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Distinções entre Locke e Descartes acerca do conhecimento humano

Lucas Pavani Goulart

Introdução
Por vezes mais conhecido por seus livros de ética e filosofia política, a obra filosófica
mais importante de John Locke foi Ensaio sobre o entendimento humano. Para Ayers (2000),
o Ensaio consistiu em uma resposta ao aristotelismo escolástico ainda remanescente no século
XVII, além de ter sido decisivo para o debate entre empiristas e racionalistas. Se do lado
empirista Locke foi o mais destacado autor da filosofia moderna, entre os racionalistas foi
René Descartes quem adquiriu maior proeminência. Tendo isso em mente, este trabalho
pretende examinar algumas distinções mais destacadas entre as teorias do conhecimento
elaboradas pelos dois autores.
Para tanto, propomos o seguinte percurso: apresentaremos, de início, uma breve
introdução à epistemologia, destacando algumas contribuições de Aristóteles, que, além de
terem impactado, como visto, até a modernidade, consistiu em uma das principais fontes de
Locke tendo em vista o seu caráter empirista; em seguida, exporemos a filosofia cartesiana no
que diz respeito às suas reflexões sobre o método, bem como sua fundamentação metafísica
do conhecimento; a seguir, será vez da filosofia lockeana ter suas principais bases
apresentadas; por fim, proporemos comparações entre as teorias do conhecimento de Locke e
Descartes com base a estabelecer distinções em três pontos: a relação das certezas com o
conhecimento; o papel da matemática; a questão da exterioridade da intuição sensível.

Breve contextualização epistemológica


Uma das grandes perguntas presentes na história da filosofia é a que se questiona
sobre o que é o conhecimento. Ao longo dos séculos, muitas respostas a ela foram traçadas
tendo em mente diferentes sentidos e caminhos. Na tentativa de adotar um critério para
determinação do que pode ser, de fato, considerado conhecimento, os gregos utilizaram o
termo episteme como significado de conhecimentos sólidos e imutáveis, tendo a matemática
como modelo. Em oposição à episteme está a doxa, cujo sentido é o da opinião que não pode
ser classificada como conhecimento.
Aristóteles, uma das principais fontes de John Locke por seu pioneirismo empirista,
caracterizou em sua Metafísica a episteme como o último grau no processo de conhecimento,
que pode ser esquematizado da seguinte forma: sensação -> memória -> audição ->
experiência -> arte -> ciência (episteme).
Tal processo, de acordo com Aristóteles, advém do desejo natural do ser humano para
conhecer e se inicia, portanto, nos sentidos, o que marca sua base empirista. Aos sentidos,
Aristóteles soma a memória e a audição pressupostos para a capacidade de possuir
experiência. O grau seguinte à experiência é o da arte. Embora ambos estejam calcados no
aprendizado pela repetição de vivências, a experiência, diz Aristóteles, é um conhecimento de
coisas singulares, correlações observadas na prática, enquanto a arte se caracteriza como
conhecimento das causas, ou seja, um salto para o conhecimento universal.
Por fim, a ciência ou episteme se caracteriza pelo que de fato é conhecimento: o
conhecimento de verdades essenciais e imutáveis no interior da natureza. Diferentemente da
arte, o saber científico é livre e gratuito, não possuindo fins específicos. Aristóteles tem, nesse
sentido, a matemática e a física como exemplos de ciências.

Método e dúvida na filosofia racionalista cartesiana


Na modernidade, as discussões epistemológicas ganharam ainda mais força com o
avanço da ciência moderna e as novas descobertas em diversos campos científicos. Nesse
sentido, René Descartes foi um dos principais filósofos a discutir questões epistemológicas e a
influenciar o que se tornaria o método da ciência moderna. Nas Regras para a direção do
espírito, Descartes postula determinadas regras que, quando praticadas, levem a mente à
obtenção de uma mathesis, ou seja, uma ciência geral capaz de obter a verdade. Na primeira
regra isso já está colocado, pois nela o filósofo afirma a unicidade da ciência em
conformidade à unicidade do espírito e do método: "É preciso acreditar que todas as ciências
estão de tal modo conexas entre si que é muitíssimo mais fácil aprendê-las todas ao mesmo
tempo do que separar uma só que seja das outra" (DESCARTES, 1989, p. 4). Com isso,
Descartes busca pelo que é comum nas ciências, uma espécie de sabedoria universal a qual as
regras propostas visam obter.
Descartes pretende encontrar um método que, proporcionando um uso correto da
razão, seja capaz de chegar ao conhecimento claro e evidente, ou seja, sobre o qual não haja
desacordo. A chave para tal problema está na matemática, do que deriva a centralidade dessa
ciência no método cartesiano, pois, para Descartes, em nenhum outro lugar há tanta evidência
como nas verdades matemáticas. De modo geral, a matemática detém, para Descartes, a
própria maneira de operar da nossa razão que, se apreendida, poderá levar à obtenção de
novas verdades.
O método consiste, assim, em uma matemática que não se ocupa dos números ou do
espaço, mas se pretende universal. Trata-se da maneira como o próprio entendimento se
desdobra quando depurado a partir da intuição - luz natural da razão evidente e indubitável - e
da dedução - raciocínio em cadeia cuja certeza é garantida pela intuição. Assim, a filosofia
cartesiana se caracteriza tanto por seu racionalismo, uma vez que entende que a elucidação do
funcionamento da razão e seu uso correto é suficiente para obtenção de conhecimento claro e
evidente adota, como pelo inatismo, pois tal razão do espírito só pode ter sido criada por um
deus.
Contudo, o caráter realmente inovador do método cartesiano reside em sua busca por
um fundamento metafísico para a própria intuição, o que ocorre em suas Meditações
Metafísicas, nas quais Descartes lança mão de uma sequência de argumentos que possa levar
à obtenção da primeira certeza da existência. Nesse sentido, o próprio método é colocado em
dúvida, e por esse motivo a dúvida na filosofia cartesiana passou a ser chamada de dúvida
metódica. Como afirma Silva (2001, p. 35), é possível acompanhar o aprofundamento da
dúvida metódica cartesiana na primeira meditação metafísica. É nela que Descartes anuncia
de partida a necessidade de "desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e
começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de
constante nas ciências" (DESCARTES, 1979, p. 93).
Mediante o exercício negativo da dúvida, Descartes colocará em cheque os
fundamentos de qualquer conhecimento que possua um motivo para ser duvidado. É isso que
ocorre, inicialmente, com o conhecimento sensível, pois embora ele possa muitas vezes levar
a verdades, o fato de que os sentidos levem por vezes ao engano é motivo para que eles sejam
postos completamente em dúvida.
Em seguida, Descartes lançará mão do chamado argumento do sonho, mediante o qual
toda a realidade sensível externa ao indivíduo é posta em cheque, dado que não é possível
distinguir o sono da vigília.
Há, contudo, algo que escapa ao argumento do sonho, momento em que a dúvida
metódica encontra as representações matemáticas, pois estas existem mesmo dentro do sonho
e então fazem parte do conhecimento sensível, mas atreladas à sua dimensão intelectual
(Silva, 2001, p. 36).
Como então o próprio fundamento de método, a matemática, será colocado em
dúvida? Descartes recorre a um novo argumento, dividido em duas partes, denominadas como
"Deus enganador" e "Gênio maligno". Em suma, o que o autor argumenta neste ponto da
primeira meditação é que Deus teria a capacidade de nos enganar até mesmo sobre as
verdades mais claras e evidentes como aquelas da matemática. E, se talvez seja mais difícil
imaginar um deus ardiloso, então recorre-se a um gênio maligno dotado de tal poder. De fato,
o resultado é o mesmo: não podemos nem mesmo acreditar que nossas maiores certezas sejam
verdadeiras.
Em vez de aderir a um ceticismo radical para o qual nada pode ser tomado como
verdadeiro, tal como o representado por Pirro de Élis, defensor de uma postura ataratáxica,
Descartes mobiliza as dúvidas criadas para encontrar certezas. Trata-se do estabelecimento de
um ponto fixo a partir do qual a obtenção de verdades torna-se segura, e tal ponto consiste na
percepção de que mesmo que duvidemos de tudo, há algo que se mantém constante nesse
processo, isto é, o que subjaz à própria atividade de duvidar. Descartes dirá então que é o
próprio pensamento que permanece constante.
A primeira certeza do eu pensante é encontrada, pois, na segunda meditação, na
medida em que Descartes recorre ao pensamento para escapar de seu argumento do deus
enganador ou gênio maligno. Assim, ainda que o deus enganador me engane de tudo que eu
sei, ele não pode fazer com que eu nada seja enquanto eu pensar. Nisso consiste o raciocínio
de Descartes que leva à conclusão de que "eu sou, eu existo". É a partir dessa primeira
certeza, portanto, que toda a validade do método e a possibilidade de obter conhecimentos
certos e indubitáveis pelo uso correto da razão podem, enfim, ser reconstruídas de acordo com
uma fundamentação metafísica.

Origem e extensão do conhecimento na filosofia empirista lockeana


No Ensaio sobre o entendimento humano, John Locke afirma sua intenção de "limpar
e desobstruir de velharias o caminho do saber" (LOCKE, 1999, p. 10), dando lugar a uma
investigação do entendimento humano que permita verificar quais a origem e a extensão do
conhecimento. Os significados de tais pontos - origem e extensão do conhecimento - serão
sinteticamente elucidados no contexto da filosofia lockeana para que então se possa destacar
concordâncias e discordâncias em relação ao cartesianismo.
Para Locke, todo conhecimento se origina unicamente da experiência, porém o que
distingue sua filosofia das demais filosofias empiristas está fundamentalmente em sua
definição do conhecimento, qual seja, a de que o conhecimento consiste na percepção do
acordo ou desacordo entre ideias. O termo ideia, herdado justamente do cartesianismo, é em
Locke um sinônimo para as percepções de nosso entendimento, termo que "melhor designa
tudo o que possa ser objecto do entendimento quando um homem pensa, com ele significarei
o que poderia ser expresso com as palavras fantasma, noção, espécie, ou o que quer que o
espírito utilize para pensar" (LOCKE, 1999, p. 27). Tais ideias, portanto, não possuem caráter
inato, mas, de acordo com Locke, desenvolvem-se ao longo da experiência. Uma prova disso
estaria no fato, conforme apresentado no primeiro capítulo do primeiro livro do Ensaio, de
que a humanidade não compartilha de nenhum princípio universal, mostrando que tal
diferença cultural entre os princípios provaria a inexistência do inatismo.
De forma geral, as ideias dividem-se em Locke entre ideias simples e ideias
complexas. As ideias simples correspondem às que não podem ser decompostas sem serem
destruídas - por exemplo, a ideia de vermelho. Já as ideias complexas são as que se compõem
por diferentes elementos. Como afirmado, o conhecimento existe para Locke quando há a
percepção do acordo ou do desacordo entre as nossas ideias - como quando percebemos que o
branco não é o mesmo que o vermelho. Locke ainda elenca e desenvolve quatro tipos de
acordos ou desacordos possíveis entre ideias: identidade ou diversidade, relação, coexistência
e existência real. Contudo, para os fins da presente discussão, importa-se ater ao fato de que,
para Locke, esse reconhecimento do acordo ou desacordo entre ideias não demanda um
esforço da mente, isto é, tais percepções são capacidades que pertencem naturalmente às
mentes de todos os indivíduos, mas isso não equivale dizer que o conhecimento é inato, pois
as percepções e, portanto, também o conhecimento, advêm apenas da experiência.
A tais diferenciações soma-se a divisão feita por Locke de graus de conhecimento,
discussão apresentada no segundo capítulo do quarto livro do Ensaio. Nesse sentido, Locke
distingue dois graus gerais de conhecimento, o grau intuitivo e o grau demonstrativo. O
conhecimento intuitivo corresponde àquele com maior grau de certeza, uma vez que "neste
caso, o espírito não tem dificuldade de provar ou examinar a verdade, mas percebe-a, como os
olhos percebem a luz, somente por estarem voltados para ela" (LOCKE, 1999, p. 729). Por
outro lado, o conhecimento demonstrativo consiste em uma certeza de menor grau, dado que
depende de ideias intermediárias, cada uma delas sendo uma prova intuitiva, para se
constituir. A esses dois graus de conhecimento Locke soma um terceiro, o conhecimento
sensitivo, o qual possui ainda menor grau de certeza em relação à intuição e à demonstração e
"diz respeito à existência de objectos particulares exteriores, em virtude desta percepção e
conhecimento que temos da entrada das ideias que nos vêm destes objectos (...)" (LOCKE,
1999, p. 739).
No que diz respeito à extensão do conhecimento, Locke entende que o exame de nosso
entendimento nos permite saber até onde nosso conhecimento pode chegar e, nesse sentido,
abandona aspirações epistemológicas universais para o ser humano:
Libertos assim do desejo de um conhecimento universal, não ficaremos certamente
tão expostos à tentação de interrogações e discussões que nos deixam perplexos e
confusos por incidirem sobre matérias que o nosso entendimento não abarca (...) Em
resumo: aprenderemos a contentar-nos com o conhecimento de que somos capazes
(...) (LOCKE, 1999, p. 24)
A extensão do conhecimento é tratada especificamente no terceiro capítulo do quarto
livro do Ensaio, no qual Locke trata do fato de que para conhecermos não basta possuirmos
ideias, mas é necessário saber sobre o seus acordos ou desacordos e, dado que nem sempre
isso é possível, por diferentes razões, tal impossibilidade resulta em uma limitação ao
conhecimento. A mera existência de ideias, portanto, não garante o conhecimento, pois elas
são o que se produz em nossa mente diante das coisas, mas isso não garante que sejam, por si
mesmas, verdadeiras.
Neste capítulo Locke também apresenta sua teoria corpuscular da matéria. De acordo
com o filósofo, os objetos são formados por corpúsculos que não podemos perceber por meio
de nossos sentidos. A consequência disso é que, para Locke, não conhecemos de fato a
essência dos objetos, mas somente as ideias que formamos deles. Ao contrário de Aristóteles,
que, embora também empirista, pretende conhecer a natureza das coisas por meio de
silogismos, Locke não crê ser possível o conhecimento das tais essências, pois a seu ver
podemos obter apenas aquilo que provém da percepção sensível. Sua noção de ciência, nesse
sentido, não é a de uma aplicação de leis à realidade com base na observação de
regularidades, mas aquilo que se daria pelo conhecimento dos corpúsculos e de suas conexões
necessárias.

Principais divergências entre Locke e Descartes


As sínteses sobre os apontamentos de Locke a respeito da origem e a extensão do
conhecimento humano previamente apresentadas serão utilizadas, neste ponto, para traçar
comparações com a exposição anterior a respeito da filosofia cartesiana.
Em primeiro lugar, é preciso destacar a distinção entre os projetos epistemológicos de
fundo seguidos por cada autor: se Descartes pretende reconstruir idealmente o funcionamento
de uma mente acabada, a qual, pela luz natural da razão, garantiria a existência de um
conhecimento claro e evidente, Locke fia-se na experiência para recusar qualquer tipo de
inatismo. Para o segundo, a experiência de observação da qual deriva o conhecimento pode se
dirigir tanto aos objetos externos quanto às próprias ideais que a mente já possui, percebendo
sua própria operação. Como sintetiza Ayers,
A pretensão de Locke aqui se opõe diretamente a um famoso argumento de
Descartes, a saber, que as várias sensações causadas por um pedaço de cera derretida
requerem interpretação pelo intelecto, usando a ideia inata e não sensorial da
matéria, antes de se tornar uma experiência de uma substância permanente que está
passando por mudanças (AYERS, 2000, p. 10)

Essa distinção não remete meramente a um formalismo, mas leva a consequências


profundas nas teses sobre o conhecimento em cada autor. É o que ocorre no tema do alcance
de certezas pelo conhecimento humano. Descartes, por um lado, pensa um método capaz de
garantir certezas, as únicas que ser tidas como conhecimento. Assim, na filosofia cartesiana
ou há certeza, ou não há conhecimento. Já Locke aponta, como vimos, para a existência graus
de certeza observados na distinção entre conhecimento intuitivo, demonstrativo e sensitivo.
Além disso, este autor promove uma distinção em seu Ensaio distinção entre conhecimento
real e conhecimento habitual. O conhecimento real se dá quando temos certeza de algo
mediante uma demonstração, enquanto o conhecimento habitual ocorre por meio da memória
de que algo é verdadeiro porque sua demonstração já foi observada, embora tenha sido
esquecida. Para Locke, em ambos os casos tem-se uma certeza, mas o conhecimento habitual
representa uma certeza de menor grau em relação ao conhecimento real. Assim, Locke
pretende examinar o entendimento humano não para avaliar em que sentido ele é capaz de
alcançar certezas e onde, em contrapartida, deve se limitar a probabilidades.
Neste mesmo tema, é pertinente destacar uma segunda distinção entre as duas
filosofias aqui comparadas no que diz respeito ao lugar ocupado pela matemática em cada
uma delas. Como vimos, Descartes confere um papel central a essa ciência em seu método,
uma vez que, para o filósofo, ela seria a única capaz de obter conhecimento claro e evidente e,
para além disso, conhecê-la corresponde a descobrir o funcionamento da própria mente
humana, levando à obtenção de novas certezas. Locke, por outro lado, concede menor
exclusividade à matemática, mas isso não significa que o autor não dê nenhuma relevância a
ela em sua filosofia. De fato, a matemática é vista por Locke como uma ciência em que o
avanço do conhecimento demonstrativo (obtenção de certezas) foi bem sucedido, mas que é
possível extrair um método da matemática para ser aplicado em outras áreas. Tal concepção é
explicitada pelo autor no Ensaio:
Tem geralmente sido aceite como verdadeiro que só a matemática é capaz de certeza
demonstrativa (...) quaisquer que sejam as ideias em que o espírito possa perceber o
acordo ou desacordo imediato que há entre elas, ele é capaz de um conhecimento
intuitivo; e onde ele possa perceber o acordo ou o desacordo de duas ideias, por uma
percepção intuitiva do acordo ou desacordo que têm com outras ideias
intermediárias, ele é capaz de demonstração, a qual não é limitada, por conseguinte,
a ideias de extensão, de figura, de número, e dos seus modos. (LOCKE, 1999, p.
734)

Nesse sentido, Locke chega até mesmo a afirmar que um campo tão contingente como
o da moral seria capaz da obtenção de certezas, de modo que
poderíamos colocar a moral entre as ciências capazes de demonstração. Não duvido
que as medidas do que é certo ou errado possam ser deduzidas de proposições
evidentes por si próprias, por conseguinte necessárias e tão incontestáveis como as
da matemática, se alguém se quiser aplicar a estas discussões de moral com a mesma
indiferença e com a mesma atenção com que se aplica a seguir os raciocínios da
matemática. (LOCKE, 1999, p. 755)

Assim, ao levar sua teoria até as últimas consequências, Locke distancia-se, nesse
ponto, de Descartes, para quem somente as ideias da matemática possuem clareza. Portanto,
se Locke é mais comedido em relação a Descartes no que corresponde à extensão do
conhecimento humano, por outro lado admite uma maior abrangência dos campos passíveis
da obtenção de certezas para além da matemática.
Um último tópico de discordância entre os dois filósofos diz respeito à questão central
para Descartes de fundamentação metafísica do conhecimento intuitivo. Conforme
apresentado, Descartes lança mão da dúvida hiperbólica nas Meditações para questionar o
conhecimento intuitivo mediante o seu argumento do sonho. Assim, seu objetivo é provar
como podemos ter certeza de que o que percebemos está de fato na realidade. Tal
procedimento é capital para a obtenção da primeira certeza segura do cartesianismo,
garantindo a existência real da intuição.
Locke, como vimos, também confere um papel importante à intuição na garantia do
conhecimento. Nesse ponto, é possível notar uma concordância entre os dois autores, pois
para ambos o conhecimento intuitivo é o que assegura um conhecimento claro e evidente e a
certeza das demonstrações, encadeadas por provas intuitivas.
No entanto, o que está sendo colocado aqui não é exatamente o papel da intuição, mas
a questão de se podemos falar de uma realidade exterior às nossas ideias intuitivas. Nesse
ponto, Locke diverge de Descartes ao negar a necessidade de uma fundamentação metafísica
em resposta a esse problema. Para Locke, não há necessidade de provar a intuição, pois seria a
própria experiência prática que conferiria essa segurança. Assim, é o agir da vida prática que
confirma o fato de nossas ideias corresponderem à existência das coisas. É esse apelo à
experiência baseia a resposta de Locke ao argumento do sonho colocado por Descartes:
Mas se alguém disser que um sonho pode produzir o mesmo efeito e que todas as
ideias podem ser produzidas em nós sem a intervenção de objectos exteriores, dir-
lhe-ei que sonhe, se lhe agradar, que eu lhe respondo deste modo (...) Que admitirá,
julgo eu, uma diferença muito manifesta entre o sonhar estar no fogo e realmente
estar nele. (LOCKE, 1999, pp. 738-739)

Portanto, Locke afasta-se do ceticismo cartesiano que questiona a existência real das
percepções sensíveis alegando, com o exemplo do fogo, que a sensação basta para
comprovação da exterioridade do mundo. De fato, pode-se considerar que Locke não fornece
uma resposta em sentido estrito à pergunta colocada por Descartes, mas afirma, de outro
modo, a sua impertinência frente à vida prática.

Conclusão
Este trabalho buscou traçar paralelos em relação às teorias do conhecimento
elaboradas por René Descartes e John Locke. Para isso, apresentou-se inicialmente uma
introdução a questões epistemólogicas, com destaque para Aristóteles, uma das fontes de
Locke, bem como as principais teses de Descartes e Locke a respeito do conhecimento
humano. Em seguida, foram colocados os principais pontos de divergência entre elas: o
alcance de certezas, o papel da matemática e a questão da exterioridade da intuição sensível.
Ao contrário do que se poderia pensar, esse percurso não deve levar à conclusão de
que os autores trabalhados sejam antagônicos no conjunto de suas filosofias. O fato de
Descartes ser racionalista e Locke empirista não impede que haja inúmeros pontos de
concordância entre ambos. Por exemplo, como visto, na herança do termo ideia adotada por
Locke em relação ao cartesianismo e na consideração de ambos sobre a intuição como um
conhecimento claro e evidente. O destaque dado às divergências entre os autores deve-se, por
um lado, à extensão deste trabalho e, por outro, a um recorte teórico.
Assim, a inegável importância das contribuições de Locke e Descartes à filosofia
moderna em geral e à teoria do conhecimento e ao avanço do conhecimento científico em
particular torna pertinente uma comparação entre os autores de modo a verificar, conforme
tentou-se evidenciar, onde e como suas filosofias chegam a conclusões divergentes. Tal exame
cumpre o papel de corroborar para melhor compreensão de cada autor, ao serem comparados,
bem como aponta para questões epistemológicas não completamente resolvidas - como no
caso da exterioridade das intuições sensíveis - às quais cada um fornece caminhos diferentes
como resposta.

Referências bibliográficas

AYERS, M. Locke. São Paulo: Unesp, 2000.


DESCARTES, René. Meditações metafísicas in: Os pensadores. São Paulo:Abril Cultural,
1979.
DESCARTES, Réné. Regras para a Direcção do Espírito, trad. João Gama, Textos Filosóficos.
Lisboa: Edições, v. 70, 1989.
LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. vol. 1. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbecnkian, 1999.
SILVA, F. L. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Ed. Moderna, 2001

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