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Copyright©2023 MARINA REZENDE

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Essa é uma obra de ficção com nomes, personagens, eventos e incidentes que são ou produto da imaginação da autora ou
usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com eventos reais, pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.

NÃO A PIRATARIA!
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AURORA & FRYDA©MARINA REZENDE


1ª EDIÇÃO — PUBLICAÇÃO INDEPENDENTE, BRASIL.

Revisão: Arquelana e Raquel Carvalho


Capa: Haila S.
Diagramação: Karolina Sant Anna
Para todas as garotas
que sabem que a maior característica de uma princesa é a coragem;

e para Laís e Tay,


por não me deixarem esquecer dos meus sonhos.
Esta história veio (de novo) ao mundo por causa de vocês.
PRÓLOGO

Em tempos turbulentos, outros reinos proclamavam que estavam em guerra, mas em Hymelia a
sentença era o contrário. Nós estávamos em paz, porque vivíamos em guerra.
Num mundo diferente do meu, talvez as ruas conhecessem crianças sorridentes e
atrevidas, obstinadas a surrupiar maçãs das vendas e pregar peças nos mais velhos. No entanto,
na minha cidade, no coração do reino, as hordas de soldados rondando cada esquina inibiam até
as almas mais corajosas.
Eu não podia culpá-las. Desde cedo, éramos forjados pelo medo.
Porque, para além da fronteira, escondida nas entranhas da floresta, reinava Mariellen, a
rainha feérica. A bruxa dos pesadelos. O terror das piores histórias.
Eu queria poder sonhar com princesas corajosas e reinos em que as pessoas não eram
despedaçadas pela fome. Queria crescer com a esperança da existência de um mundo melhor;
contudo, ninguém acreditava nisso. Só conhecíamos o reinado de terror de bruxa. A forma como
ela carregava no pescoço um colar de dentes de leite e se deliciava com o sangue humano. Como
raptava as crianças para escutá-las gritar. Como transformava nossos corpos numa mensagem de
guerra.
O medo não matava só meu povo. Matava nossas histórias.
E eu tinha minha própria maldição. Um destino fadado a lutar. Eu queria mais... Saber o
que era real e o que não era. O que havia para além da muralha. O que era aquela floresta
misteriosa escondida por um dossel de árvores, que eu observava da sacada do castelo.
Queria poder sonhar. Queria o direito de lutar por um mundo melhor. Por um futuro
diferente do que me prometeram.
E, para isso, eu precisava contar uma história. A minha.
Porque eu era Aurora de la Rivière, primogênita do rei de Hymelia, Dagoberto II. A sua
maior moeda de troca.
I

— Aurora! — gritou Gregório. — A senhorita faça-me o favor e pare!


O chefe de armas do castelo gritava, correndo atrás de mim com suas pernas curtas.
Cuidar de mim era o trabalho extra de todos no castelo.
O meu? Dificultá-lo.
Apertei as rédeas de Oliver e não parei. Quando montava a cavalo, eu perfurava os céus.
Voava. Era acordada para a vida. Tinha dez anos e já sabia que o coração a bater no meu peito
era de um cavaleiro.
Ele era indomável.
Joguei o corpo para a frente e disse — porque só os idiotas acreditavam que os cavalos
não entendiam nossa língua:
— Oliver, mais rápido!
O corcel negro voou e ignoramos as súplicas dos homens de meu pai. O portão da
muralha, imponente e majestoso, transformava-se num pontinho irrisório enquanto corríamos
como se fôssemos as únicas criaturas livres do mundo. Soltei o arreio e abri os braços, deixando
que a brisa fria envolvesse meu corpo.
Por um instante, eu estava protegida do medo. Ali, ele não me alcançaria.
Minha desobediência não era novidade para ninguém. Quando as aias ornamentavam
minhas madeixas castanhas com centenas de presilhas, eu tirava uma a uma e as trançava num
penteado simples e prático. As bainhas dos vestidos viviam sujas — senão rasgadas — e eu
preferia enfrentar meu próprio pai com uma espada a usar corpete. Por que as mulheres vestiam
algo que as impediam de respirar?
Sempre preferi os pés descalços. A trança livre arrebitada no ar. Os dedos sujos de
terra. Só assim conseguia me sentir livre, como se o destino à minha frente pertencesse só a mim
e a mais ninguém. Papai acreditava que eu era ingênua o suficiente para não compreender que
planejava um casamento pelas minhas costas, mas eu adorava meter o bedelho onde não era
chamada e descobria suas maquinações. Minha curiosidade era como uma picareta que escavava
segredos.
Eu desfrutava os momentos especiais como se minha vida dependesse disso. Queria
acreditar que eles eram possíveis.
Perdida nos pensamentos, notei que a corrida de Oliver tinha nos separado
consideravelmente dos meus acompanhantes. Gregório continuava a me chamar, mas sua voz era
um eco distante. Analisando o perímetro, percebi que a vegetação rasteira mostrava os primeiros
sutis sinais de mudança e as árvores frondosas abriam espaço para outras cinzentas e retorcidas.
O caminho que se abria entre elas parecia um abraço mortal.
Tirei uma mecha de cabelo da boca e olhei para trás, vislumbrando os pontinhos que
tentavam me alcançar. Estava a mais de duzentos metros de Colosso, a grande muralha que
protegia a cidade. Papai abria suas concessões porque desistia das proibições frente aos meus
chiliques monumentais, mas eu sabia que tinha ido muito longe.
Deveria segurar as rédeas de Oliver e recuar. Dizer adeus para a floresta. Não era bem-
vinda ali. Nenhum de nós era. Não deveria atravessar aquele limiar.
Bati de leve no pescoço do meu corcel e cheguei perto de seu ouvido, sussurrando:
— Oliver… Acho melhor irmos embora.
Ele, surpreendentemente mais teimoso do que eu, relinchou e se recusou a se mover,
bufando o rosto de um lado para o outro. Segurei as rédeas e cutuquei sua coxa com o calcanhar.
— Pare de ser birrento! Não tem maçãs aqui!
Discutíamos entre cochichos e relinchos quando notei, assustada, uma mudança súbita
no ambiente.
O vento parara.
Procurei pelo farfalhar das folhas, mas elas estavam tão silenciosas quanto. Senti um
arrepio gelado percorrer a minha nuca e terminar no lóbulo da minha orelha.
Aurora…
Meu coração parou. O tempo tinha-me roubado as maiores lembranças de minha mãe:
seu rosto, riso, toque...
Sua voz, contudo, era minha maior memória.
— Mamãe? — perguntei, olhando para a abertura escura do bosque. — É você, mamãe?
O Bosque dos Sussurros tinha esse nome porque, de acordo com os boatos, as árvores
enchiam os ouvidos dos mais covardes aos mais corajosos com murmúrios maliciosos, feitiços
sedutores. Todo habitante de Hymelia conhecia seus truques e não ousava se aproximar.
Mas, ainda que desesperada, esperança ainda era esperança. Eu precisava ter certeza. Eu
a perdi para uma doença quando ainda era muito nova e vivia com a dor de sua ausência.
Inflei o peito e guiei Oliver para a entrada do Bosque. Estava apoiada na ideia de que o
território fronteiriço era zona neutra e que Mariellen e sua trupe de feiticeiros não começariam
uma guerra se eu entrasse ali.
Suor frio escorria pelas minhas costas e todos meus pelos se eriçavam ao passo que eu
entrava em território desconhecido. Era errado, perigoso. Qualquer pessoa em sã consciência
teria medo, e eu não estava a salvo disso. Mas, se não o enfrentasse, poderia estar perdendo a
última chance. Já estava condenada ao meu destino e não recusaria o chamado de minha mãe.
Entrei nos confins do bosque, e minha fértil imaginação se tornou minha inimiga.
Vislumbrei rostos fantasmagóricos nos galhos retorcidos, silvos de criaturas maléficas rastejando
aos pés de Oliver. O corcel, em contrapartida, não compartilhava meu medo, apenas a frustração
ao constatar a ausência de maçãs. Seu relincho ecoava no silêncio, como se nós dois fôssemos as
únicas criaturas vivas ali.
Encolhi-me na sela, agarrando a crina dele. Meus dentes batiam, envenenada por uma
expectativa terrível. Quase torci para que um dos monstros das histórias me devorasse de uma
vez. Qualquer coisa era melhor que a ausência perturbadora de vida.
Apenas o escorrer das águas no cascalho em algum riacho distante e a sinfonia dos
insetos impediam o bosque de ser enterrado num fúnebre silêncio. Mesmo Oliver, o cavalo mais
corajoso de Hymelia, passara a caminhar cauteloso, a ferradura afundando na lama.
Estática no meio de uma floresta rodeada por lendas, tão perdida quanto um passarinho
fora do ninho, dei-me conta do verdadeiro perigo e fui tomada pelas lágrimas. Desejei, mais do
que nunca, o colo de minha mãe, suas mãos segurando as minhas, dizendo-me para não ter medo
porque tudo ficaria bem. Sentia-me uma criança imatura e mimada, como as aias diziam, por ter
me arriscado por um sussurro. Por uma esperança que derretia entre meus dedos.
Paramos num lamaçal estendido à nossa frente, como se fosse um tapete vermelho no
castelo. Com medo de que Oliver pisasse em falso e escorregasse no lodo, desci de seu dorso,
afundando meus pés na terra. Aprumei o peito, segurei a sela do meu corcel e tateei o ar. Não
queria ser esbofeteada por um galho ou presa numa teia de aranha. Quando tinha escurecido?
Caminhando sem rumo, decidi admitir aquilo que envenenava meu coração: estava
perdida no Bosque dos Sussurros. Meu coração retumbava no peito, meus dentes tremiam sem
cessar. Morria de medo, e tinha raiva de mim por isso. Não queria gritar por socorro, voltar para
os braços de meu pai como uma princesa frágil e indefesa e dar razão ao que ele dizia sobre mim.
Até continuar perdida na floresta da bruxa soava melhor.
Armei-me com minha coragem — e um pouco de teimosia, confesso —, ergui as
bainhas do vestido e decidi seguir rumo ao desconhecido, quando fui surpreendida por uma
canção.
Eu tinha algum conhecimento em música. O castelo recebia uma sorte de artistas com os
mais diferentes instrumentos. Eles se esforçavam para cair nas graças de meu pai. Entretanto,
aquilo era diferente. Era como ouvir a voz das flores. Doce, suave e belo.
Puxei o estribo de Oliver e, enfeitiçada pela canção, segui a música. Que opção eu tinha?
Morrer de medo?
Paramos em frente a um conjunto de roseiras que parecia uma porta viva. Perguntei-me
como as flores poderiam crescer naquela escuridão, mas não queria saber a resposta. A floresta
tinha seus segredos.
— Oliver. Me espere aqui, eu já volto. Prometo.
Ele bufou para mim. Apontei para o caminho estreito, demarcado pelos caules
espinhosos das rosas:
— Você tem certeza que quer atravessar isso aqui?
Ele se deu por vencido e desviou a atenção para as árvores, esperançoso de que
encontraria uma maçã. Separar-me dele era como me mutilar; abandonar à deriva um membro
meu. Mas eu precisava saber a quem pertencia aquela voz.
Agachei para caber no caminho, arrastando mãos e joelhos na terra estranha. Por sorte,
ele também era curto, e antes que tivesse a chance de ficar presa, alcancei uma clareira.
Cobri os olhos, ofuscados pelo raio de luz que penetrava as profundezas daquele lugar.
As lendas, criaturas e sombras esfarelavam ao passo que meus olhos se acostumavam à visão
sublime da clareira. Flores de todas as cores cresciam pela relva, como um tapete infinito. Notei
pequenos sinais de vida: esquilos correndo de um lado a outro, libélulas bailando entre as árvores
e pássaros aconchegados em seus ninhos.
Tinha cheiro de paz. Era um jardim secreto, um refúgio intocado no coração da guerra.
No centro, havia um laguinho cristalino rodeado por flores infinitas. A luz solar, refletida
na água, criava a impressão de que figuras estranhas dançavam no ar. Era lindo, e eu me sentia
uma intrusa invadindo um espaço que pertencia apenas aos deuses e à natureza.
Contemplando a enigmática paisagem, notei, acocorada ao redor do laguinho, uma
criatura pequena e magricela cutucando a água com um graveto. Travei os músculos e prendi a
respiração, com medo de ser descoberta. Minha sorte é que ela parecia tão concentrada na
atividade que tinha se esquecido de erguer o rosto.
Meus instintos gritaram para que eu corresse o quanto antes. Eu não precisava ser velha
e sábia para saber que ela não era humana. Quem mais viveria ali escondida na floresta? Era
impossível. Eu precisava voltar, montar em Oliver e cavalgar para o mais longe possível. Minha
aventura chegara ao fim; até o cavaleiro mais corajoso temia a morte.
Mas não fugi. Não recuei.
Me aproximei quando ela voltou a cantar. Dei um passo à frente, cautelosa, e a grama se
remexeu ao meu movimento. A menina se sobressaltou, encarando-me com grandes olhos de um
cinza não natural, não humano.
E, ainda assim, ela não parava de cantar.
Sua voz era como um doce veneno. O gosto era bom, mas abriu um rombo no meu peito.
Senti uma saudade dolorosa da minha mãe, a raiva contida de meu pai. Toda a injustiça da guerra
reunida num único instante, num único coração.
Demorei para perceber as lágrimas que escorriam pelo meu rosto, e a criatura que se
aproximava de mim. Quanto mais perto ela chegava, mais eu me dava conta de algo muito mais
assustador do que as lendas.
Ela se parecia comigo.
A pele era alva como as colunas de alabastro do castelo, e os cabelos loiros me
lembravam o ouro, diferente dos meus, escuros. Ela tinha uma boca, dois olhos e um rosto quase
comum, não fossem as orelhas longas e pontudas despontando de sua cabeça.
Fechei os punhos e um arrepio gélido percorreu minha espinha. Papai dizia que nem
todos os féericos tinham dentes e garras afiados, porque eles se despistavam tentando ser como
nós, mas nenhum conseguia esconder a marca do monstro: as orelhas diferentes. Ainda assim,
em minha mente eles eram criaturas de corpos cobertos por pelos grossos e fétidos, que andavam
de quatro como animais carniceiros.
Ela não deveria ser tão… normal. Tão humana.
— Quem é você? — perguntei, altiva. Eu não era uma menina medrosa, era a princesa e
herdeira de Hymelia e tentaria agir como tal.
A garota se movia como um gato. Ágil, era como se os pés descalços estivessem em
sintonia com a floresta.
— Quem é você? — a menina rebateu, apoiando os braços magros na cintura. — Aqui é
a minha clareira!
Percebi que, apesar de tentar soar corajosa, ela estava mais assustada do que eu. Não
ousava chegar perto demais. Ela apoiou o corpo num tronco de carvalho, e pude observar suas
vestes, que mais pareciam uma extensão das folhas. A tiara prateada presa na testa tinha uma
pedra azul. Seus olhos cinzentos estavam genuinamente tristes, lembravam os de meu pai quando
ele chorava sozinho de saudades da minha mãe.
Aquilo tudo podia ser um truque. Vasculhei o terreno em busca de um pedaço de
madeira, uma pedra para usar como arma e, para ganhar tempo, continuei:
— Por que você tem essas orelhas pontudas?
— Por que você tem essas orelhas redondas? — cantarolou, o primeiro indício de
diversão atravessando seu semblante. — Eu sei que você não vai me machucar. Olhe ao seu
redor.
Desesperada, perdi o equilíbrio, à procura de alguma criatura que viesse me devorar ou
me estripar, mas tudo que encontrei foram… borboletas. Dezenas delas me rodeando em suas
infinitas cores.
— Elas são as minhas amigas e me disseram que posso confiar em você — falou,
erguendo a ponta do dedo indicador.
Uma borboleta voou até a menina, pousando em cima dele. As outras a seguiram e
voaram ao redor da cabeça da feérica como se estivessem a coroando. Ela ergueu os braços e
rodopiou, dançando para uma plateia invisível. Girava os pés e fingia voar como se fosse uma
das borboletas, de olhos fechados e canção nos lábios.
Não fazia sentido. Era contra aquilo que meu reino estava há décadas lutando?
— Não tenha medo, menina dos cavalos. No meu jardim secreto, ninguém irá nos
encontrar.
— Você conhece o Oliver? — perguntei, arriscando me aproximar. Minha curiosidade
não tinha limites.
— Então esse é o nome dele? — Ela parou, levantou o dedo para o alto e encarou um de
seus bichinhos. — Klérika me contou que havia uma garotinha perdida com seu cavalo na
floresta.
Franzi o cenho e cruzei os braços.
— Eu não sou uma garotinha. Sou Aurora de La Rivière. E não estou perdida, apenas
explorando a floresta.
A feérica expressou um sorrisinho que não alcançou seus olhos. Percebi que a distância
entre nós estava se esvaindo. Quatro, três, dois metros. Eu queria chegar mais perto. Queria olhar
para ela e enxergar o monstro sobre o qual tanto me falavam.
Por que não me atacava? Por que era tão parecida comigo? Por que conversávamos
como se fôssemos conhecidas, e não inimigas mortais?
Talvez fosse a sua canção, ou os feitiços secretos do bosque. Talvez eu tivesse morrido e
meu espírito voara para este limbo. Eu morri no momento em que entrei no bosque? O que
minha mãe estava tentando me mostrar?
— Achei que você fosse um monstro — sussurrei.
Ela me olhou por cima do ombro, sem tentar esconder as lágrimas cristalinas que
pendiam dos olhos.
— Não somos todos?
Não, quis dizer, mas as palavras não deixaram a minha boca. Pensei nos anos de batalha
que nos separavam, no banho de sangue que manchava nossa história. Dei-me conta do quanto
era jovem, ignorante sobre a vida. Com infinitas perguntas e nenhuma resposta. No entanto, de
uma coisa eu sabia.
Borboletas não voavam ao redor de monstros.
Uma delas pousou na mão da garota, e ela soprou-a para mim. O inseto veio em minha
direção e parou no meu ombro. Eu, que sempre tinha uma atitude para tudo, não consegui me
mover. Sentia meus pés e respiração presos à terra.
— Leve Klérika. Ela é curiosa sobre vocês humanos e indicará a saída para você e seu
amiguinho.
Eu não deveria acreditar nas palavras de uma feérica. Eram bruxos, demônios da floresta
e pesadelos das histórias. E se ela me levasse para o caminho da morte? Para as mãos da bruxa?
Mas era difícil odiar e temer alguém tão parecida comigo.
— Adeus, humana. Aurora de La Rivière. — Acenou, correndo para as entranhas da
floresta. — Mesmo que breve, estou feliz por ter te conhecido.
Observei, em silêncio, ela se afastar. Seu vestido esvoaçava entre os troncos das árvores
como se seu corpo fosse parte delas, uma filha da natureza. Eu deveria me sentir grata pela
oportunidade de ir embora, por estar viva, por ter um segredo que pertencia a mim e mais
ninguém.
Mas minha maldição não deixava. Queria perseguir um sonho. Por isso, pus-me a correr.
— Espere!
Ergui as bainhas do vestido. Meus pés tropeçaram nas raízes, e eu me recusei a parar.
Queria um fio de esperança, algo no qual acreditar, a ousadia de imaginar um mundo menos
adoecido.
Ela era mais rápida, mas eu tinha a força da coragem.
Alcancei a feérica e estendi o braço para segurar o dela. Meus dedos apertaram sua pele,
que era surpreendentemente quente como a minha. Fui invadida pelo seu cheiro de orvalho e
uma surpresa genuína no semblante. Havia um pacto secreto entre nós, a sabedoria de que aquilo
era imperdoável e o desejo de ir além mesmo assim.
— Seu nome — ofeguei. — Diga seu nome.
Estava preparada para ter meus ossos devorados, minha carne dilacerada pelos dentes
afiados que ela deveria esconder na boca. Os segundos de silêncio tentaram esgotar minha
ousadia, mas eu era mais teimosa do que aquilo. A floresta parou para nos escutar e ganhei uma
resposta em forma de canção.
— Fryda — respondeu. Um segredo. Um grande passo na minha história. — É Fryda.
II

Dagoberto II me observava apreensivo. Eu o conhecia há quase dezoito anos, sabia ler cada
linha de sua expressão. Os lábios comprimidos, o tamborilar dos dedos nervosos no braço da
cadeira e a respiração descompassada. A olhadela fugaz ao relógio pendurado em cima da porta
de entrada não era o olhar de um rei. Era o de um pai. E ele se preparava para dizer algo que eu
não gostaria de ouvir.
— Minha filha, fiquei sabendo que o príncipe de Borgouin está à procura de uma noiva
e…
— Pai. — O tom ferrenho de minha voz inundou o salão de jantar e findou as
esperanças do rei. — Não estou interessada em me casar com esse príncipe imbecil e com
nenhum outro!
Cruzei os braços, bufando, e ignorei a decepção de Dagoberto de la Rivière II, a mesma
que o perseguia há três anos. Ele massageou a veia saltitante da têmpora com as pontas dos
dedos, mais um sinal de nervosismo no rosto solene.
Ele não conseguia competir com meu gênio forte.
Apesar da resistência, eu compreendia o desejo de meu pai. Não tardaria para que eu
completasse dezoito invernos e, contra todas as expectativas de que quando crescesse me tornaria
uma moça feita e recatada, a bainha do vestido continuava suja e meus cabelos não viam uma
escova há dias. Continuava péssima em costurar e cozinhar. Meu perfume se assemelhava mais
ao cheiro dos estábulos do que lavandas.
E, acima de tudo, definitivamente não desejava me casar.
— Aurora — ele começou e eu revirei os olhos, a postos para mais um de seus discursos.
Poderia recitá-los com ele, já que se repetiam toda vez. — Nos últimos anos perdemos muitos
homens para a bruxa e os monstros da floresta. Não vai tardar para que as forças diabólicas
destruam nossas mulheres e enfeiticem a todos nós. Os Bourgouin são uma família poderosa e
com a ajuda deles, nós…
Interrompi o rei, cuspindo escárnio nas palavras:
— Basta eu fingir amar um estúpido que não se interessa em nada por mim, além do
meu dote, é claro, e o reino de Hymelia será salvo? Bravo, pai. A quem você quer enganar com
essa ideia, o povo ou a si mesmo?
Minha ferocidade nunca diminuíra, pelo contrário. Minha língua tornara-se mais afiada e
nem o rei era imune às minhas intempéries. Ele, cada dia mais velho, girou a taça de vinho nos
dedos, observando o líquido se mexer sem rumo definido, uma alegoria à nossa miserável
situação nos últimos anos, vítimas de uma guerra que para mim não fazia sentido.
Girando, girando e chegando a lugar nenhum.
— Não sei mais o que fazer, Aurora. — A súplica embargada de meu pai apertou meu
peito.
O tempo não fora gentil com ele e, nos momentos de fragilidade, conseguia perceber o
quanto Dagoberto definhava. Aparentava ser mais velho do que era. Seu rosto não via um sorriso
há anos. A amargura transformava seu sangue em veneno.
Levantei-me da mesa e me dirigi para a cadeira ao lado de meu pai — pertencente à
rainha, vazia desde a sua morte. Não queria me casar, mas jamais abandonaria meu povo.
Precisava descobrir como amolecer seu coração endurecido e propor algo a mais.
Propor esperança.
Assentei-me e tomei as mãos do rei nas minhas, apertando seus dedos. Ele ergueu o
rosto cansado, e era nítido como sofria quando olhava para mim. A lembrança de minha mãe só
não era mais vívida que a saudade.
— Cada vez você se parece mais com ela — murmurou, tocando minha face com o
dedão. — Tanto em aparência quanto em paixões.
Eu deveria fazer aquilo. Por minha mãe. Por nós. Pelo futuro de Hymelia.
— Paz, meu pai — sussurrei. — Nossa resposta é a guerra há muito tempo, e o que ela
nos trouxe? Mais dor. Mais morte. Vamos olhar para a paz.
Prendi a respiração. Estava jogando sal numa ferida ainda aberta, mas até quando
iríamos alimentar o medo e o ódio?
Dagoberto desvencilhou-se de meu toque com brusquidão, o semblante se distorcendo
pela mágoa. Aquele homem encolhido, de repente, ergueu os ombros e inflou o peito. Fiquei
assustada com o quanto a raiva o alimentava e tive medo de que ela fosse a ruína de Hymelia.
— Paz, Aurora? — Papai virou a taça de vinho nos lábios e gotas respingaram em sua
barba grisalha e espessa. Em seguida, bateu com a palma aberta na mesa. — Eles não pediram
paz para nenhuma das vilas destruídas, muito menos para meus soldados mortos. Quer que eu me
rasteje até aquela bruxa desgraçada e peça paz? Você é a princesa, é a minha filha. Deveria saber
tanto quanto eu que o nosso dever é proteger o reino, não entregá-lo na bandeja para assassinos
de crianças. De que lado você está, Aurora?
Encolhi-me como um bebê, açoitada pela sua fúria. Dagoberto inflamava o rancor que
perseguia Hymelia. Todos eles estavam machucados demais para ceder. Como eu iria convencê-
los da verdade?
De que existia uma feérica que também queria paz?
— Eu imaginei que você não aceitaria a proposta de noivado e precisei tomar medidas
drásticas, filha. — Ele desabou na cadeira e apoiou o rosto na palma da mão. — Os médicos
disseram que ainda sou fértil e que posso me casar de novo. Eu o farei, Aurora. Darei um
herdeiro para Hymelia.
Ergui-me de supetão, bufando.
— Você tem uma herdeira, Dagoberto. Eu sou sua filha — vociferei, rangendo os
dentes. — Eu não sou suficiente?
Às vezes acreditava que meu único pecado era não ter nascido um homem.
Não esperei pela resposta do meu pai. Não quando seu rosto enfurecido amenizou com
pena. Eu não precisava de piedade, mas de respeito. Empurrei a cadeira para trás e corri para a
saída, pisoteando o chão de mármore com a terrível certeza de que o dia em que meu pai se
cansaria de esperar chegaria em breve. Ele e eu seríamos obrigados a nos casar com pessoas que
não amávamos.
Lágrimas estúpidas insistiram em cair dos meus olhos. Mordi os lábios e engoli cada
uma delas. Recusava-me a chorar e dar qualquer prova de que eu era como as damas frágeis do
castelo, o sonho de minhas tutoras. Que questionassem meus modos, palavras e atitudes, não
minha coragem!
Serpenteei pelos corredores e desci uma série de lance de escadas, alheia à
movimentação dos criados. Estava fugindo das minhas tutoras; as paredes do castelo eram finas e
logo elas me reprimiriam pelo péssimo comportamento. Preferia manter uma péssima reputação
a aceitar, resignada, algo que não queria.
Diminuí o passo ao alcançar a escadaria central. Ela terminava no átrio, na direção da
saída do castelo, onde eu alcançaria a liberdade… Se não vivesse numa fortaleza fortificada e
cheia de muralhas.
Parei no salão de entrada, onde quadros com os bustos dos reis e rainhas Rivière
ornamentavam as paredes altas, sustentados por molduras de ouro. Eram o orgulho de Hymelia,
homens e mulheres gentis que floresceram o reino com fartura. O que meus tataravós diriam se
soubessem que a mesma guerra continuava sendo travada? O último quadro era meu favorito.
Estanquei em frente a ele, encarando a última rainha morta.
Mamãe.
Diferente das minhas avós, ela não era dona de um rosto solene. Os cabelos castanhos
soltos e o aro fino no lugar da coroa lhe davam um ar de camponesa, sorridente e alegre. Não era
uma mulher que via os outros de cima. Olhava na altura de outros olhos. Éramos tão parecidas
que eu perdoava meu pai por sentir tanto a sua falta toda vez que estava comigo.
Tão linda. Tão selvagem.
— Oi, mamãe — sussurrei, esperando por uma resposta que nunca viria. Ela nunca mais
falou comigo desde a vez que eu entrara na floresta, há quase oito anos. — O papai é um idiota.
Ele diz que quer se casar de novo, acredita? Homem tolo. — Amainei minha voz, esgotada de
raiva. — Ele vem conversar com a senhora todas as noites e acha que pode me enganar…
Minha raiva e tristeza se concentravam nisso. Por que meu pai pretendia repetir o
matrimônio, mesmo amando minha mãe? Por que não podíamos encontrar um caminho juntos?
Ele não conseguia enxergar que eu tinha sonhos. Que eu podia ser muito mais do que a princesa
fadada a se casar.
E eu mostraria a ele de que era capaz.
— Se ele perguntar para onde fui, minta por mim, por favor. Vou para a floresta.
Beijei as bochechas da pintura e jurei ver a ponta dos lábios de mamãe se repuxando
para cima, um aviso de que ela esconderia meu segredo. Em silêncio, despedi-me, dando
passinhos para trás. Levantei os babados do vestido e terminei de correr degraus abaixo,
atravessando a imensa entrada do castelo como se eu fosse o vento.
Lá embaixo, longe das sacadas, as muralhas me engoliam. O castelo fora erguido numa
parte elevada da cidade e os antigos reis não foram miseráveis em fortificá-los. Eu conseguia
escutar os passos constantes nos adarves, os olhares afiados das sentinelas vigiando pelas torres
de atalaia.
Eu compreendia o motivo. Entretanto, a verdade é que tanta proteção não passaria de um
exagero. Se os feéricos conseguissem invadir Colosso, nós estaríamos perdidos e ninguém se
protegeria. Nós apenas seríamos os últimos a morrer. Era incompreensível. Não haveria
vencedores, só mais dor. Mais mortes.
Para a minha sorte, na maioria das vezes os guardas não me paravam. A maioria me
conhecia desde criança e estavam acostumados com o meu gênio. De nada adiantaria me mandar
voltar para os meus aposentos ou ameaçar chamar meu pai. Eu também não era imprudente, não
me aventurava fora da cidade quando alguém desaparecia ou éramos ameaçados.
Desfrutávamos de um efêmero momento de paz, e não havia ataques há três meses.
Contudo, uma bruma de quietude densa pairava sobre a cidade, nos deixando no escuro. Todos
sabíamos o que o silêncio significava.
Balançando o rosto para afastar os pensamentos sombrios, corri em direção ao estábulo.
Escondia-me na companhia dos cavalos quando desejava um tempo sozinha. Oliver me entendia
melhor que as tutoras, não exigia que eu estivesse impecável ou que agisse de forma polida.
Aceitava quem eu era. Uma cavaleira. Uma sonhadora.
Adentrei as portas de madeira e perscrutei os olhos pelas bainhas, afagando os animais
pelos quais passava. O corcel branco de meu pai era o único a não gostar de mim e relinchou
perante minha presença. Mostrei a língua para o animal e jurei que nunca mais lhe daria uma
maçã. Mal-agradecido!
A baia de Oliver ficava no final do estábulo e saltitei em direção ao meu Puro Sangue,
cantarolando baixinho uma canção de ninar. Notei que sua porta estava entreaberta e, antes de
cumprimentar Oliver, franzi o cenho. Observei Matt, o cavalariço, escovar os pelos de meu
animal. Ele mordiscava um ramo de cereal e estava nu do peito para cima. Minhas bochechas
ruborizaram, era inadmissível andar daquela forma nas dependências do castelo.
— Com licença. — Fingi uma tosse rouca para chamar a atenção dele. — Poderia me
deixar a sós com Oliver?
Ao som da minha voz, o cavalariço se destrambelhou e pulou da cadeira. A escova caiu
de suas mãos e ele tentou pegá-la, sem sucesso. Mordi os lábios para não desatar em
gargalhadas, observando-o vestir a camisa pelo lado avesso.
— Vossa Alteza, o que posso fazer pela senhora? — ele perguntou, forçando seu melhor
sorriso. Não era incomum escutar as empregadas comentando sobre sua aparência, contudo não
conseguia vê-lo da mesma forma. Conhecia Matt desde que era criança.
Cruzei os braços e bufei, estapeando o chão com um pé só.
— Você sabe que detesto quando me chamam de Alteza.
— Meu pai arrancaria meus dentes se eu te tratasse diferente, Aurora. Não tenho culpa
se você é a princesa e eu só o empregado.
— Ah, pare com isso! Os cavalos não vão dedurar ninguém.
Nós dois rimos, e ele desistiu de fingir que não era o meu único amigo de verdade no
castelo.
— E a que devo as honras, Aurora? Vai cavalgar para além da muralha de novo? Você
sabe que é…
Ergui os braços e revirei os olhos. Não queria escutar o mesmo discurso.
— Certo, certo. Eu sei que é perigoso, possivelmente mortal, mas o nome zona neutra
tem um significado, sabia? Eu já fui centenas de vezes lá e estou vivíssima.
Matt sentou-se num montinho de palha e suspirou. O coitado ainda não havia aceitado
que jamais me convenceria.
— Eu só me preocupo com sua segurança. Você não é só a princesa, Aurora, é a única
herdeira. E se aqueles monstros demoníacos te pegarem?
Cerrei os punhos e mordi o lábio inferior, aprisionando minha língua, ou ela revelaria
meu segredo. Tentara convencer Matt de que podíamos lutar pela paz, mas sua reação fora quase
tão reativa quanto a de meu pai. Não podia culpá-lo. Seu irmão mais novo fora levado na calada
da noite.
Aconcheguei-me ao seu lado e baguncei sua cabeleira loira.
— Me pegarem? Se esqueceu de que meu cavalo é o mais rápido do mundo?
Oliver, que estava ocupado demais mordiscando feno para escutar nossa conversa,
relinchou em aprovação. Dei um tapinha em seu quadril.
— Eu poderia selar o Oliver, mas esse corcel consegue ser tão teimoso quanto a dona e
não deixa ninguém chegar perto dele.
— Eu não diria teimoso, mas corajoso.
Ergui-me, pegando a sela de couro. Preparei meu cavalo e me impulsionei para subir em
seu dorso. Segurei as rédeas, agradecida pelo toque confortável delas na palma de minhas mãos.
— Pelo menos me diga que vai acompanhada — disse Matt, acariciando o pescoço de
Oliver. — É muito..
— Perigoso, eu sei! Assim que os guardas me virem vão mandar Gregório atrás de mim,
não se preocupe. E, além do mais — inflei o peito. — Não tenho medo de nada!
Ao sair do estábulo, atravessamos o território da fortaleza num átimo, entre galopes e
gargalhadas. Asas imaginárias cresceram em minhas costas e a angústia se dissipou ao passo que
eu voava com Oliver. Pensamentos de guerra e casamento morreram no precioso instante em que
meus olhos miraram a ponte levadiça que nos separava da cidade.
Ouro não apagaria o desejo pela liberdade, queimando como brasas pelo meu sangue.
Terras infinitas não seriam o bastante para me fazer esquecer meu sonho. Ainda que longínquo,
eu não aceitava o impossível.
Possibilidade era esperança. E a esperança não era uma coincidência do acaso, era a
consequência de acreditar, de sonhar com Hymelia sem muralhas.
Paramos em frente ao portão principal da fortaleza e minha súbita alegria se dissipou.
Sentia-me tamponada por aquela vigilância. Na entrada do castelo, os adarves eram ainda mais
caóticos e eu me perguntava se as sentinelas dormiam. Se tinham família, ou viviam para a
proteção de Hymelia.
A vida de todos era perseguida pela ameaça da guerra.
— Abaixem os portões e a ponte! — gritei em direção à guarita, torcendo para que o
soldado a postos fosse um dos que me apreciavam.
Minhas preces foram atendidas, pois o som das correntes se movendo preencheu o pátio
da fortaleza. Empertigada em minha melhor postura, atravessei a ponte, observando os sinuosos
detalhes do rio que circundava o baluarte e garantia nossas reservas de água. Cristalino,
peixinhos de diversas cores nadavam de um lado para o outro, alheios à loucura que se apossava
da terra. Apreciava minha breve sensação de liberdade. Logo, logo, uma guarnição viria atrás de
mim.
Em contraste com os peixes, a cidade era cinzenta. As memórias não cicatrizadas
tornaram as pessoas amargas. A paz nunca conquistada feria não só nossos corpos, mas a ideia
de um futuro.
Meu pai insistia que não havia uma família em Hymelia que não fora afetada pelos
monstros, porque apesar deles nunca terem invadido a cidade com o exército de Meriellen,
esgueiravam-se entre as ranhuras das muralhas com seus feitiços, roubando crianças e
assassinando homens em seu sono. Ninguém estava em segurança.
Enquanto cavalgava entre os transeuntes, notei o semblante sombrio das pessoas.
Estavam perdidas dentro de si mesmos. Como eu poderia pedir que sorrissem, que acreditassem?
Não adiantava convencer meu pai, havia um reino à minha espera.
E eu também era culpada. Culpada por ser incapaz de dizer a verdade. Ela também me
assustava e meu povo não estava pronto para compreendê-la, não com cicatrizes tão recentes.
Do mesmo modo que morríamos de medo dos feéricos, os pesadelos dos feéricos eram
os humanos. Quem eram os monstros? Quando eu fechava meus olhos, via todas as mãos sujas
de sangue.
Acenei para um casal que se dirigiu a mim. Sentia-me culpada pelo estômago cheio
enquanto a fome vinha assolando as pessoas desde que os inimigos queimaram nossas plantações
há meses atrás em retaliação aos ataques na floresta. Cada ataque era rebatido com mais
ferocidade, e no fim as pessoas em seus corpos famintos pagavam o preço.
Tentando afastar os pensamentos, diminuí a velocidade para observar a vida na cidade.
Não precisava temer ataques, pois os guardas eram quase tão numerosos quanto os cidadãos. Um
cachorro latindo copiosamente chamou minha atenção e me virei para um sobrado.
O contraste com a fortaleza era gritante, pedras irregulares amontoavam-se uma em cima
da outra e o telhado de madeira tinha um aspecto de podre. Em frente à espelunca, uma criança
puxava as saias da mãe, choramingando baixinho. A mulher retirou uma maçã bolorenta do bolso
e entregou para a filha, que segurou a fruta com brilho nos olhinhos.
Meu cavalo comia maçãs melhores que aquela.
A pequena sequer devia entender o porquê lutávamos. Era mais uma vítima da ausência
de histórias.
Apertei as rédeas, e o sangue no meu pulso ferveu. Eu poderia fazer algo, mas o quê?
Talvez eu não fosse tão corajosa quanto pensava. De que adiantava me compadecer por sua
situação se minha piedade não a alimentaria?
Meu estômago embrulhou de vergonha. Continuei a observar a menina mastigar a fruta
com ardor, como se fosse o maior banquete em todo o reino. Ao perceber minha atenção, ela
pousou o olhar em mim e abriu um sorriso radiante com alguns dentes faltando. Minhas
bochechas ruborizaram quando ela gritou:
— Princesa Aurora! Mamãe, é a princesa!
A criança me alcançou num pulo e acariciou o pescoço do meu corcel. Apesar de sempre
ter respostas na língua, meus lábios se embolaram quando, em toda sua inocência, ela me
perguntou, estendendo a maçã.
— Quer? Tá muito gostosa!
Fui incapaz de responder. As palavras morreram como cinzas em minha garganta.
— Ai, deuses — praguejou a mãe, agarrando o braço da menina. — Perdão, Alteza,
Miny é tão atrevida, que vergonha!
— Por que cê tá chorando, princesa?
Pisquei os olhos e só então notei duas lágrimas que desciam silenciosas por minhas
bochechas. A mãe de Miny continuava a se desculpar, quando era eu quem deveria me ajoelhar e
implorar por perdão.
Enquanto ela morria de fome, eu estava protegida atrás das muralhas.
Enxuguei as lágrimas com a manga do vestido e vesti meu melhor sorriso. Eu ainda era a
princesa, deveria dar o exemplo, não trazer mais sombras para a cidade.
— Myni, não é? — A menina sorriu de novo ao ouvir seu nome. Tossi para recuperar a
voz. — Eu vou à floresta e prometo que te trarei a melhor fruta de lá. Que tal?
— Vossa Alteza, não precisa de tanta gentileza… — a mãe murmurou, nervosa,
meneando a cabeça.
— Eba! Prometo que te espero aqui. — Myni cantarolou, saltitando com as mãozinhas
na crina de Oliver.
Nenhum não chegue perto da floresta ou cuidado com os monstros. Só um pedido
inocente. Era tudo que eu precisava: um pequeno lampejo de esperança.
Despedi-me de Myni e continuei a cavalgada. Como uma flecha em direção ao alvo,
segui em direção a Colosso. Tinha esse nome porque a muralha media seus gigantes vinte metros
de altura. Dentro dela, sentia-me numa gaiola, de asas cortadas. As pedras maciças e cinzentas
contribuíam com as cores mortas, deixando a impressão de que todos os dias eram nublados.
Eu queria sol. Queria cor.
Alcancei o portão principal, um gigante de ferro regido por uma dezena de soldados.
Acima, nas guaritas, sentinelas perscrutavam o perímetro com seus olhos afiados, averiguando
qualquer movimentação na floresta. Sendo a única entrada da cidade, ele precisava ficar aberto
para que os comerciantes entrassem e era fechado caso alguma ameaça rondasse a capital.
Uma carroça diferente do habitual entrava na cidade. Maior, carregada por jumentos no
lugar de cavalos e coberta por um pano espesso. Curiosa, esperei que passasse para ver o que ela
carregava.
Percebi, dentro do compartimento, figuras esguias cobertas por capas pretas, abraçadas
umas às outras. O silêncio pesava, como se o interior da carroça fosse imune ao som. Tinha
cheiro de poeira e tristeza, e prendi a respiração ao constatar que…
Eram pessoas.
— Refugiados. — Ressoou a voz, ao mesmo tempo que tocava meu ombro esquerdo. —
A cidade está infestada por eles. Estão com medo dessa paz repentina.
Virei-me para trás, não surpresa pela presença de Sir Otto Estivalet. Apesar da barba
branca espessa e as rugas nos cantos dos olhos, a postura rígida do homem assemelhava-se à sua
posição de comandante da muralha. Trajava couro fervido e uma insígnia de ouro no peito,
conquistada pela sua bravura em repelir os inimigos. Seus dedos tamborilavam o cabo da espada.
Orgulhava-se por ser o maior matador de feéricos. Diziam que ele era imune aos seus feitiços.
Era o melhor amigo do meu pai e seu fiel conselheiro.
— Como Hymelia está alimentando todos? — perguntei, notando a chegada de outra
carroça.
O comandante suspirou como se o peso do reino repousasse sobre seus ombros. Por um
segundo, pareceu velho de verdade. Cansado demais para sustentar Colosso e a reputação que
tanto o orgulhava.
— Não estamos, Aurora.
Quase caí de Oliver, embora no fundo imaginasse a verdade. Meu pai me mantinha
alheia aos assuntos mais urgentes do reino. Por que ele não confiava em mim? Por que me
obrigava a aprender a costurar, cozinhar e cantar enquanto o povo morria aos pouquinhos?
— Eu vou mudar isso — afirmei, tremulante. Raiva. Medo. Confusão. Sentimentos
conflituosos me embalavam.
A indiferença não era um deles.
Encarei o território por trás da muralha, contemplando o bosque. Minha resposta morava
ali, atrás das árvores, escondida numa clareira.
— Otto, eu vou para a floresta e ordeno que o senhor não tente impedir. — Tentei soar
ríspida. Sentia-me uma criança perto dele.
O homenzarrão bufou, escondendo uma risada abaixo do bigode. Ele não negou,
entretanto, não me deu a liberdade que eu gostaria.
— Três de meus homens vão com a senhora. Se algo acontecer com você, Aurora, é meu
pescoço na forca. — Os guardas designados aproximaram-se de nós e Otto vociferou: —
Cuidado com os demônios, nem pense em atravessar a fronteira.
Engoli em seco e assenti. Não cruzava a zona neutra, mas estava brincando com a sorte.
Era um milagre nunca ter topado com outro feérico. Questionava-me se algum deus me
guardava, embora tendesse a recusar a existência deles. Que tipo de deus permitiria a
continuidade da guerra?
Senti-me liberta de minhas dúvidas quando deixei as muralhas para trás e cavalguei pela
relva banhada pelo sol, destinada ao chamado da liberdade. A linha do horizonte não tinha fim.
A planície era infinita, e o verde abundante brilhava sob o calor. Era um mundo dolorosamente
lindo.
Minha trança serpenteava pelas costas e o vento fustigava meu rosto enquanto Oliver
desatava a correr, cada passo mais rápido que o outro, voando como se ambos fôssemos um só.
Não ouvi mais os cascos dos cavalos dos guardas, tampouco seus murmúrios que ficaram para
trás. Minha habilidade em cavalgar era notável e deixá-los para trás não foi difícil.
Voltei no tempo. Para o dia que o bosque me chamou há sete anos. As lembranças eram
doces em meu peito, um refúgio onde eu podia me esconder. Uma parte de mim rogava para
continuar e nunca mais olhar para trás. Queria descobrir o que havia além da guerra, da raiva, do
luto.
A outra me puxava de volta. Tinha o rosto de Miny ainda fresco nos meus pensamentos.
A maçã podre em suas mãozinhas. O sofrimento eterno no rosto de meu pai. O silêncio dos
refugiados.
Que tipo de princesa eu seria se fugisse e abandonasse os meus?
Aproximei-me da orelha de meu corcel e disse, certa do que deveria fazer:
— Vamos, Oliver. Vamos para o bosque.
III

Oliver diminuiu o trote ao encontrarmos a entrada da floresta. Antes, o caminho de galhos


retorcidos me assustava, como se fizessem parte de uma história de terror. Agora, eu era íntima
deles como uma amiga de longa data. Os guardas do castelo e os de Sir Otto não me
encontrariam. A floresta não contava seus segredos para todos.
Desci do dorso de meu corcel e afastei os galhos secos para que ele pudesse entrar no
lugar. O silêncio fora quebrado por nossa presença, pisando em folhas e discutindo um com o
outro — apesar de Oliver apenas relinchar enquanto eu esbravejava quando me cortava nos
espinhos. Ele ainda não tinha entendido que não havia maçãs por ali!
Passamos pela entrada, invadindo a intimidade do bosque. Era escuro, as folhagens
densas das árvores cobriam a maior parte dos raios de sol, mas minha guia sempre estava à
minha espera.
A borboleta azul me aguardava, pousada num tronco apodrecido do chão. Agachei-me, e
ela voou para meu dedo.
— Klérika — sussurrei. — Você veio nos buscar.
Ela alçou voo, e eu e Oliver a seguimos. Sentia-me num conto de fadas, rumo a um
mistério. Não importava quantas vezes eu refizesse o trajeto, sempre havia algo novo; o chirriar
de uma coruja, uma teia diferente onde antes não havia nada, formigueiros em lugares
estratégicos. A vida respirava com tranquilidade ali.
Avistei o grosso tronco de carvalho, meu principal ponto de referência para me situar na
floresta. Heras tinham-no reivindicado e pequenas criaturinhas faziam-no de casa. Virei-me e
acariciei o pescoço de Oliver que bufava percebendo que seria deixado a partir daquele ponto.
— Ei, eu já volto, tá bom? Vou pegar uma maçã para Myni e para você, esfomeado!
O corcel pareceu satisfeito, pois aquietou-se e abaixou o pescoço, mordiscando as
gramíneas. Retirei folhas de meus cabelos e espantei os insetos que voavam ao meu redor.
Poucos metros à frente, uma parede de arbustos salpicadas de frutinhas roxas me esperava. Nas
primeiras vezes eu ficava confusa, mas aceitara os mistérios do bosque: as flores sempre
mudavam. Rosas, hortênsias, copos de leite. Deveria perguntar para Fryda qual era o nome
daquelas. Enfiei minhas mãos entre elas, engatinhei pelo caminho estreito e deparei-me com meu
lugar favorito no mundo inteiro.
Eu nunca me acostumaria com a visão.
O sol me embalou, afastando qualquer sensação de frio. Na água, sapos coaxavam,
juntando-se com a dança das folhas e as luzes etéreas que cobriam o lago. Lancei-me para dentro
de meu jardim secreto, saltitando no ar. Abri os braços e fechei os olhos ao rodopiar, meus pés
amassando as folhas secas que cobriam a relva.
Eu não precisava fingir, me esconder ou mentir na minha clareira. Gozava da dádiva de
poder ser eu mesma. Só parei de dançar quando minhas costas toparam com uma presença suave
e cálida, cujas mãos geladas cobriam meus olhos.
— Adivinhe quem é — ela perguntou. Sua voz fora feita para canções, como se fosse
filha de pássaros.
Tateei os dedos longos, sentindo o anel grosso no indicador. Não falávamos sobre ele,
assim como não falávamos sobre o meu. Alguns assuntos eram territórios proibidos. Em seguida,
subi entrelaçando minhas mãos nas delas.
— Como você sempre sabe que cheguei, Fryda? — perguntei, virando-me em direção à
minha amiga.
Suas vestes estavam impecáveis. O vestido azul turquesa realçava os cabelos loiros. Em
sua cabeça repousava uma coroa de pétalas recém-colhidas. Sua presença era inverossímil, como
se fizesse parte de um sonho, não do mundo real e vil em que vivíamos.
De repente, minhas bochechas ruborizaram, como se eu finalmente tivesse me dado
conta de meu estado deplorável. Cabelo desgrenhado, roupas imundas, sapatos cheios de lama.
Fryda não se importava, no entanto. O largo sorriso continuava a estampar seu rosto.
— As borboletas me contaram. — Com a vaga resposta, ela virou-se para o lago,
ajoelhando-se em frente à água cristalina. — Você viu, Aurora? Têm tantos peixinhos coloridos
hoje. Juro que tem!
Das muitas coisas que eu gostava nela, talvez essa fosse a maior. Nos tratávamos como
iguais, sem barreiras. Sem muralhas. Ela era o primeiro ser para o qual eu confessara meu
cansaço, meu medo, minha esperança de um futuro melhor. Fryda não me reprimiu, mas me
abraçou, sussurrou que pensava como eu.
Entretanto, tínhamos as mãos atadas.
Fryda era incapaz de fazer mal a uma formiga. E foi com a sua bondade que aprendi a
dura verdade: meu pai era tão culpado quanto a bruxa Mariellen. Minha amiga me confessara
que seu povo morria quando o meu queimava suas florestas, e que a expansão das cidades os
obrigavam a fugir de seus lares e se refugiarem em territórios de outros clãs.
Estávamos sob uma neblina de nervosismo, porque meses de paz traziam uma
expectativa excruciante. Quanto mais tempo demoravam para se atacar, piores eram as chacinas.
Sentia-me esmurrando uma parede de concreto. Eu sabia que deveria lutar, mas como?
— Aurora? — ela me chamou, observando-me com os grandes olhos cinzentos. — Você
está bem?
Não adiantaria mentir. Fryda tinha o péssimo hábito de farejá-las. De braços cruzados,
atravessei o caminho que nos separava e sentei-me ao seu lado, escorando o rosto entre as mãos.
Ela me esperou. O silêncio entre nós era confortável, não insistíamos.
Abri meus lábios e engoli as palavras em seguida. Tinha medo de dizer o que me afligia.
Medo de que a verdade estilhaçasse nossa amizade. Eu acreditava nela com todo meu coração,
mas no mundo em que vivíamos o nós era errado.
Observei Fryda de canto de olho, seu rosto plácido, as mãos descansando no colo e fios
de cabelo grudados na boca. Aquela criatura que meu povo considerava monstruosa era a mais
dócil e gentil que eu já conhecera.
Até quando nos encontraríamos em segredo? Até quando seguiríamos em frente juntas
sem sermos envenenadas pelo ódio?
Só havia uma resposta.
— Não aguento mais, Fryda. — Abracei os joelhos, aflorando aquilo que balançava meu
coração. — Não aguento mais viver com medo, sem saber se posso ousar sonhar com um futuro.
Hoje estou aqui com você, mas pode ser que amanhã… eu…
Pensei em Myni e na sua mãe; em como seus corpos pareciam varetas dentro dos trapos
largos.
— Posso estar morta. Podemos estar todos mortos — concluí, escondendo meu rosto
entre meus braços.
Fryda se aconchegou ao meu lado, encostando o corpo no meu. Ela apoiou a cabeça no
meu ombro e suspirou. Fui inundada pelo cheiro dos seus cabelos e minhas bochechas
esquentaram. Era como acender uma fogueira no meu peito gelado.
— Eu também tenho medo — ela murmurou. Soava triste, e isso ampliava ainda mais a
minha dor. — Medo de nunca mais ver os passarinhos e as borboletas, de perder nossa clareira.
De nunca mais te encontrar.
Fryda ergueu-se, a cascata de cabelos roçando na pele do meu braço onde os galhos
tinham rasgado as mangas do vestido. Ela embalou meu corpo num abraço, e não pude deixar de
retribuí-lo. Eu era orgulhosa e teimosa demais para desarmar minhas fortalezas, mas com Fryda
tudo era fácil. Ela não julgava, mas compreendia. Sabia escutar com os ouvidos e com o coração.
Segurou meu rosto entre suas mãos e, encarando-me, pediu:
— Vamos fugir. — Sua boca estava tão perto do meu rosto que pude sentir o frescor de
seu hálito. — Vamos deixar a guerra para trás, Aurora. Viver é melhor do que morrer, e eu quero
viver com você.
Seu rosto se acendeu com um súbito lampejo de esperança. Ainda que a clareira
permanecesse em seu pacato silêncio, uma tempestade eclodia dentro de mim. E dela também,
pois seus dedos tremiam sobre minhas bochechas.
Oliver era saudável e veloz, aguentaria nós duas. Poderíamos usar o elemento surpresa
até que nossos povos constatassem nosso sumiço. Nossas joias valeriam uma boa quantia em
dinheiro, e trabalhar não seria um problema. Qualquer coisa era melhor do que apodrecer entre as
muralhas. Viveríamos uma vida de fugitivas, sem olhar para trás. Mas poderíamos conseguir.
E o restante de Hymelia?
— Não podemos abandoná-los, Fryda — sussurrei, fechando os olhos.
Ela entrelaçou os dedos nos meus e não precisou implorar para que eu percebesse o
tamanho de seu desejo.
— Já fomos abandonadas, Aurora. Há quanto tempo estamos tentando convencer
alguém, uma única alma, a aderir a nossa causa? Já faz sete anos. E o que diriam sobre nossa
união? Que ela é um pecado? Eu não quero viver assim. — Ela fungou, mordendo o lábio
inferior. — Não vou permitir que me digam que não posso estar ao seu lado.
Meu corpo tremeu.
— Nós podemos tentar mais, Fryda. Podemos suplicar por um encontro e…
Ela largou minhas mãos e bufou, cruzando os braços. Uma flecha de raiva percorreu seus
olhos, e eu não soube o que fazer. Nunca a via irritada.
— Sabemos que isso é impossível. — Fryda suspirou, baixando a guarda. Estávamos tão
cansadas de correr em círculos. — Sei que você tem um coração puro, um de ouro. Só não quero
te perder, Aurora.
— Eu também não — murmurei. Ela virara um pedaço de mim, da minha carne e da
minha alma. Era a única com a qual eu me permitia compartilhar meus sonhos.
E eu não podia desistir deles.
Meus pensamentos voaram para meu pai, um homem quebrado cujas únicas companhias
eram a solidão e o rancor, apodrecendo na cadeira do trono. Pensei nele conversando com o
quadro de minha mãe em segredo, todas as noites. Tão confuso e perdido como eu. E Miny? O
quão miserável era a vida de alguém cuja única esperança é uma maçã?
Os refugiados sem rosto e nome continuariam chegando em busca de um lugar para
sobreviver, não de uma casa. Que futuro Hymelia teria, banhada pelo rancor? Meu sumiço e o de
Fryda iriam aflorar o ódio. Eu não era responsável apenas por minha vida, era a princesa e
carregava as esperanças de um reino inteiro. Minha dignidade exigia sacrifícios. Mesmo o mais
doloroso deles.
Levantei-me, aprumei o peito e, de coração partido, disse:
— Eu não posso, Fryda. Não renunciarei ao que acredito.
Esperei que ela gritasse comigo, suplicasse para que eu fosse junto e me expulsasse de
sua vida.
O sorriso triste doeu muito mais.
— Eu sabia que você diria isso, Aurora. Conheço todas as nuances da sua alma. Mas
nossa clareira é pequena demais para mim. Eu vou embora.
— Não. — Tentei segurá-la, mas seus pés ágeis a afastaram de mim. — Não, não, não.
Corri em sua direção. Ela se desviava de meu abraço, como se dançasse terra, enquanto
eu tropeçava nas raízes.
— Eu estou cansada de enfrentar os meus próprios monstros e de viver com isso.
Existem coisas que nem você entenderia, minha amada amiga.
— Não me deixe, Fryda. — pedi. — Por favor, não me deixe! — implorei. — Eu não
consigo sem você.
O que eu faria sem a outra metade do meu coração?
Esperei, ingenuamente, que ela mudasse de ideia. Que dissesse estar disposta a enfrentar
o ódio comigo. Ela era meu elo de esperança.
— Eu nasci para ser livre como as borboletas. — Finalmente, deixou-me alcançá-la,
envolvendo-me num abraço. Permanecemos em silêncio, até ela acariciar meus cabelos. — Não
sou como você. Não tenho toda essa coragem.
Ela afagava-me com ternura enquanto eu lutava para esconder as lágrimas.
— Eu não consigo sem você, Fryda. — Minha voz saiu embargada.
— Consegue, sim. Pode tentar mentir para si mesma, mas nunca vai conseguir mentir
para mim. Você é a criatura mais pura e valente que já conheci.
Fryda segurou meu rosto entre as mãos e encostou a testa na minha. Ambas fechamos os
olhos, em silêncio, até que nossa respiração e corações batessem em conjunto.
Fui tomada pela emoção, saudade, raiva e amor quando ela roçou os lábios na minha
testa. Fryda era uns bons centímetros mais alta do que eu, apertei-a num abraço e afundei meu
rosto em seu peito.
Minhas lágrimas molharam seu vestido e ela cantou para mim, aliviando as angústias em
meu peito. Por um instante, a floresta aquietou-se, como se nos observasse, à espera de alguma
resposta. Torci para que Fryda me empurrasse para trás e fosse embora. A despedida seria mais
fácil assim.
— Eu não posso te pedir para ficar. Um pássaro na gaiola não canta — falei, trêmula.
Ela se afastou, sem tirar os olhos dos meus. Havia uma tensão palpável entre nós, um
não dito que gritava para ser revelado. Meu coração retumbava tão alto que temi que fosse
acordar a floresta.
Fryda desceu a mão direita para o meu peito e sussurrou:
— Você é tão linda, Aurora. Sempre quis te dizer isso.
Travei, incerta do que fazer. Percorríamos um caminho perigoso, ainda nebuloso para
mim. Era possível saber e não saber? Sentir e não sentir? Fryda povoava meus pensamentos há
anos, e eu, em segredo, imaginava como seria sentir seu toque. A maciez da pele em lugares
onde eu nunca ousara pensar.
Dissera que eu era corajosa, mas, apesar da nossa intimidade, eu estava assustada com
aquilo que não conseguia compreender.
— Prometa-me — pedi, a voz tomada pela saudade antecipada. — Prometa que vai
pensar em mim.
— Pensar em você, Aurora? — Fryda riu, e a clareira se iluminou ao som de sua alegria
agridoce. — Você me ensinou o que é esperança. Mas não pode me proteger para sempre. Eu…
Ela mordeu o lábio e encarou o chão, envergonhada. Dividíamos o mesmo coração, mas
não os mistérios. Eu desistira de tentar descobri-los, embora ficasse preocupada com a sombra às
vezes descia sobre si.
— Não quero fazer coisas ruins — completou. — Não quero machucar ninguém.
Sangrávamos há anos e ela, que nunca levantara o dedo contra uma formiga, temia fazê-
lo?
Segurei a mão dela, levando seus dedos para perto de meus lábios. A urgência me
empurrava para longe da timidez, gritava para que eu saboreasse os últimos instantes ao seu lado.
Queria que ela me revelasse tudo.
— Machucar, Fryda? Suas mãos foram feitas para curar. Para salvar.
Ela aproximou seu rosto do meu. Podia observar as sardas clarinhas que salpicavam seu
rosto como um oceano de estrelas. A marca de expressão na tez de alguém que refletia demais.
Perdi o ar quando, sem pensar, encarei sua boca. Pela primeira vez, ousei a me demorar na visão
de seus lábios. Qual seria o gosto dela? De flores silvestres, como o cheiro de seus cabelos?
— Vamos nos encontrar de novo, Aurora. Nessa vida, e em todas as outras — ela
sussurrou.
Cada vez mais perto.
— Você fala que eu sou a corajosa — sussurrei. O ar entre nós era quente. Tão, tão
próxima. — Mas é o seu espírito que é livre. Indomável. Ad…
Seu dedo indicador voou aos meus lábios, calando-me.
— Sem despedidas. Vou te esperar, Aurora.
Vou te encontrar, fiz a menção de dizer, mas meu corpo agiu primeiro, como se
soubesse os desejos que a mente tinha vergonha em admitir.
Eu era desajeitada e ingênua nos assuntos referentes aos sentimentos profundos. Meu
conhecimento se baseava numa memória distante da relação de meus pais. Não era algo
destinado a mim, fadada a um casamento forjado.
Desengonçada, desci minhas mãos para sua cintura. Estava tão horrorizada quanto a
primeira vez que entrei no bosque, tão no escuro quanto. Fryda se afastou e arregalou os olhos,
senti-me estúpida, mas em seguida ela segurou meu rosto com suas mãos geladas e se
aproximou. Mais. Mais.
Mais.
— Demônio! Afaste-se dela!
Fryda saltou para longe de mim, tão assustada quanto um animal encurralado.
Desesperada, vi que soldados de Hymelia entravam em nossa clareira pisoteando as folhas,
depredando a paz da floresta. Os animais corriam para seus esconderijos tão amedrontados
quanto eu, estancada no lugar. Minhas pernas não se mexiam.
Procurei por Fryda e não reconheci a criatura no seu lugar. Minha amiga, tão gentil,
tinha os olhos vermelhos fervendo em fúria. Garras longas cresciam em seus dedos, assim como
dentes pontiagudos feitos para retalhar. Sua postura era de defesa, prestes a atacar.
— Fryda! — gritei, forçando minhas pernas a se moverem. — Fuja!
— O demônio enfeitiçou a princesa Aurora. — Sir Otto chegara à clareira, sua espada
em riste, apontada contra o meu segundo coração. — Capturem-na!
Como, como eles haviam nos descoberto?
Dez soldados avançaram contra Fryda, dez homens covardes contra uma criatura doce e
indefesa. Resgatando toda a minha coragem, lancei-me em frente a eles, abrindo os braços para
que não a alcançassem.
— Parem! Chega de mortes!
Sir Otto, que liderava o ataque, cuspiu:
— Seu espírito é forte, Aurora! Resista ao encantamento! Esses demônios desgraçados
raptaram uma criança em plena luz do dia! Não está escutando o grito da mãe? Ela chama o
nome da filha: Myni, Myni.
Meu mundo girou. Encontrei-me prestes a desmaiar, com raiva e tristeza entaladas na
garganta. Eu já não era mais criança para acreditar em coincidências.
O que Myni fizera além de ser uma menina doce, feliz e esperançosa? Por que os
feéricos a raptariam? Até quando este abismo de vingança duraria?
Virei-me para Fryda, cercada pelos soldados. Suas costas estavam apoiadas num tronco e
ela perscrutava o ambiente com os olhos vermelhos, ameaçadora de uma forma que eu achava
ser impossível. Corri em direção ao pequeno cerco, gritando:
— Saiam de perto dela! É uma ordem!
Parei no meio do caminho, incapaz de me mexer. Um soldado me segurou pelo vestido,
e eu era incapaz de lutar contra a sua força.
— Iremos te salvar, princesa Aurora.
O grito de desespero sangrou minha garganta. Salvar-me de Fryda? Era patético,
horrível, cruel.
— Solte-me, seu desgraçado!
Eu lutava contra o ar, incapaz de vencê-lo. O soldado abraçou meu corpo, prendendo-me
contra ele. Bati, chutei e tentei mordê-lo, mas ele permanecia inflexível. Os outros, vendo que
Fryda não atacava, ousaram se aproximar mais.
Era minha culpa. No instante em que ela expressara seu desejo de ir embora, deveria ter
deixado que fosse. Fryda fora vítima do meu egoísmo e pagava por isso. A vergonha cresceu
como doença no meu sangue. As lágrimas escorriam junto com meus gritos, e ninguém me
escutava. Era uma mosca zumbindo contra uma legião.
Fryda agachou-se e enterrou suas unhas na terra. A magia era um assunto ignorado por
nós, ela sabia o quanto eu temia o mundo sobrenatural. Entretanto, senti seu poder no instante em
que ela uivou para o céu. Arrepios gelados percorreram minha espinha, senti minha pele coberta
por uma camada invisível de lodo.
A floresta escutou o seu chamado, e as raízes ganharam vida, eclodindo do subterrâneo.
O pandemônio se instaurou no instante em que as cartas viraram a favor de Fryda. As árvores
lutavam por ela, prendendo os soldados ao chão com seus troncos grossos. De cima, esquilos
lançavam nozes e outros frutos nas cabeças deles.
Mas, em vez de medo, eu tinha esperança. Ela ganhava tempo para fugir.
— Ela não pode fugir! — gritou Sir Otto.
O homem era invencível. Em vez de ceder para o terror, cortou a madeira com
movimentos precisos, libertando-se das raízes. Sua fama não se devia apenas à capacidade
exímia de matar os feéricos, mas por sua coragem. Ele correu atrás de Fryda com o vigor de um
homem de vinte anos, incansável na perseguição.
Respirei fundo e, aproveitando o temor do guarda que me prendia, lancei a cabeça contra
o rosto dele. Cambaleei com o impacto, jurei que vi estrelas. Meu plano deu certo, entretanto. O
soldado me soltou e eu não perdi tempo.
Minha alma só pensava em Fryda.
Corri como se minhas pernas fossem de penas, ignorando o cansaço. Não pensei duas
vezes em atravessar as árvores da clareira, em cruzar o limite proibido para uma humana. Quanto
mais adentrava a floresta, mais ela se fechava dizendo o quanto eu não era bem vinda.
— Fryda! — chamei, meus pulmões secos como areia. — Onde você está?
— Aurora! — escutei o eco da sua voz.
Resfolegando, parei no meio do lugar desconhecido, tentando segui-la. Escurecia, e eu
nunca me sentira tão perdida. O que me impedia de recuar era a esperança em vê-la protegida.
— Fuja daqui, princesa Aurora! — Sir Otto gritou. — Eles irão te matar.
A desesperança me inundava com sua chuva de angústia. Não aguentava mais a palavra
morte me perseguindo. No entanto, eu continuava lutando. Preferia continuar acreditando.
Por isso, continuei minha corrida. Corri como se eu fosse o Oliver, meus pés voando
através das folhas secas, raízes e lama. Meu coração retumbava no peito, as pernas ardiam, mas
nada disso importava.
Se algum deus existisse, ele teria visto minha vontade e se compadecido por ela. Feito
uma aposta em mim. Porque, após saltar por um tronco de cedro caído ao chão, avistei Fryda.
Fui tomada por um alívio instantâneo, pela graça de vê-la viva, linda e livre.
Demorei a perceber sua expressão de terror. A notar que estava desabada no chão,
sangrando e exausta. Demorei a ver a chegada de Sir Otto, tão inexpugnável quanto a muralha,
suas mãos agarradas à espada como se ela fizesse parte do seu corpo.
O cansaço me atacou de uma vez só. Minha boca tremia como se eu estivesse
mergulhada num lar de gelo.
— Não — consegui sussurrar, assustada, cansada e destruída.
Sir Otto parou em frente a Fryda, tão duro e inflexível quanto uma árvore velha. Ele
ergueu a espada, e meu mundo ruiu. Entretanto, em vez de escutar o grito de Fryda, um silêncio
aterrorizante se apossou da floresta. Sir Otto continuava estancado, a espada erguida para cima.
De repente, sua arma desabou.
De repente, ele caiu de joelhos.
Nas costas, onde estava sua armadura e o símbolo de Hymelia orgulhosamente bordado
na capa, um galho surgiu. Fino e afiado. Pintado de sangue.
À frente, Fryda tinha uma das mãos erguidas e me encarava com terror. Lentamente, o
galho voltou para sua árvore, indiferente ao cadáver de Sir Otto.
Não adiantava escapar da morte. Ela sempre nos encontrava,
— Aurora?
Fryda. A criatura mais gentil do mundo. Uma menina doce, um pássaro com sede de
liberdade.
Uma assassina.
— Eu… eu… — Recuei, demorando a perceber que criava uma distância entre nós. —
O que… o que você fez, Fryda?
Estávamos separadas por uma trilha literal de sangue.
—Desculpe-me — ela pediu, imóvel. — Desculpe.
Eu sentia o seu sofrimento. Sofria por ela, com ela. Mas agora compreendia o porquê do
meu povo temê-los.
— Vá embora, Fryda. Antes que seja tarde demais.
— Eu não posso. — Ela estava hipnotizada pelo corpo à frente.
Fryda ergueu as orelhas pontudas, e em seguida escutei os passos furiosos, ordens dadas
e os gritos de homens tomados pela ira.
— Fuja, droga! Vá embora! — Apontei para os confins da floresta. — Vá, antes que seja
tarde demais!
Mesmo na crescente escuridão, notei o brilho de lágrimas nos seus olhos prateados.
— Eu sou o monstro dos seus pesadelos, Aurora.
Não tive tempo de refutá-la. Braços fortes me envolveram por trás, ao passo que mais
soldados chegavam. Eles berraram ao avistarem o corpo de Sir Otto e ergueram as espadas
contra Fryda, mas o segundo no comando, disse:
— A prisioneira é valiosa. Vamos levá-la viva!
Fryda aceitou, sem lutar de volta, os grilhões em torno de seus braços e tornozelos. Os
soldados prenderam-na como se fosse um animal partindo para o abate.
E eu tentei gritar, mas a força e a coragem tinham me abandonado de uma vez por todas.
Os soldados voltaram para a capital carregando o corpo de Sir Otto embalado em folhas.
Eu observava, assombrada, seu rosto permanecia solene mesmo na morte. Não fosse o buraco no
lugar do estômago, poderia jurar que ainda estava vivo, como se seu ódio pelos feéricos fosse um
elo que o impedisse de seguir para o outro mundo.
O terror estampava os rostos dos habitantes. Uma capital em completo silêncio era tão
assustadora quanto uma batalha. Meus dedos tremiam segurando as rédeas de Oliver, minha
mente anuviada pelo medo. Eu precisava ser forte, era a princesa e a protetora do reino, mas me
sentia a criatura mais assustada.
Ou melhor, a segunda.
Era torturante não olhar para trás. Torturante saber que Fryda fora amarrada pela cintura
a um dos cavalos e seguia a pé. Seus pés delicados rasgados por pedras e areias. Fui informada
de que a levariam apenas no cair da noite, quando os aldeões estivessem a dormir. Caso
contrário, talvez ela não alcançasse a fortaleza com vida.
A visão do castelo Rivière balançou meus ossos. O lugar que eu chamava de casa seria a
prisão de minha amiga. E eu, que agarrava a coragem com todas as forças, sentia ela escorrer em
meus dedos.
De peito e cabeça erguida, segui em frente, atrás dos soldados e do cadáver de Sir Otto.
Hymelia choraria a morte de seu herói, mas meu luto fora abafado. Precisava pensar em tirar
Fryda dali o quanto antes; sequer cogitava o que poderiam fazer com ela. Queimá-la? Arrancar
sua pele? Exibi-la como um troféu? Mordi os lábios, o gosto ferroso de sangue se espalhando em
minha boca.
Passávamos pelo corredor de aldeões assustados, quando os soldados pararam. Puxei as
rédeas de Oliver, espiando à frente. Uma mulher de um rosto castigado pela fome e frio, estava
estancada, de punhos fechados. Em vez de medo, seu semblante estava irado. Demorei a
reconhecê-la porque a vira com um sorriso no rosto, não com uma fúria colérica.
— Onde está minha menininha? — falou a mãe de Myni. No silêncio, soou como um
grito.
Minhas palavras foram caladas pela vergonha. Myni e Fryda capturadas. Sir Otto morto.
A guerra em incursão. Corações partidos.
—Desculpe, senhora, não conseguimos recuperar sua filha e… — começou o soldado da
frente.
— Onde está minha menininha? — ela aumentou o tom de voz, os dentes rangendo, as
lágrimas descendo pelas bochechas.
Seus olhos cravados em mim, como se eu tivesse respostas.
Ela abraçou o corpo e caiu de joelhos, liberando a angústia que lhe corroía, carregando
consigo a dor de centenas de mães que tinham perdido seus filhos, a desesperança pela certeza de
que não seria a última a sofrer o pior dos desesperos.
Agarrei a crina de Oliver e rezei em silêncio para acordar do pesadelo. Eu não podia
chorar, precisava oferecer uma palavra de conforto e de luz, mas só havia trevas à minha frente.
Todos os sonhos e ideais tinham se tornado pó, frágeis como vidro.
Os soldados seguiram, ignorando o pranto da mãe. Deitada no chão, em posição fetal,
parecia uma criança. Passei direto, fingindo que encarava o horizonte, deixando um rastro de
vergonha pelas costas. No final, meu pai tinha razão. Ele precisava de um herdeiro. Eu era
insuficiente.
Hymelia não podia permanecer nas mãos de uma covarde.
IV

Dagoberto nos esperava na entrada do palácio, guardado por uma vintena de soldados. Eu o vi
primeiro, trajava um gibão, a coroa e a capa, mas em vez de exalar a magnitude real, tinha a pele
pálida de um doente. As notícias corriam mais rápido que nossos cavalos. Seus olhos
percorreram a multidão, e percebi um peso imaginário cair de seus ombros quando ele me viu.
Desengonçado, correu até mim, e toda a força que eu tentava reunir, ruiu.
Desci de Oliver e corri de encontro com meu pai, trêmula, os dentes batendo e as pernas
duras. Ele me alcançou, prendendo-me num abraço, e desatei a chorar. Chorei por Fryda, agora
prisioneira, por Sir Otto, um homem morto, por Myni, uma criança perdida. Pela luz que se
apagava em mim.
— Papai, papai. Termine isso, por mim, eu te imploro, eu me caso, eu vou embora, eu
aceito ser substituída, só termine com isso.
Senti-me de volta no tempo, há tantos anos, quando ele me consolava quando eu corria
ao seu quarto com medo dos monstros que se escondiam debaixo da cama. Eu não imaginava
que esse monstro seria enorme, que cobriria nossa vida com sua sombra de rancor.
— Tive tanto medo de te perder, filha — falou, abraçando-me com mais força, como se
nunca tivéssemos nos separado.
Meu pai afastou-se e segurou meu rosto entre as mãos, mais severo dessa vez.
— Nunca mais vá para a floresta, Aurora. Não é o pedido de um pai, é a ordem de um
rei. — Ergueu-se e sua dor denunciou o que procurava. — Onde ele está?
Os soldados, envergonhados, trouxeram o corpo de Sir Otto, acomodando-o no chão.
Dagoberto se ajoelhou ao lado do amigo, fechou seus olhos e chorou baixinho. Os homens se
afastaram, respeitando sua privacidade, mas eu não desviei o olhar. Agora, em segurança, podia
reviver as memórias.
Fryda tinha feito aquilo. Minha Fryda.
Mas... fora Sir Otto quem a perseguira. Fryda só queria fugir, deixar a morte para trás,
não procurar por ela.
Por que eu não sabia a quem culpar? E por que isso doía tanto?
— Onde o demônio está? — perguntou Dagoberto, seu rosto escondido pelo cair da
noite.
Estremeci, encarando a muralha. Logo, Fryda entraria por suas portas, no domínio de
seus inimigos. Suas boas vindas seriam a vingança. Eu não podia permitir que aquele ciclo
vicioso continuasse girando para sempre.

Em estado de alerta, não consegui dormir. Observava o mundo além das muralhas e do
horizonte. Não tinha mais forças para chorar, e meu corpo estava duro como o gelo, esperando o
momento de quebrar.
O funeral de Sir Otto aconteceria no dia seguinte, e se eu forçasse meus ouvidos,
escutaria o lamento da cidade por sua morte. Eu não sabia discernir o que me assustava mais: seu
rosto empalidecendo, a constatação da morte chegando aos poucos, ou a fúria irrefreável que
transformava o homem gentil num monstro.
Não havia onde desembocar a culpa, e eu não queria que meu medo fosse consolado pela
raiva. Ela não seria minha carrasca.
Meus olhos pesavam quando escutei a cidade acordar. De fôlego preso na garganta,
agarrei a mureta da janela e vi, de longe, o bruxulear das tochas dos aldeões. Os gritos
começaram como uma orquestra, um instrumento depois do outro, mas a música não era bonita;
era aterrorizante.
Já vestida, calcei sapatilhas e desci as escadas correndo até alcançar o átrio do castelo.
Uma guarnição de guardas estava à espera de Fryda chegar, de lanças e espadas em mãos. Minha
vontade era de esmurrá-los, gritar que eram uns covardes. Se vestiam para a batalha quando a
inimiga era uma menina mais assustada do que eles.
Cerrei os punhos e respirei fundo, contendo meu gênio. Não perderia a guerra contra
meus sentimentos inflamados. Minha melhor amiga estava em perigo, e eu precisava salvá-la.
Pedi licença para os soldados que me permitiram passar, embora eu soubesse que seus
olhos de gaviões não desgrudariam de mim. Minha relação com Fryda só não fora questionada
porque acreditavam piamente que eu estava sob algum feitiço, mentira que não tentei refutar.
Meu pai não insistira em perguntas porque sequer imaginava a possibilidade de eu não odiar uma
feérica.
Empertigado à frente dos guardas, eu o vi. As costas eretas e os ombros firmes eram
estranhos a mim, acostumada com a figura corcunda e pequena de Dagoberto. Pela primeira vez,
em muito tempo, ele parecia um rei. Um homem que não fora derrubado pelo tempo.
Por que isso me assustava tanto?
— Pai! — chamei ao alcançá-lo. Ele sorriu quando me viu, como se eu estivesse feliz em
fazer parte daquele reinado de terror.
— Finalmente, minha querida. Finalmente caminhamos para a vitória. — Dagoberto
parou, com voz embargada. — Os deuses são bons, Aurora. Quando somos resilientes às
desgraças, eles nos presenteiam com muito mais.
Murchei, indefesa como uma criança. Fiz menção de tocá-lo, mas recolhi minha mão
rapidamente. Eu não queria consolar aquele homem enlouquecido pelo rancor. Tinha que quebrar
a roda. Não com raiva, não com medo.
O que eu tinha contra esses poderosos oponentes, senão a esperança?
— O que adianta, pai? — sussurrei para só ele ouvir. — O que espera fazer capturando
um deles, senão inflamar a disputa?
— Esses demônios pegaram um dos nossos, Aurora. Uma garotinha da cidade. Quer
razão mais digna que essa? Retaliação, minha filha. Um rei não pode ceder perante seu povo.
Pensei em Myni, sozinha na floresta. Será que ela estaria viva? O que os feéricos faziam
com os humanos? A mesma coisa que fazíamos com eles? Preferia não me agarrar ao que as
lendas diziam, ouenlouqueceria. Havia escutado inúmeras histórias de crianças raptadas, mas
Myni tinha nome e rosto. Eu não podia simplesmente esquecê-la. Era um dos poucos corações
puros em Hymelia.
— E se trocarmos a prisioneira pela criança? — perguntei, embora soubesse a resposta.
Dagoberto deu de ombros.
— A criança está morta, Aurora. Além disso…
Meu pai se calou quando as sentinelas gritaram para que abrissem o portão que levava à
parte superior da fortaleza, onde esperávamos a chegada de Fryda. O barulho das engrenagens
arranhava meus ouvidos e a expectativa corroía minhas esperanças.
Dois garanhões entraram guiando uma carroça coberta por lona. Eu não tinha dúvidas de
que Fryda estaria desesperada. Usei o que restava das minhas forças para não tentar libertá-la ali
mesmo. Meu plano devia ser extremamente cuidadoso, ou nossas vidas estariam em risco.
— Não é sua culpa ter sido enfeitiçada por essa bruxa, Aurora — disse meu pai,
pegando-me de surpresa. — São criaturas ardilosas. E essa, em especial, é uma das mais
poderosas delas.
Encarei o chão para que meu pai não percebesse o misto de sensações que trespassava
meu rosto. Uma gota de suor frio correu pela minha espinha e meus dedos tremeram.
O que ele queria dizer com aquilo?
— Eu não entendo, pai. — E dessa vez dizia a verdade.
Não entendia como Fryda, tão gentil e inofensiva, controlara a floresta e matara um
homem. Não entendia o porquê de a capturarem com vida em vez de matá-la, como faziam com
os outros. Não entendia porque arriscar trazê-la para a fortaleza sabendo que era poderosa.
Sentia-me injustiçada, como se eu não a conhecesse e tudo tivesse sido uma mentira.
Minha ignorância em relação ao mundo era traiçoeira.
Dagoberto botou a mão no meu ombro, hipnotizado pela imagem da carroça.
— Tirem a lona!
Os guardas obedeceram, revelando minha Fryda. Não a que eu conhecia, mas a que tinha
olhos vermelhos e poder o suficiente para matar alguém. Estava machucada e enjaulada, mas era
mais ameaçadora do que os guardas vestidos de ferro, mesmo que suas mãos estivessem atadas
por grilhões de aço. O metal em contato direto com a pele anulava a magia dos feéricos.
Estremeci, com medo de que não me reconhecesse.
— Finalmente a pegamos — Dagoberto murmurou, como se tentasse se convencer. — A
filha da Mariellen. Eu vou vencer esta guerra.
Arregalei os olhos e perdi o ar, um bolo de angústia envolvendo minha garganta. No
mesmo instante, Fryda me olhou e me reconheceu. Viu-me por trás de seus olhos vermelhos, de
sua raiva contida.
Minha Fryda era a filha da bruxa que assombrava nossas histórias. Eu me recusara a
perceber. Preferia ficar no escuro e não captar os sinais. Sua fuga era mais urgente do que eu
podia imaginar. Ela também entendia o que era ser uma filha da guerra. Vítima da vingança.
A esperança se dissolveu. Para onde eu olhasse, só via derrota e medo. Fraquejei e caí de
joelhos no chão, as lágrimas que eu achava ter secado voltando a inundar meu rosto. A
impossibilidade de visualizar um futuro era dolorosa. Não havia espaço no mundo para nós.
Fryda tentara fugir das garras da mãe para cair nas de meu pai, seu maior inimigo.
V

Dagoberto transformava a captura de Fryda num maldito espetáculo. Os soldados rugiam em sua
direção, gritando: bruxa, demônio. Eu me encolhi ao lado do rei que batia palmas e regozijava
com seus homens. A filha de Mariellen. Ele tinha ido longe demais. Os meses de trégua se
romperiam numa noite.
Fryda reagia como um animal machucado: ameaçava com seus dentes afiados quem a
encarasse, rosnando e tentando morder quem ousava chegar perto demais. Correntes apertavam
suas mãos e pernas, tratavam-na como um animal. Um monstro.
Ela continuava sendo a minha querida, minha amiga. Eu compreendia de onde nasciam
as lendas sobre os feéricos, entretanto, elas não passavam de meias verdades, porque eu conhecia
o outro lado. Ela era alguém que também sofria, também tinha medo, também sonhava com um
mundo melhor.
Enterrei as unhas nas palmas das mãos e voltei para a realidade, pensando nas
consequências de um ato não calculado. O pátio da fortaleza era um campo aberto, não havia
para onde fugir ou se esconder. Estávamos todos sob a mira das bestas dos sentinelas. Ninguém
acreditaria em mim se eu dissesse a verdade, talvez fosse taxada de louca ou, pior, herege, e tudo
estaria perdido.
— Demônio desgraçado — Dagoberto cuspiu, o rosto cheio de repulsa. — Que aquela
bruxa maldita venha até mim. — Ele desembainhou a espada, a lâmina prateada rugindo na
multidão. Encolhi-me com a quantidade de ódio que parecia crescer e tomar forma. — Vou matá-
la! Venha, Mariellen!
Eram todos covardes. Engoli minha raiva e vesti uma máscara de medo, puxando o
roupão de Dagoberto. Não era o melhor dos planos, mas jogaria com o que tinha em mãos.
— Para onde estão levando esse monstro, papai? — Odiei-me pelo uso da palavra,
imitando o escárnio e nojo dos soldados. Precisava convencê-lo.
— Para as masmorras, minha bela e amada filha. — Ele nem ao menos me olhava,
enfeitiçado pelo vislumbre da vitória.
Engoli em seco e endireitei o corpo quando, enfim, Fryda foi deixada à nossa frente.
Com lágrimas nos olhos, tornei a encará-la. Uma máscara de raiva cobrira seu rosto e, se eu não
soubesse a verdade, teria acreditado nas histórias ao ver, de perto, seus grandes olhos vermelhos.
Eu a conhecia. Não via a extensão de Mariellen, mas, sim, uma menina forte que
também desejava romper o ciclo. Eu a libertaria e, se precisasse, morreria tentando. Nós éramos
uma luz de esperança e eu me recusava a vê-la se apagar.
Ela cravou o rosto em mim e, mesmo sem saber se entenderia, balbuciei, sem emitir
som:
— Eu vou te tirar daqui.
Puxei a capa de Dagoberto, chamando sua atenção.
— Pai, quero te acompanhar nas masmorras. — Ele levantou a mão direita e fez menção
de negar, mas o cortei. — Eu preciso ser corajosa, sou uma Rivière e quero me certificar de que
ela está bem presa e de que posso resistir ao feitiço.
— Meu amor — ele sussurrou, me abraçando de novo. Não retribuí o gesto. — Pedi
tanto aos deuses que te mostrassem que a vitória é a única solução. Orgulha-me tanto saber que
finalmente os aceita como ameaça e não se ilude com a ideia ridícula de paz.
Não me senti mal em nenhum segundo pela mentira. De punhos cerrados, assenti,
seguindo a guarnição em direção às masmorras. Queria averiguar em qual cela iriam prendê-la e
a disposição dos guardas que a vigiariam. Eu nunca tinha matado nada além de alguns insetos,
mas me pareceu plausível assassinar uma horda inteira para que Fryda fugisse.
Dagoberto marchou para a gaiola, parando a centímetros da minha amiga. Ela agarrou as
grades e cuspiu em sua direção. Meu pai se manteve inerte, o que excitou os ânimos dos
soldados.
— Criatura miserável. É ainda mais horrível de perto! — O maldito gargalhou e as
sentinelas o acompanharam. Apenas eu não compartilhava aquele delírio. Que coragem era essa
em que dezenas de homens riam de uma mulher enjaulada?
A guarnição seguiu em direção às masmorras. Para eles, um espetáculo; para mim, uma
marcha fúnebre. Nuvens escuras escondiam o céu, como se as luas e estrelas não quisessem ser
testemunhas daquela atrocidade.
Dois guardas torceram a alavanca e ergueram o alçapão de ferro. Aberto, um cheiro
fétido de sangue emanou do interior. Minhas pernas tremeram ao imaginar que, ali tão perto,
existia um tipo de inferno. Franzi o nariz, observando Fryda de esguelha. Ela parara de resistir,
amuada no canto da gaiola. Meu coração pesou. Entretanto, precisava ser paciente e forte por nós
duas.
— Carreguem o demônio para baixo! — O rei ordenou, apontando a espada para a
entrada escura do alçapão.
Fryda foi obrigada a se mexer quando os soldados a espetaram com a lança. Ela rosnou
em contrapartida. As armas continuaram apontadas em sua direção enquanto um dos
comandantes a guiava pelas correntes.
Meu pai me empurrou para trás quando eles passaram ao nosso lado e ela não expressou
reação diante da minha presença. Confiei em sua atuação — torcendo para que fosse uma — e
segui atrás da guarnição, descendo o lance de escadas em direção às prisões.
Os degraus rangiam com a força dos passos odiosos e o odor de morte se intensificava.
Apesar das tochas, o lugar ainda era dominado pela escuridão e eu não conseguia enxergar mais
de dois palmos à minha volta. O clima estava abafado, quente como o inferno, mas lá embaixo o
ar frio congelava meus ossos.
O silêncio foi abalado pelo som de grades se abrindo, seguido por um chute e um
choramingo suave e angustiado. Queria gritar, roubar uma espada de algum soldado e enfiá-la no
coração daqueles desgraçados.
Respirei fundo para conter a raiva, ainda que meu ímpeto implorasse para explodir. Os
archotes foram postos em suportes na parede e pude observar o calabouço. Fryda acuava-se no
canto da prisão. Preferia escutá-la rosnando, a quietude me fazia perguntar se ela se renderia
àquela loucura.
Eu não. Nunca.
— Quero dezoito soldados à postos, nove para o turno do dia e outros para a noite. —
Quem falou foi Flaubert, o general do exército. Ele mencionou os nomes dos homens escolhidos
e me arrepiei ao ouvir alguns deles. Eram todos guerreiros renomados, heróis de guerra que
ostentavam mortes de feéricos nas mãos. — Ninguém entra aqui sem a minha permissão.
Dagoberto apertou os dedos no meu ombro direito, suspirando.
— Homens, os deuses nos ouviram e a vitória está a um passo à nossa frente. Amanhã
organizarei um banquete em comemoração ao destino que se ergue nas mãos de Hymelia!
Eu era uma intrusa naquele calabouço. Abracei meu corpo, sentia frio nos ossos ainda
que os soldados queimassem em sua pestilenta glória. Cerrei os olhos, desejando que o delírio
não passasse de um pesadelo. Assim que os abri constatei que nem meus piores sonhos
expressariam o terror que eu sentia.
Não só por Fryda, mas pelo que sua captura significava. Fomos longe demais e era
injusto e cruel que o rei comemorasse a esperança de uma vitória enquanto a cidade estava
abarrotada de pessoas famintas. Enquanto Myni estava desaparecida. Enquanto um sonho morria.
Saímos do calabouço e meu coração continuava ali, perdido. Com todo o ímpeto de
minha vida desejei olhar para trás, dizer que eu a salvaria. Mas tive que fingir indiferença.
Meu plano só funcionaria se minha postura fosse impecável. Subi as escadas, atravessei
o alçapão e fui inundada pelas lascas de luz douradas que pintavam o céu. O dia nascia, mas para
mim o terror da noite se perpetuaria enquanto Fryda estivesse presa.
Dagoberto ordenou que fôssemos descansar e sua voz demonstrava a altivez de anos
atrás, como se a glória estivesse voltando para seu lado.
— Amanhã, minha filha — disse, beijando minha testa.
Não esperei o desenrolar do crepúsculo. Corri para dentro do castelo, desejando distância
daquela realidade, mas enquanto Fryda fosse refém de uma guerra sem sentido, eu jamais estaria
livre.
Subi as escadas com o peito descompassado e a respiração irregular. Escutei o castelo
comemorar a captura de Fryda. Ao alcançar meu quarto, bati a porta e me joguei na cama,
cobrindo os ouvidos para escapar daquela música terrível. Eu estava sozinha contra um reino
inteiro, lutando contra o rancor e o sentimento de vingança que nos assolava há séculos.
Adormeci agarrando-me ao pensamento de que valeria a pena lutar se isso significasse
liberdade para Fryda. Agarrando ao pensamento de que nossa pequena centelha de esperança
seria poderosa o suficiente contra a escuridão.

Na manhã seguinte, fui requisitada para um banquete. Deixei as aias me vestirem como
queriam, arrumando meus cabelos num coque trabalhado e pintando minhas bochechas com um
rosa suave. Sentia-me patética, uma boneca feita para agradar olhares. Estava exausta e
angustiada demais para retrucar.
Mal tocara meus talheres, o prato à minha frente esfriava. Eu era um ponto apagado no
meio daquele incêndio de vozes estridentes e promessas de guerra.
— Deixe que a bruxa venha, nos preparamos para isso há anos! — rugiu o general
Flaubert, brindando com seus homens.
Lordes e suas esposas, habitantes do castelo, acompanhavam a alta patente do exército
divertindo-se e delirando com promessas vazias. E, no centro deles, Dagoberto, o rei que de uma
noite para outra renascera como um novo homem.
O banquete antecederia o velório de Sir Otto. O luto, contudo, fora abafado pela força da
vingança. Ninguém falava do cavaleiro morto, só da criatura capturada. Faziam perguntas,
pediam detalhes e me restava mentir e manter minha farsa.
— Não me lembro — dizia, mecânica. — Não sei.
No decorrer daquela tortura, minha angústia vinha se transformando em algo mais
pungente e ácido. As mentiras, a lembrança de Fryda acuada numa jaula, a fruta podre nas mãos
de uma criança, os refugiados na cidade sem terem para onde ir.
Errado.
Estava tudo errado e ninguém parecia perceber, ou melhor, se importar com isso. Como
a simples possibilidade de uma vitória sem sentido era mais urgente que salvar e proteger o
povo? Fui tomada pela raiva. Raiva pela injustiça, pelos futuros não permitidos. Ninguém falava
em paz, só em vingança. Só em manter girando a roda adoecida que vinha nos matando. Que nos
obrigava a sujar nossas mãos com sangue.
Meu sangue ferveu. Destrocei o frango marinado em meu prato com o garfo, minhas
pernas se remexiam sem parar debaixo da saia do vestido. Algo dentro de mim gritava para sair.
Meu estômago embrulhava com a ânsia de ser obrigada a ouvir as mentiras horríveis sobre
Fryda.
Eles não a conheciam. Fryda não era uma assassina, era a prova de que a guerra
infestava até o mais puro dos corações. Até o mais bondoso e caridoso deles. Eu nunca deixaria
que continuassem corrompendo-o.
— Deveríamos queimar a floresta com todos aqueles monstros dentro — disse uma
senhora.
Meus nervos estavam inflamados. Sentia-me prestes a entrar em combustão.
— Expor a cabeça da criatura fará com que os demônios saiam de seus covis — pontuou
Flaubert.
Eu e Fryda éramos diferentes. Ela era como a água, calma e resiliente. Já, eu?
Eu era fogo.
Dagoberto lançou seu melhor sorriso e disse para a mesa:
— Finalmente vislumbro a vitória de Hymelia — colérico, continuou. — A minha
vitória.
E, por isso, não me calaria.
Empurrei minha cadeira para trás e me ergui, batendo as palmas das mãos na mesa.
Ignorei o medo e inflei o peito de coragem.
— Vitória? Algum de vocês já desceu para a cidade nos últimos meses? As pessoas
estão com fome. E o que vocês fazem? — Apontei para os inúmeros pratos postos na mesa. —
Ignoram isso e se banqueteiam!
Meu pai encarou-me com o rosto contorcido em fúria e confusão. Ele ameaçou falar e eu
fui mais rápida, estrondando minha voz pelo salão de jantar:
— Não é a guerra que está destruindo Hymelia. É o ódio! Vocês estão cegos pelo rancor.
O salão se calou. Escutei apenas o som da minha respiração enquanto meu peito subia e
descia sem cessar. Fechei os punhos para que ninguém visse meus dedos trêmulos e pensei em
Fryda. A memória de nós era o elo que me impedia de desabar diante dos olhares inquisidores.
Flaubert foi o primeiro a falar.
— Crianças são tão idealistas. A vida é mais dura que isso, Alteza.
O murmurinho seguiu a represália do general. Senti-me a atração principal de um circo,
um bobo da corte. Não cedi. Não permitiria que o ódio continuasse afogando as histórias.
Ergui o corpo, levantei um ombro e, com queixo erguido, disse:
— Antes idealista do que covarde.
O general arregalou os olhos e meus pelos se arrepiaram quando meu pai sibilou:
— Basta. — Virei-me para encarar o rei. No lugar da ira, encontrei uma angústia
palpável. Eu preferia a raiva. — Saiam todos, deixem-me sozinho com Aurora.
Sem delongas, os convidados deixaram a mesa enquanto eu procurava um foco com meu
olhar apreensivo. Os criados também não demoraram em nos deixar. Meu pai não se mexeu e
senti meu peito prestes a explodir.
Já havia fugido por tempo demais. Meus sonhos não podiam existir só na minha
imaginação. Eles ansiavam por mais.
Num instante, o salão de jantar abarrotado de pessoas estava vazio. Restava-me encarar
meu pai, com a certeza de que tinha feito a coisa certa. Tinha passado tanto tempo procurando
brechas para falar sobre paz, mas elas de nada adiantaram. Teria que gritar ao mundo o que eu
pensava e sentia. Alguém ouviria, assim como Fryda ouvira uma vez.
Dagoberto ergueu-se, dessa vez mais cansado e velho do que nunca, como se um mero
instante desmoronasse a figura solene de antes. Ele caminhou em direção ao grande vitral que
ornamentava a parede do salão, uma imagem de terror que mostrava humanos assassinando
feéricos. De costas para mim, não conseguia ver sua feição, mas sentia a tensão crescer entre nós.
Não me mexi quando ele revelou:
— Eu menti sobre sua mãe. Ela não morreu por causa da doença.
A traição doeu como uma faca atravessando minha pele. Abri a boca. A fechei logo a
seguir. Meu corpo virou uma estátua, não consegui me mexer. Queria esbravejar, sentir raiva,
odiar meu pai por isso. Ele sabia o quanto eu também tinha sofrido pela morte dela, ainda que
fosse uma criancinha na época. Achei que, ao menos sobre isso, éramos sinceros um com o
outro. Por que ele me escondera a verdade?
Forcei as minhas pernas e cambaleei na direção de meu pai. Agarrei seu braço e puxei-o
em minha direção. Seu rosto virou-se para o meu, mas os olhos estavam em tempos e lugares
distantes. Sua face parecia a de um cadáver, o eco do homem que já tinha sido.
— O que aconteceu, Dagoberto? — Sem perceber, comecei a gritar enquanto lágrimas
queimavam meu rosto. Um pai de verdade não mentiria para sua filha. Não trairia sabendo o
quanto isso a machucava. — Como minha mãe morreu?!
— Eu a amava tanto. — Ele acompanhou meu pranto e desabou em meu ombro,
chorando como se fosse uma criança precisando de colo. — Tanto.
Empurrei seu corpo para trás. Não precisava de abraços e sim de respostas, de algo que
me impedisse de desabar.
— Como? — implorei, embora temesse a resposta.
Ainda sem me fitar de verdade, ele balbuciou a história nunca contada para mim.
— Dominique era como você, filha… —Arrepiei-me ao escutar o nome de minha mãe;
ele nunca o dizia em voz alta, a lembrança era dolorosa demais. — Era sonhadora. Falava sobre
paz e perdão, nunca sobre guerra e ódio. Mais do que a mim, amava as pessoas, amava seu povo.
Eu não devia tê-la deixado ir.
O rei afundou o rosto entre as mãos, permitindo toda a sua tristeza escorrer. Eu conhecia
as histórias sobre minha mãe ser amada por Hymelia, não sobre o desejo de paz. Tinha mais dela
em mim do que imaginava. Até então, eu achava ser a única que ousara sonhar com isso.
O rei secou as lágrimas com a manga do gibão e continuou:
— Ela me convenceu de que precisava atravessar a fronteira e negociar com os monstros
da floresta. Eu neguei, disse que era impossível, mas essa palavra era desconhecida no
vocabulário de sua mãe. E, então, numa noite comum, nós três nos deitamos para dormir
juntos… e eu nunca mais a vi. — Ele apoiou o rosto na palma da mão e não conteve o soluço que
escapou da garganta. — Fiquei louco. Ninguém sabia nada sobre Dominique. Os dias de busca
incessante foram infrutíferos. Até que um batedor achou seu corpo na floresta.
— Não — sussurrei. Meu pranto já não hesitava mais em sair.
— Não foi um animal — ele continuou, o rosto denotando fúria —, porque deixaram
uma mensagem no corpo dela, Aurora.
— Não — eu pedi, uma angústia lancinante se revirando em meu estômago. Abracei
meu corpo, fraca. A tristeza massacrou a raiva; doía demais.
— A paz é uma mentira — Dagoberto vociferou. — Os monstros usaram sua mãe como
uma mensagem. — Ele agarrou meus braços, inconsolável, e me encarou, cheio de tristeza e dor.
— Não existe paz. Só guerra. Eles tiraram ela de nós… de mim. Eles levaram Otto. Quem será o
próximo, Aurora? Você, minha filha? Eu não aguentaria. Não tenho mais forças.
Cerrei os punhos e, sem pensar, lancei uma sequência de socos seguidos contra o vitral.
O vidro ruiu com o impacto, até que se estilhaçou e cacos de vidros voaram sobre nós. Os nós
dos meus dedos ficaram em carne viva. Aquela dor era mais suportável que a verdade. Sentia-me
afundada num oceano de incertezas, vingança e rancor. O mesmo que vinha afogando meu pai há
tantos anos.
Minha mãe fora assassinada por sonhar.
Desabei no chão, cacos de vidro rasgaram a pele dos meus joelhos, pintando meu vestido
de vermelho. Levei minhas mãos ao rosto e dezessete anos de saudades jorraram através de
lágrimas e soluços.
Ainda assim, o som foi abafado pelo pranto inconsolável de meu pai.
VI

Quando eu fechava os olhos, escutava os gritos de mamãe, seus pés tropeçando nas raízes das
árvores, a desesperança no último suspiro. A verdade havia me dilacerado. Mas ela também me
transformara.
Fazia-me compreender o porquê de meu pai odiar tanto o povo da floresta. O porquê da
guerra não cessar e o banho de sangue nunca ser suficiente. Meu pai foi envenenado pela tristeza,
mas eu não era como ele.
Queria ser como minha mãe. Perseverante. Ela tinha lutado sozinha, mas comigo era
diferente. Não importa o que diziam sobre os Bosques, eu sei que, há sete anos, era mamãe quem
tinha me chamado e me levado até a clareira, até Fryda. Eu carregaria seu legado não só por ela,
mas por toda Hymelia.
Eu não estava sozinha. Eu tinha Fryda. O futuro precisava de alguém insistente.
Recusava-me a acreditar que éramos as únicas. Deveria existir seres cansados da guerra, mas
com medo de ousar sonhar diferente.
Era noite, e percorri a cidade com os olhos, pensando no meu povo, em Myni, nas
pessoas inocentes que colhiam os frutos podres desse ódio. Agarrei-me à possibilidade, porque
era o que me restava. Se estivesse errada, cavaria minha própria cova.
Se não… ergueria o primeiro tijolo para um novo futuro.
Despedi-me da vista que me acompanhava há tanto tempo, ergui os babados da barra do
vestido e desatei a correr em direção ao estábulo.
Era hora de botar meu plano em prática.

No cair da madrugada, saí de fininho do meu quarto, pisando na ponta dos pés, descalça
para evitar barulho. Tinha pego no estábulo calças e uma camisa de Matt, nada de babados,
rendas e vestidos. Sentia-me culpada por deixar meu amigo no escuro em relação ao meu plano
caótico, mas ele nunca entenderia. Tinha o evitado para não precisar ouvir suas opiniões
abomináveis sobre a captura de Fryda.
A roupa cheirava a cavalos e eu não me importava, podia correr livre pelos corredores
sem o excesso de tecido. Não era a primeira vez que saía escondida e eu costumava suceder bem
em minhas fugas, então não foi um desafio sair do castelo. Além disso, a atenção dos guardas e
soldados concentrava-se no calabouço, não na quietude dos salões reais.
Felizmente, ninguém escutou o retumbar em meu peito ou a respiração ofegante.
Estavam ocupados vivendo o luto ou cochichando sobre o fiasco do banquete.
A tensão crescia cada vez que eu entrava num cômodo diferente e escutava os cliques da
fechadura. Eu contava com um par de grampos para abri-las. No fim, as antigas proibições de
meu pai me serviram e os conhecimentos de fuga se mostraram eficientes.
Alcancei o salão de jantar, envolto por uma rude escuridão. Os candelabros estavam tão
frios quanto o vento, minha respiração ressonava no aposento. Avancei em direção a uma das
janelas, jogando as cortinas pesadas para os lados. Forcei os braços magros, puxando-a para que
se abrisse. Um passo depois do outro e eu me encontrava no campo a céu aberto.
Não visualizei os soldados em seus postos habituais. Com Fryda presa, eles foram
designados para a área mais perto do calabouço. Afundei os pés na grama e, usando as folhas das
árvores para me esconder, corri até o estábulo, esgueirando-me entre as sombras.
O momento mais arriscado de minha vida se postava diante de meus olhos. Coberta
pelas sombras, alcancei o estábulo. Ele ficava vazio à noite para que os cavalos pudessem
descansar.
Entrei. Os animais dormiam, indiferentes ao que acontecia no restante da fortaleza. Em
silêncio, abri as fechaduras das baias e cochichei para que acordassem. Logo, a mansidão foi
substituída pelos relinchos mal-humorados dos corcéis, acordados do sono profundo.
Oliver foi o último.
— Oi, meu amigo — disse, acariciando seu pescoço. Apoiei minha testa na dele, e nossa
proximidade confortou meus ânimos. Seríamos nós dois contra o mundo. — Você confia em
mim?
Ele bufou e imaginei um sim.
—Escute-me com atenção. Eu preciso que…
Fiz um resumo de meu plano para ele e dei um beijo em sua testa. Terminei de selá-lo e
juntei um punhado de feno nas mãos, espalhando-o pelo perímetro do estábulo. Ao terminar,
meus lábios tremiam com a tensão e não ousei refletir sobre as consequências. Peguei o único
archote aceso, enrolei a gola da camisa na parte inferior do rosto e fiz o impensável. Para
construir um futuro, eu precisava ter coragem no presente.
Deixei que as chamas lambessem o feno.
Primeiro, ele veio suave, tímido. No decorrer de um suspiro, o odor se intensificou a
ponto de eu precisar franzir o nariz. Saltei em direção à saída e a terra tremeu sob meus pés
quando uma horda de cavalos me seguiu, fugindo do fogo.
Os relinchos acordaram a fortaleza. Joguei-me para o lado e rolei no chão para evitar ser
pisoteada. Em seguida me ergui, arfante e tremendo, sem parar. Subi no carvalho mais antigo do
castelo que ficava no centro do pátio e inspirei todo o ar que conseguia, para logo em seguida
berrar:
— Socorro! Socorro! — Os monstros estão nos atacando!
E o pandemônio começou.
Precisei cobrir os ouvidos para que os bramidos e urros não me ensurdecessem. As
chamas se alastraram no estábulo, formando um redemoinho de fogo e cinzas. O delírio causado
pelo medo queimava tanto quanto o antigo lar dos cavalos. Os soldados não se importavam com
a verdade, queriam se agarrar aos temores, ter um motivo para erguer suas espadas.
Berrantes foram tocados, os adarves transformaram-se num caos. A fumaça subia como
um redemoinho, alastrando-se pela fortaleza. Aproveitei o fator surpresa para me lançar em
direção ao alçapão.
Se eu hesitasse, tudo estaria perdido. Fryda seria morta, e eu ficaria confinada para
sempre.
— Vocês não ouviram? Estamos sendo atacados! — gritei para os guardas que vigiavam
o alçapão.
Eles não eram estúpidos, mas um incêndio repentino e uma horda de cavalos
desesperados balançavam a coragem de qualquer um. Minha única vantagem era o fator
surpresa, e meu fingimento precisava ser perfeito.
— Princesa Aurora, Vossa Alteza não deveria estar aqui…
— Eles vão nos matar. Vão matar a todos nós — berrei e comecei a chorar como uma
criança. — Hymelia vai ser destruída.
Os soldados se olharam e assentiram, correndo em direção às chamas. É claro que não
havia invasão nenhuma, mas diga a um homem o que ele quer ouvir, e a mentira se tornará doce.
Ansiavam pela glória de matar mais feéricos e temiam que seus lares fossem destruídos.
Eu tinha que ser rápida. Logo perceberiam a mentira, e se eu perdesse a corrida contra o
tempo, minha derrota seria iminente.
Cerrei os punhos e sufoquei um grito ao pular no alçapão. Quando meus pés tocaram o
chão, senti os joelhos gritarem. Uma dor lancinante subiu pelas minhas pernas, mascaradas pela
tensão e medo que corriam no meu sangue. Empurrei tensão, medo e dor para longe. O plano
estava funcionando.
Maquinei uma infinidade de desculpas para enganar os guardas que vigiavam Fryda
dentro das prisões, mas não escutei passos ou a presença de alguém. O subterrâneo era um
mundo à parte da superfície, onde o caos reinava. Escuro e silencioso, agradeci pelos corredores
serem retos e me guiei através das pedras, o estrondo do meu coração me lembrando da minha
missão.
Tropecei numa elevação, equilibrando-me antes de cair no chão. Havia um archote aceso
preso à parede, peguei-o e iluminei o chão, notando o corpo de um guarda. O corpo dele mexia
levemente, então não estava morto. O que tinha acontecido com eles?
Continuei com a tocha na mesma direção, percebendo que os outros também estavam
desabados, mas pelos semblantes calmos, não machucados. Eles dormiam.
Estapeei uma nova parede. Alcançara o fim do calabouço. Reconheci a cela de Fryda
pelo cheiro forte de urina e medo; além disso, era a única confinada. Não deixariam nem os
piores criminosos ao lado de uma feérica.
Procurei nos bolsos dos soldados adormecidos as chaves para libertar Fryda dos grilhões
e comemorei uma breve vitória quando as encontrei. As da cela estavam presas num aro na
parede, mas o archote mal iluminava a escuridão, então tirei os grampos dos cabelos e,
chacoalhando os dedos, introduzi-os na fechadura. Minha gazua improvisada mostrou-se de novo
um sucesso, e quase chorei quando a porta rangeu. Empurrei o metal enferrujado com o flanco, o
barulho do metal rangendo como um trovão.
Precisava ser mais rápida. O tempo se esgotava como numa ampulheta.
— Fryda — sussurrei, mal reconhecendo minha voz assustada. — Sou eu, Aurora.
Escutei um rosnado, garras rasgando a parede de pedra.
A imagem de Sir Otto morrendo voltou como um clarão, o medo um sentimento vivo.
Meu corpo fez menção de recuar, meus músculos tremiam. Mas, eu seria pior do que meu pai, se
fugisse?
Seria diferente do restante de Hymelia se a abandonasse?
— Eu vim te tirar daqui, Fryda. Vamos fugir. Juntas. — Atropelei as palavras, incerta do
que dizer. — Quero viver com você. Mais que isso, quero mostrar para meu pai e para sua mãe
que há esperança, que existem forças maiores que o ódio. Eu quero acabar com a guerra e te
quero ao meu lado.
Não me machuque. Sou eu.
— Não consigo sem você.
A luz do archote iluminou uma cascata de cachos dourados se movendo numa
velocidade sobre-humana. Antes que eu pudesse me mexer, Fryda avançou contra mim.
Envolvendo-me num abraço.
Suas lágrimas molhavam minha nuca, os braços apertados contra meu pescoço. Meus
olhos queimaram, mas não podia hesitar. Deveria ser forte por nós. Desenrolei uma túnica
amarrada em minha cintura e cobri o corpo fraco de Fryda. Abracei-a pelo torso, deixando que
me usasse como apoio. Ela era leve como uma criança, delicada como vidro.
Uma vergonha dilacerante embrulhou meu estômago. Como pensara, mesmo que por um
segundo, que ela me machucaria?
— Desculpe — sussurrei, engasgada. — Eu…
— As borboletas me disseram que você viria… — Fryda falou, fraca, a voz esganiçada.
— Elas me ajudaram a fazê-los dormir.
Chamar a terra, derrubar uma pequena guarnição. Eu não tinha dimensão do que Fryda
era capaz.
Enfiei a chave na fechadura do grilhão, e o aço caiu pesado, o som reverberando na
prisão. Ela afagou os pulsos, e pude notar que eles estavam em carne viva. Mordi o lábio e
perguntei:
— Você pode fazer isso, Fryda? Desde quando? — perguntei enquanto a puxava em
direção à saída. — Por que nunca me disse?
— Desculpa — ela choramingou, abraçando meu braço como uma criança indefesa. —
Eu não gosto desse poder. Eu não quero machucar ninguém com ele. Não quero ser como minha
mãe. As borboletas me ajudam a controlá-lo, mas tenho medo do que posso fazer. Do que eu já
fiz.
— Como você conseguiu fazer os guardas dormirem? Achei que o aço anulasse a magia.
— Anula. Eu não sei. — Fryda levou as mãos à cabeça, como se ela doesse. — Eu sou
diferente, Aurora.
Como filha de Mariellen, ela deveria ser mais poderosa que o normal. Mas Fryda e a
mãe não eram iguais. Eu acreditava em sua sinceridade. Sentia sua culpa, seu medo. Existia um
caminho de raiva traçado para nós, e mesmo assim lutávamos para caminhar num diferente.
Apertei a mão de Fryda, entrelaçando nossos dedos. Mirei meu olhar à frente, decidida.
— Você foi feita para o bem, Fryda. E nunca mais vai precisar machucar ninguém. —
Alguém no mundo precisava dar o primeiro passo. — Eu juro pelo nome dos Rivière.
— Eu não queria ter machucado ele — ela disse, baixinho. — Eu me tornei o que
lutamos contra.
Parei de supetão. O tempo precisaria me dar alguns segundos. Segurei o rosto de Fryda
entre as minhas mãos.
— Escute, Fryda. Você nunca será como eles. Eu vou te tirar daqui, e juntas nós vamos
mudar a história.
Ela assentiu, fraca demais para me retrucar. Eu faria com que ela acreditasse naquilo
tanto quanto eu acreditava. Alcançamos as escadas e, antes de subir, assobiei, pedindo a qualquer
deus que ouvisse para que Oliver escutasse o chamado. Subi primeiro, uma dor despontando nos
joelhos a cada degrau.
Cheguei à superfície e o fogo se alastrara, irradiando luz e cinzas pelo castelo. As
lamentações, contudo, ficariam para o dia seguinte. Agachei-me na terra e ajudei Fryda a subir,
puxando suas mãos para cima. Ajoelhada, engoli fôlego e assobiei de novo. Os soldados
voltariam a se reunir logo, cada segundo era precioso para que meu plano seguisse.
Escutei um relinchar diferenciado — que eu jurava significar vou te salvar, Aurora! — e
nunca amei tanto aquele cavalo quanto naquele momento.
Saindo de dentro da fumaça, meu corcel negro saltou em minha direção, carregando
consigo nossa promessa de liberdade. Mal tive tempo de comemorar a pequena vitória quando,
atrás de Oliver, percebi outra figura se aproximando de nós.
— Matt? — disse, atônita. Não era para aquilo acontecer. Meu amigo surgira como uma
peça que não pertencia ao quebra-cabeça que eu montava. — O que você está fazendo aqui?
Ao passo que ele se aproximava, pude vê-lo melhor. Ele nos encarava como se fôssemos
demônios, a expressão uma mescla de ira e medo. Eu teria congelado naquele olhar se não
tivesse sido pega de surpresa por algo ainda pior.
Matt apontava uma besta para Fryda.
— Eu sabia que tinha algo errado, Aurora — ele começou, a voz mais fria que o inverno.
— Ouvi boatos de que você tinha sido enfeitiçada, mas não acreditei. Você é mais teimosa que
um cavalo para cair nessas. Depois fiquei me perguntando sobre suas idas para a floresta, mas
não pude aceitar. E então, o banquete. As pessoas falam, Aurora.
— Matt. Deixe eu explicar, eu…
— Calada! — Erguendo a besta, gritou contra nós. — O que você pensa que está
fazendo, Aurora? Esse monstro matou Sir Otto! Eles… eles…
Matt mordeu os lábios, a dor do luto atravessando seu corpo como uma cicatriz gigante
que ainda ardia:
— Eles levaram meu irmãozinho. Louis era só uma criança, e nem por isso o pouparam.
Fryda tremia ao meu lado, segurando meu braço. Não era só de medo. Seu coração
também sangrava por todas as perdas, por todos os sonhos findados.
Lentamente, desvencilhei-me dela e caminhei devagar em direção a Matt, com as mãos
erguidas. Assustado como estava, um mínimo movimento em falso e alguém receberia um tiro
no estômago. Estava tão perto de salvar Fryda, não deixaria que sua cova fosse meu castelo.
— E então, quando fui botar os cavalos para dormir, percebi que a sela de Oliver estava
no chão. Você é sempre tão cuidadosa com isso, Aurora. Eu sabia que aprontaria alguma. Tive
minha resposta quando o estábulo pegou fogo.
Mordi o lábio, odiando-me pelo descuido. Não era possível que um único detalhe
derrubaria meu plano.
— E agora, Matt? Você vai matar uma de nós? O que acha que vai ganhar com isso?
— Nós? — cuspiu. — Não existe isso de nós. Eu vou levar esse demônio de volta para o
inferno de onde ele nunca deveria ter saído!
A ponta da flecha brilhava como um trovão, sedenta para encontrar Fryda. Eu levara os
soldados até nossa clareira, Fryda sujara suas mãos por minha causa. Nunca permitiria que ela
sofresse de novo.
Saltei para a frente de Matt, posicionando-me em frente à besta. A flecha estava
posicionada, bastava que ele tomasse sua última decisão. Agarrei o cabo da arma e gritei:
— Vá! Atire! Livre-se de mim, então. — Mal tinha fôlego, não respirava, estava
impulsionada por um segundo de coragem. — E amanhã acorde com a certeza de que Louis terá
sido só mais um dos milhares desaparecidos, e que isso nunca vai acabar. Porque você matou a
única pessoa que quer a paz. Porque vocês, você, tem medo disso! Medo de viver uma história
que não seja escrita pelo ódio.
— Aurora! — Fryda me chamou. — Pare com isso, eu é que tenho que pagar!
Ignorei-a, os olhos cravados em Matt.
— Atire — ordenei. — Atire.
Ele hesitou, seus olhos correndo entre eu e Fryda. O estrondo do meu coração era mais
forte que o incêndio, queimando infinitamente. Por tanto tempo fingi quem eu era, menti sobre o
que acreditava... Puxei a ponta da besta para meu estômago. Não fugiria mais.
— Atire!
A besta caiu, sua flecha encontrando o chão terroso. Meu corpo tinha virado mármore,
toda a tensão suportada caindo sobre mim de uma só vez. Matt escondeu o rosto no braço, e
pelos movimentos dos ombros, percebi que chorava baixinho.
— Vá embora, Aurora. Aqui não é o seu lugar.
Algo em mim tinha se partido. Matt nos deixaria viver, mas criara uma distância infinita
entre nós. Entretanto, não tinha tempo de sofrer por ele. Tomara minha decisão disposta a fazer
sacrifícios.
Segurei a mão de Fryda e corri com ela para Oliver.
— Obrigada, Matt — disse meu primeiro adeus.
Fryda já montara comigo algumas vezes, então não precisei explicar o que deveria fazer.
Entrelacei as minhas mãos para que ela pisasse, impulsionando-a para cima. Eu era acostumada,
mas rangi os dentes quando saltei para o torso de Oliver, sentindo-me mais segura com os dois
ao meu lado. Estávamos prontos.
Acariciei o pescoço de meu cavalo e murmurei:
— Faça o vento comer poeira.
Ele obedeceu.
Meu corcel chispou em direção à saída do castelo, como se tivesse passado uma vida
guardando fôlego para aquele único instante. Fryda abraçou meu corpo por trás enquanto eu nos
guiava, inclinada em direção à liberdade, atravessando a fumaça. Planando pelo fogo.
Os soldados constatariam que não havia inimigos, mas ainda teriam que conter as
chamas. Eu estava um passo à frente.
O portão principal do castelo fora aberto para que as tropas da cidade lutassem dentro da
área da fortaleza, como eu imaginara. Homens armados trajando placas de aço prateadas
entravam com suas lanças empunhadas. Dessa vez não havia como não ser notada, então ordenei
que Oliver corresse mais e passasse por cima dos homens, se precisasse. O corcel era alto e
largo, os guerreiros se desviaram de nosso caminho para que não fossem pisoteados pelos seus
cascos.
Corríamos como se fossemos um corpo só, o vento encarnado. Éramos imparáveis,
eternos, furiosos. Atravessamos a saída do castelo e corremos para a cidade.
Somente Colosso nos separava da liberdade.
No centro da capital, mal se via uma alma a perambular pelas ruas. Continuei na rota
principal em linha reta, ignorando os gritos atrás de mim ao passo que fitava os portões da
muralha, imponentes e abertos. A informação do suposto ataque ainda era um redemoinho de
confusões e em Colosso eu conseguia perceber a dúvida planando nos rostos dos homens.
Com as minhas vestes masculinas e uma mulher agarrada nas costas, contei que não
seria reconhecida. Era só um casal fugindo daquela loucura.
Eu apenas esqueci do pequeno detalhe de que Oliver também era famoso em Hymelia.
— É o cavalo de Aurora! — gritou um dos guardas, na guarita. — Fechem os portões!
Inflei o peito e urrei:
— Voe, Oliver! Voe!
Sua respiração estava ofegante, as narinas abertas e o pelo quente. Meu companheiro
ultrapassava seus limites, mas nós precisávamos atravessar.
Chutei sua barriga, chorando e me desculpando.
— Abram os portões! É uma ordem!
Minhas palavras morriam no meio do caos que era a cidade. A liberdade escapava das
minhas mãos enquanto os portões se fechavam.
Apenas uma fresta continuava aberta, com soldados nos esperando à frente.
— Preciso parar — avisei, desesperada.
— Continue — disse Fryda, com os lábios no meu ouvido, sua primeira palavra desde
que deixamos o castelo. — Você não está sozinha, Aurora. Vá em frente.
Olhei para trás, desolada.
— Se eu continuar, nós vamos morrer.
Preparei-me para puxar o arreio. Não podia arriscar nossas vidas em vão dessa forma.
Não me perdoaria em nenhuma das vidas. Como mudaríamos o mundo se estivéssemos mortas?
— Aurora — Fryda disse, firme. — Confie em mim.
Eu hesitei, mas Oliver confiou. Meu corcel arrancou fôlego do além. A última fresta dos
portões fechara, e nós nos aproximávamos em direção à morte. Soltei o cabresto de Oliver e
abracei seu pescoço.
Viver como covardes ou morrer como mártires? Estávamos tão perto. Colosso seria
nosso cemitério.
Fechei os olhos e respirei pela última vez, quando…
Fryda cantou.
A música fez meus dedos formigarem e acalentou meu peito. De repente, toda a tensão
se esvaiu, e meu corpo tornou-se leve, como se eu fosse feita de névoa, não de carne. O mundo à
minha frente turvou-se. Parecia que eu via as coisas através de uma pedra preciosa, translúcida e
brilhante.
Entretanto, ainda enxergava nitidamente os portões fechados à nossa espera quando o
inacreditável aconteceu.
Em vez de bater, a cabeça de Oliver atravessou os portões. O som do mundo era baixo,
éramos ilusões inalcançáveis. Nós atravessamos a muralha como se fôssemos fantasmas. Não
consegui respirar dentro das paredes de pedra, mas sequer precisava, pois num piscar de olhos,
éramos recebidas pela ameaça da alvorada nascendo por trás da floresta.
Meu corpo voltou a pesar quando alcançamos o outro lado de Colosso. Por um instante,
tudo parou, e virei-me para trás, assombrada:
— É assim que vocês entram na cidade…
— Sim — Fryda confessou e eu vi nascer em seu rosto o primeiro sorriso desde que foi
capturada. — Eu disse para confiar em mim.
Dessa vez não tentei segurar as lágrimas. Elas correram pelo meu rosto, cheias de
esperança.
Essa era a força de acreditar. Era a minha missão. Tornar possível o impossível.
Meu amado corcel voltou a correr, ainda que estivesse nos limites de suas forças.
Precisaríamos parar o quanto antes quando deixássemos a floresta e Colosso para trás.
— Obrigada, Aurora. — Fryda apertou o abraço, e seu toque era um bálsamo curando
minhas feridas. — Você me salvou, mesmo que eu não merecesse.
Com ela ao meu lado, sã e salva, tudo parecia possível.
— Ouça bem, Fryda. Há jóias preciosas nos alforjes de Oliver. Elas poderão custear
nossa sobrevivência enquanto pensamos num plano para acabar com essa guerra.
Soltei a mão direita das rédeas e segurei a de Fryda. Ela a apertou, entrelaçando os dedos
nos meus.
— Só preciso de você ao meu lado — falei.
— Eu sempre estarei com você. Depois do que aconteceu, dei-me conta de que não
adianta fugir do que somos, do nosso destino. Estamos fadadas a perseguir a paz. Por isso os
deuses cruzaram nosso caminho.
Talvez ela estivesse certa. Contra todas as perspectivas, o plano foi um sucesso. Eu ainda
não queria pensar nas consequências da fuga. Por ora, a liberdade e as promessas de um novo
futuro eram suficientes para manter minhas esperanças. Por ora, necessitávamos descansar e
clarear os pensamentos.
Minha efêmera paz foi balançada quando Oliver parou de supetão.
Eu e Fryda quase caímos para frente, assustadas com a parada brusca. Eu exigira demais
do meu cavalo. Entretanto, Oliver não parecia exausto, mas… aterrorizado.
Pisquei os olhos e brumas surgiram à nossa frente, cobrindo o caminho que nos
esperava, como se o incêndio na fortaleza tivesse nos seguido. Uma nuvem de fumaça densa e
gelada nos cercou e, de dentro dela, uma mulher emergiu.
Eu nunca vi nada tão lindo em minha vida.
Seus longos cabelos negros caíam até o chão, arrastando-se com seus passos leves. Não
sabia se ela andava ou dançava. Um aro de pedra preciosas e translúcidas retinia em sua testa,
emoldurando o rosto delicado e as íris prateadas. No corpo, trajava um vestido tecido por folhas
da floresta. A mulher parecia a heroína de uma fábula.
Até que notei sua gargantilha... moldada por dentes de leite. Um terror desolador subiu
pela minha espinha, e a esperança de outrora foi soterrada pelo terror.
— Mãe — Fryda murmurou.
A alvorada murchou. Os deuses viravam o rosto para longe de nós.
Mariellen nos encontrara.
VII

Quando me perdi pela primeira vez na floresta, achei ter conhecido o medo. Até então, nunca
me senti daquela forma: tão real, com as consequências em meu encalço. Achei que meu pai
poderia me proteger para sempre, mas descobri que não; que havia momentos que eu precisaria
enfrentar sozinha. Como quando Fryda foi capturada. Achei que meu mundo fosse ruir, que a
coragem tinha me abandonado de uma vez por todas.
Quando olhei para a expressão doentia de Matt, percebendo a dúvida entre me matar ou
não, prestes a abandonar um amigo para sempre. Ainda que eu tenha vivido uma sorte de
experiências mortais, algo ainda queimava em mim. A sensação de que eu era invencível, de que
viveria para sempre.
Encarando Mariellen, eu descobri o que era medo de verdade.
Fryda afundou o rosto em minhas costas e Oliver trotou para trás. Fui incapaz de me
mover, enfeitiçada pela visão da maior inimiga de meu povo. Ela caminhou como se flutuasse
para nós, as brumas acompanhando cada singelo movimento.
O tilintar dos braceletes dourados soavam como um terremoto em meus ouvidos, sua
mera aproximação me envolvia em loucura. Minhas mãos tremiam na sela e um repentino frio
gelado se debruçou sobre nós. Não sabia se estava envolvida por alguma magia antiga ou o terror
era suficiente para congelar meu sangue e ossos.
Ouvi vozes, gritos, súplicas. Escutei a floresta e os homens chorarem. Pensei em
Mariellen rasgando a garganta de minha mãe.
— Crianças tolas — ela murmurou numa voz antiga e jovem, bela e terrível. — Eu
esperava um ato tão imbecil vindo de uma humana patética. Mas tu me surpreendeste, filha.
As lágrimas de Fryda escorriam em minhas costas. Eu tentei ser forte por nós, contudo, a
sensação de derrota me corroía. Minha língua não se mexia, as palavras morreram em algum
lugar do meu estômago. Sentia que a muralha da capital se escorava em minhas costas, como se
eu tivesse guiado Hymelia para o abismo.
De perto, Mariellen exalava ainda mais poder. O focinho de Oliver batia em seu peito,
suas proporções eram monstruosas: alta demais, magra demais, cabelos longos demais. Ela
ergueu o braço extenso e fino, alisando minha bochecha com os dedos esqueléticos.
Lágrimas desesperadas saíram de meus olhos. Seu toque era delicado, mas deixava um
rastro de sangue por onde passava.
— Filha, se eu destruir essa criatura imunda que tu tanto amas, aprenderás finalmente teu
lugar?
— Tire as mãos dela! — Fryda gritou, empurrando a mão de Mariellen. Eu não
conseguia ver seu rosto, apenas escutava os cacos de sua voz. — Faça o que quiser comigo, mas
deixe a Aurora em paz! Ela me salvou!
— Aurora… — Mariellen repetiu, aproximando seu rosto do meu. Contive um grunhido
e tentei me jogar para trás, mas a mulher prendeu meu pescoço com os dedos, encarando-me com
os olhos vermelhos. — Cortar-lhe-ei em tantos pedaços diferentes que teu pai passará o resto da
miserável vida recebendo cada parte tua.
Incapaz de reagir, congelei sob o toque. Eu morreria e levaria meu pai junto. Perder
minha mãe o machucara demais e ele não aguentaria me perder também.
O gosto de sangue salpicou meus lábios, acordando-me do devaneio.
Percebi o rosto de Mariellen se desfigurando. Antes, uma calmaria fingida, agora, ódio
exalava de seus poros. O sangue escorria de seu antebraço, pelas duas marcas frescas de dentes.
Com o coração na boca e sem ousar respirar, virei-me para trás, observando a forma
animalesca de Fryda de olhos vermelhos e caninos afiados. Ela rosnava enquanto filetes de
sangue escorriam dos lábios.
Encontrava-me no meio do fogo cruzado, afundando mais ainda no medo. Por Fryda, por
nós. Agarrei a crina de Oliver à procura de calor, mas o pavor do corcel era tão real quanto o
meu.
— Tu não tens jeito — Mariellen reprimiu, acariciando a pele machucada, a indiferença
voltando a estampar seu semblante. — Levem-nas para o coração da floresta.
O instinto de sobrevivência guiou minha cabeça para os lados, à procura dos captores.
Da névoa, os habitantes da floresta surgiram, homens e mulheres de corpos altos e esguios,
orelhas pontudas, vestidos com folhas, cipós e flores. Puxei a sela e esporeei Oliver no
desespero. Seus movimentos foram confusos, trotando para trás, agressivo de uma forma que eu
jamais vira antes.
Fryda continuava rosnando para a mãe, tentando me proteger de sua fúria. Ambas
sabíamos que não seria suficiente para fugir. Nosso sonho fora pisoteado no momento em que
Mariellen nos encalçou.
Pisquei uma vez e os braços de Fryda envolveram minha cintura. Pisquei de novo e um
dos feéricos estava à minha frente, envolvendo meu rosto com as mãos enquanto balbuciava
palavras inaudíveis.
Não cheguei a piscar pela terceira vez.

Meus olhos demoraram para abrir. Lampejos de memória fagulhavam em minha mente.
O abraço de Fryda, o rosto de Mariellen. Forcei as pálpebras para cima, batalhando contra minha
exaustão. Parecia que meus pensamentos tinham sido remexidos e partidos em vários pedaços.
Sentia-me leve e pesada ao mesmo tempo, sem pleno controle sobre meu corpo.
Tateei os arredores e a terra úmida entrou debaixo das minhas unhas. Minhocas
passaram pelas minhas mãos e, de longe, o cantar do grilo preenchia o breve silêncio. A voz da
temida bruxa — e eu lembraria dela até nos meus piores pesadelos — rompeu a repentina
quietude.
— Acorde, criatura imunda.
Sua ordem foi atendida. No mesmo instante, despertei, piscando várias vezes para me
habituar à luz da manhã que atravessava as copas das árvores. Uma cúpula formada por galhos
embaraçados e flores coloridas se estendia sobre nós. No centro, estendia-se uma árvore maior
do que todas que eu já vira. Um buraco fora escavado em seu cerne e, dentro dele, Mariellen
assentava-se em trono. As raízes das árvores se estendiam para os lados, formando assentos, mas
estávamos sozinhas. Meneei a cabeça para os lados, tentando controlar a respiração ofegante.
— Fryda não está aqui. Chega de envenenar a cabeça da minha herdeira com tuas
mentiras, besta assassina!
Não sei se foi a ausência de Fryda, ou a injustiça por ser chamada de assassina, mas o
medo foi cedendo para a raiva. Eu não desejava manter a guerra, queria acabar com ela. Fechei
os punhos e lutei para me reerguer, ainda que minhas pernas estivessem bambas.
— Eu não quero ver mais ninguém morrer. Chega, Mariellen.
Minha voz saiu trêmula, receosa. Entretanto, havia sinceridade em minhas palavras.
Mariellen apoiou o rosto na palma da mão. Sua expressão era indecifrável e cada segundo
parecia durar uma vida inteira. A floresta nos escutava, pois os insetos haviam se calado e o
vento cessado, presos no eterno instante.
— Tu podes tentar se enganar, mas não a mim. — Mariellen começou, elevando o tom.
— Como tens coragem de me dizer isso quando és filha do monstro que vem nos matando há
décadas? Queimando nossas casas, destruindo os bosques. Os Rivière são uma maldição para a
floresta, Aurora. Eu apenas nos protejo dos males de Dagoberto.
Por mais que eu odiasse admitir, Mariellen também tinha razão. Vivíamos em eterna
retaliação e vingança. Meu pai não me ouvia e só os deuses sabem como eu havia tentado. Mas
eu não era como ele. Não era uma mendicante, mas a herdeira de meu povo, arauta da paz. Dei
um passo à frente.
Se fosse para morrer, seria lutando pelo mundo que eu queria construir.
— Seu povo também assassinou o meu. Vocês mataram a minha mãe e isso envenenou o
coração do meu pai. Mas não o meu. Fryda e eu somos a prova de que não precisamos mais viver
afundados numa guerra sem sentido.
— E o que tu achas que aconteceu com o pai de Fryda? Meu companheiro de vida
morreu carbonizado. Não venha me ensinar o que é luto, criança. Eu venho sangrando há mais
décadas do que tu podes contar.
Antes de respondê-la, fui surpreendida por um chorinho baixo. Andei pelos troncos,
desengonçada, em busca do som, enquanto a bruxa me observava como se eu fosse mais um
animal. Seguindo o som, agachei perto de uma raiz e notei, embaixo da terra, uma pessoa.
Uma criança.
Usei as últimas forças para cavar e retirar o corpo dela do abraço dos troncos.
— Myni? — chamei. — É você?
Encostei o ouvido em sua barriga e senti a respiração baixa e devagar. Abracei o corpo
dela e enfiei o rosto em sua nuca.
— Deuses, Myni. Você está viva.
— Nós não machucamos crianças. — Mariellen surgiu atrás de mim, mais imponente
que Colosso. — Nós as sacrificamos pela floresta para que ela nos perdoe.
Encarei o rosto de Myni. Com mais atenção, percebi sua pele gelada, ganhando um tom
cinzento.
— A-a floresta… r-rouba vidas para sobreviver?
— Teu povo nunca entenderá o equilíbrio da natureza, princesa. É preciso devolver o
que foi tirado.
Protegi o corpo de Myni com o meu, pronta para ser atacada pela bruxa. Ela enviaria um
colar com meus dentes para o meu pai em represália à captura de Fryda; mas não avançou contra
mim. Mariellen saltou em direção ao chão como uma bailarina. Em seguida, prostrou-se.
Arregalei os olhos e constatei que não era uma reverência, pois só seu ouvido direito tocou a
terra. Ela auscultava a floresta.
— As árvores estão me avisando que há um exército tentando nos encontrar. Elas
choram porque há fogo. Choram porque os animais se escondem para salvarem as próprias vidas.
— Ela ergueu-se, tocando suavemente o cabo da arma pendida na cintura. — Diga-me, criança.
O que vai restar quando o seu povo destruir tudo que os deuses antigos construíram?
— Eles não vão — respondi, entre dentes. — Deixe-me falar com eles. Vamos escolher
a paz. Por Fryda.
— Falar? Não seja estúpida. Tu não és uma mensageira, és minha prisioneira. Não
venha falar de paz com alguém que só conhece a guerra. E deixe minha filha fora disso, teus
caminhos jamais se cruzarão novamente.
Mariellen abriu os braços e a floresta soltou a respiração. Pássaros cantaram e o vento
nos sobrevoou. Os feéricos se materializaram diante de mim, através do rodopiar das folhas. A
magia pulsava em cada centímetro de terra, da mesma forma como as histórias contavam.
— Preparem-se, meus filhos e filhas! Escreveremos nossa vitória com o sangue de
nossos inimigos!
Tentei me manter empertigada, protegendo Myni, mas os olhares dançavam sobre mim.
Maquinei centenas de planos, mas não via como nenhum deles conseguiria consertar o caminho
de terror que nossos povos trilhavam.
Mariellen estalou os dedos e o chão tremeu quando uma raiz grossa surgiu da terra,
embalando-me em seus braços de madeira. Um dos feéricos se aproximou e puxou Myni de
meus braços.
— Tire as mãos dela, desgraçado! — gritei, debatendo-me contra os troncos que me
apertavam.
Debati-me, arranhei as raízes até que minhas unhas se desprendessem dos meus dedos e
gritei até minha garganta ceder. A árvore cresceu e cresceu, deixando-me no alto da floresta,
enclausurada em sua prisão. Eu via Mariellen e os outros feéricos como pequenos fragmentos no
chão. Mesmo do alto, consegui escutar sua voz reverberar pela floresta:
— Testemunhe o fim da guerra, criança.

Entendi o que Mariellen disse sobre a floresta chorar, porque senti seu pranto no
momento em que o cheiro do fogo chegou.
Meus músculos estavam duros, presos pela raiz do feitiço da bruxa. Toda minha força
foi gasta e a exaustão se apossou de mim. Não havia lágrimas para chorar; eu era a espectadora
do fim.
Procurava Fryda entre os arbustos, árvores e raízes, mas ela não estava lá. Sua ausência
era minha fraqueza. Tínhamos chegado tão perto.
Não havíamos quebrado a roda.
As folhas secas no chão começaram a tremer e, de longe, escutei os urros de batalha. Os
homens de meu pai. O cântico vitorioso ecoava pela terra, junto com o brandir das espadas como
uma marcha fúnebre. O aço era errado no coração da floresta, e ninguém parecia ligar para isso.
Abri a boca para gritar, mas minha garganta estava seca, coberta por cinzas. A marcha
dos soldados era desesperadora. O cheiro de vingança empesteava o ar. Onde estava Fryda? E o
que restaria de nós?
Lentamente o fogo se alastrou, cercando a clareira. Comecei a tossir, respirando fumaça.
O calor tomava meu corpo. Emergindo das chamas, das árvores e flores queimadas, o exército de
Hymelia nos alcançou. Dagoberto os liderava, montado em seu corcel prateado.
— Pai… — eu o chamei, mas o rei não olhou para cima. Estava içada pela raiz a dez
metros do chão, minhas palavras não passavam de um sussurro.
Dagoberto e Mariellen pararam a poucos metros um do outro, encarando-se. Não
conseguia discernir quem estava mais sedento pela garganta do outro.
— Devolva minha filha, seu demônio maldito — meu pai vociferou, apontando a espada
na direção dela.
— Tu capturastes a minha, por que eu o faria? Tu és tão estúpido que não se digna a
observar o céu e encontrá-la a tua espera.
Dagoberto o fez. No mesmo instante, o rosto se contorceu ao me notar presa pela grande
raiz. Ele firmou o punho na espada e sibilou:
— Se não soltar Aurora agora eu vou incendiar até a última floresta existente. Não foi
suficiente ter tirado Dominique de mim, desgraçada?
— Parem — pedi, fraca.
Como eles podiam ser tão cegos? A vingança era uma faixa cobrindo seus olhos. Não se
importavam nem com a vitória; disputavam quem conseguia ferir mais o outro.
— “Tirar de mim tudo que amo, Dagoberto?” Tu fazes isso toda vez que um dos meus
sangram, ou quando queimam nossas casas para que teu reino maldito cresça. Tu és um
hipócrita, um assassino, tua família é um flagelo a ser exterminado desse mundo! — Mariellen
proclamou, alto o suficiente para todos os guerreiros escutarem.
Meu chamado desesperado se perdeu quando as espadas foram brandidas e os alaridos,
entoados.
— Sinta a fúria de Hymelia, demônio da floresta — papai vociferou.
E a floresta explodiu em gritos e sangue.
Mariellen avançou com duas lâminas de cristais nas mãos. Os outros usavam a magia e
sumiam no ar, evocando as raízes que brotavam do chão para se protegerem do aço e atacarem os
homens de meu pai. Alguns assumiam a forma animalesca, rasgando gargantas com seus dentes.
Os humanos tampouco demonstravam piedade. Dilaceravam carne, armados com aço e
ira. Meu pai e Mariellen digladiavam entre si, ambos demonstrando maestria com suas armas. O
fogo dançava ao redor de nós, minando a vida que ninguém se importava.
Apenas eu.
Porque as chamas lambiam a raiz que me sustentava.
Arfei, tentando me soltar. De nada adiantou. O som da batalha se sobrepujava às minhas
tentativas de pedir por socorro e a cada segundo o fogo subia mais e mais, queimando a
superfície da raiz. Ela cederia e eu morreria ao cair, ou seria queimada antes. Debatendo-me,
supliquei aos deuses que me salvassem e nenhum deles me deu ouvidos. Pensei na minha mãe
que, assim como eu, tinha morrido por escolher acreditar.
Fechei os olhos quando o fogo chamuscou minhas calças. Minhas lágrimas não o
apagaram e meu peito foi assolado por um peso enorme que me impedia de respirar.
— Desculpe, mãe. Eu cheguei tão perto — sussurrei para as copas das árvores que me
observavam. — Desculpe, Fryda. Não consegui te salvar.
A impotência doía mais que o fogo. Fui derrubada pela desilusão ao encarar o futuro
padecer num campo de batalha debaixo das chamas. Não queria ver mais ninguém morrer, estava
tão cansada, com tanto calor. As chamas começavam a lamber minhas pernas, a subir pelo meu
corpo com sua voracidade incontrolável. Doía tanto.
Fechei meus olhos e expirei o restante de minhas forças. Senti a vida fugindo de minhas
mãos, meu corpo sendo embalado pela paz que eu tanto sonhara.
Aurora.
Eu estava envolta pela escuridão, guiando-me pelo chamado. Pela voz.
Aurora.
Num instante a dor tinha cessado, e todo desespero de antes ficado para trás. Respirei ar
límpido e cerrei os olhos quando uma silhueta de luz emergiu à minha frente. Era um pouco mais
alta do que eu, no formato de uma mulher. Uma sensação nostálgica se apossou de mim, como se
tivéssemos sido próximos durante toda a vida.
— Mamãe? É você?
Corri o mais rápido atrás dela. Estendi os dedos para tocá-la, sendo invadida por um
calor suave. Quanto mais perto chegava, mais eu era abraçada pelo sentimento acalentador de
paz. Entretanto, eu não conseguia chegar até ela.
Pisquei, e a silhueta sumiu. Mas senti seu toque sereno atrás de mim, nos meus ombros.
Baixei o rosto para que minha bochecha tocasse a luz. Havia chegado a minha hora de
reencontrá-la.
Nós estaremos juntas de novo, meu amor.
Fechei os olhos, pronta para cruzar a fronteira entre os mundos e finalmente descansar.
De repente, a silhueta me empurrou com força para a frente e eu me vi caindo num
abismo profundo.
Mas hoje não.
— Aurora!
Abri os olhos de supetão, o fôlego de vida entrando pelas minhas narinas. Olhei para
baixo, e mesmo que ela fosse uma confusão de espadas, sangue e corpos, eu avistei seus olhos
cinzentos e corajosos à minha procura, montada em Oliver.
— Eu vou te tirar daí, Aurora — berrou Fryda. — Aguente firme! É minha vez de te
salvar!
Fryda tinha os braços e o cabelo sujo de sangue e soava com tanta convicção. Ela tinha
lutado por mim. Meu coração tornou a estrondar no peito, transbordando com o sentimento
sagrado que eu via nos olhos de papai quando ele falava da minha mãe.
Eu tentara proteger Fryda dos males do mundo e demorara a compreender que ela faria o
mesmo por mim. Porque nosso encontro não tinha sido acaso: estávamos unidas pelo fio do
destino.
—Ajude-me, Fryda! — berrei. — Eu preciso de você!
Eu resistia ao fogo queimando meu corpo. A dor era lancinante, mastigava-me viva. Mas
escolhi confiar em Fryda. Não morreria. Enfrentei a dor com tudo que me restava, porque não
estava sozinha. Sua presença reluzia mais que o rancor, Meu sentimento por ela era mais
poderoso que os incontáveis anos de rivalidades vazias.
A raiz começou a desabar, dilacerada pelas chamas que nos embalavam. Cerrei as
pálpebras, inundada pelo cheiro de carne queimada. Jurei escutar meu nome sendo berrado por
meu pai, mas soou como uma memória distante. A dor se tornava uma companhia constante,
como se eu me esquecesse que devesse senti-la.
A copa das árvores se distanciava de mim enquanto eu caía no mar de labaredas, no
calor da batalha. Ergui o que restava de meu braço para o céu, querendo alcançá-lo, mas uma
força continuava me puxando para baixo. Só que eu não desabei. Caí flutuando como uma folha
leve.
Em direção aos braços de Fryda.
Pousei em seu abraço. A morte ficara para trás e, embora a guerra se mantivesse ao
nosso redor, eu sabia que conseguiríamos pois ela segurava minha mão. Éramos o suporte um da
outra.
— Você me salvou — balbuciei, tocando sua bochecha com a ponta dos dedos. — Por
que está chorando, Fryda? Estamos juntas.
Suas lágrimas caíam sobre meus dedos, mas eu não as sentia. Eles estavam em carne
viva, envoltos por um invólucro escuro.
— Eu cheguei tarde demais. — Ela me segurou com os braços tremendo, e pontadas
dolorosas subiram pelo meu corpo. — Aurora, Aurora. Perdoe-me.
— O que você está dizendo, Fryda? Eu estou aqui, estou bem, e…
Acompanhei a direção de seu olhar e perdi o ar quando entendi o motivo do pranto de
Fryda.
Meu corpo estava completamente queimado. O tecido das vestes se misturava à minha
pele retorcida e chamuscada. Eu me transformara num bolo confuso de carne queimada. Era um
milagre que ainda estivesse viva.
Engoli em seco. Consegui postergar o desespero porque, apesar das dores, eu tinha
escutado minha mãe. Não seria vencida pela morte.
— Vai ficar tudo bem — prometi, ansiando acreditar naquelas palavras. — Eu só preciso
descansar. O reino tem bons curandeiros...
— Aurora, é minha culpa. Eu demorei para escapar da prisão de minha mãe, se tivesse
chegado mais cedo… — ela choramingou, de olhos fechados, o rosto contorcido numa dor pior
que a minha. — Estou usando magia em você. É… é o único motivo de você ainda estar aqui.
Tentei mexer minhas pernas, mas elas não respondiam. Lentamente, toquei a cabeça, e
não haviam mais cabelos. Eu era uma boneca queimada.
— Não, não — repeti, incrédula. Não queria morrer. — Fique comigo, eu só preciso de
você. Estou com tanto medo, Fryda.
Ela não respondeu, engasgada pelas lágrimas. Eu não conseguia chorar, ainda atônita,
encarando a ideia terrível de morrer e deixá-la sozinha. Eu não queria ficar sozinha, ainda havia
uma história a ser escrita.
Escutei a voz de meu pai estridente, vinda do fundo de seu coração despedaçado.
— Minha filha!
Ele ajoelhou-se perto de mim, mantendo distância suficiente de Fryda. Dagoberto
agarrou os cabelos grisalhos e gritou em direção ao céu, e sua dor calou a batalha num repentino
silêncio. Só se ouvia o crepitar das chamas e as lágrimas derramadas.
— Você não vai tirar a minha filha de mim, demônio! — ele vociferou para Fryda. Ela
não respondeu, ainda abraçada a mim.
Eu procurava há tanto tempo a resposta para o ódio. Achei que bastava combatê-lo com
coragem e teimosia, mas ambos tinham se esgotado. A única coisa que me restara, entretanto, era
a que mais resistia. A que nunca cedera. A que me fizera continuar acreditando e lutando.
Amor.
— Eu amo Fryda, pai — confessei. — Eu a amo como você amava minha mãe.
Fechei os olhos, e em vez de medo, senti um alívio imensurável. Finalmente abria meu
coração para o mundo, para Fryda. Para mim mesma.
— Eu sei que vou morrer, pai. Mas quero que saiba que o farei carregando o sonho de
mamãe e, quando encontrá-la, direi que não foi em vão. Vou morrer sem arrependimentos,
porque se tivesse mil vidas, teria escolhido Fryda em todas elas. — Inflei o peito pela última vez
e gritei. — Olhe para a frente e deixe a vingança para trás. Por mim e por nós, termine essa
guerra!
Seus joelhos se arrastaram na terra e suas mãos calejadas me envolveram com cuidado.
Não pude impedir um sorriso, porque me despediria do mundo ao lado das duas pessoas que
mais amava. Eu os veria juntos por uma última vez. Eles e Oliver. Meu corajoso amigo se
mantinha por perto disposto a me proteger.
— Minha menininha — ele soluçou. — Minha corajosa criança, não me deixe.
— Eu te amo pai — sussurrei, com o sal das lágrimas queimando meu rosto. — E eu
sempre vou acreditar que há bondade no seu coração.
Fui tomada por uma repentina leveza. Estava feliz por dizer a verdade, por permitir que,
por um instante, os humanos e feéricos percebessem que conseguiam conviver sem se matarem.
A breve trégua entre eles era a prova de que eu tinha dado um pequeno passo.
— Agora deixe-me falar com Fryda…
Ele contorceu a expressão, mas assentiu, afastando-se de mim. Fryda apoiou minha
cabeça em seu colo. O rosto, mesmo inchado e vermelho continuava sendo minha visão
preferida.
— Minha Fryda. Não se esqueça de mim e de tudo que sonhamos e realizamos juntas.
— Te esquecer, Aurora? — Fryda afagou meu rosto com a ponta dos dedos. — Vejo seu
rosto talhado nas árvores. Escuto sua voz no silêncio. Mesmo sozinha, sinto seu toque. Como eu
poderia te esquecer? Você está em todos os lugares.
Suas palavras fizeram meu coração transbordar de amor. Enquanto aquele sentimento
puro e verdadeiro atravessasse o tempo, nós iríamos conseguir. Ela conseguiria.
—Prometa-me que vai mudar o mundo e cuidar do Oliver. E quando tudo parecer
perdido, lembre-se que eu sempre estarei com você.
Ela abaixou a cabeça e depositou um beijo breve e suave nos meus lábios. O roçar
inundou meu corpo com amor e saudades esmagadores. Queria mais tempo, mas era grata pelo
presente que foi tê-la conhecido.
Sua expressão amenizou e Fryda sorriu para mim de um jeito singelo como na vez que
nos conhecemos. Inocente, sonhadora e corajosa.
Nós, as filhas da guerra, sonhávamos com a paz.
De repente, as borboletas começaram a sobrevoá-la em sua miríade de cores, como se
fossem um arco-íris. Eu me despediria da vida com a certeza de que tinha feito tudo que eu
podia.
— Não vou te prometer isso, meu amor. — Ela tateou o chão e pegou uma adaga de
cristal. Fryda levantou a arma e, com a ponta da lâmina, rasgou a pele do antebraço. — Meu
destino era te conhecer. O seu é mudar o mundo.
A magia era estranha para mim, mas compreendi o que ela faria quando escutei
Mariellen gritar com uma angústia tão dilacerante que eu não tive dúvidas do quanto ela amava a
filha:
— Fryda, não!
Fryda cantou.
Era a canção mais linda e mais triste que eu já escutara. Escutei armas caindo no chão,
lágrimas distantes. Uma garoa fina caiu pela floresta, afastando o fogo que se assomava sobre
nós.
Devagar, meu corpo foi envolvido por uma luz suave. O sangue de Fryda escorria de seu
braço e dançava sobre mim, penetrando minha pele e veias. Eu não conhecia os segredos e
limites da magia, tentei me mexer, implorar para que ela parasse, em vão.
Fui embalada em seu feitiço, e a dor excruciante em meu corpo foi abrindo espaço para o
alívio.
— Eu sou feliz, Aurora — ela disse, com um sorriso sincero no rosto, segurando minha
mão. — Por ter te conhecido e vivido o amor com você.
Tentei gritar, mas nada saía. Aos poucos, as queimaduras cicatrizavam, e eu via a pele
sendo repuxada, ganhando cor. Meus cabelos voltavam a crescer, e eu conseguia mexer minhas
pernas e dedos. Podia sentir o calor de Fryda.
Ao mesmo tempo, seu rosto alvo empalidecia, e olheiras fundas formavam-se por baixo
de seus olhos. Ergui meus braços e segurei seu rosto. Reuni forças para voltar a falar:
— Pare, Fryda.
— Eu disse que ia te salvar. — Ela aproximou o rosto do meu, tocando nossas testas, e
pousou a mão sobre meu peito. — Meu coração vai bater para sempre junto com o seu. Obrigada
por tudo, Aurora.
Os olhos dela se fecharam e sua respiração cessou. O corpo de Fryda tombou para o lado
com um sorriso sereno na boca. Acima de nós, as borboletas azuis voavam e eu jurei escutá-las
chorarem. A agonia de minhas queimaduras diminuiu, mas sentia uma dor pior. Meu peito estava
oco.
— Não. — Segurei o corpo de Fryda, incapaz de acreditar no que ela fizera. — Não,
não, não.
Aproximei-me de seu nariz e não havia o som ou o calor da respiração.
— Não, não, não — repeti, encarando o rosto plácido, balançando seu cadáver. — Volte,
Fryda. Volte.
Ergui o rosto para encarar Mariellen. A bruxa chorava, de olhos arregalados. Ela era
antiga, poderosa. Faria alguma coisa. Precisava fazer.
— Desfaça o feitiço, Mariellen! — implorei, abraçada à Fryda. —Leve-me, mas salve
Fryda, por favor. Por favor.
A bruxa tombou de joelhos, enterrando o rosto entre as mãos.
— Eu não posso. A dádiva de sangue é poderosa e irreversível. Ela trocou a vida pela
sua. Não há magia que possa interferir nos desejos mais profundos do coração.
Eu me preparei para mais anos de guerra. Preparei-me para morrer. Mas e para perder
Fryda? Era como esquecer de andar, de falar, de existir. Só ela conhecia meus segredos, minha
alma. Estava cercada por dois exércitos e sentia uma solidão sem fim.
— Meu amor. — Era mágico, lindo, torturante e horrível poder finalmente dizer tais
palavras, e Fryda não estar lá para ouvi-las. — O que eu faço sem você?
Ninguém tinha me contado as dores do nunca. Nunca mais ouvir sua risada. Nunca mais
sentir seu abraço. Nunca mais encontrá-la em nossa clareira.
Aconcheguei meu rosto em seu pescoço e chorei profundamente. Meu corpo foi tomado
por espasmos e soluços. Eu poderia preencher um oceano inteiro com meu pranto e com minha
dor.
Aproximei meu rosto do dela e meus lábios tocaram os seus, agora frios. Como eu pude
demorar tanto para perceber meus verdadeiros anseios? Ela não me ensinou apenas a acreditar,
mas a amar.
Os feéricos se juntaram numa magia para conter o restante das chamas na floresta e eu
perdi a consciência de quanto tempo permaneci abraçada com Fryda. Ninguém tentou nos
separar, nem poderia. Por aquele infindável momento, o povo da floresta e os humanos não se
atacaram, respeitaram meu luto enquanto as árvores choravam comigo.
Fryda viveria em mim para sempre. Ela não tinha só me dado a vida, mas a absoluta
certeza do meu destino. Eu sabia qual história deveria escrever. Onde quer que ela estivesse,
estaria orgulhosa em saber que eu perpetuaria nossos sonhos.
— Não vai ser em vão — jurei, afagando o rosto em seus cabelos. — Eu te prometo.
Meu pranto cessou quando vi meu pai se levantar, de espada erguida. O rei me encarou e
assentiu, caminhando em minha direção. Palavras me faltaram quando ele passou reto por mim,
com os olhos mirados em outro lugar.
Em Mariellen.
Engoli em seco e escutei lâminas serem desembainhadas. Preparei-me para implorar que
parassem, ainda que a esperança se esgotasse em mim. Faria aquilo por Fryda e por seu
sacrifício.
Dagoberto parou em frente a bruxa e em vez de atacá-la, jogou sua espada no chão.
Armas foram novamente embainhadas quando meu pai estendeu a mão para Mariellen.
E a história foi reescrita quando ela a segurou.
EPÍLOGO

Observo a muralha através de minha sacada, ainda imponente e intangível. Pensar que vou
morrer sem vê-la no chão me dói, mas sou confortada pelos portões sempre abertos e o comércio
vivo.
O povo de Hymelia não sangra mais pela fome.
Ataques não acontecem há sessenta anos. As florestas voltaram a florescer, e as crianças
estão seguras nos braços de seus pais. A promessa entre Mariellen e Dagoberto é uma chama
acesa, perpetuada pelo atual rei, um sobrinho distante de meu falecido pai.
Meu pai me ofereceu a coroa, mas não fui egoísta de aceitá-la. Hymelia precisava de
herdeiros e eu não daria um, não quando meu coração pertence eternamente para a mesma
mulher.
Nessa vida e em todas as outras.
Sempre me disseram que o luto é como os navios que atracam nos portos. Eles passam
um tempo distante, e chegam de repente, passando dias e dias no peito. Comigo é diferente.
Ela vive em mim. E a dor da saudade é mais suportável que o medo de esquecê-la.
— Senhora Aurora?
Viro minha cabeça para trás, à procura do chamado. Ainda é difícil me habituar à ideia
de que não tenho pleno controle pelo meu corpo. Os ossos e articulações doem, tudo é devagar.
Não sei mais o que é andar sem uma bengala. Há anos perdi o direito de cavalgar, minha única
alegria desde que a perdi. Alguns dias são mais difíceis do que outros, mas escolhi viver. Pela
nossa promessa.
— Olá, Miny. Está tudo pronto?
A menina assente, embora não seja mais uma criança, mas uma senhora. Sua companhia
é preciosa, Miny é uma das raras pessoas que não me olham com certa repugnância e pena. Sei
que as cicatrizes das queimaduras não são belas de se ver e amo Miny por nunca ter se importado
com elas. Cultivamos uma amizade preciosa há décadas, desde o dia da floresta. Não tive muitos
amigos desde Matt, que nunca mais falou comigo. Algumas cicatrizes são maiores que o tempo.
— Sim, senhora. A carruagem está te esperando no átrio do castelo. — Ela vem a passos
leves em minha direção e oferece seu braço. — Vamos?
Aceito o gesto e caminhamos para a saída. A visão dos corredores me lembra a
juventude, quando eu serpenteava por aquele castelo achando que teria energia para sempre.
Agora preciso aceitar que minhas pernas não são as mesmas, e meu quarto mudou para o térreo.
Subo as escadas quando sou teimosa e desejo apreciar a vista, e meus joelhos pagam o preço por
isso.
Chegamos ao salão principal. Da escadaria, contemplo os quadros com os bustos dos
Rivière. Miny espera, paciente e amorosa, eu me arrastar pelos degraus enquanto tateio o
corrimão. Uma singela alegria acende meu peito quando vejo o sorriso de minha mãe.
Ele parece maior agora que a pintura de meu pai está ao seu lado. Finalmente os dois se
reencontraram e a felicidade é clara, estampada no rosto iluminado de papai, sorrindo como
nunca vi em vida. Despeço-me de ambos em silêncio, com a certeza de que um dia nos
reuniremos de novo.
No átrio, a carruagem nos aguarda. O cavalariço está terminando de preparar os cavalos,
e em frente ao veículo, Pierre — um sobrinho neto de meu pai — bate o pé no chão sem cessar.
Ele me nota e corre para mim, segurando a coroa para que não caia.
Pierre é o novo rei, por isso não consigo deixar de sorrir quando sei que está com medo
de me questionar. O tempo não curou meu gênio indomável.
— Vovó — ele começa, alisando o gibão dourado. Somos primos, mas todos no castelo
me chamam assim. — É perigoso demais a senhora ir para lá, ainda mais sozinha. Deixe-me te
acompanhar ao menos dessa vez.
— Pierre — a afirmação de seu nome já é minha resposta. — Primeiro: deixe uma velha
ser feliz ao menos uma vez no ano. Há coisas que não abro mão, essa é uma delas. Segundo: se
me chamar de vovó de novo, espanco seu traseiro!
Ele suspira e abaixa os ombros, derrotado. Em seguida, vira o rosto para Miny.
— Cuide dela, certo? Eu juro que tento, mas ela só ouve você.
Ambos caem numa gargalhada sincera e não consigo conter meu sorriso.
— Com toda minha vida — Miny responde, ajudando-me a entrar na carruagem.
Aconchego-me nas almofadas macias e cruzo as mãos em meu colo, observando a
paisagem pela janela. Não é tão comum que eu saia da fortaleza agora, não por falta de vontade,
mas o cansaço me vence na maioria das vezes. Eu sei que minha hora está chegando e isso não
me entristece. No fim, eu a espero com vigor, pois anseio encontrar minha amada de novo. A
falta dela nunca doeu menos, o tempo não foi capaz de apaziguar as feridas em meu peito. Levo
minha mão ao coração, e sua presença me preenche como se nunca tivéssemos precisado dizer
adeus.
Observo as crianças brincando na rua e volto a lembrar de nós, da inocência e dos
sonhos perdidos. Elas falam alto, gritam com toda a energia infantil.
— Quem perder vai ter que ir pra floresta! — O menino mais velho fala.
— Eu não vou, não, tem monstros lá, muito grandes e muito feios. — O outro reclama,
cruzando os bracinhos.
— Ei! — Uma menina se põe entre eles e ambos se calam quando ela começa a falar. —
Não diga uma besteira dessas. Não há monstros, mamãe diz que são feéricos e não é por eles
serem diferentes de nós que sejam maldosos!
Os irmãos — que eu imagino serem, pela semelhança — abaixam a cabeça,
envergonhados, enquanto a menina tem um ar vitorioso.
Ela me lembra tanto de mim mesma. Há vivacidade e paixão crescendo nas crianças em
Hymelia. Nesses momentos eu sei que continuar vivendo valeu a pena. Damos passos pequenos
em direção à mudança. Nem todos são engolidos pelo ódio mais.
Afundo-me ainda mais nas almofadas quando atravessamos os portões. A carruagem
trota na estrada de terra e meu coração retumba de ansiedade. Eu trocaria o restante dos anos por
uma cavalgada ali de novo com Oliver. Meu corajoso amigo e minha doce lembrança. Sobrevivo
das memórias daqueles que um dia amei.
— Lady Aurora — escuto o cocheiro dizer. — Chegamos.
Ele desce da carruagem e abre as portas para mim. Miny sai primeiro e os dois me
ajudam a descer. Minhas sapatilhas tocam o chão. Eu respiro fundo, de olhos brilhantes.
— Vou seguir sozinha a partir daqui — digo, e ninguém questiona. Miny sabe da minha
história e a respeita.
Despeço-me dos dois e entro no bosque pelo mesmo caminho de galhos retorcidos.
Como se ela pudesse me ver e me escutar, a passagem torna-se mais fácil a cada ano. Ela se abre
para mim com todo seu cuidado, auxiliando meu corpo e alma cansados.
Eu conseguiria alcançar nossa clareira de olhos fechados. Antes, costumava vir todas as
semanas. Nos últimos tempos, os intervalos se alongam. Ainda assim, o caminho é vívido em
minha mente.
Encontro um par de petúnias — elas continuam alterando-se — e atravesso o espaço
entre elas, chegando em meu refúgio. Nada mudou desde então: o lago continua belo e cristalino,
flores coloridas caem pelas árvores e o sol afasta qualquer sensação gélida.
As borboletas continuam sobrevoando a clareira, eternas e incansáveis.
Há um tronco repousando na terra e, com a ajuda da bengala, agacho para sentar nele.
Passo minutos contemplando a imagem, transbordando pelas lembranças que acalentam meu
peito ferido.
Ao mesmo tempo em que a clareira continua a mesma, os povos mudaram. As crianças
em Hymelia não sabem mais o que é guerra. Isso não passa de uma história contada por seus
avós. Nossos povos não convivem juntos, mas não consigo deixar de pensar que, daqui a mais
sessenta anos, talvez as coisas sejam diferentes.
Como um mundo sem muralhas.
Tenho a plena certeza de que não estou sozinha e que nossos sacrifícios inauguraram o
destino que tanto sonhávamos.
Olho para cima e sou inundada por um raio de luz suave e amoroso. Ele embala meu
corpo e, por um instante precioso, enche-me de esperança de novo. Como se eu fosse aquela
Aurora de sessenta anos atrás, disposta a enfrentar o ódio e as tradições.
Começando a minha… não, a nossa história.
Nunca, nunca sozinha.
— Fryda — expresso seu nome, que ainda é dito com o mesmo amor de antes,
contemplando o céu infinito que se estende sobre mim. — Nós conseguimos.
AGRADECIMENTOS

Quando eu era criança, na hora de dormir, meu pai me contava as histórias da ‘’Princesa Nina’’,
sobre como ela sempre salvava o reino de dragões malvados ou reis tiranos. Meu maior
agradecimento por essa história vai para aquela garotinha que não deixou isso morrer e continua
acreditando que, com coragem e esperança, é possível mudar o mundo.
Agradeço também às pessoas que seguem me apoiando e me ajudando a botar minhas
histórias no mundo: Fran, Laís, Sabrina, Tay, meninas do best-sellers & hell. Agradeço à Hailla
pelo trabalho magnífico com a capa e à Arquelana e Raquel pela revisão ortográfica.
Agradeço ao Lucas por ter aturado meus surtos durante o lançamento (e ter escutado
com carinho todos eles) e por confiar em mim mais do que eu mesma.
E ao meu pai, Sérgio, por ter me feito acreditar que eu era uma princesa.
Por último, te agradeço profundamente por ter lido essa história, sofrido e sonhado junto
com as personagens, leitor.
Lembre-se que ainda há esperança, e que o mundo precisa de pessoas teimosas como a
Aurora para continuar acreditando, e da doçura da Fryda para compreender que isso pode ser
feito com amor.
SOBRE A AUTORA

Marina Rezende de Almeida nasceu em Campos, no Estado do Rio, mas mora desde
criança no Espírito Santo, seu verdadeiro lugar.

Desde criança, vive pelas histórias e carrega um livro para onde vai. Sempre preferiu
viver em outros mundos. Desse amor, paixão e desejo, surgiu a vontade de criar os seus.

É formada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, e cursa Psicologia


na Universidade Vila Velha. Além de escritora, também é mentora de Escrita Criativa e Leitora
Crítica.

Acredita, acima de tudo, no poder das histórias.

Conheça mais sobre ela e seu trabalho em suas redes sociais:

Instagram: @marina.verso
E-mail: autoramarinarezende@gmail.com
A CANÇÃO DO ABISMO

Há muito uma canção foi proibida e esquecida pelo tempo. Sua mera menção é uma
ameaça.

Mas ela foi tocada.


Ilith Vasilir é a última esperança do Império dracônico. Presa no topo de sua solitária
torre, a princesa secretamente sonha com a liberdade de escolher o seu próprio destino, mesmo
que ele já tenha sido traçado por forças maiores do que ela.

Porém, indo contra a ira do príncipe herdeiro, Illith se envolve com seu guardião: um
dracônico que foge dos moldes tradicionais do império e vê muito mais nela do que apenas uma
princesa frágil e indefesa. Juntos, eles se unem para investigar o mistério da rosa negra que está
sendo marcada em cadáveres brutalmente assassinados na fortaleza dracônica.

As notas foram dedilhadas. Não há espaço para fracos num mundo em que o sangue do
dragão rege mais forte, e um mal Inominável renasce, prometendo propagar destruição por toda
Atius.

Um mal que os bardos chamam de Canção do Abismo.

Você tem coragem de escutá-la?


SINFONIA DO CÉU E FOGO

Prequel do prólogo de ''A Canção do Abismo: Livro I dos Contos Atinianos''


Tudo que Khalil viveu, sentiu e respirou foi para este momento.

O dia em que salvaria Atius. Ou levaria seu lar à ruína.

Conseguirá ele erguer a mão da espada e enfrentar o mal que destruiu tudo aquilo que
ama? Ou se renderá ao desespero?

Nota da autora: a leitura do conto não é obrigatória para a compreensão de A Canção do


Abismo, mas com certeza irá tornar sua experiência ainda mais emocionante.

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