Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, distribuída ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer meio,
incluindo fotocópia, gravação ou outros métodos eletrônicos ou mecânicos, sem a prévia autorização da autora.
Essa é uma obra de ficção com nomes, personagens, eventos e incidentes que são ou produto da imaginação da autora ou
usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com eventos reais, pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.
NÃO A PIRATARIA!
NÃO COMPARTILHE PDF DO LIVRO.
Em tempos turbulentos, outros reinos proclamavam que estavam em guerra, mas em Hymelia a
sentença era o contrário. Nós estávamos em paz, porque vivíamos em guerra.
Num mundo diferente do meu, talvez as ruas conhecessem crianças sorridentes e
atrevidas, obstinadas a surrupiar maçãs das vendas e pregar peças nos mais velhos. No entanto,
na minha cidade, no coração do reino, as hordas de soldados rondando cada esquina inibiam até
as almas mais corajosas.
Eu não podia culpá-las. Desde cedo, éramos forjados pelo medo.
Porque, para além da fronteira, escondida nas entranhas da floresta, reinava Mariellen, a
rainha feérica. A bruxa dos pesadelos. O terror das piores histórias.
Eu queria poder sonhar com princesas corajosas e reinos em que as pessoas não eram
despedaçadas pela fome. Queria crescer com a esperança da existência de um mundo melhor;
contudo, ninguém acreditava nisso. Só conhecíamos o reinado de terror de bruxa. A forma como
ela carregava no pescoço um colar de dentes de leite e se deliciava com o sangue humano. Como
raptava as crianças para escutá-las gritar. Como transformava nossos corpos numa mensagem de
guerra.
O medo não matava só meu povo. Matava nossas histórias.
E eu tinha minha própria maldição. Um destino fadado a lutar. Eu queria mais... Saber o
que era real e o que não era. O que havia para além da muralha. O que era aquela floresta
misteriosa escondida por um dossel de árvores, que eu observava da sacada do castelo.
Queria poder sonhar. Queria o direito de lutar por um mundo melhor. Por um futuro
diferente do que me prometeram.
E, para isso, eu precisava contar uma história. A minha.
Porque eu era Aurora de la Rivière, primogênita do rei de Hymelia, Dagoberto II. A sua
maior moeda de troca.
I
Dagoberto II me observava apreensivo. Eu o conhecia há quase dezoito anos, sabia ler cada
linha de sua expressão. Os lábios comprimidos, o tamborilar dos dedos nervosos no braço da
cadeira e a respiração descompassada. A olhadela fugaz ao relógio pendurado em cima da porta
de entrada não era o olhar de um rei. Era o de um pai. E ele se preparava para dizer algo que eu
não gostaria de ouvir.
— Minha filha, fiquei sabendo que o príncipe de Borgouin está à procura de uma noiva
e…
— Pai. — O tom ferrenho de minha voz inundou o salão de jantar e findou as
esperanças do rei. — Não estou interessada em me casar com esse príncipe imbecil e com
nenhum outro!
Cruzei os braços, bufando, e ignorei a decepção de Dagoberto de la Rivière II, a mesma
que o perseguia há três anos. Ele massageou a veia saltitante da têmpora com as pontas dos
dedos, mais um sinal de nervosismo no rosto solene.
Ele não conseguia competir com meu gênio forte.
Apesar da resistência, eu compreendia o desejo de meu pai. Não tardaria para que eu
completasse dezoito invernos e, contra todas as expectativas de que quando crescesse me tornaria
uma moça feita e recatada, a bainha do vestido continuava suja e meus cabelos não viam uma
escova há dias. Continuava péssima em costurar e cozinhar. Meu perfume se assemelhava mais
ao cheiro dos estábulos do que lavandas.
E, acima de tudo, definitivamente não desejava me casar.
— Aurora — ele começou e eu revirei os olhos, a postos para mais um de seus discursos.
Poderia recitá-los com ele, já que se repetiam toda vez. — Nos últimos anos perdemos muitos
homens para a bruxa e os monstros da floresta. Não vai tardar para que as forças diabólicas
destruam nossas mulheres e enfeiticem a todos nós. Os Bourgouin são uma família poderosa e
com a ajuda deles, nós…
Interrompi o rei, cuspindo escárnio nas palavras:
— Basta eu fingir amar um estúpido que não se interessa em nada por mim, além do
meu dote, é claro, e o reino de Hymelia será salvo? Bravo, pai. A quem você quer enganar com
essa ideia, o povo ou a si mesmo?
Minha ferocidade nunca diminuíra, pelo contrário. Minha língua tornara-se mais afiada e
nem o rei era imune às minhas intempéries. Ele, cada dia mais velho, girou a taça de vinho nos
dedos, observando o líquido se mexer sem rumo definido, uma alegoria à nossa miserável
situação nos últimos anos, vítimas de uma guerra que para mim não fazia sentido.
Girando, girando e chegando a lugar nenhum.
— Não sei mais o que fazer, Aurora. — A súplica embargada de meu pai apertou meu
peito.
O tempo não fora gentil com ele e, nos momentos de fragilidade, conseguia perceber o
quanto Dagoberto definhava. Aparentava ser mais velho do que era. Seu rosto não via um sorriso
há anos. A amargura transformava seu sangue em veneno.
Levantei-me da mesa e me dirigi para a cadeira ao lado de meu pai — pertencente à
rainha, vazia desde a sua morte. Não queria me casar, mas jamais abandonaria meu povo.
Precisava descobrir como amolecer seu coração endurecido e propor algo a mais.
Propor esperança.
Assentei-me e tomei as mãos do rei nas minhas, apertando seus dedos. Ele ergueu o
rosto cansado, e era nítido como sofria quando olhava para mim. A lembrança de minha mãe só
não era mais vívida que a saudade.
— Cada vez você se parece mais com ela — murmurou, tocando minha face com o
dedão. — Tanto em aparência quanto em paixões.
Eu deveria fazer aquilo. Por minha mãe. Por nós. Pelo futuro de Hymelia.
— Paz, meu pai — sussurrei. — Nossa resposta é a guerra há muito tempo, e o que ela
nos trouxe? Mais dor. Mais morte. Vamos olhar para a paz.
Prendi a respiração. Estava jogando sal numa ferida ainda aberta, mas até quando
iríamos alimentar o medo e o ódio?
Dagoberto desvencilhou-se de meu toque com brusquidão, o semblante se distorcendo
pela mágoa. Aquele homem encolhido, de repente, ergueu os ombros e inflou o peito. Fiquei
assustada com o quanto a raiva o alimentava e tive medo de que ela fosse a ruína de Hymelia.
— Paz, Aurora? — Papai virou a taça de vinho nos lábios e gotas respingaram em sua
barba grisalha e espessa. Em seguida, bateu com a palma aberta na mesa. — Eles não pediram
paz para nenhuma das vilas destruídas, muito menos para meus soldados mortos. Quer que eu me
rasteje até aquela bruxa desgraçada e peça paz? Você é a princesa, é a minha filha. Deveria saber
tanto quanto eu que o nosso dever é proteger o reino, não entregá-lo na bandeja para assassinos
de crianças. De que lado você está, Aurora?
Encolhi-me como um bebê, açoitada pela sua fúria. Dagoberto inflamava o rancor que
perseguia Hymelia. Todos eles estavam machucados demais para ceder. Como eu iria convencê-
los da verdade?
De que existia uma feérica que também queria paz?
— Eu imaginei que você não aceitaria a proposta de noivado e precisei tomar medidas
drásticas, filha. — Ele desabou na cadeira e apoiou o rosto na palma da mão. — Os médicos
disseram que ainda sou fértil e que posso me casar de novo. Eu o farei, Aurora. Darei um
herdeiro para Hymelia.
Ergui-me de supetão, bufando.
— Você tem uma herdeira, Dagoberto. Eu sou sua filha — vociferei, rangendo os
dentes. — Eu não sou suficiente?
Às vezes acreditava que meu único pecado era não ter nascido um homem.
Não esperei pela resposta do meu pai. Não quando seu rosto enfurecido amenizou com
pena. Eu não precisava de piedade, mas de respeito. Empurrei a cadeira para trás e corri para a
saída, pisoteando o chão de mármore com a terrível certeza de que o dia em que meu pai se
cansaria de esperar chegaria em breve. Ele e eu seríamos obrigados a nos casar com pessoas que
não amávamos.
Lágrimas estúpidas insistiram em cair dos meus olhos. Mordi os lábios e engoli cada
uma delas. Recusava-me a chorar e dar qualquer prova de que eu era como as damas frágeis do
castelo, o sonho de minhas tutoras. Que questionassem meus modos, palavras e atitudes, não
minha coragem!
Serpenteei pelos corredores e desci uma série de lance de escadas, alheia à
movimentação dos criados. Estava fugindo das minhas tutoras; as paredes do castelo eram finas e
logo elas me reprimiriam pelo péssimo comportamento. Preferia manter uma péssima reputação
a aceitar, resignada, algo que não queria.
Diminuí o passo ao alcançar a escadaria central. Ela terminava no átrio, na direção da
saída do castelo, onde eu alcançaria a liberdade… Se não vivesse numa fortaleza fortificada e
cheia de muralhas.
Parei no salão de entrada, onde quadros com os bustos dos reis e rainhas Rivière
ornamentavam as paredes altas, sustentados por molduras de ouro. Eram o orgulho de Hymelia,
homens e mulheres gentis que floresceram o reino com fartura. O que meus tataravós diriam se
soubessem que a mesma guerra continuava sendo travada? O último quadro era meu favorito.
Estanquei em frente a ele, encarando a última rainha morta.
Mamãe.
Diferente das minhas avós, ela não era dona de um rosto solene. Os cabelos castanhos
soltos e o aro fino no lugar da coroa lhe davam um ar de camponesa, sorridente e alegre. Não era
uma mulher que via os outros de cima. Olhava na altura de outros olhos. Éramos tão parecidas
que eu perdoava meu pai por sentir tanto a sua falta toda vez que estava comigo.
Tão linda. Tão selvagem.
— Oi, mamãe — sussurrei, esperando por uma resposta que nunca viria. Ela nunca mais
falou comigo desde a vez que eu entrara na floresta, há quase oito anos. — O papai é um idiota.
Ele diz que quer se casar de novo, acredita? Homem tolo. — Amainei minha voz, esgotada de
raiva. — Ele vem conversar com a senhora todas as noites e acha que pode me enganar…
Minha raiva e tristeza se concentravam nisso. Por que meu pai pretendia repetir o
matrimônio, mesmo amando minha mãe? Por que não podíamos encontrar um caminho juntos?
Ele não conseguia enxergar que eu tinha sonhos. Que eu podia ser muito mais do que a princesa
fadada a se casar.
E eu mostraria a ele de que era capaz.
— Se ele perguntar para onde fui, minta por mim, por favor. Vou para a floresta.
Beijei as bochechas da pintura e jurei ver a ponta dos lábios de mamãe se repuxando
para cima, um aviso de que ela esconderia meu segredo. Em silêncio, despedi-me, dando
passinhos para trás. Levantei os babados do vestido e terminei de correr degraus abaixo,
atravessando a imensa entrada do castelo como se eu fosse o vento.
Lá embaixo, longe das sacadas, as muralhas me engoliam. O castelo fora erguido numa
parte elevada da cidade e os antigos reis não foram miseráveis em fortificá-los. Eu conseguia
escutar os passos constantes nos adarves, os olhares afiados das sentinelas vigiando pelas torres
de atalaia.
Eu compreendia o motivo. Entretanto, a verdade é que tanta proteção não passaria de um
exagero. Se os feéricos conseguissem invadir Colosso, nós estaríamos perdidos e ninguém se
protegeria. Nós apenas seríamos os últimos a morrer. Era incompreensível. Não haveria
vencedores, só mais dor. Mais mortes.
Para a minha sorte, na maioria das vezes os guardas não me paravam. A maioria me
conhecia desde criança e estavam acostumados com o meu gênio. De nada adiantaria me mandar
voltar para os meus aposentos ou ameaçar chamar meu pai. Eu também não era imprudente, não
me aventurava fora da cidade quando alguém desaparecia ou éramos ameaçados.
Desfrutávamos de um efêmero momento de paz, e não havia ataques há três meses.
Contudo, uma bruma de quietude densa pairava sobre a cidade, nos deixando no escuro. Todos
sabíamos o que o silêncio significava.
Balançando o rosto para afastar os pensamentos sombrios, corri em direção ao estábulo.
Escondia-me na companhia dos cavalos quando desejava um tempo sozinha. Oliver me entendia
melhor que as tutoras, não exigia que eu estivesse impecável ou que agisse de forma polida.
Aceitava quem eu era. Uma cavaleira. Uma sonhadora.
Adentrei as portas de madeira e perscrutei os olhos pelas bainhas, afagando os animais
pelos quais passava. O corcel branco de meu pai era o único a não gostar de mim e relinchou
perante minha presença. Mostrei a língua para o animal e jurei que nunca mais lhe daria uma
maçã. Mal-agradecido!
A baia de Oliver ficava no final do estábulo e saltitei em direção ao meu Puro Sangue,
cantarolando baixinho uma canção de ninar. Notei que sua porta estava entreaberta e, antes de
cumprimentar Oliver, franzi o cenho. Observei Matt, o cavalariço, escovar os pelos de meu
animal. Ele mordiscava um ramo de cereal e estava nu do peito para cima. Minhas bochechas
ruborizaram, era inadmissível andar daquela forma nas dependências do castelo.
— Com licença. — Fingi uma tosse rouca para chamar a atenção dele. — Poderia me
deixar a sós com Oliver?
Ao som da minha voz, o cavalariço se destrambelhou e pulou da cadeira. A escova caiu
de suas mãos e ele tentou pegá-la, sem sucesso. Mordi os lábios para não desatar em
gargalhadas, observando-o vestir a camisa pelo lado avesso.
— Vossa Alteza, o que posso fazer pela senhora? — ele perguntou, forçando seu melhor
sorriso. Não era incomum escutar as empregadas comentando sobre sua aparência, contudo não
conseguia vê-lo da mesma forma. Conhecia Matt desde que era criança.
Cruzei os braços e bufei, estapeando o chão com um pé só.
— Você sabe que detesto quando me chamam de Alteza.
— Meu pai arrancaria meus dentes se eu te tratasse diferente, Aurora. Não tenho culpa
se você é a princesa e eu só o empregado.
— Ah, pare com isso! Os cavalos não vão dedurar ninguém.
Nós dois rimos, e ele desistiu de fingir que não era o meu único amigo de verdade no
castelo.
— E a que devo as honras, Aurora? Vai cavalgar para além da muralha de novo? Você
sabe que é…
Ergui os braços e revirei os olhos. Não queria escutar o mesmo discurso.
— Certo, certo. Eu sei que é perigoso, possivelmente mortal, mas o nome zona neutra
tem um significado, sabia? Eu já fui centenas de vezes lá e estou vivíssima.
Matt sentou-se num montinho de palha e suspirou. O coitado ainda não havia aceitado
que jamais me convenceria.
— Eu só me preocupo com sua segurança. Você não é só a princesa, Aurora, é a única
herdeira. E se aqueles monstros demoníacos te pegarem?
Cerrei os punhos e mordi o lábio inferior, aprisionando minha língua, ou ela revelaria
meu segredo. Tentara convencer Matt de que podíamos lutar pela paz, mas sua reação fora quase
tão reativa quanto a de meu pai. Não podia culpá-lo. Seu irmão mais novo fora levado na calada
da noite.
Aconcheguei-me ao seu lado e baguncei sua cabeleira loira.
— Me pegarem? Se esqueceu de que meu cavalo é o mais rápido do mundo?
Oliver, que estava ocupado demais mordiscando feno para escutar nossa conversa,
relinchou em aprovação. Dei um tapinha em seu quadril.
— Eu poderia selar o Oliver, mas esse corcel consegue ser tão teimoso quanto a dona e
não deixa ninguém chegar perto dele.
— Eu não diria teimoso, mas corajoso.
Ergui-me, pegando a sela de couro. Preparei meu cavalo e me impulsionei para subir em
seu dorso. Segurei as rédeas, agradecida pelo toque confortável delas na palma de minhas mãos.
— Pelo menos me diga que vai acompanhada — disse Matt, acariciando o pescoço de
Oliver. — É muito..
— Perigoso, eu sei! Assim que os guardas me virem vão mandar Gregório atrás de mim,
não se preocupe. E, além do mais — inflei o peito. — Não tenho medo de nada!
Ao sair do estábulo, atravessamos o território da fortaleza num átimo, entre galopes e
gargalhadas. Asas imaginárias cresceram em minhas costas e a angústia se dissipou ao passo que
eu voava com Oliver. Pensamentos de guerra e casamento morreram no precioso instante em que
meus olhos miraram a ponte levadiça que nos separava da cidade.
Ouro não apagaria o desejo pela liberdade, queimando como brasas pelo meu sangue.
Terras infinitas não seriam o bastante para me fazer esquecer meu sonho. Ainda que longínquo,
eu não aceitava o impossível.
Possibilidade era esperança. E a esperança não era uma coincidência do acaso, era a
consequência de acreditar, de sonhar com Hymelia sem muralhas.
Paramos em frente ao portão principal da fortaleza e minha súbita alegria se dissipou.
Sentia-me tamponada por aquela vigilância. Na entrada do castelo, os adarves eram ainda mais
caóticos e eu me perguntava se as sentinelas dormiam. Se tinham família, ou viviam para a
proteção de Hymelia.
A vida de todos era perseguida pela ameaça da guerra.
— Abaixem os portões e a ponte! — gritei em direção à guarita, torcendo para que o
soldado a postos fosse um dos que me apreciavam.
Minhas preces foram atendidas, pois o som das correntes se movendo preencheu o pátio
da fortaleza. Empertigada em minha melhor postura, atravessei a ponte, observando os sinuosos
detalhes do rio que circundava o baluarte e garantia nossas reservas de água. Cristalino,
peixinhos de diversas cores nadavam de um lado para o outro, alheios à loucura que se apossava
da terra. Apreciava minha breve sensação de liberdade. Logo, logo, uma guarnição viria atrás de
mim.
Em contraste com os peixes, a cidade era cinzenta. As memórias não cicatrizadas
tornaram as pessoas amargas. A paz nunca conquistada feria não só nossos corpos, mas a ideia
de um futuro.
Meu pai insistia que não havia uma família em Hymelia que não fora afetada pelos
monstros, porque apesar deles nunca terem invadido a cidade com o exército de Meriellen,
esgueiravam-se entre as ranhuras das muralhas com seus feitiços, roubando crianças e
assassinando homens em seu sono. Ninguém estava em segurança.
Enquanto cavalgava entre os transeuntes, notei o semblante sombrio das pessoas.
Estavam perdidas dentro de si mesmos. Como eu poderia pedir que sorrissem, que acreditassem?
Não adiantava convencer meu pai, havia um reino à minha espera.
E eu também era culpada. Culpada por ser incapaz de dizer a verdade. Ela também me
assustava e meu povo não estava pronto para compreendê-la, não com cicatrizes tão recentes.
Do mesmo modo que morríamos de medo dos feéricos, os pesadelos dos feéricos eram
os humanos. Quem eram os monstros? Quando eu fechava meus olhos, via todas as mãos sujas
de sangue.
Acenei para um casal que se dirigiu a mim. Sentia-me culpada pelo estômago cheio
enquanto a fome vinha assolando as pessoas desde que os inimigos queimaram nossas plantações
há meses atrás em retaliação aos ataques na floresta. Cada ataque era rebatido com mais
ferocidade, e no fim as pessoas em seus corpos famintos pagavam o preço.
Tentando afastar os pensamentos, diminuí a velocidade para observar a vida na cidade.
Não precisava temer ataques, pois os guardas eram quase tão numerosos quanto os cidadãos. Um
cachorro latindo copiosamente chamou minha atenção e me virei para um sobrado.
O contraste com a fortaleza era gritante, pedras irregulares amontoavam-se uma em cima
da outra e o telhado de madeira tinha um aspecto de podre. Em frente à espelunca, uma criança
puxava as saias da mãe, choramingando baixinho. A mulher retirou uma maçã bolorenta do bolso
e entregou para a filha, que segurou a fruta com brilho nos olhinhos.
Meu cavalo comia maçãs melhores que aquela.
A pequena sequer devia entender o porquê lutávamos. Era mais uma vítima da ausência
de histórias.
Apertei as rédeas, e o sangue no meu pulso ferveu. Eu poderia fazer algo, mas o quê?
Talvez eu não fosse tão corajosa quanto pensava. De que adiantava me compadecer por sua
situação se minha piedade não a alimentaria?
Meu estômago embrulhou de vergonha. Continuei a observar a menina mastigar a fruta
com ardor, como se fosse o maior banquete em todo o reino. Ao perceber minha atenção, ela
pousou o olhar em mim e abriu um sorriso radiante com alguns dentes faltando. Minhas
bochechas ruborizaram quando ela gritou:
— Princesa Aurora! Mamãe, é a princesa!
A criança me alcançou num pulo e acariciou o pescoço do meu corcel. Apesar de sempre
ter respostas na língua, meus lábios se embolaram quando, em toda sua inocência, ela me
perguntou, estendendo a maçã.
— Quer? Tá muito gostosa!
Fui incapaz de responder. As palavras morreram como cinzas em minha garganta.
— Ai, deuses — praguejou a mãe, agarrando o braço da menina. — Perdão, Alteza,
Miny é tão atrevida, que vergonha!
— Por que cê tá chorando, princesa?
Pisquei os olhos e só então notei duas lágrimas que desciam silenciosas por minhas
bochechas. A mãe de Miny continuava a se desculpar, quando era eu quem deveria me ajoelhar e
implorar por perdão.
Enquanto ela morria de fome, eu estava protegida atrás das muralhas.
Enxuguei as lágrimas com a manga do vestido e vesti meu melhor sorriso. Eu ainda era a
princesa, deveria dar o exemplo, não trazer mais sombras para a cidade.
— Myni, não é? — A menina sorriu de novo ao ouvir seu nome. Tossi para recuperar a
voz. — Eu vou à floresta e prometo que te trarei a melhor fruta de lá. Que tal?
— Vossa Alteza, não precisa de tanta gentileza… — a mãe murmurou, nervosa,
meneando a cabeça.
— Eba! Prometo que te espero aqui. — Myni cantarolou, saltitando com as mãozinhas
na crina de Oliver.
Nenhum não chegue perto da floresta ou cuidado com os monstros. Só um pedido
inocente. Era tudo que eu precisava: um pequeno lampejo de esperança.
Despedi-me de Myni e continuei a cavalgada. Como uma flecha em direção ao alvo,
segui em direção a Colosso. Tinha esse nome porque a muralha media seus gigantes vinte metros
de altura. Dentro dela, sentia-me numa gaiola, de asas cortadas. As pedras maciças e cinzentas
contribuíam com as cores mortas, deixando a impressão de que todos os dias eram nublados.
Eu queria sol. Queria cor.
Alcancei o portão principal, um gigante de ferro regido por uma dezena de soldados.
Acima, nas guaritas, sentinelas perscrutavam o perímetro com seus olhos afiados, averiguando
qualquer movimentação na floresta. Sendo a única entrada da cidade, ele precisava ficar aberto
para que os comerciantes entrassem e era fechado caso alguma ameaça rondasse a capital.
Uma carroça diferente do habitual entrava na cidade. Maior, carregada por jumentos no
lugar de cavalos e coberta por um pano espesso. Curiosa, esperei que passasse para ver o que ela
carregava.
Percebi, dentro do compartimento, figuras esguias cobertas por capas pretas, abraçadas
umas às outras. O silêncio pesava, como se o interior da carroça fosse imune ao som. Tinha
cheiro de poeira e tristeza, e prendi a respiração ao constatar que…
Eram pessoas.
— Refugiados. — Ressoou a voz, ao mesmo tempo que tocava meu ombro esquerdo. —
A cidade está infestada por eles. Estão com medo dessa paz repentina.
Virei-me para trás, não surpresa pela presença de Sir Otto Estivalet. Apesar da barba
branca espessa e as rugas nos cantos dos olhos, a postura rígida do homem assemelhava-se à sua
posição de comandante da muralha. Trajava couro fervido e uma insígnia de ouro no peito,
conquistada pela sua bravura em repelir os inimigos. Seus dedos tamborilavam o cabo da espada.
Orgulhava-se por ser o maior matador de feéricos. Diziam que ele era imune aos seus feitiços.
Era o melhor amigo do meu pai e seu fiel conselheiro.
— Como Hymelia está alimentando todos? — perguntei, notando a chegada de outra
carroça.
O comandante suspirou como se o peso do reino repousasse sobre seus ombros. Por um
segundo, pareceu velho de verdade. Cansado demais para sustentar Colosso e a reputação que
tanto o orgulhava.
— Não estamos, Aurora.
Quase caí de Oliver, embora no fundo imaginasse a verdade. Meu pai me mantinha
alheia aos assuntos mais urgentes do reino. Por que ele não confiava em mim? Por que me
obrigava a aprender a costurar, cozinhar e cantar enquanto o povo morria aos pouquinhos?
— Eu vou mudar isso — afirmei, tremulante. Raiva. Medo. Confusão. Sentimentos
conflituosos me embalavam.
A indiferença não era um deles.
Encarei o território por trás da muralha, contemplando o bosque. Minha resposta morava
ali, atrás das árvores, escondida numa clareira.
— Otto, eu vou para a floresta e ordeno que o senhor não tente impedir. — Tentei soar
ríspida. Sentia-me uma criança perto dele.
O homenzarrão bufou, escondendo uma risada abaixo do bigode. Ele não negou,
entretanto, não me deu a liberdade que eu gostaria.
— Três de meus homens vão com a senhora. Se algo acontecer com você, Aurora, é meu
pescoço na forca. — Os guardas designados aproximaram-se de nós e Otto vociferou: —
Cuidado com os demônios, nem pense em atravessar a fronteira.
Engoli em seco e assenti. Não cruzava a zona neutra, mas estava brincando com a sorte.
Era um milagre nunca ter topado com outro feérico. Questionava-me se algum deus me
guardava, embora tendesse a recusar a existência deles. Que tipo de deus permitiria a
continuidade da guerra?
Senti-me liberta de minhas dúvidas quando deixei as muralhas para trás e cavalguei pela
relva banhada pelo sol, destinada ao chamado da liberdade. A linha do horizonte não tinha fim.
A planície era infinita, e o verde abundante brilhava sob o calor. Era um mundo dolorosamente
lindo.
Minha trança serpenteava pelas costas e o vento fustigava meu rosto enquanto Oliver
desatava a correr, cada passo mais rápido que o outro, voando como se ambos fôssemos um só.
Não ouvi mais os cascos dos cavalos dos guardas, tampouco seus murmúrios que ficaram para
trás. Minha habilidade em cavalgar era notável e deixá-los para trás não foi difícil.
Voltei no tempo. Para o dia que o bosque me chamou há sete anos. As lembranças eram
doces em meu peito, um refúgio onde eu podia me esconder. Uma parte de mim rogava para
continuar e nunca mais olhar para trás. Queria descobrir o que havia além da guerra, da raiva, do
luto.
A outra me puxava de volta. Tinha o rosto de Miny ainda fresco nos meus pensamentos.
A maçã podre em suas mãozinhas. O sofrimento eterno no rosto de meu pai. O silêncio dos
refugiados.
Que tipo de princesa eu seria se fugisse e abandonasse os meus?
Aproximei-me da orelha de meu corcel e disse, certa do que deveria fazer:
— Vamos, Oliver. Vamos para o bosque.
III
Dagoberto nos esperava na entrada do palácio, guardado por uma vintena de soldados. Eu o vi
primeiro, trajava um gibão, a coroa e a capa, mas em vez de exalar a magnitude real, tinha a pele
pálida de um doente. As notícias corriam mais rápido que nossos cavalos. Seus olhos
percorreram a multidão, e percebi um peso imaginário cair de seus ombros quando ele me viu.
Desengonçado, correu até mim, e toda a força que eu tentava reunir, ruiu.
Desci de Oliver e corri de encontro com meu pai, trêmula, os dentes batendo e as pernas
duras. Ele me alcançou, prendendo-me num abraço, e desatei a chorar. Chorei por Fryda, agora
prisioneira, por Sir Otto, um homem morto, por Myni, uma criança perdida. Pela luz que se
apagava em mim.
— Papai, papai. Termine isso, por mim, eu te imploro, eu me caso, eu vou embora, eu
aceito ser substituída, só termine com isso.
Senti-me de volta no tempo, há tantos anos, quando ele me consolava quando eu corria
ao seu quarto com medo dos monstros que se escondiam debaixo da cama. Eu não imaginava
que esse monstro seria enorme, que cobriria nossa vida com sua sombra de rancor.
— Tive tanto medo de te perder, filha — falou, abraçando-me com mais força, como se
nunca tivéssemos nos separado.
Meu pai afastou-se e segurou meu rosto entre as mãos, mais severo dessa vez.
— Nunca mais vá para a floresta, Aurora. Não é o pedido de um pai, é a ordem de um
rei. — Ergueu-se e sua dor denunciou o que procurava. — Onde ele está?
Os soldados, envergonhados, trouxeram o corpo de Sir Otto, acomodando-o no chão.
Dagoberto se ajoelhou ao lado do amigo, fechou seus olhos e chorou baixinho. Os homens se
afastaram, respeitando sua privacidade, mas eu não desviei o olhar. Agora, em segurança, podia
reviver as memórias.
Fryda tinha feito aquilo. Minha Fryda.
Mas... fora Sir Otto quem a perseguira. Fryda só queria fugir, deixar a morte para trás,
não procurar por ela.
Por que eu não sabia a quem culpar? E por que isso doía tanto?
— Onde o demônio está? — perguntou Dagoberto, seu rosto escondido pelo cair da
noite.
Estremeci, encarando a muralha. Logo, Fryda entraria por suas portas, no domínio de
seus inimigos. Suas boas vindas seriam a vingança. Eu não podia permitir que aquele ciclo
vicioso continuasse girando para sempre.
Em estado de alerta, não consegui dormir. Observava o mundo além das muralhas e do
horizonte. Não tinha mais forças para chorar, e meu corpo estava duro como o gelo, esperando o
momento de quebrar.
O funeral de Sir Otto aconteceria no dia seguinte, e se eu forçasse meus ouvidos,
escutaria o lamento da cidade por sua morte. Eu não sabia discernir o que me assustava mais: seu
rosto empalidecendo, a constatação da morte chegando aos poucos, ou a fúria irrefreável que
transformava o homem gentil num monstro.
Não havia onde desembocar a culpa, e eu não queria que meu medo fosse consolado pela
raiva. Ela não seria minha carrasca.
Meus olhos pesavam quando escutei a cidade acordar. De fôlego preso na garganta,
agarrei a mureta da janela e vi, de longe, o bruxulear das tochas dos aldeões. Os gritos
começaram como uma orquestra, um instrumento depois do outro, mas a música não era bonita;
era aterrorizante.
Já vestida, calcei sapatilhas e desci as escadas correndo até alcançar o átrio do castelo.
Uma guarnição de guardas estava à espera de Fryda chegar, de lanças e espadas em mãos. Minha
vontade era de esmurrá-los, gritar que eram uns covardes. Se vestiam para a batalha quando a
inimiga era uma menina mais assustada do que eles.
Cerrei os punhos e respirei fundo, contendo meu gênio. Não perderia a guerra contra
meus sentimentos inflamados. Minha melhor amiga estava em perigo, e eu precisava salvá-la.
Pedi licença para os soldados que me permitiram passar, embora eu soubesse que seus
olhos de gaviões não desgrudariam de mim. Minha relação com Fryda só não fora questionada
porque acreditavam piamente que eu estava sob algum feitiço, mentira que não tentei refutar.
Meu pai não insistira em perguntas porque sequer imaginava a possibilidade de eu não odiar uma
feérica.
Empertigado à frente dos guardas, eu o vi. As costas eretas e os ombros firmes eram
estranhos a mim, acostumada com a figura corcunda e pequena de Dagoberto. Pela primeira vez,
em muito tempo, ele parecia um rei. Um homem que não fora derrubado pelo tempo.
Por que isso me assustava tanto?
— Pai! — chamei ao alcançá-lo. Ele sorriu quando me viu, como se eu estivesse feliz em
fazer parte daquele reinado de terror.
— Finalmente, minha querida. Finalmente caminhamos para a vitória. — Dagoberto
parou, com voz embargada. — Os deuses são bons, Aurora. Quando somos resilientes às
desgraças, eles nos presenteiam com muito mais.
Murchei, indefesa como uma criança. Fiz menção de tocá-lo, mas recolhi minha mão
rapidamente. Eu não queria consolar aquele homem enlouquecido pelo rancor. Tinha que quebrar
a roda. Não com raiva, não com medo.
O que eu tinha contra esses poderosos oponentes, senão a esperança?
— O que adianta, pai? — sussurrei para só ele ouvir. — O que espera fazer capturando
um deles, senão inflamar a disputa?
— Esses demônios pegaram um dos nossos, Aurora. Uma garotinha da cidade. Quer
razão mais digna que essa? Retaliação, minha filha. Um rei não pode ceder perante seu povo.
Pensei em Myni, sozinha na floresta. Será que ela estaria viva? O que os feéricos faziam
com os humanos? A mesma coisa que fazíamos com eles? Preferia não me agarrar ao que as
lendas diziam, ouenlouqueceria. Havia escutado inúmeras histórias de crianças raptadas, mas
Myni tinha nome e rosto. Eu não podia simplesmente esquecê-la. Era um dos poucos corações
puros em Hymelia.
— E se trocarmos a prisioneira pela criança? — perguntei, embora soubesse a resposta.
Dagoberto deu de ombros.
— A criança está morta, Aurora. Além disso…
Meu pai se calou quando as sentinelas gritaram para que abrissem o portão que levava à
parte superior da fortaleza, onde esperávamos a chegada de Fryda. O barulho das engrenagens
arranhava meus ouvidos e a expectativa corroía minhas esperanças.
Dois garanhões entraram guiando uma carroça coberta por lona. Eu não tinha dúvidas de
que Fryda estaria desesperada. Usei o que restava das minhas forças para não tentar libertá-la ali
mesmo. Meu plano devia ser extremamente cuidadoso, ou nossas vidas estariam em risco.
— Não é sua culpa ter sido enfeitiçada por essa bruxa, Aurora — disse meu pai,
pegando-me de surpresa. — São criaturas ardilosas. E essa, em especial, é uma das mais
poderosas delas.
Encarei o chão para que meu pai não percebesse o misto de sensações que trespassava
meu rosto. Uma gota de suor frio correu pela minha espinha e meus dedos tremeram.
O que ele queria dizer com aquilo?
— Eu não entendo, pai. — E dessa vez dizia a verdade.
Não entendia como Fryda, tão gentil e inofensiva, controlara a floresta e matara um
homem. Não entendia o porquê de a capturarem com vida em vez de matá-la, como faziam com
os outros. Não entendia porque arriscar trazê-la para a fortaleza sabendo que era poderosa.
Sentia-me injustiçada, como se eu não a conhecesse e tudo tivesse sido uma mentira.
Minha ignorância em relação ao mundo era traiçoeira.
Dagoberto botou a mão no meu ombro, hipnotizado pela imagem da carroça.
— Tirem a lona!
Os guardas obedeceram, revelando minha Fryda. Não a que eu conhecia, mas a que tinha
olhos vermelhos e poder o suficiente para matar alguém. Estava machucada e enjaulada, mas era
mais ameaçadora do que os guardas vestidos de ferro, mesmo que suas mãos estivessem atadas
por grilhões de aço. O metal em contato direto com a pele anulava a magia dos feéricos.
Estremeci, com medo de que não me reconhecesse.
— Finalmente a pegamos — Dagoberto murmurou, como se tentasse se convencer. — A
filha da Mariellen. Eu vou vencer esta guerra.
Arregalei os olhos e perdi o ar, um bolo de angústia envolvendo minha garganta. No
mesmo instante, Fryda me olhou e me reconheceu. Viu-me por trás de seus olhos vermelhos, de
sua raiva contida.
Minha Fryda era a filha da bruxa que assombrava nossas histórias. Eu me recusara a
perceber. Preferia ficar no escuro e não captar os sinais. Sua fuga era mais urgente do que eu
podia imaginar. Ela também entendia o que era ser uma filha da guerra. Vítima da vingança.
A esperança se dissolveu. Para onde eu olhasse, só via derrota e medo. Fraquejei e caí de
joelhos no chão, as lágrimas que eu achava ter secado voltando a inundar meu rosto. A
impossibilidade de visualizar um futuro era dolorosa. Não havia espaço no mundo para nós.
Fryda tentara fugir das garras da mãe para cair nas de meu pai, seu maior inimigo.
V
Dagoberto transformava a captura de Fryda num maldito espetáculo. Os soldados rugiam em sua
direção, gritando: bruxa, demônio. Eu me encolhi ao lado do rei que batia palmas e regozijava
com seus homens. A filha de Mariellen. Ele tinha ido longe demais. Os meses de trégua se
romperiam numa noite.
Fryda reagia como um animal machucado: ameaçava com seus dentes afiados quem a
encarasse, rosnando e tentando morder quem ousava chegar perto demais. Correntes apertavam
suas mãos e pernas, tratavam-na como um animal. Um monstro.
Ela continuava sendo a minha querida, minha amiga. Eu compreendia de onde nasciam
as lendas sobre os feéricos, entretanto, elas não passavam de meias verdades, porque eu conhecia
o outro lado. Ela era alguém que também sofria, também tinha medo, também sonhava com um
mundo melhor.
Enterrei as unhas nas palmas das mãos e voltei para a realidade, pensando nas
consequências de um ato não calculado. O pátio da fortaleza era um campo aberto, não havia
para onde fugir ou se esconder. Estávamos todos sob a mira das bestas dos sentinelas. Ninguém
acreditaria em mim se eu dissesse a verdade, talvez fosse taxada de louca ou, pior, herege, e tudo
estaria perdido.
— Demônio desgraçado — Dagoberto cuspiu, o rosto cheio de repulsa. — Que aquela
bruxa maldita venha até mim. — Ele desembainhou a espada, a lâmina prateada rugindo na
multidão. Encolhi-me com a quantidade de ódio que parecia crescer e tomar forma. — Vou matá-
la! Venha, Mariellen!
Eram todos covardes. Engoli minha raiva e vesti uma máscara de medo, puxando o
roupão de Dagoberto. Não era o melhor dos planos, mas jogaria com o que tinha em mãos.
— Para onde estão levando esse monstro, papai? — Odiei-me pelo uso da palavra,
imitando o escárnio e nojo dos soldados. Precisava convencê-lo.
— Para as masmorras, minha bela e amada filha. — Ele nem ao menos me olhava,
enfeitiçado pelo vislumbre da vitória.
Engoli em seco e endireitei o corpo quando, enfim, Fryda foi deixada à nossa frente.
Com lágrimas nos olhos, tornei a encará-la. Uma máscara de raiva cobrira seu rosto e, se eu não
soubesse a verdade, teria acreditado nas histórias ao ver, de perto, seus grandes olhos vermelhos.
Eu a conhecia. Não via a extensão de Mariellen, mas, sim, uma menina forte que
também desejava romper o ciclo. Eu a libertaria e, se precisasse, morreria tentando. Nós éramos
uma luz de esperança e eu me recusava a vê-la se apagar.
Ela cravou o rosto em mim e, mesmo sem saber se entenderia, balbuciei, sem emitir
som:
— Eu vou te tirar daqui.
Puxei a capa de Dagoberto, chamando sua atenção.
— Pai, quero te acompanhar nas masmorras. — Ele levantou a mão direita e fez menção
de negar, mas o cortei. — Eu preciso ser corajosa, sou uma Rivière e quero me certificar de que
ela está bem presa e de que posso resistir ao feitiço.
— Meu amor — ele sussurrou, me abraçando de novo. Não retribuí o gesto. — Pedi
tanto aos deuses que te mostrassem que a vitória é a única solução. Orgulha-me tanto saber que
finalmente os aceita como ameaça e não se ilude com a ideia ridícula de paz.
Não me senti mal em nenhum segundo pela mentira. De punhos cerrados, assenti,
seguindo a guarnição em direção às masmorras. Queria averiguar em qual cela iriam prendê-la e
a disposição dos guardas que a vigiariam. Eu nunca tinha matado nada além de alguns insetos,
mas me pareceu plausível assassinar uma horda inteira para que Fryda fugisse.
Dagoberto marchou para a gaiola, parando a centímetros da minha amiga. Ela agarrou as
grades e cuspiu em sua direção. Meu pai se manteve inerte, o que excitou os ânimos dos
soldados.
— Criatura miserável. É ainda mais horrível de perto! — O maldito gargalhou e as
sentinelas o acompanharam. Apenas eu não compartilhava aquele delírio. Que coragem era essa
em que dezenas de homens riam de uma mulher enjaulada?
A guarnição seguiu em direção às masmorras. Para eles, um espetáculo; para mim, uma
marcha fúnebre. Nuvens escuras escondiam o céu, como se as luas e estrelas não quisessem ser
testemunhas daquela atrocidade.
Dois guardas torceram a alavanca e ergueram o alçapão de ferro. Aberto, um cheiro
fétido de sangue emanou do interior. Minhas pernas tremeram ao imaginar que, ali tão perto,
existia um tipo de inferno. Franzi o nariz, observando Fryda de esguelha. Ela parara de resistir,
amuada no canto da gaiola. Meu coração pesou. Entretanto, precisava ser paciente e forte por nós
duas.
— Carreguem o demônio para baixo! — O rei ordenou, apontando a espada para a
entrada escura do alçapão.
Fryda foi obrigada a se mexer quando os soldados a espetaram com a lança. Ela rosnou
em contrapartida. As armas continuaram apontadas em sua direção enquanto um dos
comandantes a guiava pelas correntes.
Meu pai me empurrou para trás quando eles passaram ao nosso lado e ela não expressou
reação diante da minha presença. Confiei em sua atuação — torcendo para que fosse uma — e
segui atrás da guarnição, descendo o lance de escadas em direção às prisões.
Os degraus rangiam com a força dos passos odiosos e o odor de morte se intensificava.
Apesar das tochas, o lugar ainda era dominado pela escuridão e eu não conseguia enxergar mais
de dois palmos à minha volta. O clima estava abafado, quente como o inferno, mas lá embaixo o
ar frio congelava meus ossos.
O silêncio foi abalado pelo som de grades se abrindo, seguido por um chute e um
choramingo suave e angustiado. Queria gritar, roubar uma espada de algum soldado e enfiá-la no
coração daqueles desgraçados.
Respirei fundo para conter a raiva, ainda que meu ímpeto implorasse para explodir. Os
archotes foram postos em suportes na parede e pude observar o calabouço. Fryda acuava-se no
canto da prisão. Preferia escutá-la rosnando, a quietude me fazia perguntar se ela se renderia
àquela loucura.
Eu não. Nunca.
— Quero dezoito soldados à postos, nove para o turno do dia e outros para a noite. —
Quem falou foi Flaubert, o general do exército. Ele mencionou os nomes dos homens escolhidos
e me arrepiei ao ouvir alguns deles. Eram todos guerreiros renomados, heróis de guerra que
ostentavam mortes de feéricos nas mãos. — Ninguém entra aqui sem a minha permissão.
Dagoberto apertou os dedos no meu ombro direito, suspirando.
— Homens, os deuses nos ouviram e a vitória está a um passo à nossa frente. Amanhã
organizarei um banquete em comemoração ao destino que se ergue nas mãos de Hymelia!
Eu era uma intrusa naquele calabouço. Abracei meu corpo, sentia frio nos ossos ainda
que os soldados queimassem em sua pestilenta glória. Cerrei os olhos, desejando que o delírio
não passasse de um pesadelo. Assim que os abri constatei que nem meus piores sonhos
expressariam o terror que eu sentia.
Não só por Fryda, mas pelo que sua captura significava. Fomos longe demais e era
injusto e cruel que o rei comemorasse a esperança de uma vitória enquanto a cidade estava
abarrotada de pessoas famintas. Enquanto Myni estava desaparecida. Enquanto um sonho morria.
Saímos do calabouço e meu coração continuava ali, perdido. Com todo o ímpeto de
minha vida desejei olhar para trás, dizer que eu a salvaria. Mas tive que fingir indiferença.
Meu plano só funcionaria se minha postura fosse impecável. Subi as escadas, atravessei
o alçapão e fui inundada pelas lascas de luz douradas que pintavam o céu. O dia nascia, mas para
mim o terror da noite se perpetuaria enquanto Fryda estivesse presa.
Dagoberto ordenou que fôssemos descansar e sua voz demonstrava a altivez de anos
atrás, como se a glória estivesse voltando para seu lado.
— Amanhã, minha filha — disse, beijando minha testa.
Não esperei o desenrolar do crepúsculo. Corri para dentro do castelo, desejando distância
daquela realidade, mas enquanto Fryda fosse refém de uma guerra sem sentido, eu jamais estaria
livre.
Subi as escadas com o peito descompassado e a respiração irregular. Escutei o castelo
comemorar a captura de Fryda. Ao alcançar meu quarto, bati a porta e me joguei na cama,
cobrindo os ouvidos para escapar daquela música terrível. Eu estava sozinha contra um reino
inteiro, lutando contra o rancor e o sentimento de vingança que nos assolava há séculos.
Adormeci agarrando-me ao pensamento de que valeria a pena lutar se isso significasse
liberdade para Fryda. Agarrando ao pensamento de que nossa pequena centelha de esperança
seria poderosa o suficiente contra a escuridão.
Na manhã seguinte, fui requisitada para um banquete. Deixei as aias me vestirem como
queriam, arrumando meus cabelos num coque trabalhado e pintando minhas bochechas com um
rosa suave. Sentia-me patética, uma boneca feita para agradar olhares. Estava exausta e
angustiada demais para retrucar.
Mal tocara meus talheres, o prato à minha frente esfriava. Eu era um ponto apagado no
meio daquele incêndio de vozes estridentes e promessas de guerra.
— Deixe que a bruxa venha, nos preparamos para isso há anos! — rugiu o general
Flaubert, brindando com seus homens.
Lordes e suas esposas, habitantes do castelo, acompanhavam a alta patente do exército
divertindo-se e delirando com promessas vazias. E, no centro deles, Dagoberto, o rei que de uma
noite para outra renascera como um novo homem.
O banquete antecederia o velório de Sir Otto. O luto, contudo, fora abafado pela força da
vingança. Ninguém falava do cavaleiro morto, só da criatura capturada. Faziam perguntas,
pediam detalhes e me restava mentir e manter minha farsa.
— Não me lembro — dizia, mecânica. — Não sei.
No decorrer daquela tortura, minha angústia vinha se transformando em algo mais
pungente e ácido. As mentiras, a lembrança de Fryda acuada numa jaula, a fruta podre nas mãos
de uma criança, os refugiados na cidade sem terem para onde ir.
Errado.
Estava tudo errado e ninguém parecia perceber, ou melhor, se importar com isso. Como
a simples possibilidade de uma vitória sem sentido era mais urgente que salvar e proteger o
povo? Fui tomada pela raiva. Raiva pela injustiça, pelos futuros não permitidos. Ninguém falava
em paz, só em vingança. Só em manter girando a roda adoecida que vinha nos matando. Que nos
obrigava a sujar nossas mãos com sangue.
Meu sangue ferveu. Destrocei o frango marinado em meu prato com o garfo, minhas
pernas se remexiam sem parar debaixo da saia do vestido. Algo dentro de mim gritava para sair.
Meu estômago embrulhava com a ânsia de ser obrigada a ouvir as mentiras horríveis sobre
Fryda.
Eles não a conheciam. Fryda não era uma assassina, era a prova de que a guerra
infestava até o mais puro dos corações. Até o mais bondoso e caridoso deles. Eu nunca deixaria
que continuassem corrompendo-o.
— Deveríamos queimar a floresta com todos aqueles monstros dentro — disse uma
senhora.
Meus nervos estavam inflamados. Sentia-me prestes a entrar em combustão.
— Expor a cabeça da criatura fará com que os demônios saiam de seus covis — pontuou
Flaubert.
Eu e Fryda éramos diferentes. Ela era como a água, calma e resiliente. Já, eu?
Eu era fogo.
Dagoberto lançou seu melhor sorriso e disse para a mesa:
— Finalmente vislumbro a vitória de Hymelia — colérico, continuou. — A minha
vitória.
E, por isso, não me calaria.
Empurrei minha cadeira para trás e me ergui, batendo as palmas das mãos na mesa.
Ignorei o medo e inflei o peito de coragem.
— Vitória? Algum de vocês já desceu para a cidade nos últimos meses? As pessoas
estão com fome. E o que vocês fazem? — Apontei para os inúmeros pratos postos na mesa. —
Ignoram isso e se banqueteiam!
Meu pai encarou-me com o rosto contorcido em fúria e confusão. Ele ameaçou falar e eu
fui mais rápida, estrondando minha voz pelo salão de jantar:
— Não é a guerra que está destruindo Hymelia. É o ódio! Vocês estão cegos pelo rancor.
O salão se calou. Escutei apenas o som da minha respiração enquanto meu peito subia e
descia sem cessar. Fechei os punhos para que ninguém visse meus dedos trêmulos e pensei em
Fryda. A memória de nós era o elo que me impedia de desabar diante dos olhares inquisidores.
Flaubert foi o primeiro a falar.
— Crianças são tão idealistas. A vida é mais dura que isso, Alteza.
O murmurinho seguiu a represália do general. Senti-me a atração principal de um circo,
um bobo da corte. Não cedi. Não permitiria que o ódio continuasse afogando as histórias.
Ergui o corpo, levantei um ombro e, com queixo erguido, disse:
— Antes idealista do que covarde.
O general arregalou os olhos e meus pelos se arrepiaram quando meu pai sibilou:
— Basta. — Virei-me para encarar o rei. No lugar da ira, encontrei uma angústia
palpável. Eu preferia a raiva. — Saiam todos, deixem-me sozinho com Aurora.
Sem delongas, os convidados deixaram a mesa enquanto eu procurava um foco com meu
olhar apreensivo. Os criados também não demoraram em nos deixar. Meu pai não se mexeu e
senti meu peito prestes a explodir.
Já havia fugido por tempo demais. Meus sonhos não podiam existir só na minha
imaginação. Eles ansiavam por mais.
Num instante, o salão de jantar abarrotado de pessoas estava vazio. Restava-me encarar
meu pai, com a certeza de que tinha feito a coisa certa. Tinha passado tanto tempo procurando
brechas para falar sobre paz, mas elas de nada adiantaram. Teria que gritar ao mundo o que eu
pensava e sentia. Alguém ouviria, assim como Fryda ouvira uma vez.
Dagoberto ergueu-se, dessa vez mais cansado e velho do que nunca, como se um mero
instante desmoronasse a figura solene de antes. Ele caminhou em direção ao grande vitral que
ornamentava a parede do salão, uma imagem de terror que mostrava humanos assassinando
feéricos. De costas para mim, não conseguia ver sua feição, mas sentia a tensão crescer entre nós.
Não me mexi quando ele revelou:
— Eu menti sobre sua mãe. Ela não morreu por causa da doença.
A traição doeu como uma faca atravessando minha pele. Abri a boca. A fechei logo a
seguir. Meu corpo virou uma estátua, não consegui me mexer. Queria esbravejar, sentir raiva,
odiar meu pai por isso. Ele sabia o quanto eu também tinha sofrido pela morte dela, ainda que
fosse uma criancinha na época. Achei que, ao menos sobre isso, éramos sinceros um com o
outro. Por que ele me escondera a verdade?
Forcei as minhas pernas e cambaleei na direção de meu pai. Agarrei seu braço e puxei-o
em minha direção. Seu rosto virou-se para o meu, mas os olhos estavam em tempos e lugares
distantes. Sua face parecia a de um cadáver, o eco do homem que já tinha sido.
— O que aconteceu, Dagoberto? — Sem perceber, comecei a gritar enquanto lágrimas
queimavam meu rosto. Um pai de verdade não mentiria para sua filha. Não trairia sabendo o
quanto isso a machucava. — Como minha mãe morreu?!
— Eu a amava tanto. — Ele acompanhou meu pranto e desabou em meu ombro,
chorando como se fosse uma criança precisando de colo. — Tanto.
Empurrei seu corpo para trás. Não precisava de abraços e sim de respostas, de algo que
me impedisse de desabar.
— Como? — implorei, embora temesse a resposta.
Ainda sem me fitar de verdade, ele balbuciou a história nunca contada para mim.
— Dominique era como você, filha… —Arrepiei-me ao escutar o nome de minha mãe;
ele nunca o dizia em voz alta, a lembrança era dolorosa demais. — Era sonhadora. Falava sobre
paz e perdão, nunca sobre guerra e ódio. Mais do que a mim, amava as pessoas, amava seu povo.
Eu não devia tê-la deixado ir.
O rei afundou o rosto entre as mãos, permitindo toda a sua tristeza escorrer. Eu conhecia
as histórias sobre minha mãe ser amada por Hymelia, não sobre o desejo de paz. Tinha mais dela
em mim do que imaginava. Até então, eu achava ser a única que ousara sonhar com isso.
O rei secou as lágrimas com a manga do gibão e continuou:
— Ela me convenceu de que precisava atravessar a fronteira e negociar com os monstros
da floresta. Eu neguei, disse que era impossível, mas essa palavra era desconhecida no
vocabulário de sua mãe. E, então, numa noite comum, nós três nos deitamos para dormir
juntos… e eu nunca mais a vi. — Ele apoiou o rosto na palma da mão e não conteve o soluço que
escapou da garganta. — Fiquei louco. Ninguém sabia nada sobre Dominique. Os dias de busca
incessante foram infrutíferos. Até que um batedor achou seu corpo na floresta.
— Não — sussurrei. Meu pranto já não hesitava mais em sair.
— Não foi um animal — ele continuou, o rosto denotando fúria —, porque deixaram
uma mensagem no corpo dela, Aurora.
— Não — eu pedi, uma angústia lancinante se revirando em meu estômago. Abracei
meu corpo, fraca. A tristeza massacrou a raiva; doía demais.
— A paz é uma mentira — Dagoberto vociferou. — Os monstros usaram sua mãe como
uma mensagem. — Ele agarrou meus braços, inconsolável, e me encarou, cheio de tristeza e dor.
— Não existe paz. Só guerra. Eles tiraram ela de nós… de mim. Eles levaram Otto. Quem será o
próximo, Aurora? Você, minha filha? Eu não aguentaria. Não tenho mais forças.
Cerrei os punhos e, sem pensar, lancei uma sequência de socos seguidos contra o vitral.
O vidro ruiu com o impacto, até que se estilhaçou e cacos de vidros voaram sobre nós. Os nós
dos meus dedos ficaram em carne viva. Aquela dor era mais suportável que a verdade. Sentia-me
afundada num oceano de incertezas, vingança e rancor. O mesmo que vinha afogando meu pai há
tantos anos.
Minha mãe fora assassinada por sonhar.
Desabei no chão, cacos de vidro rasgaram a pele dos meus joelhos, pintando meu vestido
de vermelho. Levei minhas mãos ao rosto e dezessete anos de saudades jorraram através de
lágrimas e soluços.
Ainda assim, o som foi abafado pelo pranto inconsolável de meu pai.
VI
Quando eu fechava os olhos, escutava os gritos de mamãe, seus pés tropeçando nas raízes das
árvores, a desesperança no último suspiro. A verdade havia me dilacerado. Mas ela também me
transformara.
Fazia-me compreender o porquê de meu pai odiar tanto o povo da floresta. O porquê da
guerra não cessar e o banho de sangue nunca ser suficiente. Meu pai foi envenenado pela tristeza,
mas eu não era como ele.
Queria ser como minha mãe. Perseverante. Ela tinha lutado sozinha, mas comigo era
diferente. Não importa o que diziam sobre os Bosques, eu sei que, há sete anos, era mamãe quem
tinha me chamado e me levado até a clareira, até Fryda. Eu carregaria seu legado não só por ela,
mas por toda Hymelia.
Eu não estava sozinha. Eu tinha Fryda. O futuro precisava de alguém insistente.
Recusava-me a acreditar que éramos as únicas. Deveria existir seres cansados da guerra, mas
com medo de ousar sonhar diferente.
Era noite, e percorri a cidade com os olhos, pensando no meu povo, em Myni, nas
pessoas inocentes que colhiam os frutos podres desse ódio. Agarrei-me à possibilidade, porque
era o que me restava. Se estivesse errada, cavaria minha própria cova.
Se não… ergueria o primeiro tijolo para um novo futuro.
Despedi-me da vista que me acompanhava há tanto tempo, ergui os babados da barra do
vestido e desatei a correr em direção ao estábulo.
Era hora de botar meu plano em prática.
No cair da madrugada, saí de fininho do meu quarto, pisando na ponta dos pés, descalça
para evitar barulho. Tinha pego no estábulo calças e uma camisa de Matt, nada de babados,
rendas e vestidos. Sentia-me culpada por deixar meu amigo no escuro em relação ao meu plano
caótico, mas ele nunca entenderia. Tinha o evitado para não precisar ouvir suas opiniões
abomináveis sobre a captura de Fryda.
A roupa cheirava a cavalos e eu não me importava, podia correr livre pelos corredores
sem o excesso de tecido. Não era a primeira vez que saía escondida e eu costumava suceder bem
em minhas fugas, então não foi um desafio sair do castelo. Além disso, a atenção dos guardas e
soldados concentrava-se no calabouço, não na quietude dos salões reais.
Felizmente, ninguém escutou o retumbar em meu peito ou a respiração ofegante.
Estavam ocupados vivendo o luto ou cochichando sobre o fiasco do banquete.
A tensão crescia cada vez que eu entrava num cômodo diferente e escutava os cliques da
fechadura. Eu contava com um par de grampos para abri-las. No fim, as antigas proibições de
meu pai me serviram e os conhecimentos de fuga se mostraram eficientes.
Alcancei o salão de jantar, envolto por uma rude escuridão. Os candelabros estavam tão
frios quanto o vento, minha respiração ressonava no aposento. Avancei em direção a uma das
janelas, jogando as cortinas pesadas para os lados. Forcei os braços magros, puxando-a para que
se abrisse. Um passo depois do outro e eu me encontrava no campo a céu aberto.
Não visualizei os soldados em seus postos habituais. Com Fryda presa, eles foram
designados para a área mais perto do calabouço. Afundei os pés na grama e, usando as folhas das
árvores para me esconder, corri até o estábulo, esgueirando-me entre as sombras.
O momento mais arriscado de minha vida se postava diante de meus olhos. Coberta
pelas sombras, alcancei o estábulo. Ele ficava vazio à noite para que os cavalos pudessem
descansar.
Entrei. Os animais dormiam, indiferentes ao que acontecia no restante da fortaleza. Em
silêncio, abri as fechaduras das baias e cochichei para que acordassem. Logo, a mansidão foi
substituída pelos relinchos mal-humorados dos corcéis, acordados do sono profundo.
Oliver foi o último.
— Oi, meu amigo — disse, acariciando seu pescoço. Apoiei minha testa na dele, e nossa
proximidade confortou meus ânimos. Seríamos nós dois contra o mundo. — Você confia em
mim?
Ele bufou e imaginei um sim.
—Escute-me com atenção. Eu preciso que…
Fiz um resumo de meu plano para ele e dei um beijo em sua testa. Terminei de selá-lo e
juntei um punhado de feno nas mãos, espalhando-o pelo perímetro do estábulo. Ao terminar,
meus lábios tremiam com a tensão e não ousei refletir sobre as consequências. Peguei o único
archote aceso, enrolei a gola da camisa na parte inferior do rosto e fiz o impensável. Para
construir um futuro, eu precisava ter coragem no presente.
Deixei que as chamas lambessem o feno.
Primeiro, ele veio suave, tímido. No decorrer de um suspiro, o odor se intensificou a
ponto de eu precisar franzir o nariz. Saltei em direção à saída e a terra tremeu sob meus pés
quando uma horda de cavalos me seguiu, fugindo do fogo.
Os relinchos acordaram a fortaleza. Joguei-me para o lado e rolei no chão para evitar ser
pisoteada. Em seguida me ergui, arfante e tremendo, sem parar. Subi no carvalho mais antigo do
castelo que ficava no centro do pátio e inspirei todo o ar que conseguia, para logo em seguida
berrar:
— Socorro! Socorro! — Os monstros estão nos atacando!
E o pandemônio começou.
Precisei cobrir os ouvidos para que os bramidos e urros não me ensurdecessem. As
chamas se alastraram no estábulo, formando um redemoinho de fogo e cinzas. O delírio causado
pelo medo queimava tanto quanto o antigo lar dos cavalos. Os soldados não se importavam com
a verdade, queriam se agarrar aos temores, ter um motivo para erguer suas espadas.
Berrantes foram tocados, os adarves transformaram-se num caos. A fumaça subia como
um redemoinho, alastrando-se pela fortaleza. Aproveitei o fator surpresa para me lançar em
direção ao alçapão.
Se eu hesitasse, tudo estaria perdido. Fryda seria morta, e eu ficaria confinada para
sempre.
— Vocês não ouviram? Estamos sendo atacados! — gritei para os guardas que vigiavam
o alçapão.
Eles não eram estúpidos, mas um incêndio repentino e uma horda de cavalos
desesperados balançavam a coragem de qualquer um. Minha única vantagem era o fator
surpresa, e meu fingimento precisava ser perfeito.
— Princesa Aurora, Vossa Alteza não deveria estar aqui…
— Eles vão nos matar. Vão matar a todos nós — berrei e comecei a chorar como uma
criança. — Hymelia vai ser destruída.
Os soldados se olharam e assentiram, correndo em direção às chamas. É claro que não
havia invasão nenhuma, mas diga a um homem o que ele quer ouvir, e a mentira se tornará doce.
Ansiavam pela glória de matar mais feéricos e temiam que seus lares fossem destruídos.
Eu tinha que ser rápida. Logo perceberiam a mentira, e se eu perdesse a corrida contra o
tempo, minha derrota seria iminente.
Cerrei os punhos e sufoquei um grito ao pular no alçapão. Quando meus pés tocaram o
chão, senti os joelhos gritarem. Uma dor lancinante subiu pelas minhas pernas, mascaradas pela
tensão e medo que corriam no meu sangue. Empurrei tensão, medo e dor para longe. O plano
estava funcionando.
Maquinei uma infinidade de desculpas para enganar os guardas que vigiavam Fryda
dentro das prisões, mas não escutei passos ou a presença de alguém. O subterrâneo era um
mundo à parte da superfície, onde o caos reinava. Escuro e silencioso, agradeci pelos corredores
serem retos e me guiei através das pedras, o estrondo do meu coração me lembrando da minha
missão.
Tropecei numa elevação, equilibrando-me antes de cair no chão. Havia um archote aceso
preso à parede, peguei-o e iluminei o chão, notando o corpo de um guarda. O corpo dele mexia
levemente, então não estava morto. O que tinha acontecido com eles?
Continuei com a tocha na mesma direção, percebendo que os outros também estavam
desabados, mas pelos semblantes calmos, não machucados. Eles dormiam.
Estapeei uma nova parede. Alcançara o fim do calabouço. Reconheci a cela de Fryda
pelo cheiro forte de urina e medo; além disso, era a única confinada. Não deixariam nem os
piores criminosos ao lado de uma feérica.
Procurei nos bolsos dos soldados adormecidos as chaves para libertar Fryda dos grilhões
e comemorei uma breve vitória quando as encontrei. As da cela estavam presas num aro na
parede, mas o archote mal iluminava a escuridão, então tirei os grampos dos cabelos e,
chacoalhando os dedos, introduzi-os na fechadura. Minha gazua improvisada mostrou-se de novo
um sucesso, e quase chorei quando a porta rangeu. Empurrei o metal enferrujado com o flanco, o
barulho do metal rangendo como um trovão.
Precisava ser mais rápida. O tempo se esgotava como numa ampulheta.
— Fryda — sussurrei, mal reconhecendo minha voz assustada. — Sou eu, Aurora.
Escutei um rosnado, garras rasgando a parede de pedra.
A imagem de Sir Otto morrendo voltou como um clarão, o medo um sentimento vivo.
Meu corpo fez menção de recuar, meus músculos tremiam. Mas, eu seria pior do que meu pai, se
fugisse?
Seria diferente do restante de Hymelia se a abandonasse?
— Eu vim te tirar daqui, Fryda. Vamos fugir. Juntas. — Atropelei as palavras, incerta do
que dizer. — Quero viver com você. Mais que isso, quero mostrar para meu pai e para sua mãe
que há esperança, que existem forças maiores que o ódio. Eu quero acabar com a guerra e te
quero ao meu lado.
Não me machuque. Sou eu.
— Não consigo sem você.
A luz do archote iluminou uma cascata de cachos dourados se movendo numa
velocidade sobre-humana. Antes que eu pudesse me mexer, Fryda avançou contra mim.
Envolvendo-me num abraço.
Suas lágrimas molhavam minha nuca, os braços apertados contra meu pescoço. Meus
olhos queimaram, mas não podia hesitar. Deveria ser forte por nós. Desenrolei uma túnica
amarrada em minha cintura e cobri o corpo fraco de Fryda. Abracei-a pelo torso, deixando que
me usasse como apoio. Ela era leve como uma criança, delicada como vidro.
Uma vergonha dilacerante embrulhou meu estômago. Como pensara, mesmo que por um
segundo, que ela me machucaria?
— Desculpe — sussurrei, engasgada. — Eu…
— As borboletas me disseram que você viria… — Fryda falou, fraca, a voz esganiçada.
— Elas me ajudaram a fazê-los dormir.
Chamar a terra, derrubar uma pequena guarnição. Eu não tinha dimensão do que Fryda
era capaz.
Enfiei a chave na fechadura do grilhão, e o aço caiu pesado, o som reverberando na
prisão. Ela afagou os pulsos, e pude notar que eles estavam em carne viva. Mordi o lábio e
perguntei:
— Você pode fazer isso, Fryda? Desde quando? — perguntei enquanto a puxava em
direção à saída. — Por que nunca me disse?
— Desculpa — ela choramingou, abraçando meu braço como uma criança indefesa. —
Eu não gosto desse poder. Eu não quero machucar ninguém com ele. Não quero ser como minha
mãe. As borboletas me ajudam a controlá-lo, mas tenho medo do que posso fazer. Do que eu já
fiz.
— Como você conseguiu fazer os guardas dormirem? Achei que o aço anulasse a magia.
— Anula. Eu não sei. — Fryda levou as mãos à cabeça, como se ela doesse. — Eu sou
diferente, Aurora.
Como filha de Mariellen, ela deveria ser mais poderosa que o normal. Mas Fryda e a
mãe não eram iguais. Eu acreditava em sua sinceridade. Sentia sua culpa, seu medo. Existia um
caminho de raiva traçado para nós, e mesmo assim lutávamos para caminhar num diferente.
Apertei a mão de Fryda, entrelaçando nossos dedos. Mirei meu olhar à frente, decidida.
— Você foi feita para o bem, Fryda. E nunca mais vai precisar machucar ninguém. —
Alguém no mundo precisava dar o primeiro passo. — Eu juro pelo nome dos Rivière.
— Eu não queria ter machucado ele — ela disse, baixinho. — Eu me tornei o que
lutamos contra.
Parei de supetão. O tempo precisaria me dar alguns segundos. Segurei o rosto de Fryda
entre as minhas mãos.
— Escute, Fryda. Você nunca será como eles. Eu vou te tirar daqui, e juntas nós vamos
mudar a história.
Ela assentiu, fraca demais para me retrucar. Eu faria com que ela acreditasse naquilo
tanto quanto eu acreditava. Alcançamos as escadas e, antes de subir, assobiei, pedindo a qualquer
deus que ouvisse para que Oliver escutasse o chamado. Subi primeiro, uma dor despontando nos
joelhos a cada degrau.
Cheguei à superfície e o fogo se alastrara, irradiando luz e cinzas pelo castelo. As
lamentações, contudo, ficariam para o dia seguinte. Agachei-me na terra e ajudei Fryda a subir,
puxando suas mãos para cima. Ajoelhada, engoli fôlego e assobiei de novo. Os soldados
voltariam a se reunir logo, cada segundo era precioso para que meu plano seguisse.
Escutei um relinchar diferenciado — que eu jurava significar vou te salvar, Aurora! — e
nunca amei tanto aquele cavalo quanto naquele momento.
Saindo de dentro da fumaça, meu corcel negro saltou em minha direção, carregando
consigo nossa promessa de liberdade. Mal tive tempo de comemorar a pequena vitória quando,
atrás de Oliver, percebi outra figura se aproximando de nós.
— Matt? — disse, atônita. Não era para aquilo acontecer. Meu amigo surgira como uma
peça que não pertencia ao quebra-cabeça que eu montava. — O que você está fazendo aqui?
Ao passo que ele se aproximava, pude vê-lo melhor. Ele nos encarava como se fôssemos
demônios, a expressão uma mescla de ira e medo. Eu teria congelado naquele olhar se não
tivesse sido pega de surpresa por algo ainda pior.
Matt apontava uma besta para Fryda.
— Eu sabia que tinha algo errado, Aurora — ele começou, a voz mais fria que o inverno.
— Ouvi boatos de que você tinha sido enfeitiçada, mas não acreditei. Você é mais teimosa que
um cavalo para cair nessas. Depois fiquei me perguntando sobre suas idas para a floresta, mas
não pude aceitar. E então, o banquete. As pessoas falam, Aurora.
— Matt. Deixe eu explicar, eu…
— Calada! — Erguendo a besta, gritou contra nós. — O que você pensa que está
fazendo, Aurora? Esse monstro matou Sir Otto! Eles… eles…
Matt mordeu os lábios, a dor do luto atravessando seu corpo como uma cicatriz gigante
que ainda ardia:
— Eles levaram meu irmãozinho. Louis era só uma criança, e nem por isso o pouparam.
Fryda tremia ao meu lado, segurando meu braço. Não era só de medo. Seu coração
também sangrava por todas as perdas, por todos os sonhos findados.
Lentamente, desvencilhei-me dela e caminhei devagar em direção a Matt, com as mãos
erguidas. Assustado como estava, um mínimo movimento em falso e alguém receberia um tiro
no estômago. Estava tão perto de salvar Fryda, não deixaria que sua cova fosse meu castelo.
— E então, quando fui botar os cavalos para dormir, percebi que a sela de Oliver estava
no chão. Você é sempre tão cuidadosa com isso, Aurora. Eu sabia que aprontaria alguma. Tive
minha resposta quando o estábulo pegou fogo.
Mordi o lábio, odiando-me pelo descuido. Não era possível que um único detalhe
derrubaria meu plano.
— E agora, Matt? Você vai matar uma de nós? O que acha que vai ganhar com isso?
— Nós? — cuspiu. — Não existe isso de nós. Eu vou levar esse demônio de volta para o
inferno de onde ele nunca deveria ter saído!
A ponta da flecha brilhava como um trovão, sedenta para encontrar Fryda. Eu levara os
soldados até nossa clareira, Fryda sujara suas mãos por minha causa. Nunca permitiria que ela
sofresse de novo.
Saltei para a frente de Matt, posicionando-me em frente à besta. A flecha estava
posicionada, bastava que ele tomasse sua última decisão. Agarrei o cabo da arma e gritei:
— Vá! Atire! Livre-se de mim, então. — Mal tinha fôlego, não respirava, estava
impulsionada por um segundo de coragem. — E amanhã acorde com a certeza de que Louis terá
sido só mais um dos milhares desaparecidos, e que isso nunca vai acabar. Porque você matou a
única pessoa que quer a paz. Porque vocês, você, tem medo disso! Medo de viver uma história
que não seja escrita pelo ódio.
— Aurora! — Fryda me chamou. — Pare com isso, eu é que tenho que pagar!
Ignorei-a, os olhos cravados em Matt.
— Atire — ordenei. — Atire.
Ele hesitou, seus olhos correndo entre eu e Fryda. O estrondo do meu coração era mais
forte que o incêndio, queimando infinitamente. Por tanto tempo fingi quem eu era, menti sobre o
que acreditava... Puxei a ponta da besta para meu estômago. Não fugiria mais.
— Atire!
A besta caiu, sua flecha encontrando o chão terroso. Meu corpo tinha virado mármore,
toda a tensão suportada caindo sobre mim de uma só vez. Matt escondeu o rosto no braço, e
pelos movimentos dos ombros, percebi que chorava baixinho.
— Vá embora, Aurora. Aqui não é o seu lugar.
Algo em mim tinha se partido. Matt nos deixaria viver, mas criara uma distância infinita
entre nós. Entretanto, não tinha tempo de sofrer por ele. Tomara minha decisão disposta a fazer
sacrifícios.
Segurei a mão de Fryda e corri com ela para Oliver.
— Obrigada, Matt — disse meu primeiro adeus.
Fryda já montara comigo algumas vezes, então não precisei explicar o que deveria fazer.
Entrelacei as minhas mãos para que ela pisasse, impulsionando-a para cima. Eu era acostumada,
mas rangi os dentes quando saltei para o torso de Oliver, sentindo-me mais segura com os dois
ao meu lado. Estávamos prontos.
Acariciei o pescoço de meu cavalo e murmurei:
— Faça o vento comer poeira.
Ele obedeceu.
Meu corcel chispou em direção à saída do castelo, como se tivesse passado uma vida
guardando fôlego para aquele único instante. Fryda abraçou meu corpo por trás enquanto eu nos
guiava, inclinada em direção à liberdade, atravessando a fumaça. Planando pelo fogo.
Os soldados constatariam que não havia inimigos, mas ainda teriam que conter as
chamas. Eu estava um passo à frente.
O portão principal do castelo fora aberto para que as tropas da cidade lutassem dentro da
área da fortaleza, como eu imaginara. Homens armados trajando placas de aço prateadas
entravam com suas lanças empunhadas. Dessa vez não havia como não ser notada, então ordenei
que Oliver corresse mais e passasse por cima dos homens, se precisasse. O corcel era alto e
largo, os guerreiros se desviaram de nosso caminho para que não fossem pisoteados pelos seus
cascos.
Corríamos como se fossemos um corpo só, o vento encarnado. Éramos imparáveis,
eternos, furiosos. Atravessamos a saída do castelo e corremos para a cidade.
Somente Colosso nos separava da liberdade.
No centro da capital, mal se via uma alma a perambular pelas ruas. Continuei na rota
principal em linha reta, ignorando os gritos atrás de mim ao passo que fitava os portões da
muralha, imponentes e abertos. A informação do suposto ataque ainda era um redemoinho de
confusões e em Colosso eu conseguia perceber a dúvida planando nos rostos dos homens.
Com as minhas vestes masculinas e uma mulher agarrada nas costas, contei que não
seria reconhecida. Era só um casal fugindo daquela loucura.
Eu apenas esqueci do pequeno detalhe de que Oliver também era famoso em Hymelia.
— É o cavalo de Aurora! — gritou um dos guardas, na guarita. — Fechem os portões!
Inflei o peito e urrei:
— Voe, Oliver! Voe!
Sua respiração estava ofegante, as narinas abertas e o pelo quente. Meu companheiro
ultrapassava seus limites, mas nós precisávamos atravessar.
Chutei sua barriga, chorando e me desculpando.
— Abram os portões! É uma ordem!
Minhas palavras morriam no meio do caos que era a cidade. A liberdade escapava das
minhas mãos enquanto os portões se fechavam.
Apenas uma fresta continuava aberta, com soldados nos esperando à frente.
— Preciso parar — avisei, desesperada.
— Continue — disse Fryda, com os lábios no meu ouvido, sua primeira palavra desde
que deixamos o castelo. — Você não está sozinha, Aurora. Vá em frente.
Olhei para trás, desolada.
— Se eu continuar, nós vamos morrer.
Preparei-me para puxar o arreio. Não podia arriscar nossas vidas em vão dessa forma.
Não me perdoaria em nenhuma das vidas. Como mudaríamos o mundo se estivéssemos mortas?
— Aurora — Fryda disse, firme. — Confie em mim.
Eu hesitei, mas Oliver confiou. Meu corcel arrancou fôlego do além. A última fresta dos
portões fechara, e nós nos aproximávamos em direção à morte. Soltei o cabresto de Oliver e
abracei seu pescoço.
Viver como covardes ou morrer como mártires? Estávamos tão perto. Colosso seria
nosso cemitério.
Fechei os olhos e respirei pela última vez, quando…
Fryda cantou.
A música fez meus dedos formigarem e acalentou meu peito. De repente, toda a tensão
se esvaiu, e meu corpo tornou-se leve, como se eu fosse feita de névoa, não de carne. O mundo à
minha frente turvou-se. Parecia que eu via as coisas através de uma pedra preciosa, translúcida e
brilhante.
Entretanto, ainda enxergava nitidamente os portões fechados à nossa espera quando o
inacreditável aconteceu.
Em vez de bater, a cabeça de Oliver atravessou os portões. O som do mundo era baixo,
éramos ilusões inalcançáveis. Nós atravessamos a muralha como se fôssemos fantasmas. Não
consegui respirar dentro das paredes de pedra, mas sequer precisava, pois num piscar de olhos,
éramos recebidas pela ameaça da alvorada nascendo por trás da floresta.
Meu corpo voltou a pesar quando alcançamos o outro lado de Colosso. Por um instante,
tudo parou, e virei-me para trás, assombrada:
— É assim que vocês entram na cidade…
— Sim — Fryda confessou e eu vi nascer em seu rosto o primeiro sorriso desde que foi
capturada. — Eu disse para confiar em mim.
Dessa vez não tentei segurar as lágrimas. Elas correram pelo meu rosto, cheias de
esperança.
Essa era a força de acreditar. Era a minha missão. Tornar possível o impossível.
Meu amado corcel voltou a correr, ainda que estivesse nos limites de suas forças.
Precisaríamos parar o quanto antes quando deixássemos a floresta e Colosso para trás.
— Obrigada, Aurora. — Fryda apertou o abraço, e seu toque era um bálsamo curando
minhas feridas. — Você me salvou, mesmo que eu não merecesse.
Com ela ao meu lado, sã e salva, tudo parecia possível.
— Ouça bem, Fryda. Há jóias preciosas nos alforjes de Oliver. Elas poderão custear
nossa sobrevivência enquanto pensamos num plano para acabar com essa guerra.
Soltei a mão direita das rédeas e segurei a de Fryda. Ela a apertou, entrelaçando os dedos
nos meus.
— Só preciso de você ao meu lado — falei.
— Eu sempre estarei com você. Depois do que aconteceu, dei-me conta de que não
adianta fugir do que somos, do nosso destino. Estamos fadadas a perseguir a paz. Por isso os
deuses cruzaram nosso caminho.
Talvez ela estivesse certa. Contra todas as perspectivas, o plano foi um sucesso. Eu ainda
não queria pensar nas consequências da fuga. Por ora, a liberdade e as promessas de um novo
futuro eram suficientes para manter minhas esperanças. Por ora, necessitávamos descansar e
clarear os pensamentos.
Minha efêmera paz foi balançada quando Oliver parou de supetão.
Eu e Fryda quase caímos para frente, assustadas com a parada brusca. Eu exigira demais
do meu cavalo. Entretanto, Oliver não parecia exausto, mas… aterrorizado.
Pisquei os olhos e brumas surgiram à nossa frente, cobrindo o caminho que nos
esperava, como se o incêndio na fortaleza tivesse nos seguido. Uma nuvem de fumaça densa e
gelada nos cercou e, de dentro dela, uma mulher emergiu.
Eu nunca vi nada tão lindo em minha vida.
Seus longos cabelos negros caíam até o chão, arrastando-se com seus passos leves. Não
sabia se ela andava ou dançava. Um aro de pedra preciosas e translúcidas retinia em sua testa,
emoldurando o rosto delicado e as íris prateadas. No corpo, trajava um vestido tecido por folhas
da floresta. A mulher parecia a heroína de uma fábula.
Até que notei sua gargantilha... moldada por dentes de leite. Um terror desolador subiu
pela minha espinha, e a esperança de outrora foi soterrada pelo terror.
— Mãe — Fryda murmurou.
A alvorada murchou. Os deuses viravam o rosto para longe de nós.
Mariellen nos encontrara.
VII
Quando me perdi pela primeira vez na floresta, achei ter conhecido o medo. Até então, nunca
me senti daquela forma: tão real, com as consequências em meu encalço. Achei que meu pai
poderia me proteger para sempre, mas descobri que não; que havia momentos que eu precisaria
enfrentar sozinha. Como quando Fryda foi capturada. Achei que meu mundo fosse ruir, que a
coragem tinha me abandonado de uma vez por todas.
Quando olhei para a expressão doentia de Matt, percebendo a dúvida entre me matar ou
não, prestes a abandonar um amigo para sempre. Ainda que eu tenha vivido uma sorte de
experiências mortais, algo ainda queimava em mim. A sensação de que eu era invencível, de que
viveria para sempre.
Encarando Mariellen, eu descobri o que era medo de verdade.
Fryda afundou o rosto em minhas costas e Oliver trotou para trás. Fui incapaz de me
mover, enfeitiçada pela visão da maior inimiga de meu povo. Ela caminhou como se flutuasse
para nós, as brumas acompanhando cada singelo movimento.
O tilintar dos braceletes dourados soavam como um terremoto em meus ouvidos, sua
mera aproximação me envolvia em loucura. Minhas mãos tremiam na sela e um repentino frio
gelado se debruçou sobre nós. Não sabia se estava envolvida por alguma magia antiga ou o terror
era suficiente para congelar meu sangue e ossos.
Ouvi vozes, gritos, súplicas. Escutei a floresta e os homens chorarem. Pensei em
Mariellen rasgando a garganta de minha mãe.
— Crianças tolas — ela murmurou numa voz antiga e jovem, bela e terrível. — Eu
esperava um ato tão imbecil vindo de uma humana patética. Mas tu me surpreendeste, filha.
As lágrimas de Fryda escorriam em minhas costas. Eu tentei ser forte por nós, contudo, a
sensação de derrota me corroía. Minha língua não se mexia, as palavras morreram em algum
lugar do meu estômago. Sentia que a muralha da capital se escorava em minhas costas, como se
eu tivesse guiado Hymelia para o abismo.
De perto, Mariellen exalava ainda mais poder. O focinho de Oliver batia em seu peito,
suas proporções eram monstruosas: alta demais, magra demais, cabelos longos demais. Ela
ergueu o braço extenso e fino, alisando minha bochecha com os dedos esqueléticos.
Lágrimas desesperadas saíram de meus olhos. Seu toque era delicado, mas deixava um
rastro de sangue por onde passava.
— Filha, se eu destruir essa criatura imunda que tu tanto amas, aprenderás finalmente teu
lugar?
— Tire as mãos dela! — Fryda gritou, empurrando a mão de Mariellen. Eu não
conseguia ver seu rosto, apenas escutava os cacos de sua voz. — Faça o que quiser comigo, mas
deixe a Aurora em paz! Ela me salvou!
— Aurora… — Mariellen repetiu, aproximando seu rosto do meu. Contive um grunhido
e tentei me jogar para trás, mas a mulher prendeu meu pescoço com os dedos, encarando-me com
os olhos vermelhos. — Cortar-lhe-ei em tantos pedaços diferentes que teu pai passará o resto da
miserável vida recebendo cada parte tua.
Incapaz de reagir, congelei sob o toque. Eu morreria e levaria meu pai junto. Perder
minha mãe o machucara demais e ele não aguentaria me perder também.
O gosto de sangue salpicou meus lábios, acordando-me do devaneio.
Percebi o rosto de Mariellen se desfigurando. Antes, uma calmaria fingida, agora, ódio
exalava de seus poros. O sangue escorria de seu antebraço, pelas duas marcas frescas de dentes.
Com o coração na boca e sem ousar respirar, virei-me para trás, observando a forma
animalesca de Fryda de olhos vermelhos e caninos afiados. Ela rosnava enquanto filetes de
sangue escorriam dos lábios.
Encontrava-me no meio do fogo cruzado, afundando mais ainda no medo. Por Fryda, por
nós. Agarrei a crina de Oliver à procura de calor, mas o pavor do corcel era tão real quanto o
meu.
— Tu não tens jeito — Mariellen reprimiu, acariciando a pele machucada, a indiferença
voltando a estampar seu semblante. — Levem-nas para o coração da floresta.
O instinto de sobrevivência guiou minha cabeça para os lados, à procura dos captores.
Da névoa, os habitantes da floresta surgiram, homens e mulheres de corpos altos e esguios,
orelhas pontudas, vestidos com folhas, cipós e flores. Puxei a sela e esporeei Oliver no
desespero. Seus movimentos foram confusos, trotando para trás, agressivo de uma forma que eu
jamais vira antes.
Fryda continuava rosnando para a mãe, tentando me proteger de sua fúria. Ambas
sabíamos que não seria suficiente para fugir. Nosso sonho fora pisoteado no momento em que
Mariellen nos encalçou.
Pisquei uma vez e os braços de Fryda envolveram minha cintura. Pisquei de novo e um
dos feéricos estava à minha frente, envolvendo meu rosto com as mãos enquanto balbuciava
palavras inaudíveis.
Não cheguei a piscar pela terceira vez.
Meus olhos demoraram para abrir. Lampejos de memória fagulhavam em minha mente.
O abraço de Fryda, o rosto de Mariellen. Forcei as pálpebras para cima, batalhando contra minha
exaustão. Parecia que meus pensamentos tinham sido remexidos e partidos em vários pedaços.
Sentia-me leve e pesada ao mesmo tempo, sem pleno controle sobre meu corpo.
Tateei os arredores e a terra úmida entrou debaixo das minhas unhas. Minhocas
passaram pelas minhas mãos e, de longe, o cantar do grilo preenchia o breve silêncio. A voz da
temida bruxa — e eu lembraria dela até nos meus piores pesadelos — rompeu a repentina
quietude.
— Acorde, criatura imunda.
Sua ordem foi atendida. No mesmo instante, despertei, piscando várias vezes para me
habituar à luz da manhã que atravessava as copas das árvores. Uma cúpula formada por galhos
embaraçados e flores coloridas se estendia sobre nós. No centro, estendia-se uma árvore maior
do que todas que eu já vira. Um buraco fora escavado em seu cerne e, dentro dele, Mariellen
assentava-se em trono. As raízes das árvores se estendiam para os lados, formando assentos, mas
estávamos sozinhas. Meneei a cabeça para os lados, tentando controlar a respiração ofegante.
— Fryda não está aqui. Chega de envenenar a cabeça da minha herdeira com tuas
mentiras, besta assassina!
Não sei se foi a ausência de Fryda, ou a injustiça por ser chamada de assassina, mas o
medo foi cedendo para a raiva. Eu não desejava manter a guerra, queria acabar com ela. Fechei
os punhos e lutei para me reerguer, ainda que minhas pernas estivessem bambas.
— Eu não quero ver mais ninguém morrer. Chega, Mariellen.
Minha voz saiu trêmula, receosa. Entretanto, havia sinceridade em minhas palavras.
Mariellen apoiou o rosto na palma da mão. Sua expressão era indecifrável e cada segundo
parecia durar uma vida inteira. A floresta nos escutava, pois os insetos haviam se calado e o
vento cessado, presos no eterno instante.
— Tu podes tentar se enganar, mas não a mim. — Mariellen começou, elevando o tom.
— Como tens coragem de me dizer isso quando és filha do monstro que vem nos matando há
décadas? Queimando nossas casas, destruindo os bosques. Os Rivière são uma maldição para a
floresta, Aurora. Eu apenas nos protejo dos males de Dagoberto.
Por mais que eu odiasse admitir, Mariellen também tinha razão. Vivíamos em eterna
retaliação e vingança. Meu pai não me ouvia e só os deuses sabem como eu havia tentado. Mas
eu não era como ele. Não era uma mendicante, mas a herdeira de meu povo, arauta da paz. Dei
um passo à frente.
Se fosse para morrer, seria lutando pelo mundo que eu queria construir.
— Seu povo também assassinou o meu. Vocês mataram a minha mãe e isso envenenou o
coração do meu pai. Mas não o meu. Fryda e eu somos a prova de que não precisamos mais viver
afundados numa guerra sem sentido.
— E o que tu achas que aconteceu com o pai de Fryda? Meu companheiro de vida
morreu carbonizado. Não venha me ensinar o que é luto, criança. Eu venho sangrando há mais
décadas do que tu podes contar.
Antes de respondê-la, fui surpreendida por um chorinho baixo. Andei pelos troncos,
desengonçada, em busca do som, enquanto a bruxa me observava como se eu fosse mais um
animal. Seguindo o som, agachei perto de uma raiz e notei, embaixo da terra, uma pessoa.
Uma criança.
Usei as últimas forças para cavar e retirar o corpo dela do abraço dos troncos.
— Myni? — chamei. — É você?
Encostei o ouvido em sua barriga e senti a respiração baixa e devagar. Abracei o corpo
dela e enfiei o rosto em sua nuca.
— Deuses, Myni. Você está viva.
— Nós não machucamos crianças. — Mariellen surgiu atrás de mim, mais imponente
que Colosso. — Nós as sacrificamos pela floresta para que ela nos perdoe.
Encarei o rosto de Myni. Com mais atenção, percebi sua pele gelada, ganhando um tom
cinzento.
— A-a floresta… r-rouba vidas para sobreviver?
— Teu povo nunca entenderá o equilíbrio da natureza, princesa. É preciso devolver o
que foi tirado.
Protegi o corpo de Myni com o meu, pronta para ser atacada pela bruxa. Ela enviaria um
colar com meus dentes para o meu pai em represália à captura de Fryda; mas não avançou contra
mim. Mariellen saltou em direção ao chão como uma bailarina. Em seguida, prostrou-se.
Arregalei os olhos e constatei que não era uma reverência, pois só seu ouvido direito tocou a
terra. Ela auscultava a floresta.
— As árvores estão me avisando que há um exército tentando nos encontrar. Elas
choram porque há fogo. Choram porque os animais se escondem para salvarem as próprias vidas.
— Ela ergueu-se, tocando suavemente o cabo da arma pendida na cintura. — Diga-me, criança.
O que vai restar quando o seu povo destruir tudo que os deuses antigos construíram?
— Eles não vão — respondi, entre dentes. — Deixe-me falar com eles. Vamos escolher
a paz. Por Fryda.
— Falar? Não seja estúpida. Tu não és uma mensageira, és minha prisioneira. Não
venha falar de paz com alguém que só conhece a guerra. E deixe minha filha fora disso, teus
caminhos jamais se cruzarão novamente.
Mariellen abriu os braços e a floresta soltou a respiração. Pássaros cantaram e o vento
nos sobrevoou. Os feéricos se materializaram diante de mim, através do rodopiar das folhas. A
magia pulsava em cada centímetro de terra, da mesma forma como as histórias contavam.
— Preparem-se, meus filhos e filhas! Escreveremos nossa vitória com o sangue de
nossos inimigos!
Tentei me manter empertigada, protegendo Myni, mas os olhares dançavam sobre mim.
Maquinei centenas de planos, mas não via como nenhum deles conseguiria consertar o caminho
de terror que nossos povos trilhavam.
Mariellen estalou os dedos e o chão tremeu quando uma raiz grossa surgiu da terra,
embalando-me em seus braços de madeira. Um dos feéricos se aproximou e puxou Myni de
meus braços.
— Tire as mãos dela, desgraçado! — gritei, debatendo-me contra os troncos que me
apertavam.
Debati-me, arranhei as raízes até que minhas unhas se desprendessem dos meus dedos e
gritei até minha garganta ceder. A árvore cresceu e cresceu, deixando-me no alto da floresta,
enclausurada em sua prisão. Eu via Mariellen e os outros feéricos como pequenos fragmentos no
chão. Mesmo do alto, consegui escutar sua voz reverberar pela floresta:
— Testemunhe o fim da guerra, criança.
Entendi o que Mariellen disse sobre a floresta chorar, porque senti seu pranto no
momento em que o cheiro do fogo chegou.
Meus músculos estavam duros, presos pela raiz do feitiço da bruxa. Toda minha força
foi gasta e a exaustão se apossou de mim. Não havia lágrimas para chorar; eu era a espectadora
do fim.
Procurava Fryda entre os arbustos, árvores e raízes, mas ela não estava lá. Sua ausência
era minha fraqueza. Tínhamos chegado tão perto.
Não havíamos quebrado a roda.
As folhas secas no chão começaram a tremer e, de longe, escutei os urros de batalha. Os
homens de meu pai. O cântico vitorioso ecoava pela terra, junto com o brandir das espadas como
uma marcha fúnebre. O aço era errado no coração da floresta, e ninguém parecia ligar para isso.
Abri a boca para gritar, mas minha garganta estava seca, coberta por cinzas. A marcha
dos soldados era desesperadora. O cheiro de vingança empesteava o ar. Onde estava Fryda? E o
que restaria de nós?
Lentamente o fogo se alastrou, cercando a clareira. Comecei a tossir, respirando fumaça.
O calor tomava meu corpo. Emergindo das chamas, das árvores e flores queimadas, o exército de
Hymelia nos alcançou. Dagoberto os liderava, montado em seu corcel prateado.
— Pai… — eu o chamei, mas o rei não olhou para cima. Estava içada pela raiz a dez
metros do chão, minhas palavras não passavam de um sussurro.
Dagoberto e Mariellen pararam a poucos metros um do outro, encarando-se. Não
conseguia discernir quem estava mais sedento pela garganta do outro.
— Devolva minha filha, seu demônio maldito — meu pai vociferou, apontando a espada
na direção dela.
— Tu capturastes a minha, por que eu o faria? Tu és tão estúpido que não se digna a
observar o céu e encontrá-la a tua espera.
Dagoberto o fez. No mesmo instante, o rosto se contorceu ao me notar presa pela grande
raiz. Ele firmou o punho na espada e sibilou:
— Se não soltar Aurora agora eu vou incendiar até a última floresta existente. Não foi
suficiente ter tirado Dominique de mim, desgraçada?
— Parem — pedi, fraca.
Como eles podiam ser tão cegos? A vingança era uma faixa cobrindo seus olhos. Não se
importavam nem com a vitória; disputavam quem conseguia ferir mais o outro.
— “Tirar de mim tudo que amo, Dagoberto?” Tu fazes isso toda vez que um dos meus
sangram, ou quando queimam nossas casas para que teu reino maldito cresça. Tu és um
hipócrita, um assassino, tua família é um flagelo a ser exterminado desse mundo! — Mariellen
proclamou, alto o suficiente para todos os guerreiros escutarem.
Meu chamado desesperado se perdeu quando as espadas foram brandidas e os alaridos,
entoados.
— Sinta a fúria de Hymelia, demônio da floresta — papai vociferou.
E a floresta explodiu em gritos e sangue.
Mariellen avançou com duas lâminas de cristais nas mãos. Os outros usavam a magia e
sumiam no ar, evocando as raízes que brotavam do chão para se protegerem do aço e atacarem os
homens de meu pai. Alguns assumiam a forma animalesca, rasgando gargantas com seus dentes.
Os humanos tampouco demonstravam piedade. Dilaceravam carne, armados com aço e
ira. Meu pai e Mariellen digladiavam entre si, ambos demonstrando maestria com suas armas. O
fogo dançava ao redor de nós, minando a vida que ninguém se importava.
Apenas eu.
Porque as chamas lambiam a raiz que me sustentava.
Arfei, tentando me soltar. De nada adiantou. O som da batalha se sobrepujava às minhas
tentativas de pedir por socorro e a cada segundo o fogo subia mais e mais, queimando a
superfície da raiz. Ela cederia e eu morreria ao cair, ou seria queimada antes. Debatendo-me,
supliquei aos deuses que me salvassem e nenhum deles me deu ouvidos. Pensei na minha mãe
que, assim como eu, tinha morrido por escolher acreditar.
Fechei os olhos quando o fogo chamuscou minhas calças. Minhas lágrimas não o
apagaram e meu peito foi assolado por um peso enorme que me impedia de respirar.
— Desculpe, mãe. Eu cheguei tão perto — sussurrei para as copas das árvores que me
observavam. — Desculpe, Fryda. Não consegui te salvar.
A impotência doía mais que o fogo. Fui derrubada pela desilusão ao encarar o futuro
padecer num campo de batalha debaixo das chamas. Não queria ver mais ninguém morrer, estava
tão cansada, com tanto calor. As chamas começavam a lamber minhas pernas, a subir pelo meu
corpo com sua voracidade incontrolável. Doía tanto.
Fechei meus olhos e expirei o restante de minhas forças. Senti a vida fugindo de minhas
mãos, meu corpo sendo embalado pela paz que eu tanto sonhara.
Aurora.
Eu estava envolta pela escuridão, guiando-me pelo chamado. Pela voz.
Aurora.
Num instante a dor tinha cessado, e todo desespero de antes ficado para trás. Respirei ar
límpido e cerrei os olhos quando uma silhueta de luz emergiu à minha frente. Era um pouco mais
alta do que eu, no formato de uma mulher. Uma sensação nostálgica se apossou de mim, como se
tivéssemos sido próximos durante toda a vida.
— Mamãe? É você?
Corri o mais rápido atrás dela. Estendi os dedos para tocá-la, sendo invadida por um
calor suave. Quanto mais perto chegava, mais eu era abraçada pelo sentimento acalentador de
paz. Entretanto, eu não conseguia chegar até ela.
Pisquei, e a silhueta sumiu. Mas senti seu toque sereno atrás de mim, nos meus ombros.
Baixei o rosto para que minha bochecha tocasse a luz. Havia chegado a minha hora de
reencontrá-la.
Nós estaremos juntas de novo, meu amor.
Fechei os olhos, pronta para cruzar a fronteira entre os mundos e finalmente descansar.
De repente, a silhueta me empurrou com força para a frente e eu me vi caindo num
abismo profundo.
Mas hoje não.
— Aurora!
Abri os olhos de supetão, o fôlego de vida entrando pelas minhas narinas. Olhei para
baixo, e mesmo que ela fosse uma confusão de espadas, sangue e corpos, eu avistei seus olhos
cinzentos e corajosos à minha procura, montada em Oliver.
— Eu vou te tirar daí, Aurora — berrou Fryda. — Aguente firme! É minha vez de te
salvar!
Fryda tinha os braços e o cabelo sujo de sangue e soava com tanta convicção. Ela tinha
lutado por mim. Meu coração tornou a estrondar no peito, transbordando com o sentimento
sagrado que eu via nos olhos de papai quando ele falava da minha mãe.
Eu tentara proteger Fryda dos males do mundo e demorara a compreender que ela faria o
mesmo por mim. Porque nosso encontro não tinha sido acaso: estávamos unidas pelo fio do
destino.
—Ajude-me, Fryda! — berrei. — Eu preciso de você!
Eu resistia ao fogo queimando meu corpo. A dor era lancinante, mastigava-me viva. Mas
escolhi confiar em Fryda. Não morreria. Enfrentei a dor com tudo que me restava, porque não
estava sozinha. Sua presença reluzia mais que o rancor, Meu sentimento por ela era mais
poderoso que os incontáveis anos de rivalidades vazias.
A raiz começou a desabar, dilacerada pelas chamas que nos embalavam. Cerrei as
pálpebras, inundada pelo cheiro de carne queimada. Jurei escutar meu nome sendo berrado por
meu pai, mas soou como uma memória distante. A dor se tornava uma companhia constante,
como se eu me esquecesse que devesse senti-la.
A copa das árvores se distanciava de mim enquanto eu caía no mar de labaredas, no
calor da batalha. Ergui o que restava de meu braço para o céu, querendo alcançá-lo, mas uma
força continuava me puxando para baixo. Só que eu não desabei. Caí flutuando como uma folha
leve.
Em direção aos braços de Fryda.
Pousei em seu abraço. A morte ficara para trás e, embora a guerra se mantivesse ao
nosso redor, eu sabia que conseguiríamos pois ela segurava minha mão. Éramos o suporte um da
outra.
— Você me salvou — balbuciei, tocando sua bochecha com a ponta dos dedos. — Por
que está chorando, Fryda? Estamos juntas.
Suas lágrimas caíam sobre meus dedos, mas eu não as sentia. Eles estavam em carne
viva, envoltos por um invólucro escuro.
— Eu cheguei tarde demais. — Ela me segurou com os braços tremendo, e pontadas
dolorosas subiram pelo meu corpo. — Aurora, Aurora. Perdoe-me.
— O que você está dizendo, Fryda? Eu estou aqui, estou bem, e…
Acompanhei a direção de seu olhar e perdi o ar quando entendi o motivo do pranto de
Fryda.
Meu corpo estava completamente queimado. O tecido das vestes se misturava à minha
pele retorcida e chamuscada. Eu me transformara num bolo confuso de carne queimada. Era um
milagre que ainda estivesse viva.
Engoli em seco. Consegui postergar o desespero porque, apesar das dores, eu tinha
escutado minha mãe. Não seria vencida pela morte.
— Vai ficar tudo bem — prometi, ansiando acreditar naquelas palavras. — Eu só preciso
descansar. O reino tem bons curandeiros...
— Aurora, é minha culpa. Eu demorei para escapar da prisão de minha mãe, se tivesse
chegado mais cedo… — ela choramingou, de olhos fechados, o rosto contorcido numa dor pior
que a minha. — Estou usando magia em você. É… é o único motivo de você ainda estar aqui.
Tentei mexer minhas pernas, mas elas não respondiam. Lentamente, toquei a cabeça, e
não haviam mais cabelos. Eu era uma boneca queimada.
— Não, não — repeti, incrédula. Não queria morrer. — Fique comigo, eu só preciso de
você. Estou com tanto medo, Fryda.
Ela não respondeu, engasgada pelas lágrimas. Eu não conseguia chorar, ainda atônita,
encarando a ideia terrível de morrer e deixá-la sozinha. Eu não queria ficar sozinha, ainda havia
uma história a ser escrita.
Escutei a voz de meu pai estridente, vinda do fundo de seu coração despedaçado.
— Minha filha!
Ele ajoelhou-se perto de mim, mantendo distância suficiente de Fryda. Dagoberto
agarrou os cabelos grisalhos e gritou em direção ao céu, e sua dor calou a batalha num repentino
silêncio. Só se ouvia o crepitar das chamas e as lágrimas derramadas.
— Você não vai tirar a minha filha de mim, demônio! — ele vociferou para Fryda. Ela
não respondeu, ainda abraçada a mim.
Eu procurava há tanto tempo a resposta para o ódio. Achei que bastava combatê-lo com
coragem e teimosia, mas ambos tinham se esgotado. A única coisa que me restara, entretanto, era
a que mais resistia. A que nunca cedera. A que me fizera continuar acreditando e lutando.
Amor.
— Eu amo Fryda, pai — confessei. — Eu a amo como você amava minha mãe.
Fechei os olhos, e em vez de medo, senti um alívio imensurável. Finalmente abria meu
coração para o mundo, para Fryda. Para mim mesma.
— Eu sei que vou morrer, pai. Mas quero que saiba que o farei carregando o sonho de
mamãe e, quando encontrá-la, direi que não foi em vão. Vou morrer sem arrependimentos,
porque se tivesse mil vidas, teria escolhido Fryda em todas elas. — Inflei o peito pela última vez
e gritei. — Olhe para a frente e deixe a vingança para trás. Por mim e por nós, termine essa
guerra!
Seus joelhos se arrastaram na terra e suas mãos calejadas me envolveram com cuidado.
Não pude impedir um sorriso, porque me despediria do mundo ao lado das duas pessoas que
mais amava. Eu os veria juntos por uma última vez. Eles e Oliver. Meu corajoso amigo se
mantinha por perto disposto a me proteger.
— Minha menininha — ele soluçou. — Minha corajosa criança, não me deixe.
— Eu te amo pai — sussurrei, com o sal das lágrimas queimando meu rosto. — E eu
sempre vou acreditar que há bondade no seu coração.
Fui tomada por uma repentina leveza. Estava feliz por dizer a verdade, por permitir que,
por um instante, os humanos e feéricos percebessem que conseguiam conviver sem se matarem.
A breve trégua entre eles era a prova de que eu tinha dado um pequeno passo.
— Agora deixe-me falar com Fryda…
Ele contorceu a expressão, mas assentiu, afastando-se de mim. Fryda apoiou minha
cabeça em seu colo. O rosto, mesmo inchado e vermelho continuava sendo minha visão
preferida.
— Minha Fryda. Não se esqueça de mim e de tudo que sonhamos e realizamos juntas.
— Te esquecer, Aurora? — Fryda afagou meu rosto com a ponta dos dedos. — Vejo seu
rosto talhado nas árvores. Escuto sua voz no silêncio. Mesmo sozinha, sinto seu toque. Como eu
poderia te esquecer? Você está em todos os lugares.
Suas palavras fizeram meu coração transbordar de amor. Enquanto aquele sentimento
puro e verdadeiro atravessasse o tempo, nós iríamos conseguir. Ela conseguiria.
—Prometa-me que vai mudar o mundo e cuidar do Oliver. E quando tudo parecer
perdido, lembre-se que eu sempre estarei com você.
Ela abaixou a cabeça e depositou um beijo breve e suave nos meus lábios. O roçar
inundou meu corpo com amor e saudades esmagadores. Queria mais tempo, mas era grata pelo
presente que foi tê-la conhecido.
Sua expressão amenizou e Fryda sorriu para mim de um jeito singelo como na vez que
nos conhecemos. Inocente, sonhadora e corajosa.
Nós, as filhas da guerra, sonhávamos com a paz.
De repente, as borboletas começaram a sobrevoá-la em sua miríade de cores, como se
fossem um arco-íris. Eu me despediria da vida com a certeza de que tinha feito tudo que eu
podia.
— Não vou te prometer isso, meu amor. — Ela tateou o chão e pegou uma adaga de
cristal. Fryda levantou a arma e, com a ponta da lâmina, rasgou a pele do antebraço. — Meu
destino era te conhecer. O seu é mudar o mundo.
A magia era estranha para mim, mas compreendi o que ela faria quando escutei
Mariellen gritar com uma angústia tão dilacerante que eu não tive dúvidas do quanto ela amava a
filha:
— Fryda, não!
Fryda cantou.
Era a canção mais linda e mais triste que eu já escutara. Escutei armas caindo no chão,
lágrimas distantes. Uma garoa fina caiu pela floresta, afastando o fogo que se assomava sobre
nós.
Devagar, meu corpo foi envolvido por uma luz suave. O sangue de Fryda escorria de seu
braço e dançava sobre mim, penetrando minha pele e veias. Eu não conhecia os segredos e
limites da magia, tentei me mexer, implorar para que ela parasse, em vão.
Fui embalada em seu feitiço, e a dor excruciante em meu corpo foi abrindo espaço para o
alívio.
— Eu sou feliz, Aurora — ela disse, com um sorriso sincero no rosto, segurando minha
mão. — Por ter te conhecido e vivido o amor com você.
Tentei gritar, mas nada saía. Aos poucos, as queimaduras cicatrizavam, e eu via a pele
sendo repuxada, ganhando cor. Meus cabelos voltavam a crescer, e eu conseguia mexer minhas
pernas e dedos. Podia sentir o calor de Fryda.
Ao mesmo tempo, seu rosto alvo empalidecia, e olheiras fundas formavam-se por baixo
de seus olhos. Ergui meus braços e segurei seu rosto. Reuni forças para voltar a falar:
— Pare, Fryda.
— Eu disse que ia te salvar. — Ela aproximou o rosto do meu, tocando nossas testas, e
pousou a mão sobre meu peito. — Meu coração vai bater para sempre junto com o seu. Obrigada
por tudo, Aurora.
Os olhos dela se fecharam e sua respiração cessou. O corpo de Fryda tombou para o lado
com um sorriso sereno na boca. Acima de nós, as borboletas azuis voavam e eu jurei escutá-las
chorarem. A agonia de minhas queimaduras diminuiu, mas sentia uma dor pior. Meu peito estava
oco.
— Não. — Segurei o corpo de Fryda, incapaz de acreditar no que ela fizera. — Não,
não, não.
Aproximei-me de seu nariz e não havia o som ou o calor da respiração.
— Não, não, não — repeti, encarando o rosto plácido, balançando seu cadáver. — Volte,
Fryda. Volte.
Ergui o rosto para encarar Mariellen. A bruxa chorava, de olhos arregalados. Ela era
antiga, poderosa. Faria alguma coisa. Precisava fazer.
— Desfaça o feitiço, Mariellen! — implorei, abraçada à Fryda. —Leve-me, mas salve
Fryda, por favor. Por favor.
A bruxa tombou de joelhos, enterrando o rosto entre as mãos.
— Eu não posso. A dádiva de sangue é poderosa e irreversível. Ela trocou a vida pela
sua. Não há magia que possa interferir nos desejos mais profundos do coração.
Eu me preparei para mais anos de guerra. Preparei-me para morrer. Mas e para perder
Fryda? Era como esquecer de andar, de falar, de existir. Só ela conhecia meus segredos, minha
alma. Estava cercada por dois exércitos e sentia uma solidão sem fim.
— Meu amor. — Era mágico, lindo, torturante e horrível poder finalmente dizer tais
palavras, e Fryda não estar lá para ouvi-las. — O que eu faço sem você?
Ninguém tinha me contado as dores do nunca. Nunca mais ouvir sua risada. Nunca mais
sentir seu abraço. Nunca mais encontrá-la em nossa clareira.
Aconcheguei meu rosto em seu pescoço e chorei profundamente. Meu corpo foi tomado
por espasmos e soluços. Eu poderia preencher um oceano inteiro com meu pranto e com minha
dor.
Aproximei meu rosto do dela e meus lábios tocaram os seus, agora frios. Como eu pude
demorar tanto para perceber meus verdadeiros anseios? Ela não me ensinou apenas a acreditar,
mas a amar.
Os feéricos se juntaram numa magia para conter o restante das chamas na floresta e eu
perdi a consciência de quanto tempo permaneci abraçada com Fryda. Ninguém tentou nos
separar, nem poderia. Por aquele infindável momento, o povo da floresta e os humanos não se
atacaram, respeitaram meu luto enquanto as árvores choravam comigo.
Fryda viveria em mim para sempre. Ela não tinha só me dado a vida, mas a absoluta
certeza do meu destino. Eu sabia qual história deveria escrever. Onde quer que ela estivesse,
estaria orgulhosa em saber que eu perpetuaria nossos sonhos.
— Não vai ser em vão — jurei, afagando o rosto em seus cabelos. — Eu te prometo.
Meu pranto cessou quando vi meu pai se levantar, de espada erguida. O rei me encarou e
assentiu, caminhando em minha direção. Palavras me faltaram quando ele passou reto por mim,
com os olhos mirados em outro lugar.
Em Mariellen.
Engoli em seco e escutei lâminas serem desembainhadas. Preparei-me para implorar que
parassem, ainda que a esperança se esgotasse em mim. Faria aquilo por Fryda e por seu
sacrifício.
Dagoberto parou em frente a bruxa e em vez de atacá-la, jogou sua espada no chão.
Armas foram novamente embainhadas quando meu pai estendeu a mão para Mariellen.
E a história foi reescrita quando ela a segurou.
EPÍLOGO
Observo a muralha através de minha sacada, ainda imponente e intangível. Pensar que vou
morrer sem vê-la no chão me dói, mas sou confortada pelos portões sempre abertos e o comércio
vivo.
O povo de Hymelia não sangra mais pela fome.
Ataques não acontecem há sessenta anos. As florestas voltaram a florescer, e as crianças
estão seguras nos braços de seus pais. A promessa entre Mariellen e Dagoberto é uma chama
acesa, perpetuada pelo atual rei, um sobrinho distante de meu falecido pai.
Meu pai me ofereceu a coroa, mas não fui egoísta de aceitá-la. Hymelia precisava de
herdeiros e eu não daria um, não quando meu coração pertence eternamente para a mesma
mulher.
Nessa vida e em todas as outras.
Sempre me disseram que o luto é como os navios que atracam nos portos. Eles passam
um tempo distante, e chegam de repente, passando dias e dias no peito. Comigo é diferente.
Ela vive em mim. E a dor da saudade é mais suportável que o medo de esquecê-la.
— Senhora Aurora?
Viro minha cabeça para trás, à procura do chamado. Ainda é difícil me habituar à ideia
de que não tenho pleno controle pelo meu corpo. Os ossos e articulações doem, tudo é devagar.
Não sei mais o que é andar sem uma bengala. Há anos perdi o direito de cavalgar, minha única
alegria desde que a perdi. Alguns dias são mais difíceis do que outros, mas escolhi viver. Pela
nossa promessa.
— Olá, Miny. Está tudo pronto?
A menina assente, embora não seja mais uma criança, mas uma senhora. Sua companhia
é preciosa, Miny é uma das raras pessoas que não me olham com certa repugnância e pena. Sei
que as cicatrizes das queimaduras não são belas de se ver e amo Miny por nunca ter se importado
com elas. Cultivamos uma amizade preciosa há décadas, desde o dia da floresta. Não tive muitos
amigos desde Matt, que nunca mais falou comigo. Algumas cicatrizes são maiores que o tempo.
— Sim, senhora. A carruagem está te esperando no átrio do castelo. — Ela vem a passos
leves em minha direção e oferece seu braço. — Vamos?
Aceito o gesto e caminhamos para a saída. A visão dos corredores me lembra a
juventude, quando eu serpenteava por aquele castelo achando que teria energia para sempre.
Agora preciso aceitar que minhas pernas não são as mesmas, e meu quarto mudou para o térreo.
Subo as escadas quando sou teimosa e desejo apreciar a vista, e meus joelhos pagam o preço por
isso.
Chegamos ao salão principal. Da escadaria, contemplo os quadros com os bustos dos
Rivière. Miny espera, paciente e amorosa, eu me arrastar pelos degraus enquanto tateio o
corrimão. Uma singela alegria acende meu peito quando vejo o sorriso de minha mãe.
Ele parece maior agora que a pintura de meu pai está ao seu lado. Finalmente os dois se
reencontraram e a felicidade é clara, estampada no rosto iluminado de papai, sorrindo como
nunca vi em vida. Despeço-me de ambos em silêncio, com a certeza de que um dia nos
reuniremos de novo.
No átrio, a carruagem nos aguarda. O cavalariço está terminando de preparar os cavalos,
e em frente ao veículo, Pierre — um sobrinho neto de meu pai — bate o pé no chão sem cessar.
Ele me nota e corre para mim, segurando a coroa para que não caia.
Pierre é o novo rei, por isso não consigo deixar de sorrir quando sei que está com medo
de me questionar. O tempo não curou meu gênio indomável.
— Vovó — ele começa, alisando o gibão dourado. Somos primos, mas todos no castelo
me chamam assim. — É perigoso demais a senhora ir para lá, ainda mais sozinha. Deixe-me te
acompanhar ao menos dessa vez.
— Pierre — a afirmação de seu nome já é minha resposta. — Primeiro: deixe uma velha
ser feliz ao menos uma vez no ano. Há coisas que não abro mão, essa é uma delas. Segundo: se
me chamar de vovó de novo, espanco seu traseiro!
Ele suspira e abaixa os ombros, derrotado. Em seguida, vira o rosto para Miny.
— Cuide dela, certo? Eu juro que tento, mas ela só ouve você.
Ambos caem numa gargalhada sincera e não consigo conter meu sorriso.
— Com toda minha vida — Miny responde, ajudando-me a entrar na carruagem.
Aconchego-me nas almofadas macias e cruzo as mãos em meu colo, observando a
paisagem pela janela. Não é tão comum que eu saia da fortaleza agora, não por falta de vontade,
mas o cansaço me vence na maioria das vezes. Eu sei que minha hora está chegando e isso não
me entristece. No fim, eu a espero com vigor, pois anseio encontrar minha amada de novo. A
falta dela nunca doeu menos, o tempo não foi capaz de apaziguar as feridas em meu peito. Levo
minha mão ao coração, e sua presença me preenche como se nunca tivéssemos precisado dizer
adeus.
Observo as crianças brincando na rua e volto a lembrar de nós, da inocência e dos
sonhos perdidos. Elas falam alto, gritam com toda a energia infantil.
— Quem perder vai ter que ir pra floresta! — O menino mais velho fala.
— Eu não vou, não, tem monstros lá, muito grandes e muito feios. — O outro reclama,
cruzando os bracinhos.
— Ei! — Uma menina se põe entre eles e ambos se calam quando ela começa a falar. —
Não diga uma besteira dessas. Não há monstros, mamãe diz que são feéricos e não é por eles
serem diferentes de nós que sejam maldosos!
Os irmãos — que eu imagino serem, pela semelhança — abaixam a cabeça,
envergonhados, enquanto a menina tem um ar vitorioso.
Ela me lembra tanto de mim mesma. Há vivacidade e paixão crescendo nas crianças em
Hymelia. Nesses momentos eu sei que continuar vivendo valeu a pena. Damos passos pequenos
em direção à mudança. Nem todos são engolidos pelo ódio mais.
Afundo-me ainda mais nas almofadas quando atravessamos os portões. A carruagem
trota na estrada de terra e meu coração retumba de ansiedade. Eu trocaria o restante dos anos por
uma cavalgada ali de novo com Oliver. Meu corajoso amigo e minha doce lembrança. Sobrevivo
das memórias daqueles que um dia amei.
— Lady Aurora — escuto o cocheiro dizer. — Chegamos.
Ele desce da carruagem e abre as portas para mim. Miny sai primeiro e os dois me
ajudam a descer. Minhas sapatilhas tocam o chão. Eu respiro fundo, de olhos brilhantes.
— Vou seguir sozinha a partir daqui — digo, e ninguém questiona. Miny sabe da minha
história e a respeita.
Despeço-me dos dois e entro no bosque pelo mesmo caminho de galhos retorcidos.
Como se ela pudesse me ver e me escutar, a passagem torna-se mais fácil a cada ano. Ela se abre
para mim com todo seu cuidado, auxiliando meu corpo e alma cansados.
Eu conseguiria alcançar nossa clareira de olhos fechados. Antes, costumava vir todas as
semanas. Nos últimos tempos, os intervalos se alongam. Ainda assim, o caminho é vívido em
minha mente.
Encontro um par de petúnias — elas continuam alterando-se — e atravesso o espaço
entre elas, chegando em meu refúgio. Nada mudou desde então: o lago continua belo e cristalino,
flores coloridas caem pelas árvores e o sol afasta qualquer sensação gélida.
As borboletas continuam sobrevoando a clareira, eternas e incansáveis.
Há um tronco repousando na terra e, com a ajuda da bengala, agacho para sentar nele.
Passo minutos contemplando a imagem, transbordando pelas lembranças que acalentam meu
peito ferido.
Ao mesmo tempo em que a clareira continua a mesma, os povos mudaram. As crianças
em Hymelia não sabem mais o que é guerra. Isso não passa de uma história contada por seus
avós. Nossos povos não convivem juntos, mas não consigo deixar de pensar que, daqui a mais
sessenta anos, talvez as coisas sejam diferentes.
Como um mundo sem muralhas.
Tenho a plena certeza de que não estou sozinha e que nossos sacrifícios inauguraram o
destino que tanto sonhávamos.
Olho para cima e sou inundada por um raio de luz suave e amoroso. Ele embala meu
corpo e, por um instante precioso, enche-me de esperança de novo. Como se eu fosse aquela
Aurora de sessenta anos atrás, disposta a enfrentar o ódio e as tradições.
Começando a minha… não, a nossa história.
Nunca, nunca sozinha.
— Fryda — expresso seu nome, que ainda é dito com o mesmo amor de antes,
contemplando o céu infinito que se estende sobre mim. — Nós conseguimos.
AGRADECIMENTOS
Quando eu era criança, na hora de dormir, meu pai me contava as histórias da ‘’Princesa Nina’’,
sobre como ela sempre salvava o reino de dragões malvados ou reis tiranos. Meu maior
agradecimento por essa história vai para aquela garotinha que não deixou isso morrer e continua
acreditando que, com coragem e esperança, é possível mudar o mundo.
Agradeço também às pessoas que seguem me apoiando e me ajudando a botar minhas
histórias no mundo: Fran, Laís, Sabrina, Tay, meninas do best-sellers & hell. Agradeço à Hailla
pelo trabalho magnífico com a capa e à Arquelana e Raquel pela revisão ortográfica.
Agradeço ao Lucas por ter aturado meus surtos durante o lançamento (e ter escutado
com carinho todos eles) e por confiar em mim mais do que eu mesma.
E ao meu pai, Sérgio, por ter me feito acreditar que eu era uma princesa.
Por último, te agradeço profundamente por ter lido essa história, sofrido e sonhado junto
com as personagens, leitor.
Lembre-se que ainda há esperança, e que o mundo precisa de pessoas teimosas como a
Aurora para continuar acreditando, e da doçura da Fryda para compreender que isso pode ser
feito com amor.
SOBRE A AUTORA
Marina Rezende de Almeida nasceu em Campos, no Estado do Rio, mas mora desde
criança no Espírito Santo, seu verdadeiro lugar.
Desde criança, vive pelas histórias e carrega um livro para onde vai. Sempre preferiu
viver em outros mundos. Desse amor, paixão e desejo, surgiu a vontade de criar os seus.
Instagram: @marina.verso
E-mail: autoramarinarezende@gmail.com
A CANÇÃO DO ABISMO
Há muito uma canção foi proibida e esquecida pelo tempo. Sua mera menção é uma
ameaça.
Porém, indo contra a ira do príncipe herdeiro, Illith se envolve com seu guardião: um
dracônico que foge dos moldes tradicionais do império e vê muito mais nela do que apenas uma
princesa frágil e indefesa. Juntos, eles se unem para investigar o mistério da rosa negra que está
sendo marcada em cadáveres brutalmente assassinados na fortaleza dracônica.
As notas foram dedilhadas. Não há espaço para fracos num mundo em que o sangue do
dragão rege mais forte, e um mal Inominável renasce, prometendo propagar destruição por toda
Atius.
Conseguirá ele erguer a mão da espada e enfrentar o mal que destruiu tudo aquilo que
ama? Ou se renderá ao desespero?