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Agrupamento de Escolas de Monserrate

Tipologia Texto de apoio


Curso Ciências e Tecnologias
Disciplina Filosofia
Ano/Turma 11.º E e F Data: 25/10/2023
O racionalismo de Descartes
Álvaro Nunes

1. Vida e obra

René Descartes nasceu em 31 de março de 1596, na pequena cidade de La Haye, atualmente Descartes, em França.
Em 1606 entrou para o colégio jesuíta de La Flèche, onde estudou gramática, retórica, dialética, matemática e
filosofia escolástica, dominante na época, e que consistia num misto dos ensinamentos da Bíblia e da filosofia e
ciência de Aristóteles. Depois de sair de La Flèche, em 1614, frequentou a Universidade de Poitiers, onde, em 1616,
obteve a licenciatura em Direito. Querendo ver o mundo, a partir de 1618, viajou alguns anos pela Europa como
soldado. Durante este período, fez as suas primeiras investigações sobre matemática e física e, em 1619, enquanto
retido pelo Inverno, na Alemanha, teve a visão de uma ciência ou método universal e, na noite de 10 de novembro,
três sonhos sucessivos convenceram-no da aprovação divina para o seu projeto. Sabendo que era ainda demasiado
jovem e imaturo para poder levar a cabo este projeto, decide esperar alguns anos e dedica-se a viajar (Alemanha,
Suíça, Itália) e a resolver problemas matemáticos e físicos de caráter prático, até que, em 1628, redige as Regras
para a Direção do Espírito, obra sobre o método, que ficará inacabada e só será publicada depois da sua morte. Em
1629 abandona definitivamente a França e instala-se na Holanda, onde vive até 1649. Aí dedica-se principalmente à
física e escreve o Tratado do Mundo, em que defende uma conceção mecanicista da realidade, mas que retira de
publicação ao saber da condenação de Galileu pela Inquisição, em 1633, por defender a teoria heliocêntrica de
Copérnico. Em 1637, publica em francês três ensaios, Dióptrica, Meteóricos e Geometria, em que expõe o essencial
da sua física e do que é agora conhecido como geometria analítica, uma descoberta sua, que faz acompanhar
pelo Discurso do Método, uma espécie de prefácio em que explica o seu percurso intelectual e o método que está na
origem das teorias apresentadas nos ensaios que constituem a obra. Quatro anos mais tarde, em 1641, publica em
latim a sua obra-prima filosófica, as Meditações sobre Filosofia Primeira, em que expõe os fundamentos metafísicos
da sua física e da sua biologia. A obra circulou primeiro em manuscrito entre vários filósofos e cientistas da época,
que escreveram objeções a que Descartes depois respondeu. Em 1644 publica os Princípios da Filosofia, obra que é
uma espécie de súmula da sua filosofia e da sua ciência, e que ele pretendia ver substituir os compêndios sobre
Aristóteles nas escolas. A última obra publicada durante a sua vida foi o Tratado das Paixões da Alma, que saiu em
1649, e é o fruto da troca de correspondência com a princesa Isabel da Boémia acerca das relações entre a alma e o
corpo. Nesse mesmo ano Descartes troca a Holanda pela Suécia a instâncias da rainha Cristina, que queria aprender
a sua filosofia. As lições de filosofia da rainha decorriam, no entanto, às 5 da manhã e Descartes, de saúde frágil e
habituado a passar as manhãs na cama, não suportou o rigoroso inverno sueco, contraiu pneumonia e morreu a 11
de fevereiro de 1650.

(…)

2.4 Conhecimento e fundacionalismo

Descartes pensava ser possível responder ao desafio dos céticos e mostrar que existe conhecimento. Para o fazer, ele
vai defender duas teses fundamentais.
A primeira é a tese de que só as crenças de cuja verdade não é possível duvidar são conhecimento. Por exemplo, a
afirmação «Ou o Porto ou o Sporting, ou o Benfica ganham a Liga na próxima época» não constitui conhecimento.
Embora a probabilidade de esta afirmação ser verdadeira seja muito elevada — uma vez que são geralmente estes
clubes que ganham a Liga —, é sempre possível que seja falsa. E se é sempre possível que seja falsa, não podemos
estar absolutamente seguros da sua verdade, e, portanto, não constitui um conhecimento. 4 E, obviamente,
afirmações falsas também não constituem conhecimento. Só as afirmações cuja verdade é indubitável são
conhecimento.
A segunda tese que Descartes vai defender é o fundacionalismo. A ideia base do fundacionalismo é a de que
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justificamos as nossas crenças apelando a outras crenças que são mais básicas, até chegarmos a crenças tão básicas
que não seja possível ou razoável procurar justificá-las através de outras crenças. Assim, de acordo com o
fundacionalismo há dois tipos de crenças, as básicas, ou fundacionais, e as não-básicas, ou não-fundacionais. As
crenças não-fundacionais são crenças que, para que sejam consideradas conhecimento, têm de ser justificadas por
outras crenças. As crenças fundacionais, evidentemente, são as crenças que justificam as crenças não-fundacionais.
Para o fundacionalismo, o conhecimento é como um edifício de crenças, em que as crenças mais básicas suportam as
outras, da mesma forma que os andares inferiores de um edifício suportam os outros.5
Embora haja várias formas de fundacionalismo, o de Descartes tem uma característica que é essencial para o seu
projeto de justificação das ciências, a saber, as crenças básicas são autoevidentes, isto é, são verdades indubitáveis.
Assim, todas as crenças que sejam delas derivadas corretamente, ou que sejam corretamente justificadas por seu
intermédio, são também verdades indubitáveis e, por isso, conhecimento. Dito isto, é fácil perceber qual a resposta
de Descartes ao argumento da regressão infinita dos céticos: o conhecimento existe, porque é possível evitar a
regressão infinita, uma vez que há crenças que, por serem autoevidentes não precisam que outras crenças as
justifiquem, e podem justificar as crenças que precisam de justificação. É fácil também perceber a estratégia de
Descartes para provar que existe conhecimento: partir de princípios indubitáveis e raciocinar de modo a que tudo o
que seja derivado desses princípios seja também indubitável. A estratégia de Descartes vai, portanto, consistir em
colocar na base do seu sistema verdades absolutamente indubitáveis e, a partir delas, deduzir todas as outras
verdades, de modo a garantir que sejam também indubitáveis. Partindo de verdades indubitáveis, Descartes
pretende dar uma base completamente sólida ao conhecimento — evitando, assim, o defeito que apontou ao saber
medieval —, e, ao mesmo tempo, eliminar a objeção dos céticos, pois essas verdades não precisam de ser
justificadas e justificam todas as outras que seja possível deduzir delas por processos de raciocínio corretos. Esta
estratégia de Descartes é claramente inspirada na Matemática e, em particular, na geometria de Euclides (c. 300 a.
C.). Na obra Elementos, Euclides, a partir de cinco axiomas básicos, considerados autoevidentes, prova um grande
número de propriedades das figuras e dos sólidos geométricos.
(…)

3. A dúvida metódica

3.1 Começar de novo desde os primeiros fundamentos

Como vai Descartes proceder para encontrar as verdades indubitáveis de que necessita para justificar as suas teorias
científicas?
Temos muitas crenças, uns triviais, outras importantes, umas verdadeiras, outras falsas e estamos habituados a
rever e a abandonar as nossas crenças à medida que descobrimos que são por alguma razão insatisfatórias. Talvez já
tenhamos acreditado que o Sol se move no céu de este para oeste todos os dias, mas quando nos mostraram que
isso não corresponde à realidade abandonámos essa crença. Fizemos o mesmo com muitas outras crenças. E
estamos dispostos a voltar a fazê-lo se, e quando, soubermos que uma crença é falsa. Esta forma de proceder é
apropriada aos nossos objetivos. Estamos, em geral, satisfeitos com as nossas opiniões, porque elas permitem-nos
responder adequadamente à maior parte das solicitações do dia a dia e, por isso, só as revemos em caso de estrita
necessidade.
Esta estratégia, no entanto, não serve o propósito de Descartes de fundar as ciências em bases completamente
sólidas e seguras. Para realizar este objetivo, ele precisa de encontrar verdades absolutamente indubitáveis a partir
das quais possa, ordenadamente, deduzir outras verdades, que, por isso, ficamos a saber serem também
indubitáveis. Ora, para encontrar estas verdades, pensa Descartes, é necessário investigar metodicamente todas as
crenças, começando pelas mais básicas ou fundamentais, usando como princípio só aceitar como verdadeiras as
opiniões de que não haja a mínima razão para duvidar. Só deste modo, é possível eliminar as opiniões que se
revelem incapazes de resistir à dúvida, quer porque sejam falsas quer porque a sua verdade não é indubitável.
Descartes não pensa, portanto, que todas as nossas opiniões sejam falsas. Ele admite que muitas das nossas
crenças de que é possível duvidar sejam verdadeiras. Mas como o seu objetivo é encontrar verdades indubitáveis,
qualquer opinião da qual haja razões para duvidar, por insignificantes que sejam, pode ser abandonada como se
fosse falsa. Também não pensa que seja necessário percorrer todas as opiniões uma a uma e mostrar que são
duvidosas ou falsas, o que seria, evidentemente, impossível de fazer. Ele pensa que basta atacar os fundamentos ou
princípios dos quais as nossas opiniões derivam para pôr em questão todas essas opiniões. Se esses princípios se
revelarem duvidosos ou falsos, então é óbvio que todas as opiniões que deles dependem são também duvidosas ou
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falsas.6 As crenças que se revelem capazes de superar este teste indubitabilidade — isto é, das quais seja
absolutamente impossível duvidar — constituem as bases sólidas nas quais todo o conhecimento vai ser fundado. É
nisto que consiste o método cartesiano da dúvida.

3.2 Primeiro nível da dúvida: o argumento das ilusões dos sentidos

A maioria das pessoas pensa que o conhecimento tem origem nos sentidos e que os sentidos são absolutamente
fiáveis. Os filósofos costumam chamar a este ponto de vista muito popular realismo de senso comum. 7 O realismo de
senso comum é constituído por duas teses fundamentais:
a) a realidade existe de forma contínua e independente de nós;
b) conhecemos a realidade tal como ela é diretamente pelos sentidos.
O realismo de senso comum corresponde ao nosso ponto de vista de todos os dias. De uma maneira geral,
raciocinamos e agimos assumindo que existe um mundo composto por objetos físicos, que os nossos sentidos nos
mostram exatamente como são. Se vemos um amigo nosso vestido com umas calças de ganga e uma camisola
vermelha não duvidamos de que o nosso amigo tenha, de facto, umas calças de ganga e uma camisola vermelha
vestidas. A teoria do conhecimento medieval, como já vimos, está de acordo com esta crença de senso comum,
segundo a qual os sentidos são fiáveis e, portanto, uma fonte adequada de conhecimento. Dado isto, é natural que
Descartes comece a investigação sistemática das nossas crenças pelas que têm origem nos sentidos e que o primeiro
argumento a que recorre, o argumento das ilusões dos sentidos, tanto vá pôr em questão o realismo de senso
comum como a tradição filosófica vigente. Nas Meditações sobre a Filosofia Primeira, Descartes apresenta este
argumento do modo seguinte:
Porém, descobri que eles [os sentidos] por vezes nos enganam, e é de prudência nunca confiar totalmente naqueles
que, mesmo uma só vez, nos enganaram. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, p. 107.)
O argumento das ilusões dos sentidos tem por objetivo duvidar da fiabilidade dos sentidos, isto é, pôr em causa que
os sentidos são fiáveis e que nos mostrem os objetos físicos como eles efetivamente são, e, como nos mostra o texto
de Descartes, consiste em afirmar que os sentidos enganam-nos, para daí concluir que os sentidos não são fiáveis.
Descartes dá exemplos deste tipo de enganos:
Com efeito, algumas vezes, mostravam-se de perto como quadradas torres que de longe me parecem redondas, e
enormes estátuas que se elevam nos seus terraços não me pareciam grandes, vistas do rés-do-chão. ( Meditações
sobre a Filosofia Primeira, p. 205.)
Nestes e em outros casos semelhantes, os sentidos dão-nos informações contraditórias. A conclusão a tirar destes
casos, pensa Descartes, é que nenhuma crença com origem nos sentidos é indubitável, uma vez que, mesmo quando
os sentidos não nos enganam, o facto de às vezes nos enganarem impede-nos de ter a certeza da sua verdade. Por
outras palavras, os sentidos não são uma fonte de conhecimento acerca da natureza dos objectos físicos, porque
nenhuma crença com origem nos sentidos, mesmo quando verdadeira, está infalivelmente justificada.

3.3 Segundo nível da dúvida: o argumento dos sonhos

O argumento das ilusões dos sentidos levanta dúvidas quanto à fiabilidade das nossas perceções em algumas
ocasiões especiais. Mas, na maior parte das situações, podemos nós objetar, temos absoluta certeza da verdade das
informações que os sentidos nos fornecem. Posso eu duvidar de que estou agora no meu escritório, sentado à
secretária, a escrever no computador? Percebe-se que duvidemos das sensações que nos mostram as torres como
redondas ou as estátuas como pequenas, pois temos muitas outras sensações que estão em conflito com elas. Mas
isso não acontece, nem parece poder acontecer, agora que inequivocamente percepciono as estantes e os livros, a
secretária e o computador, e todos os objetos que constituem o meu escritório. Como poderia duvidar de que estou
no meu escritório, sentado à secretária, a escrever no computador quando os meus diferentes sentidos
inequivocamente o confirmam? A resposta a esta objeção, que põe em causa a eficácia do argumento das ilusões
dos sentidos, é o argumento dos sonhos.
Com efeito, quantas vezes me acontece que, durante o repouso noturno, me deixo persuadir de coisas tão habituais
como que estou aqui, com o roupão vestido, sentado à lareira, quando, todavia, estou estendido na cama e despido!
Mas agora, observo este papel seguramente com os olhos abertos, esta cabeça que movo não está a dormir,
voluntária e conscientemente estendo esta mão e sinto-a; o que acontece quando se dorme não parece tão distinto.
Como se não me recordasse de já ter sido enganado em sonhos por pensamentos semelhantes! Por isso, se reflito

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mais atentamente, vejo com clareza que vigília e sono nunca se podem distinguir por sinais seguros […]. ( Meditações
sobre a Filosofia Primeira, p. 108.)
Já todos sonhámos que algo está a acontecer, para depois descobrirmos tratar-se apenas de um sonho. As imagens
mentais que temos em certos sonhos são tão idênticas às com origem nos objetos que somos levados a pensar que
aquilo que estamos a sonhar é real. Só quando acordamos é que, retrospetivamente, percebemos ter-se tratado
apenas de um sonho. Descartes pensa que esta semelhança entre as perceções sonhadas e as reais mostra que, com
base nos sentidos, não é possível distinguir de forma absolutamente segura o sono da vigília e, consequentemente,
estarmos certos de que as perceções que estamos agora a ter representam adequadamente à realidade.
Este argumento de Descartes tem sido tão mal entendido que é conveniente tentar explicá-lo bem. A principal
dificuldade talvez seja que tendemos a pensar imediatamente que temos a certeza de estar agora acordados e que
nunca nos ocorreu, quando acordados, que pudéssemos estar a dormir e a sonhar. Mas será que temos mesmo a
certeza? Podemos estar convencidos de que agora estamos acordados, mas estarmos convencidos de que algo é
verdadeiro e termos a certeza de que é verdadeiro são duas coisas diferentes. Aquilo que o argumento de Descartes
pretende mostrar é que os nossos pensamentos em alguns sonhos são tão semelhantes aos pensamentos que temos
quando acordados, que, se compararmos apenas esses pensamentos uns com os outros, não podemos ter a certeza
absoluta de que uns são sonhos e os outros são reais. E se não podemos ter a certeza absoluta de que os nossos
pensamentos atuais são reais, então não podemos dizer que sabemos ou conhecemos, porque, como já vimos, para
Descartes, só aquilo de que estamos absolutamente certos é saber ou conhecimento.
Imaginemos que alguém nos apresenta duas imagens exatamente iguais da Ponte 25 de Abril, em Lisboa, e nos diz
que uma foi tirada com uma câmera fotográfica e a outra produzida com um software extremamente poderoso,
capaz de originar imagens em tudo semelhantes às melhores fotografias das melhores câmeras. Ao olharmos
atentamente para as duas imagens vemos que nada as distingue, que são em tudo iguais. Podemos estar
absolutamente seguros de qual é a fotografia? Não, mesmo que alguém nos tenha fortemente convencido de que
uma delas é a fotografia. O mesmo se passa, pensa Descartes, com as nossas perceções que representam a realidade
e com o conteúdo de alguns dos nossos sonhos. São tão idênticos que mesmo quando estamos firmemente
convencidos de que umas representam a realidade e as outras não, não podemos estar absolutamente seguros
disso.
Por consequência, mesmo quando acredito firmemente estar sentado à secretária e a escrever no computador,
não posso estar absolutamente seguro de que é isso de facto o que está a acontecer. É, portanto, logicamente
possível que esteja a dormir e a sonhar, e que nada daquilo em que acredito naquele momento esteja realmente a
acontecer. Claro que é muito improvável e não acreditamos por um momento que seja verdade. Isso, no entanto,
não afeta o argumento de Descartes, que depende apenas da possibilidade de algo ser verdade, não de que o seja
efetivamente. Se é logicamente possível que eu esteja a dormir e a sonhar, então não é uma verdade indubitável que
esteja sentado à secretária e a escrever no computador.
O argumento das ilusões dos sentidos põe em causa a nossa confiança nos sentidos, porque estes às vezes
enganam-nos. No entanto, o próprio Descartes reconhece que isso acontece apenas em alguns casos muito especiais
e que, portanto, o argumento das ilusões dos sentidos não é suficiente para mostrar que os sentidos não são a
origem de verdades indubitáveis. O argumento dos sonhos responde a esta dificuldade, levando a dúvida mais longe
ao chamar a atenção para que não existe nenhum critério que permita distinguir com absoluta certeza quando
estamos acordados de quando estamos a sonhar, o mesmo é dizer, as nossas perceções reais das nossas perceções
ilusórias dos sonhos. É óbvio que para efeitos práticos do dia a dia a distinção que fazemos entre sonho e vigília é
adequada. Mas agora pretendemos saber se pela experiência podemos chegar a verdades indubitáveis e, para isso,
nenhuma dúvida pode subsistir. Ora, se não posso estar completamente certo de que não estou a dormir e a sonhar,
também não posso estar seguro da verdade de nenhuma crença com origem na experiência e, portanto, a
experiência não é nunca uma fonte de verdades indubitáveis.

3.4 Terceiro nível da dúvida: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno

O argumento das ilusões dos sentidos e o argumento dos sonhos levam o mais longe possível as dúvidas acerca das
nossas opiniões com origem nos sentidos. Se Descartes tivesse apenas por objetivo mostrar que nenhuma crença
com origem nos sentidos é uma verdade indubitável, não precisaria de recorrer a nenhum outro argumento. Uma
vez admitida a possibilidade de estarmos a sonhar, todas as nossas crenças com origem nos sentidos podem ser
ilusórias. Mas Descartes não quer apenas mostrar que os sentidos não são uma fonte de verdades indubitáveis; ele
quer também estender a dúvida às crenças com origem na razão, que são, para muitas pessoas, a fonte de verdades
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indubitáveis. O exemplo mais óbvio de crenças com origem na razão é o das Matemáticas. A verdade de proposições,
como, por exemplo, 2 + 2 = 4, não é determinada através da experiência e, portanto, estas proposições não são
postas em questão pelo argumento dos sonhos. Como o próprio Descartes diz, quer estejamos acordados quer
estejamos a dormir, dois mais três são sempre cinco e um quadrado tem sempre apenas quatro lados. Assim, para
duvidar das proposições da Matemática, e em particular, da Aritmética e da Geometria, Descartes vai recorrer a um
outro argumento: o argumento do Deus enganador ou do génio maligno.
Todavia, está gravada no meu espírito uma velha crença, segundo a qual existe um Deus que pode tudo e pelo qual
fui criado tal como existo. Mas quem me garante que ele não procedeu de modo que não houvesse nem terra, nem
céu, nem corpos extensos, nem figura, nem grandeza, nem lugar, e que, no entanto, tudo isto me parecesse existir
tal como agora? E mais ainda, assim como concluo que os outros se enganam algumas vezes naquilo que pensam
saber com absoluta perfeição, também eu me podia enganar todas as vezes que somasse dois e três ou contasse os
lados de um quadrado. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 110–111.)
Descartes coloca agora a possibilidade de um Deus que é ao mesmo tempo criador, sumamente poderoso e
enganador. Um Deus assim pode ter-nos criado de forma a que nos enganemos sempre que raciocinemos mesmo
em relação àquilo que nos parece completamente evidente.
Descartes usa este argumento com dois objetivos distintos. Em primeiro lugar, estender a dúvida à existência das
realidades físicas exteriores, uma vez que um Deus sumamente poderoso e enganador tem a capacidade de fazer
com que toda a existência seja uma espécie de sonho ou criação nossa; e, em segundo lugar e principalmente,
mostrar que as proposições com origem na razão, como as da Matemática, não são verdades indubitáveis, uma vez
que Deus pode ter-nos criado de modo a que nos enganemos sempre que façamos uma operação matemática
simples.
Este é um argumento muito forte, uma vez que consiste em colocar a hipótese da existência de um deus, ou génio
maligno, capaz de fazer o que quer que seja. É evidente que Descartes nunca acreditou que um deus com estas
caraterísticas pudesse existir, mas, uma vez mais, a mera possibilidade é tudo aquilo de que necessita. Se não
podemos mostrar que a hipótese do Deus enganador é falsa, então não podemos estar absolutamente certos da
verdade de nenhuma das nossas opiniões, seja das que têm origem na experiência, como a existência do mundo,
seja das que têm origem na razão, como as verdades da Aritmética e da Geometria.

DÚVIDA METÓDICA

Níveis de dúvida Resumo dos argumentos

Argumento das ilusões "Os sentidos enganam-nos algumas vezes.


dos sentidos Logo, os sentidos não são fiáveis."

"Não é possível distinguir com clareza o sono da vigília.


Argumento dos sonhos Logo, os sentidos e a experiência não podem ser a fonte de verdades
indubitáveis."

"Podemos ter sido criados por um Deus enganador de modo a acreditar


Argumento do Deus convictamente que aquilo que é falso é verdade.
enganador Logo, temos razões para duvidar da existência da realidade física e das
verdades da Matemática."

3.5 Caracterização da dúvida

A duvida metódica corresponde à parte negativa, ou destrutiva, do pensamento de Descartes. Esta parte tem um
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papel absolutamente essencial no seu projeto. Segundo Descartes, a dúvida tem três vantagens principais:

 libertar-nos dos preconceitos;


 desviar o espírito dos sentidos;
 impedir-nos de duvidar do que reconhecemos ser verdadeiro.

Descartes pensava que em criança adquirimos muitos preconceitos — como, por exemplo, que os sentidos nos
permitem conhecer a realidade tal como ela é — que, se não forem corrigidos, manter-se-ão na idade adulta. A
dúvida metódica liberta-nos desses preconceitos, ao mostrar que, ao contrário do que pensamos, os sentidos não
são um fundamento adequado para as nossas crenças.
Um segundo benefício que Descartes atribui à dúvida metódica é o de afastar a mente dos sentidos. Se refletirmos
um pouco nos três argumentos que constituem o essencial da dúvida, perceberemos que eles têm, de facto, este
efeito ao apresentarem razões cada vez mais fortes para que duvidemos da verdade das perceções sensoriais. Isto
está de acordo com a posição filosófica de Descartes que desvaloriza o papel dos sentidos em favor da razão.
Por último, diz Descartes, a dúvida prepara-nos para reconhecer a verdade. A dúvida, ao libertar-nos dos
preconceitos e ao afastar-nos dos sentidos, cria as condições para que o espírito descubra em si próprio as verdades
indubitáveis que não foi capaz de encontrar fora de si, na realidade que o rodeia.
Deste modo, a dúvida metódica prepara o caminho para a parte construtiva da filosofia de Descartes, em que os
seus aparentes resultados céticos, como veremos, são superados. Dada a sua relevância no pensamento de
Descartes é frequente dizer-se que a dúvida é:

 metódica, porque procede de forma organizada e sistemática à investigação das nossas crenças, baseada no
princípio que só é verdadeiro aquilo de que não houver nenhuma razão para duvidar;
 hiperbólica, ou exagerada, porque considera como falso aquilo de que há razões para duvidar e inventa
razões para duvidar, como os argumentos dos sonhos e do Deus enganador;
 radical, porque põe em causa os princípios ou fundamentos do pensamento tradicional (os sentidos e a
razão) e incide, em princípio, sobre todas as nossas crenças;
 provisória, porque não é um fim em si mesmo, como a dúvida cética, mas um meio para alcançar a primeira
certeza.

4. O cogito

4.1 Eu penso, logo existo

Como acabámos de ver, a dúvida põe em questão as crenças que têm por base seja os sentidos seja a razão. Nem a
razão nem os sentidos, portanto, são capazes de fornecer verdades indubitáveis. A conclusão a tirar parece ser óbvia:
o conhecimento não é possível. O projeto de investigação das nossas crenças, aparentemente, em vez de descobrir
verdades indubitáveis que fundem as nossas convicções acerca do mundo e garantam a sua verdade, mergulha-nos
no mais profundo ceticismo. Descartes — parece daí resultar — não é apenas um cético, mas o mais extremo e
radical dos céticos.
Mas é Descartes, de facto, um cético? Não. O objetivo dos céticos é mostrar que não existe conhecimento. O
objetivo de Descartes é o oposto: provar que existe conhecimento, isto é, crenças de cuja verdade estamos
completamente seguros. O ceticismo é, portanto, apenas aparente, o resultado provisório da estratégia de Descartes
para mostrar que existem verdades indubitáveis. Descartes descreve a forma como chega à primeira verdade deste
tipo a partir da dúvida do seguinte modo:
[N]otei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que eu, que o pensava, fosse
alguma coisa. E notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as
extravagantes suposições dos céticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para
primeiro princípio da filosofia que procurava. (Discurso do Método, pp. 50–51.)
O raciocínio de Descartes é o seguinte: mesmo que tudo aquilo em que acredita seja duvidoso ou falso, como a
dúvida sugere, há pelo menos uma coisa que tem de ser verdadeira para que possa duvidar, a saber, a sua própria
existência e, portanto, a sua existência é uma verdade indubitável. Isto é, Descartes está convencido de que o
pensamento não pode existir por si só, e como o pensamento existe — uma vez que a dúvida é uma forma de

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pensamento —, tem de existir necessariamente uma entidade em que o pensamento ocorra. Essa entidade é o «eu»,
cuja existência é, portanto, uma verdade indubitável. É por isso que Descartes pode afirmar «Eu penso, logo, existo».
Descartes não é, portanto, um cético. Ao contrário dos céticos, que, como vimos anteriormente, constroem
argumentos com o objetivo de mostrar que não é possível justificar racionalmente nenhuma das nossas crenças,
Descartes usa a dúvida com o objetivo contrário, isto é, como um meio para certeza. Ao levar a dúvida ao extremo,
tornando-a hiperbólica, a impossibilidade da dúvida torna-se evidente, pois no próprio ato da dúvida descobrimos a
verdade indubitável da nossa existência. Esta descoberta vai ser usada por Descartes como o ponto de partida do seu
projeto filosófico-científico.

4.2 Sou uma substância pensante

O que é este «eu» que a dúvida mostrou que existe? A resposta de Descartes é que o eu é uma coisa pensante ( res
cogitans). Esta resposta, no entanto, implica uma nova questão: o que é uma coisa pensante?
Em primeiro lugar, uma coisa pensante é uma substância, isto é, algo que pode existir de per si, que não depende
de qualquer outra coisa para existir. Em sentido estrito, apenas Deus é uma substância, pois apenas Deus não
depende de nenhuma outra coisa para existir. Mas, Descartes usa também o termo «substância» para referir aquilo
que é independente de tudo exceto de Deus. O eu que pensa, ou como muitas vezes também é designado, o cogito é
uma substância neste sentido secundário da palavra.
Em segundo lugar, dizer que o eu é uma substância pensante é dizer que tem como propriedade essencial ser
pensamento. O que é, então, o cogito? Uma entidade que é puro pensamento. É por isso que Descartes lhe chama
também algumas vezes espírito, alma, intelecto, ou razão.
Há uma terceira substância, para além de Deus e da alma, a saber, a matéria (res extensa) ou o corpo, cuja
propriedade essencial é a extensão. Normalmente pensamos nos corpos como tendo caraterísticas que percebemos
pelos sentidos: uma certa cor, uma certa sensação táctil, um certo odor, etc. Contudo, para Descartes, isso não
constitui verdadeiramente propriedades dos corpos. Segundo ele, os corpos não têm nem cor, nem odor, nem sabor,
nem nenhuma das outras coisas que percebemos pela perceção. Isto é particularmente claro no caso da audição.
Percebemos sons, mas os físicos ensinam-nos que os sons não existem, apenas a vibração das moléculas que
compõem a matéria. Assim, Descartes, como outros pensadores do seu tempo, distingue entre propriedades
primárias e propriedades secundárias dos objetos. 8 As qualidades secundárias, como as cores, os odores, os sabores,
etc., não são propriedades reais dos objetos, mas o resultado da interação da nossa mente com os objetos. As
qualidades primárias, tamanho, forma e movimento, são propriedades que pertencem realmente aos objetos.
Descartes pensa que estas propriedades podem ser reduzidas a uma única, a extensão, e considera-a a propriedade
essencial da matéria.

4.3 O que é o pensamento?

Vimos acima que, segundo Descartes, o eu é pensamento. Em que consiste o pensamento? Descartes responde a
essa questão nas Meditações:
Mas o que sou eu então? Uma coisa pensante. O que quer isto dizer? Quer dizer: uma coisa que duvida, que
compreende, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente. (Meditações sobre a
Filosofia Primeira, p. 124.)
Como vemos, Descartes inclui coisas muito diferentes no pensamento. A inclusão das sensações entre os
constituintes do pensamento pode parecer estranho, dado que Descartes, através da dúvida metódica, rejeitou
como duvidoso ou falso tudo o que tem origem nos sentidos. Mas o que Descartes está aqui a incluir no pensamento
não é o acontecimento físico de ver, ouvir, etc., que se passa nos nossos órgãos sensoriais, mas aquilo que ocorre na
nossa mente e cuja origem costumamos atribuir a esses órgãos e aos objetos físicos. Quer existam ou não objetos
físicos — coisa que, neste momento, não sabemos devido ao argumento do Deus enganador —, temos «imagens»
mentais que associamos a esses objetos, como acontece quando sonhamos. São essas imagens mentais que
Descartes inclui no pensamento. Outra forma de expressar a mesma ideia é dizer que o pensamento é tudo aquilo de
que temos consciência, isto é, tudo aquilo que sabemos estar a ocorrer no momento no nosso eu.

4.4 Sou diferente do meu corpo

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Ao refletirmos sobre aquilo que somos, pensa Descartes, constatamos ainda que não é possível duvidar da nossa
existência enquanto pensamento embora seja possível duvidar da existência do nosso corpo. Daqui Descartes tira
duas conclusões importantes:

 a alma e o corpo são substâncias completamente distintas


 a alma é mais fácil de conhecer do que o corpo

O seu raciocínio, que apresenta no Discurso do Método, é o seguinte:


Depois, examinando atentamente o que eu era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia
nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que,
pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente
e muito certamente que eu existia; (…) compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza é unicamente
pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que
esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que
ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo o que é. (Discurso do Método, pp. 51–52.)
Apesar de diferentes, o pensamento e o corpo encontram-se juntos no ser humano. No entanto, como são
completamente incompatíveis (uma vez que um é puro pensamento e o outro pura extensão), Descartes tem
grandes dificuldades em explicar como se articulam (por exemplo, como os acontecimentos no nosso corpo dão
origem a acontecimentos na alma e vice-versa). Esta conceção do homem — e do universo — como composto por
duas substâncias completamente distintas é conhecida como o dualismo de Descartes e está na origem do problema
mente-corpo, estudado em filosofia da mente.9

4.5 Aquilo que conheço com clareza e distinção é indubitavelmente verdadeiro

O que faz do «Eu penso, logo existo» uma verdade indubitável, e, por isso, um conhecimento, é a clareza e distinção
com que é aprendido pela nossa mente. Isto fornece a Descartes o critério para determinar quando uma qualquer
proposição é uma verdade indubitável: a clareza e distinção. Mas, em que condições é uma ideia clara e distinta? A
resposta de Descartes é a de que uma ideia é clara quando a razão, sem qualquer participação dos sentidos, nos
mostra que ela é verdadeira sem a mínima possibilidade de erro; e é distinta quando não se confunde com nenhuma
outra ideia.
A clareza e distinção fornecem a Descartes o critério para determinar quando uma ideia constitui um
conhecimento. Qualquer ideia que a mente perceba com clareza e distinção é indubitável. O cogito pode a partir de
agora — e isto é de imensa importância para todo o projeto de Descartes — analisar os seus pensamentos e
determinar aqueles que são claros e distintos. São essas ideias claras e distintas que vão constituir os fundamentos
— as crenças fundacionais — a partir dos quais Descartes vai deduzir a sua nova ciência, que é assim também
indubitável e, portanto, inquestionavelmente conhecimento.

4.6 Intuição e dedução

As ideias claras e distintas são conhecidas por intuição. O que pode ser corretamente derivado daquilo que
conhecemos por intuição é conhecido por dedução. 10 Assim, Descartes atribui duas funções cognitivas principais à
mente, a intuição e a dedução, a que correspondem duas formas de conhecimento, o conhecimento intuitivo e o
conhecimento dedutivo. Temos um conhecimento por intuição quando a nossa razão percebe imediatamente, sem
qualquer raciocínio e sem qualquer dúvida que algo é verdade. Conhecemos por intuição verdades autoevidentes,
como, por exemplo, «Eu existo» ou «um triângulo tem apenas três lados» e «duas coisas iguais a uma terceira são
iguais». Conhecemos algo por dedução quando a partir de proposições que conhecemos por intuição inferimos uma
outra proposição que é também de certeza absoluta verdadeira, como, por exemplo, quando a partir da definição de
triângulo inferimos que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos.

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Operações
Explicação Exemplos
da mente

A mente, diretamente e sem


qualquer raciocínio, percebe Eu existo; eu penso; um triângulo tem apenas
Intuição
claramente e distintamente algo três lados.
como verdadeiro.

Tudo o que deduzimos das verdades conhecidas


A mente infere outras verdades a
por intuição, como, por exemplo, que os três
Dedução partir das que conhece por
ângulos de um triângulo são iguais a dois retos,
intuição.
que se deduz da definição de triângulo.

4.7 O cogito é uma verdade de razão

O «Eu penso, logo existo» é, uma verdade a que chegamos pela razão. É a razão, e não os sentidos, que nos revelam
a nossa própria existência como uma verdade indubitável. Como o cogito é o modelo que permite reconhecer outras
verdades indubitáveis — tudo o que conhecemos com clareza e distinção —, que são a base a partir da qual o
conhecimento se vai desenvolver, o conhecimento tem origem na razão e não nos sentidos. Isto faz de Descartes um
racionalista, e constitui outro ponto em que rompe com o pensamento tradicional que, como já vimos, fazia dos
sentidos a origem do conhecimento.11
Mas, o que carateriza o racionalismo de Descartes? Em primeiro lugar, o facto de o conhecimento ter origem na
razão e não nos sentidos; a razão, ao contrário dos sentidos, fornece-nos verdades indubitáveis, como o cogito, que
conhecemos por intuição. Em segundo lugar, o facto de o verdadeiro conhecimento ser o racional e não o empírico.
E, por último, o facto de sermos capazes de chegar a partir dessas verdades, por dedução, a outras verdades que são
igualmente indubitáveis.
Podemos resumir as características do cogito que acabámos de ver no quadro seguinte:

COGITO

A primeira crença que resiste à dúvida: para que eu possa duvidar tenho
Primeira verdade indubitável
de existir.

Como primeira verdade indubitável, vai ser a partir dela que a


Ponto de partida do saber
reconstrução do saber se vai fazer.

Existe por si próprio e tem como propriedade essencial o pensamento


Substância pensante
(duvidar, compreender, afirmar, negar, querer, imaginar, sentir).

Distinto do corpo e melhor Posso ter a certeza da minha existência enquanto alma, mas posso
conhecido do que ele duvidar da existência do meu corpo.

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COGITO

Conhecido sem possibilidade de erro pela razão e que não se confunde


Claro e distinto
com nenhuma outra coisa.

Todas as crenças que, como o eu penso, logo existo, são claras e distintas
Critério de verdade
são verdades indubitáveis.

Conhecido imediatamente como verdadeiro pela razão, sem o recurso a


Conhecido por intuição
inferências ou raciocínios.

5. Deus

A descoberta do cogito permite a Descartes fundar em bases sólidas o que foi posto em causa pela dúvida metódica
e, por extensão, a sua ciência mecanicista. Mas, em si mesmo, o cogito não constitui um grande avanço. Tudo o que
Descartes provou até agora foi que uma substância que consiste unicamente no pensamento existe. Tanto quanto
sabemos nesta altura, é perfeitamente possível que para além do cogito e dos seus pensamentos nada mais exista,
uma posição hipotética a que os filósofos chamam solipsismo. 12 Para avançar e superar o solipsismo, Descartes
precisa de provar que existem outras entidades para além do cogito.
A sua estratégia para atingir este fim vai ter três partes. Na primeira, Descartes vai provar que Deus existe.
Descartes precisa de o fazer não apenas para afastar o solipsismo mas sobretudo para poder provar que aquilo que
conhecemos com clareza e distinção é verdade. Na segunda, vai mostrar que dessa existência se segue a fiabilidade
da razão e, portanto, que aquilo que conhecemos clara e distintamente é indubitável. Por último, Descartes vai
mostrar que o mundo físico existe. Comecemos pela primeira.

5.1 O argumento da perfeição ou da marca

A maior parte dos argumentos tradicionais para provar a existência de Deus são a posteriori. Partem de um facto
acerca do mundo e pretendem provar que Deus existe. Descartes, no entanto, não pode usar esta estratégia, porque
a existência do mundo físico foi posta em suspenso pela dúvida metódica. Por isso, para provar a existência de Deus,
o cogito tem de recorrer apenas às ideias que encontra em si próprio. Ora, o cogito encontra em si muitas ideias,
como, por exemplo, aquelas cuja origem normalmente atribuímos a objetos exteriores. Mas também encontra em si
outras ideias como a ideia de Deus ou de perfeição, isto é, de
[…] uma certa substância infinita, independente, sumamente inteligente, omnipotente, e pela qual foram criados
quer eu mesmo, quer tudo o resto que existe. (Meditações sobre a Filosofia Primeira, pp. 151–152.)
Como tudo tem uma causa, a ideia de Deus também tem uma causa. A estratégia de Descartes para provar a
existência de Deus vai, portanto, consistir em determinar qual a causa desta ideia de Deus, que o cogito descobre em
si. Costumamos atribuir a origem das nossas ideias aos objetos físicos com os quais contactamos. Contudo, como
vimos, é logicamente possível que essas ideias tenham origem no próprio cogito, uma vez que tanto quanto
sabemos, o cogito pode criar as ideias que temos dos objetos físicos. É isso que acontece nos sonhos. Outras ideias
são fruto da nossa imaginação, como acontece com as ideias de unicórnio e de dragão. Poderá a ideia de Deus ter
também origem no cogito?
A resposta de Descartes é não. Porque, segundo ele, tem de haver tanta realidade na causa de uma ideia quanto
na própria ideia. A ideia de Deus é a ideia de um ser perfeito. Se o cogito fosse a causa da ideia de ser perfeito, não
seria possível explicar as perfeições que Deus tem e que o cogito não tem, uma vez que, sendo imperfeito, tem
menos realidade que a ideia de Deus. Seria, por isso, o mesmo que dizer que essas perfeições não têm causa, o que é
absurdo. Portanto, ao contrário das outras ideias que o cogito encontra em si, a ideia de Deus não pode ser criada

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pelo cogito. Qual pode, então, ser a causa dessa ideia? Apenas algo que tenha tanta realidade quanto a ideia de
Deus. Ora, só Deus tem a realidade necessária para ser a causa da ideia de Deus. A causa da ideia de Deus é,
portanto, o próprio Deus e, por isso, Deus existe. Podemos apresentar o argumento de Descartes do seguinte modo:

1. O cogito tem em si a ideia de Deus.


2. A ideia de Deus tem de ter uma causa.
3. Tem de haver tanta realidade na causa de uma ideia quanto na própria ideia.
4. Se a ideia de Deus tivesse origem no cogito, haveria menos realidade na causa do que no efeito.
5. O cogito não pode ser a causa da ideia de Deus.
6. Logo, Deus é a causa da ideia de Deus.

Descartes pensa que cada uma das premissas deste argumento é uma verdade clara e distinta e que, portanto,
demonstrou — no sentido matemático, isto é, indubitavelmente — que Deus existe. O primeiro passo do cogito para
fora de si próprio está assim dado. O cogito não está sozinho. A análise que fez das suas ideias revelou a existência
indubitável de Deus.

5.2 Ideias inatas, adventícias e factícias

A ideia de Deus é aquilo a que Descartes chama uma ideia inata, e, como todas as ideias inatas, foi colocada em nós
por Deus, pelo que é como a marca do criador na sua obra. As ideias inatas são ideias com as quais já nascemos e
que a mente descobre por si própria, não tendo, portanto, origem na experiência, como são o caso, além da ideia de
Deus, do cogito, das verdades autoevidentes da Aritmética e da Geometria e, de uma maneira geral, de muitas ideias
que conhecemos por intuição e que são claras e distintas. Além das ideias inatas, existem também as ideias
adventícias, que têm origem nas sensações, como as ideias de casa, árvore, etc., e as ideias factícias, ou forjadas, que
são as que a nossa imaginação cria a partir das ideias adventícias.13

TIPOS DE IDEIAS

Colocadas por Deus em nós e com as quais Deus, cogito, substância, corpo ou
Inatas
já nascemos. matéria, triângulo.

Adventícias As que têm origem nos nossos sentidos. Sol, Lua, árvore, livro.

Factícias As que têm origem na imaginação. Centauro, quimera, ciclope.

(…)
Álvaro Nunes, in criticanarede.com

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