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“(A) Filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a Metafísica, o tronco a Física, e os ramos que
saem do tronco são todas as outras ciências que, se reduzem a três principais: a Medicina, a
Mecânica e a Moral. (…)
Ora, como não é das raízes nem do tronco das árvores que se colhe os frutos, mas apenas das
extremidades dos ramos, a principal utilidade da Filosofia depende daquelas suas partes que são
aprendidas em último lugar.” (Princípios de Filosofia, Lisboa, Edições 70, 2006, p. 22.)
Método cartesiano:
Descartes utiliza um método (método cartesiano), de inspiração matemática, para construir a
sua árvore do conhecimento. Esse método tem 4 regras ou preceitos – Evidência, Análise,
Síntese, e Enumeração e Revisão:
“O primeiro (preceito) consistia em nunca aceitar coisa alguma por verdadeira, sem que a
conhecesse evidentemente como tal, ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a
prevenção, e não incluir nada mais nos meus juízos senão o que se apresentasse tão claramente
e tão distintamente ao meu espírito, que não tivesse nenhuma ocasião de o pôr em dúvida.
O segundo consistia em dividir cada uma das dificuldades que examinava em tantas parcelas
quantas fosse possível e fosse necessário, para melhor as resolver.
O terceiro consistia em conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos
mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir pouco a pouco, gradualmente, até ao
conhecimento dos mais complexos, não deixando de supor certa ordem entre aqueles que não
se sucedem naturalmente uns aos outros.
O último consistia em fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais, que
tivesse a certeza de nada omitir.”
Descartes (1991), Discurso do Método, Porto, Porto Editora, pp. 72-73.
- Regra da análise: divisão de uma dificuldade em tantas parcelas quantas seja possível, no
sentido de a solucionar.
- Regra da síntese: dar ordem ao pensamento, indo, na tarefa de conhecer, dos objetos mais
simples para os mais complexos.
- Regra da enumeração e revisão: fazer enumerações completas e revisões gerais de todo o
conhecimento, para nada omitir.
R – O critério de verdade proposto por Descartes é a clareza e a distinção das ideias, a evidência
(referida na regra da evidência). No seu Discurso do Método, Descartes diz que “uma proposição
para ser verdadeira e certa”, tem como condição necessária que a possamos conceber “muito
clara e distintamente”. A clareza é a presença manifesta na razão de uma ideia (mostrando-nos,
a razão, que ela é verdadeira sem qualquer possibilidade de erro), a distinção é o facto de essa
ideia ser diferente de todas as outras.
Porquê duvidar?
Razões ou motivos apresentados por Descartes para, na fase inicial da construção do edifício
do conhecimento / da construção do seu sistema filosófico, duvidar:
- Porque recebeu, na sua mente, «tantas coisas falsas por verdadeiras», adquiridas «desde a
mais tenra idade» (texto 6 da pág. 38 do livro de Filosofia).
- Argumento das ilusões dos sentidos – (Porque) Os sentidos não são fiáveis, uma vez que por
vezes nos enganam (Descartes refere vários exemplos: da vara dentro de água que parece
dobrada, do pedaço de cera que se altera, na cor, forma e odor junto ao fogo, do sol que ao
longe parece mais pequeno que a Terra, das cúpulas e torres quadradas de certos edifícios que
ao longe parecem redondas, das enormes estátuas que, nos seus terraços, não parecem ser
enormes, quando vistas do rés-do-chão, etc.).
- Argumento do sonho – (Porque) Não temos um critério seguro que nos permita distinguir o
sonho da vigília (não é possível distinguir o sonho do estar acordado): se, quando estamos a
sonhar, não sabemos que o estamos, também quando estamos no estado de vigília, não
podemos garantir que o que julgamos estar a ver não se trate de um sonho, de uma ilusão.
Portanto, tudo o que pensamos estar a observar pode ser apenas uma ilusão, pode não ser mais
verdadeiro do que os sonhos - podemos estar a sonhar quando pensamos estar acordados. Eis o
que Descartes diz, a propósito: “Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso
noturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais como que estou aqui, com o roupão
vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e despido! Mas agora,
observo este papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça que movo não está a
dormir, voluntária e conscientemente estendo esta mão e sinto-a; o que acontece quando se
dorme não parece tão distinto. Como se não me recordasse de já ter sido enganado em sonhos
por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflito mais atentamente, vejo com clareza que
vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros (…).” (Meditações sobre a Filosofia
Primeira, Coimbra, Livraria Almedina, 1992, p. 108)
- Com a hipótese do génio maligno, que torna a dúvida hiperbólica e a estende a tudo
(inclusivamente às faculdades do conhecimento), universalizando-a, Descartes encontra uma
razão para duvidar dos raciocínios matemáticos mais evidentes, levantando a possibilidade de
uma entidade externa controlar a nossa mente, fazendo-nos acreditar, por exemplo, que 2 + 2 =
4 (em vez de, por exemplo, 2 + 2 = 5);
- O argumento do génio maligno, diferentemente dos outros (argumentos das ilusões dos
sentidos e do sonho), põe também em causa as crenças que não dependem dos sentidos, as
crenças a priori.
- Voluntária: porque resulta de uma decisão tomada livremente por Descartes. No texto 6 da
página 38 do livro de Filosofia, pode ler-se, no final do 1.º parágrafo (de um texto retirado das
Meditações Sobre a Filosofia Primeira), o que Descartes resolveu fazer: «(…) dedicar-me, por
fim, com seriedade e livremente, a destruir em geral as minhas opiniões».
O Cogito
Mas, de repente, depois de pôr tudo em dúvida, eis que, intuitivamente, lhe chega a primeira
verdade indubitável (evidente, clara e distinta), básica / fundacional, de natureza metafísica,
puramente racional, a priori: “Penso, logo existo” – O Cogito. O génio maligno até podia enganar
Descartes com todas as crenças ilusórias com que preenchia o seu espírito, mas para que
Descartes fosse enganado precisava de duvidar / pensar, e como é que poderia duvidar / pensar
se não existisse (enquanto substância pensante)?
O “cogito ergo sum” é uma ideia inata, que já está presente na nossa razão à nascença, e por
isso o nosso espírito capta-a intuitivamente. Daí, o racionalismo cartesiano ser inatista.
Com o cogito, Descartes demonstra que os céticos (radicais) estão enganados, porque o “Penso,
logo existo” resistiu aos argumentos mais radicais e extravagantes do ceticismo
(nomeadamente, ao argumento do génio maligno, argumento da autoria do próprio Descartes).
Ou seja, há conhecimento, há pelo menos uma verdade indubitável e imune à dúvida: a de que
não se poderia pensar sem se existir. Então o que é o homem? Uma substância pensante, uma
"res cogitans"!
- fundacional, uma crença básica, autoevidente, que se justifica por si mesma, sendo um dos
alicerces do sistema filosófico cartesiano.
- absolutamente primeira, sendo a primeira crença verdadeira captada pela razão e a raiz do
sistema filosófico cartesiano, a raiz da árvore do conhecimento.
- estritamente racional, uma vez que é obtida intuitivamente pela razão, a razão apreende-a de
modo imediato e direto (sem raciocínio).
- inata, dado que à nascença já está presente no nosso espírito, na nossa razão.
- evidente, isto é, uma ideia clara e distinta, tendo em conta que se apresenta de forma
manifesta à razão (clareza) e que é diferente de todas as outras (distinção).
A garantia, o pilar fundamental do sistema filosófico cartesiano, será outra ideia inata: Deus, a
ideia de ser perfeito, que culminará na Sua (de Deus) existência necessária.
A existência de Deus vai proporcionar uma justificação ou garantia para a verdade das ideias
claras e distintas, para os conhecimentos necessários e universais adquiridos através da razão.
Sabemos que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos clara e distintamente, porque as nossas
faculdades de conhecimento (intuição e dedução) foram criadas (tal como nós) por Deus, que
não é um ser enganador, mas bom e veraz. Assim, se usarmos bem as nossas faculdades,
confiando apenas no que compreendemos clara e distintamente, chegaremos de certeza à
verdade e evitaremos o erro. É a existência de Deus que garante a Descartes que não se engana
quando pensa clara e distintamente (e que as crenças claras e distintas sobre o mundo,
formuladas em leis e teorias, são verdadeiras). Com Deus, a hipótese do génio maligno é
definitivamente ultrapassada.
Daí, a necessidade que Descartes tem de provar a existência necessária de um ser em relação ao
qual tem a ideia inata da sua perfeição: Deus. Para confiar num Deus bom e veraz, este tem de
existir, não pode ser apenas uma ideia.
Retomando o assunto central deste capítulo (Deus), Descartes tem de provar a existência
necessária de um ser em relação ao qual tem a ideia inata da sua perfeição. Para isso, recorre a
três provas da existência de Deus, das quais abordaremos duas, o argumento (da marca
impressa) que atribui a Deus a causa da ideia de perfeição, e o argumento ontológico (este
nome foi-lhe dado por Kant, tendo sido o seu autor Santo Anselmo), que deduz a existência de
Deus da sua essência (que é ser perfeito).
Argumento da marca impressa (em cinco passos), que atribui a Deus a causa da ideia de
perfeição (ou de ser perfeito)
1 – A ideia de perfeição (ou de Deus como ser perfeito) existe em mim (de modo inato) e por
isso é que posso saber que sou imperfeito.
2 – Essa ideia é efeito de uma causa que não pode ser o sujeito pensante, porque este é
imperfeito (a prova dessa imperfeição é que o homem, por vezes, se engana).
4 – Só Deus é perfeito.
5 – Logo, Deus é a necessária causa da ideia de perfeição (ou de ser perfeito) e, por isso,
necessariamente existe.
Argumento ontológico
O criador deste argumento é Santo Anselmo, na idade média. Descartes não fica indiferente à
sua força lógica e adota-o. Será Kant que o designará como argumento ontológico. Este
argumento parte da ideia de ser perfeito (essência), retirando, dessa ideia, por dedução lógica, a
existência necessária de Deus. O processo racional dedutivo é o seguinte:
Temos na nossa razão a ideia inata de Deus como um ser perfeito. Ora, um ser perfeito, para
efetivamente o ser (perfeito), tem de ter todas as qualidades ou perfeições, nada lhe podendo
faltar. Uma dessas perfeições ou atributos é a existência, na medida em que é melhor existir na
realidade, do que não existir (ou do que existir apenas no pensamento) – o ser perfeito não
pode ser apenas uma ideia. Se Deus não existisse (na realidade), não seria perfeito, faltar-lhe-ia
uma qualidade (a da existência efetiva), e isso (a não-existência) seria contraditório com a ideia
de ser perfeito.
Deus existe (A) porque, a partir da sua essência, concebemos clara e distintamente a sua
existência (B).
Mas como é que sabemos que aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro?
Aquilo que concebemos clara e distintamente é verdadeiro (B) porque Deus existe (A) e me
garante tal coisa, é o seu autor.
Deus existe porque, a partir da sua essência, concebemos clara e distintamente a sua existência.
Ou seja: Afirmar que Deus existe porque concebemos a sua existência com clareza e distinção, e
dizer depois que podemos confiar na verdade daquilo que concebemos com clareza e distinção
porque Deus existe, parece constituir uma falácia de circularidade (uma das formas da petição de
princípio). Tenta-se justificar a proposição de que Deus existe pressupondo o critério das ideias
claras e distintas, e depois tenta-se justificar a verdade deste critério apelando à existência de
Deus.
− (Um empirista dirá que) É a experiência que fornece grande parte dos materiais mais básicos
do conhecimento do mundo, ou impressões (a maioria das ideias deriva das impressões dos
sentidos; por exemplo, a ideia de maçã deriva da impressão de maçã);
− Se, por exemplo, uma pessoa não dispuser do sentido da visão, não poderá formar impressões
da cor dos objetos nem, por consequência, poderá formar as ideias correspondentes;
− O conhecimento científico (com exceção da matemática) depende da observação e da
experiência: o teste das teorias depende sempre de dados (experimentais) fornecidos pela
experiência, e não apenas do raciocínio;
- O argumento ontológico de Santo Anselmo (sécs. XI/XII), adotado por Descartes, teve uma
primeira crítica feita por Gaunilo, monge contemporâneo de Santo Anselmo. Segundo Gaunilo,
se o argumento ontológico tivesse sentido lógico-ontológico, então poderíamos pensar numa
ilha repleta de abundância, de maravilhosas delícias e riquezas (uma ilha a que dada a
dificuldade em a encontrar no meio do oceano foi dado o nome de «Perdida»), retirando daí
como consequência que ela teria necessariamente de existir. Eis as palavras de Gaunilo:
Santo Anselmo, na resposta a Gaunilo, salientou que a transição da essência para a existência só
poderia ser permitida num único caso, no caso do ser perfeito (Deus). Qualquer ilha, por mais
maravilhosa que fosse, seria sempre algo material, sujeito à decadência e, portanto, imperfeito.
Mais tarde, Kant, que deu o nome de ontológico ao argumento de Santo Anselmo, também
contra ele objetou. Descartes vai afirmar a existência de Deus como um predicado da essência
(como um predicado da perfeição). Da perfeição de Deus, Descartes deduz a existência. Ora,
para Kant, a existência não é um predicado que faça parte da essência (nem de Deus, nem de
nenhum outro ser). Segundo Kant, a existência é apenas uma condição de possibilidade para
que Deus tenha efetivamente (na realidade) um qualquer predicado (ou propriedade). Assim, na
perspetiva de Kant, este argumento passa ilegitimamente da ordem do pensar para a ordem do
conhecer (a existência de Deus), da ordem lógica (em que se pensa a ideia de perfeição) para a
ordem ontológica (da existência). Kant considera que a existência não é analítica, não é algo que
esteja a priori contida na essência de Deus / na perfeição / no conceito de Deus. A existência é
algo que se acrescenta sinteticamente (a posteriori) a um sujeito (mesmo que esse sujeito seja o
ser perfeito), a partir do momento em que tivermos a experiência efetiva da realidade desse
sujeito.
Texto
“Notei, há alguns anos já, que, tendo recebido desde a mais tenra idade tantas coisas falsas por
verdadeiras, e sendo tão duvidoso tudo o que depois sobre elas fundei, tinha de deitar abaixo
tudo, inteiramente, por uma vez na vida, e começar, de novo, desde os primeiros fundamentos,
se quisesse estabelecer algo de seguro e duradouro nas ciências”.
R – Quando Descartes refere que “tinha de deitar abaixo tudo, inteiramente, por uma vez na
vida” põe em relevo o caráter universal da dúvida, que incide sobre tudo, sobre todo o
conhecimento em geral. E quando acrescenta que tem de “começar, de novo, desde os
primeiros fundamentos”, refere-se aos fundamentos e raízes do conhecimento, o que remete
para o carácter radical da dúvida.
Estando Descartes consciente de que poderia “estabelecer algo de seguro e duradouro nas
ciências”, o filósofo faz da dúvida um meio para atingir a certeza: ela é metódica e provisória.
Consiste numa suspensão do juízo, com carácter voluntário, assumindo uma função catártica e
libertadora em relação a preconceitos e a opiniões erróneas, que foram recebidas por
verdadeiras. Tal libertação (e a subsequente conquista de princípios evidentes e universais) só é
possível se se rejeitar como falso tudo aquilo em que se note a mínima suspeição de incerteza –
daí o caráter hiperbólico da dúvida.