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DESCARTES E A FUNDAMENTAÇÃO ABSOLUTA DO CONHECIMENTO

Iago Nicolas de Abreu Soares

1. Introdução

O problema do conhecimento é um debate que sempre percorreu a história da


Filosofia. Vemos na antiguidade Platão tratando de como o homem conhece e Aristóteles
dedicando diversas páginas sobre a questão em seu De Anima; temos também os exemplos de
Pirro de Élida que iniciou a escola cética que buscava um hábito contínuo de dúvida e
futuramente o de Sexto Empírico.
Atualmente chama-se o problema do conhecimento como filosofia crítica ou
gnosiologia; Roger Verneaux dirá qual primeiramente é a questão da crítica do conhecimento:
“La primera cuestión que debe resolver la crítica es saber si el espíritu humano es capaz de
alcanza la verdade, o lo que es lo mismo, se tiene certezas legítimas” (VERNEAUX, 1985, p.
29).
Uma das primeiras escolas que surgiram na história da filosofia para tratar do
problema do conhecimento foi o ceticismo. Ele passa a questionar a própria capacidade
humana de conhecer: “El escepticismo e suna tentación constante para ele espíritu humano
desde que reflexiona y abandona el terreno firma de las certezas de sentido común”
(VERNEAUX, 1985, p. 31). O ceticismo mais radical como o de Pirro de Élida recomenda a
dúvida como a única sabedoria.
O realismo, por outro lado: “sostien que podemos alcanzar la verdade. Concede um
lugar a la duda en ala vida intelectual, pero considera la duda universal como la muerte de la
inteligência” (VERNEAUX, 1985, p. 85). O realismo admite a existência de certeza legítimas,
nesse sentido é uma posição “dogmática”.
O problema de como o homem conhece ou o que o permite conhecer e qual o
fundamento inicial de todo o conhecimento, problema que formou algumas escolas como as já
citadas, é o objeto do qual que tratará a filosofia crítica ou a gnosiologia. Muitos filósofos
viam nisso um problema fundamental para seu sistema filosófico. Sem um fundamento
inquestionável a partir do qual pode-se desenvolver uma filosofia certa, tudo não passaria de
uma ciência da probabilidade; algo questionável.
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Segundo Alejandro Llano, o começo do processo histórico que considera a crítica do


conhecimento como início e fundamento da filosofia se situa no século XIV com Guilherme
de Ockham que nega a capacidade humana de conhecer as coisas (LLANO, 1991, p. 14),
surgindo depois a orientação de Descartes que com seu fundamento absoluto do
conhecimento, que surge a partir da dúvida metódica, dividirá a história da filosofia, dúvida
essa que será explanada pelo nosso artigo. A filosofia cartesiano, como nos ensina Alejandro
Llano:

Se invierte el sentido mismo de la metafísica: el ser se resuelve em


consciência. Y, desde este presupuesto, se realiza um examen crítico
del conocimiento humano: inquisición que parte de uma duda radical,
de la que emerge la certeza de la existência del sujeto pensante y,
desde ella, sucessivas certezas que se conquistan por uma deducción
de traza geomrétia (LLANO, 1991, p. 14)

Não é mais o ser conhecido diretamente das coisas que fundamentará o conhecimento
ou a reflexão, como se defendia no realismo aristotélico ou na escolástica. Mas a própria
consciência ou o conhecimento do “eu pensante” será esse fundamento inquestionável e
absoluto.
Assim, Descartes fará parte de uma outra escola do problema do conhecimento: a
racionalista: “Em la filosoía moderna, el racionalismo há aparecido com Descartes, y há
revestido formas más o menos puras. Em Descartes, se expressa principalmente por la idea de
la matemática universal y por la teoría de las ideas innatas” (VERNEAUX, 1985, p. 55).
Descartes nasceu em Touraine na França em 1596. Possuiu formação escolástica ao
estudar no colégio jesuíta de Lá Flèche onde teve contato com o plano de estudos da ratio
studiorum jesuíta e à filosofia e teologia escolástica (cf. REALE, 2005, p. 284). Mas mesmo
com essa formação, sentia-se insatisfeito, seja no campo da filosofia com seus longos e
complexos debates metafísicos, seja quanto à matemática e aos estudos científicos (cf.
REALE, 2005, p. 284). A partir dessa insatisfação, construiu seu edifício e sistema filosófico
tendo como alicercer o fundamento absoluto que surge da dúvida metódica. Para Roger
Verneaux, sua filosofia não é tão original, ao contrário de sua contribuição científica, apesar
de que trouxe uma ideia diretriz nova:

En filosofia su originalidade no es tan grande como él hace crer.


Como se ve más cada día, tiene numerosas fuentes, agostinianas e
escolásticas. Pero su idea directriz es nueva. Es la idea de uma
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matemática universal, es decir, la idea de extender a todos los âmbitos


del saber el método matemático, considerado perfecto, riguroso y
progressivo a la vez (VERNEUX, 1977, p. 21)

Será a dúvida metódica e o fundamento absoluto do conhecimento, no sistema de


Descartes, o tema do presente artigo.

2. A solução cartesiana

Apresentaremos agora qual a solução cartesiana para o problema da certeza do


conhecimento e qual o fundamento para a construções do edifício do saber. Iniciaremos
expondo o método cartesiana que Descartes propõe para se construir uma ciência, e como ele
justifica esse método através de seu fundamento absoluto do saber.

2.1 O método

Descartes buscará na metafísica não um saber para satisfazer o desejo de conhecer a


verdade, “sino para assentar los fundamentos de la física, la cual, a su vez, es cultivada em
vista de las aplicaciones práticas” (VERNEAUX, 1977, p. 25). Bbuscará então um
fundamento para o conhecimento humano, esse fundamento deve ser absoluto, claro e
inquestionável. A importância do fundamento é bem explicada por Reale e Antiseri (2005, p.
288):

É para o fundamento que Descartes chama a atenção, já que é do


alicerce que dependem a amplitude e a solidez do edifício que é
preciso construir para se contrapor ao edifício aristotélico, no qual se
apóia toda a tradição [...] O que urge evidenciar é o fundamento que
permita um novo tipo de conhecimento da totalidade do real, pelo
menos em suas linhas essenciais. Necessita-se de novos princípios...

Para chegar a este fundamento Descartes irá apresentar o seu método, que são:

“Regras certas e fáceis, que permitem a quem exatamente as observar


nunca tomar por verdadeiro algo de falso e, sem desperdiçar
inutilmente nenhum esforço da mente, mas aumentando sempre
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gradualmente o saber, atingir o conhecimento verdadeiro de tudo o


que será capaz de saber” (DESCARTES, 2002, p. 24)

As regras do método cartesiano são quatro: a primeira é a regra da evidência, ou seja,


não se deve acatar algo a não ser que seja evidentemente verdadeiro; a segunda regra diz que
deve se dividir os problemas que se estudam em tantas partes menores, quanto for possível e
necessário para resolvê-lo melhor; a terceira regra exige que após a análise siga-se a síntese,
ou seja, conduzir com ordem os pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais
fáceis de conhecer até elevar-se aos poucos até o conhecimento mais complexo; a quarta
regra, que serve para impedir a precipitação, fazer enumerações e revisões de tal modo
completas que se esteja seguro de que não tenha omitido nada.
Após estabelecer as regras, Descartes passa então a aplicar elas ao saber tradicional,
“para ver se ele contém alguma verdade de tal forma clara e distinta que se subtraia a qualquer
razão de dúvida” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 291). A importância disso para Descartes é
clara: É possível aplicar esse método para algo além da matemática? “Existe uma verdade não
matemática que reflita em si as características da evidência e da distinção e que, não sujeita à
dúvida de modo algum, possa justificar tais regras e ser adotada como fonte de todas as outras
possíveis verdades?” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 291).

2.2 A dúvida metódica

Para iniciar essa empreitada, Descartes precisaria rejeitar como verdadeiro aquelas
proposições que possuem em si resquício de dúvida para aceitar o que é indubitável. Para
chegar até esse fundamento era necessário investigar os princípios que ele possuía até então
do saber tradicional: “caindo os princípios, as consequências não poderão mais se manter”
(REALE; ANTISERI, 2005, p. 291)
Descartes observa primeiramente que o saber tradicional baseia-se na experiência,
após isso que o saber matemático parece inquestionável. Entretanto, a experiência revela-se
enganadora: “Ora notei que os sentidos às vezes enganam e é prudente nunca confiar
completamente nos que, seja uma vez, nos enganaram” (DESCARTES, 2004, p. 23). E o
saber matemático, apesar de parecer inquestionável e verdadeiro em qualquer ocasião pode
ser questionado por duas maneiras: pelo argumento do Deus enganador e do Gênio Maligno.
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Mas Descartes deixa-nos, por fim, a exposição do Gênio Maligno, pois não admite a
possibilidade de haver um Deus que engana: “Suporei, portanto, que há não um Deus ótimo,
fonte soberana da verdade, mas algum gênio maligno e, ao mesmo tempo, sumamente
poderoso e manhoso, que põe toda a sua indústria em que me engane” (DESCARTES, 2004,
p. 31). Assim, nem mesmo a matemática passa a ser indubitável.
Aqui estamos no campo da pura dúvida chamada metódica, não se possui a intenção
de ceticamente negar essas realidades com essa dúvida: “É evidente que não nos encontramos
aqui diante da dúvida dos céticos. Neste caso, a dúvida quer levar à verdade. Por isso é
chamado dúvida metódica, enquanto é passagem obrigatória, ainda que provisória, para
chegar à verdade” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 292).
A dúvida metódica chegará ao seu termo com Descartes, através do popularmente
chamado “cogito, ergo sum”, “penso, logo existo”. Descartes chega à conclusão de que o
conhecimento de si mesmo como ser existente e enquanto pensa é uma certeza inquestionável.
E essa será a fundamentação absoluta do conhecimento:

E tendo notado que em penso, logo existo nada há que me garanta que
digo a verdade, exceto que vejo muito claramente que para pensar é
preciso existir, julguei que podia tomar por regra geral que as coisas
que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras,
havendo porém somente alguma dificuldade em distinguir bem quais
são as que concebemos distintamente (DESCARTES, 2001, p. 39)

Encontramos, então, aquilo sob qual fundamentaremos nossa filosofia segundo


pensamento de Descartes: “Estamos, portanto, diante de uma verdade sem qualquer mediação.
A transparência do eu a si mesmo e, portanto, o pensamento em ato, escapa a qualquer
dúvida, indicando por que a clareza é a regra fundamental do conhecimento e por que a
intuição é seu ato fundamental” (REALE; ANTISERI, 2005, p. 293). O homem então se torna
aquele, chamado por Reale e Antiseri, banco do saber, de onde o cientista e filósofo retirará o
de sua consciência racional o conhecimento que deve ser claro e distinto: “Qualquer tipo de
pesquisa deverá se preocupar somente em perseguir o grau máximo de clareza e distinção, não
se preocupando com outras justificações quando alcançá-lo” (REALE; ANTISERI, 2005, p.
294).

Conclusão
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Podemos então concluir de que maneira Descartes fundamenta o conhecimento


humano. Todo o conhecimento deve se fundamentar na consciência da existência do “eu que
penso”. Já não mais na realidade apreendida, alguns diriam, passivamente, mas na percepção
de si mesmo como existente e pensante. Para concluir esse trabalho, apresentaremos
brevissimamente uma problematização para a dúvida metódica cartesiana.
Acreditamos que há um sério problema quando se desloca o fundamento do
conhecimento do ser para a ideia do eu. O primeiro objeto da inteligência humana é o ser, ser
este conhecido intencionalmente como objeto extramental, pois é visto como objeto e não
sujeito. Sem o ser nada pode considerar a inteligência. Assim nos mostra o tomista e
escolástico Octavio Derisi em sua crítica ao Cogito cartesiano, posição essa assumida pelos
confeccionadores do presente trabalho: “Santo Tomás fez ver como esta faculdade é incapaz
de nada pensar, mesmo contra o próprio ser, a não ser apoiando-se imediatamente e
identificando-se inteligivelmente com a realidade extramental” (DERISI, 2020, p. 74).
Qualquer pensamento, mesmo o do “eu que pensa” só possui seu fundamento no
conhecimento do próprio ser universalmente considerada em todo e qualquer conteúdo:

Um pensamento sem um ser em que se apóie é absurdo e impensável


[...]. A dúvida universal receberia sua consistência do ser (porque ela
se coloca entre dois extremos ontológicos e implica a aceitação de que
não é o mesmo a afirmação que a negação de algo), e com esta
submissão ao ser, que a condiciona, se auto destruiria (DERISI, 2020,
p. 74)

Assim, é precisa que o cartesianismo responda a dificuldades apresentadas, a saber: de


que maneira é possível conhecer o “eu” que existe e pensa anteriormente ao ser que é mais
universal e subjaz todos esses conceitos: o eu; o pensar; e o existir. Além disso, de que
maneira é possível questionar-se de algo sem antes não haver um conhecimento do ser que é a
fonte da dúvida, pois em toda a dúvida deve haver o conteúdo do qual se questiona. Ademais
em qualquer pergunta há a pressuposição de que não pode haver contradição na resposta, tal
princípio, chamado de princípio de não contradição, pressupõe anteriormente o conhecimento
do ser, pois é de sua negação (não-ser) que se pode conhecer tal princípio.
Concluindo de que o ser deve ser anterior ao conhecimento do “eu que pensa”, é
preciso confrontar de que maneira o inteiro o conhece. Colocamos que o apresenta ao
intelecto de maneira intencional e extramental, assim o fundamento do conhecimento não
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pode ser imanente, mas partir do exterior ao interior, e do interior ao exterior, através do
reconhecimento intelectual de que tal ser concebido é um objeto distinto de mim mesmo.
Aqui concluímos o trabalho, visitando a solução de Descartes para o problema da
fundamentação do conhecimento e problematizando-o através da filosofia realista e
escolástica.

Referências bibliográficas:

DERISI, Octavio Nicolás. Filosofia Moderna e Filosofia Tomsita. Tradução: Adriel


Teixeira. Rio de Janeiro: Edições C.I. 2020.
DESCARTES, René. Meditações sobre Filosofia Primeira. Tradução: Fausto Castilho.
Campinas: Editora Unicamp, 2004.
DESCARTES, René. Discurso do Método. 2 ed. Tradução: Maria Ermantina Galvão. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
LLANO, Alejandro. Gnoseologia. 3 ed. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, S.A.,
1991.
REALE; ANTISERI. História da Filosofia: Do Humanimo a Descartes, v. 3., 2 ed.
Tradução: Ivo Stomiolo. São Paulo: Paulus, 2005.
VERNEAUX, Roger. Epistemologia General o Crítical del Conocimiento. 7 ed. Tradução:
L. Medrano. Barcelona: Editorial Herder S.A., 1985
VERNEAUX, Roger. Historia de la Filosofía Moderna. 3 ed. Tradução: Montserrat
Kirchner. Barcelona: Editorial Herder S.A., 1977.

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