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A narrativa de estupro figurada em representação

Karine Mathias Döll1

Resumo: Gayatri Spivak, em seu texto Quem reivindica alteridade?, escreve uma “ressalva
sobre a questão da figura. Em suas palavras, “Não digo que se deve ler Mary como
representante do pós-colonial ou como exemplo de uma prática correta diretamente imitável.
Estou falando, sim, da lógica de sua figuração, da mecânica da fabricação da figura chamada
Mary” (SPIVAK, 2019, p. 262). Já Lynn Higgins e Brenda R Silver, na introdução da
coletânea Rape and Representation (1991), afirmam sobre a premissa do livro que
organizaram: “O reconhecimento (...) de que o termo representação ultrapassa as fronteiras
dos discursos jurídicos, diplomáticos, políticos e literários sustenta a suposição subjacente a
este livro: que a política e a estética do estupro são uma só” (HIGGINS; SILVER, 1991 p. 1).
É a partir dessas considerações, que posicionam a representação de um lado, a figuração de
outro, e a reprodução em análises crítico-literárias das duas, que este trabalho tem por
objetivo compreender as implicações e potencialidades de uma ruptura tal com o paradigma
literário dominante da representação, concebido pelos pós-estruturalistas, para que seja
possível, a partir daí, pensar em específico as narrativas de estupro em meio aos textos
literários.

Palavras-chave: Representação. Figuração. Narrativas de estupro. Literatura brasileira.

(...) o Poeta, porém, deleitando-nos com os outros encantos, escamoteia-nos a absurdeza.


Aristóteles2

Como pode um pensamento esquivar-se diante de outra coisa que ele próprio?
Foucault3

Introdução

Este trabalho4 surge mais de uma inferência do que, de fato, de um problema. Isso
porque o paradigma da representação, como concebido pelos pós-estruturalistas, ainda nos
assombra enquanto forma de aproximação crítica dentro do campo literário. Uma vez
providos de uma reflexão e de um vocabulário pós-representacionalista, segundo o qual o
conceito de figuração atenderia menos a uma demanda meramente nominal do que relacional,


1
Mestre em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Doutoranda em
Estudos da Literatura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail:
<karinemdoll@gmail.com>.
2
ARISTÓTELES, Arte poética, 2005, p. 48.
3
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, 2016, p. 69.
4
Artigo escrito para uma disciplina de Teoria da Literatura que depois tornou-se apenas Teoria. Mas o fez no
momento certo. Penso, inclusive, se não o foi proposital. Nós partimos dos formalistas russos, não é mesmo? Em
algum momento a representação entraria em cheque.
seria mesmo possível abandonar o pressuposto representacional? De imediato, apresenta-se o
horizonte do artigo, por intermédio das palavras de Spivak: “A representação não definhou.5”
Prova disso encontra-se na própria crítica especializada. O periódico “Itinerários”,
revista de Literatura vinculada ao programa de pós-graduação em Estudos Literários da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), recentemente publicou uma chamada para dossiê
intitulado “1964 e suas representações: literatura e resistência.” Outrossim, o periódico
“Diadorim”, ligado ao programa de pós-graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), cometeu o mesmo despautério: seu próximo dossiê, com
submissões ainda em aberto, chama-se “As línguas e as culturas indígenas: representações
literárias e realidade linguística.” Por último, resta indicar ainda a seção intitulada
“Representações afro-brasileiras: uma homenagem a Conceição Evaristo”, publicada no
volume 24 do periódico “Anuário de Literatura”, promovido pelo programa de pós-graduação
em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)6. O que esses três exemplos
vêm mostrar é que, muito embora o conceito de representação nos pareça ultrapassado, é por
ele, afinal, que conseguimos comunicar nossas aberturas dialéticas sobre o texto ficcional. No
entanto, os três, do mesmo modo, ao proporem possibilidades de leitura para as temáticas
sugeridas, o fazem mais pela representatividade, num sentido político-discursivo, do que pela
representação, num sentido semiótico. Ou seja, poderíamos supor que a união de trabalhos
sobre “literatura e ditadura”, ou “literatura e indianismo”, ou ainda “literatura e negritude” -
temas subjacentes a grupos subalternizados e/ou à forças opressoras e de controle institucional
-, junto ao escopo de suas representações, teria por intenção realocar efeitos e consequências
de determinadas figurações destas temáticas, ao contrário de apenas apontá-las e dissecá-las
num como apriorístico de análise. É neste ínterim que o presente trabalho se encontra.
Visando reassumir o termo representação para tratar das narrativas de estupro na
literatura brasileira, posiciono estas ao lado das temáticas referidas porque também partem de
reflexões acerca de grupos subalternizados (as mulheres) para chegar até suas forças
opressoras e de controle institucional (o crime do estupro cometido por homens dentro do
pensamento hegemônico patriarcal). Para tanto, e em virtude da importância de se rearticular
a representação, neste caso em específico, como um discurso mimético, as reflexões serão
conduzidas com o apoio dos textos de quatro autores brasileiros, distintos em suas prosas e
temporalidades: Aluísio Azevedo, Jorge Amado, Rubem Fonseca e Chico Buarque. Serão

5
SPIVAK, G. Pode o subalterno falar?, 2010, p. 165.
6
UFSC. Anuário de Literatura, 2019. Disponível em: <https://bit.ly/39TvDEg>. Acesso em: 13 mar. 2020.;
UFRJ. Revista Diadorim, 2019. Disponível em: <https://bit.ly/38QOb6S>. Acesso em: 13 mar. 2020; UNESP.
Itinerários: Revista de Literatura, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/2Qj7aQR>. Acesso em: 13 mar. 2020.
estabelecidos ainda, como pontos de apoio para esta discussão, a relação conceitual entre
representação e figuração, bem como a interposição desta relação vinculada à problemática do
estupro dentro de um determinado regime representacional advindo da própria literatura.

1 Estupro, desejo e paralogia

Em texto de 19897, ao iniciar a análise do conto “The Hunt”, escrito pela autora
indiana Mahasweta Devi, Gayatri Spivak coloca-nos diante de locuções tais como “figuras
paralógicas”, “reapropriação do estupro” e “fabricação da narrativa”, três elementos que a
levam a diferenciar de antemão os conceitos de representação e figuração para que possa dar
continuidade as suas reflexões. A teórica o faz por meio de um intervalo no próprio texto:
Uma ressalva sobre a questão da figura. Não digo que se deve ler Mary como
representante do pós-colonial ou como exemplo de uma prática correta diretamente
imitável. Estou falando, sim, da lógica de sua figuração, da mecânica da fabricação
da figura chamada Mary. Lerei a fabricação da narrativa desse modo.8

O cuidado ao tratar de um conceito tal como o de representação parece, inclusive, ser


uma constante no pensamento da autora. Em Pode o subalterno falar?9, Spivak prioriza a
diferenciação entre os conceitos, emprestados do alemão, Vertretung e Darstellung, ambos, a
princípio, levando o que conhecemos como “representação” a um duplo sentido, em que o
primeiro diz respeito “ao âmbito do Estado e da economia política”, isto é, quando alguém
assume o lugar do outro num sentido político, representando-o, enquanto o segundo estaria
circunscrito mais numa encenação propriamente, um ato de performance, em que algo ou
alguém é representado, interpretado, em última instância, imaginado. Para Spivak, é preciso
“observar como a encenação do mundo em representação - sua cena de escrita, sua
Darstellung - dissimula a escolha e a necessidade de “heróis”, procuradores paternos e
agentes de poder - Vertretung.10”
Assim, inseparáveis em suas acepções, voltamos à ressalva quanto à análise do texto
de Mahasweta, pois o que a teórica parece sugerir é que a “mecânica da fabricação da figura
chamada Mary”, bem como “a fabricação da narrativa”, estaria alinhada com uma
Darstellung que não tem por intenção produzir, digamos, “modelos de boa conduta” do
representante pós-colonial, embora saiba que corre este risco, e por isto a importância da
ressalva. Ademais, “a prática radical deve estar atenta a esse duplo sentido do termo


7
SPIVAK, G. Quem reivindica alteridade?, 2019, p. 262.
8
Idem, ibidem, p. 262.
9
Idem, 2010.
10
Idem, ibidem, p. 54.
representação, em vez de tentar reinserir o sujeito individual por meio de conceitos
totalizadores de poder e de desejo.11”
Antes de chegarmos até tais “conceitos totalizadores”, e voltando às locuções
propostas por Spivak, é interessante notar que o texto clássico de Aristóteles, Poética, já
trazia em suas linhas uma atenção maior para os “paralogismos”, associados às formas de
reconhecimento na tragédia:
Há também um reconhecimento construído num paralogismo dos espectadores,
como no Odisseu Falso Mensageiro; ele e ninguém mais armar o arco é invenção do
poeta, pura suposição; mesmo se declarasse que reconheceria o arco, sem o ter visto;
mas imaginar que se daria a reconhecer por esse meio é um paralogismo.12

Em linhas gerais, “paralogismo” está associado a um falso raciocínio. Quando


Aristóteles fala sobre um “paralogismo dos espectadores”, sua preocupação consiste em
perceber uma “fabricação da narrativa” que leve esses mesmos espectadores a inferirem um
reconhecimento que, de fato, faz-se apenas por “invenção do poeta”, sem correspondência
extratextual ou - por que não? -, mimética com a realidade. Por outro lado, quando Spivak
fala em “figuras paralógicas”, “sobretudo as mulheres”, configura um movimento de “lembrar
(...) que nosso trabalho, tão justo, se situa ainda dentro de um ‘debate paroquial de
descanonização’.13” Nesse sentido, seria possível afirmar que o fato de Aristóteles associar o
paralogismo ao reconhecimento da figura do arco se faz mais por verossimilhança, não
supondo rupturas, enquanto a associação do paralogismo ao reconhecimento da figura das
mulheres se faz por descontinuidade, num sentido foucaultiano do termo, ou seja, “inaugura
um pensamento novo”14, fundamental para que se avance no debate tanto intra quanto
extratextual. Aqui, encontra-se a perpendicularidade da (re)apropriação do estupro, associada
a uma “fabricação narrativa”.
É neste ponto que articulo a afirmação de Donna Haraway sobre a representação: “a
humanidade feminista deve ter outro formato, outros gestos. (...) As figuras feministas não


11
Idem, ibidem, p. 54.
12
ARISTÓTELES, ibid., p. 37.
13
SPIVAK, G, 2019, p. 262.
14
FOUCAULT, M, ibid., p. 68-69. “Não é fácil estabelecer o estatuto das descontinuidades para a história em
geral. Menos ainda, sem dúvida, para a história do pensamento. Pretende-se traçar uma divisória? Todo limite
não é mais talvez que um curto arbitrário num conjunto indefinidamente móvel. Pretende-se demarcar um
período? Tem-se porém o direito de estabelecer, em dois pontos do tempo, rupturas simétricas, para fazer
aparecer entre elas um sistema contínuo e unitário? A partir de que, então, ele se constituiria e a partir de que, em
seguida, se desvaneceria e se deslocaria? A que regime poderiam obedecer ao mesmo tempo sua existência e seu
desaparecimento? Se ele tem em si seu princípio de coerência, donde viria o elemento estranho capaz de recusá-
lo? Como pode um pensamento esquivar-se diante de outra coisa que ele próprio? Que quer dizer, de um modo
geral: não mais poder pensar um pensamento? E inaugurar um pensamento novo?”.
podem, finalmente, ter um nome; elas não podem ser nativas15”, pois se tivessem, enquanto
mímesis, estariam enunciando “verdades gerais [que] é dizer que espécie de coisas um
indivíduo de natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil16”. Por essa razão, “a humanidade
feminista deve, de alguma maneira, tanto resistir à representação, resistir à figuração literal,
ao mesmo tempo em que irrompe em novos poderosos tropos, novas figuras de linguagem,
novos desvios de possibilidade histórica.17” O que configuraria, portanto, um paralogismo
neste caso, a partir da locução “figuras paralógicas” de Spivak, concentra-se na
descontinuidade promovida pela própria epistemologia feminista que enfatiza a quebra com
um sujeito universal declinado no masculino para estabelecer novos aportes teóricos que
realocam o sujeito mulher como a figura paradigmática per se, aquela sobre a qual se fala e se
escreve sem propor uma relação dialética de autoridade (Vertretun), priorizando uma
encenação paralógica de simples reconhecimento (Darstellung), objetivando, com isto, tecer o
papel da crítica.
Por certo que devemos resistir à representação, mas como resistir a algo que, por
vezes, nem encontrado foi? Supor o desaparecimento da representação, ou, concomitante a
ela, o desaparecimento do significante (como o quer Deleuze e Foucault18), não impede,
contudo, que seu princípio ordenador esteja ainda presente, num “quadro inatual mas
simultâneo de comparações: análise da impressão, da reminiscência, da imaginação, da
memória, de todo esse fundo involuntário que é como que a mecânica da imagem no tempo19”
- ou aquilo que Foucault denominou como o mundo clássico da representação.
Logo, os apontamentos expostos acima levam-nos a retomar e reconstruir o conceito
de significante20, de modo que seu desaparecimento implique no próprio desaparecimento do
sujeito mulher na ordem do discurso21. “Quem não vê que se trata aí, cada vez, de anular um
dos termos da relação, e não de suprimir a relação ela mesma?22”. Tomemos a narrativa de
estupro enquanto signo, uma vez que esta promove um sistema de significação ou, mais

15
“Feminist humanity must have another shape, other gestures. (...) Feminit figures cannot, finally, have a name;
they cannot be native.” HARAWAY, D. Ecce Homo, Ain’t (Ar’n’t) I a woman, and Inappropiate/d Others: The
Human in a Post-Humanist Landscape, 1991, p. 86, tradução minha.
16
ARISTÓTELES, ibid., p. 28.
17
“(...) feminist humanity must, somehow, both resist representation, resist literal figuration, and still erupt in
powerful new tropes, new figures of speech, new turns of historical possibility.” HARAWAY, D., ibid., p. 86,
tradução minha.
18
FOUCAULT, M. Os intelectuais e o poder, 2003; DELEUZE, G. Diferença e repetição, 2018.
19
FOUCAULT, M., 2016, p. 96.
20
“(...) é um puro relatum, não se pode separar sua definição da do significado.” BARTHES, R. Elementos de
semiologia, 1964, p. 50.
21
“(...) o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo
porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar.” FOUCAULT, M. A ordem do discurso, 2014,
p. 10.
22
Idem, ibidem, p. 23.
precisamente, um determinado sistema representacional. Sua forma, isto é, a narrativa,
precisaria, portanto, vir circunscrita a significantes que, numa relação catártica, suscitem
medo, terror, revolta etc., todos mobilizados pelo não-consentimento da pessoa contra quem o
estupro é cometido. O significado, a partir disso, inevitavelmente nos levaria até a violência
de um crime. Contudo, uma vez do desaparecimento do significante (e ele, de fato,
desaparece), sobra-nos a negociação deste significado transmutada, possivelmente, em uma
representação mimética de relação sexual consentida, adornando-a, inclusive, com os signos
de desejo e prazer subjacentes a esse desfecho. Ou seriam os conceitos totalizadores de que
falava Spivak? É por essa razão que as pesquisadoras Higgins e Silver são tão enfáticas, logo
nas primeiras páginas de sua coletânea de artigos, ao afirmarem que “quem está falando pode
ser tudo o que importa. Seja nos tribunais ou na mídia, seja nas artes ou na crítica, quem conta
a história e sobre quem a história contada vale como “verdade” determina a definição do que
o estupro é. 23 ” E continuam, no que poderíamos dizer ser uma retomada do termo
representação na sua imbricação spivakiana entre Vertretun e Darstellung: “O
reconhecimento adicional de que o termo representação ultrapassa as fronteiras dos discursos
jurídicos, diplomáticos, políticos e literários sustenta a suposição subjacente a este livro: que a
política e a estética do estupro são uma.24”
A fim de deixar claro este alinhamento entre política e estética do estupro, é
importante lembrar que, na maioria dos casos indiciados, a palavra da vítima consiste em uma
das principais provas contra o acusado. Palavra entendida aqui como um código cultural
dentro da especificidade de formações discursivas próprias, neste caso, a de uma denúncia e o
recebimento dessa mesma denúncia por um/a delegado/a. Nesse sentido, compreender a
representação como a produção e a circulação de sentidos pela linguagem, composta, via de
regra, por uma “ligação entre conceitos e linguagem os quais nos permitem referir tanto ao
mundo 'real' dos objetos, das pessoas ou dos eventos, quanto mesmo ao mundo imaginário
dos objetos, pessoas e eventos ficcionais25” traça a problemática da fabricação da narrativa de
estupro encerrada numa (re)apropriação dos sentidos do estupro engendrados num regime


23
“ (...) who is speaking may be all that matters. Whether in the courts or the media, whether in art or criticism,
who gets to tell the story and whose story counts as “truth” determine the definition of what rape is.” HIGGINS;
SILVER. Rape and Representation, 1991, p. 1, tradução minha.
24
“The added recognition that the term representation cuts across boundaries of juridical, diplomatic, political,
and literary discourses sustains the assumption underlying this book: that the politics and aesthetics of rape are
one.” Idem, ibidem, p. 1, tradução minha.
25
“(...) link between concepts and language which enables us to refer to either the ‘real’ world of objects, people
or events, or indeed to imaginary worlds of fictional objects, people and events.” HALL, S. Representation,
1997, p. 17, tradução minha.
representacional falho, porque abdica do significante e o substitui pela soberania dos
conceitos totalizantes de desejo e poder masculinos.
Neste ponto, fica um questionamento, fundamentado no pensamento de Spivak:
diríamos, então, que “um vocabulário pós-representacionalista esconde uma agenda
essencialista”26? Creio que sim e para me justificar, utilizo, com a cautela sempre premente da
análise literária, os excertos dos romances de Azevedo, Amado e Buarque, O cortiço (1890),
Capitães de Areia (1937) e Leite derramado (2009), respectivamente, ao lado do conto de
Fonseca, “O cobrador” (1979), procurando salientar a unidade comum deste elemento
literário conflitual, o qual venho chamando de signo, que é a narrativa de estupro27. Para a
análise que segue, recordo a importância em estabelecer amplos parâmetros temporais, com a
finalidade de evidenciar o trabalho com sucessões, repetições, ou mesmo identidades
discursivas que se superpõem. Ou imitam-se inequivocamente. Vamos a eles:
Excerto 1:
A mulher dormia a sono alto. Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se da cama.
“Devia voltar!... pensou. Não lhe ficava bem aquilo!...” Mas o sangue latejava-lhe,
reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a contemplá-la no seu desejo.
Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se sobre o quadril
da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a frente e patenteando uma
nesga de nudez estofada e branca. O Miranda não pôde resistir, atirou-se contra ela,
que, num pequeno sobressalto, mais de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando
logo e enfrentando com o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos
fechados, fingindo que continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo
aquilo.
Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e
arrependimento. (...)
Mas daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou
ao quarto da mulher.
Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que não acordava; na
ocasião, porém, em que se apoderava dela febrilmente, a leviana, sem se poder
conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava. O
pobre diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se, brusco, num
estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência.
A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe rápido as
pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de
beijos.28

Excerto 2:
No fim da rua Pedro Bala viu um vulto. Parecia uma mulher que andava apressada.
Sacudiu seu corpo de menino como se sacode um animal jovem ao ver a fêmea, e
com passo rápido se aproximou da mulher que agora entrava no areal. A areia
chiava sob os pés e a mulher notou que era seguida. Pedro Bala podia vê-la bem

26
SPIVAK, 2010, p. 76.
27
Minha compreensão do que seriam narrativas de estupro alinha-se às definições propostas por Jocelyn Catty:
“Eu defino ‘narrativas de estupro’ como qualquer uma em que uma ameaça sexual é articulada, uma vez que o
retrato da tentativa de estupro é revelador de atitudes tanto quanto o estupro realizado.” CATTY, J. Writing
Rape, Writing Women in Early Modern England, 1999, p. 23, tradução minha.
28
AZEVEDO, O cortiço, 1989, p. 16-17. Importante destacar que há mais de uma narrativa de estupro no
romance em questão. A escolha por essa deu-se pela aproximação com as outras, e pela posição em que se
encontra textualmente, parte do primeiro capítulo da obra.
quando ela passava sob os postes: era uma negrinha bem jovem, talvez tivesse
apenas 15 anos como ele. (...) E o desejo cresceu dentro de Pedro Bala, era um
desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia. (...)
Pedro Bala também só tinha quinze anos, mas há muito tempo conhecia não só o
areal e os seus segredos, como os segredos do amor das mulheres. Porque se os
homens conhecem esses segredos muito antes que as mulheres, os Capitães da Areia
os conheciam muito antes que qualquer homem. Pedro Bala a queria porque há
muito sentia os desejos de homem e conhecia as carícias do amor. Ela não o queria
porque fazia pouco que se tornara mulher e pretendia reservar seu corpo para um
mulato que a soubesse apaixonar. Não o queria entregar assim ao primeiro que a
encontrasse no areal. E está com os olhos entupidos de medo. (...)
E olhava em torno de si para ver se enxergava alguém a quem gritar, a quem pedir
socorro, alguém que a ajudasse a conservar a sua virgindade, que tinham lhe
ensinado que era preciosa. Mas à noite no areal do cais da Bahia não se vêem senão
sobras e não se ouvem mais que gemidos de amor, baques de corpos que rolam
confundidos na areia.
Pedro Bala acariciava seus seios e ela, no fundo de seu terror, começava a sentir um
fio de desejo, como um fio de água que corre entre montanhas e vai engrossando aos
poucos até se transformar em caudaloso rio. E isso fez com que crescesse o seu
terror. Se ela não resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possuísse, estaria
perdida, iria deixar uma mancha de sangue no areal, da qual ririam os estivadores na
madrugada seguinte. (...)
Ele suspendeu as saias pobres de chita, apareceram as duras coxas da negra. Mas
estavam uma sobre a outra e Pedro Bala tentou separá-las. A negrinha reagiu de
novo, mas como o menino a estava acariciando e ela sentiu a chegada impetuosa do
desejo, não o xingou mais (...).29

Excerto 3:
A empregada me abriu a porta e gritou lá para dentro, é o bombeiro. Surgiu uma
moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na mão, bonita, uns vinte e cinco
anos.
Deve haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro.
Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as
duas. (...) Levei a dona pro quarto.
Tira a roupa.
Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida.
Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe
um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro.
Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei
os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou
quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era
apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas.
Mesmo assim não foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando
enfiei o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia
os peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua
bunda. Meu pau começou a ficar lubrificado pelos sucos da sua vagina, agora morna
e viscosa.
Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do
que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do
umbigo dela.
Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora.30

Excerto 4:
Ela saiu do carro antes que eu lhe abrisse a porta, e mal entramos em casa foi para a
cozinha, tinha mania de ir para a cozinha. Volta e meia levava a criança à cozinha,

29
AMADO, J. Capitães de areia, 2007, p. 80-83. Concentrei-me nesta mesma narrativa ao propor meu objeto de
pesquisa ainda quando do mestrado. A análise encontra-se na seção 2, do capítulo primeiro de minha dissertação,
intitulada “As narrativas de estupro enquanto verdades literárias”. Disponível em: <https://bit.ly/2TSUSkE>.
30
FONSECA, R. O cobrador, 1979, p. 19.
dava conversa às empregadas, era vezeira em almoçar ali com a babá. Então me vi
tomado de um sentimento obscuro, entre a vergonha e a raiva de gostar de uma
mulher que vive na cozinha. Eu seguia Matilde, que falava sozinha, que meio
cantarolando perguntava pelo chá de boldo, e de repente não sei o que me deu,
agarrei-a com violência pelas costas. Joguei-a contra a parede e ela não entendeu,
começou a emitir gemidos nasais, o rosto achatado nos ladrilhos. Prendi seus punhos
na parede, ela se debatia, mas eu a controlava com meus joelhos atrás dos seus. E
com meu tronco eu a apertava, eu a espremia a valer, eu quase a esmagava na
parede, até Matilde disse, eu vou, Eulálio, e seu corpo inteiro tremeu, levando o meu
a tremer junto.31

Tão logo, poderia supor tratar-se de uma prosopopeia32, visto que em todos os quatro
excertos a unidade comum apresenta-se por meio de uma voz masculina - por vezes
explicitamente sendo um narrador não confiável, como nos dois últimos casos em que temos
uma personagem narrando em primeira pessoa o desenrolar de uma ação -, preocupada em
figurar o estupro não apenas como um ato inevitável, mas, sobretudo, necessário e, por fim,
desejado pela personagem feminina, a qual entendo ter sua voz personificada para a
consensualidade. Este desejo, inclusive, merece nossa especial atenção, uma vez que ele
parte como sendo o significante advindo do signo sexo para o homem, em oposição aos
significantes de “violência, terror, medo, revolta” do signo estupro para a mulher. Desse
modo, seria possível dizer que o estupro prefigura o desejo feminino, num sentido como
outrora proposto por Auerbach33 ao tratar da “profecia fenomenal dos Padres da Igreja”? Diz
o autor: “Esse tipo de interpretação tinha como objetivo mostrar que todas as pessoas e
acontecimentos do Velho Testamento eram prefigurações do Novo Testamento e de sua
história de redenção34”, em sua “mais alta concretude35”. Se o estupro prefigura o desejo
feminino, então seria também possível afirmar, juntamente com o exposto por Bourke, que “a
declaração consciente da mulher dizendo ‘não’ era desfeita pelo seu desejo inconsciente de
ser violada 36 ”? Em relação aos excertos anteriores, apenas duas personagens deixaram
explícitas suas negativas, a personagem de Jorge Amado e a de Rubem Fonseca, o que nos
leva a uma outra questão: partimos da construção de personagens mulheres, esposas e


31
BUARQUE, C. Leite derramado, 2009, p. 66-67.
32
Segundo Moisés, a prosopopeia, “também denominada personificação”, “consiste em atribuir vida, ou
qualidades humanas, a seres inanimados, irracionais, ausentes, mortos ou abstratos. Espécie de humanização ou
animismo, pode dar-se de vários modos, a saber: quando se conferem qualificativos próprios do ser humano a
objetos inanimados e a abstrações (...); ao emprestar às coisas inanimadas poder de ação peculiar aos seres vivos
(...); quando, nas apóstrofes, nos dirigimos aos seres inanimados como se fossem capazes de inteligência ou
compreensão (...); quando adquirem voz a matéria inerte e os seres abstratos (...).” MOISÉS, M. Dicionário de
termos literários, 2013, p. 385.
33
AUERBACH, E. Figura, 1997.
34
Idem, ibidem, p. 28.
35
Idem, ibidem, p. 30.
36
“The woman’s conscious assertion of ‘no’ was undone by her unconscious desire for violation.” BOURKE, J.
Rape: A history from 1860 do the present, 1991, p. 70, tradução minha.
namoradas (como é o caso das personagens de Azevedo e Buarque), como tendo seus
consentimentos predicados por seus agressores? O paralogismo, aqui, parece evidente.
Isto posto, torna-se importante destacar que, embora o desejo feminino apareça como
veritas37, é a descrição do desejo masculino que preconiza a ação, ainda que se queira que este
assuma função de umbra, ou uma figura do erótico mais que da violência. Em linhas gerais,
“o que é masculino torna-se feminino, e o desejo do impossível torna-se o possível do
desejo.38” Há, portanto, um jogo de inversões e poderes reversos. Miranda sentiu-se em
“insuportável estado de lubricidade” e fora, mais uma vez, “acometido de um novo acesso de
luxúria”; Pedro Bala sentiu o desejo crescendo dentro dele, “um desejo que nascia da vontade
de afogar a angústia que o oprimia”, justificado com a afirmação de que “há muito sentia os
desejos de homem e conhecia as carícias do amor” e por isso não o dispensaria naquela
ocasião; o desejo do Cobrador, mote do enredo proposto por Fonseca, prevê dividendos diante
de uma vida de injustiças, e em meio a tantos quereres materializados nas mãos dos
“parasitas”, os ricos, a mulher é assim lembrada como mais um: “Estão me devendo xarope,
meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo”; o desejo de Eulálio vem sublinhado pelas
marcas de “um sentimento obscuro” e um quê de incompreensão: “de repente, não sei o que
me deu”. Por outro lado, dona Estela, esposa de Miranda, não podendo se conter, “soltou-lhe
em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo sopeava” para depois passar-lhe “rápido
as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma metralhada de beijos”; a
adolescente do areal, “no fundo de seu terror, começava a sentir um fio de desejo”,
principalmente quando “o menino a estava acariciando e ela sentiu a chegada impetuosa
[deste mesmo] desejo” a ponto de decidir não mais xingá-lo; a moça de camisola, teve seu
desejo contido, porém translúcido, em uma frase: “Como já não tinha medo de mim, ou
porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu”; Matilde, também sem muitos
subterfúgios, era espremida na parede, espremida “a valer”, sendo esmagada, até que disse
“eu vou, Eulálio, e seu corpo inteiro tremeu”. Neste jogo de inversões, toma-se o desejo da
mulher enquanto veritas, não conferindo a ele qualquer autonomia, ao passo que o desejo dos


37
“Verdade, realidade, imparcialidade”, em latim. Segundo Auerbach, quando relaciona figura a preenchimento,
“o preenchimento é constantemente designado como veritas (...), e a figura, por sua vez, como umbra ou imago:
mas tanto sombra quanto verdade são abstratas apenas em referência ao significado, a princípio ocultado para ser
revelado em seguida; são concretas em referência às coisas ou pessoas que aparecem como veículos do
significado. Moisés não se torna menos histórico e real porque é umbra ou figura de Cristo; e Cristo, o
preenchimento, não é uma ideia abstrata, mas uma realidade histórica. As figuras históricas reais devem ser
interpretadas espiritualmente (spiritaliter interpretari), mas a interpretação aponta para um preenchimento carnal
e, por conseguinte, histórico (carnaliter adimpleri) - pois a verdade fez-carne ou história.” AUERBACH, E.,
ibid., p. 31.
38
BRANDÃO, R. Passageiras da voz alheia, 2004, p. 13.
homens, este, sim, autônomo, estabelece-se como imposto sob uma defensiva. Desejo, então,
torna-se um tropos39 e não mais uma figura ou umbra. O desejo da mulher torna-se o tropo
preciso do desejo do homem, obliterando o significante da violência e do horror para confluir
numa prática sexual consensual, porque, em última instância, desejada. “De esquetes em
teatros a concertos de ópera, o tema de que as mulheres, tanto secreto como
inconscientemente, querem ser estupradas é popular40”, constatou Bourke, e parece que se
constata aqui também, representado.
Logo, paralogismo e representação, no caso específico do estupro, são conceitos
interdependentes, porque só prosperam por vias de imitação, caso contrário, simplesmente
perderiam aquilo que lhes dá sustento. Contudo, a figura, enquanto marca de representações
descontínuas, volta a assumir o seu significado de origem: “forma plástica”. É a esta
diferenciação que me dedico nas linhas que seguem.

Brechas finais

Como, aparentemente, a paralogia inscreve-se melhor na literatura que a


verossimilhança, deixo para o final conceitualizações próprias dos termos representação e
figura. Em verdade, talvez fosse o caso de assumir que o “problema inferencial” que me
propus a mobilizar não depende delas. Contudo, decidi manter a ideia do artigo, mesmo
sabendo penosamente que não sairei exatamente daqui de onde estou. Mas eu gostaria de sair.
E por isso teorizo.
Assim, quem nos traz este conceito remoto do termo figura como “forma plástica” é
Auerbach41. Essa “conexão com palavras como plasis aumentou a tendência de figura (...) de
expandir-se na direção de “estátua”, “imagem”, “retrato”, de usurpar o domínio de statua e
até de imago, effigies, species, simulacrum [imagem, efígie, figura, simulacro]. 42 ” A
contraposição do uso latino de figura fez-se pelo termo grego schêma, ou schêmata, cujo
sentido dá a ideia de “constituição”, “aparência” ou “semelhança”. Ainda segundo Auerbach,

39
“Quintiliano distingue os tropos das figuras; o tropo é um conceito mais restrito, referindo-se ao uso das
palavras e frases num sentido que não é literal; a figura, por outro lado, é uma forma de discurso que se desvia
do seu uso normal e mais óbvio. O objetivo da figura não é, como em todos os tropos, substituir palavras por
outras palavras; as figuras podem ser formadas com palavras empregadas em sentido próprio e na ordem
adequada.” AUERBACH, E., ibid., p. 24. “Espécie de linguagem figurada, o tropo consiste na translação de
sentido de uma palavra ou expressão, de modo que passar a ser empregada em sentido diverso do que lhe é
próprio.” MOISÉS, M., ibid., p. 467.
40
“From music-hall sketches to operas, the theme that women, either secretly or unconsciously, want to be raped
is popular.” BOURKE, J., ibid., p. 68, tradução minha.
41
AUERBACH, ibid., p. 13.
42
Idem, ibidem, p. 16.
(...) embora possamos dizer em geral que no uso latino figura ocupa o lugar de
schema, isto não exaure o poder da palavra, a potestas verbi: figura é mais ampla,
algumas vezes mais plástica, em qualquer caso mais dinâmica e luminosa do que
schema. Claro, schema em grego é mais dinâmica do que o uso que fazemos dessa
palavra; em Aristóteles, por exemplo, a mímica, especialmente a dos atores, é
chamada de schemata; o significado de forma dinâmica não é de modo algum
estranho a schema, mas figura desenvolveu este elemento de movimento e
transformação muito mais.43

Em contrapartida, o termo representação estabelece seu sentido contido no estático,


reconhecível e nominável. Assim escreve Foucault sobre aquilo que chama de “teoria geral da
representação”: “Se o signo é a pura e simples ligação de um significante com um significado
(...) de todo modo a relação só pode ser estabelecida no elemento geral da representação: o
significante e o significado só são ligados na medida em que um e outro são (ou foram ou
podem ser) representados e em que um representa atualmente o outro.44” Desse modo, “é
preciso que haja, nas coisas representadas, o murmúrio insistente da semelhança.45” Não se
trata, portanto, de pensar a representação como simples imitação cuja concretude “plastificou-
se”, mas de tomá-la como um possível em meio às narrativas de estupro as quais surgem em
continuidade, submetidas a uma espécie particular de Vertretung e à indulgência de um
significante paralógico. Não apenas, pois, submetidas a um princípio de inferência sobre a
vida das mulheres, mas, antes, de uma sucessão literária arbitrária que não se arrisca a
apresentar-se em devir, porque não há meios de alcançá-lo sem, antes, pensar na figuração do
estupro isento de sua própria representação.
Temos, assim, que o uso da palavra representação, neste caso, implicaria exatamente
em leituras que resistem à mímesis para, a partir daí, darem lugar a novos tropos e/ou
interpretações figurais. Evidentemente que isto não é uma regra. Isto, como colocado na
introdução, parte de uma inferência. Uma inferência que tenta olhar para as narrativas de
estupro sob três ângulos: da autoria, do texto e do crime. Sobre a autoria, penso ser pertinente
rememorar a afirmação de Booth:
Em suma, o julgamento do autor está sempre presente, sempre evidente para quem
sabe procurá-lo. Se as suas formas particulares são prejudiciais ou úteis é sempre
uma questão complexa, uma questão que não pode ser resolvida por qualquer
referência fácil a regras abstratas. Quando começamos agora a lidar com essa
questão, nunca devemos esquecer que, embora o autor possa, até certo ponto,
escolher seus disfarces, ele nunca pode optar por desaparecer.46


43
Id., ibid., p. 16-17.
44
FOUCAULT, M., 2016, p. 92.
45
Idem, ibid., p. 95.
46
“In short, the author’s judgment is always present, always evident to anyone who knows how to look for it.
Whether its particular forms are harmful or serviceable is always a complex question, a question that cannot be
settled by any easy reference to abstract rules. As we begin now to deal with this question, we must never forget
that though the author can to some extent choose his disguises, he can never choose to disappear.” BOOTH, W.
The Rhetoric of Fiction, 1961, p. 20, tradução minha.
Sob o ponto de vista do texto, é importante lembrar das dificuldades que subjazem o
trabalho com narrativas de estupro, evidenciadas nas reflexões de Robertson e Rose:
se o estupro é visto como sistêmico, a sua definição se torna mais difícil de
formular, uma vez que nossas próprias ferramentas de análise estão implicadas na
produção do estupro. Não é tanto que os trabalhos discutidos aqui - poemas de amor
da corte, entretenimentos reais, peças de teatro ou fábulas - mascarem o estupro, ou
que eles se deleitem enquanto fingem esconder o estupro. Pelo contrário, o estupro é
difícil de isolar para fins de análise porque (...) está profundamente enraizado nas
práticas pressupostas da cultura. Em razão de o estupro estar subjacente, como
argumentou MacKinnon, aos fundamentos da nossa estrutura social, separá-lo de
suas construções pode fazer com que a estrutura desmorone.47

E por fim, quanto à perspectiva criminal, resta-nos associar a ela as sempre


importantes contribuições da crítica feminista, tão potente em suas inflexões, muito embora
constantemente despontencializada por essa mesma estrutura que não quer se ver desmoronar.
Afinal, “na melhor das hipóteses, a crítica feminista é um ato político cujo objetivo não é
simplesmente interpretar o mundo, mas mudá-lo, alterando a consciência daqueles que lêem e
sua relação com o que lêem.48”
Este artigo termina com uma sugestão. Ao nos depararmos com narrativas de estupro
na literatura, ou mesmo em outros textos, outros campos, outras linhas discursivas, é preciso
que se pergunte: de que modo esta narrativa está sendo figurada? Pois do contrário, se não
estiver, sua representação já definhou; mas as análises seguem.

Referências
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clássica. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 17-52.
AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997.
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Ática, 1989.
BOOTH, Wayne C. The Rhetoric of Fiction. Chicago: The University of Chicago Press,
1961.
BUARQUE, Chico. Leite derramado. São Paulo: Cia das Letras, 2009.


47 “(...) if rape is viewed as systemic, its definition becomes harder to formulate, since our very tools of analysis
are implicated in the production of rape. It is not so much that the works we discuss here - courtly love poems,
royal entertainments, plays, or fabliaux - mask rape, or that they titillate while pretending to hide rape. Rather,
rape is difficult to isolate for the purposes of analysis because (...) it is deeply embedded in the assumptive
practices of the culture. Because rape my underlie, as MacKinnon has argued, the foundations of our social
structure, separating it from its constructs may cause the structure to crumble.” ROBERTSON; ROSE.
Representing Rape in Medieval and Early Modern Literature, 2001, p. 7.
48
“At its best, feminist criticism is a political act whose aim is not simply to interpret the world but to change it
by changing the consciousness of those who read and their relation to what they read.” FETTERLEY, J. The
Resisting Reader: a feminist approach to american fiction, 1978, p. viii.
FETTERLEY, Judith. The Resisting Reader: A Feminist Approach to American Fiction.
Bloomington: Indiana University Press, 1978.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
_______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
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SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 251-270.

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