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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Humanas

Departamento de Filosofia

Filosofia Moderna

Maria Olivia Serejo

O Percurso de Descartes até o Cogito

Primeira Meditação

1
Conhecer e interpretar corretamente a obra filosófica de Descartes requer lento
compasso, de vez que, embora o filósofo francês sublinhe, a cada parágrafo, a
necessidade de “clareza e distinção”, o pensamento cartesiano – e a forma como foi
exposto – de maneira alguma revela-se de fácil e linear apreensão, como o demonstram
as tantas controvérsias que ainda agora disputam a correta compreensão das proposições
de tal legado teórico, até hoje havido como surpreendente. Em outras palavras, extensa é
a tarefa quando se trata de elucidar problemas de interpretação concernentes sobretudo
em precisar o sentido pertinente dos termos, ideias e conceitos usados por Descartes.
Esse é o norte que conduz o presente texto, voltado a palmilhar o percurso feito pelo
filósofo na Primeira Meditação do livro “Meditações sobre Filosofia Primeira”, visando
a explicar o método mediante o qual o renomado autor intentou estabelecer as bases do
conhecimento científico, já agora de modo a ultrapassar as restrições que o ceticismo
logrou impor à teoria aristotélica do conhecimento.

Publicada logo após “Discurso do Método”, voltado à mesma proposta,


“Meditações” vem permeada pelo uso de imagens e metáfora. Numa delas, Descartes
compara o conhecimento de então a um edifício cujos alicerces se fazem em bases
consideradas frágeis pelo filósofo. Propõe, então, outra plataforma de sustentação para
que, assim, se assegure solidez ao sistema científico: uma metodologia fundada no ato
de duvidar, mas nunca de modo qualquer. A dúvida há de ser metódica.

O livro principia por dizer das causas pelas quais devemos duvidar de todas as
coisas, mormente as materiais, “ao menos enquanto os fundamentos das ciências não
forem diversos dos que temos até agora”1. Com tal formulação, o filósofo pretende, na
realidade, colocar em xeque a estrutura do conhecimento erguido em bases
enganadoras, porque apoiadas em informações não garantidas. Como um cético,
Descartes desacredita na ciência de então. Mas o faz provisoriamente, pois que tem
como objetivo alcançar a verdade – a ciência em sustentáculos sólidos, irrefutáveis ( até
para os céticos!). O projeto cartesiano, em si mesmo, é dos mais ambiciosos. No
entanto, metaforicamente, o autor traz pra si todo o equívoco, recorrendo à primeira
pessoa ao proceder à narrativa.

(A dúvida é provisória porque é instrumento de uma ideação filosófica que


aspira fixar limites confiáveis nos quais situar a ciência. Não se pretende a permanência
em estado de dúvida, mas chegar-se ao conhecimento absolutamente seguro pelo
1
DESCARTES, R. Meditações. São Paulo: Abril Cultural,1983 (Coleção Os Pensadores), p.13.

2
esfacelamento da própria dúvida, ou seja, a dúvida está a serviço da plena certeza: de
que é possível conhecer e, desse modo, trazer à balha o sujeito dessa dúvida – o
pensamento: a primeira certeza que suportará todo o edifício do conhecimento2)

O subtítulo da Primeira Meditação – Sobre as Coisas que Podem Ser Postas em


Dúvida – descortina a intenção mediata do autor, pois o alvo almejado é mais
específico: “estabelecer, em algum momento, algo firme e permanente nas ciências” 3.
Para tanto, é necessário derrubar crenças falsas que conduziram a um inconfiável
aprendizado, a exigir, portanto, completa e adequada reformulação.

A magnitude desse empreendimento reclama condições e momento oportunos:


há de se ter a maturidade e envergadura apropriadas, isto é, reputação consolidada,
situação financeira favorável, disponibilidade de tempo, feitio e liberdade intelectual,
sob pena de descrédito de toda empreitada. Assim, tem-se de agir (vasta é a tarefa!) com
máximo empenho, de modo a que “séria, livre e genericamente” 4 possa se dar a alforria
de tão antigas quanto infundadas opiniões.

De acordo com Forlin5, a dúvida (e não só o agente) é também séria, porque


voluntária. Não é fingida. Descartes está a perceber que o conhecimento que tem das
coisas é frágil, e essa constatação vem sendo negligenciada. O filósofo então delibera
encontrar razões para, duvidando, suspender o juízo (Epokhé) acerca de tudo. Esse
processo é feito racionalmente, pelo entendimento, opondo e contrapondo crenças e
juízos – os sentidos informando numa direção e a razão conduzindo a uma contrária.

A condição de liberdade requisitada por tamanha missão diz com o


descompromisso com qualquer teoria ou prócer filosóficos, possibilitando, destarte,
total e abrangente (genérico) arbítrio investigativo, de modo a alcançar, inclusive, as
órbitas matemáticas, como se verá.

Se nesse primeiro parágrafo Descartes justifica o propósito que o impulsiona


(“se desejasse estabelecer em algum momento algo firme e permanente nas ciências” 6),
na continuação ele explicita como fazê-lo, ou seja, por meio de certos preceitos que
regem sua metodologia – o processo pelo qual se opera a dúvida metódica.
2
Forlin, E. O papel da dúvida no processo de constituição do cogito. São Paulo: Associação Editorial
Humanitas, 2004, p.31
3
Idem, p. 15
4
Idem, ibidem, p.17
5
Forlin, p. 28
6
Descartes, p. 15

3
O primeiro desses preceitos é o exercício da dúvida hiperbólica, que consiste
em estender o questionamento tanto às coisas manifestamente falsas quanto àquelas que
não são de todo certas ( algo existe de falso, não importa em que proporção).
Exatamente nesse pormenor (excesso, demasia) reside o caráter hiperbólico da dúvida.
Isto porque, no processo racional, há de se exigir, cuidadosamente, cem por cento de
certeza, rejeitando-se toda ou alguma razão qualquer de duvidar. Basta tão-somente
encontrar um mísero indício de dúvida para refutar a ideia em exame.

Ademais, é necessário radicalizar a conduta: atacar os princípios que


contaminam as proposições. Se subsiste pequeníssima dúvida a contagiar um ínfimo
princípio (por lateral que seja), arrimo de alguma teoria, é preciso que se a rejeite como
um todo (a teoria) – e pela raiz. Em outros termos, uma fenda, por insignificante que
seja, pode levar à ruína a mais exaltada fortificação (“se os fundamentos se afundam,
tudo desaba”7). A simples possibilidade de falsidade de algo obstaculiza-lhe o
necessário caráter de verdade. Também aqui é mister suspender o juízo, de vez que “a
razão já me persuade8” de que é preciso abandonar tanto as coisas verossímeis quanto as
falsas, principalmente em se cuidando da “raiz”, da base sobre a qual se ergue algo. O
método é racional e, portanto, lógico: a se ordenar a certeza, mostra-se autoevidente que
se rechace a menor fresta ao contágio. Aqui nada é pressuposto, nada é arbitrário. Há
etapas racionais a serem perseguidas a fim de dinamitar, ab initio, a errônea construção
do conhecimento, que se quer com alicerces inabaláveis.

A dúvida agora, além de metódica, faz-se hiperbólica e radical, qualificativos


que delineiam magistralmente as especificações características do método.

Postas as razões do método, urge colocá-lo em operação, testando os


fundamentos dessa ciência – que se almeja segura – no intuito de averiguar se neles
reside qualquer diminuta razão de duvidar. O alvo (subliminar) são as bases do
empirismo, teoria do conhecimento fundada na experiência sensorial, na sensação,
como fonte de tudo que pode ser apreendido. Descartes é certeiro quando, mediante o
que ficou conhecido como o Argumento do Erro dos Sentidos, intenta derrubar o
princípio empirista básico, ao afirmar o óbvio: os sentidos por vezes nos enganam. E se
iludem uma vez, desabilitados estão para inspirar a devida confiança (eis, de fato, a
aplicação coerente do preceito hiperbólico).

7
Idem, p.17
8
Idem, ibidem, p. 17

4
Conquanto aponte o erro dos sentidos, Descartes sabe que não pode invalidá-los
de todo, como fonte de saber, ante a comezinha realidade (“Mas, talvez, apesar de os
sentidos nos enganarem às vezes acerca de certas coisas miúdas e afastadas, muitas
coisas haja, contudo, sobre as quais não se pode de modo algum duvidar, não obstante
haurida dos sentidos”9). Negá-lo – recusar os sentidos como veículo de verdade, por
vezes – seria uma forma de insanidade, um desvario, tal como é dado aos loucos de todo
o gênero, capaz de por abaixo toda a tentativa de elaborar o método em questão. Opõe-
se aqui o racional ao razoável.

Na realidade, essa reflexão, conhecida como o Argumento da Loucura, afeiçoa-


se mais aos propósitos de mera ilustração. a fim de se enquadrar a narrativa cartesiana
dentro dos limites da razoabilidade – esta, muitas vezes, é confrontada com a dúvida
hiperbólica, sobretudo quando aplicada ao uso dos sentidos –, ao lado da razão e bem
longe dos devaneios. Afinal, é a razão que se mantém a todo instante sob perspectiva.
Dá-se, assim, como que uma dialética retórica entre a racionalidade hiperbólica e a
prudente razoabilidade.

Como então sair dessa encruzilhada? Como não sucumbir ao xeque em que foi
posto o preceito hiperbólico, em face do requisito da razoabilidade? Esse, o aceno do
autor nas Meditações, um convite para que o leitor supere os próprios preconceitos por
meio do exercício da “razão razoável”. Além disso, há aqui também um gesto às hostes
episcopais, sempre em alerta contra mudanças, mormente em se tratando de saberes
científicos abrigados no puro exercício da razão.

Ante a falha na tentativa de universalizar o Argumento do Erro dos Sentidos, ou


seja, excluir os sentidos como fonte de conhecimento, Descartes lança mão de nova
estratégia: o Argumento dos Sonhos. É que, diz ele, nos sonhos sentimos “essas mesmas
coisas e, até menos verossímeis que eles (os loucos) em vigília! 10”, de maneira que
“vejo de modo mais manifesto que a vigília nunca pode ser distinguida do sono por
indícios certos”11. Em outras palavras, nos sonhos a fantasia se substitui às impressões
sensíveis, dando igualmente a noção de realidade. De tal sorte, reforça-se a tese de que
os sentidos não podem embasar o conhecimento seguro pois, de fato, não se consegue

9
Idem, ibidem, p.17
10
Idem, ibidem, p. 19
11
Idem, ibidem, p.19

5
distinguir impressão sensível (de fora para dentro) de projeção fantasiosa (de dentro
para fora).

Se a insanidade foi o limite encontrado para a dúvida hiperbólica anteposta aos


erros dos sentidos, o argumento dos sonhos tem de abranger o da loucura e incorporá-lo:
se nos sonhos lidamos com quimeras ainda mais estapafúrdias que a dos doidos em
vigília, e nelas chegamos a acreditar, já não é mais possível avaliar claramente se
estamos acordados ou dormindo. Tudo pode ser real ou fantasia. Absolutamente tudo
(“talvez não tenhamos também estas mãos, nem este corpo todo”12).

Descartes avança para uma posição ainda mais extrema: se nada que seja
sensível existe de fato; se tudo pode ser uma conjectura delirante de alguém, se a
existência toda pode estar em xeque – o corpo, o mundo, a materialidade em si –, então
quem pode assegurar que tudo não passe de projeção mental? A resposta chega também
estabelecendo o limite esperado nessa composição autoral que vai se revelando em
blocos sucessivamente superados pela articulação seguinte.

Descartes pondera que, tal como os pintores, também nós criamos imagens nos
sonhos, tendo como parâmetro algum modelo. Por este principio – o da semelhança – a
fantasia modula a partir de uma base real, não se sustentando por si mesma. Dessa
forma, se os sonhos são imagens similares ao real, então tem de haver estruturas
fundamentais operando por traz da fantasia. Mesmo em se concebendo corpos
imaginários, estes estarão em cores reais. Sátiros não existem, mas seus contornos e
dimensões podem lembrar equinos. A estrutura fundamental é então a da realidade, o
real do qual as fantasias derivam. Dessarte, a imaginação de modo algum pode se
mostrar autônoma, pois que há de orientar-se sempre por arcabouços essenciais, ainda
que tudo se restrinja a linhas, planos, espaços e cores – efetivas contenções à livre
imaginação tida como pressuposto (“é preciso confessar, todavia, que são pelo menos
necessariamente verdadeiras e existentes algumas outras coisas, ainda mais simples e
universais, a partir das quais são figuradas, como a partir de cores verdadeiras, todas as
imagens de coisas que estão no nosso pensamento, quer verdadeiras ou falsas” 13). Em
outros termos, o exercício da imaginação jamais deixa de se socorrer dos princípios
geométricos básicos, que se norteiam por categorias fundamentais, a exemplo de
grandeza, quantidade, extensão, número, duração. Ninguém cria nada sem o recurso a

12
Idem, ibidem, p.19
13
Idem, ibidem, p.21

6
essas categorias. Mesmo nos sonhos, o triângulo tem três lados; ainda que tudo seja
fantasioso, acordados ou dormindo, 2 + 2 comporá sempre 4.

Por conseguinte, tais estruturas fundamentais, correlatos da matemática e da


geometria, exsurgindo como verdadeiras em qualquer situação, mostram-se resistentes a
toda suspeita. de falsidade. O limite dessa articulação são as evidências racionais,
puramente racionais, que independem dos sentidos, o mundo existindo, ou não. Trata-se
de uma evidência que só depende de si para se sustentar. A geometria prescinde dos
sentidos.

Em suma, se tais princípios geométricos (categorias fundamentais da


espacialidade) são fontes seguras, firmes, inabaláveis do saber, a autoevidência racional
candidata-se a ser o princípio de todo o conhecimento para lidar com coisas havidas ou
fantasiosas. Com a aritmética, a geometria (“e outras desse modo” 14) estaria a se
alcançar o tão ambicionado conhecimento certo e indubitável. Vale aqui ressaltar a
importância do Argumento dos Sonhos para chegar-se à certeza ora atribuída aos
misteres dos geômetras.

Neste ponto da articulação cartesiana, a razão em si mesma toma então o lugar


do princípio empirista e passa a figurar como possível fonte confiável do conhecimento.
Estaria, assim, totalizada a dúvida metódica?

Não agora para Descartes, que lança mão de mais uma estratégia para atingir, de
forma inquestionável, o próprio desiderato , trazendo à discussão a existência de um
Deus que tudo pode, inclusive cometer toda sorte de absurdos, inclusive enganar, de
maneira a engendrar erros até nas verdades mais evidentes. O que poderia se sustentar
diante da onipotência divina? Nesta primeira etapa do Argumento do Deus Enganador,
ainda uma vez a dúvida empareda.

Conquanto nada escape da dúvida, desacreditando-se na ciência (embora se


persista na tese de que ainda assim é possível afirmar verdades geométricas), Descartes
avança para por terra abaixo o direito à evidência racional (não se contesta o fato em si
mesmo – qualquer triângulo permanece tendo três lados), que perde a garantia. Se Deus
é enganador (Ele pode ser tudo e tudo pode), o erro pode acometer até casos
autoevidentes, dado que não há garantia do funcionamento da racionalidade.

14
Idem, ibidem, p. 21

7
Em termos mais simples, a autoevidência da razão está em xeque, malgrado se
afirme que, irredutivelmente, 2+ 2 = 4. A dúvida é de direito, não de fato. Todavia,
quando se ataca o fundamento, minando-o, já não se pode mais sustentar nem o fato.
Justamente por isso, nesse compasso, a dúvida passa a ser tida como metafísica e, assim,
torna-se bem mais frágil; as outras, afetas ao erro dos sentidos e aos sonhos, concerniam
a experiências tipicamente mundanas, comumente vivenciadas, ao contrário da
discussão centrada na autoevidência da razão, mais distante do convencimento. Diz-se
também metafísica porque agora relacionada com Deus, patamar em que qualquer
explicação faz-se necessariamente incompleta.

Descartes prossegue limitando o Argumento do Deus Enganador ao ressaltar a


bondade divina, à qual certamente repugnaria a ideia da criação de um ser imperfeito a
ponto de errar sempre, ou mesmo de vez em quando. Nada obstante, dada essa
contradição entre a bondade e a onipotência deíficas, a atingir até o direito ao
funcionamento esperado da racionalidade, o filósofo alude àqueles que, à falta de
respostas, passam a renegar inclusive a própria existência desse Deus contradito – os
materialistas –, que o fazem, racionalmente, para salvar a ciência (“Talvez haja, em
verdade, aqueles que, a ter de crer que todas as outras coisas são incertas, prefiram
negar um Deus tão poderoso”15). O autor não os cita explicitamente, mas sabe-se que se
refere a empiristas radicais, como John Locke e Thomas Hobbes.

O contra-argumento dirigido aos incréus vem a seguir: a negar-se que o agente


da racionalidade humana é um Ser infinito e racional, alegando-se, por outro lado, que a
causa dessa racionalidade é a imperfeição e o caos, não restaria nenhuma garantia para a
ciência, porquanto em Deus é que estaria consubstanciado o aval para o funcionamento
básico e eterno da racionalidade humana. A se recorrer à lógica, dar-se-ia o contrário da
tese materialista: de uma causa infinita e racional, onipotente e boa, só poderia derivar
um efeito igualmente bom. Bem ao reverso. “quanto menos poderoso for o autor que
designem à minha origem, tanto mais provável será que eu seja tão imperfeito para que
sempre erre”16).

Deveras, no acaso tudo pode ser falso. Então, nesta altura do construto
cartesiano, dá-se a universalização da dúvida. Inexiste algo de que não seja possível
duvidar (“sou finalmente forçado a confessar que nada há de todas as coisas que

15
Idem, ibidem, p.23
16
Idem, ibidem, p.23

8
considerava outrora verdadeiras de que não me seja permitido duvidar, não por
inconsideração ou leviandade, mas por robustas e meditadas razões” 17). Assim, torna-se
impossível encontrar alguma coisa de firme e certo na ciência, se em questão está a
racionalidade, diante das contradições internas havidas no conceito mesmo de Deus. A
dúvida metafísica totaliza a dúvida metódica. Agora, sim, o argumento se completou,
porque em causa se fez justamente a racionalidade, que se pretendia a diretriz da
ciência.

Entretanto, ainda que nada mais reste a não ser duvidar de tudo, Descartes
pondera que não se pode desconsiderar a força do hábito, que leva a se persistir
acreditando na racionalidade (“as opiniões costumeiras reaparecem ininterruptamente, a
ocupar minha credulidade, a elas submetida quase contra a minha vontade por um
demorado trato e um direito de familiaridade”) 18. Com este artificio, o filósofo introduz
o Argumento do Gênio Maligno – na verdade, um mecanismo psicológico posto em
ação num caminho cênico, para sustentar o valor dessa razão absoluta (ilustrado, por
assim dizer, num demônio – o reflexo imagético do caráter violento dessa razão
moderna).

O intuito do autor em criar essa personagem imagética está em contrapor as


razões de duvidar ao antagonismo engendrado pela cotidiana vivência da razoabilidade.
Esse ardil serve para afirmar a vontade irrestrita de dominar as resistências psicológicas
ensejadas pelo hábito, de que não se foi capaz somente com o exercício da razão. O
hábito prejudica porquanto é obstáculo ao desdobramento incondicional da razão (que
se almeja livre, absoluta e autodeterminada).

Além do voluntarismo da razão absoluta, a figura do gênio maligno convém


ainda para garantir liberdade: sabendo-se que o gênio engana, que se está sempre sendo
levado ao erro, mesmo não se encontrando a verdade (“se não tiver em meu poder
conhecer algo verdadeiro, estará em mim pelo menos negar meu assentimento aos erros,
às coisas falsas”19), é-se livre (da ilusão de tê-la encontrado) para apenas conhecer.

Com o Gênio Maligno, Descartes coloca em xeque, vez por todas, a objetividade
do conhecimento científico, abrindo caminho para a conclusão mais importante de
então, a embasar todas as demais: o conhecimento incontestável do conceito do Cogito.

17
Idem, ibidem, p.23
18
Idem, ibidem p. 25
19
Idem, ibidem, p.27

9
10

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