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“ELA SUPORTAVA”: A SOLIDÃO TECIDA NO CONTO TENTAÇÃO, DE

CLARICE LISPECTOR

Ana Paula de Oliveira Silva


Kely Caroline Santos da Silva

Resumo: o presente trabalho analisa estratus discursivos referentes à temática


solidão no conto Tentação, de Clarice Lispector, partindo das relações que se
estabelece entre o discurso literário e o discurso filosófico. Buscamos compreender
e interpretar como o referido texto configura tecidos que metaforizam a solidão,
sentimento e condição humana que atravessa o íntimo da protagonista –
personagem sobre quem nosso olhar se centra – e, consequentemente, os textos
filosóficos. Para isso, desenvolvemos um estudo analítico-interpretativo, de caráter
bibliográfico e de abordagem qualitativa para uma maior compreensão e
aproximação do nosso objeto. Para tanto, fizemos uso das concepções de alguns
teóricos como Nietzche (2008) e Paz (1980) para discutir sobre a temática solidão,
Cândido (1997) para basear nosso estudo sobre a personagem entre outros. Este
estudo nos permitiu perceber que a solidão que atravessa o íntimo da personagem
se configura na sensação da menina de sentir-se diferente dos demais, sendo essa
condição também percebida no espaço. Além disso, observamos que como fuga
desse sentimento a menina deixa transparecer a necessidade do outro como forma
de se entender e se situar no mundo.

Palavras-chave: Tentação; Literatura e filosofia; Solidão; Personagem.

1. INTRODUÇÃO

Debruçam-se sobre o estudo da solidão diversos pesquisadores das mais


várias variadas áreas do conhecimento, seja a filosofia, a psicologia, a sociologia, a
psicanálise, todos apresentam e exploram a solidão humana a partir de diferentes
perspectivas e dão a essa condição concepções distintas, uma vez que
compreendemos, primeiramente, que a solidão se trata de uma condição universal.
Porém, no texto de Clarice para se ler a solidão, temos de atinar que a narrativa é
geradora de uma experienciação pontual acerca desse sentimento, e isso quer dizer
que embora saibamos que ela possua ocorrência universal - por ser a solidão
coletiva - sua forma de escrever a solidão é significativamente específica, pois faz
referência a um determinado lugar.
Mas, o que entendemos por solidão? É isolar-se do outro e do mundo? É um
sentimento indesejado e doloroso? Poderíamos colocar aqui as diferentes visões
que existem a respeito desse sentimento tão nosso, dessa condição universal e
primaria do indivíduo, que ronda toda a existência, independente da época, da
pessoa

Nosso intuito é destacar o sentimento de solidão que atravessa a vida da


personagem
Centrando nosso olhar na personagem,
Completudo para fugir da solidao que ronda a existência humana

Esta análise se faz significativa tanto pela riqueza literária da obra-objeto de


estudo, quanto pelo caminho hermenêutico-existencial que desdobra, fazendo vir à
tona reflexões de cunho filosófico, tecidas ficcional e pluridiscursivamente, que
possibilitam traduzir subjetividades e sensibilidades também comuns ao humano de
qualquer época. Esta pesquisa, de caráter bibliográfico, apoia-se nas contribuições
de Mikhail Bakhtin (2011) e Dominique Maingueneau (2006), no que se refere à
teoria do discurso literário; em Paul Ricoeur (2005), quanto à natureza, configuração
e interpretação do texto literário; por fim, as concepções de Friedrich Nietzsche
(2009) referentes à temática abordada neste estudo, tendo em vista escavacar
sentidos nos tecidos do romance, por meio de uma produtiva interdiscursividade
entre literatura e filosofia, que aponta o texto literário como um limbo metafórico-
filosófico.

2. DISCURSO LITERÁRIO E FILOSÓFICO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS TECIDOS


NA FICÇÃO CLARICEANA

O homem sempre buscou compreender a si mesmo e o seu mundo através


da arte, essa que tem a capacidade de transfigurar o real, nos possibilitando fazer a
leitura e a interpretação de tudo que acontece a nossa volta por causa dos sentidos
evocados por ela. A literatura, enquanto arte que recria/reconfigura o real como
ressalta Paul Ricoeur (2005), assume esse papel, nos conduzindo à essa
compreensão e a diferentes reflexões sobre a vida, sobre questões humanas e suas
relações, através dos elementos que a compõe como personagens, narrador,
enredo.
Tudo isso só se torna possível porque um texto literário projeta um mundo,
não um mundo propriamente dito, mas um constituído por meio da linguagem e que,
consequentemente, se organiza de discursos. Paul Ricoeur (1989) compreende que
o indivíduo, ao proferir discurso, exprime-se, e da mesma forma um texto, entendido
como um discurso fixado, representa, exprime e descreve um mundo. Para o
filósofo, um texto carrega um conjunto de signos que portam significados, ele diz
algo acerca da realidade.
Por causa disso, precisamos nos atentar para a teoria do discurso, uma vez
que como nos assegura Bakhtin (2002) nenhum discurso é neutro, mas carrega
intenções de outrem. Nessa mesma perspectiva, José Fiorin (2011), a partir da
concepção de Bakhtin, aponta que:

[...] O enunciador, para constituir um discurso, leva em conta o


discurso de outrem, que está presente no seu. Por isso, todo
discurso é inevitavelmente ocupado, atravessado, pelo discurso
alheio. O dialogismo são as relações de sentido que se estabelecem
entre dois enunciados. (FIORIN, 2011, p. 13)

É partindo dessa concepção podemos afirmar que o texto literário é


repositório de saberes. No interior do discurso literário podemos encontrar outros
discursos que se materializam, assumindo, assim, um caráter dialógico. Dada essa
informação, quando voltamos nosso olhar para o conto Tentação, vemos a
possibilidade de fazer uma leitura partindo do diálogo que o texto de Clarice
estabelece com os saberes filosóficos, para se pensar a solidão.
Reconhecemos que um texto literário nos permite filosofar, ele tem a
capacidade de nos fazer refletir e meditar sobre diversas questões, por meio dos
sentidos atribuídos pelo autor e leitor. Nos textos de Clarice Lispector tal atividade se
torna plausível. A autora, em quase todas as suas produções, escreve um mundo
em volta de uma atmosfera existencial da qual insere seus personagens, nos
levando a refletir sobre a condição humana, suas angústias, seus medos e
sentimentos, dos quais podemos destacar a solidão.
Em Tentação, não temos o simples relato de uma garota ruiva indiferente ao
mundo, entristecida com sua diferença, para além disso, o conto demarca situações
humanas, implicitamente, nas suas entrelinhas, se tece uma atmosfera existencial
que demarca questões complexas do humano. Temos acesso aos problemas
existenciais do homem, a sua solidão. A solidão de ser diferente do mundo que nos
cerca. Podemos dizer que fazer literário de Clarice se tece a partir de um discurso
filosófico, sua ficção revela uma temática marcadamente existencial, pois escrever e
existir se entrelaçam, assumindo uma mesma atividade (OLIVEIRA, 1988).
Não é de nosso interesse apontar e dizer que Clarice foi influenciada por
filósofos e trouxe uma concepção sobre a solidão com base nas teorias de alguém
pondo-as no conto, pois compreendemos que a necessidade vital da escritora está
mais para o desejo de compreender a si mesma e o mundo que a cerca, do que a
preocupação “propriamente intelectual de defender esse ou aquele sistema, essa ou
aquela idéia filosófica” (OLIVEIRA, 1988, p. 70), o que queremos colocar aqui é que
a própria Clarice concebe de forma singular um conhecimento sobre a solidão.
Por meio dessa aproximação entre filosofia e literatura, que podemos
estabelecer diálogos entre o fazer literário de Clarice e os saberes filosóficos,
levando em consideração que ambos podem se diferenciar, em termos
epistemológicos, quando levamos em consideração também que a filosofia “busca
no ser e no homem o elemento de universalidade, válido, em princípio, para a
totalidade das contingências do existir” (OLIVEIRA, 1988, p. 69) enquanto a função
de um texto literário é captar o mundo como ele pode ser. Um mundo que não
corresponde a uma linguagem cotidiana, mas a uma linguagem poética que não tem
compromisso com a realidade absoluta, contudo, recria o real e traz novas maneiras
de ser-no-mundo (RICOEUR, [s.d]). Por outro lado, se aproximam, pois elas nos
induzem a refletir sobre o homem, o mundo, nossa existência, cada uma a seu
modo, artisticamente e cientificamente. Assim sendo, a filosofia não precisa se
transformar em poesia para poder refletir sobre a alma, nem a literatura precisa da
filosofia para expressar suas ideias.

3. SOBRE A AUTORA E O CONTO EM ESTUDO

Segundo Afrânio Coutinho (1976) Clarice Lispector está entre os principais


escritores representantes da terceira fase modernista, geração de 1945. Criadora de
uma literatura intimista e introspectiva (BOSI, 2015) seu fazer literário se caracteriza
pela incorporação dos elementos poéticos, como o uso constante de figuras de
linguagem. Clarice trouxe inovações à literatura brasileira ao dar aos seus textos
características peculiares, “sua experiência estética [...] entende renovar por dentro
o ato de escrever ficção” (BOSI, 2015, p. 441). Essa inovação pode ser vista em
suas personagens que transitam em um espaço/tempo nada linear. Clarice se
apropria da técnica do fluxo de consciência e do monólogo interior para centrar-se
no íntimo de suas personagens, fazendo com que o leitor leia/visualize os conflitos
que se passam em cada uma.
Clarice tratou de vários assuntos em suas obras, quase todos ligados às
figuras femininas. Ela se compromete em expor, principalmente, os desejos, os
medos e as angústias das mulheres; tratando de assuntos existenciais provocando
inquietação em seus leitores. Segundo a apresentação que está posto no livro A
hora da estrela (1998), feita pela professora Clarisse Fukelman, Clarice Lispector foi
taxada como uma escritora complexa, que causava estranhamento em seus leitores,
talvez pela profundidade de sua escrita, exigindo de nós muita atenção e
flexibilidade.
Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 10 de dezembro de 1920, porém,
veio morar no Brasil, especificamente em Alagoas, com sua família aos dois meses
de idade e se naturalizou brasileira. Mudou-se em 1924 para o Recife, onde passou
toda a sua infância e adolescência. a escritora casou-se aos 23 anos de idade e teve
dois filhos: Pedro e Paulo Gurgel. Por ser diplomata, Clarice residiu em muitos
países, vindo viver definitivamente no Brasil somente em 1959, mesma época do
seu divórcio. Em 1977, Clarice morre de câncer, um dia antes de seu aniversário.
Desde cedo Clarice envolveu-se com a escrita, mas só teve sua primeira
publicação em 1944, estreando no mundo da literatura com o romance Perto do
coração selvagem. Através desse livro, Clarice se destacou, pois trouxe algo de
inovador à literatura brasileira, “pela capacidade de elevar a descrição das coisas e
dos estados de espírito a um nível radioso de expressividade, como se dos fatos
mais simples brotasse a cada instante o indefinível” (CANDIDO, 1999, p. 91). Seu
estilo literário é singular, sua forma de escrever encanta seus leitores.
Os elementos das narrativas de Clarice, como enredo, personagem, tempo e
espaço ganham novos significados. O enredo não segue a estrutura tradicional,
início, meio e fim, ele é quase sempre psicológico. Tempo e espaço também não
seguem linearidade nem mesmo exerce influência sobre as suas personagens. Se
tratando dessa última categoria: as personagens, podemos dizer que elas são
complexas. Quase sempre são figuras femininas que têm seu psicológico explorado,
nos abrindo a oportunidade de lermos e conhecermos os sentimentos mais
profundos que constituem e que move cada uma delas, sentimentos humanos, que
fazem parte de toda nossa existência, como medo, amor, desespero, solidão.
Como nos diz Antonio Candido (1999, p. 91) “A força desta escritora parece
estar na capacidade de manipular os detalhes, que vão se juntando para formar a
narrativa e sugerir o mundo, sem que haja necessidade de uma estruturação
rigorosa”, o que a faz ser inconfundível. Clarice tem uma vasta produção composta
por diferentes gêneros voltados tanto para adultos quanto para crianças, são
romances, novelas, crônicas e contos, que entre os quais podemos citar: O lustre
(1946), A paixão segundo G.H (1964), A bela e a fera (1979), A hora da estrela
(1977), Um sopro de vida (1978) e Felicidade Clandestina (1971) livro que contém o
nosso corpus de análise: o conto Tentação.
Como comentado, Tentação está inserido no livro Felicidade clandestina.
Essa narrativa se constitui de um enredo simples que trata de um acontecimento
aparentemente comum do cotidiano de uma pessoa. Conta a história de uma
menina ruiva, sentada nos degraus de sua casa as duas horas da tarde. Essa
menina, que constantemente soluça, segura uma bolsa velha de senhora, com alça
partida e apoia o queixo em sua mão. Em um certo momento, um basset se
aproxima dessa garota, ambos olham-se profundamente, como se desejassem-se.
Porém, logo esse cachorro vai embora, sem olhar para trás, deixando a menina
desolada.
Este conto nos aparenta não ter tanta significância, pelos acontecimentos
aqui narrados. Parece ser uma simples história de criança, contudo, é a partir desse
“simples conto” que notamos a ressonância e a constituição de um drama existencial
que se configura no íntimo da personagem, sensação e conhecimento que se
mostra implícito, aspectos tecidos nas estrelinhas do texto e certamente na
caracterização da menina ruiva, nos levando a refletir sobre diferentes questões e
sentimentos que transpassam a vida humana, como a solidão.

4. “ELA SUPORTAVA”: A SOLIDÃO TECIDA NO CONTO TENTAÇÃO

Antes de adentrarmos no conto escolhido para estudo faz-se necessário


tecemos algumas considerações em torno da temática solidão. A solidão não se
trata de um assunto novo, ela existe desde a origem humana, é um sentimento e
uma condição universal que para uns tem um sentido positivo, enquanto para outros,
negativo. O significado mais comum que temos sobre a solidão, segundo o
dicionário online de Português, é que ela representa o “estado de quem está só,
retirado do mundo ou de quem se sente desta forma mesmo estando rodeado por
pessoas; isolamento: os encantos e as tristezas da solidão”. Diante dessa
conceituação, de modo geral, podemos dizer que a solidão se concretiza quando um
indivíduo sente-se vazio por estar só, longe de seus semelhantes.
Porém, não podemos limitar a solidão há esse simples fator, pois a sensação
de falta também pode surgir quando se está entre pessoas queridas recebendo
amor e atenção. Um indivíduo pode sentir-se só independente das situações
externas, sendo assim, vemos que há uma diferença entre “estar sozinho” e “sentir-
se sozinho”. Por outro lado, a solidão se manifesta com o afastamento social do
indivíduo. Esse, por sentir-se excluído ou rejeitado, decide se isolar socialmente das
pessoas.
Para Nietzsche (2008) a solidão está muito ligada a individualidade humana,
em sua concepção, preservar a individualidade é uma forma de cultivar a nossa
identidade. O filósofo diz: “Preciso, porém, da solidão, quero dizer, da cura, do
retorno a mim, do sopro de uma brisa solta e que suavemente se agita... Todo o
meu Zaratustra é um ditirambo à solidão [...] (NIETZSCHE, 2008, p. 22). Nietzsche
cultua a solidão. Para ele estar só é gozar de sua própria companhia, é saber
desfrutar do seu eu, dar de frente com sua própria consciência, é ter um encontro
consigo mesmo para trabalhar o autorreconhecimento.
A solidão como “cura do retorno a mim” promove aceitação de si, o amor
próprio, uma vez que muitas pessoas evitam olhar para dentro do seu eu com medo
de encarar seus temores e angústias, não suportam-se. Nesse sentido, é vantajoso
estar só, pois essa condição nos ajuda a revigorar nossas energias, a valorizar
nossas escolhas e decisões, a ponderar as opiniões alheias.
Se pararmos para pensar um pouco, voltando nosso olhar para a cultura
ocidental, observaremos que o homem passou muito tempo sob a ordenança de
viver em grupo, de enxergar na coletividade o sentido para sua vida e a razão de
sua existência. porém, quando o indivíduo ver a esfera política de sua vida de agir
em conjunto sendo suprimida, ele entra em estado de choque, pois vê sua
identidade, fé e existência sendo questionada. Ao ter essa ruptura com o que até
então lhe servia de “verdade”, sofre com a experiência da solidão, uma vez que:
[...] todo desprendimento provoca uma ferida. Não indagando como, nem em que
momento se produziu esse desprendimento, devo notar que qualquer ruptura
(conosco mesmo ou com o que nos cerca, com o passado ou com o presente),
origina um sentimento de solidão. (PAZ, 2006, p. 60)

Além disso, Paz (2006) compreende que a solidão muita das vezes está
relacionada à sociedade autoritária, massificada; que quer impor suas “verdades” e
projetos fazendo com que os seres ajam em conjunto em prol de um bem comum,
desconsiderando o que o povo pensa de si mesmo; imposições sociais advindas de
quem detém o poder, transformando o homem em um ser perdido e só.
Com base nessa discussão, mediante as faces que essa condição humana
possui, de forma didática, resumimos que ela pode brotar de uma opção própria, em
que o indivíduo por si só, decide se afastar do convívio social; de uma situação
forçada, que ocorre quando o homem tem que lidar com a homogeneidade social
(sendo obrigado a negar sua individualidade), quando há desleixe do estado para
com a população ou quando é preciso se isolar por conta de uma pandemia. Temos
também a solidão provocada pela falta de afetividade amorosa, e a que está
relacionada a doenças emocionais.
A partir desse panorama geral sobre a solidão, voltamos o nosso olhar para o
conto Tentação. Em Tentação, Clarice Lispector não expõe explicitamente a
temática solidão, nem dá a sua personagem o direito de fala para expor os seus
conflitos. Acessamos a solidão que atravessa a vida da garota ruiva por causa da
forma como o cenário está descrito e por causa da linguagem metafórica e figurativa
que revela-se bastante introspectiva e intimista, explorando o psicológico da
personagem e seu drama íntimo.
Contudo, uma coisa é certa afirmar: “nos distinguimos uns dos outros pela
maneira como lidamos com a solidão [...] dependendo do modo como interpretamos
a origem de nossa existência” (LESSA, 2016, p. 23).
O cenário reflete o estado de espírito que vive a menina, ela sente desejo de
se encontrar, de se amparar e de se sentir completa.
Tentação faz parte da coletânea de contos que estão agrupados no livro
intitulado como: Felicidade clandestina, publicado em 1971. Inicialmente foi
publicado em A legião estrangeira 1964
O texto se constitui a partir da voz de um narrador onisciente que conta a história de
uma menina ruiva que está sentada nos degraus de sua casa em um dia de muito
sol. Essa menina se sente diferente dos demais, pois residia em um mundo de
morenos, só ela era ruiva. Mas de repente ela se depara com um cachorro que tem
a mesma cor de seus cabelos, nesse momento, ambos se olham e conseguem
encontrar-se/completar-se no outro.
Tendo como temática solidão, o conto retrata esse sentimento como uma condição
inerente do homem. A condição da menina ruiva é de um sujeito solitário, e essa
condição está ligada a sua diferença. O conto, reflete bem essa condição. Os
elementos, a discrição do espaço, o psicológico da personagem simbolizam
claramente essa situação.
Todo o cenário se constitue solitário. Começando pela descrição inicial.
Rua vazia, ninguém na rua, apenas uma pessoa inutilmente esperando um bonde.
Ao usar o termo inutilmente, podemos concluir que o fato de ter uma pessoa próxima
da menina não lhe tirava a sensação de estar só. presença da pessoa era inútil, a
solidão sentida quando se está acompanhada. Mesmo com a presença daquela
pessoa, a menina se sentia só o vazio tomava conta do seu eu.
A menina estava com soluço.
A cor vermelha, cabeça flamejante, pedras vibravam de calor – ambas a colocações
figuram sentidos denotativo e conotativos, referem-se a fenômenos comuns, estado
resultante do sol que te, mas remete-se a cor vermelha. A cor vermelha representa
guerra, conflito, sangue. Cor viva, fogo. Dicionário de símbolos.
Elementos que simbolizam solidão (pedra, vazio,
“E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de
momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão.” A
imagem da menina reflete a imagem da estátua do pensador. A menina estava
mergulhada em seus pensamentos, o soluço, que aqui representa a

O soluço da menina evidência sua inquietação interior. São como pensamentos


intrusos que a persegue e que a atormenta seu eu. A interrompia de que?

A menina sente-se estrangeira em seu mundo exterior e interior, ela se entende e se


encontra no mundo ser-no-mundo a partir do contato com o cachorro.

5 “A SUA OUTRA METADE NESTE MUNDO” OU A FUGA DA SOLIDÃO


Sentir-se incompleto tem tudo a ver com a solidão. O fato de me sentir só no
mundo pode gerar em mim vazio e sensação de angústia, o que me faz acreditar
que a solução seria encontrar no outro o que preciso. São muitas as pessoas que
acreditam que para sentirem-se completas, se constituírem como alguém, precisam
encontrar “sua outra metade”, essa que pode estar relacionada a uma pessoa, a um
objeto e, até mesmo a um animal, como no caso conto aqui analisado.

Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um


irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo
quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na
figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua
fatalidade. Era um basset ruivo. (LISPECTOR)

Nesse fragmento, percebemos que o conflito da menina é interrompido


quando ela se depara com um basset, o contato com o cachorro ruivo lhe desperta
um encontro consigo mesmo, a garota enxerga no animal a sua outra metade, “ali
estava a solução para a criança vermelha” (LISPECTOR). A solução de seu vazio
existencial. Nessas palavras do narrador, temos a compreensão que a garota sente
necessidade do outro para se entender e se situar no mundo. Não há a
compreensão de que sou completa sozinha, que sou um indivíduo autônomo. A
menina não encontra segurança em si mesma, não se descobre como autônoma de
sua própria vida, nem se torna dona de si mesma. Sobre essa concepção, Lessa
(2016) coloca que quando buscamos no outro amparo e segurança, abrimos mão da
nossa própria existência, tornamo-nos um estranho para nós mesmos, colocando a
serviço dos outros.

Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de


outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele
cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os
cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande
soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela
passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.

A menina encontro no animal a libertação de seu próprio exílio, sendo assim,


estabelece comunicação com o cão, ambos se desejavam, pareciam estar
destinados a viverem um para o outro. Ela encontra o brilho e viver. A menina não
encontra nela mesmo o encantamento e o brilho de sua própria vida.

“Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos. Que foi que se disseram? Não se
sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo.
Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com
encabulamento, surpreendidos”.

O fato de o cão ser semelhante a ela, a faz sentir-se alguém. A menina não
suportava ser diferente dos demais, não suportava ser única no mundo. Lhe falta a
compreensão de que todo ser humano é um,

Desejosa por uma completude, se reconheceu e se encontrou no cachorro.


Encontrou nele o escape, a fuga da sua solidão existencial. Mas ambos eram
comprometidos, a menina “com sua infância impossível, [...] Ele, com sua natureza
aprisionada” (LISPECTOR, 2016). O que lhe resta é o acessório que lhe dá
esperança de completude: a bolsa. Objeto somos tentados a encontrar no outro a
plenitude, quando na verdade deveríamos a partir do outro nos autorreconhecer.

O homem se torna autentico quando aceita a solidão como preço da sua


própria liberdade. E se torna inautêntico quando interpreta a solidão como
abandono, como uma espécie de desconsideração de Deus ou da vida em relação a
ele. (LESSA, 2016, p. 24). Assim como muitos, em especial aqueles que encaram a
solidão como algo doloroso, como um problema, a menina quer fugir da solidão, não
consegue encontrar nessa condição um caminho para se constituir. as pessoas não
conseguem suportar sua solidão por que não conseguem suportar-se, estar consigo
mesmo, desfrutando de sua própria companhia e sendo coadjuvante de sua própria
história.
Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam

O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o
acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos
pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-lo dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás

Por um instante sua solidão foi rompida, mas não demorou muito para ela
reacender-se. A menina volta ao estado anterior ao ver indo embora o basset, ela

Não é de nosso interesse desprezar a importância doo outro, pelo contrário, o


que queremos destacar aqui é que o outro deve compartilhar, trocar. “o outro é muito
importante para a convivência, mas não para preencher a vida, não para dar sentido
e significado a uma outra existência” (LESSA, 2016, p. 56) deve ficar claro que o
outro “não é o elemento fundamental para minimizar a condição de solidão” (LESSA,
2016, p. 56).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Notamos que Clarice Lispector, enquanto criadora de uma literatura


instigante, tece em suas obras saberes que vão além da intenção de entreter. A
autora nos leva a uma profunda reflexão sobre a vida, sobre o eu, sobre o outro e
sobre nossa condição no mundo através da narração de acontecimentos cotidianos
que estão postos em seu fazer literário, que sem via de dúvidas está atravessado de
saberes filosóficos. Por meio de suas narrativas, foi possível traçarmos um estudo e
um conhecimento a respeito da solidão, sentimento tão comum, interpretado e
encarado muita das vezes como algo doloroso e indesejado.
No texto Tentação, fomos levados a perceber que a solidão, enquanto
sentimento encarado de forma negativa, faz da personagem alguém vazia,
incompleta que deseja ardentemente ter alguém semelhante a ela para sentir-se
completa. A menina não encontra em si mesma a completude, nem consegue
enxergar na sua solidão uma possibilidade de se encontrar, de se amar e se aceitar,
visto que lamenta a sua condição e não se posiciona para viver a vida da melhor
forma possível, mas se limita e fica estagnada no tempo apegada a uma bolsa a
espera de uma mudança.
Assim como essa menina, muitos seres humanos não conseguem se
posicionar, mas ficam mergulhadas em seus medos, angustias, sem entenderem
que somos pessoas únicas, que nascemos e morreremos sós, por isso devemos
aproveitar e viver a vida da melhor forma possível. Diante disso, compreendemos
que este estudo é apenas uma possibilidade de reflexão entre tantas outras
existentes. Que o conto Tentação pode ser analisado de diferentes formas e
perspectivas, pois reconhecemos que o texto de Clarice se torna atemporal, nos
possibilita “n” reflexões, independente da época ou contexto.
Logo, dada as concepções “negativas” e “positivas” que dão a solidão,
sabendo que não há como fugir dela, pois está cada vez mais nos regendo e que
tentar escapar dela torna-se uma tarefa exaustiva, pois sabemos que uma hora ou
outra ela vai nos acometer, então que ela não venha ser tida como uma ameaça,
mas como uma possibilidade, uma aliada nossa para o caminho do
autorreconhecimento e da autonomia.

6 REFERÊNCIAS

CANDIDO, Antonio. Iniciação à literatura brasileira. 3ª ed. São Paulo: Humanitas,


1999. 98 p.
RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: o discurso e o excesso de significação.
Trad. Artur Morão. Biblioteca de filosofia contemporânea. Lisboa, ed. 70, 2005

RICOEUR, Paul. Do texto a acção: ensaios de hermenêutica II. Tradução de Alcino


Cartaxo e Maria José Sarabando. Portugal: Rés Editora, [s.d].

FIORIN, José Luiz. O dialogismo. In: FIORIN, José Luiz. Introdução ao


pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2011, p. 13-34. Disponível em:
https://www.passeidireto.com/arquivo/23758136/258885915-introducao-ao-
pensamento-debakhtin. Acesso em: 31 mai. 2021.
BAKHTIN, Mikhail. O discurso na poesia e o discurso no romance. In: BAKHTIN,
Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora
Fornoni Bernardini, José Pereira Júnior, Augusto Góes Júnior, Helena Spryndis
Nazário, Homero Freitas de Andrade. 5ª Ed. São Paulo: Ed. Hucitec Annablume.
2002, p. 85-106. Disponível em:
https://www.passeidireto.com/arquivo/16411843/117843800-bakhtin-questoes-de-
literatura-eestetica-a-teoria-do-romance. Acesso em: 30 mai. 2021

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