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Departamento de Filosofia
Filosofia Moderna
Primeira Meditação
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Conhecer e interpretar corretamente a obra filosófica de Descartes requer lento
compasso, de vez que, embora o filósofo francês sublinhe, a cada parágrafo, a
necessidade de “clareza e distinção”, o pensamento cartesiano – e a forma como foi
exposto – de maneira alguma revela-se de fácil e linear apreensão, como o demonstram
as tantas controvérsias que ainda agora disputam a correta compreensão das proposições
de tal legado teórico, até hoje havido como surpreendente. Em outras palavras, extensa é
a tarefa quando se trata de elucidar problemas de interpretação concernentes sobretudo
em precisar o sentido pertinente dos termos, ideias e conceitos usados por Descartes.
Esse é o norte que conduz o presente texto, voltado a palmilhar o percurso feito pelo
filósofo na Primeira Meditação do livro “Meditações sobre Filosofia Primeira”, visando
a explicar o método mediante o qual o renomado autor intentou estabelecer as bases do
conhecimento científico, já agora de modo a ultrapassar as restrições que o ceticismo
logrou impor à teoria aristotélica do conhecimento.
O livro principia por dizer das causas pelas quais devemos duvidar de todas as
coisas, mormente as materiais, “ao menos enquanto os fundamentos das ciências não
forem diversos dos que temos até agora”1. Com tal formulação, o filósofo pretende, na
realidade, colocar em xeque a estrutura do conhecimento erguido em bases
enganadoras, porque apoiadas em informações não garantidas. Como um cético,
Descartes desacredita na ciência de então. Mas o faz provisoriamente, pois que tem
como objetivo alcançar a verdade – a ciência em sustentáculos sólidos, irrefutáveis ( até
para os céticos!). O projeto cartesiano, em si mesmo, é dos mais ambiciosos. No
entanto, metaforicamente, o autor traz pra si todo o equívoco, recorrendo à primeira
pessoa ao proceder à narrativa.
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esfacelamento da própria dúvida, ou seja, a dúvida está a serviço da plena certeza: de
que é possível conhecer e, desse modo, trazer à balha o sujeito dessa dúvida – o
pensamento: a primeira certeza que suportará todo o edifício do conhecimento2)
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O primeiro desses preceitos é o exercício da dúvida hiperbólica, que consiste
em estender o questionamento tanto às coisas manifestamente falsas quanto àquelas que
não são de todo certas ( algo existe de falso, não importa em que proporção).
Exatamente nesse pormenor (excesso, demasia) reside o caráter hiperbólico da dúvida.
Isto porque, no processo racional, há de se exigir, cuidadosamente, cem por cento de
certeza, rejeitando-se toda ou alguma razão qualquer de duvidar. Basta tão-somente
encontrar um mísero indício de dúvida para refutar a ideia em exame.
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Idem, p.17
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Idem, ibidem, p. 17
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Conquanto aponte o erro dos sentidos, Descartes sabe que não pode invalidá-los
de todo, como fonte de saber, ante a comezinha realidade (“Mas, talvez, apesar de os
sentidos nos enganarem às vezes acerca de certas coisas miúdas e afastadas, muitas
coisas haja, contudo, sobre as quais não se pode de modo algum duvidar, não obstante
haurida dos sentidos”9). Negá-lo – recusar os sentidos como veículo de verdade, por
vezes – seria uma forma de insanidade, um desvario, tal como é dado aos loucos de todo
o gênero, capaz de por abaixo toda a tentativa de elaborar o método em questão. Opõe-
se aqui o racional ao razoável.
Como então sair dessa encruzilhada? Como não sucumbir ao xeque em que foi
posto o preceito hiperbólico, em face do requisito da razoabilidade? Esse, o aceno do
autor nas Meditações, um convite para que o leitor supere os próprios preconceitos por
meio do exercício da “razão razoável”. Além disso, há aqui também um gesto às hostes
episcopais, sempre em alerta contra mudanças, mormente em se tratando de saberes
científicos abrigados no puro exercício da razão.
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Idem, ibidem, p.17
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Idem, ibidem, p. 19
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Idem, ibidem, p.19
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distinguir impressão sensível (de fora para dentro) de projeção fantasiosa (de dentro
para fora).
Descartes avança para uma posição ainda mais extrema: se nada que seja
sensível existe de fato; se tudo pode ser uma conjectura delirante de alguém, se a
existência toda pode estar em xeque – o corpo, o mundo, a materialidade em si –, então
quem pode assegurar que tudo não passe de projeção mental? A resposta chega também
estabelecendo o limite esperado nessa composição autoral que vai se revelando em
blocos sucessivamente superados pela articulação seguinte.
Descartes pondera que, tal como os pintores, também nós criamos imagens nos
sonhos, tendo como parâmetro algum modelo. Por este principio – o da semelhança – a
fantasia modula a partir de uma base real, não se sustentando por si mesma. Dessa
forma, se os sonhos são imagens similares ao real, então tem de haver estruturas
fundamentais operando por traz da fantasia. Mesmo em se concebendo corpos
imaginários, estes estarão em cores reais. Sátiros não existem, mas seus contornos e
dimensões podem lembrar equinos. A estrutura fundamental é então a da realidade, o
real do qual as fantasias derivam. Dessarte, a imaginação de modo algum pode se
mostrar autônoma, pois que há de orientar-se sempre por arcabouços essenciais, ainda
que tudo se restrinja a linhas, planos, espaços e cores – efetivas contenções à livre
imaginação tida como pressuposto (“é preciso confessar, todavia, que são pelo menos
necessariamente verdadeiras e existentes algumas outras coisas, ainda mais simples e
universais, a partir das quais são figuradas, como a partir de cores verdadeiras, todas as
imagens de coisas que estão no nosso pensamento, quer verdadeiras ou falsas” 13). Em
outros termos, o exercício da imaginação jamais deixa de se socorrer dos princípios
geométricos básicos, que se norteiam por categorias fundamentais, a exemplo de
grandeza, quantidade, extensão, número, duração. Ninguém cria nada sem o recurso a
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Idem, ibidem, p.19
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essas categorias. Mesmo nos sonhos, o triângulo tem três lados; ainda que tudo seja
fantasioso, acordados ou dormindo, 2 + 2 comporá sempre 4.
Não agora para Descartes, que lança mão de mais uma estratégia para atingir, de
forma inquestionável, o próprio desiderato , trazendo à discussão a existência de um
Deus que tudo pode, inclusive cometer toda sorte de absurdos, inclusive enganar, de
maneira a engendrar erros até nas verdades mais evidentes. O que poderia se sustentar
diante da onipotência divina? Nesta primeira etapa do Argumento do Deus Enganador,
ainda uma vez a dúvida empareda.
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Em termos mais simples, a autoevidência da razão está em xeque, malgrado se
afirme que, irredutivelmente, 2+ 2 = 4. A dúvida é de direito, não de fato. Todavia,
quando se ataca o fundamento, minando-o, já não se pode mais sustentar nem o fato.
Justamente por isso, nesse compasso, a dúvida passa a ser tida como metafísica e, assim,
torna-se bem mais frágil; as outras, afetas ao erro dos sentidos e aos sonhos, concerniam
a experiências tipicamente mundanas, comumente vivenciadas, ao contrário da
discussão centrada na autoevidência da razão, mais distante do convencimento. Diz-se
também metafísica porque agora relacionada com Deus, patamar em que qualquer
explicação faz-se necessariamente incompleta.
Deveras, no acaso tudo pode ser falso. Então, nesta altura do construto
cartesiano, dá-se a universalização da dúvida. Inexiste algo de que não seja possível
duvidar (“sou finalmente forçado a confessar que nada há de todas as coisas que
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Idem, ibidem, p.23
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considerava outrora verdadeiras de que não me seja permitido duvidar, não por
inconsideração ou leviandade, mas por robustas e meditadas razões” 17). Assim, torna-se
impossível encontrar alguma coisa de firme e certo na ciência, se em questão está a
racionalidade, diante das contradições internas havidas no conceito mesmo de Deus. A
dúvida metafísica totaliza a dúvida metódica. Agora, sim, o argumento se completou,
porque em causa se fez justamente a racionalidade, que se pretendia a diretriz da
ciência.
Entretanto, ainda que nada mais reste a não ser duvidar de tudo, Descartes
pondera que não se pode desconsiderar a força do hábito, que leva a se persistir
acreditando na racionalidade (“as opiniões costumeiras reaparecem ininterruptamente, a
ocupar minha credulidade, a elas submetida quase contra a minha vontade por um
demorado trato e um direito de familiaridade”) 18. Com este artificio, o filósofo introduz
o Argumento do Gênio Maligno – na verdade, um mecanismo psicológico posto em
ação num caminho cênico, para sustentar o valor dessa razão absoluta (ilustrado, por
assim dizer, num demônio – o reflexo imagético do caráter violento dessa razão
moderna).
Com o Gênio Maligno, Descartes coloca em xeque, vez por todas, a objetividade
do conhecimento científico, abrindo caminho para a conclusão mais importante de
então, a embasar todas as demais: o conhecimento incontestável do conceito do Cogito.
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