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Introdução
Por vezes mais conhecido por seus livros de ética e filosofia política, a obra filosófica
mais importante de John Locke foi Ensaio sobre o entendimento humano. Para Ayers (2000),
o Ensaio consistiu em uma resposta ao aristotelismo escolástico ainda remanescente no século
XVII, além de ter sido decisivo para o debate entre empiristas e racionalistas. Se do lado
empirista Locke foi o mais destacado autor da filosofia moderna, entre os racionalistas foi
René Descartes quem adquiriu maior proeminência. Tendo isso em mente, este trabalho
pretende examinar algumas distinções mais destacadas entre as teorias do conhecimento
elaboradas pelos dois autores.
Para tanto, propomos o seguinte percurso: apresentaremos, de início, uma breve
introdução à epistemologia, destacando algumas contribuições de Aristóteles, que, além de
terem impactado, como visto, até a modernidade, consistiu em uma das principais fontes de
Locke tendo em vista o seu caráter empirista; em seguida, exporemos a filosofia cartesiana no
que diz respeito às suas reflexões sobre o método, bem como sua fundamentação metafísica
do conhecimento; a seguir, será vez da filosofia lockeana ter suas principais bases
apresentadas; por fim, proporemos comparações entre as teorias do conhecimento de Locke e
Descartes com base a estabelecer distinções em três pontos: a relação das certezas com o
conhecimento; o papel da matemática; a questão da exterioridade da intuição sensível.
Nesse sentido, Locke chega até mesmo a afirmar que um campo tão contingente como
o da moral seria capaz da obtenção de certezas, de modo que
poderíamos colocar a moral entre as ciências capazes de demonstração. Não duvido
que as medidas do que é certo ou errado possam ser deduzidas de proposições
evidentes por si próprias, por conseguinte necessárias e tão incontestáveis como as
da matemática, se alguém se quiser aplicar a estas discussões de moral com a mesma
indiferença e com a mesma atenção com que se aplica a seguir os raciocínios da
matemática. (LOCKE, 1999, p. 755)
Assim, ao levar sua teoria até as últimas consequências, Locke distancia-se, nesse
ponto, de Descartes, para quem somente as ideias da matemática possuem clareza. Portanto,
se Locke é mais comedido em relação a Descartes no que corresponde à extensão do
conhecimento humano, por outro lado admite uma maior abrangência dos campos passíveis
da obtenção de certezas para além da matemática.
Um último tópico de discordância entre os dois filósofos diz respeito à questão central
para Descartes de fundamentação metafísica do conhecimento intuitivo. Conforme
apresentado, Descartes lança mão da dúvida hiperbólica nas Meditações para questionar o
conhecimento intuitivo mediante o seu argumento do sonho. Assim, seu objetivo é provar
como podemos ter certeza de que o que percebemos está de fato na realidade. Tal
procedimento é capital para a obtenção da primeira certeza segura do cartesianismo,
garantindo a existência real da intuição.
Locke, como vimos, também confere um papel importante à intuição na garantia do
conhecimento. Nesse ponto, é possível notar uma concordância entre os dois autores, pois
para ambos o conhecimento intuitivo é o que assegura um conhecimento claro e evidente e a
certeza das demonstrações, encadeadas por provas intuitivas.
No entanto, o que está sendo colocado aqui não é exatamente o papel da intuição, mas
a questão de se podemos falar de uma realidade exterior às nossas ideias intuitivas. Nesse
ponto, Locke diverge de Descartes ao negar a necessidade de uma fundamentação metafísica
em resposta a esse problema. Para Locke, não há necessidade de provar a intuição, pois seria a
própria experiência prática que conferiria essa segurança. Assim, é o agir da vida prática que
confirma o fato de nossas ideias corresponderem à existência das coisas. É esse apelo à
experiência baseia a resposta de Locke ao argumento do sonho colocado por Descartes:
Mas se alguém disser que um sonho pode produzir o mesmo efeito e que todas as
ideias podem ser produzidas em nós sem a intervenção de objectos exteriores, dir-
lhe-ei que sonhe, se lhe agradar, que eu lhe respondo deste modo (...) Que admitirá,
julgo eu, uma diferença muito manifesta entre o sonhar estar no fogo e realmente
estar nele. (LOCKE, 1999, pp. 738-739)
Portanto, Locke afasta-se do ceticismo cartesiano que questiona a existência real das
percepções sensíveis alegando, com o exemplo do fogo, que a sensação basta para
comprovação da exterioridade do mundo. De fato, pode-se considerar que Locke não fornece
uma resposta em sentido estrito à pergunta colocada por Descartes, mas afirma, de outro
modo, a sua impertinência frente à vida prática.
Conclusão
Este trabalho buscou traçar paralelos em relação às teorias do conhecimento
elaboradas por René Descartes e John Locke. Para isso, apresentou-se inicialmente uma
introdução a questões epistemólogicas, com destaque para Aristóteles, uma das fontes de
Locke, bem como as principais teses de Descartes e Locke a respeito do conhecimento
humano. Em seguida, foram colocados os principais pontos de divergência entre elas: o
alcance de certezas, o papel da matemática e a questão da exterioridade da intuição sensível.
Ao contrário do que se poderia pensar, esse percurso não deve levar à conclusão de
que os autores trabalhados sejam antagônicos no conjunto de suas filosofias. O fato de
Descartes ser racionalista e Locke empirista não impede que haja inúmeros pontos de
concordância entre ambos. Por exemplo, como visto, na herança do termo ideia adotada por
Locke em relação ao cartesianismo e na consideração de ambos sobre a intuição como um
conhecimento claro e evidente. O destaque dado às divergências entre os autores deve-se, por
um lado, à extensão deste trabalho e, por outro, a um recorte teórico.
Assim, a inegável importância das contribuições de Locke e Descartes à filosofia
moderna em geral e à teoria do conhecimento e ao avanço do conhecimento científico em
particular torna pertinente uma comparação entre os autores de modo a verificar, conforme
tentou-se evidenciar, onde e como suas filosofias chegam a conclusões divergentes. Tal exame
cumpre o papel de corroborar para melhor compreensão de cada autor, ao serem comparados,
bem como aponta para questões epistemológicas não completamente resolvidas - como no
caso da exterioridade das intuições sensíveis - às quais cada um fornece caminhos diferentes
como resposta.
Referências bibliográficas