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Ministério da Educação – MEC

Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES


Diretoria de Educação a Distância – DED
Universidade Aberta do Brasil – UAB
Programa Nacional de Formação em Administração Pública – PNAP
Bacharelado em Administração Pública

FILOSOFIA E ÉTICA

Selvino José Assmann

2009
© 2009. Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Todos os direitos reservados.
A responsabilidade pelo conteúdo e imagens desta obra é do(s) respectivos autor(es). O conteúdo desta obra foi licenciado temporária e
gratuitamente para utilização no âmbito do Sistema Universidade Aberta do Brasil, através da UFSC. O leitor se compromete a utilizar o
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1º ao 3º, sem prejuízo das sanções cíveis cabíveis à espécie.

A848f Assmann, Selvino José


Filosofia e Ética / Selvino José Assmann. – Florianópolis : Departamento de Ciências da
Administração / UFSC; [Brasília] : CAPES : UAB, 2009.
166p. : il.

Bacharelado em Administração Pública


Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-61608-74-3

1. Filosofia – História. 2. Ética. 3. Ética profissional. 4. Administração pública. 5. Educação


a distância. I. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Brasil). II.
Universidade Aberta do Brasil. III. Título.

CDU: 174

Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071


PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Luiz Inácio Lula da Silva

MINISTRO DA EDUCAÇÃO
Fernando Haddad

PRESIDENTE DA CAPES
Jorge Almeida Guimarães

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA


REITOR
Álvaro Toubes Prata
VICE-REITOR
Carlos Alberto Justo da Silva
CENTRO SÓCIO-ECONÔMICO
DIRETOR
Ricardo José de Araújo Oliveira
VICE-DIRETOR
Alexandre Marino Costa
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA ADMINISTRAÇÃO
CHEFE DO DEPARTAMENTO
João Nilo Linhares
SUBCHEFE DO DEPARTAMENTO
Gilberto de Oliveira Moritz
SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Carlos Eduardo Bielschowsky
DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
DIRETOR DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
Celso José da Costa
COORDENAÇÃO GERAL DE ARTICULAÇÃO ACADÊMICA
Nara Maria Pimentel
COORDENAÇÃO GERAL DE SUPERVISÃO E FOMENTO
Grace Tavares Vieira
COORDENAÇÃO GERAL DE INFRAESTRUTURA DE POLOS
Francisco das Chagas Miranda Silva
COORDENAÇÃO GERAL DE POLÍTICAS DE INFORMAÇÃO
Adi Balbinot Junior
COMISSÃO DE AVALIAÇÃO E ACOMPANHAMENTO – PNAP
Alexandre Marino Costa
Claudinê Jordão de Carvalho
Eliane Moreira Sá de Souza
Marcos Tanure Sanabio
Maria Aparecida da Silva
Marina Isabel de Almeida
Oreste Preti
Teresa Cristina Janes Carneiro

METODOLOGIA PARA EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


Universidade Federal de Mato Grosso

COORDENAÇÃO TÉCNICA – DED


André Valente de Barros Barreto
Soraya Matos de Vasconcelos
Tatiane Michelon
Tatiane Pacanaro Trinca

AUTOR DO CONTEÚDO
Selvino José Assmann

EQUIPE DE DESENVOLVIMENTO DE RECURSOS DIDÁTICOS CAD/UFSC


Coordenador do Projeto
Alexandre Marino Costa
Coordenação de Produção de Recursos Didáticos
Denise Aparecida Bunn
Supervisão de Produção de Recursos Didáticos
Flavia Maria de Oliveira
Designer Instrucional
Denise Aparecida Bunn
Andreza Regina Lopes da Silva
Supervisora Administrativa
Erika Alessandra Salmeron Silva
Capa
Alexandre Noronha
Ilustração
Igor Baranenko
Projeto Gráfico e Finalização
Annye Cristiny Tessaro
Editoração
Rita Castelan
Revisão Textual
Sergio Meira

Créditos da imagem da capa: extraída do banco de imagens Stock.xchng sob direitos livres para uso de imagem.
PREFÁCIO

Os dois principais desafios da atualidade na área


educacional do país são a qualificação dos professores que atuam
nas escolas de educação básica e a qualificação do quadro
funcional atuante na gestão do Estado Brasileiro, nas várias
instâncias administrativas. O Ministério da Educação está
enfrentando o primeiro desafio através do Plano Nacional de
Formação de Professores, que tem como objetivo qualificar mais
de 300.000 professores em exercício nas escolas de ensino
fundamental e médio, sendo metade desse esforço realizado pelo
Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB). Em relação ao
segundo desafio, o MEC, por meio da UAB/CAPES, lança o
Programa Nacional de Formação em Administração Pública
(PNAP). Esse Programa engloba um curso de bacharelado e três
especializações (Gestão Pública, Gestão Pública Municipal e
Gestão em Saúde) e visa colaborar com o esforço de qualificação
dos gestores públicos brasileiros, com especial atenção no
atendimento ao interior do país, através dos Polos da UAB.
O PNAP é um Programa com características especiais. Em
primeiro lugar, tal Programa surgiu do esforço e da reflexão de uma
rede composta pela Escola Nacional de Administração Pública
(ENAP), do Ministério do Planejamento, pelo Ministério da Saúde,
pelo Conselho Federal de Administração, pela Secretaria de
Educação a Distância (SEED) e por mais de 20 instituições públicas
de ensino superior, vinculadas à UAB, que colaboraram na
elaboração do Projeto Político Pedagógico dos cursos. Em segundo
lugar, esse Projeto será aplicado por todas as instituições e pretende
manter um padrão de qualidade em todo o país, mas abrindo
margem para que cada Instituição, que ofertará os cursos, possa
incluir assuntos em atendimento às diversidades econômicas e
culturais de sua região.
Outro elemento importante é a construção coletiva do
material didático. A UAB colocará à disposição das instituições
um material didático mínimo de referência para todas as disciplinas
obrigatórias e para algumas optativas. Esse material está sendo
elaborado por profissionais experientes da área da administração
pública de mais de 30 diferentes instituições, com apoio de equipe
multidisciplinar. Por último, a produção coletiva antecipada dos
materiais didáticos libera o corpo docente das instituições para uma
dedicação maior ao processo de gestão acadêmica dos cursos;
uniformiza um elevado patamar de qualidade para o material
didático e garante o desenvolvimento ininterrupto dos cursos, sem
paralisações que sempre comprometem o entusiasmo dos alunos.
Por tudo isso, estamos seguros de que mais um importante
passo em direção à democratização do ensino superior público e
de qualidade está sendo dado, desta vez contribuindo também para
a melhoria da gestão pública brasileira, compromisso deste governo.

Celso José da Costa


Diretor de Educação a Distância
Coordenador Nacional da UAB
CAPES-MEC
SUMÁRIO

Convite para pensar............................................................................................ 9

Unidade 1 – O que é Filosofia

O que é filosofia?................................................................................................ 19
A atitude filosófica........................................................................................ 20
Especificidade do conhecimento filosófico...................................................... 23
Os gregos inventam a filosofia....................................................................... 25
O sentido da filosofia............................................................................... 28
Características gerais da História da Filosofia..................................................... 36
A filosofia antiga........................................................................................ 37
A filosofia medieval................................................................................. 39
A filosofia moderna....................................................................... 46
Sócrates e Platão: um confronto entre dois modos de entender a filosofia.............. 61
A concepção socrática de filosofia: busca de sabedoria............................... 62
A concepção platônica de filosofia: encontro da sabedoria.......................... 67
Filosofia e Ética

Unidade 2 – Ética

Sobre a ética, a partir da crise ética............................................................... 85


Ética e moral....................................................................................... 86
Ética antiga, medieval e moderna................................................................. 91
Ética da convicção e ética da responsabilidade........................................... 99
Afinal, o que é ética?.................................................................................... 107
“Crise ética” e “crise da ética”..................................................................... 110
Dificuldade atual de formular uma ética....................................................... 112
A ética e a política...................................................................................... 117
Poder, política e ética.................................................................................... 118
Duas concepções de poder................................................................. 123
O poder como relação entre seres humanos........................................... 126
Poder e liberdade.................................................................................... 129
O problema ético, a “ética profissional” e a responsabilidade social na
Administração Pública Brasileira.......................................................................... 136
Administração pública brasileira e ética....................................................... 143

Considerações finais........................................................................................ 156

Referências.................................................................................................... 162

Minicurrículo.................................................................................................... 166

8 Bacharelado em Administração Pública


Apresentação

CONVITE PARA PENSAR

Tudo corre. Escorre. Tudo muda. Até na universidade


professores e alunos correm cada vez mais. Nada permanece. Tudo
é líquido. E todos corremos. Se não o fizermos, outros passarão
por cima de nós, e seremos considerados preguiçosos ou
incompetentes. Mas em geral não sabemos para onde corremos,
mesmo que daqui a pouco, não se sabe quando, venhamos a dar
de cara com a morte. Inevitavelmente. E ficamos produzindo,
fazendo coisas...
Precisamos ser competentes tecnicamente para que alguém
nos dê um lugar, um emprego, mas também flexíveis, maleáveis,
para podermos nos adaptar sempre ao que se nos pede. Nós, todos
nós sem exceção, é que devemos adaptar-nos, e não o mundo a
nós, pois o mundo é assim como é. Paradoxalmente, o mundo que
parece mudar tanto, parece também ser inflexível e imutável. É
preciso mover-se, a rede é vasta, os compromissos são tantos, as
expectativas muitas, as oportunidades abundantes, e o tempo é uma
mercadoria rara...
A vida se torna uma loja de doces para apetites
transformados, até pelo marketing, em voracidade cada vez maior.
Estamos sempre na beirada entre estar dentro e estar fora, entre ser
“incluído” e poder ser “excluído” a qualquer hora. Temos que estar
atentos, correndo o risco da depressão, sempre. A insegurança é
nossa companheira permanente, na companhia de gente insegura.
Sei que do meu lado também há gente tão insegura quanto eu.
Belo consolo! Mas isso, em vez de criar solidariedade entre os
inseguros, aumenta a indiferença, a irritação, a vontade de
competentemente empurrar para longe todos os concorrentes ao

Módulo 1
9
Filosofia e Ética

meu lado. Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza,


todos querem que os outros fiquem mais inseguros, abandonem o
barco e o deixem mais tranquilo para mim. E se diz que isso é a
insofismável lei do mercado, que isso é assim, that’s it, como um
tempo dizia a propaganda de um refrigerante conhecido: esta é a
razão das coisas, é uma necessidade, e basta. Isso é liberdade. Mas
não há escolha! Temos a sensação de nunca termos sido tão livres
e, ao mesmo tempo, a percepção de que somos totalmente incapazes
de mudar algo.
Sob outro aspecto, sentimo-nos vivendo em um mundo no
qual, claramente, vale o privado, o interesse privado, e não o público,
nem o interesse público. Ou então, temos uma visão muito paradoxal
da relação entre público e privado: por um lado, tudo o que está
diretamente situado como público aparece demonizado, como se
fosse o lugar do mal, da indecência, lugar em que seria impossível
fazer o bem, lugar em que só há interesses privados. E isso ocorre
ao mesmo tempo em que consideramos o âmbito privado como um
âmbito no qual se faz o bem sempre, no qual tudo é legitimável ou
justificável. Como conciliar isso? Certamente tudo isso mexe na
visão que se tem da política e do político, do Estado, do serviço
público, do funcionário público de governos municipais, estaduais
e federais, na visão que se tem da administração pública em geral.
Exemplo desta visão sobre o que é público e sobre a função
do Estado e do serviço público é o que disse Margareth Tatcher, ao
exercer recentemente o cargo de primeiro-ministro da Inglaterra,
defendendo o reinado absoluto da flexibilidade. Ela disse sem
eufemismos: “Não existe esta coisa chamada sociedade”. Só há
indivíduos, homens e mulheres como indivíduos, e pronto! E o
Estado? Deve ser uma instituição que deve funcionar como empresa
eficiente a serviço do interesse dos indivíduos. O governante deve
ser meramente um gestor, nada mais. O Estado deve, pois, ser
exclusivamente um meio para fins privados. A política também deve
ser apenas meio. E os outros seres humanos? Estes só importam se
me servem, individualmente, para alguma coisa. Mas quando todos
os outros são apenas meios, também eu sou transformado em puro
meio pelos outros, inevitavelmente...

10 Bacharelado em Administração Pública


Apresentação

Nesta situação de insegurança, de pretensa primazia do


privado e do indivíduo como tal, em que, paradoxalmente, sobra
pouca alternativa, individual ou social, para mudarmos algo ao nosso
redor e dentro de nós, como ficam os administradores tanto públicos
quanto privados? Ousaría dizer que eles administram, gerem,
executam, organizam a execução de tarefas que em geral não são
determinadas por eles mesmos, mas por outros, e têm que ser
competentes. Do contrário serão jogados para fora do jogo, da corrida
que está acontecendo globalmente, cada vez mais globalmente.
Também os administradores devem correr. E saber apresentar-se,
oferecer-se, vender-se no mercado. E deixar-se comprar também.
Devem ser “líquidos”, flexíveis, amoldando-se cada dia a novas
exigências estabelecidas não se sabe por quem, mas exigências
consideradas “naturais”, ou melhor, estabelecidas pelo mercado, este
estranho senhor sem identidade que é poderoso como ninguém e
que tem suas leis, que está em todo lugar, que não deixa ninguém
fora de seu controle, não dá trégua a ninguém, e nem dá tempo para
nada mais do que ficar correndo a seu serviço. Até que ele nos diga:
“você não me serve mais”! “Você é supérfluo. Você atrapalha!”.
Inclusive o Estado, o aparelho estatal, os serviços públicos,
quando deixam de ser úteis ao mercado, fazem com que os seres
humanos sejam jogados à margem e obrigados a se contentarem
em esperar a morte chegar; e às vezes até há gente que fica torcendo
para que isso aconteça o mais rápido, para não atrapalharmos o
trânsito e o funcionamento do mercado. E se alguém morrer, que
morra, não em casa, mas no hospital especializado, “dignamente”
(a morte pode ser digna?!), para não atrapalhar o sistema de
produção, a que o Estado deve servir, e para nos ajudar a
esquecermos que também nós iremos morrer.
Tudo isso se tornou normal. Cinicamente, duramente normal.
E se diz que não pode ser diferente. Que a história não pode mais
mudar, ou até já terminou. Que estamos na fase final da história.
E – repito – todos passamos a viver como se nada pudesse ser
mudado nesse modo de ser das coisas, e que só nos resta uma
coisa: nos iludirmos de que somos livres enquanto nos adaptamos
ao que existe!

Módulo 1
11
Filosofia e Ética

Diante de tudo isso, de que adianta pensar? Pensar nos faz


mal, impedindo que sejamos competitivos. Pensar causa transtorno
no tráfego. Pensar nos faz parar, nos leva provavelmente a sermos
expulsos da corrida por incompetência, por falta de flexibilidade e
de produtividade. Ou então – como diriam os franceses que
inventaram o prêt-à-porter (pronto para usar) – agora temos o prêt-
à-penser. É só pagar que o mercado já oferece tudo pensado, para
ser usado. Por isso, os livros mais lidos são os de “autoajuda”, que
têm receitas precisas para tudo, para nosso corpo e nossa alma. E
não gostamos dos livros que nos fazem pensar e nos convidam a
nos colocar em jogo por nossa própria conta e risco.
A globalização nos possibilita o acesso cada vez maior a
informações, e maior possibilidade de comunicação. Mas isso de
modo algum parece favorecer uma visão mais crítica do que
acontece, nem favorece maior comunicação de fato. E quando as
ofertas são demasiadas, as escolhas parecem diminuir em vez de
aumentar, sobretudo porque o assédio das informações impede que
pensemos. Neste contexto, podemos afirmar que nossa civilização
atual parou de se questionar, parou de pensar. E que é esse o nosso
problema fundamental, pois o preço do silêncio passa a ser pago
na dura moeda do sofrimento humano.
Pode até ser que nos sintamos mais “felizes”, pois nos
sentimos mais competentes e mais criativos para satisfazer nossos
desejos, tanto no supermercado dos sabonetes e dos vinhos, quanto
naquele dos desejos sexuais. Só que esta felicidade tem tudo para
ser superficial, insatisfatória, a ponto de ser instigante a afirmação
de um atento leitor do que nos acontece hoje, como Umberto Eco:
“Alguém que é feliz a vida toda é um cretino; por isso,
antes de ser feliz, prefiro ser inquieto”. E ser inquieto é, neste
caso, não se deixar engolir pela lógica que estamos descrevendo, é
tentar pensar também.
Com Zygmunt Bauman (BAUMAN, 1999, p. 11), ousamos
arrematar: “Questionar as premissas supostamente inquestionáveis
do nosso modo de vida é provavelmente o serviço mais urgente que
devemos prestar a nossos companheiros humanos e a nós mesmos”.
Talvez nem sempre saibamos quais são as perguntas mais

12 Bacharelado em Administração Pública


Apresentação

importantes que devemos fazer, ou então, nós que nos achamos


tão estupendamente “modernos”, “criativos”, nos damos conta que
estamos repetindo as mesmas perguntas que já se fazem há séculos,
há milênios. E esquecemos as respostas já dadas ou os silêncios,
sem resposta, já manifestados. Já que o passado não interessa,
nem o futuro, mas só o presente, este pode nos enganar a respeito
de nossa originalidade e podemos achar que estamos mudando
sempre. Claro que mudam certas coisas, por exemplo, melhora nossa
capacidade técnica. E o que mais? Nossa “humanidade” também?
Nossa liberdade? Nossa felicidade? Por isso, faz bem incluirmos
em nossa pergunta pelo que está acontecendo hoje, uma referência
ao que aconteceu ontem. E faz bem também perguntarmos: por
que será que paramos de sonhar e renunciamos às energias
utópicas? Como sabem os historiadores, há um duplo movimento
na compreensão histórica: o presente pode ser iluminado pelo
passado, mas também o passado acaba sendo melhor compreendido
a partir do presente. E isso nos fornece um elemento a mais para
podermos pensar no que acontece e nas possibilidades que temos
para mudar o presente.
Parece que nos esquecemos de que nós, seres humanos,
temos como marca o fato de sermos “seres que falam”; bem mais,
ou não só, seres que fazem, como disse Aristóteles; que somos
frágeis, perdendo em força física, sob todos os aspectos, para algum
animal, mas somos “caniços pensantes” (Pascal). Por mais que
repitamos que esta é a era de Aquário, a era do conhecimento,
certamente não é a era do pensamento, da profundidade, da
reflexão. Até porque não temos tempo a perder. E além de tudo,
como já dissemos, pensar é perigoso, para quem pensa e para quem
está do lado de quem pensa, pois nos pode fazer perder o lugar no
mercado, que precisa produzir e consumir, objetos, coisas, e onde até
os seres humanos devem ser só produtores e consumidores. Nada mais.
Pois bem: é nesta paisagem que apresentamos um livro-texto
que pretende ser um Convite para pensar, convite feito aos
estudantes e às estudantes do Curso de Bacharelado em
Administração Pública a distância. Escolhi alguns temas para
pensar. E pensar é uma atividade realmente pessoal, por mais que

Módulo 1
13
Filosofia e Ética

no diálogo com o passado e no debate com os nossos


contemporâneos se possa pensar mais e melhor. Mas, dito de forma
sintética, este convite para filosofar é antes de mais nada um convite
para responder à pergunta: o que está acontecendo comigo e com
os outros no mundo hoje?
Mais do que apresentar um texto cheio de informações
(conceitos, doutrinas, nomes) sobre a riquíssima tradição do
pensamento filosófico ocidental, que já tem 2.500 anos,
consideramos preferível escolher alguns temas, como o do próprio
conceito de filosofia, e de outras formas de conhecimento humano
(como o senso comum e a ciência), com algumas informações gerais
sobre a História da filosofia (Unidade 1); como o da ética, sua
crise e suas dificuldades teóricas, incluindo o debate em torno da
relação entre ética e política, e do poder e sua relação com a
liberdade, pois, afinal, a administração é sempre exercício de poder
(Unidade 2). Trata-se de uma escolha, sem a pretensão de ser a
melhor, e menos ainda de dar conta da filosofia como tal. Pensamos
que assim podemos dar uma ideia geral da filosofia em sua história
e do valor de uma atitude filosófica, que nos leve a pensar mais
sobre o que somos nós, seres humanos, sobre o ser humano como
problema e como solução, sobre o ser humano como profissional,
como gente, como indivíduo e como membro de uma comunidade
local, regional, nacional e cada vez mais cosmopolita ou “global”.
Embora não tenhamos a pretensão de responder
exaustivamente a todas as questões importantes da filosofia, para
organizar o texto seguimos o roteiro sugerido por Kant, talvez o maior
pensador moderno, ao apresentar as quatro perguntas fundamentais
para definir a atividade filosófica. A primeira pergunta é: “o que é
possível conhecer”? (os conceitos de filosofia, de ciência, de teologia
e de senso comum). A isso nos referimos sobretudo na Unidade 1. A
segunda: “o que devemos fazer?” encontra resposta na ética e na
política. A Unidade 2 procura responder a esta pergunta, incluindo
também nesta Unidade aspectos da terceira pergunta, que, para Kant,
é a seguinte: “o que nos é lícito esperar?”, e aí temos a ver com a
questão da religião. A quarta pergunta, a mais difícil de responder, é
a síntese das três perguntas anteriores: “o que é o ser humano?”, e

14 Bacharelado em Administração Pública


Apresentação

está presente, de algum modo, em todo


Saiba mais Símbolo da Filosofia
transcorrer do texto que aqui apresentamos.
Seguiremos este caminho na companhia A coruja, Ave de
Minerva, é o símbolo da
de alguns autores ou companheiros – e poderia
Filosofia, consagrado,
ser com tantos outros, esperando que todos os
sobretudo, a partir de
leitores e leitoras se sintam bem e, quem sabe,
Hegel. Ele escreveu
ao final, com mais vontade de continuar a
que, assim como a coruja levanta vôo ao
viagem reflexiva do que ao ler esta Apresentação.
anoitecer, também a Filosofia e os gran-
Obviamente não será uma disciplina de des filósofos surgem em momentos em
filosofia que irá tornar os futuros que a sociedade humana começa a anoi-
administradores públicos novos “especialistas” tecer, a entrar em crise...
em filosofia. Insisto: interessa não tanto que o
administrador se torne um filósofo, conhecendo um conteúdo
determinado, muito vasto. Muitos textos clássicos estão aí disponíveis
nas livrarias, e cada vez mais na internet. Pode ser bom – e talvez os
que formularam o currículo mínimo do curso de Administração
pensassem nisso ao incluir a Filosofia – que o administrador também
seja estimulado a pensar por própria conta e risco, como diziam os
Iluministas modernos. Aude sapere! Ousa saber! Aliás, se queremos
tanto ser modernos, ou ser críticos, independente da profissão, como
cidadãos, não há outra saída senão pensar também.
Claro que nem todos gostarão, com a mesma intensidade,
deste convite para pensar; talvez alguns até nem gostem dele e
considerem “chato” ter que “estudar filosofia”, estudar estas
“bobagens”, estas coisas inúteis. Certamente a filosofia não serve
para nada. Pensar não serve para nada. Concordo. Mas quem disse
que são importantes só as coisas que servem, as coisas que são
meios para alguma coisa? Para que serve a liberdade, que tem na
política (ou deveria ter nela) o seu lugar por excelência? Para que
serve a felicidade? Para que serve o amor? Para que serve o prazer
sexual? Para que serve a amizade? Se estas coisas forem apenas
meios, certamente serão menos importantes. Mas se tais “coisas”
forem valiosas por si mesmas, certamente teremos muitos motivos
para pensar mais e melhor. Só para dar um exemplo: se um amigo
servir como meio para fazer mais dinheiro, quando se conseguir o
dinheiro, acabará a amizade; se o amigo servir para nos trazer mais

Módulo 1
15
Filosofia e Ética

prazer, neste caso, conseguido o prazer, acaba a amizade; mas se


este amigo for mais que um meio, e a amizade for de fato um valor
para ambos os amigos, que mutuamente se tornam mais exigentes,
e conquistam assim também o prazer de serem amigos, então
percebemos que a amizade é mais que meio para outras coisas, e
se torna ela mesma um fim. É disso que falamos quando dizemos
que a filosofia não serve para nada, ou que tem valor em si mesma.
Contudo, ninguém é obrigado a pensar, nem a ter a coragem
de pensar! E pensar não dá dinheiro, certamente, ou nunca tornará
o dinheiro um fim a alcançar. Pensar é uma atitude improdutiva,
“coisa inútil” no mercado. Além do mais, pensar é perigoso, como
já disse. Acho, porém, que vale a pena correr este risco, pois se
poderá perceber que o mundo que temos não é o único possível
nem o melhor dos mundos, levando-nos quem sabe a resistir ao
que nos parece acontecer de maneira inevitável, instigando-nos a
ficar mais atentos para as brechas que podem surgir e nos
surpreender cá e lá, sugerindo, quem sabe, mudanças mais
substantivas, dentro de nós e entre nós, e não apenas na nossa
capacidade de produção e de consumo. Neste sentido, pensar é um
jeito de cada um cuidar de si. E se cada um cuidar melhor de si, a
nossa convivência com os outros poderá ser mais agradável.
E certamente o serviço público será mais responsável também.
Lembro de muito bom grado a sabedoria de Aristóteles: “com
amigos se pensa e se age melhor” (Ética a Nicômacos, 1155 a. 3, Brasília,
Edit. UnB, 1999, p. 153). E aqui se fala da amizade que é fim, conforme
se disse acima. Por isso, repito o convite para pensar: a aceitação do
convite pode tornar a vida mais interessante, mais leve e mais profunda,
embora menos produtiva e menos consumível. Neste caso,
aristotelicamente, poderei confirmar, mais uma vez: pensar vale a pena!
O convite está feito, e espero que você, estudante, possa
acompanhar o texto, em cada uma de suas Unidades, deixando-se
provocar por ele e por seu desejo de conhecer um pouco mais o
mundo em que vivemos e a si mesmo.

Professor Selvino José Assmann

16 Bacharelado em Administração Pública


UNIDADE 2
ÉTICA

OBJETIVOS ESPECÍFICOS DE APRENDIZAGEM


Ao final desta Unidade você deverá ser capaz de:
f Compreender melhor o que é a ética, e qual a diferença entre “crise
da ética” e “crise ética”;
fEntender como pode ser vista a relação entre ética e política, tendo
em conta duas concepções de poder; e
fSaber melhor o alcance e o limite de uma ética profissional e qual o
problema ético a enfrentar como administrador público.
Filosofia e Ética

84 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

SOBRE A ÉTICA, A PARTIR DA CRISE ÉTICA


O que é ética? O que está em crise? Chamamos a atenção
para a importância da clareza dos conceitos e para a
dificuldade teórica (e prática também) em estabelecermos
e sabermos o que é bem e o que é mal. Sem isso, não
conseguiremos enfrentar a “crise ética”, de que tanto se fala.
Em seguida, analisaremos mais detidamente a relação entre
a ética e a política, com ênfase no conceito de poder, a fim
de entender melhor o problema da ética na administração
pública. Tendo em consideração a vida pública brasileira,
veremos como se poderá compreender uma ética
profissional do administrador público.

Já não nos surpreende que o tema da ética se tenha tornado


tão recorrente entre nós, como cidadãos, como profissionais, como
indivíduos e como grupos humanos organizados. Passamos a viver
em meio a muitas normas: éticas profissionais, éticas grupais,
sentindo-nos tantas vezes confusos sobre como agir. Vivemos em
um mundo em que praticamente todos sentem e denunciam a “falta
de ética” ou uma “crise dos valores morais”. Se até há decênios
atrás, tudo era visto como político, e a solução era política, agora
tudo parece ser visto como moral e tudo deve ser resolvível pela
ética. Isso leva a crer que o grande problema atual seja ético.
Reclamamos que “não há mais valores” ou que está na hora de
“resgatar os valores...”. Por outro lado, sentimo-nos perdidos,
inseguros e perplexos a respeito do que seja um comportamento
eticamente correto, acerca do que seja um valor moral. Trata-se de
duas questões diferentes, como veremos. Afinal, o que é bem e o
que é mal?

Módulo 1
85
Filosofia e Ética

Queremos também discutir as relações entre ética e política,


a fim de entender melhor as relações entre público e privado, e o
sentido da ética para um administrador público, envolvido em uma
multiplicidade de relações de poder, que não se restringem a relações
políticas. Neste contexto pretendemos apresentar também o debate
entre uma ética profissional e a ética em geral. Se a administração
é um exercício de poder, é no exercício desse poder que se dará ou
não um exercício moralmente correto no comportamento do
administrador publico. Por isso, fazemos também uma discussão
sobre duas possíveis compreensões do poder, das quais se pode
deduzir uma diferente compreensão de ética.
Mais do que apresentar uma história da ética e trazer
informações sobre diferentes doutrinas morais, este texto pretende
ser uma problematização da ética a partir da situação atualmente
vivida. E por isso é também um diálogo com alguns autores clássicos
da tradição filosófica, como Aristóteles, Maquiavel, Kant, Weber, Foucault,
mesmo que nem sempre sejam citados explicitamente no texto.
O que importa, sobretudo, é convidar você, estudante, a se
situar melhor no que acontece e a participar do debate, lendo
atentamente este texto, anotando suas dúvidas, consultando a
bibliografia indicada na seção Complementado, e consultando o
Sistema de Acompanhamento sempre que for necessário.

ÉTICA E MORAL

Por mais que ética e moral originariamente sejam


sinônimos, distinções diversas são feitas entre os dois termos. Alguns
autores, por exemplo, reservam a ética à vida pública, e por isso
falam de ética na política, de ética profissional; e a moral é, por
sua vez, referida ao comportamento privado das pessoas. Aqui,
porém, preferimos fazer outra distinção, bastante consagrada no
campo da Filosofia.

86 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

Neste texto, a ética será entendida como a teoria da moral,


como filosofia da moral, ou seja, como o estudo racional sobre a
experiência moral dos seres humanos. Ética é, assim, o estudo do
comportamento humano, investigação sobre o que é bom e o que é
mau, e sobre o modo de se estabelecerem, histórica e teoricamente,
normas válidas para todos. Enquanto isso, moral é outra coisa.
Conforme escreve Foucault,

[...] moral é um conjunto de valores e regras de ação pro-


postas aos indivíduos e aos grupos por intermédio de apa-
relhos prescritivos diversos, como podem ser a família, as
instituições educativas, as Igrejas, etc. (FOUCAULT, 1984,
p. 26).

Além disso, moral é o compor tamento real dos


indivíduos em relação às regras e aos valores que lhes são
propostos. Nesta acepção, moral não é o código de normas como
tal, mas a maneira como os indivíduos se submetem ou obedecem,
mais ou menos, a um princípio de conduta. Este conjunto de regras
pode ser formulado em códigos mais explícitos ou até escritos, mas
também transmitido de maneira difusa, podendo assim haver regras
que nem sempre são coerentes entre si. Ao mesmo tempo, podemos
entender como moral o comportamento real dos indivíduos em
relação às regras e valores que lhes são propostos; assim moral
designa a maneira pela qual eles se submetem mais ou menos
completamente a um princípio de conduta, ou a maneira na qual
eles se submetem ou resistem a uma prescrição. Moral tem a ver
com todo comportamento humano – e só com este comportamento
– no qual estão envolvidos bem ou mal, o que nos leva a perceber
que nem tudo o que fazemos tem a ver com moral. A moral, assim
como o direito, tem a ver com regras cuja observação se exige para
que o comportamento seja considerado moralmente correto,
enquanto a ética é o estudo, a análise teórica dessas regras e do
fato de haver uma preocupação dos seres humanos com o bem e o mal.
Em primeiro lugar, constatamos que desde que há civilização,
há moral, ou seja, há um conjunto de regras que regem o

Módulo 1
87
Filosofia e Ética

comportamento dos indivíduos e dos grupos humanos. Para entender


isso, vale a pena lembrar que ethos é termo grego clássico que
significa morada, hábitat.
Daí que ética – nesta passagem usada como sinônimo de
moral – quer dizer um conjunto de atitudes concretas, vinculadas a
regras, que deixam a casa ou a morada arrumada, bem funcionante,
tornando possível morar nela com tranquilidade, com segurança e
até com prazer. E moral vem de mores, termo latino plural que
significa costumes, hábitos, fazendo com que moral equivalha às
atitudes e normas que se estabeleceram como hábito de boa
convivência, de bom comportamento.
Mesmo que essas regras ou hábitos ou atitudes consideradas
corretas mudem, há regras. De saída podemos afirmar que moral
não significa só um conjunto de regras, mas sim um conjunto de
atitudes conforme regras. Por isso dizemos que é moralmente correta
a pessoa que mantém costumeiramente uma determinada postura
frente às coisas e às pessoas, adotando um estilo de comportamento,
embora também consideremos moralmente correta a atitude de
quem devolve uma carteira de documentos e dinheiro que encontrou
na calçada, mesmo que tal pessoa possa normalmente não se
comportar tão corretamente. De toda forma, constatamos também
que bem e mal são reconhecidos como tais porque há cumprimento
ou descumprimento dessas regras, desses costumes. Portanto, se não
houvesse regras ou hábitos estabelecidos, não haveria bem e mal.
Outro modo de nos darmos conta da existência da moral
consiste em assinalar o que se vive em situações bem concretas de
nossa vida individual ou de grupos humanos ou até nacionais.
Alguns exemplos revelam aquilo que chamamos “senso moral”:
ficarmos sensibilizados com o fato de haver tanta gente morrendo
de fome, enquanto acontece um desperdício enorme de alimentos;
ouvirmos todos os dias notícias de mortes pela violência no trânsito,
em chacinas de pessoas ou até de animais, sequestros, estupros,
torturas, e ficarmos indignados com isso.
Ao mesmo tempo, em que convivemos com essas situações,
confrontamo-nos com situações difíceis de se resolver no campo

88 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

prático da moral, tais como: Permitir ou não o aborto, sobretudo


quando a gestação se deveu a um estupro? Aceitar ou não uma
tarefa que possibilite o dinheiro para sustentar a família, quando
se sabe que o cumprimento da tarefa assumida vai contra a
legislação em vigor? Desligar ou não os aparelhos que mantêm viva
uma pessoa, quando tudo indica que já não existe possibilidade de
uma vida digna ou razoável sem o uso dos aparelhos? Ser a favor
da pena de morte para crimes muito graves? Tais perguntas existem
precisamente enquanto põem em questão ou à prova nossa
consciência moral.

Conforme escreve Marilena Chaui,

[...] o senso e a consciência moral dizem respeito a valo-


res, sentimentos, intenções, decisões e ações referidos ao
bem e ao mal e ao desejo de felicidade. Dizem respeito às
relações que mantemos com os outros e, portanto, nas-
cem e existem como parte de nossa vida intersubjetiva
(CHAUI, 1995, p. 431).

Se, por um lado, constatamos que a moral existe desde que


há civilização, por outro, sempre teremos dificuldades para entender
porque devemos ter uma moral, ou seja, por que, para viver,
temos que ter uma norma, escrita ou não, para reger nossa
convivência. Não poderíamos viver, uns ao lado dos outros, fazendo
cada um aquilo que quer? Por que somos seres morais? Por que
temos de ter uma lei? Por que, afinal, fazemos o mal ou o bem, ao
descumprirmos ou cumprirmos esta lei? Poderíamos ainda
perguntar: por que os outros seres (os animais, por exemplo) nunca
fazem o bem nem o mal, e só os seres humanos são seres morais?
A resposta possível é a seguinte: os outros seres cumprem
uma “lei”, que nós chamamos instinto, e nunca a podem
descumprir, e nós, humanos, temos uma lei, que podemos
cumprir ou descumprir. Nisso consiste, em primeiro lugar, a
diferença entre seres morais (os seres humanos) e seres amorais,
ou sem moral, seres não submetidos a uma regra moral: são seres
morais apenas os seres livres, ou seja, os seres capazes de

Módulo 1
89
Filosofia e Ética

cumprir ou não uma norma estabelecida, ou seres com consciência


moral, isto é, seres (sujeitos morais) com capacidade para deliberar
frente a alternativas possíveis, decidindo e escolhendo uma delas.
Um ser amoral é quem não precisa ou não consegue viver sob
uma norma moral, como é o animal. E imoral é quem também
pode ser moral. Quando alguém é obrigado a descumprir uma
norma, ele não pode ser responsabilizado moralmente pelo
descumprimento. Só há, portanto, moralidade em um ato humano
no qual existe a possibilidade de escolha. Enquanto os animais só
desejam aquilo que podem conseguir, os seres humanos se
caracterizam por poder desejar tudo, ou por desejarem mais do
que aquilo que podem alcançar. No entanto, nunca alcançam tudo
o que desejam, e por isso tendem a prejudicar os outros. Por este
motivo, nasce a necessidade de estabelecer, através de uma norma,
um limite para o que os seres humanos fazem a fim de realizar seus
desejos. Já observamos, a partir disso, que a moral só existe porque
não vivemos sozinhos, mas ao lado de outros seres humanos,
conforme iremos ver em seguida.
Por mais misterioso que seja sabermos por que motivo somos
seres morais, percebemos que ninguém nasce “moral”. O ser
humano, no processo de ir se tornando humano, vai se tornando
um ser moral. Ninguém nasce sabendo que está submetido a regras.
Por isso mesmo, ninguém, até certa idade, é responsabilizado nem
moral nem juridicamente por aquilo que faz. É com a educação, ou
seja, de forma bem geral, com a convivência com os adultos, que
as crianças são introduzidas na convivência humana, e com isso
adquirem um senso moral, um senso de limite, um senso de
responsabilidade. É pela convivência que percebemos que há
normas para o comportamento, há o certo e o errado na relação
com os outros. Nos primeiros anos de vida, os seres humanos vivem
uma situação pré-moral, em que predomina a anomia (ausência
de leis). Depois, lá pelos três-quatro anos, a criança vive sobretudo
uma heteronomia (vive e percebe que algum outro – heterós, em
grego – determina uma lei – nómos). Só mais tarde, em geral por
volta dos sete anos de idade, surge alguma autonomia (lei feita
por ele mesmo – autos, em grego).

90 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

Por isso, podemos dizer que os seres humanos se tornam


seres morais através da educação, independente de qual seja
ela, e que, se não houvesse educação, convivência com outros seres
humanos, estes não se tornariam seres morais. Algo parecido com
estas observações, feitas por estudiosos recentes como Jean Piaget
(1896–1980) e Lawrence Kohlberg (1927–1987), está na base da
secular tradição cristã, que afirma que só a partir dos sete anos é
possível alguém “fazer um pecado”, e, portanto, que só a partir dos
sete anos podemos também fazer o bem. Isso é o mesmo que dizer
que só a partir daí somos sujeitos morais: seres conscientes de si
e dos outros; seres dotados de vontade ou de controlar e orientar
desejos e impulsos; seres responsáveis, respondendo pelos próprios
atos; em suma, seres livres, seres capazes de escolher entre várias
possibilidades, mas, sobretudo, capazes de autodeterminação,
dando a si mesmo as normas de comportamento. Por outras
palavras, só posso fazer o mal moralmente, quando ao mesmo tempo
me é possível fazer o bem, e, sobretudo, quando assumo como lei
própria aquela que me proponho a cumprir. Sendo assim, é óbvia
a importância do tipo de educação que todos os seres humanos
recebem, para que se tornem mais ou menos capazes de autonomia,
capazes de se darem à lei, e para que se sintam mais ou menos
responsáveis por aquilo que fazem. Independente de tudo isso,
porém, a moralidade é um fato constatável em todos os
tempos e em todas as comunidades humanas. Até hoje
não foi encontrada nenhuma sociedade sem moral, sem
norma moral. Os seres humanos não conseguem viver ou conviver
sem uma norma.

ÉTICA ANTIGA, MEDIEVAL E MODERNA

E quem estabelece tal norma para os seres


humanos? Se aceitarmos que se fale em “lei” para os animais,
podemos dizer que ela está inscrita na própria natureza animal,

Módulo 1
91
Filosofia e Ética

enquanto, para os seres humanos, é mais difícil definir quem


estabelece a norma moral. Em todo caso, a moralidade humana foi
e continua sendo fundamentada em diferentes bases.
Para uns, a norma moral (“hábitos”, “costumes” – mores,
em latim, e daí, como dissemos, moral) está definida em códigos
escritos, para outros em códigos não escritos. Independente de
constar ou não em códigos escritos, convém insistir no fundamento
dessa norma. De maneira geral, na história e no comportamento
humano, foram e são apresentadas três fontes da norma moral.
Em primeiro lugar, os antigos. Para eles, a ética, cujo modo
era a virtude e cujo fim é a felicidade, realizava-se pelo
comportamento virtuoso entendido como a ação que era conforme
à natureza. Sendo, por natureza, um ser racional, virtuoso é quem
domina as paixões e se guia pela razão. Esta dá normas à vontade
humana para que esta possa deliberar corretamente. A norma é
vivida e aceita como se fosse estabelecida e definida por algo que
os gregos denominaram physis ou Natureza, por uma natureza que
está acima de cada indivíduo e é igual em todos. Neste caso, fazer
o bem significa cumprir a lei da natureza, e fazer o mal é agir contra
a natureza. A harmonia com a natureza será, por conseguinte, o bem,
e o mal, a desarmonia com ela. Esta natureza de algum modo é
identificada como “razão última de toda a realidade” e que é conhecida
pela razão humana que faz parte dessa natureza ou razão universal.
É claro que, neste caso, não podemos ser livres em todas as
coisas frente à natureza, mas há algo que depende de nossa vontade
e de nossa ação, que deve ser guiada pela razão humana que se
conforma ou não à lei da natureza. Assim, sendo políticos por
natureza, como repetiu Aristóteles, fazer o bem equivale a sermos
bons cidadãos, ou melhor, a estabelecermos uma harmonia entre a
*Cosmos – para os gregos, vida individual e a vida coletiva na cidade. Só assim alcançamos a
significa ordem, em felicidade moral. A harmonia com os outros na cidade (polis –
contraposição ao caos, donde vem política), harmonia entre indivíduo e comunidade
desordem. Depois pas-
política, também favorece a perfeita integração entre os seres
sou a significar o conjun-
to ordenado do universo. humanos e o cosmos*.
Fonte: Elaborado pelo Em segundo lugar – sobretudo falamos da Idade Média –
autor.
os seres humanos assumiram e assumem um código de regras como

92 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

se fosse estabelecido por um ser superior, por Deus, e, assim, fazer


o mal é, para os cristãos, descumprir qualquer mandamento divino,
mandamento que foi revelado por Deus. Assim a moral torna-se
mais diretamente o cumprimento de um dever estabelecido fora de
nós, e não tanto uma combinação entre lei da natureza e autonomia
humana. No caso da moral cristã, parte-se do pressuposto de que
a nossa existência humana e a vontade humana estão marcadas
por um “pecado original”, que nos torna fracos para cumprir a lei
moral divina sem o auxílio da própria divindade. Mesmo assim
somos livres, pois podemos escolher entre cumprir ou não a vontade
de Deus. E as consequências do que fizermos o sentiremos sobretudo
após a nossa morte, com um castigo ou uma recompensa definitiva.
De toda maneira, descumprir consciente e responsavelmente
uma lei divina equivale a agir contra Deus, mas equivale também a
agir mal contra os outros seres humanos e a fazer o mal a si mesmo.
E quando alguém não crê em Deus, não saberá qual é a norma a
cumprir, e nem saberá o que são o bem e o mal. Isso, no entanto –
diga-se de passagem – não significa que um ateu seja alguém sem
moral, pois poderá estar cumprindo outra norma que não a religiosa.
No caso do Cristianismo há uma diferença marcante com a
ética anterior: para os cristãos o bem já não poderá ser feito na
política. Para os antigos a liberdade era um conceito essencialmente
político. O Cristianismo desloca a liberdade do campo político para
o interior do ser humano: é dentro do ser humano que se dá a luta
entre bem e mal, e não só na convivência dos seres humanos entre
si. Além disso, com o Cristianismo não se trata de apenas submeter
a vontade à razão, como era para os antigos, mas também se trata
de submeter a vontade humana à vontade de Deus. No entanto,
por mais que no Cristianismo já se dê mais importância ao indivíduo
como tal na ética, ainda se mantém algo parecido com o ideal grego:
a de que o bem é possível de ser feito dentro de uma comunidade,
a comunidade dos que têm a mesma fé. Se os antigos falavam da
comunidade política, agora é ressaltada a comunidade eclesial.
Em terceiro lugar – falamos aqui dos modernos – a lei moral
é estabelecida pelos próprios seres humanos, tanto através de hábitos
estabelecidos nas coletividades, através de convenções ou

Módulo 1
93
Filosofia e Ética

consensos, quanto aparecendo escrita, por exemplo, nas


constituições nacionais, em acordos internacionais (por exemplo,
na Declaração Universal dos Direitos Humanos). Se na Antiguidade
e na Idade Média a ética dá primazia à existência do ser humano
como parte de uma comunidade, na vida moderna há uma primazia
do indivíduo sobre a coletividade. A coletividade moderna é uma
soma de indivíduos. A moral é, então, o que a soma dos indivíduos
humanos estabelece como lei para si a fim de se protegerem
mutuamente, e de não se prejudicarem reciprocamente, ou até para
se beneficiarem. Mesmo que na modernidade também se recorra a
certa presença de uma norma moral na própria natureza humana,
prevalece nas teorias morais do período a ideia de que é a razão
humana que estabelece a norma moral. Isso significa negar que
nós nascemos morais, mas que nos tornamos seres morais. Existem
autores como Maquiavel e Hobbes, que dizem que, por natureza,
os seres humanos são maus, ou seja, se não se estabelecer um limite,
uma norma, tenderemos a fazer o mal, e não o bem. Rousseau, ao
contrário, diz que por natureza tendemos ao bem. Todos esses
autores, porém – e vale a pena chamar a atenção para isso –
admitirão que por natureza não somos seres morais, mas só nos
tornamos morais a partir do estabelecimento de uma lei, de origem
humana. Só com base na existência da lei humana haverá bem e
mal moral.

Você entendeu esta perspectiva moderna? Para entendermos


melhor, tomemos em consideração o autor que se tornou a grande
referência da ética moderna e contemporânea: Emanuel Kant.

Para ele precisamos de um dever para sermos morais. Ele


distingue no ser humano dois âmbitos: um natural, e outro, da
liberdade e finalidade. No campo natural, as coisas acontecem por
necessidade. É o reino da física, da química, a que todos os seres
humanos e todos os seres animais são submetidos igualmente. Não
há moralidade neste âmbito. Mas existe também na vida dos seres

94 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

humanos o campo da liberdade e finalidade em que as ações são


realizadas racionalmente não por necessidade, mas por liberdade e
finalidade. Neste campo, damos a nós mesmos os valores, os fins e
as leis de nossa ação moral. Por outras palavras, somos autônomos.

Mas então por que precisamos de normas também neste campo,


e não só naquele natural, gerido pela necessidade?

Exatamente por não sermos apenas livres, mas por estarmos


sempre e ao mesmo tempo submetidos à causalidade necessária
da natureza. Ao mesmo tempo o dever moral tem a ver com o fato
de não vivermos sós, de não podermos ser livres sozinhos, mas
sempre na presença de outros seres humanos. Por isso, só poderemos
considerar como lei válida para nós se pudermos considerar válida
esta lei para todos os seres humanos. Por outras palavras, só pode
ser considerado bom para mim algo que puder ser bom para todo e
qualquer ser humano. Um exemplo seria: eu não posso considerar
bom roubar algo de alguém porque não posso aceitar que para
todas as outras pessoas seja um bem roubar. Neste caso, serei eu
que também corro o risco de ser roubado sem que possa reclamar
disso. Portanto, devo agir de acordo com uma norma que deve ser
norma para todos os seres humanos, ou até, como lei universal da
natureza. Poderíamos afirmar que isso equivale ao nosso ditado
popular: “não faça a outrem aquilo que não quer que lhe façam”!
Este princípio também pode ser validado tomando, por exemplo, os
direitos humanos como condições mínimas do exercício de
moralidade: também neste caso, roubar torna-se repreensível do
ponto de vista da moralidade publica, pois viola o princípio da
tolerância e atinge direitos humanos fundamentais.
Além disso, e de forma peremptória, Kant apresenta uma
norma moral única e universal, por ele denominada “imperativo
categórico”, que é a seguinte:

Módulo 1
95
Filosofia e Ética

Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua


pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simul-
taneamente como fim e nunca simplesmente como meio
(KANT, 1997, p. 69).

Como podemos observar, é a existência e presença do outro


ser humano ao nosso lado que justifica a existência da lei moral, e,
mais ainda, da própria existência da moralidade humana. Se alguém
de nós vivesse simplesmente sozinho não haveria moral, e ao mesmo
tempo também não teria sentido sermos livres. Além disso, a lei
moral apresentada por Kant nos diz que precisamos respeitar este
outro, qualquer outro, pela sua dignidade humana, independente
do fato de ele ser bom ou mau. De toda maneira, nenhum ser
humano pode ser apenas um meio (“simplesmente como meio”)
para mim, mas deve ser sempre também um fim. Não posso, por
exemplo, usar alguém apenas como meio para alcançar os meus
fins; não posso usar o corpo de outrem só para meu prazer, sem
considerar também os fins de outrem; não posso torturar alguém;
não posso roubar alguém; não posso mentir para outrem; não posso
usar o trabalho do outro simplesmente como meio para meu
enriquecimento; não posso ser um chefe de uma instituição pública
que simplesmente usa ou abusa do outro como meio para me
promover. Como podemos observar, é uma lei simples e clara.
Contudo há mais um aspecto a ressaltar na formulação de Kant.

Os outros são todos os outros: adultos, crianças,


jovens, idosos; homens, mulheres; heterossexuais,
homossexuais; negros, brancos, amarelos; pobres,
ricos; pessoas consideradas normais ou de
necessidades especiais; alfabetizados ou doutores.

Além disso – e isso nem sempre é considerado quando se


repete esta máxima – Kant não diz que devemos tratar o
outro só como um fim, mas que ele nunca deva ser tratado
apenas como um meio. Isso significa que não é possível ao ser

96 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

humano tratar a qualquer outra pessoa só e puramente como um


fim, mas que ele, sendo um fim, também será de algum modo um
meio. Façamos um exemplo: mesmo ao falarmos de uma relação
amorosa, que seria o mais virtuoso comportamento humano no
qual o outro é tratado como um fim, este outro será também um
meio para mim. Isso vale tanto para o amor conjugal, quanto para
um amor paterno ou materno, quanto para a caridade do ponto de
vista cristão. Por mais que a mãe ame um filho, este será sempre
também um meio para a mãe e nunca apenas um fim.
Aliás, podemos afirmar que sempre alcançaremos um bem
fazendo o bem a outrem. Aristóteles apresenta um exemplo claro
quando fala da amizade entre seres humanos. Ele defende que temos
três espécies de amizade: amizade por prazer, amizade por interesse
ou utilidade, e amizade por virtude. Nas duas primeiras formas de
amizade, o outro, o amigo, é tido muito mais como um meio do que
como um fim. Depois que alcançar o prazer ou satisfeito o interesse,
acaba a amizade. Na amizade por virtude, o amigo é visto como
um fim em si: sou amigo de outrem tendo em vista o bem do outro.
No entanto, quando acontece esta amizade virtuosa, também terei
um benefício: este amigo, ao mesmo tempo em que é um fim para
mim, será um meio através do qual obterei o prazer da amizade e a
utilidade da mesma.
Sabemos, assim, que toda cultura e que cada sociedade
instituem uma moral, ou seja, estabelecem valores, definem o que é
bom e o que é mau, e esta moral é válida para todos os seus membros.
Poderíamos até imaginar que seria possível viver sem norma moral,
mas importa que reconheçamos que até agora não houve grupo
humano que não tivesse alguma moral. E a razão para isso parece
estar no fato de que todo indivíduo precisa do outro indivíduo para
viver com um mínimo de segurança ou um mínimo de possibilidade
de dar sentido à própria existência. Sendo assim da mesma maneira
que não haveria moral se houvesse só um ser humano, não
há moral que valha só para um indivíduo.
Podemos ter morais diferentes, dependendo da situação
histórica e cultural, mas sempre serão válidas para um grupo social,
uma comunidade humana, e para todos os indivíduos que compõem

Módulo 1
97
Filosofia e Ética

tal grupo. Também é preciso lembrar que as morais se distinguem


dependendo do valor ao qual é dada a primazia. Há, por exemplo,
morais que privilegiam a felicidade (eudemonismo): bem é o que
traz felicidade (eudaimonia em grego), e mal tudo aquilo que traz
infelicidade; outras morais privilegiam o prazer (hedonismo – vem
de hedoné, prazer em grego), outras ainda têm como bem superior
a liberdade, a igualdade, ou a utilidade (utilitarismo).
Com facilidade, perceberemos que nem todos os valores são
compatíveis entre si, tornando complicada a convivência entre
pessoas que adotam morais com fundamentos diferentes. Por
exemplo: é possível ter como bens, ao mesmo tempo, a igualdade e
a liberdade? Podemos de fato ter uma sociedade em que os
indivíduos sejam livres e iguais ao mesmo tempo? É possível ter
como bens, ao mesmo tempo, o prazer e a justiça? Devemos ter
como regra moral a justiça igual para todos ou uma justiça desigual
de acordo com a desigualdade das necessidades daqueles a quem
queremos ou devemos servir?
Max Weber insiste em dizer que, nestes casos, existe uma
“luta entre deuses”, frente aos quais os seres humanos precisam se
posicionar. Seguramente isso deve ser tomado em consideração
quando perguntamos pela melhor fundamentação da moral no
serviço público, o que será também analisado quando, a seguir,
falaremos da “ética da responsabilidade” e da “ética da convicção”.
De toda maneira, de acordo com os conceitos usados neste
texto, podemos afirmar que sempre houve moral.
Mas, e ética sempre existiu? A saber, sempre houve a
presença explícita de uma ética, de uma reflexão que discuta,
problematize e interprete o significado dos valores morais? Sempre
houve uma teoria da moral?
Não! Só começou a existir ética com o nascimento
da filosofia, mais explicitamente com Sócrates, Platão e
Aristóteles. Quando falamos de ética, falamos sempre de uma
fundamentação racional das regras morais. Lembrando o que já
dissemos antes, quando falamos de três modos diferentes de
fundamentar a moral, também há três modos de fundamentar
teoricamente a moral, o que constitui três éticas diferentes. Na

98 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

filosofia greco-romana, a moral e a virtude se definem por nossa


relação com os outros cidadãos e com a polis (cidade) e, de certa
forma, com a Natureza; na Idade Média, virtuoso moralmente é
quem cumpre a vontade de Deus. Por isso, pode-se dizer que na
Idade Média predomina uma teologia moral, fundada na fé, na
crença de que é Deus quem estabelece, e só ele, o que é bem e é
mal. Enquanto isso, na modernidade, com mais direito devemos
falar de ética na medida em que se procura fundamentar os valores,
o bem e o mal, unicamente na razão humana, ou melhor, na
experiência dos seres humanos livres em sociedade.
Nesse contexto, moral é o fato de vivermos e nos
preocuparmos em nossa vida individual e social, na vida privada e
na vida pública, com o agir bem ou agir mal, enquanto ética é o
estudo deste fato, e mais ainda, é a busca para estabelecer o
que devemos entender por bem e por mal, e quais os fundamentos
para este estabelecimento. Assim também temos, historicamente,
éticas diferentes, e não só morais diferentes.

ÉTICA DA CONVICÇÃO E ÉTICA DA RESPONSABILIDADE

Além daquilo que já dissemos sobre a história das diferentes


fundamentações teóricas da moral, ou seja, das diferentes éticas,
lembremos também outra importante distinção entre duas
perspectivas éticas, de certa forma incompatíveis, por se basearam
em dois princípios que não combinam entre si: ética da
convicção e ética da responsabilidade. É Max Weber quem
consagrou essa importante distinção:

Temos que ver com clareza que qualquer ação eticamente


orientada pode ajustar-se a duas máximas, fundamental-
mente diferentes entre si e irremediavelmente opostas: pode
orientar-se de acordo com a “ética da convicção” ou de
acordo com a “ética da responsabilidade”. Não quer isto

Módulo 1
99
Filosofia e Ética

dizer que a ética da convicção seja idêntica à falta de


responsabilidade, ou a ética da responsabilidade à falta de
convicção. Não é nada disso em absoluto. Mas há realmen-
te uma diferença abissal entre agir segundo as máximas de
uma ética da convicção, tal como a ordena (religiosamente
falando) “o cristão age bem e deixa o resultado à vontade
de Deus”, ou segundo uma máxima de ética da responsabi-
lidade, como a que manda ter em conta as consequências
previsíveis da própria ação (WEBER, 1979, p. 85).

Weber considera que a sociedade ocidental é constituída por


um processo de racionalização, ou seja, por uma trajetória com a
qual a vida humana individual e social é cada vez mais organizada
de forma racional, de modo que possamos reduzir ao mínimo
indispensável o uso de recursos necessários para obter um
determinado resultado. Racionalizar equivale, pois, a encontrar os
meios cada vez mais eficazes para alcançar um desejado objetivo.
No mundo moderno isso tem a ver com o processo de
industrialização capitalista, que representa uma forma de
racionalização muito avançada em relação ao artesanato medieval.
E tal racionalização não está presente só no modo de produzir, mas
em toda a vida: os seres humanos racionalizam as condições de
vida e da própria visão do mundo. Tem a ver com a especialização
cada vez maior no exercício das tarefas, não só nas fábricas, mas
em todos os setores da sociedade. Tem, portanto, a ver com as
profissões. Sermos profissionais, ou termos uma profissão, tornou-
se uma obrigação, uma prisão, uma “gaiola de aço” – disse Weber
em 1905 – da qual não parece haver nenhum sinal de que possamos
fugir. Somos obrigados a nos tornar especialistas, e mais ainda,
especialistas sem coração.
Antes da modernidade, ter uma vocação (Beruf, em alemão)
era algo tratado com carinho, como um chamado (vocatio) de Deus
para realizar alguma tarefa especial no mundo. Os religiosos diziam
ter vocação, quem sabe também os médicos. A grande maioria dos
seres humanos não tinha vocação mais especifica. Modernamente,
a vocação tornou-se sinônimo de profissão (em alemão também se
usa o termo Beruf para profissão). Agora todos são obrigados a ter

100 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

uma profissão, a escolher uma profissão, e já não se trata de um


chamado de Deus a que se pode ou não atender. Temos de ter uma
profissão! Sermos profissionais tornou-se um “destino” da
humanidade, uma condição para viver e sobreviver.

Atualmente é com tais características, que precisamos viver.


Não há outro mundo. Mas, o que acontece, segundo Weber,
com a moral nessa situação? Vamos ver?

Para Weber, ética é o conjunto das crenças que se


manifestam nas atitudes práticas de um povo, de uma sociedade,
de uma comunidade religiosa. Cada povo, cada sociedade, cada
forma religiosa tem assim a sua ética. Ao mesmo tempo em que
povos, sociedades ou religiões estabelecem seus códigos de
comportamento correto, nasce também a tendência de refletir sobre
os comportamentos humanos para encontrar uma justificação
racional dos mesmos, tentando justificar as escolhas. Isso equivale
a querer encontrar razões que fossem válidas para todos os seres
humanos e para todas as circunstâncias. Falamos aqui de novo de
justificação, que é sinônimo de racionalização. Também na ética
acontece um processo crescente de racionalização. Tanto na vida
prática da produção de bens quanto na vida moral, envolvendo o
comportamento na relação com qualquer ser humano, procuram-
se os meios melhores para realizar da melhor maneira os fins que
se estabelecem. E com isso se busca superar qualquer fatalismo,
superstição ou simples fé, para que tudo o que acontece na vida
humana possa ser mais compreendido, mais controlado e mais
programado. Inclusive a vida religiosa passa, com o protestantismo,
a ser mais racional. Aliás, para Weber, a modernidade consiste em
uma combinação de fatores religiosos (ética protestante) e de um
espírito do capitalismo. Na obra A ética protestante e o espírito do
capitalismo, Weber sustenta que as leis da economia não têm valor
autônomo e independente dos outros aspectos da vida social
(política, religião, arte etc.): as leis da economia, ao contrário do

Módulo 1
101
Filosofia e Ética

que pensava o contemporâneo Karl Marx, nascem num contexto


cultural em que vigora uma determinada atitude frente à vida e ao
mundo, contexto cultural marcado pela religiosidade protestante,
calvinista e pietista. E tal atitude é denominada por Weber como
ética, não uma determinada filosofia moral, mas um ethos (conjunto
de hábitos) de um povo ou de uma sociedade, ou seja, uma ética
vivida, uma mentalidade, crenças e atitudes práticas difundidas nos
indivíduos e entre os indivíduos e grupos sociais.
Weber defende que foi esta mentalidade que favoreceu e
amadureceu o espírito do capitalismo. Assim, o trabalho deixou de
ser visto como castigo divino devido ao pecado, e passou a ser
visto como chamado de Deus para se tornar um ser autônomo e
capaz de ser livre através da construção individual de uma
propriedade privada. Neste contexto, trabalhar é uma espécie de
ascese, que agora deixa os mosteiros e vai para dentro do mundo,
na relação com a terra, ou depois nas indústrias, com o objetivo de
conquistar cada vez maior individualidade e maior autonomia,
maior domínio racional sobre a própria vida, e com isso prestando
maior glória a Deus.
Ao fazermos estas observações, é importante chamarmos a
atenção para o fato de que Weber não aceita tão convictamente a
tese – de que falamos antes ao caracterizar o pensamento moderno
– segundo a qual a modernidade é uma ruptura com o cristianismo
ou com a Idade Média. Para ele, há sim mudanças, maior
antropocentrismo, mas este antropocentrismo nunca perde totalmente
sua marca cristã. Por outras palavras, na modernidade Deus parece
ter deixado de estar tão fora do mundo, e a vida humana deixa de
ter como alvo final a outra vida, passando-se a valorizar mais a
vida aqui e agora. O deus transcendente torna-se imanente.
Isso poderá servir para entender melhor porque Weber
defende a existência de duas grandes tendências na ética: a ética
da convicção e a ética da responsabilidade. Se tomássemos
em conta apenas o processo de racionalização moderno como
criação cada vez maior de autonomia humana em relação a
qualquer instância superior ao ser humano, teríamos certamente a
presença exclusiva ou primazia da ética da responsabilidade. E se

102 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

disséssemos que a modernidade é apenas uma continuidade do


cristianismo, teríamos a presença maior da ética da convicção.

Dito isso, vejamos o que significa estas éticas?

De modo geral, na ética da convicção, valem os princípios,


as convicções, independente dos resultados que se alcançam com
esta for ma de compor tamento humano. Na ética da
responsabilidade, valem as consequências, os resultados alcançados
com as nossas ações. Trata-se de duas atitudes, bem diferentes.
Podemos chamá-las também de “tipos ideais”, de modelos gerais
de ética racional. Vejamos cada uma delas de forma mais detalhada.

X Ética da convicção: defendida principalmente pelo


Cristianismo e retomada, na modernidade, por Kant –
estabelece que o que vale é a intenção, a boa vontade;
o que vale é cumprir a vontade de Deus ou a lei que
existe, independente do fato de que o cumprimento
da lei me traga maior benefício, me dê felicidade,
independente, portanto, dos resultados práticos,
imediatos. Fazer o bem é cumprir a nor ma,
independente do resultado que isso trará. Um exemplo,
de fazer um bem na administração pública é cumprir
a norma vigente, é promover o que se considera bem
público, mesmo que isso não proporcione ao
funcionário uma promoção futura, e mesmo que isso
não traga sempre e necessariamente um benefício para
o público. Fazer o bem é seguir princípios considerados
corretos, mesmo que os resultados sejam ineficazes
ou menos eficazes do que agindo de outra forma.
O que importa é a correção na execução da tarefa,
fazer o que se deve fazer. Um exemplo seria dizer
sempre a verdade, independente dos resultados. Outro
exemplo: cumprir os mandamentos de Deus é – ou
deveria ser – para um cristão sinônimo de bem, mesmo

Módulo 1
103
Filosofia e Ética

que o cumprimento não sirva para ele ser mais


benquisto, ficar mais rico, ou ter maior reconhecimento
por parte dos outros. De acordo com a ética da
convicção, no dizer de Kant, importa ser digno de ser
feliz, não ser realmente feliz. Lembremos também das
passagens bíblicas que destacam claramente que os
que cumprem os mandamentos de Deus nem sempre
vivem bem, e os que não os cumprem nem sempre
vivem mal. Outro exemplo foi dado por Platão: numa
sociedade predominantemente injusta, os que fazem
o bem não vivem bem, e os que são injustos vivem
bem, mas nem por isso alguém deve fazer algo só
porque e enquanto me trouxer resultados bons.
X Ética da responsabilidade: ensina que devemos
ter em conta as consequências previsíveis da própria
ação. Nesta perspectiva, o que importa são os
resultados, não os princípios, ou a intenção. Para um
servidor público, fazer o bem é agir em função do
resultado, que pode ser tanto a melhor promoção do
bem comum, quanto a melhor promoção do bem
pessoal do próprio servidor, ou então ambos os
resultados. Esta ética parece ser a única ética possível
e desejável no campo da política, na qual deveria ser
descartada a ética da convicção. Também a ética
utilitarista, a que já nos referimos, é uma ética da
responsabilidade. E, se houver uma ética na economia,
esta seria a única ética compatível com o lucro.

Por mais que Weber insista em falar da distinção e da


incompatibilidade racional entre ética da convicção e ética da
responsabilidade, ele não deixa de assinalar uma tensão teórica e
prática entre elas. Se levarmos ao extremo a ética da
responsabilidade, podemos cair facilmente no que é assinalado por
Maquiavel: que os fins justificam qualquer meio que se usa. Por
exemplo: um político poderia matar um adversário político para
conseguir realizar maior benefício para a comunidade? O Estado

104 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

pode eliminar, com pena de morte, todo aquele que parece ser
incurável em seu comportamento criminoso? Um servidor público
poderia descumprir uma lei para ser mais eficaz na solução de um
problema social? Na política – voltamos a insistir – conta bem mais
a eficácia, o bom resultado, do que o cumprimento de princípios.
Certamente os cidadãos criticariam um governante que fosse santo
do ponto de vista moral, mas ineficiente do ponto de vista prático.
Maquiavel insiste em dizer que um bom político não pode sempre
agir de acordo com um código moral, mas que ele precisa ser capaz
de “entrar no mal” para fazer o bem na prática.
No entanto, Weber afirma que, por mais difícil que seja
abandonar a pura ética da responsabilidade, na política, e –
poderíamos acrescentar – na vida pública em geral –

[...] a ética da responsabilidade e a ética da convicção não


são termos absolutamente opostos, mas sim elementos
complementares que devem concorrer para formar o ho-
mem autêntico, o homem que pode ter “vocação política”
(WEBER, 1979, p. 97).

Tanto a responsabilidade sem convicção quanto a convicção


sem responsabilidade parecem ser insuficientes. Quando um
determinado governo ou instituição age segundo uma ética da
convicção, terá como justo, por exemplo, matar, em nome do bem,
qualquer adversário, como fazem as ditaduras e a maioria das
ideologias políticas, ou como o fez a própria Igreja católica em certos
momentos, ou como o fazem ainda hoje governos fundamentalistas.
Não se pode sem mais, neste mundo, querer impor a todos os
mesmos princípios. Sendo assim, são as consequências práticas
boas para todos que deveriam servir de motivo para considerar
que alguém age bem, e não simplesmente a coerência mantida entre
princípios e ação. No caso da ética da responsabilidade, deveria
ser considerado o que é um resultado bom, e se este resultado bom
é apenas para quem age ou é bom também para aqueles que são
atingidos por este resultado.

Módulo 1
105
Filosofia e Ética

De toda maneira, certamente vale a pena refletir mais sobre


a distinção feita por Weber, e que serve de veículo para discutirmos
boa parte das teorias da moral que privilegiam ou a ética da
convicção ou aquela da responsabilidade. Na ética da convicção,
os meios nunca podem ser maus, embora os resultados possam
não ser bons. Os resultados seriam bons só se todos cumprissem as
normais morais. Somente numa sociedade onde os indivíduos são
predominantemente virtuosos será bom ser bom, ou seja, será bom
agir sempre de acordo com princípios. Assim, o Sermão da
Montanha proferido por Jesus Cristo, é uma ética da convicção;
mas dificilmente poderíamos esperar que todos seguissem estes
princípios. Também o moderno Kant defende uma ética da
convicção, enquanto diz que virtuoso não é quem alcança a
felicidade, mas quem é digno de ser feliz, por ter cumprido a lei.
De acordo com uma ética da responsabilidade, podemos e
devemos agir em vista dos resultados, e considerar bom moralmente
aquele que age com responsabilidade, assumindo a responsabilidade
pelas consequências de suas ações, inclusive agindo contra aqueles
que, em nome de uma convicção moral “superior” agem no mundo
sem pensarem nas consequências que o cumprimento de sua
convicção traz para quem tem convicções diferentes. Neste caso,
podemos tomar como exemplo o atual confronto entre teses
fundamentalistas, como a de alguns grupos muçulmanos, que agem
certamente de acordo com uma ética da convicção (e combinam
ética com política), enquanto no mundo ocidental parece prevalecer
como parâmetro moral uma ética da responsabilidade, e uma
separação entre ética e política. Neste contexto, a ética da convicção
pode ser cega, e não aceita questionamento, enquanto a convivência
entre os seres humanos em um mundo globalizado parece exigir
tolerância e reconhecimento do diferente, mesmo que tal tolerância
deva ser apoiada também num princípio: o do direito do outro ser
diferente de nós. Ter de tomar em conta as consequências de nossas
ações para se poder falar de ética parece ser de bom senso. Assim
sendo, cer tamente poderíamos afir mar que uma ética da
responsabilidade constitui-se como forma de respeito pela
humanidade, em sua diversidade de culturas, de tradições, de

106 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

crenças, ou então como ética da dignidade humana. De toda forma,


o próprio Weber reconhece que “ninguém pode determinar se deve
agir de acordo com a ética da responsabilidade ou de acordo com
a ética da convicção, nem quando de acordo com uma ou com
outra” (WEBER, 1979, p. 96).

Como você viu, também sob esta perspectiva não é fácil decidir
sobre a ética. E a resposta também ficará difícil para o
administrador público, por mais que pareça prevalecer na sua
atividade uma “ética da responsabilidade”. Tenhamos presente
esta distinção entre ética da convicção e ética da responsabilidade
ao discutir a “ética profissional”, como veremos mais adiante.

Complementando......
Para saber mais sobre o que é ética, o que é consciência moral, faça a
leitura das obras indicadas a seguir.

Í CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1995.


Também disponível, na íntegra, em: <www.cfh.ufsc.br/~wfil/
convite.pdf>. Acesso em 3 ago. 2009.

ÍVASQUEZ, Adolfo S. Ética. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.

AFINAL, O QUE É A ÉTICA?

Para entendermos melhor o conceito de ética, convém


lembrarmos que, como fenômeno humano, não há ética
individual (há, sim, ética individualista – isso é outra coisa), pois
ninguém pode estabelecer sozinho algum código moral, nem tem
sentido querer estabelecer só para si o que é bem e mal, e nem de
estabelecer o que é bem e mal para todos os outros, sem consultar
os outros. A existência mesma da ética – por mais diversificada ou
até misteriosa que seja sua origem – só pode ser compreendida

Módulo 1
107
Filosofia e Ética

como afirmação e exigência de nossa socialidade humana, ou seja,


do fato de não vivermos sozinhos no mundo.
Por outras palavras, só somos seres morais porque e
enquanto somos indivíduos no mundo ao lado de/com/
contra outros indivíduos. Se fôssemos sozinhos não haveria
bem e mal, não haveria moralidade humana.
Portanto, a ética existe porque, e enquanto, somos indivíduos
que vivem junto com outros indivíduos.

A ética, desta forma, exige o reconhecimento de que


só somos indivíduos porque há outros indivíduos, o
que equivale a dizer que somos livres, responsáveis,
porque há outros seres livres, responsáveis ao meu
lado. Que somos seres livres enquanto há outros seres
livres, e não a despeito dos mesmos. Dito de outra
maneira, só há bem e mal porque e enquanto vivemos
em sociedade. Não haveria moral se houvesse
simplesmente um ser humano. Isso nem sempre
parece tão óbvio, mas nos foi dito claramente por
Aristóteles (1985), quando insistiu em que só se pode
fazer o bem de fato na polis, na comunidade política.

Quando declaramos que a ética repousa na condição


individual e social do ser humano, não negamos a possibilidade de
se estabelecer como princípio moral nas relações humanas o valor
intrínseco de cada ser humano individual, como se faz sobretudo
na modernidade. Contudo, a afirmação do valor do indivíduo não
implica em que tal valor possa existir separado da existência dos
outros indivíduos. Lembrando a tradição iluminista moderna, o
princípio básico da moralidade humana consiste em que nunca
transformemos o outro em mero meio, como fazemos, ou deveríamos
fazer, com um carro ou com o computador, embora isso não
equivalha a podermos transformar o outro apenas em fim. Por isso,
como já dissemos, agir moralmente bem, segundo Kant, significa

108 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

tomar o outro como fim e como meio ao mesmo tempo, e nunca só


como meio.
Convém ressaltar também que a responsabilidade moral
exige de cada um de nós a responsabilidade em assumir,
como se tivesse sido estabelecida por mim, a lei moral
que cumprimos, e que não a cumpramos apenas porque
outra pessoa no-la impõe de fora. É isso que nos torna adultos
do ponto de vista moral. Precisamente por isso, debater a questão
ética exige de cada um de nós uma tomada de posição dentro do
mundo, diante dos outros. Não tem sentido, portanto, esperar que
outra pessoa – mesmo que seja o especialista da ética, o filósofo –
possa dirimir racionalmente todas as nossas dúvidas acerca do que
sejam bem e mal do ponto de vista ético. Temos que assumir a
nossa responsabilidade inclusive do ponto de vista teórico. Por mais
que haja especialistas que possam fornecer elementos para enfrentar
o problema, não é possível, em nome do direito/dever inerente ao
fato mesmo de sermos humanos, abdicar da responsabilidade
pessoal em determinar a norma moral, que deve valer para mim e
para os outros em nossa convivência social.
Esta exigência é mais premente, e mais dramática, na
modernidade, quando os seres humanos se põem literalmente no
centro do mundo. Ou, falando de outro modo, na companhia da
tradição psicanalítica: se você quiser ser adulto, deve ousar viver
como se já não tivesse nenhum pai, nenhum outro absoluto (seja
ele um deus ou uma natureza...) que, de fora, estabelece a norma
que deve ser seguida.
Mas as coisas se complicam: se não tivermos o mesmo pai,
ou se ousarmos viver sem “pai”, já não seremos irmãos. E se não
somos irmãos, não temos nada em comum a não ser aquilo que,
consensualmente ou conflituosamente, estabelecermos como tal. Se
já não tivermos algum fundamento para uma fraternidade fundada
em algo fora ou além de nós mesmos (Natureza ou Deus), temos
que assumir o peso de decidir o que vai valer e o que não
vai valer em nossa inevitável convivência humana. É bem
mais fácil e cômodo atribuir a culpa pelos males aos
outros. E é mais fácil apelar para algum pai, para algum grande

Módulo 1
109
Filosofia e Ética

autor, alguma sedutora teoria ou ideologia que explica tudo,


dizendo-nos claramente o que temos que fazer. Bem mais cômodo
seria ter como “pai” alguma pessoa (governante, salvador da pátria,
guru, conselheiro espiritual, psicólogo ou cartomante, um livro de
autoajuda) que nos diga quem somos e o que devemos fazer.
Ser autônomo (= dar-se a própria lei) é muito mais incômodo, mais
difícil, a ponto de muitos terem medo de ser livres, medo de correr
o risco de viver sem garantias, sem segurança, sem “pai”. Ser
autônomo exige muita coragem sempre.

“CRISE ÉTICA” E “CRISE DA ÉTICA”

Por todas as razões brevemente delineadas, percebe-se que


o problema moral é permanente, e não passageiro. Desde o momento
em que assumimos que somos nós que fazemos a história, também
assumimos que somos nós que decidimos sobre o que é bem e o que
é mal. Claro que é mais cômodo atribuir a outrem a responsabilidade
de o fazer. Mas neste caso, repetindo Kant, preferimos desvencilhar-
nos do peso de sermos livres. No caso mais específico, falando do
ponto de vista filosófico, a dificuldade de indicar uma solução para
o problema ético se deve também ao impasse teórico em que os
especialistas da ética estão metidos hoje em dia.
Se compararmos a crise da ética com o que vulgarmente
denominamos crise ética, certamente nos damos conta de que, do
ponto de vista teórico, a primeira exige muito mais do que a
segunda, que seria resolvível apenas do ponto de vista prático

Percebemos também que a crise ética depende em boa


parcela da crise da ética, ou seja, da perplexidade e
da incerteza em que estamos imersos atualmente. Um
sinal disso é a ausência de clareza a respeito do nosso
futuro como espécie, e por isso, a respeito do sentido
da nossa existência mesma.

110 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

Por que haveríamos de nos preocupar em agir bem se não


tivéssemos alguma garantia para dizer que amanhã será melhor do
que hoje? Não havendo mais esta convicção de uma melhora de
qualidade de vida para amanhã, perdemos o chão, inclusive para
nos sentirmos estimulados a fazer o bem. Se apenas se trata de
sobreviver agora no mundo que aí está, por que eu deveria me
preocupar com os outros seres humanos? Só para me defender deles?
Por que respeitar os outros, a não ser para que sir vam
exclusivamente de meio para satisfazer meus interesses?
Observe que tanto a crise ética (por que devo eu cumprir
alguma norma?) quanto a crise da ética (por que me esforçar para
estabelecer alguma norma para a convivência humana?) tem algo
a ver com a experiência humana atual, em que todos somos
diariamente instados a nos converter a um individualismo cínico,
que no Brasil recebeu o nome de Lei de Gerson: “tenho que tirar
vantagem de tudo e de todos; do contrário serei engolido pela
situação ou pelos outros concorrentes”! Esta experiência dramática
está à flor da pele não só no campo econômico, mas também na
vida cultural, na vida profissional, e quem sabe até entre os
administradores públicos. Todos nos damos conta do seguinte: cada
vez mais somos empurrados para a produtividade e para a
competição com os colegas. Ser competitivo tornou-se uma
“virtude”. E se o bem for bem apenas para mim, então competidor
virtuoso e bom é quem consegue eliminar ou matar os outros
competidores. Também por isso, aumentou nossa dificuldade em
definirmos teórica e praticamente o que seja bem e mal hoje, acerca do
que devemos fazer e do que devemos evitar em nossas relações sociais.

Como vimos, a preocupação com a questão ética tornou-se


central para todos nós, pois nela está envolvido o próprio
sentido da existência humana, além do sentido daquilo que
fazemos profissionalmente. Contudo, talvez mereça mais
atenção outra pergunta: será que o apelo cada vez maior à
ética não se deve a uma descrença total na política, ao
abandono total da crença de que os seres humanos podem e

Módulo 1
111
Filosofia e Ética

devem resolver seus problemas politicamente? Caro estudante,


tenha em mente esta pergunta quando passaremos a discutir o
que é a política, o que é o poder, e qual a relação entre ética e
política.

DIFICULDADE ATUAL DE FORMULAR UMA ÉTICA

Em todo caso, no campo filosófico o debate está aceso há


um bom tempo, e nada está muito claro. E há também uma
percepção: era comum pensarmos, como o fizeram Platão e
Aristóteles, que todos os erros morais eram devidos à ignorância, à
falta de conhecimento, e que todos os seres humanos letrados ou
inteligentes não poderiam cometer erros também do ponto de vista moral.
Entretanto, constatamos que homens letrados também
cometem erros morais. E talvez devamos considerá-los mais
responsáveis precisamente por saberem mais e melhor o que
deveriam fazer. De toda maneira, ao lado daqueles que conservam
a convicção de que ainda é possível fundar racionalmente um valor
moral universal, há outros que duvidam seriamente disso. Ao lado
de quem sustenta unicamente uma moral a-histórica, fixa, eterna,
religiosa, também há quem defenda a possibilidade e a conveniência
de uma coexistência entre várias morais. Sempre é difícil, e às vezes
impossível, viver num ambiente no qual grupos humanos assumem
normas e valores diferentes.
Marilena Chaui declara que a crise dos valores morais se
revela atualmente por existirem contemporaneamente três linhas
de pensamento sobre a ética: a linha niilista, que simplesmente nega
a existência de valores morais dotados de racionalidade e que
tenham validade para todos; a linha universalista-racionalista, mais
clássica, mas também moderna, que afirma a existência de uma
normatividade moral com valor universal porque está fundada na
razão (exemplo disso é a doutrina moral de Kant, de que já falamos);
e a linha pragmática, que considera que a democracia liberal tem

112 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

sido capaz de manter com bastante sucesso os princípios morais


da liberdade e da justiça no campo das decisões sobre a vida
coletiva (CHAUI, In: NOVAES, 1992, p. 345).
Há também quem busque iniciar um debate para estabelecer
uma moral mínima comum e universal (por exemplo, a
Declaração dos Direitos Humanos seriam a moral universal hoje).
Em debate ocorrido recentemente na Itália, o conhecido escritor
Umberto Eco defendeu que a ética mínima universal deveria ter
como princípio “o respeito ao corpo do outro”. Veja a seguir parte
da declaração do intelectual italiano:

É possível constituir uma ética sobre o respeito pelas ativi-


dades do corpo: comer, beber, urinar, defecar, dormir, fa-
zer amor, falar, ouvir, etc. Impedir alguém de se deitar à
noite ou obrigá-lo a viver com a cabeça abaixada é uma
forma intolerável de tortura. Impedir outras pessoas de se
movimentarem ou de falarem é igualmente intolerável.
O estupro não respeita o corpo do outro. Todas as formas
de racismo e de exclusão constituem, em última análise,
maneiras de se negar o corpo do outro. Poderíamos fazer
uma releitura de toda a história da ética sob o ângulo dos
direitos dos corpos, e das relações de nosso corpo com o
mundo (ECO, 1994, p. 7).

Para além de todo debate atual, e das controvérsias teóricas


a que acenamos brevemente, não conseguimos escapar do problema
moral. Não é evitando a participação no debate que nos
desvencilhamos do problema que nos é vital, pois está em jogo se
preferimos viver em estado selvagem ou em estado civilizado.
Às vezes duvidamos que ainda haja diferença entre os dois estados,
entre barbárie e civilização. No mínimo, porém, devemos admitir
que não conseguimos deixar de ser seres morais, ou seja, não
conseguimos ficar livres do envolvimento com o bem e o mal, mesmo
que nem tudo o que os seres humanos façam tenha a ver com
moralidade. Estamos de certa forma “condenados” a ser humanos,
a ser livres, e por conseguinte, a ser morais, por mais que isso nos

Módulo 1
113
Filosofia e Ética

pese, nos seja incômodo, ou por mais que seja misterioso termos
uma lei moral dentro de nós.
E somos “condenados” a isso – diria Sartre – porque não
conseguimos nos desvencilhar da presença dos outros, porque não
conseguimos ser totalmente sós, não conseguimos ser humanos
sozinhos.
Além disso, podemos assinalar – e o fazemos de passagem –
que a moral muda historicamente também porque surgem novos
problemas que os seres humanos devem enfrentar em conjunto
do ponto de vista teórico e prático. Perguntamo-nos hoje, por
exemplo, se existe ou não algum limite no uso da técnica para
alcançarmos os nossos objetivos: podemos fazer o que bem
quisermos para gerar seres humanos biologicamente mais
saudáveis? Podemos deixar morrer pessoas quando percebemos
que elas teriam dificuldades de viver sem as máquinas, embora as
máquinas ainda consigam mantê-las em vida? Por outro lado, há
novos direitos, no campo das relações sexuais, assim como há novos
erros morais que denominamos “assédio moral” e “assédio sexual”.
Por outro lado, vemos surgir o tema da moralidade a partir dos
problemas ambientais: se antes agíamos e até achávamos que
devêssemos dominar a natureza a qualquer custo, fazendo o que
quiséssemos com a vida biológica, com a natureza extra-humana,
hoje já não é assim. Passamos a incluir os seres não humanos entre
os seres que devem ser tratados de outra maneira, e não só como
coisas ou meios.
Isso leva intelectuais a defenderem que existe moralidade
não só entre os seres humanos, ou entre seres humanos e algum
Deus em que se acredita, mas também entre um ser humano e seres

v
Peter Singer, filósofo não humanos, ou a natureza em geral. Há quem argumente e
australiano
defenda, por exemplo, “direitos dos animais”, ou quem fale do
contemporâneo,
defende, por exemplo,
respeito à natureza como elemento indispensável de qualquer ética
que é um mal moral nos atual. De qualquer modo, nem isso significa que possamos ser seres
alimentar com carne morais na mera relação de mim para comigo.
animal

114 Bacharelado em Administração Pública


Unidade 2 – Ética

Em todo caso, é mais importante aprendermos a fazer


perguntas, do que aprendermos a dar respostas. As respostas sempre
dependerão da qualidade e da profundidade das perguntas. Por
isso, na filosofia hoje em dia é pensamento corrente sermos
cautelosos, sermos menos pretensiosos, menos sistemáticos, e mais
fragmentários, mais ensaísticos, mantendo sempre a primazia do
objeto, não abdicando do dever de discutir, de interpretar o que
está acontecendo. Estas atitudes são necessárias mesmo que a face
mais imediata e mais evidente do real seja o sofrimento, a injustiça
social, a ambiguidade, a incerteza, a insegurança, a dúvida,
inclusive no que diz respeito à dimensão ética.
Nesse contexto, é bastante óbvio afirmarmos que há uma
crise da reflexão filosófica sobre a ética, e não podia ser
diferente. Assim como não cabe ao filósofo fazer a história, não
cabe a ele determinar o que socialmente deve valer como bem e o
que deve ser considerado como mal. Se os pensadores
historicamente formularam éticas, foi porque, mais do que “criar”
uma teoria que depois foi posta em prática, em geral e
precipuamente eles foram grandes intérpretes do seu tempo, e, no
contexto ético, interpretaram o que os seres humanos em suas
relações entre si consideraram como bom ou como mau. Além disso,
os pensadores só se propuseram enfaticamente o problema ético
quando os seres humanos como tais, em suas práticas cotidianas,
puseram em crise os valores que valiam. Portanto, os filósofos como
tais não poderiam estabelecer – e nunca estabeleceram sozinhos –
as fundamentações para que tais ou quais atitudes humanas fossem
aceitas ou rejeitadas moralmente. É no jogo complexo das relações
sociais que se estabeleceram e se deverão estabelecer livremente, no
consenso e no dissenso, as normas que vão reger estas mesmas relações.

Módulo 1
115
Filosofia e Ética

Atividades de aprendizagem
Depois de termos apresentado e discutido alguns aspectos
de definição da ética, no contexto de uma “crise ética” e de
uma “crise da ética”, e após termos assinalado a dificuldade
de formular uma ética válida universalmente, chegou a sua
vez. Vamos exercitar?

1. Identifique como se apresenta a “crise ética” no noticiário dos


últimos tempos. Até que ponto é reconhecida também, nos mei-
os de comunicação, uma “crise da ética”? Em que sentido as duas
abordagens se chocam?
2. Tendo em conta a situação em que vivemos, seja na família, seja
no trabalho ou nas relações sociais em geral, qual a moral que
predomina na vida prática? Antiga, medieval ou moderna? Que
mostras você encontra na vida cotidiana de que há um conflito
entre éticas diferentes?
3. Tome como exemplo um fato recente da vida política nacional ou
estadual em que se assinalou a “falta de ética”, e analise-o para
mostrar a diferença entre uma abordagem do fato a partir da “éti-
ca de responsabilidade” e a partir da “ética da convicção”. Verifi-
que também sob qual perspectiva ética os meios de comunicação
social abordaram ou abordam o fato analisado.

116 Bacharelado em Administração Pública

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