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Filosofia 11.

º ano

“Viver sem filosofar é


como viver de olhos
fechados sem nunca os
ter tentado abrir.”

O racionalismo de Descartes
Álvaro Nunes

O projeto de Descartes

A rejeição do pensamento aristotélico-medieval


Descartes achava as teorias dos filósofos medievais duvidosas e incertas, isto é, uma vez
que não tinham o grau de certeza que ele considerava necessário para que fossem
conhecimento, era possível duvidar da sua verdade. Ao contrário daquilo que pensavam os
medievais, Descartes não pensava que a experiência pudesse garantir a verdade das nossas
crenças e, portanto, julgava que a experiência não constitui uma base sólida.

A filosofia como uma árvore

Para Descartes, a metafísica constitui o fundamento último de todo o conhecimento. É da


metafísica que se deduzem os princípios fundamentais da física, da qual derivam, por sua vez,
todas as outras ciências. Note-se, no entanto, que a utilidade da Filosofia está nas ciências cujos
conhecimentos têm uma aplicação prática. A metafísica e a filosofia do conhecimento podem
fornecer os fundamentos indubitáveis do conhecimento, mas a importância da filosofia está nos
conhecimentos que permitem melhorar a forma como os seres humanos vivem.

[A] Filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e os
ramos que saem do tronco são todas as outras ciências que, se reduzem a três principais: a
Medicina, a Mecânica e a Moral. (...)
Ora, como não é das raízes nem do tronco das árvores que se colhe os frutos, mas
apenas das extremidades dos ramos, a principal utilidade da Filosofia depende daquelas
suas partes que são aprendidas em último lugar. (Princípios de Filosofia, p. 22.)

Conhecimento e fundacionalismo
Descartes pensava ser possível responder ao desafio dos céticos e mostrar que existe
conhecimento. Para o fazer, ele vai defender duas teses fundamentais.
A primeira é a tese de que só as crenças de cuja verdade não é possível duvidar são
conhecimento. Por exemplo, a afirmação «Ou o Porto ou o Sporting, ou o Benfica ganham a Liga
na próxima época» não constitui conhecimento. Embora a probabilidade de esta afirmação ser

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verdadeira seja muito elevada — uma vez que são geralmente estes clubes que ganham a Liga
—, é sempre possível que seja falsa. E se é sempre possível que seja falsa, não podemos estar
absolutamente seguros da sua verdade, e, portanto, não constitui um conhecimento. E,
obviamente, afirmações falsas também não constituem conhecimento. Só as afirmações cuja
verdade é indubitável são conhecimento.
A segunda tese que Descartes vai defender é o fundacionalismo. A ideia base do
fundacionalismo é a de que justificamos as nossas crenças apelando a outras crenças que são
mais básicas, até chegarmos a crenças tão básicas que não seja possível ou razoável procurar
justificá-las através de outras crenças. Assim, de acordo com o fundacionalismo há dois tipos de
crenças, as básicas, ou fundacionais, e as não-básicas, ou não-fundacionais. As crenças não-
fundacionais são crenças que, para que sejam consideradas conhecimento, têm de ser
justificadas por outras crenças. As crenças fundacionais, evidentemente, são as crenças que
justificam as crenças não-fundacionais. Para o fundacionalismo, o conhecimento é como um
edifício de crenças, em que as crenças mais básicas suportam as outras, da mesma forma que os
andares inferiores de um edifício suportam os outros.
Embora haja várias formas de fundacionalismo, o de Descartes tem uma característica
que é essencial para o seu projeto de justificação das ciências, a saber, as crenças básicas são
autoevidentes, isto é, são verdades indubitáveis. Assim, todas as crenças que sejam delas
derivadas corretamente, ou que sejam corretamente justificadas por seu intermédio, são também
verdades indubitáveis e, por isso, conhecimento. Dito isto, é fácil perceber qual a resposta de
Descartes ao argumento da regressão infinita dos céticos: o conhecimento existe, porque é
possível evitar a regressão infinita, uma vez que há crenças que, por serem autoevidentes não
precisam que outras crenças as justifiquem, e podem justificar as crenças que precisam de
justificação. É fácil também perceber a estratégia de Descartes para provar que existe
conhecimento: partir de princípios indubitáveis e raciocinar de modo a que tudo o que seja
derivado desses princípios seja também indubitável. A estratégia de Descartes vai, portanto,
consistir em colocar na base do seu sistema verdades absolutamente indubitáveis e, a partir
delas, deduzir todas as outras verdades, de modo a garantir que sejam também indubitáveis.
Partindo de verdades indubitáveis, Descartes pretende dar uma base completamente sólida ao
conhecimento — evitando, assim, o defeito que apontou ao saber medieval —, e, ao mesmo
tempo, eliminar a objeção dos céticos, pois essas verdades não precisam de ser justificadas e
justificam todas as outras que seja possível deduzir delas por processos de raciocínio corretos.
Esta estratégia de Descartes é claramente inspirada na Matemática e, em particular, na geometria
de Euclides (c. 300 a. C.). Na obra Elementos, Euclides, a partir de cinco axiomas básicos,
considerados autoevidentes, prova um grande número de propriedades das figuras e dos sólidos
geométricos. Como Lars-Göran Johansson diz:

A contribuição de Euclides foi mostrar que as matemáticas do seu tempo (e outras mais)
poderiam ser logicamente deduzidas de um pequeno número de axiomas, isto é, de afirmações
que eram obviamente verdadeiras e não exigiam justificação adicional. As matemáticas tornaram-
se uma ciência dedutiva: a partir de premissas seguras (axiomas) inferia-se conhecimento novo
usando regras lógicas precisas. Isto é o mesmo que dizer que uma prova matemática confere
certeza. Euclides foi tão bem sucedido com o seu método axiomático-dedutivo que durante um
longo período de tempo este método foi considerado o arquétipo de como a ciência deveria
proceder. (...)
As matemáticas axiomáticas de Euclides conduziram a um ideal, o ideal da ciência axiomática,
que pode ser caracterizado do seguinte modo:
A ciência visa atingir conhecimento certo, não meras crenças ou opiniões.
Começa estabelecendo axiomas, isto é, verdades tão óbvias que não requerem justificação
adicional.
A seguir deduz destes axiomas novas verdades usando métodos lógicos precisos.
(Lars-Göran Johansson, Philosophy of Science for Scientists, Cham: Springer, 2016, p. 9.)

O projeto filosófico de Descartes segue de perto este modelo. Para o concretizar, ele
precisa de encontrar uma ou mais crenças capazes de desempenhar um papel similar ao que os
axiomas desempenham na geometria de Euclides. O próximo passo de Descartes vai ser,
portanto, encontrar essas verdades indubitáveis.

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A dúvida metódica
Começar de novo desde os primeiros fundamentos

Como vai Descartes proceder para encontrar as verdades indubitáveis de que necessita
para justificar as suas teorias científicas?

Temos muitas crenças, umas triviais, outras importantes, umas verdadeiras, outras falsas
e estamos habituados a rever e a abandonar as nossas crenças à medida que descobrimos que
são por alguma razão insatisfatórias. Talvez já tenhamos acreditado que o Sol se move no céu de
este para oeste todos os dias, mas quando nos mostraram que isso não corresponde à realidade
abandonámos essa crença. Fizemos o mesmo com muitas outras crenças. E estamos dispostos a
voltar a fazê-lo se, e quando, soubermos que uma crença é falsa. Esta forma de proceder é
apropriada aos nossos objetivos. Estamos, em geral, satisfeitos com as nossas opiniões, porque
elas permitem-nos responder adequadamente à maior parte das solicitações do dia a dia e, por
isso, só as revemos em caso de estrita necessidade.
Esta estratégia, no entanto, não serve o propósito de Descartes de fundar as ciências em
bases completamente sólidas e seguras. Para realizar este objetivo, ele precisa de encontrar
verdades absolutamente indubitáveis a partir das quais possa, ordenadamente, deduzir outras
verdades, que, por isso, ficamos a saber serem também indubitáveis. Ora, para encontrar estas
verdades, pensa Descartes, é necessário investigar metodicamente todas as crenças, começando
pelas mais básicas ou fundamentais, usando como princípio só aceitar como verdadeiras as
opiniões de que não haja a mínima razão para duvidar. Só deste modo, é possível eliminar as
opiniões que se revelem incapazes de resistir à dúvida, quer porque sejam falsas quer porque a
sua verdade não é indubitável.
Descartes não pensa, portanto, que todas as nossas opiniões sejam falsas. Ele admite
que muitas das nossas crenças de que é possível duvidar sejam verdadeiras. Mas como o seu
objetivo é encontrar verdades indubitáveis, qualquer opinião da qual haja razões para duvidar, por
insignificantes que sejam, pode ser abandonada como se fosse falsa. Também não pensa que
seja necessário percorrer todas as opiniões uma a uma e mostrar que são duvidosas ou falsas, o
que seria, evidentemente, impossível de fazer. Ele pensa que basta atacar os fundamentos ou
princípios dos quais as nossas opiniões derivam para pôr em questão todas essas opiniões. Se
esses princípios se revelarem duvidosos ou falsos, então é óbvio que todas as opiniões que deles
dependem são também duvidosas ou falsas. As crenças que se revelem capazes de superar este
teste indubitabilidade — isto é, das quais seja absolutamente impossível duvidar — constituem as
bases sólidas nas quais todo o conhecimento vai ser fundado. É nisto que consiste o método
cartesiano da dúvida.

Primeiro nível da dúvida: o argumento das ilusões dos sentidos

A maioria das pessoas pensa que o conhecimento tem origem nos sentidos e que os
sentidos são absolutamente fiáveis. Os filósofos costumam chamar a este ponto de vista muito
popular realismo de senso comum. O realismo de senso comum é constituído por duas teses
fundamentais:

a) a realidade existe de forma contínua e independente de nós;


b) conhecemos a realidade tal como ela é diretamente pelos sentidos.

O realismo de senso comum corresponde ao nosso ponto de vista de todos os dias. De


uma maneira geral, raciocinamos e agimos assumindo que existe um mundo composto por
objetos físicos, que os nossos sentidos nos mostram exatamente como são. Dado isto, é natural
que Descartes comece a investigação sistemática das nossas crenças pelas que têm origem nos
sentidos e que o primeiro argumento a que recorre, o argumento das ilusões dos sentidos. Nas
Meditações sobre a Filosofia Primeira, Descartes apresenta este argumento do modo seguinte:

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Porém, descobri que eles [os sentidos] por vezes nos enganam, e é de prudência nunca
confiar totalmente naqueles que, mesmo uma só vez, nos enganaram. (Meditações sobre a
Filosofia Primeira, p. 107.)

O argumento das ilusões dos sentidos tem por objetivo duvidar da fiabilidade dos sentidos,
isto é, pôr em causa que os sentidos são fiáveis e que nos mostrem os objetos físicos como eles
efetivamente são, e, como nos mostra o texto de Descartes, consiste em afirmar que os sentidos
enganam-nos, para daí concluir que os sentidos não são fiáveis. Descartes dá exemplos deste
tipo de enganos:

Com efeito, algumas vezes, mostravam-se de perto como quadradas torres


que de longe me parecem redondas, e enormes estátuas que se elevam nos seus
terraços não me pareciam grandes, vistas do rés-do-chão. (Meditações sobre a
Filosofia Primeira, p. 205.)

Nestes e em outros casos semelhantes, os sentidos dão-nos informações contraditórias. A


conclusão a tirar destes casos, pensa Descartes, é que nenhuma crença com origem nos
sentidos é indubitável, uma vez que, mesmo quando os sentidos não nos enganam, o facto de às
vezes nos enganarem impede-nos de ter a certeza da sua verdade. Por outras palavras, os
sentidos não são uma fonte de conhecimento acerca da natureza dos objetos físicos, porque
nenhuma crença com origem nos sentidos, mesmo quando verdadeira, está infalivelmente
justificada.

Segundo nível da dúvida: o argumento dos sonhos


O argumento das ilusões dos sentidos levanta dúvidas quanto à fiabilidade das nossas
perceções em algumas ocasiões especiais. Mas, na maior parte das situações, podemos nós
objetar, temos absoluta certeza da verdade das informações que os sentidos nos fornecem.
Posso eu duvidar de que estou agora no meu escritório, sentado à secretária, a escrever no
computador? Percebe-se que duvidemos das sensações que nos mostram as torres como
redondas ou as estátuas como pequenas, pois temos muitas outras sensações que estão em
conflito com elas. Mas isso não acontece, nem parece poder acontecer, agora que
inequivocamente perceciono as estantes e os livros, a secretária e o computador, e todos os
objetos que constituem o meu escritório. Como poderia duvidar de que estou no meu escritório,
sentado à secretária, a escrever no computador quando os meus diferentes sentidos
inequivocamente o confirmam? A resposta a esta objeção, que põe em causa a eficácia do
argumento das ilusões dos sentidos, é o argumento dos sonhos.

Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso noturno, me deixo
persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à
lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e despido! Mas agora, observo este
papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça que movo não está a dormir,
voluntária e conscientemente estendo esta mão e sinto-a; o que acontece quando se
dorme não parece tão distinto. Como se não me recordasse de já ter sido enganado em
sonhos por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflito mais atentamente, vejo com
clareza que vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros [...]. (Meditações
sobre a Filosofia Primeira, p. 108.)

Já todos sonhámos que algo está a acontecer, para depois descobrirmos tratar-se apenas
de um sonho. As imagens mentais que temos em certos sonhos são tão idênticas às com origem
nos objetos que somos levados a pensar que aquilo que estamos a sonhar é real. Só quando
acordamos é que, retrospetivamente, percebemos ter-se tratado apenas de um sonho. Descartes
pensa que esta semelhança entre as perceções sonhadas e as reais mostra que, com base nos
sentidos, não é possível distinguir de forma absolutamente segura o sono da vigília e,
consequentemente, estarmos certos de que as perceções que estamos agora a ter representam
adequadamente à realidade.
Por consequência, mesmo quando acredito firmemente estar sentado à secretária e a
escrever no computador, não posso estar absolutamente seguro de que é isso de facto o que está
a acontecer. É, portanto, logicamente possível que esteja a dormir e a sonhar, e que nada daquilo

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em que acredito naquele momento esteja realmente a acontecer. Claro que é muito improvável e
não acreditamos por um momento que seja verdade. Isso, no entanto, não afeta o argumento de
Descartes. Se é logicamente possível que eu esteja a dormir e a sonhar, então não é uma
verdade indubitável que esteja sentado à secretária e a escrever no computador.
Ora, se não posso estar completamente certo de que não estou a dormir e a sonhar,
também não posso estar seguro da verdade de nenhuma crença com origem na experiência e,
portanto, a experiência não é nunca uma fonte de verdades.

Terceiro nível da dúvida: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno

Uma vez admitida a possibilidade de estarmos a sonhar, todas as nossas crenças com
origem nos sentidos podem ser ilusórias. Mas Descartes não quer apenas mostrar que os
sentidos não são uma fonte de verdades indubitáveis; ele quer também estender a dúvida às
crenças com origem na razão, que são, para muitas pessoas, a fonte de verdades indubitáveis. O
exemplo mais óbvio das crenças com origem na razão é o das Matemáticas. A verdade de
proposições, como, por exemplo, 2 + 2 = 4, não é determinada através da experiência e, portanto,
estas proposições não são postas em questão pelo argumento dos sonhos. Como o próprio
Descartes diz, quer estejamos acordados quer estejamos a dormir, dois mais três são sempre
cinco e um quadrado tem sempre apenas quatro lados. Assim, para duvidar das proposições da
Matemática, e em particular, da Aritmética e da Geometria, Descartes vai recorrer a um outro
argumento: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno.

Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe um Deus
que pode tudo e pelo qual fui criado tal como existo. Mas quem me garante que ele não
procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem céu, nem corpos extensos, nem
figura, nem grandeza, nem lugar, e que, no entanto, tudo isto me parecesse existir tal como
agora? E mais ainda, assim como concluo que os outros se enganam algumas vezes
naquilo que pensam saber com absoluta perfeição, também eu me podia enganar todas as
vezes que somasse dois e três ou contasse os lados de um quadrado. (Meditações sobre a
Filosofia Primeira, pp. 110–111.)

Descartes coloca agora a possibilidade de um Deus que é ao mesmo tempo criador,


sumamente poderoso e enganador. Um Deus assim pode ter-nos criado de forma a que nos
enganemos sempre que raciocinemos mesmo em relação àquilo que nos parece completamente
evidente.
Descartes usa este argumento com dois objetivos distintos. Em primeiro lugar, estender a
dúvida à existência das realidades físicas exteriores, uma vez que um Deus sumamente poderoso
e enganador tem a capacidade de fazer com que toda a existência seja uma espécie de sonho ou
criação nossa; e, em segundo lugar e principalmente, mostrar que as proposições com origem na
razão, como as da Matemática, não são verdades indubitáveis, uma vez que Deus pode ter-nos
criado de modo a que nos enganemos sempre que façamos uma operação matemática simples.
Se não podemos mostrar que a hipótese do Deus enganador é falsa, então não podemos
estar absolutamente certos da verdade de nenhuma das nossas opiniões, seja das que têm
origem na experiência, como a existência do
mundo, seja das que têm origem na razão, como as verdades da Aritmética e da Geometria.

Caracterização da dúvida
A dúvida metódica corresponde à parte negativa, ou destrutiva, do pensamento de
Descartes. A dúvida metódica prepara o caminho para a parte construtiva da filosofia de
Descartes, em que os seus aparentes resultados céticos, como veremos, são superados. Dada a
sua relevância no pensamento de Descartes é frequente dizer-se que a dúvida é: metódica,
porque procede de forma organizada e sistemática à investigação das nossas crenças, baseada
no princípio que só é verdadeiro aquilo de que não houver nenhuma razão para duvidar;
hiperbólica, ou exagerada, porque considera como falso aquilo de que há razões para duvidar e
inventa razões para duvidar, como os argumentos dos sonhos e do Deus enganador; radical,
porque põe em causa os princípios ou fundamentos do pensamento tradicional (os sentidos e a

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razão) e incide, em princípio, sobre todas as nossas crenças; provisória, porque não é um fim em
si mesmo, como a dúvida cética, mas um meio para alcançar a primeira certeza.

O cogito
Eu penso, logo existo

Como acabámos de ver, a dúvida põe em questão as crenças que têm por base seja os
sentidos seja a razão. Nem a razão nem os sentidos, portanto, são capazes de fornecer verdades
indubitáveis. A conclusão a tirar parece ser óbvia: o conhecimento não é possível. O projeto de
investigação das nossas crenças, aparentemente, em vez de descobrir verdades indubitáveis que
fundem as nossas convicções acerca do mundo e garantam a sua verdade, mergulha-nos no
mais profundo ceticismo. Descartes — parece daí resultar — não é apenas um cético, mas o mais
extremo e radical dos céticos.
Mas é Descartes, de facto, um cético? Não. O objetivo dos céticos é mostrar que não
existe conhecimento. O objetivo de Descartes é o oposto: provar que existe conhecimento, isto é,
crenças de cuja verdade estamos completamente seguros. O ceticismo é, portanto, apenas
aparente, o resultado provisório da estratégia de Descartes para mostrar que existem verdades
indubitáveis. Descartes descreve a forma como chega à primeira verdade deste tipo a partir da
dúvida do seguinte modo:

[N]otei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que
eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo
existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos céticos não
eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro
princípio da filosofia que procurava. (Discurso do Método, pp. 50–51.)

O raciocínio de Descartes é o seguinte: mesmo que tudo aquilo em que acredita seja
duvidoso ou falso, como a dúvida sugere, há pelo menos uma coisa que tem de ser verdadeira
para que possa duvidar, a saber, a sua própria existência e, portanto, a sua existência é uma
verdade indubitável. É por isso que Descartes pode afirmar «Eu penso, logo, existo». Esta
descoberta vai ser usada por Descartes como o ponto de partida do seu projeto.

Sou uma substância pensante


O que é este «eu» que a dúvida mostrou que existe? A resposta de Descartes é que o eu
é uma coisa pensante (res cogitans). Esta resposta, no entanto, implica uma nova questão: o que
é uma coisa pensante?
Em primeiro lugar, uma coisa pensante é uma substância, isto é, algo que pode existir de
per si, que não depende de qualquer outra coisa para existir.
Em segundo lugar, dizer que o eu é uma substância pensante é dizer que tem como
propriedade essencial ser pensamento. O que é, então, o cogito? Uma entidade que é puro
pensamento. É por isso que Descartes lhe chama também algumas vezes espírito, alma,
intelecto, ou razão.
Há uma terceira substância, para além de Deus e da alma, a saber, a matéria (res
extensa) ou o corpo, cuja propriedade essencial é a extensão. Normalmente pensamos nos
corpos como tendo caraterísticas que percebemos pelos sentidos: uma certa cor, uma certa
sensação táctil, um certo odor, etc. Contudo, para Descartes, isso não constitui verdadeiramente
propriedades dos corpos. Segundo ele, os corpos não têm nem cor, nem odor, nem sabor, nem
nenhuma das outras coisas que percebemos pela perceção. Isto é particularmente claro no caso
da audição. Percebemos sons, mas os físicos ensinam-nos que os sons não existem, apenas a
vibração das moléculas que compõem a matéria. Assim, Descartes, como outros pensadores do
seu tempo, distingue entre propriedades primárias e propriedades secundárias dos objetos. As
qualidades secundárias, como as cores, os odores, os sabores, etc., não são propriedades reais
dos objetos, mas o resultado da interação da nossa mente com os objetos. As qualidades
primárias, tamanho, forma e movimento, são propriedades que pertencem realmente aos objetos.
Descartes pensa que estas propriedades podem ser reduzidas a uma única, a extensão, e
considera-a a propriedade essencial da matéria.

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Sou diferente do meu corpo
Ao refletirmos sobre aquilo que somos, pensa Descartes, constatamos ainda que não é
possível duvidar da nossa existência enquanto pensamento embora seja possível duvidar da
existência do nosso corpo. Daqui Descartes tira duas conclusões importantes:
- a alma e o corpo são substâncias completamente distintas
- a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo
O seu raciocínio, que apresenta no Discurso do Método, é o seguinte:

Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não
tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse;
mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente
porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente
e muito certamente que eu existia; (...) compreendi que era uma substância, cuja
essência ou natureza é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum
lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma
pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do
que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (Discurso do
Método, pp. 51–52.)

Apesar de diferentes, o pensamento e o corpo encontram-se juntos no ser humano. No


entanto, como são completamente incompatíveis (uma vez que um é puro pensamento e o outro
pura extensão), Descartes tem grandes dificuldades em explicar como se articulam (por exemplo,
como os acontecimentos no nosso corpo dão origem a acontecimentos na alma e vice-versa).
Esta conceção do homem — e do universo — como composto por duas substâncias
completamente distintas é conhecida como o dualismo de Descartes e está na origem do
problema mente-corpo, estudado em filosofia da mente.

Aquilo que conheço com clareza e distinção é indubitavelmente verdadeiro

O que faz do «Eu penso, logo existo» uma verdade indubitável, e, por isso, um
conhecimento, é a clareza e distinção com que é aprendido pela nossa mente. Isto fornece a
Descartes o critério para determinar quando uma qualquer proposição é uma verdade indubitável:
a clareza e distinção. Mas, em que condições é uma ideia clara e distinta? A resposta de
Descartes é a de que uma ideia é clara quando a razão, sem qualquer participação dos sentidos,
nos mostra que ela é verdadeira sem a mínima possibilidade de erro; e é distinta quando não se
confunde com nenhuma outra ideia. A clareza e distinção fornecem a Descartes o critério para
determinar quando uma ideia constitui um conhecimento. Qualquer ideia que a mente perceba
com clareza e distinção é indubitável. O cogito pode a partir de agora — e isto é de imensa
importância para todo o projeto de Descartes — analisar os seus pensamentos e determinar
aqueles que são claros e distintos. São essas ideias claras e distintas que vão constituir os
fundamentos — as crenças fundacionais — a partir dos quais Descartes vai deduzir a sua nova
ciência, que é assim também indubitável e, portanto, inquestionavelmente conhecimento.

Intuição e dedução

As ideias claras e distintas são conhecidas por intuição. O que pode ser corretamente
derivado daquilo que conhecemos por intuição é conhecido por dedução. Assim, Descartes atribui
duas funções cognitivas principais à mente, a intuição e a dedução, a que correspondem duas
formas de conhecimento, o conhecimento intuitivo e o conhecimento dedutivo. Temos um
conhecimento por intuição quando a nossa razão percebe imediatamente, sem qualquer
raciocínio e sem qualquer dúvida que algo é verdade.

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Conhecemos por intuição verdades autoevidentes, como, por exemplo, «Eu existo».
Conhecemos algo por dedução quando a partir de proposições que conhecemos por intuição
inferimos uma outra proposição que é também de certeza absoluta verdadeira, como, por
exemplo, quando a partir da definição de triângulo inferimos que a soma dos três ângulos de um
triângulo é igual a dois ângulos retos.

O cogito é uma verdade da razão

O «Eu penso, logo existo» é, uma verdade a que chegamos pela razão. É a razão, e não
os sentidos, que nos revelam a nossa própria existência como uma verdade indubitável. Como o
cogito é o modelo que permite reconhecer outras verdades indubitáveis — tudo o que
conhecemos com clareza e distinção —, que são a base a partir da qual o conhecimento se vai
desenvolver, o conhecimento tem origem na razão e não nos sentidos. Isto faz de Descartes um
racionalista, e constitui outro ponto em que rompe com o pensamento tradicional que, como já
vimos, fazia dos sentidos a origem do conhecimento.

Deus
A descoberta do cogito permite a Descartes fundar em bases sólidas o que foi posto em
causa pela dúvida metódica. Mas, em si mesmo, o cogito não constitui um grande avanço. Tudo o
que Descartes provou até agora foi que uma substância que consiste unicamente no pensamento
existe. Tanto quanto sabemos nesta altura, é perfeitamente possível que para além do cogito e
dos seus pensamentos nada mais exista, uma posição hipotética a que os filósofos chamam
solipsismo. Para avançar e superar o solipsismo, Descartes precisa de provar que existem outras
entidades para além do cogito.

A sua estratégia para atingir este fim vai ter três partes. Na primeira, Descartes vai provar
que Deus existe. Descartes precisa de o fazer não apenas para afastar o solipsismo mas
sobretudo para poder provar que aquilo que conhecemos com clareza e distinção é verdade. Na
segunda, vai mostrar que dessa existência se segue a fiabilidade da razão e, portanto, que aquilo
que conhecemos clara e distintamente é indubitável. Por último, Descartes vai mostrar que o
mundo físico existe. Comecemos pela primeira.

O argumento da perfeição ou da marca

Para provar a existência de Deus, o cogito tem de recorrer apenas às ideias que encontra
em si próprio. Ora, o cogito encontra em si muitas ideias, como, por exemplo, aquelas cuja origem
normalmente atribuímos a objetos exteriores.

Mas também encontra em si outras ideias como a ideia de Deus ou de perfeição, isto é, de
[...] uma certa substância infinita, independente, sumamente inteligente, omnipotente, e
pela qual foram criados quer eu mesmo, quer tudo o resto que existe. (Meditações sobre a
Filosofia Primeira, pp. 151–152.)

Como tudo tem uma causa, a ideia de Deus também tem uma causa. A estratégia de
Descartes para provar a existência de Deus vai, portanto, consistir em determinar qual a causa
desta ideia de Deus, que o cogito descobre em si. A ideia de Deus é a ideia de um ser perfeito. Se
o cogito fosse a causa da ideia de ser perfeito, não seria possível explicar as perfeições que Deus
tem e que o cogito não tem, uma vez que, sendo imperfeito, tem menos realidade que a ideia de
Deus. Seria, por isso, o mesmo que dizer que essas perfeições não têm causa, o que é absurdo.
Portanto, ao contrário das outras ideias que o cogito encontra em si, a ideia de Deus não pode ser
criada pelo cogito. Qual pode, então, ser a causa dessa ideia? Apenas algo que tenha tanta
realidade quanto a ideia de Deus. Ora, só Deus tem a realidade necessária para ser a causa da
ideia de Deus. A causa da ideia de Deus é, portanto, o próprio Deus e, por isso, Deus existe.

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Podemos apresentar o argumento de Descartes do seguinte modo:

O cogito tem em si a ideia de Deus.


A ideia de Deus tem de ter uma causa.
Tem de haver tanta realidade na causa de uma ideia quanto na própria ideia.
Se a ideia de Deus tivesse origem no cogito, haveria menos realidade na causa do que no efeito.
O cogito não pode ser a causa da ideia de Deus.
Logo, Deus é a causa da ideia de Deus.

Descartes pensa que cada uma das premissas deste argumento é uma verdade clara e
distinta e que, portanto, demonstrou — no sentido matemático, isto é, indubitavelmente — que
Deus existe. O primeiro passo do cogito para fora de si próprio está assim dado. O cogito não
está sozinho. A análise que fez das suas ideias revelou a existência indubitável de Deus.

Ideias inatas, adventícias e factícias


A ideia de Deus é aquilo a que Descartes chama uma ideia inata, e, como todas as ideias
inatas, foi colocada em nós por Deus, pelo que é como a marca do criador na sua obra. As ideias
inatas são ideias com as quais já nascemos e que a mente descobre por si própria, não tendo,
portanto, origem na experiência, como são o caso, além da ideia de Deus, do cogito, das
verdades autoevidentes da Aritmética e da Geometria e, de uma maneira geral, de muitas ideias
que conhecemos por intuição e que são claras e distintas. Além das ideias inatas, existem
também as ideias adventícias, que têm origem nas sensações, como as ideias de casa, árvore,
etc., e as ideias factícias, ou forjadas, que são as que a nossa imaginação cria a partir das ideias
adventícias.

Erro, verdade e mundo


Deus não é enganador
O que sabe neste momento o cogito? Sabe duas coisas: que existe e que Deus existe. O
solipsismo não tem, portanto, razão de ser, uma vez que o cogito não é tudo o que existe. Este
conhecimento, no entanto, não permite ainda recuperar as crenças que a dúvida metódica pôs em
suspenso — as verdades da Matemática e a crença no mundo exterior —, mas permite
definitivamente afirmar que a hipótese de um Deus enganador não tem razão de ser.
Descartes está finalmente em condições de afastar o mais poderoso dos argumentos que
constituem a dúvida metódica e, por isso, ele escreve:

[R]econheço que é impossível que ele me engane alguma vez, porque em toda a
falácia ou logro se descobre alguma imperfeição. E embora poder enganar pareça ser
uma certa prova de subtileza de espírito ou poder, querer enganar atesta, sem dúvida
nenhuma, malícia ou fraqueza de espírito: o que, por isso, não pertence a Deus.
(Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 166.)

Em resumo, Deus não é enganador, porque enganar é uma imperfeição e Deus é perfeito.
Não podemos, contudo, concluir daqui imediatamente que as nossas crenças fundamentais
acerca do mundo são verdadeiras, uma vez que, tanto quanto sabemos, o nosso próprio espírito
pode ser a sua causa. No entanto, como veremos, a estratégia de Descartes para provar a
verdade destas crenças vai passar por explorar as consequências de Deus ser perfeito e, por
isso, não ser enganador.

O erro
Para já, porém, temos de lidar com outro problema. Se Deus é perfeito — e, portanto, não
é enganador — e fomos criados por Deus, como se explica o erro, isto é, como se explica que
façamos juízos falsos? Como se explica que o erro seja possível num universo criado por um
Deus, que é sumamente bom, sábio e poderoso?
Descartes explica o erro distinguindo dois tipos de pensamentos, os que dependem do
entendimento e os que dependem da vontade ou livre-arbítrio. Embora aquilo que conhecemos

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pelo entendimento seja indubitavelmente verdade, o nosso entendimento é limitado, pois há muita
coisa que é incapaz de compreender, ao contrário do intelecto divino, que compreende tudo. Por
outro lado, a nossa vontade tem uma capacidade infinita e pode escolher afirmar ou negar algo
que o nosso entendimento não compreende completamente e levar-nos assim ao erro:

Então, de onde nascem os meus erros? Apenas e unicamente de que, como a vontade tem
um campo mais lato que o entendimento, não a contenho dentro dos mesmos limites, ma
também a estendo às coisas que não compreendo: por ser indiferente a elas, a vontade
deflete facilmente do bom e do bem e, deste modo, não só erro como também peco.
(Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 173.)

Os erros resultam desta assimetria entre o nosso entendimento e a nossa vontade. Os


erros acontecem quando a vontade afirma ou nega uma proposição que o entendimento não
compreende completamente e resultam, assim, do nosso livre-arbítrio. Isto explica, por um lado,
por que erramos e, por outro, mostra que Deus, embora nos tenha criado, não é o responsável
por esses erros.

Deus como garantia de verdade

Podemos evitar fazer juízos que são falsos? Podemos evitar o erro? Sim, se evitarmos
fazer juízos sobre o que percebemos apenas de forma obscura e confusa — sobre aquilo de que
haja dúvidas da sua verdade, como, por exemplo, o que conhecemos pelos sentidos —, e
usarmos corretamente o nosso entendimento e a nossa vontade. Podemos evitar o erro se
limitarmos os nossos juízos àquilo que conhecemos com clareza e distinção. Mas o que garante
que aquilo que conhecemos com clareza e distinção é verdade? A resposta de Descartes é Deus.
Como Deus é perfeito, isto é, não é enganador, podemos confiar nas faculdades racionais com
que Ele nos dotou e na verdade daquilo que conhecemos por intermédio dessas faculdades
quando corretamente aplicadas. Deus é, assim, a garantia de que aquilo que conhecemos clara e
distintamente é verdade, porque é a garantia da nossa razão:
[A]quilo mesmo que há pouco tomei como regra, isto é, que são inteiramente verdadeiras
as coisas que concebemos muito clara e distintamente, só é certo porque Deus é ou
existe. (Discurso do Método, p. 59.)

Para mostrar que as proposições da Matemática, apesar da sua evidência, não são
indubitáveis, a dúvida metódica, e em particular o argumento do Deus enganador, pôs em
questão a fiabilidade da nossa razão: podemos ter sido criados por um Deus enganador, com
uma razão tal que nos enganemos mesmo acerca das verdades mais simples e evidentes. O
facto de Deus não ser enganador mostra que esta hipótese é falsa e, portanto, que podemos
confiar na nossa razão desde que a usemos corretamente, isto é, desde que só façamos juízos
sobre aquilo que conhecemos com clareza e distinção. Assim, embora a primeira verdade
indubitável a que chegamos seja o cogito, a crença em Deus é a crença mais básica e
fundamental, porque é Deus a garantia última da nossa existência e do nosso conhecimento.
Em resumo, Deus garante a fiabilidade das nossas faculdades racionais, quando bem
utilizadas, e não há, razões para duvidarmos das verdades simples e evidentes da Aritmética e da
Geometria.

Álvaro Nunes

Fonte: Crítica, Revista de Filosofia, (artigo adaptado). Site: https://criticanarede.com/his_descartes.html

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