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B 368 uso empírico, mas que nunca I constitui um membro da síntese

empírica. Se, não obstante, tais conceitos têm validade objetiva,


podem chamar-se conceptus ratiocinati (conceitos exatamente
concluídos); quando não, obtiveram-se sub-repticiamente por uma
aparência de raciocínio e podem chamar-se conceptus ratiocinantes
(conceitos sofísticos). Como, porém, só no capítulo dos raciocínios
dialéticos da razão pura isto se deverá decidir, não podemos ainda
aqui considerar tal distinção; por ora, assim como demos o nome
de categorias aos conceitos puros do entendimento, aplicaremos
um novo nome aos conceitos da razão pura e designá-los-emos por
idéias transcendentais, designação esta que, em seguida, vamos
esclarecer e justificar.

Primeira Secção

A 312 DAS IDÉIAS EM GERAL

Apesar da grande riqueza das nossas línguas, muitas vezes o


pensador vê-se em apuros para encontrar a expressão
rigorosamente adequada ao seu conceito, sem a qual não pode
fazer-se compreender bem, nem pelos outros nem por si mesmo.
B 369 Forjar palavras novas I é pretender legislar sobre as línguas, o que
raramente é bem sucedido e, antes de recorrermos a esse meio
extremo, é aconselhável tentar encontrar esse conceito numa língua
morta e erudita e, simultaneamente, a sua expressão adequada; e,
se o antigo uso de tal expressão se tornou incerto, por descuido dos
seus autores, é preferível consolidar o significado que lhe era
próprio (embora persista a dúvida quanto ao sentido que, em rigor,
se lhe atribuía) a prejudicar o nosso propósito, tornando-nos
incompreensíveis.
Por essa razão, se para certo conceito se encontrasse uma
única palavra, a qual, num sentido já usado, correspondesse
A 313 rigorosamente a esse conceito, cuja distinção I de outros conceitos
afins fosse de grande importância, seria prudente não abusar dela
nem empregá-la como sinônimo de outras só para variar a
expressão, mas conservar-lhe cuidadosamente o significado
particular; de outro modo, se a expressão não ferir particularmente
a atenção e se se perder no meio de outros termos de significado
bem diferente, facilmente se poderá também perder o pensamento
que só ela deveria ter preservado.
I Platão servia-se da palavra idéia de tal modo que bem se vê B 370
que por ela entendia algo que não só nunca provém dos sentidos,
mas até mesmo ultrapassa largamente os conceitos do
entendimento de que Aristóteles se ocupou, na medida em que
nunca na experiência se encontrou algo que lhe fosse
correspondente. As idéias são, para ele, arquétipos das próprias
coisas e não apenas chaves de experiências possíveis, como as
categorias. Em sua opinião derivam da razão suprema, de onde
passaram à razão humana, mas esta já se não encontra no seu
estado originário e só com esforço pode evocar pela reminiscência
(que se chama a filosofia) essas antigas idéias agora muito
obscurecidas. Não pretendo aqui empreender uma investigação
literária para apurar o sentido que o sublime filósofo atribuía à sua
expressão. I Observo apenas que não raro acontece, tanto na A 314
conversa corrente, como em escritos, compreender-se um autor,
pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre o seu objeto,
melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não
determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes,
falou ou até pensou contra a sua própria intenção.
Platão observou muito bem que a nossa faculdade de
conhecimento sente uma necessidade muito mais alta que o
soletrar de simples fenômenos pela unidade sintética para os poder
I ler como experiência, e que a nossa razão se eleva naturalmente a B 371
conhecimentos demasiado altos para que qualquer objeto dado
pela experiência lhes possa corresponder, mas que, não obstante,
têm a sua realidade e não são simples quimeras.
Platão encontrava as suas idéias principalmente em tudo o que
é prático *, isto é, que assenta na liberdade, a qual, por seu
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* Sem dúvida que estendeu também o seu conceito aos conhecimentos


especulativos, desde que fossem dados puros e completamente a priori, e
mesmo à matemática, embora esta não tivesse o seu objeto noutra parte que
não fosse a experiência possível. Não posso segui-lo nisso, nem tão-pouco na
dedução mística dessas idéias ou nos exageros pelos quais, de certa maneira,
as hipostasiou; se bem que a linguagem elevada, de que se serve nesse campo,
seja perfeitamente susceptível de uma interpretação mais moderada e adaptada
à natureza das coisas.
A 315 turno, I depende de conhecimentos que são um produto próprio da
razão. Quem quisesse extrair da experiência os conceitos de virtude
ou quisesse converter em modelo de fonte de conhecimento (como
muitos realmente o fizeram) o que apenas pode servir de exemplo
para um esclarecimento imperfeito, teria convertido a virtude num
fantasma equívoco, variável consoante o tempo e as circunstâncias e
inutilizável como regra. Em contrapartida, qualquer se apercebe de
B 372 que, se alguém lhe é apresentado I como um modelo de virtude, só
na sua própria cabeça possui sempre o verdadeiro original com o
qual compara o pretenso modelo e pelo qual unicamente o julga.
Assim é a idéia de virtude, com referência à qual todos os objetos
possíveis da experiência podem servir como exemplo (provas de
que o que exige o conceito da razão é em certa medida realizável),
mas não como modelo. Que ninguém jamais possa agir em
adequação com o que contém a idéia pura da virtude, não prova que
haja qualquer coisa de quimérico neste pensamento. Com efeito,
todo o juízo acerca do valor ou desvalor moral só é possível
mediante esta idéia; por conseguinte, ela serve de fundamento,
necessariamente, a qualquer aproximação à perfeição moral, por
muito que dela nos mantenham afastados impedimentos da natureza
humana, cujo grau nos é indeterminável.
A 316 I A República de Platão tornou-se proverbial como exemplo
flagrante de uma perfeição sonhada, que precisamente só pode
residir no cérebro de um pensador ocioso, e Brucker considera
ridícula a opinião do filósofo segundo a qual nunca um príncipe
seria bom governante se não participasse nas idéias. Mas seria
preferível investigarmos mais este pensamento e colocá-lo a nova
luz, graças a novo esforço (naquilo em que este homem eminente
B 373 nos deixa sem ajuda) que rejeitá-lo por inútil com o mísero I e
pernicioso pretexto da inviabilidade. Uma constituição, que tenha
por finalidade a máxima liberdade humana, segundo leis que
permitam que a liberdade de cada um possa coexistir com a de
todos os outros (não uma constituição da maior felicidade possível,
pois esta será a natural conseqüência), é pelo menos uma idéia
necessária, que deverá servir de fundamento não só a todo o
primeiro projeto de constituição política, mas também a
todas as leis, e na qual, inicialmente, se deverá abstrair dos
obstáculos presentes, que talvez provenham menos da inelutável
natureza humana do que de terem sido descuradas as idéias
autênticas em matéria de legislação. Porque nada pode ser mais
prejudicial e mais indigno de um filósofo do que fazer apelo, como
se faz vulgarmente, a uma experiência pretensamente contrária, pois
essa experiência não existiria se, em devido tempo, se tivessem
fundado aquelas instituições de acordo com as idéias I e se, em vez A 317
destas, conceitos grosseiros, porque extraídos da experiência, não
tivessem malogrado toda a boa intenção. Quanto mais conformes
com esta idéia fossem a legislação e o governo, tanto mais raras
seriam, com certeza, as penas; pelo que é perfeitamente razoável
(como Platão afirma) que, numa perfeita ordenação entre legislação
e governo, nenhuma pena seria necessária. Embora tal não possa
nunca realizar-se, é todavia perfeitamente justa a I idéia que B 374
apresenta este maximum como um arquétipo para, em vista dele, a
constituição legal dos homens se aproximar cada vez mais da maior
perfeição possível. Pois qual seja o grau mais elevado em que a
humanidade deverá parar e a grandeza do intervalo que
necessariamente separa a idéia da sua realização, é o que ninguém
pode nem deve determinar, precisamente porque se trata fie
liberdade e esta pode exceder todo o limite que se queira atribuir.
Mas não é só nas coisas em que a razão humana mostra
verdadeira causalidade e onde as idéias são causas eficientes (das
ações e seus objetos), ou seja, no domínio moral, é também na
consideração da própria natureza que Platão vê, justificadamente,
provas nítidas da origem a partir das idéias. Uma planta, um animal,
a ordenação regular da estrutura do mundo (presumivelmente
também toda a ordem da natureza) mostram, claramente, que
apenas são possíveis segundo I idéias; que, sem dúvida, nenhuma A 318
criatura individual nas condições individuais da sua existência, é
adequada à idéia da mais alta perfeição da sua espécie (assim como
tão-pouco o homem é adequado à idéia de humanidade que traz na
alma como arquétipo das suas ações); que essas idéias, contudo,
estão determinadas, individual, imutável e completamente, no
entendimento supremo e são as causas originárias das coisas, sendo
apenas o todo da ligação destas no B 375
universo inteiramente adequado a essa idéia. Se pusermos de parte
o exagero de expressão, o ímpeto espiritual do filósofo, para se
elevar da consideração da cópia que lhe oferece o físico da ordem
do mundo até à ligação arquitetônica dessa ordem segundo fins,
isto é, segundo idéias, é um esforço digno de respeito e merecedor
de ser continuado; mas, em relação aos princípios de moralidade,
da legislação e da religião, em que as idéias tornam possível, antes
de tudo, a própria experiência (a experiência do bem), embora
nunca possam nela ser perfeitamente expressas, esta tentativa tem
um particular mérito, que só não se reconhece porque o julgamos
segundo regras empíricas, cuja validade, como princípios, devia ser
anulada pelas idéias. Com efeito, relativamente à natureza, a
experiência dá-nos a regra e é a fonte da verdade; no que toca às
leis morais a experiência é (infelizmente!) a madre da aparência e é
A 319 I altamente reprovável extrair as leis acerca do que devo fazer
daquilo que se faz ou querer reduzi-las ao que é feito.
Em vez de todas estas considerações, cujo competente
desenvolvimento constitui, de fato, a dignidade própria da
filosofia, ocupar-nos-emos agora de uma tarefa menos brilhante,
mas não menos meritória, que é a de aplainar e consolidar o terreno
B 376 para o majestoso I edifício da moral, onde se encontra toda a
espécie de galerias de toupeira, que a razão, em busca de tesouros,
escavou sem proveito, apesar das suas boas intenções e que
ameaçam a solidez dessa construção. Compete-nos agora conhecer,
rigorosamente, o uso transcendental da razão pura, seus princípios
e idéias, para poder determinar e avaliar convenientemente a
influência da razão pura e o seu valor. Mas, antes de terminar esta
introdução, peço a quantos têm a peito a filosofia (o que é menos
freqüente do que se apregoa), no caso de se sentirem convencidos
pelo que acabo de dizer e pelo que se segue, que tomem sob sua
protecção a palavra idéia no seu significado primitivo, para que
doravante não se confunda com as outras palavras pelas quais é
hábito designar toda a espécie de representações, sem nenhuma
ordem precisa e com grande prejuízo da ciência. Não nos faltam
denominações convenientemente adequadas a toda a espécie de
representações sem haver necessidade de recorrer ao que é
A 320 propriedade alheia. Eis
aqui uma escala das mesmas. O termo genérico é a representação
em geral (repraesentatio). Subordinado a este, situa-se a
representação com consciência (perceptio). Uma percepção que se
refere simplesmente ao sujeito, como modificação do seu estado, é
sensação (sensatio); uma percepção objetiva é conhecimento
(cognitio). I O conhecimento, por sua vez, é intuição ou conceito B 377
(intuitus vel conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao
objeto e é singular, o segundo refere-se mediatamente, por meio de
um sinal que pode ser comum a várias coisas. O conceito é empírico
ou puro e ao conceito puro, na medida em que tem origem no
simples entendimento (não numa imagem pura da sensibilidade),
chama-se noção (notio). Um conceito extraído de noções e que
transcende a possibilidade da experiência é a idéia ou conceito da
razão. Quem uma vez se habitue a esta distinção achará
insuportável ouvir chamar idéia à representação da cor vermelha,
que nem sequer se deverá chamar noção (conceito do
entendimento).

Segunda Secção

DAS IDÉIAS TRANSCENDENTAIS A 321

A analítica transcendental deu-nos o exemplo de como a


simples forma lógica do nosso conhecimento pode conter a origem
de conceitos puros a priori, que, anteriormente a qualquer
experiência, nos representam objetos, ou melhor, indicam a unidade
sintética, única que I permite um conhecimento empírico dos B 378
objetos. A forma dos juízos (convertida em conceito da síntese das
intuições) produziu categorias, que dirigem todo o uso do
entendimento na experiência. Do mesmo modo podemos esperar
que a forma dos raciocínios, quando aplicada à unidade sintética das
intuições, segundo a norma das categorias, contenha a origem de
conceitos particulares a priori, a que podemos dar o nome de
conceitos puros da razão ou idéias transcendentais e que
determinam, segundo princípios, o uso do entendimento no
conjunto total da experiência.
A função da razão nas suas inferências consiste na
universalidade do conhecimento por conceitos, e o próprio
raciocínio
CRÍTICA
DA RAZÃO PURA

Immanuel Kant
Tradução de
MANUELA PINTO DOS SANTOS
e
ALEXANDRE FRADIQUE MORUJÃO

Introdução e notas
de
ALEXANDRE FRADIQUE MORUJÃO

5ª E D I Ç Ã O

SERVIÇO DE EDUCAÇÃO E BOLSAS


FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN
Tradução do original alemão intitulado
KRITIK DER REINEN VERNUNFT
de
IMMANUEL KANT, baseada na edição crítica
de Raymund Schmidt, confrontada com a edição
da Academia de Berlim e com a edição
de Ernst Cassirer.

Reservados todos os direitos


de harmonia com a lei
Edição da Fundação Calouste Gulbenkian
Av. de Berna I Lisboa
2001

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