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Arthur Schopenhauer

Sobre a Quádrupla Raiz


do Princípio de Razão
Suficiente

PREFACIO
Este tratado de filosofia elementar, que apareceu pela primeira vez em 1813 como tese de meu doutorado,
chegou a ser o alicerce de todo meu sistema filosófico. Por esta razão não deve faltar nas livrarias, como, sem
sabê-lo eu, vinha acontecendo há mais de quatro anos.
Agora bem: apresentar ao público de novo este trabalho de juventude, com todos os seus defeitos, me pareceu
imperdoável. Acredito também que o tempo em que já não possa corrigir nada, não está muito remoto, e então
começará o período de minha verdadeira influência, que, para meu consolo, há de ser longo, confiando na
promessa de Séneca: “etiamsi omnibus tecum viventibus silentium livor indixerit; venient qui sine offensa, sine
gratia judicent”¹ (ep. 79). Corrigi, pois, no possível, este trabalho de meus primeiros anos, e, dada a cortedade e
insegurança de nossa vida, considero como uma sorte que me foi concedida poder corrigir, aos sessenta anos, o
que escrevi aos vinte e seis.
Entretanto, decidi ser indulgente com minha juventude e deixá-la usar da palavra, a seu modo, no que foi
possível. Mas quando se mostra equivocada ou supérflua ou deixa de dizer algo bom, toma o velho a palavra, o
que acontece muito freqüentemente, com o qual muitos receberão a impressão de um velho que lê em alta voz a
obra de um jovem, e não desdenha, de quando em quando, fazer considerações por conta própria.
Fácil é compreender que uma obra corrigida deste modo, e depois de muito tempo, não pode ter a unidade e
redondez que teria se estivesse escrita num fôlego só. Não poderá passar desavisada certa diferença no estilo e
na forma de expor, tão sensível para o leitor discreto, que nunca duvidará sobre o que é o que pertence ao velho
e o que é o próprio do jovem. Com efeito: há grande diferença entre o tom doce e modesto do jovem, que expõe
confidencialmente suas idéias, sendo ainda o bastante cândido para acreditar seriamente que todos os que se
ocupam em filosofia não perseguem outra coisa que a verdade e que, por conseguinte, aquele que a apresenta é
bem-vindo entre eles; e a voz firme, mas também um pouco rude, do velho, que sabe muito bem que entre nós,
em que nobre confraria de cavalheiros de indústria e de servis cortesãos tem cansado, e o que é o que lhes
preocupa acima de tudo e sobre tudo. E se de quando em quando a indignação brota por todos os seus poros, o
leitor terá que perdoar-lhe já se sabe o que acontece ao que, não levando na boca mais que o amor à verdade,
não se ocupa, no fundo, mais que de adivinhar os desejos de seus superiores, dos que estão acima; e quando,
por outra parte, fazendo extensivo aos Filósofos o e quovis ligno fit Mercurius², um enganador tão soporífero
como Hegel passa por um grande filósofo.

“Embora agora todos lhe mostrem silencioso rancor, já virão quem lhe julgue imparcialmente” Séneca, Ep,
79.

Aí está a filosofia alemã servindo de zombaria aos estrangeiros, rechaçada pelos verdadeiros sábios, como uma
rameira que, por vil preço, hoje se vende a um, amanhã a outro, e os cérebros da atual geração de estudiosos,
desorganizados pelos absurdos do Hegel; incapacitados para pensar, incultos e atordoados, presos no vulgar
materialismo, que tem brotado do ovo do Basilisco. Bom proveito! E volto para meu assunto.

Como digo, não terá que apurar-se pela disparidade de tom, pois eu não poderia aqui, como o fiz em minha
obra capital, inserir as edições posteriores, isoladas; não se trata de saber o que eu redigi aos vinte e seis anos e
o que escrevi aos sessenta, mas sim de que, os que queiram orientar-se e ver claro nos conceitos fundamentais
de toda filosofia, encontrem nestas poucas páginas um livro aonde possam aprender algo sólido e verdadeiro; e
espero que assim seja. Na refundição que sofreram atualmente várias partes da obra, chegou a ser esta uma
breve teoria do conjunto de nossas faculdades cognitivas, que, partindo do mero princípio de razão, apresenta o
assunto por um lado novo e característico, que encontra seu complemento no primeiro livro de minha obra. O
mundo como vontade e representação, com os correspondentes capítulos do segundo tomo, e na Crítica da
filosofia kantiana.

Francfort-s.-e-Mena, Setembro 1847.


CAPITULO I
Introdução.

O MÉTODO

O divino Platão e o assombroso Kant unem suas poderosas vozes; para preconizar a necessidade de uma regra
para o método de todas as filosofias, e até de todas as ciências em geral 3 - 4 . Duas leis, dizem, a da
homogeneidade e a da especificação devem empregar-se em igual medida, sem abusar da uma com prejuízo da
outra.
A lei da homogeneidade nos ensina, mediante a observação da semelhança e correspondência ou harmonia das
coisas, a formar com elas espécies e a reunir estas espécies em gêneros apoiados em alguma semelhança ou
qualidade comum, para logo juntar estes gêneros em famílias, e assim sucessivamente, até chegar a um
conceito, o mais pormenorizado, que os abranja a todos. Como queira que seja uma lei essencial, transcendental
da razão humana, pressupõe uma correspondência com a natureza, suposição que se expressa no clássico
axioma: “entia praeter necessitatem non é-se multiplicanda” 5. Kant, pelo contrário, formula a lei da
especificação: entium varietates non temere esse diminuendas 6. Esta exige que separemos escrupulosamente
os gêneros agrupados na vasta noção de família, o mesmo que as espécies superiores e inferiores
compreendidas em tais gêneros, nos guardando bem de dar nenhum salto, e, sobretudo, de não confundir uma
espécie inferior, e com mais razão um indivíduo, com a noção de família, sendo cada conceito capaz de um
novo desdobramento, sem chegar à intuição pura. Kant insinua que estas duas leis são princípios
transcendentais da razão, e que reclamam a priori o acordo com as coisas, e Platão parece expressar a seu modo
a mesma afirmação ao dizer que estas regras, que constituem a origem de todas as ciências, foram-nos
arrojadas, com o fogo de Prometeo, da mansão dos deuses 7.

³ # Platão, Phileb., P. 219-223; Politic., 62-63; Phaedr., 361-363, ed. Bip.— Kant, Crít. da razão pura, Apêndice à
Dialética transcendental.
4 Em relação à nota de pé de página anterior, parece-nos oportuno brindar, alternativamente, as referências às obras do
Platão, segundo a codificação canônica, ou seja: Fedro 265d - 266c; Político 285 B.
5 “não devem multiplicá-los princípios sem necessidade” Kant, Crítica da Razão Pura, Dialética Transcendental,
Apêndice, pág.292, Editorial Porrúa.
6 “a variedade dos entes não devem diminuir-se irreflexivamente”
7 Ver por exemplo: Platão, Político, 274 c-d.
2

SEU EMPREGO NO PRESENTE CASO

Apesar de tão poderosas recomendações, considero a última destas duas regras pouco aplicada a um dos
princípios constitutivos de todos os conhecimentos, ao princípio de razão suficiente. Embora já anunciada há
tanto tempo, com freqüência se descuidou em separar suas muitos diversas aplicações, em cada uma das quais
tem uma significação distinta, e que delatam sua procedência de diferentes faculdades cognitivas.
Mas precisamente no estudo de nossas faculdades, o uso do princípio de homogeneidade, com desprezo do
contrário, nos conduz a muitos e grandes enganos, e, pelo contrário, o uso do princípio de especificação nos faz
dar os maiores e decisivos passos. Isto se demonstra comparando a filosofia kantiana com todas as anteriores.
Seja-me permitido reproduzir uma passagem em que Kant recomenda aplicar o princípio de especificação à
fonte de todos os nossos conhecimentos, dando assim autoridade a meus atuais estudos: «É da mais alta
importância isolar os conhecimentos que por sua espécie e origem são distintos de outros, e evitar
cuidadosamente que se confundam em um amálgama com outros, com os quais está acostumado a lhes mesclar
o uso. O que o químico faz ao dividir a matéria, o que faz o matemático em suas mais árduas operações, deve
fazê-lo com maior razão o filósofo, com o que obterá o proveito de poder determinar certamente o valor e a
importância de determinados conhecimentos adquiridos por um uso incerto da razão» (Crít. da raz. pur.,
Doutrina do método. 3).

UTILIDADE DESTA INVESTIGAÇÃO

Se se chegar a demonstrar que o principal objeto de nossa investigação, não emana imediatamente de uma das
faculdades fundamentais de nossa inteligência, mas sim de muitas delas, se seguirá daqui que a necessidade que
estranha como princípio a priori, não é tampouco sempre a mesma em todas as partes, a não ser tão múltiplo
como o são as fontes do mesmo princípio. Depois, que funde uma conclusão sobre o princípio, terá a obrigação
de determinar exatamente sobre qual das diferentes necessidades que servem de base ao princípio de razão,
apóia-se, assim como de lhe dar um nome (já os proporei). Acredito que deste modo se ganhará algo pelo que
respeita a precisão e claridade em filosofia, e tenha a claridade proveniente da exata determinação do
significado de cada frase por uma exigência imperiosa da filosofia, como meio imprescindível para nos
precaver dos erros e das mistificações, e para que todo conhecimento adquirido não possa logo nos ser
arrebatado por equívocos ou ambigüidades descobertas posteriormente.
Em geral, o filósofo digno de tal nome, deve buscar e procurar em todos os seus escritos estas duas qualidades
mencionadas: claridade e precisão, e esforçar-se sempre em parecer-se, não a uma revolta e impetuosa corrente,
mas sim bem a um lago da Suíça, que por sua quietude aparece mais claro quanto mais profundo, deixando ver
seu fundo desde o primeiro momento. La clarté est la bonne foi des philosophes, disse Vauvenargues. O
pseudo-filósofo, em troca, seguindo a máxima do Talleyrand, tratará, por todos os meios, de ocultar, sob as
palavras, seus pensamentos, ou melhor, sua falta de pensamento, atribuindo a falta de perspicácia do leitor à
escuridão de seus filosofemas. Assim se explica que em alguns escritos, os do Fichte, por exemplo, o tom
didático degenere com freqüência em injurioso, e, até curando-se na saúde, se chegue a jogar na cara, por
antecipação, do leitor sua incapacidade.
4

IMPORTÂNCIA DO PRINCÍPIO DA RAZÃO SUFICIENTE

Tanta é a importância do princípio de razão suficiente, que lhe pode considerar como o fundamento de todas as
ciências. Ciência não é outra coisa que um sistema de conhecimentos, quer dizer, um conjunto de verdades
encadeadas, em oposição a um mero agregado de conhecimentos. E quem a não ser o princípio de razão
suficiente pode encadear os membros de tal sistema? Em efeito: o que distingue a uma ciência de um mero
agregado, é que suas verdades nascem umas de outras como de seu próprio princípio. Por isso dizia já Platão:

γαρ αι δοξαι αι αληθεις ου πολλοαξιαι εισιν, εως αν τις αυτας δηση αiτιας λογισμ
(etiam opiniones verae non multi pretii sunt, donec quis illas ratiocinatione a causis ducta liget. Meno.,
p. 385, Bip.) 8

Além disso, todas as ciências contêm noções de causa, pelas quais estão determinados os efeitos, e deste modo
outras noções sobre as necessidades das conseqüências que emanam dos princípios, como veremos mais
adiante, o que Aristóteles já expressava com estas palavras :

πασεπιστμη διανοητικ, η χαι μετχουσα τι διανοας, περί αίτιας και αρχάς εστί
(omnis intellectualis scientia, sive aliquo modo intellectu participans, circa causas et principia est.
Metaph., V, 1) 9

E como o princípio, suposto por nós a priori, de que tudo tem uma razão, nos autoriza a perguntar em todas as
coisas o «porquê», daqui que este «porquê» possa considerar-se como a mãe de todas as ciências.

O PRINCÍPIO

Já demonstraremos que o princípio de razão suficiente é uma expressão comum a vários conhecimentos dados
a priori. No momento, temos necessidade de lhe enunciar por meio de uma fórmula. Prefiro empregar a
wolfiana, como a mais geralizada: Nihil est sine ratione cur potius sit, quam non sit (Nada existe sem uma
razão de ser).

8 No Menón de Biblioteca Clássica Gredos se lê: “Porque, com efeito, também as opiniões verdadeiras, enquanto
permanecem quietas, são coisas belas e realizam todo o bem possível; mas não querem permanecer muito tempo e
escapam da alma do homem, de maneira que não valem muito até que um não as sujeita com uma discriminação da causa
(com um raciocínio baseado na causalidade)” (Menón 97e - 98ª , Platão, Diálogos II, Biblioteca Básica Gredos, pág 328 e
329).
9 “toda ciência apoiada na razão ou que participa de algo do raciocínio versa sobre causas e princípios, ora mais rigorosos
ora mais simples.” (Aristóteles, Metafísica, livro VI, 1025b, edição eletrônica Universidade do Arcis).
CAPITULO II
Resumo das principais vicissitudes do
princípio de razão suficiente até nossos dias.

PRIMEIRA FÓRMULA DO PRINCÍPIO E SEPARAÇÃO DE DOIS DE SEUS DISTINTOS SIGNIFICADOS

A fórmula, a expressão abstrata mais ou menos exatamente determinada de um princípio originário de todo
conhecimento como o de que se trata, não poderia menos de ser encontrada logo; mas é difícil e de escasso
interesse investigar onde apareceu pela primeira vez. Platão e Aristóteles não lhe apresentam ainda como um
princípio fundamental; mas, entretanto, falam dela muito freqüentemente como de uma verdade evidente por si
mesma. Assim diz Platão, com ingenuidade que ante a crítica moderna aparece como um estado de candura
primitiva, que não discerne entre o bem e o mal:

αναγκαιον, πάντα τα γιγνομενα δια τίνα αίτιν γιγνεσθαι· πως γαρ αν χωρίς τούτων γιγνοιτο
(necesse est, quaecunque fiunt, per aliquam causam fieri: quomodo enim absque ea fierent?), Phileb., p.
240, Bip., 10

e de novo no Timeo (página 302):

παν δε το γιγνομενον υπ' αίτιου τίνος εξ αναγχης γιγνεαθαι' παντι γαρ αδύνατον χωρίς αίτιογενεσιν
σχειν
(quidquid gignitur, ex aliqua causa necessario gignitur: sine causa enim oriri quidquam, impossibile
est). 11

Plutarco, no final de seu livro De fato, inclui entre os princípios dos estóicos:

μάλιστα μεν και πρώτον είναι δοξειε, το μηδέν αναιτιως γιγνεσαι, αλλά χατα
προηγούμενος αίτιας
(maxime id primum esse videbitur, nihil fieri sine causa, sed omnia causis
antegresis). 12

επιστασαι δε οιομεθα έχαστον άλς, όταν την τ' αίτιον οιομεα γινσχειν, δι ην το πράγμα εστίν, ότι
εκείνου αιτιά εστίν, χαι μη ενδεχεσαι τούτο άλλως είναι
(scire autem putamus unamquamque rem simpliciter, quum putamus causam
cognoscere, propter quam res est, ejusque rei causam esse, nec posse eam aliter
se habere). 13

πασών μεν ουν χοινον των αρχών, το πρώτον είναι, όεν η εστίν, η γίνεται, η γιγνωεται
(omnibus igitur commune est, esse primum, unde aut est, aut fit, aut cognoscitur). 14

No capítulo seguinte distingue diferentes classes de causas, mas com alguma superficialidade e confusão.
Melhor que nesta passagem desenvolve as classes de razões nos Anal. post., II, iI:
αίτιοι δε τεσσάρες· μια μεν το τι ην είναι μια δε το τίνων όντων, αναγχη τούτο είναι· έτερα δε, ή τι
πρώτον εχινησ· τετάρτη δε, το τίνος ένεκα
(causae autem quatuor sunt: una quae explicat quid res sit; altera, quam si quedam sint, necesse est
esse; tertia, quae quid primum movit; quarta id cujus gratia). 15

Esta é a origem da divisão das causas aceita pelos escolásticos em causas materiais, formais, eficientes e finais,
como aparecem nas Suarii disputationibus metaphysicis, esse verdadeiro compêndio da escolástica (dis, 12, sec.
2 e 3). Mas também Hobbes as recolhe e explica (de corpore, P. II, C. 10, parágrafo 7). Tal divisão pode ser
encontrada em Aristóteles, e por certo mais precisa e claramente: veja-se Metaph., 1, 3. Também no livro de
somno et vigília, C. 2, está exposta brevemente.
No que se refere à tão importante distinção entre razão de conhecimento e causa, Aristóteles revela na verdade
um conceito da questão quando diz nos Analyt. post., I. 13, que o saber e demonstrar que uma coisa é difere
muito do saber e demonstrar por que é uma coisa, chamando a este último, conhecimento da causa, e ao
primeiro, princípio de conhecimento. Mas não chega a uma precisa compreensão da diferença: do contrário, em
seus demais escritos a conservaria e estudaria. Mas não é assim: pois até nas mesmas passagens citadas, em que
se esforça por distinguir as diferentes classes de razão, esquece ao ponto, como acontece nos capítulos citados,
tão importante distinção, e usa a palavra αιτιον indistintamente para toda razão, qualquer que seja sua classe, e
até chama freqüentemente princípio de conhecimento as premissas de uma conclusão, ατιας, assim, por
exemplo: Metaph., IV, 18; Rhet,, II, 21; de plantis, I, P. 816 (ed. Berlim), e em especial Analyt. post., I, 2,
donde precisamente chama as premissas de uma conclusão: αιτιαι του συμπερaσματος. Mas quando se
designam com a mesma palavra dois conceitos relacionados, é sinal de que não se aprecia sua diferença ou de
que se esqueceu desta, pois algo muito diferente é designar duas coisas distintas com o mesmo nome por acaso.
Mas este engano salta mais à vista em sua exposição do sofisma non causae ut causa, παρτο μη ατιον ως
ατιον, no livro De sophisticis elenchis, c. 5. Na palavra ατιον inclui a razão probatória, as premissas, isto é,
um princípio de conhecimento, consistindo o sofisma em que se dá por impossível algo que não tem nada que
ver com o princípio discutido, cuja falsidade se dá por demonstrada por este procedimento. Assim, pois, não se
fala aqui de causas físicas. Mas a palavra αίτιον tem tido tanta autoridade entre os lógicos dos tempos
modernos, que, atendo-se unicamente a ela, apresentam sempre em sua demonstração fallaciarum extra
dictionem, a fallacia non causae ut causa, como o fariam para a indicação de uma causa física, não o sendo;
assim, por exemplo, fazem B. Reimaro, G. E. Schultze, Fries e todos os que eu recordo: só na lógica do
Twesten encontro este sofisma bem desmascarado. Também em outras obras de ciência e de controvérsia se
entende, pelo geral, pela acusação de uma falaccia non causae ut causa a indicação de uma falsa causa. O
Sexto Empírico nos oferece um eloqüente exemplo desta confusão, tão geralizada entre os antigos, das leis
lógicas do princípio de conhecimento com a transcendental lei natural da causa e o efeito. Assim, no livro 9
Adversus mathematicos, ou seja o livro Adversus physicos, par. 204 trata de demonstrar a lei de causalidade e
diz: «que afirma que não há nenhuma causa (ατια), ou não há nenhuma causa (ατια) para afirmá-lo, ou tem
alguma. No primeiro caso, sua afirmação não é mais verdadeira que a contrária; no outro, por sua mesma
afirmação demonstra a existência da causa.»

10 “Necessário é que o que chegue a ser, seja-o por alguma causa, pois, em efeito, de que outro modo poderia acontecer?”
11 “Além disso, tudo o que sucede, sucede necessariamente por alguma causa; é impossível, portanto, que algo suceda
sem uma causa.” (Platão, Timeo, pág 9, Edición Electrónica Universidade de Arcis, o bien, Platão, Diálogos VI,
Biblioteca Básica Gredos, Timeo 28a - 28b, pág 164-165).
12 “este especialmente pareceria ser o primeiro princípio: que nada possa ser sem causa, mas sim (tudo) é de acordo à
causas precedentes.” 7,
13 “Nós acreditamamos saber de uma maneira absoluta as coisas e não de uma maneira sofística, puramente acidental,
quando acreditam saber que a causa pela que a coisa existe é a causa desta coisa, e por conseguinte, que a coisa não pode
ser de outra maneira que como nós sabemos.” Aristóteles, Tratados de Lógica, Segundos Analíticos, livro 1, segunda
seção, capitulo 2, pág. 156
14 “Assim, pois, a todos os princípios é comum ser o primeiro do qual algo é, ou se faz, ou se conhece.” Aristóteles,
Metafísica, Livro V, capítulo 1, 1015ª -1020ª, pág. 53
15 “Agora bem, há quatro causas: a primeira se refere à essência (a que seja a coisa); a segunda faz que do momento em
que existem certas circunstâncias, seja necessário que a coisa seja (antecedentes que implicam um conseqüente) ; a
terceira é para a coisa o princípio do movimento; e a quarta, por último, que é o fim em vista do qual a coisa tem lugar.”
Aristóteles, Tratados de Lógica, Segundos Analíticos, Seção Segunda, capítulo 11, pág 203, Editorial Porrua.

Vemos, portanto, que os antigos não distinguiram claramente entre o princípio de conhecimento, como base do
julgamento, e a causa como gênese do fato real. Em quanto aos escolásticos, mais tarde, a lei de causalidade era
para eles como um axioma por cima de toda discussão: non inquirimus an causa sit, quia nihil est per se
notius16, diz Suárez (Disp. 12, sect. I). Assim, pois, se ateiam à mencionada divisão das causas feita por
Aristóteles: por isso, em meu entender, tampouco haviam chegado a estabelecer a necessária distinção de que
estamos falando.

DESCARTES

Até nosso excelente Descartes, o criador da observação subjetiva, e, pelo mesmo, o pai da filosofia moderna,
carece de um conceito claro nesta matéria, e já veremos quão sérias e lamentáveis conseqüências produz esta
confusão em metafísica. Em seu responsio ad secunda objectiones in meditationes de prima philosophia,
axioma I, diz:

“Nulla cabeça de gado existit, de que, non possit quaeri, quaenam sit causa, cur existat. Hoc enim de ipso Deo
quaeri potest, non quod indigeat ulla causa UT existat, sede quia ipsa ejus naturae immensitas est causa sive
rateio, propter quam nulla causa 16 “não indagamos se uma causa seja, porque nada é por si bem conhecido
indiget ad existendum” 17

Tivesse dito: a infinitude de Deus é um princípio de conhecimento, do qual se segue que Deus não necessita de
causa. Confunde, entretanto, ambos os conceitos, e se vê que tampouco tinha uma clara visão da profunda
diferença entre causa e princípio de conhecimento. Mas realmente é a intenção a que nele falseia o conceito.
Em efeito: ali onde a lei de causalidade exige uma causa, substitui esta pelo princípio de conhecimento, porque
esta não nos leva tão longe como aquela, e abre por este axioma o caminho à prova ontológica da existência de
Deus, cujo inventor São Anselmo, somente deu a ela uma noção geral e preliminar. Pois depois dos axiomas, o
primeiro dos quais é o que citamos, se desenvolve formal e seriamente a referida prova: já bo proferido axioma
está como acusado, ou pelo menos, sai dele como o ovo de frango depois de um longo tempo incubado. Assim,
como as ademais coisas necessitam, para existir, de uma causa, a Deus já basta a imensidão, latente em seu
próprio conceito, ou como a prova mesma expressa: in conceptu entis summe perfecti existentia necessaria
continetur18. Este é, pelo tanto, o tour de passe-passe 19, para o qual as duas principais significações do
princípio de razão, já investigadas por Aristóteles, in majorem Dei gloriam 20, hão servido.
Mas examinado a uma boa luz, e sem preocupações, esta prova ontológica é um conto tártaro. Pois basta
imaginar um conceito, qualquer que seja, composto de todos os predicados, tendo especial cuidado de que entre
eles, esteja bem limpo e despojado, ou, e isto é mais conveniente, envolto em outro pregado como perfectio,
immensitas ou qualquer pelo estilo, que encontra-se também incluído o predicado da realidade ou existência.
Facilmente se compreende que, dado um conceito, pode-se ir tirando dele todos os seus predicados essenciais,
quer dizer, os que implicam o mesmo conceito, como também os predicados destes predicados, que entranharão
uma necessidade lógica, isto é, terão sua razão fundamental no conceito dado. Por este procedimento, é fácil
logo isolar do conceito imaginado o predicado da realidade, ou seja, a existência, e, por fim, chegar à
necessidade de um objeto correspondente ao conceito dado, e independente do mesmo. «Se não fosse tão
engenhosa a idéia, daria vontade de chamá-la de estúpida.»
17 nada existe, da qual, não se possa indagar qual seja a causa pela qual exista. Em efeito, isto, do mesmo Deus se pode
indagar, não porque necessite uma causa para existir, pois sua mesma natureza infinita é causa ou razão, e não é
necessária outra causa.
18 “no conceito de ente de soma perfeição (Deus) está contida a existência”
19 passe de magica.
20 “para maior glória de Deus”
Pelo resto, a resposta a tal argumentação é muito simples: «Tudo se baseia em saber onde achaste seu conceito:
tirou-lhe da experiência? a bonne heure; então nela existirá seu correspondente objeto, e não necessita de mais
demonstração. Pelo contrário, incubaste-lhe em seu sinciput 21? «Então não serve de nada todos os seus
predicados; é uma quimera.» Que a teologia, para entrar na filosofia, domínio que é estranho a ela, mas que
cobiça, tenha tido de recorrer a tais argumentos, a prevenir grandemente contra suas pretensões. Mas ah! A
profética sabedoria do Aristóteles! Jamais lhe passou pela sua mente a prova ontológica; e como se pressentisse
a farsa escolástica, afundando seu olhar na noite dos tempos que tinham que lhe seguir, atajóles em seu
caminho, demonstrando concienzudamente no capítulo 7 do 2° livro Analyticorum posteriorum, que a definição
de uma coisa e a prova de sua existência são duas matérias distintas e que nunca devem confundir-se, pois pela
primeira delas investigamos o que uma coisa possa ser, e pela outra, se esta coisa existir; e, como um oráculo
do futuro, expressa esta sentença:

το δ'ειναι το ουκ ουsια ουδενι. ου γαρ γeνος το ον


(esse autem nullius rei essentia est, quandoquidem ens non est genus; a existência não forma parte da
essência: o ser das coisas não pertence a seu existir).

Em troca, podemos comprovar como venerava Schelling a prova ontológica, se fixamo-nos em uma extensa
nota da P. 152 do primeiro livro de seus escritos filosóficos de 1809. E até se desprende algo mais instrutivo
daqui: quão fácil é deslumbrar os alemães com audazes e enfáticos palavrórios. Mas outro vividor mais
desventurado, Hegel, cuja filosofastrería toda é uma monstruosa amplificação da prova ontológica, quis
defendê-la contra a critica de Kant, defesa de que a mesma prova ontológica se envergonharia se fosse capaz de
envergonhar-se. Não se espere que eu fale com respeito a pessoas que têm desprezado a filosofia.

ESPINOSA

Embora a filosofia de Espinosa consista principalmente na refutação do duplo dualismo, sentado por seu mestre
Descartes, entre Deus e o mundo e entre a alma e o corpo, não obstante permanece fiel ao seu mestre na
confusão entre princípio de conhecimento e sua conseqüência e a noção de causa e efeito, e até trata de tirar
mais proveito dela para sua metafísica que Descarte para a sua, pois a mencionada confusão é o fundamento de
todo seu panteísmo. Com efeito: em uma noção estão compreendidos implicitamente todos os seus predicados
essenciais; por conseguinte, podem ir deduzindo explicitamente por meros juizos analíticos. A soma destes
constituirá sua definição, a qual não diferirá da noção, mas sim pela forma, e não pelo fundo, no sentido de que
a definição se compõe de juizos compreendidos todos na noção; nesta última está o princípio de conhecimento
assim que expõe sua essência. Resulta, pois, que tais juizos podem ser considerados como conseqüência da
noção, e esta como seu princípio. Agora bem: semelhante relação entre um conceito e os juizos analíticos
fundados nele e que dele podem derivar-se, é também a relação do Deus do Espinosa, com seu mundo, ou
melhor, a relação da substância universal e única com seus infinitos acidentes (Deus, sive substantia constans
infinitis attributis.22 Eth, libero I, PR. iI, Deus, sive omnia Dei attributa). Trata-se, pois, da relação do princípio
de conhecimento com suas conseqüências: justamente o contrário do deismo (o de Espinosa é um deismo
nominal), que adota a relação de causa e efeito, na qual a conseqüência é distinta do princípio, não como
naquele, só pela maneira de considerar estes dois elementos, a não ser em si mesmo e constante, isto é, como
uma verdadeira separação. Pois a palavra Deus, entendida como deve entender-se, não significa outra coisa a
não ser esta mesma causa do mundo, com adjuncão da personalidade.

21 cérebro
Em troca, um Deus impessoal é uma contradictio in adjecto.23 Aplicando agora Espinosa a palavra Deus à
substância, como expressamente chama de causa do mundo, demonstrou que confundia ambas as relações, e,
por conseguinte, demonstrou também que confundia por completo o princípio de conhecimento com o princípio
de causalidade. Isto se infere de numerosas passagens, e entre elas o seguinte:

“Notandum, dari necessario unius — cujusque rei existentis certam aliquam causam, propter quam
existit. Et notandum, hanc causam, propter quam aliqua cabeça de gado existit, vel debere
contineri in ipsa natura et definitione rei existentis (nimirum quod ad ipsius naturam pertinet existere),
vel debere extra ipsam dar” (Eth., parte I, prop. 8, esc. 2). 24

No último caso indica uma causa eficiente, como se infere do que segue; no primeiro, pelo contrário, um
simples princípio de conhecimento; identifica, sem embargo, ambas, e prepara assim seu trabalho de
identificação de Deus com o mundo. Seu procedimento consiste em mesclar o princípio de conhecimento, que
jaz no fundo de um determinado conceito, com uma causa ativa do exterior, lhes assimilando, e o tirou de
Descartes. Como exemplo desta assimilação, citarei a passagem seguinte:

ex-necessitate divinae naturae omnia, quae sub intellectum infinitum cadere possunt, sequi debent (Eth.,
parte I, prop. 16).25

Ao mesmo tempo chama a Deus em todas as partes de causa do mundo:

“Quidquid existit Dei potentiam, quae omnium rerum causa est, exprimit;26 ibíd., prop. 36, Demonstr.;
Deus est omnium rerum causa immanens, non vero transiens;27, ibíd., prop. 18; Deus non tantum est
causa efficiens rerum existentiae, sede etiam essentiae;28, ibíd., prop. 25. Eth., parte III, prop. i,
Demonstr., diz: Ex data quacunque ideia aliquis effectus necessario sequi debet;29, e ibíd., prop. 4:
Nulla cabeça de gado nisi a causa externa potest destrui;30.Demonstr. Definitio cujuscunque rei, ipsius
essentiam (essência, constituição, para distinguir a de existência) affirmat, sede non negat; sive rei
essentiam ponit, sede non tollit. Dum itaque ad rem ipsam tantum, non autem ad causa externas
attendimus, nihil in eadem poterimus invenire, quod ipsam possit destruere”;31

22 “Por Deus entendo um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consta de infinitos atributos...”, Espinosa,
Etica, Primeira parte, Definições, VI, pág. 48
23 “Contradictio in adjecto”: Inconsistência lógica entre um substantivo e um adjetivo que o modifica. Exemplo: “círculo
quadrado”, “atividade inerte”. Figura lógica e retórica que se refere a uma autocontradicción que se constrói com um
substantivo e seu adjetivo: «homem invisível», «círculo quadrado», «vida eterna».
24 “Deve notar-se que se dá necessariamente alguma causa determinada de cada coisa existente. Por último, débito otar-
se que essa causa, em cuja virtude existe uma coisa, ou deve estar contida na mesma natureza e efinição da coisa existente
(certamente, porque o existir é próprio da natureza), ou deve dar-se ora dela.” Espinosa, Etica, Primeira Parte, Proposição
8, Escolio 2, pág. 53
25 Da necessidade da natureza divina devem seguir-se infinitas coisas de infinitos modos (isto é, todo o que pode cair sob
um entendimento infinito).Espinosa, Etica, Primeira Parte, Proposição 16, pág. 65,
26 “Tudo que existe expressa de certa e determinada maneira a potência de Deus, que é causa de todas as coisas”
27 “Deus é causa imanente, mas não transitiva, de todas as coisas.”Ibid, proposição 16, pág 65,
28 “Deus não é só causa eficiente da existência das coisas, mas também de sua essência.” Ibid, proposição 25, pág 74,
29 “Além disso, a partir de uma idéia qualquer dada débito necessariamente seguir-se algum efeito”
30 Nada pode ser destruída mas sim por uma causa exterior.
31 “Nada pode ser destruída mas sim por uma causa exterior. Demonstração: A definição de uma coisa
qualquer afirma, e não nega, a essência dessa coisa; ou seja, põe a essência da coisa, e não a priva dela.
assim, em tanto atendemos só à coisa mesma, e não às causas exteriores, nada seremos capazes de achar nela que possa
destrui-la.” Ibid, Terceira Parte, proposição 4, pág 176, ou versão digital: Libera os Livros pág.116.
Ou o que é o mesmo: como um conceito não pode conter nada que contradiga sua definição, isto é, a soma de
seus predicados, tampouco uma coisa pode conter o que é causa de sua destruição. Este conceito está levado até
seu último extremo na segunda demonstração, algo extensa, da segunda proposição, onde também se confunde
a causa que pode criar ou destruir uma coisa com a contradição que a definição da mesma contém e que a
invalida. A necessidade de identificar a causa com o princípio de conhecimento se faz aqui tão premente, que
Espinosa nunca diz somente causa, ou também ratio somente, a não ser sempre rateio seu causa32, o que
repete numa mesma página oito vezes, para dissimular o engano.

Isto mesmo o fazia já Descartes no mencionado axioma. Assim, pois, o panteísmo do Espinosa só é realmente a
realização da prova ontológica de Descartes. Acima de tudo, adotou o chamado princípio ontoteológico de
Descartes: ipsa naturae Dei immensitas est causa sive rateio propter quam nulla causa indiget ad
existendum33; em vez do Deus, diz (ao princípio) sempre substantia, e logo termina: substantiae essentia
necessario involvit existentiam, ergo erit substantia causa sui34; (Eth., parte I, prop. 7). De modo que, com o
mesmo argumento com que Descarte demonstrava a existência de Deus, demonstra Espinosa a absoluta e
necessária existência do mundo, o qual, deste modo, não necessita de Deus algum. Isto o desenvolve mais
claramente no segundo escolio da oitava proposição:

“Quoniam ad naturam substantiae pertinet existere, debet ejus definitio necessariam existentiam involvere, et
consequenter ex-só ejus definitione debet ipsius existentia concludi.”35

Mas esta substância é, como sabemos, o mundo. No mesmo sentido encaminha a demonstração a prop. 24: Id,
cujus natura in se considerata (isto é, sua definição) involvit existentiam, est causa sui.36 O que Descarte só
ideal, só subjetivamente, isto é, só para nós, só para auxílio do conhecimento, empregava em vista da prova da
existência de Deus, emprega-o Espinosa real e objetivamente, como efetiva relação de Deus com o mundo. Em
Descartes, no conceito de Deus pulsa a existência, e serve assim de argumento para prová-la; no Espinosa, Deus
está contido no mundo O que em Descartes era um princípio de conhecimento, converte-o Espinosa no
fundamento da realidade; aquele ensinou, na prova ontológica, que da essência de Deus se segue sua existência,
e este faz dela a causa sui37, e começa audáciosamente sua Ética com as palavras: per causam sui intelligo vão,
cujus essentia (conceito) involvit existentiam38, surdo ao Aristóteles, que lhe grita: το δ' εiναι ουκ ουσια ουδενι
39 Aqui temos a mais evidente confusão do princípio de conhecimento com a causa. E se os neoespinosistas
(schellinianos, hegelianos, etc.), acostumados a tomar as palavras por pensamentos, prorrompem em devotas
aclamações a esta causa sui, eu não vejo nela mais que uma contradictio in adjecto, um pôr detrás o que está
diante, uma desavergonhada maneira de romper a cadeia infinita da causalidade, algo análogo ao que contam
daquele austríaco que, como não alcançasse com a mão a grampeá-las presilhas do chacó, subiu em uma
cadeira.

32 Razão sem causa


33 Por sua mesma natureza infinita é causa ou razon, pelo qual nenhuma outra causa é necessária que deva existir.
34 À natureza de uma substância pertence ao existir.
Demonstração: Uma substância não pode ser produzida por outra coisa (pelo Corolário da Proposição anterior); será,
portanto, causa de si, quer dizer (pela Definição 1), que sua essência implica necessariamente a existência, ou seja, que a
sua natureza pertence o existir.” Espinosa, Etica, Primeira Parte, Proposição 7, pág. 51 Edições Orbis, Hyspamerica, ou
versão digital: Libera os Livros pág. 31.
35 “posto que existir é próprio da natureza de uma substância (pelo já mostrado neste Escolio), débito de sua definição
suportar a existência como necessária e, conseguintemente, sua existência deve concluir-se somente de sua definição.”
Ibid, Proposição 8, pág. 54 Edições Orbis, Hyspamerica, ou versão digital: Libera os Livros pág. 34.
36 “Aquilo cuja natureza (ou seja: considerada em si) implica a existência é causa de si, e existe em virtude da
necessidade de sua natureza.”
37 Causa de si”
38 “Por causa sui entendo aquilo cuja essência implica a existência, ou, o que é o mesmo, aquilo cuja natureza só pode
conceber-se como existente”. Espinosa, Etica, Primeira Parte, Definição 1, pág. 47, Edições Orbis, Hyspamerica
39 “A existência não forma parte da essência: o ser das coisas não pertence a seu existir”
O verdadeiro símbolo da causa sui é o Barão de Münchhausen;40, tratando de retirar seu cavalo d’água, lhe
sujeitando com as pernas e botando ele para cima, com o acréscimo arremesso sobre a cara; debaixo poderia
ficar: Causa sui.

Para terminar, joguemos ainda uma olhada sobre a prop. 16 do primeiro livro da Ética, onde, em virtude do
princípio de que ex data cujuscunque rei definitione plures proprietates intellectus concludit, quae revera ex-
eadem necessario sequuntur, deduz que ex-necessitate divinee naturae (isto é, em sua realidade) infinita
infinitis modis sequi debent;41 indiscutivelmente, pois este Deus está com o mundo na relação de um conceito
com sua definição. Não menos ligado com isto aparece o corolário: Deum omnium rerum é-se «causam
efficientem»42. Não se pode levar mais longe a confusão do princípio do conhecimento com a causa, nem pode
ter mais importantes consecuecias que aqui. Isto dá idéia da importância do tema da presente dissertação.

Desta classe de enganos, provenientes da falta de claridade na especulação daqueles grandes espíritos do
passado, oferecem-nos em nossos dias Schelling um pequeno exemplo ou paródia, esforçando-se por
acrescentar o terceiro degrau ao climax de que estamos tratando. Se Descartes, cedendo à exigência do
princípio de causalidade, que punha seu Deus em um apuro, substituiu a causa por um princípio de
conhecimento, e Espinosa fez deste uma causa real, quer dizer, uma causa sui, compenetrando a Deus com o
mundo, o senhor Schelling (em seu Tratado da liberdade humana), separando em Deus mesmo o princípio e a
conseqüência, consolida ainda mais a coisa, elevando-a a uma real e viva hipóstasis do princípio e a
conseqüência, nos dando a conhecer que «em Deus não está Deus mesmo a não ser sua causa, isto é, uma
primeira causa, ou por melhor dizer, alguém sem-causa». Hoc quidem vere palmarium est43. Pelo resto, já é
sabido que tirou inteira a fábula do Jacobo Böhme «Funda relação do mistério terrestre e celestial»;

40 # Personagem muito popular na Alemanha e cujas vaidosas hipérboles lhe assemelham muito a nosso Manolito
Gázquez, a quem tão graciosamente descreveu Serafín Estébanez Caldeirão em suas Cenas andaluzas.
41 “de uma definição dada de uma coisa qualquer conclui o entendimento várias propriedades, que se seguem realmente,
de um modo necessário, de dita definição“--> deduz que -->”Da necessidade da natureza divina devem seguir-se infinitas
coisas de infinitos modos (isto é, tudo o que pode cair sob um entendimento infinito)”.Espinosa, Etica, Primeira Parte,
Proposição 16, pág. 65, Edições Orbis, Hyspamerica, ou versão digital: Libera os Livros pág. 41.
42 “Deus é causa eficiente de todas as coisas “. Ibid, Proposição 16, Corolario1 pág. 66, Edições Orbis,
Hyspamerica, ou versão digital: Libera os Livros pág. 41.

mas o que não parece sabido é de onde tomou Jacobo Böhme esta relação, e onde tem, por conseguinte, sua
orígem a não-causa; permita-se me exponerlo. É o Βυθος quer dizer, abyssus, vorago, ou seja, profundidade
sem fundo, o abismo dos valentinianos (heresia do século II), que fecundou seu consubstancial silêncio, dando
nascimento à razão e ao mundo, conforme nos refere Ireneo, Contr. haeres., lib. I. C. I, nas seguintes palavras:

(Dicunt enim esse quendam in sublimitalibus illis, quae nec oculis cerni, Nec nominari
possunt, perfectum AEonem praexistentem, quem et proarchen, ET propatorem, et
BYTHUM vocant. Eum autem, quum incomprehensilibus ET invisibilis, sempiternus idem
et ingenitus esset, infinitis temporum seculis in summa quiete ac tranquillitate fuisse.
Una etiam cum o Cogitationem ex stitisse, quam et Gratiam et Silentium (Sigen)
nuncupant. Hunc porro BYTHUM in animum aliquando induxisse, rerum omnium
initium proferre, atque hanc, quam in animum induxerat, productionem, in Sigen
(silentium) quae una cum eo erat, non secus atque in vulvam demisisse. Hanc vero,
suscepto hoc semine, praegnantem effectam peperisse Intellectum parenti suo parem et
aequalem, atque ita comparatum, ut solus paternae magnitudinis capax esset. Atque
hunc Intellectum et Monogenem et Patrem et principium omnium rerum apellant).44

43 “Isto é certamente algo evidente”


Eles sustentam, que nas invisíveis e inefáveis alturas existe um ser perfeito e lhe preexistam AEon, a quem eles chamam
Proarche, Propator, e Bythus, ao qual descrevem como invisível e incompreensível. Eterno e inengendrado, ele
permanece através de inumerables ciclos de idades em profunda serenidade e quietude.
Existia junto a ele Ennonea, a quem eles tambien chamam Graça e Silêncio. Bythus determinou gerar de si

O qual tomou Jacobo Böhme de alguma parte da História das Heresias, e de cujas mãos o recebeu crédulamente
o Sr. do Schelling.

LEIBNIZ

Leibniz foi o primeiro que formulou o princípio de razão suficiente como um princípio fundamental de todos os
conhecimentos e ciências. O proclama em muitas passagens de suas obras muito pomposamente, dando-se tom
com ele, como se fora seu inventor; entretanto, não sabe expressá-lo. Exceto sempre isto, mas sim todas as
coisas, e cada uma delas, devem ter uma razão suficiente pela qual são o que são e não são outra coisa; o que
todo mundo sábia antes dele. Em ocasiões parece indicar a distinção de suas duas principais significações; mas
não a manifesta expressamente, nem a explica com claridade. O lugar em que principalmente se acha exposta é
o par 32 de seus Principia philosophiae, e até melhor na edição francesa corrigida da Monadología:

“en vertu du principe de la raison suffisante, nous considérons qu'aucun fait NE sauroit
se trouver vrai ou existant, aucune énonciation véritable, sans qu´'il y ait une raison
suffisante, pourquoi il en soit ainsi, et non pas autrement 45; con lo cual debe compararse
la Teodicea” par. 44, y la Carta 5.a a Clarke, par. 125.

10

WOLF

Wolf deve ser, pois, o primeiro que separa expressamente as duas principais significações de nosso princípio e
contrasta suas diferenças. Mas não coloca o princípio de razão suficiente na lógica, como agora se faz, a não ser
na ontologia. no par. 71 desta obra diz que não se deve confundir o princípio de razão suficiente do
conhecimento com a causa e o efeito; mas não determina ainda claramente a diferença, e ainda incorre em
confusões quando, no capítulo de ratione sufficiente, parágrafos 70, 74, 75, 77, põe como exemplo do
principium rationis sufficientis exemplos de causa e efeito e de motivo e ação, os quais, se queria fazer alguma
distinção, deveriam figurar no capítulo de causis, da mesma obra. Em este aduz outros exemplos semelhantes, e
expõe outra vez o principium cognoscendi (par. 876), que na verdade não deveria ter aqui seu posto como já
estudado, mas que serve, entretanto, para deixar mais evidente a distinção deste principio em relação à lei de
causalidade que depois (parágrafos 881-884) se formula. Principium, diz também aqui, dicitur id, quod in se
continet, rationem alterius, e lhe divide em três classes, ou seja: 1) «Principium fiendi» (causa), que define
como rateio actualitatis alterius; E. gr., se lapis calescit, ignis aut radii revestir sunt rationes, cur calor lapidi
insit. — 2) «Principium essendi», que define: rateio possibilitatis alterius; in eodem exemplo, rateio
possibilitatis, cur lapis calorem recipere possit; est in essentia seu modo compositionis lapidis.46 Este último
me parece um conceito inadmissível
Mesmo o começo de todas as coisas, e depositou esta produção (que ele tinha resolvido dar a luz) em Segue, ao igual a
uma semente que se deposita num útero. Ela então, tendo recebido esta semente, e havendo ficado prenhe, dá a luz ao
Nous, quem foi igual a ele, que o tinha produzido, e somente ele, foi capaz de compreender a grandeza de seu pai. Nous
também era chamado: Monogenes, Pai, e Começo de todas as Coisas.”
45 “em virtude do qual consideramos que não poderia achar-se nenhum feito verdadeiro ou existente, nem nenhuma
enunciação verdadeira, sem que haja uma razão suficiente para que se assim e não de outro modo.” Leibniz,
Monadología, Edições Orbis, Hyspamerica, parágrafo 32, pág. 31, ou também em Edição Electronica: Monadología do
Librodot.com, pág 6.
Possibilidade é, em geral, como Kant suficientemente demonstrou, conformidade com as condições a priori
conhecidas por nós, de toda experiência. Por elas sabemos, com relação ao exemplo da pedra posto pelo Wolf,
que as variações são possíveis como efeito de uma causa, é dizer, que um estado pode seguir a outro, se este
contiver em si as condições daquele; aqui encontramos como efeito, o estado de calor da pedra, e como causa o
estado anterior de capacidade limitada de calor da pedra e de entrar em contato com um objeto quente. Ao
chamar Wolf agora à citada capacidade para tal estado principium essendi, e à segunda, principium fiendi,
apóia-se em um engano, qual é o de que as condições da pedra são mais permanentes, e, portanto, podem
esperar mais tempo a aparição das demais. Em efeito: o ser a pedra de uma determinada composição química
que a faça suscetível de tal ou qual quantidade de calórico, assim como, por outra parte, seu contato com um
corpo quente, são conseqüências de uma concatenação de causas anteriores que são todas principiorum fiendi; o
concurso de ambas as circunstâncias determina o estado especial primeiro, que, como causa, produz logo calor
como efeito. Assim, pois, não fica lugar em nenhuma parte para o principium essendi do Wolf, que eu, por
conseguinte, não admito, e no qual me detenho tão prolijamente, porque mais adiante usarei eu mesmo este
nomeie em um sentido diferente, e porque a discussão contribuirá a determinar melhor o verdadeiro sentido da
lei de causalidade.— 3) Distingue, pois, Wolf, como fica dito, o principium cognoscendi, e sob nome de causa
denomina a causa impulsiva, sive rateio voluntatem determinans.

11

FILÓSOFOS DESDE KANT A WOLF

Baumgarten, em seu Metaphysica, parágrafos 20-24 e 306-313, repete as distinções wolfianas.

Reimaro, em seu Tratado da razão, parágrafo 81, distingue: i) Razão interior, que coincide com a rateio essendi
do Wolf, e que, entretanto, poderia-se considerar como rateio cognoscendi se não transladasse a coisas o que só
é próprio do conceito, e 2) Razão exterior, isto é, causa. Nos parágrafos 120 e seguintes define a rateio
cognoscendi acertadamente como uma condição do enunciado; mas no parágrafo 125 a confunde, em um
exemplo, com a causa.
46 “Princípio se diz, aquilo que em si contém a razão de outra coisa, e lhe divide em três classes, ou seja:
1)”principium fiendi” princípio do devir (causalidade), que define como: que contém a razão da realidade de outra coisa;
por exemplo, se se esquentar uma pedra, o fogo ou os raios revestir são as razões do porquê o calor esteja na pedra. 2)
“principium essendi”, que contém a razão de possibilidade de outra coisa; no mesmo exemplo, o porquê a pedra possa
receber calor; está na essência ou no modo de composição da pedra mesma.” Traduzido por nemo11 utilizando: Latin
parser and translator 0.96, programmed by AdamMcLean. principium cognoscendi, e sob o nome de causa denomina a
causa impulsiva, sive rateio voluntatem determinans.47
Lambert, no novo Órgão, já não menciona a distinção do Wolf, mas demonstra em um exemplo que distingue o
princípio de conhecimento da causa, T. I, par. 572, em que diz: Deus é principium essendi das verdades, e as
verdades principia cognoscendi de Deus. Plattner, nos Aforismos, par. 868, diz: «O que no domínio da
representação chama-se princípio e conseqüência (principium cognoscendi, rateio—rationatum), é, na
realidade, causa e efeito (causa efficiens—effectus). «Toda causa é princípio de conhecimento; todo efeito,
conseqüência.» Assim, pois, acreditava que causa e efeito são o que corresponde na realidade aos conceitos de
princípio e conseqüência da ordem puramente intelectual, e que estão relacionados com estes como a substância
e o acidente com o sujeito e o predicado, ou como a qualidade dos objetos com a sensação que estes produzem
em nós, etc., etc. Parece-me supérfluo rebater esta opinião, pois facilmente se compreende que a relação de
princípio e conseqüência, no julgamento, é uma coisa muito distinta da de causa e efeito na realidade, embora
em alguns casos o conhecimento de uma causa como tal pode ser o fundamento de um julgamento que enuncie
o efeito.

12

HUME

Até este sério pensador, ninguém havia duvidado da seguinte proposição: primeiro, e antes de todas as coisas
do céu ou da terra, está o princípio de razão suficiente, ou seja, o princípio de causalidade. Era uma veritas
aeterna48, quer dizer, que dito princípio, em si e por si por acaso, estava sobre os deuses e o destino; todo o
resto, pelo contrário, tanto a inteligência que apreende o princípio de razão, como o mundo, e, em certo modo,
também as causas deste mundo, como átomos, movimento, um Criador, etc., achavam-se subordinado a este
princípio. Hume foi o primeiro a quem lhe ocorreu perguntar de onde trazia esta lei de causalidade sua
autoridade, e pediu suas cartas de crédito. Seu postulado de que a causalidade não é outra coisa a não ser a série
temporária, conhecida por nós empiricamente, das coisas e dos acontecimentos, é sabido: facilmente se
compreende a falsidade desta asserção, e não é difícil tampouco rebatê-la. Mas o mérito está na pergunta
mesma, a qual constituiu o ponto de partida das profundas investigações de Kant, isto é, de um idealismo
incomparávelmente mais profundo e fundamental que o até então dominante, ou seja, principalmente o de
Berkeley, do idealismo transcendental, da qual se deduz que o mundo é tão dependente de nós, em seu
conjunto, como nós, individualmente, somos dele. Pois ao demonstrar o princípio transcendental como algo
com acerto que podemos determinar os objetos e sua possibilidade a priori, isto é, anteriormente a toda
experiência, prova que tais objetos não podem existir independentemente de nossa inteligência corno parecem.
A semelhança de um mundo tal com o sonho salta à vista.
48 verdade eterna

13

KANT E SUA ESCOLA

O principal lugar onde Kant trata do princípio de razão suficiente é o opúsculo: Sobre um descobrimento com
arrumo ao qual é inútil toda critica da razão pura, e, por certo, no primeiro capítulo do mesmo, em que, sob a
epígrafe «A.» Kant se detém na distinção entre o «princípio lógico (formal) de conhecimento (toda proposição
deve ter sua razão) e o princípio transcendental (material) (toda coisa deve ter sua causa)», refutando Eberhardt,
que quis identificar a ambos. Sua demonstração da aprioridade, e, portanto, da transcendencia da lei de
causalidade, será criticada por mim mais adiante, fazendo ver que o único verdadeiro é o princípio formulado
anteriormente por mim. Depois destes precedentes, os vários tratadistas de lógica da escola kantiana, como
Hofbauer, Maass, Jacob, Kiesewetter e outros, distinguiram bastante exatamente os dois princípios.
Kiesewetter, especialmente em sua Lógica (I, P. 16), a formula bastante completamente do seguinte modo:
«Não terá que confundir o princípio lógico (princípio de conhecimento) com o real (causa). O princípio de
razão suficiente pertence à lógica; o de causalidade, à metafísica (P. 6º). Aquele é o princípio do pensar; este,
o da experiência. A causa se refere às coisas reais; o princípio lógico, só a representações.»

Os competidores de Kant aprofundam ainda mais esta distinção: G. E. Schulze, em sua Lógica, par. 19, observ.
I.a, e par. 63, protesta contra a confusão do princípio de razão suficiente com o de causalidade. Salomón
Maimón, em sua Lógica, páginas 20-21, queixa-se de que se falou muito do princípio de razão suficiente, sem
explicar o que se compreende sobre esta fórmula, e na Introdução, P. xxiv, censura que Kant derive o princípio
de causalidade da forma lógica dos juizos hipotéticos. F. H. Jacobi, em suas Cartas sobre a doutrina de
Espinosa, supl. 7, P. 414, diz que da confusão do conceito de razão com o de causa nasce um engano que foi a
fonte de muitas falsas especulações; também sinta 61 a diferença entre ambos os princípios, a sua maneira.
Entretanto, encontramos ali, como ordinariamente em todas suas obras, mas bem um vão trocadilho que uma
verdadeira e séria filosofia.
Finalmente, na obra Aforismos para a introdução da filosofia da natureza, parágrafo 184, que começa o
primeiro caderno do primeiro tomo dos Anais de Medicina, de Marco e Schelling, podemos ver como faz o Sr.
de Schelling a distinção entre a razão e a causa. Segundo este, a pesantez é a razão de as coisas, e a luz, sua
causa; o qual só menciono como curiosidade, pois por outra parte, esta grosseria não merece ser citada entre as
opiniões dos pensadores sérios.

14

SOBRE AS DEMONSTRAÇÕES DO PRINCÍPIO

Bom será repetir de novo que se tratou de provar geralmente o princípio de razão suficiente sem determinar
com exatidão em que acepção tomava. Wolf, por exemplo, na Ontologia, P. 70, faz uma demonstração que
Baumgarten recolhe em sua Metafísica, par. 20. Seria supérfluo lhe rebater aqui, pois salta à vista que descansa
em um trocadilho. Plattner, em seus Aforismos, par. 828; Jacob, em sua Lógica e em sua Metafísica (P. 38,
1794), tentaram outras demonstrações, nas quais é muito fácil reconhecer um círculo vicioso. Já hei dito que
tratarei mais adiante das demonstrações do Kant. Posto que tenho o propósito de estudar nesta Dissertação as
distintas leis de nossas faculdades cognitivas, cuja comum expressão é o princípio de razão suficiente, porei de
manifesto que o princípio não pode-se demonstrar, mas sim, de todas as demonstrações do mesmo (com
exceção da kantiana, que não se dirige a provar a admissibilidade, a não ser a aprioridade e da lei de
causalidade)., pode-se dizer o que dizia Aristóteles:

(Metaph,III., 6: Rationem eorum quaerunt, quorum non est rateio; demonstrationis enim principium non est
demonstratio),49

com o que se devem comparar os Analyt.post. I, 3. Pois toda demonstração é a referência a algo universalmente
reconhecido; e se deste algo, seja o que seja, pedimos sempre outra nova demonstração acabaremos por chegar
a certos princípios que expressam todas as formas e leis, e, portanto, todas as condições do pensar e do
conhecer, cujo emprego consiste toda a atividade pensante; assim a certeza só será a correspondência ou
harmonia com eles, e, por conseqüência, sua própria certeza não se poderá explicar com outros princípios. Já
discutiremos no capitulo V a classe de verdade de tais princípios.

Procurar uma demonstração especial para o princípio da razão suficiente, é um absurdo que acusa falta de
reflexão. Em efeito: toda demonstração é a exposição da razão de um julgamento enunciado, ao qual por isso se
denomina verdadeiro. Assim, pois, a expressão desta necessidade de uma razão para todo julgamento, é o
princípio de razão suficiente. portanto, que pede uma demonstração, isto é, a enunciação de uma razão, para o
princípio mesmo, pressupõe-lhe como verdadeiro e apóia sua necessidade nesta mesma hipótese. Assim, pois,
cai neste círculo: que se necessita uma demonstração do direito a exigir uma demonstração.

CAPÍTULO III
Insuficiência da fórmula empregada até aqui, e esboço de uma nova.

15

CASOS QUE NÃO ESTÃO COMPREENDIDOS NAS SIGNIFICAÇÕES DO PRINCÍPIO


EXPOSTAS ATÉ AQUI

Do exposto nos capítulos anteriores, se deduz como resultado geral, que se fazem duas aplicações distintas do
princípio de razão suficiente, embora isto se tenha efetuado paulatina e gradualmente, e não sem ter incorrido
muitas vezes em confusões e enganos: a uma, relativa ao julgamento, que para ser verdadeiro “necessita”
sempre uma razão, e a outra, em relação às mudanças dos objetos reais, que devem ter sempre uma causa.
Vemos que, em ambos os casos, o princípio de razão suficiente responde à pergunta “por que”, sendo esta
essencial nele. Mas estão compreendidos nos dois grupos citados todos os casos nos quais podemos formular a
pergunta por que? Quando eu pergunto: «Por que os três lados desse triângulo são iguais?»
Se me responde: «Porque os três ângulos são iguais», a igualdade dos ângulos é a causa da igualdade dos lados?
Não, porque aqui não houve nenhuma variação; por isso não se trata de nenhum efeito cuja causa, devemos
investigar. Trata-se somente de um princípio de conhecimento? Não, pois a igualdade dos ângulos não é a
demonstração da igualdade dos lados, não é a mera razão de um julgamento; dos conceitos puros não se deduz
o porquê dos ângulos sejam iguais, teriam de serem também os lados, pois no conceito de igualdade dos
ângulos não está contido o da igualdade dos lados. Assim, pois, aqui não há nenhuma relação de necessidade
entre os conceitos ou juizos, a não ser entre lados e ângulos.
49 “procuram, em efeito, uma explicação daquelas coisas das que não há explicação, pois o princípio da
demonstração não é uma demonstração.” Aristóteles, Metafísica, IV, cap. 6, pág 49, Edição Eletrônica
Universidade do Arcis.

A igualdade dos ângulos não é uma razão imediata da igualdade dos lados, a não ser só mediata, pois é razão do
modo de ser, isto é, de ser iguais neste caso, posto que, sendo os ângulos iguais, devem sê-lo também os lados.
Achamos aqui uma relação de necessidade entre ângulos e lados, mas não dependente imediatamente de uma
relação necessária entre dois juizos, ou de outro modo, se eu perguntar por que infecta facta50,mas nunca facta
infecta fieri possunt51, isto é, por que o passado é absolutamente irreparável e o futuro inevitável, isto não se
pode fazer evidente por um encadeamento puramente lógico, quer dizer, de meros conceitos. E tampouco é obra
do princípio de causalidade, pois este só impera sobre o movimento das coisas no tempo, não sobre o tempo
mesmo. .. pela lei de causalidade, a não ser imediatamente por sua mera existência, pela necessidade de sua
aparição, a hora presente joga no abismo sem fundo do pretérito à hora passada, e a destrói para sempre. Isto
não demonstra-se por meros conceitos, nem por eles se faz evidente, mas sim o nos compreender imediata e
intuitivamente, quão mesmo compreendemos a diferencia entre direita e esquerda e tudo o que com estes dois
conceitos se relaciona; por exemplo, por que a luva da mão direita não vem bem à esquerda.
Assim, pois, não todos os casos em que acha aplicação o princípio de razão suficiente, podem-se referir ao
conceito lógico de princípio e conseqüência ou à relação natural de causa e efeito, por isso nesta divisão não se
deveu ter presente a lei de especificação. A lei de homogeneidade pressupõe necessariamente que todos os
casos não são imensamente distintos, mas sim se podem agrupar em espécies. Mas antes de tentar esta
classificação, é preciso determinar o que constitui o caráter peculiar do princípio de razão suficiente em todos
os casos, para estabelecer o conceito de gênero antes que os conceitos específicos.

16

A RAIZ DO PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE


Nossa faculdade cognitiva, manifestando-se como sensibilidade exterior e interior (receptividade), inteligência
e razão, decompõe-se em sujeito e objeto, e nada há fora disto. Ser objeto para o sujeito e ser nossa
representação, é o mesmo. Todas nossas representações são objetos do sujeito, e todos os objetos do sujeito são
nossas representações. Mas logo encontramos que todas nossas representações, em sua forma ordinária, nos
fazem perceptíveis relacionadas umas com outras, e que se podem determinar a priori no que se refere à forma,
depende o qual nada nos apresenta independente e com existência própria, isolado ou separado. Esta conexão é
o que expressa o princípio de razão suficiente em sua geralidade. Agora bem: embora este princípio, conforme
se infere do até aqui exposto, é suscetível de diversas formas, segundo a diferente maneira de apresentar-se os
objetos, para designar as quais também o princípio de razão suficiente modifica sua expressão, entretanto,
conserva sempre o comum ou geral a todas aquelas formas; comunidade ou geralidade que expressa nosso
princípio, considerado em seu aspecto mais universal ou abstrato. As relações que servem de fundamentou ao
mesmo, e que logo expor melhor, são as que eu denomino raízes do princípio de razão suficiente. Estas se
podem logo dividir, conforme às considerações que faremos com arrumo aos princípios de homogeneidade e de
especificação, em grupos bem marcados e completamente distintos uns de outros, cujo número cabe reduzir a
quatro, que são as quatro formas em que tudo o que pode ser objeto de nosso conhecimento se divide. Estas
classes se expor e estudarão nos quatro capítulos seguintes.
Em cada uma das mesmas veremos aparecer o princípio de razão suficiente sob uma nova forma, sendo
idêntico, não obstante, em todos os casos, posto que se pode enunciar com a fórmula primeiro exposta, e
brotando sempre das raízes que vamos estudar.
CAPITULO IV
Primeira classe de objetos para o sujeito, e forma em que se apresenta neles o princípio de razão suficiente.

17

EXPLICAÇÃO GERAL DESTA CLASSE DE OBJETOS

A primeira classe de objetos que podem cair sob a ação de nossas faculdades cognitivas, constitui as
representações intuitivas, totais, empíricas. São intuitivas, as considerando em oposição ao meramente pensado,
quer dizer, aos conceitos abstratos; totais, assim que, segundo a divisão do Kant, não só contêm o formal, mas
também o material do fenômeno; empíricas, em parte porque não brotam de puras relações de pensamentos,
mas sim têm sua origem em uma impressão de nossa sensibilidade, e porque nossos sentidos constituem sempre
o testemunho de sua existência; em parte porque, conforme as leis do tempo, do espaço e da causalidade, junto
formam aquele complexo, sem princípio nem fim, que constitui nossa realidade empírica. Mas como desta
realidade empírica, segundo a doutrina do Kant, não lhes tira sua idealidade transcendental, só serão tratadas
aqui como tais representações, pois unicamente estudamos agora os elementos formais do conhecimento.

18

ESBOÇO DE UMA ANÁLISE TRANSCENDENTAL DA REALIDADE EMPÍRICA

As formas destas representações são as da sensibilidade interior e exterior: o tempo e o espaço. Mas estes só são
perceptíveis por seu conteúdo. Sua perceptibilidade é a matéria, sobre a qual já voltaremos no par. 21. Se o
tempo fosse a forma exclusiva destas representações, não poderia dá-la simultaneidade, e, portanto, a
permanência nem a duração. Pois o tempo só é perceptível por seu conteúdo, e sua continuidade, pela mudança
das coisas que estão no tempo. Assim, pois, a permanência de um objeto só a conhecemos pela noção contrária,
ou seja, pela mudança de outros objetos que lhe rodeiam. Mas a idéia da coexistência não se pode dar no tempo,
mas sim necessita, para completar-se, da idéia de espaço, porque no tempo todo nos apresenta sucessivamente,
e no espaço, tudo simultaneamente; assim, pois, só pela reunião do tempo e o espaço faz-se possível.

Por outro lado, se o espaço fosse a forma exclusiva destas representações, entenderiamos que não poderia dar-
se nenhuma mudança. Pois mudança ou variação é sucessão de estados, e a sucessão só é possível no tempo.
Daqui também se pode definir o tempo como a possibilidade de estados contrários em uma mesma coisa.
Vemos, pois, que as duas formas da representação empírica, embora tenham em comum sua indefinida
divisibilidade e sua indefinida extensão, no entanto, diferem fundamentalmente em que o que a uma delas é
essencial, na outra carece de significação: a simultaneidade não se dá no tempo; a sucessão não se dá no espaço.
Porém, as representações empíricas correspondentes ao ordinário complexo da realidade aparecem-nos sob as
duas formas de uma vez; e mais: a condição da realidade é uma intima união das duas, pois emana delas, em
certo modo, como um produto de seus fatores. O que esta união cria é a inteligência, que, por meio de sua
função característica, relaciona aquelas formas heterogêneas da percepção sensível, de modo que, por sua
mútua compenetração, se forma como por si mesma a realidade empírica, como uma representação de conjunto
que forma um complexo mantido pelo princípio de razão suficiente, mas com limites problemáticos, da qual são
parte todas as representações isoladas pertencentes a esta classe, e no qual, com arrumo às leis precisas
conhecidas por nós a priori, tomam seu posto, e, portanto coexistem, infinito número de objetos, porque nele,
apesar da instabilidade do tempo, a substância, isto é, a matéria, permanece, e apesar da permanente
imutabilidade do espaço, seu estado troca; em soma, nele está esse mundo objetivo, tudo inteiro. A integração
desta análise da realidade empírica, de que aqui só damos um esboço, encontrará o leitor que se interessa na
mais detalhada explicação do modo como se opera aquela reunião pela função de a inteligência e se faz possível
a experiência do mundo sensível, no mundo como vontade e como representação, T. I, parágrafo 4 (ou I.a edic.,
págs. 12 e sigs.), em onde lhe servirá de muito a tabela do cap. IV, volume II, dos Praedicabilia a priori do
tempo, do espaço e da matéria, que recomendo a sua consideração, e onde claramente se vê que os contraste do
tempo e o espaço se conciliam na matéria, que se manifesta como seu produto, representado na forma da
causalidade.
A função da inteligência, que forma as bases da realidade empírica, receberá aqui também uma exposição
detalhada; mas antes devo rebater, por meio de um exame incidental, as mais imediatas objeções que se podem
fazer à concepção fundamental idealista seguida por mim.

19

PRESENÇA IMEDIATA DAS REPRESENTAÇÕES

Mas como, apesar desta reunião das formas da sensibilidade interior e exterior, ser operada pela inteligência,
para representar a matéria, e com esta um mundo exterior permanente, o sujeito somente conhece
imediatamente pela sensibilidade interior, sendo a sensibilidade exterior objeto a sua vez de quão interior
percebe de novo as percepções da primeira; o sujeito, em relação à presença imediata de as representações em
sua consciência, está só subordinado à condição do tempo, como forma do sentido interior 52 de modo que só
pode ter presente à vez uma idéia, uma representação, por mais complexa que possa ser. A imediata presença
das representações quer dizer que são conhecidas na inteligência (que, como veremos, é uma faculdade
intuitiva), não somente como completa integração do tempo e o espaço para formar o complexo da realidade
empírica, mas sim como representações da sensibilidade interior, no tempo puro, e precisamente no ponto de
intercessão das duas direções do tempo, ou, o que é a mesmo, no momento presente. A condição indicada nos
parágrafos anteriores para a presença imediata de uma representação desta classe, é sua ação causal sobre
nossos sentidos, e, portanto, sobre nosso corpo, o qual também tem que contar-se entre os objetos desta, classe,
e, portanto, submetido à mesma lei que eles, à lei de causalidade em questão. E como o sujeito, submetido à lei,
tanto do mundo exterior como do interior, não pode permanecer em uma só representação; como no tempo puro
não há coexistência possível, assim a dita representação sempre estará desaparecendo, empurrada por outra,
conforme a uma ordem que não se pode determinar a priori, mas sim depende de circunstâncias especiais que
indicaremos. Deixemos a um lado a questão de que a fantasia e o sonho podem reproduzir a imediata presença
das representações, pois é questão, não deste lugar, mas sim da psicologia empírica. Mas, apesar desta
instabilidade e separação das representações, no referente a sua imediata presença na consciência do sujeito,
este conserva, pela função da inteligência, a idéia de um conceito totalmente pormenorizado da realidade;
assim, por esta oposição, as representações, em tanto pertencem o dito complexo, são tidas por coisa distinta do
que se mostram em quanto estão presentes em nossa consciência; no primeiro caso são chamadas coisas reais, e
no segundo, meras representações: χατ' εξοχην. Esta concepção do problema, que é a comum, chama-se, como
sabemos, realismo. Na nova filosofia foi-lhe contraposto o idealismo, ganhando cada vez mais terreno.
Representado primeiro pelo Malebranche e Berkeley, foi elevado pelo Kant a idealismo transcendental, que fez
compreensível a coexistência da realidade empírica das coisas com a idealidade transcendental, e, segundo o
qual, Kant, na Crítica da razão pura, se expressa assim: «Entendo por idealismo transcendental de todos os
fenômenos, a doutrina segundo a qual nós lhes consideramos como meras representações, e não como coisas
em si»;
52 # Comp. Crítica de la razón pura, Nociones elementales, sec. II, conseq. a, d, not. b y c (página 33 de la 1.a
edición y 49 de la 5.a).
e logo, na nota: «O espaço não é outra coisa senão representação: por conseguinte, o que nele existe, deve estar
contido na representação, e no espaço tampouco há nada, a não ser o que nele está representado» (Crit. do
Paralogismo 4 da Psicol. transc., páginas 369 e 375 da 1ª. edição). Finalmente, na reflexão adicionada a este
capitulo diz: «Quando eu suprimo o sujeito pensante, desaparecerá para meu o mundo corpóreo, que não é outra
coisa que o fenômeno para a sensibilidade de nosso sujeito, e uma espécie de representação do mesmo.» Na
Índia, tanto para o bramanismo como para o budhismo, o idealismo chegou a ser doutrina da religião do povo:
só na Europa parece um paradoxo, por causa da concepção judaica, essencialmente e absolutamente realista. O
realismo esquece que a chamada existência de ‘estas coisas reais não serem mais que um estado de
representação; ou se quer chamar estado de representação nada mais que à imediata presença na consciência do
sujeito, τ' εντελεχειαν, erá só uma possibilidade de ser representado, τά ουναμιν; não hesite de ver o realismo
que o objeto, fora de sua relação com o sujeito, não é já objeto, e que, quando se o toma ou lhe abstrai, perde
toda existência objetiva. Leibniz, que compreendeu perfeitamente corno o objeto está condicionado pelo
sujeito, mas não pôde, sem embargo, libertar do pensamento de uma existência em si do objeto, independente
de toda relação com o sujeito, quer dizer, da representação, admitiu ou imaginou, igual e paralelo ao mundo das
representações, um mundo de coisas em si, o qual não estava ligado interiormente com o primeiro, a não ser só
exteriormente, por meio de um harmonía praestabilita: coisa a mais inútil que possa haver, pois não é recebida
por nós, e o mundo da representação, ou dos fenômenos, pode passar-se admiravelmente sem ela. Assim é que
quando logo quer determinar a essência das coisas existentes objetivamente, de um modo mais preciso, vê-se na
necessidade de explicar os objetos em se mesmos por sujeitos (mónadas), e dá a demonstração mais eloqüente
de que nossa consciência, em tanto que é uma mera faculdade de conhecer, não pode encontrar, dentro dos
limites do intelecto, esta, é, do aparelho para o mundo das representações, outra coisa que objeto e sujeito, isto
é, que percebe e a percepção, e, portanto, quando abstraímos de um objeto sua qualidade de objeto (a qualidade
de ser representado) e queremos pôr algo em seu lugar, não encontramos outra coisa que o sujeito. Se
verificarmos a operação inversa, quer dizer, se abstrairmos a essência do sujeito, não deixando nada mais,
estará no caso contrário, que conduz ao materialismo.
Espinosa, que não chegou, neste assunto, a uma clara visão, compreendeu bem a necessária relação entre objeto
e sujeito como uma condição essencial para ser representado este, apresentando-a como uma identidade do
cognoscible e o extenso na substância única.
Nota. — Farei notar, no que se refere à questão principal deste parágrafo, que quando no curso desta
dissertação, por causa de sua maior e mais rápida inteligência, empregue a expressão «objetos reais», não se
deve entender outra coisa que as representações intuitivas, ligadas ou relacionadas, que formam o complexo da
realidade empírica, a qual segue sendo ideal em si mesmo.

20

PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE DO DEVIR

Na mencionada classe de objetos para o sujeito, aparece o princípio de razão suficiente como lei de causalidade,
e chamo a esta princípio de razão suficiente do devir, principium rationis sufficientis fiendi. Todos os objetos
que formam a representação geral do complexo que constitui a realidade sensível estão ligados uns com outros,
por obra dos diversos estados que podem afetar, e, por tanto, na direção do transcurso do tempo. Dito princípio
é o seguinte: quando um ou vários objetos se apresentam em um novo estado, deve ter precedido outro estado
anterior, ao qual segue regularmente, isto é, sempre, este outro novo estado em que agora se apresentam. Tal
processo se chama sucessão, e o primeiro estado se chama causa, e o segundo, efeito. Por exemplo, se um corpo
arder, é necessário que ao estado de combustão tenha precedido antes outro estado: 1) De afinidade com o
oxigênio; 2) De contato com o oxigênio; 3) De determinada temperatura. Dando-se, pois, estas circunstâncias,
deve produzir-se necessariamente a combustão. Posto que só dadas tais circunstâncias pudesse produzir a
combustão, e esta se produziu, quer dizer-se que destas circunstâncias não existiam antes, mas sim só agora, no
momento da combustão, concorreram. Este processo se chama mudança; por conseguinte, a lei de causalidade
se acha em exclusiva relação com as mudanças, e só se refere a estas. Todo efeito, no momento de produzir-se,
é uma mudança, e demonstra, precisamente porque antes não existia que se produziu outra mudança anterior a
ele, que é, com respeito a este, sua causa, como é efeito com respeito à outra mudança anterior ao mesmo.
Assim se forma a cadeia da causalidade, que necessariamente tem que carecer de princípio. Segundo o qual, a
aparição de todo novo estado é conseqüência de outra mudança anterior; por exemplo, no caso presente, da
adjunção de uma determinada quantidade calórica, deve necessariamente se seguir a elevação da temperatura
do dito corpo. Este aquecimento da pedra está condicionado por outra mudança anterior, por exemplo: a queda
dos raios do sol sobre um espelho ustorio; e este, por sua vez, pelo desaparecimento de uma nuvem diante do
sol, que permite passar seus raios; e este fenômeno pela força do vento; este, por sua vez, pela diferença de
densidade no ar; este por outras circunstâncias, e assim in infinitum. Quando um estado contém todas as
condições, menos uma, para produzir um novo estado, em tanto pode chamar a esta última causa, κατ' εξοχήν,
de novo estado, enquanto ela é a decisiva para esta nova mudança. Mas, para a determinação da relação causal
das coisas, em geral, não tem mais importância que as demais, por ser a última que aparece em ordem ao
tempo. Assim, no exemplo chamado, em tanto se pode chamar o movimento da nuvem causa da combustão,
assim que é posterior à direção dos raios do espelho para a pedra. Entretanto, esta circunstância pôde efetuar-se
posteriormente ao abrir-se da nuvem, assim como também há podido sê-lo-a recepção do oxigeno: esta ordem
de tempo decidirá em cada caso qual é a causa. Mas se considerarmos a questão mais atentamente, veremos
que, em realidade, a causa de um estado é o estado completo anterior, por isso é em essência indiferente em que
período de tempo concorreram suas circunstâncias. Segundo isto, pode-se chamar causa, κατ' εξοχήν, respeito
de cada caso particular, a circunstância que aparece última em um estado, posto que deve completar o número
das que requerem-se, por isso sua aparição será a que dita a mudança. Entretanto, para uma consideração geral,
pode chamar-se causa ao concurso de todas as condições necessárias para a aparição do novo estado. Mas as
diferentes condições, que somente reunidas e completas constituem a causa, pode-se denominar os momentos
causais, ou também as condições causais, nas quais se decompõe a causa. Pelo contrário, é completamente
falso chamar causa ao objeto mesmo e não ao estado. Assim, no exemplo anterior, alguns chamariam o espelho
ustorio causa da combustão; outros, à nuvem; outros, aos raios do sol; outros, ao oxigênio, e assim
sucessivamente, a capricho. Mas não tem sentido algum dizer que um objeto é causa de outro: em primeiro
lugar, porque os objetos não só contêm a forma e a qualidade, mas também a matéria, a qual nem se cria nem se
destrói, e logo porque a lei de causalidade se refere exclusivamente às mudanças, isto é, ao aparecer e
desaparecer dos estados no tempo, e só regula aquelas relações nas quais a anterior chama-se causa, e a
seguinte, efeito, e sua relação necessária se chama conseqüência. Remeto ao leitor que queira aprofundar esta
questão, ao estudo que dela faço em minha obra O mundo como vontade e como representação, T. II, C. IV, e
em especial, páginas 42 e seguintes (3ª edic., págs. 46 e sigs.). Pois é da maior importância formar um cabal e
exato conceito da lei de causalidade, como também da extensão de seu domínio, e saber claramente, acima de
tudo, que só e exclusivamente se refere à mudança de estados da matéria e não a outro gênero de mudanças; por
conseguinte, não se pode aplicar ao que não lhe convém. É o regulador das mudanças operadas, no tempo, nos
objetos da experiência exterior, os quais são todos materiais. Toda mudança para aparecer, depende uma regra
determinada, quando lhe precedeu outro a conseqüência do qual necessariamente se produz; esta necessidade é
o elo causal.
Á pesar de ser tão singela, como pelo exposto até aqui se compreende, a lei de causalidade, vemos nos livros de
filosofia, dos mais antigos até os mais modernos tempos, esta lei expressa em uma forma mais abstrata, e,
portanto, mais vaga e confusa. Neles a está acostumada definir dizendo que é o que dá existência a uma coisa,
ou o que produz uma coisa; assim, Wolf a definia: causa est principium, a quo existentia, sive actualitas, entis
alterius dependet53, enquanto que, pelo contrário, em 53 “causa é princípio, de cuja existência, ou atualidade,
outro ente depende”..a causalidade só se trata de mudanças da matéria, que, por sua natureza, é sem princípio e
indestrutível, e tomar existência, isto é, passar a ser o que não existiu, é impossível. Estes falsos e extraviados
conceitos da lei de causalidade têm possivelmente sua origem na escuridão do pensamento; mas, em ocasiões,
detrás de tal escuridão se oculta a intenção teológica, que, farejando de longe a prova cosmológica, dispõe-se a
servir e até a falsificar verdades transcendentales a priori, essa mamadeira da razão humana. Com a maior
evidencia aparece isto no libero de Tomam Brown On the relation of cause and effect; esta obra consta de 460
páginas, e em 1835 se publicou sua quarta edição, e depois desta possivelmente se feito outras muitas; além de
sua fatigante e escolástica prolijidad, não trata mal o assunto. Este inglês compreendeu justamente que a lei de
causalidade só se refere a mudanças, e que, por conseguinte, um efeito é uma mudança; mas a causa é outra
mudança; pelo que se segue que a coisa não é mais que o elo ininterrupto das mudanças que se acontecem no
tempo, o qual ele não diz, embora não possa livrar-se de a lógica desta conseqüência. Em troca, diz sempre com
bastante estupidez, que a causa é um objeto anterior à mudança, ou também uma substância, e com esta
expressão completamente falsa, que danifica toda sua doutrina, atormenta-se e compromete, durante todo o
curso de sua larga obra, infelizmente, indo contra sua consciência, única e exclusivamente com o propósito de
preparar a prova cosmológica que ele e outros expor depois. O que devemos pensar de uma verdade que se
preparou por meio de tais manobras?
Mas o que têm feito nossos bons e honoráveis catedráticos de filosofia alemães, eles que põem sobre todas as
coisas a verdade e o engenho? O que têm feito, por sua parte, da querida prova cosmológica, desde que Kant a
deu o último golpe na Critica do julgamento? Era difícil sair do compromisso, pois (já sabem eles, os muito
dignos) causa prima é, tanto como causa sui, uma contradictio in adjecto, embora a primeira expressão é mais
usada que a segunda, e se está acostumado a pronunciar com toda seriedade e até com gesto solene; e alguns,
especialmente os Reverends ingleses, elevam os olhos com expressão mística, quando falam enfática e
patéticamente de the first cause, essa contradictio in adjecto. Sabem que uma primeira causa é tão impossível de
imaginar como um limite ao espaço um princípio ao tempo, pois toda causa é um troco no qual terá que
perguntar por uma mudança anterior do qual provém, e assim in infinitum, in infinitum! Tampouco se pode
imaginar um primeiro estado da matéria, do qual, posto que já não é, tenham saído tudas as mudanças
ulteriores, pois se tivessem tido sua causa nele mesmo, estes tivessem existido sempre e não só agora. Se
supusermos que começa, em um determinado tempo, a ser causa, suporemos necessariamente que trocou nesse
tempo, com o que haverá deixado de estar em repouso; mas isto suporia uma mudança, cuja causa, isto é, outro
mudança anterior, teremos que investigar, e assim nos perderemos outra vez, cada vez mais à frente, na
inexorável lei da causalidade, in infinitum, in infinitum. (Não lhes dá vergonha a esses senhores me falar de um
nascimento da matéria? Mas terá que ter em conta que lhes esperam complacentes certos corolários.) Mas a lei
de causalidade não é tão complacente como um carro de ponto, que, uma vez que nos há conduzido aonde
queríamos, despedimo-lhe. Mas bem se parece com a vassoura do aprendiz de bruxo de que nos fala Goethe,
que, uma vez posta em movimento, não recupera o repouso até que o bruxo professor tem que vir a pará-la.
Mas os senhores de que falo não têm, nem juntos nem separados, nada de bruxos. E o que hão feito estes nobres
e honrados amigos da verdade, que se passam o tempo espreitando ao mérito, para, assim que aparece, lhe
anunciar pelo mundo inteiro, e, longe de querer afogar ao gênio que nasce, indo a um arteiro e covarde silêncio,
se convertem em arautos deste (e isto é tão certo quanto a imbecilidade ama ao gênio sobre todas as coisas); o
que têm feito, digo, por sua antiga amiga a aberta trilha prova cosmológica, hoje já queda em terra? OH!
inventaram uma linda mutreta: «Amiga, hão-a dito, mal vai, muito mal, desde seu funesto encontro com o
teimoso do Kosnisberg; tão mal vai como a suas irmãs a prova ontológica e a físico-teológico; mas não te
apure, que nós não se esquecemos (já sabe que para isso nos pagam). Mas, isso sim, tem que trocar de nome e
de vestimenta, pois se lhe anunciamos por seu nome, todos porão-se a correr. Assim disfarçada, agarraremo-lhe
do braço e lhe apresentaremos ao mundo; isso se, tem que guardar o incógnito: chamaremo-lhe a partir de agora
o Absoluto; isto sonha estranho, distinto e majestoso, e melhor que ninguém nós lodo sabemos o que se pode
fazer na literatura alemã com palavras tão sonoras como estas. Todos sabem o que baixo elas se está
acostumado a ocultar; mas não por isso se acreditam menos sábios. Você aparece disfarçada em figura de um
entimema.

Todos os seus prosilogismos e premissas, com os quais se está acostumado a subir pelo comprido climax, os
deixaremos em casa; todo mundo já sabe que não servem para nada. Mas ao aparecer você como um homem de
poucas palavras, altivo e atrevido, damos o golpe.» «Aqui está o Absoluto!», grita você; e nós contigo: «Isto é o
que débito ser, voto ao diabo!, e sem isso nada seria!» (então dá um golpe na mesa). «Mas de onde vem isso?»
«Pergunta estúpida! Não hei dito que sou o Absoluto?» «nos consolemos, pois, que a coisa parte. Os alemães
estão acostumados a aceitar palavras, em vez de conceitos; para isso lhes educamos desde sua juventude; e se
não, vejam as doutrinas do Hegel: o que são a não ser vão e oco palavrório? E, não obstante, quão brilhante a
carreira desta feitura de ministro! Não necessitou mais que alguns amigos venais, dispostos a entoar o louvor do
filosofastro, e seu voz achou nas cabeças ocas um eco cada vez mais ressonante e extenso; e assim faz-se de um
vil enganador, de um cérebro vulgar, um grande filósofo. Assim, pois, valor!Além disso, amiga e patrã, já lhe
favoreceremos por outros meios, Não podemos viver sem ti! Embora o velho crítico do Koenisberg tenha
criticado a razão e lhe tenha talhado as asas, nós inventaremos uma razão nova, que não pensa, mas sim
intuiciona idéias (palavra distinguida para uso dos mixtificadores), que intuiciona ideia vivas, ou que também
percebe, percebe imediatamente, o que os outros só conseguem demonstrar, ou que, especialmente naqueles que
se contentam com pouco, pressente. Os conceitos vulgares inculcados em nós em nossa primeira idade, os
faremos passar por inspirações imediatas desta nova razão, isto é, por revelações do céu. A antiga razão,
analisada pelo Kant e degradada por nós, chamaremo-la inteligência, e a mandaremos Á passeio.» «E a
verdadeira, a autêntica inteligência?» «O que nos importa a verdadeira inteligência! Ri-te com incredulidade.

Ah! Nós conhecemos nosso público e as harum horum54 que temos diante nesses bancos. Já disse Bacón do
Verulamio: «Nas Universidades aprendem os jovens a acreditar». Portanto, podem esperar de nós corretas
ensinos. Temos boa provisão de artigos de fé. Se te invadisse o desalento, não tem a não ser pensar em uma
coisa: que os alemães têm feito o que ninguém tivesse sido capaz de fazer, isto é, saudar como a um grande
espírito e a um profundo pensador a um filosofastro ignorante, esvazio, ferreiro de desatinos, que destruiu os
cérebros para sempre com um amontoado de ocos sofismas (falo de nosso querido Hegel), e não só pudemos
fazer isto impune e desvergonzadamente, mas sim o acreditamos, estamo-lo acreditando, há trinta anos até o dia
de hoje. Assim, apesar de Kant e de sua crítica, com sua ajuda, havemos poseído o Absoluto; assim nos
salvamos. Logo, por meio de deduções obtidas por diversas artes, e que só terão de comum seu atormentador
aborrecimento, extrairemos deste Absoluto o mundo, ao que chamaremos o finito, e a aquele, o infinito— o que
introduz uma amena variação nesta logomaquia—, e falaremos constantemente só de Deus, explicando o
porquê, como e de onde; por que processo livre, ou necessário, fez o mundo, ou lhe criou; se estiver dentro ou
fora dele, etc., etc., como se a filosofia fora teologia e tratasse de explicar, não o mundo, a não ser Deus.»
portanto, a prova cosmológica que nos tem valido este apóstrofo, e com a qual nos temo-las que haver, consiste
propriamente na afirmação de que o princípio de razão suficiente do suceder, ou lei de causalidade, conduz
necessariamente a uma idéia que a suprime e a anula.
Pois à causa prima (absoluto) chega-se subindo da conseqüência ao princípio, ao través de uma larga série; mas
nos deter na causa prima, é impossível, sem anular o princípio de razão. Depois de haver aqui reduzido a um
nada a prova cosmológica, como no segundo capitulo da ontológica, o leitor gostará de ver refutada também a
prova físico-teológica, que se apresenta com alguma maior aparência que as outras. Mas não é este o lugar de
fazê-lo, pois seu conteúdo corresponde à outra parte da filosofia. Assim, pois, remeto ao leitor que se interesse
por estas questões: primeiro, a Kant, tanto em sua Crítica da razão pura, como ex-professo à Crítica do
julgamento; e para completar sua doutrina, puramente negativa, aos meus resultados positivos, na Vontade da
Natureza, esse livro pequeno em volume, mas rico em conteudo e importância. O leitor que não se interessa por
estes assuntos, pode transmitir este e todos os meus escritos, intactos, a seus netos. Pouco me importa, pois eu
não escrevo para uma geração, a não ser para muitas.

Como no próximo parágrafo demonstraremos, a lei de causalidade nos é conhecida a priori, por isso tem um
caráter transcendental, sendo aplicável a toda experiência possível, isto é, sem exceção; e como também
demonstramos que a um estado determinado deve seguir, segundo a regra, outro segundo estado, também
determinado, e isto sempre, assim a relação entre causa e efeito será uma relação necessária. Por tanto, a lei de
causalidade faz possíveis os juizos hipotéticos, e nos apresenta sempre como uma forma do princípio de razão
suficiente, no qual se devem apoiar os juizos hipotéticos, e no que, como já se dirá, tem seu fundamento toda
necessidade.

Chamo a esta forma de nosso princípio, princípio de razão suficiente do suceder, porque seu emprego supõe
sempre uma mudança, a aparição de um novo estado, e, portanto, um suceder. É caráter essencial do mesmo
que a causa preceda sempre ao efeito na ordem do tempo, e só por ele se conhecerá primariamente qual dos
dois estados, unidos pelo elo da causalidade, é causa e qual é efeito. Há casos, pelo contrário, em que
conhecemos o elo causal por experiências anteriores; mas a sucessão de estados é tão rápida, que escapa a nossa
percepção. Assim coligimos com toda segurança, pela causalidade, a sucessão; por exemplo, que a inflamação
da pólvora precede à explosão. Remeto ao leitor, neste ponto, ao mundo como vontade e representação, T. II, C.
IV, pág. 41 (3ª. edic., 45). Desta relação essencial da causalidade com a sucessão, segue-se também que o
conceito de ação reciproca, tomado estritamente, é nulo. Pressuporia, em efeito, que o efeito fora a sua vez a
causa de sua causa, isto é, que o posterior fosse à vez o ulterior. Já demonstrei a instabilidade deste tão
geralizado conceito, detalladamente, em meu Critica da filosofia kantiana, publicada como apêndice ao mundo
como vontade e como representação, páginas 517-521 da segunda edição (3.a edic., páginas 544-549), e a este
lugar remeto ao leitor. Note-se que os escritores vão a este conceito, pelo geral, quando suas idéias começam a
obscurecer-se; por isso seu emprego é tão freqüente. Em efeito, quando a um escritor falta o conceito, nada há
tão cômodo como estampar a palavra «reciprocidade»; por isso pode lhe servir ao leitor como um cañonazo de
alarme, para lhe indicar que se está ao bordo do abismo. Também é de notar que a palavra Wechselwirkung só
existe na língua alemã, e nenhum de outros idiomas possui um vocábulo equivalente.
Da lei da causalidade se deduzem dois importantes corolários, os quais, conseguintemente, nos apresentam
como evidentes a priori, por cima de toda dúvida, e incapazes de exceção, ou seja: a lei da inércia e a lei da
permanência da substância. A primeira consiste em que tudo estado, assim o repouso dos corpos, como também
todos seus movimentos, qualquer que seja a classe destes, se conservam imensamente os mesmos, sem perder
nem ganhar em quantidade nem duração, enquanto não apareça uma causa que os diminua ou anule. A segunda
lei, que expressa a eternidade da matéria, indica que a lei da causalidade só se refere às mudanças da matéria,
isto é, aos estados dos corpos, a sua imobilidade, a seu movimento, a sua forma e a sua qualidade, e portanto,
compreende sua aparição e desaparecimento no tempo; mas em modo algum à existência do objeto destes
mudanças, ao qual se dá o nome de substância, precisamente para excluir dele toda idéia de nascimento e de
morte. A substância é permanente, isto é, não tem nem princípio nem fim; assim, pois, a quantidade de
substância do mundo não aumenta nem diminui. O conhecimento a priori desta verdade nos demonstra isso a
inconmovible certeza que todos temos, quando nos ver desaparecer um corpo, seja por escamoteação ou por
fracionamento, por combustão ou volitização, ou por qualquer outro processo: supomos firmemente que,
qualquer que seja a sorte da forma desse corpo, a substância, quer dizer, a matéria do mesmo, permanece
intacta, e, em alguma parte deve estar, e do mesmo modo que, quando vemos um corpo em um lugar em que
antes não se encontrava, apareceu ali, ou por precipitação de pequenas partículas, por concentração, ou por
algum outro meio mecânico ou físico, mas não podemos acreditar que sua substância (matéria) tenha podido ser
criada de um nada, pois isto implica uma impossibilidade radical e não pode ser imaginado. A certeza com que
afirmamos isto, a priori, salta à vista, se considerarmos que nossa inteligência carece de uma forma para
conceber a criação ou aniquilamento da matéria, pois a lei de causalidade, que é a forma universal de conceber
as mudanças dos objetos, só se refere a estas mudanças, e não à criação e aniquilamento da matéria. Por isso
exponho eu a lei da permanência de substância como um corolário de dita lei de causalidade. Tampouco
podemos adquirir a evidência da permanência da substância a posteriori, não só porque na maior parte dos
casos não podem comprovar empiricamente o estado das coisas, mas sim porque todo conhecimento empírico,
adquirido só pela indução, tem para nós uma certeza só aproximativa, e, portanto, precária e condicional; em
troca, a evidência da lei de causalidade é de outra natureza e espécie que a que proporciona uma lei empírica,
pois é inconmovible e segura. Isto procede de que dito princípio expressa um conhecimento transcendental, isto
é, algo que é aplicável a toda experiência e anterior a ela, convertendo o mundo dos fenômenos em um mero
fenômeno cerebral. A lei de gravitação, a mais geral e exata do todas as leis naturais, é já de origem empírica, e,
portanto, não nos oferece garantia de geralidade; por isso mesmo foi discutida, duvidando-se de que possa
estender-se fora de nosso sistema solar, e não faltam astrônomos que, por certos signos e averiguações feitas,
consideram-na meramente empírica. Também se pode perguntar se entre corpos separados por um vazio
absoluto tem lugar a lei da gravitação, e se em um sistema solar se transmite pelo éter, e, portanto, não tem
efeito entre estrelas fixas, questão que só empiricamente se pode resolver. Isto demonstra que não se trata aqui
de nenhum conhecimento a priori. Quando, em mudança, admitimos a possibilidade de que todo sistema solar
se acha formado por uma paulatina condensação de nebulosa, e, portanto, segundo a teoria de Kant e de
Laplace, em nenhuma maneira imaginamos que aquela matéria primitiva tenha saído de um nada, mas sim,
necessariamente, suas partículas existiram disseminadas, ou em outra forma qualquer, anteriormente, em
alguma parte, juntando-se logo, porque o princípio da permanência da substância é um princípio transcendental.
Em meu Crítica da filosofia kantiana provei que substância é um mero sinônimo de matéria, porque o conceito
de substância só se pode realizar no de matéria, e, portanto, traz sua origem desta e se formou captativamente
(páginas 550 e seguintes da 2.a edição, e 580 e seguintes da 3.a). Este princípio, a priori, da eternidade da
matéria (chamado permanência da substância), como outros muitos, tão evidentes como este, é para os
professores de filosofia um fruto proibido; passam por é1 como sobre brasas: e deixam a um lado, com um
olhar de espanto. Agora bem: da infinita cadeia de causas e efeitos que rege tudas as mudanças da natureza,
mas sem transcender destes, devemos separar duas coisas completamente distintas dela: por um lado, como já
havemos dito, a matéria; por outro, as forças naturais originárias; aquela, por ser o objeto de tudas as mudanças,
ou no qual tais mudanças se produzem; estas, porque, mediante elas, são possíveis ditas mudanças ou efeitos,
dando às causas a causalidade, isto é, a capacidade de produzir efeitos, da qual a tomam como empréstimo.
Causa e efeito é a necessária sucessão das mudanças no tempo; as forças naturais, pelo contrário, mediante as
quais todas as causas obram, estão fora destas mudanças, e neste sentido, fora do tempo, e, pelo mesmo, sempre
presente, sempre existentes e inesgotáveis, manifestando-se somente assim que dão ocasião ao fio condutor da
causalidade. A causa é, em todos os casos, como também seu efeito, algo particular, uma mudança particular; as
leis naturais são, pelo contrário, generais, imutáveis, existentes em todo tempo e em todo lugar. Assim, por
exemplo, que o âmbar atraia à lã, é um efeito: sua causa a constitui a esfregação a que terá que submeter ao
âmbar e sua proximidade ao algodão, e a força natural ativa anterior ao fenômeno é a eletricidade. A explicação
detalhada deste assunto, por meio de um minucioso exemplo, encontra-se no mundo como vontade e como
representação, T. I, par. 26, páginas 153 e seguintes (3.a edic., páginas 160 e seguintes), aonde, também por
meio de uma longa cadeia de causas e efeitos, mostrei como entram em jogo, sucessivamente, as mais distintas
classes de leis naturais; ali também a distinção entre causa e forças naturais fará compreensível a diferença
entre o fenômeno fugitivo e a eterna forma de atividade, e como quero que o parágrafo 26 de dito livro está
consagrado a esta investigação, aqui é suficiente expor a questão de um modo passageiro. A norma que uma lei
natural segue em relação a sua manifestação na cadeia de causa e efeitos, isto é, o laço que une a estes com
aquela, é a lei natural. A confusão da força natural com a causa é tão freqüente como perniciosa para a claridade
dos conceitos. Até parece que, antes de mim, este conceito não foi posto em claro com evidência, apesar de ser
tão necessário. E não só se confundem as forças naturais com a causa, dizendo: A eletricidade, o peso, é causa,
mas sim alguns até as convertem em efeitos, dizendo: Qual é a causa da eletricidade, da gravitação, etc.? O qual
é absurdo. Outra coisa é reduzir as forças naturais a um número menor, refiriendo umas a outras, como em
nossos dias se faz com o magnetismo com respeito à eletricidade.
Toda força natural, entre as quais deve contar-se toda qualidade química fundamental, é, essencialmente,
qualitas occulta, quer dizer, não suscetível de explicação física, a não ser só de uma explicação metafísica, isto
é, ultrafenomenal.
A confusão, ou melhor, identificação da força natural com a causa, nunca se há levado mais longe que nas
Nouvelles considérations dê rapports du physique au moral, de Maine do Biran, e é porque é essencial a sua
filosofia. Note-se que, quando fala de causa, quase nunca diz causa somente, a não ser sempre causa ou força;
justamente o mesmo que vemos Espinosa empregar oito vezes em uma página, rateio sive causa. Ambos sabem
que identificam idéias diversas para empregá-las segundo as circunstâncias; a este fim, tomam cuidado de
manter sempre presente esta identificação aos olhos do leitor. Agora bem: a causalidade, esse guia de tpdas as
mudanças, aparece na natureza em três formas diferentes: como causa, no sentido mais estrito; como excitação
ou estímulo, e como motivo. Precisamente, nesta diversidade descansa a verdadeira e essencial diferencia entre
os corpos inorgânicos, as novelo e os animais; não nas manifestações anatômicas, nem nos caracteres químicos.
A causa, em seu mais estrito significado, é a que produz exclusivamente as variações no reino inorgânico;
portanto, a que origina aqueles efeitos que estudam a mecânica, a física e a química. Só a ela é aplicável o
princípio newtoniano: «ação e reação são iguais uma a outra, quer dizer, que o estado anterior (causa) produz
uma mudança (efeito) igual, em intensidade, ao que lhe provocou». Além disso, nesta forma de causalidade o
grau do efeito é proporcionado sempre ao grau da causa; assim que esta se pode; medir por aquela, e viceversa.
A segunda forma da causalidade é a excitação. Rege a vida orgânica assim que tal, quer dizer, as novelo, os
vegetais e até a parte inconsciente da vida animal, que é realmente uma vida vegetativa. Está caracterizada pela
ausência dos caracteres da forma anterior, portanto, nela a ação e a reação não são iguais, e em nenhum modo
corresponde a intensidade do efeito a da causa em todos os seus graus; antes bem, se a causa se acentúa, o
efeito pode converter-se em seu contrário.
A terceira forma da causalidade é o motivo: rege a vida animal propriamente dita, quer dizer, a atividade, as
ações conscientes de toda criatura animal. O medium do motivo é o conhecimento; a receptividade do motivo
implica, por conseguinte, uma inteligência. daqui que a verdadeira característica do animal seja o conhecer, a
representação. O animal, como tal, move-se sempre em vista de um objeto, de um fim, o qual deve ser
conhecido por ele, isto é, deve representar-se o como algo diferente dele mesmo e ter consciência deste algo.
Por conseguinte, poderemos definir ao animal dizendo que é «o que conhece»; nenhuma outra definição dá
idéia de sua essência; é mais: possivelmente não possa dar-se outra. Se falta o conhecimento, falta também
necessariamente o movimento para o motivo, com o que só ficará o estímulo próprio da vida vegetativa;
portanto, irritabilidade e sensibilidade são inseparáveis. Mas a maneira de obrar de um motivo é notoriamente
distinta da maneira de obrar de uma excitação: a ação daquele pode ser curta e até foto instantânea, pois seu
eficácia não tem, como a da excitação, relação alguma com sua duração, com a proximidade do objeto, etc.,
mas sim basta que o motivo seja percebido para que obre, enquanto que a excitação necessita sempre do
contato, e às vezes, da intussuscepción, e em todo caso requer uma duração determinada. Este breve exame das
três formas de causalidade basta, por agora. O leitor encontrará uma exposição mais detalhada em minha obra
premiada sobre o livre arbítrio, páginas 30-34, dos dois problemas fundamentais da ética (2.a edic., págs. 29-
35). Só é preciso fazer aqui uma observação. A diferença entre causa, excitação e motivo, estriba só nos graus
de sensibilidade do sujeito: quanto major seja esta, mais fácil será a ação daquela; a pedra necessita um choque:
ao homem lhe basta um olhar.
Mas ambos os som movidos por uma causa suficiente, com a mesma necessidade. Pois a motivação é a
causalidade, obrando por meio do conhecimento; a inteligência é o médium dos motivos, por ser o grau mais
alto da sensibilidade. Mas não por isto perde a lei de causalidade um ápice de sua indefectibilidade nem de seu
rigor. O motivo é uma causa, e obra com a mesma segurança que todas as causas. Nos animais, cuja
inteligência é mais simples e só proporciona conhecimentos atuais, salta logo à vista esta necessidade. O
intelecto do homem é duplo: ao conhecimento por meio da intuição se unem os conhecimentos abstratos que
não estão relacionados com a atualidade; em outras palavras, possui a razão. Daqui que possua uma faculdade
de eleição consciente, quer dizer, que pode contrapesar, uns com outros, os motivos determinantes, isto é, pode
exercitar seu poder sobre sua vontade; por conseguinte, verá-se determinado pelo motivo mais forte com a
mesma necessidade com que roda a bola impulsionada pelo taco. A liberdade da vontade (livre arbítrio)
significaria, pois (deixando a um lado as logomaquias da filosofia universitária), que «um homem pode, em
uma determinada situação, decidir-se por duas ações diferentes». Mas isto é um absurdo tão certo e
demonstrável como o pode ser uma proposição que transborda o limite da matemática pura. Em minha obra
sobre o livre arbítrio, premiada pela Real Sociedade de Ciências da Noruega, se acha exposta da maneira mais
evidente, rigorosa e fundamentada esta verdade, com especial referência aos fatos da consciência, em que as
gente ignorantes querem apoiar aqueles absurdos. No essencial, já Hobbes, Espinosa, Priestley, Voltaire e
Kant55 ensinavam isto mesmo. O qual não foi obstáculo para que nossos dignos 55 # «Qualquer que seja o
conceito que nos formemos do livre arbítrio com fins metafísicos, seus manifestações são as mesmas; as ações
humanas, asi como todo outro fenômeno da natureza, estarão determinados por leis naturais generais.» —
(Pensamentos para uma História universal: O princípio.)
«Todas as ações do homem, em sua manifestação, estão determinadas por seu caráter empírico e pelo
concurso de outras causas da ordem natural, e quando queremos investigar até o fundo todas as
professores universitários, Como se nada tivesse acontecido, sigam falando com toda despreocupação, e como
de coisa fora de dúvida, do livre-arbítrio. . Para que acreditarão estes senhores que, por um milagre da natureza,
existiram os grandes homens? Para que eles comam com a filosofia, verdade? Mas, depois de haver eu exposto
esta questão, em minha obra premiada, com maior claridade que ninguém, merecendo a sanção de uma
Sociedade Real que incluiu meu tema em suas Memórias, parece que o dever de ditos senhores era refutar da
maneira mais acabada tão perniciosa doutrina, tão odiosa heresia como deve ser para eles a negação do livre-
arbítrio; e muito mais se se tiver em conta que no mesmo tomo, e junto com «os problemas fundamentais da
ética», em minha obra laureada sobre o fundamento da moral refutei, da maneira mais evidente e incontestável,
a crítica da razão prática de Kant e seu imperativo categórico, que os senhores catedráticos continuavam
utilizando com o nome de lei moral, como pedra fundamental de seu estúpido sistema ético; o refutei, digo,
como uma hipótese desprovida de todo fundamento, de tal modo que nenhum homem que possua um pedacinho
de raciocínio pode seguir aceitando aquela ficção, depois de ter lido minha obra. Agora bem: o que é o que têm
feito? Já se guardaram muito bem de encarar o temporal. Calam, remoem-se os lábios; este é todo seu talento e
sua única defesa contra o engenho, a razão, a seriedade e a verdade. Em nenhum de seus inúteis e prolixos
escritos, a partir de 1841, faz-se a menor alusão a minha Ética, embora, sem disputa, constitui o mais
importante que se há escrito sobre moral há sessenta anos; tanto é o medo que têm para mim e a minhas
verdades, que nem sequer se menciona minha obra em nenhum dos periódicos que publicam as Academias e
Universidades. Zitto, zitto! Que não se inteire o público! Esta foi e segue sendo toda sua política. Claro é que
esta ladina conduta tem por origem o instinto de conservação. Por acaso minha filosofia, que só procura a
verdade sem contemplações, não deve desempenhar entre os sistemas desses senhores, encarregados
oficialmente de pensar, por seu «bom sentido», o papel da panela de ferro entre tantas panelas de barro? Seu
desventurado pavor ante minha filosofia é pavor ante a verdade. E precisamente esta doutrina da necessidade
dos atos voluntários está em flagrante contradição com toda a essência da filosofia judaica, velha matrona que
eles exploram; mas, longe de estarem impugnadas minhas doutrinas, se mostram como um seguro dado e um
ponto de partida, como um verdadeiro δoς μοι πουστω, proclamando a insignificância de toda essa filosofia de
roca e a necessidade de um novo e fundamental conceito da essência do mundo e das coisas. Pouco importa a
questão de se tal conceito for compatível com as miras dos togados professores de filosofia nas Universidades.

21

APRIORIDADE DO CONCEITO DE CAUSALIDADE; INTELECTUALIDADE DO CONHECIMENTO


EMPÍRICO; A INTELIGÊNCIA

Na filosofia profissional dos professores de filosofia se segue ensinando que o conhecimento do mundo exterior
é coisa dos sentidos, com o qual acham pretexto para largas dissertações sobre cada um dos cinco sentidos
corporais. Mas nada dizem, em troca, da intelectualidade deste conhecimento, isto é, de que em 61 desempenha
o papel mais importante a inteligência, a qual, por meio da forma de causalidade, característica nela e da pura
sensibilidade; subordinada à mesma, isto é, condicionada pelo tempo e o espaço, transforma estas grosseiras
sensações nos órgãos de nosso corpo, criando e dando com elas forma a este mundo exterior objetivo. E,
entretanto, esta questão já foi esboçada por mimnaprimeira edição da presente obra do ano 1813, páginas 53-55,
e logo, em 1816, completei-a em minha dissertação sobre a teoria da visão e das cores, com aplauso do
professor Rosas, de Viena, que levou sua admiração até o plágio. Sobre este ponto se encontrarão mais detalhes
na vontade na Natureza, P. 19 (2.a edic., P. 14). Pelo contrário, os professores de filosofia não têm notícia nem
destas nem de outras tão importantes verdades, a cuja divulgação entre os homens consagrei toda minha vida:
não são de seu gosto, não encaixam em seus logomaquias, não conduzem a nenhuma teologia, não são
aplicáveis a seus fins educativos da juventude para os altos fins do Estado; em uma palavra, não querem
aprender nada por mim e não vêem quanto teriam que aprender: tudo o que de meu aprenderão seus filhos, seus
netos e bisnetos. Em vez disto, se arrellanan diante de suas carteiras para enriquecer ao público com seus
pensamentos em uma inflada metafísica. Se para ter autoridade basta com os cinco dedos da mão, eles a têm.

manifestações do livre-arbítrio, não encontramos nenhuma ação humana que não possamos predizer e que não devamos
atribuir necessariamente a esta origem e a suas condições determinantes com toda certeza. Atendendo, pois, a este caráter
empírico, não existe a liberdade, e só segundo este caráter estudaremos devidamente ao homem quando quisermos, como
o faz a antropologia, investigar fisiologicamente as causas vivas de suas ações.»—Critica da razão pura, pág. 548 da 1.a
edic. e 577 da 5.a «Podemos pois, concluir, que se fosse possível penetrar na maneira de pensar de um homem Conforme
sei mostra em suas ações, tanto exte-riores como interiores, e penetrar tão profundamente que não nos fora desconhecido
a mais pequena mola, e conhecer mesmo tempo todas as causas exteriores que tivessem que obrar sobre ele, poderíamos
predizer a conduta desse homem no futuro com a mesma precisão com que se prediz um eclipse de sol ou de lua.» —
(Crítica da razão prática, pág. 230 da edic. Rosenkranz, e 177 da 4.a edic.)
Mas, verdadeiramente, Maquiavelo tem razão quando — como já antes dele Hesiodo (e..a, 293)—diz: «Há três
classes de cérebros: primeiro, aqueles que se por acaso mesmos obtêm das coisas, opiniões e raciocínios; logo,
os que conhecem a verdade quando outros a ensinam, e, por último, aqueles que nem por si mesmo, nem por
meio de outros, são capazes de conhecê-la» (O principe, C. XXII). Precisa-se estar deixado da mão de Deus
para dizer que o mundo intuitivo exterior, ao encher em suas três dimensões o espaço, movendo-se, com
inexorável rigor, dentro do curso do tempo, regido a cada passo pela lei de causalidade, mas submetido sempre
à lei que nós aplicamos de antemão a toda experiência, tem uma existência objetiva e real, independente de
nossa participação nele, e que, pela mera impressão de nossos sentidos, chega a nosso cérebro e se apresenta
nele tal e como é fora do mesmo. Quão mísera coisa é a mera impressão de nossos sentidos! No mais nobre
órgão de nosso corpo não se opera mais que uma sensação local, específica, subjetiva, e que, como tal, não
pode conter nada objetivo nem que se pareça com uma percepção. Pois a sensação, qualquer que seja, é e segue
sendo um processo de nosso mesmo organismo, e, como tal, não transpassa os limites de nosso envoltório
carnal nem pode conter nada que fora de dito envoltório exista. Ela poderá ser agradável ou desagradável, o
qual só implica uma relação com nossa vontade; mas nada objetivo há em nossas sensações. A impressão de um
órgão dos sentidos é exercida pelos objetos exteriores, obrando sobre as extremidades do sistema nervoso, que
confluem e se estendem por nosso corpo, e, por causa de sua magra coberta, são facilmente excitáveis e estão
abertos ao influxo especial da luz, do som, do aroma, etc., mas não por isso é menos sensação, assim como as
do interior de nosso corpo; portanto, um pouco essencialmente subjetivo, cujas variações só em forma de
sensibilidade interior, isto é, de tempo, ou seja, sucessivamente, chegam a nossa consciência. Só quando a
inteligência — função, não dos nervos isolados, mas sim do cérebro, tão artística e enigmáticamente construído,
que só pesa três libras, e acaso cinco por exceção— entra em atividade, utilizando sua forma especial, a lei de
causalidade, se opera uma importante transformação, passando as impressões subjetivas a ser conhecimento
objetivo. Então concebe, por meio de sua forma específica, isto é, a priori, ou seja, anteriormente a toda
experiência (pois ainda não é possível esta), as impressões dos órgãos corporais como efeitos (palavra que ela
sozinha compreende) que, como tais, devem ter suas causas correspondentes. Ao mesmo tempo chama em seu
auxílio à forma da sensibilidade exterior, que reside igualmente no intelecto, isto é, no cérebro, o espaço, para
colocar esta causa fora do organismo, pois só deste modo compreende, percebe o exterior, cuja possibilidade é
o espaço; assim é que a pura intuição é a que deve subministrar a base da percepção do empírico. Neste
processo, a razão toma, como demonstrarei mais tarde, todos, até os mais minuciosos dados da sensação, para
construir com arrumo a causa da mesma no espaço. Esta operação da inteligência (negada expressamente, por
certo, pelo Schelling no tomo I de seus Estudos filosóficos, 1809, páginas 237-38, e pelo Fries em sua Crítica
da razão, tomo I, páginas 52-56 e 290 da I.a edição) não é uma operação discursiva, reflete in abstrato, realizada
por meio de conceitos e palavras, a não ser uma operação intuitiva e completamente imediata. Pois por si só,
quer dizer, na inteligência e pela inteligência, representa-se o objetivo, o real, o mundo corpóreo que enche o
espaço em suas três dimensões, e que logo, no tempo, e com arrumo à lei da causalidade, troca e se transforma
e se move no espaço. Segundo isto, a missão da inteligência é criar esse mundo objetivo; mas não quer dizer
isto que o encontre já fabricado e lhe faça entrar no cérebro pela sensibilidade e seus órgãos. Em efeito: os
sentidos não subministram mais que a primeira matéria, que depois a razão, por meio de suas formas
características, espaço, tempo e causalidade, transforma na concepção objetiva de um mundo regido por leis
próprias. Segundo o qual, nosso conhecimento ordinário, empírico, é um conhecimento intelectual, e a ele
corresponde esse pregado que a fanfarronice filosófica em Alemanha atribuiu a uma pretendida intuição de
mundos quiméricos, nos quais seu querido Absoluto faz sua evolução. Mas eu mostrarei agora o profundo
abismo que existe entre sensação e conhecimento, fazendo ver quão grosseira é a primeira matéria de que nasce
esta obra de arte.
Ao conhecimento objetivo contribuem propriamente só dois sentidos: a vista e o tato. Eles só subministram os
dados, fundando-se nos quais, a razão, pelo processo indicado, cria o mundo objetivo. Os três sentidos restantes
som essencialmente subjetivos, pois suas sensações indicam, sim, uma causa exterior, mas não contêm dado
algum para a determinação das relações espaciais. E como o espaço é a forma de todo conhecimento, isto é,
desta apreensão, na qual unicamente se pode representar os objetos, segue-se daqui que ditos três sentidos
revelam-nos, sim, a presença dos objetos, já conhecida de outro modo por nós; mas com seus dados não
obtemos nenhuma construção espacial, portanto, nenhum conhecimento objetivo. Pelo olfato não podemos
reconstruir a rosa, e um cego pode estar ouvindo toda sua vida música, sem formá-la menor ideia dos músicos,
dos instrumentos nem das vibrações acústicas. O ouvido tem seu valor como veículo do linguagem, pelo qual é
o sentido da razão, e recebe seu nome dela em alguns idiomas, assim, como medium da música é o único
caminho de complicadas relações numéricas, não só in abstrato, mas também imediatamente, isto é, in concreto.

Mas o som não evoca relações espaciais, por isso não nos indica a condição de sua causa, mas sim nos detemos
no mesmo; por isso não é um dado para que a inteligência construa o mundo objetivo. Só, pois, o tato e a vista
subministram ditos dados; daqui que um cego, sem mãos nem pés, poderia, sim, construir-se a priori uma
representação do espaço em sua total regularidade; mas do mundo objetivo só teria uma representação confusa.

Mas a vista e o tato não subministram o conhecimento, a não ser a primeira matéria do mesmo, pois na
impressão destes sentidos não há verdadeiro conhecimento, por quanto não há semelhança com as qualidades
das coisas que por meio deles nos representam, como vou demonstrar. Mas terá que distinguir com precisão o
que constitui a impressão mesma, isolada pelo que acrescenta o intelecto, pois estamos tão habituados a passar
imediatamente da sensação a sua causa, que esta nos representa sem nos deter na sensação em si e se por acaso,
que é como a premissa da conclusão a que a inteligência chega. O tato e a vista desempenham cada um seu
ofício, ajudando-se e completando-se mutuamente. A vista não necessita do contato, nem sequer da
proximidade; seu campo não tem medida: chega até as estrelas. É capaz de perceber os mais finos matizes da
luz, da cor, da transparência; subministra, pois, à inteligência uma multidão de dados concretos, com os quais
constrói esta, mediante um uso adequado, a figura, o tamanho, a distância e a capacidade dos corpos, e
representa tudo isto ao intelecto. Pelo contrário, o tato necessita, sim, do contato para proporcionar dados; mas
estes são tão certos, que lhe pode considerar como o sentido fundamental. As percepções da vista se referem,
em último término, ao tato; assim, que a pode considerar como um tato a distância, embora imperfeito, que se
serve dos raios luminosos como de tentáculos. daqui que esteja exposta a muitos enganos, porque se limita às
qualidades postas de manifesto pela luz, por isso é unilateral, enquanto que o tato subministra imediatamente os
dados para o conhecimento do tamanho, figura, dureza, umidade ou secura, suavidade, temperatura, etc.,
ajudado em parte pela conformação e movimento de braços, mãos e dedos, de cuja posição, durante a
palpación, toma a inteligência os dados para a reconstrução dos corpos no espaço, e, em parte, pela força
muscular, que reconhece a consistência, fragilidade ou tenacidade dos corpos, tudo isso com mínimas
probabilidades de engano.

Mas em todos estes dados não há a mais mínima quantidade de conhecimento, o qual é obra exclusiva da
inteligência. Quando eu oprimo a mesa com minha mão, na sensação que eu percebo não há a menor ideia da
firme coesão das partes que compõem esta massa nem nada que lhe pareça; só quando minha inteligência passa
da sensação à causa que a produz reconstrói um corpo que tem determinadas qualidades, como são: solidez,
impenetrabilidade e dureza. Se eu, na escuridão, estendo minha mão sobre uma superfície, ou coxo uma bola de
umas três polegadas de diâmetro, nos dois casos, a mesma parte da mão é a que percebe a pressão; mas,
segundo as duas distintas posições que em cada um dos casos toma minha mão, minha inteligência reconstrói a
figura de cada um destes corpos, cujo contato é a causa da sensação, e o entendimento comprova seu resultado,
fazendo variar os pontos de contato. Quando um cego de nascimento apalpa uma figura cónica, as sensações de
sua mão são uniformes, e por todos os lados e em todas as direções as mesmas; as arestas oprimem, é certo,
uma parte menor da mão, mas nesta sensação não há nada que se pareça com um cubo. Mas, da resistência que
encontra a mão, a inteligência chega, imediata e intuitivamente, à conclusão de sua causa, a qual se representa,
por fim, como um corpo sólido, e do movimento de seus braços, permanecendo as mesmas as impressões de
suas mãos, reconstrói no espaço, conhecido a priori, a configuração cúbica do objeto. Se não tivesse a idéia de
causa e de espaço, com arrumo a sua lei própria, não chegaria nunca, pela mera sucessão de sensações indicada,
a formá-la imagem de um cubo. Se fizer correr uma soga por dentro de seu punho fechado, reconstruirá, pela
sensação de esfregação e por sua duração, um corpo comprido cilíndrico que se move em uma direção
uniforme; mas não poderá nascer em sua mente, por esta mera sensação de sua mão, a idéia do movimento, isto
é, a transformação do lugar em espaço por meio do tempo, pois a sensação não pode conter nem produzir por si
só uma coisa semelhante. A não ser que seu intelecto tem que levar em si mesmo, anteriormente a toda
experiência, a intuição do tempo, do espaço e, com eles, da possibilidade do movimento, e não menos deve
possuir a noção da causalidade para passar da simples sensação empírica a sua causa e forjar-se logo um corpo
que se move com a indicada configuração. Pois quanta distância entre a mera sensação da mão e as idéias de
causalidade, materialidade e movimento no espaço, por meio do tempo! A sensação da mão, por muito
diferente que seja o contato e a posição, é algo tão indistinto e escasso em dados, que por ela sozinha não
poderíamos reconstruir a idéia do espaço, com suas três dimensões, nem a ação de uns corpos sobre outros, nem
as qualidades de extensão, impenetrabilidade, coesão, dureza, brandura, repouso e movimento; em uma palavra,
o fundamento do mundo objetivo. Isto só nos é possível, porque o intelecto possui de antemão a noção do
espaço, como forma da mudança de lugar, e a lei de causalidade, como reguladora do processo da mudança das
coisas. A existência destas formas anteriormente a toda experiência é no que consiste o intelecto.
Fisiologicamente, é uma função do cérebro, o qual está tão longe de havê-la aprendido da experiência, como o
estômago a digestão, ou o fígado a secreção da bílis. Só assim se explica que muitos cegos de nascimento
tenham idéia tão cabal da medida do espaço, até o ponto de suprir com ela sua falta de vista em alto grau,
adquirindo pasmosa destreza, como também se explica que, faz cem anos, Saunderson, cego desde sua infância,
ensinasse em Cambridge Matemática, Óptica e Astronomia (veja o detalhado relato que sobre o Saunderson
proporciona-nos Diderot em seu Lettre sul os aveugles). E deste modo se explica o caso inverso da Eva Lauk,
que, nascida sem braços nem pernas, conseguiu logo, como outros meninos, formar uma perfeita intuição do
mundo exterior só por meio da vista.
(A relação deste caso a achará o leitor no mundo como vontade e como representação, T. II, capítulo IV.) Tudo
isto demonstra, em soma, que tempo, espaço e causalidade não se formam nem pela vista nem pelo tato, nem
procedem em modo algum do exterior, mas sim, pelo contrário, têm uma origem interior, intelectual e não
empírico; pelo que se segue que a intuição do mundo corpóreo é essencialmente um processo intelectual, obra
da inteligência, no qual as sensações dos sentidos só proporcionam a ocasião e os dados para a determinação
dos casos particulares.

Quero agora demonstrar o mesmo do sentido da vista. Os dados imediatos se limitam às impressões da retina,
que admitem muitas variedades, todas as quais podem-se referir à impressão do claro e obscuro, com suas
gradações as cores propriamente ditos. A impressão é puramente subjetiva, isto é, só reside no interior do
organismo e nos limites da pele. Também, sem a inteligência, conheceríamos as sensações como variadas e
singulares modificações de nossa sensibilidade na retina, as quais não se pareceriam em nada às noções de
situação, distância, proximidade das coisas que estão fora de nós, pois o que na visão é obra da sensibilidade, é
somente uma variada afecção da retina, muito parecida com o aspecto de uma paleta manchada de muitas cores;
e nada mais que isto ficaria na consciência daquele que, diante de um rico panorama, sentisse-se privado
repentinamente da inteligência, pela paralisação do cérebro, e, sem embargo, não perdesse a mera sensibilidade,
pois esta é a matéria prima da qual a inteligência forja logo suas percepções. que a inteligência possa, com uma
matéria tão limitada como o clarobscuro e cor, por uma função tão simples como é a atribuição de uma causa ao
efeito, com ajuda da forma intuitiva do espaço, forjar um mundo visível tão rico e variado, consiste na ajuda
que a sensibilidade lhe proporciona. E isto consiste em que primeiro a retina, como superfície, é suscetível de
uma justaposição de impressões; em segundo lugar, em que a luz se propaga em linha reta, e fere o olho
também em linha reta, e, finalmente, em que a retina possui a propriedade de perceber também a direção em
que é afetada pela luz imediatamente, o qual só se explica pelo fato de que os raios de luz penetrem na
espessura da retina. De aqui provém que a sensação indique também a direção de sua causa, isto é, o lugar de
onde vem a luz ou se reflete nos objetos. Realmente, o passo da inteligência a estes objetos, como causa, supõe
já o conhecimento da lei de causalidade, como também a do espaço: ambas constituem a composição do
intelecto, o qual, da mera sensação, cria o conhecimento. Estudemos agora seu processo. O primeiro que faz é
restabelecer em sua posição normal a impressão dos objetos que fere a retina em forma investida, isto é, o de
abaixo, vamos. Tal originária investimento depende de que cada ponto dos objetos visíveis propaga seus raios,
em linha reta, em todas direções, de modo que os raios que provêm da extremidade superior se cruzam, na
estreita abertura da pupila, com os da extremidade inferior, pelo qual estes se refletem acima, e aqueles, abaixo;
os da direita, à esquerda, e os da esquerda, à direita. O aparelho refractor do olho, ou seja a córnea, humor
aqueus, lens et corpus vitreum, serve só para concentrar os raios dos objetos visíveis, de modo que vão ferir o
estreito espaço da retina. portanto, se a visão consistisse em uma mera sensação, perceberíamos os objetos
investidos, porque assim os recebemos; mas os perceberíamos então como algo que está no interior do olho,
porque não passaríamos além da sensação.

Mas, pelo contrário, o que acontece é que aparece a inteligência, com sua lei de causalidade; refere a impressão
recebida a uma causa determinada; tira da sensação os dados da direção de onde a luz vem; segue a direção das
duas linhas, até encontrar a causa; desfaz, ao percorrer este caminho, o investimento originária, e se representa
a causa como objeto no espaço em sua posição natural, isto é, na posição em que despedos raios, não na posição
em que os raios entram na retina (veja-se figura 1ª). A mera intelectualidade do assunto, com exclusão de todas
as demais raciocine, especialmente as fisiológicas, comprova-a o que se um homem põe sua cabeça entre as
pernas, ou se pendura cabeça abaixo, não deixa por isso de ver as coisas em sua posição natural, embora a parte
da retina que ordinariamente é afetada pela extremidade inferior das coisas o é agora pela parte superior, de
modo que todo se investiu menos a inteligência.

A segunda operação que realiza a inteligência sobre a sensação, é simplificar a imagem que recebe duplicada,
pois cada olho recebe uma imagem do objeto, e, por certo, em distinta direção, e, no entanto, o objeto nos
representa como único: na qual somente consiste na inteligência. O processo pelo qual se opera este fenômeno é
o seguinte: nossos olhos estão em posição paralela, se olharmos a distância, por exemplo, de um objeto que está
diante de nós uns 200 pés; mas se, a menos distancia, nos aproximarmos do objeto que observamos, fazendo-os
convergir, formando ambas as linhas de visão um ângulo agudo, cujo vértice é o objeto a que olhamos, as linhas
chamam-se eixos ópticos. Estas linhas vão ferir no centro de cada retina, quando o objeto está perfeitamente
diante de nós; portanto, em dois pontos correspondentes dos dois olhos. Mas a inteligência, que, como tal, só
procura a causa, compreende ao ponto que embora a imagem seja dupla, parte de um único objeto exterior,
portanto, que só tem uma causa; por conseguinte, representasse esta causa como objeto e como objeto único.
Pois tudo o que nós conhecemos o conhecemos como causa, e como causa do efeito percebido; portanto,
conhecemos na inteligência. Mas como não vemos somente pontos, a não serem superfícies consideráveis dos
objetos, com os dois olhos, representando-os, no entanto, simples e não duplos, devemos ampliar um pouco a
explicação dada. Os pontos situados aos lados do vértice do ângulo de visão projetam seus raios, não
precisamente no ponto médio da retina, a não ser aos lados; entretanto, estes raios terminam no mesmo lado de
cada retina, por exemplo, à esquerda. Desta sorte, os pontos feridos por ditos raios se correspondem
simetricamente com os pontos respectivos do objeto. A inteligência aprende logo a conhecer isto, e aplica a lei
de causalidade exposta, refiriendo, não só os raios que ferem o ponto central de cada retina, mas também os
raios que vão ferir os pontos correspondentes das duas retinas, a um solo e mesmo ponto do objeto, percebendo
assim todos estes pontos, e, portanto, o objeto inteiro, não dobro, a não ser singelo. É de notar agora que os
lados exteriores de uma retina não correspondem com os exteriores da outra, e viceversa, mas sim o lado direito
da retina direita corresponde com o direito da outra, e assim sucessivamente; por isso não estão em sentido
fisiológico, a não ser em sentido geométrico. Na obra do Roberto Smith, sobre óptica, e em parte na tradução
alemã do Kaestner (1755), se encontram figuras explicativas destes fenômenos e de outros relacionados com
eles. Eu dou na figura 2ª uma explicação, que realmente se refere a um caso especial, mas que também pode
explicar todo o problema, se se prescindir do ponto R. Segundo isto, nós dirigimos ambos os olhos sempre
uniformemente sobre os objetos, para perceber em partes correspondentes, e igualmente simétricas ou paralelas,
das retinas, os distintos raios do objeto. Quando movemos os olhos em todas as direções, para trás, para cima,
etc., encontramos o ponto do objeto, que antes feria o centro da retina, fere agora outro distinto, mas sempre
correlativo, de ambos os olhos. Quando examinamos um objeto (perlustrare), passamos a vista por todo o
objeto, para que cada ponto do mesmo fira sucessivamente o centro da retina, que é o que melhores qualidades
de visualidade tem, isto é, apalpamos o objeto com os olhos. Daqui se deduz que o simples ver os objetos com
os dois olhos é um fenômeno parecido ao do tato, pois quando apalpamos um corpo com os dez dedos, cada um
destes percebe uma impressão distinta, que, entretanto, se unifica no cérebro, refiriéndolas todas à imagem de
um corpo cuja configuração e tamanho reconstrói. Só assim se compreende que um cego possa ser escultor,
como o fué, dos cinco anos, o famoso José Kleinhaus56, morto, no ano 1853, em o Tirol. Pois o conhecimento,
a intuição, produz-se sempre pela inteligência, seja qualquer o sentido do qual recebe os dados.
Agora bem: se eu agarrar uma bola com dois dedos cruzados, parecerá-me que coxo dois bolas, porque a
inteligência, aplicando a lei de causalidade, combinada com a lei do espaço, atribuirá às impressões recebidas
duas causas distintas, e, portanto, acreditará ter nos dedos duas bolas diferentes. Pois bem: do mesmo modo, eu
acreditarei ver dois objetos quando, olhando um só com os dois olhos, a direção destes é simétrica, e, portanto,
o ângulo óptico não é o mesmo, quer dizer, sou eu vesgo. Pois então não corresponderá cada ponto do objeto
simetricamente com o respectivo ponto da retina: segundo a experiência constante de meu cérebro e minha
inteligência, acreditarei que esta distinta direção dos raios luminosos corresponde a distintos objetos; daqui que
eu veja dois objetos, por que a intuição se verifica na inteligência e pela inteligência. O mesmo acontecerá, sem
necessidade de bizcar os olhos, se colocar dois objetos a diferente distancia de minha vista, e olhe ao que está
mais longe, pondo nele o vértice do ângulo visual, pois os raios que procedem do objeto mais próximo não
chegarão simetricamente aos mesmos pontos das duas retinas, por isso meu inteligência acreditará na existência
de dois objetos, ou, o que é o mesmo, verei o objeto mais próximo dobro (veja-se figura 2.a). Se, pelo contrário,
colocamos neste último o vértice do ângulo visual e lhe olhamos, pela mesma razão nos parecerá o objeto mais
afastado dobro. Para comprovar isto, pode colocar um lápis a uns dois pés dos olhos, e olhar intermitentemente
ao mesmo e a um objeto colocado mais atrás. Mas o mais curioso é que se pode também fazer o experimento
inverso, quer dizer, ter diante dos olhos dois objetos efetivos, colocados em linha reta e perto, e ver só um, o
qual demonstra eloqüentemente que o conhecimento não depende em modo algum da impressão dos sentidos,
mas sim se opera por um ato da inteligência. Unam-se dois canos de 8 polegadas de comprimento e de polegada
e meia de diâmetro, completamente paralelas, a modo de óculos, e sujeite-se a cada uma das extremidades uma
moeda. Se se aplicarem logo os olhos às outras extremidades, Só verá-se uma só moeda rodeada de um sozinho
cano.
56 # Sobre este caso refere a Frankfurter Konversationsblatt, de 22 de Julho de 1853: «No Nanders (Tirol) faleceu, em 10
de Julho, o escultor cego José Kleinhaus. Cego dos cinco anos a conseqüência da varíola, começou a esculpir, por
aborrecimento. Prugg lhe dirigia, lhe dando figuras a imitar, e aos doze anos esculpiu um Cristo de tamanho natural. Na
oficina do escultor Nissl, no Fügen, aproveitou muito em curto tempo, e começou a ser conhecido, por causa de seus bons
dotes e se talento, como o escultor cego. Seus trabalhos são numerosos: só seus Cristos chegam a quatrocentos e neles se
revela sua mestria, apesar de sua cegueira. Fez outras muitas obras de valor, entre elas, faz dois meses, o busto do Kaiser
Francisco José, que foi enviado a Viena.»

Pois pelos canos, que têm que estar necessariamente em posição paralela, irão ferir as moedas em pontos
correspondentes simetricamente da retina, e então a inteligência, pressupondo a situação do ângulo visual,
como nos objetos próximos, perceberá um só objeto como causa dos raios que Devem ferir a retina, isto é, verá
um só objeto; tão imediata é a apreensão da inteligência.
As explicações fisiológicas que se tentaram da visão simples não podem ser refutadas aqui uma por uma. Mas
sua falsidade se manifesta em virtude das seguintes observações: 1.a Se a coisa dependesse de uma relação
fisiológica, os sítios correspondentes de ambas as retinas, dos quais depende, como se demonstrou, a visão
única, deveriam achar-se em correspondência orgânica, e só estão, como se há dito, em relação geométrica, pois
organicamente se correspondem os dois ângulos visuais exteriores, e com arrumo a eles todo o resto; pelo
contrário, para o efeito da visão simples corresponde o lado direito da retina direita com o lado direito da
esquerda, etc., como dos fenômenos estudados se desprende irrebatiblemente. Pelo mesmo que a coisa é
intelectual, os animais mais inteligentes, sobre tudo os mamíferos superiores, as mesmas aves de rapina e
especialmente as corujas, têm os olhos conformados de maneira que os dois eixos dos mesmos podem dirigir-se
a um mesmo ponto. 2ª A hipótese aventurada primeiro pelo Newton (Optics querry, 15 th) da reunião ou
cruzamento parcial dos dois nervos ópticos, a sua entrada no cérebro, é completamente falsa, pois do contrário,
não se explicaria que os vesgos vissem os objetos dobre; além disso, já Vesalio e Cesalpino aduziram casos de
anatomia nos quais não há reunião, nem sequer contato, dos nervos ópticos, e, entretanto, o sujeito nem por isso
deixa de ver os objetos simples. Finalmente, contra toda inmixtión das impressões, se pode alegar que, se nos
tamparmos com a mão o olho direito, e olhamos ao sol com o esquerdo, experimentará-se um deslumbramento
ou cegueira por comprido momento no olho esquerdo, mas não no direito e viceversa.
A terceira operação da inteligência é a que acrescenta a terceira dimensão, pois os dados dos sentidos só
proporcionam superfícies, enquanto que a inteligência, por um procedimento causal, traçado a extensão dos
corpos no espaço conhecido a priori com arrumo à medida da impressão produzida nos olhos e às gradações de
luz e sombra. Pois, em efeito, apesar de que os corpos ocupam três dimensione no espaço, só projetam nos
olhos duas dimensões; a sensação da vista é, a conseqüência da natureza do órgão, só planimétrica e não
estereométrica. A qualidade estereométrica da percepção a acrescenta a inteligência os dados peculiares desta
operação são a direção em que recebe o olho a impressão, os limites da mesma e as gradações de claro e
obscuro, pelas quais a inteligência percebe imediatamente a causa, podendo saber se o que tem diante é um
disco ou uma esfera. Também esta operação é, em virtude do anterior, tão rápida e imediata, que não chega dela
mais que o resultado à consciência. Por isto é tão difícil o desenho de perspectiva, e resolve por princípios
matemáticos, e deve aprender-se de antemão; e, entretanto, seu objeto não é outro que a representação da
sensação visual, como a proporcionam os dados para esta operação da inteligência, ou seja a visão em sua
extensão planimétrica, por meio de cujas duas dimensões, e acrescentando os referidos dados a inteligência,
surge em seguida a terceira, tão quando contempla um desenho como quão dou contempla a realidade. Um
desenho desta natureza é como um escrito que, qual um impresso, todos o sabem ler, mas são poucos os que
sabem escrevê-lo, porque a inteligência intuitiva só percebe o efeito, para deduzir dele a causa, deixando de ter
naquela conta quando conseguiu esta. Por isso reconhecemos instantaneamente uma cadeira em todas as suas
possíveis posições e situações; mas, desenhá-la em uma destas posições, já é obra da arte, o qual verifica uma
abstração desta terceira operação da inteligência, e oferece ao espectador os dados necessários para que ele se
sirva deles e verifique se por acaso mesmo o processo. Isto é, como já havemos dito, a pintura de perspectiva;
mas, em um sentido mais amplo, constitui a pintura toda. O quadro apresenta linhas riscadas segundo as regras
da perspectiva; lugares claros e obscuros, com arrumo aos efeitos da luz e da sombra; por último, manchas de
cores riscadas no que respeita a sua qualidade e intenção pelos ensinos da experiência. O espectador prescinde
de tudo isto, deduzindo dos efeitos a causa. A arte do pintor consiste, pois, nisto: em guardar na memória os
dados da impressão dos sentidos conforme existem antes desta terceira operação da inteligência, isto é, retê-los
por meio da imaginação, enquanto que nós os profanos, assim que temos feito deles o uso indicado, arrojamo-
los, sem conservá-los na memória. Completaremos o conhecimento desta operação na inteligência, passando à
quarta, que, como intimamente relacionada com ela, a acaba de explicar.
Esta quarta operação da inteligência consiste no conhecimento da distância a que o objeto se encontra de nós,
mas isto não é mais que a terceira dimensão, de que falamos mais acima. A impressão óptica nos proporciona,
em efeito, como já havemos dito, a direção em que estão os objetos; mas não sua distância, nem, por tanto, o
lugar que ocupam. A distância tem que ser, pois, determinada pela inteligência; por conseguinte, sua
determinação é causal. Para isso é o principal dado o ângulo visual sob o qual se representa o objeto; entretanto,
este é equívoco, incerto, e não pode decidir nada por si só. É como uma palavra de dois sentidos, para
compreender a qual se precisa saber com o que está relacionada. Pois um mesmo ângulo visual pode
corresponder a um objeto pequeno e próximo, ou a um objeto grande e longínquo. Só quando nos é já
conhecido de antemão podemos determinar sua distância por meio do ângulo visual, e viceversa; se o ângulo
visual nos for conhecido de antemão, podemos determinar suas dimensões. Na apreciação do ângulo visual,
com relação à distância, apóia-se a perspectiva, cujos princípios se podem deduzir daqui facilmente. Como
nosso poder visual se estende por todos os lados à mesma distância, podemos vê-lo tudo, como se fora uma
esfera vazia em cujo centro estivesse o olho. Agora bem: esta esfera tem infinito número de círculos
concêntricos em todas as direções, e os ângulos que determinam estes círculos são todos os ângulos visuais
possíveis. Além disso, esta esfera será maior ou menor segundo nós percebamos seus raios mais largos ou mais
curtos, e a poderemos imaginar como uma reunião de infinitas esferas concêntricas e transparentes.
Como todos os rádios são divergentes, estas esferas concêntricas, à medida que se afastam de nós, serão
maiores, e com elas crescerão os graus de seus círculos, e, por conseguinte, o verdadeiro tamanho dos objetos
compreendidos em estes graus. Estes serão maiores ou menores conforme ocupem a mesma medida, por
exemplo, 10 graus de uma esfera maior ou mais pequena, permanecendo, entretanto, nos dois casos o mesmo
ângulo visual, por isso não poderá determinar-se por ele se estes 10 graus corresponderem a uma esfera de duas
léguas ou de 10 pés de diâmetro. Se o tamanho dos objetos está fixado, decrescerá o número de graus que
ocupam na medida em que a esfera a qual nos referimos está mais longe de nós, e, portanto, é maior; na mesma
medida se reduzirão também todos os seus limites. Daqui se deduzem as regras fundamentais de toda
perspectiva, pois perceberemos em proporção a sua distância os objetos e ao espaço que os separa, reduzindo-se
proporcionalmente todos os limites. O resultado será que, conforme vá crescendo a distância, tudo o que está
em cima de nós parecerá mais baixo; tudo o que está debaixo de nós parecerá mais alto, e o que está aos lados
se aproximará. Assim, tendo ante nós uma larga série de objetos perceptíveis, poderemos, por meio desta
convergência progressiva de linhas, isto é, por meio da perspectiva linear, reconhecer em todo caso sua
distância. Em troca, pelo mero ângulo visual não podemos fazê-lo, mas sim a inteligência tem que chamar em
seu auxílio outros dados, os quais servem, por dizê-lo assim, como comentário do ângulo visual, indicando a
parte que a distância desempenha neste ângulo. Tais dados são principalmente quatro, que já indicarei mais
adiante. Mediante estes dados, acontece, até onde a perspectiva linear falha, que embora um homem que está a
100 pés de distância de mim me aparece sob um ângulo vinte e quatro vezes menor que se estivesse a 2 pés de
onde eu me encontro, eu, entretanto, na maior parte dos casos, poderei determinar suas dimensões; todo o qual
demonstra deste modo que o conhecimento é intelectual, e não só sensitivo. Um especial e interessante alegação
por escrito em favor do fundamento que aqui atribuímos à perspectiva, como também da
intelectualidade da percepção em geral, é o seguinte: Se eu depois de contemplar comprido momento um objeto
colorido, de contorno determinado, por exemplo, uma cruz vermelha, sinto aparecer em minha retina sua cor
complementar, isto é, uma cruz verde, Esta me parecerá tão maior quanto mais longe se ache a superfície a qual
a refiro, e tão mais pequena quanto mais perto esteja, pois o espectro ocupa uma determinada e invariável parte
de minha retina, a parte excitada anteriormente pelo cor vermelha, e ao projetar para fora esta imagem, isto é,
ao referi-la, como efeito que é, a uma causa exterior, a um objeto exterior, dá nascimento a um determinado
ângulo visual, por exemplo, de 2 graus; se referir eu agora esta imagem (neste caso em que todo comentário ao
ângulo visual falta) a uma superfície mais afastada por mim, com a qual a identifico, como causa de tal efeito,
ocupará agora 2 graus de uma esfera mais afastada, com o qual a cruz aparecerá maior; se projeto o espectro,
em mudança, sobre um objeto mais próximo, ocupará 2 graus de uma esfera mais pequena, e, portanto,
aparecerá menor.
Em ambos os casos, a percepção tem uma aparência completamente objetiva, igual a a de um objeto exterior,
demonstrando-se com isto, por partir de uma causa puramente subjetiva (o espectro, que não procede de causa
exterior diretamente), a intelectualidade de toda percepção objetiva. Sobre este fenômeno (advertido por mim
pela primeira vez no ano 1815. o que recordo viva e detalladamente) encontramos nas Comtes rendues de 2 de
Agosto de 1858 um articulo do Seguin, aonde chama a atenção sobre o assunto, como se se tratasse de um
descobrimento, e dá torcidas e falsas explicações sobre o mesmo. Os illustres confréres acumulam em toda
ocasião experimento sobre experimento, e quanto mais complicados, melhor. Experience não mais!, é seu
lema; mas estranha vez encontramos sincera . honrada reflexão sobre os fenômenos observados. Esperience,
experience!, e logo néscias conclusões.
Á os referidos dados subsidiários que servem de comentário a um determinado ângulo visual pertencem, em
primeiro término, as mutationes oculi internae, em virtude das quais o olho acomoda seu aparelho refractor,
aumentando e diminuindo sua refração segundo as diversas distâncias. Entretanto, não está ainda bem
determinado como se operam estas variações fisiologicamente. tentou-se as explicar pelo aumento da
concavidade, seja da córnea, seja do cristalino; mas a teoria mais recente, em seu essência já iniciada pelo
Kepler, e segundo a qual a lente retrocede para olhar os objetos distantes e se adianta para olhar os que estão
perto e na visão lateral acentúa sua convexidade, parece-me a mais provável, pois segundo ela, séria muito
semelhante ao mecanismo dos gêmeos de teatro. Dita teoria se encontra detalladamente exposta no opúsculo do
A. Hueck, Os movimentos do cristalino, 1841. Em todo caso, nós temos, se não uma consciência perfeita de tal
movimento, ao menos certa confusa sensação, e a utilizamos imediatamente para a apreciação das distâncias;
mas estas variações só servem para distâncias compreendidas entre 7 polegadas e 16 pés, dentro das quais se
pode realizar a perfeita visão. Do mesmo modo, só dentro destas distâncias se pode empregar o referido dado
para a apreciação delas.
O segundo dado, pelo contrário, encontra seu emprego no ângulo visual formado pelos dois eixos que já
explicamos na visão singela. Este será menor quanto mais longe estiver situado o objeto, e maior quanto mais
perto se ache este. Esta distinta direção mútua dos olhos não deixa de produzir alguma ligeira sensação, que
não chega, entretanto, à consciência, a não ser quando a inteligência a emprega como dado na apreciação
intuitiva das distâncias. Este dado permite conhecer, não só a distância, mas também o lugar que ocupam os
objetos, mediante a paralaxe dos olhos, que consiste em que cada um dos olhos vê o objeto de uma direção
ligeiramente distinta, pelo qual o objeto parece trocar de lugar quando se fecha um olho. daqui que, quando se
fecha um olho, não se possa facilmente avivar uma vela, porque dito dado falta. Mas quando o objeto está
situado a 200 pés ou mais longe, os olhos se dirigem paralelamente, por isso o ângulo visual falta por completo;
portanto, este dado só é válido dentro da indicada distância. Em auxílio da inteligência vem além disso a
perspectiva do ar, que, pela degradação de tudas as cores, toma o aspecto de azul físico ante os objetos obscuros
(com arrumo à exata e verídica teoria do Goethe), e, pela esfumación dos contornos, delata uma grande
distancia. Este dado é, na Itália, por causa da extremada transparência do ar, extraordinariamente débil; daqui
que nos induza facilmente a engano. Por exemplo, Tivoli, visto desde o Frascati, parece muito perto. Em troca,
durante a névoa, que não é mais que um anormal acréscimo deste dado, todos os objetos nos parecem maiores,
porque a inteligência os julga mais longínquos. Finalmente, fica a apreciação da distância por meio do tamanho
dos objetos interpostos, como campos e rios, percebido intuitivamente. Tal apreciação só pode ter lugar em
relações ininterruptas de objetos; por tanto, só na terra, e não com respeito aos corpos celestes. Em geral,
estamos mais acostumados a empregá-la em sentido horizontal que em sentido vertical; daqui que uma esfera,
colocada sobre uma torre de 200 pés de altura, pareça-nos muito mais pequena que se a colocássemos no chão,
a 200 pés de distância, porque em este caso apreciamos a distância com mais segurança. Sempre que virmos
pessoas, de modo que o que entre elas e nós está situado nos oculte em grande parte, nos parecerão
extraordinariamente pequenas.
Em parte, a esta última forma de apreciação, em tanto é utilizável só para os objetos terrestres e em direção
horizontal, e em parte para a perspectiva ambiente que encontra-se no mesmo caso, terá que atribuir que nossa
inteligência intuitiva,nadireção horizontal, suponha os objetos mais afastados, e, portanto, maiores que em
posição vertical. daqui provém que a lua nos pareça maior no horizonte que em seu ponto de culminação, sendo
assim que seu ângulo visual, e, por tanto, sua imagem na retina, não é maior uma vez que outra, como também
que a abóbada celeste nos pareça achatada, isto é, mais extensa em sentido horizontal que no vertical. Os dois
fenômenos são puramente intelectuais ou cerebrais, não ópticos ou sensitivos. A objeção de que a lua também
em seu ponto culminante pode estar nublada, e, entretanto, não nos parece maior, refuta-se tendo em conta que
tampouco a esta altura nos aparece avermelhada, porque o estar empanada obedece à interposição de espessos
vapores, e, portanto, trata-se de um fenômeno distinto da perspectiva ambiente; como também porque, como já
havemos dito, esta maneira de apreciar só a empregamos em linha horizontal, não em linha vertical, e também
nesta posição entram outras relações. Saussure conta que, estando em Montblanc, viu sair a lua de tão grande
tamanho que, não reconhecendo-a, deprimiu-se de terror.
Em troca, o efeito do telescópio e da lupa se apóia na mera apreciação pelo ângulo visual, isto é, do tamanho
pela distância e da distância pelo tamanho, porque os outros quatro meios de apreciação estão aqui excluídos. O
telescópio realmente aumenta os objetos, parecendo que não faz a não ser aproximá-los, porque o tamanho dos
objetos nos é conhecido empiricamente, e nos explicamos seu aparente aumento de dimensões pela mera
proximidade; assim, uma casa, vista pelo telescópio, não parece dez vezes maior, a não ser dez vezes mais
perto. A lupa, pelo contrário, não aumenta os objetos. mas sim nos faz possível vê-los mais perto do que
poderíamos vê-los sem seu auxílio, e nos parecem do tamanho que teriam vistos a tal distancia sem lupa. A
escassa convexidade da lens não nos permite uma perfeita visão a não ser além dos limites de 8 a 10 polegadas
do olho; mas a convexidade da lupa, aumentando a refração, permite-nos ver com toda claridade um objeto até
à distância de meia polegada. O tamanho correspondente a tal proximidade traduz nossa inteligência pela
distância correspondente na visão simples, isto é, em 8 a 10 polegadas do olho, e determina com arrumo a esta
distância, sob o correspondente ângulo visual, seu tamanho.
Detive-me tão prolijamente neste processo da visão, para demonstrar evidente e irrebatiblemente que a
atividade da inteligência é no mesmo predominante, pois como toda mudança o concebe a inteligência como
efeito e o relaciona com uma causa, reconstrói o fenômeno cerebral do mundo objetivo, apoiando-se na intuição
apriorística do tempo e do espaço, para o qual os sentidos não o proporcionam mais que meros dados. Em
efeito: a inteligência consuma o conhecimento só por meio de sua peculiar forma, qual é a- lei de causalidade,
e, portanto, imediata e intuitivamente, sem ajuda da reflexão, isto é, do conhecimento abstrato, adquirido por
meio de conceitos e vozes, que são o material dos conhecimentos secundários, isto é, da razão. Esta
independência do conhecimento intuitivo da razão e de sua ajuda explica também, que quando uma vez a
inteligência atribui a um efeito determinado uma causa falsa e com arrumo a esta realiza o conhecimento, nasce
a falsa aparência: a razão pode apreciar rectamente os fatos em abstrato, mas não pode desculpar o engano de
a inteligência; por isso, apesar de seu bom emprego, pode subsistir a falsa aparência. Tal aparência enganosa a
constituem, por exemplo, os fenômenos de dobro visão e de dobro tato, já estudados, a conseqüência de uma
má disposição do órgão. Do mesmo modo o é, o maior tamanho aparente da lua no horizonte; deste modo o é a
imagem, como suspensa no espaço, no foco, em um espelho côncavo; o relevo da pintura, que nos parece real; a
borda do rio ou a ponte em que estamos colocados, e que parece andar quando passa um navio; as altas
montanhas, que nos parecem mais próximas do que realmente estão, por causa da falta de perspectiva ambiente,
e que é uma conseqüência da maior diafanidade do ar que rodeia seus topos, e outros mil fenômenos
semelhantes, em todos os quais a inteligência pressupõe a acostumada causa e realiza um conhecimento
enganoso, se bem a razão retifica os fatos por outros meios de que dispõe, mas não pode fazer nada para ir em
auxílio da inteligência intuitiva, inacessível a seus enseñanzás, porque em seu processo é anterior à razão; por
isso a falsa aparência, ou seja o engano da inteligência, subsistirá, embora o engano, ou seja o engano da razão,
pode ser desvanecido. O que a inteligência conhece rectamente é a realidade; o que a razão conhece rectamente
é a verdade, isto é, um julgamento que tem um fundamento: o contrário à realidade é a falsa aparência (ilusão),
e o contrário à verdade é o engano (pensamento falso).
Embora a parte puramente formal da percepção empírica, ou seja a lei de causalidade, com o espaço e o tempo,
reside a priori no intelecto, entretanto, não se dá junto sua aplicação aos dados empíricos, mas sim a obtém só
pelo exercício e a experiência. daqui que os meninos recém-nascidos recebem a impressão da luz e das cores,
mas não percebem realmente os objetos; durante as primeiras semanas permanecem em uma espécie de estupor,
que se dissipa assim que a razão começa a funcionar, empregando os dados dos sentidos, sobre tudo os da vista
e o tato, e quando o mundo objetiva vai penetrando pouco a pouco em seu consciência. Esta penetração se vai
conhecendo na maior inteligência de seu olhar e a maior intenção de seus movimentos, especialmente quando
dão a entender, por seu sorriso, que reconhecem a seus solícitos protetores. pode-se advertir também que,
durante comprido tempo, experimentam com a vista e o tato, quanto à perfeita apreensão dos objetos, sob as
distintas condições de luz, direção e distância, fazendo um verdadeiro estudo repousado, mas sério, até que
chegam a dominar as descritas operações da inteligência, em combinação com os sentidos. Muito mais notório
é esta aprendizagem nos cegos de nascimento que por uma operação recuperam a vista, pois estes relatam o
processo de suas percepções. Desde o célebre cego do Chesselden (sobre o qual achamos o relato originário em
Philosophical transactions, volume 35), o fato se repetiu com freqüência; e se confirmou sempre que estes
indivíduos, que chegam a ver por meio de uma operação, depois dela, vêem, sim, a luz, as cores e os contornos
das coisas, mas não têm perfeito conhecimento dava as mesmas, pois sua razão deve antes aprender a aplicar Á
os dados dos sentidos e às variações das coisas a lei da causalidade. Quando Chesselden viu pela primeira sua
vez quarto, com os objetos que em é1 havia, não distinguia uns de outros, mas sim só tinha uma impressão
total, como de um tudo formado de uma só superfície multicolorido. Não percebia as distâncias dos objetos.
Não via as coisas isoladas. Nestes casos, o tato, que já conhece as coisas, tem que fazer as conhecer a vista,
apresentar-lhe e guiá-la. Não têm nenhum conceito da distância, ao princípio, mas sim jogam mão a tudo. Um
de eles não podia acreditar, quando viu sua casa desde fora, que todas as habitações tão grandes pudessem caber
nela, que lhe parecia tão pequena. Outro estava muito contente quando, várias semanas depois da operação, fez
o descobrimento de que os gravuras das paredes representavam uma multidão de objetos diferentes. Na
Morgenblatt, de 23 de Outubro de 1817, apareceu a notícia de um cego de nascimento, que recebeu a vista aos
dez e sete anos. Teve que exercitar-se no conhecimento das coisas; mas não reconhecia os objetos apreciados
antes pelo tato. O tato teve que fazer conhecer a vista os objetos isoladamente. Mas não têria noção nenhuma
das distâncias, e queria agarrar tudo o que via, acreditando que estava ao alcance de sua mão.
Franz diz em seu livro The eyes a treatise on the art of dreserving this organ in healthy condition, and
improving the sight (Londres, Churchill, 1838), páginas 34-36:
«A definite ideia of distance, ás well ás of form and size, is only obtained by sight na touch, and by reflecting
on the impressions made on both senses; but for this purpose we must take into account the muscular motion
and voluntary locomotion of the individual. Gaspar Hauser57, in a detailed account of his own experience in
this respect states, that upon his first liberation from confinement, whenever hei looked through the window
upon external objects, such ás the street, garden, etc., it appeared to him ás if there were a shutter tire close to
his eye, and covered with confused colours of all kinds, in which hei could recognise or distinguish nothing
singly. Hei says farther, that hei did not convence himself till after me seja teme during his walks out
of doors, that what had at first appeared to him ás a shutter of various colours, ás well ás many other objects,
were in reality a very different things; and that at length the shutter disappeared, and hei saw and recognised
all things in their just proportions. Persons born blind who obtain their sight by an operation in later years
only, sometimes imagine that all objets touch their eyes, and lê sou near to them that they are afraid of
stumbling against them; sometimes they leap towards the moon, supposing that they cão lay hold of it; at other
teme they run after the clouds moving along the sky, in order to catch them, or commit other such
extravagancies. Since
idéias are gained by reflection upon sensation, it is further necessary in all case, in order that an accurate
ideia of objects Mai b formed from the são-se of sight, that the powers of the mind should b unimpaired, and
indisturbed in their exercise. A proof of this is afforded in the instance related by Haslam58, of a boy who had
não defect of sight but was weak in understanding, and who in his seventh year was unable to te estime the
distances of objects, especially ás to the height; hei would extend his hand frequently towards a nail on the
ceiling, or toward the moon, to catch it. It is therefore the judgement which corrects and makes clear this ideia,
or perception of visível objects.»

57 # Feuerbach’s Caspar Hauser, Beispiel eines l’erbrechens am Seelenleben eines Menschen, Ans-pach,
1832, pág. 79, etc.
58 # Haslam: Observations on Madness and Melancholy, 2.a edic., pág. 192.
59 «Uma idéia definida de distância, asi como de forma e tamanho, é obtida somente por meio da
visão e o tato, e pela reflexão sobre as impressões deixadas em ambos os sentidos; mas para este propósito
devemos ter em conta o movimento muscular e a locomoção voluntária do indivíduo.» Traduzido por
nemo11.
“Gaspar Hauser, em um detalhado relato de sua própria experiência respeito a estes estados, narra que depois de
sua primeira liberação do confinamento, sempre que ele olhava através da janela os objetos externos, tal como a
rua, jardim, etc., apareciam ante ele como se houvesse uma persiana muito próxima a seu olho, coberta com
cores confusas de todo tipo, no qual ele não podia reconhecer ou distinguir nada por separado.
O disse posterirormente, que não se convenceu, a não ser depois de algum tempo, logo depois de suas
caminhadas ao ar livre, de que o que havia em princípio aparecido ante ele como uma persiana de várias cores,
asi como tambien muitos outros objetos, e ao tempo que essa persiana desaparecia, e podia ver e reconhecer
todas as coisas em suas justas proporções eram, em realidade, coisas muito diferentes.
Cegos de nascimento que recuperam a visão em anos posteriores por cirurgia, imaginam acostumem que todos
os objetos tocam seus olhos, e que estes permanecem tão próximos a eles que se sentem temer de tropeçar-se;
outras vezes eles saltam para a lua, caso que podem aferrá-la; e outras, correm depois das nuvens que se movem
com o passar do céu para apanhá-las, e assim, outro tipo de extravagâncias. Já que as idéias são obtidas por
reflexão a partir das sensações, é necessário em todos os casos, que, com o proposito de formar uma precisa
idéia dos objetos a partir do sentido da visão, as faculdades mentais estejam intactas, e inalteradas. Uma prova
disto a oferece o relato do Haslam, sobre o caso de um menino carente de todo defeito de visão, mas apressado
por uma debilidade mental, que, até os 17 anos, o fez incapaz de estimar as distâncias aos objetos,
especialmente na direção vertical; o menino estendia freqüentemente suas mãos para cima, tentando tocar
algum objeto no teto, ou para a lua, para uma confirmação fisiológica recebe a teoria exposta da
intelectualidade da percepção na obra do Flourens Da sex et de l’intelligence (segunda edição, Paris, Garnier
Fréres, 1858). Na segunda página, sob a epígrafe de «Oposição entre os tubérculos e os lóbulos cerebrais», diz
Flourens: «É preciso que façamos uma importante distinção entre os sentidos e a inteligência. A seção de um
tubérculo determina a perda da sensação, do sentido da vista; a retina se faz insensível, a íris se paralisa. A
seção de um lóbulo cerebral é compatível com a sensação: conserva o sentido, a sensibilidade da retina, a
mobilidade da íris; não destrói mais que a percepção. No primeiro caso se trata de um fato sensorial; em o
segundo, de um fato cerebral. Em um caso se trata da perda de um sentido; em o outro, da perda da percepção.
A distinção entre percepção e sensação é também um fato importante: está demonstrada palmariamente. Há
dois meios de fazer perder a visão pelo encéfalo: 1.° Pelos tubérculos, que ocasiona a perda do sentido, da
sensação; 2.° Pelos lóbulos, que é a perda da percepção, da inteligência. Pensar não é sentir: hei aqui toda uma
filosofia que arremesso por terra; a idéia não é a sensação, e hei aqui outra prova do vício de origem desta
filosofia.» Mais adiante diz Flourens, na página 77, sob o epígrafe «Separação da sensibilidade e da
percepção»: «uma das experiências realizadas por mim separa precisamente a sensibilidade da percepção.
Quando se extirpa o cérebro propriamente dito (lóbulos ou hemisférios cerebrais) a um animal, este animal
perde a vista; mas com respeito ao olho nada trocou: os objetos continuam pintando-se sóbre a retina; a íris
permanece contrátil; o nervo óptico, sensível, perfeitamente sensível. E, entretanto, o animal não vê: já não há
visão, embora tudo o que é sensação subsiste; não há já visão, porque não há percepção. O perceber, e não o
sentir, é, pois, o primeiro elemento da inteligência. A percepção é parte da inteligência, pois se perde com a
inteligência, e pela separação do mesmo órgão, os lóbulos ou hemisférios cerebrais, e a sensibilidade não
desapareceu, posto que subsiste depois da perda da inteligência e separação dos lóbulos ou hemisférios.
»
Que a intelectualidade da percepção, em geral, já os antigos a haviam compreendido, demonstra-o o célebre
verso do velho filósofo Epicarmo:

(Mens videt, mens audit; caetera surda et caeca).60

(quia affectio oculorum et aurium nullum affert sensum, intelligentia absente),61

e pouco antes diz:

(Stratonis physici ex-stat ratiocinatio, quae «sine intelligentia sentiri omnino nihil posse» demonstrat).
62
Então, é o julgamento quem corrige e faz clara estas idéias, ou a percepção dos objetos visíveis.», que não vê bem.
60 “Só a mente vê e ouça; o resto é surdo e cego.” (Plutarco, Do Fort. Alex. II, 3, 336), tradução
extraída de: Os Presocráticos e seus Fragmentos, Alfredo Planos, Editorial Resgate, fragmento 12, pág. 154.
Plutarco, ao qual entrevista, diz:
61 Plutarco, “De solert. animal.” C. 3. “Pois a afecção de nossos olhos oidos não produz nenhuma percepção, a
menos que vá acompanhada pelo pensamento”.
62 “Stratón, o físico, havia provado que «sem pensamento é impossível perceber»”

Mas logo diz:

(quare necesse est, omnia, quae sentiunt, etiam intelligere, siquidem intelligendo demum sentiamus). 63

Com isto convém um verso do mesmo Epicarmo, que cita Diógenes Laercio (III, 16):

(Eumae, sapientia non uni tantum compelit, sede quacunque vivunt, etiam intellectum habent)64

Também Porfirio se esforça (de abstinentia, III, 21) em demonstrar prolijamente que todos os animais têm
inteligência.

Que este último é verdade deduz-se necessariamente da intelectualidade da percepção. Todos os animais, até o
mais vil, têm inteligência, isto é, conhecimento da lei de causalidade, embora em distinto grau de finura e
claridade; mas sempre, pelo menos, tanta como é necessária para a percepção de seus sentidos, pois sensação,
sem inteligência, séria, não só uma coisa inútil, mas também um cruel dom da Natureza. A inteligência dos
animais superiores não será posta em duvida por ninguém que não dela careça. Mas também é inegável que seu
conhecimento da causalidade é a priori, e não produto do hábito. Um pequeno cachorrinho não se atira de uma
mesa ao chão, porque antecipa o resultado. Há pouco tempo resolvi por nas janelas de meu quarto umas
cortinas que, por meio de um cordão, pudessem correr para os lados; quando executei pela primeira esta vez
esta manobra uma manhã, ao despertar, notei com surpresa que meu inteligente cão, maravilhado, olhava de um
lado a outro investigando a causa do fenômeno, quer dizer, procurando a variação que ele a priori sabia que
havia produzido este novo estado de coisas; o mesmo aconteceu à manhã seguinte.

Mas também os animais inferiores, até os pólipos, sem um órgão especial de sensibilidade, quando chegam, em
seu novelo marinha, a um sítio mais alto, para procurar a luz, subindo com os tentáculos de folha em folha,
demonstram percepção, e, portanto, inteligência.
63 “portanto é necessário que tudo o que perceba deva também pensar, pois estamos constituídos de tal forma
que recebemos por meio do pensamento.”
64 (Diógenes Laercio, III, 16) “Eumeo, a sabedoria não é de uma só classe, mas sim tudo o que vive tem também
entendimento.” Tradução extraída de: Os Presocráticos e seus Fragmentos, Alfredo Planos, Editorial Resgate, fragmento
4, pág. 153.

E destas inteligências inferiores, a do homem, na qual distinguimos nós a razão, só se diferencia no grau, e
todos os graus intermediários os ocupam os diferentes animais, dos quais os mais elevados, como o macaco, o
elefante, o cão, assombram-nos por sua inteligência. Mas sempre o mecanismo desta inteligência consiste na
percepção imediata da relação de causalidade, primeiro, como já se há dito, entre nosso próprio corpo e outros,
de onde procede a percepção objetiva, logo, das relações entre outros corpos. Esta relação de causalidade se
apresenta, como já vimos em anteriores parágrafos, em três-diferentes formas, ou seja: como causa, como
excitação, como motivo, das quais procedem todos os movimentos do mundo que pode conceber a inteligência.
Destes três, sim é a causa, no sentido mais estrito, a que estuda o homem, cria a Mecânica, a Astronomia, a
Física, a Química e inventa máquinas para seu proveito e também para sua destruição; mas todos os seus
descobrimentos repousam, em último término, na percepção da relação de causalidade Pois esta é a forma
única, universal, da função da inteligência, em modo algum a complicado engrenagem das doze categorias
kantianas, cuja insignificância já demonstrei.

Toda compreensão é uma concepção imediata da relação de causalidade, embora logo resolva em conceitos
para concretizar-se. Daqui que contar não seja conhecer, e não proporcione nenhum conhecimento das coisas. O
contar se refere a grandes conceitos abstratos de tamanho, cujas relações recíprocas determinam, mas por elas
não adquire a menor idéia de um fenômeno físico, pois para este se exigiria a intuição da relação especial por
meio da qual obra a causa. As contas só têm valor na prática, não na teoria. Até se está acostumado a dizer:
quando se começa a contar, cessa de obrar a compreensão.

Pois um cérebro ocupado com números é, enquanto conta, totalmente estranho à relação causal do processo
físico; está encerrado em meros conceitos numéricos. O resultado será sempre quanto, nunca, o que. A
experiência e o cálculo, esse estribilho dos físicos franceses, não basta em modo algum. Pelo contrário, se os
estímulos forem o que estuda a inteligência, por meio deles formaremos a fisiologia das novelo e dos animais, a
terapêutica e a toxicologia. Quando, por fim, a inteligência se lança à motivação, não só a utilizará teoricamente
para a Moral, o Direito, a História, a Política e para a Poesia dramática e épica, mas também será um
instrumento prático para domesticar aos animais e até aos homens, atirando habilmente dos fios que movem as
marionetes da comédia social. Quando, logo, emprega a lei da gravidade para construir máquinas por meio da
Mecânica, ou, do mesmo modo, utiliza as inclinações das multidões e dos indivíduos para conseguir seu objeto,
seu função é a mesma. Este emprego prático da inteligência se chamará habilidade, e se envolve engano de
outros homens, artería; se se empregar em objetos frívolos, sutileza, e se se exercita no prejuízo de outros,
dobra. Quando se emprega só em sentido teórico, chama-se simplesmente inteligência; mas, em mais alto grau,
também se chama engenho, capacidade, profundidade, penetração, sagacidade; seu defeito,
em troca, denomina-se estupidez, tolice, necedad, etc. Estes diferentes graus da inteligência são nativos e não
aprendidos, embora o exercício e o conhecimento da matéria são necessários para qualquer assunto, como já
vimos tratando de seu primeiro emprego, isto é, da intuição empírica. O homem mais parvo tem razão: dêem-se
o as premissas, e ele obterá a conclusão; mas a inteligência subministra os conhecimentos primários, por
conseguinte, os intuitivos, e nisto consiste a diferença. Segundo isto, o germe de tudo feliz descobrimento,
como também de tudo grande plano histórico, é o testemunho de um feliz momento, no qual, por circunstâncias
interiores e exteriores favoráveis, iluminam-se, ante a inteligência, séries de causas complicadas, ou causas
ocultas de fenômenos vistos cem vezes, ou caminhos ocultos nunca pisados.
Pela anterior comparação dos processos do tato e da vista, fica demonstrado irrebatiblemente que o
conhecimento empírico é essencialmente obra da inteligência, a qual os sentidos só subministram a escassa
contribuição de suas sensações. Assim que estes têm a missão de proporcionar a aquela, verdadeiro artista, a
matéria prima.
Mas seu procedimento não consiste em outra coisa que em passar dos efeitos às causas, as quais precisamente
por isso nos representam como objetos no espaço. O orçamento necessário aqui é a lei de causalidade, que pelo
mesmo débito ser contribuído à inteligência, pois não chega a ela de fora. É, entretanto, a primeira condição,
para todo conhecimento empírico, a forma em que toda experiência exterior nos apresenta: como, pois, poderia
proceder da experiência, da qual é necessariamente suposto anterior? Precisamente por esta impossibilidade e
por ter suprimido a filosofia do Locke toda a aprioridade, negava Hume a realidade do conceito de causalidade.
Já sentava aquele, em seu Ensaio sobre a inteligência humana, duas falsas hipótese, que se reuniram nestes dias:
uma, que a ação da vontade sobre os membros do corpo, e a outra, que a resistência que os corpos opõem a
nossa pressão, são a origem e o protótipo de conceito de causalidade. Hume negou ambas as coisas a sua
maneira e em sua ordem de idéias. E já digo: entre o ato da vontade e a ação do corpo não há relação alguma
causal, a não ser que ambas as som imediatamente uma e a mesma coisa, que é percebida duas vezes: uma vez
na consciência, ou na sensibilidade interior, como ato da vontade, e outranasensibilidade exterior como
percepção intelectual do espaço, como ação muscular65 . A segunda hipótese é falsa: primeiro, porque, como já
se há dito, uma mera sensação tateante não produz conhecimento algum, e muito menos o conceito de
causalidade: nunca pode brotar este de um mero sentimento, de fadiga corporal, que pode aparecer até sem
causa, e em segundo lugar, porque nossa ação de oprimir um objeto exterior, devendo ter um motivo, pressupõe
já o conhecimento do mesmo, e, por conseguinte, o conceito de causalidade. A independência do conceito de
causalidade respeito de toda experiência, demonstra-se considerando que toda experiência, em todas suas
possibilidades, depende do mesmo, como já demonstrei. Já expor também no parágrafo 23 que a prova que
Kant encaminha no mesmo sentido, é falsa.
Esta é a ocasião de fazer notar que Kant, ou porque não o entendesse assim, ou porque não quadrasse a suas
intenções, esquivou deliberadamente a condicionalidadede toda experiência pelo conceito da lei de causalidade
anterior a toda experiência. Na Crítica da razão pura aparece a relação da causalidade e a percepção, não na
doutrina elementar, a não ser em outro lugar onde não se esperaria encontrá-la, ou seja: no 65 # Veja O mundo
como vontade e como representação, 3,a edic., T. 2.°, pág. 41. capitulo sobre os paralogismos da razão pura, e,
por certo, na crítica do quarto paralogismo da psicologia transcendental, na primeira edição somente, pág. 367.
E ao tratar em dito lugar a questão, demonstra que, no exame desta relação, tem mais em conta o passo da
aparência à coisa em si que a origem da percepção intuitiva. Com arrumo a isso, diz no referido lugar que a
existência de um objeto fora de nós não se dá diretamente na percepção, mas sim é pensado como causa
exterior, e, portanto, deduzido. Mas quem faz isto é, a seus olhos, um realista transcendental, Y. por
conseguinte, está em um engano, pois sob o nome de «objetos exteriores» compreende Kant a coisa em si. Por
e1 contrário, o idealista transcendental se atiene à percepção de uma realidade empírica, isto é, existente fora de
nós no espaço, sem necessidade de apelar a uma causa da apercepción para dá-la realidade. A percepção é, para
o Kant, algo imediato que não necessita a ajuda do elo de causalidade, e, portanto, da inteligência; identifica-a
com a sensação. Demonstra-o, entre outras passagens, a pág. 371, em que diz: «Não tenho necessidade, em
vista da realidade dos objetos exteriores», etc., como também na pág. 372: «pode-se na verdade convir em
que», etc. Destas passagens se deduz claramente que para ele a percepção das coisas exteriores no espaço
precede a todo emprego da lei de causalidade, não considerando a esta como elemento e condição das mesmas:
a mera impressão dos sentidos é para ele a percepção. Só quando se chega ao que se concebe como
transcendental, isto é, à coisa em si, entra em jogo a lei de causalidade. Kant só acredita que a lei de causalidade
pode ser possível na reflexão, isto é, nos conhecimentos ou conceitos abstratos, e não suspeitou no mais mínimo
que o empico da mesma pudesse preceder a toda reflexão, o que, entretanto, acontece indubitavelmente, sobre
tudo na percepção empírica, que sem ela não poderia realizar-se, como demonstra meu irrebatiblemente análise
anterior. daqui que se possa considerar o nascimento da percepção empírica de Kant como escuro: segundo ele,
realiza-se como por um milagre, por mero processo dos sentidos, confundindo-se assim com a sensação. Eu
desejaria que o leitor percorresse por si mesmo as citadas passagens do Kant, para que se convencesse do muito
mais exato que é minha concepção do referido processo. Este conceito kantiano, completamente deficiente,
passou sem protesto à literatura filosófica, porque ninguém ousou lhe tocar, e eu fui o primeiro que tive que
contribuir os elementos necessários, porque era necessário para fazer luz no mecanismo de nosso
conhecimento.
Pelo resto, nada perdeu absolutamente a concepção eminentemente idealista de Kant com minha retificação:
mas bem ganhou, assim que, em minha teoria, o emprego da lei de causalidade, circunscreve-se à sensação
empírica, e não pode ser aplicado à investigação da coisa em si. Se revisarmos minha teoria da percepção
empírica, encontraremos que o primeiro dado da mesma, isto é, a sensação, é um processo completamente
subjetivo orgânico, limitado dentro do corpo humano. Que estas impressões dos sentidos orgânicos, até
admitindo que procedem de causas exteriores, não têm nenhuma semelhança com a natureza destas (o açúcar
não tem nada que ver com o doce, nem a rosa com o vermelho), já o demonstrou minuciosamente Locke. Mas
que estas sensações obedecem a uma causa exterior é conseqüência de uma lei de nosso cérebro; por
conseqüência, não menos subjetiva que a mesma sensação; pois o tempo, primeira condição para que seja
possível toda mudança, é também a condição para que possa aparecer o conceito de causalidade, assim como
também o espaço, que é o que faz possível a existência exterior de uma causa, é, como Kant demonstrou, forma
subjetiva do intelecto. Segundo isto, os elementos da percepção empírica estão em nós, e nada encontramos
nela que indique algo diferente de nós, isto é, uma coisa em si. Mas é mais: sob o conceito de matéria
concebemos aquilo que subtrai nos corpos quando lhes despojamos de suas formas e de todas suas qualidades
especifica, pelo qual deve ser em todos os corpos uma e a mesma. Mas estas formas e qualidades especificas
não são outra coisa que a especial ação dos corpos, que é o que determina sua diferença. Daqui que se
abstrairmos esta matéria, só ficará a mera ação dos corpos, uns sobre outros, isto é, a causalidade mesma,
concebida objetivamente, ou, o que é o mesmo, o reflexo de nossa inteligência, a imagem, projetada ao exterior,
de sua única e universal função, e a matéria será sempre pura causalidade; sua essência será a ação (Veja O
mundo como vontade e como representação, T. I, par. 4, pág. 9, e T. II, págs. 48-49, 3.a edic., i, 10 e 2,52), Por
isso a pura matéria não se pode perceber, a não ser só pensar: acrescenta-a o pensamento Á toda realidade como
seu fundamento. Pois a pura causalidade, a mera ação, sem determinar sua qualidade, não pode dar-se
intuitivamente, por isso não se apresenta à experiência. A matéria é assim, pois, o correlativo objetivo da pura
inteligência; acima de tudo, causalidade, e nada mais; assim como inteligência é o imediato conhecimento de
causa e efeito, e fora de isto não é nada. Por isso a lei de causalidade não tem aplicação à matéria mesma, quer
dizer, a matéria não pode ser criada nem destruída, mas sim é e segue sendo sempre, pois como toda mudança
dos acidentes (formas e qualidades), quer dizer, toda criação e toda destruição, só é possível em virtude da lei
de causalidade, a matéria mesma será pura causalidade, objetivamente considerada; assim não poderá exercer
sobre ela mesma seu poder, como o olho pode vê-lo tudo, menos a si mesmo. Agora bem: substância é idêntico
a matéria, por isso se pode dizer que substância é a ação considerada em abstrato; acidente, uma especial
maneira de ação, a ação em concreto. Estes são, pois, os resultados a que chega o idealismo transcendental, é
dizer, o verdadeiro. Em minha obra principal demonstrei que não podemos chegar a conhecer a coisa-em-si,
quer dizer, o que existe independentemente, fora da representação, pelo caminho da representação mesma, mas
sim por um caminho interior que nos abre a fortaleza, por dizê-lo assim, por meio de uma traição.
Se se comparar agora a reta e profunda explicação que eu dou aqui da percepção empírica em seus elementos,
que nos mostram como totalmente subjetivos; se se a quer, digo, comparar com as algébricas equações
fichtianas do eu e o não - eu; com seus sofistica demonstrações, que necessitam o véu da incompreensibilidade,
e até do absurdo, para enganar ao leitor; com suas explicações a respeito de como o eu resulta do não-eu; em
uma palavra, com tudo esses gracejos da Doutrina da Ciência (melhor, da ignorância)66, verá-se que estas são
uma brincadeira, e nada mais que uma miserável brincadeira. Eu protesto contra toda comunidade com esse
Fichte, como pública e expressamente protestou Kant, em um anúncio especial publicado na folha de anúncios
do Literatur Zeitung, da Jena (Kant, Declaração sobre a «Doutrina da Ciência», do Fichte, 1799, N.° 109).
Embora os hegelianos e ignorantes pelo estilo falem de uma filosofia kant-fichtiana, só há uma filosofia
kantiana e uma lábia fichtiana; esta é a verdade, e seguirá sendo-o, a despeito de todos os preconizadores do
mau e depreciadores do bom, nos que a pátria alemã abunda como nenhuma outra nação.
22

DO OBJETO IMEDIATO

A sensação corporal é, pois, a que proporciona os dados para a primeira aplicação de que é suscetível o
emprego da lei de causalidade, de que nasce a percepção da primeira classe de objetos, que possuem sua
existência só no exercício e pelo exercício desta função intelectual, manifestada nesta forma. Na primeira
edição desta obra chamei o corpo o objeto imediato assim que é o ponto de partida, quer dizer, o mediador para
a percepção de todos os outros objetos, expressão, entretanto, que só pode valer em certo sentido algo
impróprio, pois se bem a percepção de suas impressões é completamente imediata, não se representa ele a se
mesmo, por isso, como objeto, mas sim segue sendo subjetivo, quer dizer, sensação. dele nasce a percepção de
outros objetos como causas das sensações, que logo nos representam como objetos; mas não acontece o mesmo
em quanto se refere ao corpo, quer dizer, ao sujeito, pois só subministra à consciência meras sensações.
Objetivamente, quer dizer, como um de tantos objetos, é conhecido mediatamente, representando-se na
inteligência ou no cérebro (que é o mesmo) como outros objetos, como causa de determinados efeitos
subjetivos, e, pelo tanto, objetivamente; e isto é possível, porque suas partes obram sobre seus próprios
sentidos. Assim os olhos vêem o corpo, as mãos lhe apalpam, etc., e destes dados, o cérebro, ou a inteligência,
reconstrói e se representa sua figura no espaço como um de tantos objetos. A presença imediata das
representações desta classenaconsciência depende, segundo isto, do lugar que ocupam na cadeia de causas e
efeitos que o encadeia tudo, e com relação ao corpo do sujeito cognoscente. 66 # Wissenschaftslehre (doutrina
da ciência), WissenscHaftsleere (falta de ciência), trocadilho intraducibie.—(N. do T.)

23

REFUTAÇÃO DA DEMONSTRAÇÃO DO APRIORIDADE E DO CONCEITO DE CAUSALIDADE


DADA POR KANT

A tese da universal aplicação da lei de causalidade a toda experiência, sau aprioridade e, e sua conseguinte
determinação da possibilidade de toda experiência, é uma afirmação capital da Crítica da razão pura.
Entretanto, eu não posso estar de acordo com a demonstração que ali se faz da aprioridade e de dito princípio.
Em essência, esta demonstração, é a seguinte: «A síntese, necessária em todos os conhecimentos empíricos, da
diversidade, isto é, das mudanças, operada por meio da imaginação, dá a sucessão, mas uma sucessão incluso
no determinada, é dizer, que não determina qual dos dois estados percebidos é o primeiro, não só em minha
imaginação, a não ser nos objetos. A ordem desta sucessão, pelo qual só é verdadeira experiência a percepção,
quer dizer, pelo qual só se podem formular juizos objetivos, só lhe proporciona o conceito puramente
intelectual de causa e efeito. Deste modo, o princípio de causalidade é a condição de toda experiência possível,
e como tal nos é dado a priori» (Veja-se Crítica da razão pura, 1.a edic., pág. 201, e 5.a edic., pág. 246).
Segundo isto, a ordem de sucessão das mudanças de todos os objetos reais é conhecido como objetivo,
certamente, por meio da causalidade. Kant repete e explica esta afirmação na Crítica da razão pura,
especialmente em sau «Segunda analogia da experiência» (1.a edic., pág. 189, e mais completamente na 5.a
edic., pág. 232), e logo, como conclusão de sua «Terceira analogia», a cuja passagem remeto a tudo o que
queira compreender bem o que segue. Afirma ali, em geral, que a objetividade da sucessão de representações, a
qual define como sua correspondência com a sucessão real dos objetos, é-nos conhecida somente pela regra
mediante a qual se acontecem uns aos outros, isto é, pela lei de causalidade. Por tanto, que, pela mera
percepção, a relação objetiva dos fenômenos, que se acontecem uns aos outros, não poderia determinar-se
inteiramente, pois percebendo eu só uma série de representações, e esta serie em mim apreensão, não
autorizaria a deduzir a série no objeto enquanto meu julgamento não se apoiasse na lei de causalidade; além
disso, eu posso conduzir a sucessão de percepções em ordem inversa, posto que não há nada que lhe determine
objetivamente. Para explicar esta afirmação, aduz o exemplo de uma casa cujas partes possam ser observadas
em qualquer ordem, por exemplo, de acima a abaixo ou de abaixo a acima, por isso a determinação da sucessão
seria meramente subjetiva e não se fundaria em nada objetivo, por depender do livre arbítrio. E como exemplo
oposto, propõe o caso de um navio, que defendesse por um rio, ao qual lhe perceberíamos sempre descendendo,
isto é, cada vez mais abaixo no rio, e aqui a sucessão dos lugares que vai percorrendo o navio não poderia ser
variada; daqui que a série subjetiva de sua apreensão tenha sua origem na série objetiva do fenômeno, a qual,
por isso, chama acontecimento. Eu afirmo, pelo contrário, que os dois casos são iguais, que ambos constituem
acontecimentos cujo conhecimento é objetivo, quer dizer, um conhecimento de mudanças de objetos reais,
reconhecidos pelo sujeito como tais. Ambos os som as variações de posição de dois corpos entre si. No
primeiro caso, um deles é o próprio corpo do observador, e, em certo modo, somente uma parte do mesmo, ou
seja: o olho, e o outro, a casa, com respeito a cujas partes a posição do olho variada sucessivamente. No
segundo caso, o que varia de posição é o navio com respeito ao rio; portanto, também se trata de mudança de
posição entre dois corpos. Ambos são acontecimentos: a única diferença é que no primeiro caso a variação
procede do próprio corpo do observador, cujas sensações, por certo, são o ponto de partida de toda percepção
do mesmo, o qual não por isso deixa de ser um objeto entre outros objetos, e, portanto, submetido às leis do
mundo objetivo. O movimento de seu corpo segundo sua vontade é para ele, assim que se refere ao puro
conhecimento, um simples feito percebido empiricamente. A ordem de sucessão dos mudanças pode investir-se,
tanto no segundo caso como no primeiro, se o espectador tem poder para fazer que o navio parta para trás,
como pôde trocar a direção dos olhos. Pois de que a sucessão das percepções das partes da casa dependa de sua
vontade, deduz Kant que não é objetiva nem é um acontecimento. Mas o movimento dos olhos em direção do
telhado aos porões é um acontecimento, e o oposto, dos porões ao telhado, é-o também. Não há nenhuma
diferença, como tampouco a há se eu for para uma fila de soldados ou eles vêm para mim: em ambos os casos
há acontecimento. Se eu, da borda de um rio, Miro a um navio que se aproxima, logo me parecerá que a borda
se move comigo para o navio e que o navio está quieto: o que acontece aqui é que há engano sobre a causa do
movimento, posto que lhe atribuo uma causa falsa; mas, entretanto, eu reconheço a sucessão real de posições
relativas de corpo, com respeito ao navio, e conheço-as reta e objetivamente. Kant, no caso exposto por ele, não
houvesse encontrado diferença se tivesse pensado que seu corpo é um objeto como outros, e que a sucessão de
suas percepções empíricas depende de que a sucessão das impressões de outros objetos, sobre seu corpo, é uma
sucessão objetiva, quer dizer, entre objetos, e tem lugar imediatamente (mas não mediatamente), independente
da vontade do sujeito, por isso pode muito bem ser conhecida, sem que os objetos que obram successive sobre
seu corpo estejam encadeados por uma relação causal.

Kant diz: o tempo não pode ser conhecido; portanto não se pode conhecer como objetiva, empiricamente,
nenhuma sucessão de representações, isto é, que não se pode as distinguir como mudança de fenômenos das
mudanças das representações meramente subjetivas. Só pela lei de causalidade, que é uma regra segundo a qual
os estados se acontecem uns aos outros, pode-se conhecer a objetividade de uma mudança. E o resultado de sua
afirmação seria que não poderíamos perceber nenhuma série, no tempo, como objetiva, fora da de causa e
efeito, e que toda outra série de fenômenos percebida, só por nossa vontade seria determinada de um modo e
não de outro, a tudo isto devo eu opor que os fenômenos se podem acontecer uns aos outros sem resultar uns de
outros, isto é, sem estar unidos pela lei de causalidade. E isto não se opõe à lei de causalidade, pois segue sendo
certo que tudo estado é efeito de outro estado anterior, posto que isso é verdade a priori; mas um estado pode
seguir, não só ao que é sua causa, mas também a todos os outros que são simultâneos a aquela causa, e com os
quais, entretanto, não está ligado por a relação causal. Dito estado ou variação será recebido por mim, não na
série de causas, a não ser em outra série, que não por isso é menos objetiva, e que difere completamente de uma
série puramente subjetiva dependente de minha vontade, por exemplo, dos fantasmas de minha imaginação. A
sucessão de acontecimentos, no tempo, que não estão em relação causal, é o que se chama acaso, palavra que
indica o que simplesmente coincide, o que não está relacionado. Assim dizia Aristóteles: T. s.µßeß.... , de
s.µßa..E... (Veja-se Arist., Anal. post., I, 4.) Saio de minha casa, e me cai uma telha, e me fere: entre minha
saída e a queda da telha não há relação causal alguma. Entretanto, o fato de que minha saída preceda à queda da
telha, em minha inteligência se apresenta como absolutamente objetivo, e não subjetivamente, isto é,
dependente de minha vontade, que tivesse disposto as coisas de outra maneira. Do mesmo modo, a sucessão dos
sons, na música, é uma sucessão objetiva, e não subjetiva, dentro de meu, ouvinte; mas quem dirá que os sons
da música se acontecem segundo a lei de causa e efeito? A sucessão do dia e a noite é conhecida como objetiva
por nós, sem dúvida alguma; mas não se concebem o um como causa da outra, e sobre sua causa o mundo
esteve equivocado até Copérnico, sem que o reto conhecimento de sua sucessão tenha sofrido em nada pelo
descobrimento deste sábio. Com isto fica também refutada, dita seja de passagem, a hipótese do Hume, posto
que a sucessão de dia e noite, por antiga e constante que seja não induziu a ninguém, por virtude do hábito, a ter
ao um por causa da outra.
Kant diz, em outro lugar, que uma representação só nos revela como realidade objetiva (isto é, diferente de
meros fantasmas), porque conhecemos sua necessidade e sua subordinação, com outras representações, a uma
regra (a de causalidade), e seu determinado lugar na ordem de nossas representações, ordem determinada em
quanto ao tempo. Mas de quão poucas representações conhecemos o lugar que a lei de causalidade lhes atribui
na série de causas e efeitos! E, entretanto, sempre podemos distinguir o objetivo do subjetivo, o real do
fantástico. Como no sonho o cérebro está isolado do sistema nervoso periférico, e, portanto, das impressões
exteriores, não podemos estabelecer aquela diferença; daqui que, quando sonhamos, tomemos por objetos reais
os fantasmas, e só ao despertar, é dizer, quando o sistema nervoso estabelece sua relação com a consciência,
reconhecemos nosso engano. E até no sonho, enquanto não é interrompida, a lei de causalidade exerce seu
império; só que o está acostumado a exercer freqüentemente em um assunto inverossímil. Quase pudesse
acreditar-se que Kant, nas passagens citadas, sentiu o influxo de Leibniz, apesar de ser tão oposto a toda sua
filosofia, se se considerar que encontramos afirmações parecidas nos Novos ensaios sobre o entendimento
(livro IV, capítulo II, parágrafo 14). Por exemplo: «A verdade das coisas sensíveis não consiste mais que na
relação dos fenômenos, que deve ter sua razão, e isto é o que lhes distingue dos sonhos..... O verdadeiro
critério, em matéria dos objetos dos sentidos, é a relação dos fenômenos, que garante as verdades de fato com
respeito às coisas sensíveis que se acham fora de nós.» Nesta demonstração da aprioridade e e necessidade do
princípio de causalidade, dizendo que só por sua mediação conhecemos a objetiva sucessão das mudanças, e
que, conseguintemente neste respeito, seria a condição de toda experiência, Kant tem cansado em um engano
tão evidente e altamente estranho, tratando-se dele, que só se pode explicar como conseqüência de aprofundar
muito na parte apriorística de nossos conhecimentos, que lhe tem feito perder de vista o que qualquer vê. A
única demonstração verdadeira da aprioridade e da lei de causalidade a dei eu no parágrafo 21. Esta nos
confirma constantemente pela imperturbável certeza com que cada um de nós, em todos os casos da
experiência, esperamos que esta se realize com arrumo a dita lei, isto é, pela apodicidade com que nós a
supomos, que se distingue das demais certezas fundadasnaindução (por exemplo, a das leis naturais, conhecidas
experimentalmente), em que nos é impossível pensar que a mencionada lei possa ter uma exceção em alguma
parte do mundo da experiência. Podemos imaginar por exemplo, que a lei de gravidade cesse um dia de obrar,
mas não que isto aconteça sem causa. Kant, em sua demonstração, tem cansado no engano oposto ao do Hume.
Em efeito: este considera toda relação de causa a efeito como uma mera sucessão. Kant, pelo contrário, acredita
que não há mais sucessão que a de causa a efeito. A razão pura, em efeito, só pode compreender o resultado;
mas a mera sucessão, assim como a distinção entre direita e esquerda, só é perceptível pela mera sensibilidade.
A sucessão de acontecimentos no tempo pode em todo caso (o qual nega Kant em o lugar chamado) ser
conhecida empiricamente, assim como a relativa posição das coisas no espaço; mas a maneira como um objeto
acontece a outro no tempo é tão difícil de explicar como a maneira como uma coisa seja o resultado de outra:
aquele conhecimento o proporciona e condiciona a pura sensibilidade; este, a inteligência. Mas Kant, ao
declarar que a lógica objetiva dos fenômenos só é cognoscível pelo fio da causalidade, cai no mesmo engano
que reprova ao Leibniz (Crítica da razão pura, 1.a edição, pág. 275, e 5.a edic., pág. 331), ou seja que
«intelectualiza as formas da sensibilidade». Sobre a sucessão é esta minha opinião. A forma do tempo,
pertencente à mera sensibilidade, proporciona-nos o conhecimento da mera possibilidade da sucessão. A
sucessão dos objetos reais, cuja forma é o tempo, conhecemo-la empiricamente, e, por conseguinte,
conhecemo-la como real. Mas a necessidade de uma sucessão de dois estados, isto é, a mudança, só a
conhecemos por a inteligência, aplicando a lei de causalidade; e o ter nós o conceito da necessidade de uma
sucessão, é uma prova de que a lei de causalidade não é nada conhecido empiricamente, a não ser um pouco
dado A priori. O princípio de razão, em geral, é a expressão de uma forma fundamental lhe jazam no mais
íntimo de nossas faculdades cognitivas, que implica uma relação necessária de todos os nossos objetos, isto é,
de todas nossas representações; é a forma universal de todas as representações e a única origem do conceito de
necessidade, que não tem outro contido que a aparição da conseqüência quando seu antecedente se realizou.
Que na classe de representações que agora estudamos, onde aquele princípio se apresenta como lei de
causalidade, este princípio determine a série temporária, procede de que o tempo é a forma destas
representações; de conseguinte, a relação necessária aqui aparecerá como regra de sucessão. Em outros aspectos
do princípio de razão suficiente, a relação de necessidade, que é comum a todas, aparece-nos em outra forma
que não o tempo, e, por conseguinte, não se nos manifesta como sucessão, mas conserva sempre o caráter de
uma relação necessária; de onde a identidade do princípio de razão, em todas suas formas, ou, melhor, a
unidade de raiz de todas as leis, de que é expressão, é manifesta.
Se a refutada afirmação de Kant fosse certa, conheceríamos a realidade da sucessão só por sua necessidade. Isto
pressuporia uma inteligência que pudesse abranger toda a série de causas e efeitos de uma vez; por conseguinte,
uma inteligência onisciente. Kant atribuiu o impossível à inteligência somente, para não necessitar da
sensibilidade.
Como se poderá conciliar a afirmação do Kant, de que a objetividade da sucessão só se reconhece pela
necessidade da relação de causa a efeito, com aquela outra (Crítica da razão pura, 1ª edic., pág. 203, e 5ª edic.,
página 249) de que o critério empírico, para saber qual de dois estados é causa e qual efeito, só é a sucessão?
Quem não vê aqui o circulo de ferro da maneira mais manifesta? Se a objetividade da sucessão só fora
reconhecida pela causalidade, só se a poderia pensar em tanto que causalidade, e não seria mais que
causalidade, pois se fosse outra coisa, teria também outras notas características pelas que poderia ser
reconhecida, o que nega Kant. Por conseguinte, se Kant tivesse razão, não se poderia dizer: « Este estado é
efeito daquele; por conseguinte, segue-lhe», mas sim sucessão e efeito seriam uma só coisa e a mesma, e a
proposição, tautológica. Também receberia confirmação o princípio do Hume, que nega a diferença entre
sucessão e resultado ou conseqüência, considerando toda relação de causa a efeito como uma mera sucessão.
A prova de Kant deveria limitar-se a demonstrar que não conhecemos empiricamente mais que a mera realidade
da sucessão, mas também que conhecemos a necessidade da sucessão em certas séries de movimentos, e até
sabemos, anteriormente a toda experiência, que todo movimento possível deve ter um lugar determinado em
qualquer destas séries; pelo que se segue a realidade da aprioridade e da lei de causalidade, para a qual a prova
exposta no parágrafo 21 é a única verdadeira. Paralela à doutrina de Kant, de que a sucessão objetiva só é
possível e se pode conhecer por seu elo causal, existe outra, ou seja: que a simultaneidade só é possível e se
pode conhecer pela reciprocidade de ação.
Exposta na Critica da razão pura, sob o título de «Terceiro» analogia da experiência», Kant chega até a dizer
«que a simultaneidade dos fenômenos que não condicionam-se reciprocamente, mas sim estão separados por
um espaço vazio, não pode ser objeto de uma percepção» (isto poderia ser uma prova, a priori, de que entre as
estrelas fixas não há espaço vazio), e «que a luz que se move entre nossos olhos e o mundo dos corpos
(conceito que supõe que não só obra a luz das estrelas sobre nossos olhos, mas também estes sobre aquela)
produz uma comunidade entre nós e aqueles, demonstrando assim a simultaneidade de uns e outros». Isto
último é falso até empiricamente, pois o aspecto de uma estrela fixa não demonstra em modo algum que dito
corpo seja simultâneo com o espectador, a não ser, no máximo, que existiu faz alguns anos, e às vezes, faz
milhares de anos. Pelo demais, esta doutrina de Kant vive e morre com a primeira; só que é mais fácil de
penetrar. Não temos que acrescentar mais mas sim a insignificância do conceito de ação recíproca
(Wechselwirkung) já foi demonstrada no parágrafo 20. Com esta refutação da prova de Kant se podem
comparar duas refutações anteriores, ou seja: a do Feder, em seu livro sobre Espaço e causalidade, parágrafo
29, e a do E. Schulze, em sua Crítica da filosofia teórica, T. II, pág. 422. Não sem grande repugnância tive que
combater uma doutrina tida por definitiva, e até reproduzida nas novísimas obra (por exemplo. Fries, Crítica da
razão, T. II, pág. 85), uma das mais importantes daquele homem, cuja profundidade admiro maravilhado, e ao
qual devo tanto e tão importante, que seu espírito parece me dizer, com as palavras do Homero 67 :

24

DO ABUSO DA LEI DE CAUSALIDADE

De nossas anteriores explicações se desprende que se comete abuso no emprego da lei de causalidade quando se
aplica a outra coisa que mudanças no mundo material 67 “tirei que seus olhos o véu de escuridão que antes os
cobria” Extraído e traduzido por nemo11 de: edição eletrônica em imagens da “The Cornell Library Historical
Monographs”, Schopenhauer, On the fourfold root of the principle of sufficient reason, pág 110,.que:
conhecemos empiricamente; por exemplo, às forças naturais, mediante as quais só são possíveis os referidos
mudanças; ou à matéria na qual se produzem; ou à totalidade do mundo, lhe atribuindo uma existência
absolutamente objetiva e não condicionada por nosso intelecto, e em outras muitas ocasiões. Remeto ao leitor
ao dito no mundo como vontade e como representação, T. II, cap. IV, página 42 (3.a edic., II, 46). A origem de
tal abuso é sempre, por uma parte, que se dá ao conceito de causa, como a outros muitos conceitos de
metafísica e moral, muita extensão; e, por outra parte, que se esquece que embora a lei de causalidade é uma
representação que nós contribuímos ao mundo e que nos faz possível a percepção das coisas, não procedemos
acertadamente aplicando tal princípio, nascido do mecanismo de nossas faculdades cognitivas, à ordem eterna
do mundo, que subsiste por si e que é independente de nosso intelecto.

25

O TEMPO DA MUDANÇA

Posto que o princípio de razão suficiente do devir só é aplicável às mudanças, não devemos deixar de advertir
que já os antigos filósofos se perguntaram em que tempo se efetuava a mudança. Em efeito: diziam que não
podia realizar-se enquanto o primeiro estado subsistia, nem tampouco quando já o segundo havia aparecido,
mas que se lhe atribuíamos um tempo intermédio, aconteceria que, durante este tempo, o corpo não se
encontrava nem no primeiro estado nem no segundo, como, por exemplo, um moribundo que não estivesse nem
morto nem vivo, ou um corpo que não estivesse nem em repouso nem em movimento, o qual seria absurdo. As
dificuldades e sutilezas que esta questão engendrou, encontram-se recolhidas em Sexto Empírico, Adv.
mathem., livro IX, 267-271, e Hypot. III, cap. XIV, e também, em parte, no Gelio, lib. VI, cap. XIII. Platão
cortou esta dificuldade bastante cavaliérement, afirmando no Parménides que a mudança tem lugar
repentinamente, e não investe tempo algum; é εξαίφνης (in repentino), ao que ele μη άτοπος φυσις , εν
χρονω ουδέν ούσα, isto é, um estado maravilhoso, sem tempo (que, entretanto, está dentro do tempo).

A perspicácia de Aristóteles lhe estava reservada a resolver esta questão; o que faz fundamental e inteiramente
no livro VI da Física, cap. I-VIII. Sua demonstração de que toda mudança não se realiza repentinamente (o
εξαιφνης de Platão), a não ser progressivamente, e, portanto, investe certo tempo, está fundada na intuição a
priori do tempo e do espaço, mas formulada com grande sutileza. O essencial desta larga demonstração se pode
condensar na seguinte proposição. Confinar uma coisa com outra, quer dizer tocar-se seus extremos exteriores
opostos; por conseguinte, só duas coisas extensas, não duas coisas indivisíveis (porque seriam uma sozinha),
podem confinar; por conseguinte, só linhas, não pontos. Isto se pode fazer passar do espaço ao tempo. Entre
dois pontos sempre haverá uma linha; pois, do mesmo modo, entre dois instantes sempre haverá um tempo.
Pois bem: este é o tempo da mudança, quer dizer, o instante em que um dos estados existe no primeiro
momento atual e em que o outro existe no segundo momento atual. Será, como toda porção de tempo,
imensamente divisível; por conseguinte, o que troca percorrerá um número infinito de graus, pelos quais
passará do primeiro estado ao segundo. Vulgarmente se pode formular o problema deste modo: entre dois
estados sucessivos cuja diversidade fere nossos sentidos, há sempre outros muitos cuja diversidade não chega a
ferir nossos sentidos: não a percebemos, porque o novo estado tem que ter adquirido certo grau ou tamanho
para fazer-se perceptível. Daqui uma série de graus mais débeis ou extensões mais curtas, anteriores, que
percorrem pouco a pouco. Esta série de graus se conhece com o nome de mudança, e o tempo que investem em
realizar-se é o tempo da mudança. Se aplicarmos isto a um corpo que é impulsionado, o primeiro efeito será
certa vibração de suas partes interiores, por meio da qual se propaga o impulso até traduzir-se em movimento.
Aristóteles deduz, muito acertadamente, da infinita divisibilidade do tempo, que tudo o que no tempo está, e,
por conseguinte, toda mudança, isto é, o passo de um estado a outro, pode ser dividido também imensamente, e
que, portanto, tudo o que nasce, realmente procede de infinitas partes; por isso nascerá progressivamente, não
repentinamente. Dos princípios anteriores e da conseguinte paulatina origem de todo movimento, deduz, no
último capítulo de seu livro, a importante conclusão de que o indivisível, e portanto, o mero ponto, não se pode
mover. O qual coincide com a definição da matéria de Kant «o que se move no espaço». Esta lei da
continuidade e progresividade de toda mudança, desenvolvida e demonstrada primeiro por Aristóteles,
encontramo-la exposta três vezes por Kant, ou seja: em seu Dissertatio de mundi sensibilis et intelligibilis
forma, parágrafo 14; na Critica da razão pura, 1.a edic., pág. 207, e 5.a edic., pág. 253, e, finalmente, nos
Princípios metafísicos das Ciências Naturais, ao final das «Observações generais sobre mecânica». Nos três
lugares, a exposição do problema é curta, mas não tão raciocinada como em Aristóteles, com o qual, entretanto,
está, no essencial, conforme; não terá que duvidar de que Kant tenha tomado este assunto direta ou
indiretamente de Aristóteles, embora não lhe cita em nenhuma parte. O princípio de Aristóteles ... est. A......
e..µe.a ta .ou., encontramo-lhe reproduzido no «entre dois momentos há sempre algum tempo», contra o qual se
pode opor: «nem entre dois séculos há tempo algum, porque no tempo, como no espaço, é preciso que haja
sempre um limite puro». Em vez de mencionar ao Aristóteles, quer Kant, na primeira como na segunda das
duas idéias, identificar sua teoria com a de lex continuitatis, do Leibniz. Embora assim fosse, Leibniz teria
tomado a idéia de Aristóteles. Mas esta lei da continuité a expôs Leibniz primeiro (segundo ele mesmo diz, pág.
189 das Opera Philos., ed. Erdmann) em uma carta ao Bayle (ibid, pág. 104), onde lhe chama principe de
l’ordre geral, e dá este nomeie a um raciocínio muito geral e vago, principalmente geométrico, que não tem
nenhuma relação com o tempo da mudança, ao qual o autor não faz referência.

CAPÍTULO V
Da segunda classe de objetos para o sujeito, e forma correspondente do princípio de razão
suficiente.

26

EXPLICAÇÃO DESTA CLASSE DE OBJETOS

A diferença essencial entre o homem e outros animais — a razão, faculdade exclusiva daquele - tem seu
fundamento em que o homem é capaz de uma classe de representações de que não participa o animal irracional.
Esta classe a compõem os conceitos, ou seja, as idéias abstratas, em contraposição das meras percepções, das
quais, entretanto, procedem aqueles. A imediata conseqüência disso é que o animal nem fala nem ri; mas a
conseqüência mediata é todo o muito e grande que separa a vida humana da vida animal, pois pela aparição dos
conceitos abstratos, a motivação recebe também uma forma especial. Embora as ações humanas não sejam
menos necessárias que os atos dos animais, no entanto, a espécie de motivação própria do homem, assim que
consiste em pensamentos que fazem possível a decisão (isto é, o conflito consciente de motivos), substitui os
meros impulsos por ações, propósitos, reflexões, máximas, em correspondência uns com outros, etc., o que faz
que a vida do homem seja tão artística, tão rica em emoções e tão terrível, que neste Ocidente, que lhe
branqueou sua cútis, e onde não a puderam seguir as antigas, profundas e verdadeiras religiões primitivas de
sua pátria, já não conhece seus irmãos, e acredita que os animais são algo fundamentalmente distinto dele; e
para afirmar-se nesta crença, chama-lhes bestas, e aplica nomes injuriosos a todas as funções vitais que com ele
tem de comum, declara-as fora da lei e protesto energicamente contra a evidente identidade de essência entre
ambos. Entretanto, como já havemos dito, toda a diferença consiste em que, além das percepções intuitivas que
já estudamos em anteriores capítulos, das quais participam também os animais, o homem tem idéias abstratas,
quer dizer, representações tiradas daquelas, que alberga em seu cérebro, mais volumoso. Denomina-se a tais
representações conceitos, porque cada um deles compreende um número indefinido de coisas particulares em si,
ou, mas bem, próximo de si, por isso deve ser uma soma delas. Também as pudesse definir como
representações de representações, pois para formá-las, a faculdade de abstração decompõe as representações
intuitivas estudadas nos capítulos anteriores, em suas partes constitutivas, para isolá-las e as poder conhecer
cada uma de por si, como qualidades ou relações diferentes das coisas. Agora bem: durante este processo, as
representações perdem necessariamente sua perceptibilidade, como a água quando se decompõe em suas partes
constituintes, perde a fluidez e a visibilidade, pois toda qualidade, isolada (ou abstraída) deste modo, pode
pensar-se por si só, mas não perceber-se por si sozinha. A formação de um conceito se realiza, em geral,
separando muitas das propriedades de uma percepção dada, para, deste modo, poder conhecer o restante; assim
será algo a menos quão pensado o percebido. Se se consideram diferentes objetos percebidos, separa-se deles
tudo o que têm de diferente e se conserva o que tem que comum em todos eles, isto será o gênero de uma
determinada espécie. Segundo isto, o conceito de gênero será o conceito de cada uma das espécies
compreendidas nele, lhe subtraindo tudo o que não é comum a todas as espécies. Agora bem: todo conceito
possível se pode conceber como um gênero; daqui que seja sempre uma geralização, e, como tal, não pode ser
recebido pelos sentidos. Por conseguinte, há uma esfera aonde se situa todo o pensado dele. Quanto mais
elevada seja a abstração, tantas mais qualidades ou notas se separam, pelo que fica menos que pensar. Os mais
elevados, isto é, os conceitos universais, são os mais isolados e empobrecidos, até chegar a ser meros
envoltórios como ser, existir, coisa, suceder, etc. Por isso, seja dito de passagem, qual profundidade podem ter
os sistemas filosóficos que, partindo de semelhantes noções, compõem-se só de estes ligeiros filmes de
pensamento? Terão que ser imensamente vazios, pobres e terrivelmente aborrecidos.

Posto que, como havemos dito, os conceitos abstratos, ou representações sublimadas e mutiladas, perdem toda
sua perceptibilidade, escapariam completamente da consciência e não poderiam pensar-se se não estivessem
fixados e retidos por signos convencionais que se chamam palavras. Daqui que estas indiquem, assim que
formam o conteúdo dos dicionários, quer dizer, a linguagem, representações gerais, conceitos, nunca coisa
perceptíveis; um dicionário que, pelo contrario, enumera coisas particulares, não contém palavras, a não ser
nomeie próprios, e será um dicionário geográfico ou histórico que refira o que se acha separado pelo tempo ou
pelo espaço, pois como meus leitores sabem,- o tempo e o espaço constituem o principium individuationis.
Precisamente porque os animais se contentam com meras percepções empíricas, e não são capazes de formar
conceitos, carecem de linguagem: mesmo que cheguem a pronunciar palavras, só entenderão por elas nomes
próprios. Que o mesmo defeito é o que exclui deles a risada, demonstra-o minha teoria do ridículo, no primeiro
livro do mundo como vontade e como representação, párr. 13, T. II, cap. VIII.
Se analisarmos o mais largo e conexo discurso do homem mais inculto, encontraremos nele tal riqueza em
formas lógicas, membros, giros, distinções e finuras de todas as classes, corretamente expressos por meio de
formas gramaticais, flexões e construções, com o freqüente emprego do sermo obliquus, dos diferentes modos
dos verbos, etc., tudo corretamente, que, para lhe ouvir, admirarados e lhe supormos dotado de extensa e
profunda ciência; mas a aquisição de tudo isto se operou pela contemplação do mundo sensível, cujos objetos
todos passam a conceitos abstratos, pela função da razão, e se expressam somente por meio da linguagem. Pelo
estudo da linguagem se adquire o conhecimento do mecanismo da razão, é dizer, a essência da lógica.
Manifiestamente, isto não pode fazer-se sem um grande trabalho espiritual e uma grande força de atenção, força
que nos meninos lhes proporciona seu desejo de aprender, que será mais forte naquilo que lhes será útil, e do
qual advertem por si mesmos o conseguinte uso e a necessidade de seu emprego, e mais débil, se se, quer-lhes
obrigar a aprender coisas que não lhes importam. Pela aprendizagem da fala chega o menino a perceber todos
os seus giros e sutilezas, sobre tudo ouvindo uma pessoa mais educada que ele, assim como falando por si só, e
até o menos educado, consegue o desenvolvimento de sua razão e aquela lógica concreta e verdadeira, que não
consiste nas regras abstratas da lógica, a não ser em seu imediato e reto emprego, como um homem de dotes
musicais aprende as regras da harmonia sem necessidade de estudos nem de regras e só pelo emprego do piano.
Referida-a escola lógica por meio da linguagem não pode praticá-la o surdo-mudo; por isso será quase tão
irracional como os animais, se por meio de uma educação artificial, realizada por meio da leitura, não se
substitui esta escola natural.

27

UTILIDADE DOS CONCEITOS

Nossa razão, ou seja, a faculdade de pensar, tem como já havemos dito por fundamento a faculdade de abstrair,
ou seja, a capacidade de formar conceitos; a presença de ditos conceitos na consciência é a que produz tão
pasmosos resultados. O fundamento desta operação é, em essência, o seguinte. Precisamente porque os
conceitos contêm menos em si que as representações de onde se abstraem, são mais fáceis de dirigir que
aquelas, e se relacionam com elas, aproximadamente, como as fórmulas da Matemática com as operações das
quais se obtiveram e às quais representam, ou como o logaritmo com seu número correspondente. Contêm, das
muitas representações das quais se hão tirado, justamente a parte que se tem que utilizar delas; do contrário, se
houvessem de estar presentes na fantasia, essas representações constituiriam um pesado lastro que nos
impossibilitaria a agilidade do pensamento. Mas, mediante o emprego de conceitos, pensa-se só a parte e as
relações destas representações que se necessitam em cada caso. Seu uso, segundo isto, pode-se comparar ao que
arroja uma bagagem inútil, ou ao que opera com quintas essências, em vez de empregar projetos específicos,
por exemplo, com a quinina, em vez da quina. Em geral, o emprego dos conceitos pelo intelecto, ou seja, a
presença deles na consciência é o que realmente se chama pensar, em seu sentido estrito. Também se designa
com a palavra reflexão, empregando uma metáfora tirada da óptica, e que expressa o secundário e derivado
deste modo de conhecimento. Este pensar, esta reflexão, dota o homem daquela qualidade que falta aos
animais, lhe fazendo capaz de pensar, com um só conceito, mil coisas, embora de cada uma só o essencial,
podendo remontar-se sobre as diferenças de todas as classes, inclusive as de espaço e tempo, com o que em
pensamento pode reunir o passado e o futuro, como também o que não se acha presente, enquanto que o animal
está ligado e limitado, em cada momento, ao presente. Esta faculdade de refletir exercitando-se sobre se mesma,
é a raiz de todas as produções práticas e teóricas, pelas quais o homem tanto se eleva sobre os animais: daqui
sua atividade deliberada, sistemática, metódica, em cada trabalho; daqui a colaboração de muitas pessoas para
um fim comum; daqui a ordem, a lei, os Estados, etc. Mas especialmente os conceitos são o material próprio
das ciências, cujo fim pode conceber-se como o conhecimento do particular pelo geral, o qual só é possível pelo
dictum de omni et nullo, e, por conseqüência, pela presença dos conceitos. Daqui que diga Aristóteles:

(absque universalibus enim non datur scientia)68 (Metafísica, XII, cap. IX).

Os conceitos são, pois, aqueles universalia sobre os quais surgiu a longa disputa da Idade Média entre realistas
e nominalistas.

28

REPRESENTANTES DOS CONCEITOS; OS JUIZOS

Não terá que confundir com os conceitos, como já foi dito, os fantasmas, que são representações intuitivas e
completas, quer dizer, particulares, mas não provocadas por uma impressão imediata dos sentidos, e, portanto,
não pertencentes ao complexo da experiência. Mas também se distingue o fantasma dos conceitos, quando se
usa como representante de um conceito. Isto acontece quando quer ter em conta a percepção intuitiva, da qual
se extraiu o conceito em si mesmo, e correspondendo a este, o que é impossível, pois, por exemplo, de cão em
geral, de cor em geral, de triângulo, de número, etc., em geral, não há nenhuma representação, nenhum
fantasma correspondente a estes conceitos; mas em quanto se evoca o fantasma, por exemplo, um cão qualquer,
no qual como representação, deve ser um cão determinado, quer dizer, de tal cor, de tal tamanho, etc., já o
conceito, que representa a idéia de cão, carece de todas estas determinações. Mas ao usar tal representante de
um conceito, já se sabe que o conceito que ele representa não tem estas determinações, mas sim está revestido
de uma série de representações arbitrárias.
Em harmonia com o aqui exposto, se expressa Hume em seu Ensaio sobre a inteligência humana, XII, parte 1.a
para o fim, e deste modo Rousseau em sua obra Sobre a origem das desigualdades entre os homens, parte 1ª,
para a metade. Algo distinto, em troca, ensina Kant, sobre este ponto, no capítulo sobre o esquematismo dos
puros conceitos da inteligência. Só uma intima observação e uma clara reflexão pode resolver o problema. Cada
pessoa investigará, por meio da introspecção, se se representa em seus conceitos um «monograma da pura
imaginação a priori»·, por exemplo, se quando se imaginar um cão, percebe algo entre chien et loup69, ou se,
com arrumo ao aqui exposto, forma-se um conceito puramente abstrato, ou se se imagina um representante do
conceito, isto é, uma imagem acabada por meio da fantasia.
Todo pensamento, no mais amplo sentido da palavra, quer dizer, toda atividade espiritual, em geral, necessita,
ou de palavras, ou de imagens da fantasia; sem uma destas duas coisas carece de toda base. Mas não se
necessitam ambas as coisas de uma vez, embora ambas possam emprestar auxílio mútuo.
O pensar, em sentido estrito, quer dizer, o pensar abstrato, realizado com ajuda das palavras, é, ou um puro
raciocínio lógico, e permanece então em seu próprio terreno, ou toca os limites das percepções intuitivas, para
estabelecer o balanço recíproco e determinar as relações entre os dados da experiência recebidos pela
inteligência e as noções abstratas claramente concebidas pelo pensamento, e possuir assim um conhecimento
completo. Busca então o conceito ou regra a que pertence o intuitivo, ou, pelo contrário, trata de aplicar o
conceito ou regra ao caso empírico correspondente.
Nesta propriedade consiste a faculdade do julgamento, e por certo (depende da divisão de Kant), no primeiro
caso, reflexiva, e em outro, pormenorizada. O julgamento é segundo isto, o mediador entre o conhecimento
intuitivo e o conhecimento abstrato, ou seja, entre inteligência e razão. Na maior parte dos homens é somente
rudimentar; às vezes, somente nominal70; estão destinados a serem dirigidos por outros. Não se deve falar com
eles mais do que o preciso. A percepção, operando com ajuda das representações intuitivas, é a medula de todos
os conhecimentos, porque nos leva a fonte, ao fundamento de todos os conceitos. Daqui que seja o gerador de
todos os pensamentos verdadeiramente originais, de todas as concepções primárias e de todos os inventos,
assim que em eles o acaso não é o que tem feito o melhor. Na percepção, a inteligência é a que funciona
preferentemente, como na abstração pura o é a razão. À inteligência pertencem certas idéias que, vagando pelo
cérebro aqui e acolá, logo se revestem de uma forma, fazem-se evidentes, fixam-se em conceitos e encontram
palavras.
E, até os há (conceitos) que nunca a encontram, e, desgraçadamente, revistam ser os melhores: quae voce
meliora sunt71, como disse Apuleyo. Mas Aristóteles foi mais longe ao dizer que nenhum pensamento pode
existir sem imagens. Suas manifestações neste ponto encontram-se no livro De anima, III, capítulos III, VII,
VIII, como:
68 “pois, sem o universal, não é possível adquirir ciência;” Aristóteles, Metafísica, libero XIII, 1086b - 5, pág.187
69 cão e lobo
70 # Quem isto tuviere por hiperbólico, observe a sorte da doutrina das cores do Goethe; e se maravilha de que se
encontra uma prova deste fato, esta mesma estranheza deverá confirmar minhas palavras.

(anima sine phantasmate nunquam intelligit)72;


E

(qui contemplatur, necesse est uma cum phantasmate contempletur)73;

e o mesmo (De cor, C. I)

(fieri non potest, UT sine phantasmate quidquam intelligatur)74;

estas opiniões impressionaram muito aos pensadores dos séculos XV e XVI pelos quais eram repetidos
freqüentemente e com insistência. Assim diz Pico da Olhando-a (De imaginatione, cap. V): Necesse est, eum,
qui ratiotinatur et intelligit, phantasmata speculari75; Malanchthon (De anima, pág. 130) diz: Oportet
intelligentem phantasmata speculari76, e Giordano Bruno (De compositione imaginum, pág, 10)

Disse Aristóteles: Oportet scire volentem, phantasmata speculari77. Também Pomponazzi (De immortalitate,
págs. 54 e 70) se expressa neste sentido. Agora, pois, pode-se afirmar que tudo verdadeiro e originário
conhecimento, como toda verdadeira filosofia, têm por núcleo ou raiz uma concepção intuitiva. Esta, embora
momentânea e unitária, comunica depois à doutrina, por detalhada que seja, espírito e vida, como uma gota do
oportuno reativo comunica à dissolução as cores do precipitado obtido. Se a doutrina possuir tal medula, será
igual a um bilhete de Banco que tem seu correspondente equivalente em metálico em este; toda outra doutrina
que consista em meras combinações de conceitos será como o bilhete de Banco, que só tem por garantia outros
papéis como ele. Todo discurso meramente lógico ou racional é, pois, uma elucidação daquele, que consiste em
conceitos dados, por isso não cria nada novo, e deveria permanecer abandonado no juizo individual de cada um,
e, em troca, encherem diariamente livros inteiros com muitos desta índole.

72 “Hei aí como a alma jamais intelige sem o concurso de uma imagem.” Aristoteles, Sobre a Alma, Cap. VII,
73 “Daí também que quando se contempla intelectualmente, contempla-se de uma vez e necessariamente alguma
imagem”. Aristoteles, Sobre a Alma, Cap. VIII, 432ª-5, pág. 95
74 “inclusive pensar é impossível, sem uma pintura ou reprodução mental.” Aristóteles, Da Memória e a Lembrança, Cap.
I, pág. 39
75 “necessário é que quem compreende e pense, examine imagens”
76 “necessariamente a inteligência examina imagens”.
77 “necessariamente o conhecimento, examina imagens”.

29

PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE DO CONHECER

Mas tampouco o pensamento, em seu estrito sentido, consiste na presença de meros conceitos abstratos na
consciência, a não ser em um laço ou em uma separação entre dois ou vários conceitos, sob as modificações ou
restrições que estabelece a lógica na doutrina dos juizos. Tal relação de conceitos, claramente pensados e
expressos, recebe o nome de julgamento. Em relação com estes juizos se impõe agora de novo o princípio de
razão suficiente, mas em uma forma distinta das expostas até aqui, ou seja: como princípio de razão suficiente
do conhecer, principium rationis sufficientis cognoscendi; e como tal nos diz que, para que um julgamento
possa expressar um conhecimento, deve ter uma razão suficiente; por causa desta propriedade lhe atribui o
caráter de verdadeiro. A verdade é, pois, a relação de um julgamento com algo diferente dele, que se chama sua
razão, e que, como veremos, é suscetível de uma considerável variedade de formas; mas, entretanto, sempre é
algo em que o julgamento se apóia ou apóia. Por isso a palavra alemã razão (Grund, que significa igualmente
fundamento ou fundo) é tão apropriada. Na língua latina, e em todas as que dela se derivam, o nome de
conhecimento (Erkeuntnissgrund) é o mesmo que o de razão; assim ambos se expressam: rateio, a ragione, a
razão, a raison, the reason. O qual demonstra que no conhecimento do fundamento de um julgamento encontra
sua função mais principal, sua ocupação χατ' εξοχήν, a razão. Este fundamento, pois, em que descansa um
julgamento pode revestir quatro formas, com arrumo às quais varia também a verdade que contém. Expô-las
nos quatro parágrafos que seguem.

30

VERDADE LÓGICA

Um juízo pode ter por fundamento outro juízo. Então sua verdade será lógica ou formal. A questão de se
também contiver uma verdade material, fica por decidir, e depende se o julgamento em que se funda tem
verdade material ou se a série de juízos em que se apóia se refere a uma verdade material. Tal fundamentación
de um julgamento por outro nasce sempre por comparação: isto pode fazer-se, ou diretamente por conversão, ou
por contraposição, ou por adjunção de um terceiro julgamento, e então a verdade surgirá pela relação dos outros
dois. Esta operação se chama silogismo.

Pode efetuar-se por oposição ou por subsunção. Como o silogismo, enquanto fundamentação de um juízo por
outro, com auxílio de um terceiro, sempre se refere a juizos, e estes são relações de conceitos, os quais são o
objeto exclusivo da razão, daqui que o concluir diretamente seja a função característica da razão. Toda a
Silogística não é outra coisa que um conjunto de regras para o emprego do princípio de razão, com relação aos
juizos entre si, isto é, o canone da verdade lógica. Também se consideram como fundados em outro julgamento
aqueles cuja verdade se apóia nas quatro conhecidas leis do pensamento, pois são estes também juizos dos quais
nasce a verdade daqueles. Por exemplo: «Um triângulo é um espaço limitado por três linhas», tem por base o
princípio da identidade, quer dizer, o pensamento expresso por este. Este: «Todo corpo é extenso», tem por
fundamento o princípio de contradição. Este: «Todo julgamento é, ou verdadeiro, ou falso», tem por último
fundamento o princípio de exclusão de terceiro. Por último, este: «Ninguém pode admitir a verdade de um
julgamento sem saber por que», tem por base o princípio de razão suficiente do conhecer. que se aceitem , sem
referi-los primeiro às quatro leis do pensar, como a suas premissas, os juizos derivados delas, no uso habitual da
razão, posto que a maior parte dos homens nem sequer ouviram falar delas, não impede em nada a sua
dependência destas quatro leis; como se alguém diz: «Se tira a aquele corpo seu apoio, cairá», este julgamento,
embora seja possível sem conhecer o princípio de que «todos os corpos são atraídos para o centro da terra», não
por isso é menos dependente dele, como sua premissa. Não estou de acordo com a chamada até aqui pelos
lógicos verdade intrínseca, ou seja a dos juizos que não se apóiam em outros juizos e se só nas leis do
pensamento, para distinguir os de outros juizos que têm por fundamento outros juizos dos que diz-se que
possuem verdade lógica extrínseca. Toda verdade é a relação de um julgamento com algo que está fora dele, e a
verdade intrínseca é um contra-senso.

31

VERDADE EMPÍRICA

Uma representação da primeira classe, isto é, uma intuição adquirida por meio dos sentidos, e, portanto,
experiência, pode ser fundamento de um julgamento: então diremos que o julgamento tem verdade material, e
em tanto que o julgamento se apóia imediatamente na experiência, será uma verdade empírica. Diz-se, em
geral, que um julgamento tem verdade material, quando seus conceitos estão ligados, separados ou modificados
entre si, como o estão as intuições ou representações intuitivas em que se funda. Conhecer a natureza destas é o
fim imediato do raciocínio, por ser, como havemos dito, o mediador entre os conhecimentos intuitivos e os
abstratos ou discursivos, quer dizer, entre a inteligência e a razão.

32

VERDADE TRANSCENDENTAL

As formas intuitivas, residentes na inteligência e na pura sensibilidade dos conhecimentos empíricos, podem ser
como condição para a possibilidade de toda experiência, fundamento de um julgamento, o qual será um
julgamento sintético a priori; mas como um julgamento desta classe terá verdade material, será um julgamento
de verdade transcendental, porque descansará não só na experiência, mas também também nas condições
subjetivas que lhe fazem possível, pois será determinado, pelo mesmo que determina a experiência, ou seja: ou
pelas formas a priori do tempo e do espaço, ou pela lei de causalidade, também conhecida por nós a priori.
Exemplos de tais juizos são as proposições seguintes: Duas linhas retas não podem fechar um espaço; nada
acontece sem causa; 3 X 7 = 21; a matéria, nem nasce nem morre. Realmente, a matemática pura, como
também minha tabela de predicados a priori no tomo II de O mundo como vontade e como representação, como
igualmente a maior parte das proposições de Kant, em seus Princípios metafísicos das Ciências Naturais,
podem ser assinalados como modelos desta classe de verdade.
33

VERDADE METALÓGICA

Por último, as condições formais de tudo pensar residentes na razão, podem ser o fundamento de um
julgamento, cuja verdade será de tal natureza que o melhor modo para designar acredito que é chamá-la verdade
metalógica, expressão que não tem nada que ver com o Metalogicus do Joannes Sarisberiensis, no século XII,
pois este, em seu prólogo, diz:

“Quia logicae suscepi patrocinium, Metalogicus inscriptus est líber”78

e não volta a fazer uso dessa palavra. Desta classe de juizos de verdade metalógica há quatro, há tempo achados
por indução, e aos que se chamou lei de todo pensamento, embora sobre tal expressão e sobre seu número não
estão todos de acordo, mas se sobre o que eles expressam ou indicam. São os seguintes: 1) Um sujeito é igual à
soma de seus predicados, ou a; 2) De um sujeito não se pode afirmar e negar um predicado de uma vez, ou a = -
a = 0 ; 3) De dois pregados contraditórios, um deles deve convir a um sujeito; 4) A verdade é a relação de um
julgamento com algo fora dele, que é sua razão suficiente.
Que estes juizos são as condições de todo pensamento, e, por conseguinte, têm estas por fundamento, podemo-
lo conhecer por meio da reflexão, a qual pudesse chamar uma autoinspección da razão. Ao fazer vãos esforços
para pensar contra estas leis, reconhece-as como condições da possibilidade de tudo pensar; então
compreendemos que, pensar em oposição a tais princípios, é como se queríamos mover nossos membros em
sentido contrário ao jogo natural de seus músculos. Se o sujeito pudesse conhecer-se se mesmo, conheceríamos
imediatamente também aquelas leis, e não por meio de objetos, isto é, de representações. Com o fundamento
dos juizos de verdade transcendental acontece, neste conceito, o mesmo: tampouco chegam à consciência
imediatamente, a não ser em concreto, por meio de objetos, isto é de representações. Imaginemos, por exemplo,
uma mudança sem causa anterior, ou um nascimento, ou uma morte da matéria, e compreenderemos a
impossibilidade disso, e, por certo, compreenderemo-la como uma impossibilidade objetiva, embora suas raízes
residem no intelecto, pois de outro modo, não poderia chegar à consciência por um caminho subjetivo. Em
geral, pode-se assinalar, entre a verdade transcendental e a metalógica, uma grande semelhança e relação
que indica uma comunidade de raiz. O princípio de razão suficiente nos apresenta, acima de tudo, como
verdade metalógica, depois de ter aparecido no capítulo anterior como verdade transcendental, e deste modo no
seguinte revestirá outra forma.
Por isso me esforço neste tratado, para apresentar o princípio de razão suficiente como um julgamento que tem
uma quádrupla razão, e não quatro raízes diferentes que conduzissem ao mesmo julgamento, a não ser uma
quádrupla razão, que eu chamo quádrupla raiz. As outras três verdades metalógicas têm tão grande semelhança
umas com outras, que, ao as examinar, chega-se a tentar as formular com uma expressão comum, como tenho
feito eu no segundo tiro de minha obra capital. Pelo contrário, as verdades derivadas do 78 princípio de razão
suficiente são muito distintas umas das outras. Se quiséssemos encontrar uma imagem para as outras três
verdades metalógicas, entre as verdades transcendentais, seria a de que a substância, quer dizer, a matéria, é
eterna.
34

A RAZÃO

Posto que somente o homem seja capaz de receber as representações consideradas neste capitulo, e como tudo o
que faz sua vida tão diferente da dos animais, com tão grande vantagem para ele, tem seu fundamento, em certo
modo, em sua capacidade para tais representações, tudo isto constitui manifesta e indiscutivelmente aquela
razão que sempre foi elogiada como privilégio do homem, e tudo aquilo que em todos os tempos, e por todos os
povos, foi tido por manifestação ou função da razão, do λόγος, λογιχον, λογιστιχον, rateio, ragione, raison,
reason, palpávelmente parte dos conhecimentos abstratos discursivos, reflexivos, ligados às palavras e
mediatos, mas não aos imediatos, intuitivos, sensitivos, os quais são também patrimônio dos animais. Ciceró
equipasse a rateio e a oratio (De offic., I, 16) muito acertadamente, e a descreve como quae dicendo, descendo,
communicando, disceptando, iudicando, conciliat inter se homines, etc. Também em De nat. deo., II, 7:
Rationem digo, et, se placet, pluribus verbis, mentem, consilium, cogitationem, prudentiam. Também em De
legib.: Rateio, qua uma praestamus beluis, per quam coniectura valemus, argumentamur, refellimus,
disseriimus, conficimus, aliquid concludimus. Neste sentido falaram todos os filósofos, em todos os tempos, da
razão, até o Kant, o qual a considerou como a faculdade dos princípios e as conseqüências; não há mais
remedio que convir em que, ao defini-la deste modo, deu origem a muitas torcidas interpretações dos filósofos
posteriores. Sobre a unanimidade dos filósofos, neste ponto, e sobre a verdadeira natureza da razão, em
oposição às falsificações de seu conceito, pelos professores de filosofia neste século, já falei longamente no
mundo como vontade e representação, tomo I, par. 8.°, como também no Apêndice, páginas 577 a 585 (3.a
edição, páginas 610 a 620), e de novo, tomo II, cap. VI, e, por último, no fundamento da Ética, páginas 148 a
154 (2.a edic., páginas 146 a 151). Portanto, não preciso repetir aqui o dito nesses lugares; mas acrescentarei as
seguintes considerações.
Os professores de filosofia conseguiram substituir o nome dessa faculdade que distingue ao homem de outros
animais, isto é, o pensar, por meio da linguagem, que forma sua reflexão, e com ela a capacidade para todas
suas criações, o nome, digo, que todos os povos e todos os filósofos deram a esta faculdade, e hão deixado de
chamá-la razão para, contra todo o uso da linguagem e do sentido comum, chamá-la inteligência, e a tudo o que
é conseqüência disso, intelectual, em vez de racional, o que soa tão mal quanto um som musical desafinado,
pois em todo tempo e lugar se chamou intellectus, cacumen, perspicácia, sagacitas, etc., é a faculdade intuitiva
estudada nos anteriores capítulos, de modo que intelectual e racional são conceitos completamente diferentes e
que indicam faculdades espirituais distintas. Mas os professores de filosofia não dão seu braço a torcer, pois sua
política exige este sacrifício, e em tais casos dizem: «Tira lá, verdade! Nós temos um fim mais elevado, Tira lá,
in maiorem Dei gloriam, como é seu costume de sempre! Nos pagamentos seus salários? Dá-nos honras? te faça
lá, e te roa as unhas em um rincão!» Necessitavam o nome e o posto da razão para uma nova faculdade,
inventada por eles, que lhes tinha que tirar do apuro em que Kant lhes pusesse; uma faculdade mais imediata,
mais metafísica, isto é, que se eleva sobre toda possibilidade da experiência e consegue penetrar na coisa em si
e suas relações; por isso, acima de tudo, será uma «consciência da Divindade», isto é, que conhece deus
imediatamente e a maneira a priori como criou o mundo; ou se isto parece muito corriqueiro, como, por um
processo vital mais ou menos necessário, há-lhe engendrado de si mesmo; ou, o que é mais cômodo, embora
altamente cômico, como, ao uso dos grandes senhores ao terminar as audiências, por meio de um «lhes retire»,
concedeu-lhe que se eleve e possa partir onde lhe agrade. Para isto último foi preciso a falta de vergonha de um
enganador como Hegel. Semelhantes bufonerías são as que, há cinqüenta anos, sob o nome de conhecimento
racional, hão-se estendido, enchendo cem livros sedicentes filosóficos, e possivelmente ironicamente lhes há
chamado ciência e cientistas até produzir aborrecimento. A razão a qual se imputa impúdicamente toda esta
ciência, é definida como uma «faculdade do suprasensible », ou também «das idéias»; em uma palavra, como
uma faculdade, espécie de oráculo, que reside em nós, de caráter imediatamente metafísico. Respeito ao modo
de perceber desta magnifica e supersensitiva ciência acha-se grandemente divididos, há cinqüenta anos, seus
adeptos. Segundo os mais ousados, tem uma visão imediata do absoluto, ou também, se se quiser, do infinito e
de sua evolução para o finito. Segundo outros, um pouco mais modestos, vai melhor ouvindo que vendo, posto
que não percebe realmente, a não ser só ouça (vernimmt)79, o que em tais «Distraídas» (wolkenkukuksheim)
(νεφελοκοκκυγια) acontece, e logo o conta fielmente à chamada inteligência, a qual, depois, escreve
compêndios filosóficos.
E desta pretendida audição faz derivar Jacobi, por meio de um calembour, o nome da razão, como se não fora
claro como a luz do dia que da linguagem condicionado por ela e da percepção das palavras, em oposição com
sua mera audição, que também a possuem os animais, é de onde procede seu nome. Mas tal desventurado
calembour corre há meio século, e é tido por um pensamento sério e até por uma demonstração, repetindo-se de
boca em boca. Por último, segundo os mais modestos, a razão, nem vê nem ouça; não recebe de todas estas
magnificências, nem o aspecto nem o relato; não tem delas mais que uma vaga adivinhação (Ahndung)80,
palavra da qual desapareceu a d, convertendo-se, por 79 # Do Vernehmen, perceber, ouvir, escutar. —(N.,del
T.) 80 # Como se vê aqui, emprega o autor um trocadilho intraducibie. — (N. do T.) tanto, no Ahnung
(pressentimento), com o qual recebe um matiz de simplicidade que requer imprescindiblemente o gesto ovejuno
com que sabem sublinhar somente os respectivos apóstolos de tal ciência. Meus leitores sabem que eu não uso a
palavra ideia a não ser em seu sentido originário, em seu sentido platônico, como fica explicado detalladamente
no terceiro livro de minha obra capital. Os franceses e ingleses atribuem à palavra ideie, ou idéia, um sentido
muito usual, mas claro e determinado. Em troca, os alemães, quando lhes fala de idéias, sobre tudo se se
pronuncia (Uedähen)81 , começam a perder a cabeça, eles abandona toda mesura, e se encham e se elevam
como globos, sobre tudo nossos adeptos do conhecimento racional. daqui também que o mais impudico de
todos, o conhecido enganador Hegel, chame, sem parar-se em ninharias, a Idéia ao princípio do mundo e de
todas as coisas, com o qual todos eles pensam ter feito algo; mas a os que não se deixam alucinar e perguntam o
que são as idéias, cuja faculdade é a razão, lhes responde ordinariamente com um oco e confuso trocadilho, em
embrulhados períodos de tais dimensões, que o leitor, se não dormir na metade deles, ao terminá-lo, antes se
encontra em estado de torpor que em situação de compreender a explicação dada, se é que não chega a suspeitar
que todo aquilo é pura quimera. Se pretender enquanto isso saber o que são as referidas idéias, em especial, lhe
espetará umas vezes a temata da escolástica, quer dizer, o que desgraçadamente Kant mesmo, como já
demonstrei na crítica de sua filosofia, chama idéias da razão, as apresentando como algo indemonstrável e
teoricamente não justificado; à idéia de Deus, imortalidade da alma, e ao mundo objetivo e seu ordenação, ou
também como variação, Deus, liberdade e imortalidade; outras vezes é o Absoluto, que já assinalamos mais
acima como a prova cosmológica, obrigada a viajar de incógnito; às vezes também o infinito, em oposição ao
finito, o que basta para contentar ao leitor alemão, ao que este trocadilho custa tanto, que só tira limpo o que
«não tem fim» e o que «tem fim». Preferidas são além disso, como supostas idéias, sobre tudo do público
sentimental e cândido, «o bom, o verdadeiro e o belo», embora estas são amplos e abstratos conceitos de mísero
contido, como formados de multidão de coisas e de relações, como outros mil conceitos abstratos. em relação a
seu conteúdo, já demonstrei no párr. 29 que a verdade é uma qualidade própria exclusivamente dos juizos, e,
portanto, uma qualidade lógica; e sobre os outros dois conceitos abstratos, remeto ao leitor, para o um, ao
mundo como vontade e representação, T. I, párr 65, e para o outro, ao terceiro livro da mesma obra. Agora bem:
pronunciando aqueles três pobres vocábulos de uma maneira misteriosa e solene e elevando as sobrancelhas até
a peruca, os jovens se formarão a idéia de que algo prodigioso se oculta sob o nome dessas idéias, cortejo
triunfal da pretendida razão metafísica.
Segundo esta doutrina, possuímos uma faculdade de conhecimento imediata (isto é, que 81 # O UE, igual a ou
francesa, pronúncia viciosa na Alemanha. — (N. do T.) subministra, não só a forma, mas também a matéria)
suprasensible (isto é, além de toda experiência), uma faculdade composta exclusivamente de conceitos
metafísicos e formada com a ajuda destes, que é no que consiste nossa razão; mas permita-se me a descortesia
de chamar a isto um solene embuste, pois a mais ligeira, mas honrada, introspecção, deve persuadir a qualquer
de que não existe em nós semelhante faculdade. daqui se deduz o que os verdadeiros e honoráveis filósofos
puseram em claro em todos os tempos, ou seja: que nossas faculdades cognitivas, inatas, e, portanto,
apriorísticas e independentes de toda experiência, limitam-se à parte formal do conhecimento, isto é, à
consciência das funções próprias do intelecto e da forma possível de sua atividade, funções que precisam
receber a matéria de fora para produzir conhecimentos materiais. Assim nos levar em nós as formas das
percepções exteriores, objetivas, como o tempo e o espaço, e como a lei de causalidade, meras formas da
inteligência por meio das quais esta reconstrói o mundo objetivo, e, por último, também a parte formal dos
conhecimentos abstratos, o qual se expõe na lógica, chamada, por causa disto, por nossos antepassados, a teoria
da razão. Insígnia também a lógica que os conceitos nos que consistem os juizos e as conclusões, dos quais se
derivam as leis, tomam sua matéria e conteúdo dos conhecimentos intuitivos, do mesmo modo que a
inteligência toma a matéria que serve de conteúdo a suas formas apriorísticas da sensibilidade.
Assim, pois, todo o material de nossos conhecimentos, quer dizer, tudo o que não se pode considerar como
forma subjetiva, atividade própria, função do intelecto, e com isso toda a matéria do conhecimento, vem de
fora, quer dizer, das percepções objetivas do mundo corpóreo, que partem das impressões dos sentidos. Este
conhecimento intuitivo, e por seus materiais, empírico, é o que logo a razão, a verdadeira razão, transforma em
conceitos, os quais se fazem sensíveis por meio de palavras, e lhe dão a matéria para suas infinitas
combinações, por meio de juizos e conclusões que formam a malha de nosso mundo intelectual. A razão, pois,
não tem um conteúdo material, a não ser só um conteúdo formal, e este é o objeto da lógica, que, portanto, só
contém formas e regras para as operações do pensamento. O conteúdo material de seus pensamentos deve
tomar a razão de fora, das representações intuitivas que a inteligência cria. Sobre estas exerce seus funções,
formando logo conceitos, tomando algumas propriedades das coisas e deixando outras e unindo as que toma em
um conceito, e embora perdem as representações seu intuitividad, entretanto, seu manejo se faz mais claro e
mais fácil, como já fica demonstrado; esta, e só esta, é a função da razão. Em mudança, não subministra nunca
a matéria por seus próprios meios; não contém mais que formas; é feminina; só concebe, não cria. Não é casual
que nas línguas latinas, corno nas germânicas, a palavra que a expressa seja feminina; em troca, o intelecto é
masculino82.
82 # Como se vê, isto não é exato, pois em castelhano, inteligência é feminino, e assim em outros idiomas. —
(N. do T.)
Quando dizemos: «isto insígnia a sã razão», ou «a razão deve conter as paixões», e outras frases pelo estilo, não
queremos com isso dizer que a razão subministre, por seus próprios meios, conhecimentos materiais, mas sim
se alude aos resultados da reflexão racional, quer dizer, às conseqüências lógicas dos princípios que os
conhecimentos abstratos arrancaram lentamente à experiência, e por meio dos quais podemos prever
claramente, não só a necessidade empírica, a não ser os motivos e conseqüências de nossas ações. Em todas
partes, «racional» ou «razoável» é sinônimo de «conseqüente» ou «lógico», corno também a a inversa, pois a
lógica é um sistema de regras conseqüência da função natural da razão: destas expressões (razoável ou lógico)
são, entre si, como a prática a a teoria. Neste mesmo sentido, entende-se por conduta razoável uma conduta
conseqüente, derivada de conceitos gerais e regida por pensamentos abstratos, por intuitos ou propósitos, e não
determinada pelas impressões passageiras do momento; mas isto não quer dizer nada sobre a moralidade dessa
conduta, que pode ser má ou boa. Sobre isto se encontrarão mais detalhadas explicações em meu Crítica da
filosofia kantiana, pág. 576 (3ª. edic., página 6to), como também nos Fundamentos da moral, pág. 152 (2 a
edic., pág. 149). Os conhecimentos da pura razão são aqueles cuja origem reside na parte formal de nossas
faculdades cognitivas, já sejam racionais ou intuitivas, quer dizer, aqueles que podemos nos representar na
consciência a priori, ou seja sem ajuda da experiência; descansam sempre sobre princípios de verdade
transcendental ou também metalógica.
Pelo contrário, uma razão com ensinos positivos, que proporciona conhecimentos por seus próprios meios a
priori, e, portanto, sobre toda experiência, e que contém idéias inatas, é uma pura ficção dos professores de
filosofia e uma prova da perplexidade em que os pôs a Critica da razão pura. Conhecem estes acaso senhores a
um tal Locke e têm lido suas obras? Possivelmente uma vez, muito tempo há, por em cima, por compromisso,
convencidos de sua superioridade sobre o grande homem, e, além disso, em uma má e mercenária tradução,
pois não vejo eu, e isto clama ao céu, que o conhecimento das línguas modernas aumente na proporção que
diminui o das antigas. Realmente, não têm tempo para ocupar-se destas velhices; no máximo, alguns, muito
poucos, cérebros velhos têm um conhecimento perfeito e fundamental da filosofia kantiana, pois a presente
juventude tem bastante com a obra do «gigantesco Hegel», do «grande Schleiermacher» e do «engenhoso
Herbart». Ai por mim! Ai de minhas cem vezes!, pois precisamente isto é o pernicioso de tais celebridades
universitárias e de seus êmulos e colegas que pintam a a boa, crédula e inexperiente juventude cérebros médios,
meras pacotilhas da natureza, como grandes espíritos, como exceções honrosas da humanidade. Em sua
conseqüência, esta juventude se lança com todo seu vigor ao estudo dos insípidos e intermináveis escritos de
tais gente, e o pouco e precioso tempo de que dispõem para sua educação lhe esbanjam, em vez de lhe
consagrar ao estudo das verdadeiras obras filosóficas, as dessas verdadeiras exceções da humanidade, as quais
são rari nantes in gurgite vasto83, que só aparecem uma vez no curso de um século, pois a natureza as cria uma
só vez e logo «rompe o molde». Também eles, os jovens, amariam-nos se não tivessem sido enganados sobre
seu valor por essa falange de preconizadores do mau em proveito próprio, por essa liga de colegas e compadres
da mediania que em todo tempo faz flutuar sua bandeira inimizade de todo o grande e verdadeiro. Mercê a seus
esforços, a filosofia kantiana, compreendida por nossos pais depois de compridos anos de sérios estudos,
chegou a ser estranha a atual geração, que agora aparece como όνος προς λυραν, e tratam de derrubá-la com
grosseiros e torpes golpes, como os bárbaros arrojavam pedras às imagens dos deuses gregos, estranhos a eles.
Precisamente por esta causa me incumba hoje recomendar aos defensores desta razão intuitiva, que percebe
imediatamente, em uma palavra, que subministra conhecimentos materiais por seus próprios meios; recomendá-
los, digo, como algo novo para eles: o livro, há cento cinqüenta anos conhecido em todo mundo, primeiro da
obra do Locke, que tem por fim rápido combater toda idéia inata, e, em especial, no cap. III do mesmo, os
parágrafos 21 e 26, pois embora Locke vai muito longe em sua negação de toda verdade inata ao estendê-la aos
conhecimentos formais, no que foi mais tarde refutado pelo Kant brilhantemente, tem perfeita e inegável razão
no que se refere aos conhecimentos materiais, isto é, que subministram a matéria.
Já o disse em meu Etica, mas me vejo obrigado a repeti-lo, pois como insígnia o refrão espanhol, «não há pior
surdo que o que não queira ouvir»84: se a razão fosse uma faculdade metafísica que forjasse conhecimentos de
si mesmo, e, segundo isto, superior a toda experiência, deveria reinar sobre o objeto da metafísica e também
sobre o da religião, pois são idêntica coisa, a mesma unanimidade e certeza que reina sobre o objeto da
matemática; assim se algum discrepasse em suas opiniões sobre este assunto, de outros, deveria ser
considerado, para nosso consolo, como extraviado; mas precisamente acontece o contrário: sobre nenhum tema
está a humanidade tão dividida como sobre este. Desde que os homens pensam, por toda parte os sistemas
filosóficos se opõem uns aos outros, e desde que os homens acreditam (o qual data de data mais larga) lutam
entre se as religiões com o fogo e a espada, com a excomunhão e os cánones. Para os heterodoxos havia, no
tempo da fé, não casas de loucos, a não ser prisões inquisitoriais com todos os seus anejos, portanto, também
aqui fala a experiência, alta & irrefutablemente, contra os inventores de essa razão, faculdade de conhecimentos
imediatos e metafísicos, ou, para falar mais propriamente, de inspirações do alto, e que realmente já é tempo de
submetê-la a um julgamento rigoroso, pois, horribile dictu, tão mísero, tão evidente engano, corre, desde faz
meio século, por toda a Alemanha, indo da cadeira aos bancos e dos bancos à cadeira, e até na França encontrou
asilo; mas o bon sens dos franceses logo mostrará a porta a raison transcendentale.

Mas de onde saiu a mentira e como se estendeu a fábula pelo mundo? Terá que confessá-lo: a causa ocasional
foi a Crítica da razão prática, com seu imperativo categórico. Uma vez admitido este, não se necessitava mais
que lhe atribuir uma irmã geme-a, isto é, uma razão que anunciasse do mesmo modo imediato, e, por
conseqüência, ex-tripode, as verdades metafísicas. Nos Fundamentos da Ética descrevi o grande êxito da
empresa, pág. 148 (2.a edic., página 146), por isso a dita obra remeto ao leitor; mas ao mesmo tempo que
declaro que Kant deu ocasião para esta interpretação falsa, tenho que acrescentar que estes senhores a pouco
são dançam. É uma espécie de maldição que pesa sobre o gênero humano inclinar-se sempre ao mau e agarrar,
das obras dos grandes professores, justamente o pior; portanto, isto é o que elogia, e o resto o passa em silêncio.
O verdadeiramente grande e profundo da filosofia kantiana é hoje conhecido de muito poucos, pois com o
estudo atento de suas obras cessou também sua compreensão.
83 “excepcionais náufragos no vasto mar”.
Hoje são lidas só em conceito histórico por aqueles que acreditam possuir a verdade, a todos estes enganadores
da filosofia lhes nota que somente tiraram da filosofia kantiana o exterior, o copo, um ligeiro esquema, tomando
uma frase daqui e outra acolá, mas não penetraram no profundo sentido da mesma. O que melhor agarraram de
Kant foram as antinomias, como algo estranho; depois, a razão prática, com seu imperativo categórico, e, sobre
tudo, a teologia moral, que Kant nunca tomou a sério, pois um dogma teórico de exclusiva autoridade prática é
como a escopeta de madeira, que se põe em mãos dos meninos, sem perigo algum. Também recorda o dito
alemão: «te lave a pele, mas sem molhá-la». Pelo que se refere ao imperativo categórico, Kant não lhe afirma
nunca como coisa positiva; justamente o contrário: protesto repetidamente de que não lhe deve tomar mas sim
como uma alta e admirável combinação de conceitos, porque proporciona uma âncora de salvação para a moral.
Mas os professores de filosofia não se detiveram nunca a estudar o fundamento do problema, de modo que
antes que eu não o estudasse ninguém; em troca, apressaram-se a fundamentar sobre a firme rocha do
imperativo sua «lei moral», que me recorda Mamzelle Larégle85, fazendo dela um pouco tão importante como
as pranchas da lei de Moisés, às quais representa entre eles. Em meu Fundamento da moral pus sobre a mesa de
disección a razão prática, com seu imperativo categórico, demonstrando até não poder mais que nunca houve
nele vida nem verdade alguma, de modo tão concludente, que quisesse eu ver quem era capaz de lhe ressuscitar.
Mas isto não desconcerta aos senhores professores de filosofia: consideram tão indispensável sua «lei moral da
razão prática», como um cômodo Deus ex-machina86 para o fundamento de seu moral e como o livre arbítrio,
pois estes são os dois pontos capitais de sua filosofia de velha, de sua filosofia de roca, e, apesar de lhes haver
atirado meu o golpe de morte, eles seguem as considerando vivas, como se está acostumado a prolongar-se
ficticiamente a vida de um monarca já morto por razões políticas. Contra minha decisiva demolição dessas duas
fábulas, eles usam sua antiga tática: calar, calar e calar; fazem como se eu não existisse, para que o público cria
que o que eu digo não deve nem ouvir-se. Claro: eles foram chamados à filosofia pelo Ministério, enquanto que
eu o fui pela Natureza somente. Esses heróis fazem como a avestruz, esse pássaro que tem opiniões idealistas, e
acredita que, com fechar os olhos, desaparece o caçador. Sim, é certo: segundo os tempos, assim faremos;
sempre, claro, que o público, enquanto se espera minha morte e se arrumam todas as minhas doutrinas de certo
modo, queira conformar com toda essa lábia estéril dos sistemas absolutos e da moral ao uso das escolas
primárias, construídas a gosto desses senhores. Mais tarde se apelará a essas precauções:

“Que a verdade encontre amanhã dispostos a seus amigos, já que hoje gozam de favor e poder os maus.”
(Goethe - W. O. DIVÃ.)

Mas sabem esses senhores em que tempo estão? Uma época anunciada há muito tempo tem chegado: a Igreja
vacila, e vacila tão fortemente, que se pergunta se poderá guardar o equilíbrio, pois a fé desapareceu. Acontece
com a luz da Revelação o que com as demais luzes: necessitam da sombra. O número daqueles a quem certo
grau e extensão de conhecimentos incapacitam para a fé, chegou a ser o bastante considerável. Isto o demonstra
a extensão universal do vulgar racionalismo, que cada vez faz mais visível sua face de bulldog. Os profundos
mistérios do cristianismo, sobre os quais se aconteceram refletindo e discutindo os séculos, estão ameaçados
por sua voracidade. Acima de tudo, o dogma capital do cristianismo, a doutrina do pecado original, nas
vulgares cabeças racionalistas, oferece-se como uma brincadeira infantil; porque nada é para elas mais claro e
demonstrado mas sim a existência de cada qual começa com seu nascimento, por isso lhes parece impossível
que possa chegar ao mundo com culpa alguma. Que sagacidade! E como quando por todas as partes cresce a
miséria e a negligência, os lobos começam a aparecer pela aldeia, assim, nestas circunstâncias, eleva sua cabeça
o já disposto materialismo, com seu cortejo de bestialidade (ao qual chamam certas pessoas humanismo). Com
a incapacidade para a fé, cresce a necessidade do conhecimento. Há um ponto de ebulição na escala da cultura,
onde toda fé, toda revelação, toda autoridade, evaporam-se; o homem quer ser instruído, mas também
convencido. Abandonou já os andarilhos da infância, e quer andar com suas próprias pernas.

85 # É o título de uma poesia do Bürger. — (N. do T.) 86 “deus ex-machina”: expressão latina, que traduz a grega “theós
apó mekhané”, «um deus que sai [a cena] de uma máquina», artefato com que os antigos davam solução a alguma
situação dramática. Atualmente, recurso gratuito a uma teoria, hipótese ou conceito, não devidamente fundamentados,
com a intenção de sair ao passo de alguma dificuldade não prevista e resolver uma situação.

Mas, ao mesmo tempo, sua necessidade metafísica (O mundo como vontade e representação, T. II, cap. XVII) é
tão indestrutível como qualquer outra necessidade física. Assim, pois, vai à filosofia; a necessitada humanidade
invoca a todos os espíritos pensadores que saem de seu seio. Já não se contenta com ocos palavrórios, nem com
impotentes esforços de espíritos eunucos, mas sim necessita uma filosofia seriamente pensada, isto é,
encaminhada, não a obter honras nem pagamentos, que não pergunte se for do agrado dos ministros ou dos
conselheiros, ou se quadra bem às lábias de tal ou qual partido da Igreja, mas sim demonstre que seu fim é
outro que constituir um recurso para os pobres de espírito.
Mas voltemos para nosso tema. Ao oráculo prático que Kant atribui à razão falsamente, foi-lhe agregado outro
teórico, por meio de uma amplificação. A honra deste achado corresponde ao F. H. Jacobi. Deste homem
receberam os professores de filosofia o mais valioso presente: veio-lhes a tirar do apuro em que lhes pusesse
Kant. A fria, sóbria e superior razão que Kant criticou tão cruelmente, foi degradada à categoria de inteligência,
e conservou este nome: o nome de razão foi aplicado a uma faculdade completamente imaginária, própria da
credulidade dos alemães, e em que se abriu um portinha ao mundo supralunar ou sobrenatural pelo qual se
poderiam perceber as verdades, para adquirir as quais tinha trabalhado inutilmente a antiga razão passada de
moda. E sobre tal faculdade, completamente falsa, e, por dizê-lo assim, apoiada no ar, jogaram os alicerces de
sua filosofia: primeiro, como uma livre construção e projeção do eu absoluto e de sua emanação para o não-eu;
logo, como percepção intelectual da identidade ou indiferença absoluta e sua evolução para a natureza, ou
também da formação de um Deus de seu escuro fundo, ou sem fundo, ao Jacobo Böheme, e, finalmente, como
pura autopercepção da idéia absoluta e cenário de Ballet do automovimento dos conceitos, e junto também
como percepção imediata do Divino, do suprasensível, de Deus, da Beleza, da Verdade, da Bondade e de todo o
resto que pode agradar aos inocentes, ou também como mero pressentimento (Ahnen, sem d) de todas estas
magnificências.

É isto a razão? Não: são poses que os professores de filosofia, encurralados pela crítica de Kant, têm que
empregar para per fas aut nefas, apresentar a religião do país como filosofia.

Em efeito: a primeira obrigação de todo professor de filosofia é fundamentar filosoficamente e pôr ao casaco de
toda aduela a doutrina de um Deus criador e governador do mundo, de um Deus pessoal, individual, dotado de
inteligência e vontade, que há criou tudo do nada e o conserva por meio de seu alto poder, ciência e bondade.
Isto coloca ao professor de filosofia em uma posição bem equivoca com respeito à verdade filosófica. Em
efeito: Kant apareceu, escreveu a Crítica da razão pura faz já mais de sessenta anos, e o resultado da mesma foi
que todas as provas que no curso dos séculos cristãos se forjaram sobre a existência de Deus, que se reduzem a
três, não enchem já seu objeto, e se demonstrou a impossibilidade de tais provas, e com ela, a impossibilidade
de toda especulação teológica, e isto não com os galimatías do Hegel, a não ser diretamente, segundo a antiga
tradição filosófica, de tal modo que há sessenta anos, por muito molesto que isso seja para alguns, nada se pôde
objetar formalmente a isso, de modo que a prova da existência de Deus ficou sem crédito e em desuso. E mais:
até estes mesmos professores de filosofia, do advento de Kant, afetaram um completo menosprezo por estas
provas, dando a entender que a coisa se compreende por si mesma e é ridículo querer demonstrá-la. Caramba!
Se o tivesse sabido antes a humanidade, não se tivesse quebrado a cabeça durante séculos inteiros para forjar
estas provas, nem Kant tivesse jogado sobre elas todo o peso de sua filosofia para destruí-las! Este menosprezo
recorda a fábula das uvas e a zorra. Quem quiser ver uma prova disso, a encontrará muito característica nos
Escritos filosóficos de Schelling, T. I, 1809, pág. 152. Enquanto que outros se consolavam com a afirmação de
Kant de que não se pode provar o contrário, quer dizer, a não existência de Deus (como se o antigo refrão de
affirmanti incumbit probatio fosse desconhecido), até que chegou a eles, como uma âncora de salvação, o
célebre achado do Jacobi, que serve aos sábios alemães deste século para fabricar uma nova razão, da qual até
agora os homens nada tinham ouvido e nada sabiam.
E, entretanto, não eram necessários todos estes caminhos extraviados, pois a existência de Deus não sofria nada
por sua indemostrabilidade, já que está sustentada em um terreno mais seguro e indigesto. Este terreno é a
Revelação, tanto mais seguro quanto que é patrimônio exclusivo do povo judeu, pois é de notar que a idéia de
um Deus pessoal, criador e governador do mundo, só a encontramos no judaísmo e nas duas seitas em que, em
sentido extenso, podemos dizer que este se divide, mas em nenhuma outra religião de nenhum outro povo
antigo nem moderno, e a ninguém ocorrerá-lhe confundir aquele à Brahma dos Hindus, que em mim e em ti e
em meu cavalo e em seu cão sofre e vive, ou à Brahma que nasceu e morreu para dar lugar a outros Brahmas, e
ao que se reprova como um pecado a criação do mundo88, como tampouco ao voluptuoso filho do enganado
Saturno, ao que anunciou Prometeo sua queda com Deus Nosso Senhor. Se considerarmos a religião que mais
adeptos têm no mundo, e, por conseguinte, a que professa a maior parte de a humanidade, por isso se pode ter
pela mais importante, isto é, o buddhismo, não nos ocultará que esta, ao mesmo tempo em que é rigorosamente
idealista e ascética, é completamente ateísta, tanto que seus sacerdotes condenam expressamente o teísmo.
Daqui que, como nos referem as Asiatic researches (vol. VI, pág. 268), o supremo sacerdote do buddhismo na
Ava, em uma Memória que entregou a um bispo católico, enumerava, entre as seis heresias condenadas, a
doutrina de «um Ser que há criado o mundo e todas as coisas, e seja o único digno de ser adorado». Por isso diz

“If Brimha be unceasingly emploayed in the creation of worlds....., how can tranquillity be obtained by inferior arder of
being?”

Também J. J. Schmidt 89, na qual considero como o que mais a fundo conhece o buddhismo na Europa, em seu
escrito sobre «O parentesco do gnosticismo com o buddhismo», pág. 9: «Nos escritos dos buddhistas falta toda
indicação ou referência a um Supremo Ser, princípio da Criação, e parecem fugir deste assunto quando a
questão se apresenta lógicamente.» Em suas investigações sobre a antiga cultura do Ásia Central, pág. 180, diz
o mesmo escritor: «O sistema do buddhismo não conhece um Ser eterno, increado, divino, existente antes de
todos os tempos, e que tenha criado o visível e o invisível. Esta idéia lhe é completamente estranha, e não se
encontra nos livros búddhicos o menor rastro dela. Do mesmo modo, tampouco falam de uma criação: certo que
o mundo visível teve um princípio, mas foi do vazio, e segundo leis naturais e indestrutíveis. Mas se
equivocaria quem acreditasse que os buddhistas consideravam algo, já fora o acaso ou a natureza, como
princípio divino, antes bem, justamente o contrário, pois justamente este desenvolvimento do mundo de um
espaço vazio, este precipitado do mesmo ou destruição em partes, esta matéria nascente, é precisamente o mal
que pesa sobre o Jirtintschu ou universo, em suas relações interiores e exteriores, do qual o Ortschilang ou
constante mudança nasceu, segundo leis imutáveis, fundadas pelo referido princípio do mal. Igualmente diz o
mesmo em sua conferência na Academia do Petersburgo de 15 de Setembro de 1830, página 26: «A palavra
criação é desconhecida do buddhismo assim que significa o nascimento do mundo», e pág. 27: «Terá que
considerar que em seu sistema não existe a menor ideia de uma criação divina primitiva.» Pudessem citar-se
outras mil provas deste gênero: só quero fazer insistência em uma, por ser popular, ou melhor, dito, oficial. Em
efeito: o tomo III da instrutiva obra buddhista Mahavansi, Rajaratnacari and Rajavali from the Singhalese, by E.
Upham, Lond., 1833, contém o interrogatório oficial, traduzido da ata holandesa, que em 1766 o governador
holandês do Ceilán efetuou com os supremos sacerdotes das cinco principais pagodes, particular e
sucessivamente. O contraste dos interlocutores, que não se podiam entender apenas, é extremamente cômico.
Os sacerdotes, com arrumo às leis de sua religião, cheios de amor e compaixão para todas as criaturas vivas,
embora fossem governadores holandeses, tratavam com a melhor vontade de responder a todas as perguntas que
lhes dirigiam; mas o cândido e inocente ateísmo do piedoso e moderado supremo sacerdote estava em conflito
com o convencido e nativo judaísmo do governador. A fé do holandês é nele uma segunda natureza, e sem
poder convencer-se de que aqueles eclesiásticos não eram deístas, voltava a perguntar repetidas vezes pelo Ser
supremo que criou o mundo, etc.; mas aquelas gente não acreditavam que houvesse mais Ser supremo que o
vitorioso Shakya Muni, filho de reis, que viveu como mendigo, e que até o fim de sua vida pregou sua doutrina
para salvar à humanidade, para nos salvar a todos da miséria da eterna transmigração.
Se Brahma estiver incesantemente ocupado em criar mundos, como os seres de natureza inferior poderiam estar
tranqüilos? (Prabodh, Chandro, Daya, tr. by J. Tailor, pág. 23). Brahma forma parte também da Trimurti, que é
a personificação da natureza, como procriação, conservação e morte, representando à primeira.
Mas o mundo não tinha sido feito por ninguém 90: criou-se a si mesmo (self-created); a natureza se desenvolve
e se absorve de novo, mas ela é aquilo que, existindo, não existe, é o cortejo necessário da reencarnação, e esta
é a conseqüência, a sua vez, de nossa vida pecadora, etc.; e assim seguem largas conversações. Menciono tais
feitos principalmente, porque é realmente escandaloso que até hoje, nos escritos dos sábios alemães,
identifiquem-se absolutamente os conceitos religião e deísmo como idênticos ou sinônimos, sendo assim que o
conceito de religião é ao de deísmo como o gênero à espécie, e realmente só são verdadeiros os sinônimos
judaísmo e deísmo; daqui também que a todos os povos que não são judeus, cristãos ou maometanos,
estigmatizemo-lhes com o nome comum de pagãos. É de se notar que os judeus e maometanos reprovam que os
cristãos não são verdadeiros deístas por causa de sua Trindade. Também se pode dizer que o cristianismo tem
sangue da Índia no corpo, e daqui sua constante inclinação a sacudir o judaísmo. Se a crítica de Kant, que
constitui o mais formidável ataque contra o deísmo - por isso os professores de filosofia se apressaram a deixar
a de lado - tivesse aparecido nos países buddhistas, a tivesse considerado, segundo se desprende das anteriores
referências, como um tratado edificante contra as heresias e uma saudável confirmação da doutrina ortodoxa do
idealismo, quer dizer, da mera existência aparente do mundo, que recebemos por meio de nossos sentidos.
Precisamente, tão ateísticas como o buddhismo são as outras duas religiões que se repartem o Império chinês: a
do Tseo-ssé e a do Confucio; daqui que os missionários não tenham podido traduzir ao chinês os primeiros
versos do Pentateuco, porque esta língua não tem nenhum vocábulo que expresse as idéias de Deus e Criação.
O missionário Gusstlaf, em sua História do Império chinês, diz nobremente na pág. 18:
«É extraordinário que nenhum dos filósofos chineses, apesar de possuirem a luz natural em alto grau, eleve-se
às idéias de um Deus e de um Criador.» Completamente de acordo com isto, J. F. Davis (The Chinese, cap. XV,
pág. 156), citando ao Milne, o tradutor do Shing-yu, diz que desta obra resulta: That the bare light of nature, ás
it is aided, even when aided by all the light of pagam philosophy, is totally incapable of leading men to the
knowledge and worship of the true God»91.

Tudo isto confirma que o fundamento universal do teísmo é a Revelação, como deve sê-lo, pois se não a
Revelação sobrava. Tem que notar-se agora que a palavra ateísmo envolve uma captação, porque implica que o
deísmo é o que se por acaso mesmo impõe-se à inteligência. Em vez disto, devia-se dizer a-judaísmo, e em vez
de ateu, a-judeu; e isto séria o correto.

(Plut., De anima; procreatione, cap. V.)

“Nem um Deus, nem um homem criou este mundo, diz Heráclito”


“a luz natural é tão escaza, que até sendo ajudada, com o melhor da luz das filosofias pagãs, resulta incapaz de
conduzir ao homem ao conhecimento e à comunicação com o Deus verdadeiro”.

Posto que, como fica demonstrado, a existência de Deus é assunto da Revelação, e, portanto, está firmemente
fundada nela, não necessita da fé dos homens. A filosofia é, pois, unicamente um esforço ocioso e supérfluo
para abandonar as suas próprias forças à razão humana, à maneira que se tira de um menino os andarilhos para
que se entregue a suas próprias forças e aprenda a andar, e o ver o que acontece a tais provas e ensaios, chama-
se especulação; do qual se deduz que na natureza está que a razão renegue toda autoridade divina e humana e
procure a sua maneira a solução dos mais importantes problemas do pensamento. Se, já neste terreno, seus
resultados não são outros que os obtidos por Kant, não por isso têm que renunciar a toda probidade e
escrupulosidade para vagar como um pícaro, até voltar para terreno judáico, como seu conditio sine que non;
antes ao contrário, tem que procurar a verdade por diferentes caminhos, mas sem guiar-se nunca por outra luz
que a da razão, caminhando tranqüilamente e sem preocupações, como quem cumpre seu dever. Se nossos
professores de filosofia compreendem a coisa de outra maneira, não poderão comer seu pão com honra até que
não tenham colocado a Deus Nosso Senhor (como se ele necessitasse deles) em seu trono. Já está, com isto,
explicado por que eu não sou de seu gosto, por que eu não sou seu homem, pois realmente eu não posso servir
com eles, nem posso compartilhar sua nova explicação do bom Deus.

CAPÍTULO VI
Da terceira classe de objetos para o sujeito, e a correspondente forma do princípio de razão
suficiente.

35

EXPLICAÇÃO DESTA CLASSE DE OBJETOS

A terceira classe de objetos para a faculdade representativa constitui a parte formal da representação total, quer
dizer, as intuições a priori das formas da sensibilidade interior e exterior, o tempo e o espaço. Como puras
intuições, em si, e separadas da representação total, e suas respectivas determinações do espaço cheio ou vazio
som objeto da faculdade representativa, pois o ponto e a linha, que não podem ser representados, podem ser
percebidos a priori, como também a extensão infinita e a divisibilidade do espaço e do tempo podem ser objeto
da pura intuição, sendo estranhos à percepção empírica. Que esta classe de representações, nas que tempo e
espaço são percebidos intuitivamente, difere da primeira classe em que são percebidas empiricamente e em
conjunto, é a matéria que expliquei, por um lado, como percepção do tempo e do espaço, e por outro, como
objetivação da lei de causalidade. Pelo contrário, a lei de causalidade não chega por si só, e separada, a ser
objeto da faculdade representativa, a não ser unida a um conhecimento material e com ocasião de este.

36

PRINCÍPIO DE RAZÃO DO SER

A natureza do espaço e do tempo implica que cada uma de suas partes está em relação com a outra, de modo
que cada uma delas está determinada e condicionada por outra. No espaço, esta relação se chama lugar, e no
tempo, sucessão. Estas relações são características, distintas essencialmente de todas as demais relações
possíveis de nossas representações, por isso nem a razão nem a inteligência podem as perceber por meio de
meros conceitos: única e somente a pura intuição a priori nos faz isso inteligível, pois abaixo e acima, à direita e
à esquerda, detrás e diante, não se faz inteligível por meros conceitos. Kant diz, em consonância com isto, que a
diferença entre a luva da mão esquerda e o da direita, não podemos compreendê-la, mas sim por meio da
intuição. Agora bem: esta lei, segundo a qual as partes do espaço e do tempo se condicionam umas a outras, a
denomino princípio de razão suficiente de ser, principium rationis sufficientis essendi. Já demos no parágrafo
15 um exemplo desta relação no elo entre os lados e os ângulos de um triângulo, e ali se demonstra que esta
relação é completamente distinta da de causa e efeito e da de princípio e conseqüência, pelo que aqui se pode
chamar a condição fundamental rateio essendi. Compreensível é se por acaso mesmo que o exame de tal
princípio do ser pode chegar a ser princípio de conhecimento, como o exame da lei de causalidade, e seu
emprego em um determinado caso, é princípio de conhecimento do efeito, pelo qual não desaparece em nenhum
modo a diferença entre a razão do ser, do devir e do conhecer. Em muitos casos, aquilo que, segundo uma
forma de nosso princípio, é conseqüência, segundo outra forma, é razão; assim é muito freqüentemente
princípio da causa o efeito. Por exemplo: a ascensão da coluna termométrica é, com arrumo à lei de
causalidade, efeito do aumento de calor; segundo o princípio de razão do conhecer, é princípio, princípio de
conhecimento do aumento de calor, como também do julgamento que expressa esta idéia.

37

RAZÃO DE SER NO ESPAÇO

No espaço, a situação de cada parte do mesmo, digamos de uma linha (e o mesmo se pode dizer de superfícies,
de corpos e de pontos) com respeito a outra linha, fixa ao mesmo tempo rigorosamente sua posição diferente
por completo da primeira, respeito de toda outra possível, de modo que a última situação está, com em relação à
primeira, em relação da conseqüência com a razão, e como esta relação se pode investir, claro que é indiferente
qual delas determina à outra, isto é, qual se toma como ratio e qual como rationata; mas isto acontece porque
no espaço não existe sucessão, posto que, pela reunião do espaço com o tempo, para formar o complexo da
experiência, surge a idéia de simultaneidade. Assim, pois, na razão do ser no espaço reina uma Analogon da
chamada ação recíproca, pelo que devemos nos referir ao que expor, sobre a reciprocidade das razões, no párr.
48. Agora bem: como cada linha, em relação a sua situação, tanto determina a todas as demais como é
determinada por elas, seria arbitrário considerar uma linha só como fixando a posição das demais e não como
fixada por si mesmo, e a posição de cada linha, com relação a uma segunda, permite procurar sua posição com
relação a uma terceira; esta segunda posição faz com que a primeira seja necessariamente tal qual é. Daqui que
na cadeia da razão de ser, como na cadeia do princípio do suceder, não se encontre nenhum fim a parte ante, e
por causa da infinitude do espaço e das linhas não possíveis, tampouco a parte post. Todos os espaços relativos
possíveis são figuras, porque são limitados, e todas estas figuras têm, por causa de sua comunidade de limites,
seu princípio do ser umas em outras. As séries rationum essendi, no espaço, estendem-se como as séries
rationum fiendi, in infinitum, e não só, como estas, em uma direção, a não ser em todas. É impossível dar uma
demonstração de tudo isto, pois são princípios da verdade transcendental, tendo sua razão na intuição a priori
do espaço.

38

RAZÃO DO SER NO TEMPO - ARITMÉTICA

No tempo, todo momento é condicionado pelo anterior: tão simples é aqui a razão do ser, como que é lei de
sucessão, porque o tempo só tem uma dimensão; por isso não pode em 61 dar-se variedade de relações. Cada
momento é determinado pelo anterior: só por este podemos chegar àquele, e só em tanto que o primeiro
desapareceu, nasce o segundo. Neste elo das partes do tempo está apoiada a numeração e as palavras que
emprega esta, só servem para marcar cada passo da sucessão; por conseguinte, toda a aritmética não é outra
coisa que uma abreviação metódica da numeração. Cada número supõe o anterior, como seu razão de ser; não
posso chegar aos 10 a não ser passando antes por todos os anteriores, e só pelo conhecimento de sua razão do
ser sei que no 10 estão contidos, o 8, o 6 e o 4.

39

GEOMETRIA

Igualmente, no elo da situação das partes do espaço, apóia-se toda a geometria. Seria, pois, um exame desse
elo; mas como já se foi dito que este conhecimento não pode formar-se só com conceitos, mas sim necessita de
intuições, assim, toda proposição geométrica deve referir-se a estas, e só nisto consiste a demonstração: em
fazer evidente o elo recebido pela intuição; não pode ir mais longe. Entretanto, encontramos que o método da
geometria é outro completamente distinto. Só os doze axiomas do Euclides descansam na mera intuição, e, em
realidade, destes, propriamente só o nono, o onzavo e o dozavo, sobre intuições diferentes e separadas; todos
outros se apóiam na idéia de que na ciência não se trata, como na experiência, de coisas reais que estão
relacionadas umas com outras e podem ser imensamente diferentes, mas sim de conceitos, e na matemática de
intuições normais, isto é, de figuras e números que dão leis aplicáveis a toda experiência possível, e daqui se
unem a extensão da idéia geral à certeza absoluta da representação concreta, pois embora estas, como
representações intuitivas, são completamente certas, e, por conseguinte, não deixam lugar à geralidade por algo
indeterminável, são, entretanto, por isso, menos gerais, por ser meras formas de todos os fenômenos, e, como
tais, aplicáveis a todos os objetos a que tais formas convêm daqui que destas intuições normais, até na
geometria, como dos conceitos, possa-se dizer o que Platão diz de suas idéias, ou seja: que não podem existir
dois iguais, porque então seriam uma só92.

Isto seria também aplicável às intuições normais na geometria, se não fossem, como meros objetos do espaço,
diferenciados pela só relação do lugar. Segundo Aristóteles, já o mesmo fez Platão nesta observação:

(idem praeter sensibilia et species, mathematica rerum ait medeia seja-se, a sensibilibus quidem
differentia eo, quod perpétua et immobilia sunt, a speciebus vero eo, quod illorum quidem multa
quaedam similia, sunt, species vero ipsa unaquaeque sozinha, Metaph., I, 6, comp., com X, I. )93;

Esta consideração, pois, de que tal diferenciação, pelo lugar, não impede a restante identidade, parece-me que
pode substituir aos outros nove axiomas e que é adequada ao fim da ciência, que não é outro que conhecer o
particular pelo geral, melhor que a afirmação de nove axiomas diferentes que se apóiam em uma sozinha noção.
Então se poderia dizer das figuras geométricas o que Aristóteles diz em seu .ath., X, 3: εν τουτοις η ισοτης
ένοτης92

# Pode-se considerar as Idéia Platônicas como intuições normais, as quais, não somente, como a matemática,
para o formal, mas também para o material da representação completa, são válidas; assim, pois, são
representações completas que, como tais, são absolutamente determinadas, mas também, como os conceitos,
compreendem em si muitos objetos. Em outras palavras, como digo no parágrafo 28, representantes de
conceitos, que são completamente adequados a elas. 93 “Além disso, ao lado do sensível e das Espécies, admite
as Coisas matemáticas como entes intermédiários diferentes, por uma parte, dos objetos sensíveis por ser
eternos e imóveis, e, por outra, das Espécies, por serem muitas semelhantes, enquanto que a Espécie mesma é
só uma em cada caso.” Aristóteles, Metafísica, libero I, cap. 6, 987b - 15, pág. 13,

(in illis aequalitas unitas est)94.

Mas das intuições normais no tempo, os números, não se pode assinalar tal diferença de seu respectivo lugar, a
não ser simplesmente, como dos conceitos, a identitas indiscernibilium; assim só se dá um 5, como só se dá um
7.

Daqui podemos dizer que 7 + 5 = 12 não é, como Herder afirma na Metacrítica, uma identidade, a não ser,
como profundamente reconheceu Kant, uma proposição sintética a priori, isto é, que descansa na pura intuição.
12 = 12, se for uma identidade.

Realmente, na geometria não nos referimos à intuição mais que nos axiomas. Todos os teoremas requerem uma
demonstração, isto é, uma razão de conhecimento, que nos obriga aos ter por verdadeiros; assim, pois,
demonstra-se a verdade lógica, não a verdade transcendental do teorema (parágrafos 30 e 32); mas esta, que
reside na razão do ser e não na razão de conhecer, não pode ser percebida mais que pela intuição. daqui que,
depois de uma demonstração geométrica, esteja um persuadido de que a proposição demonstrada é verdade;
mas não se sabe por que o que a proposição afirma é como o afirma, quer dizer, que não se tem a razão de ser,
mas sim mas bem nasce um desejo de conhecê-la, pois a demonstração por meio do princípio de conhecimento
produz só a convicção (convictio) e não compreensão (cognitio); portanto, seria mais próprio chamá-la
elenchus que demonstratio. Daqui provém que, de ordinário, deixa um sentimento desagradável, como sempre
produz a falta de uma compreensão acabada, e será aqui a falta do conhecimento de por que é assim, no
momento em que se tem a segurança de que é assim. Este sentimento tem bastante semelhança com o que
experimentamos quando alguém nos introduz algo no bolso, ou, viceversa nos sustrae de 61 algo, e não
sabemos como, pois em tais demonstrações ocorre que, sem a razão de ser, o princípio de conhecimento é como
alguma experiência de física, que revela o fenômeno sem explicar suas causas, como acontece com a
experiência do Leidenfrost, que resulta também em um crisol de platina. Em troca, a razão de ser, conhecida
por intuição, de uma proposição geométrica, produz a satisfação que todo conhecimento adquirido proporciona:
quando aquela se tem, a persuasão da verdade do teorema se apóia unicamente nele, e não já em o princípio de
conhecimento dado pela demonstração. Por exemplo, tomemos a sexta proposição do livro do Euclides:
«Quando os dois ângulos de um triângulo são iguais, os lados opostos são iguais»95, que Euclides demonstra
assim (veja-se figura 3):
94 “nestas, é a igualdade a que constitui a unidade”
95 # Esta analogia é inexata, ou, pelo menos, muito confusa.
Seja o triângulo ABG, no que o ângulo ABG é igual ao agb: eu pretendo que o lado AG será igual ao lado AB,
pois se os lados AG e AB fossem desiguais, um deles teria que ser maior que o outro. Seja AB o maior. Segundo
isto, se tomarmos do lado que supomos maior, ou seja, o AB, a parte DB, o qual suporemos igual ao menor AG,
e atiramos a linha DG, como agora (no triângulo DBG, ABG), DB será igual a AG e BG será comum a ambos;
os dois lados DB e BG serão iguais aos outros dois AG e GB, respectivamente; o ângulo DBG ao AGB, e a linha
DG à linha AB, e o triângulo ABG ao DGB, isto é, o maior ao menor, o qual é absurdo; AB, portanto, não é igual
a AG; por conseguinte, será igual.

Nesta demonstração temos só uma razão de conhecimento da verdade do postulado; mas quem fundará sua
convicção de dita verdade geométrica em tal demonstração, antes que na razão do ser conhecida pela intuição,
por meio da qual (por uma necessidade que não se pode demonstrar, a não ser intuir), se dos dois pontos
terminais de uma linha se riscam outros duas com igual inclinação, ambas se cortarão em um ponto eqüidistante
dos outros dois mencionados, constituindo os dois ângulos formados deste modo, em realidade, só um que
parece dois, por sua situação oposta, pelo qual não há razão para que as linhas se devam encontrar mais perto de
um que de outro ponto?

Pela percepção da razão do ser se percebe a necessária conseqüência do condicionado com sua condição, que
aqui é a igualdade dos lados, e da igualdade dos ângulos, sua correspondência; pelo princípio de conhecimento
só se percebe sua concomitância. E até se pode afirmar que, pelo método ordinário da demonstração, só se pode
adquirir a certeza de que nas figuras representadas aqui como exemplo se verifica este fenômeno, mas não que
se verifique sempre, pois esta verdade (posto que a relação necessária não esteja demonstrada) aprecia-se por
uma persuasão fundada meramente na indução de que sempre que se construam figuras semelhantes se repetirá
o fenômeno. É verdade que só em teoremas tão simples como no sexto do Euclides salta à vista a razão de ser;
mas eu estou persuadido de que, até nos mais complicados teoremas, a mesma demonstração e certeza do
princípio se pode referir à simples intuição. Também se compreende a priori a necessidade de tal razão do ser
para cada relação espacial, tanto como a necessidade de uma causa de toda variação ou mudança. Claro que nos
problemas mais complicados é muito difícil nos dar conta desta razão de ser, e, além disso, não é este o lugar de
expor problemas geométricos muito complicados, mas quero, para fazer esta verdade mais evidente, demonstrar
a razão do ser em um problema um pouco complicado, ou, pelo menos, cuja razão do ser não salta à vista do
primeiro momento; refiro a 16ª proposição: «Se prolongarmos um dos lados de um triângulo, o ângulo exterior
será maior que cada um dos dois correspondentes interiores.» A demonstração de Euclides é a seguinte (veja-se
figura 4):
Seja o triângulo abg. Prolongando o lado BG até D, eu afirmo que o ângulo exterior AGD é maior que cada um
dos dois interiores correspondentes. Toma o ponto médio do lado ag, ou seja E, e se risca a linha B,
prolongando-a até Z, e se fará EZ = EB; unem-se os pontos Z e G, e se prolonga AG até o H. Como ae é igual a
EG e B igual a EZ, os dois lados AE e EB serão iguais aos dois lados G e EZ, tomados cada um isoladamente, e
o ângulo AEB será igual ao ZEG, por serem ângulos opostos pelo vértice. Além disso, a linha AB é igual a ZG, e
o triângulo ABE igual ao ZEG, e os demais ângulos aos restantes ângulos, e, por conseguinte, o ângulo BAE ao
EGZ. Mas EGD é maior que EGZ; por conseguinte, também o ângulo AGD é maior que o BAE. Tome-se agora
o ponto meio de BG, riscando por ele uma linha, e se demonstrará, da mesma maneira, que também o ângulo
BGH, quer dizer, seu oposto, pelo vértice AGD, é maior que ABG.

Eu teria demonstrado o mesmo teorema da seguinte maneira (veja-se figura 5):

Para que o ângulo BAG fosse somente igual, não maior, que o ângulo agd, seria preciso - pois nisto consiste a
igualdade dos ângulos - que a linha BA, sobre o GA, seguisse a mesma direção que BD, isto é, que fosse
paralela a BD, ou seja, que nunca se encontrasse com ela; mas para formar um triângulo (razão de ser), deve
tocar a BD. Portanto, acontece o contrário do que seria preciso para que o ângulo BAG alcançasse as dimensões
do agd.
Para que o ângulo BAG fosse somente igual, não já maior, que o ângulo AGD, seria preciso, pois a estes se
chamam ângulos iguais, que a linha BA seguisse a mesma direção, sobre BD, que a AG, isto é, que fosse
paralela com ela, ou seja que nunca tocasse a AG; mas para formar um triângulo, deve tocar a AG. Assim, pois,
acontece o contrário do que seria necessário para que o ângulo ABG tivesse as dimensões de AGD.

Nada disto significa que eu proponha um novo método de demonstração matemática, nem sequer minha
demonstração pode substituir a de Euclides, porque, por sua natureza, não quadra em Euclides, e, além disso,
porque pressupõe o conceito de paralelismo, que em Euclides não vem a não ser depois; só quis pôr de
manifesto o que é razão do ser e sua diferença da razão ou princípio de conhecimento, posto que este só
proporciona a convicção que é outra coisa muito distinta da evidência que proporciona a razão de ser. Agora
bem: que a geometria só se esforce por adquirir a convicção, que, como fica dito, produz uma impressão
desagradável, e não a evidência da razão de ser, que, como toda evidência, contenta e satisfaz, pudesse ser uma
razão, entre outras muitas, de que muitos cérebros eminentes sintam aversão pela matemática.

Não posso menos de reproduzir aqui de novo a figura representada em outro lugar (figura 6), cujo só aspecto,
sem mais explicação, convence, vinte vezes mais, da verdade do teorema pitagórico que a artificiosa
demonstração de Euclides. O leitor que se interesse por este assunto, encontrará-lhe, mais desenvolvido, no
mundo como vontade e representação, tomo I, parágrafo 15, e tomo II, capitulo 13.

CAPÍTULO VII
Da quarta classe de objetos para o sujeito e a correspondente forma do princípio de razão
suficiente.

40

EXPLICAÇÃO GERAL

Fica por examinar a última classe de objetos da representação. É de uma natureza completamente especial, mas
muito importante, e não compreende mais que um só objeto para cada indivíduo, ou seja: o objeto imediato da
sensibilidade interior, o sujeito da volição, que para o sujeito cognoscente é objeto, e que, por certo, só se dá na
sensibilidade interior; de onde só no tempo, não no espaço, aparece, e também, como veremos, com uma
importante limitação.

41

SUJEITO DO CONHECER E OBJETO

Todo conhecimento supõe indevidamente sujeito e objeto; daqui que a consciência de nós mesmos não se nos
presente singela, unida, a não ser dividida, assim como a consciência das demais coisas (isto é, a faculdade
intuitiva), em um conhecido e conociente. Aqui nos aparece agora o conhecido completa e exclusivamente
como vontade. Segundo isto, o sujeito se conhece se mesmo só como lhe voam, não como cognoscente, pois o
eu como representação, o sujeito do conhecimento, não pode nunca, posto que, como correlativo necessário de
toda representação, é condição da mesma, chegar a ser representação ou objeto, pois a ele lhe pode aplicar a
formosa frase do sagrado Upanischad: Vão videndum non est: omnia videt; et vão audiendum non est: omnia
audit; sciendum non est: omnia scit; et intelligendum non est: omnia intelligit. Praeter vão, videns, et sciens, et
intelligens ens aliud non est (Oupnekhat. vol. I, página 202).96

“Agarra sem mãos, corre sem pés, vê sem olhos, ouça sem ouvidos. O conhece tudo o que pode ser conhecido,
mas ninguém lhe conhece ele; chamam-lhe o primeiro, o grande (purusha).” SVETASVATARA
UPANISHAD, TERCEIRO ADHYAYA,parrafo 19.
daqui se segue que não há um conhecimento do conhecer, porque para isto seria preciso que o sujeito pudesse
separar do conhecimento e lhe conhecer, o que é impossível.

Á a objeção: «Eu não só conheço, mas também sei que conheço», responderia eu: Teu conhecimento do
conhecimento difere deste só na expressão. «Eu sei que conheço», não quer dizer outra coisa a não ser: «Eu
conheço», e isto, assim, sem mais determinação, só quer dizer «Eu»· Se seu conhecimento e sua ciência do
conhecimento são duas coisas distintas, trata de isolar a este daquela tão somente uma vez, é dizer, trata de
conhecer sem saber que conhece e logo depois de saber que conhece, sem que esta ciência seja conhecimento.
Efetivamente: podemos abstrair o conhecimento de todo conhecimento especial, e chegar à proposição «Eu
conheço», a qual é a última abstração possível para nós, mas é idêntica à proposição «Para mim há objetos» e
esta idêntica a de «Eu sou sujeito», a qual não contém a não ser «Eu».

Mas agora se poderia perguntar: «como, não sendo o sujeito conhecido, conhecemos seus diferentes faculdades
cognitivas, como sensibilidade, inteligência, razão? As conhecemos assim que o conhecer chega a ser objeto
para nós; do contrário, não haveria sobre as mesmas tantas opiniões contrárias, as quais, entretanto, são todas
inferidas, ou, mais exatamente, são expressões gerais para aquela classe de representações que em cada
momento se distinguem mais ou menos determinadas, precisamente em certas faculdades cognitivas. Mas, com
respeito ao sujeito, considerado como correlativo necessário daquelas representações, abstraem-se delas
representações, e se referem, por conseguinte, às distintas classes de representações, justamente, como o sujeito
em geral, ao objeto em geral. Como o sujeito está ligado com o objeto (pois se não a palavra não teria
significação) e o objeto com o sujeito, por isso ser sujeito significa ter um objeto, e ser objeto, tanto como ser
conhecido de um sujeito, o mesmo, exatamente, quando um objeto é determinado “por qualquer modo, o sujeito
também é determinado, como conhecendo absolutamente da mesma maneira, de modo que dará o mesmo dizer:
«Os objetos têm tais ou quais condições próprias e características», que dizer: «O sujeito conhece de tal ou qual
maneira»; e se eu disser: «Os objetos se podem dividir em tantas classes», será o mesmo que dizer: «O sujeito
tem tantas aulas de faculdades cognitivas». Também encontro eu o rastro deste conceito naquela assombrosa
mescla de profundidade e superficialidade do Aristóteles, como acredito que se encontra já nele o germe da
filosofia crítica. De anima, III, 8, diz:

ή ψυχη τα ιντά πως εστί πάντα


(anima quodammodo est universa, quae sunt)97;

e logo:
o νους εστι είδος ειδών, 98;
quer dizer, a inteligência é a forma das formas,

και ή αισθησις είδος αισθητων, 99


e a sensibilidade a forma dos objetos sensíveis. Segundo o qual, se dissermos: «Já não existe a sensibilidade
nem a inteligência», é o mesmo que dizer: «O mundo há terminado»; se se diz: «Não há nenhum conceito», ou
«A razão desapareceu», é o mesmo que dizer: «Já não há mais que bestas». O desconhecimento destas relações
foi a origem da disputa entre realismo e idealismo, que reapareceu depois, como luta do velho dogmatismo,
com o dogmatismo kantiano; ou da ontologia e metafísica com a estética e a lógica transcendental, a qual
também descansa no desconhecimento da relação entre a primeira e terceira classe de representações expostas
por mim; como a disputa entre realistas e nominalistas, na Idade Média, no desconhecimento destas relações,
com respeito à segunda de nossas classes de representações.
42

SUJEITO DA VOLIÇÃO

O sujeito do conhecer não pode ser conhecido, isto é, não pode ser objeto, representação, conforme fica
demonstrado; mas como nós temos, não só um conhecimento de nós mesmos exteriormente (na intuição
sensitiva), mas também interiormente, e todo conhecimento, com arrumo a sua essência, supõe um conhecido e
um cognoscente, assim o conhecido em nós não será o cognoscente, senão a volição, o sujeito do querer, a
vontade. Partindo do conhecimento, pode-se dizer que a proposição «Eu conheço» é uma proposição analítica;
pelo contrário, a proposição «Eu quero» é uma proposição sintética, e, por certo, a posteriori, a saber, dada pela
experiência (aqui por experiência interna, isto é, só no tempo).

97 “a alma é em certo modo todos os entes” Aristoteles, Sobre a Alma, Livro III, Cap. VIII, 431ba-20, pág.
95, edição digital Libera os Livros.
98 “o intelecto é forma de formas”. Ibid, 432ª.
99 “o sentido é forma das qualidades sensíveis”. Ibid.
Neste respeito, é para nós o sujeito do querer um objeto. Se olharmos dentro de nós mesmos, vemo-nos sempre
querendo. Entretanto, o querer tem muitos graus, do mais ligeiro capricho até a paixão, e já expliquei no
fundamento da Ética, pág. II (2.a edição, página 10), e em outras obras, que não só todos os afetos, mas também
também todos os movimentos de nosso interior, que podem-se somar no conceito de sentimento, são estados da
vontade.

Mas a identidade do sujeito volitivo com o sujeito cognoscente, por meio da qual (e, por certo,
necessariamente) a palavra «Eu» compreende e designa a ambos, é o nó do mundo, e, portanto, inexplicável,
pois só podemos compreender as relações dos objetos, e, entre estes, só podem dois constituir um, quando são
partes de um todo. Pelo contrário, ali onde se fala de sujeito, já não são aplicáveis as regras do conhecimento do
objeto, e nos dá uma identidade real, imediata, do sujeito cognoscente com o objeto volitivo, isto é, do sujeito
com o objeto que compreende o incompreensível desta identidade a chamará comigo de milagre κατ' εξοχην.
Assim como a faculdade subjetiva, correlativa da primeira classe das representações, é a inteligência; da
segunda, a razão, e da terceira, a pura sensibilidade, assim vemos que a desta quarta classe é o sentido interior,
ou a consciência de si mesmo, em geral.

43

O QUERER: LEI DA MOTIVAÇÃO

Precisamente porque o sujeito do querer se dá na consciência imediatamente, não se pode definir nem descrever
o que é o querer: antes bem, é o mais imediato de todos nossos conhecimentos o que, por seu inmediatividad,
arroja luz sobre todos os demais conhecimentos mais mediatos.
Em todas as resoluções de outros e nas nossas nos perguntamos propriamente o porquê, isto é, pressupomos que
lhes precedeu algo do qual são conseqüência, e ao qual chamamos a razão, e mais exatamente, o motivo do ato
em questão. Sem isto, o ato seria tão incompreensível como o movimento de um corpo morto sem um choque
ou um impulso qualquer. Segundo isto, o motivo está compreendido entre as causas, e já foi estudado e
caracterizado entre estas como a terceira forma da causalidade, parágrafo 20; mas a causalidade, em geral, é só
a forma do princípio de razão na primeira classe de objetos, ou seja na percepção exterior do mundo objetivo.
Ali nos mostra esta como o laço das mudanças entre si, sendo a causa a condição exterior daquele processo. O
interior de dito processo fica para nós em segredo, pois estamos sempre fora dele. Vemos perfeitamente que
esta causa precede a toda mudança, mas não podemos perceber como obra no interior, o que acontece ali
dentro. Assim vemos produzi-los efeitos mecânicos, físicos, químicos, como também os originados pela
excitação, por suas respectivas causas, sem que possamos por isso compreender o processo, mas sim o principal
deste fica para nós no mistério: o atribuímos umas vezes às propriedades dos corpos; outras, às forças naturais;
outras, à força vital, as quais são outras tantas qualitates occultae. Tampouco compreenderíamos melhor o
movimento e as ações dos animais e dos homens, ou lhes compreenderíamos, de uma maneira obscura, brotar
de suas causas (motivos), se para nós não estivesse franco a inspeção do interior deste processo. Em efeito:
sabemos, pela experiência feita em nosso interior, que dito processo é um ato da vontade, o qual se produz pelo
motivo, que consiste em uma mera idéia. O modo de obrar do motivo nos é conhecido, não só, como o das
causas exteriores, por fora ou mediatamente, mas sim conhecemos seu modo de obrar interior, e, portanto,
imediato. Aqui estamos, por dizê-lo assim, entre bastidores, e vemos de uma maneira direta a maneira de obrar
da causa para produzir o efeito, pois aqui lhe conhecemos por outro caminho; portanto, de outra maneira. E
daqui se deduz a seguinte importante proposição: a motivação é a causalidade, vista por dentro. Esta, pois, nos
representa aqui de uma maneira completamente distinta, em outro meio distinto, por outro procedimento
cognitivo: daqui que seja uma forma especial e característica de nosso princípio, que aparece como princípio de
razão suficiente do obrar, principium rationis sufficientis agendi; em resumo, como lei da motivação.
Para orientações de outro gênero, em geral, com relação a minha filosofia, acrescentarei que assim como a lei
da motivação se contém na lei da causalidade, analisada no parágrafo 20, assim esta quarta classe de objetos
para o sujeito, ou, o que é o mesmo, a vontade percebida em nosso interior, contém-se na primeira classe. Terá
que penetrar-se bem disto, que é a pedra fundamental de minha Metafísica. Sobre a forma e a necessidade da
eficácia do motivo, ou seja, sua condicionalidade, pelo caráter empírico, individual, como também pelo
coeficiente cognitivo do indivíduo, etcétera, remeto a minha Memória sobre o livre-arbítrio, aonde tudo isto se
trata detalladamente.

44

INFLUXO DA VONTADE SOBRE O CONHECIMENTO

Não propriamente na causalidade, a não ser na identidade, explicada no parágrafo 42, do sujeito cognoscente
com o sujeito lhe voem, é no que se apóia o influxo que a vontade exerce sobre o conhecimento, assim que é
necessário reproduzir as representações que tivemos anteriormente para dirigir a atenção sobre isto ou aquilo e
evocar uma série determinada de pensamentos. Também aqui entra em jogo a lei da motivação,, com arrumo a
qual o referido influxo é a intima guia da chamada associação de idéias, a qual dedico um capítulo no tomo II
de O mundo como vontade e como representação (o XIV), e que não é outra coisa que a aplicação do princípio
de razão suficiente, em suas quatro formas, ao curso subjetivo dos pensamentos, e, portanto, à presença das
representaçõesnaconsciência. Agora bem: a vontade do indivíduo é a que põe em atividade todo este
mecanismo, dirigindo o intelecto, em consonância com o interesse, ou seja o fim pessoal do indivíduo, a suas
atuais representações, as quais são evocadas por ele em virtude de relações lógicas ou analógicas, temporários
ou espaciais.

A atividade da vontade é, neste ponto, tão imediata, que na maior parte dos casos, a consciência não se dá conta
dela, e tão rápida, que nem sequer advertimos a causa ocasional desta evocação de representações, até acreditar
que chegam sem relação alguma à consciência; mas a raiz do princípio de razão suficiente faz impossível que
tal coisa aconteça, como fica explicado no capítulo correspondente. Toda imagem que aparece repentinamente
em nossa fantasia, como todo julgamento que não segue, como conseqüência, a um princípio, tem que ser
evocado por um ato de nossa vontade, o qual obedecerá a um motivo, embora este pode ser tão insignificante e
o ato tão fácil de realizar, que não nos demos conta de sua relação.
45

A MEMÓRIA

A característica do sujeito cognoscente de que, na atualização das representações, estas obedecem tão mais
facilmente à vontade quanto mais a miúdo tenham estado tais representações pressente ao sujeito, quer dizer, a
capacidade para o exercício das mesmas, é a memória; a descrição ou explicação que dela se está acostumado a
dizer, de que se trata de um depósito no qual temos uma série de representações guardadas das quais não temos
consciência, é completamente falsa. A voluntária reprodução de anteriores representações se faz tão fácil com o
uso, que tão logo aparece um membro da série, ao ponto outros fluem, até contra nossa vontade, ao parecer. Se
quisermos nos representar por meio de uma imagem esta característica de nosso poder representativo (como o
que dá Platão, comparando a memória a uma branda massa, que admite toda classe de impressões e as guarda),
pareceria-me, a mais apropriada a de um pano, que conserva e reproduz as dobras em que foi dobrado. Como o
corpo aprende a obedecer à vontade por meio do exercício, assim também a faculdade respresentativa. De
nenhum modo é, como se está acostumado a dizer, a lembrança a mesma representação—a qual, por dizê-lo
assim, reproduz-se do deposito ou armazém—, a não ser sempre uma nova representação, dotada de maior
agilidade pelo exercício; daqui que os fantasmas ou imagens que queremos conservar na memória, realmente
são uma série de representações sucessivas que vão trocando imperceptivelmente, por isso, se deixarmos de ver
um objeto por muito tempo, notamos com estranheza, ao lhe voltar para ver, que não concorda absolutamente
com a lembrança que guardávamos do mesmo. Isto não poderia acontecer se nós guardássemos uma única
representação. Também assim se explica que nossos conhecimentos, quando não os exercitamos, acabam por
desaparecer paulatinamente de nossa memória, porque são somente objetos de exercício do costume; assim, por
exemplo, esquecem os sábios seu grego, e os artistas que voltam para sua pátria, o italiano. Assim também se
explica que quando, com certo esforço, trazemos para a memória um verso ou um nome bem sabido em outro
tempo, mas que não pronunciamos nem pensado nele durante muitos anos, temos a nossa disposição de novo
por muito tempo, porque o exercício se renovou. Daqui que quem aprende vários idiomas, deve ler de quando
em quando obra em ditos idiomas para conservar sua posse.
Também se explica por meio de minha teoria por que se gravam de uma maneira tão indelével as vicissitudes e
as impressões do ambiente de nossa infância: porque de meninos temos poucas idéias, e estas essencialmente
intuitivas, e para estar ocupados as repetimos incesantemente. Em homens que têm pouca capacidade de
pensar-lhes acontece, durante toda sua vida, quão mesmo aos meninos (e não só no que se refere às meras
representações, mas também aos conceitos e às palavras); mas revistam ter uma grande memória, se não se
opuser a isso uma estupidez nativa ou certa preguiça de espírito. Pelo contrário, o gênio não está acostumado a
ter muito boa memória, como Rousseau diz de si mesmo, e isto se explica pela grande quantidade de
pensamentos e de combinações que dirige, que não lhe deixam tempo a repeti-los. Entretanto, esta má memória
do gênio se compensa com a maior energia e mobilidade de suas forças intelectuais, que aqui substituem à
repetição. Não devemos esquecer tampouco que Mnemosina foi a mãe das Musas. Pode dizer-se, portanto, que
a memória está entre dois influxos antagônicos: por um lado, a energia das faculdades representativas, e por
outro, o número destas representações. quanto menor é o primeiro fator, menor deve ser também o outro para
subministrar uma boa memória, e quanto maior o segundo, maior deve ser também o outro. Assim se explica
que homens que lêem incesantemente cria novelas percam a memória, porque lhes acontece como ao gênio: que
a multidão de representações, que aqui não são conceitos e combinações, a não ser rápidas impressões
passageiras, tira-lhes o tempo para a repetição, assim como a paciência, e o que no gênio serve de compensador,
falta-lhes . Pelo resto, cada um tem o máximum de cor para o que lhe interessa e o mínimum para o que não lhe
interessa. daqui que os grandes espíritos esqueçam logo os detalhes cotidianos da vida diária, assim como aos
homens insignificantes a quem vai conhecendo, enquanto que os homens medíocres os recordam perfeitamente;
em mudança, aqueles têm, para o que tem importância a seus olhos e para as coisas grandes, uma boa memória,
às vezes estupenda.
Mas, em geral, é fácil compreender que retemos melhor aquelas séries de representações que estão ligadas entre
si por uma ou por várias das formas indicadas de razão ou de sucessão, e pior as que não estão ligadas entre se,
a não ser só com nossa vontade, pela lei da motivação, isto é, as que se reuniram caprichosamente: naquelas, as
formas a priori de nossa consciência nos economizam a metade do trabalho; estas, como, em geral, toda classe
de conhecimentos a priori, foram as que deram ocasião à doutrina do Platão de que todo conhecimento é um
lembrança.
Quando queremos reter profundamente algo na memória, terá que referi-lo a uma imagem sensível, seja
diretamente por um exemplo, seja por uma simples comparação qualquer, pois o percebido intuitivamente se
adere de um modo mais sólido que os simples pensamentos abstratos e que as palavras. Por isso retemos melhor
o que nos aconteceu que o que temos lido.

CAPÍTULO VIII
Considerações e resultados gerais.

46

ORDEM SISTEMÁTICA

A ordem em que eu tenho exposto as diversas formas do princípio de razão suficiente, não é o sistemático, mas
sim foi eleito por causa de sua maior claridade, para começar pela mais conhecido e que necessita menos das
demais, conforme à regra do Aristóteles:
(et doutrina non a primo, ac rei principio aliquando inchoanda est, sede unde essência facilius discat), Metaph.,
IV, I.100 A ordem sistemática é o seguinte: primeiro deve expor o Princípio de razão do ser, e de este, o
primeiro seu emprego no tempo, como o mais singelo, que contém o esquema de todos outros, como o
protótipo de toda finalidade; logo, depois de expor a razão do ser no espaço, a lei de causalidade; depois de
esta, a motivação, e o princípio de razão suficiente do conhecer, o último, posto que os outros se apóiam em
representações imediatas e este em representações de representações.
A verdade enunciada aqui de que o tempo é um singelo esquema que contém o essencial de todas as formas do
princípio de razão, explica-nos a absoluta e perfeita claridade e exatidão da aritmética, a qual não pode chegar
nenhuma outra ciência.
Em efeito: todas as ciências descansam no princípio de razão suficiente assim que são uma cadeia de princípios
e conseqüências; a série numérica é a série simples e geral das razões de ser e suas conseqüências no tempo; por
causa desta perfeita simplicidade, e por não deixar nada fora dela, nenhuma relação indeterminável possui toda
a exatidão, apodicticidade e evidência possíveis. Depois, todas as demais ciências, inclusive a geometria,
ocupam um lugar inferior neste respeito, porque das três dimensões do espaço se derivam tal número de
relações, que é muito
100 “às vezes, por exemplo, tem que começar-se a aprender, não pelo primeiro, quer dizer, não pelo princípio
do
assunto, a não ser de onde seja mais fácil aprender; Aristoteles, Metafísica, Livro V, cap. I, pág 193, Biblioteca
Básica Gredos. difícil as compreender todas elas, tanto por meio da intuição pura como empírica; daqui que os
complicados problemas da geometria só por meio das cifras resolvam, resolvendo, portanto, a geometria em
aritmética. Não preciso dizer aqui que as demais ciências contêm muitos mais elementos de confusão ou
escuridão.
47

RELAÇÃO DE TEMPO ENTRE O PRINCÍPIO E A


CONSEQÜÊNCIA

Segundo a lei da causalidade e da motivação, o princípio deve preceder à conseqüência na ordem do tempo. Isto
é completamente essencial, como hei demonstrado em minha obra capital, tomo II, cap. IV, págs. 41 e 42;
portanto, para não me repetir, remeto a dita obra ao leitor. Além disso, terá que tomar cuidado de não induzir
a engano por meio de exemplos como o que Kant (Crítica da razão pura, pág. 202, 1.a edic.) aduz, ou seja: que
a causa do calor de uma habitação, a chaminé, coexiste com dito calor, que é de uma vez seu efeito; mas terá
que recordar que uma coisa não é a causa de outra, a não ser um estado causa do outro. O estado da estufa, isto
é, o possuir uma mais alta temperatura que o ambiente da habitação, faz que o restante de seu calor passe a dito
ambiente, e, como cada capa de ar quente, ao elevar-se, deixa um sítio que deve ser ocupado por outra capa de
ar frio, renove o primitivo estado, a causa, e, por conseguinte, também o segundo, o efeito, sempre que entre a
estufa e a habitação haja um desequilíbrio de temperatura. Assim, pois, não há uma causa constante, a estufa,
nem um efeito constante, o calor da habitação, que sejam simultâneos, a não ser uma cadeia de mudanças, ou
seja: uma renovação constante de dois estados, dos quais um deles é efeito do outro. Bem claro se vê por este
exemplo que conceito tão confuso da causalidade tinha o mesmo Kant. Pelo contrário, o princípio de razão
suficiente do conhecer não implica nenhuma relação de tempo, a não ser só uma relação para a razão; pelo qual,
as palavras antes e depois não têm aqui sentido.
O princípio de razão do ser, assim que se aplica à geometria, não implica relações de tempo, a não ser só
relacione espaciais, das quais se poderia dizer que todas são simultâneas, se a simultaneidade aqui, como a
sucessão, não carecesse de sentido; mas, em troca, na aritmética, a razão do ser não é outra coisa que a relação
de tempo mesma.

48

RECIPROCIDADE DOS PRINCÍPIOS

O princípio de razão suficiente pode, em cada uma de suas formas, ser fundamento de
um julgamento hipotético, e como, em último término, também todo julgamento hipotético se
apóia nele, subsiste a validez da lei das conclusões hipotéticas, ou seja: da existência do princípio se pode
chegar à existência da conseqüência, e da não existência da conseqüência a não existência do princípio; mas da
não existência do princípio não se pode chegar a não existência da conseqüência, e da existência da
conseqüência não se pode chegar à existência do princípio. Sem embargo, é de notar que na geometria quase
sempre da existência da conseqüência se pode chegar à existência do princípio, e da não existência do principio
a não existência da conseqüência. Isto procede de que, como dissemos em o parágrafo 37, toda linha determina
a situação de outra linha qualquer, e é indiferente o tomar por princípio uma delas, e a outra por conseqüência,
ou viceversa. Disto nos podemos convencer percorrendo os problemas dê a geometria. Agora bem: quando
não se trata só de linhas, mas sim de superfícies, feita abstração da figura, a maior parte das vezes não se pode
deduzir da existência da conseqüência a existência do princípio, ou, melhor dizendo, os princípios não são
recíprocos, e o condicionado não se converte em condição. Ponhamos um exemplo: quando dois triângulos têm
igual base e igual altura, limitam uma mesma superfície; mas não se pode afirmar o princípio inverso: se dois
triângulos tiverem a mesma superfície, terão a mesma base e igual altura, pois as alturas podem estar em razão
inversa das bases.
A lei de causalidade não admite reciprocidade, não podendo ser nunca o efeito causa de sua causa, e daqui o
conceito de ação reciproca, que em seu próprio sentido não é plausível, conforme se disse no parágrafo 20.
Uma reciprocidade no princípio de razão do conhecer, só poderia ter lugar em conceitos equivalentes, cobrindo-
as esferas destes mutuamente. Fora disto, a reciprocicación é um circulus vitiosus.

49

A NECESSIDADE

O princípio de razão suficiente, em todas suas formas, é a única origem e o único sustentador de todas e cada
uma das necessidades, pois necessidade não tem outro sentido verdadeiro e evidente que a indefectibilidade da
conseqüência, uma vez sentado o princípio. Segundo isto, toda necessidade é condicionada; necessidade
absoluta, isto é, incondicional, é uma contradictio in adjecto, pois ser necessário não pode significar outra coisa
que ser conseqüência de um determinado princípio- Se, pelo contrário, lhe queria definir como «o que não pode
deixar de ser», teríamos uma simples explicação de palavras, nos refugiando, para evitar a explicação real, em
um conceito abstrato, asilo de onde nos arrojaria logo a pergunta de: como é possível, nem imaginável, que algo
não possa deixar de ser, posto que toda existência só nos é conhecida empiricamente? vê-se, pois, que isto só é
possível assim que existe um princípio, do qual é conseqüência. Ser necessário e ser Conseqüência de um
princípio dado são, portanto, conceitos equivalentes, e como tais podem ser usados o um em vez do outro. O
«ser absolutamente necessário», conceito favorito dos filosofastros, encerra, por conseguinte, uma contradição:
pelo predicado «absolutamente » (quer dizer, não dependente de outro algum) anula-se a condição pela qual
unicamente o «necessário» é imaginável e tem um sentido. É este outro exemplo do abuso dos conceitos
abstratos para captações metafísicas, como já hei demonstrado que o são os conceitos «substância imaterial»,
«princípio absoluto», «causa universal», etc. Não me cansarei de repetir que todo conceito abstrato tem seu
pedra de toque na intuição. Disto se deduz que, com arrumo às quatro formas do princípio de razão suficiente,
haverá uma quádruplo necessidade: 1, a lógica, apoiada na razão do conhecer, conforme a qual, dadas as
premissas, está dada a conclusão; 2, a física, apoiada na lei de causalidade, segundo a qual, produzindo-se a
causa, não pode deixar de produzir o efeito; 3, a matemática, segundo a razão de ser, em virtude da qual a
verdade de um teorema certo é irrefutável; 4, a moral, em virtude da que todo homem, e até todo animal, ante
um motivo dado, tem que conduzir-se de um modo determinado por seu caráter nativo e constante, e isto de um
modo tão indefectível como um efeito qualquer segue a sua causa, embora esta necessidade não é tão concreta
como qualquer outra, pela dificuldade de um conhecimento acabado do caráter empírico individual e do grau de
cultura anejo ao mesmo, porque estudar um caráter é outra coisa muito distinta que estudar as propriedades de
um sal e predizer sua reação. Eu não deixarei de repetir e demonstrar tudo isto, contra os ignorantes ou imbecis
que, desprezando as luminosas ensinos de tantos grandes espíritos, afirmam o contrário em favor de sua
filosofia cortesã. Como eu não sou professor de filosofia, não tenho necessidade de fazer reverências à
estupidez.

50

SÉRIES DE PRINCÍPIOS E DE CONSEQÜÊNCIAS

Segundo a lei de causalidade, a condição é sempre, a sua vez, condicionada, e, por certo, da mesma maneira;
daqui nasce a parte ante, uma série in infinitum. O mesmo acontece com a razão do ser no espaço: todo espaço
relativo é uma figura, tem limites que o são também de outras figuras e que condicionam a sua vez a estas
outras figuras, e assim em todas as direções, até o infinito; mas se se considera uma figura isolada em si
mesmo, a série da razão do ser tem um fim, porque se parte de uma determinada relação, como também a série
de causas tem um fim, se nos detemos em uma causa determinada. No tempo, a série da razão de ser, tanto a
parte ante como a parte post, tem uma extensão infinita, estando determinado cada momento pelo anterior, e
determinando ele, a sua vez, o seguinte, por isso o tempo não pode ter princípio nem fim. A série de princípios
de conhecer, pelo contrário, isto é, uma série de juizos, cada um dos quais recebe verdade lógica do outro,
termina sempre alguma vez, ou seja: ou em uma verdade empírica, ou transcendental, ou metalógica. Se se
tratar de uma verdade empírica, que fundamenta a última proposição, e ao chegar a ela se pergunta «por que»,
então o que se pede não é um princípio de conhecimento, a não ser uma causa, quer dizer, que a série de
princípios do conhecimento degenera na série de princípios do suceder; mas se se investem os términos, isto é,
se para que a . série de princípios do devir possa ter um término, acontece com a série de princípios de
conhecer, isto não poderá ser nunca uma conseqüência natural das coisas, a não ser o resultado de uma
deliberada intenção; por tanto, um ardil, e, na verdade, que não é outra coisa o conhecido sofisma da prova
ontológica de Deus. Em efeito: depois que pela prova cosmológica se chegou a uma causa na qual quer
permanecer para fazê-la-a primeira causa, não por isso a lei da causalidade fica em suspense, mas sim continua
perguntando «por que», quer dizer, que a deixa secretamente a um lado e fica em seu lugar o princípio de
conhecimento, parecido a ela de longe, dando, em vez de uma causa, que é o que se pede um princípio de
conhecimento, o qual se obtém do conceito que queremos demonstrar, e cuja realidade é ainda problemática, e
que, sendo um princípio, quer figurar como causa. Naturalmente, tem-se já o conceito em questão preparado,
envolvendo a realidade, para salvar as aparências, em um manto para dispor melhor a surpresa, como já
pusemos em claro no parágrafo 7. Pelo contrário, quando uma série de juizos descansa em um princípio de
verdade transcendental ou metalógica e segue-se perguntando «por que», então não se poderá dar nenhuma
resposta, porque a pergunta carece de todo sentido, isto é, não se sabe que classe de razão exige, pois o
princípio de razão é o princípio de toda explicação; explicar uma coisa equivale a referir sua existência e suas
relações a uma forma determinada do princípio de razão com arrumo a qual deve ser como é, e conforme ao
qual, o princípio de razão, quer dizer, a relação que expressa em alguma de suas formas, não é explicável,
porque não há nenhum princípio para explicar o princípio de razão - quão mesmo o olho o vê tudo, mas não
pode ver-se a si mesmo - Em relação aos motivos, claro é que formam séries, sendo a determinação ou
resolução para conseguir um determinado fim, motivo da determinação para pôr em prática toda uma série de
meios; entretanto, estas séries terminam sempre a parte priori em uma representação das duas primeiras classes,
na qual reside o motivo, e tal representação é Ja apóie do motivo que conseguiu pôr em movimento esta
vontade individual.
Agora bem: a possibilidade de que dito motivo mova a vontade, é um dado para o conhecimento do caráter
empírico, e o porquê foi movido é pergunta a que não se pode responder, pois o caráter inteligível está fora do
tempo e não pode ser objeto do conhecimento. A série de motivos, assim que tal encontra deste modo seu fim
em um último motivo desta natureza, e passa, segundo o último membro seja um objeto real ou um mero
conceito, à série de causas ou à série de princípios de conhecimento.

51

Cada ciência tem por guia uma das formas do princípio de razão suficiente com preferência às demais. Como a
pergunta «por que» exige uma razão suficiente, e a dependência dos conhecimentos uns de outros, segundo o
princípio de razão suficiente, é o que distingue às ciências dos meros agregados de conhecimentos, por isso se
há dito no parágrafo 4 que «o por que» é a mãe das ciências. Também vemos que em cada uma das ciências
domina uma forma especial, com preferência às demais, do princípio de razão suficiente, que lhe serve de guia,
embora também as outras se utilizem nela, embora de um modo mais subordinado. Na matemática pura, o
princípio de razão do ser é a forma dominante (embora as demonstrações se rejam pelo princípio de
conhecimento); nas aplicadas, o princípio de causalidade, e este domina soberanamente na física, química,
geologia, etc. O princípio de razão do conhecer encontra emprego em todas as ciências, posto que em todas elas
o especial é conhecido pelo geral; mas é o guia principal, e quase exclusivo, na botânica, zoologia, mineralogia
e demais ciências classificadoras. A lei da motivação, quando se tomam todos os motivos e máximas, quaisquer
que sejam, como dados que explicam as ações, é o guia principal da história, da política, da psicologia
pragmática, etc., etc.; mas se se tomam os motivos e máximas em si mesmos, segundo seu valor e origem, por
objeto de investigação, constituirão a matéria da ética. No segundo tiro de minha obra principal encontrará o
leitor, capítulo XII, pág. 129, uma divisão das ciências fundada neste princípio.
52

DOIS RESULTADOS PRINCÍPAIS

Esforcei-me nesta dissertação por demonstrar que o princípio de razão suficiente é uma expressão comum a
quatro diferentes relacione, cada uma das quais descansa em uma lei especial (posto que o princípio de razão
suficiente é um princípio sintético a priori) dada a priori. Estas leis foram achadas pelo procedimento de
especificação, e pelo método de homogeneidade devemos admitir que, assim como estão reunidas em uma só
expressão comum, têm também por comum raiz um mesma origem no conjunto de nossas faculdades
cognitivas, e que devemos, segundo isto, lhe considerar como o mais recôndito germe de toda dependência,
relatividade, instabilidade e finitud, no tempo, do objeto de nossa consciência, mantido nos limite da intuição
sensível, da inteligência e a razão, do sujeito e do objeto, ou seja, o germe daquele mundo que Platão rebaixa à
condição de

101;

cujo conhecimento só seria um

102;

e ao qual o cristianismo, com muito bom sentido, e conforme à forma de nosso princípio exposta no parágrafo
46 como seu mais singelo esquema e o protótipo de toda finitud, chama o temporal. O sentido geral do
princípio de razão é que sempre, e em todas as partes, cada coisa só pode ser mediante outra. Assim, o princípio
de razão tem, em todas suas formas, sua raiz em nosso intelecto, é a priori; daqui que não se possa aplicar a
todas as coisas existentes, isto é, ao mundo, com inclusão deste intelecto no qual resideste mundo, pois dito
mundo, que só se pode representar mediante tais apriorísticas forma, é, por isso mesmo, uma mera aparência.
Por conseguinte, o que não é aplicável a não ser em virtude destas formas, não se pode aplicar ao mundo, quer
dizer, às coisas em si que nele se representam. Por isso não pode dizer-se: «O mundo em si mesmo, e todas as
coisas em si mesmos, existem em virtude de outra coisa», proposição que constitui o que se chama prova
cosmológica.

Cheguei à formulação de tão importante resultado pela presente dissertação, e acredito que devesse perguntar-
se ou exigir-se a todo filósofo que em suas especulações apóie alguma conclusão sobre o princípio de razão
suficiente, ou fale, em geral, de uma razão que determine a que classe de razão se refere. Pudesse acreditar-se
que, sempre que se fala de uma razão, esta se define por si mesmo e não é possível confusão alguma; mas há
exemplos em abundância que demonstram, em parte, que se confundem as expressões razão e causa, e se usam
sem distinção, em parte, porque se fala de razão e raciocinado, princípio e principiado, condição e
condicionado, sem distinguir entre eles; possivelmente, entretanto, esta confusão não procede de ignorância,
mas sim de malícia. Assim fala o mesmo Kant da coisa em si, como razão do fenômeno; assim também
(Critica da razão pura, 5.a edic., página 590) de uma razão da possibilidade de toda aparência, de uma razão
inteligível dos fenômenos, de uma causa inteligível, de uma razão desconhecida, da possibilidade das séries
sensíveis em geral (592), de um transcendental objeto que é a razão dos fenômenos e da razão, porque nossa
sensibilidade tem esta melhor que todas as demais condições.

(641), e assim em outros vários lugares, todo o qual me parece que não convém com aquelas ponderadas,
profundas e imortais palavras (591): «Que a causalidade103 das coisas é só um fenômeno e não se pode referir
a outra regressão que à empírica, que determina os fenômenos».

Desde Kant, os conceitos de razão e conseqüência, princípio e principiado, etc., se usam cada vez mais
confusamente, como sabe tudo o que tenha estudado os novísimos escritos filosóficos.

101 “sempre surgindo e perecendo, mas nunca existindo”. of the principle of sufficient reason, pág 187,
102 “a opinião que acompanha à percepção sem fundamento”.
Contra este vicioso uso da palavra razão, e, com ele, do princípio de razão suficiente, em geral, vai minha
seguinte objeção, que é, ao mesmo tempo, o segundo resultado, exatamente ligado com o primeiro, que se
deriva desta dissertação sobre o objeto da mesma. Embora as quatro leis de nossas faculdades cognitivas, cuja
comum expressão é o princípio de razão suficiente, por seu caráter comum e porque todo objeto do sujeito
reveste uma de suas formas, nos revelam como uma, e a mesma natureza originária e característica interior de
nossas faculdades cognitivas, manifestadas na tripla forma de sensibilidade, inteligência e razão, de modo que
se se imaginasse uma nova quinta classe de objetos, certamente, se pressuporia que apareceria nela o princípio
de razão suficiente em uma nova forma, não podemos falar de uma razão absoluta, e tanto menos de uma razão
geral, como de um triângulo geral, que não seria mais que um conceito abstrato, adquirido ou formado por meio
do pensamento discursivo, o qual, como representação de representações, não é mais que um meio de pensar
muitas coisas em uma sozinha. Assim como todo triângulo é, ou agudo ou obtuso, ou retangular, ou eqüilátero,
ou isóscele, etc., assim também, posto que temos somente quatro classes de objetos, toda razão pertence a uma
das quatro formas do princípio de razão possíveis, e, segundo isto, só poderá valer dentro de uma das quatro
classes de objetos de nossas faculdades cognitivas (pressupondo, como é natural, seu uso o mundo em sua
totalidade, e, portanto, dentro dele estas faculdades, e limitando-se a dito mundo exterior, ou seja ao mundo dos
fenômenos), e nunca fora delas, nem fora de ditos objetos. Se alguém pensasse ou dissesse o contrário, isto é,
que razão, em geral, é outra coisa que o conceito comum às quatro formas aqui estudadas, voltaríamos a
ressuscitar a disputa entre realistas e nominalistas, e no caso presente deveríamos nos colocar ao lado dos
últimos.

FIM
103 # A causalidade empírica é conhecida pelo Kant como a dependência de outras coisas. Sobre este ponto
remeto ao leitor a minhas objeções na página 524 (3.a edic., pág. 552) de minha Crítica da filosofia kantiana.

Schopenhauer
Entre os adversários do Hegel ocupa o primeiro lugar, tanto por razão cronológica como por sua importância, o
homem que já durante a vida daquele lhe combateu rudemente, e que deveu ser logo o herdeiro de sua
popularidade: Arthur Schopenhauer. Nasceu, em 22 de Fevereiro de 1788, no Danzig, aonde seu pai figurava
como um dos mais prestigiosos comerciantes. Sua mãe foi conhecida escritora, muito lida em seu tempo, Juana
Schopenhauer. Em 1793 se transladou a família ao Hamburgo, e ali começou a peregrinação que Schopenhauer
continuou até 1833. Arthur aos nove anos foi levado por seu pai ao Havre, e ali, em casa de um industrial amigo
da família, recebeu, durante dois anos, lições particulares e aprendeu cumplidamente o idioma francês. De volta
ao Hamburgo, ingressou em um Instituto de Ensino livre. “Por aquele tempo despertou em mim a afeição ao
estudo das ciências, afeição que ameaçava ser um obstáculo para o intuito que seu pai havia formado de fazer
de seu filho Arthur um comerciante. Então o ardiloso Enrique Schopenhauer soube usar de um ardil, colocando
seu filho na alternativa de empreender uma longa viagem, renunciando para sempre ao estudo das ciências e
empreendendo a carreira do Comércio, ou matricular-se na Universidade. O contumaz viajante de quinze anos
não soube resistir à tentação, e escolheu o primeiro caminho.
O itinerário compreendia a Bélgica, Inglaterra, França, Suíça e Alemanha, e durou desde a primavera de 1803
até o outono de 1804. Os seis meses que a família permaneceu na Inglaterra, Schopenhauer passou no colégio
de um eclesiástico de Londres, onde jogou os alicerces de seu conhecimento da língua e literatura inglesas,
assim como de seu ódio contra a hipocrisia religiosa deste país. No outono de 1804 acompanhou a sua mãe ao
Danzig, aonde foi confirmado. Em Dezembro voltou para Hamburgo, onde se dispunha, ao começar o ano de
1805, a começar a carreira de comerciante. A morte repentina de seu pai, acontecida poucos meses depois,
variou o rumo da vida do Schopenhauer. O respeito à memória de seu pai lhe impediu decidir-se imediatamente
a abandonar a para ele odiosa carreira mercantil; mas como sua mãe, que já se transladou ao Weimar, inquieta
por seu humor sombrio, tomasse conselho de seu amigo Fernow, mandou a Gotha, e ingressou na Universidade.
Ali, sob a direção do Jacobs e do Doring, recuperou rapidamente o tempo perdido.
Depois de seis meses de permanência na Gotha, voltou Schopenhauer ao Weimar, e preparóse, por meio de
estudos privados, sob a direção do Passow, em cuja casa viveu, para o ingresso na Universidade. Em 1809
passou à Universidade da Gottinga, onde especialmente as conferências do G. E. Schulzes (autor do
AEnesidemus) despertaram nele a paixão pela filosofia. Em 1811, atraído pela fama do Fichte, 104 # Do
Schwegler: Geschichte der Philosophie im Umriss (Sechzehnte Auflage; Stuttgart, 1905) partiu ao Berlim, e ali
permaneceu até 1813. A guerra lhe impediu de graduar-se de Doutor, como pensava fazê-lo, naquele mesmo
ano. Schopenhauer, procurando um asilo, refugióse no Rudolstadt, e ali entregóse a compor a dissertação Sobre
a quádrupla raiz do princípio da razão suficiente, que lhe serve de tema para o doutorado que conseguiu na
Faculdade da Jena in absentia. O inverno lhe levou a Weimar, ficando em relação com Goethe e com o
orientalista Federico Mayer. O primeiro consagrou ao Schopenhauer em sua Teoria das cores; o segundo lhe fez
travar conhecimento com os escritos sagrados da Índia. O Oupnekhat, que, por certo, só podia conhecer
traduzido, agradou-lhe tanto, que lhe declarou sua Bíblia, e disse que seria seu livro de consolação na hora de
morte. As diferenças entre o Schopenhauer e sua mãe, que desde fazia comprido tempo se haviam manifestado
já, acentuábanse cada vez mais; a convivência de ambos se fez impossível, e Schopenhauer se transladou ao
Dresde em 1814, onde viveu sozinho, estudando, até 1818. Ali escreveu (1815) seu Tratado sobre a visão e as
cores, e riscou o plano de seu grande obra O mundo como vontade e como representação, cujo primeiro tomo
apareceu em 1819. Em outono de 1818 passou Schopenhauer a Itália. A quebra da casa de comércio do Danzig,
na qual tinha interessado sua mãe a maior parte de sua fortuna, obrigou-lhe a voltar para a Alemanha antes do
que pensasse. Até quando estivesse prevenido contra perdas de consideração, teve por cordato assegurar seu
futuro atribuindo-se a uma Universidade. Assim o fez, em 1820, na de Berlim. Entretanto, não ensinou ali mais
que seis meses. Como não lhe conviesse a estadia no Berlim, e a conseqüência também do pouco êxito que,
como docente, tinha tido, volvióse, na primavera de 1822, a Itália. Depois de uma curta estadia, no Dresde,
tornou, em 1825, ao Berlim; mas não deu ali nenhuma conferência, embora seu nome figurava na lista oficial
de professores. Durante esta última residência no Berlim traduziu Schopenhauer o Oráculo manual e arte de
prudência, do Baltasar Gracián, do espanhol ao alemão. Em 1830 publicou em latim a segunda edição, corrigida
e destinada ao Estrangeiro, de sua Teoria das cores, que, sob o titulo Theoria colorum physiologica eademque
primária, apareceu em três tomos no Radii scriptores ophtalmologici minore.

Atemorizado pelos progressos do cólera, abandonou Schopenhauer ao Berlim em 1831, e se dirigiu a Frankfurt
A. M. As enfermidades e o tédio que lhe atacaram durante sua residência em Frankfurt, fizeram-lhe pensar em
transladar-se temporalmente a outra parte. Escolheu Mannheim, onde permaneceu um ano, voltando outra vez a
Frankfurt em 1833, aonde permaneceu até sua morte, acontecida repentinamente o 21 de Setembro de 1860. A
época de Frankfurt pertence, além das duas Memórias Sobre a liberdade da vontade humana e Sobre o
fundamento da moral (publicadas em 1841 com o título comum dos dois problemas fundamentais da Etica),
outra, em um tomo, Complementos, edição aumentada do mundo como vontade e como representação (1844), a
1ª obra mais popular do Schopenhauer, os dois tomos Parerga e Paralipomena (1851). As obras completas
foram editadas em 1873-74 Por Julho Frauenstadt, que também publicou as Cartas sobre a filosofia de
Schopenhauer (Leipzig, 1854, nova série, 1876), e um Schopenhauer-Lexikon (1871). Outra edição completa
figura no Catálogo do Reclam, Leipzig (E. Grisebach, 6 tomos, Manuscritos do Schopenhauer; Testamento, 4
tomos, 1891-1892), e também na Biblioteca Götaschen der Weltlitteratur, com uma introdução do Rodolfo
Steiner (Stuttgart, 1894, 12 tomos). Da multidão de escritos sobre Schopenhauer, sobressaem-se as biografias e
comentários do W.Gwinner (2.aedic., 1878), R. Kober (Heidelberg, 1888), E. Grisebach (1897, no Bettelheims
«Geisteshelden»), Joh. Volkelt (1900, no Fromans Klassikern der Philosophie, tomo 10) e P. J. Moebius
(Leipzig, 1904).

O pensamento capital do Schopenhauer se pode condensar da seguinte maneira: A única qualidade que faz do
homem superior aos animais, é aquela faculdade especial chamada razão, reflexão ou pensamento, em seu mais
estrito significado; não é outra coisa que a faculdade de abstração, e sua função única é a de formar, relacionar
ou separar os conceitos, nos quais se apóia o senhorio, dignidade e grandeza do humano espírito. A capacidade
de formar conceitos ou pensamentos abstratos depende, no homem, da imaginação, faculdade em virtude da
qual sua vida se diferença tanto dos animais; mas a imaginação é também a que faz possível aquela propriedade
específica do homem, que já Platão e Aristóteles consideravam como a fonte da filosofia e da metafísica, ou
seja: a admiração.

A metafísica é o conhecimento daquilo que constitui o interior da Natureza e que condiciona a esta; transpassa
o mundo sensível ou da representação, para procurar o que este encerra dentro de si ou detrás de se, quer dizer,
a coisa em si, mas considerada, não independentemente de toda aparência, mas sim como aquilo que se nos
aparece na Natureza. É imanente, e não pode nunca chegar a ser transcendente; não se pode propor outra coisa
mais que a mera explicação e interpretação da experiência, «uma íntegra reprodução ou reflexo do mundo em
conceitos abstratos». A filosofia trata de conhecer, por meio da representação ou da aparência, o que não é
representação; portanto, a realidade do mundo. E como o tempo só tem significação para o aparente, ou seja
para o fenômeno, e não é aplicável em modo algum à essência do mundo, toda determinação ou relação
temporária deve ser excluída ou descartada do estudo da essência do mundo. Também devemos rechaçar, por
não ter fundamento algum, a usual divisão da filosofia em teórica e prática: a filosofia, quanto a seu objeto, não
faz a não ser Observar e investigar; portanto, é sempre teórica. Como chegamos ao conhecimento da realidade
do mundo? Esta é a questão cardeal da filosofia.
O único que nos é conhecido, de onde podemos partir, de onde devemos procurar o caminho para chegar ao
«interior da Natureza», é o mundo como representação. Como se produz este mundo da representação e quais
são suas formas fundamentais? A primeira e principal das formas deste conhecimento ou representação do
mundo fenomenal, é a divisão em objeto e sujeito. «Nenhuma verdade é mais certa—diz Schopenhauer—, nem
mais independente de todas as demais, nem que necessite menos de ser provada, que a de que tudo o que se
acha no entendimento, isto é, o mundo, em sua totalidade, é um objeto em relação com um sujeito. » O mundo
como representação só existe pelo sujeito e para o sujeito. É objeto, e como tal, junto com seus mais universais
forma, conhecidas a priori por nós, o princípio de razão, o espaço, o tempo e a causalidade, completamente
ideal, quer dizer, condicionado pura e simplesmente por nosso intelecto e pertencente a este. O real, a coisa em
si, por conseguinte, não pode nunca ser objeto de nosso conhecimento, e deste modo Schopenhauer, de acordo
perfeito com Kant, nega a possibilidade de chegar a conhecer a coisa em si pelo mero caminho do
conhecimento objetivo, que é, e será sempre, representação. O problema, pois, do conhecimento real das coisas
seria insolúvel se não tivéssemos aberto outro caminho, mais obscuro, mas mais seguro também, ou seja: a
consciência de nós mesmos, ou o conhecimento de nós mesmos (em sentido filosófico); esse caminho, por dizê-
lo assim, subterrâneo; essa secreta relação com a coisa em si, a qual, como por traição e por astúcia, introduz-
nos na fortaleza, que nos tivesse sido impossível tomar por um ataque exterior.
Assim, pois, o conhecimento de nós mesmos é a última meta de toda especulação, porque é a chave do
conhecimento da essência interior das coisas. E posto que nosso eu é também objeto de nosso conhecimento, e
pertence pelo mesmo ao mundo das representações, o princípio de razão, aplicado a nosso mundo interior,
proporciona-nos um guia que nos indica a direção em que a essência das coisas deve buscar-se. O princípio de
razão suficiente é o princípio de tudo conhecimento, e não é suscetível de demonstração alguma, posto que toda
demonstração necessariamente lhe pressupõe. Expressa que tudo procede de algo, que toda representação tem
necessariamente uma razão que a explica. Todo o campo de nossas representações se divide em quatro classes,
em cada uma das quais, o princípio de razão se apresenta em uma forma distinta e própria. Estas quatro formas
ou desmembraciones do mesmo são o que Schopenhauer, usando de uma feliz expressão, chama «a quádruplo
raiz do princípio da razão suficiente». Na classe das representações abstratas ou conceitos aparece o princípio
de razão suficiente como princípio de conhecimento (principium rationis sufficientis cognoscendi). «Conforme
—diz—, para que um julgamento expresse um conhecimento, deve apoiar-se em uma razão suficiente: por
causa desta qualidade se diz que seu predicado é verdadeiro.» Para a classe de representações que constituem a
parte formal do mundo empírico, isto é, para as formas aprioristicas de nossa intuição, para o tempo e o espaço,
rege o princípio de razão do ser (principium rationis sufficientis essendi). Baixo esta figura se pode formular
como «a lei com arrumo a qual as partes do espaço e do tempo se correspondem umas com outras, no que se
refere à situação e à sucessão», e seu domínio próprio são as matemática. O mundo dos objetos concretos ou
empíricos forma uma nova classe de representações: as representações empíricas, intuitivas, totais, cujo
princípio explicativo é o princípio de razão do devir (principium rationis sufficientis fiendi), ou seja a lei de
causalidade. Este se apresenta na natureza baixo três formas distintas: como causa, em sentido estrito; como
excitação ou estímulo, e como motivo, distinção que corresponde à diferença essencial entre corpos
inorgânicos, novelo e animais. A motivação não é outra coisa que a causalidade obrando por meio do
conhecimento. O motivo pertence à categoria das causas; mas a maneira como conhecemos nós a motivação é
muito diferente da. maneira de conhecer as duas primeiras formas, por isso não precisamos empregar, para a
classe de representações, à qual só se referem motivos, ou seja, para nossos atos voluntários (resoluções e
ações), o princípio de razão, em sua forma geral de lei de causalidade, mas sim devemos separar uma forma
especial, a quarta e última forma do princípio de razão. Agora bem: esta é a lei de motivação ou o princípio de
razão do obrar (principium rationis sufficientis agendi).
Como os princípios lógicos, matemáticos e físicos nos manifestam conjuntamente no mundo fenomenal, é
impossível encontrar por este caminho o princípio do mundo real. Tratemos de fazê-lo pelo caminho dos
motivos ou dos princípios éticos. O motivo é o fim de nossos atos, presente na consciência ou conhecido por
ela. Assim, pois, para a eficácia do motivo são necessárias duas condições: o fim e seu conhecimento.
Conhecemos o fim por meio do intelecto; mas em onde obra o motivo como tal? Onde há fim, há também,
necessariamente, vontade de lhe realizar. Assim, pois, a vontade, precede e o fim engendra. A capacidade para
obrar segundo os motivos é o princípio de conhecimento, posto que os seres que obram por motivos, isto é,
todos os seres animados, são seres que possuem representações (inteligentes), e ao mesmo tempo vontade, ou
seja seres volitivos. O primeiro é o princípio do mundo ideal ou das representações, e como fora deste não há e
nem pode haver nada mais que o dele representado, isto é, o princípio do mundo real, daqui que minha vontade
seja o núcleo de minha existência, de meu ser, pois o total da existência humana consiste indubitavelmente em
dois fatores: conhecimento e atos. O princípio do conhecimento é o intelecto, o princípio das ações é a vontade;
e como quero que um lado do mundo, o lado ideal, corresponde ao intelecto, o outro lado, ou seja o real, deve
estar representado pela vontade. E uma vez reconhecida assim nossa própria essência como vontade, não
demoraremos para declarar que a essência do mundo é esta mesma vontade, manifestando-se, tanto no mundo
orgânico como em o inorgânico; em uma palavra, declararemos que esta vontade é a coisa em si, porque entre
os motivos e a excitação ou a causa, em sentido estrito, só há diferença de grau, e, por conseguinte, em sua raiz
são idênticos. Os motivos são fins conscientes e queridos, enquanto que a excitação e a causa são cegas, não
conhecidas, explicáveis pela lei geral do fim e feita abstração do intelecto, isto é, pela pura vontade
inintelectual.
Deste modo encontramos no domínio dos motivos, em nosso próprio eu, uma explicação da coisa em si; mas
explicação não é a palavra, pois achar a coisa em sim, isto é, fazê-la objeto de conhecimento, não se pode dizer
dela como de tal coisa em si, a não ser considerada como uma representação, pois ao designar Schopenhauer a
vontade como coisa em se, não devemos entendê-lo ao pé da letra, mas sim como uma pura denominação a
potiori, isto é, como uma denominação do gênero por uma de suas mais excelentes qualidades; a coisa em si,
para ser pensada como algo objetivo, deve tomar o nome e o conceito de alguma de suas manifestações, e, por
certo, o toma aqui da mais cumprida e evidente, qual é a vontade humana. Esta concepção do princípio do
mundo como vontade não é um fato isolado na história: Schopenhauer cita freqüentemente máximas e
sentenças dos filósofos antigos e modernos, que contêm em si este pensamento fundamental; mas o maior dos
predecessores em que se apóia e de que parte é Kant, em cuja doutrina do caráter inteligível aparece bem
claramente a coisa em si como vontade. Por isso precisamente é este ponto da filosofia kantiana, junto com seu
pressuposto, da Estética transcendental, o que Schopenhauer coloca sobre tudo o resto, declarando-o-o mais
formoso e profundo que a mente humana produziu.
A explicação do mundo como um princípio ético (vontade) edifica realmente a filosofia schopenhaueriana
sobre a ética, dando a esta, em seu mais estrito sentido, um fundamento que até aqui lhe tinha faltado. «Só a
metafísica—diz Schopenhauer—é real e imediatamente a base da ética, a qual originariamente está construída
eticamente sobre a matéria da ética, ou seja a vontade. Por isso eu, com muito mais direito que Espinosa,
tivesse podido titular Ética Á minha Metafísica.» A vontade, como coisa em si, é a condição do mundo
fenomenal, e está fora do domínio do princípio de razão, sendo, por conseguinte, sem princípio e absolutamente
livre. O querer em si, precisamente porque completa nosso ser íntimo e coincide com nossa consciência, não se
pode definir em modo algum, e sim só descrever como uma força cega eterna, infinita, e como tal, a mais alta
dor imaginável. A vontade sofre por si mesmo, e busca redenção e não a pode encontrar a não ser em seu
próprio aniquilamento; enquanto a vontade permanece mera vontade, dura o desejo e o sofrimento. Para pôr um
fim a este sofrimento, a vontade deve conhecer-se se mesma; por dizê-lo assim, voltar sobre si mesmo, criar
uma luz que a ilumine e que a traga para quietude: esta luz é o intelecto; por meio dele chega a vontade ao
conhecimento de se mesma. O intelecto é, portanto, produto da vontade; mas não, como esta, primário e
metafísico, a não ser secundário e físico; físico porque está ligado a um organismo. A vontade deve, segundo
isto, produzir primeiro a natureza orgânica, isto é, deve representar-se como tal, objetivar-se; mas a natureza
organizada tem como pressuposto a natureza inorgânica; por isso a vontade se vê obrigada a começar sua obra
redentora em um ordem até mais baixo. A Natureza inteira, até chegar ao homem, nos oferece como uma série
de graus de objetivação da vontade, cuja significação metafísica mais profunda é a consciência de si mesmo, a
qual só se efectúa na mais alta floração do intelecto, no conhecimento humano. O homem é, por conseguinte, o
momento critico da vontade e o redentor da Natureza. Como se consuma este processo de redenção?
Em cada grau de objetivação da vontade ou caráter empírico, na modalidade empírica de cada fenômeno,
reflete-se o grau correspondente de consciência da vontade; esta consciência, como «único feito em se», é um
processo inteligível, um desenvolvimento, uma série de atos de vontade singulares, imediatos, em cada um dos
quais a vontade fixa o correspondente grau de seu conhecimento, fazendo-se deste modo objeto de se própria.
Estas objetivações imediatas e adequadas da vontade são denominadas pelo Schopenhauer ideia (platônicas). A
idéia se distingue da coisa em se em que—na forma mais universal da aparência, a da representação, em geral
—chega a ser um objeto para um sujeito (e não até no tempo, espaço e causalidade). A idéia é a propriedade
inteligível, o caráter inteligível de todas as. coisas, o qual, não estando subordinado ao princípio de razão, é
absolutamente livre, em oposição a sua representação no mundo dos fenômenos, como caráter empírico, o qual
em todas suas manifestações, nos atos e em os desejos, é completamente determinado. O princípio de
conhecimento para a liberdade de nosso ser em si é o sentimento humano geral de responsabilidade, que refere-
se aos fatos, mas em razão à essência do homem, ou seja seu caráter inteligível; e só onde existe liberdade,
originalidade ou aseidad, pode-se pregar a responsabilidade.
O mundo das idéias constitui o meio entre o absolutamente real (a vontade) e o absolutamente ideal (a
representação); mas como estas idéias entram nas formas da aparência, e como, em geral, a doutrina da
objetivação da vontade se une com a da idealidade do espaço e do tempo, é problema ao qual em vão
procuramos no Schopenhauer uma solução satisfatória: tudo o que sabemos é que onda individualidade» (e,
portanto, também a objetivação em geral) não só descansa no principium individuationis, e, portanto, não é em
modo algum mera aparência, mas sim tem suas raízes na coisa em si, ou seja na vontade, pois seu caráter
mesmo é individual. A profundidade destas raízes pertence aos problemas cuja solução não tenta procurar; em
uma palavra, as idéias entram nas formas da aparência. As coisas particulares de todos os tempos e lugares não
são outra coisa que as idéias diversificadas, e, portanto, decaídas de sua pura objetividade. Como quero que, no
mundo da aparência, o principium individualionis domina (tempo e espaço), este mundo constitui um lugar de
ilusão e de sofrimento. A vontade, diversificando-se e individualizando-se, e constituindo deste modo a vontade
das estoque singulares, chega a ficar em conflito consigo mesma, pois está sumida no engano sobre sua própria
essência. O principium individuationis é o «véu de Maia» que, enganando ao indivíduo, separa-lhe de outros,
lhe impedindo conhecer a identidade de todos os seres.
A luta dos indivíduos uns com outros, ou, para empregar uma frase moderna, a luta universal pela existência,
não é outra coisa que a luta da vontade consigo mesma e a conseqüência necessária daquele engano. Um mundo
assim criado, no qual domina a ilusão e o egoísmo, conseqüência daquela, e que está entregue a uma luta
eterna, não pode ser obra da bondade e sabedoria de um Deus, e até menos o desenvolvimento deste mesmo
Deus. O panteísmo é absurdo; o teísmo se pode imaginar, mas não se pode provar. O único ponto de vista do
qual pode ser considerado um tão triste mundo como o nosso é o ateísmo, o qual não se deve confundir com a
irreligiosidad, como tampouco o teísmo com a religião, como está acostumado a acontecer; antes bem, o
ateísmo, e sua conseqüência obrigada o pessimismo, é a única concepção verdadeiramente religiosa do mundo,
pois só pela convicção (contrária ao teísmo) da liberdade inteligível de meu ser e da vitória do mal como um
poder positivo em o mundo, posso eu me desviar do mal e tomar uma nova direção. Agora bem: o egoísmo é o
princípio constitutivo do mundo das aparências, a fonte de todos os males; por conseguinte, o mal. Tem suas
raízes, como já se há dito, na vontade de viver, a qual a sua vez está condicionada ou determinada pela
causalidade no principium individuationis, esse «véu de Maia». Uma vez aberto este véu, a vontade se
reconhece a si mesmo em sua essência, e cessa o querer, porque o querer não era outra coisa que este já
conseguido conhecimento de si mesmo. Este último estado do processo do autoconocimiento da vontade,
encontra sua expressão inteligível na idéia do homem como sujeito involuntário do conhecimento. No mundo
dos fenômenos se apresenta esta ideia em duas formas: como gênio e como santo. Ambos oferecem sobre a
restante humanidade uma anormal separação do intelecto e a vontade, o que lhes proporciona a capacidade de
adquirir um conhecimento intuitivo da essência do mundo. A visão da idéia, a fusão em o objeto ou
objetivação, a contemplação pura, a cessação do indivíduo, o viver em o tudo e para o tudo, o aniquilamento da
vontade, em uma palavra, é o que têm de comum o santo e o gênio. Diferenciem-se, entretanto, um do outro,
em parte, pela maneira como empregam seu conhecimento; em parte, pela duração do mesmo: o que o gênio
contempla e conhece, realiza-o na obra de arte; o santo, pelo contrário, faz uma obra de arte de sua própria vida:
o gênio é transcendente; o santo, imanente. A matéria da arte é o mundo da idéia, e as artes particulares são
representações de idéias particulares. Como os dois extremos da Natureza, de uma parte, o mundo inorgânico, e
de outra, o homem, assim nos manifestam os dois extremos na série das artes: por um lado, a arquitetura, como
representação das idéias que constituem o grau ínfimo da objetivação (pesadez, coesão, dureza); por outro lado,
a poesia, em seu gênero mais perfeito, como expressão da essência do homem, ou seja, seu caráter: o drama. A
música ocupa uma posição completamente especial entre as Belas artes. Não é imitação ou representação de
idéias particulares, a não ser expressão da vontade mesma; por isso seu efeito é mais poderoso que o das outras
Belas artes, «pois estas só falam de sombras, enquanto que a música fala da essência». «Pudéssemos chamar,
segundo isto, ao mundo que encarna a música, a vontade personificada»; «se pudéssemos dar uma explicação
certa, cumprida e acabada da música, isto é, se pudéssemos reduzi-la a um conceito particular, esta seria de uma
vez uma explicação do mundo, e, portanto, a verdadeira filosofia».
O gênio é sagrado, porque, emancipando-se dos limites do conhecimento, ou seja, do principium
individuationis, chega a sumir-se no mundo da liberdade primária.
A intuição genial é, falando metafisicamente, a completa autointuición ou conhecimento de si mesmo, da
vontade em si. O fim das objetivações da vontade, ou seja o fim do mundo, é alcançado deste modo, e o mundo
das aparências perde sua significação, pois este não era outra coisa que a expressão da vontade tratando de
conhecer-se se própria. Não fica, pois, à vontade outra coisa que assinar uma paz eterna consigo mesma, um
eterno descanso, uma renúncia de si mesma, com o qual o estado transcendente do gênio se converterá em um
estado imanente. Este último ato metafísico da vontade se expressa no mundo físico por intermédio do
fenômeno da santidade. Santidade é o conhecimento exato da identidade de todos os seres. Neste conhecimento
se apóia a característica total da vida dos Santos. Assim, pois, a identidade é o único verdadeiro e real, sendo a
pluralidade, isto é, o mundo empírico, cativo no principium individuationis, o falso e meramente aparente. O
tat-twam assim («isto é você»), a fórmula indica deste conhecimento, é o regulador da vida, e obra sobre a
vontade, não já, como o anterior e incompleto conhecimento, como motivo, mas sim como quietivo, isto é,
adormecendo e anulando o egoísmo. A única virtude positiva, fundamento de toda moral, a compaixão, será a
fonte de todas as ações. O compassivo se diz: «Meu verdadeira e interior essência existe em cada ser vivo tão
imediatamente como se me revela para mim mesmo em minha consciência.» Em qualquer lugar que volta os
olhos, vê uma Humanidade enferma, animais que sofrem também e um mundo perecível; mas o misericordioso
vê este mundo tão perto dele como o egoísta sua própria pessoa. Ante tal conceito do mundo, corno terá que
afirmar esta vida por atos de vontade, atando-se a ela cada vez mais fortemente e metendo-se em si mesmo cada
vez mais?... Retrocederá espantado ante os prazeres, nos quais vê a afirmação desta vida individual e dolorosa.
O homem chega, deste modo, ao estado de livre renúncia, de resignação, de verdadeira calma e de completa
abdicação da vontade. Esta direção da vontade se manifesta no ascetismo, que não se pode chamar
propriamente objetivação da vontade: posto que é a meta de toda a gradação de objetivações; a cessação da
aparência não reside já mais ou menos na mesma aparência; é a contradição da aparência consigo mesma; a
aparência subsiste ainda, mas não pertence já ao mundo dos fenômenos. É o momento em que a liberdade toca
por primeira e última vez ao fenômeno, para pôr um fim a este e fundar o reino da graça. A liberdade, para a
qual tendem todos os seres, não pode, como a imediata série dos conhecimentos, ser obtida pela força, mas sim
deve ser esperada com paciência. Será-nos concedida com graça, depois de uma completa expiação, a qual não
é outra que a vida mesma.
Com a renúncia da vontade está alcançado o destino do homem e conseguida a bem-aventurança; mas a bem-
aventurança não pode consistir em outra coisa, posto que descansa na negação do único real e na cessação do
único existente para nós (o mundo), que no não-ser, em um nada, no aniquilamento. Esta nada (o Nirvana dos
budistas) não pode ser conhecida por nós em tanto existimos: permanece para nós sempre uma nada, ante a qual
nosso ser retrocede e retrocederá sempre aterrorizado. «Nosso aborrecimento de um nada não expressa mas sim
amamos sobre todas as coisas a vida, e não somos a não ser esta vontade de viver, e não conhecemos outra
coisa que ela»; mas se voltarmos a vista da miséria e desamparo de nossa própria existência a daqueles que,
vencendo ao mundo, hão conseguido chegar à completa consciência de sua vontade, assombraremo-nos de seu
serenidade e de sua paz interior, «completa bonança da alma», cujo reflito na face de estes escolhidos é
inequívoca revelação de que o acesso a essa nada tão temida por nós constitui a verdadeira vida: só perdurará a
idéia de alcançar a morte do indivíduo até antes da morte física, de recuperar a vontade e de consumar a obra da
redenção.
O primeiro discípulo e secuaz do Schopenhauer foi o já chamado Julho. Frauenstadt (falecido em 1878), mas o
mais fiel é o filósofo sanscritista Paul Deussen, até vivo (Elementos de metafísica, 2.a edic., 1890). Influídos
pelo Schopenhauer, e señaladamente por seu pessimismo, vemos julho Bahnsen, falecido em 1881 (Contradição
entre a ciência e a essência do mundo, 1880-81), e ao F. Mainlander, o qual selou sua Filosofia da liberação
com o suicídio. Entre os schopenhauerianos pode também incluir o africanista G. Peters (Vontade do mundo e
mundo da vontade, 1883) e ao Ricard Wagner.
Um verdadeiro continuador da filosofia schopenhaueriana encontramos no Eduardo Hartmann (nascido em
1842, no Berlim), com sua Filosofia do inconsciente (1869, 10.a edição, 3 tomos, 1890). Sobre sua posição com
respeito ao Schopenhauer e aos demaiors sistemas da primeira metade do século XIX, se expressa ele mesmo
no prólogo da citada obra da seguinte maneira: «Meu sistema é uma síntese do Hegel e Schopenhauer, com
notório predomínio do primeiro, completado com a introdução dos princípios da filosofia positiva do Shelling e
do conceito do inconsciente do primeiro sistema do Shelling; o postulado provisório abstrato-monístico deste
sistema é uma fusão do idealismo do Leibniz com o realismo das modernas Ciências Naturais, em forma de
monismo concreto, no qual o pluralismo fenômeno-realista chega a seu ponto culminante, e o sistema assim
obtido está baseado em bases empíricas e construído por meio do método indutivo das modernas Ciências
Naturais e Históricas.» A princípio apareceu sua filosofia decisiva; mais tarde, as novas tendências e o espírito
dos tempos, hostil a toda especulação, foram relegando-a segundo término. Enquanto isso trabalhava sem
descanso em alargar seu sistema por todos os lados (Fenomenología da consciência sensível, 1879, e 2.a edição,
1886; Filosofia da religião, 1881-82; Estética, 1886-87; Doutrina das categorias, 1896), e nos últimos anos se
dispunha a levar a cabo o estudo critico da evolução e do estado atual da nova filosofia alemã em cada uma de
suas disciplinas (História da metafísica, 1899 -1900; A psicologia moderna, 1901). Entre os secuaces de
Hartmann sobressai Arturo Drews, nascido em 1865 (A especulação alemã desde Kant, 2.a edição, 1895).
Sob a influência da filosofia schopenhaueriana a harmanniana se manifesta como «mística» (eclética), ou
filosofia do espiritismo e ocultismo, representada pelo B. Hellenbach (Os prejuízos da Humanidade, 1879-80, e
outras), e pelo G. do Prel (1889-99, Filosofia da mística, Psicologia monística, etc.).

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