compenetramos tanto mais nitidamente, quanto mais
elevados forem os números que se escolherem, pois então se torna
evidente que, fossem quais fossem as voltas que déssemos aos
nossos conceitos, nunca poderíamos, sem recorrer à intuição,
encontrar a soma pela simples análise desses conceitos.
Do mesmo modo, nenhum princípio de geometria pura é
analítico. Que a linha reta seja a mais curta distância entre dois
pontos é uma proposição sintética, porque o meu conceito de reta
não contém nada de quantitativo, mas sim uma qualidade. O
conceito de mais curta tem de ser totalmente acrescentado e não
pode ser extraído de nenhuma análise do conceito de linha reta.
Tem de recorrer-se à intuição, mediante a qual unicamente a síntese
é possível.
É certo que um pequeno número de princípios que os
geômetras pressupõem são, em verdade, analíticos e assentam sobre
o princípio da contradição; mas também apenas servem, como
proposições idênticas, para o encadeamento do método e
B 17I não preenchem as funções de verdadeiros princípios; assim, por
exemplo, a=a, o todo é igual a si mesmo, ou (a + b) > a, o todo é
maior do que a parte. E,contudo, mesmo estes axiomas, embora
extraiam a sua validade de simples conceitos, são admitidos na
matemática apenas porque podem ser representados na intuição. O
que geralmente aqui nos faz crer que o predicado destes juízos
apodíticos se encontra já no conceito e que, por conseguinte, o juízo
seja analítico, é apenas a ambigüidade da expressão. Devemos, com
efeito, acrescentar a um dado conceito determinado predicado e essa
necessidade está já vinculada aos dois conceitos. Mas o problema
não é saber o que devemos acrescentar pelo pensamento ao
conceito dado, é antes o que pensamos efetivamente nele, embora de
uma maneira obscura. Então é manifesto que o predicado está
sempre, necessariamente, aderente a esses conceitos, não como
pensado no próprio conceito, antes mediante uma intuição que tem
de ser acrescentada ao conceito.
2. A ciência da natureza (physica) contém em si, como
princípios, juízos sintéticos a “priori”. Limitar-me-ei a tomar,
como exemplo, as duas proposições seguintes: em todas as
modificações do mundo corpóreo a quantidade da matéria
permanece constante; ou: em toda a transmissão de movimento, a
ação e a reação têm de ser sempre iguais uma à outra. Em ambas as
proposições é patente não só a necessidade, portanto a sua origem
B 18 a priori, mas também que são proposições sintéticas. Pois no
conceito de matéria não penso a permanência, penso apenas a sua
presença no espaço que preenche. Ultrapasso, assim, o conceito de
matéria para lhe acrescentar algo a priori que não pensei nele. A
proposição não é, portanto, analítica, mas sintética e, não obstante,
pensada a priori; o mesmo se verifica nas restantes proposições da
parte pura da física.
3. Na metafísica, mesmo considerada apenas como uma
ciência até agora simplesmente em esboço, mas que a natureza da
razão humana torna indispensável, deve haver juízos sintéticos a
priori; por isso, de modo algum se trata nessa ciência de
simplesmente decompor os conceitos, que formamos a priori
acerca das coisas, para os explicar analiticamente; o que
pretendemos,
pelo contrário, é alargar o nosso conhecimento a priori, para o que
temos de nos servir de princípios capazes de acrescentar ao
conceito dado alguma coisa que nele não estava contida e,
mediante juízos sintéticos a priori, chegar tão longe que nem a
própria experiência nos possa acompanhar. Isso ocorre, por
exemplo, na proposição: o mundo tem de ter um primeiro começo,
etc. Assim, a metafísica, pelo menos em relação aos seus fins,
consiste em puras proposições sintéticas a priori.

VI B 19

PROBLEMA GERAL DA RAZÃO PURA

Muito se ganha já quando se pode submeter uma


multiplicidade de investigações à fórmula de um único problema,
pois assim se facilita, não só o nosso próprio trabalho, na medida
em que o determinamos rigorosamente, mas também se torna mais
fácil a quantos pretendam examinar se o realizamos ou não
satisfatoriamente. Ora o verdadeiro problema da razão pura está
contido na seguinte pergunta: como são possíveis os juízos
sintéticos a priori?
O fato da metafísica até hoje se ter mantido em estado tão
vacilante entre incertezas e contradições é simplesmente devido a
não se ter pensado mais cedo neste problema, nem talvez mesmo
na distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. A salvação
ou a ruína da metafísica assenta na solução deste problema ou
numa demonstração satisfatória de que não há realmente
possibilidade de resolver o que ela pretende ver esclarecido. David
Hume, o filósofo que, entre todos, mais se aproximou deste
problema, embora estivesse longe de o determinar com suficiente
rigor e de o conceber na sua universalidade, pois se deteve apenas
na proposição sintética da relação do efeito com suas causas
(principium causalitatis), julgou ter demonstrado que tal B 20

proposição a priori era totalmente impossível; segundo o seu


raciocínio, tudo o que denominamos metafísica mais não seria do
que simples ilusão de um pretenso conhecimento racional daquilo
que, de fato, era extraído da experiência e
adquirira pelo hábito a aparência de necessidade; afirmação esta que
destrói toda a filosofia pura e que nunca lhe teria ocorrido se tivesse
tido em mente o nosso problema em toda a generalidade, pois então
seria levado a reconhecer que, pelo seu raciocínio, também não
poderia haver matemática pura, visto esta conter, certamente,
proposições sintéticas a priori; o seu bom-senso, por certo, tê-lo-ia
preservado dessa afirmação.
Na solução do problema enunciado está, simultaneamente,
inclusa a possibilidade do uso puro da razão na fundamentação e
desenvolvimento de todas as ciências que contém um conhecimento
teórico a priori dos objetos, isto é, a resposta às seguintes
perguntas:
Como é possível a matemática pura?
Como é possível a física pura?
Como estas ciências são realmente dadas, é conveniente
interrogarmo-nos como são possíveis; que têm de ser possíveis
B 21 demonstra-o a sua realidade*. No que respeita à metafísica, pelo seu
escasso progresso até hoje realizado e porque não pode dizer-se de
nenhuma até agora apresentada que tenha alcançado o seu propósito
essencial, há motivo bastante para se duvidar da sua possibilidade.
Em certo sentido, contudo, esta espécie de conhecimento tam-
bém deve considerar-se como dada e a metafísica, embora não seja
real como ciência, pelo menos existe como disposição natural
(metaphysica naturalis), pois a razão humana, impelida por
exigências próprias, que não pela simples vaidade de saber muito,
prossegue irresistivelmente a sua marcha para esses problemas, que
não podem ser solucionados pelo uso empírico da razão nem por
princípios extraídos da experiência. Assim, em
__________________

* No respeitante à física pura, poder-se-ia ainda duvidar da


sua existência real. Mas basta dar um relance de olhos às diferentes
proposições que aparecem ao princípio da física propriamente dita
(empírica), como sejam as da permanência da mesma quantidade de
matéria, da inércia, da igualdade da ação e reação, etc., para logo
nos convencermos de que constituem uma physica pura (ou
rationalis) que, como ciência especial, bem merece ser exposta,
separadamente, em toda a sua extensão, quer esta extensão seja
maior ou menor.
todos os homens e desde que neles a razão ascende à especulação,
houve sempre e continuará a haver uma metafísica. E, por
conseguinte, também acerca desta se põe agora a pergunta: I como é B 22
possível a metafísica enquanto disposição natural? ou seja, como é
que as interrogações, que a razão pura levanta e que, por
necessidade própria, é levada a resolver o melhor possível, surgem
da natureza da razão humana em geral?
Como, porém, até agora todas as tentativas para dar resposta a
essas interrogações naturais, como seja, por exemplo, se o mundo
tem um começo ou existe desde a eternidade, etc., sempre
depararam com contradições inevitáveis, não podemos dar-nos por
satisfeitos com a simples disposição natural da razão pura para a
metafísica, isto é, com a faculdade pura da razão, da qual, aliás,
sempre nasce uma metafísica (seja ele qual for); pelo contrário, tem
que ser possível, no que se lhe refere, atingir uma certeza: a do
conhecimento ou ignorância dos objetos, isto é, uma decisão quanto
aos objetos das suas interrogações ou quanto à capacidade ou
incapacidade da razão para formular juízos que se lhes reportem;
consequentemente, para estender com confiança a nossa razão pura
ou para lhe pôr limites seguros e determinados. Esta última questão,
que decorre do problema geral acima apresentado, poderia
justamente formular-se assim: como é possível a metafísica
enquanto ciência?
A crítica da razão acaba, necessariamente, por conduzir à
ciência, ao passo que o uso dogmático da razão, sem crítica, leva,
pelo contrário, a afirmações sem fundamento, a que se podem opor B 23
outras por igual verossímeis e, consequentemente, ao cepticismo.
Esta ciência também não poderá ser de uma extensão
desencorajante, pois não se ocupa dos objetos da razão, cuja
variedade é infinita, mas tão-somente da própria razão, de
problemas todos eles engendrados no seu seio e que lhe são propos-
tos, não pela natureza das coisas, que são distintas dela, mas pela
sua própria natureza; portanto, uma vez que tenha aprendido a
conhecer a sua capacidade em relação aos objetos que a experiência
lhe pode apresentar, ser-lhe-á fácil determinar de
maneira completa e segura a extensão e os limites do seu uso,
quando se ensaia para além das fronteiras da experiência.
Podem e devem-se pois considerar sem efeito todas as ten-
tativas empreendidas até hoje para constituir, dogmaticamente, uma
metafísica, porque o que numa ou noutra há de analítico, ou seja,
mera decomposição de conceitos que residem a priori na razão, não
é ainda a finalidade, é apenas um preliminar à autêntica metafísica,
que deve alargar sinteticamente o conhecimento a priori. Esta
análise é imprópria para este fim, porque apenas mostra o que está
contido nestes conceitos e não como os alcançamos a priori para
B 24 depois podermos determinar a sua aplicação válida em relação aos I
objetos de todo o conhecimento em geral. Para desistir destas
pretensões pouca abnegação é necessária, porque as inegáveis
contradições da razão consigo mesma, inevitáveis no processo
dogmático, há muito que tiraram à metafísica todo o prestígio. Será
necessária maior firmeza para não nos deixarmos tolher pela
dificuldade intrínseca e pela resistência externa e, deste modo,
estimularmos, finalmente, graças a um tratamento diferente e em
total oposição ao seguido até agora, o crescimento próspero e
fecundo de uma ciência imprescindível à razão humana, a que se
podem cortar os ramos que se vão erguendo, mas a que não se
podem extirpar as raízes.

VII

IDÉIA E DIVISÃO DE UMA CIÊNCIA PARTICULAR


COM O NOME DE CRITICA DA RAZÃO PURA

De tudo isto resulta a idéia de uma ciência particular [que se


pode chamar Crítica da razão pura] ¹ . [Porque ²] a razão é a
faculdade que nos fornece os princípios do conhecimento
___________________

¹ A: que pode servir à Crítica da Razão Pura. Segue-se a alínea: Chama-


se puro todo o conhecimento ao qual nada de estranho se encontra misturado.
Porém, um conhecimento é denominado sobretudo absolutamente puro, quando
não se encontra nele, em geral, nenhuma experiência ou sensação; quando é,
por conseguinte, possível completamente a priori.
² A: Ora.
a priori. Logo, a razão pura é a que contém os princípios para
conhecer algo absolutamente a priori. Um organon da razão pura
seria o conjunto desses princípios, pelos quais são adquiridos todos
I os conhecimentos puros a priori e realmente constituídos. A B 25
aplicação pormenorizada de semelhante organon proporcionaria um
sistema da razão pura. Como este sistema, porém, é coisa muito
desejada e como resta ainda saber se também [aqui] em geral é
possível uma extensão do nosso conhecimento e em que casos o
pode ser, podemos considerar como uma propedêutica do sistema
da razão pura, uma ciência que se limite simplesmente a examinar a
razão pura, suas fontes e limites. A esta ciência não se deverá dar o
nome de doutrina, antes o de crítica da razão pura e a sua utilidade
[do ponto de vista da especulação] será realmente apenas negativa,
não servirá para alargar a nossa razão, mas tão-somente para a
clarificar, mantendo-a isenta de erros, o que já é grande conquista.
Chamo transcendental a todo o conhecimento que em geral se
ocupa menos dos objetos, que do nosso modo de os conhecer, na
medida em que este deve ser possível a priori ¹ . Um sistema de
conceitos deste gênero deveria denominar-se filosofia
transcendental. Mas esta filosofia é, por sua vez, demasiado
ambiciosa para podermos começar por ela. Como esta ciência
deveria conter, integralmente, tanto o conhecimento analítico como
o conhecimento sintético a priori, abrangeria, para o nosso
desígnio, extensão demasiado vasta, pois não devemos levar a
análise senão até ao ponto em que nos é indispensável para
compreender, em toda a sua I extensão, os princípios da síntese a B 26
priori, único objeto de que nos ocupamos. Desta investigação
tratamos presentemente. Não podemos verdadeiramente chamar-lhe
doutrina, mas apenas crítica transcendental, porquanto a sua
finalidade não é o alargamento dos próprios conhecimentos, mas a
sua justificação, e porque deve fornecer-nos a pedra de toque que
decide do valor ou não valor de todos os conhecimentos a priori.
Semelhante crítica é, por conseguinte, uma preparação, tanto quanto
possível, para um organon e, caso este organon não fosse viável,
____________________

¹ A: do que dos nossos conceitos a priori dos objetos.


pelo menos para um canon da razão pura, mediante o qual, em todo
o caso, poderia ser exposto mais tarde o sistema completo da
filosofia da razão pura, quer consista em extensão quer em
limitação do conhecimento racional, tanto analítica como sinte-
ticamente. Que isto seja possível e mesmo que um sistema como
este possa ser de uma extensão bastante reduzida para que
esperemos acabá-lo inteiramente, pode-se já conjecturar
antecipadamente pelo fato de o nosso objeto não ser aqui a natureza
A 13 das coisas, que é inesgotável, mas o entendimento que julga a
natureza das coisas, e ainda o entendimento considerado
unicamente do ponto de vista dos nossos conhecimentos a priori,
cujas riquezas não podem ficar-nos escondidas, pois não precisamos
de as buscar fora de nós e tudo faz presumir que serão assaz
restritas, para que possam ser totalmente captadas, julgadas quanto
B 27 ao seu valor ou desvalor e apreciadas corretamente. I [Menos ainda
se deverá esperar aqui uma crítica de livros e sistemas da razão
pura; apenas fazemos a crítica da própria faculdade da razão pura.
Só com fundamento nesta crítica se possui uma pedra de toque
segura para apreciar o valor filosófico de obras antigas e modernas
que se ocupam desta questão; de outro modo, o historiador e o
crítico incompetentes ajuízam as asserções sem fundamento dos
outros pelas suas próprias asserções, igualmente infundadas.] 1 .
A filosofia transcendental é a idéia de uma ciência 2 para a qual
a crítica da razão pura deverá esboçar arquitetonicamente o plano
total, isto é, a partir de princípios, com plena garantia da perfeição e
solidez de todas as partes que constituem esse edifício. [E o sistema
de todos os princípios da razão pura]. Se esta mesma crítica já não
se denomina filosofia transcendental é apenas porque, para ser um
sistema completo, deveria conter uma análise pormenorizada de
todo o conhecimento humano a priori. É certo que a nossa crítica
deverá apresentar uma enumeração completa de todos os conceitos
fundamentais, que
__________________

¹ Acrescentamento de B. Em sua vez, em A aparecia um título de


parágrafo: II. Divisão da filosofia transcendental.
² A: é aqui apenas uma idéia de uma ciência.
constituem esse conhecimento puro. Contudo, como é razoável,
dispensa-se da análise exaustiva desses mesmos conceitos, bem
como da recensão completa dos que deles são derivados; em parte,
porque essa análise não seria conforme à finalidade da crítica, não
tendo a dificuldade que se depara na síntese, seu verdadeiro objeto; A 14 B 28
em parte, porque seria contrário à unidade do plano empreender a
justificação de tal analise e de tal derivação, o que, tendo em vista
o fim visado, pode muito bem dispensar-se. Tanto a integridade da
análise dos conceitos a priori, como da dedução dos que mais tarde
deles derivem, são de resto fáceis de obter, desde que esses
conceitos tenham sido de início expostos como princípios
pormenorizados da síntese e nada lhes falte com respeito a este fim
essencial.
À crítica da razão pura pertence, pois, tudo o que constitui a
filosofia transcendental; é a idéia perfeita da filosofia
transcendental, mas não é ainda essa mesma ciência, porque só
avança na análise até onde o exige a apreciação completa do
conhecimento sintético a priori.
Na divisão desta ciência dever-se-á, sobretudo, ter em vista
que nela não entra conceito algum que contenha algo de empírico,
ou seja, vigiar para que o conhecimento a priori seja totalmente
puro. Daí resulta, que os princípios supremos da moralidade e os
seus conceitos fundamentais, sendo embora conceitos a priori, não
pertencem à filosofia transcendental, [porque, não obstante não A 15
serem por si mesmos os fundamentos dos preceitos morais, os
conceitos de prazer e desprazer, de desejos e inclinações, etc., B 29
todos de origem empírica, devem estar necessariamente incluídos
na elaboração do sistema da moralidade pura, pelo menos no
conceito do dever, enquanto obstáculos que deverão ser transpostos
ou enquanto estímulos que não deverão converter-se em móbiles]
14
. Por isso, a filosofia transcendental outra coisa não é que uma
filosofia da razão pura simplesmente especulativa. Pois tudo o que
é prático, na medida em que
_______________
14
A: porque nela deviam ser pressupostos os conceitos de prazer e
desprazer, de desejos e de inclinações, de vontade de escolha, etc., que são
todos de origem empírica.
contém móbiles, refere-se a sentimentos que pertencem a fontes de
conhecimento empíricas.
Se quisermos agora proceder à divisão desta ciência a partir do
ponto de vista universal de um sistema em geral, deverá a crítica,
que agora empreendemos, conter, em primeiro lugar, uma teoria
dos elementos, em segundo lugar uma teoria do método da razão
pura. Cada uma destas partes principais deveria ter uma subdivisão,
da qual, por enquanto não temos de expor os princípios. Parece-nos,
pois, apenas necessário saber, como introdução ou prefácio, que há
dois troncos do conhecimento humano, porventura oriundos de uma
raiz comum, mas para nós desconhecida, que são a sensibilidade e o
entendimento; pela primeira são-nos dados os objetos, mas pela
segunda são esses objetos pensados. Na medida em que a
sensibilidade deverá conter representações a priori, que constituem
B 30 as condições I mediante as quais os objetos nos são dados, pertence
A 16 à filosofia transcendental. A teoria I transcendental da sensibilidade
deve formar a primeira parte da ciência dos elementos, porquanto as
condições, pelas quais unicamente nos são dados os objetos do
conhecimento humano, precedem as condições segundo as quais
esses mesmos objetos são pensados.

Em lugar dos dois primeiros artigos da edição B encontrava-se em A:

A1 INTRODUÇÃO

I — Idéia da filosofia transcendental

A experiência é, sem dúvida, o primeiro produto que o nosso


entendimento obtém ao elaborar a matéria bruta das sensações. Precisamente
por isso é o primeiro ensinamento e este revela-se de tal forma inesgotável no
seu desenvolvimento, que a cadeia das gerações futuras nunca terá falta de
conhecimentos novos a adquirir neste terreno. Porém, nem de longe é o único
campo a que se limita o nosso entendimento. É certo, que a experiência nos diz
o que é, mas não o que deve ser, de maneira necessária, deste modo e não de
outro. Por isso mesmo não nos dá nenhuma verdadeira universalidade e a
A2 razão, tão ávida de conhecimentos desta espécie, I vê-se mais excitada por ela
do que satisfeita. Ora, semelhantes conhecimentos universais, que ao mesmo
tempo apresentam o carácter de necessidade interna, devem,
independentemente
da experiência, ser claros e cerros por si mesmos. Por esse motivo se intitulam
conhecimentos a priori; enquanto tudo aquilo que, pelo contrário, é extraído
simplesmente da experiência, é conhecido, como se diz, apenas a posteriori ou
empiricamente.
Agora se vê, o que é muito importante, que mesmo às nossas experiências
se misturam conhecimentos que devem ter uma origem a priori e que talvez
apenas sirvam para fornecer uma ligação às nossas representações sensíveis.
Com efeito, se dessas experiências retirarmos tudo o que pertence aos sentidos,
ainda ficam certos conceitos primitivos e os juízos deles derivados, conceitos e
juízos que devem ser formados inteiramente a priori, isto é, independentemente
da experiência, pois que, graças a eles, acerca dos objetos que aparecem aos
nossos sentidos se pode dizer ou pelo menos se julga poder dizer mais do que
ensinaria a simples experiência e essas afirmações implicam uma verdadeira
universalidade e uma rigorosa necessidade, que o conhecimento empírico não
pode proporcionar.

Neste ponto inicia-se em B um novo artigo com o seguinte título:

III

A filosofia carece de uma ciência que determine a possibilidade, os


princípios e a extensão de todo conhecimento a priori.

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