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~ssim, nã? ~ d~ se espa~tar qu~ n~una sociedade que p~o~uziu esse
t1po de d1stmçao e de d1ferencmçao, incontremos no ultuno censo
i cento e tanto; tons de cor a partir elos quais indivíduos não-brancos
não se identificam como negros, Há o peso da História por trás desse
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Não! Vamos assumir esses traços que, por essa razão, passa1~1o a ser vistos
como bonitos! Vejam esse cabelo, que pode ser penteado de mil maneiras
diferentes! Vt-iam a cor dessa pele! Afinal de contas, as branquinhas vào à praia
para bronzear-se e tentar ficar da nossa cor. E a roupa que se usa? Vamos
pensar nas roupas: por que nào as coloridas? Na América, é cool, é bem a
gente vestir ton-sur-ton. Na África não há ton-sur-ton, a gente anda vestida
com uma variedade de cores, com uma infinidade de desenhos. Por que,
então, não vamos assumir que essas coisa~ são bonitas?
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uma política para a juvenniCie pobre neste país, basta pegar a letrJ dos
funks desses meninos que aí se encontrará todo um programa político.
Pois através de sua música, esses jovens estão afirmando a sua condição
de negros, pobres e discriminados, e sua postum realmente de oposição
ao sistema inteiro, que os condena a viver nessa posição. Se souberem
prestar atenção, perceberào que eles estão afirmando: ''Eu sou mais eu"
e ''Estamos aqui parJ afirmar nossa reivindicação de um lugar ao sol nessa
sociedade. Não é para pedir, é para dizer ao que viemos''.
Chamo essas galeras de quilombos modernos, porque esses meninos
têm uma capacidade extrJordinária ele se reunir a partir da simples
chamada de um disc-jóquei: juntam-se dois mil, três mil, em menos de
uma horJ. Se alguém disser "Venham com uma rosa bmnca na mão!",
eles vêm; se disserem "Venham de camisa cor de maravilha!", eles vêm.
Vêm, marcam presença num happeninl{. deixam seu recado com toda
clareza e se dissolvem na massa anônima da grJncle metrópole, para se
refugiar depois nas periferias pobres onde nascerJm. Sào guerrilheiros
urbanos, são os novos quilombolas dos tempos que correm. Entretanto,
a identidade étnica que se afirma aí é incompreensível sem esse con-
texto, sem essa dinfunica da sociedade moderna, e sem essa vigorosa as-
serção política de identificação que exige o reconhecimento daquilo que
os distancia e os diferencia dos outros.
Enfim, quer estejamos falando no plano psicológico quer no social, indi-
vidual ou coletivo, a identidade significa, na verdade, um recorte num
jogo de identificações, que vai permitir a um determinado grupo reco-
nhecer-se e ser reconhecido pelas carJ.cterístícas que o identificam e que
o distinguem dos demais. Segundo essas categorias ele se identifica, e é
pelos outros identificado. É nesse jogo de espelhos que a sociedade per-
manentemente inventa e reinventa novas identidades e que a questão
racial, que se trJnsfom1ou em questão étnica, hoje é essencialmente uma
questão política, uma questão de afirmação de direitos daqueles sobre
os quais, numa sociedade como esta, 400 anos de patrimonialismo e pelo
menos 300 anos de escravidão deixaram marcas profundas. E ainda hoje
precisamos lutar para, primeiro, fazer com que elas sejam percebidas, se
tornem visíveis e, depois, para termos condição de, opondo-nos a elas,
lutarmos com todas as forças para que elas se apaguem. Notem, porém,
que, mais do que a nós, essa tarefa cabe efetivamente àqueles que já a
encamparam, isto é, às vítimas desse sistema discriminatório, que iden-
tifica negativamente a mça e a origem étnica, tornando o diferente infe-
rior. Cabe a eles, sobretudo, lutar, e já o estão fazendo: estão afirman-
do com toda a clare7.a e a força necessária a evidência da sua identidade
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Debate
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Creio, portanto, que é uma revisão geral da sociedade brasileira que pre-
cisa ser feita, dentro de nós mesmos e nas nossas in!>tituições, para evitar
que justamente essa inteligência, que é marca de uma identidade nega-
tiva, só se mostre pelo seu avesso, pelo crime. E isso diz respeito não
apenas ao negro, mas à maioria da população pobre deste país, que por
acaso é negra, numa sociedade que carrega a herança de 300 anos
de escravidão. Assim, acho que você está coberto de razão.
Maria Lúcia: Creio que isso tem a ver com o peso da história deste país.
O professor Francisco Weffort, que agora que se tornou ministro da
Cultura está preocupadíssimo com a identidade nacional, descobriu de
repente que há um boi-bumbá lá em Parintins, porque Joãosinho Trinta
o levou até lá para ver. Começou a descobrir, como nós todos que
estávamos na USP e nos acostumáramos a ver o resto do Brasil de longe,
que há urna extraordinária diversidade cultural neste país, e que tentar
pensar a identidade nacional nbs obriga a vê-lo de uma perspectiva mais
ampla, não apenas a partir de~es centros onde estão os pólos dinâmi-
cos da economia. Veja São P::t~o: se você não quiser saber que existem
outros universos culturais seriâo o da Universidade ou dos imigrantes
bem-sucedidos que vieram para cá, é só não ir até as periferias pobres
que cercam a metrópole, para você imaginar que o Brasil já chegou ao
século XXI.
Mas o que está recalcado por trás desse divórcio? Há uma história com-
plexa que, entre outras coisas, compreende COlllO elemento essencial
uma herança da escravidão que - sem querer n,e'gar de modo algum sua
barbárie e seu horror, que são os mesmos em toda parte - tem pecu-
liaridades que são muito próprias deste país. Pensem na questão do
branqueamento, que a professora Lilia já cómentou com vocês. Fiquei
estarrecida quando comecei a descobrir a.c;Iuan,t!dade de homens ilustres
que, em plena sociedade escravocrata, eram negros e, depois, quando
descobri que há uma quantidade enornJ peruas em São Paulo que têm
o nome deles. Vejam, por exemplo, a avenida Rebouças - quem sabe
que Rebouças foi negro? Teodoro Sampaio - quem sabe que Teodoro
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Sampaio era negro? E o que fazer com Machado de Assis, que era
mulato e que, à medida que foi tendo sucesso, foi mudando de cara nas
imagens, até finalmente ficar branquinho, com o cabelinho meio
crespinho? E Castro Alves, o que fazer com ele, que branqueou de vez?
O que fazer com Cruz e Sousa, que ninguém nesse país sabe que é negro?
O que fazer com essa quantidade de pessoas que, porque foram bem-
sucedidas, branquearam, desapareceu-lhes a cor? Estou tão perturbada
com essa questão que, quando vejo rua com nome de gente, minha
brincadeira agora é perguntar: "De que cor é essa rua?".
Na verdade, sob a escravidão, houve um legado extraordinário à
sociedade brasileira de homens negros ilustres. Isso é um supremo
paradoxo, pois, a partir do momento em que, logo após a Abolição, a
República declara a liberdade e a igualdade de todos os homens, re-
conhecendo todos como cidadãos, com direitos iguais frente à lei, a so-
ciedade brasileira vai deixar esses novos cidadãos por conta própria, ou
por conta das vicissitudes do mercado de trabalho e de um processo de
desenvolvimento comandado por uma elite oligárquica, que mono-
poliza o Estado como sua propriedade privada - constituindo o Estado
"patrimonial burocrático" de que fala Raymundo Faoro. E é então que a
maioria dessa população de origem escrava, negra ou mestiça, é efeti-
vamente jogada na marginalidade e na clandestinidade, tomando-se
praticamente invisível.
Creio, assim, que tocar na questão da identidade obriga a repensar a
questão racial e pensá-la junto com a questão da extraordinária injustiça
social vigente neste país. Portanto, creio que é urna questão crucial para
o Brasil, mas é uma questão que, como várias outras que doem, preferi-
mos relegar aos porões ou botar uma pedra em cima, enquanto a socie-
dade for o que é e não mudar a correlação das forças sociais em presença:
isto é, enquanto os discriminados e injustiçados, como grupos organiza-
dos, não forem reivindicar sua cidadania e enquanto nós próprios, que
somos os privilegiados dessa ordem social, não nos dispusermos a de-
nunciar aquilo que está na base dos nossos próprios privilégios. Até lá,
a questão da identidade, por mais crucial que seja, vai ficar soterrada em
um passado que gostaríamos de varrer para debaixo do tapete, porque
é extremamente feio e continua plenamente vigente, ainda hoje, nas
suas conseqüências nefastas para a sociedade brasileira.
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Maria Lúcia: Creio que isso tem a ver com a natureza desta nossa
sociedade que, como demonstra Roberto DaMatta, é complicada, porque
o tempo todo oscila entre uma lógica que trata os brasileiros como indi-
víduos e outra que os considera enquanto pessoas. Claro que somos
todos iguais, mas há uns que são mais iguais que os outros. Quem é
mais igual são aqueles que são capazes de demonstrar que estão inseridos
numa certa rede de relações sociais: "Eu sou amigo do parente do conhe-
cido de alguém importante". Essas são as pessoas. E as solidariedades
verticais que assim se formam, nessa organização hierárquica da socie-
dade, tornam muito mais difícil a formação de solidariedades horizon-
tais entre iguais, o que se toma possível a partir do momento em que
todos são considerados indivíduos iguais e livres.
Eu diria que a mesma razão que impediu que Benedita fosse eleita impediu
que o Lula fosse eleito, no ano em que a sua campanha tinha como
slogan: "Um brasileiro igualzinho a você". Mas quem quer votar num
brasileiro igualzinho a si próprio? Se ele sabe que é um pobre coitado
na vida, e que as formas de ter prestígio e poder correm por conta das soli-
dariedades verticais que o fazem entrar numa rede de relações em que
ele se torna pessoa, alguém, e não um mero indivíduo - um sujeitinho,
ou cidadão, como diz a linguagem policial? Quem vai querer enfiar-se
dentro de uma lógica da individualidade igualitária, que pressupõe a for-
mação de redes de sociabilid~de e de solidariedade horizontais, numa
sociedade em que o que vaft é ser amigo do rei? Creio, então, que
não se trata apenas da discri~nação do negro contra o próprio negro;
trata-se da discriminação do ~bre contra o próprio pobre, que se deve
à natureza desta sociedade. )
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foi tirado do ar, sob o argumento de que não era comercial. O pessoal do
rap está fazendo abaixo-assinado para conseguir apoio para que o pro-
grama volte. É muito simples dizer que esses caras são alienados. Acon-
tece que a opção de música que essa moçadinha faz não é de consumo
no país. Outra coisa: existe toda uma discussão sobre rap e samba. O
pessoal do rap tem urna visão de que o samba é totalmente alienado, sub-
misso, vendido, é coisa de passar na televisão, na Globo. Hoje, infeliz-
mente, se vê isso nas rádios e quase não se consegue achar samba que
preste. Há urna juventude contra essa velha-guarda, que vê que o samba
é algo vendido. Eu não compactuo totalmente com isso, mas o samba de
São Paulo hoje é uma porcaria, um lixo, de se jogar fora. E para encerrar,
o que acho muito estranho é que, quando a juventude negra escolhe o
funk ou o rap, incomoda, mas o rock não. Temos quatro festivais de rock
no país, lotados, as televisões dão a maior cobertura, patrocínio de Minis-
ter, Philipps, Continental, e isso não incomoda; não é alienação, não é jo-
gada de vendagem, não é nada. Agora, quando o negro vai buscar fora
uma expressão cultural, ele está alienado, não tem consciência! Assim não
dá! Por favor, deixa a negadinha escolher o que eles bem entenderem!
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quando vejo. E o rapé chato, e o rock não. Eu estava falando dos gestos,
mas acho que também certos elementos musicais têm esse tipo de
permanência e, no caso da música popular brasileira, grande parte do
seus padrões rítmicos é uma herança africana no Brasil. Meus amigos
etnomusicólogos me explicaram que se tomarmos o padrão rítmico e o
time line - que é o tempo que o padrão demora até voltar a repetir-se
- na música africana, da África mesmo, e nas mais variadas formas de
manifestações culturais de origem negra no Brasil, percebe-se que certas
estruturas são iguais.
Não é por acaso que Lévi-Strauss estudava mito e parentesco como as
linguagens por excelência nas quais se pode ver a permanência das
estruturas. Eu diria que a linguagem corporal e certas estruturas rítmicas,
certos padrões musicais, são lugares onde se pode perceber uma per-
manência maior da cultura e a longa duração da História. É uma
permanência que talvez não seja eterna, mas que tem padrões mais está-
veis do que o resto da cultura - por exemplo, do que as linguagens
verbais, faladas, que são muito mais envolvidas na dinâmica da vida social.
É nesse ponto que a professora Lilia e eu temos alguma divergência. Ela
acha que essas estruturas também se transformam com o correr da
História, enquanto eu, ao contrário, penso que elas permanecem mais
do que ela gostaria. Já discutimos muito, mas ainda não chegamos a uma
conclusão a respeito.
Agora, quanto à permanência de padrões culturais negros na cultura
brasileira, e que estão no samba e não no rap, ela ocorre via diáspora,
como já mencionei, e por toda a lógica da dinâmica cultural. Mas se me
perguntarem o que é mais rico musicalmente, isso já é outra coisa. Não
gosto de rap porque acho chato, mas se me botarem na frente de um
gmpo de batuqueiros, fico lá pela madrugada afora e choro de alegria,
porque eles são um deslumbramento. Aquelas negras velhas - que
fazem parte dessa velha-guarda chata, babaca, etc., na versão politica-
mente correta elo movimento negro - conservam uma tradição e uma
história que, se fôssemos realmente voltar às raízes africanas, devíamos
ir até lá e beijar as mãos dessas senhoras sábias, que guardam no
corpo e na memória elementos de uma cultura que esta sociedade per-
manentemente insiste em negar. Não apenas porque não é comercial;
é porque é o outro lado da lua, é uma outra civilização: é o avesso do
avesso do avesso do avesso.
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Maria Lúcia: Não sei se é um falso problema, e não creio que tenha ten-
tado dizer que é um falso problema. O que procurei dizer é que não vejo
nenhuma incompatibilidade entre as duas coisas, porque são movimen-
tos simétricos e complementares. Quanto mais a informação se globa-
liza no pólo da emissão - para falar numa linguagem da comunicação -
mais no pólo da recepção ela é re-signíficada dentro do contexto. Creio
que isso não reduz a questão a um falso problema, mas mostra uma
complementaridade entre processos que só na aparência são paradoxais.
Ou seja, quanto mais a cultura aparentemente se homogeneiza nesse
processo, mais ela, simultaneamente, se particulariza e assume carac-
terísticas locais específicas. Creio que este é um paradoxo na aparência,
o que não faz dele um falso problema.
Referências bibliográficas
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