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O conceito de identidade narrativa

e a alteridade na obra de Paul Ricoeur:


aproximações

The concept of narrative identity and otherness in


Paul Ricoeur’ work: approaches

Resumo O presente artigo examina os conceitos de identidade


narrativa e de alteridade na obra de Paul Ricoeur. A questão da
identidade narrativa é abordada ele, inicialmente, em Tempo e
narrativa e é retomada em Si-mesmo como outro. É a resposta à
questão “quem é você?” e implica, necessariamente, a narrativa
da vida porque “a pessoa é o que ela fez e o que ela sofreu”, e
é na tarefa de complexificação da noção de sujeito que está, de
modo decisivo, a compreensão da alteridade ou do outro. O ou-
tro, no entanto, na tradição metafísica é recusado e esquecido
da Antiguidade à Contemporaneidade. Por essa razão, o presen-
te texto objetiva examinar a questão da narrativa e da identida-
de pessoal, em Ricoeur, no quadro de uma meditação sobre a Marcos José Alves Lisboa
Pontifícia Universidade Católica
alteridade à luz de uma análise hermenêutico-fenomenológica
de Campinas (PUC-Campinas)
ricoeuriana nas obras Tempo e narrativa, O si-mesmo como um marcoslisboa@puc-campinas.
outro e Do texto à ação. edu.br
Palavras-chave ética, hermenêutica, si-mesmo, alteridade.

Abstract This paper discusses the concept of Narrative Identity


and Otherness in the work of Paul Ricoeur. The concept of nar-
rative identity is initially approached by Ricoeur in Time and nar-
rative and then reviewed in Oneself as another. It is the answer
to the question: “Who are you?”. The answer to such question
necessarily implies the narrative of life since “the person is what
he/she did and suffered”. The effort to deepen the notion of
subject is absolutely decisive to a proper understanding of the
“Other” and of “Otherness” itself. The Other, however, in the
metaphysical tradition, is rejected and forgotten from ancient to
contemporary philosophy. Therefore, this paper aims to exam-
ine this question of narrative and personal identity in Ricoeur´s
thought, as part of a meditation on otherness guided by Ricoeur
hermeneutic phenomenological analysis in his books Time and
Narrative, Oneself as Another and From the text to action.
Keywords ethics, hermeneutics, oneself, otherness.
Introdução turalismo. O outro sucumbe às contribuições

D
ada a densidade e complexidade do filosóficas de Descartes e Nietzsche, impli-
projeto filosófico ricoeuriano, esta cando uma cisão, separação, um vazio entre
reflexão objetiva, de modo sucinto, os termos o mesmo e o outro. Deste modo,
examina o conceito de identidade narrativa e como já dissemos anteriormente, a presente
sua relação com o de alteridade nas obras de reflexão objetiva examinar os conceitos de
Ricoeur, Tempo e narrativa, O si-mesmo como identidade, em especial, a identidade narra-
um outro e Do texto à ação. Assim, a estrutura tiva na constituição de uma identidade ética
desta análise limita-se a estes conceitos, suas vinculada à alteridade.
vinculações e implicações éticas.
O termo “identidade” é aqui tomado no Identidade narrativa e identidade
sentido de uma categoria da prática, isto é, ética
ética. Dizer a identidade de um indivíduo ou Por identidade, Aristóteles afirma na
de uma comunidade é responder à questão Metafísica:
“quem fez tal ação?”, ou, “quem é o seu agen-
te, o seu autor?” Essa questão é respondida, com efeito, aquelas coisas cuja ma-
primeiro, nomeando-se alguém, isto é, desig- téria é uma, ou em espécie ou em
nando-o por um nome próprio. Mas qual é o número, são chamadas de idênti-
suporte da permanência do nome próprio? cas, e também aquelas cuja subs-
O que justifica considerar o sujeito da ação, tância é uma. Por conseguinte, é
assim designado por seu nome, como o mes- evidente que a identidade é, de
mo ao longo de toda uma vida e que se es- qualquer modo, uma unidade, seja
tende do nascimento à morte? A resposta só porque esta se refira a uma única
pode ser narrativa. “A identidade do quem é coisa considerada duas, por exem-
apenas, portanto, uma identidade narrativa” plo, quando se diz que a coisa é
(RICOEUR, 1997, p. 425). O conceito de identi- idêntica a si mesma, visto que se
dade narrativa passa, obrigatoriamente, pela toma uma coisa como duas. (ARIS-
discussão da relação entre identidade idem e TÓTELES, 2005, p. 217-219).
identidade ipse na obra Soi-Même comme un
autre (RICOEUR, 1990). Esta definição é importante para o de-
A discussão inicial acerca da noção do senvolvimento do projeto ético-filosófico em-
si-mesmo, em Ricoeur, isto é, a proposição preendido por Ricoeur, que, em suas obras
de uma solução ao problema do cogito car- Temps et récit (RICOEUR, 1985)1 e Soi-même
tesiano e do anticogito nietzshiano, aponta comme um autre (RICOEUR, 1990)2 pretende
para a necessidade imperativa de reconhecer conferir um significado forte para o conceito
a importância do outro de si-mesmo nesse de identidade.
processo de complexificação da noção de su- Segundo Dartigues, em Ricoeur, “a
jeito. Este reconhecimento está circunscrito identidade narrativa implica a narração de
à especificidade do ramo da ética, uma vez uma vida que indica o contexto das ações e
que implica mediação por elementos que su- situações a partir do qual podemos identifi-
gerem a presença do outro, a saber: os sím- car a pessoa. A pessoa é o que ela faz e o que
bolos da cultura, a história narrativa de si ou
de ficção, pelas representações, pelas ações,
pela linguagem, as relações interpessoais ou 1
Para a realização deste trabalho recorremos à
institucionais, ou pelo desejo. tradução em português de Roberto Leal Ferreira
No entanto, a tradição metafísica tem (RICOEUR, 1997).
2
Para a realização deste trabalho recorremos à
recusado a noção de alteridade nos termos do tradução para o português de Lucy Moreira César
idealismo, da pós-fenomenologia ou do estru- (RICOEUR, 1994).

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sofreu” (DARTIGUES, 1997, p.19).3 Podemos, Na busca da identidade pessoal, a narra-
pois, caracterizar, em primeiro lugar, a iden- tiva constitui objeto de reflexão no quinto e no
tidade pessoal como aquilo que nos faz reco- sexto estudo de Soi-même comme un autre (A
nhecer o indivíduo como sendo ele próprio a identidade pessoal e a identidade narrativa; O si
partir de um conjunto de traços que o individu- e a identidade narrativa). No curso desta análi-
alizam, isto é, por meio de características físi- se, é retomada a discussão da dimensão tem-
cas, psicológicas ou, ainda, por seu caráter, sua poral, tanto do sujeito quanto de sua ação, que
índole, sua disposição interior (vontade), suas já estava implicada em Temps et Récit.
virtudes, motivos, intenções e por suas ações Diz Ricoeur sobre o exame da importân-
num determinado contexto histórico-cultural. cia do conceito de identidade:
No entanto, esta é uma caracterização prévia
do conceito de identidade que padece da falta abordagens indiretas da reflexão
de articulação entre o caráter descritivo, pres- proposta pela filosofia analítica,
critivo e histórico da identidade e que o pre- pelo exame da primeira determi-
sente trabalho pretende examinar. nação da ipseidade através do
A problemática da identificação pessoal confronto com a mesmidade e da
ou coletiva implica uma questão de fundo que segunda determinação da ipseida-
orientará este trabalho, a saber: o pronome de pela dialética com a alteridade.
relativo quem. Desvendar este quem acarre- (ibid., p.347).
ta, necessariamente, o exame da importância
dos conceitos de ascripção e de imputação, de Em outras palavras, as três problemáti-
que trataremos adiante. cas que compõem a obra Soi-même comme un
A primeira referência à noção de iden- autre fundamentam a hermenêutica do si.
tificação, realizada por Ricoeur nos primei- A identidade narrativa elabora uma res-
ros estudos de Soi-même comme un autre, posta às questões “quem é você?” e “quem
aparece quando ele percorre o itinerário da sou eu?”. Para Ricoeur, este é um aspecto
filosofia analítica. Em outras palavras, o pen- importante do problema hermenêutico e de
sador francês aborda as aporias da linguagem sua circunscrição no debate ético contempo-
no processo de identificação dos indivíduos. râneo que neste artigo será apenas sugerido.
Ricoeur afirma que “a linguagem comporta No exame do conceito de identidade,
montagens específicas que nos orientam para deparamos-nos, segundo Ricoeur, com seus
designar indivíduos” (RICOEUR, 1994a, p.40). dois usos4 na língua latina: idem e ipse. O termo
Esta abordagem é denominada descritiva. idem, no caso, nominativo masculino, é o pro-
A segunda aproximação relativa ao tema nome demonstrativo que se traduz por mesmo.
que nos propusemos estudar, a identidade, é Por sua vez, o termo ipse é empregado para re-
de cunho prescritivo. Isto quer dizer que não forçar o pronome demonstrativo no caso aci-
basta tratar o problema da identidade somen- ma. Em outras palavras, idem serve para identi-
te no plano lógico e epistemológico da aná- ficar, para dizer que é igual, ao passo que ipse é
lise do discurso e da ação. É de fundamental reforçativo; por exemplo: idem rex (mesmo rei
importância, portanto, relacionar o autor e a e não outro) e ipse rex (o próprio rei).5
ação. Diz Ricoeur que “a alguém é prescrito
agir em conformidade com esta ou aquela re-
4
A identidade como mesmidade, em latim é idem;
inglês: sameness; alemão: Gleichheit. A identidade
gra de ação” (ibid., p.121). como ipseidade, por sua vez, em latim é ipse; em
inglês: selfhood; alemão: Selbstheit (cf. RICOEUR,
1994, p. 140).
“implique le récit de la vie qui indique le contexte des
3 5
Cabe ressaltar que o pronome de terceira pessoa não
actions et situations à partir duquel nous pouvons possui nominativo, na gramática latina. Neste caso,
identifiier la persone. La persone est ce qu’elle fait et ce o pronome demonstrativo exerce esta função. Cf.
qu’elle a subi”. Tradução de Constança Marcondes César. NAPOLEÃO M. DE ALMEIDA. Gramática Latina, p. 163.

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Colocando de lado as questões refe- A partir desta determinação surgem os
rentes à semântica dos termos, a identidade verdadeiros obstáculos à compreensão do
idem significa, ao mesmo tempo, unicidade conceito de identidade porque “a ipseida-
e similitude, que representam valor numé- de, o si, parece recobrir o mesmo espaço de
rico e qualitativo. Ambos os termos não im- sentido”7 (RICOEUR, 1988d, p. 297). Além
plicam, diretamente, a derrelição do tempo disso, esta noção não é a mesma da mesmi-
e, consequentemente, são critérios pouco dade porque seu desenvolvimento passa, ne-
consistentes para reidentificar a coisa ou a cessariamente, pela resposta do si à questão
pessoa. A fragilidade deste critério de simili- “quem?”, citada anteriormente, no plano da
tude sugere uma terceira noção e, concomi- ação: “Quem fez isto?” “Quem fez aquilo?”
“Quem é o autor desta ou daquela ação?”
tantemente, outro critério de identidade: a
À atribuição de uma ação a um agente
continuidade ininterrupta.
ou a seu autor, Ricoeur denomina ascripção.8
Este terceiro sentido do conceito de
Este termo sugere outro conceito caro à obra
identidade caracteriza-se como o itinerário de ricoeuriana, como bem examinou Olivier Mon-
um ser do nascimento à inelutável condição gin (cf. DANESE, 1993, p. 32 et seq.): atesta-
de sua existência, a morte, e, por introduzir ção, que pode receber a significação moral de
a diferença, o distanciamento e, também, o imputação. O verbo imputar é derivado dos
quarto significado da identidade mesmidade: termos latinos putare e imputatio, e significa,
a permanência no tempo. segundo nosso autor em O justo (1995e), que
O quarto sentido da identidade idem, “imputar uma ação a alguém é atribuí-la como
a permanência no tempo, afirma Ricoeur, sendo o seu verdadeiro autor, colocá-la, por
revela uma descontinuidade em relação às assim dizer, na sua conta, e tornar esse alguém
determinações anteriores (unidade, similitu- responsável por ela” (RICOEUR, 1995e, p. 38).
de, numérica) porque estas não implicam a Assim, visto que o mesmo ou a mesmida-
questão do tempo. de se sobrepõe ao si ou ipseidade, insistimos,
A identidade, para nosso autor, é um não somente sobre a distinção gramatical,
princípio de permanência no tempo. Esta per- epistemológica e lógica do conceito de iden-
manência, porém, deixa-se ligar à noção de tidade que decorrem da análise da obra do
“substância”,6 substrato imutável. Diz Ricoeur: nosso autor, mas, principalmente, ontológica
que separa idem de ipse. Desta forma, Ricoeur
a ideia de estrutura, oposta à de concorda com Heidegger:
acontecimento, responde a esse
por dizer que a questão da Selbstheit
critério de identidade, por mais pertence à esfera de problemas re-
forte que possa ser administrado; levantes, assim, da entidade que ele
ela confirma o caráter relacional denomina Dasein e que se caracteriza
da identidade que não aparecia na pela capacidade de se interrogar so-
antiga fórmula da substância mas bre seu próprio modo de ser e, assim
que Kant restabelece, classificando sendo, se reportar ao ser enquanto
a substância entre as categorias de ser.9 (RICOEUR, 1988d, p. 298).
relação, como condição de possibi- 7
Do original: “[...] l’ipséité, le soi, paraît couvrir le
lidade de pensar a mudança como
même espace de sens.” (tradução nossa)
chegando a alguma coisa que não 8
O termo ascripção Ricoeur toma emprestado de
muda. (RICOEUR, 1994, p. 142.). Hart (1948).
9 Do original: “[...] pour dire que la question de la
Selbstheit appartient à la sphére de problèmes
6
Ricoeur examina a contribuição filosófica de Kant relevant de la sorte d’entité qu’il appelle Dasein et
sobre a formulação do conceito de substância qu’il caractérise par la capacité de s’interroger sur son
(Beharrlichkeit) como categoria de relação. cf. propre mode d’être et ainsi de se rapporter á lêtre em
RICOEUR, 1994, p. 142. tant qu’être.” (Tradução nossa)

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Por Dasein também podemos entender mesmo, ipse; mas que se anuncia como idem”
o ser que existe compreendendo. (RICOEUR, 1994a, p.146).
A Selbstheit, ou ipseidade, então, coin- Ricoeur, portanto, entende o caráter
cide com o ser que existe compreendendo, o como estabilidade, como “o signo distintivo
Dasein, assim como as categorias, no sentido com o que reconhecemos uma pessoa, identi-
kantiano, devem ser pensadas em relação ficamo-la como a mesma” (1994a, p.146-147).
das Vorhanden e Zurhanden, ou a mesmida- Por essa razão, no caráter convergem todas
de. Segundo Ricoeur, o exame destes concei- as noções da mesmidade que abordamos an-
tos heideggerianos revela a distinção entre teriormente, a saber: identidade numérica,
idem e ipse. identidade qualitativa, continuidade ininter-
O ponto de interseção entre o si e o mes- rupta e permanência no tempo.
mo está na permanência no tempo. Nesta re- O outro problema abordado em Soi-
gião, do lado ascripção prevalece o conceito -même comme un autre é o da dissociação de
de caráter, e, do outro, o da imputação, cuja idem e ipse por meio de outra noção de per-
primazia é da noção de fidelidade a si, ou a ex- manência no tempo: a manutenção de si. Este
pressão Selbständigkeit10, de Heidegger. conceito estará implicado na relação dialética
Reconhecemos a dificuldade da ques- entre o si e a alteridade, o outro de si, à medi-
tão, mas, para elucidá-la, a análise ricoeuriana da que este si permanecer fiel às suas promes-
apresenta dois modelos de permanência no sas, à palavra dada.
tempo que devem ser compreendidos quan- Então, é possível consolidar uma relação
do nos referimos a nós mesmos: o caráter e a dialética entre a identidade narrativa repre-
palavra dada. sentada pelo sujeito na busca de si e identida-
O que Ricoeur entende por caráter? Para de ética como ponto de referência.
nosso autor, o caráter é outro modelo de per-
manência no tempo, no qual as identidades A hermenêutica do si e a alteridade
idem e ipse não se distinguem uma da outra. Para Ricoeur há, portanto, duas proble-
Na filosofia moral de Aristóteles, o ter- máticas pertinentes à noção de identidade: a
mo ethos designa o caráter como disposição equivocidade das duas interpretações de per-
adquirida (ecsis=echein) pelo hábito. Este manência no tempo, ou seja, a coincidência
conceito, por sua vez, implica a dimensão do entre idem e ipse, ou ainda, o quem recoberto
tempo e coloca em questão a imutabilidade pelo quê e o ipse dissociado do idem; e a no-
do “caráter”.(RICOEUR, 1990, p. 150). Des- ção de identidade narrativa como resolução
te modo, para Aristóteles, o hábito confere das aporias da identidade pessoal que, a par-
uma significação histórica ao caráter porque tir de agora, explicitaremos.
transforma a conduta do homem por meio da A problemática da identidade pessoal,
continuidade de outras ações praticadas no segundo Ricoeur, passa, obrigatoriamente,
“horizonte de uma vida inteira” (RICOEUR, pela consideração da “articulação da dimen-
1994a, passim). No entanto, a inovação pro- são temporal da existência humana” (1994a,
movida pelo hábito é abolida quando sedi- p.146.), ou seja, pela consideração do contex-
mentada, isto é, quando se torna capacidade to histórico no qual está inserido o sujeito da
adquirida (durável). ação, da linguagem, da responsabilidade e da
É nesta relação dialética, entre inovação narração. A importância da teoria narrativa
e sedimentação no processo de formação do adotada por nosso autor consiste em equi-
caráter, que a identidade idem recobre a iden- distar o ato de descrever e o de prescrever e,
tidade ipse. Assim, “meu caráter sou eu, eu consequentemente, em ampliar o conceito
de identidade pessoal pela mediação da iden-
O conceito de Selbständigkeit como fidelidade a si mesmo
10
tidade narrativa. Ricoeur diz:
encontra-se em Temps et Récit (RICOEUR, 1988.).

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A teoria narrativa não poderia exer- e de um corpo e na ocorrência de uma série
cer essa mediação, isto é, ser mais de acontecimentos físicos e mentais ligados
que um segmento intercalado na entre eles” (PARFIT apud RICOEUR, 1994a. P.
sucessão discreta de nossos estu- 157). Ou seja, este autor adota uma posição co-
dos, se não pudesse ser mostrado, mum ao empirismo clássico comprometendo
de um lado, que o campo prático a qualidade de mediação da identidade narra-
coberto pela teoria narrativa é mais tiva entre identidade idem e ipse, que é a de
vasto que o campo coberto pela encontrar uma substância estável do conceito.
semântica e pela pragmática das Segundo Ricoeur, podemos nos apro-
frases de ação, por outro lado, que ximar desta noção de substância a partir das
as ações organizadas em narrativa contribuições filosóficas de Aristóteles sobre
apresentam traços que só podem a Tragédia e, principalmente, do conceito de
ser elaborados tematicamente no enredo. O enredo, na narrativa, sintetiza os
quadro conceitual de uma ética. acontecimentos. Esta síntese, nosso autor a
(1994a, p. 139).11 define como “conflito do heterogêneo” (RI-
COEUR, 1994, passim).
Além da distinção entre idem e ipse, nos- O enredo tem um caráter de trama,
so autor insiste sobre a necessidade de passar tessitura na qual a história de uma vida está
pela abordagem da filosofia analítica, sem a marcada por diversos e constantes eventos. A
qual não poderia sustentar seu apelo ontológi- propósito do enredo, Dartigues diz que “con-
co do conceito de identidade pessoal. Tal exi- siste em estabelecer uma concordância entre
gência está nas reflexões acerca dos critérios dois acontecimentos discordantes, a fazer en-
elaborados, principalmente por Derek Parfit e trar numa configuração única delimitada por
seus predecessores (Hume e Locke) quanto à um começo e um fim os acontecimentos que
objetividade e a substancialidade do “eu”. são golpes teatrais ou inversão de situações”
Parfit entende a identidade como mes- (DARTIGUES, 1997, p. 24).
midade “com a exclusão expressa de toda a Consequentemente, nesta dialética en-
distinção entre mesmidade e ipseidade, e, tre discordância e concordância, revela-se o
portanto, de toda a dialética narrativa ou caráter essencialmente ético da narração, re-
outra entre mesmidade e ipseidade” (1994a, ferindo-se às pessoas como agentes históricos.
p.156).
Em Reasons and persons (1986, p. 210), […] partilha do regime da identi-
Parfit defende que “nossa identidade não é o dade dinâmica própria da história
que importa”.(PARFIT apud RICOEUR, 1994a, narrada. A narrativa constrói a iden-
p156.) Em outras palavras, a concepção de tidade da personagem, que se pode
identidade é uma ilusão porque existem ape- chamar de sua identidade narrativa,
nas padrões de atividades neurais, ou, como construindo a da história narrada. È
diz o autor, “a existência de uma pessoa con- a identidade da história que consti-
siste exatamente na existência de um cérebro tui a unidade da personagem. (RI-
COEUR, 1994a, p.176 ).
“La théorie narrative ne saurait exercer cette
11

méditation, c’est-à-dire être plus qu’un segment


intercalé dans la suite discrète de nos études, s’il
Podemos dizer que a configuração des-
ne pouvait être montré, d’une part, que le champ te caráter durável da personagem dá-se por
pratique couvert par la théorie narrative est plus vast uma dinâmica própria ao enredo.
que celui couvert par la sémantique et la pragmatique A narração dos acontecimentos, na qual
des phrases d’actions, d’autre part, que les actions
organisées en récit présentent des traits qui ne
estão as pessoas, põe em relação dialética
peuvent être élaborés thématiquement que dans le identidades idem e ipse. De um lado está o
cadre d’une éthique.” caráter, representado pela mesmidade, sinô-

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nimo de estabilidade, constância, imutabili- nos transportamos e transpomos na exegese
dade; de outro, a ipseidade, como livre ma- de nós mesmos, é esta dialética entre idem e
nutenção de si, ou fidelidade a si, inovação, ipse”13 (RICOEUR, 1988d, p. 303).
imprevisibilidade, decisão ética. Portanto, a tarefa vital da hermenêutica
O locus privilegiado da identidade narra- do si é articular a narração fictícia ou histórica
tiva aparece, então, como a articulação entre na qual nos identificamos como reflexos do
o caráter (mesmidade) e a livre manutenção que nós próprios somos e fazemos. Como diz
de si (ipseidade). Proust, em À la recherche du temps perdu:
Esta articulação assinala a circunscrição
da identidade narrativa no debate ético. A Não serão, acho, meus leitores, mas
propósito da tragédia, Aristóteles examina a os próprios leitores de si mesmos,
importância da relação entre a ação, o agente sendo meu livro uma espécie dessas
e a narrativa. Diz o Estagirita: lentes de aumento, como aquelas
que o óptico de Combray oferecia
A tragédia é representação (mí- a um comprador; meu livro, graças
mesis) de uma ação e se executa ao qual eu lhes fornecerei o meio de
mediante personagens que agem e lerem a si mesmos. (PROUST apud
que diversamente se apresentam, DARTIGUES, 1997, p. 30).14
conforme o próprio caráter e pen- A narração é um processo de identifi-
samento (porque é segundo estas cação do indivíduo e da comunidade, e aqui
diferenças de caráter e pensamen- insistimos sobre seu vínculo com a identidade
to que qualificamos as ações), daí ética, porque não é uma identidade acabada,
vem por conseqüência serem duas isto é, o “si” que se descobre por meio da
as causas naturais que determinam narração deve tomar uma decisão ética, não
as ações: pensamento e caráter; e pode apoiar-se apenas em si mesmo. Esta de-
é por suas ações que são felizes ou cisão ética corresponde ao termo que Aristó-
não. (ARISTOTELES, ano 1991, p.251) teles denominava escolha (proáiresis). Define
o Estagirita a noção de escolha como “um
O caráter constitutivo da identidade desejo deliberado que se refere a coisas que
confere um valor moral às ações. Estas, por dependem de nós.” (ARISTÓTELES, 1973, III,
sua vez, refratam em si a livre manutenção de 5, 1113a 10).
si e sedimentam-se no caráter. Assim, nesta Para Ricoeur, a vida verdadeira, caracte-
dialética, o caráter, de um lado, e a decisão rizada como o resultado da busca de sentido,
ética, de outro, renovam-se e atualizam-se, unidade e coerência das ações individuais por
recíproca e permanentemente, tal como o meio da narrativa, deve se desdobrar em dire-
processo de constituição do hábito que Aris- ção à intersubjetividade e para as relações so-
tóteles atribui à virtude. ciais: “Visar à vida boa com e para o outro em
A identidade narrativa tem a função de instituições justas” (RICOEUR, 1994a, p.211).
mediar a relação entre duas classes de narra- Voltaremos ao assunto adiante.
tiva: história e ficção literária. Reconhece-se,
então, a coesão de uma vida12 (Zusammenhang
13
Do original: “ Sur le trajet da l’application de la
littérature á la vie, ce que nous transportons et
des Lebens) quando narrada. transposon dans l’exégèse de nous-même, c’est cette
A configuração narrativa tem ressonân- dialectique de l’ipse et de l’idem.” (Tradução nossa)
cia em um contexto mais amplo: o da vida 14
“Ils ne seraint pas, selon moi, mes lecteurs, mais les
concreta e cotidiana. Diz Ricoeur que “o tra- propres lecteurs d’eux-mêmes, mon livre n’étant qu’une
sorte de ces verres grossissants comme ceux que
jeto da aplicação da literatura à vida, o qual tendait à un acheteur l’opticien de Combray; mon livre,
grâce auquel je leur fournirais le moyen de lire en eux-
Ricoeur toma emprestado este termo de Dilthey.
12
mêmes.” (Tradução de Constança Marcondes César).

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As filosofias da subjetividade Este “eu” é puro pensamento, isto é, a
As análises de Ricoeur decorrem da as- identidade do sujeito, em Descartes, está des-
piração de construir uma hermenêutica do si. provida da dimensão temporal compreendida
No entanto, para a constituição de um sujeito pela narração e das figuras do sujeito que nor-
ético e configuração desta proposta herme- teiam as reflexões em Soi-même comme un
nêutica, nosso autor examina o confronto en- autre, a saber: o sujeito da responsabilidade,
tre as filosofias do sujeito. Estas filosofias do da interlocução, da narração e da história. É,
sujeito, ou filosofias do cogito, estudadas por em síntese, uma subjetividade hipostasiada,
ele, são as de Descartes e Nietzsche. um “eu desancorado” (para emprestar uma
Para Ricoeur, segundo Danese, expressão do nosso autor) porque se coloca
como reflexão sobre a própria dúvida. Diz Ri-
O prefácio de Soi-Même comme un coeur que “o sujeito que medita aparece sem
autre representa o confronto entre relação com o que chamamos locutor, agen-
Descartes e Nietzsche sobre o esta- te, personagem da narração, sujeito da impu-
tuto do sujeito e prepara a interro- tação moral etc.” (1994a, p.18).
gação do si que deve distinguir-se Daí se conclui que esta proposição, “eu
tanto do Cogito Exaltado quanto existo pensando”, é uma verdade sem valor
do Sujeito Derrotado.15 (DANESE, objetivo. É uma verdade colocada por si mes-
1993, p. 36). ma e da qual, supomos, derivariam todas as ou-
tras verdades, tais como Deus, corpo, matéria,
Ricoeur, com relação ao cogito, insiste a matemática e outras. Todavia, na Terceira me-
sobre o vínculo entre o caráter hiperbólico e a ditação esta ordo cognoscendi é destruída pela
ambição de um fundamento último na segun- instituição de uma ordo essendi, isto é, Deus é a
da meditação de Descartes: “a radicalidade verdade divina e primeira. O cogito, então, per-
do projeto é proporcional à dúvida que não de seu caráter absoluto. Como bem examinou
exclui do regime da opinião nem o senso co- Martial Geroult (apud RICOEUR, 1990, p.19),
mum, nem a ciência, seja matemática ou física esta verdade divina elimina a fonte da dúvida
e também a tradição filosófica” (RICOEUR, hiperbólica, o gênio maligno.
1994a, p.15). A crítica de Nietzsche, mostrada por
Desta dúvida, procede a hipótese do Ricoeur, aparentemente contrapõe-se à am-
gênio maligno que coincide com a figura do bição cartesiana do cogito, assim formulada
grande enganador. Diz Ricoeur que “através nos Fragmentos nachlass (1882-1884; apud RI-
da dúvida eu me convenço de que nada foi, COEUR, 1994a, p.24). Todavia, Nietzsche não
mas o que eu quero encontrar é uma coisa escapa à dúvida que procede da indistinção
que seja certa e verdadeira” (1994a, p.16). entre a mentira e a verdade a propósito de
A fórmula cogito ergo sum exprime, por- sua crítica aos valores tradicionais.
tanto, a certeza do “eu” cartesiano por meio Nestas condições, o “anticogito” não é
de expressões como “eu duvido, eu sou”, o inverso do cogito cartesiano, mas “a des-
associada ao pensar; o duvidar, por sua vez, truição da própria questão à qual se conside-
prescinde do “eu sou”, ou seja, “para duvidar ra que o cogito traga uma resposta absoluta”
é preciso ser”. (1994a, p.25).
Para Nietzsche a linguagem é figurativa,
diz Ricoeur. Assim, não existem fatos, somen-
Do original: “[...] l’apertura di Soi-même comme um
15
te interpretações da realidade e estas sempre
autre rappresenta um confronto tra Descartes e estão sujeitas aos riscos das ilusões.
Nietzsche, che porta sullo statuto del soggetto e
prepara l’interrogazione del sé, che deve distiguersi A hermenêutica do si, proposta por Ri-
tanto dal cogito eccessivo che da um soggwetto coeur, distingue-se, tanto do projeto carte-
sconffitto.” (tradução nossa) siano do cogito exaltado quanto do sujeito fe-

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rido do modelo interpretativo da suspeita de losofia analítica, entre as identidades idem e
Nietzsche. A distinção passa pelo exame do ipse e entre o si e o outro de si. Além disso, as
conceito de atestação e de sua relação com o críticas ao cogito, à subjetividade hipostasia-
de testemunho.16 da, traduzem-se na eliminação das ilusões da
A atestação, segundo nosso autor é: consciência, confiante em si mesma, mascara-
da pela linguagem do desejo, ou daquilo que
uma espécie de certeza à qual a o sujeito pensa ser ou conhecer.
hermenêutica pode pretender não Estas críticas têm por exigência a deci-
somente a respeito da exaltação fração do sujeito, ou seja, o processo de in-
epistêmica do cogito, a partir de terpretação torna possível a manifestação do
Descartes, mas a respeito da hu- ser autêntico, da prioridade do existir sobre
milhação em Nietzsche e seus su- o pensar, do mundo vivido ou o “não dito”
cessores. A atestação parece exigir representado pela intencionalidade anterior à
menos que uma e mais que a outra. busca de conhecimento objetivo. Daí Ricoeur
(1994a, p.33). afirmar que:
Assim, este conceito permanece equi-
distante da imediatez autofundante do cogito Uma filosofia reflexiva que tendo
cartesiano e do trabalho de suspeita proposto inteiramente assumido as corre-
por Nietzsche e exprime, no ser humano, a ca- ções e as instruções da psicanálise
pacidade de narrar, falar e responsabilizar-se e da semiologia, toma um caminho
por seus atos. longo e indireto de uma interpreta-
Ricoeur entende por atestação a afir- ção dos signos, privados e públicos,
mação do si como testemunho, ou seja, o si psíquicos e culturais, onde se ex-
que se manifesta na relação com o mesmo e primem o desejo de ser e o esforço
na dialética com o outro de si. No entanto, a para existir que nos constituem.
dimensão ontológica do si, como dissemos, (RICOEUR, 1978, p. 223).
será tratada convenientemente no capítulo
sobre as implicações éticas do conceito de A identidade narrativa corresponde, en-
identidade narrativa, à luz das contribuições tão, a uma nova formulação ou na complexi-
de Aristóteles, Spinoza e Heidegger examina- ficação da noção de sujeito. Objetiva-se, não
das por nosso autor. somente substituir um cogito por outro, car-
Nesta primeira abordagem do concei- tesiano ou nietzscheano, mas trata-se de uma
to de identidade narrativa concluímos que o hermenêutica do si pela mediação dos símbo-
cogito criticado por Ricoeur põe em questão los da cultura, pelas relações interpessoais e
o primado do sujeito e sua pretensão de au- institucionais, ou seja, por uma via longa.
tossuficiência. “Transcender o ‘eu’ é sempre
conservá-lo e, ao mesmo tempo, suspendê-lo Conclusão
enquanto instância suprema”17 (JERVOLINO Reforçamos, aqui, a tese deste traba-
apud DANESE, 1993, p. 49). lho: a de refletir acerca das implicações éti-
Podemos inferir que a articulação entre cas norteadas pelo desenvolvimento do con-
descrever, prescrever e narrar está entrete- ceito de identidade narrativa, sua vinculação
cida na tríplice dialética entre reflexão e fi- à noção de alteridade, no conjunto das obras
de Paul Ricoeur.
16
Ricoeur toma emprestado este conceito de Jean Nosso autor é congruente em sua filoso-
Nabert, nos primeiros estudos de Soi-même comme fia, na qual o processo de decifração do ser
un autre.
17
Do original: “Transcendere l’io è sempre ritenerlo e
do homem é de fundamental importância no
allo stesso tempo sospenderlo in quanto instanza debate ético-filosófico contemporâneo.
suprema.” (tradução nossa)

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A noção de identidade narrativa, como mento humano é uma ameaça constante à
visto, tem um longo itinerário a percorrer por- própria existência do ser do homem.
que, além das diversas aporias e ambiguida- Podemos inferir que esta ameaça é he-
des que o acompanham, nosso autor adota o rança de um idealismo exacerbado da fórmula
recurso da “via longa”. Esta é a condição para cogito ergo sum. Esta citação pode designar, a
desvelar o ser do homem na experiência vivi- nosso ver, uma inversão de valores, defesa do
da, em sua historicidade e em seu devir. individualismo e da impessoalidade, e acen-
Este método da “via longa” é designado tua, de modo decisivo, a fragilidade do regime
como a função mediadora dos signos e obras democrático.
da cultura exercida neste processo de decifra- As consequências são reconhecidas na
ção do ser humano. Ao contrário, evidente- forma de violência moral, que Ricoeur carac-
mente, da imediatez do “eu” da consciência teriza por expressar a impossibilidade de o su-
pleiteada pelo cogito cartesiano, isto é, de uma jeito agir segundo os critérios estabelecidos
subjetividade “desancorada” que converge pela ética e pela moral.
para a separação entre o mesmo e o outro. Somos forçados a admitir que a impos-
Há uma forma mais direta de tratar as sibilidade de o homem exercer sua ação e,
diferentes asserções referentes ao conceito desta forma, visar a “vida boa”, implica o
de identidade pessoal e narrativa e de pôr em seu sofrimento. Da mesma forma, a impos-
relevo sua estreita relação para com a alterida- sibilidade de usar a palavra, ipso facto, pode
de e o contexto mais amplo das relações insti- expressar uma concepção reduzida da reali-
tucionais: é através das respostas formuladas dade circundante. Assim, este sujeito tolhi-
à questão “quem?”. Em outros termos, é me- do em seu pensar, agir e falar estará à mer-
diante a capacidade de o sujeito poder desig- cê apenas da proposta de ser e existir que
nar-se a si mesmo nas diversas dimensões im- sua interpretação permitiu-lhe vislumbrar.
plicadas no uso da linguagem, a saber: “Quem Em outras palavras, sem esclarecimento, a
é o autor da narrativa?”; “Quem é o autor do tomada de consciência da exploração e da
discurso?”; “Quem é o autor de tal ação?”. violência a que é submetido não é suficiente
Designar-se a si mesmo como autor para permitir uma ação, ou, pelo menos, re-
evidencia o caráter de atribuição de direitos agir de outro modo em determinadas situa-
e deveres a que este indivíduo está sujeito. ções, ou reconhecer-se a si mesmo mediante
Significa a avaliação das ações próprias ou de o outro, o outro como a si-mesmo.
outrem no quadro das exigências éticas e mo- Por outro lado, esse sofrimento pode
rais, isto é, ações “boas” e/ou “obrigatórias”. caracterizar-se pela impossibilidade de agir
Em outras palavras, ainda, significa identificar diante do conflito entre os objetivos pessoais
o responsável pela ação, não apenas no senti- e as promessas oferecidas pelo mundo, da
do de imputação, mas no de cuidado, termo responsabilidade, do compromisso ou da res-
que Ricoeur toma emprestado de Hans Jonas. posta ao outro: “Eis-me aqui”. As promessas
Nestes termos, esta discussão traz à tona do mundo são, aliás, mais abrangentes do que
outras questões e conceitos ampliados e per- o homem pode realizar.
tinentes à reflexão ricoeuriana, mas não abor- É preciso ampliar seus horizontes por
dados aqui diretamente. São os conceitos de meio da questão da identidade narrativa.
responsabilidade, da reciprocidade entre ação O exame do conceito de identidade
e sofrimento humanos e de phronésis. narrativa a que nos propomos, nas obras de
São termos caros à reflexão da vida so- Ricoeur, Temps et récit e Soi-même comme un
cial e política, carentes de uma fundamenta- autre, sugere outros temas, como o da rees-
ção última da ética. Evidentemente, o vazio truturação e complexificação da noção de su-
ético que caracteriza, de certo modo, a con- jeito, da constituição e da hermenêutica do si
temporaneidade e determina o comporta- e, em última instância, de sua dimensão ética.

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Em primeiro lugar, a hermenêutica do si, A insistência sobre a questão do su-
segundo Ricoeur, “encontra-se a igual distân- jeito deve-se à exigência de que ele possa
cia entre a apologia do cogito e sua destitui- dar sentido à sua ação e sua capacidade de
ção” (RICOEUR, 1994a, p.14-15). afirmar-se quando submetido às críticas e às
A identidade pessoal, como vimos, não suspeitas, isto é, o outro. A pretensão do co-
é a consciência imediata do cogito cartesiano, gito como fundação última, ou “posição do
do “eu” imediatamente dado e evidente. Ali- si”, que caracteriza a reflexão cartesiana, é
ás, a mediação dos signos e das obras da cul- problemática.
tura, da crítica das ilusões do sujeito, do des- A certeza do cogito, enunciada no Cogito
vio da reflexão pela análise, tanto da teoria ergo sum, deve sofrer um processo de decifra-
da linguagem, do texto, da ação e da história ção por meio da função mediadora dos símbo-
complexificam a noção de sujeito. los, da cultura, dos mitos, do texto e da ação.
Em segundo lugar, podemos afirmar que Aqui, para Ricoeur a concepção de re-
Ricoeur inscreve-se na tradição filosófica con- flexão tem um alcance mais ético do que
temporânea que assinala uma crítica da subje- epistemológico, isto é, a reflexão é Eros e Co-
tividade ao estabelecer a relação entre ética natus, desejo e esforço. Em outras palavras,
e hermenêutica. Na obra Soi-même comme un estes termos são o denominador comum
autre, nosso autor examina o confronto entre desta compreensão calcada na existência.
o cogito exaltado de Descartes e o cogito fe- Diz nosso filósofo que “a reflexão é apropria-
rido de Nietzsche, colocando a hermenêutica ção do nosso esforço por existir e de nosso
do si a igual distância dessas duas posições. desejo de ser através das obras que atestam
O exame da questão do cogito é im- este esforço e este desejo” (RICOEUR, 1978,
portante porque é o ponto de partida para a p. 325).
reconstituição da noção de sujeito ético, ou Ricoeur examina o problema da identi-
seja, uma nova concepção de homem e, tam- dade narrativa em Temps et récit, na qual afir-
bém, de uma nova racionalidade. Consiste, ma que:
ainda, em
o si do conhecimento de si é o fruto
pôr em questão, de diversos mo- de uma vida examinada, segundo
dos, as certezas do cogito; consis- a palavra de Sócrates na Apologia.
te em mostrar, por diferentes vias, Ora, uma vida examinada é, em
que a consciência de si não pode grande parte, uma vida depurada,
mais identificar-se com a certeza clarificada pelos efeitos catárticos
imediata do eu, com a presença e das narrativas, tanto históricas
a transparência imediata do eu a si quanto fictícias, veiculadas por nos-
mesmo. (CÉSAR, 1998, p. 53). sa cultura. A ipseidade, assim, a de
O cogito é, portanto, representante do um si instituído pelas obras da cul-
voluntário, da intenção, da consciência, ou tura que aplicou a ele próprio. (RI-
seja, é uma subjetividade hipostasiada ou, COEUR, 1997, p.425).
como nos diz Ricoeur, uma subjetividade “de-
sancorada”. Em Soi-même comme un autre, a ques-
tão é retomada de modo mais amplo. É o exa-
O cogito é sinônimo de ilusão, fal- me do si que se desdobra nas relações inter-
sidade, mas este cogito da filosofia pessoais e nas relações sociais reguladas pela
cartesiana foi demolido e humilha- justiça. Apesar da mediação da narrativa, o si
do. O conhecimento imediato não não dá conta da solicitação de uma ação em
mais indica a verdadeira natureza termos éticos, a não ser que se desdobre. Diz
humana, e tampouco a realidade nosso autor que “o si só pode ter estima por si
que o cerca. O homem não é quem se a vida for qualificada boa em cada uma das
acredita ser. (LISBOA, 2000, p. 115). três esferas, não devendo nenhuma ser privi-

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legiada em detrimento das outras”18 (DARTI- rem juntos e no sofrimento. Esta experiência
GUES, 1997, p. 32). narrativa exprime, então, a verdadeira iden-
Em outras palavras, o sujeito ético é tidade da pessoa: “a pessoa é o que ela faz
aquele que se reconhece como autor de suas e o que sofreu”19 (DARTIGUES, 1997, p. 19).
ações e cuja existência e implicações estão É neste sentido que relação dialética entre a
entrelaçadas nas vidas de outras pessoas que, equivocidade dos termos exprime, com vee-
por sua vez, constituem o tecido social e as mência, a conotação ética da obra de Ricoeur.
instituições. Essa interferência de inspiração Na análise dos romances sobre o tem-
aristotélica pode ser transferida, por exem- po em Temps et récit II (RICOEUR, 1984), por
plo, para o contexto problemático dos tem- exemplo, encontramos a ideia do próprio lei-
pos modernos, contribuindo para uma ressig- tor ser sujeito que complexifica sua identida-
nificação do mundo que conhecemos. de, experienciando novas possibilidades de
A hermenêutica do si é o ponto de parti- ser e existir mediante a inteligência poética
da para o devido esclarecimento do conceito no imaginário do texto.
de identidade e, também, o de alteridade. Re- Desta forma, há um aprofundamento
vela-se que sua equivocidade acarreta aporias da consciência do indivíduo em direção a uma
cujas soluções passam, segundo Ricoeur, pelo apreensão mais rica do ser humano, que ele
exame da importância da teoria narrativa. próprio é e que os outros são. A apreensão,
Aqui está o interesse ético-filosófico do no imaginário, de outros e novos modos de
conceito de identidade narrativa e sua vincu- ser, de realizar a existência e, ainda, possibili-
lação à noção de alteridade, a saber: median- tar uma compreensão de si e do outro, da al-
te a narrativa, o sujeito da ação e do discurso teridade em nós e fora de nós. É o que sugere
pode apropriar-se de sua identidade propria- o título da obra Soi-même comme un autre.
Este desdobramento não seria possível
mente ética que exprime a dialética entre a
sem consideração da dialética entre idem e
identidade idem e a identidade ipse.
ipse na narrativa e no sujeito da ação. A ação
Estes termos articulam-se, então, na rela-
tem, portanto, seu sentido ampliado no qua-
ção entre o sujeito e o ato de narrar, isto é, de dro ético que acabamos de descrever. Por-
um lado, na narrativa, temos a questão da per- que, diante das exigências éticas e morais da
manência no tempo que constitui o grau mais intenção à vida verdadeira, a ação do homem
significativo do termo identidade em oposição pode ser lida e interpretada como um texto,
ao significado de identidade ipse, entendida, conforme as análises ricoeurianas em Du tex-
por Ricoeur, como inovação, mutabilidade. Do te à l’action (RICOEUR, 1986).
lado do sujeito, a dialética exprime-se na signi- A ação humana, no quadro de uma ética,
ficação da identidade idem como manutenção transforma o mundo e dá forma à nossa exis-
do caráter, enquanto ipse revela-se pela manu- tência. Isto, de alguma forma, nos conduz à
tenção da promessa dada. reflexão sobre a relação entre ética e estética,
Deste modo, a noção de sujeito ético uma vez que esta dialética põe em relevo os
implica esta relação dialética entre estes dois termos agir, transformar, o belo e o bom, a
usos do termo identidade. Além disso, este inscrição de sua obra no mundo (esta obra é
modelo narrativo permite ao sujeito seguir a a própria vida) e o conceito de felicidade que
história, os registros de sua ação transforma- orienta a ação.
dora no mundo, pela experiência e reconhe- As reflexões de nosso autor implicam a
cimento da alteridade, do outro, do diverso discussão de outros temas, como o da amiza-
de si em instituições justas, na busca de vive- de, da democracia, ideologia, utopia e justiça.
No entanto, neste artigo, estas são apenas
Do original: “le soi ne peut avoir esime pour lui-même
18
sugeridas.
que si la vie est qualifiable de bonne dans chacune de
ces trois sphères, aucune ne devant être privilégiée au
19
Do original: “La personne est ce qu”elle fait et ce
détriment des autres.” (tradução nossa) qu’elle a subi”. (tradução nossa)

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Dados do autor:

Marcos José Alves Lisboa


Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)
Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Docente - Especialização em Direito Público com Ênfase em
Direito Constitucional e Administrativo (PUC-Campinas)

Recebido: 06/05/2012
Aprovado: 25/04/2013

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