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"Quando o mundo estiver unido na busca do
conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Edição: Cesar Bravo Diagramação: Cesar Bravo Capa: Cesar Bravo e B. Tavares Revisão: Cesar Bravo
Ficção: Literatura Brasileira Drama, Horror, Violência, Sexo. Terror/Sobrenatural. Tensão psicológica. (Conteúdo adulto. Recomendado para maiores.)
Cesar Bravo cesarbravoescritor@gmail.com @cesa_bravo_1977 http://www.facebook.com/pages/Cesar- Bravo/167745786701987
Ofereço esse livro a todos os que oram e não são atendidos. Algumas palavras
Olá, meu amigo leitor — meu insistente amigo leitor. Gostaria de tomar um tempinho para falar sobre o livro que você está prestes a ler. “Ouça O Que Eu Digo” foi uma ideia que perambulou por anos em minha cabeça. As articulações, o poder subversivo da fala humana, as conspirações e suas consequências nefastas. Nesse livro, como na maioria das minhas obras, escolhi a máscara do horror para contar uma história. Pelo teor das páginas seguintes, pode ser que você se pergunte se eu não acredito na raça humana. Bem, digamos que eu acredito em algumas facetas. Acredito no amor, na paixão e nas longas horas dedicadas a um propósito. Se eu acredito que somos bons por essência? Realmente não. Conforme o livro foi passando para o papel, notei que algo se escondia nas entrelinhas, algo que precisava ser dito, escrito e compreendido. Falo sobre nosso país é claro, e também sobre a raiva que às vezes nos domina e nos faz agir como crápulas. Você encontrará alguns palavrões aqui e ali, porque é assim que as pessoas falam quando estão nervosas e apavoradas — pelo menos é assim que eu me comporto... O que mais? Emoção. Pretendo que você sinta o amor e a dor dos personagens à medida que as páginas forem avançando, desejo que você pense que todas as atrocidades descritas poderiam — de alguma maneira inexplicável — ter sido reais em algum outro plano ou dimensão. Sobre o momento em que escrevi esse livro, posso dizer duas palavras: Paraíso e Inferno. Você notará, aqui e ali, rompantes de fúria, em outros momentos, se pegará sorrindo como um bobalhão. E quando terminar esse livro, eu espero realmente que você me perdoe se, em algum momento, desperdicei seu tempo e seu dinheiro. Escrevi “Ouça O Que Eu Digo” com todo meu coração sangrento, da mesma forma que abro os olhos e sempre espero um dia glorioso no amanhã. Fiquem bem, continuem lendo e apoiando quem faz o que faz por amor. Continuem apaixonados. Um forte abraço. Cesar.
PRIMEIRA PARTE AS PEÇAS E O TABULEIRO
SEGUNDA PARTE A LOUCURA
TERCEIRA PARTE CARNE QUEIMADA “Eu não sou um homem, sou um campo de batalha.” — Friedrich Nietzsche
“O demônio sempre se infiltra entre os políticos. Então, eles começam a brigar entre si. O poder se transforma em uma questão de orgulho. Não tem mais nada a ver com vivermos juntos e acabar com a guerra.” — Bob Marley
“E é nisto que se resume o sofrimento cai a flor, — e deixa o perfume no vento!” — Cecília Meirelles
Fazia um calor insano no mês mais frio do ano. Era junho em Nova Enoque. Lagos e rios estavam vazios ou pela metade, autoridades, em estado de alarme, gafanhotos e cupins comiam a cidade. Seria um ano ruim, foi o que disse Madame Safira no começo de janeiro. E todos riram dela.
PRIMEIRA PARTE
AS PEÇAS E O TABULEIRO
“Há seis coisas que o Senhor odeia, sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente, coração que traça planos perversos, pés que se apressam para fazer o mal, a testemunha falsa que espalha mentiras e aquele que provoca discórdia entre irmãos.” — Provérbios 6:16-19
ROGER E MILENA
Perto das três da manhã, Roger estava dentro de seu Opala Diplomata, tentando arrancar a calcinha de Milena. Ela resistia, tão molhada quanto os vidros embaçados do Opala, mas ela resistia. Claro que sim, como disseram que todas as boas garotas de uma cidade ranzinza como Nova Enoque deveriam fazer. — Qual é, Milena? Você quer tanto quanto eu. Para com isso... — Não! Já disse que não — ela respondeu, enquanto tentava desenroscar o dedo indicador de Roger de sua calcinha. O rádio dizia o oposto tocando This is Love, do Coverdale, os lábios trocando saliva também concordavam. Roger teria conseguido, estava perto, muito perto do que perseguia sempre que estava com ela. Ninguém apostaria que Milena o recusasse como uma virgem — e desde noventa e oito não parecia existir virgens com mais de doze anos, ali ou em qualquer lugar. — Só um pouquinho... — Não! Eu quero ir pra casa. Roger bufou e cedeu. Quarenta minutos de amasso era o seu limite. Abriu a porta do Opala e deixou um pouco de vento seco entrar. Quente, mas estava bem mais fresco que o interior do carro. Milena se afastou e arrumou a saia, a parte de cima não tinha cedido em nada, ela morria de vergonha dos seios pequenos que pareciam grandes demais para Roger. Tudo nela parecia demais para ele. E era mesmo. — Que cheiro é esse? — Meu cigarro? — ele perguntou. Tinha acabado de acender um Marlboro Gold. — Não, é outra coisa. Depois disso o rádio ficou falando sozinho por três longos minutos. O cigarro de Roger estava pela metade e seu humor abaixo disso. Como ela podia resistir tanto? E quem ela pensava que era afinal de contas? A última garota da cidade? Era bom que Milena tivesse algum segredo novo dentro daquela calcinha. Para fazer que ele esperasse tanto tempo e gastasse seus espermas no ralo, era bom ter um presente daqueles quando resolvesse transar de novo. — Desculpa — ela disse. Estava meio chorosa, ela sempre ficava assim quando a coisa não acontecia e Roger terminava a noite frustrado. Mas por que ele não podia apenas concordar em ir até lá, até o Morro como chamavam, e namorar um pouco? Por que tinha que ter sexo para ser bom? Sexo não era Roger. Sexo era outro departamento... — Tá tudo bem — ele respondeu e apanhou uma cerveja no banco de trás. — Aonde você vai? — Urinar — respondeu ríspido. Ela deixou que saísse. Um pouco de solidão faria bem. O vento quente do lado de fora era irritante. A umidade do ar devia estar por volta de quinze por cento e isso era praticamente respirar poeira. Mas por que, diabos, Roger estava tão irritado? Tudo bem que pela sexta vez seguida, aquela gostosinha da Milena tinha chegado perto e o deixado na mão (ou nem na mão nessa noite quente e gloriosa). Talvez Roger devesse socar uma só pra descontrair. É... Encher a mão de gosma quente e deixar tudo no pasto, junto com o que saía dos cavalos. Foi até uma mangueira enorme que não dava mais frutas. Tirou o Amigão para fora. Ainda estava duro e isso faria doer. Maldita Milena! Ela podia pelo menos ter feito com a boca. Era o que as garotas boazinhas da cidade faziam quando mantinham a calcinha na cintura. — Ohhh — gemeu, recuando um pouco a pelves para que não doesse. A cerveja não ajudava, urinava feito um cavalo. Parecia exagero como tinha ficado tão bravo. Ele ainda pensava nisso e também pensava em coisas inéditas, como voltar lá e afundar a cabeça daquela vadia com uma chave de rodas. E depois aproveitar da carcaça. É... Ela que se fodesse. Mas Roger não era um assassino, embora tivesse dentro de si a semente encolhida da maldade, ela ainda não havia germinado. — Você devia fazer isso — disse alguém. Um cheiro forte de pólvora subiu pelo ar enquanto o sangue de Roger era drenado para baixo. Ele guardou o Amigão de qualquer jeito dentro da calça e quase o cortou com o zíper. — Quem é você? — perguntou. Não conseguiu ver quem estava ali. Luz clara, noite cheia de estrelas, mas o estranho tinha a escuridão em volta dele. Como uma camuflagem. — Nessa noite, sou sua força de vontade. E pode acender outro cigarro se quiser. Eu não vou te morder. — Estou maluco? A Milena colocou alguma coisa na minha cerveja? — apertou os olhos. — Ou quem sabe tenha colocado no seu cigarro — disse o outro. Tinha o contorno de um homem, mas bloqueava o que havia de paisagem atrás dele, como era possível não vê-lo? E pior, por que não conseguia resistir a ele? Mas a cabeça de Roger não pensava nisso. Pensava em por que não acender outro cigarro. — Pode fumar, garoto. Pode fazer o que tiver vontade. Roger sentiu um impulso de correr dali, gritando e acenando os braços, mas não fez isso. Seu impulso era menor que a vontade de ouvir a coisa camuflada pela escuridão da noite. E ele tinha uma voz doce, não era uma voz de mulher, mas ouvi-lo era como ouvir a própria mãe. Incentivando, dizendo o quanto você é capaz de fazer qualquer coisa. Roger não resistia a ele como um viciado em recuperação não resiste a um bom gole de álcool quando a vida se torna insuportável. Quando controlou o tremor das mãos, apanhou o cigarro do bolso. A calça estava úmida com um pouco de urina. Não teve tempo de chacoalhar o palhaço, não com o senhor Noite Escura querendo conversar. A luz do isqueiro Bic iluminou seu rosto recém-saído da adolescência, a chama também fez o homem estranho desaparecer por um segundo. Roger tragou o cigarro e sentiu o peito apertado aliviar-se. Era a vontade. Sentir vontade e não satisfazer devia ser proibido por lei. E a vontade era viciante, potente. Talvez fosse letal na presença daquele cara. Daquela coisa. Roger não conseguia se esquivar de sua influência. — O que você quer? — perguntou. A criatura espalmou as mãos aos céus e imediatamente a camuflagem se desfez. Era alguém de uns quarenta anos. Bonitão até. Vestia jeans, botas e uma jaqueta de couro. — Tem um cigarro aí? Roger cedeu um a ele. O estranho o apanhou e colocou nos lábios. — Fogo? — Oh, claro. O homem agradeceu e devolveu o acendedor. O plástico estava quente. — Não é muito importante quem eu sou, Roger Minotto. — Como sabe meu nome?! — Isso é menos importante ainda. O importante é que aquela putinha deixou você na necessidade. Assim que a deixar em casa, ela vai pegar o telefone e discar para o Luciano. Seu amigo, Luciano. E eles vão foder a noite inteira e rir da sua cara, enquanto você vai ficar em casa se masturbando e pensando na vagabunda. — Não... Ela é minha. Ela era virgem e tudo! O homem soltou uma gargalhada. Tão alta que fez Roger olhar para trás e procurar por alguma movimentação no Opala. Mas estava tudo quieto dentro dele, só o rádio cantando alguma porcaria melosa que Milena gostava de ouvir. — Virgem? Acorda, garoto... Nem a mãe do JC era virgem. Mas não ensinam isso nas escolas. Sua namoradinha está fodendo com ele sim. E faz tempo. A questão é: o que você vai fazer sabendo de tudo isso? Roger estava sem chão. Não era só sexo com Milena. Na verdade ele gostava mesmo daquela puta mentirosa. Oh, como garotas conseguem mentir desse jeito? Ele tinha mudado sua vida, tinha arranjado um emprego, tirado carteira de motorista, enfrentou seu pai, porra! Não era justo ser tratado como um anão com fimose. — Eu quero que ela se foda. — Não, Roger. Você não quer só isso. Você deseja que ela sofra. Que ela pague o preço por seu sofrimento. E também quer o seu corpo outra vez. Ou não? Roger assentiu com a cabeça. Claro que ele queria aquele corpo. Trocaria uma nova noite por dez anos de sua vida. E agora ele se sentia livre. Porque, convenhamos, se Milena era mesmo uma vagabunda como aquele homem dizia — e Roger não conseguia mais se lembrar que minutos atrás, o estranho era um pedaço escuro da noite, — ele faria todo o abecedário de putarias conhecidas com ela. Faria mais. — Quero sim. Eu quero. — Então vá em frente, jovem. Eu fico vigiando. Faça o que deve ser feito e depois vá para casa. — E o que eu faço com ela? — Ela é merda, garoto. Deite-a no chão junto com o que sai dos cavalos, eu sou a garantia que nem um traço de remorso corroerá seu corpo.
DELEGADO ZÉTIA (Dia seguinte; Delegacia de Polícia de Nova Enoque)
— Eu não fiz nada! Quantas vezes vou precisar repetir isso?! — Até alguém acreditar, seu animalzinho nojento. E pensar que eu conheço seu pai. Por que não pensou nele, Roger? Ou na coitada da sua mãe? Aos fundos, Zétia deixou a xícara de café fumegando sobre a mesa e foi averiguar o que acontecia em sua delegacia. Restavam ele e Regina naquela manhã. Os outros integrantes da corporação estavam cobrindo o comício de Orlando Torque. Vereador Orlando tinha sido apanhado desviando verba da merenda escolar, e, mesmo sem ninguém provar nada, a boca esquentou, como dizem. Os partidários da oposição tentaram cancelar o tal comício. Como não conseguiram, era possível que o sabotassem. — Ei, ei. Que falação é essa? O que o Romeu aí aprontou? — Nada! Eu não fiz nada! — Claro que fez, seu safado. A coisa é séria, chefe — disse cabo Fábio. — Leva ele pro fundo. — Não! — gritou Roger. Estava com a roupa coberta de sangue. O rosto também, e junto com o sangue havia barro. Estava sem os sapatos e com o cabelo ensebado. — É melhor facilitar, garoto. Depois conversaremos sobre o que você fez ou não. Faz o que o soldado Fábio está mandando. Isso bastou e depois de cinco minutos o delegado ouvia o som das trancas metálicas das celas. Os passos pesados de Fábio vieram em seguida. Chegou de volta ao hall, vermelho e suado. O delegado o esperava. — E então? O que foi isso? — Ninguém avisou por aqui? — Desembucha, Fábio. O que esse garoto está fazendo dentro da minha delegacia? Fábio olhou para os lados, evitando algum curioso. Logo todos ficariam sabendo, mas manter segredo o maior tempo possível seria prudente. Pelo menos até esclarecem os motivos daquele marginal. — Ele matou a namorada. — Como é que é?! Roger matou quem? Regina ergueu a cabeça e parou de prestar atenção no computador. Zétia a repreendeu com os olhos, e ela acatou, voltando à tela fria. — Matou e fez coisa pior — completou Fábio. — Coisas. — Quem abriu a ocorrência? — Os vizinhos. Ednardo e Hélio Monfa. Eles levam os cavalos pra pastar no morro. Os dois encontraram o corpo. Saíram correndo e toparam com minha viatura no entroncamento para a rodovia, eu vinha voltando do comício. Estavam tão apavorados que achei melhor correr até lá e ver o que tinha acontecido. Também não acreditei quando me contaram. — E o garoto? — Roger? Estava sentado ao lado do carro. Os Monfa viram que ele estava ali, tentaram falar com ele, como Roger não respondia, foram até o carro. Eles viram a garota morta e saíram correndo. Roger nem se mexeu. Ele parecia drogado ou... eu sei lá. O maldito só saiu de onde estava quando toquei nele. Então pareceu tão horrorizado quanto o resto de nós, como se não soubesse nada sobre a moça. — E quem é ela? — Milena Sultão. Filha do... — Merda. Claro que sei quem é ela — disse Zétia. Apanhou a chave de sua viatura, entornou o café que já estava quase frio, e bateu a mão no bolso. Procurava os cigarros que não estavam lá há três semanas, três longas semanas. — Para onde você vai? — Alguém tem que avisar os pais da garota. Chamou o pessoal da técnica? — Chamei sim. E os bombeiros. Eles já tinham chegado quando eu saí, deixei ordem para não mexerem com o corpo até que a perícia chegasse. — Fique no meu lugar por aqui. Se a coisa apertar, mande um rádio pro Anderson e peça a ele pra voltar. Eu não sei quando conseguirei voltar, nunca dei uma notícia dessas ao pai de ninguém. Disse isso e saiu pela porta blindada da delegacia. Regina saiu de onde estava e colou em Fábio, sedenta pela carniça das novidades. E ninguém a culparia por isso, em Nova Enoque, o último assassinato que se tinha notícia tinha sido cometido dez anos antes, e era um cachorro com cinomose chamado Espirro. Zétia já estava enfiando a chave no contato quando Fábio apareceu correndo, com um bloquinho de anotações na mão. — O que é isso? — perguntou Zétia. — Não quer saber os detalhes? O velho vai perguntar. — Ele vai ouvir que a filha está morta, Fábio. Que importância tem o resto? Fábio deu de ombros e o Santana saiu fritando o chão.
PERTO DAS DEZ DA MANHÃ, o delegado pegava a Vicinal Mario Covas. A propriedade dos Sultão ficava a uns dez quilômetros da cidade. Nova Enoque parecia ter parado nos anos setenta e isso afetava tudo. Roupas, tecnologia, estilo de vida. Ninguém estava muito preocupado com o que acontecia em Brasília, se é que deu pra entender. Os enoquenos queriam mais era saber da novela das oito, do resultado da loteria e se teriam comida na mesa durante o ano todo. O resto era lucro, e lucro demais não era bom, lucro é o primo invejoso da felicidade. Antes de entrar da fazenda, Zétia checou o rádio da viatura. Estava quieto demais. Não estava reclamando, mas não esperava isso com o comício da manhã. Tampouco esperava um assassinato, porém ali estava ele, na casa do homem mais pacífico da cidade para informá-lo que sua filha estava morta. Diga como um dia pode ficar pior que isso? Um dos vira-latas de Galileu Sultão veio dar as boas vindas e urinou na roda da viatura. O delegado desceu em seguida. Deixou os vidros abertos, atravessou a porteira e foi até a frente da casa. Uma cadeira de balanço ainda se embalava no piso elevado da varanda. O passageiro devia ter acabado de entrar. Zétia acariciou o vira-lata caramelo e subiu os dois degraus até a varanda. Não havia campainha, então ele bateu na porta com o nó dos dedos. Quem apareceu foi a senhora Sultão. Ela não saía muito, o único lugar onde era vista era na missa, aos domingos. Sempre com o marido e sua única filha (que agora estava morta). Rosana desapareceu pela porta e foi buscar o marido. De dentro, um som de descarga. Depois, passos calçados com botas. — Delegado? Eu ia mesmo atrás do senhor — disse Galileu. Coçou a barba grisalha e cheia que cobria todo o pescoço. — Minha menina não voltou para casa. Zétia baixou os olhos e isso bastou. Rosana estava atrás do corpo enorme de Sultão, e ele se agigantou mais um pouco para que ela não visse ou ouvisse nada do delegado. Em seguida virou para trás, cochichou alguma coisa com ela, fechou a porta e ganhou sozinho o lado de fora da casa. — Vamos caminhar um pouco, Delegado. Não tenho certeza se quero ouvir o que tem a dizer. Parece que alguma coisa bem ruim trouxe você até aqui. Sem dizer nada, os dois tornaram a descer as escadas. Sultão tomou a frente e sacou do bolso um cigarro de palha. Zétia notou que ele tremeu um pouco ao acendê-lo. Já estavam perto da porteira da frente quando o dono da casa voltou a falar. — O que aconteceu com ela? O que aconteceu com a minha menina? Ela está machucada? — É um pouco pior que isso, senhor Galileu. O homem virou-se de frente, e Zétia temeu levar um soco. Em vez disso, Galileu sondou sua expressão com dois pequenos olhos azuis. — Ela está...? — Não pudemos fazer nada. Quando meu pessoal encontrou o carro, ela já estava sem vida. O gigante tremeu e se encurvou. Colocou um dos pés na parte de baixo da porteira aberta; mirou na distância. Precisou respirar fundo meia dúzia de vezes para conseguir falar de novo, mas o fez. Sultão era um sobrevivente. Não tinha nada, trabalhou duro, arranjou uma esposa, construiu uma casa; uma vida. — Ela estava com o vagabundo do Roger Minotto? Ele anda atrás da minha filha com um cachorro no cio. Ela estava conversando com a mãe esses dias, contando que não queria mais nada com o porco. Olha delegado, se aquele animal fez alguma coisa com minha princesa, eu quero saber! — terminou gritando. Seu rosto, onde não havia barba, estava vermelho. Os olhos com um excesso d’água. O cigarro esquecido em uma das mãos suadas. — Ainda é cedo para concluir qualquer coisa. — Aonde ela está? — Estamos cuidando de tudo, Galileu. Eu só vim porque queria dar a notícia pessoalmente. Galileu deu um riso tão seco quando o ar da roça. — Não, delegado. Você veio até aqui porque sabe que eu vou arrancar cada gota de sangue daquele moleque. — Eu ainda sou o delegado, Galileu. — O senhor tem filhos, delegado? — Não tive essa sorte. Galileu desencostou de onde estava e estalou o pescoço. — Tente pensar no que faria se a carne de sua carne estivesse morta. MADAME SAFIRA
Estranha foi a noite passada. Pesadelos, sonambulismo e um acesso de calafrios que durou três horas. Safira não esperava que a manhã trouxesse algo pior. Depois de suas leituras, tomava uma xícara de café, ainda sem acreditar no que as cartas disseram. Também havia alimentado suas duas gatas fêmeas (Pupi, uma cinza rajada, e Shaloon, amarela e arisca) e agora acariciava Constantino, um macho preto de olhos verdes, sentada em uma poltrona na sala. A tevê mostrava como o mundo mentia com duas reportagens sobre o novo Brasil e o fim da pobreza. A pobreza não estava no fim porcaria nenhuma, era só abrir a janela para ver isso. Havia uma mesinha de centro entre Safira e a tevê. Em cima da mesa, uma toalha rendada branca e um copo d’água que sempre ficava ali, para renovar as energias da casa (e deixar o ar menos seco, é claro). — Porcaria de televisão — disse Safira, falhando em trocar o canal. Constantino pulou de seu colo, o controle remoto pagou o preço levando duas pancadas de Safira. Madame Safira era velha, de um tempo onde tecnologia e pancadas dependiam uma da outra como um velho depende de suas fraldas. Graças a Deus, ela ainda não estava precisando delas. A imagem ia e vinha, ondulava e deformava sem sair totalmente de sintonia. O som acompanhava e ficava recortado, às vezes distorcendo um pouco. — Se for um dos seus amigos no telhado é bom mandá- lo embora — avisou a Constantino. Grunhau! Dentro da casa as janelas ficavam fechadas, com ou sem clientes. O pessoal da cidade era curioso e toda vez que uma janela ficava aberta alguém se debruçava esperando ver o diabo. Safira sabia que deuses e diabos não perderiam tempo com uma velha vidente. Ela até gostaria disso, um pouco de mágica, de milagres que fosse. Qualquer agitação faria bem aos negócios. Não demorou e a tevê apagou de vez. Foi ao mesmo tempo em que a mesinha do centro mostrou algo muito estranho. — Minha nossa — benzeu-se quando passou a mão direita sobre o copo. Estava fervendo, borbulhando, como se embaixo dele houvesse um fogareiro. Foi quando a luz que vinha do lado de fora sumiu de dentro da casa. Madame Safira olhou para os lados, consciente que algum mal invisível tentava assustá-la. E estava conseguindo, pode apostar que sim. As cortinas farfalharam como asas, ricochetearam, o vento que as movimentava era frio como o sopro da morte. — O que você quer? — perguntou. Sua voz foi e voltou como se a casa estivesse desabitada. Um sorriso baixo e cínico veio em seguida. O cheiro do ar apodreceu. Os três gatos correram e desapareceram pelo corredor que levava aos quartos. Safira não os culpou. O que dizem sobre gatos serem egoístas não é verdade, mas um gato sabe quando não pode com alguém. — Quem é você? — Velha... Depois do sussurro, o lustre de cristais da sala se agitou. Nenhum vento faria aquilo dentro de uma casa fechada, mover um lustre pesado como aquele só poderia ser conseguido com alguém o empurrando. O cheiro ficou pior, o vento explodiu a porta da cozinha contra o batente. — Mostre-se, imundo! — gritou Safira. — Mostre-se! O ventou continuou e estava trazendo coisas com ele. Folhas, sujeira, uma carta de baralho que não por coincidência caiu sobre o colo de Safira. Estava virada, e a vidente se perguntou que revelações traria. O mau cheiro esmoreceu quando ela tocou a carta. As cortinas pararam de reclamar. A tevê piscou duas vezes e voltou ao jornal. Safira arrastou a carta pela barriga e, quando a carta estava entre os seios, a virou para si. Fechou os olhos em uma expressão de pesar. — O enforcado. PAULINE E BOSCO
Para Pauline, uma e meia da tarde significava uma hora de atraso no almoço de seu marido, o rei dos porcos, Bosco. E esse era um grande atraso, que ficaria ainda maior se Elis, dona do mercadinho de hortifrútis Verve-Vida, não acelerasse na cobrança do que ela havia comprado. Elis não tinha pressa, foi devagar que ela chegou aos sessenta e três. — Vai fazer o que com tudo isso? Alimentar um comboio? Mesmo sem querer dizer algo a respeito, seria falta de educação cortar uma conversa. — É pro Bosco. Isso aqui dá pra uma semana. — Para ele e mais quem? — Ele come bem. Quanto eu devo? Elis continuou com seu ritmo bossa-nova e foi pesando os sacos. Espinafre, tomate, alface, cebolinha, mais cebolinhas com cheiro verde, pimentão, mandioquinha, um queijo fresco, duas latas de legumes em conserva, cenouras frescas, dois melões, batatas, agrião, rúcula e um saquinho com jilós. —Vai pagar no cartão? Pauline tirou da bolsinha de mão uma nota de cem toda amassada. Tremeu e a estendeu a Elis. — O que foi no pulso? — Isso aqui? Nada... — Mulher, consegue me explicar o tamanho do nada que fez uma mancha feia dessas? Tá até verde! — Foi o varal. Estava consertando depois que o vento arrebentou. A tonta aqui enrolou a cordinha no pulso enquanto subia a escada para prendê-la na parede. — E o seu marido não ajudou? — O Bosco? Não... Ele não é bom nisso. Varal é coisa de mulher. Elis abortou o assunto. Não adiantaria falar com Pauline. Metade da cidade já havia tentado colocar um pouco de amor próprio dentro daquela toupeira e o máximo que conseguiram foi que Pauline virasse a cara para todo mundo. Bosco sentava a mão nela há muito tempo e Pauline nunca teve boca para nada. Era daquelas que acreditavam merecer as pancadas. — Seria coisa de mulher se ele não usasse o varal para pendurar as cuecas... — Pode me dar o troco agora? Elis entregou três notas e duas moedas e sacudiu a cabeça observando Pauline correr para casa. — Idiota — resmungou. — Tudo bem, Pauline? — Cumprimentou o rapaz dos correios, Tony-Seco. Menos de sessenta quilos e um sorriso irritante. Como alguém podia ser tão feliz trabalhando como uma mula nos correios? Bem, Tony conseguia... Pauline não respondeu e quase foi atropelada quando tentou atravessar a rua. Os cabelos encrespados e secos davam a ela a loucura que ainda não tinha, Pauline era mais dócil que uma ovelha demente. Alguns rapazes (entre eles, um que estava conhecendo em detalhes a segunda cela da delegacia) a chamavam de saco-de-soco, por causa do que passava nas mãos do marido. Bosco trabalhava no matadouro dos Minotto, o único da região. Lá, tudo ainda funcionava à moda antiga (isso significa nada de pistolas de ar, a matança era na base do machado). Antes dos Minotto, ele teve empregos melhores, um deles foi dirigindo o caminhão do lixo. Bosco acabou demitido depois de jogar um dos garis no triturador — rixa de futebol —, por sorte, desligaram a máquina a tempo. Perto da igreja, Pauline parou, fez uma mesura, e fez o sinal da cruz no peito. O diácono da igreja, Camargo, estava na porta, ele sacudiu a cabeça quando viu a pobre criatura derrubando uma das sacolas logo depois da reverência. Olhou para cima como quem pergunta a Deus por que deixou aquela coitada, aquela mula de carga, derrubar tudo. Os melões rolaram pela calçada até caírem na rua. Havia um pouco de água escorrendo, de alguém que lavava a calçada. Os melões acabaram sujos e Pauline os secou contra a camiseta de Nossa Senhora que usava. Deu uma risadinha sem graça para quem estivesse olhando, e seguiu seu caminho. Precisou andar mais quatro quarteirões até chegar aos portões altos da casa número quarenta e cinco. Um cachorro velho a recebeu abanando o rabo e mijando felicidade. Ela disse algo acalentador, passou, e fechou o portão atrás de si. Precisou voltar porque esquecera duas das sacolas na rua. O carro de Bosco (um Del Rey ouro todo fodido) estava na garagem, isso significava que as orações de Pauline para que ele se atrasasse não tinham sido ouvidas. A tevê estava ligada, passando o jornal da tarde. Tevê local. Falava sobre o assassinato de alguém. Ela ficou curiosa, mas não parou para ouvir, tinha menos de dez minutos para colocar algo na mesa. — Oi amor. Bosco não respondeu. Deu um gole em uma lata cerveja e peidou mais alto que a tevê. Tudo bem, ela pensou olhando a silhueta que ocupava a poltrona. Parecia calmo naquela manhã, tão calmo que sequer reclamou do atraso — não imediatamente... “Não é fácil ser uma boa mulher”, era uma das frases preferidas de sua mãe — que Deus a tenha — e também uma das suas. Ela precisava repetir aquela frase dez, vinte vezes, todos os dias. Um pouco mais quando lavava as cuecas meladas de Bosco, cozinhava sua comida e limpava a casa que ele tratava como um chiqueiro. Precisava quase repetir em voz alta nas noites em claro em que Bosco roncava como um porco com edema de glote. Cristo, não era fácil ser uma boa mulher, mas se o homem ao seu lado fosse Galeano Bosco era quase o impossível. Ele pigarreou da sala, e o coração de Pauline deu um salto. Esperou em silêncio que ele invadisse a cozinha e partisse para cima dela. Isso não aconteceu. Depois de se acalmar, Pauline ligou o rádio da cozinha — um Motorola bem velhinho — e sintonizou uma estação de AM que só tocava Roberto Carlos. — Agora sim — sorriu quando ouviu o rei. Eu te amo, disse o rádio, Pauline suspirou, imaginando como seria ouvir aquilo de verdade. Galeano Bosco tinha dito a ela que a amava apenas duas vezes. Uma foi na copa de noventa e quatro, quando o Brasil foi campeão do mundo — nesse dia ele também disse ao cachorro que o amava. A outra foi quando ela impediu que ele se afogasse com um pedaço de frango — Pauline se arrependera disso muitas, muitas vezes. Ficou fácil com o rei. Do refrigerador (um Consul com a lataria pior que a do carro da família), apanhou um pouco do macarrão que sobrou da noite passada. Colocou para esquentar em seu fogão quatro bocas (onde só funcionavam duas) e sacou das compras um macinho de cheiro verde e um pouco de tomate fresco. Disfarçaria direitinho, Bosco odiava comida requentada, mas do jeito que ela faria, ele não notaria. Apanhou uma faca e foi fatiando o tomate e cantarolando, sempre de olho no relógio. Seu homem não podia perder aquele emprego. Era ruim mexer com morte de gado, ele estava mais agressivo, mas o salário compensava. Ganhava o suficiente para dali a cinco anos trocar o carro (prioridade para Bosco) e, com mais cinco, poderiam terminar a casa (pelo menos o banheiro que ainda não tinha revestimento nas paredes). Não demorou vinte minutos. Pratos postos à mesa, cadeiras afastadas, suco de limão (instantâneo de saquinho, ela esqueceu de comprar limões) e uma macarronada que enganaria um perito. Pauline lavou o suor do rosto na pia, secou com o avental e o tirou em seguida, amarrou os cabelos que pareciam uma vassoura excitada. — Vem, Bosco. Tá na mesa. Ouviu um arroto e uma latinha amassada. Ouviu-o tocar o cachorro velho para que não ficasse em seu caminho. No caminho do homem que a tirou de casa prometendo mundos e fundos que hoje pareciam piadas. Ele entrou e sentou. Estava com a camisa escura do matadouro, um tecido grosso e azul, cheirava a suor acumulado. A calça respingada com um pouco de sangue. O boné também era dos Minotto. Vermelho, com um desenho de um boi dando um joinha e sorrindo. Ninguém acreditaria se não o visse de frente. Aquele boné, mais que todo o conjunto, incomodava Pauline. — Tira o boné, amor. Tá calor. Os olhos pesados pararam nos dela. Fixos, dissecantes como adagas afiadas. Bosco trastejou a garganta e tirou a porcaria da cabeça. Seria melhor ter ficado com o maldito boné. Bosco tinha cabelos finos, rareados pelos anos, pretos e lisos. Estavam agora, com o suor e a sujeira, empapados sobre a cabeça, como se estivessem colados. A barba crescia há dois dias e dois riscos cinza de sujeira manchavam o pescoço como um colar. — Tá olhando o quê? — Experimenta o macarrão. Ele espalmou as mãos na mesa. Esticou-se o suficiente para cheirar a panela. Arfou profundamente e voltou para onde estava. Tamborilou os dedos da mão direita sobre a mesa, tão forte que aqueles dedos pareceram cotos de madeira. Bosco era grande, mais de cem quilos, um metro e oitenta e seis, braços que ganharam dinheiro engrossando. Estava com a cabeça baixa. Os olhos na mesa. Pauline pensou se estaria rezando. Ficou feliz com isso, seu homem andava afastado de Deus, quem sabe se voltasse para a igreja ficaria mais calmo... Mais gentil pelo menos. Mas os olhos de Bosco procuraram os dela sem erguer a cabeça. Ele a sacudiu de um lado pro outro. — Achou que eu não perceberia? Pauline engoliu o ar seco do dia. Foi doloroso, mas bem menos do que o que viria a seguir. — O quê, amor? — O quê, amor — ele ironizou com uma voz empapada. — O que você acha, sua besta? Eu estou esperando naquele maldito sofá faz uma hora! O que você fez nesse tempo? Saiu para rua balançando sua bunda seca, foi isso que você fez. E eu ainda dei uma chance, Pauline. Fiquei sentado, assistindo a porra da tevê. Abri uma cerveja e pensei: Ela deve ter seus motivos. — Eu... — Cala essa boca! Eu, porra nenhuma. Você chegou com as sacolas, e eu pensei: Ela vai preparar um almoço decente. Vai fazer isso porque ela sabe que eu ralo feito um filho da puta naquele maldito matadouro para manter essa casa. Minha Pauline sabe que eu teria um futuro se não tivesse feito a imbecilidade de me casar. Mas aí? O que eu vejo? Uma porcaria de macarrão requentado! É isso o que eu mereço? É isso, amorzinho? — Tá gostoso, Bosco. Experimente, pelo menos. Bosco não provou. Saiu da cadeira delicadamente, apanhou a panela e a levou até o nariz de Pauline. Deu um sorriso frouxo. — Vou pedir que faça o mesmo, amorzinho. — O que tem de errado, Bosco? — perguntou, sem entender onde ele queria chegar. Imaginou que ele atiraria tudo pela janela, como já tinha feito quando ela errou o sal do feijão. Bosco estava bem perto quando ela virou seu prato para cima, na esperança que ele a visse comer um pouco e fizesse o mesmo. Como um garotinho. Mas aquele era um garotinho mau, bem mau mesmo. Ele apanhou a panela e a inverteu de uma vez, virou toda a panela em cima de Pauline. Ela fungou, sentindo o cheiro sufocante do molho de macarrão. O choque foi tão grande, a surpresa com o que aquele homem terrível era capaz de fazer, que ela não se moveu. Continuou parada, sentindo a massa queimar o topo de sua cabeça, seu rosto, seus ombros. Bosco ria. — Tá gostoso, Pauline? Por que não come essa merda toda? Pauline deixou escapar um soluço. Sabia que fazer isso irritaria mais seu Bosco, mas chorar era o que ainda tinha de dignidade. Faria o quê? O deixaria? Para quê? Viveria como? Seus pais estavam mortos, ela não tinha família na cidade, a polícia não passava de um projeto naquele fim de mundo. — Não... — tentou dizer. Bosco então apanhou a jarra de suco e derramou sobre ela. Pauline pensou nas facas da gaveta da pia. Sempre pensava nisso e em outras coisas terríveis que iam embora quando se acalmava. E ela era a culpada, ela se atrasou, ela requentou a comida, ela não era uma boa mulher. — Olha só o que me obrigou a fazer! — Seu monstro — ela disse bem baixinho. Então Bosco a socou no olho direito e a jogou no chão. Deixou a cozinha em seguida. Apanhou a chave do carro e saiu. Os pneus cantaram por dois quarteirões. Foi o tempo que Pauline levou para sair de onde estava e começar a limpar tudo, parcialmente feliz por não ter apanhado feio. Talvez merecesse aquilo tudo. Mesmo que fosse por ser burra demais. Seu rosto ardia. ALAN SÉRPIA
O dia a dia de um garoto com a popularidade de um lagarto gripado nunca é fácil, mas durante as aulas e entre quatro paredes, é suportável. Existe certa ordem quando o chamado professor veste um terno ou um vestido cinza — no caso de uma professora bonita como a senhorita Shirley que dá aulas de inglês — e comanda o bando de babuínos. Mas oh, rapaz, para alguém que não é aceito no bando, a aula de educação física é o mais próximo que se pode chegar do inferno. — Olha só esse babaca — disse Murilo, um dos garotos mais altos da turma da sexta série C. Não só o mais alto, mas também o mais velho. Murilo entrara tarde na escola e só continuava ali porque seu pai era importante. Seu pai não o detestava, mas parecia não dar a mínima para ele. O importante na vida de Orlando Torque era a cadeira de vereador, quem sabe a de prefeito em um futuro muito próximo. Alan sabia que o maior babaca ali era Murilo, mas continuou quieto, olhando para os tênis brancos e evitando cruzar os olhos com os capitães dos dois times. Murilo Torque era um deles, Anderson Rocha, o outro. Os dois estavam encarregados de formar os times enquanto professor Juliano (ou China como o chamavam apesar dele ser descendentes de portugueses) fumava um cigarro. Ele não se importava em fazer isso na frente dos meninos, mas não incentivava, dizia que o cigarro era feito da bosta de Satanás. Era a vez de Anderson escolher e Alan esperava não ser escolhido de novo. E que todos fossem para o inferno! Ele não gostava de futebol — ao contrário do resto dos homens do país que passavam o sábado e o domingo inteiros bebendo cerveja e procurando campeonatos que ainda desconheciam. Para Alan, mais de vinte marmanjos correndo atrás de uma bola era uma atração de circo que perdera a graça, pura perda de tempo. Coitado. Infelizmente, tinha nascido brasileiro e, de quebra, em uma cidadezinha de bosta chamada Nova Enoque. Olhou para o lado. Quem ainda estava disponível para os times eram o Fumaça (e não estava sobrando porque era preto e sim porque tinha um braço só — mesmo sendo o futebol um jogo para os pés ninguém nunca o escolhia) e o Rolha (obviamente o garoto mais gordo da turma, aos quinze, tinha mais seios que qualquer menina da sexta série). Oh, e também tinha o Fimose — o CDF da sala —, filho da professora Ruth de história e detestado pela escola toda. Escolheram o Fimose primeiro. — Não acredito — ele mesmo disse. Foi para o lado de Anderson e estava tão feliz que estendeu a mão para agradecer. Anderson o fritou com os olhos e deixou sua mão parada no ar. Fimose baixou a cabeça e foi para trás dos caras, catalogando novos xingamentos. — Sua vez — disse Anderson. Murilo subiu a parte de baixo dos olhos e escaneou suas escolhas. — Merda ou bosta... — zoou. Anderson deu uma gargalhada, mostrou o dedo do meio para o trio-derrota à sua frente. Murilo riu com ele. Estavam em times separados, se provocariam, xingariam suas mães, mas depois do apito final iriam juntos para casa. Ambos moravam no mesmo condomínio, o único da cidade. — Quero o Baleia. Rolha subiu o short de nylon e foi para outro lado da linha. Enfim, Fumaça ou Alan. Alan rezou para que não ficasse por último pelo menos uma vez na vida. Poxa vida, não era porque o Fumaça não tinha um dos braços ou porque ele era preto, o problema é que ele era ruim de verdade, o Fumaça quando conseguia chutar, errava o lado do campo. — Me dá o aleijado — disse Anderson. Fumaça comemorou silenciosamente. Seus olhos disseram algo como: “Quem é o pior agora? Eu pelo menos tenho uma desculpa para ser detestado, evitado, ninguém gosta de um coto, mas e você? Qual seu problema, garotinho?” O problema com Alan é que, mesmo de boca fechada, ele era melhor que todo mundo ali — e eles sabiam disso. Passou sorrindo por Alan e foi para a turma de Anderson. Nesse ponto todos os garotos estavam atrás da linha laranja do meio do campo, do outro lado, Alan. Ele teria rompido o concreto do chão e afundado se sua cabeça fosse mais dura. Os garotos riam. Em um último insulto, antes que o professor Juliano voltasse de seu cigarro, eles tiraram par ou ímpar, quem perdesse levava Alan. Para ele, a aula já tinha terminado ali mesmo, mas sem essa... Ele ainda teria sessenta minutos de humilhação, provocação e revolta. — Tá, nós ficamos com o Pé de Frango — disse Murilo. Passaria por ele calado. O que poderia dizer? Mas Murilo o puxou pelo braço quando Alan chegou mais perto. — Se você sabe o que é bom, fica longe da bola. Alan concordou com a cabeça e foi para perto de Fimose. O garoto — Ruan, de batismo — ainda se arriscava e falava com ele, só mais uma prova de que os nerds não pensam direito antes dos quinze anos. Alan não queria conversa. Seu estômago estava fundo e revirado. Por que ele sempre tinha que passar por aquilo? Por que ninguém nunca dava uma mãozinha? E por que pagavam um salário para alguém como o professor Juliano? Ele deveria tomar conta dos alunos e não de um maço de cigarros Plaza. — Muito bem — disse o professor. O time do Anderson joga sem camisa. Rolha soltou um suspiro aliviado, tão alto que todo mundo ouviu. Estava feliz por não precisar balançar suas tetas moles naquela manhã escaldante. Depois do apito de Juliano, o jogo. Alan pensando em tudo, menos naquela partida estúpida. Pensava principalmente em Paloma, a menina mais bonita da escola, tão bonita que nem sabia que ele existia. E ninguém iria culpá-la por isso também. Quando se é um furúnculo social como Alan, se aprende a lidar com esse tipo de... Casualidade. O primeiro time a fazer o gol foi o de Alan, ele participou da comemoração, afinal de contas, estava ganhando, um grande acontecimento! Murilo o encarou com raiva, Alan recolheu os braços que comandavam as palmas. Uma verruga não merece comemorar um gol. Não demorou muito e, depois de uma cagada de Fumaça (ok, Murilo mirou no braço fantasma e fumaça rodopiou deixando uma avenida até o gol), um golaço, um torpedo daqueles, sem chances para o goleiro. Anderson acabou empatando com dois gols. Depois, o jogo continuou sem novos gols. O suor escorria dos corpos e, conforme o tempo passava, a rivalidade entre Murilo e Anderson se espalhava entre seus times. Houve duas brigas. Em uma delas, alguém empurrou o Rolha no chão. Ele ralou o braço e todo mundo riu, inclusive Alan que se arrependeu logo depois. Quem era ele para rir de alguém naquela quadra? Ele era o último, o rejeitado, o esfíncter mais mal cheiroso do universo conhecido. Ele era Alan Sérpia. — Toca pra mim! — pediu Murilo. Dez minutos para o final e Alan mantinha a bola nos pés sem saber direito o que fazer com ela. Saber, sabia, mas seus músculos não se comportavam como deveriam. Ele calculava a rota, a força, o ângulo de subida, e quando chutava era aquela coisa torta, bêbada. Era sempre óbvio, ridículo e deprimente. Mas se ele acertasse, oh rapaz, se ele acertasse realmente ganharia uns pontos com Murilo. Ele era o mais forte da sala. Anderson era seu amigo e tudo mais, mas era o segundo no comando. O vice. Depois de meter a língua para fora de tanto caprichar na preparação, Alan estava suado. Ele era branco, bem branco, e agora estava vermelho. Coisa de italianos, pelo menos seu avô narigudo sempre dizia isso. — Toca a bola, pô! — gritou Murilo. E ele tocou! Como sempre, como um leproso que perdeu metade dos dedos. O chute não chegou nem perto de Murilo, mas caiu direto nos pés de Anderson. Ele correu e fez fila. Passou por tudo mundo. O último em seu caminho era de novo Alan. Se aquela não era a última oportunidade de salvar o dia, ele era um alce vermelho! Esperou a hora certa, teria que fazer falta, e em cima de Anderson valentão, mas que se fodessem! Se ele parasse aquele ataque, teria uma chance mínima de sair de cabeça erguida da quadra. — Segura ele! — gritou outro dos garotos do time adversário. Fabiano, um cara legal. É... Outro cara legal que nunca seria legal com ele. Não com Alan cabeça de marimbondo, o Alan, filhinho de mamãe. Anderson corria e Alan entrou em seu caminho. Anderson deu um chapéu, e Alan ficou olhando para cima... — Humilhou agora! — gritou Fimose. Logo o Fimose que deveria ser seu amigo. Era demais. Mas também era demais levar um chapéu. Alan ainda se entortou todo para acompanhar a trajetória da bola. Caiu no processo e meteu o cotovelo no chão. Estava deitado quando viu Anderson entrando com bola e tudo no gol. O vice comemorou, o time todo comemorou. Rolha balançou sua pança enorme e lamentou. Juliano apitou em seguida, fim de jogo. A bola foi para cima com um chute de Anderson. Ele passou por Alan e agradeceu: — Valeu, Zé-Roela. Os garotos estavam suados, cheirando bunda suja, mas enquanto todos iam para o banheiro, Murilo vinha na direção de Alan. Estava com a bola de futsal nas mãos. Alan nutria a esperança vazia que ele estendesse a mão e dissesse: “Ok, cara. Eu sei que você fez o melhor que pôde”. Ahn-ham... Quem sabe em outro mundo. Alan levantou do chão. — Foi mal... — Foi mesmo, seu bicha — disse Murilo. Arremessou a bola com tudo contra ele. Alan sentiu o couro duro deformando seu rosto. Uma dor pontuda brotou em seu cérebro, a dor parecia nascer do nariz, talvez estivesse quebrado. A boca também doía, a maldita bola era um soco do Mike Tyson (oh, sim, quando ele ainda dava bons socos...). Alan encontrou o chão antes que a bola o fizesse e ouviu professor Juliano gritar de longe: — Tá tudo bem aí? Com o cu na mão, Murilo saiu dali depressa e deixou Alan no chão. Alan tateou o nariz. — Porcaria. — Estava sangrando bastante e não dava para respirar direito. Pingos de sangue molhavam seu peito descamisado. Ele estava zonzo, mas conseguiu chegar até a camiseta (estava em cima da grade que cercava a quadra). Alguém tinha limpado o suor nela, estava fedendo. Estava fedendo bunda também. Sentindo cheiro de encrenca (ninguém quer um professor displicente, mesmo em uma escola xexelenta como a municipal), Juliano correu até Alan. — Deixa eu ver seu rosto, o que aconteceu? — Apanhou o queixo de Alan e o ergueu, tentando enxergar não sei o quê dentro do nariz que já começava a parecer uma batata. — O de sempre, professor. Mas o senhor não precisa fazer nada. Ninguém nunca faz nada. — Podemos falar com a direção... — Vai piorar se fizer isso. O diretor também não quer saber. Posso ir pra casa? — Sangrando assim? — Não tá doendo. Se alguém perguntar, digo que fui atropelado. — Vou conversar com o Murilo, foi ele quem fez isso. Eu vi. Alan sorriu com um pouco de sangue nos dentes. Graças a Deus, era do nariz. — E o senhor vai me escoltar para casa a semana toda? Juliano não respondeu. — Foi o que eu pensei — disse Alan, valente de tanta vergonha. Alguns garotos haviam terminado o banho e viram quando Alan saiu pela porta da quadra. Eles imitaram galinhas. LOBO, PÊRA E JOTA
Eles estavam no porão. Um dos únicos da cidade e ficava bem embaixo da casa de Pêra. O rádio tocava Mama I’m Comming Home de Ozzy Osbourne, e Lobo enfiava o rosto em uma marica enorme e cheia de fumaça de maconha pairando sobre um lago de vinho. — Brother, isso é bom demais — disse. Tombou a cabeça para trás e sentiu o couro velho do sofá resfriar sua nuca. — Vai devagar com isso — disse Jota. Puxou os cabelos sem corte para trás e se jogou no sofá. Em um canto perto da tevê, Pêra arranhava um violão imitando Zack Wilde de um jeito absolutamente ridículo. Língua para fora, olhos orgásticos, movimentos semiparalíticos com os joelhos. — Brother — repetiu Lobo, depois de outra puxada. Os olhos derretendo, vermelhos. — Tava aqui pensando... — Lá vem bosta — disse Pêra, esquecendo o violão. — Deixa o maluco falar — Jota. Lobo perguntou: — Lembra da Mi? — Qual Mi? Milena, Michele ou a Mirtes Puta? — Não, Pêra, tava pensando na Miriam, na senhora Miriam. Lobo conseguir pensar com tanta maconha na cabeça era realmente incrível, mas pensar na Prefeita Miriam? Era impossível estabelecer uma correlação entre os pensamentos de Lobo e a Prefeita; eram como estrume e perfume. — Mata minha curiosidade, Lobo — Jota disse, apanhando para si a marica de quase um metro de comprimento. Ele mesmo tinha engenhado a peça. Depois mandou um vidraceiro da cidade, que também gostava de fumo — Ernesto Vidreiro —, fazer a Marica. Custou caro, mas como tudo foi pago no baseado, não ficou tão caro assim (não depois de misturar bosta de vaca na maconha...). — Imagina só a prefeita. Imagina só a prefeita Miriam... peladinha... — Lobo respondeu como se falasse da Sasha Grey. Jota cuspiu a fumaça e engatou uma tosse daquelas. Os olhos querendo saltar do rosto. O riso saindo na marra, raspando na garganta como uma lixa d’água. — Como é que é?! — confirmou Pêra. Ele tinha mesmo ouvido aquilo? Lobo sussurrou: — Imagina a prefeita Miriam pe-la-di-nha. — Isso aí é só maconha mesmo? Pêra não conseguia acreditar e, pelo visto, estava bem mais difícil para Jota — ele estava praticamente se mijando de rir. Deu dois tapas gentis nos ombros de Lobo que continuava no mundo encantado das prefeitas peladinhas. A marica foi parar nas mãos de Pêra que ainda achava impossível imaginar a prefeita Miriam Guerra sem roupa. Só pararam de rir quando o último suspiro da melhor erva prensada da cidade saiu pelo vidro da marica. Estavam chapados, mas para aqueles filhos-da-mãe era pouco; ainda faltava cerveja em seus neurônios. Não demoraria para alguém lembrar disso. O porão tinha sido a melhor ideia de todos eles nos seus vinte e poucos anos de vida. Era escuro, tinha cheiro de peido, um sofá velho e uma televisão que só sintonizava a Record, mas que se dane. Ali eles ainda viviam nos anos setenta, e em Amsterdã. A iluminação vinha de uma lâmpada de sessenta watts pendurada no teto com uma fiação que devia ter uns quarenta anos. A mesma idade da casa de Pêra. Seus pais haviam ido embora da cidade, e ele ficou para trás. Ninguém sabia exatamente se ele tinha escolhido isso ou se tinha sido abandonado, e menos gente ainda se importava em perguntar. Pêra e os outros dois caras no porão eram os futuros abastecedores de carros e serventes de pedreiro da cidade, isso se conseguissem escapar da cadeia. — E aí, vamos fazer ou não? — perguntou Jota. Não era líder de muita coisa, mas entre os três, era o único com metade dos neurônios vivos. E Jota tinha certa nobreza no olhar, costumava ser sincero entre os seus. — Sei não, cara. Acho que vai dar merda... — disse Pêra. — Você sempre acha que vai dar merda — disse Lobo (o senhor peladinha). — E eu sempre acerto. Já pegou a grana? — perguntou para Jota. — O adiantamento tá na mão do Crocodilo. Ele vai transformar tudo em farinha. — Farinha, mano? A gente não tinha combinado erva? — indagou Pêra. Lobo não se importava com isso. Por ele, podiam comprar até combustível de foguete se alguém dissesse que dava barato. — Farinha dá mais dinheiro — respondeu Jota. — Quer morrer pobre nesse buraco de merda? Jota ficava bem puto quando alguém questionava suas ideias. Ele era bom nos negócios, daqueles três, era o único a ter chegado ao terceiro colegial. E ele tinha até trabalhado em um banco (por seis meses, depois o pegaram metendo a mão no depósito mensal do Rotary Club). A verdade sobre Jota é que ficaria rico ou levaria um tiro tentando, mas era mais provável que ficasse rico. Aquele filho da mãe era esperto (e ficou bem mais esperto depois do episódio do banco). Sua única burrice foi voltar para a cidade. Jota e sua mãe desapareceram de Nova Enoque quando ele era bem pequeno. Ele tinha treze quando voltaram. Fazia uns cinco anos que Joana estava morta. E para onde ele poderia ter ido depois disso? Que soubesse, Jota não tinha família em Nova Enoque ou em qualquer lugar. O mais próximo que ele tinha de uma família era aquela cidade. — Eu não penso em morrer — disse Pêra. — Vamos seguir o plano. Saíram do porão para a parte de cima da casa. Conseguia feder um pouco mais que o resto. Era um mofo misturado com suor e gordura, o pesadelo da mãe de qualquer um. Talvez não fosse o da mãe de Lobo, mas ela perdera parte do olfato uns dez anos antes, depois de dormir bêbada e atear fogo na casa. Um vizinho salvou a vida de Nora, mas ela se ferrou grandão, como diziam os caras. Nora Lobo queimou um pedação das costas. Oh, e começou a curtir drogas. O dia lá fora obrigou os três a sacarem seus óculos escuros comprados em um camelô da praça. Legitimas réplicas especializadas em queimar retinas, mas que todo mundo fosse para o inferno. Eles ficavam mui-machos com aquelas porcarias nos olhos. O sol não brilhava mais, mas o calor insano ainda fritava o asfalto. A secura do ar fazendo o dia ainda pior ao que havia amanhecido. O carro de Jota — um Maverick verde com motor de Santana Quantum — estava do lado de fora, embaixo de uma árvore pata-de- vaca e todo cagado pelos pardais. Estava ali desde a noite passada. Os caras às vezes dormiam na casa de Pêra que era algum tipo de quartel general da vagabundice. — Que horas são? — Três e meia — Pêra respondeu a Lobo. — A gente almoçou? Jota riu de novo. Era foda, muito foda mesmo ficar ao lado de Lobo e não rir. Ele era um desses eternos adolescentes retardados que de tão gente boa tem um desconto prêmio em suas mancadas. Lobo não era mau, Deus sabe que ele não conseguiria nem pensar nisso, mas era bobo. E um bobo no meio de um monte de gente esperta precisa se adaptar se não quiser se ferrar. — Não, mano, a gente ficou chapado a manhã toda — Jota explicou. Pêra completou, depois de tombar o banco da frente para que Lobo entrasse no carro. — E você ficou pensando na prefeita peladinha. — Eu ainda tô pensando nisso. Começaram a rir de novo, o escapamento do Maverick verde soltou uma explosão pirotécnica, e eles seguiram e frente. Para a praça do comício.
CHEGARAM VINTE minutos depois. Quando desceram do carro (depois de Lobo ter peidado lá dentro), todos estavam com um cigarro na boca, fazendo cara de James Dean e azarando o máximo de garotas possível. Não eram muitas e, além disso, nenhuma garota razoavelmente bonita sairia de casa para ver um comício de Orlando Torque. Mesmo assim a praça estava cheia. Algodão doce, carrinho de pipoca, o furgão da tevê local, o rádio, até a prefeita Miriam-Peladinha estava na multidão com seus dois gorilas-segurança. Miriam estava diferente naquela tarde. Usava seu terninho azul marinho, sua saia apertando o bumbum conservado de cinquenta e quatro anos. Mastigava um chiclete tentando dissipar a ansiedade. Em cima do palanque estava Torque. Gordo, barrigudo, careca e imponente. O álter ego da política seminal da cidade. Miriam tinha sido eleita, mas Nova Enoque ainda estava nas mãos daquele filho da mãe. — Cadê o carro dele? — perguntou Lobo. — Esconde essa merda, mano! Pelo amor de Deus! Quer ser preso? — Jota. — De novo? Eu não? — Me dá isso aqui — disse Pêra, apanhando a KS cheia de gasolina das mãos de Lobo. Enfiou por dentro da jaqueta jeans, que usava apesar daquele calor de bosta. Contudo, ninguém parecia notar. Se Nova Enoque fosse atacada por formigas mutantes estupradoras de freiras demoraria meses para alguém perceber. — Tá ali. Tá logo ali o carro do porco imundo — apontou Jota. O Subaru importado de Torque estava perto do pessoal da tevê (do carro deles, o pessoal da tevê estava perto do palanque, tentando captar tudo o que pudessem distorcer ou piorar na edição). — Dá até dó do carro. Nem nos seus sonhos mais punheteiros, Lobo teria um daqueles. O máximo que almejava da vida em termos automobilísticos era um Corcel II, ou um fusca com uma pintura que não parecesse um quadro cubista. Caminharam até uns dez metros do carro, então se misturaram com a pequena aglomeração do pessoal carismático da igreja. Estavam todos com camisetas de apoio ao safado do Orlando. As camisetas tinham uma foto dele estampada e embaixo: A voz de Deus na política. Coitado de Deus, se Deus soubesse o que faziam com seu nome em Nova Enoque mandaria outro dilúvio (com vômito em vez de água). Lobo parou atrás de uma garota loira, pernas roliças escapando de um vestido curto; dezoito anos, no máximo. Chegou mais perto e cheirou seu cabelo, a mãe da garota olhou feio para ele e perguntou se ele estava no cio. Lobo ergueu os ombros. — Para com isso, pô. Agora não! — disse Jota. Esperou que a garota e a mãe se afastassem e analisou o contexto. Perto deles, uns doze metros à frente, tinha gente da polícia. Do jeito que estavam organizados e atentos, os três não teriam a menor chance. Precisavam de uma distração. Felizmente, quem tem Pêra e Lobo ao seu lado tem um estoque praticamente eterno desse material. Juntos, eram mais instáveis que dinamite velha. — Tá pensando em quê? — Lobo perguntou antes da hora. — Não é na prefeita peladinha — disse Pêra. Lobo soltou uma gargalhada nojenta que chamou a atenção de todo mundo. Riu tão esganado que os policiais à frente olharam procurando alguém tendo um ataque. — Vai foder com tudo desse jeito! — disse Jota. Prefeita Miriam deu uma olhada de soslaio para ele, Lobo e Pêra nem repararam, estavam absorvidos por Orlando Torque, que fazia uma dancinha dizendo que a oposição não conseguiria ferrar com ele. O pessoal da igreja ficou meio assustado, dois papais taparam os ouvidos virgens das filhas, mas Orlando doava uma grana forte para a congregação carismática, então ele podia falar sobre ferração à vontade. — Preciso que vocês dois comecem uma briga — disse Jota. — Ah! Tá zoando né? — Lobo perguntou. Deus do céu, ele às vezes chegava tão perto da incapacidade mental que Jota tinha vontade de socá-lo — e às vezes socava mesmo. — Não. Sem zoeira, Lobo. Quero que vocês vão lá no meio, bem longe daqui, e arrumem uma confusão um com o outro. Finjam que estão brigando, e se alguém se meter, melhor ainda. Só não deem mole pra polícia, senão eles fodem a gente. — Sei não, tá cheio de polícia aqui, eles vão prender eu e o gênio aqui. — Ei! Tá me chamando de burro? — perguntou Lobo. — Não, gênio. — É a mesma coisa! — Lobo protestou. Jota dispensou o raciocínio ilógico e acelerou o plano. Não dava para discutir com o cérebro de Lobo. São ou chapado, era impossível. — Escuta, Lobo. Você e o Pêra começam uma treta. Quando a polícia vazar atrás de vocês, eu resolvo com o carro do Orlando Porco. O povo vai ficar insano e quando eu terminar com o carro, ninguém vai ligar para briguinha de vocês. — Sei não... — disse Pêra. — Já deixei vocês na mão? — Umas mil vezes — disse Lobo. Riu em seguida. “Que se foda”, ele disse e saiu na frente. Pêra foi atrás, antes que ele começasse uma briga com ele mesmo. O SUBARU DE ORLANDO TORQUE
Pêra só conseguiu alcançar Lobo no meio da aglomeração. Os olhos do povo estavam neles desde que saíram de perto de Jota. — Que monte de gente escrota — resmungou Pêra um pouco antes de Lobo parar de andar. Como eles diziam: A Favela, o pessoal pobre de Nova Enoque. Eles não eram simplesmente pobres, eram burros e desgraçados, gente que não sairia do lugar nem que um caminhão de estrume estivesse vindo na direção contrária. Pêra também era pobre, mas não aceitava a realidade na qual estava inserido. Ele se dopava, fazia merda e enchia a cara de porcarias, mas não era como aqueles animais de curro. Nisso, ele, Jota e o sem noção que olhava para ele esperando um soco eram iguais, três doidos que só queriam sair dali. Nova Enoque era mesmo um curral e quando eles menos percebessem estariam com uma marreta no crânio, sem nunca ter pensado em pular a cerca. — Tá falando o que aí, mano? — gritou Lobo. Deu duas pancadas fortes contra a própria cabeça careca. O pessoal mais próximo (um deles, o diretor quarentão do colégio, Antony-Cabeça-De-Cebola) saiu de perto com o grito. Lobo parecia desnorteado, os olhos esbugalhados e um cheiro de pinga do caramba. Bebeu uns goles de amarelinha dentro do carro. Para Lobo, não bastava erva e cerveja, ele tinha que completar com pinga. — Vai se fudê, seu fresco! — retribuiu Pêra. Lobo chegou mais perto e o empurrou. — Ah é?! — perguntou Lobo. O doente estava levando a encenação a outro nível. Ele estava mesmo brigando! — Pega leve — disse Pêra, meio que cochichando. PLAFT! Aquele filho da mãe doente. Lobo tinha mesmo enfiado um tabefe no rosto de Pêra. Os dedos ficaram marcados, e Lobo fez de novo aquilo de bater contra a própria cabeça. Pêra ficou puto e apanhou um monte de terra e grama do chão. Jogou no rosto de Lobo. Ele começou a gritar: — Tô cego! Você me cegou! Seu monte de bosta! Longe dali, Jota via os homens da polícia trocando Q.A.P.’s e Q.R.U.’s em seus rádios de mil novecentos e sessenta. A polícia de Nova Enoque estava parada no tempo, a polícia, a saia das garotas, os salários, a única coisa que evoluía por ali era a safadeza dos velhos. Que se danassem todos, era graças a safadeza deles que Jota e seus dois malucos estavam sendo pagos. Jota esperou a panela esquentar mais um pouco e recuou para perto do Subaru. — Dá até dó — disse baixinho, arrancando a garrafa cheia de gasolina que agora estava perto do seu traseiro. Encharcou um tecido que envolvia a garrafa, deixou bem ensopado mesmo, e colocou dentro do escapamento. Depois acrescentou um limão, de modo que ficasse vedado, apenas um fio de tecido para fora, um pavio. Parte da gasolina fora derramada sobre o carro, principalmente no capô. Ninguém reparou nele, exatamente como esperava. A simulação de Pêra e Lobo foi tão bem-feita que até ele acreditou. Isso não era nada bom. Lobo era meio sem noção e se tomasse uma prensa da polícia abriria o bico. Também abriria o bico se uma garota bonita perguntasse... tá certo, ele era mesmo uma merda em guardar segredos. Uma olhada ao redor, outra na praça, e a caixa de fósforos pinheiro (metade dela cheia) esperando para fazer seu trabalho. — E fogo... — disse bem baixinho quando incendiou a caixa. Depois a lançou sobre o carro e andou para o meio da praça, mesclando-se a multidão. Nenhum policial notou, tampouco os políticos rabo-preso que apoiavam o vereador Torque. — Que cheiro é esse? — perguntou Sara, sobrinha do diretor da escola. Mariana, sua melhor amiga e filha do diretor do único hospital da cidade (Tulio assunção), também sentiu e fez uma careta. — Parece gasolina... Quando as duas olharam na direção daquele fedor estranho, muita gente fazia o mesmo. No começo ninguém gritou ou saiu correndo. Assistir um carro queimando no meio de um comício já seria interessante, mas o carro do safado do Torque? Era uma espécie se prêmio de consolação para quem perdeu a tarde ouvindo desculpas esfarrapadas. Houve um golpe seco no sistema de som, POF! Depois microfonia. Só depois desses dois ou três segundos dramáticos, o pessoal que assistia a briga na praça ouviu em alto e bom som: — O que fizeram com meu carro?! Quem não estava acordado também prestou atenção depois dessa. Torque desceu correndo do palanque, empurrando cada puxa-saco em seu caminho e atingindo com sua barriga enorme quem insistisse em ficar. Estava vermelho quando desceu os seis degraus de madeira. Um zum-zum-zum mocho acompanhava seus passos, todos cochichando se aquilo estava acontecendo de verdade. — Chamem os bombeiros! — gritou. Seu segurança de dois metros de altura, negro e com uma careca reluzente, tentou detê-lo e o segurou pelo braço. — Chefe, o carro vai explodir, é melhor não chegar perto. Torque o derreteu com os olhos. — Melhor tirar essa mão de mim, filho. Ou quem vai explodir sou eu. No meio da praça, a confusão entre Pêra e Lobo perdia a graça, e olha que os dois estavam se atracando no chão como duas minhocas enroscadas. A única pessoa que ainda prestava atenção neles era um policial, mas com o rádio berrando, ele também desistiu e partiu na direção contrária. Pêra saiu correndo quando percebeu a nova movimentação. Para sua casa. Lobo saiu do chão e ficou falando alto que ninguém mexia com ele, que ele era o cara, e que se mais alguém estivesse interessado em brigar, que tomasse um lugar na fila. Lobo era tão sem noção, que quando Jota chegou perto dele para arrastá-lo dali antes que entregasse o plano para se vangloriar, estava flertando com a prefeita. Estava fazendo cara de sexo que era basicamente os olhos entreabertos, um biquinho, e a mão perto do saco. Uma vergonha. — Vai ser preso desse jeito; ‘bora Lobo! Ele obedeceu, mas antes mandou um beijo para a prefeita. Claro que ele a imaginava. Ela era coroa, mas ainda dava um caldo, ainda mais se estivesse como ele a queria: Pe-la-di-nha. Perto da locadora falida Horse Magic, encontraram Pêra. Lobo olhou feio para ele, provando que aquela geleia que ele guardava dentro do crânio não chegava mesmo a ser um cérebro. Pêra estava branco, olhando para todos os lados, gaguejou quando tentou perguntar sobre o que aconteceu na praça, depois de ter saído. — Pegou fogo que foi uma beleza! Ninguém percebeu a gente. — E se eles desconfiarem? — perguntou Pêra. Ele era cagão, naturalmente cagão. — Vocês confirmam a história da briga. — Que briga? — Lobo perguntou. — A briga de vocês dois, pombas! Agorinha na praça! — gritou Jota. — Ah tá, essa briga. Pêra sacudiu a cabeça se perguntando como alguém podia ser tão besta. Estava pronto para dizer em voz alta e rir da cara de Lobo quando o silêncio morno da tarde foi pro beleléu. Uma explosão sacudiu os cabelos da nuca dos três, os carros na rua pararam de andar, e o pessoal do boteco que ficava do outro lado dos canteiros saiu para olhar. Devem ter imaginado que era o fim do mundo. Dois deles se benziam, e outro havia derrubado a garrafa de cerveja cheinha no chão (uma grande perda, sem dúvida). — Puta merda! — disse Lobo. — Acha que foi o carro? — Pêra. — É melhor cairmos fora daqui antes que chegue alguém. — E o dinheiro? Eu quero minha parte — disse Lobo. Podia ser um pouco lento, não se importar muito com suas roupas, ou em tomar banho pelo menos duas vezes por semana, mas Lobo gostava de dinheiro. Não do dinheiro em si, isso para ele não fazia diferença. Mas Lobo era um tipo de viciado em sexo e para isso ele precisava da grana (ninguém em Nova Enoque transaria com ele de graça, não do sexo feminino). — Eu não peguei a grana toda. Mas já tá certo; peguei trinta por cento e joguei na mão do Crocodilo. — E quanto é isso? — É pouco, Lobo, o resto eu pego amanhã e levo no porão pra gente investir. — E a minha parte? — Mano, ele acabou de explicar! — disse Pêra. — A minha parte eu quero em dinheiro. — Eu sei, Lobo. Não viaja, tá? Vamos investir em farinha, mas vai sobrar uma grana pra Madame Paraíso. Um sorriso ensolarado nasceu entre as espinhas do rosto de Lobo, o Madame Paraíso era o prostíbulo com a melhor mercadoria da cidade. Lobo era tão popular por lá que as meninas o chamavam de namorado. E ele merecia essa honra, Lobo sozinho tinha gastado mais ali que o time de futebol da cidade quando ganharam o campeonato do ano passado. E ele tinha carisma. Ninguém no Madame Paraíso tratava as meninas como gente. Tratavam como lixo, no máximo como um tomate de supermercado em que todo mundo já meteu a mão. Lobo não era assim, ele realmente gostava delas. E elas, dele. Não davam de graça, mas gostavam. — Ah-ah! — riu alto demais de novo, como um retardado com cólica renal. O pessoal do bar, que se dividia entre beber cerveja e prestar atenção na explosão que acabaram de ouvir, também prestou atenção em Lobo. Aquela era a deixa para caírem fora antes que desse merda (mais merda).
NA PRAÇA, Orlando Torque usava o celular para brigar com alguém da seguradora. Era um homem prático e o que o preocupava agora era perder dinheiro. Ao lado dele, a prefeita fazia uma cara de indigestão e repetia a pergunta de como uma fatalidade daquelas era possível. Chegou a perguntar a ele, seu inimigo declarado, se aquilo não podia ser algum tipo de atentado. Orlando torceu a boca e continuou com o telefone que era bem mais útil que aquela capivara bunduda da prefeita Miriam. O Subaru queimando a vinte metros de distância. As chamas chegaram perto do carrinho de pipoca e por muito pouco não incendiaram a carcaça velha de Dito, seu dono, que formou dois filhos na faculdade de direito pilotando aquela geringonça. Quando Orlando avistou a viatura de Zétia, parou de dar atenção ao celular. De qualquer jeito ele recuperaria aquele dinheiro, se não pudesse cobrar da seguradora faria a prefeitura pagar. Diria que fora vítima da péssima segurança da cidade, ou que fora mesmo vítima de um atentado. E outra, dependendo de como a história repercutisse, um carro queimado seria útil para limpar toda a lama da história da merenda. Mesmo assim ainda estava curioso, e nisso o verminoso do delegado podia ajudar. Zétia desceu do carro e coçou a cabeça, ouvindo o que dois dos seus homens tinham a dizer sobre o carro que queimava ao lado do dono. Orlando caprichou na cara de coitadinho. — O que vamos fazer sobre isso? — perguntou assim que o delegado chegou perto. — Boa tarde — disse Zétia. — Notou algo suspeito, vereador? — Se eu tivesse visto, meu carro estaria inteiro. — O segurança que estava por perto de novo, riu. Zétia fritou-o com os olhos e explicou. — O senhor estava no palanque, certo? Tinha um ponto de vista privilegiado dali de cima. Não notou nada suspeito? — Dois babacas, dois marginais daqui, você os conhece, um deles é o Filho do Arlindo Pêra que caiu fora da cidade. Eles estavam rolando no chão quando aconteceu. — Isso não prova nada, mas é uma pista. Esses desajustados sempre conhecem outros, então... — Olhou ao redor. Nada suspeito. — Alguma chance de falha mecânica? — Delegado, pelo amor de Deus. O que está queimando ali na frente não é a porra de um Logus, aquilo é um Subaru, um avião desses não pega fogo à toa. — Já fez boletim de ocorrência? — Vai me dar outro carro? — Vereador... Entendo que esteja nervoso, mas precisa colaborar para descobrirmos o que aconteceu aqui. Precisamos nos documentar. Para sua própria segurança. Miriam chegou perto, braços cruzados, expressão gelada. Um pouco provocativa para quem a conhecia como o vereador. Aquela ratazana estava vibrando, isso sim. De um jeito ou de outro, o carro incendiado acabou com o comício do seu principal opositor político. Se ela não fosse apenas uma mulherzinha em constante TPM, ele desconfiaria dela, mas Miriam Guerra não seria capaz disso. Poucas pessoas na cidade teriam colhões para desafiar Orlando Torque. — Prefeita — cumprimentou Zétia. — Manhã movimentada — ela disse. — E ainda nem almoçamos. — Viu algo que pode nos ajudar? — Não. Mas depois do que aconteceu... Não sei. O que o senhor faria se o seu filho ficasse sem refeições na escola se tratando dessa gente pobre daqui? Por causa de um vereador corrupto? — cochichou. — Eu não tenho filhos na escola daqui, prefeita. Depois do assassinato do assunto, olhou ao redor procurando evidências enquanto a prefeita se afastava com seu motorista-segurança. Zétia não precisou procurar muito. Encontrou metade de uma garrafinha KS jogada no meio do gramado, perto de um cartaz amassado e todo zoado (com bigodinhos, dentes faltando e chifres) com a foto do vereador Torque. Ele a apanhou e levou ao nariz. O cheiro volátil o irritou um pouco e ele confabulou consigo mesmo, pensando no rosto desvairado de Galileu Sultão. O que está acontecendo com essa cidade? RICARDO MINOTTO
Notícias ruins chegam logo, mas demoraram um pouco até caírem nos ouvidos de Ricardo Minotto. Ele estava acompanhando o dia-a-dia imprestável de dois de seus funcionários quando o telefone tocou em seu bolso. Não atendeu, aguardando Bosco (o imbecil com um machado na mão que chegou atrasado depois do almoço porque precisou reeducar a mulher) partir o crânio de mais um boi. E era melhor que fizesse isso bem depressa, tinha mais meia dúzia de cabeças na fila. Carga roubada... Nesses casos, era agilidade ou cadeia. Ninguém tinha chegado ao matadouro-curtume, mas em um fim de mundo como Nova Enoque, as cabeças de gado sequestradas tinham poucos lugares para onde ir. VAP! O cabo do machado cortou o ar, e Anisinho, uma espécie de aprendiz de feiticeiro de Bosco, gritou empolgado: — Mata o filho da puta! — Ricardo riu da gracinha. Era bom ter caras empolgados em um emprego fedido como aquele. Ajudava a cabeça a não pirar com todo aquele sangue, tripas e fedor. O boi soltou um mugido e deixou um pouco de urina verter da bexiga. Revirou os olhos e caiu. Estrebuchou duas vezes e aceitou a morte. — Esse aí virou bife — disse Bosco, limpando as gotas de sangue do rosto. — Calem a boca, agora. Tenho que atender aqui. Bosco apoiou o machado no chão como um gladiador exausto e deixou Anisinho fazer as honras com o defunto. Ficaria de olho para que ele não estragasse a carne depois de tanto trabalho. Ricardo estava longe, afrouxando o colarinho para se livrar do calor. Clicou no botão e atendeu ao aparelho. — É bom ser importante — disse, antes do alô. — Pai? Sou eu. O Roger. — E que porra de número é esse? Perdeu o celular de novo? — Escuta, pai. Não tenho muito tempo. Eu tô preso. — Como é que é? Que merda você aprontou agora? Matou alguém? Ouviu um soluço do outro lado da linha e se escorou na passarela onde os bois condenados faziam seu último cortejo. — Jesus Cristo, Roger. Conta bem devagar o que aconteceu. — Eu não sei direito, eu estava com a Milena e... E ela morreu. — A pistoleira? Puta merda, Roger! Onde você está? Vamos resolver isso, fique calmo. — Ele está na delegacia, Minotto. — Zétia? — Seu filho foi encontrado com a namorada morta dentro do carro. Ele tinha direito a uma ligação e pediu que entrássemos em contato. — Meu filho não é um assassino, porra. Por que prenderam o garoto? — Tudo indica que ele matou a moça. Preciso saber se vai mandar alguém ou aciono o advogado do município. — Eu tô indo pra aí. E vou levar a porra do advogado. Acessou a agenda do celular e ligou para o Doutor Cotia. O verme estava acostumado a resolver os problemas mais cabeludos da família e não preguntaria: culpado ou inocente, só perguntaria se o pagamento seria cheque ou dinheiro vivo. Cotia preferia dinheiro, destino próprio em vez de um banco onde o imposto de renda comeria metade. — Quer mais quantos, chefe? — perguntou Bosco. Ricardo sequer olhou para ele quando disse: — Mate quantos conseguir. Quero ouvir os gritos quando estiver saindo. — Vichi... — disse Anisinho. Eles nunca matavam mais de seis cabeças por dia. Bosco gostou da ideia, pensou que se mandasse um monte daqueles bois idiotas para o céu-dos-bois-idiotas sentiria menos raiva da marmota que chamava de esposa. Ricardo subiu as escadas de metal e entrou depressa em seu escritório. Tinha falado com Cotia e combinado de se encontrarem na delegacia. O safado cobrou uma nota e ainda tentou recusar o caso. Concordou quando Minotto ameaçou abrir o bico sobre suas aplicações financeiras. Minotto apanhou a chave da Captiva, seu chapéu importado e um maço de cigarros novos. Ainda pensava que tudo era um grande engano. Roger? Um covarde metido a new hippie? Roger não mataria um frango. Passou por Sofia, a secretária que às vezes dormia com ele. — Se alguém me procurar, marque para amanhã. — O senhor volta hoje? — Não, aconteceu um probleminha com o Roger. Ela parou de teclar. Também tinha transado com Roger umas três vezes. — Tudo bem com ele? — Ainda não sei — disse Ricardo. Em seguida saiu, deixando a porta aberta.
EM VINTE MINUTOS estava na delegacia. Doutor Cotia já estava lá há dez. Minotto desceu da Captiva e socou a porta. Tragou com fome metade de um cigarro e jogou o resto longe. A delegacia estava abandonada naquela manhã. Ele sabia o motivo, tinha ouvido no rádio sobre o carro do vereador Torque. Teve o que merecia. Quem mandou roubar criancinhas? Roubar um homem adulto, tudo bem, até usar um pouco de violência ou mexer uns pauzinhos para livrar a cara do filho sem-noção da cadeia, aceitável, mas roubar criancinhas? Ah, não, isso não era coisa de Deus. — Onde está ele? — perguntou. Cotia estava do lado de fora. — Enjaulado. A coisa foi feia, Minotto. Bem feia. — Quanto tempo pra tirar ele daqui? — Não se trata de quando, mas de se. Apanharam seu filho perto do carro. A menina estava morta, foi violentada. Seu garoto estava sujo de sangue. — Acha que foi ele? — Não é para isso que o senhor me paga, mas acho bem difícil provarmos o contrário. Você conhece o delegado Zétia. — Sem preço... — Pois é. Deus fez poucos filhos da mãe como ele. O que podemos fazer é enrolar, alegar um surto de loucura de Roger e tentarmos uma pena reduzida. Ninguém vai acreditar que ele é inocente. — E os pais da vagabunda? — Zétia foi até eles e contou tudo. Parece que o velho pediu um tempo para contar para a esposa. Acho prudente o senhor ficar longe da cidade por enquanto. Ele não vai conseguir machucar o Roger, mas um pai desesperado vai procurar retaliação. Ricardo bateu na cintura. — Tenho seis retaliações esperando por ele. Cotia arregalou os olhos castanhos e olhou sobre os óculos finos. — Perder o juízo, Ricardo? Pelo amor de Deus... Seu filho vai ser acusado de assassinato e você aparece com um revólver na delegacia? Deixe essa porcaria no carro! — Eu tenho porte. — Tem sim, mas não pra andar na rua. Minotto obedeceu e recuou até a Captiva. Escondeu a arma debaixo do banco do motorista. Voltou e subiu os dois degraus até a entrada da delegacia. Cotia ao seu lado. — Eu falo com o delegado. E se o garoto começar a se justificar, peça para ele ficar calado. Ele pode se complicar mais ainda. Dentro, deram de cara com a sonsa da escrivã Regina. O delegado surgiu em seguida e chamou os dois para dentro do balcão de atendimento. — Cadê o meu filho? — Ele está sob custódia. O senhor pode esperar aí fora se quiser, meu assunto é com seu advogado. — Vai sonhando, Zétia. É do meu garoto que estamos falando. Eu vou entrar aí e vou falar com ele, e se não me deixar fazer isso, vai ter que se explicar ao governador. — Não tenho medo de suas ameaças, Minotto. Mas pode vir se conseguir segurar a língua; consegue fazer isso? Minotto concordou depois de um toque suave de Cotia em seu antebraço. Ficaria calado sim, por enquanto, porque quando começasse a falar de novo enterraria aquele delegadinho de merda em sua própria bosta. Os três homens ficaram na sala do delegado até às seis da tarde. Zétia explicou a Minotto a gravidade da situação, mostrou algumas fotos que deixaram Ricardo vermelho e enojado, depois pediu para que ele mantivesse a calma se acreditasse na inocência do garoto. Disse que se Roger fosse mesmo inocente ele descobriria, mas que havia uma probabilidade muito pequena disso ser verdade. Depois de prometer manter o controle, o delegado concordou que Minotto se encontrasse com o filho. Entraram no corredor curto da parte de trás da delegacia e depois de cinco passos encontraram Roger. Ele estava sentado no chão, ao lado da cama de alvenaria, olhava para a parede à frente; desolado. — Pai! — gritou quando reconheceu Minotto. — Vai me tirar daqui, certo? — Vou, Roger, mas não consigo fazer isso hoje. — Mas eu não fiz nada! Já disse a eles que eu não fiz nada! — É mais complicado que isso. Podemos entrar? — perguntou ao Delegado. — Não foi o que combinamos — disse Zétia. Quase riu de si mesmo. Minotto não era o tipo de homem que cumpria acordos, ninguém pobre que consegue ficar rico é assim. — Qual é o risco? Não vamos atravessar a parede, delegado. Ele é meu filho! Zétia procurou pela sanidade de Cotia. O advogado deu de ombros como quem diz: “Esse é um problema só seu”. — Tudo bem. Cinco minutos. E vou revistar você. Minotto ergueu os braços e sorriu, pensando na arma que deixara no carro. Seu advogado não riu. Cotia temia que Minotto tivesse outra arma com ele. Aquele era o filho da mãe mais teimoso de Nova Enoque. Depois dos procedimentos — um pouco mais agressivos que a rotina, era verdade —, Zétia abriu a porta de aço e deixou Minotto entrar. Cotia também. — O que acontecer aí dentro não é problema meu — Zétia disse, quando trancou os três dentro da jaula. Saiu assoviando e sentou-se na cadeira de uma pequena mesa que ficava na entrada do corredor. Olhou para o relógio e marcou o tempo. Queria estar em casa. Aquele estava sendo um dia muito, muito estranho. Ouviu Roger soluçar quando abraçou o pai. — Merda, Roger, como se meteu nisso? — Eu só estava lá. — Falem baixo, pelo amor de Deus! — disse Cotia, temendo uma confissão acidental. Em seguida foi para um canto aonde cruzou os braços e ficou. Roger falou o mais baixo que pôde. Não era nada fácil porque sua vontade era gritar até que alguém acreditasse nele. — Eu estava lá. Estávamos namorando, ouvindo música. Estava quente e tínhamos bebido cerveja, eu tinha bebido cerveja e saí do carro para urinar. E aí... E aí minha cabeça apaga. Minha próxima lembrança é um policial me algemando e me colocando dentro da viatura. Foi como se eu tivesse acordado de repente. Ricardo procurou pelo advogado. Cotia estava atento, catalogando cada palavra que ouvia para depois decidir o que faria com elas. — Você viu a garota? Depois do que aconteceu? Chegou a ver? — Não, pai. Eu vi os pés cobertos de sangue. Ela estava sem a unha do dedão direito. Não fiquei olhando, eu não posso com sangue, o senhor sabe. — Tinha mais alguém com vocês? A cidade toda vai naquele maldito morro pra dar uns amassos. Roger pensou um pouco. Tinha alguém sim, mas aquela lembrança, a tal presença, era tão sutil quando uma imagem no canto dos olhos, uma sombra borrada que não significa muita coisa quando o olhar se fixa sobre ela. — Tente lembrar, qualquer um que estivesse no morro pode ter feito essas coisas horríveis com a moça. Sua cabeça doía. Quando mais forçava aquela memória mais sua cabeça latejava. Ele já tinha perdido o dia inteiro fazendo isso. — Droga, pai. Se existisse uma maneira de acessar essa parte, eu faria. Bateria minha cabeça no concreto da cama, até rachar, se alguma lembrança saísse junto com o sangue. Começou a chorar de novo. E não era só o choro que preocupava Minotto. — Você comeu alguma coisa? Olha a cor do seu rosto, tá parecendo um fantasma. — Eu preferia ser um fantasma. Preferia ser qualquer coisa do que me tornar isso que estão dizendo. Nós estávamos numa boa, ela era durona, mas eu nunca... Sabe? Eu nunca faria aquelas coisas com ninguém, ainda mais com a Mi. — Nós vamos sair dessa, garoto. Prometo. Eu vou tirar você aqui — Minotto disse. Em seguida ouviu a cadeira do delegado se arrastar no chão. Seus cinco minutos haviam terminado. Cinco minutos curtos demais para convencer Minotto que seu filho era inocente. SEGUNDA PARTE
A LOUCURA
“Nada melhor do que descobrir um inimigo, preparar a vingança e depois dormir tranquilo.” — Joseph Stalin
PAULINE E SEU LADO ESQUERDO
Pauline chorou o dia todo. Não havia sido sua primeira surra, não tinha sido a pior, mas a humilhação de ter uma panela de macarrão quente jogada sobre o rosto conseguia ser mais forte que a dor. Depois que Bosco saiu, ela encheu o rosto com uma pomada anestésica e limpou o chão da cozinha. Se Bosco chegasse e encontrasse a casa imunda a atacaria de novo. Ultimamente — desde que ele começou a ter problemas eréteis —, tudo era motivo para uma nova explosão. O chão estava limpo e o rádio agora, perto das sete da noite e fora da estação Roberto Carlos, cantava uma música antiga do Seal, Crazy. Algumas lágrimas novas minaram dos olhos de Pauline. Culpa daquela música cretina. Na época em que a música fazia sucesso, Pauline namorava Marcos, um caminhoneiro que estava a fim de casar com ela e fixar moradia em Nova Enoque. O pai de Pauline não concordou. Um forasteiro? Ainda mais um caminhoneiro? Com sua filha? Não... Inadmissível para um pastor evangélico. Um pastor evangélico que acabou casado com uma gatinha de dezenove anos que fez aquele pangaré velho sentir-se um alazão. Não moravam mais na cidade. Quem pagou pelas lembranças foi a linguiça calabresa que iria para o feijão. Foi bem mais esmagada do que fatiada. — Homens, vocês são todos uns desgraçados! — disse. A faca tremeu contra a tábua de carnes. O rádio agora estava tocando outra música, Eyes of The Tiger, ou como diria Pauline, a música do Rocky Balboa. Deixou a linguiça em paz depois de usar metade dela e foi até a geladeira apanhar salsa e cebolinhas. E também folhas de louro, porque era assim que Bosco gostava do feijão que o fazia peidar litros de metano. A luz do refrigerador a atingiu, ao mesmo tempo uma estática chata deixou a música no rádio toda embaralhada. — Até você? — perguntou ao rádio que não cantava mais nada. Ficava com aquele som de rádio AM procurando estações. Pauline sugou o muco do nariz e voltou para a pia. Então ouviu: — Você não devia permitir. Com o susto, Pauline apanhou a faca afiada e cortou o vento às suas costas. Um pouco dos temperos foi para o chão. Ela estava tremendo. Os olhos saltados e vibrantes procurando o dono daquela voz. Talvez estivesse embaixo da mesa. Ela se abaixou e checou o espaço. — Lugar errado, Boneca de Louça. Ficou ligeiramente mais calma ouvindo isso. Só havia uma pessoa no mundo que a chamava de Boneca-de-Louça. Era estranho porque sua mãe não tinha aquela voz masculina, e, além disso, Clécia estava morta há quinze anos. — Quem é você? Um espírito — Afastou-se, andando de costas e procurando o dono da voz. A faca em punho. — Não. Sou só o rádio. Olhou para janela e lá estava ele, o senhor rádio. — Brincadeira idiota. Quem está fazendo isso? Se eu descobrir, juro por Deus que chamo a polícia! — Pode chamá-los, Pauline. Mas eu duvido que alguém virá ajudar você com seus problemas conjugais. — Como sabe disso? — A faca ainda nas mãos, o brilho do metal refletindo a luz da cozinha nos azulejos floridos. — Todo mundo sabe, fofura. A cidade inteira sabe. Pauline foi até o aparelho e o puxou da tomada. Respirou fundo tentando dissipar a raiva. Apanhar dentro de casa era injusto, porém aceitável dependendo da condição em que acontecia. Mas ter a cidade inteira rindo às suas costas? Operando rádios? — Posso falar por aqui também, mas prefiro o rádio — disse a tevê da sala. — Eu não estou puxando essa conversa para humilhar você. Eu só quero um pouco de justiça, entende? Quero justiça para você e para toda mulher que tem um porco do outro lado da cama. Pauline riu tapando os dentes grandes da frente com a mão esquerda. A direita ainda segurava a faca, mas não por muito tempo. Ela foi até o rádio e o ligou de novo. Apanhou os temperos do chão, juntou cada folhinha calmamente e colocou tudo sobre a tábua de carne. — É assim que se faz, essa é a minha garota! — o rádio disse, feliz em poder ajudar. — Agora me conta como a cidade inteira sabe o que acontece em minha casa. — Preciso mesmo contar? Ela agitou a cabeça, esquecendo que o rádio não tinha olhos. Ou pelo menos não deveria ter. O fato é que o rádio soube que ela concordou. — Seu marido Bosco anda falando pelos cotovelos sobre vocês dois. Ele conta tudinho no bar quando todos os homens estão de cara cheia. — Maldito. — E ele não conta somente sobre as brigas. — O rádio começou a cochichar quando disse: — Ele também conta o que fazem dentro do quarto. — Oh, seu desgraçado infeliz! Como ousa? — ela perguntou. — Eu? — Não, senhor rádio, não você. Como ELE ousa, foi o que eu quis dizer. — Ele trata você como um efeito colateral da vagina. É só isso que você significa para ele, Pauline. Eu não quero jogar mais lenha na fogueira, mas um homem desses não merece uma mulher como você. — Como ele pode fazer uma coisa dessas? — Apertou as mãos sobre o granito frio da pia. — Eu não deveria dizer, mas ele não comenta só com os amigos do bar. Não... Não posso falar sobre isso. — Vai falar sim! — Pauline levou a faca para perto do autofalante do rádio. — Ou vai ficar mudo para sempre. E se mudar para a tevê, eu farei o mesmo. — Quer mesmo saber? Você está pronta para isso? — Desembucha. Alguma estática de novo. Pauline mexeu na antena com medo de perder de vez seu novo amigo. E não importava mais se fosse alguém com um transmissor de FM. Quem estava do outro lado não era importante, as coisas que dizia sim. — Diga-me, Pauline, já ouviu falar do Madame Paraíso, certo? — Todo mundo nessa cidade já ouviu falar daquele chiqueiro... Peraí! Tá querendo dizer que o meu marido anda se esfregando com as mulheres daquele inferninho? É isso, senhor rádio? Ela estava mesmo falando com o rádio? Devia estar perdendo o juízo, mas não parecia isso. Ao contrário, parecia perfeitamente normal. O rádio estava sendo mais franco que toda aquela gentinha que ria pelas suas costas. Qual era o grande problema? Que estivesse perdendo o juízo... A conversa com seu velho rádio estava sendo o melhor momento da semana. Do mês. Ela insistiu: — Vai responder minha pergunta? — Antes, preciso dizer que você não está perdendo o juízo. Se me permite, Pauline; quero dizer que você nunca esteve tão perto da realidade do seu casamento quanto agora. — Obrigado. — E sobre sua pergunta. O gordo do seu marido fala de você quando trepa com as vagabundas do Madame Paraíso. Ele fala de você, trepa com elas e sorri. E ele não faz com elas como faz com você. Ele até as beija na boca. Ele é gentil e faz questão de demorar bastante. — Filho da mãe! — Suas mãos estavam tremendo de novo. Tanto que ela abandonou a faca sobre a pia da cozinha. Começou a chorar e não era de tristeza, era raiva. Aquele canalha guardava tudo de bom que tinha para entregar para as piranhas do Madame Paraíso. Não era justo. Por isso que ele andava broxando e enfiando a mão nela quando isso acontecia! Estava gastando seu combustível em outras pistas. — Ele é sim, é um grande gordo filho da mãe. O rádio ficou calado, permitiu mais um pouco de choro compulsivo. Pauline estava entrando no clima, não seria produtivo apressar esse momento. Quando sentiu Pauline ligeiramente recomposta, continuou. — E sabendo de tudo isso, Pauline, o que faremos a respeito? — Vou deixar essa casa hoje mesmo. — Não, Pauline. Você vai pensar melhor sobre isso. De quem é essa casa? Metade dela que seja? — Minha. Usamos a herança da minha mãe para comprar. Bosco inteirou o que faltou. — E acha justo sair do seu lar com uma mão na frente e outra atrás? — Não, mas eu... Eu não tenho forças para enfrentar o Bosco. Ele é forte e é malvado. Eu jamais conseguiria. — Posso te ajudar nisso, Boneca de Louça. Mas vai precisar fazer exatamente o que eu disser. Sem discutir. Por cinco ou seis segundos, a cozinha ficou silenciosa. — Acha que pode fazer isso, Pauline? — Estou ouvindo, senhor rádio. Pode acreditar que estou ouvindo.
DEMOROU UMA HORA E MEIA para o carro de Bosco dobrar a esquina, gastando mais borracha dos pneus. O som estava alto, tocando uma porcaria de pagode que Pauline detestava. Ela só ficaria feliz se aquela coisa horrível fosse a última música que o canalha ouvisse em vida. Bosco socou o portão e arrotou, antes de entrar em casa. Pelo horário, devia ter passado no bar e enchido metade do tanque. O resto completaria em casa, entupindo o peito com Derby e assistindo o que encontrasse de pior na tevê. — Oi, assombração — disse quando passou por Pauline. Ela tinha um pouco de pomada no rosto, perto dos olhos, onde a pele era mais sensível. Bosco foi até o banheiro, urinou com a porta aberta de modo que o som enchesse a casa toda, e tirou a camisa. Voltou para a cozinha em seguida e só então prestou atenção de verdade em Pauline. — Por que essa roupa de puta? Pauline manteve o salto. O rádio estava ligado e a incentivou com uma canção mais serena. Vapor Barato na versão de Zeca Baleiro. — Preparei algo especial. Bosco coçou o queixo oleoso. — Que história é essa? — Sente-se, amor. Eu pego sua cerveja. Bosco estava desconfiado, mas obedeceu. Exceto pela cerveja, essa ele fez questão de apanhar. Abriu explodindo o lacre e deu uma golada de meia lata. Soltou um Ahhh refrescante em seguida. Pauline o esperava, recostada à pia. Cabelos escovados, unhas pintadas, batom vermelho. No corpo, uma minissaia e uma blusinha cavada. Estava sem sutiã e seus dois mamilos pequenos saltitavam livres. Bosco não parecia interessado em nada que não fosse comestível — como Pauline não era há muito tempo. Sua garota estava de salto alto, o que deixava seu bumbum amolecido um pouco mais empinado. Tinha esperança que Bosco se interessasse por ela. Se isso acontecesse, esqueceria todas as ideias malucas do senhor rádio e daria uma chance ao marido. Homens são idiotas, e o seu Bosco não seria o primeiro a desabafar em um balcão de bar terminando a noite no consolo nas prostitutas. — Vai me dizer o que está aprontando ou posso assistir tevê? Comece explicando por que está pintada feito uma palhaça. Os olhos de Pauline ameaçaram um dilúvio, ela os conteve. Fazia parte do plano não gastar lágrimas com aquele miserável. Mas ele tinha razão. Pauline se sentia uma palhaça. A roupa (que tentava ser provocante) servia para dizer ao senhor rádio que ele estava errado, que seu homem ainda a amava. Pura ilusão. A única razão daquele homem ainda dividir a casa com Pauline é que era cômodo, era fácil. Roupas limpas, lençóis perfumados, sexo duas vezes por mês para satisfazer necessidades biológicas. E obviamente a comida que aquela coitada preparava. Boa comida. Foi sobre esse ponto que Pauline quis falar. — Tentei fazer uma surpresa, Bosco. Tinha esperança que nosso casamento tivesse jeito. — Tá falando do quê? Qual é o problema com o casamento? — Nenhum, amor. Nenhum. — Foi até o fogão e retirou a tampa da panela de pressão. Um cheiro bom tomou conta da cozinha. Bosco farejou duas vezes, como um cachorro sentindo o cheiro de carniça nova. Olhou em direção ao fogão. — Sabe, Pauline, você mal serve pra trepar, mas adoro sua comida. E que porcaria você estava dizendo sobre o nosso casamento? De costas, Pauline sugou o nariz. Não era fácil resistir ao choro ouvindo palavras tão rudes. Bosco sabia disso, sabia onde doía e fazia questão de limpar suas botas nas feridas mais profundas. — Deixa pra lá. Fico feliz em fazer o que uma mulher deve fazer. Colocou um porta-panelas de madeira sobre a toalha branca da mesa e, sobre ela, a panela quente de feijão. Bosco já ia avançando e, pela primeira vez, ela o impediu. Ele rosnou; — Ei! — Pauline só escapou de novos socos porque já tinha apanhado uma vez no dia. O pai de Bosco sempre dizia que uma mulher aguenta uma surra todo dia, mas nenhuma aguenta apanhar o dia todo. — Eu vou comer com você — Pauline se justificou. Passou pela geladeira e apanhou uma maçã. A mais vermelha e suculenta que encontrou. — E vai comer essa porcaria que não sustenta um frango? — Belisquei alguma coisinha no meio da tarde. Mas vá em frente; eu faço companhia. — É melhor não tá tentando perder peso. Se você emagrecer mais um pouco vão te confundir com um poste. Dá pra ver suas costelas, meu Deus! Pauline sorriu, complacente como um hímen cansado. — Posso comer, agora? — perguntou o rosto gordo, mal barbeado e oleoso de Bosco. O rádio deu uma pausa na programação (tocava um sertanejo universitário até então, Ressentimento) e começou a chiar. Pauline, mesmo com o volume baixo, conseguiu ouvir claramente: “Vá em frente, gordão.” Em seguida, a música recomeçou. — Ficou assim o dia inteiro. A estação está perdendo a sintonia. — Devia trocar de estação. Parece que gosta de sofrer... Agora vamos ver o que temos aqui — Chegou perto da panela. Pauline correu para virar o prato na posição correta, Bosco já estava mergulhando a concha dentro da panela de feijão. Ele bufou. Bosco nunca entendeu porque os pratos eram colocados invertidos na mesa. Devia ser coisa de mulher, frescura para dar mais trabalho. Uma mordida na maçã enquanto ele colocava o rosto bem perto do prato cheio. — Tá com cheiro diferente. — É amor — ela disse e voltou a cravar os dentes na maçã. — Amor não cheira. E quando cheira, fede. Tornou a cheirar o prato. Dessa vez mergulhou a colher funda no marrom do feijão. Estava forte. Pedaços de carne e gordura, muita cebola, louro, e a pimenta-do-reino que pediria uma cerveja digestiva ao fim. Estava com um cheiro tão bom que ele abriria mão de outra cerveja por enquanto. Mas só por enquanto. O dia não terminava de verdade até ele tomar meia-dúzia delas, ainda mais um dia pesado como aquele. Matar gado era bom, mas desossar cansava. Tocaram mais duas músicas antes que aquele prato terminasse, Como uma onda, com Tim Maya e uma música sonsa da Wanessa Camargo. Só depois da última garfada, que gerou um arroto longo e profundo em Ré maior, uma que agradou Pauline. Ela a conhecia de algum lugar esquecido por seu cérebro. Uma voz grossa, melancólica, tinha algo nela que valia a pena. “Quando chega a madrugada…” — disse o senhor rádio. A música era Outro Cigarro de Renato Godá. Bosco se esticou todo e deu outro daqueles arrotos que azedam a garganta quando estão perto do fim. — Água? — Pauline perguntou. — É isso que dá carregar na pimenta. — Ninguém reclamou enquanto comia. Bosco socou a mesa e se não estivesse sentindo uma tonelada dentro da barriga, teria dado a ela o que merecia. Aquela retardada. Pauline devia era agradecer por ter um homem bom feito ele. Alguém que cuidava dela, que botava comida na mesa e que, vez ou outra, dava a ela um pouco de amor. Do amor que ele tinha para dar, é claro, nada muito meloso, amor de homem. Outro arroto e, dessa vez, ele precisou segurar o azedo que tentou subir. — O que você fez com esse feijão? — perguntou, beliscando o rosto. A pele estava queimando e a área perto da boca, dormente. Um monte de cuspe deixava a língua amarga e não adiantava engolir, porque a garganta simplesmente não obedecia. — Fiz um tempero novo, achei que você merecia. — Eu não consigo... Bosco levou as mãos ao pescoço e apertou. Sua visão ficando embaçada, a cozinha parecia clara demais. Seu estômago reagiu com espasmos. As mãos tremeram. — Me ajuda! — gorgolejou. Acabou se desequilibrando e caindo da cadeira, arrastou a toalha da mesa consigo. O corpo gordo, melado de suor, se espatifou sobre o piso frio como um grande saco de carne podre. Pauline não diria que ele era melhor que isso. O rádio continuava. Pauline dançava. Jesus, quanto tempo fazia que ela não dançava? Seria bem mais fácil perguntar sobre sua última tristeza. Os saltos altos não eram tão bons para dançar, mas ela os manteve nos pés. Queria ficar o mais longe possível, o mais alto possível em relação àquele saco de lixo. O verme se arrastava pelo chão, a boca vertia baba, um muco vermelho. Ótimo! O porco tinha começado a sangrar. Quanto tempo restaria a ele? Horas? Minutos? Segundo o senhor rádio, seria bem rápido. Mas não havia pressa, Pauline queria saborear cada tremor, cada pequeno desvario de dor do homem espatifado ao chão. Homem? Seria um elogio dos bons chamar o porco de homem. — Tá cansadinho, amor? — Sua puta! — Um pouco de muco sanguinolento escorreu do nariz e entrou pela boca. Um odor novo tomou conta da cozinha. — Parece que alguém sujou a cuequinha... É normal, amor. Não sinta vergonha. Pauline foi até a geladeira. Pisoteou a mão direita de Bosco que tentou agarrá-la. Ele gritou e a recolheu, não estava conseguindo coordenar seus movimentos. Arfou o ar e começou a tremer em seguida, balançava um pouco mais nas pernas do que nos braços, o pescoço parecia uma mola. Pauline apanhou uma cerveja importada, a lata tinha um demônio desenhado no metal. Extraforte. Ela abriu e deu a volta na mesa. Voltou para perto do rádio, só então explodiu o anel da latinha. Sorveu um grande gole, o pouco que derramou pela boca limpou com as costas da mão direita. Bosco já estava nas últimas. — Você vai morrer, Bosco. Vai morrer como um rato de esgoto. Tá curiosinho sobre o que aconteceu? Bosco virou de frente e parecia ter algo vivo alojado na barriga. As mãos voltaram para o pescoço tentando abrir a traqueia com as unhas. Os olhos estavam tingidos, escorria um pouco de sangue pelo olho esquerdo. — Veneno de rato, amor. Você me fez comprar para matar o gato do vizinho, lembra? Sobrou um montão... Hoje alguém me deu a ideia certa sobre o que fazer com ele. — Me aju... — O vômito não deixou que terminasse a frase. — Ajudar você? — Mais um gole na cerveja. — Prefiro ajudar a mim mesma. Tente fechar essa boca e morrer com dignidade. … e sonho com o meu amor — disse o rádio. VAI PASSAR LOGO, ELES DISSERAM
Alan viu quando a mulher esquisita da casa da frente foi até o portão. Ele estava sentado de lado de fora de sua casa porque sua mãe estava atendendo duas mulheres com mais plásticas que carne no rosto. Ele não conhecia nenhuma das mulheres pelo nome, mas sua mãe, sim. Janice Sérpia era costureira daquelas duas há anos. A mulher esquisita era Pauline. Alan a conhecia e sabia o seu nome. Todo mundo sabia seu nome desde que ela começou a apanhar do marido. Dois vizinhos da rua chamaram a polícia, mais de uma vez, mas como Pauline nunca aceitava ajuda, acabaram desistindo. Se Pauline Bosco queria viver como um saco de areia, que fosse. Cada um com suas preferências e o preço a pagar por elas. Pauline havia retornado à sua casa pouco tempo depois de ficar falando sozinha com o portão. Ela era estranha, magra, desbotada. Mas falar sozinha era novidade. Alan chegara em casa perto das dez da manhã e Janice não estava. Mamãe também trabalhava em uma loja no centro onde ganhava dinheiro de verdade. A costura rendia uma miséria e mal dava para pagar o aluguel. Eles tiveram uma casa própria no passado, mas antes de fugir (depois do papai se endividar em todas as mesas de baralho da cidade), Fausto Sérpia deu a casa para os credores. Janice e Alan não esperavam mais encontrá-lo, Fausto era um rato e sabia se esconder quando precisava. Além disso, era bem provável que alguém tivesse acabado com ele. Uma mosca sentou no nariz de Alan, e ele deu um tapinha em si mesmo tentando afugentá-la. — Ai! — gemeu. Tinha esquecido completamente daquela escultura horrível que se tornara seu nariz. Tinha inchado bastante e doeu o dia inteiro. Janice fez uma compressa com gelo, e Alan disse a ela que levou uma bolada na aula de Educação Física — não era mentira, ele só se esqueceu de mencionar Murilo Torque, e que todo mundo riu dele. A lua já estava no céu e, com as duas mulheres em sua casa, ainda era cedo para o jantar. Alan estava morto de fome. Em um dia como aquele era difícil pensar em como a vida podia ficar pior. Sem jantar, sem prognósticos positivos sobre o dia seguinte na escola, sem vontade de entrar em casa e encarar aquelas mulheres de cera que tratavam sua mãe como uma escrava branca. — Ei, Lango, vem cá! Seu cãozinho baixou as orelhas e colocou o rabo entre as pernas. Ele sempre agia assim, sempre na defensiva. Lango tinha sido resgatado pelos Sérpia há dois anos, estava magro, desidratado, no pescoço havia uma cordinha azul de Nylon — que ele deve ter roído para escapar de onde morava. A cordinha estava tão apertada que tinha roído os pelos, no pescocinho fino. Não dava para saber a raça do Lango, mas era um cachorro pequeno. Ele chegou mais perto de Alan e lambeu sua mão. — Não precisa fazer isso, garotão. Precisa parar de ser tão submisso. Lango olhou para cima como se dissesse o mesmo. Dois garotos passaram em frente ao portão cheio de ferrugem onde Alan estava com seu cachorrinho. Um deles olhou para Alan e deixou seu coração cheio de raiva. Era Murilo. Anderson, que era quase tão malvado quanto Murilo, estava com ele. Os dois desaceleraram as bicicletas e pararam no meio da rua. Quase não havia movimento. — Sarou o nariz, veadinho? — perguntou Murilo. — Me deixa em paz. — Vai ficar, se responder a pergunta. — Ainda tá doendo. — E vai doer o dobro se abrir o bico sobre o que aconteceu. Levei uma prensa do professor. O que disse a ele? — Nada. Murilo olhou para Anderson, Anderson deu de ombros e olhou para o relógio. — Você vai falar com o China amanhã e dizer que está tudo bem. Só pra garantir. Alan assentiu. Anderson não aguentou. Era quase uma ofensa um garoto como aquele Alan Sérpia. Por que não reagia? Como conseguia ficar calado e servir de penico para todo mundo mijar em cima? Ele era uma afronta à evolução humana e isso, se por um lado era engraçado (sempre é engraçado ter uma barata para pisar todo dia), por outro era uma vergonha. Alan Sérpia era um chiclete irremovível preso na sola do mundo. — Como você consegue, Sérpia? Murilo riu de novo. Satisfeito. Os ombros de Alan subiram e desceram. — Para com isso, senão ele vai chorar pra mamãezinha. No colo de Alan, Lango rosnou e mostrou os dentes. — É bom segurar seu hamster, Alan. Eu não quero machucá-lo — disse Murilo. — Quietinho, rapaz — disse Alan. O cãozinho tremia. — Sabe, meu pai conheceu o seu pai. Ele disse que o seu velho era um filho da puta. Ele deu o nó em todo mundo quando fugiu e deixou você e a sua mãe na bosta. Atrás de Alan, na varanda, a luz acendeu. A porta da frente fez um ruído. Mãe... Era o que faltava. Janice apareceu na varanda com uma fita métrica no pescoço, uma almofadinha cheia de agulhas no pulso e uma bermuda jeans velha e desfiada. Usava uma camiseta do Faith No More mais velha ainda. Atrás dela, duas madames transpirando arrogância e supremacia com suas bolsas de quinhentos paus batendo contra os culotes. — Tudo bem aí? — perguntou Janice. Sacudiu os cabelos lisos de Alan e pediu passagem. Ele não se mexeu, não faria isso enquanto aqueles dois piolhentos estivessem do lado de fora. — Oi, dona Janice — disse Murilo. Um sorriso carismático no rosto. Alan lembrou que os nazistas também tinham esse mesmo sorriso. Janice acenou de volta. Alan saiu do caminho e soltou Lango que latiu duas vezes para depois sair correndo para dentro da casa. — Já disse que não quero esse cachorro lá dentro. — Depois eu tiro, mãe. — Quer ajuda, Alan? — perguntou Anderson. Queria ajuda sim, mas para não vomitar. Seu estômago dava pulos. Caramba, como podia existir gente assim? — Tá tudo certo — Alan respondeu. — Não esquece o que a gente combinou — disse Murilo e piscou o olho direito. Depois foram embora. Janice ainda gritou: — Mande um abraço para a sua mãe, Anderson. Diz pra ela que estou com uns tecidos novos! — Pode deixar — ele gritou de volta. Alan se retirou antes que começasse a urrar no meio da rua. Às vezes era isso que tinha vontade de fazer, botar para fora toda aquela raiva. Passou pelas duas pavões- fêmea, entrou e bateu a porta da frente. Foi para o seu quarto e ligou Slipknot, não tão alto quanto queria. Seus punhos estavam cerrados, e ele imaginava dentro de si todas as atrocidades que gostaria de cometer com aqueles dois imbecis. Deus, se você está aí em cima, me ajuda. Eu nunca fui um garoto ruim, nunca matei uma mosca, por que isso está acontecendo comigo? Por que não dá um jeito naqueles dois? O computador traria a resposta. Sem que ninguém tocasse o teclado, a tela piscou com um tom vermelho muito escuro e depois estabilizou em um site desconhecido. Alan abaixou o volume e sentou-se em frente à escrivaninha doada. Ainda estava novinha, e ele estaria satisfeito se não soubesse que aquilo era outro prêmio de consolação por eles não terem grana suficiente para nada que não fosse almoço e jantar. — Como você entrou aqui? — perguntou ao monitor enorme. Hackers é claro. Com um pouco de imaginação, Murilo, Anderson, ou algum de seus empregadinhos, teria feito aquilo. Mas se era uma página da internet, era a mais estranha que ele já tinha visto. Para começar, não estava abrindo pelo Chrome ou pelo renegado Internet Explorer. Alan apanhou o mouse e o movimentou. Não deu certo, a setinha nem estava lá. A única coisa escrita na tela era a palavra ENTRE. Mas como podia entrar sem o maldito mouse? Teclado... Moveu as setas direcionais, depois teclou TAB, tentou também da F1 a F12. Só restava uma coisa a fazer. CTRL+ALT+DEL. Alongou os dedos e fez. A tela soltou um flash. Um relâmpago. Alan se assustou e afastou a cadeira. — Droga — falou sozinho. Chegou mais perto. Com um pouco de receio tocou o monitor tela. Tá quente. Deslizou os dedos, e pensou em algo impossível. E se aquela tela fosse touchscreen? A tela não era, é claro, mas e se existisse alguma tecnologia, alguma daquelas novas e muito, muito esquisitas, que emulasse a tela para que funcionasse assim? Para que ficasse sensível ao toque? Quando estava prestes a tocar o ENTRE, no monitor, a luz do quarto tremeu um pouquinho, uma leve oscilação que o desencorajou. Alan olhou para suas costas, tinha a sensação que havia alguém atrás dele, respirando em seu cangote. Suas pernas e braços estavam incomodados, os olhos não estavam mais úmidos, e sim, esperançosos. Aquela tela surreal parecia uma passagem, algo mágico estava acontecendo em seu quarto. Talvez fosse Deus ouvindo seus pedidos — ou alguém mais atento e disposto, certo? Alan cerrou o punho direito e em seguida abriu. Receoso e com o indicador da mesma mão, ele tocou a tela, ENTRE. A palavra ficou amarelada como fogo e depois se apagou. A tela toda se apagou. Alan golpeou a caixa do monitor (de tubo, é claro, e doado, é claro...) pelas laterais. A porcaria estava morta. Já estava desistindo, tinha inclusive afastado a cadeira da escrivaninha, quando algo novo animou a tela. Uma cascata de letras, todas brancas, descendo pela tela preta — só podia ser o bom e velho DOS (que ele só conhecera superficialmente nas aulas de informática da escola). Então duas novas piscadas, e uma mensagem com a mesma letra branca e insípida. <DESEJA SEGUIR EM FRENTE?> R – Repetir A – Abortar P – Prosseguir. Não precisou pensar muito para tocar “P”. A cascata começou de novo, e uma nova tela apareceu sem precisar de nenhum carregamento. Foi como acender uma luz, instantâneo. Plim! Quase tudo era negro. Apenas no centro, escrito em verde-Matrix, formou-se mensagem: <DIGITE O SEU PROBLEMA, FICAREMOS FELIZES EM AJUDAR> Alan olhou para trás. A sensação de estar acompanhado tinha ido embora, dessa vez a olhadinha serviu para garantir que sua mãe não bisbilhotasse o que estava fazendo. Provavelmente mamãe não aprovaria um computador que, de repente, era mais útil que ela. Alan se aproximou do teclado e escreveu: ...ESTOU SENDO PERSEGUIDO... Uma ampulheta verde apareceu logo abaixo (não se movia, era apenas o contorno estático de uma ampulheta vazia), ficou ali até que novas instruções apareceram na linha seguinte. <ELES TERÃO O QUE MERECEM> — Caraca! — gritou e saiu de perto da tela. Como diria sua avó que era crente, aquele computador não era coisa de Deus. Correu até e tomada e a apanhou entre os dedos com força. Antes de puxar olhou outra vez para a tela. <NÃO TENHA MEDO, ALAN> <CHEGA DE MEDO> <NÓS PODEMOS AJUDAR> A ampulheta piscou por três vezes. Em seguida Alan leu: <DESEJA CONTINUAR SOFRENDO OU DESEJA SEGUIR EM FRENTE?> A – Aceitar proposta e definir planos D – Desistir O fio que estava em suas mãos era bem mais que cobre e borracha. O computador que não era coisa de Deus se tornara uma esperança útil. E que mal havia? Se a coisa toda saísse do controle, era só voltar para parte de trás do PC e puxar a tomada. E também... sejamos honestos, não foi difícil decidir quando lembrou daqueles dois bastardos e de seu dia glorioso. Alan deixou o cabo cair e executou o comando: A. LOBO E SUA IDEIA RUIM
Lobo não estava feliz. Pelo que tinha entendido do lance com o carro do prefeito, ele devia ter recebido mais de duzentos paus. Desse dinheiro, ele só viu a cor de dez misérias que usou para comprar um lanche — uma porcaria de pão com presunto. Depois de procurar Pêra e Jota pela cidade toda, Lobo parou em um bar. Tomou quatro Antárticas e fumou meio maço de cigarros. Antes que ficasse bêbado a ponto de se perder, saiu do Bar Amigos II e voltou para casa. Sentia-se estranho, a cabeça pesada em vez de aliviada com as cervejas. Pensava em Jota e no que ele teria feito com o dinheiro. Investir uma ova, ele deve ter cheirado a porra toda, ou quase toda. Passou pelo portão, fez um carinho em seu vira-lata de sessenta anos caninos e errou o buraco da fechadura na primeira tentativa de abrir a porta da frente. Conseguiu rir disso, rir de si mesmo era uma especialidade de caras como Lobo. Passou as mãos sobre o rosto oleoso tentando se concentrar e acertar o furo. Assim que entrou e sentiu um cheiro doce na sala, doce e grudento. Reconheceria aquela porcaria mesmo sem olfato. Crack, a boa e velha pedra que o jogou mais vezes no chão que a polícia da cidade. Foi até o braço do sofá e conferiu o que já sabia. O cachimbo usado ainda estava ali, em cima de um prato âmbar. Ainda estava quente. — Pô, mãe... De novo com essa porcaria? — disse baixinho. No fundo tinha esperanças que não fosse dela aquela sujeira toda, mas era uma esperança vazia. Sua mãe gostava tanto da pedra quanto ele, e única diferença é que ela, Nora Lobo, conseguia ser mais fraca que o filho. Ouviu um som desmotivado que vinha do corredor que levava aos quartos. Antes de entrar por ele percebeu que a tevê e o aparelho de som (eles ainda estavam pagando as prestações pelos dois) não estavam mais na sala. Em seu lugar, só um monte de poeira e algumas teias de aranha. — Mãe? Teve medo de encontrá-la morta, que o som sem vontade tivesse sido seu último suspiro. E não foi só medo que sentiu. Lobo seria sincero se dissesse que a ideia de ficar órfão era bastante agradável. Sua mãe já havia morado na rua (e com ele junto) nos anos difíceis, estava em recuperação graças à pastoral da cidade que a acolhera e tratou como gente quando Nora Lobo não era mais digna que um papel higiênico sujo dos dois lados. O corredor fedia a cigarros, Lobo agradeceu a Deus por isso, Nora estava vida. Ouviu garrafas rolando pela porcelana do chão. Andou mais depressa quando ouviu sons tussígenos. Parou à porta do quarto de Nora e acendeu o interruptor. Nada de luz. Ele entrou assim mesmo. Um cigarro aceso queimava entre os dedos da mãe. Nora estava com os olhos fechados, o tubinho aceso sobre a barriga magra. Estava de sutiã, rindo quem sabe do quê. — Mãe! Vai pôr fogo na casa desse jeito! Lobo tirou o cigarro dos dedos dela, deu um trago e apagou em um cinzeiro no chão. Estapeou o rosto melado e úmido de Nora. Ela muxoxou alguma coisa e virou de lado. Os cabelos duros se espalharam sobre o travesseiro sujo. — O que aconteceu com a tevê da sala? — Nada — resmungou. — Trocou por pedra, não foi? Trocou tudo por porcaria. — Vá te catar, garoto. Me deixa em paz. Mesmo sem luz, Lobo podia ver o que restou de sua mãe. Nora Lobo tinha quarenta e seis anos, mas parecia ter sessenta. Sua pele era queimada de sol e enrugada, ela tinha uma enorme cicatriz nas costas. Os cabelos despontados e sem vida, toda sua vaidade estava resumida a cortar as unhas das mãos e pintá-las com o esmalte mais barato que encontrasse. As unhas dos pés tinham micose, e ela já estava sem duas delas, nos dedinhos. Seus dentes também não eram grande coisa. Faltavam alguns e os que resistiam eram amarelos e opacos. Lobo tinha raiva de olhar para ela, para dizer a verdade, em recaídas como aquela, ele torcia para que uma overdose a levasse de vez. Não era o primeiro Lobo a pensar no assunto. Nora contara a ele que quando sua mãe, avó de Lobo, estava nas últimas e bebia quase duas garrafas de cachaça por dia, ela deixou de socorrê-la na rua por duas vezes. Um som de passos veio da sala de tevê. Lobo torceu para que fossem os traficantes que venderam a porcaria que agora estava dentro de sua mãe. Acabaria com eles ali mesmo, adoraria fazer isso. Beijou Nora na cabeça, sentindo o cheiro doce em seus cabelos, e puxou o lençol encardido sobre ela. Cruzou de novo o corredor.
NÃO ENCONTROU ninguém na sala, mas a janela estava aberta. Lobo não lembrava de tê-la aberto. Quando entrou em casa o cheiro da pedra o revoltou, mas também confundiu seu cérebro que jamais esqueceria como era bom estar chapado. Com erva e pó não era a mesma coisa. Dava barato, mas passava logo, a pedra não, a pedra amansava os doidos, de verdade. Sentou no sofá da sala e acendeu um cigarro. Estava um pouco bêbado e preocupado, não só com Nora. Aquilo de meter fogo no carro de Orlando Torque não ficaria desse jeito. Era questão de tempo até que alguém ligasse a confusão no meio da praça ao Subaru fumegante. Certeza que viriam até sua casa e o levariam em cana. Ah, mas se isso acontecesse, ele entregaria Jota. Talvez aliviasse para o Pêra que era tão besta quanto ele, mas Jota não teria essa dádiva. Ele era um filho da mãe esperto, tanto que estava com o dinheiro da prefeita enquanto Lobo se preocupava com sua mãe viciada e sem noção. Apanhou o celular do bolso e discou para Jota. Ele tinha tentado a mesma coisa mais cedo sem sucesso. O mesmo com Pêra. Deviam estar juntos, deviam estar torrando a grana e deixando o bobão do Lobo de lado. Estava repetindo a discagem quando alguém bateu palmas à frente da casa. — Merda. Era a polícia, só podia ser. Lobo deixou o cigarro no cinzeiro e foi até a janela. Havia um homem lá fora. Devia ser algum indecente fazendo propaganda política de Deus. Só esses tipos andavam para cima e para baixo usando terno em um calorão daqueles. Ou gente doida. Como não estava a fim de receber nenhum dos dois, tentou despachar ao homem: — Não tenho dinheiro e não converso com Deus. O homem negro sorriu e seus dentes eram tão brancos que deixavam a frente podre da casa razoavelmente mais bonita. Tinha aquele sorriso de Silvio Santos que faz você confiar em quem não merece. — Ei, eu só quero conversar. Você pode conversar, não é mesmo? Lobo conhecia essa lengalenga. Conversar uma ova. — Tá vendendo o quê, chefe? O homem sorriu de novo. Balançou a cabeça pra lá e pra cá, ainda sorrindo. — Tá certo. Você me pegou. Eu vendo aspiradores de pó — disse, e ergueu um dos aparelhos. Era do tipo compacto e ruim, que não aguentaria dois dias seguidos de uso. — Tô sem grana — repetiu. — Mas eu nem disse o quanto custa essa belezinha — Bateu na caixa de papelão. — Não tô interessado. — E se eu dissesse que esse aspirador faz mais do que tirar poeira dos tapetes? Se eu disser que ele remove ideias ruins da cabeça? Isso interessaria a você? Lobo deu um sorriso sincero. — Você é maluco, né? Tá de induto da cadeia ou o quê? — Posso provar que o aparelho faz isso. — Merda nenhuma. — Bom. Se você não precisa e não se interessa, posso arranjar quem queira. Passar bem mesmo assim. O homem se abaixou e foi juntando as duas caixas que tinha consigo. Uma delas estava aberta com o aparelho para demonstração, a outra, lacrada. Olhou para a janela vazia e deu um único passo. Então olhou para a porta e esperou que ela abrisse. — O que você disse que esse aspirador faz? — Demonstração grátis, chapinha. É só me deixar entrar. Abrir a porta para um doido com um aspirador de ideias? Quem faria uma barbaridade estúpida dessas? Quem abrira a porta da própria casa para a loucura entrar? Lobo girou a chave e puxou a maçaneta para baixo. Caminhou até o portão baixo. O homem sorriu e atravessou. Entrou com um pouco de dificuldade, por causa dos aparelhos que carregava. Lobo não o ajudou. Carregar as porcarias para dentro não era problema dele, já estava fazendo muito em deixar que aquele esquisito entrasse. Mas a verdade é que não pôde resistir a ele, não conseguiu. Ele tinha alguma coisa naqueles dentes brancos demais que desarmava você. E também... Desarmar Lobo era mais fácil que fazer uma criança chorar. — Obrigado, meu jovem. Tem um gole d’água para mim antes de começarmos? Andei a manhã toda com esses aparelhos. — E vendeu algum? — Você sabe... é difícil alguém admitir que tem ideias ruins na cabeça. Lobo riu enquanto ia até a cozinha, pensava merda o dia inteiro. Apanhou um copo que estava na pia há uns dois dias e encheu com água da torneira. A pedra do filtro tinha quebrado e nenhum dos Lobos daquela casa comprou outra. Voltou com a água e estendeu ao homem, ele a bebeu em dois goles. — Mais? — Não, um copo é o suficiente. Se beber muito, vou precisar do banheiro de alguém mais tarde. É mais fácil vender um desses — tornou a bater na caixa de papelão — do que conseguir uma privada limpa. — O povo daqui é reservado. Ninguém gosta de estranhos. Mas e isso aí? O que esse aspirador faz? — Já disse a você, ele aspira ideias ruins. — Tudo bem, senhor Mágico de Oz, e quanto custa? — Caro. Mas dou uma amostra grátis, como disse lá fora. Lobo estava de pé, e o homem sentado, os aparelhos perto dos pés do vendedor, sobre o tapete mofado que estava ali há dez anos. — O senhor deve ser algum tipo de doido, mas como eu fui doido de colocar você pra dentro, quero ver o que isso faz. — Só uma amostra, está lembrado? Lobo ficou quieto. — Então, como vai ser? — perguntou o homem, desembalando uma das peças. Era um aspirador de pó comum, portátil, vermelho metálico, como algo saído dos anos cinquenta, quando tudo era bonito. — Eu quero parar de pensar na prefeita. — Na prefeita Miriam? — confirmou o homem. — É. Eu estava chapado e pensei na prefeita peladinha e não consigo parar de pensar nisso. Vejo as pernas dela, a barriga meio grande, a bunda mole. Vejo os peitos dela e suas aureolas enormes e fico de pau duro. Eu não quero mais pensar em uma velha e ficar assim, entendeu? — E não tem nada mais importante dentro da sua cabeça que você queria se livrar? Lobo continuou bem sério, o mais sério que conseguia ficar com a cara de bobo que tinha desde os treze anos. — Acho que não. Tinha sim, milhares de coisas, mas depois da ressaca de um punhado de cervejas, e de dar um flagrante na mãe fumada de crack, tirar a prefeita da cabeça parecia uma excelente ideia. — Não nos apresentamos. Meu nome é Talião. — Lobo — Estendeu a mão. Quando se tocaram, Lobo sentiu uma descarga elétrica, uma faísca. Não deu importância. Também sentia faíscas no portão de ferro da frente às vezes, e Pêra explicou que aquilo era estática. — Muito bem, Lobo, vou precisar colocar o bocal na sua testa e ligar o aparelho. Uma ideia terrível se apoderou do cérebro torto de Lobo. E se aquela porcaria sugasse seu cérebro? Ele tinha visto um documentário na casa do Pêra sobre um cara que fez uma lipoaspiração no porão usando um aspirador de pó industrial. Acabou tendo a barriga sugada e depois os intestinos, só parou de sugar quando ele estava morto. — Não tem perigo? — Relaxa. Isso aqui é superseguro. Não vai sentir nada, a não ser uma coceirinha. — E o que eu tenho que fazer? Talião entregou a ele a mangueira sanfonada e disse: — Coloque em sua testa e pense pela última vez no que quer tirar da cabeça. Lobo fechou os olhos. Não estava acreditando em nada daquilo, mas queria acreditar. Porque se, por acaso, aquela loucura ridícula desse certo, ele faria o mesmo com sua mãe, tiraria dela a vontade de fumar aquela porcaria e de se comportar como uma cadela de rua, ele a salvaria. — Não precisa ligar na tomada? — perguntou, já com a boca da coisa em sua testa. — Essa belezinha usa outro tipo de energia. Tá pronto? Lobo fechou os olhos e visualizou. — Peladinha... — disse. Depois ouviu um clique e, em vez do som de ar aspirado, ouviu algum tipo de sucção, como uma bomba d’água ou petróleo, mas com um som meio pastoso de chomp-chomp. Sentiu em seguida algo parecido com uma coceira, bem no fundo da sua cabeça cheia de porcarias. No começou foi leve, mas aos poucos ficou tão forte que todo seu equipamento mental se concentrou na sensação irritante. A boca do aparelho pressionada contra a pele com um pouco de força. Antes que a visão de Lobo ficasse turva e, enfim, não conseguisse ter nitidez alguma, ele viu o sorriso vendedor do sacana. Dentes brancos demais, pequenas rugas ao redor dos olhos grandes. Depois um mergulho longo e profundo no vácuo dos sentidos. — Terminamos — disse a voz que o trouxe de volta. Os olhos foram se abrindo, e ele viu o vendedor de aspiradores enrolando a mangueira e colocando dentro da caixa. Lobo estava recostado ao sofá, um monte de baba tinha escorrido de sua boca e molhado a gola da camiseta. — O que fez comigo? — Tenha calma, companheiro. É normal sentir um pouco de desorientação, afinal, acabei de sugar uma ideia ruim de você. — Que ideia? — Sobre a prefeita. Sobre a prefeita sem roupas. Consegue se lembrar? Lobo riu e tentou saber do que aquele homem estava falando. Por que, diabos, ele imaginaria com a prefeita pelada? Encontrou uma vaga lembrança antes que descartasse a ideia. — Não tem mais graça — disse. — Homp-domp! — brincou Talião, como um bobão saído de uma reprise da tevê. — Agora, se me dá licença, preciso ir embora. Não vendi nenhuma peça hoje e preciso alimentar as crianças. — O senhor tem filhos? — Não, mas tenho dois Rootweilers albinos que gastam uma fortuna em loções para pele e colírios, já viu um Rootweiler albino? — Nunca. — São criaturas magníficas. Erros na natureza e, quem sabe, de Deus nosso senhor, mas criaturas fantásticas. Talião deu os passos que precisava até a porta, Lobo continuava lesado no sofá, pensava não ser capaz de abrir a porta para o homem. Estava com uma expressão pensativa, concentrada. A ponta da língua para fora da boca e amassada pelos lábios. A respiração acelerada como um peixe que perdeu a casa no aquário. — Peraí! — gritou. Talião parou onde estava. A mão no trinco da porta. — Lembrou da prefeita de novo? Porque se for isso, garanto que não é possív... — Preciso desse aspirador outra vez. — Rapaz, rapaz. Sempre é a mesma coisa. Preciso disso, preciso daquilo, no começo vocês me tratam como uma gonorreia vietnamita e depois querem favores. Eu disse que esse aspirador tem um preço. Se quiser pagar por ele, bem... custa mil. Mas posso deduzir os impostos e fazer por novecentos e noventa. — Não tenho essa grana. O homem pensou um pouco. — Oitocentos. Última oferta. Moço. Se eu tivesse oitocentas Dilmas aqui em casa, não precisaria do seu aspirador. Eu pagaria um psicólogo e acabava com isso. — O que é o isso que você quer acabar? — Coçou o queixo. — Creio que podemos chegar a um entendimento, caso queira realmente usar o aspirador uma segunda vez. — Voltou a colocar os aparelhos no chão. Lobo levantou do sofá e foi até a entrada do corredor. Seguiu por ele e abriu a porta do quarto de Nora, apenas para testar se ela realmente ainda estava por lá. Teve uma ideia besta de que aquele homem, o aspirador e todo o resto (sua mãe fumando crack, e ele tendo ideias aspiradas por um aparelho de satanás) fossem ilusões de sua cabeça de pudim e que, confrontando a mãe, ele acordaria deitado em algum buraco mais sujo que sua casa. Mas Nora estava lá, coberta e de bruços, mostrando a cabeça que parecia um ninho de rolinhas cegas. Voltou para a sala e encostou a porta do corredor. — Minha mãe tem um problema. Uma doença dentro da cabeça. Quero saber quanto custa para tirar isso dela. E não me venha com historinha de mil e não sei quanto... Talião coçou a testa, ficou bem sério, e disse, antes de desembalar o aspirador: — Isso depende do tamanho do seu comprometimento, filho. Para tudo tem jeito nessa vida, só não se dá jeito na morte. A MULHER DOIDA QUE DANÇAVA EM FRENTE À IGREJA
No começo ninguém precisou da polícia. O mundo andava tão esquisito que alguém dançando e gritando como uma pomba-gira na frente da igreja dos católicos não pareceu surpreendente. — Onde essa retardada pensa que está? — perguntou Jota. Ele estava com seu único amigo com mais de quarenta anos (Escova) na porta do bar Quinze, com um copo de cerveja esquentando na mão. Tinha acabado de receber algum dinheiro da prefeita, já havia separado as partes de Pêra e do idiota do Lobo. Que se matassem com prostituição e farinha se quisessem. Tinha ouvido por aí que Lobo estava atrás dele, falando que tinha sido roubado e que iria contar tudo para todo mundo se não encontrasse Jota. Jota trabalhava com Escova, transportando todo tipo de coisas em um caminhãozinho que não teria mais dois anos de vida sem uma retífica no motor. O mesmo podia ser dito a respeito de Escova, que não duraria muito tempo quando o açúcar do sangue terminasse de entupir suas veias. — Mulher maluca. — Ela ainda é a mulher do Bosco? — Sei lá — respondeu Escova. — Pelo menos era, até ontem. Do jeito que ela está soltinha vai arrumar um homem loguinho. Se antes não arrumar uma surra do Bosco. Pensou mais um pouco e deu outro gole na cerveja. — Melhor ligar para ele. — O senhor é quem sabe. Conhece o Bosco melhor que eu — disse Jota. Escova estava com o celular descarregado, e seu amigo, fodido e sem crédito. Mas Jota foi até perto do balcão e pediu para o Raul-Bigode — dono do bar que se recuperava de um infarto — para usar o telefone. Raul deu a ele o aparelho sem fio, ensebado de gordura de linguiça e torresmo, e Jota explicou a emergência. Na praça, mais confusão. — Quero que você, me aqueça nesse inverno, e que tudo mais vá pro inferno! ... — cantou Pauline. Estava fora de si, cantar aquela música na frente da casa de Deus não é coisa de gente normal. Esse tipo de pensamento estava em onze das dez cabeças brancas que assistiam à cena sem coragem de perguntar o que, diabos, estava havendo com Pauline. Todos a conheciam. Nova Enoque era uma cidade pequena, uma cidadezinha de bosta como todo o resto daquele pedaço quente do estado de São Paulo, um lugar onde todo mundo conhecia seus peidos pelo nome. Mas Pauline era esposa de Bosco, e isso seria um motivo e tanto para ninguém se meter. Bosco era violento, já tinha arranjado encrenca com muita gente, tinha inclusive puxado o revólver no bar em que os homens tomavam cerveja agora. Bosco também acabou com uma missa, meses atrás, porque cismou que Pauline estava dando mole para o padre — talvez estivesse mesmo, pelo menos foi o que o padre também pensou naquela manhã de domingo. Padre Estevão estava fora da cidade há uma semana, ou ele mesmo teria acabado com aquela falta de decoro em frente à casa de Deus. Estevão teria esse tipo de autoridade, ao passo que o ministro Camargo saiu correndo assim que viu Pauline por perto das portas da igreja. — Ninguém atende — disse Jota. — É melhor alguém dar um jeito nela. A mulher está doida — disse Escova, e cuspiu para o lado. Estavam na calçada. — É a mulher do Bosco? — perguntou Raul, vindo dos fundos do bar. — A própria. Pauline — Jota confirmou. — Coitada dessa moça. O sacana do Bosco acabou com a vida da pobrezinha. — Tá falando do quê, Raul? — Ele abusou dela. Eles namoravam, e ela e o Bosco ficaram sozinhos na chácara dos pais da Pauline. Ele fez com ela à força. O pai da moça ficou sabendo e obrigou a coitadinha a casar, para não ficar falada na cidade. Como ela gostava de verdade do filho da mãe do Bosco, aceitou numa boa, mesmo depois do que ele fez com ela. — Burra — disse Jota. — É o coração, Jota. Você ainda é novo, mas o tempo vai ensiná-lo que o coração da gente sempre é burro — filosofou Escova. Acendeu um cigarro. — Eu vou até lá resolver essa merda — disse Jota. Saiu depressa e já estava no meio da rua quando Escova o alertou: — Não é sua merda, Jota. Ele deu de ombros como quem diz: “Não posso resistir”, e terminou de atravessar. Deu uma corridinha até perto de Pauline que agora cantava — gritava — Ilariê, da Xuxa. Ela percebeu Jota e reclamou: — Não chega perto de mim, seu drogado! Depois riu como uma maluca. Estava cheirando à bebida, uma maravilha para deixar mulheres com raiva naquele estado deplorável. Seus joelhos estavam ralados, um rasgo na parte de trás do vestido deixava um bom pedaço de suas pernas aparecendo. No rosto, sombras derretiam uma maquiagem carregada. A camiseta branca (que dizia Gatinha do papai e tinha uma foto dela com Bosco) estava suja com algo vermelho, parecia suco de tomate. Na foto de Bosco na camiseta, havia um monte de rabiscos deixando seus dentes pretos e os olhos torcidos em uma expressão imbecil. Na rua, Hudson, um cara de vinte e sete anos que era DJ da única emissora de rádio da cidade — que tocava gospel em oitenta por cento da programação — passou com seu opala envenenado tocando Queen, Bohemian Rhapsody, na parte mais acelerada em que Freddy cuspia no microfone. Pauline se agitou de novo, cantando em um inglês mediúnico e girando sobre si mesma. Ria como uma maritaca. — Chega dessa loucura. Vem, vou levar você pra casa. — Jota se adiantou. — Nem pense nisso, cowboy. Estou me divertindo, e a noite ainda nem começou. — Pauline, pense bem, o que o Bosco vai fazer quando encontrar você assim? Ela riu, doida de pedra. Seus olhos estavam vazios e não focavam em nada. Quando ela os concentrou nos olhos de Jota, foi como se ele olhasse um aquário. Fazia tempo que não a via, Bosco não deixava que Pauline saísse de casa sem ele, Deus, ela só tinha trinta e cinco anos, mas para Jota, parecia ter cinquenta. Estava magra, os cabelos começando a branquear, seu rosto sem muita carne estava chupado pelos ossos. — Se o Bosco me visse agora? Você não sabe o que diz, maconheiro. Jota se adiantou, e ela recuou, procurando alguma coisa em sua cintura. — Chega mais perto e vai ter um buraco novo no rosto! — Pauline sacou um revólver. Era pequeno, devia ser do marido. Jota espalmou as mãos e recuou um passo. Queria ajudar, mas levar uma bala? Não... Ele não levaria seu altruísmo tão longe, ainda mais para ajudar uma ratazana burra como Pauline. Talvez fizesse isso pela filha da prefeita Miriam, mas não por Pauline Bosco. — Ei, abaixa isso, Pauline! Perdeu o juízo? Ela apontou, e a arma tremeu um pouco. Armas são pesadas para quem não tem o costume de empunhá-las. Alguns cabeças-brancas que até então acompanhavam a encrenca com sorrisos no rosto começaram a se agitar e correr. Mãe de Deus, ela estava com uma arma! A brincadeira tinha ido longe demais, ninguém queria voltar para casa com a camisa suja de sangue. — Cuidado com isso, você não quer machucar ninguém! Do começo do quarteirão, a sirene do carro de polícia deixou tudo mais tenso. Jota aproveitou para se afastar. Não era burro de ficar em evidência depois do carro fumegante de Orlando Torque. Saiu andando de costas. Parou bem perto do meio fio, junto a dois velhos conhecidos — Nelson e Cabral, dois despachantes. Eles estavam putos da vida porque não puderam terminar seus assuntos enferrujados naquele começo de noite. O carro de polícia encostou. PENA DE MORTE
Zétia saltou do carro tão logo o estacionou. Pauline percebeu e correu para trás da igreja, ainda feliz, mesmo com a expectativa de ser presa. Saltava e ria, assustando o pessoal que acompanhava a cena de longe. A loucura tem esse dom maravilhoso de assustar que se julga são. — Precisa de ajuda? — perguntou Jota. Zétia devolveu um não seco e mandou que ele e os despachantes ficassem longe da praça e de um possível confronto (literalmente, o que ele disse foi: “Tirem o rabo daqui antes que levem um tiro”). Nelson e Cabral fizeram isso, mas Jota continuou por perto, abrigado contra um Escort velho com placa de São Paulo, capital. O maior vira-lata da cidade foi no encalço do delegado, latindo e torcendo para o lado errado (que era Pauline). Urso não gostava muito de policiais, ele já tinha sido chutado uma ou duas vezes pelos subalternos de Zétia. Coitado, Urso não entendia por que eles sempre implicavam com ele quando tentava proteger a rua dos terríveis carros que passavam com luzes e sirenes ligadas. Zétia seguia cauteloso. Pauline estava armada e, pelo que disseram no telefone, bem fora do seu juízo perfeito. Antes de subir na viatura, tentou ligar para a casa dos Bosco, ninguém atendeu. O mesmo no emprego de Bosco, no Matadouro-Curtume onde os bois sobreviventes esperavam a próxima dança da marreta. O delegado mandou dois de seus homens até lá, eles ainda não tinham retornado o chamado. Zétia estava com um pressentimento ruim sobre isso. Já havia passado metade da extensão da igreja e nada de Pauline. Ela devia ter circulado a parte de trás e continuado até a lateral. Mas o que Pauline queria com esse showzinho? Provocar Bosco? Provar alguma coisa depois de dez anos de surras? Possível, mas ninguém dá uma apresentação daquelas sem plateia, e não havia nem sinal do seu marido. Palmeiras povoavam a praça toda. Estavam ali há tanto tempo que já eram árvores grossas o bastante para ocultar um policial que não estava disposto a encerrar sua carreira, baleado por uma mulher em TPM. Zétia olhou para todos os lados e, pouco antes de avançar de peito aberto, localizou Pauline. Estava na fonte luminosa da praça, dentro da fonte. A atração mais bonita da cidade estava ligada, e Pauline tomava toda a água dos respingos. Seus cabelos já molhados, escorridos pelo rosto magro e branco. A roupa colada ao corpo, delineando formas que ninguém na cidade (a não ser Bosco, talvez) conhecia. Os seios ainda eram firmes, as aureolas pequenas, o vestido colou à carne e rasgou mais, trazendo a coxa direita para fora. Não era uma mulher bonita, mas ali, tão crua e selvagem, foi impossível desprezar Pauline. — Chega, Pauline. Vamos para casa. Ela sorriu. Abaixou-se e apanhou um pouco de água da fonte para jogar sobre si. Soprou o que entrou pela boca como um aerossol. — Estou no banho, Zétia. É falta de educação ficar espiando. — Coloque o revólver no chão. O revólver não vai disparar, molhado desse jeito. Pauline virou a boca da arma para o olho direito. A chuva artificial continuava caindo sobre ela. A fonte da praça não ficava ligada quase nunca, mas de manhãzinha um pessoal da prefeitura fez alguns reparos, resolveram deixá-la funcionando o dia inteiro. O plano é que ficasse acesa à noite e mostrasse para a cidade toda que a prefeita Miriam estava cuidando tão bem de tudo que podia ser reeleita. Zétia não esperava quando Pauline ergueu o revólver e disparou. Pássaros saíram voando dos ninhos. Umas três pessoas que acompanhavam de longe (entre elas Escova) se atiraram contra o chão. Voltar para trás da Palmeira era boa ideia, mas Zétia calculou que isso daria mais coragem a Pauline. E outra: ela não sabia atirar; estava coberta de água gelada, acertar qualquer coisa mais distante que um metro seria um milagre. Mas estavam perto de uma igreja então... Melhor prevenir. — Solte isso antes que você se machuque ou machuque alguém. Você precisa de ajuda, Pauline. Estou aqui para isso. — Mentira, você está aqui porque o povo dessa cidade prefere me ver no cabresto. Bando de urubus! — Não é certo o que está fazendo. Ainda mais na frente da casa de Deus. — Acha que ele mora aqui, delegado? No meio dessa cidade fedida? — Você me entendeu, Pauline. Me entregue a arma e vamos sair daqui. Seu marido deve estar preocupado. — Bosco? O porco do Bosco? Não, Delegado Zétia, aquele maldito só se preocupa quando a cerveja acaba. Aproveitando que ganhava confiança, Zétia avançou mais um passo. Não havia mais árvores entre ele e Pauline, então se ela resolvesse atirar, o chão (e sua falta de mira) seria a única defesa. — Paradinho aí mesmo, delegado! Não terminei o que vim fazer. Era loucura... Não só dela. Também havia Roger Minotto e Milena Sultão, Orlando Torque e seu carro incendiado. O que estava acontecendo com sua cidade? Com Nova Enoque, onde geralmente o maior acontecimento da semana era a morte de algum velho da casa de repouso Ventos Felizes? Zétia deixou um arfar pesado sair do peito e perguntou: — O que você veio fazer aqui? — Vim agradecer — Apontou para a igreja. — Deus? Está falando de Deus? Pela lateral dos olhos, Zétia percebeu que não eram só ele e Pauline na praça. Uma dúzia de crianças, que acabara de sair do cinema quase falido de Nova Enoque, estava acompanhando a tudo. Adolescentes armados com as malditas câmeras que se proliferavam mais depressa que larvas na carniça. Teria que neutralizar Pauline bem rápido, tirá-las dali seria impossível. Mesmo assim ele tentou: — Saiam daqui, é perigoso. — Eu não vou atirar neles — disse Pauline. Baixou a arma, mas a manteve nas mãos. É isso aí, garota, pensou Zétia. Foi quando um novo elemento ganhou a praça. Era um garoto, e se Zétia não estava muito enganado, filho de Orlando Torque. Murilo parou com a bicicleta à frente da aglomeração de garotos e gritou: — Ela pirou! Ela matou o marido, envenenado! — Isso é verdade? — Zétia perguntou. Murilo deve tê-lo ouvido, porque explicou: — É verdade sim, essa doida aí matou o Bosco e ainda tirou foto. Recebi no meu e-mail! Pode olhar se não acredita em mim. — Pauline, essa confusão já foi longe demais. Entregue a arma e vamos sair daqui. Você não quer machucar ninguém. — Você não entende, Zétia. Lembra quando éramos crianças? Eu e você? Lembra como eu era bonita? Eu não era menos bonita que uma dessas meninas com o celular apontado para nós. Mas eu só fui bonita até conhecer o Bosco. Aquele desgraçado me sugou como uma doença. — E você o matou? É isso? — Ele matou a si mesmo. Eu só preparei o jantar. Em seguida a água da fonte foi finalmente desligada. Pauline olhou para cima com uma expressão decepcionada e infantil. Já era noite, e o espetáculo perdendo as cores da iluminação rotativa da fonte não a agradou. — Mata ela! Pauline tentou encontrar o garoto que disse aquilo. Era Murilo Torque, claro. E ninguém o culparia por ser um imbecil, sendo filho de quem era. Era bem provável que ele mesmo tivesse organizado tudo, tivesse espalhado a notícia que Pauline envenenou Bosco, e arrumado a aglomeração de garotos na praça — ou talvez fosse o destino o colocando bem ali, no momento exato. Ela não conseguia se controlar mais, o peso dos olhares a adoecia. Na igreja era assim, na rua era assim, com os poucos amigos, na vizinhança. Sempre alguém reparando nela, cochichando como era tonta e fraca. Pauline poderia ter retomado algum juízo se a praça não estivesse tomada por tantos olhos críticos. — Não faça nada que vá se arrepender, Pauline. — Não sobrou muita coisa, delegado. Vim até aqui para me despedir. — De quem?! — Dele! — Apontou para a igreja. Do Deus que me ajudou a resolver meu problema com Bosco. Foi bom me sentir vingada depois de tanto tempo. Mas quer ouvir uma coisa engraçada? Eu também quero voltar para casa. Não sei viver sem o Bosco. Eu sou como um burro que só aprendeu a comer nas mãos do dono. Ela sorriu. O revólver saiu da altura das pernas e foi para cima. O cano parado em sua têmpora direita. Seus olhos estavam pulsando, tentando jogar a adrenalina para fora. A colmeia de garotos estava maior, e algumas meninas gritaram quando a arma se mexeu de novo. Zétia arriscou tudo e partiu para cima. A pólvora estava molhada e, com um pouco de sorte, o primeiro tiro falharia, teria tempo de rendê-la. Mas a sorte não estava com os caras bonzinhos, a sorte estava com Pauline naquele início de noite. Ela puxou o gatilho e depois da explosão, o cabelo do lado esquerdo foi empurrado com um tufo de lixo vermelho. Os garotos gritaram, todos eles dessa vez. Então saíram correndo, como os pássaros que tinham desistido dos ninhos. — Deus! — disse Zétia. O corpo destonificado de Pauline desmontava sobre a água rasa da fonte. Caiu de costas, a arma ainda em sua mão, os olhos estalados, e um fio caudaloso de sangue tingindo a água rasa de vermelho. Três ou quatro pessoas (que Zétia não se deu o trabalho de reconhecer) tentaram se aproximar, cochichando e dizendo bobagens cristãs que nunca ressuscitaram ninguém. — Saiam daqui! Quem chegar mais perto vai responder por isso! Eles pararam. Zétia ouviu um velho resmungando: “quem esse policialzinho de merda pensa que é?”. Finalmente entrou na fonte e tirou a arma de Pauline. Ainda restavam três balas e era inacreditável que uma delas tivesse disparado. Tão inacreditável quanto Pauline sendo suspeita de envenenar o marido. O rádio na cintura de Zétia bipou duas vezes, e ele o atendeu, sem saber o que mais poderia fazer naquele momento. — Na escuta. — Achamos o Bosco, chefe. Ele está em casa. — Vivo? — É melhor o senhor vir até aqui, não sobrou muita coisa dele... — Lacrem a casa. Chamem reforços de Santa Glória. A esposa dele está aqui comigo, acabou de se matar. Do outro lado da linha, silêncio absoluto. Zétia sentiu um pouco de inveja. MADAME SAFIRA E PADRE ESTEVÃO
Padre Estevão estava fora de Nova Enoque. Viajou dias antes para encontrar seu único irmão vivo (também seu único familiar vivo), que ainda dizia a ele como tinha sido idiota em escolher abraçar a igreja em vez de uma mulher bonita. Estevão ria e respondia que as escolhas eram problema dele. Julius estava mal, tinha uma bolha de sangue nos pulmões e agora precisava andar para todo lado com um balãozinho de oxigênio. Não duraria muito, mesmo com as orações de Estevão. Os dois estavam em uma praça, perto da casa de Julius. Ele vestia um moletom bege, o padre usava calça social e uma camisa escura. Estevão estava com um chapéu de abas pequenas — Julius, quando viu aquilo na cabeça do irmão caçula, perguntou se, depois de velho, ele tinha resolvido dar a bunda. O padre riu, ele não criticava o que ainda não havia experimentado. Jogavam damas e tomavam um pouco do sol da manhã. Perto deles, alguns pombos comiam o que Julius dava a eles. Tanto ele quanto Estevão tinham às mãos um saquinho com pedaços de pão-duro, para fazer amizade com os pombos. Gente velha tem poucos amigos e pombos não rejeitam ninguém que dê comida a eles, o tipo de associação mútua perfeitamente funcional. Um vento frio passeava por ali revirando folhas que haviam caído na noite passada. Um garoto implicava com seu cachorro que não queria sentar. Uma mulher vinha em direção ao homem que usava chapeuzinho de quem dá a bunda. — Padre? — ela perguntou, confirmando se era mesmo Estevão. Ele estava tão à vontade, tão leve que não parecia o velho capelão de Nova Enoque. — Shii... — Julius resmungou. Estevão deixou a pedra no tabuleiro e olhou para ela. Esperava qualquer pessoa, mas Madame Safira? A vidente que o desafiava com a intimidade de uma esposa era uma novidade sombria. — O que aconteceu com a minha igreja? — foi o que conseguiu perguntar. Não imaginou outro motivo que fizesse Safira abandonar a cidade. Sentindo a tensão aumentar, Julius aumentou o fluxo de ar do balão e arfou profundamente. Ele às vezes fazia isso. Não podia beber, nem pensar em fumar, o médico não concordava com psicotrópicos, o que restava era o oxigênio em excesso. — Não é sobre a igreja, não unicamente sobre a igreja. — Diga logo o que a trouxe aqui — pediu irritadiço. Estevão era prático, nunca gostou de rodeios. Safira olhou para Julius. Ele sorriu, sabendo exatamente o que dizer. Não seria a primeira vez... Desde que ficou velho e começou a usar um balãozinho nas costas, muita gente não se sentia à vontade com ele. Sabe-se lá, talvez tivessem medo que alguma emoção mais forte antecipasse sua ida para a cova — como se existisse emoção mais forte que esperar a morte quatorze horas por dia... — Já entendi o recado — ele disse. — Podem sair para trocar figurinhas, eu já me acostumei a jogar sozinho. Além disso, eu estava perdendo. — Desculpe por isso — pediu Estevão. Julius assentiu, sem muita emoção. Safira o agradeceu, depois ouviu: — Uma moça bonita como você não mereceria menos que isso. Estevão agitou a cabeça. De moça, Safira tinha somente os dentes que não eram dela. Contudo, se comparada aos noventa e dois de Julius, era bem jovenzinha. Ela ruboresceu com o elogio, ainda que preferisse tê-lo recebido do outro irmão, do velho com chapéu de quem dá a bunda que estava com uma vergonha danada daquela cantada de pedreiro. Saíram cortando a praça tomando um caminho calçado com granito. Não falaram nada até ultrapassarem os vinte e tantos velhos que se empoleiravam pelos bancos como pombos em um armazém abandonado. Safira teve pena daqueles homens, quase todos deixando escapar a vida que lhes restava. Tudo bem que a velhice não seja um projeto fácil, mas terminar daquele jeito? Não, jogatinas e mau humor não pareciam bons. — Como ele está? — Julius? Ele é um filho da mãe teimoso. Acabou com os pulmões, quase acabou com o fígado, penso que não tem muito tempo. — Mas pelo menos viveu — disse Safira. Estevão sentiu a fisgada e ignorou. Falar com Safira era sempre assim, era como mergulhar em um rio caudaloso, cercado de natureza selvagem e cachoeiras, um pôr do sol exuberante se descortinando à frente. E dentro do rio, piranhas. — O que a trouxe aqui? — Ainda não sei, mas tem algo acontecendo em nossa cidade. Algo ruim. — Pode ser mais específica? — O padre olhou ao redor e apalpou um maço de cigarros no bolso da calça. — Incomoda você? Safira sacudiu a cabeça e esperou que ele acendesse o tubinho. — Uma pessoa foi assassinada, Estevão. — Minha nossa... — Benzeu-se. — Quem? — A filha de Galileu Sultão. — Milena? Pobrezinha. Como isso aconteceu? Mais um trago, e o padre direcionou Safira até um laguinho na mesma praça. Havia alguns patos ali, meia dúzia deles, entre brancos e pardos. Sentaram-se ao lado desse lago, em um banco de madeira. A grama era verdinha sob os pés. Estevão suspirou e tirou o chapéu, seus cabelos estavam bagunçados, ele os alisou com as mãos. — Como aconteceu? A polícia tem algum suspeito? — Roger Minotto, namorado dela. Estevão parecia surpreso. — Conheço aquele garoto desde sua primeira confissão. Ele não faria mal a um pardal doente. Nem que pedissem a ele. — Era o que eu pensava, Estevão. Eu, o delegado Zétia e o resto da cidade toda. Mas encontraram a garota morta dentro do carro do menino. No morro. Ele também estava lá, catatônico. — E o pai? Ricardo Minotto? — Até eu sair da cidade, ele estava com um advogado, tentando tirar o filho da cadeia. Mas me preocupo bem mais com Galileu Sultão. Conhece gente do campo. São mansos, mas nada de provocá-los. Ele vai querer vingança. — Jesus, que Deus tenha piedade do pobre homem. Não sei como alguém suporta perder um filho, ainda mais em uma brutalidade dessas. — Deus tenha piedade de nossa cidade toda, Estevão, não foi só isso o que aconteceu desde que saiu de Nova Enoque. — Conte o que sabe, Safira. Ou o que sente... Havia um pouco de deboche no tom. O que sente se referia a mediunidade de Safira que para Estevão não passava de charlatanismo. O pior de tudo é que a cidade inteira dava crédito a ela. Muita gente, que Deus os perdoe por isso, preferia seus conselhos às palavras sagradas da bíblia. Safira fingiu não notar a provocação e explicou: — Eu vinha percebendo algo estranho na cidade, um peso diferente, mas não dei importância. É época de eleição, e tudo fica muito delicado, muito nervoso. Sei que entende do assunto, aposto que a igreja também passa por mudanças nesse período. — O povo fica assustado. Muita gente procura aconselhamento. — Aconteceram fenômenos em minha casa, padre. — Vamos parar por aqui, Safira. Sabe o que eu penso dessas suas práticas. Eu não acredito em fenômenos. — Mas acredita em milagres, certo? De Deus... ou do Diabo! — Milagres são de Deus, malefícios são do Diabo. Não os coloque juntos. — Pois bem. Presumo que o Diabo esteve em minha casa, Estevão. Um Diabo. E ele deixou o vento mais frio, me atacou e mandou uma mensagem clara para que eu não me metesse em seus negócios. Só que eu, eu e você, nós não podemos simplesmente fechar nossos olhos. Pouco antes de sair, ouvi que também houve um incidente na praça. Na praça da sua igreja. — A igreja é de Deus. Odiava quando ele se fazia de humilde. Isso a fez dar a notícia da pior maneira possível: — Pauline Bosco se matou na frente da Igreja do seu Deus. Foi o que disseram. — Deus a perdoe por isso. Alguém sabe o motivo? Por que essa pobre alma tirou a própria vida? Digo, deve ter acontecido alguma coisa. — Todos sabem o que aconteceu, padre. Ela procurou seus conselhos e também os meus, procurou a ajuda que pôde. O Bosco, marido dela, de um jeito de outro foi ele quem a matou. Aos poucos, fazendo dela seu capacho. — E ele nisso tudo? O Marido? — Pauline o envenenou antes de matar a si mesma com um tiro na cabeça. Ouça-me, padre: tem alguma coisa nascendo em nossa cidade. Um mal muito poderoso. Precisamos agir antes que seja tarde. — Do que estamos falando, Safira? — Ainda é cedo para saber, mas ele me assediou. Entrou pelas portas fechadas de minha casa e me ameaçou, chame de milagre se preferir. O que eu sei é que estamos lidando com algo além de nossa compreensão, pelo menos além da minha. O céu ficou carrancudo nesse ponto da conversa. Um vento frio nasceu no meio da brisa leve e deixou o coração de Estevão apertado. As ondulações do lago ficaram como que congeladas, até os patos pararam de se mover sobre a água, um deles inverteu o pescoço e colocou sobre o dorso. As árvores não se moviam dando a impressão que o vento, a pior parte do vento, preferia soprar sobre Estevão e Safira. De tão quieto, ouviam seus próprios corações. — Creio que seja hora de voltar para casa. Meus planos eram para o domingo, mas com essas mortes, as pessoas vão ficar desnorteadas. A polícia está cuidando de tudo, você disse? — A polícia de Nova Enoque é Zétia. E desde que ele perdeu a mulher não tem sido metade do que era. Minha sobrinha, Regina, trabalha com ele, é escrivã. Ela está me mantendo informada. Parece que Zétia está segurando bem a histeria do povo, ou estava até o que aconteceu com Pauline. — Será que nossa cidade não pagou o suficiente? — perguntou Estevão. Seu queixo tremeu um pouco e, por um momento, pareceu que começaria a chorar. Mas Estevão, Padre Estevão, era um homem bem durão. — O que fizemos, o que fizeram, foi muito grave. Se tudo isso se trata de um resgate, precisaremos da sua fé, padre. Da sua, da minha, e de todos os anjos disponíveis no firmamento. Sinto muito por tirá-lo de seu irmão, mas senti que precisava vir até aqui. Estevão deixou o assento e a encarou com ternura. — Você é boa nesse negócio de sentir — sorriu. — E quanto ao Julius, não faz a menor diferença o fato de eu estar aqui ou não. Se ficasse mais muito tempo, acabaríamos brigando como sempre acontece. É melhor sair enquanto tudo está bem. — Estendeu as mãos para que Safira se levantasse. — Meu ministério me paga para esses eventos, é minha obrigação dar apoio aos que precisam, não importa se são assassinos ou possuídos pelo demônio. — Você é um bom homem, Estevão. — Não, Safira. Não sou. Mas tento ser um bom padre. PREFEITA MIRIAM E SUA REELEIÇÃO
Miriam Guerra, a perfeita definição de inteligência política na cidade de Nova Enoque, mas principalmente, a oposição irrefreável a Orlando Torque, o político mais safado da região (com uma probabilidade bem alta de logo se tornar o político mais safado do estado). Miriam se meteu na política depois da morte de seu irmão — Álvaro Guerra —, então líder da câmara dos vereadores e o candidato com as maiores chances de assumir a prefeitura de 2006. Mas isso nunca aconteceu, o carro de Álvares perdeu a direção e mergulhou de cara no Rio do Justo, na saída para a estrada vicinal Orestes Anísio que o levaria até sua chácara, na qual passava os fins de semana enchendo a cara com vodca russa. Até então, Miriam Guerra era somente sua principal cabo eleitoral. Mas Miriam não era sutil e dispersa como Álvarez, quando ela viu a chance certa se lançou na política e abarcou de uma só vez os eleitores do irmão e todas as feministas da cidade. Miriam era esperta, ela sabia jogar o jogo. Com os últimos acontecimentos, a atual prefeita estava acuada e precisava dar uma resposta à população. Três mortes? Em Nova Enoque? E ainda teria que explicar o Subaru de Orlando Torque pegando fogo bem no meio da praça. Esse ponto, diga-se, era o que menos a preocupava. Orlando tinha inimigos em cada esquina, muita gente gostaria de ferrá-lo. Por outro lado, Orlando era um filho da mãe esperto. Era bom tomar cuidado e ficar de olho nos três idiotas que fizeram o serviço. O líder, o tal Jota Moreno, nesse a prefeita confiava, mas os outros dois valiam menos que o próprio Orlando. A prefeitura ficava no prédio mais antigo da cidade, tinha passado por mais de dez reformas e agora estava tombado pela secretaria de cultura. Originalmente era a casa de um barão do café, mas já tinha sido inclusive um prostíbulo, até se tornar prédio oficial em 1922. Miriam estava sozinha na sala de despacho. Do lado de fora, seu melhor segurança, uma estátua de ébano chamado Dionísio. Miriam abanou o rosto e passou a mão direita pela nuca. Uma estranha queda de temperatura atingiu Nova Enoque na noite anterior, depois das oito da noite — pouco depois que a maluca da Pauline Bosco se matou na praça da igreja —, mas hoje, as nove, as janelas estavam de novo abertas. Miriam estava sem seu terninho, apenas de camisa branca, calça social e uma caneta dourada na mão. À sua frente um notebook mostrando que as coisas não iam nada bem com o seu partido. Miriam era uma prefeita do PT, uma mulher; não faltavam bobos que a comparassem a atual presidente da república, Dilma Rousseff — o que, antes, era uma enorme vantagem. Perto da copa do mundo, entretanto, o jogo virou e estar perto de Dilma era cutucar um vespeiro com os dedos melados. Massageou as têmporas, sua cabeça estava rachando. — O que eu vou fazer com você? — Bateu os dedos contra a mesa. A foto de Orlando brilhando em seu notebook. É claro que Orlando aproveitaria a onda de crimes da cidade para virar o jogo ao seu favor. O incêndio do seu carro — antes uma ideia boa de doer — agora funcionava como um tiro nos joelhos. Porcaria, o safado do Orlando estava no mesmo balaio que a cidade, pagando o preço pela insegurança. Ontem mesmo, logo depois do incidente na praça, ele se pronunciou no rádio. Disse que a prefeita, que se preocupava mais com a cor dos seus cabelos do que com a cidade, estava pagando o preço por sua moleza com a bandidagem. Tentou estabelecer uma correlação entre ela e o crime, citando seus dois seguranças — Cidão tinha trabalhado para a polícia da capital, mas estava afastado pela corregedoria depois de ser acusado da chacina de três menores, e Dionísio tinha um longo histórico de violência em Nova Enoque. — Posso entrar? — perguntou, já entrando, uma garota bonita demais para aquela sala. — Filha? O que faz aqui? — perguntou Miriam, tomando o cuidado de voltar o notebook ao Google. Se Patrícia visse a foto de Orlando iria querer saber mais do que Miriam estava disposta a explicar. Se a política havia ensinado uma coisa a Miriam Guerra era que cada assunto tem sua hora. — Vai dormir aqui essa noite? — Patrícia deixou o corpo cair sobre uma poltrona que ficava perto da entrada. Usava o uniforme branco da escola, com um moletom amarrado na cintura. Servia apenas para cobrir a bunda com um calor daqueles. Miriam sorriu. — Se eu quisesse resolver tudo o que tenho pendente, precisaria de uma semana. Já estou terminando aqui. Tudo bem na escola? — Tá todo mundo meio maluco por causa da moça da praça. Poxa vida, o pessoal tinha acabado de saber sobre a Milena e Roger, e bomm! Outra bomba. Sabe como é o povinho daqui... Aproveitaram para falar mal da senhora. Miriam ganhou uma tonalidade vermelha no rosto. Não bastava fazerem dela saco de pancadas nos jornais e no rádio, não... Eles precisavam encher a cabeça de sua filha de bobagens. — O que eles disseram? Quem disse? — Uns manés da escola. Sabe como eles são, mãe. Ninguém nessa cidade machista gosta de uma mulher mandando em tudo. Falaram o de sempre: que a senhora faz vistas grossas, que finge que não está acontecendo nada e que deviam tirar a senhora da prefeitura antes que a cidade pegue fogo. Por baixo da mesa, Miriam apertou os dedos contra as palmas das mãos. Quem aqueles enoqueanos de merda pensavam que eram? O povo tem uma memória curta dos diabos. Todo mundo se esqueceu dos cofres públicos depenados quando ela assumiu? Deus sabe que estavam mais rasos que a represa da cidade que não via chuva decente há dois meses. A pilhagem corria solta entre os vereadores, todos crápulas chefiados por Orlando Torque. Ela tinha alguma culpa, sim. Tinha mandado meter fogo no carro de Torque e, antes disso, fez o que precisava para mudar o vento a seu favor. Mas e daí? Essa é a política nacional, certo? Ninguém em sã consciência quer ser mais certo que o rei. — Sinto muito que tenha ouvido isso. — Política fede, mãe. Mas você não fede. Você é minha mãe, dona Miriam Guerra. Pai e mãe! — sorriu, mastigando um chiclete de menta com a boca aberta. Não estava sendo fácil, mas ouvindo a filha, Miriam conseguia quase agradecer a canalhice do seu ex-marido. Everton era um bon-vivant, e quando as vacas ficaram magras para a família Guerra (quando Alvares morreu), ele deu no pé, abandonou Miriam, sua filha e uma casa vendida sem que elas soubessem. Patrícia perguntara sobre ele uma ou duas vezes, uma delas no aniversário de onze anos, a outra quando Miriam proibiu uma viagem ao Hopy Hari (Patrícia disse que se o seu pai estivesse ali, ele permitiria, Miriam disse que ele não teria dinheiro para isso, porque, além de safado, era burro). — Um povinho da chapa do Orlando ficou falando um monte... Disseram que a senhora está envolvida com o pessoal do PT e que vocês vão incendiar o país antes de deixar o governo. Não deu para não rir. — Incendiar o país? Esse país é um barril de pólvora, filha! Tudo o que o PT tenta fazer, e não é só o nosso partido, é evitar que exploda. Nós nunca soubemos lidar bem com a democracia, nós que eu digo, são os brasileiros. Pegamos a receita pronta do bolo estragado de alguém e erramos o tempo de forno. Deus me livre de riscar esse pavio! Mas vamos parar com a política... Como vai o coração? Patrícia se encolheu, ficou toda murcha. Talvez tivesse sido melhor continuar com a política. — O Davi tá namorando outra menina. A idiota da Stela. — Stela Nogueira? Sua melhor amiga? — Ex-melhor-amiga. Eu vi os dois se beijando perto da loja da Levis. No Stars-Café. Puta merda, mãe... Eles não podiam ter escolhido outro lugar? Davi já tinha tido um affaire com a filha da prefeita, justamente ali, no Stars-Café. Ficaram umas duas vezes, depois mais uma no cinema e outra no aniversário da cidade, na praça mesmo, depois da queima de fogos. Foi ali que Patrícia perdeu seu coração para ele — e foi ali, dois dias depois, que ele esmagou o mesmo coração, dizendo que era muito novo para namorar e que precisava se concentrar nos estudos. Safado, agora Patrícia sabia a matéria que ele andava estudando. — E vocês duas? — Não tem mais vocês duas. Não quero ver aquela nojenta nunca mais. — Não faça isso — disse Miriam. Saiu de onde estava e empurrou a cadeira que ficava em frente à mesa até perto da poltrona de Patrícia. Sentou-se em frente à filha. — Precisa ser mais esperta que isso, mocinha. Isso é... Se você ainda gosta desse garoto. — Eu gosto — disse com o tipo de sinceridade que só se tem com a mãe. — Então vejamos... Você já esteve com o Davi, não é? Sabe do que ele gosta e do que ele não gosta. — Sei até que ele tem medo de escuro. — Você vai ser mais esperta que eles. Nada de ficar explodindo, quem quer coisas boas, precisa aprender a fazer concessões, e a dar tempo ao tempo. Quero que você ligue para sua amiga ainda hoje, para a Stela. — Não vou fazer isso, mãe! Eu não tenho estômago. — Claro que tem. Mas também tem um cérebro teimoso e é disso que estamos falando. Escute a mamãe. Ligue para Stela e peça desculpas, diga que você está arrependida e que quer reatar a amizade com ela. Diga que torce pelo namoro dos dois e que está feliz de vê-los juntos. — Posso dizer que prefiro eles dois juntos do que o Davi com outra pessoa... — Isso serve. E enquanto isso, você dá as dicas erradas para a Stela. Ensine-a como ser detestável para o Davi. Por outro lado, você continua fazendo tudo o que ele gosta. A cor das roupas, o jeito de falar, faça até mesmo o que você não gosta para agradá-lo. E dê um tempo para ele faça as comparações. Patrícia olhou bem fundo nos olhos de Miriam. — Mãe, você é um gênio. — Não sou não. Mas aprendi a jogar de acordo com o adversário. Agora vá para casa, está ficando tarde. — Deu um beijinho no rosto esperançoso de Patrícia. — Não quero você andando por aí até a cidade voltar ao normal. A conversa tinha sido boa, Patrícia estava sorrindo outra vez. Ela deixou a cadeira e abriu a porta, antes que atravessasse, ouviu: — E pelo amor de Deus, tenha cuidado. Nós não sabemos quando a loucura dessa cidade vai parar. GALILEU SULTÃO E O HOMEM DO OUTRO LADO DA CERCA
O enterro demorou demais na opinião de Galileu, mas enfim, estava terminado. Ele e a esposa fizeram o que tinha que ser feito. Galileu sentiu raiva, a vontade de chorar ficou com Rosana. Muitos garotos foram até o cemitério, mas nenhum deles teve coragem de falar com os pais da garota morta. A não ser Luciano. Ele conhecia Milena há muito tempo, tinham sido melhores amigos até o começo do ano passado, foi quando ela — inexplicavelmente — o trocou pelo playboyzinho fedido chamado Roger Minotto. Mas Milena Sultão não servia para Roger, não era para ser assim, e a filha do fazendeiro estava tentando dar o fora em Minotto há mais de um mês — enquanto saía às escondidas com Luciano. Agora o dia estava morto, e Galileu limpava sua arma enquanto fumava um cigarro na varanda de casa e ouvia os soluços intermitentes de Rosana. Pobre mulher, já era a segunda vez que a vida lhe arrancava um filho. O primeiro ainda na barriga, cinco meses e uma cólica que os médicos da cidade chamaram de aborto espontâneo. Era comum no campo, Galileu sabia disso, mas Rosana era diferente, ela não era uma mulher do campo, era uma mulher da cidade tentando, há trinta anos, viver no campo. Na distância, alguns vagalumes voavam sobre o milho. Criaturinhas felizes que atraem a morte por causa de seu brilho. Até na natureza ser feliz parecia um pecado. Para Galileu, o dia mais duro de sua vida estava terminado, e a lua reinava mais sangrenta no horizonte triste. Olhava para o longe quando um homem com cabelos compridos e barba esganiçada apareceu em sua propriedade. Apareceu do nada, mas os olhos de Galileu não eram mais os mesmos desde que o tal do astigmatismo apareceu e o obrigou a usar os óculos que nunca comprou. Além disso, a diabetes tentava tomar o resto. — Boa noite — disse o homem. A voz cansada de quem andou muito. — Não é uma noite boa, amigo. E já é tarde. Siga sua estrada se quer um bom conselho. — Só preciso de um pouco de água... Galileu tornou a olhar para a cerca. Saiu empertigado da cadeira em que estava e cruzou a porta para dentro de casa. Não era atitude decente negar água, nem mesmo a um condenado. Foi até o filtro de barro e tirou dele um copo bem cheio (para não precisar volta e pegar mais, ele não faria isso). Por segurança, deixou a arma por perto. Ouviu dizer que morte costuma visitar a mesma família várias vezes quando encontra facilidade. Desceu os degraus que precisava e foi até a entrada limitada por uma porteira. Sondou melhor ao visitante. Era só um andante. — Obrigado — disse o homem, e deu um gole curto na água. Galileu imaginou que fizesse aquilo por estar sem beber água há algum tempo. Andarilhos sabem que depois que o corpo se acostuma a ficar sem água, precisa de um tempo para aceitá-la de volta. — De passagem pela cidade? — Acho que sim. — Deu outro gole. Respirou bem fundo depois. — Ah, Nova Enoque. Lugarzinho hospitaleiro esse aqui. — Se você diz — deu de ombros, Galileu. O homem na entrada tentava reconhecê-lo. Foi o que pareceu. — Conheço você? — perguntou, quando desistiu. Galileu cuspiu para o lado. — Duvido. Eu nunca esqueço um rosto e o seu ainda não tinha visto. — Mas talvez eu tenha visto o senhor. Por acaso o senhor não é pai da garota que... O senhor sabe... — Bom, companheiro, se você já tomou sua água, pode seguir seu caminho. Fiz a minha obrigação e conversar com você não é outra delas. O pagamento de quem ouve conversa fiada é dor de cabeça. — É você sim! Claro que é você! — Passar bem, moço — disse Galileu, e virou de costas. Não perderia seu tempo com um vagabundo. Gente com o pino frouxo acaba afrouxando os pinos dos outros e ninguém com o cheiro daquele homem joga com os onze em campo. Galileu já estava perto da escada quando o homem disse: — Também conheci o pai do moleque que fez aquilo com sua menina. Ricardo Minotto. Trabalhei para ele quando estava começando. O senhor já deve saber, mas ele vai conseguir tirar o rapaz da cadeia. Ele sempre consegue o que quer. — Tem certeza do que está falando? — perguntou Galileu. Ainda de costas. Dentro da casa, uma luz foi acesa, iluminando as frestas da janela do quarto em que ele dormia com Rosana. Depois a luz da cozinha. Galileu quase nunca usava energia elétrica, mas Rosana sim. Ela não conseguia enxergar feito uma coruja como seu homem. — Quem está aí com você? — É um amigo. Fique aí dentro, Rosana. Ela ficou, mas antes acendeu a luz da varanda e deu uma espiada pela porta da frente. Seus olhos estavam inchados, o rosto vermelho. Os cabelos enovelados e soltos, como ela nunca deixava. Rosana era religiosa e mantinha os cabelos presos a maior parte do tempo. Só os soltava à noite, para dormir e estar com seu homem. — Dona — cumprimentou o sujeito lá fora. Ela não respondeu, e Galileu voltou até a porteira. Dessa vez, trouxe a arma com ele. — Agora me explica direitinho isso do garoto sair da cadeira. Eu mesmo falei com o delegado Zétia e ele me disse que não tem a menor possibilidade do maldito sair de lá antes de provarem sua inocência. O que não vai acontecer, segundo ele. — Inocência? — riu o estranho. Com a luz da varanda acesa, um pouco de claridade chegava até a porteira. Então Galileu deu uma nova olhada no homem. Ainda era novo, quarenta anos, no máximo. Tinha uma barba bem comprida e castanha que passava do peito e dava a velhice que o andante não tinha. Pela barba, um pouco de sujeira grudada, pedacinhos de folhas das árvores. O cabelo também estava sem corte. Era da mesma cor da barba, porém, mais sujo. Estava preso de qualquer jeito na parte de trás. As roupas que usava estavam definhando junto com ele. Calça social, camisa de flanela, algo de couro nos pés. Era esquisito olhar para ele, o tal homem era cheio de astúcia no olhar, seus olhos eram azuis, quase tendendo ao violeta, e brilhavam o tempo todo. — O verme que atacou sua filha não tem nada de inocente, seu Galileu. — Não me alembro di tê falado meu nome — disse, empunhando a arma e mirando entre aqueles olhos azuis. O homem do outro lado da cerca não recuou um centímetro. Era como se aquela arma nem estivesse ali, ameaçando abrir seu cérebro como uma melancia madura. Ele tornou a sorrir de um jeito muito, muito estranho. Galileu, em um primeiro olhar, pensou ter visto dentes de serra, mas quando piscou, eles estavam normais de novo. Podres pelas laterais, dois a menos na parte de baixo, mas normais. — Não vai querer fazer isso, chefe. Você é a vítima dessa história toda, você, sua filha e a sua senhora. Eu não estou aqui para trazer mais dor para sua família, mas não posso presenciar uma injustiça como a que está sendo planejada. Eu fui pedir emprego para o safado do Minotto, foi quando ouvi tudo. Galileu baixou a arma e colocou rente à porteira. O ar estava mais frio, um pouco de vento sacudia o milho distante. Era para lá que ele estava olhando quando disse: — Minha menina, a que foi morta por aquele animal, gostava do vento sobre o milho. Ela dizia que pareciam cabelos dos anjos. Pobrezinha. Quando eu penso no que foi feito dela, moço... — Apertou as mãos contra a madeira da porteira. Seus olhos ficaram cheios, e o queixo duro tremeu embaixo da boca. — Ele tem que pagar o preço, Galileu. Todos tem que pagar pelo mal que fazem na terra. Esse negócio de fogo e danação é bonito, faz bem para um bando de carolas que moram na igreja de domingo a domingo, mas homens criados na lida como eu e você? Nós queremos a justiça aqui e agora. Dane-se toda essa baboseira de vida eterna. — Pode me contar o que ouviu nos Minotto. — O advogado dele, o tal de Cotia, ele está entrando com pedido de habeas corpus. — E esse troço aí vai tirar o menino da cadeia? — Vai sim. Roger Minotto é réu primário, significa que ele não tem ficha na polícia. Doutor Cotia é um safado, mas é um advogado dos bons. Ele vai alegar que a polícia não tem provas conclusivas e vai pedir que o garoto aguarde o julgamento em liberdade. Amanhã mesmo o safado sai da jaula. — Impossível. Não foi isso o que o delegado me disse. — O delegado? Delegado Zétia? Ele não manda em nada, Galileu. Ele só abre e fecha a porta da cadeia. Quem decide mesmo é o dinheiro. — Eu... Eu não acredito nisso. — Pode apostar no que eu digo. Se quiser mesmo justiça, aquela justiça que nós dois conhecemos, vai ter que conseguir sozinho. Galileu pensou sobre o que tinha ouvido. Ele era um homem do campo, um homem simples, mas não era burro. Ele não daria ouvidos ao primeiro vagabundo falador que encontrasse em sua porteira. Antes disso descobriria quais as verdadeiras intenções daquele andarilho. — Preciso saber qual seu interesse nisso tudo, senhor. Não me leve a mal, mas alguém que aparece no meu portão precisando de um banho não é exatamente digno de confiança. Não a ponto de eu cometer uma injustiça. O homem girou o pescoço, olhou às suas costas, e o vento afagou o milho com mais força. Mas não havia nuvem no céu que pudesse trazer chuva, era só aquele vento frio. Em seguida voltou a olhar para frente, sem nenhum traço de ofensa por ter ouvido aquilo de precisar de um banho. Ele suspirou, sorriu de um jeito que pareceu doloroso. — Injustiça? Você está com medo de cometer uma injustiça? Galileu, Galileu... Injustiça foi o que fizeram com sua garotinha. Ele abusou dela, sabia? Galileu ruboresceu e respirou fundo. — Acho que ninguém contou essa parte... Mas ele fez isso sim. O Roger Minotto violentou sua menina. Ele fez isso com ela ainda viva. No fim, a coitadinha estava tão machucada que não conseguia mais gritar. Então o garoto sádico apanhou algumas porcarias do chão e usou nela. Usou a chave de rodas do carro e... — Já chega! — gritou Galileu. A arma estava de novo em suas mãos e por um momento ele quis enfiá-la na própria boca e acabar com os anos desgraçados que teria que enfrentar. Ele não teria mais netos, não tinha mais uma filha, sua mulher estava a um passo da depressão (e talvez já estivesse deprimida). Galileu queria se afundar no poço mais fundo que encontrasse. — Você não tem culpa, Galileu. Você e sua esposa são inocentes. — Eu vou até a delegacia resolver isso. — Não vai não. — Como é? Se você acha que pode vir ao meu portão e dizer o que eu devo ou não fazer, moço, perdeu o juízo pela estrada. — Ouça o que eu digo. Você pode fazer melhor que isso, tem mais gente para fazer parte dessa lista. — Eu não quero a família inteira dos Minotto. Posso não gostar do Ricardo, mas ele não merece morrer pelo crime do filho. — Roger Minotto não foi o único culpado pela desgraça de sua filha. Galileu sentiu que não teria forças para ouvir mais nada. Suas pernas fraquejaram, seu estômago parecia fundo, e ele não queria mais falar com aquele homem. De onde ele saiu afinal? Como sabia de tudo aquilo? Não... Na verdade não importava como e sim se o que ele dizia era verdade. E devia ser. Aquele coitado esfarrapado não arriscaria levar um tiro. — Continue — pediu Galileu usando a porteira como escora para suas dores. Debruçou-se sobre ela. — Luciano Juta. — Tá dizendo que ele matou minha filha com o Roger? Luciano estava trabalhando com o pai quando aconteceu! — Ele e sua filha... Bem... Galileu, não sou eu quem inventou isso, lembre-se. Eu só estou contando o que aconteceu. — Não precisa temer por sua vida, homem. Eu já tenho motivos para atirar em você se quiser fazer isso. Conte o que sabe. — Sua Milena e Luciano estavam se encontrando pelas costas de Roger. Não me pergunte como, mas Roger soube de tudo. — E como você soube? — perguntou mesmo assim. O estranho respondeu, mesmo assim. — Ricardo. Ele e o advogado tiveram uma longa conversa enquanto eu esperava do outro lado da sala. As paredes... — As paredes são finas. São divisórias sem teto. Eu já estive lá. — O rapaz que o abraçou no enterro tem sangue nas mãos. Se você tiver duas balas nessa arma, elas têm endereço certo. — Eu não sei se consigo fazer isso. Talvez seja melhor contar tudo a polícia e... — E ficar na mão da justiça que sempre falha? Galileu, Galileu... Eu tenho uma ideia melhor, Galileu. Você não precisa ir até a cadeia. Se Roger for mesmo solto, vai estar na sua mira sem que você precise se esforçar muito. E mesmo que você seja flagrado, que juiz o condenaria? Quem condenaria um homem por vingar a morte da própria filha? De uma filha violentada e assassinada? Antes que Galileu tivesse tempo de reagir, o estranho ainda disse: — Luciano viria no mesmo pacote. Tenho uma ideia de como reunir os dois vagabundos para uma conversinha com você. As mãos de Galileu acariciaram o cano de sua arma. Ela estava fria e limpa. A noite também estava mais fria e mais escura. A noite era seu próprio coração. VOCÊ VEM COMIGO!
Lobo estava de olho em sua mãe. Desde a visita do esquisitão dos aspiradores de pó, ele não desgrudava os olhos dela. Queria acreditar que Nora sozinha conseguiria se libertar mais uma vez do vício, embora todas as prerrogativas dissessem que não aconteceria. A tevê da sala estava de volta — Lobo a recuperou e pagaria vendendo papelotes de maconha no bairro —, e Nora e Lobo assistiam um episódio de Bob Esponja pouco antes das onze da manhã. — Você não precisa ficar em cima de mim como uma coruja — ela disse. Tinha acabado de terminar um cigarro e a fumaça azeda do toco começava a subir do cinzeiro. — Tô vendo o desenho. Na tevê Bob parecia cheio de maconha na esponja. Estava com os olhos vermelhos e Patrick Estrela comia tudo o que via pela frente (inclusive as mãos do Lula Molusco). Nora riu. — Onde você dormiu a noite passada? — Aqui mesmo, mãe. Dormi no meu colchão, do lado da sua cama. Nora deu um riso curtinho. — Eu nem vi. Acho que apaguei feio. Claro que apagou... Ela e Lobo ainda não tinham conversado sobre a fada do crack, e Nora tentava parecer normalíssima, apesar de não fazer ideia de onde tinha ido parar seu cachimbo e a droga que sobrou. Tampouco perguntou sobre a tevê. Quando acordou, ela já estava lá, Nora pensou que tivesse sonhado sobre isso. Quanto ao aparelho de som, ainda não sabia o que pensar — ele não estava de volta. Também não deu muito crédito ao desaparecimento, um cérebro chapado costuma tratar mentiras e verdades da mesma maneira. — A gente precisa trocar umas ideia — disse Lobo. — Em que porcaria você se meteu agora? Polícia? Olha aqui, garoto, se algum homem fardado bater aqui em casa, entrego você antes que ele mostre o distintivo. Lobo baixou o volume da tevê, mas a deixou ligada. Um pouco de desenho animado faria bem àquela conversa escrota. Não é todo dia que uma família passa por uma inversão de valores tão absoluta. — Não é nada comigo, mãe. — Apanhou um cigarro dos seus (estavam em cima do banquinho de madeira, onde estava também o cinzeiro) e acendeu. — Você não tem nada pra me contar? Nadinha? Nora engoliu a seco e continuou olhando para frente, para Bob. — Se tem alguma coisa pra dizer, faz isso logo, Lobo. Tenho que arrumar seu almoço. Depois vou sair e tentar arranjar um emprego. Estou sabendo que a prefeitura está pegando gente na limpeza pública. Eu sei que o emprego é uma porcaria, mas preciso ganhar dinheiro. O que eu recebo de aposentadoria não está dando para o gasto. — Se você não gastasse com porcarias, dava e sobrava. — E se você ajudasse aqui em casa em vez de fumar maconha com seus amigos eu não precisaria morar nessa casa de merda. Sabe quanto custa manter um cavalão da sua idade? — Menos que um mês de pedra. Nora desviou os olhos para o cinzeiro. Seu maço de cigarros já era, e ela não tinha vergonha de se humilhar mais um pouco. — Posso? — É nosso — Lobo disse. Ela apanhou um e acendeu. Disse enquanto soltava a fumaça devagar: — Não vai adiantar mentir pra você, né? Lobo balançou a cabeça. — Eu fui fraca — foi o que Nora conseguiu dizer. Os dois ficaram em silêncio por um tempo, tomando o vento quente que entrava pela janela da sala e ouvindo o ventilador que estava com a gradinha solta. Bob não estava mais na tevê, que agora passava propagandas sobre outro reality show pipoquento. Nora sentiu-se na obrigação de dizer mais. Não devia ser fácil para o garoto. Lobo era quase um marginal, mas era ele quem estava puxando a orelha da mãe viciada. Ele merecia saber mais. — Semana passada, eu fui até o centro. Recebi um dinheiro que não esperava e resolvi gastar um pouco. Sei lá há quanto tempo eu não comprava um vestido, então a idiota aqui pensou que era uma boa ideia. Queria comprar um vestido e sair com você no dia das mães. Em algum restaurante desses, de gente rica. — Eu não ligo para isso. — Mas eu ligo. Não gosto quando vejo você se tornando alguém pior que o vagabundo do seu pai. E odeio abrir meu guarda-roupa e me sentir com oitenta anos. Eu apanhei um pouco de dinheiro e fui até aquela loja que fica perto do correio do centro, aquela cheia de fru-fru. Madame Lulú. Assim que entrei percebi duas atendentes de nariz empinado me vigiando. Acharam que eu ia roubar; putinhas... — Não gosto daquela loja. Eu não gosto de nada nessa cidade. — Nem eu, filho. Mas quis mudar de opinião. E não foi só isso, eu queria dar uma chance pra nós dois. Sair de casa é bom, esquecer um pouco da vida dura, sair de perto da gentinha desse bairro. — Tragou o cigarro. — Eu continuei vendo os vestidos. Separei os dois mais bonitos e levei pra uma das putinhas. Pedi para provar. — Mais um trago no cigarro, esse bem longo e rápido. — A mocinha me mediu de cima em baixo, depois perguntou se eu sabia quanto custava o vestido. Ela ainda disse que se eu o sujasse ou estragasse, ia pagar pela peça. Eu já estava humilhada o suficiente, mas para acabar com meu juízo, uma cliente veio me defender. Achei bom na hora, me enchi de razão, porra Lobo, eu tava pronta para rodar a baiana! Mas quando olhei para ver quem era, dei de cara com a Eliete Torque, irmã do safado do Orlando. Eu não via a Eliete fazia muito tempo, uns dez anos. Senti vontade de me matar ali mesmo, de vergonha, de ser tão horrível. Eu não queria ter me tornado essa coisa velha, Lobo. Ela estava linda, sabe? Começou a chorar em seguida. Tapou os olhos para que Lobo não olhasse para ela. — Do resto você já sabe. Fui fazer o que eu sei: acabar comigo mesma. E não tem nada melhor para isso que Pedra. — Que é isso, mãe. Você não é esse lixo todo. E não devia pensar esse monte de merda. — Mas eu penso. Eu penso o tempo todo, e não tem Jesus e Nossa Senhora nesse mundo que tire esse monte de asneiras da minha cabeça. Eu sou fraca, meu filho. Fui fraca com seu pai, com você e comigo mesma. — O crack leva a gente pro fundo. — Eu já conheço o fundo, Lobo. Conheço tanto que prefiro ficar lá embaixo onde não preciso mostrar para ninguém o que me tornei. Meu cabelo seco, minha pele manchada, minhas rugas. Eu posso lidar com o espelho, mas com o olhar das pessoas? Não Lobo, esse é o tipo de merda que enterra você. Agora me deixa em paz. Lobo olhou firme para ela, mesmo que ela negasse devolver o olhar. — Vai tentar parar? Vai fazê isso? — Eu estou arrependida. É só o que eu posso dizer agora. Estou envergonhada e arrependida. Foram mais dois minutos até que Nora deixasse o sofá e voltasse a subir o som da tevê. A conversa tinha terminado. Lobo calçou seu tênis, ergueu sua bermuda do Corinthians, apanhou um vidrinho dos fundos do guarda-roupa em seu quarto e saiu com o Del Rey de Nora sem pedir autorização. Ninguém saiu à porta para protestar. Lobo sabia como ajudar Nora. Lutou consigo mesmo, tentou encontrar outra saída, mas ele não era do tipo que perdia tempo pensando muito sobre um problema. Seu estilo era fazer a merda para depois descobrir o quanto fedia. No meio do caminho — bem em frente à agência dos correios e à loja da Madame Lulú —, Lobo parou o carro e sacou seu celular. Discou um número esquisito no Nokia. O telefone do outro lado mal tocou e alguém o atendeu. — Eu topo — disse Lobo. — Tô indo pra lá.
CHEGOU À FRENTE DA Escola Municipal Afonso Alegrete em oito minutos, dez minutos antes de o sinal da saída tocar. O sol brilhava sobre uma viatura de polícia à frente do portão, era a porcaria da ronda municipal. Por conta disso, ele precisou estacionar dois quarteirões depois. Não tinha problema, o carro estaria no caminho da filha da prefeita do mesmo jeito. Segundo o cara do aspirador de ideias, ela entraria em uma sorveteria e se separaria do resto dos playboyzinhos do municipal. Como o cara do aspirador sabia disso, não era importante para Lobo, importante era tirar sua mãe daquele maldito vício e de sua vida de bosta. Fumou mais um cigarro antes de ouvir o sinal que parecia uma sirene de guerra. Sua cabeça estava dolorida, ele tinha bebido demais na noite anterior. Fazia um bom tempo que sua cabeça doía. Lobo não era um cara ruim, qualquer pessoa que o conhecesse em um ponto de ônibus ou jogando conversa fora, concordaria com isso. O problema com ele é que não conhecia a palavra limite. Sua mãe o travava como um incapacitado mental, os professores desistiram dele depressa, seu pai desistira dele. Todo mundo acabava virando as costas para Lobo. Até os caras, pensou. Mas com Pêra e Jota — o safado ladrão do Jota Moreno — ele se acertaria depois. A primeira horda de adolescentes passou falando besteiras ao lado do Del Rei. O calor abafava o interior do carro e fritava os miolos sobreviventes de Lobo, mas ele não reclamava. Dessa vez estava ali por uma boa causa (um que não era boa somente para ele). — Que cara esquisito — disse uma garota com a camiseta do uniforme colada demais. Devia ter uns quinze anos, era alta demais e boazuda demais para uma criança. Isso de crianças não fazia sentido na cabeça simplificada de Lobo, para ele, apareceram peitinhos, estava boa para aquilo. E a tal garota que o chamou de esquisito tinha cara que já conhecia aquilo de perto. Lobo a imaginou... Peladinha. Mandou um beijinho, e ela o chamou de porco. Ele riu. Gostava dos porcos, eram animais inteligentes e simples, nunca ninguém ouviu falar de um porco morrendo de fome. Precisava ficar atento. Ele conhecia a filha da prefeita, mas com tanta gente passando e falando como um bando de pardais epiléticos ficava fácil se confundir. Patrícia apareceu quando o esgoto adolescente terminava de escoar. Lobo a viu e desceu com o carro até a sorveteria do Mamão. Ele conhecia o cara, estudaram juntos na quarta série. Mamão já vendia sorvete naquela época e todo mundo ria dele. Agora quem ria era Mamão, dono de três sorveterias na cidade e prestes a abrir uma loja de Açaí. Lobo desceu do carro e esperou que Patrícia se separasse das duas magrelas espinhentas que grudavam nela como pulgas. O outro era um moleque com cara de panaca. Todo adolescente tem um pouco de cara de panaca, mas aquele era especial. Lobo imaginou se ele teria algum tipo de retardo mental para cortar o cabelo daquele jeito, todo seboso e caído nos olhos. Ficava pior ainda quando ele ria, parecia um galo com aneurisma na glote. Como esperava, os garotos foram andando, e Patrícia ficou sozinha na sorveteria. As meninas deram uma risadinha e isso fez Lobo pensar que a desculpa para ela estar ali sozinha era encontrar algum namorado babaquinha (estava certo nisso, alguém mandou um e-mail para Patrícia). Lobo estava em frente à sorveteria, não exatamente em frente, mas uns dois metros abaixo. Ele viu a filha da prefeita checar o celular por duas vezes e balançar a cabeça. Ela estava brava, tinha levado o cano. A garota ainda demorou dez minutos, e um monte de mensagens no celular, para desistir de esperar. A rua já estava vazia depois desse tempo, o bando de pardais epiléticos adolescentes tinha voltado para o ninho e deixado aquela avezinha rica sozinha. Lobo não perguntou para o cara do aspirador o que ele faria com ela, só agora pensava nisso. Mas já era tarde demais, ele já estava com um pouco de éter (que usava às vezes para ficar doidão) ensopando um lenço vermelho de Nora. A sorveteria também estava vazia, era hora do almoço e ninguém tomaria sorvete ali antes das duas da tarde. — Patrícia? — chamou quando ela botou o pé direito na calçada. Ela se virou de repente, seus cabelos loiros espalharam perfume de morango no ar. Antes que percebesse, Lobo a envolveu com um abraço tóxico. Ele foi rápido. Antes que o atendente da sorveteria (outro adolescente espinhento chamado Maycon) olhasse para fora de novo, para ver a bundinha empinada da filha da prefeita, o Del Rey tinha dado partida e arrancado. Patrícia dormia desmaiada no encardido do banco de trás. PREJUÍZO NÃO CONSTA NO MEU DICIONÁRIO
Orlando Torque não era o tipo de homem que se calava depois de perder uma briga. No fundo, foi o que acabou acontecendo com a história do Subaru. Delegado Zétia, completamente atolado de trabalho depois do que aconteceu com Milena Sultão, Pauline e Bosco, não foi capaz de (ou quis) vasculhar cada quintal da cidade atrás dos culpados pelo ataque ao carro. Para não sair no prejuízo (o seguro do carro disse que pagaria pelos danos, mas queria o nome do culpado), Orlando contratou um detetive aposentado que ainda morava na cidade para descobrir tudo. Matias Siqueira. Por anos, Matias trabalhou para a polícia de Horizonte como investigador, mas os cigarros, o café e principalmente um sistema nervoso quente como pólvora acesa, decretaram sua aposentadoria prematura. Desde então Siqueira ganhava algum descobrindo adultérios e falcatruas contra as seguradoras de Nova Enoque (e ajudando caras como Torque). O contrato com Orlando deixou Siqueira feliz como um passarinho. Era trabalho de verdade, encomendado pelo vereador Torque (que apesar de safado era um figurão da cidade), se ele fizesse tudo certinho e entregasse o pilantra que meteu fogo no carro do homem, teria mais clientes e de maior expressão. Mas ele não ligava muito para isso, a polícia já pagava bem para Siqueira ficar em casa coçando o saco. O que a polícia não pagava era respeito. Um trabalho como aquele daria isso, reconhecimento. Por dois dias Siqueira varreu a cidade. Não foi fácil. Orlando demorou muito para falar com ele, com isso, qualquer prova que tivessem deixado para trás já estaria evaporada. Mesmo assim Siqueira voltou ao local do comício e perguntou para o dono do lugar, do terreno, se ele não havia visto nada estranho acontecendo no meio do corre-corre. Galileu Sultão disse que alguém contou sobre dois moleques brigando, mas não entrou em detalhes. Siqueira, então, foi de novo falar com os policiais de Zétia. Um deles conhecia os dois rapazes. Segundo o soldado Fábio, os dois não teriam cérebro para organizar um ataque, também não teriam motivos. Siqueira não engoliu, porque conhecia algo que motivaria um padre a erguer a batina: dinheiro. Primeiro ele bateu na casa de Lobo, mas quem atendeu foi a mãe do rapaz. Não estava dizendo coisa com coisa, parecia drogada. O que ela conseguiu dizer é que o filho não estava em casa. Mas Siqueira tinha o outro garoto. Segundo Fábio (o cara da polícia), ele era um pouco mais esperto que o tal do Lobo, mas nenhum cientista... Garotos pobres e ferrados como aqueles não aguentam muita pressão. Além disso, havia uma grande vantagem em espremer o Pêra: ele morava sozinho. Siqueira ajeitou o paletó creme, secou o rosto suado com um lencinho de bolso, e apertou a campainha. O botão era um nojo, devia ter uns dez anos de sujeira impregnados nele. Atende, seu bostinha, sei que você está aí dentro. Mais uma vez, apertou o botão nojento. Alguém mexeu nas cortinas da única janela da frente da casa. Siqueira espetou o dedo de novo e a campainha de cigarra gritou. Dessa vez ele bateu à porta também, só para garantir. A madeira abriu um pedacinho de claridade. — Pois não? — Edgar Monção? — Quem deseja? — Pêra perguntou. Estava cheirando a bagulho. — Sou da polícia. Quero conversar com você. — O que eu fiz? — Se não abrir essa porta logo, posso arranjar um monte de coisas, moleque. Por enquanto, só quero conversar. — Só um instantinho. Tô de pijama. Por mim, podia estar pelado, pensou e bufou Siqueira. Ele detestava perder tempo, na mesma proporção que detestava aquele bairro maldito. Ninguém gostava do Bueiro (que na verdade se chamava Explanada Esperança). Os piores marginais, drogas, tudo de errado escorria ali como um maldito bueiro de verdade. O ar era mais quente, a cidade mais barulhenta, as garotas começavam a transar com doze anos e tinham netos aos trinta e seis. Todos os bares ficavam cheios de homens testando o fígado com a pior pinga que encontrassem. — Pode entrar — disse Pêra. Abriu de vez a porta. Estava com a cara amassada de quem acabou de acordar. Vestia uma bermuda com um furo na bunda e uma camiseta com uma caricatura do Bob Marley. Siqueira entrou e sentou no sofá pulguento da sala. O lugar era pequeno, mas amplo, bem mais agradável do que esperava. Não havia muitas paredes naquele espaço, dava para ver a cozinha e depois da cozinha, a área de serviço (que só tinha um tanque e uma máquina de lavar roupas beirando o ferro velho). Ainda dava para sentir um rastro de mulher pela casa. Siqueira começou a conversa com isso. — E os seus pais? — Mudaram daqui faz tempo. Eu fiquei. — E eles concordaram com isso? Pêra deu de ombros. — Eu disse que me matava se me obrigassem a ir junto. Siqueira não duvidou que Pêra o fizesse, ele nem piscou. — Quer uma água? — ofereceu quando Siqueira tornou a secar o rosto com o lencinho. — Aceito sim. Gelada se você tiver aí. Depois de desligar a tevê, Pêra foi até a torneira e serviu um copo. — Pode tomar tranquilo. A água é limpa. Tomaria água com barro com a sede que estava. Siqueira entornou o copo e o devolveu a Pêra. Ele o colocou em cima da tevê. — Vai me contar o que eu fiz? — Direto ao ponto? — Você não é da polícia, é? Da polícia de verdade? — Já fui. Hoje sou detetive, mas você já sabe disso. Nessa cidade de merda todo mundo sabe de tudo. Vim falar com você sobre sua briga no dia do comício. — Briga? Ele realmente não lembrou. A briga tinha sido uma simulação, ninguém brigou de verdade, então precisou de um tempinho para cair a ficha. Siqueira ajudou sua memória. — Todo mundo viu você e o outro marginal se pegando no dia do comício. Por que estavam brigando? — Oh, aquilo... Eu nem lembrava. A gente tinha bebido, deve ter sido por causa de alguma mina. Ou alguma estupidez que o Lobo disse. Ele é meio lerdo às vezes. — Então são amigos? Seu burro... — Interessante, porque ouvi dizer que se socaram bastante enquanto o doutor Orlando usava o microfone. Agora você me diz que são amigos? — Essa conversa tá ficando esquisita, seu... — Siqueira. Meu nome é Siqueira. Ficaram alguns segundos quietos. Pêra acendeu um cigarro, ofereceu outro à visita que declinou. — Vou jogar limpo com você, rapaz. Estou aqui por causa do carro do vereador Orlando, o homem que fazia o comício naquela manhã explosiva. Quando ouvi sobre a briga de vocês, tive um pressentimento muito, muito esquisito. Por que não nos poupa um bocado de tempo e diz o que sabe sobre isso? — E como eu ia saber? Eu tava brigando nessa hora, você mesmo disse. — Brigando? Com seu amigão? Meu filho... isso me parece uma desculpa de merda. Penso que pode ter acontecido algo bem diferente na verdade. Do tipo, “vamos distrair esses babacas enquanto alguém mete fogo no carro do homem”. Pêra perdeu a cor e tragou o cigarro com força. Como aquele filho da puta gordo sabia de tudo isso? Lobo? Jota? A prefeita Miriam? Alguém tinha a língua comprida. — Tá viajando, seu Siqueira. Eu só briguei com o Lobo. — Não foi o que ele disse. — Você… Não interessa. O Lobo só fala merda, doutor. Ainda mais quando ele tá chapado, e isso é quase o tempo todo. Eu não tenho nada a ver com o incêndio do carro do Orlando Torque, com a prefeita, eu não sei de nada. Só quero continuar com minha vida. Um sorriso vencedor brotou como uma erva-daninha no rosto corado de Siqueira. Aquele moleque era burro demais ou estava traçando um plano tão inteligente que ninguém entenderia. Ergueu os olhos para Pêra. Ele é burro mesmo. — Eu não disse nada sobre a prefeita, filho. — Ela estava lá também. Eu mesmo vi. Siqueira continuou encarando, rindo daquele jeito que dizia: Você se fodeu, amiguinho. — Droga... — desabafou Pêra e se jogou no sofá. — Eu não tive nada a ver com isso, não diretamente. Eu só arranjei uma briga. — Você sabe mais que isso. E vai me contar tudinho. Tenho o dia inteiro para esperar. Estou aposentado e minha mulher me detesta. Por que não abre de vez essa sua boca estúpida e me conta tudo? Vai ser melhor para você. Para vocês todos. Ele estava ferrado. Não adiantaria enrolar Siqueira. O gordo maldito parecia teimoso feito uma mula. Ele não sairia dali até ter as respostas que queria e talvez nem assim. Mas se ele já tinha mesmo sido da polícia, bom, se fosse assim, Siqueira saberia dos direitos antes de levar alguém preso. Pêra respirou fundo e lembrou de todos os seriados policiais que assistiu na vida. — Eu respeito o senhor, seu Siqueira, mas não pode entrar na minha casa e me ameaçar desse jeito. O senhor não tem provas, e eu não tenho um advogado. E o senhor nem é mais da polícia, então eu não sou obrigado a dizer nada que não tenha vontade. Eu nem precisava ter aberto a porta. O riso foi morrendo no rosto do homem. Em seu lugar nasceu uma vermelhidão perigosa. Siqueira sacou o lencinho do bolso e secou a testa molhada. Suspirou. Afrouxou o colarinho da camisa. — Nisso tudo, você só tem razão em uma coisa, filho. Eu não estou mais na polícia. Pêra estava indo para a porta. Iria abri-la e acabar com o assunto. Se o detetive não saísse, sairia ele! — Mas... — disse Siqueira. Pêra engoliu a isca e olhou para trás. — Eu ainda tenho amigos na polícia. Gente graúda que não pouparia esforços em foder sua bunda magra para me agradar. Acha que o delegado Zétia, ouvindo tudo o que eu disse a você, engoliria sua história de advogados e direitos civis? Cai na real, garoto, você é um pedacinho fedido da escória da humanidade. — Não pode falar assim comigo — respondeu baixinho. Pêra já era. Siqueira deixou o sofá e foi até ele. Ficaram frente a frente. Siqueira ajeitou o colarinho da camiseta de Pêra. — Eu poderia moer seus ossos aqui dentro e ninguém me chamaria para conversar na delegacia. Andei perguntando sobre você. Descobri que você e seu outro amiguinho receberam grana de alguém. E eu sei o que você esconde no porão dessa casa. É o mesmo que sai da sua boca, é erva, garoto. Eu duvido que lá embaixo exista só um ou dois saquinhos para você passar o mês. Agora desembucha. Ou abre essa boca fedida ou vou usar meu celular bem aqui na sua frente e ligar para o delegado. — Se eu contar tudo, o senhor me deixa em paz? Não vai sujar para mim? — Vamos colocar de outra maneira, pivete. Se você não me contar tudo, vai ficar tão sujo que vai precisar de um caminhão pipa para limpá-lo. Agora senta a bunda suja naquele sofá e me explica direitinho por que resolveram meter fogo no carro de Orlando Torque. DOIS DINOSSAUROS EM UMA GAIOLA
Perto das seis da tarde, Miriam deixou a prefeitura e foi com seu motorista-segurança até a delegacia da cidade. Esperou cerca de vinte minutos até que Zétia voltasse do enterro de Pauline e Bosco. Na cerimônia, as famílias acabaram se estranhando — por causa dos túmulos conjuntos, a família de Bosco não concordava que ela ficasse com Bosco, mas metade da sepultura era herança de Pauline —, e o delegado, que naquele fim de mundo tinha quase a mesma autoridade que Deus, foi chamado para intermediar a conversa. Acertaram que depois de cinco anos, resolveriam o que seria feito. Por hora, os dois ficariam juntos. Miriam estava sentada no hall de entrada, suada e com alguns cabelos escapando do coque. Usava óculos escuros grandes e espelhados e tremia as pernas sem parar. Zétia sabia que viria uma bomba assim que a viu — mas ele esperava uma bomba, só uma. — Prefeita? Algum problema? — perguntou por perguntar. Ninguém ia à delegacia se não tivesse um problemão daqueles, nem o Laércio dos correios (que agora estava com irritação intestinal crônica) gostava de entregar seus envelopes por lá. — Tem algum lugar mais privativo para conversarmos? Ninguém me viu até agora, e eu prefiro que continue assim. — Podemos falar na minha sala. Miriam se levantou e, junto com ela, Dionísio. — Não é necessário que ele a acompanhe, prefeita. Dionísio já ia abrindo a boca para dizer besteira, mas Miriam refrigerou a situação. — Pode deixar. Fica de olho aqui fora e no seu telefone. Pode ser que ela tente ligar para você. — Pode me acompanhar, prefeita — Zétia ergueu uma portinhola oculta no balcão e esperou que a prefeita passasse antes de tornar a baixá-la. Miriam tirou os óculos escuros e atravessou. Não gostou nada de estar do outro lado. Todas as vezes que esteve em uma delegacia ficou de frente para o balcão, livre de policiais ou bandidos. Passaram pelo pequeno espaço da escrivã Regina (que fingia ser cega) e seguiram até uma porta de vidro. Estava só encostada. Depois dela, tomaram outro corredor. Já no comecinho ficava a sala com uma plaquinha escrita: Delegado. — Não repare o calor, prefeita. Não conseguimos verba para o ar-condicionado, mas a senhora já sabe disso. Era para ter doído, pelo menos no ego (isso se políticos tivessem algum). A prefeita tinha a resposta certa antes de entrar na sala. — Teríamos verba para isso e muito mais, se o excelentíssimo vereador Orlando Torque não tivesse desviado metade do orçamento para os seus bolsos. Muito do que era para ser investimento público precisou ir para as escolas. Miriam entrou e puxou uma cadeira para si, enquanto Zétia abria uma pequena janela e ligava o ventilador de parede. Estava quente como o inferno lá dentro, a prefeita logo estava se abanando com um envelope pardo vazio que encontrou sobre a mesa. Havia vários ali, envelopes virgens. Zétia também sentou e ligou o computador da mesa. Assim de ouvir o bip, o deixou de lado. — Podemos conversar agora. Qual é o assunto, prefeita? — Eu ainda não sei, não com certeza, mas estou aflita. É a minha filha, delegado. Patrícia não me dá notícias desde manhã. Também não pareceu na aula de inglês, não voltou para casa... Zétia consultou o relógio em seu pulso. — Sei o que parece, Zétia, mas Patrícia não é uma adolescente bobalhona. Minha menina é responsável, ela ligaria se tivesse tido algum problema ou mudasse seus planos. — Não duvido, prefeita. Porém, precisamos contar com a possibilidade de uma vez na vida ela se comportar como uma adolescente. Tentou ligar para ela? Entrou em contato com alguma amiga? — Foi a primeira coisa que eu fiz. Nas primeiras vezes o telefone chamava, mas depois começou a dar direto na caixa postal. O celular deve ter descarregado. Também liguei para duas amigas da Patrícia, nenhuma delas sabia de nada. O mais perto que cheguei foi uma terceira garota, que nem é tão amiga assim da minha filha. Ela contou sobre um encontro com um garoto, na sorveteria perto da escola. Mandei o Dionísio até lá para investigar. O rapaz que trabalha na sorveteria disse que a viu. Ela ficou pouco tempo por lá, depois pagou por um sorvete e foi embora. Isso é tudo o que descobri. — E esse rapaz que ela supostamente encontraria? Sabe quem é ele? — Consegui descobrir isso também. Falei com a diretora da escola e ela me passou o número. O garoto não fazia a menor ideia do que estava acontecendo até eu falar com ele. Tomou um susto inclusive. Ele não está metido nisso, Zétia. Usaram seu nome para marcar um encontrou pelo computador; é o que parece. — Conhece a rotina, prefeita. Não posso registar queixa até completar... — Vinte e quatro horas — ela completou. — Tempo suficiente para um maníaco acabar com uma boa garota para sempre. Faria o mesmo se o desaparecimento fosse de um filho seu? — Eu não tenho filhos, prefeita. — Soou um pouco triste, até mesmo incompetente. Zétia queria ter filhos, é claro. Mas para isso precisaria arranjar uma nova esposa, ou pelo menos uma namorada. Não era fácil. Em Nova Enoque, se você passasse dos trinta, já era. — Mas se eu tivesse um filho — continuou —, faria o que está tentando fazer. Eu não disse que não faria nada a respeito, só disse que não tenho autorização para tratar desse assunto antes de vinte e quatro horas, oficialmente. Existe algum outro relacionamento de sua filha além dos que checou? Alguém que a esteja perseguindo, entende o que quero dizer? — Nada que eu me lembre. Minha filha não é dessas que mostram peitinhos na internet. Ela é uma garota decente. Até o ano passado nem Facebook ela tinha. E outra; eu tenho inimigos nessa cidade, todos sabem disso. Nós tomamos conta uma da outra, sabe? Temos uma espécie de pacto, normas que sempre seguimos. Alguma coisa aconteceu, Zétia. Meu coração de mãe não para de gritar dentro do peito. — Inimigos ou rivais políticos? A prefeita riu, perdendo um pouco do decoro. Até ali, estava incrivelmente controlada, apesar de toda a tensão que havia sobre ela. — Delegado... No fim é a mesma coisa. Aliás, geralmente os inimigos naturais são mais clementes que os políticos. Entre nós o ódio é mais perigoso, o campo minado é estreito e tem dez vezes o número de bombas de uma guerra normal. — Precisamos de nomes, prefeita. E não preciso dizer que essa informação ficará em sigilo. A senhora chegou a receber algum tipo de ameaça? Ou a sua família? — Minha caixa de e-mails está cheia de ameaças. Devo ter mais ameaças que mensagens de feliz natal do ano passado. Mas se eu tivesse que citar um nome. Bem, só tem um homem com vontade e força suficiente para me atacar desse jeito. O escritório de Zétia não ficava muito distante da frente da delegacia, as paredes não eram grande coisa, então dava para ouvir bem o que se falava na entrada e na área em que a polícia efetivamente trabalhava com seus dados e informações. O sincronismo da voz estridente de Orlando Torque com a resposta da prefeita foi quase fantasmagórico. “Cadê aquela piranha, seu infeliz?!”, ouviram do lado de dentro, enquanto Miriam prenunciava o nome de seu principal desafeto político. — Mas que inferno! O que está acontecendo agora? — desabafou Zétia. A prefeita estava saindo junto com ele, mas Zétia pediu que ficasse. Reconheceu a voz de Orlando, e aqueles dois eram sódio e água, seria uma ideia muito ruim misturá-los antes que conseguisse descobrir o motivo daquela gritaria. Saiu pela porta do corredor e viu Dionísio parado, estava de cara amarrada e braços cruzados, impedindo o acesso à abertura do balcão. À frente dele, Orlando espumava enquanto era seguro por Anderson, um dos soldados que tinha acabado de voltar da ronda. Torque estava suado, o rosto todo transtornado pela raiva. Cuspia mais do que conseguia articular em palavras. — Cadê aquela vagabunda!? — repetiu quando notou Zétia. — Melhor tomar cuidado com a língua, xará. Estamos em uma delegacia, e eu adoraria botar na sua bunda — disse Dionísio. — Ei! Quem manda aqui ainda sou eu — assumiu Zétia, dando uma pancada sobre o balcão. Dionísio saiu da frente, e o delegado atravessou. Zétia encarou Orlando trazendo um pouco do seu bom senso de volta. — Me solta! — grunhiu mesmo assim. Tinha feito um rasgo no paletó, embaixo do braço direito. — Não até você esfriar a cabeça! — disse Anderson. Era jovem, no máximo trinta anos, e tinha braços suficientes para prender a obesidade de Orlando por muito tempo. Com Zétia por perto, Orlando parou de se debater, os braços ainda seguros pelo policial fardado. — Podemos conversar como gente ou vou precisar registrar o que aconteceu aqui? A língua que todo político entende. Processo... — Já entendi o recado, delegado. E você pode me soltar, a menos que esteja gostando de ficar aí atrás. Anderson confirmou com Zétia, ele assentiu para que soltasse ao homem. Orlando saiu do abraço, ajeitou o terno e apertou os olhos em Anderson. Depois em Dionísio, que continuava na mesma posição de antes. Ele só movimentava a mandíbula, mascando uma goma antiácida. — Quero falar com ela — disse Orlando. — Ela? — Sabe de quem estou falando, Zétia. Quero falar com Miriam e quero agora! Aquela ordinária mandou atearem fogo no meu carro! Tenho provas, delegado. Arranjo uma confissão assinada em meia hora! — Seu porco! Cadê minha filha! — Emergiu Miriam, gritando dos fundos da delegacia como uma maluca. — Se tocar num fio de cabelo da Patrícia vai comer sua própria merda! — Do que está falando, mafiosa? — Segura ele de novo! — Zétia para Anderson. — E você, me ajuda com sua chefe — pediu a Dionísio. Ele obedeceu e agarrou a prefeita tão logo ela atravessou o balcão (mas só porque, nervosa como ela estava, acabaria fazendo besteira). — Meu Deus do céu! Olha o decoro! — disse Anderson. — Decoro é o caralho! Essa mulherzinha mandou incendiar meu carro! — E você sequestrou minha filha! Porco! Eu vou fritar você, Orlando, você vai sair tão queimado que nem pra carvão vai servir! Nem carvão, tá ouvindo?! — Está falando do quê, prefeita? Perdeu o juízo? — Devolve a minha filha! Zétia entrou no meio da confusão e quase levou um chute da prefeita, entre as pernas. Desviou a tempo e conseguiu alcançar o conjunto de algemas no cinturão de Anderson. Dionísio se esforçava, mas não estava sendo fácil domar a prefeita. Além disso, ele não apertava demais com medo de perder o emprego de segurança. Do outro lado, Orlando começava a fazer menos força. Calculou que a prefeita estava fora-de-si, se ela o atacasse, poderia usar isso. Miriam Guerra já havia incendiado seu carro, se ela o arranhasse no rosto, então? Na frente do delegado da cidade? Oh, isso seria perfeito. Seria, porque Zétia estava pronto para agir. Ele ergueu as algemas e mostrou para a prefeita. Foi como um gás tranquilizante. Miriam parou de se debater, parou de grunhir e, enfim, voltou a prestar atenção nos seus cabelos que pareciam uma samambaia podada demais. Estava chorando de raiva. Se aquele gordo maldito estivesse mesmo com a sua filha... Como ele pôde ir tão longe? Bandido filho da mãe! — Vou precisar usar isso se não se comportarem. — Foi ela quem ferrou meu carro! — disse Orlando. Já estava solto de novo. Suava bastante e respirava depressa. Parecia perto de um infarto. — Arranje água, Regina — pediu Zétia. Ela balançou a cabeça e foi para os fundos. Como se ela não tivesse trabalho com todas as novidades indecentes na cidade, ainda tinha que trabalhar de copeira. Ninguém falou sobre isso quando entrou para a polícia. — Agora me diga com calma, o que a prefeita tem a ver com o seu carro, vereador? — Ela pode dizer melhor do que eu. — Prefeita? — Não sei do que esse ladrão está falando. — Eu já fui inocentado! — disse Orlando. — Embargado! E seu processo ainda vai provar o monte de bosta que você é! — Quero registrar isso, delegado! Ela me chamou de bosta! Antes que o clima pegasse fogo outra vez, Zétia jogou um balde de gelo nos ânimos de Orlando. E na prefeita também. — Ok, vamos anotar tudo. Que você chamou a prefeita de vagabunda, que ela o chamou de porco e de ladrão, e que vocês dois tentaram se agredir bem na minha frente. E quem sabe eu não concorra nas próximas eleições para ocupar o vácuo deixado por vocês dois? Ficaria bom assim? Orlando procurou os olhos da prefeita. Miriam negou no começo, mas enfim ergueu a cabeça e o encarou. Orlando ergueu a bandeira branca como bom político que era. Safado, mas esperto pra caramba. — Eu não sei nada sobre a sua filha, Miriam, garanto que não. Posso ter minhas diferenças com você, mas tenho limites. E o que a senhora tem a dizer sobre o meu carro? — Não aqui. Podemos conversar depois, tentaremos entender juntos o que aconteceu. O que aconteceu? Era hora de tirar o delegado daquela conversa, ora essa... Depois se acertariam colocando algum vagabundo no banco dos réus e tirando o cu da reta como era costume entre os políticos do mundo todo. — E sobre minha filha, delegado... Eu vou para casa. Vou ligar para mais alguns amigos da escola. Se souber de alguma coisa, qualquer coisa, me ligue. — Faça isso, prefeita. Vou tomar o depoimento do Orlando, já que ele está aqui e... — Está me acusando, Zétia? — Ainda não, Orlando. Mas o que espera que eu faça depois do que aconteceu aqui? E sobre o seu carro, amanhã falarei com a prefeita. Certo, prefeita? Miriam assentiu com a cabeça e foi saindo. Estava com alergia daquela delegacia e da safadeza de Orlando. Mas ele não seria idiota de sequestrar sua filha e aparecer na delegacia, mesmo depois de descobrir sobre a porcaria do Subaru. Miriam ajeitou um pouco do terninho torto e checou o rosto em um espelhinho que tirou da bolsa Louis Vuitton. Saiu e deixou Orlando com o delegado. Já dentro do carro, sorvendo o ar condicionado e tirando o calor daquela discussão infame, ela disse: — Vou precisar de você, Dionísio. Quero conversar com o indecente que abriu a boca sobre o Subaru de Orlando assim que Patrícia aparecer. Precisamos garantir que essa gentinha fique quieta. Dionísio sorriu pelo espelho retrovisor; gostava de conversar. DE VOLTA PARA CASA
Padre Estevão dormiu boa parte da viagem de volta. Estava exausto, mas o intuito daquela viagem nunca foi recuperar suas energias. Estevão saiu de Nova Enoque justamente para o oposto, para oferecer um pouco de sua própria energia — ainda que fosse espiritual — ao seu irmão mais velho. Sob esse aspecto, tinha tido sucesso. Acordou pouco antes do trevo de Nova Enoque, depois de sentir um assopro frio sobre si. Era a presença do mal. Isso de fogo era um grande exagero, o demônio podia se apresentar de qualquer jeito pelo que estudara. E ele se apresentou, antes, na forma de pesadelos. Estevão teve muitos deles enquanto dormia embalado pelos sacolejos macios do ônibus. Do último que se lembrava, sonhou com um grande incêndio na igreja. Estavam todos lá, o delegado, Madame Safira, Prefeita Miriam e Orlando Torque (e eles vestiam a mesma roupa, uma espécie de turbante branco, todo manchado de sangue). Havia dois lobos, um em cada canto do altar e cada um deles tinha um bebê vivo chorando aos seus pés. As portas da igreja estavam impedidas por dois rapazes com olhos revirados nas órbitas. Estevão não teve forças para abri-las. Ele não podia se mover porque, quando percebeu, quando deu por si, estava suspenso em um crucifixo cor de âmbar. Sua carne doía, sua bexiga não tinha controle. A igreja ria. Logo abaixo do crucifixo havia alguém. Estevão não conseguiu ver quem ele era, estava de costas. Vestia terno chumbo e seus pés pegavam fogo. O cheiro que saía dele era penetrante e tóxico. Próximo de gasolina, mas bem mais azedo. “Por que não fogem! Eles são poucos”, tentou Estevão. Seus pulmões doíam, uma ou mais costelas estavam moídas dentro dele. Pés e pulsos transpassados por espículas de vidro deixavam seu sangue ir embora. As mulheres da fila da frente estavam em êxtase. Expressões orgásticas animavam seus corpos suados e cobertos por pouco tecido. Duas delas, adolescentes, estavam com parte dos seios para fora. Usavam camisetas largas demais e rasgadas nas laterais. Faziam gestos obscenos, e quando Estevão arriscava um olhar curioso, elas se acariciavam e se beijavam. “Mostre-se!”, o padre exigiu no sonho. O homem à sua frente ergueu o punho esquerdo fechado. Todos dentro da igreja se calaram e olharam para ele. Prefeita Miriam caiu de joelhos, Orlando Torque começou a gritar e a chorar. Então o homem misterioso baixou a mão e da parte do meio da igreja apareceram três cadáveres, todos de pé. Um era o corpo de Milena Sultão. Ela estava nua e pedaços de carne deixavam seu corpo apodrecido. Seus ossos estalavam quando ela caminhava, pessoas tapavam os narizes para escapar do cheiro de decomposição. Iam para a frente da igreja, para onde o padre estava aprisionado. Do mesmo lugar onde apareceu Milena, outros dois cadáveres se animaram a caminhar atrás dela. Um deles, Bosco, vomitava um fluido denso e negro. Ele estava com os olhos perfurados, e seus lábios estavam cortados até as orelhas. Vestia um terno mortuário, só a parte da frente coberta, as costas estavam nuas e por ela vazavam enormes manchas de rigor mortis. Pauline vinha seguindo o marido. Seu corpo também apodrecia, mas ela ria sem parar. Seu cabelo tinha caído em alguns pontos da cabeça, deixando grandes crateras de carne suja. A ferida por onde a bala atravessou ainda sangrava. Chegaram bem perto do homem de terno, e ele tocou de leve a cabeça dos três cadáveres. Carinhosamente sussurrou algo aos ouvidos de Milena. Ela contou o que ouviu aos outros. Pauline riu, deixando seu eco tomar conta da igreja. “Façam o que vieram fazer”, disse o pastor daquela missa bizarra. E em seguida: “Comam do cordeiro, comam até se fartarem.” Estevão sentiu seus pés sendo mastigados e gritou tentando acordar o dono daquela igreja. Gritou mais ainda quando a filha da prefeita (que ele mesmo havia crismado) apareceu. Patrícia apanhou uma tocha com Madame Safira e ateou fogo no corpo de Orlando Torque. Ele gritou e se abraçou a Galileu Sultão. Suas carnes começaram a ferver e derreter. A combustão da gordura dos corpos ateou fogo em outros e, em segundos, toda a igreja ardia. Ninguém tentava sair de onde estava, eles apenas gritavam e se regozijavam com o sofrimento que experimentavam. Estevão assistiu cada um deles definhar, cada corpo reduzido a uma vela feita de carne humana. Ele ainda chorava quando acordou dentro do ônibus. Suas pernas estavam dormentes, e Estevão teve medo que elas estivessem roídas e queimadas de verdade. Não voltou a dormir desde então. Desceu na rodoviária às sete da noite. Infelizmente, um pouco tarde para a visita que pretendia fazer a Galileu Sultão. No sonho, Galileu chamou mais sua atenção que os outros, mesmo os três cadáveres que o roeram dos pés até os joelhos o impactaram menos. Galileu era uma mensagem clara na opinião do padre, ele precisava falar com ele. O pobre homem devia estar atormentado, e ninguém o culparia por isso, é claro, mas mentes atribuladas concebem ideias ruins. Ainda mais quando inspiradas pelo oculto. Precisou esperar dez minutos para conseguir um táxi. O diácono da igreja não pôde ir buscá-lo, seu filho estava com virose por causa do tempo seco. Pelo que Safira contou quando esteve com Estevão, ele não era o único, metade da cidade sofria com diarreias e doenças respiratórias. — Aqui! — disse, sacudindo a mão pela terceira vez. Dessa vez o táxi diminuiu a velocidade e parou bem perto da plataforma. Ainda concentrado na ausência de outros carros, Estevão perguntou, sem olhar para o rosto do motorista: — Onde está todo mundo? Acho que o seu táxi é o único por aqui. O homem ao volante não respondeu. O que fez foi abrir o bagageiro do Santana para que o padre colocasse sua mala. Também bombeou o acelerador para apressá-lo. Estevão esperou sua ajuda por alguns segundos, mas o motorista não se mexeu. Tudo bem. O homem devia estar cansado. Se ele era mesmo o único taxista de plantão naquela noite, devia ter trabalhado um bocado. Depois de bater a tampa do porta-malas, Estevão entrou pela porta traseira do carona. — Para onde? — o homem perguntou. — Me deixe perto da igreja. Dois quarteirões está bom. Quero caminhar um pouco antes de repousar. Preciso esticar as pernas. — E suas malas? Vai carregá-las? — Não tem muita coisa. Um pouco de esforço físico sempre ajuda a cabeça a desligar-se dos problemas. O carro arrancou suavemente e tomou a avenida que dava acesso ao centro. A igreja ficava logo depois, Estevão morava somente a duas quadras. Por ele, moraria dentro da catedral, mas não era permitido fazer isso. — Nada de chuva por aqui? — perguntou. Já sabia a resposta, mas depois de tanto tempo calado, tendo pesadelos em um ônibus sem ar condicionado, queria conversar um pouco. — Não chove em lugar nenhum, amizade. Acho que Deus está puto da vida com a raça humana. Estevão riu. — Não diga isso sobre o pai, meu filho. Deus não nutre sentimentos humanos em seu coração. — Seu Deus não tem coração, padre. Ainda vai descobrir isso. A conversa não era bem vinda, Estevão se calou. Olhou para fora e viu um anoitecer estranho. O ar estava com um tom meio bege, muita poeira suspendida, mas não era só isso. O mundo de Nova Enoque parecia escurecido. Estevão resolveu tentar mais informações com o motorista. Pelo que sabia dos homens, todos eles (taxistas ou não) gostavam de falar pelos cotovelos quando o assunto eram desgraças. Precisava de outra opinião depois de Safira. — E além da secura da terra? Como anda nossa cidade? Eu soube sobre a morte da filha de Galileu Sultão. Ouviu algo a esse respeito? — E quem não ouviu? A tal menina andava se esfregando com o garoto errado enquanto enganava o garoto certo. Então o namoradinho dela, filho do dono do matadouro, o tal do Roger Minotto, acertou as coisas com a menina. Não sobrou muita coisa dela, deve ter sido um trabalhão no enterro. — Deus tenha piedade. E o pai da moça? — Como alguém fica quando perde um filho? Eu não sei, padre..., não tenho filhos, mas imagino que o homem deva estar maluco. Soube que ele andou ligando para o delegado, tentando garantir que o tal do Roger Minotto apodreça na cadeia. Sabe como são essas coisas... O pai dele tem grana, influência... O padre ouviu, filtrou toda a maldade que saía pela boca do motorista e a desprezou. Tentou encontrar os olhos do homem no espelho retrovisor, mas ele nunca os cruzava com Estevão. — Não lembro de tê-lo visto na cidade, e olha que eu batizei metade do povo daqui. Os que eu não batizei têm a minha idade ou mais. — Sempre estive aqui. Sou um homem discreto, amizade; prefiro passar batido. Estou nesse táxi fedido para cobrir a um amigo. Ele pegou uma gripe forte, e a esposa não deixou que viesse trabalhar. Combinamos meio a meio do que eu faturar hoje. — E os outros táxis? — O senhor deu azar. Vários carros estavam parados antes do seu ônibus chegar. Circularam o hospital e depois o centro da cidade propriamente dito em silêncio. Estava movimentado com aquele calor todo. Homens de bermuda, alguns sem camisa; minissaias nas mulheres. Nova Enoque parecia uma cidade praiana. Todo mundo caminhava devagar, meio sem vontade, até os cachorros tinham preguiça, e muitos deles ficavam na porta das lojas que persistiam abertas, aproveitando o que escapava de ar fresco. — E sobre o casal? Os Bosco? — Estive no velório deles. Um calorão danado. Tinha muita gente ali, mas a família dos defuntos estava mais interessada em brigar do que em sepultar os dois — riu. Riu com deboche, realmente achando graça naquilo. — Acredita que precisaram chamar o delegado para apaziguar os ânimos? Eu não sei... Em minha opinião, um marido e uma mulher devem procurar o entendimento sozinhos. Esses dois morreram sem encontrar — riu de novo. — E quanto à família dos infelizes, brigar por causa de um buraco na terra? Precisa ser muito burro para fazer isso. — Vamos ter um pouco de respeito — disse o padre. O carro já estava estacionando, em um trecho sem movimento logo depois do centro. A dois quarteirões da igreja, como pediu Estevão. O motorista puxou o freio de mão e respondeu antes que o padre pensasse em tocar a maçaneta. — Vamos ter respeito sim, padre. O mesmo respeito que vossa santidade tem quando espia os decotes das vagabundas que frequentam sua igreja. — Quem é você? — Estevão perguntou, e dessa vez puxou pela maçaneta. — Eu? Não sou ninguém, padre. Ou sou alguém que pode te foder embaixo da saia. — Me deixe descer! — Forçou a maçaneta emperrada. — Está com medo do quê, Estevão? Teme que seu Deus não saia do trono para te defender? Você é um velho brocha e tonto. Se eu quisesse o esmagaria agora mesmo, a dois quarteirões da casa do seu precioso Deus. — Você não tem poder sobre mim, não tem poder sobre mim! — Veremos... Um cheiro ruim começou a tomar conta do carro, não só ruim, como intoxicante. — O que está fazendo? — perguntou e tossiu. Depois tossiu mais, e a fumaça que vinha do banco da frente o fez quase se afogar. A falta de oxigênio e a composição daquele fumo fizeram o padre confundir os sentidos. O motorista ria, gargalhava. Cansado de torturar Estevão, desceu do carro e foi para a parte de trás. Em seguida, voltou. Virou o espelho para enxergar Estevão nos olhos, e disse: — Saia do meu carro, verme. E se você se meter comigo, vai ficar mais perto do seu Deus. Mais uma vez Estevão tentou a maçaneta. Estava praticamente sem ar, os músculos do abdômen doloridos pelo esforço da tosse. A garganta parecendo incendiada. O mundo girava quando ele finalmente saiu daquele carro maldito. O homem ligou o rádio e Estevão reconheceu uma banda antiga, que seu sobrinho adorava; AC/DC. A música ele não conhecia. O vocalista dizia Hells Bells. — Mãe de Deus, quem é esse homem? — perguntou, olhando para cima. Contudo, sabia que não era um homem. Aquele era a personificação do que acontecia com sua amada Nova Enoque. Estevão apanhou a mala jogada na sarjeta e agradeceu por não ter ninguém naquele pedaço de rua para vê-lo tão humilhado. Caminharia o que precisava, mas tudo o que desejava agora era um copo com água e uma cama macia. Olhou para o alto e viu o relógio da igreja. Estava sem forças para chegar até ela. NO COVIL DO LOBO: Sequestro e instalações
Patrícia abriu os olhos e pensou: Me ferrei grandão. Sua segunda intenção foi gritar até arrebentar os pulmões, mas sua boca estava tapada com tecido. Também tinham colocado alguma coisa dentro de sua boca, um pedaço de pano, imaginou; como uma meia. E havia um cheiro pungente, adocicado e enjoativo. Foi o cheiro que deu a ela a certeza de estar sequestrada. Era clorofórmio ou um composto parecido — ela cheirou loló no carnaval, passou mal, chegou a desmaiar. Aquela porcaria tinha o mesmo cheiro. As mãos estavam amarradas às costas, e os pulsos doíam bastante. As pernas também não responderam na primeira vez que ela tentou movê-las. Estavam dormentes. Respirar era difícil. Fazia muito calor ali, era um lugar pequeno, escuro e abafado. Bem mais escuro e abafado do que pequeno, pensando bem. Tinha uns três metros por três e dois focos de luz. Um em uma janela tapada porcamente com cimento, e outro vindo da soleira de uma porta bem grande e de metal. Acima (bem, pelo menos era o que parecia a Patrícia), pombos arrulhavam um som demoníaco. Pensou em sua mãe. No verão de dois mil e nove, Prefeita Miriam tentou controlar a população de pombos, mas os enoqueanos foram contra. Eles não entendiam que os pombos transmitiam doenças que poderiam matar; no mínimo, deixar doentes seus animais e filhos. O povo é uma besta estúpida quando se trata de medidas saneantes, preferem viver como porcos. Já era dia. Pelo calor e pela fome que sentia, entre meio- dia e duas da tarde. Checou suas chances. O lugar era bem fechado, mas não era um fosso de segurança máxima. Era só uma sala velha, caindo aos pedaços. Se procurasse direito, encontraria uma saída, nem que fosse pelo teto. Sim, pelo teto. Havia um alçapão na sala, perto da porta, mas era muito alto. Ela só o alcançaria de subisse nas costas da cadeira, mas mesmo assim, aquela porcaria tanto poderia estar solta quanto com um quilo de concreto nas frestas. Bem, mas era uma ideia. Mas para essa ideia, Patrícia precisaria executar outra. Precisava soltar seus braços e pernas e sair daquela cadeira. — Hummpg! — Forçou as mãos. A única coisa nova naquele buraco eram as malditas cordas. Devem ter sido compradas especialmente para isso, para mantê-la presa. O que a levava ao ponto que ela só chegava agora: Quem a sequestrou? O primeiro nome surgiu em neon florescente para não deixar dúvidas: Orlando Torque. Sua mãe andava jogando pesado com ele, e Orlando era um bandido de gravata, todo mundo na cidade (inclusive quem votava naquele bosta) sabia disso. Mas o que Orlando ganharia a fazendo de refém? Desestabilizaria Miriam? Tá... E daí? Miriam era durona e era possível que arranjasse alguma vantagem política se fazendo de vítima para a cidade toda — depois se trancaria no quarto e pensaria em suicídio, o que era de se esperar, mas antes se garantiria nas urnas. Tudo bem, as cordas são novas. Mas e essa cadeira? Patrícia jogou o corpo à frente e ouviu um rangido suave na parte de trás. Fez isso mais uma vez e o rangido foi um pouco mais forte. Pena, mas a droga da cadeira era firme. Ok, nada de cordas, nada de cadeira. Oh, e nada de gritos e de alçapão para fugir. Mas ela ainda tinha uma ideia. Olhou para os lados para ter certeza. Muito bem, as paredes eram feitas de tijolos baianos e a cobertura (que era o que lhe interessava) era um chapisco pontudo. Perfeito para desfiar essa porcaria de corda. Com aquele calor todo, estava molhada. Os braços davam nojo quando a pele tocava as costas, os cabelos empapados em cima da testa úmida. Graças a Deus que ninguém está me vendo nesse estado, pensou com seu pior lado filha-da-prefeita. Pensou em Davi. Ele nem deve ter mandado aquele e-mail. Alguém deve ter invadido sua caixa postal, Davi era bonitinho, mas também era tonto o suficiente para não tomar conta do seu próprio e-mail. Deu uns pulinhos com a cadeira, tentando chegar mais perto da parede. No segundo salto, a cadeira quase virou. Patrícia sentiu o sangue congelar dentro dela. Se ela caísse, o plano já era. E se ela caísse e batesse forte demais com a cabeça, então já era seu plano e ela junto. Cuidado garota... Não vai ferrar com tudo antes da hora. Antes da hora, porque ela já pensava que se algum sequestrador safado tentasse colocar suas mãos podres em cima dela, perderia um olho. E o pinto junto! Esse era o fim da linha para ela, Patrícia não permitiria. Morreria antes. Parou de se mexer quando estava pronta para o terceiro salto. Alguém estava assoviando do outro lado da porta. Estava assoviando o maldito hino do Corinthians. Não era maldito até então, ela não perdia seu tempo assistindo futebol (só na copa do mundo, mas aí não conta, na copa, todo mundo liga a tevê e passa vergonha junto, até quem não gosta de futebol). Meu Deus, me ajuda! A pessoa do outro lado não foi direto para a porta. O que era bom. Talvez não fosse nenhum sequestrador, talvez fosse alguém a procurando! Polícia? Não, ainda era cedo para estarem atrás dela, cedo demais para que o delegado Zétia a encontrasse. — HUMMPPH! — gemeu. Balançou a cadeira outra vez. Deu certo. Os passos do outro lado chegaram mais perto, e os calçados nos pés de quem estava ali bloquearam o pedaço de luz que escapava pela soleira. A porta fez um pouco de barulho. A maçaneta desceu, uma fresta maior de luz entrou. Patrícia tentou manter os olhos abertos, mas não conseguiu; a luz forte machucava depois de tanto tempo no escuro. O estranho abriu e cruzou a porta. Tornou a encostá- la, deixando de luz, apenas o suficiente para não tropeçar em nada. Parou de frente para Patrícia. Ela o mediu dos pés à cabeça, começou pelos pés. Lobo usava um tênis explodido que tinha uns seis anos. Não usava meias e suas canelas finas estavam à mostra. Na panturrilha direita, uma tatuagem. Já era de se esperar que fosse o emblema do Corinthians. Que tipo de sequestrador é imbecil a ponto de dar uma pista dessas? Uma tatuagem? Deus! A bermuda comprida começava logo depois da tatoo. Era florida demais e de tecido vagabundo. Patrícia já tinha visto bermudas como aquela quando ia com Miriam até a periferia da cidade fazer doações. Miriam tinha feito uma promessa uma vez, e todo Dia das Crianças ela doava um porta-malas cheio de brinquedos. Quando podia, Patrícia ia junto para ajudar. Depois da bermuda, vinha uma camiseta grande demais — chegava até o meio da coxa. O tecido era roxo e desbotado e seguia o resto daquele cara. A cabeça estava coberta por um saquinho quadriculado de feira. Sobre ela, um boné que surpreendentemente não era do Corinthians, mas do Racionais MC’s. O que ele era afinal? Algum tipo de maníaco, um rapper tarado por futebol? Se fosse isso estava bom, desde que não fosse um tarado por filhas de prefeitas. — Oi — disse Lobo. A voz falhou um pouco no começo. Ele nunca foi muito bom em conversar com mulheres, com garotas. Era bom com prostitutas, mas não era a mesma coisa. Ele bem que preferia estar com uma puta agora, mesmo com aquele calor todo. E ela estaria pe-la-di-nha. — HUMHHH! — Patrícia grunhiu. Balançou a cadeira de um jeito perigoso, acabaria no chão loguinho se não tomasse cuidado. — Eu trouxe comida. Patrícia arregalou os olhos. Estava faminta, mas comida não era a primeira coisa que esperava. Pensou melhor... Comida é claro. E ele vai precisar me desamarrar para eu comer. Desfez a expressão furiosa e a trocou por outra feliz e ansiosa. Lobo percebeu e se adiantou: — Moça. Eu não tenho culpa de nada disso, então não tenta me ferrar, tá bom? Eu vou tirar o pano da sua boca. E não vai adiantar gritar, porque ninguém vai ouvir você. Aqui é muito longe da cidade. Mas se gritar demais, eu vou precisar amordaçar você de novo. Patrícia sacudiu a cabeça, mantendo a expressão feliz no rosto. Era quase impossível com a vontade que estava de quebrar aquela cadeira nas costas daquele homem. Homem nada... O tipo era um garotão ainda, tinha espinhas aqui e ali que vazavam pela máscara improvisada. Ele se aproximou vagarosamente, parecia um tratador de leões. Deu à volta por trás da cadeira, Patrícia o seguiu com os olhos. Sentiu uma brisa fresca com o movimento de Lobo e quase pediu que ele trocasse a comida por um ventilador. Depois sentiu uma pressão na parte de trás da cabeça e alguns puxões nos cabelos. Lobo voltou a ficar de frente para ela. Ele tinha cheiro de suor e maconha. Também de cigarros comuns e vagabundos. E devia ter bebido. — Dá licença, moça. Vou tirar minha meia da sua boca. Colocou os dedos com calma, com medo de perder um deles. Patrícia não tentou nada, não tentaria até ter a certeza que conseguiria. Herdou esse lado da prefeita Miriam, Patrícia era uma estrategista. — Obrigado — ela disse. Virou para o lado e cuspiu várias vezes. Com a entrada de ar novo, sentia mais cheiros e gostos, além do diluente que a apagara. Um deles era um gosto salgado, de suor, aquela nojeira em sua boca devia estar usada. — Sabe quem eu sou? — ela perguntou. — Todo mundo sabe — respondeu Lobo. — Então sabe que a minha mãe vai arrancar seu saco quando me encontrarem? — É né? — perguntou, e coçou o topo da cabeça. — Mas não interessa, moça. Eu tenho que fazer isso. Eu trouxe água para você. E comida. — Preciso ir ao banheiro. Hora de testar a idiotice daquele cara. Ele não parecia esperto, mas soltá-la seria um ato de estupidez extrema. Lobo não era tão burro assim. — Pode ir, mas vai ter que fazer na minha frente. — Vai sonhando! Lobo virou as costas e andou até a porta. — Aonde você vai? — Patrícia quase implorou para que ele ficasse com ela, mesmo sendo o culpado por tudo aquilo. Ou talvez nem fosse o culpado. Ele estava cumprindo ordens, não foi isso o que disse? Logo estava de volta, com um cantil de água em uma das mãos e um prato de comida na outra. Arroz, feijão e um pedaço de carne. Ele colocou no chão e abriu o cantil. — Vou dar água pra você. Depois eu vou pensar em algum jeito de você ir no banheiro. — É só me desamarrar! — Ahm-ram. É sim. E depois você sai correndo e me coloca na cadeia. — Eu não vou fazer isso. Juro que não! Lobo a calou colocando o cantil em seus lábios. Beber água era bom, mas ela tomou tanto que sentiu um pouco de ânsia de vômito. — Devagar, moça. Eu trago mais depois. — Olha aqui, cara. Se você insistir nisso, eu vou acabar com sua vida quando sair daqui. Vou te ferrar tanto que você vai precisar de uma cirurgia anal! Lobo riu. Nunca tinha conhecido uma garota tão valente. Tão valente que chegava a ser burra. Ele era um cara legal, mas se ela falasse daquele jeito com os caras barra-pesada do bairro, eles arrancariam os dentes dela. Depois usariam a boca macia para outras coisas. — Você num vai ferrá ninguém. Vai ficá aí até o cara do aspirador mandar eu soltar você. — Como é que é? Seu animal! Você não tem a menor noção que isso aqui é um sequestro, tem? Quando prenderem você, vai demorar uns trinta anos para sair da cadeia e... HUMMPH! — Chega moça! Acabou de perder o almoço. Lobo recolocou também a mordaça e dessa vez tomou cuidado com as pontas dos dedos, aquela vaquinha tentou mordê-lo. Encostou a porta e saiu. Patrícia continuou protestando na escuridão, se remexendo na cadeira e ameaçando se atirar no chão. Lobo sentiu pena, mas não voltou a entrar na sala. Estava com medo daquela garota. PODERIA TER SIDO DIFERENTE (I)
No dia seguinte ao desaparecimento de Patrícia, a escola recebeu várias visitas. A primeira dessas foi a do delegado, Zétia queria falar com Davi e com outros garotos e garotas entre primeiro e segundo colegial. Todo mundo estava um pouco assustado, principalmente quem tinha culpa no cartório, era o caso de Edmund Rovre. Edmund tinha dezessete anos e mais dinheiro no banco que o pai, ele vendia drogas na escola, mas era bem mais fanfarrão que traficante. Mesmo assim ele jogou o que tinha no armário esgoto abaixo. Para a maioria dos garotos, a agitação era bem vinda, geralmente nada acontecia em Nova Enoque que não fosse estourar o pneu de um carro, mas aqueles últimos dias estavam sendo empolgantes. Perto das nove da manhã, Zétia tinha terminado com Davi e estava com a papelada do desaparecimento pronta — o que dava a ele autorização para varrer a escola de cima a baixo. Contudo, ele duvidava que um daqueles garotos tivesse envolvimento direto com o caso. É, mas ele também não achava que Roger Minotto teria coragem de fazer todas aquelas atrocidades com uma garota doce como Milena. Zétia preencheu as últimas anotações do depoimento informal de Davi e chamou pelo diretor Antony Granville. Ele estava do outro lado da porta da diretoria; na secretaria. — E então? Teve sorte? — perguntou, assim que entrou. Zétia não parecia empolgado. — Não muito. O garoto não teve nada a ver com isso, estou convencido. Ele não é um dos durões, não aguentaria duas conversas como a que tivemos. Segundo suas próprias palavras, Davi mal reparava nela. Estava surpreso em ver o seu nome envolvido no que aconteceu. Claro que sim, filho da mãe... Granville juntou um pouco as sobrancelhas grossas e coçou o queixo de bumbum. — E o que exatamente aconteceu? Zétia respirou fundo mais uma vez. Detestava ficar repetindo a mesma história. — A filha de Miriam, nossa prefeita, desapareceu. Pelo que descobri até aqui, ela não tinha problemas com as notas, não usava drogas, não tinha namorados ou inimigos. O diretor deu uma risadinha sem vontade. — Sobre essa última afirmação, você deve estar errado. Alguém como Patrícia Guerra, filha da prefeita da cidade, tem mais inimigos que um mafioso. Notando a expressão desentendida de Zétia, Granville explicou. — Ela é uma adolescente e é popular. Essa combinação traz uma inveja terrível. — O senhor acredita que um garoto daqui da cidade, dessa escola, teria coragem para desaparecer com ela? Granville suspirou, pareceu cansado demais quando disse: — O senhor ficaria chocado com a audácia de alguns deles.
NA SALA “TERCEIRA C” da mesma escola, que estava vazia naquela manhã, porque os garotos da última turma tinham um simulado de vestibular na Escola Técnica Rubião Ledo — algum cretino achou que retirar os alunos de onde estavam acostumados, os colocaria um pouco mais perto da tensão do dia da prova —, Alan tinha seus próprios problemas com a audácia à qual o diretor Granville se referiu. Alan Sérpia estava sozinho, terminando de montar sua maquete de vulcão para a exposição da feira de ciências da sala. Estava empolgado, seu projeto era bom e se ele conseguisse a pontuação que esperava (nada menos que um nove, por favor!) estaria livre das últimas provas. A base do vulcão era feita de Argila. Ele mesmo foi atrás do barro, em uma área brejeira da cidade. Depois de deixar curar, escavou a peça como precisava, deixando uma galeria oca para colocar o material que incendiaria. A princípio pensou em pólvora, mas o computador (que falava com ele regularmente mesmo sendo um caso clássico de doideira) trouxe uma nova combinação de ingredientes com soda, gordura e plástico (tampas derretidas de caneta Bic junto com óleo de cozinha). E também havia o último ingrediente: um potinho cheio de sílica, pó de alumínio e ferrugem. Segundo esperava, a coisa transformaria o pequeno vulcão em um inferno de fogo e colocaria Murilo e os outros babacas em um penico. Mesmo antes do computador falar com ele, Alan perdeu muito tempo naquela maquete. Deixou o videogame de lado, esqueceu filmes e passeios ao shopping de El Dourado, perdeu até a festa de Valéria Norato que era a menina mais bonita da sala. Mas valeria à pena. O projeto ficou tão, mas tão incrível, que ele acabou deixando de lado a lição que pretendia dar em Murilo Torque. Alan desistiu da vingança e do potinho especial com sílica e poeira de metal — mas o manteve em seu bolso. Segundo o computador, o último ingrediente do vulcão mostraria que Alan não era alguém para se provocar. Anular o plano inicial também teve a ver com o delegado circulando pela escola. Os escrotos que o perseguiam manteriam distância. Bem, isso era o que Alan pensava quando a porta da sala vazia mostrou que certas partes do destino não podem ser modificadas. — Tá fazendo o que aí, Mané? Era Murilo e não estava sozinho. Anderson e um garoto que pesava uns cem quilos entraram na sala atrás dele. Antes que os três entrassem, Alan foi para frente da maquete que descansava em cima de uma das carteiras. Ele tinha pedido para um dos professores para deixar seu projeto na sala vazia, justamente para escapar dos animais que o emboscavam agora. — Nada demais. Já tô saindo. — Não tão depressa, Alan Sapo. Primeiro eu quero ver o que é isso aí atrás. — É só um projeto bobo, não tem nada de interessante nele. — Quem decide isso sou eu — disse Murilo e avançou. Alan não se rendeu e continuou onde estava. Olhou para Anderson, pedindo o pouco do bom senso que não viria salvá-lo. — Sai do meu caminho, esterco. Murilo o tirou com um empurrão e Alan-Sapo acabou se enroscando em uma das carteiras, caiu de bunda. A carteira foi para cima dele, e a carteira que sustentava seu projeto quase fez o mesmo. Quando estava prestes a tombar, Murilo a estabilizou. — Não põe a mão nisso, tô avisando! Esse projeto é meu! — Que gracinha! Então o projeto voltou a ser interessante? — Qual é, Murilo? Eu preciso dele, preciso dos pontos para passar de ano. Murilo olhou para Anderson. — Você viu? Ele precisa passar de ano. O que você acha disso, Anderson? E você, Buba? Quem respondeu foi Anderson. — Todo mundo precisa passar de ano. — Olha só, bostinha, tenho um trato para você. Esse aqui — tirou do bolso uma geringonça feita com um carretel, elásticos e uma vela — é o meu projeto de ciências. É um carrinho. — Isso aí? — Alan perguntou, e não poupou uma risadinha cínica. — Boca fechada ou vai perder uns dentes, Sérpia! — disse o gordo-Buba. Seu nome verdadeiro era Luizão, e ele era um imbecil. Até dois anos antes, quem apanhava nos corredores e bebia água da privada era ele, mas Luizão começou a engordar e ficou grande demais para ser um inimigo, então os caras o chamaram para o time. Murilo chegou bem perto da maquete. — É bem realista — disse. — Nem parece que foi feita por um Zé Bosta como você. — É feito de argila. Eu mesmo fui até o brejo para apanhar — explicou. — Devia ter ficado por lá, seu lesma — disse Anderson. Sérpia tentou sair do chão, mas a criatura obesa chutou o braço em que estava apoiado. Alan gemeu, voltou a cair e ficou onde estava. Murilo teve outra ideia brilhante. — Duvido que essa coisa aguente um soco. — Não faz isso! — Cala a boca, lesma! — Anderson. Eles estavam nervosos naquela manhã. Para Alan, garotos eram como abelhas. Quando uma delas fica nervosa, libera algum tipo de substância, feromônios que fazem o mesmo com as outras. De uma hora para outra, a colônia inteira está daquele jeito, afiando os ferrões e disposta a morrer para enfiá-lo em alguém. O caso da filha da prefeita, a menina do primeiro colegial, tinha deixado toda a escola à flor da pele, a presença do delegado transtornou o resto. — É perigoso! — alertou Sérpia. — Vou te contar. Eu gostei mesmo dessa porcaria, mais ainda porque é perigosa. O trato é esse: eu fico com o seu projeto, você fica com o meu, e nós não damos uma surra em você hoje, que tal? — Nem ferrando, cara. E se botar a mão em mim, vou contar pro delegado Zétia! — Ah vai? Faz isso, seu merda. Faz isso que eu peço pro meu velho, o cara que manda nessa cidade toda, mandar o delegado esquecer o que você disser. E ele vai esquecer, como esqueceu um monte de coisas antes. Alan aproveitou uma distração de Buba Gordo e saiu do chão. Correu em direção a Murilo. Estava disposto a acabar com tudo e partir para um corpo a corpo com ele. Ganharia um olho roxo, mas e daí? Perto de perder o projeto e suas férias antecipadas era uma baita vantagem. Ele armou o braço e mandou! E nem chegou perto, pobre Alan. Ele nunca tinha acertado um soco em alguém que não fosse feito de plástico e cheio de ar. Com o impulso, se desequilibrou. O que faltou para devolvê-lo no chão veio com um empurrão nas costas. Anderson. Alan caiu todo enroscado nos metais e ganhou um monte de chute dos três. Gordo batia com mais vontade, parecia que fazendo isso se esquecia de seu próprio passado de bosta. Ele já esteve naquele chão maldito, tomou os mesmos chutes e escutou provocações piores (ninguém ganha de um gordo nessa especialidade). — Você vai ficar aí, Alan. E vai me ensinar a usar essa coisa. Alan limpou os olhos molhados, respirou fundo e pediu o brinquedo de Murilo. Enfiou a mão no bolso e tirou um vidrinho transparente com um pozinho esquisito dentro dele. — O que é isso? — Ingrediente secreto. Quando você colocar, o vulcão explode de um jeito alucinante. — E é seguro, senhor Alucinante? — perguntou Anderson. — Se quiserem tirar um dez, vão ter que confiar em mim. PODERIA TER SIDO DIFERENTE (II)
Cinco minutos depois, estavam dentro da sala de aula. A turma tinha sido dividida de três em três para a apresentação dos trabalhos, Alan optou por ficar sozinho. A ideia do vulcão já estava em sua cabeça fazia algum tempo, ele tinha lido sobre o projeto em uma revista e quando a professora deu a data da apresentação, ele já estava na metade. Mas ainda faltava a propulsão, a erupção. Isso veio do computador que falava com ele. Alan não precisava aceitar o último ingrediente, o projeto explodiria de qualquer maneira, mas segundo o computador, adicionar os elementos especiais traria a justiça que ele tanto queria. Alan pressionou ENTER e o computador respondeu o mesmo, mais de dez vezes; JUSTIÇA, JUSTIÇA, JUSTIÇA... As primeiras carteiras da sala estavam com os projetos em seus tabuleiros. A turma de Isabel Dentão tinha feito uma maquete de instalação elétrica residencial, com lâmpadas em série e em paralelo, transformadores e tudo. Era um projeto bem legal e quem deve ter montado quase tudo foi o pai dela, seu Tenório (ele era eletricista, claro). Outro grupo, o de Fabiano Poente, fez uma estação de FM pirata. Outro bom projeto, mas que dificilmente passaria pelo crivo da professora, era legal demais — e também avançado demais. Oh, e tinha o computador experimental da equipe de Hashio Naruto. Não era nenhum Apple I, mas era um sistema rudimentar de perguntas e respostas. Esse tinha chance. Além desses, nenhum merecia muito destaque. Quase todos eram feitos de cartolina, isopor e objetos reciclados. Projetinhos ordinários. O carrinho-carretel, que era o projeto de Alan agora, estava em uma das mesas e todo mundo que dava uma olhada ria dele. Até a professora riu quando viu, riu tanto que derramou um pouco daquela mistura inseticida — que chamava de café — no chão. Ao lado do carrinho-carretel estava o vulcão. Devia ter quase um metro de altura e era tão pesado que Alan o trouxe para a escola adaptando rodinhas. Aquele troço já tinha vencido a competição antes mesmo de começar a ferver. Os três bastardos ficavam por perto, cercando o projeto e principalmente Alan, para que não desse com a língua nos dentes. Alan fervia por dentro, louco para meter fogo naquilo e colocar o plano do senhor computador em ação. Mas não demoraria muito, não demoraria nada. — Antes de iniciarmos, quero dar uma palavrinha com vocês, tudo bem? É sobre a visita do delegado Zétia. Em vez de olhar para a professora, Murilo olhou para Alan. Deu um soco na palma da mão esquerda. Anderson colocou o indicador na frente da boca e foi flagrado — afastou a mão quando a professora percebeu. — Eu disse alguma coisa engraçada? — Foi mal, fêssora... — disse Anderson. Em seguida, Murilo deu uma cotovelada em sua cintura que o fez arquear. — Agora que os engraçadinhos ficaram quietos, podemos conversar — disse Clélia. Clélia Braga era a professora que mais sabia se impor dentro de uma sala de aula do Municipal. Era negra, segura, tinha cabelos escovados e sempre usava saltos médios nos pés, que a deixavam bem alta. Não era muito magra, mas não chegava a ser gorda, Clélia tinha um corpo mais forte que o padrão, panturrilhas musculosas e uma voz decidida. Sua figura por si só imporia respeito, mas ela ainda tinha uma história. O pai de Clélia, Garcia Braga, foi um ativista negro durante toda a vida. Opunha-se ferozmente à elite branca e ao sistema político da cidade que mantinha os negros do lado de fora desde sempre — e quando negros estavam por dentro era para cozinhar, servir ou limpar. Garcia batalhou e conseguiu mais progresso para os negros de Nova Enoque em dez anos do que haviam conseguido até então. Seu único erro foi se meter com os fazendeiros da cidade quando baixaram os salários dos trabalhadores rurais ao ponto deles não conseguirem se sustentar. Garcia tinha contatos, procurou advogados aliados e conseguiu reverter tudo com a ajuda do estado — que estava sensível a movimentos revolucionários. Quem não gostou foram os fazendeiros, claro. Então eles arrumaram um acidente para Garcia. Viajava de Nova Enoque para Três Rios quando em um descuido caiu do trem que o transportava. Morreu fatiado pelas rodas de aço dos vagões. Mas antes disso, Garcia já era uma lenda. A tradição ficou com a professora que não tinha vontade ou tempo de seguir os mesmos passos. Preferiu ficar nas escolas e tentar amansar os homens enquanto eram pequenos e frágeis. Clélia continuou: — O delegado Zétia veio até aqui para procurar evidências. Estou falando de Patrícia Guerra, a menina bonita do primeiro colegial. Acho que todo mundo aqui sabe que ela é filha da prefeita Miriam. A única ruiva da escola ergueu o braço. — Pode falar, Estér. — O delegado acha que alguém da escola está envolvido? — Não diretamente, mas o delegado está procurando pistas. Ele pretende falar com alguns de vocês e eu gostaria de pedir a colaboração de todos. Pensem nessa garota como pensam em alguém da família, certo? Aqui e ali, rostos preocupados. Murilo tinha mais motivos para isso, afinal, sendo filho de Orlando Torque, tudo soava como uma indireta (uma indireta bem no meio do queixo). Anderson também não estava nadinha à vontade, e o gordo-com-seios ao lado dele, menos ainda. Estavam aprontando alguma e, segundo as impressões certeiras de Clélia, tinha uma estreita relação com outro dos garotos, um miudinho que estava com o uniforme sujo de poeira. Clélia resolveu aproveitar a visita do delegado para dar alguma justiça a Alan Sérpia. — Eu imagino que poucos alunos da escola têm motivos para se preocupar com a visita da polícia. Mesmo assim, caso alguém esteja escondendo alguma coisa — e não me refiro somente ao caso de Patrícia Guerra aqui —, peço que pensem melhor. Gente, perseguir colegas é coisa séria e já é considerado infração faz tempo, aproveitem esse momento e botem a mão na consciência. Nós, os professores... Bem, pessoal, nós sabemos de praticamente tudo o que acontece pelos corredores e banheiros da escola, mas preferimos não nos envolver diretamente. Caso tenham alguma denúncia a fazer — violências, perseguições, maus tratos —, podem me procurar. Ou se preferirem, tratem diretamente com o delegado. Clélia deu um tempo para que os garotos digerissem suas palavras. Era uma chance e tanto, ela gostaria de ter tido a mesma oportunidade quando tinha a mesma idade e recebia cartinhas ameaçadoras endereçadas à Nêga Fedida. Mas seus professores achavam que o racismo não existia, era só brincadeira de criança. — Alguém? Todos estavam calados, inclusive os garotos que apanhavam e precisavam pagar para usar o banheiro. Alguns pareciam momentaneamente encorajados, mas logo voltavam a baixar os olhos. Não seria tão inteligente sair por aí contando que bebeu água da privada ou levou uma surra de apagadores sujos. Resolveria na hora, alguém levaria uma advertência e ficaria sem mesada, mas... E quanto ao dia seguinte? Quando os calhordas mirins se juntassem para espatifar os delatores? Não, ninguém gosta de dedos-duros, e não existe isso de nova identidade nas escolas primárias. — Excelente. Já que todos somos pessoas inocentes e de bom coração, vamos aos projetos. Preciso de um grupo para começar. Murilo se adiantou, ergueu o braço e pediu para ser o primeiro. Clélia tinha outra ideia na cabeça. Se aquele vulcão enorme do filho do vereador Torque funcionasse como ela esperava, esmagaria qualquer concorrência; isso desestimularia os outros garotos a mostrarem seus projetos. Poxa, até ela queria ver aquela geringonça funcionando! Assim, fez o contrário e escolheu o projeto mais peidorreiro para começar. — Alan, o que acha do seu projeto? — Eu? — Tem algum outro Alan na sala? — ela perguntou sorrindo. Alan apanhou o carrinho e levou para cima da mesa da professora, no centro da sala, na área mais elevada onde os professores davam aula. Alan estudou aquela coisinha escrota em suas mãos com a repugnância que merecia. Era ridículo e, além disso, era inútil. Qualquer criança incapacitada pela radiação mortal de Chernobyl produziria algo melhor. Ele olhou de um lado, do outro, olhou para seu vulcão... Que se fodessem, se eles queriam tanto aquele vulcão, que se matassem com ele! No brinquedo caquético de Murilo, ele deu cordas girando um palito de fósforos preso ao carretel e à parafina do outro lado. Estava bem tensionado, e Alan colocou aquilo na mesa. O carrinho — carrinho seria um elogio elegante — caminhou cinco centímetros, então o elástico estourou e ele parou onde estava. Ferrado para sempre. — Já terminou? — Acho que o motor fundiu — disse Alan, ciente que sua nota fundiria junto. — Pode nos dizer o que era esse projeto? O que uma bosta dessas seria? — É um protótipo — enrolou. — Tensão convertida em força mecânica. — Interessante — disse Clélia. Mas não achava isso de verdade, como todo mundo que viu a encenação sebosa da coisa tentando andar, ela achava o carrinho uma tentativa ridícula e preguiçosa de apresentar um projeto feito às pressas. — Posso desenvolver melhor, professora. Clélia não gostou dessa. O garoto era legal, Alan sempre se esforçava e tinha boas notas, prestava atenção às aulas. Ela tinha esperança que seu projeto fosse ser um dos melhores. E agora ele queria mais tempo? Oh, não... — O senhor teve tempo para seu projeto, senhor Sérpia. O que está feito, está feito. Sua nota será proporcional ao esforço na criação do projeto. A vida é assim, Alan: precisamos cumprir prazos. Além disso, eu não posso subestimar você, todos nessa sala têm a mesma capacidade. Sua ideia base foi razoável, mas podia pelo menos ter testado o projeto, não acha? — O Bill Gates testou o Windows e não adiantou nada também... — Oh, Bill Gates... Tá certo. Recolha seu veículo e deixe o nosso Steve Jobs japonês apresentar seu projeto, sim? Alan queria um buraco bem fundo para pular dentro. Murilo estava bem à sua frente, com seu vulcão. O desafio que consumiu tempo, boa vontade e dinheiro para ser produzido. Era tão legal, puxa, o que ele não daria para mostrar seu projeto! Mas apanhar não era legal. Era mais esperto fazer o que fez, deixar que a natureza seguisse seu curso. Que aqueles palhaços se dessem mal de verdade pelo menos uma vez na vida. A pedido da professora, Hashio Naruto subiu com sua parafernália semidigital. Parecia uma caixa de sapato com um conjunto de cartões com perguntas e respostas de cada lado e dois fios escapando — um iria para a pergunta, outra para a resposta. De cada lado da caixa havia cinco respostas para cada pergunta. Quando a resposta estava certa, uma luz vermelha, um Led acendia. Se errasse, nada acontecia. Ele começou e... enfim... O negócio era sem graça demais. Na terceira pergunta, Clélia agradeceu e o tirou de lá. Elogiou o projeto, disse que funcionar bem era tão importante quando o projeto em si (e Alan cavou mais um pouco em seu buraco) e, quando se livrou de Hashio, chamou o pessoal da instalação elétrica. Mais fios, mais cabos e mais inconsequência pré- adolescente. Isabel subiu e ficou um tempo arfando com a boca aberta, como um camelo sem água. Ela tinha grandes dentes na arcada superior, tão grandes que não a deixavam fechar a boca direito. Coitada. Também era magra demais e antes de ser chamada de Isabel Dentão, era chamada de Rascunho. Ser chamada de Dentão era menos doloroso, desviava a atenção do resto do corpo. Só para montar a coisa toda, com fios e interruptores no lugar certo, ela e mais dois garotos do grupo levaram mais de dez minutos. Clélia já estava impaciente, chegou a tomar outro café para aditivar o sangue. — Nosso projeto é uma instalação domiciliar completa — disse Dentão. Os caras no fundo da sala continuavam conversando e só pararam quando Clélia ameaçou tirar pontos da caderneta. Murilo estava perto deles, mas não falava muito, estava concentrado em Alan Sérpia. Aquele bostinha ainda podia entregar todo mundo, ainda mais com o delegado rondando a escola. — Continuando — disse Dentão, e alguém no fundão a imitou. Clélia cozinhou o fundo da sala com os olhos. Dentão seguiu em frente: — Nós fizemos uma instalação com fusíveis, lâmpadas diferentes para cada quarto, instalação em série e em paralelo, e blá, blá, blá... Eles mostraram todo o projeto e, bem, era melhor que as duas merdas anteriores. Estavam com a nota garantida, Professora Clélia tinha gostado do que viu. O pessoal da Dentão fez até apostilas explicando tudo, apostilas com desenhos, extremamente didático. Mas então a ganância falou mais alto e a soberba de Isabel pediu para ir além naquela apresentação. — Não acho uma boa ideia mexer com energia da tomada. A rede da escola é duzentos e vinte, um choque pode ser mortal. — É seguro, professora. Fizemos isso em casa — disse Isabel. Mais uma maluca por popularidade. Isabel tiraria as roupas na frente da sala se isso a colocasse entre os dez mais em vez de o último lugar da fila. Os garotos ao lado dela, os colegas de grupo, não pareciam tão seguros. Um deles, com cabelo armado e aparentemente cortado por um cego, tinha se afastado quando ela mencionou corrente alternada. Mas a empolgação da sala foi tão alta e legítima (e quem não gosta de um pouco de perigo) que Clélia voltou atrás. — Tem certeza que é seguro? — Totalmente — disse Isabel. Clélia acenou a cabeça para não precisar dizer sim. Isabel apanhou um fio que saía da parte de trás da maquete e o esticou até a única tomada da sala. — Não alcança — ela disse. — Graças a Deus — suspirou Clélia. Mas ninguém ouviu de onde ela estava. — Pode usar minha extensão — disse Junior. Um garoto gordo que tinha um projeto de estufa artificial. Isabel agradeceu, e um dos seus parceiros desceu do tablado para pegar a tal extensão. A maioria dos garotos estava recuada, teve gente que foi para perto da porta. A professora descruzou os braços e sacou uma goma de mascar da bolsa, mastigar a acalmava. Isabel tomou o cabo para si e foi até a tomada. — Tudo pronto? — perguntou aos dois garotos que ficaram perto da maquete. Eles pareciam assustados. Um deles, o menor e de cabelos espetados que tinha raspado a cabeça por causa de piolhos há pouco tempo, fez que sim com a cabeça. Isabel sorriu como se tivesse seu grande momento e socou os pinos na tomada. FLOOP! A luz da sala oscilou, os ventiladores pararam e Clélia correu antes que algo pior acontecesse. Olhou de perto o que acontecia em sua mesa. A casinha não chegou a pegar fogo, mas alguns cabos derreteram, soltando um fedor horrível de plástico queimado. Uma pequena nuvenzinha saiu de dentro da casinha sem teto. As meninas da sala gritaram e os caras riram em uma mistura de empolgação e desespero. Estavam excitados e uma movimentação quase histérica começou em segundos. Mas Clélia estava atenta, ela correu para a tomada e apanhou o cabo que estava quente pra caramba. Arrancou com um puxão e salvou a vida de todo mundo. Pelo menos por enquanto. ERUPÇÃO
Mais dois projetos sem graça foram apresentados depois que o acidente elétrico foi contornado pela professora Clélia. Nada que merecesse uma menção. — Quem falta apresentar? — Clélia perguntou, quando o tablado ficou novamente vazio. Faltavam três grupos, um deles era de química — apresentariam a reação mais manjada do mundo, tintura de Sangue do Diabo. Esse não seria o último, mas também era chato demais para entrar em ação agora, Clélia queria algo que mantivesse os garotos empolgados. — Aqui — ergueu a mão Fabiano Poente. Seu projeto era o tal rádio pirata. Era legal também, mas... Era meio estático, meio sem emoção, principalmente meio ilegal. Os melhores continuavam sendo seu rádio e o vulcão de Murilo Torque e Anderson. Notando a cabeça baixa de Alan Sérpia, a professora tentou se livrar da escolha com o pretexto de animá-lo. — O que acha, Alan? Ele foi apanhado de surpresa. Para Clélia, o pior problema de toda aquela manhã é que Alan não estava bem. Ele era um dos melhores alunos, um dos mais participativos nas aulas inclusive, e não bastasse o projeto ridículo que apresentou, estava calado e com os olhos no relógio, contando os minutos para que a aula, a apresentação, ou todo o resto do mundo terminassem. — O que eu acho do quê? — Quem deve se apresentar agora? Murilo o encarou e costurou sua boca. Alan não conseguia olhar para ele, não conseguia nem pensar nisso. Seus braços ficavam arrepiados quando ele pensava em Murilo e no que ele poderia fazer se ficasse irritado demais. Anderson também não era fácil. Uns meses atrás, a polícia o apanhou pichando o muro da prefeitura. Levaram-no para a delegacia, Anderson ficou mais de quatro horas sem dizer uma palavra, isso com um monte de policiais — disseram que até o delegado — o pressionando. Acabaram ligando eles mesmos para o pai dele, médico obstetra, Evandro Rocha. Disseram que Anderson não arregou nem para o velho. Alan já ia dizendo que não sabia, mas o celular começou um escândalo em seu bolso. Ele olhou para a perna direita quando o aparelho começou a tremer. Mais essa agora, pensou Clélia. O combinado na escola é que nenhum celular ficaria ligado durante as aulas — só mesmo em um caso de emergência, mas o professor deveria ser avisado antes. — Pode atender, senhor Alan. — Desculpa, minha avó tá meio ruim de saúde. Ele enfiou a mão direita no bolso enquanto todo mundo ria. Alan estava sendo um macaco idiota naquela manhã inteira. Ninguém entendia o motivo, mas ele ficava engraçado quando estava com medo. Alan deslizou os dedos sobre a tela do aparelho e leu uma nova mensagem: “AGORA! FAÇA O QUE DEVE FAZER!” Com medo do que tinha acabado de ler, tornou a guardar o aparelho no bolso. — Tudo bem com ela? — perguntou Clélia. — Com quem? — Alan! Quem da sua família está doente? — Ah, sim. Minha tia melhorou bastante. A mensagem era da minha mãe. — Tá feia a coisa hoje... — disse Fabiano. Clélia olhou torto para ele enquanto o resto da classe ria. Para reassumir de vez o controle, ela pressionou mais um pouco o rei da esquisitice daquela manhã. — Preciso que decida o projeto seguinte. — Quero ver o projeto do Murilo. Vamos ver o que esse monte de barro faz — disse Alan. Um roaming provocante começou entre as carteiras. Murilo ficou vermelho, queria partir para cima de Alan, mas Anderson apanhou seu braço com força e o lembrou que eles ainda estavam dentro da sala de aula — e sem os pontos na caderneta que aquele monte de barro traria. Murilo sacudiu o braço e se libertou. Pediu ajuda de Anderson e de Luizão-Gordo-Buba e levou aquela coisa enorme até a frente da sala. — Como isso pesa! — disse Luizão. — Agora você sabe como seus pés se sentem! — disse Murilo. Anderson continuou quieto e fazendo força. — Vão com calma! Não deixem cair antes de assistirmos a apresentação — Clélia. Os três se arrebentavam para subir a maquete e colocá- la em cima da mesa. Alan foi para perto da porta e dividiu um espacinho com Clara e Aline — duas irmãs Gêmeas que estavam por lá desde o experimento elétrico de Isabel Dentão. — Força! — disse Murilo. Enfim os três colocaram a peça sobre a mesa da professora. Como a tirariam de lá não importava muito, Murilo imaginava que quando a lava (os fogos de artifício de dentro) queimasse, o peso diminuiria bastante. — Essa coisa é segura meninos? Quanto material tem aí dentro? Sem saber o que dizer, Murilo procurou o pai da criança. Alan estava pálido, muito branco mesmo. Ele deu de ombros. Seria pedir muito, depois de tudo, que ele respondesse o que demorou semanas para aprender. Só se fosse muito burro. Anderson acabou resolvendo. — Pesa assim por causa da argila. Toda a parte de fora foi feita com barro do brejo, nós mesmos fomos buscar. O pessoal da sala ficou surpreso, ficaram empolgados. Ir até o brejo, se sujar todo, só para montar uma maquete? Ok, aqueles três podiam ser uns desgraçados violentos com os outros garotos, mas deram duro de verdade para produzir a miniatura de vulcão. — E não tem perigo, professora. Nós testamos dentro de casa, só sai uma fumacinha. — Não querem ir lá pra fora? — Não, o vento pode atrapalhar a direção da erupção — improvisou Luizão. Atrapalhar a erupção? Quem eles pensavam que eram? Spielberg? E o mais impressionante é que a explicação convenceu todo mundo (principalmente a professora que tinha compromisso com seu namorado dez anos mais jovem logo depois daquela aula. Não, não... atrasar não era uma opção). Só não convenceu Alan-Sapo que tinha mais com que se preocupar. Olhar para aqueles três escrotos trouxe muita coisa ruim para fora. No primário, quando ele conheceu Murilo, eles se tornaram os melhores amigos. Murilo era uma criança adorável para qualquer adulto, mas com os garotos ele começou a ser mais próximo de um carrasco. Alan não, Alan era doce e bobo, e quando Murilo não conseguiu convencê- lo a matar o gato de estimação de um garoto que implicou com ele, também o tornou seu inimigo. Alan pagava a conta até hoje. Puxadas na cueca, empurrões, tachinhas na cadeira, provocações, purgante no refrigerante, e mais, muito mais. Anderson veio depois. Uniu-se a Murilo na terceira série e aprendeu depressa que implicar com Alan era pré-requisito para ter sua amizade. Agora os três indecentes tomavam mais do que era seu. E eles estavam felizes, vitoriosos. Alan sentia-se violado, pilhado de um jeito que não havia volta. E também pensava no que viria a seguir, embora não pudesse dimensionar o estrago. Eles que se fodessem, não era o que diziam a ele? Que se fodessem. — Que se fodessem... — Disse alguma coisa, Alan? — Não. Tava pensando em voz alta — respondeu a Aline. Clara pediu que Aline prestasse atenção nos garotos do vulcão. Murilo parecia perdido na frente da sala. — Droga — ele disse, olhando para a boca do vulcão. — Que foi agora? — Anderson perguntou. — Não sei acender essa porcaria. — Tá brincando? O veadinho não disse? — Mais ou menos, eu não entendi direito. — Vê se não tem nenhum pavio solto — disse Luizão. Já estava vermelho e suado, pensando onde estava com a cabeça quando aceitou se juntar àqueles caras. Logo lembrou. Murilo era encrenca, mas era filho do vereador que mandava em metade da cidade. O resto ficava com o pai de Anderson, que tirava todo mundo da barriga da mamãe. É... Não tinha sido má ideia, mas às vezes, eles o deixavam irritado com tanta falta de planejamento. Do modo como agiam, acabariam presos antes dos vinte. — Eu já olhei, gênio. Não tem pavio nenhum! — O que estamos esperando? — perguntou Clélia. — Enrola ela! — Murilo pediu a Luizão. Os três estavam de costas, vasculhando o vulcão. — Eu? Por que eu? — Porque você é gordo! Agora faz o que eu tô mandando! Luizão sacudiu a cabeça, bufou e obedeceu. Dos três, era o que mais precisava da nota, então não era tão injusto que passasse algum ridículo. Ajeitou a calça trazendo a cintura para perto do peito e secou a testa com as mãos. — Esse aqui é nosso vulcão. — Já percebemos isso, Luiz. Por que não nos apresenta os materiais que usaram? — Materiais? — É. Além da argila que estamos vendo — Clélia explicou. — O que eu falo? — disse, cochichando com Anderson que estava agachado logo trás. — Enrola ela, pô. Fala que usou tinta acrílica e que esculpiu o fundo. Inventa alguma coisa! Na porta, Alan se deliciava. Era bom ver o trio estupidez tendo o que merecia. O problema é que por mais que eles se enrolassem e dissessem aquele monte de lengalenga, quando acendessem a coisa, nossa! Ninguém ganharia menos que um dez. Mesmo que o gordinho ali gaguejasse sem dizer uma única palavra certa, eles se dariam bem. Ok, mas isso não continuaria depois que Murilo, o idiota prepotente, colocasse a sílica dentro do buraco. — Nós usamos barro para o molde, e pintamos toda a parte de fora com tinta acrílica. — Parece guache — disse Marina, uma menina das primeiras fileiras. — Usamos guache também. Para fazer a parte de baixo, tudo isso verde aqui é guache. — Mas parece massinha de modelar — disse Paulo Pereba. Sentava na segunda carteira, logo atrás de Marina. Ele já tinha tomado uns cascudos do gordo gago, não perderia a chance de humilhá-lo. Depois disso, o Deus dos canalhas foi providencial. — Aqui. Tá vendo aqui? — disse Murilo para Anderson. É o fósforo que vai acender essa coisa! — Em seguida, antes que Luizão dissesse mais besteiras: — Tudo pronto aqui, professora. Anderson virou de frente e encarou Paulo Pereba. O garoto se apavorou e se recolheu na carteira, como um ermitão. Marina também ficou quieta, mas por outro motivo: ela era louquinha por Anderson Rocha. — Então vamos com isso. Ainda temos dois grupos. Outra vez, Anderson chegou perto do ouvido de Murilo: — Tem certeza que vamos fazer isso? — Murilo riu e sacudiu uma caixinha de fósforos que veio de brinde junto com o projeto. Tarde demais. Murilo acendeu a coisa.
COMEÇOU DEVAGAR, como deve começar uma erupção de verdade. Ninguém na sala reagiu muito, apenas alguns suspiros. Uma fumacinha escura começou a sair da boca do vulcão. Ficou assim por uns dez segundos. Murilo estava bem perto, tentando olhar para dentro da cratera sem ter a menor noção do que viria a seguir. Luizão e Anderson eram mais cautelosos e não chegavam tão perto. — Só isso? — perguntou Mário. Filho do dono do posto de gasolina Mercúrio. — Espera aí, está acontecendo alguma coisa — disse Isabel Dentão. No fundo, estava torcendo para aquela bosta derreter e todo mundo tirar zero. Por enquanto, os únicos projetos a darem um fiasco tão grande tinham sido o carrinho-caracol do Sérpia e o dela. Começou com um estalinho. Alguma coisa sofreu ignição dentro do vulcão. — Uau! Isso é demais! — tietou Clélia, quando a fumacinha mudou do fuliginoso para um vermelho bem forte. Alan havia caprichado e colocado cheiro de morango na fumaça colorida. E veio outro estouro, um pouco mais forte. Alan deu um salto distraído para trás, bem curtinho. Em seguida um chiado começou na parte de dentro da maquete. Fraquinho e depois mais forte. Ia aumentando aos poucos, e na mesma proporção, a empolgação da classe. Todo mundo estava achando o máximo, os CDF’s, a turma do fundão, a professora, todo mundo mesmo! Menos Alan Sérpia. Alan queria um vulcão de verdade. O que veio a seguir não impressionou Alan, mas deixou o pessoal sem fôlego. A boca do vulcão começou a jorrar luz, como aquelas estrelinhas de festa de aniversário, mas muitas, muitas delas. Saiu um bocado daquilo, por quase dez segundos, e então, começou tudo a tremer, o vulcão e a mesa da professora que servia de base. O pessoal das primeiras carteiras reagiu e tentou levantar, Clélia roeu as unhas. BOMM! Uma explosão mais forte. Gritos. As gêmeas abriram a porta e só voltaram quando o mundo não explodiu. Clélia ficou mais atenta ainda, temendo que a experiência fugisse ao seu controle. Estava arrependida de ter deixado os garotos do lado de dentro do prédio. Onde ela estava com a cabeça? Só ficou mais calma com o fim da explosão. Uma nova fumacinha (amarela e depois laranja) tomou o lugar das estrelinhas flamejantes. A sala relaxou sem saber que o melhor ainda estava por vir. — Muito bom! — gritou Clélia. Estava empolgada de verdade (e também aliviada). Ela nunca tinha visto um projeto de ciências tão bom. Ainda pensava sobre como aqueles garotos burros (era isso que Murilo, Luizão e Anderson eram para ela) conseguiram produzir um projeto tão engenhoso. Havia pirotecnia, reações em cadeia, tremores! Caramba! Aquela coisa tremeu de verdade! — Ainda falta a LAVA, fessôra! — disse Murilo, sacando um potinho do bolso da calça jeans e chacoalhando no ar. Antes que alguém pudesse impedi-lo (e além da professora, Alan pensava seriamente a respeito), ele entornou a coisa toda dentro da cratera colorida do vulcão. O protótipo ficou quieto por algum tempo, uns trinta segundos. Quieto demais. Clélia suspirou aliviada, alguma coisa naquele vidrinho não estava certa. Ela podia sentir isso, como um pássaro em uma mina de carvão. O silêncio continuou e ficou tão incômodo que Hashimoto, o garoto que só tinha um nove no currículo (e de Educação Física), perguntou: — É só isso? Não era só isso, porque a coisa começou a feder. Um cheiro terrível misturado com algo esfumaçado que parecia glicerina de gelo-seco de mentira. As meninas da sala reclamaram imediatamente, duas delas, as gêmeas que estavam perto da porta, colocaram as mãos sobre os lábios para não vomitarem. Anderson, perto demais daquela coisa, teve uma crise de tosse. — Que cheiro horrível! — disse Isabel Dentão. Murilo não gostou daquilo e encarou Alan. E o que ele esperava que Alan fizesse? Que fosse até o centro do tablado arrumar seu projeto roubado? Não, senhor Murilo, nem nos seus sonhos mais doces. — Melhor dar um jeito nisso — disse Luizão a Murilo. A professora estava começando a estressar. Clélia era boa demais para aquela escola e mais ainda para os seus alunos, ela detestava fracassos. Sem saber como contornar a gafe, Murilo tratou a miniatura como o computador do seu quarto. Deu um forte soco na maquete. Um trinco se abriu perto da boca e um pedaço de torrão de argila rolou pela superfície íngreme. Caiu no chão e descansou. Clélia não gostou nada, aproveitou para dizer: — Se já terminaram, podem ceder a vez ao próximo grupo. — Anda porcaria! — disse Murilo. Não terminaria assim, não mesmo! Não seria justo, depois de todo risco que correram com Alan. E aquele seboso ainda podia dar com a língua nos dentes, aquele filho da mãe mimado. Alan tinha enganado aos três, direitinho. — Desiste, Murilo. Pelo menos a fumaça foi legal — disse Luizão. — Ainda não acabou. Murilo puxou a cadeira para si e subiu em cima da mesa. — Murilo! Isso não é permitido! — disse Clélia. — O dispositivo enroscou — mentiu. Embora acreditasse nisso. Assim que tocou a parte de baixo da maquete sentiu que estava quente. Não a ponto de queimar a pele, mas quente o suficiente para que ele tirasse a mão da argila. Tinha algo acontecendo lá dentro, alguma nova reação. Murilo meio que abraçou o vulcão tentando encontrar um interruptor escondido, Alan devia saber onde ficava, mas ele não podia simplesmente pedir que o garoto apontasse o local na frente de todo mundo — seria mais fácil assinar uma confissão de culpa. — O que foi isso? — Anderson, que estava bem perto, perguntou. — Ele vibrou — respondeu Murilo e colocou o rosto na abertura. Clélia sentiu um calafrio poderoso, um deja-vu maldito sem imagens projetadas em sua mente. Ela sabia que alguma coisa estava prestes a acontecer. Infelizmente não descobriu o que era antes de tirar Murilo dali. A maquete entrou em erupção. BOOWWWNNNN! Pela boca do vulcão, o que saiu depois da explosão altíssima foi um líquido incandescente. A maquete ejetou aquele primeiro jato diretamente no rosto de Murilo Torque. O garoto gritou como louco enquanto perdia a visão. E não era só isso. O líquido vermelho, meio dourado em alguns pontos, também era corrosivo. Murilo se jogou no chão e em seu desespero cego agarrou Anderson pela camiseta. — Socorro! — gritaram as gêmeas, praticamente ao mesmo tempo. Alguém da sala chegou à porta e as empurrou para o centro da sala. Em seguida, um monte de garotos começou a se espremer pela abertura. Muita gente ficou paralisada com o show de horrores e outros saíram correndo, então não era muito fácil chegar até a porta e atravessar. No meio do caminho estava Alan, horrorizado pelo que deixara acontecer, com o que desejou acontecer. Uma das metades do rosto de Murilo estava vermelha, sangue puro. A outra estava com a carne explodindo em feridas e bolhas, um bom pedaço perto da mandíbula tinha chegado aos ossos. O cheiro que infestava a sala era de carne derretida e cabelos queimados. Um dos olhos de Murilo explodiu como uma uva na fogueira, o outro estava arregalado e injetado. Anderson tentava se livrar dele, socando e empurrando, mas o pânico de Murilo o animou com a força de um homem adulto. A coisa em seu rosto, o sangue e o líquido corrosivo, respingaram em Anderson, ele estava preso, chorando, mas o que acabou com ele não foi Murilo. Foi uma nova explosão. Em vez de líquidos, o que saiu do vulcão foi o recheio de seu corpo argiloso. Alan havia usado grandes pedaços de vidro misturados com a argila. O vidro combinado a ela fornecia um bom isolante térmico, e ninguém esperava que aquela coisa explodisse de verdade. Bem, não Alan, pelo menos. A vingança prometida pelo senhor computador era dar uma lição em Murilo e seus comparsas, mas matá-los? Pobre Alan, ele daria tudo para voltar atrás. BOMM! FLASPSHH — Urrrghhhh! — disse Anderson quando um dos cacos entrou em seu pescoço. Foi no exato momento em que Murilo não conseguiu mais resistir à corrosão de seu rosto e desabou. Luizão já estava no meio da sala, cercado por outros garotos tão apavorados quanto curiosos, eles não conseguiriam correr dali antes que tudo terminasse. Um pouco da coisa corrosiva, da lava, acertou o peito de Anderson e também outros cacos. Ele não duraria tanto quanto Murilo. Logo estaria no chão e somente suas pernas se mexeriam em pequenos movimentos convulsivos. Mas não ainda. A gritaria era extrema. Isabel Dentão acabou pisoteada durante o tumulto, estava machucada no rosto e nas pernas. Mas estava viva o suficiente para cair fora dali. Quase todos estavam. E eles pareceram acordar de vez quando Anderson tombou. Clélia agarrou dois ou três alunos e os arrastou para fora, depois mais dois, e quando tentou voltar pela terceira vez, encontrou uma corrente de garotos em fuga que a impediram. Eram alunos das outras salas. O alarme de incêndio ainda não tinha tocado, mas a explosão deixava poucas dúvidas sobre algo estar muito errado. Dentro da sala restaram Alan, as Gêmeas, Luizão incapacitado pelo medo e os dois quase-cadáveres. — Você sabia, Alan! Você acabou com eles! — Cala essa boca, gordo! Eu não sabia de nada disso. — Você deu o potinho para ele, foi você! As gêmeas estavam entre eles, acabaram ficando por último, com medo do empurra-empurra da porta. Elas não eram grandes e não queriam ser esmagadas como a boboca da Isabel Dentão. — Deixa a gente passar! Pediram a Alan. Ele saiu do caminho, mas então outra explosão mandou o que restava daquela porcaria pelos ares. Pelos ares e na direção deles! Dentro da maquete havia uma parte mecânica que foi ditada pelo senhor computador. Nessa parte, um sistema de seringas que empurrava a fumaça para fora enquanto outras injetavam corantes. Havia mais coisas também, como fios e dois motores pequenos (que Alan retirou de carrinhos velhos que entulhavam o quartinho dos fundos de sua casa). Uma dessas seringas voou direto no olho direito de uma das gêmeas — Clara —, ela ainda sobreviveu e rodopiou até encontrar o corpo de Anderson e tropeçar nele. Quando caiu de frente, com o rosto no chão da sala, a seringa mergulhou em seu crânio. Os pés fizeram um movimento curto, se esticando, e ela parou de respirar. Aline ainda gritava, arranhando o próprio rosto, quando a maquete trouxe sua última surpresa. A tal lava até então corrosiva, mas somente corrosiva, começou a pegar fogo. Isso mostrou que Murilo Derretido ainda estava vivo, porque ele gritou e começou a rolar no chão. Anderson moveu os pés quando a camiseta em seu peito começou a pegar fogo. A mesa estava ardendo em segundos. — Vamos embora! É tarde demais para eles! — disse Alan. Estava segurando Aline pelo braço. Ela não se mexia. Olhava para a irmã morta. Olhar para Clara era olhar para o seu próprio cadáver, elas eram iguaizinhas. Luizão a empurrou para tirá-la do caminho, mas não passou por Alan. Dessa vez Sérpia revidou e o empurrou de volta. O gordo voltou dois passos e partiu para cima de novo. Alan viu seu punho fechado vindo na direção do seu olho esquerdo, mas antes que fosse atingido, a mão recuou. — Me solta! — Luizão disse logo depois. Alan olhou para baixo, para o chão. Anderson estava mantendo Luizão preso. Suas mãos pegavam fogo e agarravam a canela gorda de Luizão. Logo as pernas de Luizão também pegavam fogo. E não eram as únicas. Percebeu isso quando Aline começou a gritar. Parte daquele líquido também tinha acertado sua camiseta de uniforme quando a maquete explodiu pela segunda vez. Agora incendiava. Alan não foi atingido, estava limpo daquela substância terrível. Pena não ter a mesma sorte em relação às mortes. Os garotos, todos eles gritavam ou gemiam. Ele ainda tentou ajudar Luizão, mas a sala estava ardendo em todos os cantos. A mesa havia queimado depressa e a coisa, a lava corrosiva, caminhava pelo chão como uma língua de fogo. Seguia em direção a Luizão. Alan ficou onde estava, morreria junto com aqueles caras, seria justo. Pensou que com isso se livraria do inferno. Mas alguém tinha outros planos. — Vamos garoto! — disse Clélia. — Me ajuda! — gritou Aline. Clélia olhou para baixo, a pobrezinha não tinha chance, estava queimando viva. Os garotos gemendo (deles, só Luizão Gordo ainda conseguia gritar de verdade); dava vontade de vomitar. Bem, que ela pudesse salvar Alan Sérpia. Empurrou Isabel Dentão com os pés para liberar a porta (Isabel ainda estava do lado de fora, espionando o desastre) e arrastou Alan para fora. Olhou para o alarme intacto (nenhum daqueles gênios tinha lembrado de quebrar o vidro e apertar o botão). Clélia fez isso e ativou o alarme que começaria a soar com dois minutos de atraso. A sala atrás dela queimava como o inferno.
O SOM DOS CORREDORES cresceu exponencialmente e logo chegou à diretoria. Por lá, Zétia conversava com a melhor amiga de Patrícia, dessa vez com o diretor acompanhado a tudo — a pedido da garota que foi muito sincera e disse que não confiava em nenhum policial do Brasil. Zétia não tentou culpá-la; em setenta por cento dos colegas que conhecia, nem ele confiava. Stela Nogueira estava com grandes bolsas sob os olhos, tinha chorado bastante à noite e o resto chorou durante a conversa com o delegado. Ela sentia culpa pelo que aconteceu com Patrícia, pensava que a amiga poderia ter fugido, por causa do lance dela com o Davi. Se Stela soubesse que seu namorado e sua melhor amiga andavam se pegando escondido, certamente faria alguma coisa tão estúpida quanto desaparecer. — Ouviu isso? — Granville perguntou. Zétia levantou depressa e foi até a porta. Assim que a abriu o alarme de incêndio começou a tocar. — Treinamento de brigada? — perguntou a Granville. — Não, algum espertinho deve ter apertado o botão de alarme. Sua presença aqui mexe com os ânimos deles, delegado. — E esse cheiro? — perguntou Stela. E uma nuvem de fumaça invadiu a sala. — Meu Deus do céu! Vocês dois pra fora, eu vou até as salas de aula. Chamem os bombeiros! Não seria preciso, o alarme de incêndio tinha contato direto com o batalhão. Estariam ali em pouco tempo. Zétia sabia que não podia perder esses minutos. Ele saiu da secretaria e entrou no inferno. Havia muita fumaça logo na entrada do corredor, também muita gente pequena correndo, garotos e garotas com os joelhos ralados, olhos vermelhos, uma garota tinha tido fratura exposta no braço e o osso saltava para fora uns cinco centímetros. Os mais inteiros e espertos estavam com as camisetas no rosto, tentando filtrar um pouco da fumaça. Zétia apanhou a camisa de um garoto de óculos fundo de garrafa emprestada, molhou em um bebedouro do corredor e seguiu para o fundo. Ajudou um garoto loiro, todo cheio de fuligem no rosto, a recobrar a consciência, pediu a outro mais alto para ajudar o rapazinho de óculos a chegar lá fora, teve fé que o garoto alto fizesse aquilo em vez de salvar o próprio rabo. Dois passos adiante e foi seguro pela mão de outro menino. — A professora Clélia! Ela desmaiou! — ele disse. Zétia o reconheceu. Sua mãe era costureira, Janice Sérpia. Uma guerreira, como diziam. Ela e Zétia já tinham trocado figurinhas algumas vezes, mas fazia muito tempo. — Onde ela está? — A dona Clélia caiu e eu não consegui levantá-la! Tá perto daqui, uns vinte metros em frente. Eu mostro onde é! — Você cai fora daqui, Sérpia. Eu ajudo a professora. — Eu posso ajudar! — disse aquele garoto burro. Estava todo sujo e suado, os olhos estavam escorrendo água, e ele os esfregava sem parar. Podia ser irritação, mas para Zétia eram lágrimas. O que significava más notícias. — Você vai para fora como eu disse! — Agarrou firme seu braço, depois perguntou: — Tem mais alguém lá dentro? Em alguma das salas? — Todo mundo morreu! O Murilo, o Anderson, o gordo e as gêmeas, eles... Antes que terminasse, alguma coisa explodiu aos fundos. O fogo deve ter chegado à cozinha e atingido às tubulações de gás, foi o que pensou o delegado. — Corre! Corre daqui! — repetiu. Dessa vez Alan obedeceu. O corredor continuou esquentando pelos próximos dez metros. Zétia ofegava; respirar estava tão difícil quanto enxergar. Seus olhos queimavam e não era só irritação, era calor. Foi depois da sala do oitavo ano (a única plaquinha que ele conseguiu ler naquela loucura) que ele viu o corpo de Clélia estendido. Pensou que estivesse morta, seria mais fácil, embora nunca fosse confessar isso a alguém — carregá-la de volta parecia quase impossível. — Professora? Clélia?! Precisou golpeá-la no rosto para que recobrasse os sentidos. Ela abriu os olhos e havia pânico dentro deles. Estava completamente acordada em um segundo. — Acabou? Salvaram as crianças? — Acho que sim. Vou tirar você daqui. Passe a mão pelo meu pescoço e não solte. Vamos sair dessa, juntos. Zétia a apanhou; gemeu um pouco até acondicioná-la em seus braços. Estava exausto. Antes de sair pelo corredor, Zétia deu uma olhada no que ficaria para trás. Pensou em novas vítimas, alguém que ele pudesse ajudar. No corredor encontrou alguém entre as chamas. Alguma coisa que parecia não se incomodar com aquele calor que derreteria ossos. Estava bem no meio do caminho, parado, olhando para frente, olhando para ele. O fogo o circundava, estava mais claro, quase branco, perto do corpo. O homem usava terno e sapatos. Não fazia sentido que aquela coisa existisse, mas sim, ele estava ali, saboreando a desgraça. Quando outra explosão trouxe o teto acima dele para baixo, Zétia correu com Clélia em seus braços. NÃO O MEU FILHO!
A saída da escola era um inferno ainda mais quente que seu interior flamejante. Muitos garotos ainda gritavam, perplexos e sem acreditar que aquilo estava mesmo acontecendo. Outros estavam mudos, cravados em seu próprio pânico. Deus, como a vida pode mudar tanto e tão de repente? Delegado Zétia voltou a entrar na escola mais duas vezes. Resgatou uma garota de treze anos chamada Camila Guto que talvez não sobrevivesse (teve queimaduras de terceiro grau em sessenta por cento do corpo) e perdeu um garoto para as chamas, mais tarde identificado como Luiz Augusto Calmon, neto do dono da concessionária de carros Novos e Antigos — ficava perto da escola, apenas três quarteirões, mas Eriberto Calmon não conseguiu ir até lá quando soube do ocorrido, ele passou mal e foi levado às pressas ao hospital Santo Expedicionário onde o salvaram de um infarto. Professora Clélia teve dois desmaios seguidos quando saiu do pesadelo em chamas. Estava dentro de uma ambulância agora, recebendo oxigênio enquanto olhava preocupada para dois alunos: um transtornado e outro ainda inconsciente. Ela esperou que o enfermeiro saísse e tirou a máscara que incomodava seu rosto. Alan estava sentado ao seu lado, os olhos no limbo, os cabelos e o rosto molhados, traços de fuligem pelas bochechas e formando colares sujos no pescoço. Respirava com a boca aberta e, na opinião de Clélia, ele nem percebia fazer isso. Como não percebia uma porção de outras coisas. Pobrezinho, um garotinho tão novo não teria condições de suportar o horror que presenciara. — Alan? Está tudo bem aí? Está machucado? Nenhuma resposta, Alan nem mesmo movimentou o pescoço em direção a ela. — Sei o que está pensando, Alan. Também já pensei isso e Deus sabe quantas vezes ainda vou pensar, mas não podíamos ter feito nada. Eu sou uma adulta, uma professora, tenho o dobro da sua altura e não consegui. Não pode se culpar pelo que aconteceu. Mesmo imóvel, o rosto de Alan ficou diferente quando que ela terminou. Alguma coisa nos olhos, um movimento tão sútil que passaria por impressão. Então uma gota rolou do seu olho direito, depois outra do esquerdo. Debruçaram pelo queixo sujo e chegaram ao chão metálico da viatura médica. Clélia desejou sair da maca e abraçá-lo, mas não estava certa quanto a fazer isso. Somente psicólogos poderiam dizer com certeza o que seria melhor para Alan Sérpia. — Onde está ele? — alguém perguntou do lado de fora da ambulância. Alan não se moveu, mesmo sabendo que era sua mãe. Não que ele não quisesse sair dali e abraçar Janice, mas sua mente estava presa em outro lugar. Ainda estava ouvindo os gritos de Murilo, assistindo seu rosto derreter enquanto Anderson e Luizão gritavam, enquanto todos gritavam. — Dona Janice, ele está em choque — disse um dos médicos. — Ele vai parecer estranho, mas voltará ao normal. — Sai da minha frente! — ela disse. Antes que Clélia entendesse que Janice era a mãe do garoto já estava dentro do veículo. O médico pensou em entrar junto, mas ficou do lado de fora, observando. Janice agarrou Alan pelos ombros e começou a fiscalizá-lo, certificando-se que ele não estivesse muito ferido. Médicos mentem para mães o tempo todo, e mentiriam ainda mais em uma desgraça como aquele incêndio. — Ele está bem — disse Clélia. Janice ignorou e continuou com Alan. — Graças a Deus que você está vivo. Como uma coisa dessas foi acontecer? Eu vi pela tevê e vim correndo para cá. Alan continuou na mesma. — Filho, fala comigo! — Ele não pode — disse Clélia. — E quem é você?! Elas já tinham se encontrado umas duas vezes, mas Clélia agora parecia um espantalho surrado. Não era estranho que Janice não a reconhecesse. — Sou professora do Alan. Uma das professoras. Clélia. — Pode me dizer o que aconteceu dentro da escola? — Posso dizer o que eu vi, mas também não entendo como aconteceu. Os meninos estavam apresentando os projetos para a feira de ciências e um dos projetos saiu do controle, a coisa explodiu dentro da sala onde eu e seu filho estávamos. No fundo dos olhos de Janice imediatamente surgiu a imagem de um vulcão em miniatura no quartinho dos fundos de sua casa. Alan trabalhou nele por semanas, Janice odiou a coisa assim que a viu. Era grande, tinha ingredientes químicos e pólvora na parte de dentro, Deus sabe que ela teria jogado aquela porcaria fora se não tivesse tanto trabalho de Alan envolvido. E ele queria mesmo apresentar o vulcão na escola. Estava confiante, Janice não o via tão feliz desde que deu a ele um Playstation. Mas ela não diria nada disso para a professora, caso se tratasse do vulcão, Clélia já teria dito. Janice preferiu as bênçãos da ignorância. — Consegue andar, Alan? — Os psicólogos ainda vão falar com ele, mãe. Por que não espera mais um pouquinho? Vai ser melhor para ele. — Com todo o respeito, professora, com o respeito que eu nem devia ter depois do que aconteceu: quem sabe o melhor para o meu filho sou eu. Clélia não insistiu e se recostou à maca. Ela mesma recolocou a máscara de oxigênio. Precisaria estar inteira se conhecia bem aquela cidade. Quando começassem as perguntas, ela teria que respondê-las. Que Deus me ajude, pensou antes de apagar pela terceira vez. Nenhum dos bombeiros, policiais ou médicos ficou no caminho de Janice Sérpia. Como Alan não andava por vontade própria, ela praticamente o arrastou até o carro (um Fiat). Colocou-o no banco e passou o cinto. A única pessoa que falou com ela foi uma garota, Lidiane. Alan tinha falado com Janice sobre essa garota, parece que ele gostava bastante dela. A menina perguntou se estava tudo bem com ele. — Ele só precisa descansar, meu bem. Todos nós precisamos. Janice deu a volta e entrou no carro. Saiu devagar, mas mesmo assim quase colidiu com um Vectra prateado. Ela buzinou e chamou o motorista de imbecil. A confusão chamou a atenção de Zétia. Ele não quis acreditar quando percebeu a silhueta gorda que desceu do carro prateado. Janice já estava longe quando Orlando Torque veio trotando como um búfalo pelo gramado da frente da escola — o municipal tinha passado por uma grande reforma dez anos antes, chegaram a chamá-la de escola modelo, o gramado da frente tinha moldes americanos, com árvores, ciclovias e espaço para debates com mesas e cadeiras de alvenaria. Torque foi direto para Zétia, ele tomava um Gatorade de morango — que tinha gosto de laranja e cor de tangerina podre. — Cadê o meu filho? Murilo precisa ir ao dentista e colocar a porra do aparelho nos dentes. Gastei uma nota preta com o doutor Elias, não vou deixar esse incêndio de merda acabar com meu investimento. — Não é um bom momento, vereador. — Bom momento? Bom momento para quê, homem! Cadê o meu moleque? Zétia apertou os lábios e franziu as sobrancelhas. Jesus... O que diria ao homem? Qual é a melhor maneira de dizer a alguém que seu filho está morto? — Desembucha! Está escondendo o quê? O Murilo se machucou, é isso? — É um pouco mais sério, vereador. — E chega de me chamar de vereador. Você só me chama desse jeito quando tem bosta voando no ventilador. Onde está o diretor dessa favela? Se não vai me responder nada, eu quero falar com ele. Granville já estava acompanhando a discussão de longe. Contava aos bombeiros o que sabia sobre o incêndio quando Orlando chegou atropelando todo mundo. O diretor tinha esperanças que o delegado resolvesse tudo com o homem, mas nada disso. Era ele o responsável por aquelas crianças, inclusive pelas crianças mortas, organizadas em doze macas cobertas, no estacionamento da escola — os homens de Zétia fizeram um perímetro ao redor dos corpos. Caminhou com os olhos nos sapatos até chegar bem perto. Zétia dessa vez fez o mesmo, sem coragem de encarar Orlando e dizer a verdade. — E então? Vão me contar agora o motivo esse teatrinho? Onde está o meu filho? — Tenha calma, Orlando. É um momento muito delicado para todos nós. — Delicada é a sua bunda! Onde ele está, Granville? Orlando estava vermelho, suava. Tinha afrouxado a gravata e sua camisa salmão tinha grandes poças de suor nas costas e na parte de baixo dos braços. O cabelo ralo estava jogado na frente da testa, tirando o que sobrava de compostura. Granville não pensou muito sobre como diria aquilo. Saiu andando, ciente que o vereador e o delegado viriam atrás dele. Às vezes uma palavra amiga, um pouco de consolo, torna tudo mais fácil, mas tratando-se de homens como Orlando Torque, o choque, perder o chão, atingiam melhor resultado. Podia parecer desumano, mas não era, aquele era o único jeito. — Eu ainda estou falando com você, seu engomadinho de bosta! — Tenha calma, Orlando. Estamos indo até o seu filho. Preciso muito que mantenha a cabeça no lugar e... — Cala essa boca, delegado. Eu só quero o meu moleque. Anderson Dias, Fábio Andino e mais dois policiais que isolavam a área fecharam o tempo para cima do diretor. — Não pode passar, senhor — disse Fábio. — Acho que ele pode sim — corrigiu Anderson. O delegado confirmou que fizesse isso e tomou o vereador pelo braço. O diretor parou logo à frente, quase a lado do camburão-ambulância. — O que pensa que está fazendo? Tira essa mão de mim! Zétia apertou firme. Olhou incisivo nos olhos de Orlando e tentou mandar uma mensagem em seu tom de voz placebo. — Pelo amor de Deus, tenha calma. Sem saber o motivo de tudo aquilo (mas intuindo seus piores pesadelos), Orlando puxou o braço com um tranco e continuou sozinho. Zétia sinalizou aos seus homens para que ficassem atentos. Orlando só parou quando chegou ao ponto de onde o diretor Granville não passou. Olhou para frente e perdeu a firmeza das pernas quando viu. — O que é isso? O que está me mostrando? — É o que tentamos explicar, vereador. Eu não queria que fosse assim, mas o senhor causaria uma nova tragédia se continuasse gritando daquele jeito. — Eu não... Não me digam que... Falava baixo agora. Pobre homem. A verdade é que Orlando Torque, o safado mais valente e inescrupuloso daquela cidade, estava sem forças para seguir em frente, sem forças para repetir a maldita pergunta que o trouxera até ali quando ouviu no rádio sobre o incêndio da escola. — Foi muito sério, Orlando. Muito, muito, sério. Temos uma catástrofe terrível em nossa cidade — explicou Zétia. Mas não teve coragem para dizer a palavra. O delegado também não. Quem a disse foi mesmo Orlando, e quase sem voz: — Morto? Querem dizer que ele está... Que o meu filho Murilo está dentro de um daqueles malditos... Sacos? As pernas recuperaram as forças e o levaram até as macas. Zétia sinalizou para os policiais e foi atrás dele. Orlando estava fora de si. — Em qual deles?! — gritou, abrindo o primeiro dos sacos. Não era seu filho, mas a imagem terrível que saiu do saco fez com que Orlando congelasse pelos segundos precisos até a chegada de Zétia e do cabo Anderson. Orlando não conhecia aquela criança, mas foi como se olhasse para seu próprio filho. Os cabelos derretidos sobre o crânio, a pele ressecada e esfumaçada, bolhas. Uma das pálpebras tinha sido carbonizada, então o olho sem proteção mirava vitrificado à frente do rosto. Ele fedia com um trapo apodrecido jogado no fogo. — Não precisa vê-lo, Orlando. Eu já fiz isso por você, fiz isso com todas essas crianças — disse Zétia. — Não, isso não está acontecendo, vocês se enganaram! O homem caiu de joelhos, socou o chão e levou as mãos cobertas de terra e grama até o rosto. Deslizou-as pelos cabelos úmidos de suor. — Não pode ter acontecido com Murilo. Ele era esperto, meu filho sairia vivo dessa confusão. E ele saiu! Quem está dentro desses sacos imundos são os garotos burros, não meu Murilo! Granville procurou por Zétia. Ele assentiu com a cabeça. Cheio de pesar e com um arrependimento prévio, o diretor disse: — É o sexto saco, da esquerda para a direita.
NADA É TÃO RUIM...
Uma frase popular no compêndio de atrocidades de Dolores Griffante era: Nada é tão ruim que não possa piorar. Seu filho, Zétia Griffante, nunca acreditou nesse pensamento agourento. O fim de tarde em Nova Enoque provou que estava errado. E olha que uma manhã como aquela dificilmente teria concorrência. Zétia permaneceu no colégio municipal até que a última pessoa — no caso, o diretor Granville — deixasse o local. Antes disso, precisou conter o desespero de Orlando Torque que tentou acabar com a raça do diretor ali mesmo, na frente de meia dúzia de policiais. Orlando tirou o plástico especial que cobria seu filho e olhou para ele, para o que restou de Murilo. Depois chorou ao lado do caixão. Punhos cerrados, uma expressão de ódio e revolta inundando seu rosto. Ficou assim por mais de dez minutos. Quando se afastou, tinha um alvo, o homem que deveria estar no lugar de seu filho. Depois de contido, Orlando se arrastou até o carro e dali até o bar Troubador, onde pediu o melhor uísque da casa para brindar o cadáver de seu filho. Ele não pensou em sua esposa Edna ou em Andreza — sua filha que já morava fora da cidade há dois anos. Vereador Torque só pensou nele e na dor horrível, irreparável, que sentia. Estava agora na segunda dose dupla daquele veneno maltado. Doze anos, um sabor que aprendeu a apreciar na glória e na derrota. Mas nunca pensou que encontraria uma maneira tão nojenta de tomar um uísque. À sua frente, o barman; um homem bom que não merecia aquele emprego vegetal. Atendentes de bar são sempre boas pessoas, dispostos a ouvir e aconselhar. São tão bons quanto qualquer padre ou psicólogo. O nome do homem era Lauro, mas todo mundo chamada de Lau. Era alto, cabelos claros e meio ralos organizados com um pouco de gel. Olhos verdes e expressivos. Gostava de ouvir seus fregueses, talvez por alguma tara escondida. Entretanto, o homem à sua frente não tinha dito uma palavra até ali. Lau enxugava copos e recarregava as máquinas de Chopp para passar o tempo. Tentava não olhar muito para o vereador. Um pouco de luz nova invadiu a sala e atingiu o rosto demolido de Orlando. Ele espremeu os olhos e não olhou em direção a luz. Não importava quem estava entrando, o que ele queria mesmo era beber daquele uísque até que suas memórias evaporassem. As boas, as ruins, até que Murilo evaporasse. Não parecia errado pensar nisso, não com toda a dor que experimentava. — Uma soda — pediu o estranho. — Desculpe, estamos fechados. O vereador veio falar com o chefe e por isso está aqui — mentiu Lau. — Tem certeza? Vai negar uma bebida a um homem com esse sol todo lá fora? — Virou o rosto na direção de Orlando. — O que me diz, vereador? Acha certo que me ponham para fora antes de uma bebida? Uma soda? — Vocês dois podem comer merda desde que não me encham o saco — respondeu. Ainda de cabeça baixa: — Tudo bem, Lau. Sirva o homem. Lau concordou e desfez a expressão fechada. O estranho de terno escuro agora era seu cliente, então ele o trataria bem. Apanhou um copo tinindo de limpo, três pedras de gelo e perguntou: — Limão? — Não. Com gelo está ótimo. Depois de encher o copo com soda, Lau o deixou sobre o balcão. Logo voltou com um descanso para copos. Era uma promoção de um escritor que resolveu lançar seu livro ali mesmo, no bar. O livro até que vendeu bem, pelo menos para a história-tema manjada sobre viagens no tempo — e o bar ganhou duas dúzias de bolachas promocionais. O estranho agradeceu, apanhou o copo e olhou para o descanso. Deixou um riso casual escapar e comentou: — Ele ainda chega lá. Orlando pagou com o mesmo descaso a observação e a presença do estranho. O homem não insistiu. Preferiu apanhar o copo e ir até uma réplica de Jukebox que ficava perto dos banheiros. Colocar uma música para animar as coisas. Pensou muito pouco, ele sempre escolhia a música número quarenta e dois; quarenta e dois é a resposta de tudo, não é o que disseram? Blueberry Hill com Fats Domino começou logo e Orlando não pode deixar de se sentir melhor. Só que não (como diria seu filho sem rosto enchendo uma mesa do necrotério). O homem negro voltou dançando cautelosamente, e Lau sacudiu a cabeça para que parasse com aquilo. Orlando o surpreendeu e quebrou seu novo silêncio dizendo: — É uma boa música, apesar de ser música de preto. — Sim. E esse foi um bom comentário apesar de sair da boca de um branco — sorriu o estranho. — Dia difícil? — perguntou quando tornou a se sentar. Outro risinho daqueles que mais parecem um desabafo. — O pior deles, meu caro. O pior. — Eu soube do incêndio na escola, espero que seu uísque não tenha relação com isso. Orlando escorregou o copo para frente e pediu outra dose. Aproveitou o intervalo para olhar direito para aquele homem. Definitivamente não era da cidade, ele não esqueceria um negro metido daqueles se já o tivesse visto antes. Os rapazes negros de Nova Enoque não andavam naquela elegância toda — coitados, eles nem teriam dinheiro para isso. Os cabelos eram raspados na máquina um, bem curtinhos mesmo, e desenhados na navalha para dar acabamento na testa e perto das orelhas. Em uma delas, na orelha direita, havia um brinco de ouro com um brilhante. No dedo anelar esquerdo, um anel estranho, com uma pedra turquesa. — De onde você saiu? — Estou de passagem. Vim a trabalho. — Posso saber o que veio fazer em Bosta Enoque? O homem sorriu: — Estou investigando a prefeita. — Miriam? Está investigando Miriam Guerra? E como eu não sei quem você é? — Mas eu sei quem é o senhor, doutor Orlando. O tom confiante do estranho tinha ido longe demais dessa vez. Espionar a safada da prefeita era uma coisa, mas espionar seus inimigos era bem diferente. E perigoso. Aquele homem era esperto, andava bem vestido, e tinha o dom da oratória, como dizem os analistas políticos que pensam saber tudo. — Essa conversa azedou, meu amigo. Prefiro tomar a próxima dose sozinho, se não se importa. — Você teria muito a perder com isso, senhor Orlando. Tenho informações do seu interesse. Lau entregou o copo recarregado a Torque, ele o levou aos lábios. Deu outro grande gole, como todos os que vieram antes. — E suponho que essas informações tenham um preço? Um bem alto, hã? — Nem tudo é dinheiro, doutor Orlando. Às vezes se trata de justiça. — Se não custa nada, eu que posso ouvir. Depois do dia de merda que eu tive um pouco de diversão é bem-vindo. Mas se disser uma palavrinha que me desagrade vai pagar pela ousadia. O homem não se intimidou nadinha. Encarou Orlando como um hipnotizador de serpentes e atirou: — É sobre o seu filho. Orlando saiu do banquinho e partiu para cima dele. Seu copo de uísque voou para o chão e espatifou. Lau, sentindo o cheiro de problemas mais sérios que um copo quebrado, correu para o telefone fixo (uma réplica de um telefone anos cinquenta, preto), e espetou o dedo no número um. O estranho olhou na direção do barman, avisando Torque que os dois se dariam mal com aquilo (principalmente Orlando, um vereador brigando bêbado não soava bem, mesmo com a morte do filho). — Não — disse Torque. E não precisou mais que isso para que Lau deixasse o aparelho. Lau foi até o centro do balcão. Orlando não sabia, mas havia uma arma ali, um trinta e oito que não era usado há vinte e um anos. Orlando apertou o colarinho do sabichão e colou seu rosto bem perto do dele, tão perto que o bafo de soda recendido da boca parecia fresco. — É melhor explicar o que o nome do meu garoto faz nessa boca suja. O negro sorriu. Estava tranquilo. Tranquilo como um cacto no deserto. — Não sou seu inimigo, vereador. Sou inimigo do seu inimigo. — Solta essa língua antes que eu a puxe para fora. Foi a vez do estranho olhar na direção de Lau. Aquela conversa interessava somente aos dois, nada de atendentes enxeridos, portanto. Lau fingiu que não entendeu e continuou perto da arma guardada dentro do armário. Suava um pouco, o cabelo louro estava escuro perto da testa e das têmporas. — Dá um tempinho pra gente, Lau. A máquina de som não precisa de uma limpezinha? — Tem certeza? — Tenho sim. Eu e o senhor gentileza aqui vamos ter uma conversinha de cavalheiros. Pode deixar a garrafa de uísque. E você bebe comigo — disse ao homem. Lau puxou um copo limpo, a garrafa mais cara da casa, e os pousou perto do copo de Orlando. Não gostou de fazer isso, não por conta da conversa que perderia, mas era uma heresia alguém consumir aquele uísque sem um barman, era como mijar na cruz com o Cristo lá em cima. Já estava com sua flanela amarela na Jukebox quando Orlando autorizou o estranho a falar. Antes, quis saber seu nome. — Posso dar vários nomes, vereador. E mostrar várias identidades. Mas penso que o mais importante são as informações que eu tenho. Pode me chamar de Dubá. O sobrenome não importa muito. — Que seja. Do que você sabe, Dubá? O que sabe a respeito do meu filho falecido? — Até ontem eu só sabia que ele era seu filho. Um garoto esperto que mandava em metade da sala submetendo os outros ao seu controle. — Se isso foi uma crítica, não funcionou. Meu filho era como todo homem da nossa família, um predador. — Ainda não cheguei onde queria, vereador. Eu esbarrei no seu filho por acaso, enquanto investigava as ligações da prefeita Miriam com um grupo de mercenários pagos por ela. Estavam hospedados perto do hotel Glória. — Continue. — Foram eles. O incêndio na escola, justamente na sala do seu garoto, foi tudo obra da prefeita. As mãos de Orlando se fecharam com tanta força sobre o copo de uísque que o teria explodido se fosse um milímetro mais fino. Ele tremia, o copo se chocava sobre o balcão como sinos de uma igreja abandonada. — Aquela vagabunda! — Ela é sim. Miriam fez isso para se vingar, doutor Orlando. Nas minhas investigações também esbarrei no seu nome. É do seu conhecimento que a filha da prefeita foi sequestrada, suponho? — Sei que a vadiazinha desapareceu, mas sobre sequestro? Não, não sei nada sobre isso. — Bom. Estamos conversando aqui, tomando um bom uísque, então vou confiar no senhor. A menina foi mesmo sequestrada. Ainda não sabemos quem fez isso, mas sei que inimigos políticos em comum, seus e dela, enviaram um dossiê acusando você da coisa toda. Imagine como ela se sentiu, vereador? A menina tem menos de dezesseis anos, sequestrada, bandidos malucos salivando perto da sua carne macia e rica. Orlando somou dois mais dois. — E aquela trepadeira incendiou a escola para acertar meu garoto? Para matar meu garotinho? É isso mesmo o que acabou de me dizer? — As evidências, vereador. As evidências disseram. Conhece a prefeita Miriam. E conhecia seu irmão, presumo. Os Guerra têm a mesma história política dos Torque em Nova Enoque. É assim tão difícil aceitar que ela seja capaz do que aconteceu? — Parece loucura. E eu não tive nada com o sequestro daquela putinha! — Não foi o que Miriam Guerra soube, vereador. — E quem disse a ela? Quem mais quer me ver pelas costas nessa cidade de merda? — Não cheguei tão longe. Interceptei o e-mail que o denunciava como mandante e isso foi tudo. Eles usaram um garoto da escola, se quiser eu passo o nome, mas aposto que é um dos outros garotos mortos. — Meu filho, meu único filho... — Perdeu o olhar em um dos espelhos do bar. — Eu tinha planos para ele. Murilo estava indo tão bem. Foi como você disse, ele estava muito acima de todos esses moleques piolhentos daqui, meu Murilo era melhor que todos eles. — Era sim. E alguém tirou seu menino de você. Prefeita Miriam, vereador Orlando. Esse é o nome para grifar na sua agenda. — Está errado nisso, Dubá. O nome dessa vagabunda acaba de ser riscado. — Levantou-se. — Lau, vou deixar o dinheiro aqui. Empurrou suavemente a garrafa de uísque para perto de Dubá. Um gestual simbólico. — Pode ficar com o que sobrou, senhor Dubá. Suas informações valem muito mais que essa garrafa. Mas eu garanto que se estiver blefando... Eu vou encontrá-lo e costurar sua pele ao contrário. Deixou o assento e antes de sair, estendeu a mão ao homem. Apertou-a com gratidão e raiva. Não gostava de dever favores a um negro. Ainda mais, a um negro que pensava e agia como um branco. Lau esperou que Orlando se retirasse do bar para sair de perto do Jukebox. Pensava que, no último minuto, ele voltaria e daria aquela garrafa a ele em vez de presentear um estranho. Nunca aconteceu. Quando Lau voltou para o balcão encontrou somente o dinheiro. A garrafa e o forasteiro haviam sumido. LIVRE PARA MORRER
Zétia estava exausto perto das seis da tarde, quando finalmente retornou à delegacia. O pessoal da capital, perícia especializada, estava vindo para Nova Enoque. E que os dias seguintes trouxessem surpresas mais desagradáveis que as atuais, pelo menos ele teria ajuda. Certo, mas para chegar amanhã, faltava terminar o hoje. — O que esse chacal faz aqui? — disse a si mesmo antes de descer do carro oficial da polícia. O carro de Cotia e a caminhonete de Ricardo Minotto (a única da cidade com um adesivo dizendo “que a inveja corroa seu cu”) estavam estacionados em frente à delegacia. O que ainda falta acontecer? Desceu, apanhou a maleta com alguns documentos e entrou. A porta escurecida da delegacia estava encostada, ainda aberta na tranca. — Até que enfim! — reclamou Ricardo, assim que o viu. Cotia meneou a cabeça, possivelmente se perguntando como seus clientes tinham essa capacidade divina de tornar seu trabalho mais difícil. — Delegado — ele disse. E estava bom demais. Depois estendeu a mão direita e ganhou um aperto mais forte do homem da lei. O que Zétia disse a seguir mostrou toda sua falta de paciência. — Vamos ao que interessa, pessoal. O que trouxe vocês aqui? Algum problema no matadouro, no curtume? Se for sobre Roger, o horário de visitas não é flexível, e vocês sabem disso. — Não vamos mais precisar da bosta do horário de visitas — disse Ricardo. Havia um sorriso tão irritante em seu rosto que chegava a dar alergia. Cotia estendeu a mão hesitante, segurava um papel entre os dedos. Tinha algum pré-conhecimento sobre o tipo de reação que o papel timbrado causaria no delegado. Antes de abrir, Zétia avaliou a expressão dos dois homens. Olhou para a parte de dentro do balcão e avaliou Regina que devia ter visto aquele papel há algum tempo; ela ergueu os ombros e torceu a boca, querendo dizer que os filhos da puta tinham encontrado uma brecha. — Eu não vou fazer isso hoje. Ricardo empinou o peito e já ia soltar outra das suas, Cotia foi mais rápido. — Precisa fazer, delegado. É uma ordem do juiz. — Agora? É quase noite! Não podem simplesmente chegar aqui e levar Roger. Existem procedimentos. — Temos tempo — insistiu Cotia. — Estamos aqui desde as quatro da tarde. Se o senhor estivesse na delegacia, já teríamos resolvido esse assunto. — Seu f... (mordeu a língua antes de qualificar a mãe do advogado). — Você tem alguma noção do tipo de reação que a soltura de Roger vai causar? Você dois têm noção de onde eu estava até agora? — Se é sobre o incêndio, eu... — Ricardo! Não é sobre o incêndio, é sobre crianças mortas! E outras duas no hospital, tentando segurar a pele torrada sobre os músculos. Vão mesmo colocar mais pólvora nesse barril? — Não vejo relação — disse Minotto. — Não?! Seu filho matou uma jovem. Matou, violentou, e agora finge ter uma amnésia perfeitamente cômoda. — Se Roger matou ou não a moça, não está decidido, delegado. Esse documento diz isso. — Habeas Corpus? Isso não diz que Roger é inocente, diz que vocês têm grana pra molhar a mão de alguém para que ele responda o processo em liberdade. — São acusações sérias, delegado Zétia. Ouvir isso de Cotia foi a gota que faltava. Zétia foi para cima dele, não usou as mãos, mas seu corpo todo para intimidá-lo. À medida que se aproximava o corpo esguio de Cotia se encolhia. — Vai mesmo entrar na minha casa e me desafiar, Cotia? Tem certeza que fará isso? — Depois mais baixo, aos ouvidos — Tem certeza que uma busca em seu carro não vai esmagar sua carreira? Tenho poderes para isso, sabe? Posso ser tão safado quanto você e seus clientes. — Zétia? — disse Regina do lado de dentro do balcão. Era perigoso intimidar Cotia, ele era um verme e, como tal, conhecia buracos onde se esconder. Zétia não era assim, não tinha chances naquele jogo de corrupção, não contra Cotia. Assim ele se acalmou o suficiente para tentar outra abordagem. — Ricardo, pense comigo. É para o seu próprio bem. Se o garoto for solto hoje, com os ânimos como estão, pode acontecer outra desgraça. Tem muita gente querendo o sangue que perdeu dentro da escola. O filho de Orlando Torque está morto, a filha da prefeita, desaparecida. O que eles teriam pensado se o seu filho Roger, um acusado de homicídio, estivesse solto por aí? — Ele é meu filho e fica comigo. Eu me preocupo em como defendê-lo. E você está errado, Zétia. O Roger não matou ninguém. Zétia procurou um pouco de apoio no homenzinho acuado à sua frente, mas o homenzinho era um advogado. Ele só entendia a língua do dinheiro que Zétia não dominava muito bem. O principal motivo de estar encalhado até hoje em Nova Enoque. — Tudo bem. Não vou me opor a uma ordem judicial, mas estejam avisados do erro que estão cometendo. Nossa cidade se tornou um ninho de serpentes, Minotto, e você está cutucando a casa das cobras com os dedos. — Estou acostumado — disse Ricardo. Contrariado e vencido, Zétia apanhou o documento das mãos pequenas de Cotia. Leu e entregou a Regina. Ela apanhou o papel com a mesma vontade, fechou a página de fofocas da internet, e começou a digitar o que precisava para soltar aquele marginal assassino. Regina tinha uma filha adolescente (que estava com febre e, graças ao bom Deus, não foi outra vítima da escola municipal). Sentia náuseas só de imaginar o que teria que fazer. Pensou inclusive em negar a tarefa, mas isso só prejudicaria ainda mais o delegado. Zétia era um bom homem, ele não merecia o que estava acontecendo. — Venham comigo — Zétia disse, e esperou que Ricardo e aquele homenzinho estúpido passassem pelo balcão. Cruzaram o corredor que levava à cela sem trocar uma palavra, apenas as respirações pesadas preenchendo o ar que cheirava a tédio. Roger estava em um canto, sentado no chão e olhando para a parede à sua frente. O vaso sanitário estava cheio de urina velha, e o cheiro recendia pelo ar parado. Havia roupas no chão, um pedaço de comida do dia anterior estava ao lado, cheio de formigas. Quando Ricardo chegou à frente da cela, Roger continuou do mesmo jeito. Zétia esperou que Ricardo tivesse um surto de sanidade e desistisse de tirá-lo dali, mas claro que nada disso aconteceu. — Vamos para casa — disse Ricardo. Roger olhou para fora sem demonstrar alegria ou surpresa. Ele não demonstrou nada. — O juiz concedeu o habeas corpus. Eles não têm provas suficientes para mantê-lo aqui dentro — explicou Cotia. — Ainda. Eles ainda não têm provas — disse Zétia, tirando a chave do bolso e girando-a na fechadura da cela. — O fato do laboratório não ter competência para trancafiar você de vez não garante sua liberdade. Cotia pensava em ameaçar Zétia por assediar seu cliente, mas o delegado abriu a cela antes disso. Ficou de pé na abertura e esperou que Roger se levantasse. Roger saiu, passou de cabeça baixa por Zétia, Ricardo o abraçou. Roger não retribuiu, continuou com os braços esticados ao lado do corpo. Ele estava diferente, algo havia mudado, quebrado dentro dele. Naquele instante pareceu apenas estranho, e nenhum daqueles homens imaginava o que havia de errado com Roger Minotto. — Vai ficar tudo bem — disse Ricardo, ainda mantendo o abraço. Por cima dos seus ombros, Roger chorava. — Vamos depressa antes que eu mude de ideia — disse Zétia. Roger voltou para apanhar o que tinha de roupa dentro da cela. — Deixe esses trapos aí. Não quero lembranças desse lugarzinho fedido. Nós vamos para casa, Roger. Você vai tomar um banho e esquecer os últimos dias. Esquecer ouviu? — repetiu, segurando o rosto pálido de Roger com as duas mãos. Os olhos úmidos recusaram os de Ricardo por alguns segundos, mas logo se renderam. Roger balançou a cabeça dizendo que sim. Cotia foi na frente dessa vez, Minotto e Roger logo atrás, Zétia na escolta. — O que eu faço com o que ficou na cela? — Ponha fogo, deixe para o próximo da lista, eu sei lá — disse Ricardo. Em seguida cruzou a porta e adentrou a área administrativa. — Precisam assinar os documentos — disse Regina. Estava trêmula e não conseguia olhar direito para Roger. Ela o conhecia desde menino e observá-lo, agora um assassino, era perder um pouco de esperança no mundo. Cotia esperou do outro lado do balcão, Roger e Ricardo atrás dele. Ricardo abraçava o filho nos ombros, Roger tremia um pouco, talvez estivesse doente dos nervos. Alguém tão novo, dormindo na cadeia depois de perder a namorada assassinada, poxa, claro que isso virou a cabeça dele. Mas Ricardo iria consertá-la. No dia seguinte, Minotto planejava pagar umas sessões de terapia ao garoto. Com as pílulas certas, ele ficaria bem. — Assine as três vias, por favor — disse Regina. O tom de sua voz não dizia: por favor. Dizia: quero que vocês três se fodam! Cotia assinou os papéis com uma caneta de ouro e saiu do caminho. Roger apanhou as folhas, olhou para elas sem muito interesse. Assinou com uma caneta vagabunda que ficava sobre o balcão. O delegado veio em seguida, olhou para as mesmas folhas com vontade de limpar a bunda com elas e também assinou com a caneta do balcão. — Podemos ir? — perguntou Ricardo. Perguntou para Cotia, talvez sabendo que qualquer pergunta ao delegado soaria provocativa. — Sim. A lei nos assegura esse direito — respondeu, olhando na direção de Zétia. — Vai ficar tudo bem — disse Ricardo. Roger continuava mudo e cabisbaixo, sem qualquer reação de esperança ou felicidade. Do outro lado da rua, quase em frente à delegacia, havia um barzinho xexelento. De dentro, um homem seguia de perto os passos dos Minotto. Ele viu pai e filho saindo abraçados e sentiu o estômago encolher de raiva. Deu um gole em seu Campari e apertou o copo com força antes de devolvê-lo ao balcão de mogno. O homem à sua cerca estava certo. Ele não quis acreditar que a polícia fosse mesmo libertar o assassino de sua menina, mas foi exatamente o que fizeram. Desgraçados. Agora caberia a ele fazer justiça, como devia ter sido desde o começo. Galileu sacou o telefone celular do bolso e ligou para um número que encontrou no telefone de Milena. Esperou três toques até ser atendido. — Quem fala? — ele perguntou. — Quer falar com quem, senhor? — Com o cara que desrespeitou minha filha. O outro lado ficou mudo. Sultão continuou: — Aqui é o pai da Milena, filho. Quero ter uma conversa com você sobre Roger Minotto. — Seu Galileu? Roger já está tendo o que merece senhor, e eu n... — Ele está solto, Luciano. Soltaram o filho da mãe. E não foi só isso. Pelo que estou sabendo colocaram seu nome na lista de suspeitos. Por causa de uns exames que a polícia fez no corpo da minha menina. O resultado saiu hoje. Mais silêncio do outro lado da linha. Do lado no qual Luciano se lembrava de ter feito sexo com Milena e deixado um monte de esperma dentro dela. Roger podia ter sofrido o flagrante, mas, se eles encontraram mesmo vestígios de Luciano, estava ferrado. Não que precisasse disso para esmagar aquela barata rica do Roger Minotto, mas era um bom pretexto. — O que tem em mente, senhor? — Posso livrar a sua cara, filho. Mas se formos em frente com isso, precisaremos de um bom plano. E eu também tenho isso. Pode me encontrar daqui a meia hora? Dessa vez não houve silêncios incômodos. — Onde o senhor está? — Longe, mas diga onde está que eu encontro você. A NOITE E O PADRE ESTEVÃO
A sensação de não estar fazendo seu papel está entre as piores sensações desse mundo, e era o principal pensamento de Padre Estevão. A dúvida corrosiva que antecipa a noite e a faz durar para sempre, as sombras que se movem no canto dos olhos, o coração que dispara quando recordações horríveis emergem das profundezas do cérebro cansado. Um dos motivos de Estevão manter as portas da igreja abertas depois das sete da noite era seu sentimento de culpa. Ele havia saído da cidade quando mais precisaram dele, e agora parecia ser tarde demais. Se ele tivesse ficado, se tivesse dado ouvidos às confissões dos fiéis, poderia ter evitado a morte daquelas crianças? Alguns pais estiveram na igreja mais cedo, ajoelhados e pedindo que Deus afastasse suas dores. Estevão pegou a parte daquela dor que lhe cabia e tentou consolá-los. Mas o que dizer em um momento tão ruim? O que alguém como ele, sem filhos ou uma esposa, poderia dizer? Que sentia muito? Que Deus tinha planos? Não... Os planos que se desenrolavam em Nova Enoque vinham de outras mãos. A parte de Deus nisso tudo era ignorar aquela gente, era o que parecia, e Estevão pedia a todo instante que estivesse errado. Ele amava Deus, mais que a si mesmo. Desacostumado a não saber como agir, Estevão aproveitava a catedral para obter suas respostas. Sua mãe, falecida sob as garras de um câncer de útero que a fez emagrecer cinquenta quilos em dois meses, costumava dizer, quando ele era criança, que Deus sempre ajuda um homem a seguir seu caminho, desde que o homem dê o primeiro passo. Mas Deus não decide qual direção tomar. Às suas costas, percebeu os últimos fiéis partindo para as suas casas. Estavam exaustos. Olhos vermelhos, pernas formigando, joelhos gritando, porque esse era o preço da fé. Só agora, no silêncio perigoso dos templos, Padre Estevão lembrava que devia uma visita a Galileu Sultão. Ele não pôde encontrar com seu amigo naquela noite terrível quando o mal se mostrou dentro de um táxi, também não o fez no dia seguinte. Todos aqueles fiéis querendo abrir seu coração e dizer as coisas terríveis que andavam pensando... Dona Erminda, uma viúva simpática que sempre trazia bolos de cenoura para ele, disse que sentia sua vulva queimar quando pensava no padre. Disse que ficava úmida de um jeito que chegava a molhar as pernas. Pediu conselhos e ele. Estevão a fez ficar de joelhos por três horas, durante esse tempo ficou do lado de fora da igreja. Outro caso foi o do professor de Educação Física do colégio, Juliano China. Ele começou a chorar assim que Estevão o autorizou a confessar seus pecados. Chorou por muito tempo e quando abriu a boca, o padre desejou nunca ter ouvido o que saiu dela. China estava atraído pelos garotos, não eram as garotas, mas os menininhos. Contou ao padre que tinha conversado com um amigo novo, um psicólogo que encontrou na internet. Segundo o tal terapeuta, ele deveria confessar a um dos garotos o que sentia. E se o garoto reagisse, ele deveria insistir e tocá-lo. O psicólogo disse que garotos são como leões e que não seria um grande problema iniciá-los sexualmente, desde que pudesse convencê-los a isso. Alertou que escolhesse um mais tímido, mais recalcado, alguém que não sairia por aí contando tudo sobre o professor que gostava mais dele que dos outros meninos. Mas Juliano foi mais forte e, apesar de ter confessado que fantasiou relações com os garotos por dias, nunca tocou nenhum deles — em vez disso, foi até a igreja. Estevão aconselhou-o a arrumar uma garota, paga se fosse preciso, para aliviar tanta tensão. Disse que nem aos padres o celibato ajuda nesses casos. Que o melhor remédio era que ele liberasse toda aquela energia sexual contida. Depois ordenou que se ajoelhasse e rezasse todos os dias, por sete dias. Um desses, China cumprira hoje mesmo, mais cedo e dentro da igreja. E isso não foi tudo. Mércia, sobrinha de Orlando Torque, queria matar seus dois filhos porque eles não comiam direito na hora do almoço. Ela contou ao padre os detalhes, que ela iria colocar veneno nos doces dos garotos, e que culparia o pai deles que estava tendo o caso com a gerente do Unibanco. Segundo ela, um estranho tocou a campainha de sua casa, pediu um pouco de comida, e como retribuição, contou o que sabia. O resto ela mesma descobriu, acessando um celular de Giovanno que ficava sempre dentro do carro — o imbecil usou como senha a data de nascimento do primeiro filho. Estevão chamou os dois para uma reunião e Mércia concordou em fazer algumas sessões conjuntas de terapia com Giovanno. A cidade inteira parecia maluca, tinham perdido o juízo... Mas como? Em menos de uma semana? E para terminar seu dia, o terrível incêndio na escola. Estevão sentia o peito apertado, uma vontade irresistível de abandonar a igreja, ou de se trancar dentro dela e atear fogo em tudo. Ele talvez merecesse arder em vida, queimar até seus ossos vaporizarem, mas as crianças? Elas não, não bom Deus, não as crianças. Ergueu os olhos, um pouco acima do altar, e encarou a imagem de Jesus envolvido em um manto vermelho. A imagem sempre esteve ali, mas agora parecia diferente. Dias antes, Jesus olhava para cima, para os céus, com uma expressão serena e amorosa. Hoje era diferente. Jesus parecia imerso em decepção e perguntando ao seu pai: como você permitiu isso? — Fazendo hora extra, padre? Estevão deixou a imagem com suas próprias dúvidas e olhou para o lado. As mãos juntas ainda em seu colo. — Delegado? Confesso que não o esperava por aqui. — Posso sentar com o senhor? Estevão se deslocou para a esquerda. Zétia baixou a cabeça reverenciando o altar e ocupou o banco. Parecia exausto, o cabelo oleoso formando pequenos cachos, a barba crescida demais. Não era comum, o delegado costumava levar muito a sério sua aparência. — Precisando desabafar? Zétia se permitiu um suspiro. — Eu e o resto da cidade... — Uma cidade toda é exagero, mas recebemos muita gente hoje. — O maldito incêndio — disse Zétia. — Sim. Suponho que teve muito a ver com isso. Do lado de fora da igreja, alguém atirou uma garrafa de um carro em movimento, pelo menos foi o que pareceu com o barulho do motor e os estilhaços de vidro correndo pela calçada. Alguém que provavelmente foi o alvo da garrafa gritou: “Roberto, seu filho da puta! Eu sei onde você mora, veado!” Estevão esperou alguma decisão de Zétia. Ele não se moveu. — Foi assim o dia todo. E para terminar, soltei o garoto. — De quem você está falando? — Roger Minotto. Alguém passou com outro carro, o volume estourando em uma música que Zétia conhecia de sua adolescência. The Evil That Men Do, do Iron Maiden. Soltou um risinho pequeno e muito apropriado. O padre continuou o assunto prévio. — Eu conhecia Roger, sabe. Batizei aquele garoto. Casei seus pais, enterrei seus avós e por pouco também não enterrei a esposa de Ricardo. Roger não saiu ao pai, ele sempre me pareceu um bom garoto. Diga-me, delegado: acredita mesmo que ele foi capaz daquilo? O que o seu coração diz? — Que as pessoas mudam, padre. Para uma criança não importa o lado quando se brinca de polícia e ladrão, demora um tempo até definirem seu time. Talvez tenha acontecido isso com Roger. A maldade do homem é assim, gradual. — Sim, mas ele fez tudo o que está sendo acusado? — Padre. Eu sou delegado há alguns anos e antes era policial nas ruas. Via muita coisa errada acontecendo nos becos quando ninguém mais estava olhando. Pense comigo. Roger e Milena sozinhos, a noite convidando os hormônios para fora. Eles tinham bebido um pouco, ela deve ter deixado que ele avançasse. Então, em um surto de consciência, disse não, eu não posso e não quero. O garoto fica bravo e resolve fazer de qualquer jeito. No dia seguinte ele acorda de ressaca e lembra o que aconteceu, mas não confessa a ninguém. Ele prefere ficar mudo e chamar pelo advogado do pai. — E o resto dessa história? — No capítulo de hoje, Ricardo Minotto e seu advogado seboso tiram o garoto da cadeia. — Zétia apertou as mãos sobre o colo. — E eu não posso fazer nada, mesmo sentindo que essa é a pior decisão em uma cidade que está enlouquecendo. E eu venho até aqui, falar com ele — apontou para o altar e para o Jesus enrolado em um manto vermelho. — Tem algo ruim voltando para casa, delegado Zétia. — De que tipo? — Do pior tipo. Eu não sabia do que acontecia por aqui, estava visitando meu irmão que não tem muito tempo de vida quando Safira me procurou pedindo ajuda. — Lamento por seu irmão. — Não; não lamente. Meu irmão é um jumento teimoso que sempre comeu da grama mais verde. Agora está pagando o preço pelo abuso. Eu o amo o suficiente para sentir sua falta, mas não foi por falta de aviso que ele chegou onde está agora com um balão de oxigênio amarrado nas costas. — O senhor citou Safira, não achei que tivessem uma relação amigável. — Já tivemos. Hoje somos rivais. Todo mundo precisa de concorrência, delegado. É como você e os homens maus. Um não faz sentido se não houver o outro. A única diferença é que eu e Safira lutamos lado a lado, apesar de não parecer. Mas os métodos daquela mulher. Céus! Ela ainda joga cartas e acredita em runas! O delegado acabou rindo do estresse de Estevão. Não lembrava de um padre sendo tão sincero. — Dessa vez Safira me abriu os olhos. Alertou-me para o que enfrentamos. — Acha que tudo isso que está acontecendo está relacionado? — Pense, delegado. Começou com Roger, depois os Bosco, o incidente com o carro de Orlando, a filha da prefeita. Agora esse incêndio, que eu aposto, vai cair nas costas de alguém. — Já caiu. O filho de Orlando está morto. Só não vejo relação em Pauline. Ela se matou depois de acabar com o marido, mas a história deles acabou por aí. — É o que sabemos. Mas Pauline pode ter sido apenas uma peça desse quebra-cabeça, pode ter sido usada para distrair as autoridades, nesse caso, você. Ou para chamar a atenção das pessoas para a nova onda de violência. Gerar comentários. Todo mundo dessa cidade adora uma fofoca. — Precisamos interromper essa avalanche. Por isso estou aqui, padre. Vim conversar com seu chefe, mas também preciso de um favor seu. — Se eu puder ajudar. — Conhece Galileu Sultão a ponto de marcar um encontro? Consegue trazer o homem até aqui? — Há uma semana, diria que sim, mas agora? Acho muito difícil ele deixar o sítio e trazer a esposa até aqui. Rosana anda deprimida. Uma moça que faz a unhas dela disse na confissão que... Olha só... Eu nem posso falar sobre isso, onde estou com a cabeça? — meneou a mesma cabeça, envergonhado. — Eu pesquei a ideia, padre. — Posso fazer o que me pede, Zétia, mas qual seria o motivo dessa conversa? — Galileu vai tentar acabar com Roger Minotto. Estive falando com gente que conhece o velho. Ele anda esquisito, comprou uma arma nova de um vagabundo. Quando nos falamos, Galileu pediu que eu mantivesse Roger na cadeia ou ele mesmo resolveria. Entende onde quero chegar? — Vou falar com ele, delegado. Estou encerrando por hoje e não sinto um pingo de sono. Com esse incêndio, tenho uma boa desculpa para a visita que estou devendo. Rosana faz parte do grupo de orações, posso ir até lá e pedir ajuda. Mesmo que suas suspeitas não estejam corretas, mal não fará. E você. Não quer aproveitar para confessar seus pecados? — Se fizermos isso, você vai ficar preso a noite toda, padre — disse Zétia. Sorriu, tocou as mãos finas e quentes do padre, despediu-se do altar com um aceno quase informal e tomou o corredor que o levou para a porta. Dez minutos depois, Estevão também saiu do mesmo assento para cumprir sua parte do acordo. Ele precisava ir até era a casa de Sultão e conversar com o homem, plantar boas ideias naquela mente que era terra fértil para o demônio. Olhava para seu amigo Jesus quando a igreja ficou mais fria, tanto que Estevão assoprou as mãos tentando aquecê- las. Lembrou-se do que disseram mais cedo, no jornal que iniciava o dia da tevê. A moça do tempo havia dito que seria uma noite quente e com pancadas de chuva, ele devia ter trazido um casaco. Os meteorologistas diziam isso sobre chuva há dois meses e, desde então, duas represas que abasteciam a cidade estavam um metro abaixo do nível esperado. Ouvindo o tilintar das chaves, Betinha e Isaura, duas beatas que só saíam quando o padre também fosse embora, arrumaram o xale e cruzaram os braços uma na outra para se aquecerem. — Boa noite — disse o Estevão sem receber resposta. Elas não falavam quando estavam sob os xales, coisa de gente antiga. Tão antiga quanto Nova Enoque. Seguiu as duas até a porta e já estava puxando uma das folhas pesadas da porta quando um raspar de garganta o impediu. Quem ainda está aqui?, pensou. Encontrou o homem no lado esquerdo, perto do local onde as velas ficam queimando dia e noite, mais ou menos na sétima fileira de bancos. — Estamos fechando, amigo, vai precisar de muito tempo para terminar suas orações? A figura não se moveu ou respondeu. Nem parecia respirar. — Ouviu o que eu disse? — reforçou Estevão. Caminhou até perto dele, parou a uns dois metros de onde estava. Pelo menos o homem estava vivo. Era possível ouvir sua respiração cheia de catarro. Devia ser algum coitado de rua. Eles passavam por Nova Enoque às vezes, mas nunca ficavam mais que uma noite. Parece que alguma vibração, algo que só eles mesmos conheciam, os impelia a irem embora. Estranho que um deles entrasse na igreja. Geralmente paravam na porta e pediam um prato de comida, ou alguma ajuda em dinheiro. Eles não entravam na casa do Deus que não estava nem aí para suas desgraças. Estevão precisou chegar mais perto, tocou os ombros do casaco encardido que vestia o homem e parou ao lado dele. — Minha nossa senhora! O rosto do homem estava todo trincado, em carne viva em alguns pontos, nos sulcos mais profundos. Vespas andavam pela carne e escapavam pela boca. Estava com os olhos brancos e revirados para cima. Os insetos também estavam pelos cabelos e pela barba comprida demais. Ele cheirava mal, fedia como uma fossa aberta. Os piolhos que rastejavam pelo crânio eram tantos que Estevão ouviu sua conversa, patinhas deslizando tic-crics. — Deus! O que é você! — Estevão recuou um passo. Em vez de resposta, um enxame de vespas voou em sua direção. Estevão girou o corpo, esquecendo-se da arma mais poderosa que tinha em mãos. Não se lembrou de ter um pouco de fé naquele momento de atribulação. Ele correu, mas quando chegou ao meio da igreja, uma serpente saiu de um dos corredores entre os bancos e se enrolou em seus pés. Estevão não conseguiu gritar. Ele tombou, e sua cabeça encontrou a quina de um dos bancos. O mundo esmaeceu. As portas da igreja se chocaram contra os batentes. O homem cheio de pragas se desfez em um milhão de insetos, que viravam fumaça negra e fuligem. Depois disso, nada mais que pudesse ser tocado ou visto, exceto as velas que queimavam dia e noite, deixando de brilhar. A NOVA MÃE DA MATILHA
Lobo estava preocupado. Desde que o vendedor de aspiradores de pó colocou a mangueira na testa de Nora, ela dormia demais. Dormia tão profundamente que, mais de uma vez, Lobo levou um pequeno espelho para perto do nariz dela e esperou até ficar embaçado. Ela estava viva, sim, mas ainda era cedo para dizer que estava bem. Lobo estava sóbrio ao fim do dia. Já tinha ficado bêbado, fumado maconha e ouvido três vezes seguidas o único CD do Bob Marley que tinha em casa. Também deu uma geral no quarto de Nora e encontrou o buraco no chão onde ela escondia suas porcarias. Algumas pedras, um cachimbo artesanal, uma faca pequena e um isqueiro verde limão. Sentiu vontade de fumar tudo aquilo. Mas nenhum viciado que preste rouba alguém mais fodido que ele (se estiver em situação melhor, tudo bem, mas nunca mais fodido). — Lobo? — ouviu enquanto preparava uma quentinha para a garota sequestrada. Lobo duvidava muito que Patrícia conseguisse ficar outra noite, outro dia, sem comer nada. O homem do aspirador de pó telefonou um pouco mais cedo e disse a Lobo que assumiria o cativeiro dali a dois dias. Também disse que Lobo podia se divertir um pouco antes disso, que não havia problemas. Lobo deixou a marmita (daquelas de alumínio, de pedreiro mesmo) em cima da mesa e correu até a sala onde Nora criava raízes desde o tratamento com o aspirador. Apareceu devagar pela abertura da porta, olhos arregalados e dentes mordendo os lábios superiores. — Mãe? Tá tudo bem? Nora olhou para ele como uma garotinha. Um pouco de medo e curiosidade. Parecia tão inocente, Lobo sentiu um remorso terrível do que tinha feito a ela. Tudo aquilo de jogar suas coisas fora, de retirar suas memórias com um aspirador de pó dos infernos, só agora calculava as consequências. Mas e daí? Nada nesse mundo era pior que vê-la se entupindo de pedra doce, seria melhor que ela virasse puta — pelo menos traria dinheiro para casa, e precisaria se cuidar um pouco, ninguém paga muito por uma puta feia. — Eu não sei... O que aconteceu? Parece que eu dormi uma semana. Alongou-se um pouco, erguendo os braços e depois os deixando cair. Bocejou fazendo um barulho irritado ao fim. Lobo tomou coragem e foi correndo até o sofá, se atirou no chão como um cachorrinho e ficou olhando para ela. Mamãe estava mais corada, as olheiras tinham ido embora e devolvido os cinco anos que roubavam, até o cheiro dela estava diferente, um cheiro de pele limpa que ela costumava ter anos atrás. — Quer que eu chame um médico? — Médico? Pra quê? O que você tem, filho? — Nada. Pra dizer a verdade eu tô bem demais. Tá com fome? — Um pouco. O que você preparou na cozinha? O cheiro está ótimo. — É que... Eu vou levar essa comida para uma amiga. Ela não tá passando bem desde ontem. — Uma garota? Quem é ela, Lobo? Eu a conheço? — Não. Quer dizer, acho que não. Ela é legal, mas se meteu ‘numas paradas sinistras. — Você não está escondendo uma namorada da sua mãe, né? Lobo riu de um jeito que pareceu um infarto. A boca aberta demais e a garganta mostrando a sineta. Bateu com as mãos no braço do sofá. — Eu e a...? Eu e ela? Não mãe, nem rola. Ela não é minha namorada. É só alguém que se deu mal pra cacete. — Pode me trazer um pouco de comida ou é tudo para essa magrela? Prometo que não vou comer demais. — Você tá mesmo bem? Não sente falta de nada? — Do que você está falando, moleque? Bateu com a cabeça em algum lugar? — Tô falando daquilo, mãe. Da coisa ruim que encontrei com você. — Coisa ruim? Lobo, tá se drogando de novo, meu filho? — Eu não, mas... Pensou um pouco. Não conseguiria saber se tinha dado certo até fazer a maldita pergunta. Mas Lobo tinha medo que, se fizesse isso, se mencionasse aquela pedra porca vinda do inferno, Nora tivesse outra recaída. Pior ainda, ela podia resistir e tentar se matar como havia feito dois anos antes, quando um dos seus namorados roubou todo o estoque de lixo de outro buraco — na parede, atrás de um quadro de um garotinho chorando. Bom, se era para sofrer, que não fosse em pensamento. — Quero saber se você sente vontade fumar pedra. — Como é que é? Lobo, meu filho. Como uma pessoa pode fumar uma pedra? Tá doido? Eu fumo cigarro do Paraguai, já fumei erva-do-diabo, mas pedra? Nunca ouvi ninguém falar sobre isso. Lobo continuou olhando para ela, analisando suas reações. Quando Nora mentia, olhava para a esquerda e sempre fazia alguma coisa com as mãos. Enrolava o cabelo, mexia com os dedos da outra mão, não... Ela não estava fazendo nada daquilo, Nora estava sendo sincera. Lobo deu outra daquelas risadas estúpidas e exageradas. — Pô mãe, tava zoando você. Vou pegar um prato de comida. Qué suco? — Não. Suco me enjoa. Tem cerveja? — Acabou faz umas duas semanas. — Humm. Só a comida está bom. Tudo bem. Estava em cima da hora e já era mais tarde do que ele gostaria, mas ainda tinha tempo para alimentar sua própria mãe. Lobo saiu do chão e correu até a cozinha, apanhou um prato do escorredor e serviu um pouco de arroz branco. Colocou um pedaço de carne também — precisou sacrificar um dos pedaços de Patrícia para isso, mas nada que lhe desse remorso, Patrícia deve ter comido mais carne antes dos seis anos do que Lobo e Nora comeram até hoje. Não demorou cinco minutos e estava de volta, Nora bocejou mais uma vez e olhou para ele de um jeito esquisito. Pareceu que ele estava fazendo besteira. Lobo costumava fazer besteiras o tempo todo, mas não entendeu do que se tratava. — Que foi? — O prato na mão, esquentado as palmas de um jeito irritante. O cheiro de comida crescendo dentro da sala. — O que aconteceu comigo, filho? Parece que eu dormi uma semana. Lobo pendeu a cabeça para a esquerda. Ou estava muito enganado ou Nora já tinha dito uma frase muito parecida há uns minutos. — A senhora... — Essa comida é pra mim? Ou você arranjou uma namorada? Porque se for isso, já passou da hora. Seu pai na sua idade já era seu pai. — É, eu... — Quem é ela? Rápido, preciso pensar rápido! — É uma coitada viciada em pedra. Inicialmente Nora manteve o jeito esquisito de encarar. Mas o olho no olho não durou muito e foi exorcizado de vez com uma gargalhada que deixou Lobo sem jeito. Sentia-se um palhaço que não entendeu a própria piada. — Você fala cada coisa, Lobinho. Como alguém pode ser viciada em pedra? Ela coleciona pedras, é isso? Como sua coleção de moedas? Ah, esqueci. Você fumou a coleção inteira, não foi? Espero que não esteja se metendo em porcarias de novo. — Não lembra mesmo do que conversamos antes de eu ir pra cozinha? — Tá me assustando, moleque. Tá querendo dizer o quê? Lobo olhou para relógio. Oito da noite. Se saísse agora, conseguiria voltar e terminar aquela conversa antes das dez, isso se não se enrolasse com a filha da prefeita. E claro que se enrolaria; qualquer uma mulher bonita com menos de sessenta anos causava esse efeito desastroso nele. — É que eu tô em cima da hora. Depois a gente conversa. — Deixa a comida aí. Tô com fome. Tem cerveja na geladeira? Lobo sacudia a cabeça. Deixou o prato com Nora, passou pela estante e apanhou as chaves do Del Rey. Nora não disse nada, mas olhou para ele, e foi como se não entendesse nem mesmo o prato de comida em seu colo. Lobo sentiu uma vontade danada de chorar. O que estava acontecendo com ela? O que ele e aquele vendedor filho da mãe tinham feito com Nora Lobo? Antes de entrar no carro, porém, pensava se esquecer tudo a cada cinco minutos não seria melhor que lembrar o tempo todo de fumar crack. Achou que sim. NO COVIL DO LOBO: Garota, alguém precisa ceder!
Um dia inteiro no cativeiro obrigou Patrícia a rever seus conceitos sobre resistir às ofertas do sequestrador. A fome é boa em torcer opiniões, principalmente de alguém que dorme em travesseiros mais macios que um doce de maria- mole. A verdade é que nos primeiros momentos naquele cubículo, Patrícia estava nervosa demais para sentir fome, mas depois de uma noite inteira sem conseguir fugir, ou mesmo ir ao banheiro, ela havia se tornado mais... maleável. Além disso, aquele cara parecia bem idiota, e se ela fosse esperta e tivesse o sangue frio necessário, conseguiria sair dali sem se machucar muito. Machucaria o orgulho, mas isso curaria depressa, nada que uma viagem com suas melhores amigas não resolvesse. Poderia tecer um plano ali mesmo, mas a fome não a deixava pensar direito. Deus, seu estômago doía tanto que parecia estar cheio, não de comida, mas de chumbo derretido. Não estava sentindo suas pernas. Uma ou duas vezes no meio do dia, Patrícia tentou mover-se para que elas não dormissem. Quem sabe precisasse das pernas para uma fuga rápida? Pensou melhor sobre isso e decidiu que armazenar energia era mais importante que manter as pernas acordadas. Estava bem amarrada, as tentativas de sair dali não deram em nada, e ainda arranharam suas mãos presas às costas. Falando em dormências, elas não significavam nada perto das câimbras. As piores faziam os braços repuxarem por dentro, de um jeito que a fez chorar de dor. Também chorou com saudades de Miriam e da vida que costumava ter. Quando a noite caiu, chorou com medo que alguém pior intencionado que seu sequestrador entrasse ali e fizesse com ela o que os bastardos fazem. E a noite trazia outros demônios. Um exemplo era o senhor rato que entrou e saiu da sala umas vinte vezes. Em uma dessas, ele chegou bem perto dos pés da cadeira e olhou para cima, para os olhos daquela humana amarrada. Talvez esteja esperando minha morte, pensou Patrícia. Logo se conformou que o roedor estava atrás de algum resto de comida. Provavelmente ele continuaria fazendo isso até que ela mesma se tornasse um enorme resto de comida com cabelos loiros e lisos — nem tão enorme assim, afinal ela estava de dieta e não comia nada há dois dias... Ratos ela podia suportar, mas não um inseto bem menor e menos perigoso. Sua cabeça agora estava parada, emperrada nesse ponto. Na dona barata que não teria metade do respeito que aquele ratinho imundo demonstrou. Baratas eram as putinhas sem noção do mundo animal. Baratas destroem famílias e chupam o pau de outros baratos casados com baratas. Baratas são maníacas suicidas por natureza, são a décima primeira praga do Egito e uma das piores ideias de Deus — a pior deve ter sido aquele sequestrador corintiano. Não venha aqui, por favor, não venha aqui! Dona barata estava no vão da porta, no chão. Ela recebia um pouco de luz do outro lado, provavelmente luz da lua. Por mais que aquele cara fosse idiota, ele não deixaria uma luz acesa no meio do lugar nenhum que devia ficar aquele lugar. E que lugar era aquele? Podia ser na fazenda velha — uma propriedade tomada de um canastrão que morreu devendo uma nota para a prefeitura. A fazenda estava impugnada desde então, esperando que algum herdeiro (e havia dois) pagasse a conta. Garotos da cidade costumavam ir até lá para zoar, fazer fogueiras, atirar com espingardas de chumbinho, beber e fumar. Eu já estive aqui antes? Não naquela sala. Ela se lembraria. Patrícia podia ser horrível em um monte de coisas (como matemática e em lidar com garotos bonitos), mas sua memória era muito boa. Ótimo, porque assim que aquele inferno terminasse, ela colocaria aquele corintiano indecente na cadeia. E pediria que Miriam acabasse com ele! Você não desiste!, pensou olhando para dona Barata. Estava se limpando agora, do jeito nojento que uma barata faz. Cada vez que aquela bostinha abria e fechava as asas o coração de Patrícia ameaçava escalar a garganta. E se ela voasse? Baratas histéricas costumam fazer isso e não importa o que digam: elas têm algum senso de orientação paranormal que as faz sempre detectar a pessoa com mais medo na sala. Em toda sua vida, Patrícia nunca tinha ouvido falar que uma barata enfrentou Miriam Guerra, mas as malditas faziam fila quando se tratava dela. Lá fora, o ronco de um escapamento conhecido começou a encher a noite. Era ele, o sequestrador maldito que a levou para o inferno. Mas ela não foi a única a ouvir o som de seu carro ridículo, não... Dona Barata também ouviu aquela tragédia. As duas também ouviram o puxão horrendo no freio de mão e a música — Mantenha o Respeito do Planet Hemp — que tocou dentro do carro por mais um minuto depois do motor parar de funcionar. Ouviram uma pancada forte na porta do carro e um gemido de quem encontrou um obstáculo em um tropeção. Também outros passos, um som metálico e assovios. Patrícia, pela primeira vez, torceu para ouvir de novo a voz de seu algoz, pelo menos seria algo conhecido depois de um dia todo ouvindo sua própria respiração. Ela não conseguiu ver o rosto, tudo o que podia reconhecer do bastardo era seu timão ridículo tatuado na perna e a personalidade de quem ganhou barba no rosto sem nunca passar dos treze. A barata empinou as patas e balançou as antenas. Ela vai sair voando! Vai voar em cima de mim! A porta abriu e Lobo passou por ela, a barata não teve qualquer reação que não fosse emitir um estalinho seguido por um som de tripa esmagada, mucoso e úmido. Lobo não viu o que tinha feito, mas Patrícia o teria agradecido se não estivesse com tanta raiva outra vez. — Eu trouxe comida, mina. Cê vai comer dessa vez? Patrícia não pensou em nada que não fosse sacudir a cabeça para cima e para baixo. — Vou tirar esse pano da sua boca, mas não faz nenhuma cagada, tá bom? Eu tô pensando em acabar com isso amanhã. Vendo o pânico brotar nos olhos da garota, ele explicou: — Não é acabar com você, é com o sequestro. Tô pensando em devolver você, mas antes preciso falar com um cara que fez uma promessa e não cumpriu direito. Ele estava com a redinha na cabeça de novo. A bermuda, o tênis, o cheiro de suor e bebida, eram os mesmos, mas existia alguma diferença naquela cena. Algo em sua voz ressoava tristeza. O cheiro forte de comida caseira logo tomou a sala-prisão e encheu a boca de Patrícia de saliva. Cheiro de carne e feijão. Droga, ela estava com tanta fome que transaria por um prato de comida quente. Pensando bem... Não transaria não, mas talvez deixasse alguma coisa mais quente acontecer. E não com aquele moleque vencido que não sabia sequestrar ninguém direito. Faria isso com Davi. Oh, sim, com Davi que devia estar transando com a piriguete da Stela Nogueira. Lobo chegou mais perto e antes de puxar a mordaça, disse: — Não grita hein, mina. Não quero machucar você e nem levar a comida de volta — Puxou o tecido para baixo e retirou a meia molhada da boca de Patrícia. — Seu filho da puta! Vai me deixar morrer de fome nesse buraco imundo? Tinha um rato e uma porra de uma barata e eu quase fiz xixi nas calças porque você não me deixou usar o banheiro e... Hummph! HumMMPPHHH! — Se não parar de me esculachar, vai ficar com a mordaça e sem comida, entendeu? Como alguém podia ser tão imbecil? Patrícia deu de ombros já que ainda não conseguia falar por telepatia. — Ah é... — riu Lobo. — Cê não pode falar com isso aí na boca, né? — riu mais um pouco. Saiu meio exagerado, quase um relincho. — Vou tirar o pano de novo. Nada de me xingar, tá certo? Ficou esperando de novo. Dessa vez Lobo não levou tanto tempo para perceber que ela não diria nada com um pano enchendo sua boca. Deu a volta na cadeira e soltou a parte de trás; voltou para frente. Ela não tinha gritado pelo menos. — Se quiser pode tirar essa coisa ridícula do rosto. — Ah! Nem fodendo. Eu não sou nenhum idiota. — Não, claro que não. E é por isso que veio com essa tatuagem mal feita aparecendo. — Mal feita? Como assim? — De verdade? Parece que desenharam isso aí com giz de cera. Eu pediria meu dinheiro de volta. — Não dá — disse cabisbaixo. — A tatoo foi pagamento por um trampo que eu fiz. Pintei a casa do cara. — Riu. — E ficou uma bosta! — E ele se vingou direitinho... — Não tô nem aí, o que importa é o conceito. E pode parar de me enrolar, porque eu não vou mostrar meu rosto. Um monte de gente deve ter uma tatuagem dessa aí, do maravilhoso Timão! — Se liga... Ninguém é retardado de fazer uma porcaria dessas na batata da perna, pelo menos não uma porcaria torta como essa sua. Lobo baixou a cabeça e a balançou de um lado pro outro. — Tá quase ficando sem comida de novo, moça. Eu não gosto de ninguém, de ninguém mesmo, falando mal do meu timão. Ainda mais uma menininha mimada feito você. Futebol é a nação do povo, moça! Nação! — Tudo bem, senhor sequestrador. Agora me dê um pouco de comida antes que eu morra de inanição. Como ele continuou onde estava, Patrícia supôs que não conhecesse a palavra. — Fome, inanição é fome! — explicou. — Eu sei o que significa. Lobo foi até o outro cômodo e começou a mexer em algumas compotas de alumínio que deixou em cima de uma cadeira de lata, daquelas de bar. Deve ter roubado a coisa como roubava tudo em sua vida. Inclusive garotas com menos de dezessete anos. Aproveitando a luz que entrava, Patrícia voltava a analisar suas chances. Talvez a ideia de economizar energia não fosse tão boa assim, havia algo que ela ainda não tinha percebido. A sala da frente tinha uma porta bem vagabunda, a da sala em que ela estava era mais nova, mas uma das dobradiças estava cheia de ferrugem. Ela poderia arrebentá-la. Claro gênio, mas para isso precisaria ficar fora da cadeira, certo? E como fará isso? — Por favor, moço. Preciso comer alguma coisa ou vou desmaiar. Só testando. Aposto que esse débil mental não aguenta uma garota chorando. Lobo continuou no outro cômodo, mas começou a ir mais depressa com o que fazia. Tanto que derrubou uma colher no chão. Ele a apanhou e limpou contra a bermuda. Patrícia achou nojento, mas não perderia o apetite por isso. Se nem aquela maldita barata esmagada conseguiu tirar sua fome, nada mais o faria. — Ei, não precisa disso, sua comida tá quase pronta — disse Lobo, depois de ouvir um soluço úmido da filha da prefeita. Patrícia caprichou e encenou um choro ainda mais convincente. Também não foi difícil. Estar sequestrada há dois dias e com os ossos da mandíbula pegando fogo facilitava bastante. Além da saudade de sua mãe. Desde que o pai se foi, ela e Miriam ficaram muito próximas; Miriam era durona, era uma vaca, mas com Patrícia era o oposto. Esforçava-se para ser a mãe que ela gostaria de ter tido (e também não teve, vovó era outra vaca). — Não é nada. É só o meu braço. Lobo colocou o prato descartável no chão, perigosamente perto da dona barata esmagada e olhou penalizado para sua prisioneira. Pobrezinha. Tão bonita e... Pobrezinha. Sentiu uma vontade quase irresistível de desamarrá-la e levá-la para casa. — Tá doendo muito? — Mordeu a isca. Agora era só caprichar no drama. E Patrícia era uma especialista nisso. Tino de família, todo Guerra nascido em Nova Enoque nascia com habilidade de persuasão extrema. — É que... Eu tenho um problemão no ombro direito. Fiemófolis Muscularis. O rosto de Lobo ficou preocupado e tenso. — É muito sério? — Já ouviu falar em gangrena? — Jogou. Claro que ele já ouvira falar em gangrena, mesmo que fosse pela banda de rock mais porcaria desse mundo, Gangrena Gasosa, mas a verdade é que ele ouvira aquela palavra como ouviu setenta por cento das outras que enchiam o dicionário: sem fazer ideia do que significava. Sabia que era uma doença, que era sério, e isso era tudo e mais do que se esperaria de um semianalfabeto como ele. — Claro que já, mina. É quando o braço apodrece. Perfeito... — É quase isso com meu braço, dá uma olhada para mim, vê se tá vermelho perto do pulso. — E o que acontece se estiver vermelho? — Depois eu digo, mas primeiro olha. Lobo deu a volta e colocou a mão na boca quando viu. Patrícia ouviu de onde estava sua respiração acelerando. Se ela estivesse certa, seu braços estariam roxos depois de quase dois dias amarrados. E poderia ter sido perigoso de verdade se ela não os afrouxasse um pouco a cada meia hora para manter o sangue circulando. É, mas aquele porco adolescente eterno não sabia disso. — E então? — Tá feio. — Oh, meu Deus, não! Vou perder meu braço! — Calma aí, mina! Me diz o que eu faço!? — Precisa desamarrar e deixar que eu me movimente um pouco, talvez ainda dê tempo. — Não tá mentindo para mim, né? — Tá doido? Você mesmo viu, deve estar quase preto, o sangue parou de circular, eu não sinto meus dedos! — Ai-ai-ai! O que eu faço? — golpeou a cabeça com a base das mãos. A filha da prefeita estava chorando; e se fosse mesmo verdade aquilo sobre o braço? E se ele condenasse a moça à gangrena e àquela outra doença horrível? Como era mesmo o nome? Fimosis Terrível? Dane- se! Ele não faria isso com uma menina bonita, talvez fizesse com uma feia ou com uma das putas da linha do trem, mas a filha da prefeita era da aristocracia (mesmo que ele não soubesse o que significava, mas sabia que era coisa de gente rica). — Precisa me soltar, moço! Você não parece alguém mau de verdade, não a ponto de deixar meu braço apodrecer! Se não me soltar, o sangue vai coagular, e eu posso parar de respirar! — Por causa do braço? — É! Por causa da gangrena! Meu coração vai ficar todo infeccionado! Enfim uma palavra que ele compreendia e respeitava: Infecção. Sua irmãzinha tinha morrido por causa de uma infecção. Começou no dedão do pé e foi se alastrando. Quando finalmente a levaram ao médico, ela estava com quarenta graus de febre e delirando. Os médicos deram uma porção de antibióticos, mas não conseguiram salvá-la, a infecção de alguma maneira chegou ao sangue e daí se espalhou pelo corpo inteiro, foi o que os médicos disseram — e na família Lobo, médicos e Deuses estavam lado a lado. Ele não pensou mais. Sacou um canivetinho suíço (falso, claro que era falso) e cortou a corda que prendia os braços. Patrícia fez sua parte e gritou alto quando moveu os braços. De fato a sensação de formigamento era horrível, mas o teatro que ela fez ganharia uma estatueta dourada. Quando parou de gritar, moveu o pescoço como um fã de heavy metal. Cabelos sacolejando e espalhando o perfume que ainda existia neles. — O que tá acontecendo?! — O sangue! Preciso fazer meu sangue circular! — Meu Deus, mina! O que eu faço? O que eu posso fazê? Em certo momento, Patrícia riu. Aquele idiota maníaco por futebol era bem mais estúpido do que ela pensava. Alguém com neurônios operando na reserva seria mais inteligente que aquela besta. Ok, mas não era bom exagerar. Vamos supor que, por um surto de sanidade, ele resolvesse dar umas pancadas para ela não entrar em pânico? Meter a mão calejada no seu rosto fino? Os movimentos head-banger pararam, e ela deixou os cabelos cobrindo seu rosto. Os braços estavam caídos ao lado do corpo, ela os fazia tremer de propósito com pequenos movimentos convulsivos. Então ela foi subindo o rosto bem devagar. Senhor cabeça-de-redinha estava ao seu alcance, talvez devesse furar seus olhos idiotas com as unhas ou arrancar um pedaço de seu rosto. Mas era arriscado, o mais esperto era sair dali sem combate. Se ela conseguisse manter as mãos soltas, teria muito tempo para tentar escapar. Além disso, estava fraca e faminta. Talvez tenha sido a fome quem finalmente decidiu por ela. — Acho que estou bem. — Seu braço não vai apodrecer? — Não. Não ainda. Mas se você me prender de novo, vai me condenar a uma morte horrível. Mas pode me matar se quiser. Eu estou tão triste que vou morrer de qualquer jeito. — Sem essa, tristeza não mata. É sim. Lobo acreditava nisso de verdade. Se tristeza matasse, ele e Nora teriam morrido há uns dez anos. E tentar explicar a ele o que era depressão e a diferença disso para frescura ou demência levaria tanto tempo que faria aquela comida cheirosa parecer vômito. — Mas fome mata. Vai me dar aquela comida ou vai me torturar como fez ontem? — Tá. Pode comer. Depois a gente resolve o que faz com seu braço podre. MALDITO COMPUTADOR!
Alan chorou muito depois de chegar em sua casa. Janice o consolou como pôde. Pelo que ouviu, seu filho presenciou o incêndio de perto. Nora ainda não tinha juntado coragem suficiente para perguntar a ele sobre seu projeto na feira de ciências. Era tão óbvio. Mas como um garoto tão bom quando Alan acaba envolvido em algo tão terrível quanto aquele incêndio? A tevê da sala estava ligada e Janice assistia a reprise da reportagem sobre o incêndio. Disseram que outra criança havia morrido, uma garota. Também especularam sobre a causa do incêndio, até então ninguém disse nada sobre o vulcão de Alan. O que era bom e alimentava um fio de esperança muito pequeno de que ele não tinha culpa no incidente. Mas seu coração dizia outra coisa, toda mãe conhece seu filho, e Alan não chorava apenas de tristeza e choque. Era remorso. Desde que terminou seu banho, Alan estava na frente do computador. Janice não pensava mais em tirá-lo dali. Melhor que focasse sua atenção em outros assuntos, qualquer coisa seria melhor que rever ininterruptamente seus amiguinhos de escola pegando fogo, gritando e derretendo. — Cadê você? — Alan perguntou ao computador. Seus olhos ardiam e perdiam o foco com facilidade. A cabeça estava dolorida, e ele já tinha afanado dois Tylenol’s de Janice da gaveta do banheiro. Mamãe tinha enxaquecas horríveis e encontrar remédios não era exatamente difícil. E Janice não se preocupava: Alan preferia morrer de dor a tomar remédios. Alan, que naquela noite precisava encontrar o safado que o condenou a uma vida de remorsos, queria ter certeza que não era o único culpado por tudo aquilo. Ainda ouvia os gritos dentro de sua cabeça, Anderson, Luizão, o babaca do Murilo. Eles mereciam mesmo uma morte daquelas? Agora que a poeira baixava e ficava claro que nenhum deles estaria na escola no dia seguinte para fazer de sua vida um inferno, Alan não tinha tanta certeza. Pelo dia todo procurou casos como o dele na rede — quando o computador não precisa de energia ou de internet para falar com você. Esbarrou em inúmeras propagandas de filmes e livros de horror, principalmente dos anos oitenta quando todo mundo adorava Poltergeists. O que encontrou mais seriamente falava sobre transcomunicação, mas esse era um assunto espírita e embora Alan não acreditasse em uma palavra, morria de medo. Oh, e quem não fica com medo quando a tevê e o rádio parecem mais interativos que o computador do quarto? Além disso, ele tinha novas razões para ter medo. Estava quase desistindo e se entregando aos pesadelos quando o computador voltou a falar com ele. A tela piscou, o HD da CPU fez um ruído estranho — como se a agulha estivesse perdida no meio do disco, e então tudo ficou escuro. Foi sem a CPU que a tela escreveu: <O QUE VOCÊ QUER? MINHA PARTE DO ACORDO FOI CUMPRIDA, NINGÚEM IRÁ PERTURBÁ-LO NA ESCOLA> Alan digitou: “Precisava acabar com a escola e matar os garotos?” Depois, a resposta parou de vir em caixa alta, o que foi um alívio, porque era bem menos assustador. <RSRS. Não me diga que está com peninha deles? Dos escrotinhos que obrigaram você a lavar o rosto com água da privada> “Vou procurar o delegado.” <Não se precipite, Alan Sérpia. Não esqueça que foi você quem enviou aquele e-mail bonito para a filha da prefeita. Sabe onde ela está agora? Graças a você? Em uma sala escura que fede urina e mofo. Ela está com alguém que adoraria fazer coisas com ela. Você me entendeu, hã? Coisas... Coisas como as que você faz no chuveiro e pensa que ninguém vê> “O delegado Zétia é legal. Ele vai resolver essa bagunça.” Um ruído esquisito, parecido com uma tentativa de conexão discada, fez Alan tirar as mãos do teclado e se afastar. A tela do computador ficou vermelha, ele correu e encostou a porta do quarto. <E o que pensa que Zétia vai fazer com você?> — Eu não sei, mas vou correr o risco. Pior do que já está não fica — disse em voz alta. <Ele vai mandá-lo para um lugar escuro, garoto. Vai botar a culpa em você, e eu não vou defendê-lo. Acredita mesmo que vão encontrar rastros desse nosso diálogo e passar algum antivírus em mim? Esqueceu que eu não sou limitado a esse processador ridículo? Cai na real, garotão, se você abrir a boca estará acabado> — Eu já disse, senhor — Alan reafirmou em voz alta, duvidava muito que precisasse de um teclado. — Não quero mais guardar esse segredo. E para começar: se eu soubesse que alguma coisa tão ruim iria acontecer, nunca teria concordado com seu plano. Não me importo se vão me internar em um hospício ou me prender até os sessenta anos, eu só não quero sentir esse vazio no meu estômago. <Tem certeza?>, perguntou a tela. Estava negra de novo, as letras em branco, como uma tela de DOS. — Tenho — Alan respondeu. <AGUARDE, SEU PEDIDO ESTÁ SENDO PROCESSADO> Depois disso, uma barra parecida com o antigo Scandisk apareceu logo embaixo da última linha escrita: 15%. 20%... Alan roía as unhas, sem tirar os olhos da tela. O que aconteceria quando chegasse a 100%? Uma nova explosão? Não, claro que não. Se o computador quisesse explodi-lo, não faria uma contagem regressiva (progressiva, naquele caso). A melhor das hipóteses era um novo contrato, com novas cláusulas, e uma delas talvez permitisse nunca mais ouvir ou ver aquela tela-guru-estúpida. 48%... — Alan? Tudo bem aí? — perguntou Janice, tão perto da abertura da porta que estava praticamente dentro do quarto. Alan saiu correndo e parou em frente a ela antes que entrasse. — Eu... Eu tô ocupado. — O dia todo? O que nós combinamos sobre computador demais? Quando ela disse computador, a CPU adormecida soltou um Bip. Alan olhou para dentro do quarto, esperando encontrar um ciborgue assassino, mas não viu nada mais apavorante que seu computador que falava e pensava sozinho. De qualquer maneira não queria Janice dentro do quarto enquanto não resolvesse seu assunto com a máquina. — É só hoje, mãe. O computador mantem minha cabeça ocupada. Quando eu penso neles, eu ainda vejo tudo. Dá até pra escutar os gritos. Janice sentiu um arrepio daqueles e deixou o garoto em paz. Pelo menos por um tempo. O tempo que aquela máquina dirigida pelo mal precisava. — Tudo bem, Alan. Mas quero você na cama antes das dez. Amanhã vamos ter que conversar sobre o futuro. — Que futuro? — Sobre sua nova escola, Alan. Você não pode perder um ano porque a escola pegou fogo. Amanhã conversamos melhor. Janice voltou para a sala. A tevê sorria como a única felicidade sobrevivente da casa. Alan se atirou na cadeira da escrivaninha. 88%... Quase lá. Quase lá do que quer que fosse aquela porcaria. 95%... Os dedos de Alan estavam úmidos e trêmulos, seus lábios, gelados e brancos. Estava com uma sensação ruim. Mas era tarde demais para isso, porque depois de piscar os olhos, a contagem estava em: 99%... 100%
<SE DESEJA CANCELAR ESSE PROGRAMA, APERTE A TECLA VERMELHA NA TELA> <SE QUISER OUTRO PRGRAMA TECLE “N”> <DESEJA REALMENTE ENCERRAR O PROGRAMA?>
Alan roeu as unhas por alguns segundos. Mas ele tinha uma resposta. A tal tecla vermelha estava ali, piscando e fazendo da tela uma plataforma touchscreen. Era loucura. Ninguém na terra tinha tecnologia para fazer uma manobra daquelas, ninguém mesmo, nem Bill Gates, ou o que sobrou da Apple, nem todos os hackers comedores de rosquinhas da Nova Zelândia juntos. Ele chegou bem perto, o dedo indicador direito tremia um pouco, a cabeça pensando, pensando não, se enganando que tudo ficaria bem ou um pouco melhor que a merda onde acabou enfiado. Se o remorso fosse embora... bem, isso seria uma grande coisa. Ele apertou. A luz fraquinha do abajur que projetava morcegos de luz nas paredes oscilou. Alan não olhou para ela, e nem conseguiria fazer isso. Quando pensou em afastar seu dedo da tela, já estava grudado nela, preso e circulado por milhares de volts. Seus cabelos eriçaram e uma correntinha de ouro voou do seu pescoço como se explodisse. Alguns raios emergiram dos dedos de Alan, procurando rotas de fuga como em uma bobina de Tesla. Alan sofria, as dores eram tão fortes que ele duvidou que fossem muito melhores que ser queimado vivo. Quando sua mandíbula se chocou tão forte que arrancou um dente, ele preferiu ser queimado. Os olhos foram os seguintes, arruinados como dois tomates lançados à fogueira. Pobre Alan, ele nem conseguiu gritar, todos os seus músculos, inclusive os da fala, estavam travados e sobrecarregados. A luz da sala também falhou, a tevê saiu do ar e depois desligou. Janice praguejou contra ela e pensou que o computador do quarto sofreria danos com toda aquela oscilação. Gritou que Alan o desligasse. Ele não teria outro se aquele computador queimasse, não tinham de onde arrancar dinheiro. Mas pobre Alan-Queimado... Quando o cheiro de sua carne morta e esturricada chegou à sala, Janice ainda perguntou: — Alan! Que cheiro é esse? Não mandei desligar essa porcaria? MAS QUE DROGA!
Quem vive em cidades pequenas (ou minúsculas como Nova Enoque) precisa aprender a se divertir com pouco ou enlouquece. Jota Moreno era um desses e um bom passatempo nas noites mais quentes era observar os vagalumes perto da linha do trem. Ele sempre ia para lá quando não tinha nada melhor para fazer. Levava umas cervejas, um maço novo de cigarros; se pudesse levar uma garota, tudo seria ótimo. O que não aconteceu depois do incêndio da escola. Para arruinar com todo o resto, Jota tinha discutido feio com sua mais séria candidata à namorada. Tudo por causa da porcaria do Subaru de Orlando Torque. Caramba, ele já tinha tido ideias ruins, mas topar essa com a prefeita estava dando uma dor de cabeça assombrosa. Agora, com o sumiço da garota, da tal Patrícia Guerra, a cidade estava maluca, todo mundo parecia desconfiar de todo mundo, e vagabundos como ele estavam florescentes no caderninho da polícia. Desde a morte de Pauline Bosco, Jota ficava na dele. Poucas saídas na rua, chegava cedo em casa, os planos para ampliação da rede de tráfico com Lobo e Pêra já eram. Parte do dinheiro ainda estava com ele, mas era dinheiro sujo. Até que fosse limpo (até que a cidade se acalmasse), usá-lo seria assinar um atestado de burrice. Jota estava cansado de ser burro, queria mudar de vida. O ar estava pesado, uma nuvem de poeira dormia sobre as luzes de iodo acendidas há pouco, simulando um nevoeiro de sangue. A lua nasceu enorme aquela noite, amarela demais para ser verdadeira. Pensando bem, nada parecia de verdade em Nova Enoque. O lance com os vagalumes era uma desculpa para ficar sozinho; essa era toda a verdade. Como sempre eles começaram a voar quando os trilhos vibraram. Em segundos um bocado de luz cobriu a vegetação com seu brilho alienígena. O trem não passava mais por Nova Enoque, as linhas estavam abandonadas há anos, mas ainda tremiam quando ele se arrastava por Três Rios, Acácias ou Gêvá, as cidades próximas. Jota apanhou a cerveja de um isopor pequeno e abriu usando a camiseta. Deu um bom gole tentando tirar o peso dos últimos dias. Crianças mortas na escola, pessoas sequestradas, o safado do Roger Minotto solto da cadeia onde deveria ter sido enforcado se o mundo fosse justo. Jota e Roger já tinham se estranhado duas vezes. Jota não gostava do seu jeito mandão, de dono da cidade. Roger não gostava de se sentir diminuído perto de ninguém. O problema é que Jota era pobre e ferrado, mas também era esperto e tinha jeito com as mulheres. Pensando em Roger, Jota acendeu um cigarro e deitou sobre o capô do carro, apoiando as costas nos vidros, as botas riscando a lataria do Maverick que escapara do ferro velho graças a ele. Também pensava em outras pessoas, por exemplo, o cara mais inocente, gente fina e burro que conheceu na vida. Lobo andava sumido desde o lance com o vereador Orlando e isso não podia ser bom. Lobo gostara de uns lances pesados em um passado breve, cocaína, craque, chegou a usar heroína, embora negasse. O que esse maluco está aprontando? Outro que estava sumido era Pêra. Isso não era tão estranho, porque Pêra sempre foi o mais reservado dos três. Tão reservado que às vezes deixava de fazer falta. Uma vez passou dias enfurnado dentro do porão. Queimando erva, comendo sanduíches e assistindo televisão. Dias perfeitos de um cara novo que não tinha família ou enchimento de saco por perto. O céu estaria limpo segundo a previsão, mas pra variar erraram feio. O que havia acima dos olhos era um laranja carrancudo e estático. Estrelas ocultas, só mesmo a lua brilhava, mas até ela, à medida que foi subindo, ficou menor e mais tímida. Do outro lado da linha os vagalumes continuavam interessando mais que o céu. Era como um maremoto de luzes verdes, caóticas e velozes, piscando sem parar. Às vezes formavam pequenos torvelinhos e sempre que isso acontecia, Jota se lembrava de uma reportagem que viu na tevê há três anos, talvez um pouco menos. Falava de uma cidade do leste, Acácias. Uma família teve um problema sério por lá, disseram que foi presença do demônio, exorcismos, essas coisas. O repórter da tevê contou que os pais do garotinho possuído relataram que na noite em que o coisa-ruim entrou nele, ele foi cercado por vagalumes. O que Jota achava é que o pai acabou com a família toda em um surto psicótico. Ele meteu fogo na casa, na esposa e nos três filhos, e se matou junto. Mas isso não tirava o brilho dos vagalumes, como o Demônio e sua ira contra Deus também não tiravam sua inteligência. Era o que Jota acreditava depois do pouco (umas dez páginas) que leu da Bíblia. Jota não gostava daquilo de profetas e mandamentos. O que acreditava é que um homem deve fazer o que lhe é conveniente, o resto é cabresto para gado de corte. Deixou os vagalumes em paz quando viu alguns faróis vindo em sua direção. Seis deles. O primeiro carro era mais alto, devia ser uma Pick-Up. Os outros dois eram carros de passeio. Não estavam velozes, o que era muito bom — a polícia costumava andar depressa. Pensou em entrar no carro e cair fora dali, mas não fez isso. Ele não estava devendo nada a ninguém que tivesse carros sem sirenes. Na verdade estava sim, mas Orlando Torque não mobilizaria tanto esforço por causa de um carro que estava no seguro — ele era amigo do filho do corretor de seguros de Torque e o rapaz contou que o vereador provavelmente receberia tudo e mais um pouco pelo Subaru. Do outro lado da linha, poucos vagalumes enfrentando o brilho das lâmpadas. Se fosse esperto, Jota teria feito o mesmo. Ele acendeu um cigarro novo quando a Pick-up parou atrás do seu carro levantando um monte de poeira. Não se intimidou e cobriu os olhos com a mão esquerda. O que um filho da puta pretendia com um farol daqueles? Bronzeá-lo artificialmente? Ouviu a porta abrir, não conseguiu identificar quem desceu. O homem entrou na frente de um dos faróis e disse: — Jota Moreno? — Quem quer saber? — Precisamos conversar. Atrás da caminhonete, os outros carros chegaram e deixaram os motores ligados. Alguém desceu de um deles, também não deu para ver de quem se tratava. A voz parecia desconhecida, mas o medo distorce as coisas. — Eu não tô a fim de conversar. Quero ficar sozinho e olhar para a linha do trem. Se você e seus amigos querem a mesma coisa, eu não me importo. Ou posso ir embora daqui e fingimos que nada disso aconteceu. O que acha disso, amigo? — Não sou seu amigo, senhor Moreno. Estou aqui a trabalho. Agora saia dessa lata velha e entre no carro. Pretendo acabar logo nossa conversa. Ticlakc! — Merda — Jota resmungou. Conhecia bem o som de uma arma engatilhando. O homem à frente do farol reduziu o estresse. — Tudo bem, não vamos precisar disso. Ele entendeu o recado. Jota deixou o capô, tragou o cigarro e jogou o que sobrou no chão. Parou recostado ao Maverick. O carro às suas costas desligou os faróis. Demorou um tempo para os olhos se acostumarem de novo com a escuridão, mas quando o fizeram não adiantou nada. — Não acho que você me confundiu com alguém, certo? Do que se trata? — Vamos dar um passeio, Jota. — Não, cara. Ou diz do que se trata ou vai precisar acabar comigo. Siqueira riu e coçou o bigode grisalho com os dedos. Aquele filho da mãe tinha fibra. Bem mais que o retardado que não conseguiram encontrar naquela noite gloriosa. Mas não importava, porque Jota era o cabeça. — Filho, tira a bunda desse carro e venha comigo, sim? Ainda não temos motivos para arrebentar essa sua cara feia, mas se nos der esse mole, como vocês dizem, vamos ter prazer em nos exercitar. O que me diz? Ele era um cara grande. Baixinhos são mais irritantes, mas caras grandões quase sempre dizem a verdade e arriscam suas bundas grandonas. E o filho da mãe do Siqueira sempre teve um rosto confiável. Jota o conhecia, mas não abriu a boca para dizer isso. — Tudo bem. Mas preciso voltar para pegar o carro, não vão me deixar longe, não é? — Vai depender de você. Agora vamos, nossos amigos estão com pressa e não queremos deixar ninguém nervoso. Pode entrar no carro de trás. Nesse aqui, só eu e o Anizinho. Jota deu uma olhada no tal do Anizinho. Ela tão grande que a caminhonete parecia pequena para ele. Tinha barba meio grisalha e suja, e ele não tinha a mesma expressão de confiança de Siqueira. Anizinho era só um jagunço, leão de chácara, capacho, um vagabundo que espancaria alguém por duas garrafas de cerveja. Jota achou uma boa vantagem não dividir o carro com ele. Sua vantagem terminou ao encontrar quem já ocupava o lado direito do assento traseiro do Santana (o tal segundo carro, o terceiro era um Passat Alemão escuro). Ele entrou e bateu a porta antes de dizer: — Que merda cara, tá fazendo o que aqui? — Ele foi atrás de mim, o detetive. Eu juro que não queria abrir o bico, mas aí pegaram a filha da prefeita e meteram fogo na escola... Eles acham que a gente teve alguma coisa a ver com isso. Eu disse que não, mas eles conseguiram seu nome então... — Então você me ferrou. Valeu Pêra... — As princesas podem namorar depois. Agora calem a porra da boca — disse o motorista. Sua voz era rouca e grossa. Voz de fumante. O cara ao lado (que pelo braço, era bem grande) deu uma risada curta e maldosa. Ficaram calados por vinte minutos, tempo em que tomaram outra estrada, a que levava ao matadouro- curtume dos Minotto — não por coincidência uma estrada deserta à noite. Eles estavam ferrados... Não chegaram aos Minotto, tomaram um entroncamento para a antiga usina de cana. Estava abandonada há um dez anos, tempo suficiente para que nada ficasse inteiro, exceto a plantação abandonada que formava labirintos como também acontece nos milharais. Era um lugar terrível para estar à noite, fácil de se perder, sombrio e fedido. Se o sujeito caísse ali, já era. Ninguém conseguiria encontrá-lo. — Chegamos — disse o motorista. Mas quem virou para trás foi o cara do braço de lenhador. Ele era negro e tinha um quê de Mike Tyson no rosto, os olhos pequenos e raivosos mesmo quando sorria. — Vou dar um conselho. Não irritem o chefe. Pêra engoliu tão forte que sua garganta estalou. Jota na mesma, olhando para fora e tentando supor por que estava sequestrado àquele lugar. Não gostava dali, ninguém da cidade gostava. A usina tinha sido palco de uma desgraça no passado, bem antes de ser uma usina. Aquele terreno era maldito e todo enoqueano sabia disso. — Não fizemos nada — disse Pêra. Estava com a voz úmida, e Jota se envergonhou por ele. Que merda de homem... Se já estava chorando agora, não serviria para nada quando o primeiro soco viesse. E por mais otimista que fosse Jota duvidava muito que sairia daquela porcaria de usina sem mancar um pouco. E se fosse só isso, estaria bom, Jota conhecia um cara que não pode ter filhos depois de uma surra. Do Passat desceram mais dois capangas, vestidos como seguranças de verdade, com ternos e sapatos polidos (e deviam ter armas polidas também). O mais alto deles era bem magro e tinha o pescoço todo irritado por causa do uso excessivo de lâminas de barbear. O outro tinha o rosto esburacado. Tinha os olhos meio amarelados, cheios de alguma doença que subiu do fígado. E então ele desceu. — Seu Orlando, eu... — tentou dizer, Pêra. Antes que concluísse o punho de Tyson-braço-de-lenhador acertou seu estômago. Ele gemeu e caiu de joelhos, Jota se abaixou para ajudá-lo. — Pra que isso, pô! Viemos até aqui, não foi? — Quando ele devia falar, não quis. Agora vai falar quando o chefe mandar. Orlando sorriu como quem vê a mesma cena pela centésima vez. Jota sentiu o sangue gelar com aquele sorriso. Era meio doente. Aquele homem não estava em seu juízo perfeito, e seu sorriso estragado não era o único traço a dizer isso. Orlando estava com o cabelo bagunçado, com olheiras, o colarinho desabotoado e a camisa social molhada de suor. E ele olhava meio vidrado para você, como um viciado abstinente. — Levem os dois para dentro. Temos o lugar certo para fazer isso. — Vem cara. Não vai adiantar implorar. E o Lobo? — Jota perguntou ao amigo. — Ninguém sabe dele. Eles me obrigaram a ir até a casa dele. A mãe do Lobo pirou. — Pedra de novo? — Não. Ela perdeu o juízo de vez — disse com muita dificuldade em respirar. Em seguida ficou quieto e se escorou em Jota até chegarem à entrada de um galpão. Jota já tinha estado por lá quando era mais novo e tinha esperanças em sumir daquela cidadezinha de bosta. Ok, e nada deu certo para ele... Um cara do terceiro carro, branco demais e com a pele toda trincada e judiada pelo sol excessivo, chegou à porta de metal que media uns três metros de altura. Ele sacou algumas chaves do bolso e abriu o cadeado da tranca. Outro chegou perto (o motorista da Pick-Up) e o ajudou a puxar o portão. Estava um pouco engripado, e as rodas fizeram um som dolorido quando deslizaram. As folhas de metal estalaram. — Vamos acabar logo com isso — disse Siqueira. Ficou para trás com Torque. Um dos capangas entrou antes, outro ficou na escolta de Jota e Pêra. Outros dois deles — o cara branco demais e o senhor Rosto Esburacado — esperaram rentes ao portão. — Eu duvido que esses dois aí tenham alguma coisa a ver com o incêndio da escola. São dois coitados, vereador. Eu tratei pessoalmente com um deles, com o mais novo que está se cagando de medo. Ele teria aberto o bico. — Quero ver com meus próprios olhos, Siqueira. Se aquela vaca da prefeita tiver um dedinho metido com o que aconteceu com o meu filho eu vou atear fogo nela. E antes vou queimar esses dois. Vamos logo com isso, minha mulher está dopada e eu tenho medo que ela tente alguma idiotice se não me encontrar quando acordar. Torque entrou na frente e Siqueira teve um pouco de pena dos garotões lá dentro. Que droga, eles tinham a idade do seu filho mais novo. É, mas seu filho não era o tipo que saía por aí depredando carros a pedido da prefeita que temia não ser reeleita. Ou será que era? Não importava. O que importava é que seus garotos estavam bem longe daquela loucura que infestava a cidade como o calor insano e as toneladas de cupins famintos. MAMÃE FOI PASSEAR
Lobo conseguiu sair do cativeiro onde prendia seu mais novo animalzinho de estimação perto das dez da noite. A filha da prefeita podia ter fama de mimada, de fresquinha e de um monte de coisas ruins, mas não parecia mais esse tipo de garota aos olhos de Lobo. Ela comeu como uma hiena, sem talheres, sem mastigar direito, comeu sem respirar entre as bocadas. No final ainda deu um arroto que macho nenhum botaria defeito. Tá certo, ela era uma garota legal. Mais legal que qualquer outra riquinha com quem ele tivesse conversado. E aquela coitadinha estava sozinha, em um lugar escuro e frio que botava medo até nele. O que aconteceria se ela a soltasse? Se deixasse de lado o que combinou com o cara do aspirador de pó? A verdade é que o prêmio de Nora não chegava nem perto do combinado. Lobo podia ser lerdo, mas já tinha percebido que dos pinos originais de sua mãe, mais da metade estava ferrado. Mas se aquilo, se a coisa que aspirava ideias não fez mal a Lobo, por que tinha feito a Nora? Porque quem regulou o aparelho foi ele. É por isso que deu tudo errado. Ele deve ter me sacaneado grandão, como todo mundo faz. Como o babaca do Jota e do Pêra fizeram comigo. Filhos da mãe, devem ter se entupido de farinha com a minha grana. E esse não era um bom motivo para soltar a garota? Era sim, mas soltá-la também significava polícia, uns oito anos guardado e o anel traseiro doendo por todo esse tempo. Cadeia é lugar de vagabundos de categoria, considerados. Iniciantes no crime como Lobo acabavam virando mulherzinha. Era o que seu penúltimo padrasto — um safado e traficante chinfrim chamado Edmar Pézão — dizia. Ele já tinha estado na cadeia, cumprindo pena por assassinado de policiais. Não tentaram foder com ele (literalmente), mas outros caras não tiveram a mesma sorte. Ele contava sobre um deles, o Borracha. Antes de entrar na cadeia ele se chamava Wilson, mas depois de aguentar meio pavilhão ganhou o apelido desonroso — Pézão disse que seu rabo aguentava qualquer coisa. Podia convencê-la a ficar quieta. Se ele conseguisse isso, se Patrícia acreditasse de alguma maneira que Lobo tinha sido obrigado, chantageado a fazer aquilo com ela, talvez não o entregasse de bandeja. Mas quem garantiria isso? Tá certo, ela parecia uma garota legal e tudo mais, mas seria tão, mas tão legal, a ponto de não entregar seu raptor? Estava bem perto de tomar sua decisão quando o destino rangeu seus dentes de novo, ou talvez nem fosse o destino. — Eu não acredito — desabafou quando seu Del Rey pimbado se recusou a acelerar. Já estava perto de casa, há trezentos metros, na Rua Voluntário Baleiro. Bombeou o acelerador e engatou uma segunda, tentando pegar no tranco. Nem sinal. Tentou engatar uma primeira e deixou o carro cantar de leve os pneus com o freio motor. Também não funcionou. Só restou assistir as árvores correrem devagar, e encostar enquanto podia aproveitar-se da inércia. A calota da frente, do lado esquerdo, ralou na guia, assustando Lobo que trouxe o carro de volta com um puxão no volante. — Que bosta, mano! — Socou o volante. Pensou em pane elétrica e girou a chave, sem dar a partida, uma ou duas vezes, apenas para checar o painel — e também para evocar algum tipo de simpatia que só ele conhecia sobre o afogamento de um carro velho. — Tudo bem, Mixuruca. Agora vê se pega. Bateu a chave e foi como encostar dois fios de energia descarregados. Nenhum barulhinho, nem uma luz diferente, nada. Aquele dinossauro parecia mesmo ter aceitado sua extinção. Mas Lobo não desistiria, uma de suas qualidades (segundo a última professora a desistir dele, na segunda semana de aula) era ser mais teimoso que um cupim. Mas Lurdinha não disse isso como uma qualidade, na época soou como burrice. Ele tentou mais uma vez, e mais duas depois. Girou o botão do ventilador (ainda teimando que era um problema com a bateria) e ouviu seu giro cheio de trastejos. Se ele fosse um pouquinho mais esperto não precisaria ter feito isso uma vez que os faróis estavam acesos, mas Lobo não era nenhum gênio e a cidade toda sabia disso. Quando lembrou dos faróis, olhou para frente, para o longe. Alguém caminhava em sua direção. Duas pessoas. — Merda de carro! Pega logo, Mixuruca! Não faz isso, não! Não era da polícia que ele tinha medo. Lobo andava devendo dinheiro para os caras errados, desconfiava que Nora também não houvesse pagado por tudo o que andou enfiando nos pulmões; de fato, a polícia ali traria um grande alívio. Principalmente se eles conseguissem dar um jeito no carro. Se fosse um problema na bateria, como carga insuficiente para a partida (isso explicaria os faróis acesos), poderiam rebocá-lo. As sombras foram chegando mais perto, e o coração de Lobo acelerando com o toc-toc dos passos. A noite não era nada legal naquele bairro, para Lobo, a escuridão sempre foi uma companhia megera. A noite nunca trazia boas notícias. Às vezes era um parente morto, amigos, às vezes, era seu pai ou algum padrasto aceitável que sumia. Algum vizinho com problemas. Pelo que sabia ou se lembrava, ninguém nunca bateu em seu portão com um bilhete de loteria premiado pedindo que ele o aceitasse. Não. Em bairros como o dos Lobo, ninguém decente se arriscava à noite. Dois deles? Era encrenca da grossa. Um deles era alto e magro. Não era muito forte, e provavelmente Lobo daria conta dele. O outro também não era grande coisa. Muito bem, eram dois, não muito fortes ou muito altos. Estavam armados, certeza... Era a única explicação para aquela confiança toda que os levava direto para um carro desconhecido — o Bueiro era perigoso para todo mundo, não só para Lobo. Quando a expectativa queimou seu sangue, Lobo se encolheu no banco. Deixou só a cabeça aparecendo. Não demorou a subir o tronco. — Mãe!? Mãe! Sai de perto dele. Esse cara fodeu com a sua cabeça! — Que boca suja, Lobo! Respeita o seu, seu, seu... — Talião, Madame Lobo. Mas meu nome não é importante. — Deixa ela em paz — disse Lobo. Saiu do carro e chegou mais perto. Agarrou Nora pelo braço e tentou arrastá-la para dentro. Nora resistiu. Ela não tinha usado droga nenhuma, mas não estava com todo o equipamento da caixola no lugar. Olhava esquisito para o carro, como se nunca o tivesse visto. — Oh-oh! Quanta hostilidade! O que temos aqui? Precisando de uma ajudinha com o carro? — Num é nada! Sai daqui e deixa a gente em paz! — Garoto... Ei! Toc-toc? — Bateu contra a própria cabeça, olhando para a de lobo. — Tem alguém aí dentro? Temos negócios pendentes, lembra? — Você não fez o que combinamos. — O que você combinou com o seu... seu... seu...? — Mãe, fica quietinha agora, valeu? Nora obedeceu. Cruzou os braços e encostou no Del Rey sujo de poeira. Depois mostrou a língua para Lobo. — O que fez com ela? — Como assim? Fiz o que você me pediu, Lobo. Fiz que ela esquecesse a droga, os vícios, a autodepreciarão. — Mas ela tá esquecendo mais coisas. Olha só para ela! Você transformou minha mãe numa retardada! — Retardado é você! — Nora disse. Os olhos encheram rápido. — Precisa desfazer isso. — Garoto... — disse o homem de terno. Ainda o mesmo terno, ainda impecável, as partículas de poeira iluminadas pelos faróis se afastavam dele como mágica. — Eu estava quase fazendo isso, sabe? Sua mãe ficou um pouquinho... digamos... desmemoriada, às vezes acontece durante o processo. O problema em nosso acordo é que fontes seguras me disseram que você não está disposto a seguir com o plano. Essa informação procede? — Como entrou dentro da minha cabeça? — Lobo, lobo... Você é mesmo muito inocente. Acabou de confessar tudo, não percebeu? — Eu não sou burro, e toda vez que alguém me chama de inocente quer dizer burro. Olha aqui, negão, se a gente tinha algum acordo, acabou de acabar, tá ligado? Você vai deixá a minha mãe novinha ou eu vou te bater tanto que vai precisar desse aspirador para os pedaços dos dentes! Lobo chegou mais perto, os olhos injetados e cheios de uma coragem que não era dele. Ah, tá bom! Quem aquele bosta-preta pensava que era? Entrava em seu bairro, enganava ele e sua mãe, deixava a cabeça da velha arruinada, organizava um sequestro, e ainda tinha a cara de pau de fazer ameaças? Não, brother, não é assim que as tretas se resolvem no gueto. As mãos de Lobo estavam bem perto do terno de Talião, mas antes que tocassem no tecido, os olhos do homem flamejaram como duas rodelas de metal derretido. Lobo deu um passo para trás e caiu de costas, o homem deu um passo em sua direção. — O que é você? — Vai cumprir sua parte do acordo ou não? Ela precisa sofrer, garoto! — disse de volta o vendedor. Lobo focou os olhos, mas não viu nada de estranho dessa vez. Talvez fosse a noite e suas ilusões, ou o brilho fraco dos postes, talvez fosse o medo fazendo que seus olhos enxergassem mentiras. — Primeiro a minha mãe. Desfaz o que fez com a cabeça dela! Em vez de fúria ou raiva, o vendedor estava com um sorriso no rosto. Um sorriso plácido e pacificador. Cada dente, uma bandeira branca. — Eu gostaria de fazer isso, mas não posso. — Claro que pode. É só você pegar o aspirador de ideias e ligar no modo reverso. Até eu que sou burro sei disso. — Não funciona assim, rapaz. Mas eu posso tentar outra coisa se me disser para onde levou a filha da prefeita. Eu gostaria de assumir tudo agora. Sua parte foi feita e de cortesia eu ainda vou arrumar um bom dinheiro. Inclusive uma vaga para sua mãe em uma clínica de repouso. Oh, e nada de drogas ilícitas para ela, eu garanto. — Ah tá! Então você chega, transforma o célebro (porcaria, ele nunca acertava essa palavra!) da minha mãe em pudim de bosta e quer minha ajuda? Vai sonhando, mano! Vai sonhando! Eu não sei se você é Deus ou o Diabo, mas sei que você não é gente. Eu não vou fazer mais nada que me pedir. Pode vazar daqui e levar seus aparelhos com você! — Ainda pode dar a ela uma vida digna. O que vai fazer com Nora? Como vai cuidar de sua mãe, Lobo? — Eu dou um jeito. — Não. Você vai fazer o que sempre fez, vai decepcioná- la e deixá-la na mão. Não faça isso, Lobo. Cumpra o resto do acordo. Eu só preciso do endereço, tá bem? Me dê o endereço, e você nunca mais sentirá falta de dinheiro. — Já era mano, já era! Eu não vou mais fazer negócios com você. JÁ E-RA! — Por que está gritando com o moço, Lobo? Que falta de educação é essa? — Nora voltou a interferir. Estava quieta há tanto tempo que Lobo pensou que nem estivesse mais acordada. — Eu tô... É... Deixa pra lá, mãe. Olhou de volta para a frente do Del Rey. Olhou também para os lados e dentro do carro. — Para onde ele foi? — Não sei de quem você está falando, rapazinho, mas seu pai não vai gostar nada de como anda se comportando. E o que é isso na sua perna? Ah, meu Deus do céu! Não me diga que isso aí é uma tatuagem!? Sabia que isso aí dá Aids? Isso é coisa que cadeieiro, meu filho. Lobo ainda procurou o tal Talião pelos cantos. Ele era negro, seu terno era escuro, e a noite estava com poucas estrelas e nenhuma lua que ele pudesse ver. O homem podia estar se escondendo. — E o que nós estamos fazendo fora de casa a essa hora? — Nada mãe. Nada. Vamos embora. Lobo abriu o Del Rey e abraçou Nora. Deu a partida, e Mixuruca rangeu seu motor velho e cansado. Foram direto para casa. Nora não lembrava o caminho. Isso não incomodou Lobo naquele momento, ele tinha coisas mais sérias para pensar. Agora ele não poderia ir até o cativeiro de Patrícia, se fizesse isso, aquele demônio, fantasma ou sei lá o que, ele o seguiria e descobriria onde ela estava. E ele também não podia simplesmente deixá-la morrer. A filha da prefeita parecia legal pra caramba. CALOR E PRAGAS
Zétia estava sentado em frente à praça mais próxima da delegacia, Praça Almirante Cantão. Há dez minutos, ele havia feito algo que não era costume e tomado uma bebida forte para terminar seu expediente. Expediente... Soava engraçado dizer isso. Nos últimos dias, o expediente da polícia não acabava nunca. Um pouco antes do seu merecido trago de conhaque atendeu ao chamado de Janice Sérpia. Pobre mulher. Seu filho, Alan Sérpia, se envolveu em algum acidente bizarro com a rede elétrica e acabou morto. Ironicamente, morreu mais torrado do que morreria no incêndio da escola do qual escapou. Zétia e o pessoal da perícia (eles ainda estavam na cidade por conta do acidente da escola, deram um pulinho na casa dos Sérpia como sinal de boa vontade) disseram que era algo com o computador. Mas era estranho. Placa mãe, cabos de energia, nem mesmo o Hard-Disk queimou. Mas o dedo de Alan sim, um pedaço de pele acabou grudado na tela. O que eu não estou vendo?, pensou enquanto bloqueava um arroto ácido (beber de estômago vazio dá nisso) na altura da garganta. Estava exausto, bocejava a cada dez minutos. Mas não adiantaria ir para casa. Toda vez que fechava os olhos, via o desespero das boas pessoas de Nova Enoque em suas pálpebras. Por que tudo aquilo estava acontecendo? Quem e o que estava por trás de tanta má sorte? Coincidências não explicariam o que acontecia na cidade, Deus sabe que ele tentou acreditar nisso como cético que era. Alguém cruzou a frente da viatura, do lado da rua, oposto ao lado do carona onde Zétia estava sentado com a porta aberta. — Chega por hoje? Zétia ergueu os olhos, desesperançoso de ser alguém decente. Mas não era de todo ruim — Seu Carlo. Muito trabalho hoje? Carlo Euripes, único dedetizador credenciado em Nova Enoque. Geralmente outro morto de fome incapaz de faturar mais de dois mil por mês, mas não naquele mês, naquele junho bizarramente quente, ele estava ficando rico. Foi mais ou menos isso o que disse. — Tô trabalhando feito um corno. Ele vinha a pé, o aparelho dedetizador em seus ombros, olhos tapados por óculos encardidos de veneno (sim, era um milagre que ele enxergasse alguma coisa por aquelas lentes). Vestia calças cinza de um tecido grosso que com algum cuidado duraria uns vinte anos, camisa da mesma cor — de um material mais leve — e botinas de couro. Parecia tão exausto ou mais que Zétia. Seus cabelos molhavam a testa e seu nariz grande escorria um pouco, então ele fungava o tempo todo. — Cupins? — Começou com cupins. — Cuspiu de lado. Deixou o aparelho no chão e sentou-se à frente do delegado, na calçada mesmo. — Quando eu atendi o primeiro chamado na casa do seu Galileu, não imaginei que fosse ficar feio desse jeito. Parece que os bichos tomaram conta de tudo. Depois do seu Sultão, foi a casa do Minotto, longe que só. Então veio o pessoal daqui, um monte de gente. Agora eu devia di tá na igreja, mas o padre me deu os canos. — Padre Estevão? Isso sim é esquisito. O padre é o homem mais sistemático que eu conheço. Estive com ele há pouco. — Também tive na casa da colega dele, da macumbeira. — Madame Safira? — Hum-rum. Delegado do céu, os bichos tão comendo até as roupas da cuitada. Nunca vi nada igual nesses anos todos. Comeram o armário da cozinha, o guarda-roupa, o assoalho; encontrei cupim até nas paredes. Taquei veneno em tudo, e cá entre nós — chegou mais perto um pouco como quem conta um segredo —, acho que posso dizer, já que o senhor não é autoridade sanitária... — Eu guardo segredo, Carlo. Além disso, já encerrei por hoje. — Eu usei o velho e maligno DDT. Aquilo tem mais câncer que uma usina atômica. — Nuclear? — Nuclear, atômica, você me entendeu. O pobrema é que as praga nem tomaram conhecimento. Nadinha, nem uma morte. Aquilo não é coisa de Deus, delegado. Minha avó dizia isso sobre cupim e outras praga fora de época, dizia que era sinal do tinhoso. — E você? O que acha sendo um matador deles? — Que não tenho nenhuma explicação para dar. É um exagero. Zétia ficou quieto e matou outro daqueles arrotos azedos. Ficou olhando para Carlo. Tanto tempo em uma profissão que acabaria o enterrando. Não era tão diferente dele, como não era tão diferente de todo o resto do mundo. Alguns homens parecem ter uma programação base na sociedade moderna: tornar sua existência miserável. — Disse que está pior agora, mais cupins? — Antes fosse, seu Zétia. O que eu encontrei nas casas da cidade me deixou de cabelo em pé. — Pior que cupins? O que é pior que algo feito para destruir casas? — Gafanhotos, formigas e traças. E escorpiões. Zétia olhou para o poste da rua à sua frente, olhou na direção da luz. O velho Carlo Euripes estava certo, havia todo um ecossistema alado rondando as lâmpadas. Mariposas, besouros, insetos minúsculos; outros tão grandes que podiam ser baratas. Carlo completou: — Eles estão em todos os cantos. Na escola onde teve o incêndio, e que Deus ajude aquelas pobres famílias, aquilo ali parecia um pântano! No forro, embaixo das telhas, eu tirei sozinho sete ninhos de vespas, e ainda mais dois de marimbondos. E rapaz, eu nunca vi tanto morcego junto. Não reclamo porque eu vivo disso, mas do jeito que tá indo? Ah, senhor Deus. Não sei como vamos terminar. Até no mercadinho dos Okamura. Eles perderam mais de vinte sacos de arroz e o que tinham de feijão precisou ser queimado. Um prejuízo de mais de cinco mil. — Coitados. Mais gente que não merece tanto azar. E esses insetos? Eles não podem estar se reproduzindo mais por causa do calor? Está muito quente e faz muito tempo. — Nem é época, seu Zétia. Estamos em junho, ninguém ouviu falar de um meio-de-ano tão quente nessa região. Eu apostaria que as pragas se aproveitaram do calor, mas o que esse calorão tá fazendo aqui em junho é o grande mistério. Tenho uns parentes em Consolação, fica a menos de trinta quilômetros daqui, e o pessoal lá tá usando brusa de frio. Zétia bocejou mais uma vez, um sinal involuntário para Carlo deixá-lo em paz. Por mais que tivesse a impressão que o delegado apreciaria mais um pouco de conversa, não arriscaria ser inconveniente. Sem contar que suas costas reclamavam um bocado. Passava das dez horas da noite, faria bem esticar as pernas e tomar umas cervejas. Carlo já estava quase saindo quando se lembrou de algo que quis dividir. — Que eu me lembre (ele disse alembre, como todo velho com mais de setenta dizia por aquelas bandas), eu vi uma infestação dessas uma vez só. Não alembro de ter sido tão ruim, mas é minha única memória. — Aqui mesmo em Nova Enoque? — Foi sim. E foi no mês mais quente do ano. Sabe onde fica a usina de cana-de-açúcar, não sabe? Craro que sabe... — Na saída para estrada de Três rios? — Isso. Lá mesmo. Aquilo tudo pertencia ao Coronel Constâncio Trindade. Era uma enorme plantação. Ele tinha de tudo ali; milho, cebola, café, algodão. Ele plantava até gente pelo que dizem. — Gente? — Zétia sabia o que significava, mas perguntou mesmo assim. — O Coronel tinha sangue nos olhos. Como o pai dele, Constâncio também foi dono de escravos, ele se achava dono de todo mundo. Quando a escravidão acabou, ele recebeu uma leva de italianos para trabalhar na colheita, depois japoneses, o Coronel não mudou o modo como lidava com eles, era tudo no chicote e na perseguição. Eu não sei como o senhor enxerga essas coisas, delegado, mas para mim, todo sangue que cai na terra deixa ela meio podre. Foi isso o que aconteceu por lá. Meu pai, que Deus o tenha, já cuidava de insetos naquela época. Do jeito dele é claro (craro), não dava conta de nada mais forte que mosca varejeira. Coitado... Eu não entendia muito do mundo na época, e o que eu soube foi através dele. Mas deixa para outro dia, o senhor deve di tá cansado. — Pelo amor de Deus, seu Carlo, termine sua história! — disse Zétia. Aquele velho safado sabia mesmo como amarrar alguém à sua conversa fiada. Verdade ou mentira, Zétia estava hipnotizado pelo que ouvia — principalmente por achar que era tudo verdade. — Eu era criança quando meu pai foi chamado naquelas terra. E o pior já tinha acontecido há anos. A cidade não comenta esse tipo de coisa, é um assunto maldito como o seu Jorge Araão que tem aquele filho doido dele. — Nem eu sabia dessa... — Pois é. Ninguém sabe. O rapaz deve di tê uns quarenta anos e ainda mija na roupa. O velho deixa ele trancado em um cômodo escuro, em um quartinho dos fundos. — E o que aconteceu nas terras da usina? — Com a queda do café na depressão de trinta, o Coronel entrou em parafuso. Começou a exagerar para cima dos colonos, agrediu um deles até quase matar, e dizem que fez maldade com uma moça, mulher desse mesmo colono. O tal desobedeceu uma ordem dele, coisa boba que não vem ao caso e que não justificaria uma violência tão grande. Os colonos ficaram desagradados e ameaçaram tomar a casa grande. E o Coronel deixou que acontecesse, atraiu todos eles para dentro e ateou fogo na casa. — Minha nossa. E como eu nunca soube sobre isso? — Quando sua família chegou aqui? — Meu pai foi o primeiro, faz um trinta anos. O pai dele, meu avô, era de Três Rios. — Então é por isso. Essa história não é motivo de orgulho, principalmente para quem acobertou o caso na época. Depois disso, meses depois, o Coronel não conseguia se reerguer, as pessoas decentes da cidade começaram a boicotar os negócios, terminou que ele devia para muita gente sem escrúpulo, gente pior que ele mesmo. Precisa entender, delegado, que se ele fosse acusado de assassinato, corria um sério risco de ir para a cadeia. Terras, comércio, casas da cidade que recomeçava a nascer, tudo isso ficaria com o governo já que seu único herdeiro tinha desaparecido dez anos antes; o Coronel o deserdou, como dizem. O povo endinheirado da época não permitiria um prejuízo desse tamanho. Obrigaram Constâncio a assinar um contrato de penhora, torturaram o homem. Pelo contrato, o banco cuidaria de tudo caso ele morresse, redistribuindo o que era de cada um a preços miseráveis. Isso porque o banco era chefiado pela pessoa de Emanuel Torque. Tudo isso foi resolvido em segredo, e acabou em segredo. Dizem que ele foi queimado vivo, do mesmo jeito que matou aqueles pobres coitados. As pragas e a cana da terra deram conta do que sobrou. Já viu cana-de-açúcar queimando, delegado? Não sobra nada. Até os bichos saem correndo, cobras, lagartos, escorpiões, tudo o que a terra esconde. — Segredos atraem a maldade do homem para fora, meu pai dizia isso. — E ele estava certo, seu Zétia. Quando eu fui até lá com o meu velho, a fazenda parecia o maior ninho de pragas desse mundo. Insetos voando e cavucando a terra, piolhos, eu raspei a cabeça depois daquele dia, saí de lá infestado. E não era só no que sobrou da casa, era na fazenda toda. — Mas foi resolvido como me disse. O que foi feito? — Não posso falar sobre isso, seu Zétia. Foi obra de feitiçaria. Eu não acredito muito, mas também não duvido. Se o senhor quiser mesmo saber sobre essa parte vai ter que falar com a Dona Safira. Uma parenta dela, velha e sem nenhum dente legítimo, também mexia com esses assuntos do além. Se não me falha a memória, quem foi lá bem antes do meu pai encher a terra de veneno para construírem uma usina por cima foi ela. Zétia pensou um pouco sobre o que acabara de ouvir. — É uma boa história. Gostaria de acreditar nela também. O velho sorriu e ficou de pé, colocou o tanque de veneno nas costas. — Histórias como essa só servem para tirar o sono, delegado. É uma dádiva não crer nelas. Mas para quem viu parte do rosto do demônio, é tarde demais — suspirou e deixou o olhar distante por alguns segundos. — Agora eu vou mesmo, minhas costas tão queimando de dor. Zétia agradeceu a história com a certeza de preferir nunca tê-la ouvido. Mas valeu a pena. Agora ele tinha uma pista sobre tudo que não entendia. EU NÃO SEI!
Nenhum dos dois reagiu enquanto eram amarrados. Jota sentiu vontade de espatifar com a cara de Orlando Torque, não gostava de ninguém que roubasse comida das criancinhas pobres da cidade, mas era esperto demais para tentar uma idiotice dessas. Pêra, amarrado na cadeira podre ao seu lado, não faria diferença em uma luta mesmo que estivesse segurando um revólver (Pêra tremia tanto que não acertaria um tiro). Os homens os deixavam quietos por enquanto, ficavam cochichando entre si e dando risadinhas. Às vezes olhavam para os dois, deixando claro que os risos não eram privilégio da turma das cadeiras. O cara de barba era raivoso, os outros também, mas o problema maior naquele galpão era o homem com a arma mais letal no bolso. Torque tinha dinheiro. — Esses aí não vão aguentar meia hora. Minha tia viciada em Gardenal é mais corajosa que eles — disse Barba. Era caladão, mas o mais falante entre os que desceram dos carros. Jota não reagiu, continuou guardando a energia que acabaria precisando. Não devia estar amarrado ali para trocar palavras civilizadas e amorosas. A posição vulnerável levou Jota de volta à adolescência. Ele e uns amigos tinham sido apanhados com maconha, mas, como todo mundo tinha menos de dezoito anos, os policiais não puderam fichá-los. Isso não significou que eles estavam livres, não mesmo. O primeiro apanhado foi o Berro (que chorava por qualquer coisa). Ele acabou entregando o resto dos garotos e o esconderijo (um módulo de armário de aço reforçado que Jota recuperou do lixão) onde guardavam a erva. Jota tinha algum dinheiro no bolso, não muito. Dinheiro que nem era dele. Serviria para comprar remédios para mãe que tinha algum tipo horrendo de herpes incurável nas costas. O resto dos garotos — que não tinham grana para escapar da pancadaria — pagou com gemidos e machucados. Um deles, o Flecha, teve traumatismo craniano e ficou bobo por uns tempos. Ninguém abriu o bico, é claro, disseram que tinha sido briga de rua e que a polícia apareceu para ajudar. Os policiais envolvidos ainda ficaram na cola de Jota e do bando todo por uns meses. Jota frequentou a igreja por um tempo, alguns dos garotos saíram da cidade. A perseguição só acabou mesmo quando o antigo delegado (que foi aposentado com uma bala nas costas na vizinha Três Rios) deu a vaga para Zétia. — O que eles vão fazer com a gente? — perguntou Pêra. Estava a ponto de se urinar. Aquilo de esperar acabava com ele mais do que qualquer soco. Ficar com vida nas mãos de outras pessoas. Tá certo que sua vida não era grande coisa desde sempre, mas poxa, com a grana que receberam da prefeita ele poderia recomeçar. Pretendia montar “O Lance” com Jota, chamar o Lobo para vender bagulho no bairro dele. Então, o que ele estava fazendo ali com aquela cara azeda e ruim? O que deu tão errado? O cara de Barba chegou mais perto e disse aos ouvidos de Pêra: — Vão contar tudo o que queremos saber. — Espera aí, eu já falei com você, seu Siqueira. Por que eu estou aqui junto com ele? — Seu fedido! Contou o que para essa gente? — perguntou Jota. Pêra não era grande coisa, mas nunca tinha caguetado ninguém. Pensando bem, para alguém que não é grande coisa, trair um amigo, um parceiro, é questão de tempo. — Ele ia me prender! — Chega de lamentação, moleque — disse Orlando. Apanhou um lenço do bolso e enrolou na mão direita, formando uma meia luva. — Por que estamos aqui!? Orlando olhou para Siqueira, depois para Barba. Então ficou olhando para Jota, fixo, sem piscar nem nada. Estava testando sua coragem, como tinha acabado de fazer com Pêra, descobrindo qual deles teria a língua mais solta. Pelo que via, pela respiração controlada de Jota, ele era coisa ruim. Carne de pescoço, como dizem. O outro moleque era meio babacão. Dentes bonitos, cabelos grandes, um tênis Nike nos pés (era velho, mas era Nike). Orlando já tinha um alvo. Ele chegou mais perto e bateu com tudo. POF! A cabeça de Pêra foi para o lado, um pouco de cuspe voou no chão, quando a cabeça retornou, havia sangue escorrendo da boca. — Ei! Não precisa disso! O cara já disse que vai colaborar. — Fica quieto, monte de lixo. Já vai chegar sua vez — disse o senhor braços de Mike Tyson. Jota pensou que, no fundo, era uma sorte danada estar apanhando de Orlando Torque. O vereador era grande, mas não tinha metade da massa muscular do outro. Isso também trouxe uma má notícia. E se eles revezassem? Pêra cuspiu algo vermelho e grosso no chão. Seus olhos estavam queimando de raiva, úmidos de vergonha. Antes que esboçasse qualquer reação, Torque o agarrou pelos cabelos e vergou seu pescoço, o obrigando a olhar para cima. — Sabe o que eu fiz durante o dia, seu bostinha? Eu inverti a ordem das coisas. Eu enterrei meu próprio filho. Medo e pena. Era o que dava para sentir, mesmo sendo um prisioneiro. Quando Torque disse isso, seus olhos faiscaram de um jeito que pareceram elétricos. Era como se de uma hora para outra, daqueles olhos fosse sair um raio cheio de ódio e angústia e derreter quem se metesse à frente deles. — Eu não... SOC! Outro golpe. Dessa vez com mais impacto e frontal. Direto no nariz. A cabeça soltou-se da mão que a prendia pelos cabelos e ricocheteou para trás, os olhos reviraram nas órbitas. Jota pensou que Pêra apagaria. Preparou-se para assumir a vaga de sparring, contudo, não aconteceu. Pêra estava de volta, só não conseguia respirar direito com todo o sangue que descia pelo nariz. Deve ter fraturado todos os ossinhos de uma vez só. — Só responde quando eu mandar, cachorro. Mas estávamos falando do meu menino — disse com uma nova calma falsificada, tão frouxa quanto seu colarinho. — Ele era um bom garoto. Forte, decidido, puta merda, aquele carinha era o melhor de mim e da mãe dele. Mas então, algum filho da puta vai até a escola municipal e começa um incêndio. Meu garoto tentou fugir, disseram, ah, mas eles dizem um monte de coisas para um pai desesperado. Coisas como: “foi um acidente” e “tomara que Deus o conforte”. Vou dizer aos dois safados o que me conforta: vingança. Torque virou para trás, para onde estava o detetive Siqueira, e cochichou alguma coisa com ele. Pouco interessava o que era, os sussurros incompreensíveis e o mistério do que viria a seguir deram conta do que sobrou de Pêra. Ele começou a chorar. — O que é isso, garoto! Seja homem. Estamos apenas nas apresentações por aqui. O show vai ser muito melhor. — Eu não fiz... eu não... eu não fiz nada, vereador. Pode perguntar... Pergunte para quem o senhor quiser. — E não é exatamente isso o que estamos fazendo? — disse Torque. Andou até os fundos onde havia uma escada de metal. Embaixo dela, havia outra cadeira, tão velha e empoeirada quando as duas outras. Ele a trouxe arrastando pelo chão, sem fazer questão de erguê-la. O barulho era irritante, principalmente para os dois rapazes amarrados e com os nervos à flor da pele. Torque pousou a cadeira ao lado de Pêra e sentou-se sobre ela. Jota não sabia o que fazer, mas estudava cada centímetro do lugar. O galpão era grande e escuro. Havia luz somente onde eles estavam, e vinha de uma lâmpada de no máximo sessenta watts. O cheiro de poeira era impressionante, também o cheiro do que o pessoal da cidade chamava de garapão, um subproduto da cana que às vezes era jogado nas estradas de terra para reduzir a poeira. Se não fosse assustador o suficiente estar ali amarrado aos caprichos de um homem transtornado que acabara de perder o próprio filho, aquele galpão completava a façanha. Antes que o vereador destilasse mais de seu veneno de dor, um estalo nas folhas de zinco do teto fez os homens olharem para cima. Quase todos eles — Pêra estava amedrontado demais para tirar os olhos de Torque. Logo baixaram os pescoços, na descida os olhos de Jota esbarraram em Siqueira. Ele também não era grande coisa, e Jota apostaria que ele estava mais inseguro que seu amigo de nariz aplainado. Então Torque chegou aonde queria. — Sei o que fizeram com o meu carro. Você, o valentão aí do lado e o outro retardado. Eu conheci a mãe dele, sabiam? Nora. Ela era puta e ainda deve ser. E aquele garoto deve ter tido hidrocefalia. Pelo que sei, ele tem um QI de ameba. Mas já que o destino e o Siqueira ali atrás me arrumaram vocês dois, terei que me satisfazer. Bom, jovem, agora que você teve dimensão de onde essa nossa conversa pode nos levar, responda: Quanto aquela ordinária da prefeita pagou para vocês meterem fogo na escola do meu filho? — Senhor, nós não tivemos nada a ver com isso. Podemos provar se nos der uma chance — disse Jota. — Vou dar a chance de ficar sem uns dentes se você se meter de novo na minha conversa com seu amigo. Quanto a você — voltou para Pêra — o que me diz? Quando ela pagou? Mil, dois mil, dez mil? Quanto valeu a cabeça do meu menino? Pêra começou a soluçar. — Quanto, seu filho da puta de merda? — gritou, e tornou a sair da cadeira. — Não! Não me... não me machuque, senhor. — Somos inocentes nisso, vereador. Ferramos com o seu carro, mas isso foi tudo! — Ferramos com seu carro, mas isso foi tudo — imitou-o efeminadamente Torque. — Ferra com a cara do imbecil, Barba. Aproveita e deixa o Benê treinar um pouco. Jota não pensava em senhor Tyson como Benê, mas conseguia pensar nele como B. Tyson. Tinha mais a ver com seu tipo físico. Alguém com nome de Benê simplesmente não encaixava. — Você perdeu o juízo, vereador! Vai machucar dois inocentes! — Jota ainda gritou. Orlando não deu bola e deixou que seus homens batessem um pouco no capitão do trio-tragédia. Era mesmo uma pena que o outro, o retardado, não estivesse ali para receber sua parte. Mas Torque também tinha planos para ele, logo que os dois confessassem e explicassem detalhadamente por que fizeram aquilo, ele cuidaria do filho de Nora Lobo. Pêra não escapou de receber sua parte outra vez. O único naquela sala que não se envolveu diretamente na pancadaria (batendo ou apanhando) foi Siqueira. Ele tinha acertado com Torque que não participaria da sessão tortura a menos que a coisa fugisse ao controle. Agora pensava em interceder. O garoto que lembrava seu filho, Pêra, ele não era muito forte, mais quinze minutos apanhando e precisariam abrir uma cova. — Chega! Já chega! — disse, meio babando, Pêra. Não estava totalmente consciente depois de tantos golpes. Torque estava todo suado, o lenço em suas mãos manchado com sangue. Do lado esquerdo, Barba e B. Tyson pararam o espancamento seguindo a mão espalmada de Torque. Jota ainda disse ao amigo: — Não confesse nada que não fizemos! Eles vão acabar com a gen... Ufhfhh. — Um novo soco no estômago o silenciou. Um soco de B. Tyson. Barba sorriu como uma criança de dez anos. — Pode falar, filho. Estou ouvindo sua confissão — disse Torque. No começo ninguém entendeu nada, Pêra mais chorava que falava. É terrível ser obrigado a dizer uma mentira, ainda mais quando ela provavelmente vai ferrar de vez com sua vida. Terrível sim, mas apanhar até morrer não era uma resposta melhor. Pêra quis tentar se safar e nem mesmo Jota o culpou por isso. — Foi a prefeita sim — mentiu. — A gente não sabia de nada. Nem eu, nem o Jota. Depois que nós colocamos fogo no carro do senhor, ela me ligou de novo. Disse que não tinha sido o suficiente, e que o senhor tinha mandado sequestrar a filha dela. A gente abriu o gás da escola e deixou queimando. Não era para morrer ninguém, vereador. Foi um acidente. Torque bufou, meneou a cabeça, depois o abraçou. Reergueu-se e baixou a cabeça para os pés. Ficou assim por alguns segundos. Barba e Benê olharam para Siqueira que deu de ombros. Bem baixinho, Jota perguntou: — Por que você disse isso? — Torque acabou com o suspense depois de um longo suspiro. Olhou para Siqueira e, dessa vez, foi ele quem deu de ombros. Voltou para o lado de Pêra, sacou um revólver e disparou contra sua têmpora. A bala atravessou sua vida e passou bem perto de Jota, respingos quentes molharam seu rosto. Com o pânico contido, Jota viu seu amigo morrer. A cabeça de Pêra pendeu para baixo e ficou desse jeito. Muito sangue escorreu dela até se esgotar de vez. — Termine com esse aí — disse Torque. — Eu vou atrás daquela cadela. — Quer que eu vá junto? Algum dos homens? — perguntou Siqueira. Com extrema frieza, ele limpava seus óculos com um lencinho cinza que tirou do bolso de trás da calça. — Não. Eu vou levar o Branco comigo. Peça a eles para limparem tudo antes de saírem. — Foi andando. — Está errado, vereador! Ele não fez nada, e nem eu! Orlando parou de andar, olhou para trás e sorriu. — Filho... Eu até acreditaria nos dois juntos, mas ele confessou tudo. Aceite seu fardo e seja tão homem quanto seu amigo. SANTO DEUS!
Foram tantos golpes seguidos que era quase um milagre Jota ainda manter a consciência. Bateram tanto nele que o chão ficou todo respingado de sangue. Moscas enfurecidas tomaram conta de cada respingo daqueles, enquanto os homens grandes continuaram seu serviço de triturar o rosto de Jota. — Me surpreendeu, frangote. Achei que não aguentava metade disso — disse Barba. E soco! Tyson estava pingando suor pelo rosto e pelos braços. Tinha tirado a camisa e seu corpo parecia untado com óleo. O desgraçado era forte e, além de forte, era ruim para caramba. Sem dúvida estava na profissão certa. Havia um rádio com eles, uma porcaria que devia ser um dos primeiros toca-CD’s a aparecer no mercado. Born on the Bayou do Creedance Clearwater Revival se tornava a música que Jota jamais esqueceria. — Por favor — disse com sua voz fofa e edemaciada. Metade da pálpebra direita pendia para baixo, estava partida em dois pontos diferentes. A boca teve a mesma sorte, e o lábio inferior parecia vítima de uma alergia extrema (devia estar com uns três centímetros de espessura). O cabelo tinha sangue vindo dos cortes da cabeça. Dois deles foram feitos por Barba, com os pés. Ele disse que era o Van Damme quando seus pés chicotearam a nuca de Jota. Benê disse que “só se fosse depois da Aids”. — O chefe mandou acabar contigo, moleque — disse Barba. Havia um sorriso podre habitando seu rosto. Bem parecido com o de Lobo, quando estava na fissura de pó. — Façam isso mais depressa, pelo amor de Deus — falou alto, Siqueira. Ele estava sentado perto da escada de metal aos fundos, fumando. Não teve estômago para ver outro rapaz sendo brutalmente assassinado. Tragava o cigarro e fazia planos. Ele não trabalharia mais para Orlando Torque, Deus sabe que nem ficaria na cidade. Sairia de Nova Enoque o quão rápido pudesse. Siqueira não era nenhum santo, claro que não, mas a loucura instalada nas últimas semanas deixava somente duas escolhas: enlouquecer junto ou fugir. Para alguém novo como aquele garoto morto, ou o que estava indo para o mesmo buraco, podia ser vergonhoso isso de fugir, mas depois dos cinquenta, esse papo de valentia não fazia sentido algum. Os gemidos incomodavam bastante e por incrível que parecesse vinham dos dois homens ainda de pé. Eles estavam moídos de cansaço. Abduzir o moleque que agora estava morto deu um trabalhão, levaram quase a tarde toda para descobrir onde Pêra estava (dentro da caixa d’água vazia do mercadinho abandonado que fazia fundos com a sua casa). Um dos garotos da rua (que não gostava do jeito meio metido a inteligente de Pêra) o entregou. Siqueira já estava na metade do cigarro quando percebeu a fumaça fazendo algo bem estranho. Ele aproximou a mão e observou. A fumaça se condensava na ponta do cigarro, se concentrava, para só depois escorrer como um líquido cinzento. No chão, uma pocinha ia se formando aos poucos. Diabos, aquilo definitivamente não era normal. Sentiu vontade de atirar o cigarro para longe e sair correndo daquele galpão assombrado (todo mundo na cidade dizia isso). Siqueira não era muito dado a assombrações, mas respeitava a opinião de quem acreditava, sobretudo do pessoal mais velho que era quem mais entendia do assunto. Eles gostavam de falar sobre o galpão e sobre o que entrava e saía de lá sem precisar das portas. Ernesto Quaglia, dono de um laticínio que encerrou suas atividades em noventa e quatro, tentou comprar as terras para transformar tudo em produção de queijo e iogurtes. Na primeira visita, desistiu. Ele foi atacado por uma crise de tosse que quase o matou asfixiado. É um lugar ruim, ele disse, e ninguém duvidava do velho. Mesmo sem sair de onde estava Siqueira checou a fumaça espessa e tentou espalhá-la com a ponta do sapato polido. Foi como tocar a água. A fumaça do cigarro tinha peso, tinha volume, oh merda, nem em um milhão de anos aquela droga era só fumaça de cigarros. Mais estranho ainda foi o que aconteceu depois. A fumaça formou um pequeno regato, bem fino, e se desprendeu do cigarro. Siqueira tentou reacendê-lo, mas era como se estivesse molhado, inclusive o cheiro. A fumaça empoçada no chão começou a correr como um riozinho. Curioso com o que era ou significava aquilo, resolveu seguir a trilha até o interior escuro do galpão. Não faria isso se Jota não estivesse perto de morrer de tanto apanhar daqueles dois, mas seus gritos e gemidos, as provocações de Barba e Benê, não... Ninguém decente ouviria uma sessão daquelas sem se incomodar. Enquanto aceitava o escuro tendo a segurança da luz às costas, acelerava para seguir aquela coisa. Mas quando a luz ficou distante a ponto de não o atingir diretamente, o riozinho de fumaça foi se encolhendo em um canto. Então da mesma maneira que se formou a fumaça subiu e se dissolveu no ar. Só aí Siqueira percebeu que a fumaça não era importante, mas sim o caminho apontado por ela. — O que é isso? — perguntou a si mesmo, notando a parede se movimentando. Sim, gênio. Paredes não se movem. Sacou do bolso o celular Galaxy que ganhou da esposa e ainda parecia meio alienígena para ele e tentou lembrar onde, diabos, ficava a luz de emergência. Enquanto ele deslizava os dedos pesados e incompetentes pela tela, a parede que parecia um chapisco vivo começou a chiar. Bem de leve, como um raspar de chinelos no chão. — Maldição — disse sem encontrar o que queria. Atrás, na luz abandonada, os dois capangas tiravam sarro de Jota. — O que é isso aqui? Um dente? O que você acha que é isso? — Barba perguntou a B. Tyson. — Sei lá, vai ver arrancamos um pedaço da mandíbula. Siqueira sacudiu a cabeça, preferindo não ouvir o resto. E ainda teria que ajudar aqueles macacos a se livrarem dos corpos. Pensava em queimá-los em um pedaço isolado de cana que ainda resistia mesmo sem manutenção. Quando a cana queima, leva o que estiver por perto com ela. Deve ser por causa do açúcar, foi o que um cara que trabalhava em uma usina de álcool disse, mas o tal cara não era de confiança. Era desses que dizia qualquer coisa para não ficar por baixo. — Aleluia — resmungou Siqueira, quando encontrou o ícone da lanterna. O cacoete de falar sozinho veio com a profissão de detetive. Possivelmente era culpa de passar tanto tempo sozinho; muitas vezes precisando formular ideias em voz alta para consolidá-las, para que não escapassem sem antes ocuparem um lugar nas estantes de memória do cérebro. Escritores também falam sozinhos, ele tinha ouvido falar. Apertou a tela e depois de um flash cegador direto no olho, apontou a coisa para a parede. — Meu Deus do céu! — disse, e recuou um passo.
A PAREDE ESTAVA forrada de escorpiões. Em um primeiro olhar foi isso o que viu, mas quando apontou a luz pela segunda vez — em vez de correr dali e ser mais esperto —, reconheceu outros insetos. Baratas, larvas, cupins, moscas, todo um ecossistema nojento grudado à parede como se ela fosse feita de cola. Foi quando sentiu o cheiro. Um pus azedo e concentrado, cheiro de podridão e carniça, parecido com o cheiro velho que saía da boca de sua tia avó Ester. Siqueira tinha pena, mas a boca dela fedia como o diabo. A sensação de vômito veio em seguida, o estômago rebelado, a boca cheia de saliva morna. O mais próximo que ele havia chegado de uma infestação como aquela foi pela tevê, em um programa de natureza selvagem do Discovery Channel. Pelo que se lembrava (e certamente não gostaria se tivesse escolha), era a barriga de um cervo abatido. Parecia aquela parede. A carne estava aberta e um rio vivo de larvas e vermes se fartavam da imundice decomposta da criatura. — Ei! — reclamou com uma mosca que zumbiu perto demais. Ela mudou o voo e bateu com tudo contra seu ouvido direito, quando Siqueira abriu a boca para reclamar outra vez, outra criatura (e ele pediu que fosse uma mosca em vez de algo descolado daquela parede viva) entrou por ela. Ele tossiu e cuspiu, mas não viu nada saindo enquanto sua garganta começava a coçar. Desequilibrou-se um pouco e, quando trocou o pé de posição, pisou em algo semissólido. Não era muito resistente e explodiu como um biscoito de vento. A lanterna apagou, e ele ouviu mais dois daqueles crecks até conseguir reencontrar o aplicativo. — Merda! Que merda é essa?! — gritou. O azar é que ninguém o ouviu. Os abutres estavam socando para valer aquele pedaço de carniça fresca chamado Jota Moreno, e o som no rádio colocava Creedance acima de qualquer escândalo. O chão estava tão vivo quanto a parede, eram escorpiões; centenas, milhares. A maioria deles, caramelo, pareciam feitos de açúcar e ouro, mas a verdade é que eram matadores habilidosos. Também havia escorpiões negros, bem maiores e com ferrões eriçados para cima. Entre eles lacraias disputavam espaço, raspando seus pés contra escorpiões menores e mais frágeis. Siqueira deu mais um passo, ouviu de novo aquele som partido. Dessa vez mais úmido, devia ter esmagado um monte deles. — Seus filhos da puta! — disse. Ergueu o pé bem alto para repetir a dose. Ele os esmagava e ria, dominado pela doença humana que nos coloca no topo da cadeia alimentar. Não mexam com os humanos seus insetos de merda! Ninguém tem o direito de foder com um humano a não ser outro humano! Ria de um jeito doente, bastante semelhante ao modo como Tyson-braço-de-lenhador e Barba sorriam depois de cada golpe em Jota. No fim das contas, eles faziam a mesma coisa: livravam a terra de espécies perigosas e inferiores, fáceis de serem esmagadas. Não tão fácil porque no meio daquela dança de Sant Vitus o pé esquerdo de Siqueira patinou sobre a sujeira que acabara de fazer com seu showzinho ridículo de sapateado. Tentou se reequilibrar e o que conseguiu foi deixar o celular cair no chão. Logo depois foi ele próprio. Foi como cair em um chão de pipocas. — Ai! Era a primeira picada. Podia ser de uma lacraia ou de um daqueles escorpiões, mas com certeza foi uma picada. Instintivamente, ele levou as mãos ao meio das costas onde fora flagelado, a mão também foi atacada. Doeu bem mais, doeu como se uma agulha enorme estivesse transpassando seu dedo. — Socorro! Me ajudem aqui! — gritou. Suzie-Q não deixou que ninguém o ouvisse na área iluminada. A música e a sequência de gritos disseram a Siqueira que pelo menos um homem dentro daquele galpão teve um azar proporcional ao dele. — Abaixem o rádio! — gritou. — Me ajud... Desistiu dos gritos quando a lanterna do celular iluminou o teto acima dele. Era bonito, bizarro e ao mesmo tempo irreal. Pelo menos parecia isso aos olhos surpresos de Siqueira. Ele estava apavorado e sentindo calafrios a cada nova picada (e já eram muitas, pernas, braço, pescoço, vários pedaços do dorso). O teto era um mar de aranhas. Um mar vertical que despejava ondas de insetos sobre o chão inimigo. Elas eram enormes e deviam estar de olho naquele monte de insetos. Foram se atirando e encontraram Siqueira pelo caminho. Enquanto ele fazia a única coisa que ainda conseguia — gritava —, as aranhas procuravam maneiras de dominá-lo. Logo não respirava, o corpo entrou em colapso e convulsionou. Siqueira alcançou uma arma em seu coldre torácico e disparou para cima. Ficou feliz quando o projétil explodiu um pedaço da parede e as porcarias que brotavam dela. Então algo o içou pelas costas, levando escada acima a uma velocidade vertiginosa. A voz disse: — Preciso de um favor. NADA DISSO É POSSÍVEL
— Que foi isso? — perguntou Barba quando Creedance parou de cantar depois de um disparo. Respirou fundo e olhou para os fundos. — Detetive? Tudo certo aí? — B. Tyson. Jota começou a rir. Um pouco de sangue escorreu dos lábios. — Vocês estão ferrados — disse olhando para o chão. B. Tyson desarmou o punho que arrebentaria de vez aquele molenga (que não era tão molenga assim pelo visto) e vergou o corpo para a direção dos olhos. Barba aproveitou para respirar fundo. Tinha pelo menos quinze anos a mais que B. Tyson e o dobro de vontade para bater. Foi ele quem arriscou o primeiro palpite. — Diz pra mim que o chão não está se mexendo. — Que merda é aquela? — São cobras, seus filhos da puta, um monte de cobras. A primeira a aparecer, como um maldito líder de esquadrão da morte, foi uma cascavel. Ela se esticou armando um bote e exibiu seu peito fino, recheado de losangos. Esticou o guizo e o agitou. Atrás, outras fizeram o mesmo. Organizadas, eréteis e com os mesmos olhos recheados de hipnose. — Jesus Cristo, como elas entraram aqui? — Esse lugar é maldito, Benê, você conhece as histórias. — Cala essa merda de boca, Barba! A única coisa maldita aqui dentro é esse escroto na cadeira. A primeira fileira de répteis avançou cerca de um metro, atrás delas, dezenas de cascavéis fizeram o mesmo. Elas não se enfileiravam, mas tinham algum tipo estranho de organização. Deslizavam umas sobre as outras, sempre da esquerda para direita. Os guizos se tocavam e vibravam, enchendo de som o galpão. Barba, sem perceber, estava dando passos para trás. B. Tyson não fez isso, preferiu apanhar a arma da cintura e esperar o momento certo para explodir uma daquelas bastardas. Ele as mataria de qualquer jeito, elas estavam em seu caminho, e ele, um cara grande com um cérebro pequeno, não podia suportar isso. Mas o problema maior é que B. Tyson odiava cobras desde os treze anos. Seu avô, a única figura paterna que conheceu com alguma decência maior que a de um macaco, morreu vítima de uma delas, uma Coral legítima. B. Tyson foi quem encontrou o velho. A perna dele estava preta onde foi picada, tão inchada que chegou a trincar perto do tornozelo e dos joelhos. Ainda estava vivo quando o neto, pequeno demais, não conseguiu arrastá-lo. B. Tyson ficou com ele até que o peito parasse de ofegar. — Deixa disso, Benê! Não vai acabar com todas elas! — Eu só quero uma. Quando eu acabar com a líder, elas vão debandar. — Me soltem! Me desamarrem ou acabem logo com isso! — disse Jota. Ele não tinha o mesmo repúdio de B. Tyson, mas com certeza não era fã de alguma coisa que rasteja com a barriga no chão. Barba deu dois passos à frente e colou a arma na cabeça de Jota. Era isso o que aquele merdinha queria, não era? Não era o que estava pedindo? Porque se a intenção era um blefe, não funcionaria com o velho Barba. — Não — intercedeu B. Tyson e golpeou Barba. Com a pancada no antebraço, Barba por pouco não deixou a arma cair. — Não? E não foi isso que o porra do vereador pediu? — Que se foda o que aquele barriga mole pediu, esse filho da puta vai virar comida de cobra. Barba relaxou o braço e concordou. Aquele idiota não merecia clemência alguma depois do que fez com as pobres criancinhas da escola municipal. Ninguém ali era santo, B. Tyson e Barba juntos, tinham no mínimo dez mortes sobre os ombros, mas maltratar uma criança? Não, isso não fazia parte do código de ética dos bandidos malditos. Maltratar um inocentezinho? Matá-lo?! Barba e B. Tyson não conheciam uma palavra que definisse o ato, o mais próximo para alguém que faz isso talvez fosse abominação, e como diz na Bíblia dos homens de bem: toda abominação deve ir para o inferno. Com a desistência de explodir os miolos de Jota, Barba foi cuidar da própria vida e sair daquele inferno. Benê atrás dele, cuidando das cobras que se aventurassem à frente. Elas continuavam vindo, marchando. — Porcaria, isso parece um jogo de Atari. Cobras não agem desse jeito! — Barba disse, sem se importar que ninguém dava a mínima para Ataris e olhando para o tapete réptil que estava bem perto da cadeira de Jota. Ele parecia rendido agora, a surra tinha feito metade do serviço, que o resto ficasse com as cobras. Jota estava tão completamente arrebentado que não reagia mais. Só acabem depressa com isso. B. Tyson disparou em uma das cascavéis a poucos centímetros de Jota. Tão perto que lascas de couro resvalaram em suas pernas. — Tá vendo? Elas não sabem agir sem a primeira da fila — sorriu, e em seguida disparou de novo. O sorriso morreu depressa. Elas continuavam vindo. B. Tyson conseguiu abater quatro cobras da primeira fila que devia ter dez ou doze delas. Imediatamente, as cobras anteriores tomaram seus postos, passando sobre suas carcaças explodidas sem nem mesmo desviar. Os olhos focados no principal agressor, elas estavam ignorando Jota, pelo menos até ali. — Anda logo com essa porta, Barba! Elas estão vindo! — Como posso fazer isso!? A porta tá cheia dessas malditas! Hora de B. Tyson aprender que tudo sempre pode piorar. Não era só o chão próximo à porta da frente que estava recheado de serpentes, elas estavam escalando a porta, pela parede toda, estavam entrelaçadas e se movendo como se compartilhassem o cérebro. Um bem grande e faminto que deve ter nascido na pior metade do inferno. Os chocalhos batendo, e eram tantos que ecoavam pelo galpão. Além das cobras, escorpiões foram surgindo e ocupando os poucos nichos vagos. Baratas fizeram o mesmo, e aranhas enormes e negras pendiam do teto em teias resistentes. — Isso é obra do diabo, homem! — disse Barba. — Animais não fazem isso! Estavam tão preocupados com o zoológico perto da porta que não se deram conta do que acontecia com Jota. Nenhuma das serpentes da primeira fileira o tocou. As demais fizeram isso, mas passaram por ele como um abraço úmido. Roçaram suas pernas, braços, se enrolaram em seu pescoço. Um filhote de cascavel se aninhou entre suas pernas e roçou seu pênis. — Por favor! — disse, tão baixo e desesperado quando podia. A cobrinha não desceu imediatamente, mas acabou fazendo isso quando serpentes maiores passaram por ela. Jota ouvia os disparos de Barba e B.Tyson e tremia, imaginando quem o mataria primeiro: uma daquelas serpentes ou uma bala na nuca. — Acerta elas! — gritou Barba. B. Tyson disparou contra o teto, nas aranhas, e não passou nem perto. Apanhou a cadeira onde Pêra havia sentado antes de cair morto e a destruiu contra o chão. — Agora sim! — disse com um grande pedaço de madeira nas mãos, um taco capaz de explodir aquelas filhas da mãe. Mas eram muitas filhas da mãe, centenas de filhas da mãe, descendo em suas teias como paraquedistas saltando em Normandia. Bateu com tudo em uma delas, e um monte de gosma de aranha, vísceras e coisas que aqueles animais nojentos e adoráveis têm por dentro, voou pelos ares. — Você cuida das cobras! — disse. Dizer era fácil. Que Barba soubesse não tinha as mil balas nos bolsos que precisava para resolver todas elas. Era assim que eles, os caras maus da cidade, diziam sobre acabar com a raça de alguém. Vamos resolver fulano. Era melhor que dizer matar, ou espancar, ou deixar aleijado. Resolver era uma palavra elegante. — De onde elas estão saindo? — B. Tyson gritou quando viu que não conseguiria resolver sua parte do assunto. Ele batia bem, mas a sessão anterior com Jota minou boa parte de sua energia. Além disso, ele precisaria de uma hidroelétrica nas veias para dar conta daquilo tudo. Estavam avançando por todos os lados. Escorpiões, salamandras, baratas. Serpentes pelo chão, pelo alto as aranhas. Não somente aranhas grandes, agora chovia todo tipo de espécies, principalmente venenosas, como os homens do vereador descobririam em breve. Jota continuava sentado, suando e esperando que um daqueles animais frios decidisse alvejá-lo com suas presas. Sentia novamente algo apertado em suas pernas e quando tomou coragem suficiente, esticou seu pescoço e olhou para baixo. Ficou feliz quando viu a calda e não viu um chocalho, mas logo voltou a apavorar-se. A barriga amarela, o formato diamantado da cabeça, o peso. É uma jiboia!?, pensou. Uma merda de jiboia? Era sim e pelo que conhecia dessas criaturas, elas quebravam a perna de um homem como um palito de dentes. Ela apertava o suficiente para fazer doer, aquela droga de cobra era um alicate de pressão, Deus do céu! Perder esperança era fácil, mas quando Jota se preparava para ouvir o estalo dos ossos, a surpresa. Uma das cascavéis se desenovelou do grupo e deslizou para perto da cadeira. Como você é grande, pensou Jota quando a viu crescendo verticalmente. Tinha mais de dois metros. Os dentes estavam úmidos, o sibilar era fraco, porém decidido. Ela estava avisando a colega, orientando que aquele pedaço de carne não seria seu, ou ao menos, não seria ainda. Isso colega, fala com ela, mostra quem manda. Seria fácil demais... A jiboia não estava disposta a abrir mão daquela briga. Ao contrário, ela apertou bem mais, fazendo a boca arrebentada de Jota se encher de saliva nova. — Ah, meu Deus! Acaba logo com isso! A essas alturas a dor era tanta que restava apenas o fim, o estalo do osso e jorro de sangue, isso excitaria o resto daquelas malditas. Não foi o que aconteceu. Como quase sempre ocorre no reino animal, a insubordinação foi punida com a morte. A cascavel se eriçou um pouco mais, seu guizo se sobressaiu aos demais como um chocalho xamã, então veio o bote. Não só o bote, mas um arrastar de presas que cortou o couro da inimiga como não seria natural acontecer. Mas o que era natural em uma situação como aquela? Cobras, escorpiões, salamandras? Não, seria mais natural um filme de Oliver Stone. A jiboia tentou adiar a derrota apertando um pouco mais o abraço, tendões se esticaram ao ponto de ruptura. Os músculos, não sabendo direito o que fazer, começaram a tremer. — Solta, filha da mãe teimosa! Obedeça a sua chefe! Soltou sim, mas só depois da aproximação de mais duas cascavéis. A líder se enrolou sobre ela e procurou pelo rosto de Jota. Ele pode observá-la bem de perto. Era uma cobra velha, com escarificações de guerra no corpo, uma bem no topo da cabeça, como se alguém tivesse apagado um cigarro bem ali. Não havia tempo para comemoração, e um grito agudo de Barba refrescou a memória de Jota. — O que aconteceu aí? — gritou B. Tyson. — Um desgraçado me picou! — respondeu Barba, estapeando o próprio rosto. — Um desses escorpiões de merda! B. Tyson deu pouca ou nenhuma importância. Tinha motivos mais sérios para se preocupar. As cobras estavam mais perto e não havia liderança à sua frente. Era um carnaval de escamas beges e douradas se misturando, guizos chacoalhando no ar, enchendo os ouvidos de pânico. B. Tyson estava de novo com a arma na mão, o pedaço de cadeira na outra, servindo bem à tarefa de aniquilar aranhas. — Não tá dando certo! — disse Barba. Seu rosto doía tanto que mal podia articular as palavras, o interior da pele trançado com fios quentes de metal, costurando a carne por dentro, sobrecarregando suas terminações nervosas. — Elas estão fazendo alguma coisa — disse B. Tyson, depois de golpear uma aranha das grandes. Ela não era negra, mas marrom, agora era uma mancha de gosma peluda. B. Tyson tinha razão. De repente a parte de cima, uns dois metros acima dos dois e outros dois abaixo do teto, estava repleto delas. Um mar de aranhas e teias prontas para o ataque final. As cobras chegando mais perto, rolando pelo chão como um espaguete vivo. Escorpiões emergiam entre elas, escorpiões como o que ferrou com o rosto de Barba. — Tá doendo, cara. Ele me pegou! — Para de reclamar feito uma frang... Parou de falar quando o viu. Não entendia muito de escorpiões, não entendia nada além de eles serem venenosos e se matarem quando alguém os coloca em um círculo de fogo. B. Tyson não foi capaz de entender como um bicho tão pequeno foi capaz de estragar Barba daquele jeito. — Seus olhos, cara, tá enxergando alguma coisa? — Qual é Benê, tá me tirando? Tirando nada, o rosto de Benê estava mais deformado que o de Jota cuja cadeira acabara de tombar. Os olhos quase fechados, o lado direito edemaciado; mesmo com a barba cerrada dava para ver. Ele não tinha tomado uma única picada, não mesmo. Jota soltou um grito abafado, e B. Tyson sequestrou um tempo para rir. Gostou de ver aquele desgraçado se dando mal, ninguém seria capaz de fugir de um mutirão de cobras irritadas. Elas eram tantas que logo soterraram a cadeira e o safado grudado nela. O corpo de Pêra estava na mesma; aprofundado nos répteis, com a sorte dele estar morto. — Estão muito perto! — repetiu Barba. B. Tyson diria alguma coisa, provavelmente o mandaria calar a boca, mas antes disso as aranhas resolveram descer. Todas elas. Então, como um milagre bíblico maldito, estava chovendo aranhas. E elas desceram aramadas, se emaranhando nas roupas à procura de um pedacinho de pele nua onde pudessem espetar suas quelíceras cheias de veneno. Em menos de um minuto, apesar das tentativas de rechaçá-las, os dois capangas de Torque estavam cheios delas. Barba tinha problemas mais sérios porque os malditos pelos de seu rosto permitiam que elas não escorregassem ao chão. Atrás delas, enquanto os dois ainda gritavam sentindo a pele perfurada em inúmeros pontinhos, cascavéis e escorpiões alcançaram seu objetivo. Um dos escorpiões, mais esperto que os outros, encontrou uma brecha na calça de B. Tyson, logo acima do tornozelo. Entrou e o ferrou na batata da perna. Ele gritou, mas enquanto tentava arrancar a calça e acabar com o bastardo, chegou a vez das cascavéis. Elas fizeram sua parte, com B. Tyson e também com Barba, trabalharam tão bem que quando terminaram não haveria como reconhecê-los sem a ajuda de um dentista. O chão do galpão pertencia às pragas, parte do teto também. E elas só saíram dali quando completassem seu objetivo. Não demoraria nada... HORA DE DORMIR EM CASA (?)
Depois de dias de cativeiro, finalmente Patrícia enxergava alguma chance de sair daquele buraco imundo. Seus braços estavam livres, mas Lobo, não tão incrivelmente burro quanto ela pensou, prendeu suas pernas com correntes e com um RTA (recurso técnico alternativo, também conhecido como gambiarra) feito a partir de um velho cinto de couro. Nada muito apertado, porque Lobo estava gostando um pouco da filha da prefeita — como gostava de toda mulher que desse bom-dia a ele. Lobo também levou um balde amarelo de massa corrida vazio para que ela fizesse suas necessidades, também deixou meio rolo de papel higiênico — certo, como ela conseguiria chegar ao balde era outro detalhe... Patrícia pensou em quase tudo, mas ainda não tinha calculado como conseguiria passar pela primeira porta de saída. Parecia forte, mas era velha, e tudo o que é velho tem um pouco de ferrugem. Se ela tivesse a força de um homem talvez conseguisse, mas não com seu corpo de Sandy-Xororó. Mas ela não precisava ser forte fisicamente, sua tia-avó que era ligeira como toda mulher mineira, dizia que uma mulher precisa ser inteligente ou bonita, a força não é pré-requisito para nada, força deve ser feita por homens enquanto as mulheres ficam bonitas e têm filhos. Para sair dali ela precisaria antes soltar as pernas e não, ela não tinha nenhum grampo mágico nos cabelos — e mesmo que tivesse, não era nenhum MacGyver para saber usá-lo, aliás, Patrícia Guerra nem conhecia “O Cara” além das piadinhas na internet sobre ele não conseguir arrumar o próprio carro. Qual é, garota? Você é mais esperta que aquele retardado. Bem, não que fosse muito mérito ser mais esperta que Miguel Lobo, uma taturana selvagem era mais esperta que ele. Olhou para os pés e forçou o corpo para frente, doeu para caramba. — Porcaria! Melhor tentar outra coisa. Puxou a fivela com os braços, mas aquele corintiano retardado tinha feito um bom trabalho. Como todo doido sempre faz. É... Talvez ele não fosse retardado, mas somente doido. Um coitado. Como é? Você está mesmo com peninha dele? Do cara que meteu um pano cheio de lo-ló em sua boca e trouxe você para o inferno? Ah, garota... Você não é daquelas nojentas com síndrome de Estocolmo que acabam transando com o sequestrador. Se pelo menos o sequestrador fosse um fofo como o Davi, talvez fizesse isso, mas aquele cara? Nem ferrando! O imbecil devia comer cocô de nariz! Tentou com as pernas outra vez. As correias eram feitas de cintos comuns, cintos de couro que aquele imbecil usou até gastarem. Eles não tinham muita cor perto das fivelas. Estavam cinzentos e trincados. Ele passou cadeados pelo meio deles e... — Ele colocou duas camadas de couro. De fato não era tão burro. Com as duas camadas de couro, ela não conseguiria rasgar o tecido com a força das pernas. Além disso, ele a amarrou no tórax, de um jeito que seus braços não chegavam às pernas. Ainda não chegavam. Patrícia olhou para trás, para a parede cheia de chapiscos. Ainda, sua melhor chance. Apoiou os braços no assento, respirou fundo e saltou. Acabou saltando forte demais, alto demais. — Opa! — disse, abrindo os braços para não tombar. A cadeira gingou de um lado para o outro, Patrícia jogou o corpo na direção oposta a tempo de inverter o movimento. O coração acelerou de repente, e ela precisou respirar fundo, três, quatro vezes, para parar de tremer. Resolveu bem pouco. Suas pernas, seus braços livres, até seus lábios tremiam. Pensou que talvez fosse hipertensa como Miriam. Mamãe descobriu isso em sua gestação, também descobriu diabetes e que seu bebê era incrivelmente grande (quase cinco quilos) para uma menina, e precisou de uma cesárea de emergência. — Vamos lá, garota. Não é hora de ficar histérica. Outra respiração, o corpo arqueado para frente, quatro pés da cadeira fora do chão e um salto perfeito. A aterrisagem também foi boa, o que a motivou a repetir o movimento por mais três vezes. Estava perto do objetivo, bem perto mesmo. O único detalhe é que, com os novos saltos, a cadeira acabou ficando de lado para a parede — precisaria ficar de costas para sua ideia brilhante ter sucesso. Mas tudo bem, depois dos últimos saltos, o que poderia dar errado? Era só colocar as mãos embaixo da cadeira, usar os músculos do abdômen, e PULO! Foi o que fez, mas Patrícia não contava com um chão apodrecido embaixo dela. O salto e um giro no ar, a ginga do corpo como um lutador de capoeira, tudo tão perfeito quanto sua ideia de fuga. Foi sim, e é uma pena que uma das leis sobre os sequestros é: nada é perfeito. Aquela historinha de movimentos sincronizados de Treze Homens e Um Segredo — e outro, e mais um segredo — é bem bonitinha, uma pena que nunca funcionaria na vida real. Na vida real a manobra foi um bosta. A perna traseira da cadeira — direita para quem olha de frente — acabou furando o concreto vagabundo e se enterrando uns seis centímetros. Mixaria suficiente para desequilibrar a dona da nave. Outra vez senhorita confiança excessiva tentou reequilibrar-se, Hello Houston, we have a fucking problem, man! Foi com tudo para o chão. Tentou um giro que não saiu e, pouco antes da colisão, lembrou que bater a cabeça e sangrar até a morte não resolveria seus problemas. Patrícia retesou o pescoço e as costas, jogou a cabeça para cima e tentou amortecer com os braços. O chão chegando mais perto e então o impacto, tão forte que uma lasca de madeira voou longe. — Ahhhiiii! — gritou. Gritou bem alto, e seus olhos ficaram cheios de dor. A lasca restante dos pés da cadeira acabou enfiada em sua perna, uma porcaria estilhaçada furando a carne. No mínimo, cinco centímetros. O sangue jorrava, o cheiro de poeira úmida (umedecida com o sangue que escorria dela) começou a ficar mais forte. Patrícia sentiu-se a mulher mais burra do mundo todo. Deus, como aquilo de gastar as tiras que prendiam seu tórax à cadeira poderia dar certo? Ainda mais de costas? Sua perna queimava, mas já não doía tanto assim — e claro que essa sorte não duraria. Assim que a adrenalina das veias parasse de correr, a dor voltaria com tudo. Sangue novo escorria pra valer e aumentava a pequena poça do chão, outro motivo forte para sair dali enquanto tinha energia. — Ah! Deus! — gritou quando tentou mover a perna. De todo modo, não foi um esforço inútil. Com o movimento, descobriu que a lasca vinha de uma das partes que sustentava a cadeira. Se ela aguentasse firme, se conseguisse se mexer só mais um pouquinho, teria uma chance bem melhor do que se esfregar de costas na parede rústica da sala. Calminha, você consegue garota. É a filha da prefeita, não é? — Sou sim — disse, sentindo suor e lágrimas escorrerem para o chão. Tentou o mesmo movimento e sentiu a mesma dor, e tudo bem com isso, poderia sentir dor até quase perder a maldita perna se aquilo a tirasse do calabouço. Agora pensava em Lobo, no desgraçado com uma meia na cabeça. Queria arrancar seus olhos, pisotear seu saco sujo até que tudo o que saísse dele fosse o sangue espesso que sobrou das bolas. — Eu consigo! — gemeu. — Eu vou conseguir. Suas costas doíam. O ombro direito acertara o chão com tudo, não estava quebrado, mas doía bastante. Por sorte não estava arruinado, porque Patrícia precisaria daquele braço para agitar a cadeira e escapar. — Mais uma vez — disse. Em seguida outro grito. Sentiu algum tecido intacto sendo rasgado. Não viu, não conseguia ver a parte da panturrilha que estava perfurada. — Dá pra doer menos, porcaria de perna? Olhou para baixo e precisou suportar mais um pouco de ardência e dor até enxergar o ponto certo. O pescoço girou o que podia e, enfim, conseguiu. Não era exatamente uma boa notícia. — Eu não acredito... A lasca também estava presa entra as duas correias do cinto velho que servia de corda. Isso explicava a dor profunda a cada pequeno movimento. Como sair dessa? Tá certo, não vou sair desse chão, não adianta, mas... Mas ainda podia forçar para baixo. A lanceta de madeira iria ferrar com a perna, ok... Mas sejamos práticos: era sua melhor chance. Patrícia não respirou fundo dessa vez, preferiu acelerar o tórax e deixar o oxigênio em excesso fazer sua mágica entorpecente. Ela não precisava de calma, ora essa! Precisava de um banho de raios gama! Um, dois... Ai, meu Deus, me ajuda tá?, pensou. Eu não sou uma garota ruim, você sabe. Eu nem tive tempo para isso. — Três! — gritou. Sentiu duas coisas: uma dor terrível e seus pés voando soltos. Deu mais dois trancos daqueles sem nenhuma dor profunda. Suas pernas estavam livres. Agora, preciso levantar. Ainda estava presa à cadeira, pelo assento e pelo tórax. As pernas de trás da cadeira ainda estavam por lá, as duas pernas da frente, arrebentadas. Os pedaços de couro dos cintos, caídos no chão, como duas cobras que desistiram das peles. Patrícia olhava para elas de onde estava; do chão. Tentou levantar, arremessando os joelhos contra o chão cimentado e depois caindo de lado. Bateu a maçã do rosto e ralou a pele. Os braços se preocuparam apenas em não piorar a ferida da perna com uma nova queda. A cadeira ainda tinha o assento e a parte de trás; tórax e bumbum presos. Não dava para simplesmente sair andando. Mas... Posso engatinhar... Andar como um cachorrinho. Foi isso o que fez. Patrícia espalmou as mãos no chão, eriçou o bumbum sem forçar o ângulo formado pela cadeira e andou até perto da parede. Agora podia partir para o plano B — gastar aquelas malditas cordas que a prendiam pela barriga. Foi engatinhando até a parede mais irregular da sala. Antes do Plano B, olhou para o sangue que se acumulava depressa no chão. Era melhor andar depressa, uma infecção parecia mais provável que fugir daquele inferno. Conseguiu ficar quase de pé. Colou a parte de trás da cadeira na parede e forçou as cordas contra ela. A perna lá embaixo ardendo pra valer, os músculos doíam. Aquela porcaria de lasca parecia estar fora da perna. Mas não dava para saber, se, antes de sair, aquele pedaço da cadeira deixou uma lembrança. Parecia que sim — se bem que, Patrícia não tinha referenciais para uma dor como aquela, sua vida de filha da prefeita não a preparou para nada mais forte que uma bomba no vestibular (Deus sabe que nem para isso...). Suando frio, seus intestinos não estavam em ordem, o rosto ardia. — Desiste, cadeira de merda! — disse, se balançando como o pêndulo de um relógio. Não conseguia ser muito precisa e as costas já estavam raladas e doloridas. Acertou também a parte de trás da cabeça. — Mais um pou-qui...nho! — gemeu. As mãos estavam segurando as cordas e empurrando para frente. Havia muito pouco espaço para trabalhar, o suor corria em bicas empapando os cabelos contra o rosto. Ela devia estar horrível, realmente horrível. Essa era a única sorte de um sequestro muxiba como aquele, podia ficar feia à vontade. Pensou em Davi a enxergando como estava agora. Depois em Stela, rindo e beijando o Davi, o abraçando... Aquelazinha! Foi com raiva vindo à tona que a primeira corda cedeu. O resto veio com as mãos. Com paciência, Patrícia se livrou das cordas e depois do assento. Chorou um pouco com a tensão indo embora. E perdeu muito tempo sentindo pena de si mesma. Ela ainda precisava sair dali e, além disso, havia sua perna. Um pedaço de madeira ficou mesmo para trás, soterrado, inacessível a menos que ela o arrancasse abrindo a pele (sim, ideia genial morrer sangrando na estrada de volta para casa). Decidiu que a perna ficaria como estava. Patrícia a forçou contra o chão e sentiu dor, mas nada que a impedisse de andar — achava isso. Olhou para a porta da frente e respirou fundo. Tinha uma porta de aço para encarar. ABENÇOADO SEJA
— Misericórdia, parece que até Deus entrou de férias... — resmungou Galileu Sultão. Era costume em sua família, um costume muito pouco usado por ele, pedir proteção antes de uma guerra, e era isso que Sultão tinha em mente. Lá dentro, nos confins doloridos e surrados de seu cérebro, a imagem de Milena clamava incessantemente por ele. Não a garota adulta que ela se tornou, mas uma garotinha com sonhos limpos e doces. Seu primeiro olhar, diferente dos bebês homens, era cheio de ternura. E ela o olhou nos olhos assim que saiu da manta ensanguentada da pediatria. Depois ela cresceu um pouquinho e ficou esperta, Deus, como ela ficou esperta. Galileu ainda não entendia como Milena perdeu essa inteligência e se meteu em uma enrascada daquelas. Agora ele tinha um trapo em casa substituindo a esposa. O que restou dentro da residência dos Sultão foi só isso: dor, revolta e a necessidade de se vingar de alguém. Ainda assim ele acreditava em Deus. No Deus irresponsável que de uma maneira desprezível permitiu que Roger Minotto fizesse o que fez com ela. Toda aquela sujeira, sexo e sangue. Ele não via uma mulher de bem, não foi o que viu quando visitou o corpo no necrotério. Trataram sua filha como uma rameira, uma prostituta. O que lhe restava agora, e julgava ser de seu merecimento, era a benção do Deus tortuoso dos homens para fazer justiça com as próprias mãos. — Padre! — gritou, socando a porta da frente. A madeira tremeu entre seus dedos sem causar nenhuma dor. De fato... Havia algum espaço para sentir dor? Ninguém respondeu de dentro da igreja. O que era estranho, visto que as luzes ainda escapavam pelos vitrais coloridos que estampavam o que aquele Deus estranho permitiu ao seu único filho chamado Jesus. Mais estranho ainda eram aquelas mesmas luzes acesas tão tarde da noite. A igreja foi a segunda parada de Galileu, antes, ele foi até a casa do padre. A cidade estava mesmo enlouquecendo. Sultão ouviu histórias antes de chegar à igreja matriz, todas elas esvicerantes e tão ou mais malditas que a sua. Ouviu sobre o hospital da cidade onde, pela primeira vez em anos, nenhuma criança nasceu ou chorou. Segundo Sara, enfermeira chefe da neonatal, eles pareciam vidrados e assustados. Não choravam sequer durante o banho ou quando tinham seu sangue retirado para os exames de rotina. Sara, que era muito religiosa, arranjou uma explicação prática. Disse que eles não choravam porque sabiam sobre o que acontecia na cidade. Disse que eles têm um elo maior e mais resistente com o outro mundo, desse modo eles sabem coisas que os homens e mulheres crescidos não sabem. — Tem alguém aí? — gritou mais uma vez, já desesperançoso em receber respostas. A noite soprou mais fria sobre ele, sem conseguir refrigerar sua alma. Galileu incendiava. Memórias vinham torrencialmente. Planos de um futuro possível vasculhavam brechas para inundar sua alma de dor. Bolas, ele queria um neto, como poderia ter isso agora? A mãe de Milena havia ligado trompas há muito tempo, e ele não tinha condições ou vontade de arranjar uma nova esposa. Roger tirou tudo o que ele tinha. Seu pai, aquele maldito arrogante que reza para o dinheiro enquanto empresta favores do demônio, também não teria mais um filho em muito pouco tempo. E ele faria com Roger o que foi feito de sua filha. Colocaria coisas dentro dele, abriria sua garganta, limparia seus pés em cima da carcaça. E ainda assim seria pouco. Bateu à porta mais uma vez. Um pouco do eco de dentro vazou para fora enquanto ele colava os ouvidos no carvalho da entrada. A guardiã era como o padre lá dentro, alguém capaz de celebrar velórios e batizados sem mudar o tom de voz. — Sultão? — perguntou alguém às duas costas. Galileu girou sobre os calcanhares e empunhou o revólver que trazia na cinta. — Padre? Santo Deus, padre. Quase me matou de susto. — Ninguém morre antes da hora, Galileu. O que o traz a casa de Deus? — Podemos entrar? A figura do padre enrugou um pouco. Ele parecia diferente sob a luz fraca do poste de iluminação. Um pouco sisudo e ereto, com um orgulho que não costumava ter. Também estava sem o colarzinho branco que todo padre usa no pescoço. Sultão pensou em perguntar sobre isso, mas imaginou que aquele homem também estivesse cansado. — É algo que não podemos tratar aqui fora? Eu já tranquei tudo — bocejou. Seus olhos negros voltaram a sair das pálpebras e brilharam o reflexo da luz distante. — Quero sua benção, padre. — Eu já o abençoei, homem. Como fiz com a cidade toda. Mas o que tem em mente? É algo relacionado à sua Milena? Foi impossível para Sultão não apertar as mãos até que tremessem um pouco. Ouvir falar de Milena nos últimos dias ativava seu velho vulcão adormecido. E adormecido seria um enorme exagero. Seu vulcão particular estava apenas cochilando, em vigília na maior parte do tempo. — É sobre ela sim, padre. Vou buscar a justiça que ninguém me deu. O senhor já deve saber do que estou falando. — Ele foi solto, o Roger... — Quero que ele pague pelo que fez e não vou esperar o reino dos céus para isso. Quero sua benção, padre. — Para matar um homem? Não sei se posso faze... — Quero sua benção para fazer justiça. E se não puder fazer isso, vou continuar do meu jeito. — Calma, homem, tenha calma. Ninguém vai tomar seu direito. Sultão rasou os olhos quando ouviu isso. O padre provavelmente era o único da cidade, além de Luciano, a endossar sua proposta. Sultão limpou os olhos em seguida. Não deixou de achar estranha a falta de insistência do padre em demovê-lo daquela ideia homicida. Tanto que perguntou: — Existe pecado no que vou fazer? — O pecado sempre existe nesse mundo, e eu não sou ninguém para julgá-lo. Meu senhor colocou em minhas mãos a possibilidade absolvê-los. Vou dar sua benção, Galileu. Se já pensou em tudo e nas consequências, está pronto para ser abençoado. Ajoelhe-se. Sultão guardou a arma na cintura e obedeceu. Sentiu um longo arrepio, daqueles que eriçam até os pelos da barba, e baixou o rosto. Seus olhos rasaram de novo, e ele deixou que as lágrimas caíssem dessa vez. Juntou as mãos sobre o colo e aguardou pelas palavras do padre. — Sinta-se abençoado para ouvir seu coração. Quando Sultão se concentrou na palavra de Deus e nas orações que conhecia, o padre retirou as mãos. Na árvore mais próxima, uma árvore de jambolão, morcegos deixaram o descanso e voaram para longe. Galileu ouviu seu silvo e apertou mais as mãos em oração. Quando enfim abriu os olhos, o padre não estava mais lá. Ele olhou para as luzes da igreja, elas continuavam acesas. Passou a mão pela porta, notando algo que não havia reparado quando bateu pela primeira vez. — Cupins. SEU DEUS ESTÁ MORTO
Sultão saiu com o peito cheio de coragem, e o falso padre que o encheu com isso, voltou a ser quem realmente era. Um dos tantos que realmente era. Dessa vez a roupa escolhida foi a de um homem de cabelos claros, barba cerrada de uns dois centímetros, e um olhar complacente acariciado por olhos verdes. O nariz pronunciado, o corpo alto e bem fortalecido. Usava um terno cinza, caro demais para Nova Enoque, camisa também escura, nada de gravatas. Sapatos polidos e reflexivos nos pés. Tocou a porta da igreja e as portas se abriram sem esforço visível. Estevão continuava caído perto do altar. Um pouco de sangue no chão, uma mosca lambendo seus lábios que ostentavam uma expressão de paz que não duraria muito tempo. A maneira escolhida para acordá-lo foi um rápido movimento do estranho com os dedos. Feito isso, a estátua do Jesus açoitado do altar veio abaixo, uma torrente de gesso colorido encheu de sons a igreja, enquanto Estevão acordava e se sentava massageando a cabeça. Olhou para o visitante e tentou reconhecê-lo. De fato o fez, mas não fisicamente. A urina ameaçando descer de sua bexiga fez isso por ele. Aquele estranho era o mal que, de alguma maneira, estava encarnado. — Pesadelos, Padre Estevão? Depois de checar o sangue que vinha da parte de trás da cabeça, o padre o encarou com receio. — Quem é você? Talvez fosse um anjo. Estevão nunca estivera na presença de um. Anjos são criaturas estranhas, sempre com as asas sujas de sangue, sempre conspirando aos pedidos de alguém. Se tivesse que dizer a verdade, Estevão diria que um anjo nunca traz boas notícias. Mesmo quando eles vêm para ajudar, só o fazem porque uma desgraça terrível se abateu antes disso. — Sou alguém que o quer fora do caminho. Anjos? Não... De jeito nenhum. — Como entrou aqui? Na casa de Deus? — Não seja idiota, padre. Deus não tem casa. Essa construção esnobe serve apenas a um propósito: o coração sujo da sua igreja. Caminhou para mais perto, seus sapatos faziam um barulho suave e ritmado. Chegou ao lado do homem e olhou com desprezo para a pobre criatura. — Tenho notícias ruins — disse. — O que sai de sua boca não me interessa. — Mesmo? — sorriu. Os dentes brancos e rigidamente posicionados deram a ele uma sinceridade que não tinha. — Mesmo que se trate do seu irmão? Daquele pulmão cinzento que já devia ter murchado faz tempo? — O que fez com ele? — perguntou um pouco ofegante. Seu próprio pulmão parecia discernir que o ar dividido com aquele homem não prestava. — Eu? Eu nada, Estevão. Quem fez foi seu Deus. — Lave essa boca para falar o nome de Deus. Você não é digno de estar, sequer, entre seus inimigos. Estevão tentou se levantar, mas o estranho com olhar angelical fez outro daqueles movimentos com as mãos. Estevão sentiu seus ossos impulsionados para trás, sentiu a madeira do banco esmagando suas costas, verteu um pouco de sangue pelos lábios. — Seu Deus é um doente, padre. É uma criança com uma arma nas mãos. Como ainda não enxergou isso? Como vocês, tantos anos à frente da civilização que pariu essa religião medíocre, ainda não perceberam? — Deus é amor. Uma gargalhada debochada e com resquícios de catarro encheu a igreja. — Uma criatura que sujeita seu próprio filho a ser imolado como um carneiro? Amor? Padre, vou contar um segredo... Eu conheci uma prostituta chamada Isabel que tinha bem mais amor que o seu Deus. Como pode se sentir amado? Um homem formado, agindo como um eunuco, desejando secretamente que seu pênis encontre a fenda de algum garotinho para não tocar uma mulher. Chama isso de amor? — Não blasfeme — pediu sem convicção alguma que seria atendido. — Eu classifico como tortura. É só isso que a criatura que você reconhece como criador sabe fazer. Brincar com os homens, tratá-los como um rato dentro de um aquário de serpentes. E digo mais, padre... Se o seu Deus é assim tão poderoso, onde ele está agora? Se masturbando? Ou quem sabe ele esteja respondendo às orações de algum doente religioso carregado de bombas na cintura. — O que você pretende? O que pretende vestido como um homem? Você não é um homem, demônio! — Não... Infelizmente não. Não mais. Caminhou e se agachou perto do padre. Apanhou uma pedra violeta do bolso e olhou para Estevão. Os olhos verdes e bonitos disseram que o fim estava próximo. — Você e a velha bruxa vão ficar fora do meu caminho. Já se meteram demais. Padre, homem, se você tivesse metade da inteligência e o dobro do juízo dentro dessa cabeça branca jamais teria voltado para Nova Enoque. Olha só o que ganhou com isso... Um irmão morto com os olhos bicados pelos pombos que não encontraram nenhuma comida em suas mãos. — Deus... — lamentou Estevão. — Eu não queria fazer aquilo com o pobre Julius. Ele era bem menos burro que você, santidade. Ele conheceu mais bocetas que você sonhou na vida, e conheceu alguns pintos também. — Cale-se! — Oh... Machuquei você, padre? Esticou os braços com a rapidez de um coelho e agarrou o pescoço de Estevão. Sentiu o suor nascendo do medo e chegou mais perto, querendo sentir seu cheiro e seu sabor. O medo, o melhor e mais poderoso sentimento humano. — Seu irmão estuprou uma garotinha, padre. Fez isso enquanto você era ordenado e se vendia para a igreja. Mas claro que você sempre soube dessa parte. As veias de Estevão, sequestradas no pescoço, incharam depressa. O rosto ganhou uma coloração azul e cianótica, os lábios perderam a cor. Quando Estevão estava bem perto de perder a consciência — e ele queria, ansiava por isso —, o estranho o soltou. — Você o perdoou, não foi? Usou do que a igreja o ensinou e o perdoou em nome do seu Deus retardado. Eu não esperava outra coisa de um sacerdote hipócrita. — Por quê? — ofegou. — Por que está fazendo isso com a nossa cidade? Outro riso nasceu nos dentes brancos do oponente. — Você vai ter que perguntar para o seu Deus. Sabe o que ele faz com pedidos e preces, padre? Ele usa contra vocês. Seu Deus é um banqueiro. Estevão ofegou e não conseguiu muito ar de volta, sua nuca estava latejando, os olhos ganhando pontinhos coloridos que sinalizavam o fim da linha. Ele não tinha muito tempo e sabia disso. Então orou em seu silêncio desesperado: Pai, eu nunca fui contra tua obra, sempre fiz a sua vontade e se errei, não foi por omissão. Eu apenas acreditava que era a coisa certa a fazer. Nossa cidade não merece esse mal, pai. Nós não merecemos ser subjugados às asas dessa criatura. ME AJUDE, DEUS! Ajuda-me contra esse mal! — Acha que seus pensamentos estão seguros, capelão? É isso que sua cabeça branca pensa? Posso ler o que escreve antes de pegar o lápis, seu porco. Em um sacrifício de fé, em uma última muleta religiosa, Estevão procurou pela imagem de Virgem Maria que ficava à sua esquerda, estava bem atrás do homem-demônio de olhos verdes. — Ela? A mulher? Oh, padre. Pensei que o seminário tivesse ensinado o quanto ela vale. O hálito pantanoso e apodrecido do agressor chegou forte às suas narinas. Estevão agradeceu por conseguir respirar tão pouco. Era um odor horrível e escurecido. Uma brisa de angústia e desalento. Respirá-lo era arfar da morte mais lenta e dolorosa possível. Estevão focou ainda mais nos olhos da estátua, procurando uma brisa mais leve, um sopro que o levasse para longe da entidade. — Isso mesmo, olhe para ela, boçal. A imagem chorou sangue, esse foi o primeiro pensamento de Estevão. Foi só prestar mais atenção para notar que o fluido tinha bem mais de marrom e negro do que de vermelho. O cheiro giárdico logo tomou conta do resto. — Sua santa chora merda, desgraçado! Merda! — N-ão — suspirou. E não era o fim do horror. O demônio de olhos verdes tinha mais para mostrar. Do vestido claro, da parte pélvica onde devia estar anatomicamente a vagina, um líquido avermelhado, grosso e cintilante começou a brotar. Aquilo escorreu pelo manto e começou a respingar pelo chão de granito da igreja. As velas, dezenas delas, se acenderam e voltaram a apagar. O cheiro fétido de fezes e sangue ficou mais forte que o hálito cinicamente risonho do estranho. — Olhe sua virgem, sacerdote. Olhe para aquela que deveria ampará-lo. Diga agora; se ela não cuidou do próprio filho, se o seu Deus esnobe não cuidou dele, o que ele faria por você? — Vai pa-gar... por... — Ela está menstruando padre, está abortando o filho condenado do seu Deus maldito. Com tanto esforço e sufocamento, a garganta de Estevão parou de lutar, como seu corpo todo. Suas pernas se agitaram brevemente e seu tórax relaxou. A morte, a dama maldita, era bem vinda. — Ainda não, desgraçado — trouxe-o de volta. — Sua cidade e seus homens são tão sujos quanto seu Deus. Seu Deus do holocausto que não se importa com nada além do seu umbigo celestial. Um pouco de nervosismo apareceu no semblante calmo e atracado do homem. O queixo do estranho tremeu como se fosse possível que ele chorasse com sinceridade. Não durou muito. — Ele, seu Deus, deixou injustiças demais dormirem nesse pedaço apodrecido de chão. Sua amada Nova Enoque não passa de um terreno amaldiçoado pelo tempo, corrompido por sua gente doente. E ele, seu Deus, permitiu tudo isso, como permitirá o resto. — Não — ofegou. — Ele vai puni-lo, vai cuidar do seu rebanho. Ninguém escapa da justiça divina, seu monstro. O estranho riu e mostrou seus caninos protuberantes. — Tem razão, capelão. Tem toda razão. Do alto da nave, um enorme lustre de cristal e bronze tilintou. Estevão olhou para cima e apoiou os braços no chão. Depois os pés para que pudesse correr antes do que esperava acontecer. O estranhou girou os dedos e junto com eles, os joelhos do padre. O estalar dos ossos foi tão alto que suprimiu o primeiro pedaço de teto que veio ao chão, junto com um dos fixadores do lustre. — AH! DEUS! — gritou. Os joelhos estavam arruinados, tão arruinados quanto sua fé. Ainda assim, Estevão cruzou as mãos e clamou por uma intervenção. Sequestrou toda fé que ainda tinha na alma; imagens de cada cerimônia que celebrou naquela igreja, os sorrisos das crianças e a esperança dos noivos. Evocou a vida após a morte das dezenas de despedidas fúnebres que celebrou. Mas Deus parecia não se importar. A imagem da virgem tombou e explodiu em cima de excrementos e sangue. Dela saíram escorpiões, baratas e as larvas brancas que comumente habitam cadáveres. Então uma explosão no teto. Um pouco de cal e concreto disseram que era o fim para Estevão. Ele pensou que talvez aquela aberração de olhos verdes tivesse razão. Se Deus abandonou seu próprio filho, o amor encarnado, que valor teria um humano? MÃE? VOCÊ ESTÁ AÍ DENTRO?
As ruas do subúrbio pareciam movimentadas na noite que caiu mais escura que as outras. Era como se soubessem, como se as desgraças da vizinhança mostrassem a todos que o tempo de sorrir e ter esperanças havia chegado ao fim. Lobo tomou conhecimento de alguns desses casos pouco antes de convencer Nora Lobo a sentar- se no sofá em vez do chão. Havia um carteiro na rua, senhor Gilberto Brisa. Um homem alto e calmo na maior parte do tempo, daqueles que para morrer de repente levariam uma semana inteira. Também havia o velho Ernesto (um pracinha que passava seus dias em um banco de concreto em frente à sua casa). Foi esse último quem contou a Lobo que depois de Gilberto chegar em casa, ele encontrou a esposa, Marta Brisa, enforcada na cozinha. Ela deixou uma carta o convidando a fazer o mesmo já que seus anjinhos (um garotinho ruivo de seis anos e uma garotinha de dois) foram para o Papai do Céu minutos antes dela. Gilberto não chegou a descê-la da corda, ele foi atrás dos garotos. Encontrou os filhos na banheira, de bruços. Havia pétalas de rosa sobre eles e sobre a água. Gilberto então foi até o telhado com sua espingarda (herança do pai, militar morto em serviço há vinte anos) e acabou com a própria vida. Duas casas depois, praticamente na frente da casa dos Lobo, os cães da família Lorca (dois filas, Trovão e Tempestade) atacaram seus donos e comeram pedaços de seus corpos. O que sobrou dos cadáveres ainda estava dentro da casa porque nem a polícia e nem o corpo de bombeiros tinha efetivo para tudo aquilo — e como acontecia em todos os lugares desse mundo, Zétia deslocou seu pessoal para a área mais rica da cidade. Ernesto voltou para dentro de sua casa fazia cinco minutos. Alguém gritou, houve um baque seco na porta, e as luzes da casa foram apagadas. Lobo não se meteu; como todo cara do subúrbio, sabia o risco de visitar alguém sem ser convidado, mesmo que fosse o velho Ernesto que não fazia mal maior que um peido fedido. Ainda no portão da casa, sacou um cigarro do bolso — uma marca paraguaia tragicamente cancerígena — e olhou para a luz oscilante do poste de rua. Havia muitos, muitos insetos voando ao redor da lâmpada. Besouros, mariposas, havia até abelhas, e de modo algum abelhas voando à noite parecia natural, mesmo a um desinteligente feito ele. No chão, um círculo de insetos. Alguns mortos tendo sido atacados por outros. Os vivos lá em cima zumbiam alto, um som raivoso. As abelhas alvoroçadas, dando longos loopings até o chão. Sua mente ficou ocupada por algum tempo, mas tão logo chegou à metade do cigarro, pensou na garota. Tinha pena dela, do que tinha feito em troca de coisa nenhuma. Que droga, ele era burro, ele se achava burro desde a primeira série quando confundiu o bidê de um amiguinho com um vaso sanitário e o encheu de bosta. Os anos seguintes provaram que ele estava certo, e Lobo tinha certeza, depois do lance do Subaru de Orlando, que ele nunca ganharia dinheiro suficiente para sair da lama onde fora cuspido de um útero. E aquela coitadinha da filha da prefeita não tinha culpa nenhuma nisso. Eu devia voltar lá e soltar ela. Mas e se o carro parar de novo? Porra... O que sobrou para mim foi uma mãe retardada e um futuro na cadeia. Porque ela vai contar tudo quando sair dali. E eu não tenho coragem de deixar uma menina morrer de fome. Nem coragem, nem vontade. Lobo estava começando a gostar dela, gostar de verdade e de um jeito que não deveria. Mas também, perto das biscas que conhecia, mulheres que chupavam um cara por cinco pilas, Patrícia era praticamente a Princesa Diana. E ela era forte. Nada de maconha e picos nas veias, nada de perfume barato e bafo de cerveja. Patrícia era melhor que elas, que ele, que aquela maluca trancada lá dentro que por acaso era sua mãe. Ele iria soltá-la sim, assim que amanhecesse o dia. — Tá fazendo o que no meu portão, vagabundo? — ouviu atrás dele. Engoliu a fumaça pelo buraco errado e tossiu sentindo os olhos ficarem cheios d’água. O que ela queria agora? Olhou para trás, para a porta que Nora acabara de atravessar. — Jesus Cristo, mãe! Que é isso? Nora estava nua. Sua magreza era tão intensa quanto a ser ofensiva. As pernas não eram grande coisa, nunca foram, mas estavam além de secas, com manchas avermelhadas por toda parte. Os olhos de Lobo, apesar de sua luta, acabaram no sexo de Nora, naquela coisa horrível e felpuda que mais parecia um gambazinho. Ele os retirou dali antes de imaginar qualquer coisa que o consumiria para sempre, mas não adiantou; os olhos encontraram os seios, o que restou dos seios. Duas maminhas murchas e sem vida, os mamilos escuros e inapetitosos, estrias, Lobo não conseguiria fazer sexo por dez anos, nem que quisesse. — Mãe, pelo amor de Deus, volta para dentro. — Do que me chamou, cafajeste? — De mãe, você é minha mãe. Agora vamos para dentro. Antes que Lobo chegasse a ela, Nora se virou, coçou o rego profundamente e atravessou a porta. Lobo percebeu dois garotos escandalizados do outro lado da rua. Eram adolescentes e sabe como é... Sempre era bom ver uma perseguida. Contudo, não foi isso o que Lobo viu em seus olhos, ele viu horror e nojo, o mesmo que sentia. — Saiam daqui, seus merdas. Um dos garotos suspendeu o dedo médio, outro agarrou a virilha e esticou a pelves, saudação padrão do bairro. Depois correram dando gargalhadas. Lobo atirou a guimba do cigarro para longe e procurou Nora dentro da casa. — Mãe? Cadê você? Ela não estava na sala, mas deixou um presente para Lobo. Nora havia defecado no chão, também urinou em cima do sofá. — Que é isso, mãe, por que isso? Em seguida Lobo ficou quieto, afinando os ouvidos, sem ter muita certeza de querer descobrir o resto. O que ainda faltava para provar que Nora e um caramujo estavam com níveis cerebrais idênticos? Caminhou pela sala desviando do presente amolecido ao chão. Depois de passar por ele, deu uma olhada mais atenciosa. — Jesus... Havia alguns objetos no meio da massa mole. Lobo apanhou o controle do videocassete (sim, ele e Nora eram provavelmente os únicos da rua a manterem um objeto arqueológico na estante) para movimentar a sopa. Descobriu um anjinho de porcelana, um carrinho de criança todo mastigado, e duas bolinhas de Gude. Sabia de onde vinha aquilo. Nora ainda mantinha os brinquedos de criança do filho, Lobo achava mórbido, mas por outro lado, entendia. Nora não tinha netos, não tinha maridos ou sobrinhos com quem se distrair. Tudo o que restava a ela eram suas lembranças. Um suspiro no segundo quarto do corredor fez que deixasse a sopa. A casa toda recebeu como um presente aquele cheiro podre. Só Deus e o Diabo sabiam o que estava diluído naquele monte de porcarias, o que escapava aos olhos. Lobo rezava baixinho para que não houvesse nenhum tipo de veneno. Também rezava pelo oposto com algum arrependimento instantâneo. Com a escuridão tomando Nora, pensava se não seria melhor o crack que a anestesiava e a deixava sonhar. O que resta da desgraça senão os sonhos, quando se está enterrado em um buraco tão fundo que a luz mostra apenas o quão distante está a felicidade? Deu alguns passos dentro do corredor. Passos curtos que esperavam a queda em um calabouço de fogo. — Não... — disse Nora atrás da porta. Dava para ouvir sua respiração. Seu ofegar assustado e infantil. Lobo foi além e recostou-se à porta. — Mãe, abre pra mim. Posso ajudar — disse com a voz fraquinha. — Não vou deixar você me foder, vagabundo! Essa boceta tem dono! — Nora gritou. — Mãe! — socou a porta. — Sou eu, porra! Seu filho! — Meu filho? Eu não tenho um filho! Pensa cara, pensa! Nora Lobo não nasceu drogada, esmagada e inútil. Nora um dia havia tido fé, isso talvez a ajudasse agora. Lobo não tinha fé em nada que não fosse o Corinthians, mas se pudesse usá-la, como fizeram os caras da clínica de recuperação quando tiraram Nora do lodo pela primeira vez... Bem... Quando o que resta é a fé, ela se torna útil. — Sou um anjo, Nora. Um anjo de Deus. Um pouco de silêncio do outro lado. A respiração de Nora desacelerou, os sons úmidos de choro esmoreceram. — Um anjo? — É sim, dona Nora — disse Lobo, tentando parecer mais nobre do que conseguiria ser. — Sou um anjo e vim anunciar boas notícias. Abra a porta. — Anjo? Com essa cara de tarado? Com essa cara de... Se você é um anjo, moço, eu não consigo imaginar o rosto de satanás. — Não zombe! Estou aqui com um... (como é mesma a palavra?, pensou)... propósito. Mais quietude. Propósito... Essa é uma palavra difícil, não é muito comum na boca de um vagabundo, a menos que ele esteja dizendo que fez alguma merda de propósito. Cleckt. Um rangido enferrujado. Fechadura aberta. Ouviu Nora recuando. Ficou feliz porque agora ela estava calçada. Era uma excelente notícia que se lembrasse da utilidade das roupas. Excelente notícia que não durou nada... Lobo abriu a porta. Nora estava recuada à parede, em frente à janela aberta do quarto. A luz estava desgraçadamente acesa. Ela estava calçada sim, com o único sapato de salto alto que tinha estocado. Era vermelho, de vinil. Mas Nora continuava nua; seus seios murchos buscando algo onde se escorar, o tapete de pelos da pelve estufado, farto e um pouco grisalho. E essa não era a pior parte. — O que você fez, mãe? Nora estava com os pulsos vermelhos. Dois cortes fundos que a levariam para a terra do nunca em pouco tempo. — Facilitei as coisas, anjo. Quero encontrar Deus antes que me esqueça dele. — Mãe, precisamos de um hospital! Você vai morrer! — Lobo gritou. — Vou morrer de qualquer jeito. Você pode levar minha alma agora, pode dizer a Deus que eu fiz escolhas erradas, que eu fui fraca e que... e... Seus olhos focaram o vácuo, o lugar onde todos os sonhos e pesadelos se escondem da incompreensão. — Eu não sei o que estou dizendo... — confessou esmorecendo. Lobo olhou para a cama ensanguentada e encontrou objetos sobre ela. Nora Lobo estava viajando bem mais do que ele imaginava. — Isso tudo é seu? — Lobo perguntou, sentindo seu próprio apetite corrompendo a vontade vítrica que tinha de ficar sem aquilo. Talvez fosse genético, talvez fosse uma programação-base do subúrbio aquilo de se entupir com farinha e maconha. Oh, e claro, de crack. — Acho que sim. Eu acho. O que são essas coisas, anjo? Lobo deixou a porta e foi para perto da cama. Olhou para a caixinha de madeira (que um dia fora a caixinha de seu jogo de dominó) e sentou-se ao lado. Tinha crack ali; também maconha, farinha, até comprimidos caros que explicariam porque Nora estava tão magra e falida. Era anfetamina, bolinha, como chamavam no bairro. — Pode ficar com tudo, se quiser — ela disse. — Não sei o que um anjo de Deus quer com essas coisas estranhas, mas é tudo seu. Lobo estava com o saquinho de pó nas mãos. Estava hipnotizado, ansioso pela anestesia mágica da cocaína. Do gelo no cérebro, da língua dormente e da sensação de que tudo ficaria bem por um tempo. — Não. Você precisa de um hospital — disse, sem tirar os olhos do saquinho. Abriu e passou um pouco de pó nas gengivas, só para ficar ligado. Então sentiu a cama afundando atrás de si. Era Nora se abraçando a ele. Ela estava fria, mas não importava, Nora Lobo era sua mãe e, Jesus Cristo, como ele precisava de um abraço! Instintivamente foi o que recebeu. Nora o envolveu e, apesar da repugnância dos seios nus pressionados contra as costas, Lobo aceitou o abraço. Sentiu o sangue bombeado para fora do pulso cortado molhando seu pescoço. — Nós vamos ficar bem, mãe. — Claro que sim — Nora disse. Em seguida riscou o pescoço de Lobo com a mesma lâmina (que encontrou no estojinho Woodstock) que usara nos pulsos. Lobo não soube o que aconteceu até tentar engolir. Então percebeu que conseguia respirar pela garganta. Ele empurrou Nora e caminhou de costas, apertando a própria ferida, até encontrar o guarda-roupa em um baque. Uma estátua pequena de São Miguel Arcanjo tombou lá de cima e se espatifou. Lobo não conseguia respirar, engolir, não conseguia mais dar um passo. Sentia seu corpo esfriando. Nora estava de volta às cortinas. O rosto e o busto cheios de sangue. Ela tapava a boca com as mãos e ria feito uma garotinha. Estava bem pálida, trêmula, os lábios arroxeados. — Você não é um anjo. É um demônio! Anjos não sangram. Lobo caiu sobre os tornozelos e desistiu de lutar contra a morte. Ele podia ser burro, uma besta sem noção, cérebro de maionese como disseram em um jogo de futebol, mas até um expoente da imbecilidade feito Lobo reconhecia que a morte sempre vence. Quando ele tombou, Nora fez o mesmo. NADA MAIS COMO ANTES
Depois das onze da noite, Zétia estava praticamente entorpecido com tantas ocorrências. Ele não voltou para casa, e dois cafés o livraram do álcool que bebera antes. Dentro de si, uma parte considerável do cérebro repetia sem parar a história do velho Carlo. Mas como acreditar naquilo tudo? Maldições, pragas, justiça divina? Um policial era sumariamente proibido — para seu próprio bem — de acreditar nisso. Difícil? Claro. Proibido? Óbvio. Mas o impossível, essa palavra maldita que não devia existir em um dicionário humano, ainda não estava dentro do coração de Zétia. O rádio bipou pouco depois de Zétia passar pela igreja. As luzes apagadas tiraram um pouco de sua esperança em falar com o Padre. Estevão era antigo na cidade, bom em guardar segredos como todo padre é, mas com o incentivo correto — a uma cidade perdendo o juízo era uma ótima dica — ele abriria o bico sobre a história de Carlo Euripes. Só faltava encontrá-lo... — Na escuta. Um monte de estática fez com que o delegado afastasse rapidamente o aparelho do ouvido direito. — Na escuta, repita, por favor. — É o Anderson, Zétia. Onde você está? — Estava pensando em dar uma passada no Bueiro. — Não faça isso, delegado. Aquele buraco está fora de controle. Meteram fogo no posto do José Xerxes e colocaram barricadas nos acessos, o lugar virou zona de guerra. — Mais um motivo, Anderson. — Não, chefe. Ouça o que eu digo: se entrar lá vai acabar morto. — Para onde então? Por que me chamou no rádio? — Alguma agitação na casa dos Minotto. Um vizinho telefonou para a delegacia e disse que viu dois homens estranhos saltando de um carro, estavam armados. — Um Santana? — Isso aí. Parece que Sultão está procurando confusão. — Estou a caminho. Você está na delegacia? — Negativo. Fomos atacados e com a graça de Deus ninguém se machucou. A bandidagem sonha com uma noite infernal dessas, acho melhor nem passarmos perto da delegacia. — As armas? Mais daquele chiado estático alto demais. — Anderson? E quanto às armas? — Levaram tudo, chefe. Levaram até as algemas. — Merda — disse Zétia e acelerou a viatura. Perto da única locadora viva na cidade, a Star-Vídeo, ele puxou o freio de mão e girou o carro para o sentido oposto. Quando a viatura parou, Zétia riscou os olhos em um cartaz exibido. Entre os Leões. Ele já tinha visto o filme, sentiu raiva do produtor, do escritor e de toda equipe que se envolveu naquilo. Não era de todo ruim, mas que merda, pessoas vão ao cinema para entretenimento e não para serem torturadas. Balançou a cabeça de um lado para o outro e enfiou o pé no acelerador tatuando o chão calmo do centro com borracha quente. — Que droga, Galileu! — Socou o volante. — Não dava para esperar a justiça resolver isso? Zétia gostava do homem, como todo mundo na cidade. Galileu era o tipo caladão que quando abria a boca fazia os mais despreparados chorarem de rir. Também era o tipo de homem que perde a linha uma única vez na vida. E como culpá-lo? Depois de ter a filha rasgada ao meio como uma porca, depois de ver o criminoso escapando impune com o safado do Ricardo Minotto? A cidade estava sendo pilhada como Zétia já sabia. A loja de Cd’s de Gusmão e Cléssia Audrish, a Sorveteria Bandeirantes de Amanda Parentes, a loja de sapatos Sorião que tinha sido inaugurada há uma semana. André Sorião estava chorando sentado à porta, assistindo sua loja ser pilhada. Segurava uma garrafa de bebida na mão, já pela metade. Zétia teve o impulso de parar e ajudá-lo, mas levaria um tiro. Pelo menos dez vagabundos faziam o serviço dentro da loja, colocando tudo em uma Saveiro vagabunda. O que eles pretendiam fazer com aquilo quando toda confusão terminasse? Esconder em casa? Traficar até a cidade vizinha? Eram uns idiotas, gentinha. Se fossem mesmo espertos, não estariam roubando um monte de calçados, estariam roubando a porra do banco. E de onde saíram tantos vagabundos? Não são só vagabundos, concluiu quando reconheceu Pietro Vargas, um dos caras com pai rico na cidade. Ele era mais esperto e estava pilhando, com outros dois, a Enoque Magazine — eletrodomésticos e o que havia de mais tecnológico na cidade. Zétia diminuiu a velocidade quando passou por eles. — Vargas? O que está fazendo? O garoto olhou para a rua, e Zétia não o reconheceu. Ele tinha frieza no olhar, do tipo: não faz diferença o que acontecer daqui a meia-hora. — Não é da sua conta, Delegado. Agora é cada um por si. Zétia deixou um riso curto escapar pela boca. — Vai se lembrar disso quando os bandidos de verdade encontrarem você e sua ganguesinha de bosta? Vargas subiu a camisa e mostrou uma arma presa à cintura. — Eles vão atirar em você com sua própria arma, garoto. Se tiver algum juízo, chame o resto dos retardados e me siga. Posso esquecer, se isso parar por aqui. Foi a vez de Vargas rir. Outros dois vagabundos com estampas de grife nas camisetas (um deles, outro conhecido, trabalhava na agência do Banco do Brasil, gerente de contas; o segundo Zétia não reconheceu) chegaram e apontaram para o carro da polícia. Zétia sacou sua doze e colocou sobre o vidro entreaberto. Um dos garotos baixou a arma. Voltou a erguê-la em seguida, sob o olhar rasteiro de Vargas. — Eu sei atirar, molecada. Mas se querem mesmo foder com suas vidas, vão em frente. Preciso ajudar as pessoas decentes de Nova Enoque. Ninguém se moveu por dois, três segundos. Só então Vargas baixou sua arma e a devolveu à cintura. Zétia saiu em seguida, decidido a fazer algo melhor do que defender um bando de punheteiros mimados. CORAGEM, GAROTO
Os cães foram os primeiros a perceber o cheiro da desgraça, assim que Galileu Sultão e Luciano Juta desceram do Santana, eles choraram como filhotinhos. Uivos finos, melancólicos e assustados, que faziam o corpo arrepiar depressa. Os matadores, vestidos com as armas de Jorge, ainda esperavam o momento certo de entrar na casa dos Minotto. — Quantos homens estão lá dentro? — Luciano perguntou. Sultão baforou um cigarro de palha enrolado mais cedo. — Não importa se acertarmos antes. Luciano não parecia tão seguro. Estava tremendo e segurando a urina para não sujar a cueca. Céus, eles estavam mesmo prestes a matar alguém? A vida muda como o curso de um rio, e do passado calmo de semanas atrás — semanas onde os dias eram acelerados para encontrar soturnamente Milena — só restavam gotas. A verdade é que Luciano nunca fora considerado mais perigoso que uma samambaia, nem por ele mesmo. Agora, com uma arma na mão e a impossibilidade de recuo (porque ele sabia, oh como ele sabia, que se desse para trás seria alvejado pelas costas) esperava ser diferente. — Seu Galileu, sabe o quanto eu amava sua filha, mas isso que estamos fazendo não vai trazê-la de volta. Sultão o encarou bem sério, seus olhos mortificados pela dor poderiam ter dito o resto, mas ele insistiu em falar: — Não quero trazê-la de volta, isso seria doentio. Soou como um alívio ouvir aquilo, porém Sultão não havia terminado. — Quero o sangue deles para mim. Para honrar a memória da minha filhinha. Parou de falar e olhou para frente, percebendo o movimento vultuoso de alguém pelas grades vazadas do portão de ferro fundido. Ele e Luciano estavam bem em frente da casa. Protegidos pela escuridão de algum vagabundo que resolveu aproveitar a tempestade de dor da cidade para acertar as contas com a riqueza. Das câmeras ainda ativas, Sultão mesmo se encarregou, desviando a ocular com um galho que apanhou trezentos passos atrás, da árvore que fazia uma sombra desnecessária sobre o Santana. — É ele? — Luciano quis saber. — Não. É só um macaco armado. — Consegue enxergar daqui? Nesse ponto Sultão riu com um desprezo nato. — Não acabei com meus olhos vendo tevê, filho. Tenho uns problemas da idade, mas ainda enxergo bem. Meus olhos sempre foram bons com a terra, e ela com eles. Assistindo a cara de bobo de seu candidato a genro bastardo, explicou: — A terra é como uma garota nova. Gosta de ser admirada e acariciada. Não como os homens da cidade fazem com suas mulheres, mas um homem do campo, um matuto como eu, nós sabemos o jeito certo. A terra não é ingrata como a maioria das mulheres. — Se perdeu um pouco. Luciano respeitou o silêncio e quando a expressão dura do velho se dissipou, perguntou como entrariam na casa. — Eu cuidei disso. Nas mãos de Sultão, um controle remoto. — De onde isso veio? — Tenho amigos de verdade nessa cidade. Gente que me deve. Uns meses atrás, a mulher do Roque, o chaveiro, precisou de uma carona até o médico. O Roque estava de serviço, então ela ligou para nossa casa. Sabrina é muito amiga da minha mulher, fizeram um curso de artesanato juntas e outras coisas que mulheres fazem quando ficam muito tempo sem seus maridos. Fomos nós que a levamos ao médico. Apendicite. O doutor disse depois que se tivéssemos esperado até o dia seguinte ela podia ter morrido. — E então ele te ajudou? — Não. Ele me ajudou porque também detesta os Minotto. A varanda estava vazia de novo. Ficava a uns vinte metros do portão, depois de um gramado mais bem cuidado que os cabelos do dono da casa. O desgraçado do Minotto tinha bom gosto. Carros caros; um Land Rover e uma Mercedes branca, tinindo de tão polidos e novos. Também estátuas que imitavam alguma porcaria grega. Devia ser bom ser rico, uma pena que para chegar lá fosse preciso vender a alma. — Tá pronto, filho? — Não vai desistir, né? A resposta foi o clique no controle remoto. O portão abriu o suficiente para a passagem de uma pessoa gorda. Antes de entrar, os dois esperaram que alguém viesse até portão — parecia impossível que a abertura do portão não disparasse algum sinal dentro de uma casa tão vigiada. Mas quem disse que todo rico é esperto? Na verdade, a maioria deles não é; seu sucesso e a grana que vaza do colchão vem da safadeza, não da inteligência. — Vem garoto, preciso que honre suas bolas agora. Sultão atravessou e se refugiou atrás de uma topiaria. Não era grande coisa, era um pinheiro rigidamente cortado em forma de gota. Luciano entrou logo depois, deu com a canela na parte de baixo do portão e fez o aço tilintar. — Ei! Quieto aí! — sussurrou Sultão, enquanto meneava a cabeça. Devia ter vindo sozinho. Um moleque cagão daqueles podia pôr tudo a perder antes mesmo de começar. Pensou melhor em seguida. Luciano estava metido, literalmente metido, naquele novelo de lã. Foi ele quem se emporcalhou com Milena e acendeu o pavio da dinamite. Sultão ferveu raiva pelos poros. Imaginar aquele safado em cima de sua garotinha, fazendo coisas sujas com ela, lambendo seus ouvidos como uma hiena no cio. Talvez devesse começar por ele. Encher aquele saco covarde com chumbo quente. — Que foi? — Luciano perguntou, alvejado pelo olhar impiedoso do velho. — Vê se toma cuidado. Eu ainda preciso de você, seu bostinha. Nem que seja pra servir de escudo. — Tá vendo aquela luz nos fundos? — perguntou Galileu. Luciano se esgueirou por trás da árvore, tomando cuidado para que seu corpo continuasse oculto pelas sombras. Galileu continuou: — Tem uma porta lá atrás, também tem um cachorro. — Droga, seu Galileu. Odeio cachorros. — Isso aqui vai cuidar dele — disse o velho, erguendo um saquinho de supermercado cheio com alguma coisa pastosa. No escuro não dava para ver o que era, mas Luciano tinha um palpite. — Vai envenenar um cachorro? — Não. Eu não mataria uma criatura inocente de Deus. Isso aqui só vai fazer ele dormir. É Rivortril — falou como entendia. — Minha mulher anda tomando esse lixo que deixa ela parecendo um peru bêbado. Ele vai dormir rápido. “Eu não mataria uma criatura inocente de Deus.” Ouvir isso deu alguma esperança a Luciano. O velho Sultão, enfim, não era um maluco com uma arma na mão. Se ele estava disposto a poupar a vida de um cão, talvez fizesse o mesmo com ele. Luciano não era burro, passou no vestibular e começaria a faculdade em seis meses, faculdade federal. Isso, em Nova Enoque, era o equivalente a Harvard. Claro que Sultão tinha planos para ele... — Fica de olho, se alguém aparecer na varanda, acerta o desgraçado. — Acertar? Pelo amor de Deus, seu Galileu, eu nunca atirei em uma galinha na vida. — Então é melhor chegar bem perto — disse Sultão e correu até o outro lado, de onde podia tomar o corredor que dava acesso aos fundos da casa. — Merda! Que merda! — resmungou Luciano ao vê-lo mesclado com a escuridão. Sultão talvez não soubesse manejar bem uma arma (e Luciano esperava estar errado quanto a isso), mas sabia usar a natureza. Ele se deslocava com suavidade, os pés rápidos tocando mansamente o chão. Logo não via mais que uma silhueta. O coração de Luciano estava na boca. A JUSTIÇA HUMANA ECOA NOS CÉUS
O cão não estava dormindo, é claro. Sultão estava frio, determinado, exaurido de medo ou coragem. Seu único mandamento era o que transforma homens em assassinos naturais. À sua frente, com um rosnado firme de quem não precisa latir para espantar a presa, Rockfeller, o cão dos Minotto. Sultão o olhou nos olhos, dizendo que não teria medo de uma luta até a morte. Com isso o pastor belga de quase cinquenta quilos atrasou o salto. Deve ter pensado que se um homem, um macaco sem muitos pelos, era capaz de demonstrar tamanho controle, devia ser perigoso. Sem movimentos bruscos, Galileu tirou a carne ensopada de sangue do saquinho e partiu um pedaço com as próprias mãos. Cheirou quase tocando o próprio nariz e atirou ao cão. Rockfeller continuou rosnando, a saliva quente vertendo pelos lábios finos e escurecidos. A carne acertou seu peito, e ele continuou como estava. — Come isso, au-au. Come ou vamos ter uma conversa bem ruim — sussurrou Galileu. Rockfeller deu um pequeno passo à frente. Sultão devolveu a arma à mão direita, bem devagar, sentindo o suor frio crescer entre os dedos. Preferia estar cara a cara com qualquer um dos Minotto àquele cão enorme. Cães são fiéis, tão fiéis que chegam a ser burros. O rosnado aumentou um pouco, a traseira se abaixou do dorso na nítida expressão de caça. E quando Galileu decidiu que de forma alguma atiraria no cão, Rockfeller recuou e abocanhou seu jantar. — Isso, come tudo. Come essa gororoba e vamos ficar bem. Eu e você. O som pastoso da carne trouxe pensamentos ruins a Sultão. Sobre o que fizeram com sua filha, sobre o som de seus vinte e dois gramas de alma deixando o corpo. Era isso o que diziam, não era? Que vinte e dois gramas é a prova cabal de que existe um espírito dentro de cada humano que andou sobre a terra. Bem, foi isso o que um documentário disse anos atrás, quando ele achava que os homens eram bons por essência. — Quer mais? — perguntou. Parecia que sim. A saliva nodosa de ódio agora estava fluida de apetite. Sultão atirou o pedaço restante e teve confiança bastante para se agachar como um sertanejo. Esperou até que Rockfeller terminasse sua refeição. GRUUUAAÃÃÃ. — Calma, rapaz. Nós dois estamos cheios disso. Estamos por conta com homens com dinheiro no banco dando suas sobras para gente comer. Quanto tempo fazia que você não comia um bom bife? Uma piscada dura, mas longe de derrubar Rockfeller, veio em seguida. Ele lambeu o que sobrou de sangue no chão. Sangue e medicação controlada suficiente para derrubar um homem adulto. Exato, um homem adulto, pensou Sultão. Mas o que faria com um cachorro? Quem sabe nem fosse suficiente para fazê-lo dormir. E se fosse esse o caso, tudo bem. O monstro negro estava entorpecido o suficiente para perder uma briga. Ele deu outro passo à frente, curto e seguro. — Não teime, rapaz. Você não pode com essa porcaria de Risvotrí — errou de novo, ele nunca acertava o nome daquela porcaria de remédio. Outro passo e outra daquelas piscadas pesadas, essa um pouco mais lenta que as anteriores. A saliva em sua boca já pendia diferente, como o cuspe de um doente mental cheio de Valium. Os passos continuaram, estava a um metro de distância de Galileu. Um bocejo decretou o fim da luta de Rockfeller antes da mordida que pretendia dispensar àquele velho maluco que cheirava ração de galinha e diesel. Rockfeller já tinha sentido antes, na jovem humana que se engraçava com o jovem humano dono daquela casa. O jovem humano não era ruim, mas ele estava diferente desde que voltou para casa. Tinha cheiro de quem não toma banho, cheiro de gente ruim. Os olhos de Rockfeller pesaram pela última vez, e ele tombou como um cavalo abatido. A língua para direita, os olhos entreabertos e revirados. Sultão, em um ato suicida de dignidade, colocou seu relógio Orient (velho, riscado, mas ainda funcionando, exatamente como seu dono) perto do focinho do animal e conferiu o vidro nublado. Ótimo, sem vítimas inocentes podia seguir com seus planos. Apanhou as patas traseiras pensando em arrastar Rockfeller para perto de sua casinha. Iria prendê-lo na coleira que havia ali — era impossível saber a duração daquele remédio de doidos. Tomara que ele ficasse tão dopado quanto sua esposa que não diferenciava chocolate de bosta depois das nove da noite. Arrastou o animal com algum sacrifício, prendeu-o a coleira e voltou para convocar Luciano. Desceu a mão armada e o chamou com o dedo indicador na boca, pedindo que não fizesse nenhuma idiotice. O xexelento demorou um pouco, devia estar se borrando. Luciano ainda não tinha passado pela mesma mágica que Sultão. Ele não tinha perdido um filho e metade de seu coração. O rapaz apareceu uns cinco segundos depois e atravessou a escuridão do jardim como um babaca que pensa que abaixar a cabeça forma algum tipo de escudo em uma guerra. Guerra... O mais perto que Luciano Juta e sua família chegaram de uma guerra foi a disputa pelo último pedaço da sobremesa na ceia de natal da APAE. — E o cachorro? — Tá dormindo. Agora escuta, filho — disse bem baixinho. Chegou mais perto e o intimidou contra a parede do lado de fora da porta da cozinha. — Eu não gosto de você nem um pouco, mas acho que você entende o que deve para minha filha. — Eu não... — Você nada — disse com raiva. — Você escuta! Luciano concordou, tremendo o queixo contrariado. — Vamos nisso até o fim, e eu juro por Deus que se me deixar na mão ou ajudar os sacanas lá dentro, atiro em você primeiro. — Eu gostava da Milena, seu Sultão. — Vai ter chance de provar isso lá dentro. Aqui fora você é o cara que espetou sua imundice nela; tão sujo quando o dono dessa casa. Agora vamos. — Deu algum espaço a ele e confirmou que a porta estava aberta (ninguém com um cachorro como Rockfeller se lembra de passar a chave, torna-se desnecessário). — E não esquece essa nossa conversa. Sultão abriu a porta e a segurou para que Luciano atravessasse. Depois tomou a frente, dividindo olhares entre o que os esperava e o covarde metido a Don Juan atrás dele. Moleques cagões como Luciano Juta tinham um cérebro perigoso, cérebro de jacaré. Eles não se importavam com honra, justiça ou todas as palavras bonitas da Bíblia, eles só queriam sobreviver. Ouviram alguma conversa no andar de cima quando estavam no meio da cozinha. Um lugar esnobe, cheio de armários, inox e aparelhos inúteis para quem nunca fez um arroz sozinho.
ENQUANTO A CASA ERA INVADIDA, Ricardo Minotto tinha seus próprios problemas para resolver. Roger estava à sua frente, em seu quarto. Continuava falando pouco, dormindo menos ainda, e seu cheiro, apesar dos banhos que tomou, continuava sendo o da cadeia. Sua culpa era a dona daquele odor. Roger podia não lembrar perfeitamente, mas quando fechava os olhos, tudo o que via era Milena sangrando e implorando por sua vida. — Você precisa seguir em frente, Roger. Nada que fizer irá trazê-la de volta. — Não está certo, pai. Não importa morar dentro ou fora da cadeia. Não vou viver em paz enquanto não souber o que fizeram com ela. — Milena não merece o que está passando. Roger ergueu os olhos. Do que o velho estava falando? — Ela não era nenhuma santa. — Chega, pai. Não quero continuar essa conversa. Roger arriscou levantar. Antes disso, Ricardo estava ao seu lado, soltando um longo suspiro. — Jurei para mim mesmo que nunca contaria. — Tirou um envelope da parte de trás da calça. O manteve nas mãos, passando os dedos sobre o papel pardo como quem acaricia uma navalha. — O que é isso? — Isso é Milena Sultão, a mulher que você chama de inocente. Com a vontade de quem se agarra a um fio de vida, Roger tomou o envelope para si. Ricardo foi até a janela e acendeu um cigarro, ficou olhando para fora, esperando a tempestade cair do lado de dentro. Ouviu os papéis passando pelos dedos ávidos do filho. Ricardo tinha visto aquelas fotos dezenas de vezes. Em cada uma delas sentiu-se tão idiota quanto o filho. Roger, entretanto, ele não era assim. Era bobo e inocente, idiota o bastante para acreditar em uma caipira. — O que significa isso? De quando são essas fotos? — Dois dias antes do que aconteceu. Eu estudava um meio de contar tudo a você — respondeu ainda de costas. Depois virou o corpo em direção a Roger. — Esse aí com as mãos nas tetas dela é Luciano Juta. Sua namoradinha estava saindo com ele. Roger uniu as mãos e sentiu toda raiva do mundo. Parecia a primeira vez que ouvia sobre isso. Como ela foi capaz? Tudo o que dizia, todos os planos, merda, ela dizia que o amava! — Mandou forjar isso — disse a Ricardo. — Sua namorada era uma vagabunda, Roger. Milena Sultão estava atrás do seu dinheiro, do nosso. — Não! — gritou. Os olhos estavam injetados e úmidos. O som da voz, fraquejando apesar da raiva. Beijos, carinhos, sexo, chupadas e mais chupadas. Porra! Ela fazia a mesma coisa com o babaca do Luciano. E o que ela viu nele? Onde ele era melhor? Luciano Juta era um verme de camisa flanelada, isso é o que ele era. Um bostinha que perde metade do tempo tentando reviver os anos noventa. — Aceite, Roger. Vai ficar mais fácil. Independentemente do que tenha acontecido naquela noite do diabo, você teve suas razões. Roger amassou o envelope contra o peito e ruboresceu. Seus cabelos ficaram eriçados, seus lábios perderam a cor. Ricardo fez o oposto e se tranquilizou. Por maior que fosse a dor de ser traído, de levar um chifre, pesava bem menos que o remorso. Então um disparo no térreo da casa. Estilhaços de vidro e um grito abafado. — O que foi isso? — perguntou Roger, se esquecendo de ter pena de si mesmo. — Merda! Alguém invadiu nossa casa! — Quem?! — Foda-se quem! Essa cidade perdeu o juízo. Vamos pro meu quarto, precisamos das armas. Não houve discussão, e Roger, a exemplo do pai, não tentou espionar pela escada e descobrir quem estava atirando lá embaixo. Os disparos eram suficientes para se armarem. Roger ficou parado à porta enquanto Ricardo apanhou duas armas na última gaveta do closet. Uma prateada que ficou com ele, e uma automática que entregou ao filho. — Cuidado. Tá destravada. — Pai, isso é loucura! — É sim. Mas não pretendo morrer hoje. Fica atrás de mim — disse, e voltou para o corredor. Depois sussurrou asperamente: — Vai me ajudar ou não? Sem tempo de pensar direito, Roger saiu do quarto. A arma estava em suas mãos, meio bamba, parada ao lado da coxa. Ricardo estava perto do corrimão vazado de madeira. Olhou para o filho e precisou dar um jeito naquela postura de uma vez por todas. Saiu de onde estava e foi para perto da porta que Roger tinha acabado de atravessar. Colocou a arma na parte de trás da calça e apanhou as mãos do filho com força. Fez com que empunhasse a arma. — Isso aqui é sério, Roger. Se eles mataram o Saulo lá embaixo, vão fazer o mesmo com a gente. Sacudiu as mãos de Roger com força. — Olha para mim, rapaz. Não importa o que aconteceu antes. Você não foi o único a ter perdido a razão. Talvez tenha sido o primeiro nessa cidade de merda, mas a pergunta é: vai mesmo morrer por causa de uma garota imprestável? O rosto abatido de Roger se contraiu como uma cólica. Nos olhos, tudo o que ele não dizia: raiva, decepção, vontade. E libertação. Memórias. Ricardo estava certo, Milena estava onde merecia. E finalmente as lembranças de Roger estavam claras como um dia de sol, o que aconteceu dentro de seu Opala; e nenhum traço de arrependimento. O primeiro golpe, o corpo sangrando um fio de vida enquanto ele se fartava dos restos. O estranho daquela noite terrível estava certo: nada de remorso. — Tudo bem. Vamos sair dessa — disse a Ricardo. Antes que saíssem de onde estavam, uma bala destruiu o batente da porta. Os dois Minottos se abaixaram, Roger se atrapalhou com a arma e por pouco não a derrubou no chão. Ricardo estava de pé outra vez, com a mão na orelha esquerda. Algo quente e viscoso pingou em cima da cabeça de Roger, ele passou a mão esquerda livre sobre a ferida e tremeu. — Puta merda! Atiraram na minha orelha! — gritou Ricardo. Lá embaixo alguém gritou: — Era pra ser na sua cara, filho da puta! Roger se revirou e ficou de pé outra vez. — Tudo bem, pai? — Não, porra! Claro que não, olha essa boceta na minha orelha! — É o velho. O pai da Milena. Incrível como a raiva consegue fortalecer alguém, e foi isso que ela fez com Ricardo. Naquele ponto, a orelha estava praticamente anestesiada, o sangue que jorrava esquentava o pescoço, a cabeça zunindo evocava reações de luta. Ele livraria sua casa daquele roceiro estúpido e cuspiria em seu cadáver! — Sultão, seu capial de merda! O que pensa que está fazendo? — Livrando a terra de dois animais, Minotto. Mas se deixar seu filho descer aqui e resolver feito homem, eu poupo sua vida. Antes que Roger percebesse, Ricardo estava de novo perto do parapeito. E dessa vez atirando. — Filho da puta! — gritou quando viu a cabeça branca de Galileu. Refez a mira com o olho esquerdo e disparou. Mas alguém intercedeu, desviando a bala do crânio. Luciano se jogou sobre o velho e, no momento exato, o tirou do caminho. Os dois caíram sobre uma mesinha com tampo de vidro no centro da sala. Mergulharam nos cacos, e Luciano ganhou um corte fundo no ombro direito. Sultão, embaixo dele, se esperneava como uma barata sob a sola. — Sai de cima de mim! — disse, em vez de agradecer. Empurrou Luciano para um canto da sala e mirou na direção daquele riquinho de bosta ainda escondido no andar superior. O som explosivo encheu de novo o hall e Roger fez um movimento mínimo com a cabeça, tentando evitar a bala resvalada. Deu certo. O projétil arrebentou o corrimão e fez descer uma chuva de lascas de madeira. — Não precisa ser assim, Sultão! Não seja estúpido! — Ele não vai ouvir, pai. Precisamos deitar o búfalo — disse Roger. Ricardo olhou para trás e encontrou o filho estranhamente calmo. A arma estava firme em suas mãos e, pela primeira vez na vida, ele se orgulhou da semente covarde que botou na terra. Roger era um Minotto, enfim. Roger caminhou até o primeiro degrau da escada, de peito aberto, e abriu fogo. — Cuidado aí, garoto! — disse Sultão a Luciano. Procurou um lugar para se esconder enquanto balas destruíam o porcelanato caro da sala. Um dos tiros explodiu a tevê e outro acertou um quadro de família, direto na testa da mamãe morta. Luciano, que estava bem perto desse quadro, se atirou no chão com as mãos na cabeça. Na opinião de Sultão teria sido bem mais útil se ele fizesse o mesmo que o filho da mãe lá em cima, Roger Sultão. Comparado a Luciano, ele era um huno, e isso deixou Galileu em dúvida sobre quem tinha culpa do que naquela salada de desgraças. Porque se Luciano não tivesse seduzido sua filha (e claro que foi sedução, sua princesinha jamais se comportaria como uma puta de rodoviária voluntariamente), que motivos Roger teria para matá-la? Galileu conhecia o suficiente do ciúme para reconhecer como era corrosivo. E que fosse culpa do ciúme... Um crime passional era preferível à maldade pura. Luciano conseguiu sair do chão e limpou os estilhaços da moldura que caíram sobre ele. Cortou a mão em um deles e a nitidez do sangue enjoou seu estômago. Iria morrer, mas se era isso mesmo que Deus queria para ele, morreria com dignidade. Ele apontou a arma para Roger, para aquele infeliz que nunca mereceu Milena. — Toma! — gritou e crivou de balas os degraus inferiores. Nenhum tiro acertou Roger. Frio, Roger Minotto apontou para aquele desgraçado que encheu sua vida de vergonha. Seu próprio pai havia visto as fotos, testemunha ocular de sua incapacidade de reter uma mulher na cama. Disparou. A bala acertou o ombro esquerdo de Luciano, ele absorveu o impacto, recuou e foi em frente sem cair. Restavam duas balas em seu tambor, e uma vontade incrível de acabar com Roger. Mas antes disso, duas balas de Roger atingiram sua barriga. — Não é assim, moleque! Desse jeito, vai morrer junto! — gritou Sultão. Luciano ficou onde estava. Roger disparou mais vezes. Pela contagem de Sultão, restava apenas uma bala antes que fosse obrigado a recarregar. Poderia ter ajudado Luciano, óbvio, mas preferiu deixar que os dois se aniquilassem. No terceiro degrau da descida, Roger continuava encarando Luciano sangrar, o safado que esteve com sua Milena antes de tudo acontecer. Ele deve ter visto seus pés remexerem, e ela se arrepiando toda na hora do orgasmo, deve ter sentido sua umidade exagerada. Os dois devem ter rido dele, feito piadas, quase certo que enquanto trepavam diziam palavrões que ele nunca teve coragem de usar. E Luciano continuava de pé, um merdinha com uma arma na mão. Uma arma perfeitamente alinhada com o espaço entre os olhos vermelhos de Roger. Luciano respirou fundo e empurrou o gatilho, sabendo que não poderia errar. Antes que a pólvora incendiasse, entretanto, o corpo alto e confiante de Ricardo Minotto emergiu do alto da escada. Ele atirou antes — contando com anos de aulas de tiro (privilégio de todo cara com grana) — e não errou. Luciano enfim tombou, ganhando um novo umbigo. Ficou em posição fetal, abraçado ao fio de vida que o animava. — Acaba com esse bosta — disse Ricardo, oferecendo outro pente carregado a Roger. Ele o apanhou e espetou na arma, desceu mais dois degraus. — Essa noite você dorme no inferno — sussurrou Sultão, satisfeito por terem-no esquecido. Enfim, aquele pamonha do Luciano Juta fez algo de alguma valia. Galileu saiu de trás do sofá e disparou. Ricardo arregalou os olhos e assistiu o projetil abrindo caminho pelo crânio do filho. A parte de trás da cabeça soltou um tampo cabeludo e, logo depois, sangue quente começou a sair. Sangue e algo viscoso que parecia cuspe. — Não! Não o meu filho! — gritou Ricardo. Roger não estava mais vivo, estava de joelhos esperando seu corpo tombar. Ricardo o amparou nos braços antes disso. Beijou sua face pálida e pediu perdão por não ter sido pai o suficiente para mantê-lo em segurança. Rememorou o primeiro choro, o primeiro passo e a primeira mijada em pé do filho varão, tudo aquilo que seria passado até o fim dos seus dias. — Isso acaba aqui, Ricardo. Um filho meu, um filho seu — disse Sultão com a arma em paralelo ao peito, perto do coração, mostrando respeito. — Seu doente — disse Ricardo, dispersando os soluços. Deixou o corpo de Roger amolecer na escada, reergueu- se e atirou contra Sultão. Acertou sua perna. O tiro estraçalhou músculos e tendões, mas não derrubou o homem. Sultão era forte e atirou de volta, acertou a mão armada de Ricardo. Dois dedos voaram dela. Ricardo saltou pela escada arriscando quebrar o pescoço, pedindo para quebrar o pescoço. Sultão tornou a alvejá-lo quando Ricardo tropeçou em um dos degraus. Sentindo o sangue engrossar na garganta, Ricardo se reergueu outra vez e conseguiu apanhar outra arma de sua cintura. A mão esquerda ainda seria capaz de dar alguns tiros. Faltavam dois degraus para chegar ao chão. — Não precisa ser assim! — gritou Sultão. Em seguida foi ferido, logo no começo da pelve. O sangue jorrou sem medo, e ele viu a sala valiosa, de gente rica, nublar-se completamente. Mesmo com toda adrenalina disponível, sentiu a nuca latejar e o peito falhando em respirar. Ricardo deve ter acertado alguma veia importante, daquelas que não aceitam remendos. Antes que desmaiasse, Sultão deu um último tiro, direto no coração de Ricardo. Ricardo riu e atirou mais uma vez. Acertou o pescoço do velho, lavando definitivamente o chão de vermelho. Sultão estava sentado no chão, assistindo seu oponente morrer. Deitou em seguida e esperou o mesmo destino. Foi quando o impensado aconteceu. Luciano estava vivo. Ele caminhou até o moribundo e olhou para ele, cheio do orgulho que não tinha direito de sentir: — Parece que eu escapei, seu Galileu. — Me... Me ajuda, garoto — suplicou Galileu. Junto com as palavras, um pouco de sangue em bolhas que estouravam depressa. Os olhos tinham dificuldade em manter o foco, a sala estava escura, Luciano era apenas um borrão ensanguentado. — Não. Eu vou sair desse inferno. Não mereço morrer. Sultão tossiu. Movimentou o braço que ainda tinha vida suficiente para um último tiro e mirou as costas de Luciano. A pólvora brilhou pela última vez na sala dos Minotto. Luciano foi ao chão. Imediatamente um monte de urina molhou suas calças. Com muito esforço, Sultão repousou a arma no chão e sorriu. — Bunda mole — suspirou. Depois morreu em paz. A ESPERANÇA TAMBÉM ERRA
Patrícia estava exausta. Tinha sangrado um bocado e precisou rasgar uma parte da camiseta para estancar a ferida da perna. Seria leviandade dizer que estava pronta para uma maratona, mas ela tinha esperanças de percorrer o caminho de volta até a cidade e sobreviver a ele. A porta de aço ainda estava de pé à sua frente, lembrando-a de que a qualquer momento poderia abrir e trazer o sequestrador retardado de volta. Também a preocupava bastante que ele ainda tentasse alguma coisa mais nojenta que dividir o oxigênio do calabouço com ela. Ele tinha olhado para seus seios, tinha encarado suas pernas mais de uma vez. E ele era homem, como todos os outros, devia pensar que era uma boa chance de conseguir uma trepada grátis. Preciso sair daqui, dona porta. Por favor, abra!, pensou se lançando contra ela de novo. O braço direito estava dormente e, embora isso facilitasse cada nova investida, Patrícia temia algum dano permanente. Ela estava horrível, podia sentir isso. Os cabelos empapados de suor, o rosto pálido e brilhante, roupas encardidas e rasgadas. E havia o cheiro. Ela não conseguiu resistir, e assim que saiu da cadeira, soltou o que tinha nos intestinos. O cheiro da comida horrível que aquele animal trouxe ainda perpetuava nas fezes. Patrícia rasgou a calça jeans transformando-a em uma bermuda estilo Seattle. Seus pés estavam descalços, aquele burro deve ter pensado que isso a impediria de fugir dali e andar quilômetros de estrada. Engano dele, Patrícia andaria sobre a lava se isso a levasse para casa. Olhou para porta: — Sua filha da mãe teimosa! — grunhiu. Socou mais duas vezes sentindo toda raiva e impotência do mundo. Sentou-se no chão imundo sem dar importância aos caquinhos de pó e entulhos que penetravam sua carne nobre. Começou a chorar nesse ponto. Chorar de soluçar. A ideia de continuar presa naquele inferno era a opção mais provável. Se isso acontecesse, poderia apanhar um pedaço de madeira da cadeira e afiar, transformar em uma arma. Teria que fazer bem feito, não devia ser muito fácil atravessar um homem com uma estaca. Calculou a dureza de músculos e ossos, mesmo com raiva — com muita raiva mesmo —, ela era bem mais fraca que o desgraçado. E se houvesse luta, se o elemento surpresa fosse desmascarado? Ela não teria a menor chance. O bestalhão era forte, além disso, devia ter cinquenta vezes mais experiência que ela. Gentinha como ele aprende a brigar cedo, a defender o pão com unhas e dentes. Ou poderia seduzi-lo. Quem sabe perder a virgindade com ele, e quando ele estivesse realmente entregue ao gozo, arrancar seu saco com as mãos. Oh, porcaria... Quem ela queria enganar? Preferia morrer do que perder a virgindade com um porco. E havia o “Se”. Porque talvez ele não voltasse, talvez tivesse sido baleado pela polícia ou caído de bêbado em alguma esquina. Pode ter sido atropelado, espancado, ele podia estar em coma, porra! — Você precisa cair fora daqui, garota — disse a si mesma. A força não estava resolvendo, todas as suas tentativas de colocar a porta abaixo tinham sido dolorosas e inúteis. Assim, quando conseguiu conter o choro e a vontade se entregar a própria má sorte, Patrícia foi olhar mais de perto. Começou a dar pequenas pancadinhas pela lateral da porta. O som metálico era meio trincado. Em alguns pontos, o metal trastejava como se estivesse solto. Mas onde exatamente? Em cima estava mais sólido. Devia estar mesmo, porque ninguém tocava ali. Checou perto da fechadura, bateu de leve, os nós dos dedos começando a doer. Colou o ouvido à porta para ouvir melhor. Dessa vez não golpeou, apenas pressionou. Shiii. Um chiado leve e sútil escorregou pelo metal. Pressionou outra vez. Mais daquele som. Começou a procurar de onde vinha, sempre pressionando a porta. Imaginou que fosse das dobradiças, mas se alguma coisa estivesse podre, depois de tantos golpes, a porta teria cedido. É, mas não custava nada forçar mais um pouco. Encheu o peito de ar e gemeu, empurrando o metal. — Mal-di-ta! — gritou. Colocou tudo de si na palma das mãos. PAING!, estalou o metal. Patrícia se agachou e olhou bem a tempo de ver um pouco de cimento sujando o chão. Vinha mesmo da dobradiça. Levantou-se e foi até os estilhaços da cadeira. Ergueu-a bem alto e jogou contra a porta, com toda força. Um pedaço grande continuou agregado à forma original. Outro, bem longo, saiu rodopiando e resvalando no chão. Ela correu até ele e o levou para a porta. — Agora eu quero ver! — disse cheia de vontade. Com aquele pedaço de madeira começou a raspar o cimento da parede. Não era tão fácil, como todo o resto daquela situação infernal. Patrícia tinha pressa, sabia das probabilidades com a sorte que andava tendo. A parede resistia, mas não muito. Os braços doíam como o diabo, o suor escorria com a ameaça da desidratação. Era tudo ou nada. Depois de dez minutos cavando, conseguiu ver todo o ferrolho. O filho da mãe que fez aquilo acabou enterrando uns vinte centímetros de ferro no concreto. Estava comido, corroído pelo próprio cimento, mas longe de ser estourado. Patrícia entortou um pouco a porta com os pés e fez uma espécie de alavanca com a madeira. Os músculos tremeram, a boca ficou apertada e o abdômen contraiu-se com o esforço. — Anda! — gritou. Deu uma folga e repetiu o movimento. — Vamos, você não pode aguentar para sempre! E não aguentou. Houve um estalo e a madeira partiu de uma vez, um estilhaço voou para o rosto de Patrícia. Acertou em cheio e ela sentiu um soco na maçã direita. Gritou e chutou a porta, dizendo todos os palavrões do catálogo. Só depois, quando cansou daquela birra merecida, se lembrou de verificar seu rosto. Passou as mãos, bem de leve, e sentiu a pele úmida. Deus! O que ela não daria por um espelho, por uma porra de bacia com água na qual pudesse ver seu reflexo. Tateou mais fundo e supôs que o rasgo tinha uns cinco, seis centímetros. Aquilo era terrível. Não bastava estar presa e lutando pela própria vida... Ainda tinha que ganhar um talho no meio do rosto. Levantou realmente furiosa e foi para cima da porta, chutando com os pés nus sem se importar com uma nova cicatriz onde ninguém notaria. — Seu monte de merda! Desgraçada! Fedi-daaaaaaa! — gritou. Patrícia não percebia, mas enquanto surrava o monte de ferro velho, o ferrolho desistia da parede. O ódio cego a incapacitava de perceber boas notícias. Melhor assim, porque quando caiu de exaustão (depois de tanto estresse era uma milagre não ter estourado uma veia do cérebro), notou a porta com uma nova abertura na parte de baixo. O metal havia se soltado da moldura mais grossa. Só aí ela arriscou um sorriso. — Vagabunda. Saiu do chão e foi verificar mais de perto. Com alguma habilidade ela seria capaz de empenar a porta e se arrastar por baixo. Juntou as forças restantes e cravou os dedos com força no metal afiado da porta. Sentiu alguns cortes novos que ignorou. — Força! — gemeu. O metal era duro como o coração de sua mãe, a poderosa prefeita Miriam Guerra que na maior parte do tempo preocupava-se apenas em ser apenas a poderosa prefeita Miriam Guerra. Um novo estalo proveu o que faltava, Patrícia se animou e fez tanta força que seus olhos ficaram vermelhos. O peito ofegava sem respirar. Ela ia em frente, só pararia morta. Um novo som estalado, o metal estava se movendo, provando que a adrenalina e a vontade fazem mais milagres que Deus. Ainda assim ela pensou nele, no cara de barba comprida que sabia o que era melhor para todo mundo, inclusive para ela. Então a lâmina escapou de seus dedos, Patrícia rolou para trás e ficou onde estava, sem coragem de olhar para o resultado de tanto esforço. Chorou mais um pouco, implorando para acordar daquele pesadelo horrível. Não foi o que aconteceu. Depois de dois minutos suficientes para que recuperasse o fôlego, ela estava sentada e olhando para a porta. Para a abertura que devia ter uns trinta centímetros e, em relação a um corpo, era apertada como sua vagina. Sem tempo para pensar — isso mesmo, ela ainda sentia-se ameaçada pelo cara de meia na cabeça, o filho da mãe mais burro desse mundo —, saiu do chão e meteu a cabeça pela abertura. A sala do outro lado estava vazia, a porta era de madeira e ela duvidava muito que tivesse tranca. De onde estava, parecia apenas uma porta encostada. Viu seus tênis em cima da mesa e sentiu um lampejo de sorte — também de humanidade, daquele filho da mãe. Pelo menos ele guardou os tênis em vez de roubá-los e vender por duas porções de maconha no bairro fedido onde devia morar. Empurrou mais o corpo à frente e ganhou um corte nos ombros. — Ai! Porta maldita! Suspirou e continuou, se arrastando, esvaziando o ar dos pulmões. Logo estava livre até os quadris. Queria ter menos bunda; perderia alguns garotos, perderia um pouco do amor próprio, mas algo que ela não precisava ali era de sua maldita bunda. Puxou o jeans para cima antes de continuar, deixou o tecido contra a lâmina para proteger a pele. Ainda parecia fino. Arrancou a camiseta e a colocou entre o short e a lâmina, ficou só com o sutiã. Pelos menos seus peitos estavam inteiros (e eles eram pequenos, graças a Deus, se ela tivesse peitos como Cristina Petra — a menina da sala apelidada de Combustão — morreria entalada). — Lá vamos nós — disse. Arrastou-se para fora do inferno sabendo de todos os novos cortes que receberia se os tecidos não resistissem. E isso nunca aconteceu. Priscila se livrou da próxima porta — e Deus deve ter tirado um tempinho para se lembrar dela, a porta estava apenas recostada —, apanhou a camiseta, calçou os tênis e respirou fundo quando avistou a estrada de chão que levava até a cidade. Correu até ela, um pouco cambaleante, mas cheia de uma nova energia. O vento soprava fresco sobre seu corpo, ouvia os sons da noite, exuberantes de tanta vida. Foi só quando chegou efetivamente à estrada que ela pensou em outro detalhe. — Onde eu estou? Ficou parada, de pé, olhando para os dois lados da estrada de chão. Estava em terreno baixo e não conseguia ver as luzes da cidade, também nenhuma casa por perto. O safado do sequestrador provava outra vez que não era tão burro assim. Pensar nele trouxe algo novo para sua cabeça: ele podia não estar sozinho. Que se dane, pensou. Vou para esquerda. Deu um passo desencorajado e parou antes de repetir o movimento. Ela ouviu alguém dizer: — Eu não faria isso, moça. Patrícia girou sobre os calcanhares e sentiu falta dos pedaços de madeira que deixou para trás. O que faltava acontecer? Ser violentada? Não, não mesmo! Se o farrapo de homem à frente quisesse alguma coisa, faria com um cadáver. — Eu tenho Aids! — ela gritou. — Ei, ei, ei. Podemos falar disso depois, coração. Nesse momento você precisa de ajuda. Estou certo? — Quem é você? — Alguém que pode ajudar. Olhou bem para ele. Aquele verme não conseguiria ajudar a si mesmo. Fedia tanto que o seu cheiro logo empestou o nariz fino de Patrícia. Era um mendigo, um andarilho sem rumo. — Pra que lado fica a cidade? Ele riu. Mostrou seus dentes podres sob a luz do luar que conseguia vencer as nuvens aqui e ali. O céu soltou um rugido. Chuva? Em Nova Enoque? — Não vai encontrar a porca da sua mãe na cidade, mocinha. Ela está do outro lado, Dona Miriam está tendo uma reunião desagradável. — Passou as mãos pelas barbas encardidas e castanhas. — Mas se der um pouco de prazer a um velho vagabundo, posso te arranjar comida. Você me entendeu, coração, eu como você, e você come da minha comida. — Não chega perto de mim! — disse, cobrindo instintivamente os seios. Vestia a camiseta que sobrou do apetite da porta, mas os rasgos mostravam um bom pedaço do seu sutiã preto. — Então corre, coração! Melhor correr para mamãe antes que você se foda! O andarilho deu um passo em direção a ela e abriu os braços, sua jaqueta velha, cor de terra, farfalhou. Patrícia ganhou dois metros de distância e passou diante dos olhos famintos do homem. Ele agarrou a própria virilha e sorveu o ar com vulgaridade. Meteu a língua para fora e a moveu como uma serpente. Seus olhos ficaram vermelhos, olhos de lebre. Patrícia não ficou parada para ver mais nada. Tomou a esquerda que estava livre, não arriscaria passar perto dele outra vez, nem para chegar à cidade. Patrícia só parou de correr quando seus pulmões estafaram. Então pensou em Miriam e no que disse o vagabundo. TERCEIRA PARTE
CARNE QUEIMADA
“É esse o mundo que dizem ter sido criado por um Deus? Não, deve ter sido criado por um demônio!” — Arthur Schopenhauer O CHEIRO DO SANGUE
As ruas estavam lotadas. De dor, falta de esperança e malucos. Zétia fez o que pôde para chegar à casa dos Minotto antes que o pior acontecesse, mas é como dizem: Deus tem seus planos e o diabo tem os dele. Desceu da viatura com a arma em punho e ignorou os gritos vindos do quarteirão anterior. O portão estava fechado, Zétia tentou o interfone. O som chato e eletrônico bipou até cansar, sem que ninguém atendesse. Zétia não desprezou o carro de Sultão estacionado três quarteirões antes da casa e, em vez de forçar o portão, disparou sobre o motor. Seus tiros não trouxeram ninguém à porta. Moradores ou vizinhos. Todo enoqueano decente estava com medo, resolvendo seus próprios assuntos. Os mais sacanas estavam fazendo o mesmo, porém piorando tudo. Era o cheiro, o cheiro do sangue infestava cada milímetro na cidade. Puxou o portão com força e checou se sua outra arma, que ficava no coldre torácico, estava carregada. Uma vez sua faxineira, Shirley, disse que não se lava paredes, que é preciso pintá-las. Zétia agora entendia o motivo. Nada apagaria a agonia da cidade, mas se os maus e loucos estavam sujando as paredes, caberia a ele uniformizar a cor vermelha. Entrou e ouviu o rufo do cachorro dos Minotto. Zétia conhecia Rockfeller desde filhotinho, ajudou a adestrá-lo. Sentiu uma pontada no peito imaginando que ele pudesse ser mais uma vítima da loucura da cidade. Esgueirou-se pelo muro e viu a silhueta de um cão deitado. Foi até ele. — Ei, garoto — disse, e tateou sua pele em busca de ferimentos. Rockfeller rosnou em um primeiro momento, mas foi só até reconhecê-lo. Em seguida lambeu sua mão. — Tá tudo bem, campeão. Vou cuidar de você. Zétia afrouxou a coleira e o ajudou a se levantar. Não foi fácil, Rockfeller parecia bêbado. Um pedacinho de carne estava bem ao lado, Zétia o apanhou e atirou para longe. Rockfeller chacoalhou a cabeça e deixou um pouco de baba na jaqueta de couro do delegado, depois pareceu bem o suficiente para caminhar. Seja lá o que deram para ele, não iria matá-lo. Talvez fosse só um tranquilizante, uma esperança ao mesmo tempo boa e cruel. Só um homem pensaria na saúde de um cachorro em uma situação tão desastrosa, o último homem de coração bom da cidade. — Galileu — suspirou. — Foi ele quem temperou seu bife, não foi, Rock? Depois de um espirro, Rock tomou a frente e entrou pela cozinha. Zétia logo atrás, com a arma empunhada. Deu dois passos na cozinha e sentiu o cheiro inconfundível de pólvora. De novo atrasado. Que porcaria, de repente ele não conseguia fazer mais nada por aquela cidade. Não está em minhas mãos, pensou e, embora não aceitasse uma regra tão bastarda, sabia que estava certo. Pensando bem, desde que os cupins e a falta de chuva assolaram a cidade, seu fardo era apenas observar a destruição. Foi assim com Milena Sultão, com os garotos da escola, com Pauline Bosco. Antes de chegar à casa dos Minotto, viu alguns caras mortos na porta do bar Quinze, pareciam ter matado uns aos outros. Atravessou a porta para a sala suando frio, ciente que veria outra obra de horror. — Rock, sai daí! — disse. O cão obedeceu e chiou fininho. Zétia guardou a arma e caminhou até o centro da sala. De repente estava no Iraque, perto do que sobrou de um carro bomba. Passou pelo corpo de Sultão primeiro, tateou sua garganta e seu pulso. Teve o carinho de fechar seus olhos para que ele não ficasse olhando o teto para todo o sempre. Luciano não causou nenhuma reação no delegado, nem piedade. Logo chegou ao corpo de Roger. Estranhou um cadáver que ainda não tinha passado pelas mãos hábeis de seu Ducatte, tanatopraxista da cidade, sorrir daquele jeito. Roger tinha dormido em paz. Ricardo estava no pé da escada, todo furado. No peito, na cabeça... O chão estava molhado de sangue, os degraus da escada, buracos de bala pelas paredes, alguns no teto. Rockfeller foi até Roger e lambeu suas mãos mortas, deitou ao lado dele e de Ricardo, em um pedacinho de degrau bem perto do chão. — Não perca tempo com os mortos — alguém disse às costas de Zétia. Seu primeiro impulso foi sacar a arma e atirar sem perguntar, mas não foi o que fez. De tão exausto emocionalmente, Zétia a devolveu ao coldre e girou o corpo para ver quem era. — Safira? O que está fazendo aqui? Ela vestia calça branca e uma blusinha de seda azul, tudo tipicamente da terceira idade — menos os tênis brancos que pareciam grandes demais. — O mesmo que você, delegado Zétia. E antes que me pergunte como cheguei aqui, tenho meus informantes. Como você tem os seus. — E eles são tão incompetentes quanto os meus, suponho? Safira mordeu um sorriso breve e sincero. — São sim. Ou não teríamos chegado a esse ponto, não é? — Sabe alguma coisa sobre o que aconteceu aqui? — Meus informantes, meus guias, eles disseram que você estaria aqui. Não estou atrás de Sultão ou dos Minotto, vim até aqui para falar com você, delegado. Precisamos conter esse mal antes que seja tarde demais. — Já é tarde demais, Safira. — Tarde demais para quê? Para salvar vidas? Para impedir que as pessoas enlouqueçam? Provável... Mas não é tarde demais para salvarmos nossas almas. — Do que está falando, vidente? — Você sabe. Do que ouviu mais cedo, pouco antes da cidade perder o juízo que tinha. Falo sobre Constâncio Trindade. Se preferir, Coronel Trindade como era conhecido. Zétia suspirou, cansado demais para outro mergulho nas águas lodosas da crendice. A história de Carlo Euripes ainda fresca na memória, tão sucinta a apodrecer e desaparecer quanto um pedaço de banana. Como a velha sabia sobre a conversa era a menor de suas preocupações. — Isso é demais para minha cabeça, Safira. Estou com corpos jogados em cada esquina da cidade e ninguém para me ajudar a carregá-los. Pode fazer suas orações se quiser; encomendar as almas dos mortos; faça seus rituais. Só preciso terminar meu trabalho e dormir uma semana inteira. — Quem faz esse tipo de coisa é o Padre Estevão, e ele não está mais apto a isso. Zétia perguntou por perguntar, já imaginava o destino do padre: — Esteve com ele? — Com o cadáver dele. O mal que assola nossa cidade não ia deixar o capelão, alguém capaz de rechaçá-lo, vivo. Se quiser ver o que sobrou dele pode pegar seu carro e acelerar até a igreja, mas eu garanto que isso não trará seu sono de volta. — Deus... Sentiu-se enfraquecido e por pouco não perde os sentidos. Precisou se apoiar no sofá antes de encará-la de volta. Respirou bem fundo e secou as mãos suadas no tecido. — O que sabe sobre o Coronel além dele ser um desgraçado justiçado pelas pessoas da época? — Minha avó o conhecia. Constâncio enriquecera com a fortuna herdada dos pais, mas não parou por aí. Ele tinha poder em suas palavras, ardil, dizem que seus olhos azuis e sua língua ligeira eram capazes de convencer uma pessoa a qualquer coisa. Conquistou políticos, prestígio, chegou a concorrer a um cargo influente na capital. E não que isso de convencimento seja uma grande coisa. Hitler também era bom em convencer os homens e qual foi o resultado? Com minha avó foi diferente. Ela relutou em ajudá-lo. — Seu Carlo do controle de pragas contou que ele abusou de um dos empregados. — Um? — escarniou. — O Coronel abusou de cada homem ou mulher que trabalhou em suas terras. Ele fez coisas horríveis. Mulheres engravidaram e perderam seus filhos, filhos dele, sob a sola de suas botas. Garotinhos foram trancafiados e abusados, os homens que se punham contra ele foram mortos. Sabe como chamavam a fazenda nessa época? — Zétia balançou a cabeça em negativa. — Fazenda Inferno. E era isso mesmo. Mas o pior ainda estava por vir. Depois que Constâncio os incendiou, temendo que os espíritos se vingassem, ele os encarcerou na morte. O Coronel os manteve escravos mesmo depois da morte, entendeu? Zétia se reergueu e procurou um cigarro que não tinha. Seria um bom remédio, tanto para o cheiro adocicado e ferruginoso do sangue que tomava a sala quanto para acalmá-lo. Mas ele teve a brilhante ideia de parar de fumar na hora errada. — Como espera que eu entenda uma insanidade dessas? Como é possível escravizar alguém morto? — Ninguém nesse mundo é santo, delegado. Minha avó conhecia sobre rituais secretos, cerimônias nascidas nos confins da África bem antes do homem se achar mais importante que os Deuses. Ela não entregaria nada ao Coronel, mas ele a obrigou. Constâncio Trindade colocou uma faca no pescoço da minha avó e disse que a mataria se não tivesse as respostas que procurava. Minha avó cedeu e o amaldiçoou logo depois, disse que estaria viva para vê-lo morrer. E assim foi, mas acredito que os espíritos escravizados deram a ele a força para a vingança que assola nossa cidade. — Então são eles? Quer me convencer que os próprios colonos assassinados estão manipulando as pessoas? Incitando todo mundo a fazer besteira? — Convencer alguém a qualquer coisa não é o meu trabalho, é do Coronel Constâncio Trindade e do que sobrou dele. Estou apenas mostrando os fatos. O que vai fazer com eles é problema seu. Zétia engoliu o orgulho e se permitiu acreditar em boa parte daquilo. Mas quis saber mais antes de sair caçando fantasmas. — Existe alguma maneira de parar isso tudo? Safira apanhou a bíblia que trazia dentro da bolsa escura. Era velha e sábia, como todo bom livro. De dentro da Bíblia, apanhou um envelope. Foi até o sofá e sentou-se. Esperou por Zétia. Rockfeller cansou dos cadáveres e deitou ao lado dos pés do delegado. — Parece que ganhou um amigo — disse Safira. — Eu tinha três gatos. Encontrei-os agora a pouco, fervendo em um tacho no fogão. — Eu lamento. — Eu também. E isso não vai trazê-los de volta. Devemos nos preocupar com os vivos, delegado. Quem cuida dos mortos são outros mortos. Abriu o envelope e tirou um papel velho a amarelado. De dentro, algumas fotos. — Isso veio da biblioteca, não preciso dizer que não devia estar comigo, mas não acho que vá me prender por isso... — E o que significa? — Aqui está o nome de três famílias que participaram de tudo isso, mas pode haver mais. Uma delas, os Torque, eles sempre estiveram metidos com política e dinheiro. Veja se reconhece esse rosto. Zétia apanhou o retrato e quase o deixou cair. — Impossível. Ele é...? — Não é o doutor Orlando. Mas a semelhança é incrível — Safira explicou e se esticou para chegar mais perto do retrato. — Não tenho fotos de nenhum ascendente dos Guerra, da família da prefeita, mas não duvidaria se a semelhança com ela também fosse impressionante, pelo que me lembro, era. Foram os Guerra que ajudaram a dar cabo do Coronel Trindade. Eles e Mariano Sultão, capataz da família Guerra. O fim de Constâncio foi o mesmo fogo que condenou seus colonos e um buraco entre as fileiras da cana-de-açúcar. Minha mãe, coitada, ela tentou entender tudo isso. Morreu bem antes de conseguir. — Tem alguma ideia do motivo? Por que isso está acontecendo agora? Ela pensou um pouco, as rugas da testa tornaram-se grandes sulcos de uma expressão incerta. Safira arriscou seu melhor palpite. — Os espíritos precisam de tempo até descobrirem o que aconteceu com eles. Creio que o Coronel tenha acordado só agora. A numerologia também explica uma parte disso tudo. Estamos fechando um ciclo, delegado. Algo que ainda não terminou. Expiações, provas, dor e sofrimento; tudo para que os próximos herdem um mundo melhor. Zétia não acreditava nadinha naquela lorota Maia de ciclos e de fim do mundo, então preferiu perguntar de novo: — E não podemos fazer nada? — Temos um descendente do Coronel entre nós, alguém que pode trocar vingança por paz. — Conseguiu um nome? — Não, mas... Um ruído de telefone antigo cortou a conversa. Era o celular de Zétia. Estranho que funcionasse agora. Horas antes, tentando reforço com outras cidades, tudo o que conseguiu foi o sinal ininterrupto de ocupado. Em todos os telefones fixos ou móveis que tentou. — Só um minuto... — disse Zétia e saiu do sofá. Ficou perto da porta da frente, coçando o queixo e conversando frases cortadas. Sacudiu a cabeça e bufou. Disse para a pessoa do outro lado que “não era possível”. Em seguida desligou, se irritando um pouco com o aparelho que voltou a não dar linha. — Colocaram fogo nas terras da usina abandonada. Acha que tem algo a ver com o que acabamos de conversar? Safira riu, se perguntando até quando a autonegação estúpida do delegado iria perdurar. Tão logo os papéis foram guardados, eles saíram da casa dos Minotto. Rockfeller os acompanhou, enchendo o banco de trás da viatura. GUERRA E TORQUE
Miriam recebeu uma ligação perto das nove e meia, horas atrás, dizendo que, se quisesse ver sua filha com vida, deveria estar em frente ao cemitério da cidade, sozinha, em trinta minutos. Ela já sabia o que esperar: mais um truque da cabeça doente de Orlando Torque. Mesmo assim foi até lá. Não sozinha; isso seria desafiar demais sua inteligência. Dionísio estava com ela. — Sabe que é uma péssima ideia, não é? — ele perguntou. Miriam estava ao seu lado, dentro do carro, fumando um cigarro abandonado quando Patrícia nasceu. — Não temos ideia melhor. Se quiser ir embora, pode me deixar aqui. Dionísio soltou o ar dos pulmões com algum ruído. Era um homem grande, forte, sua respiração não era diferente. — Eu não deixaria a senhora sozinha, prefeita. Quando eu precisei, você e sua família estavam lá. Em noventa e dois, Dionísio teve um problema sério no coração. Seu tamanho exagerado e a carga de exercícios quase acabaram com sua musculatura cardíaca. Foi levado às pressas até o hospital de Nova Enoque. Estava agonizando, esperando uma internação de emergência que não resolveria muita coisa. Era isso ou uma transferência para São Paulo, para o hospital Albert Einstein. Miriam estava no saguão, era vereadora ainda, acompanhando Patrícia, internada por causa de uma bronquite. Miriam acabou penalizada com a situação do homem e com três telefonemas — e a cobrança de um punhado de favores — arranjou tudo. Em uma hora, a transferência para o hospital em São Paulo estava autorizada. A recuperação inicial de Dionísio levou semanas. Sua recuperação final, meses. Por todo esse tempo a então vereadora Miriam Guerra acompanhou o caso de perto, chegou inclusive a visitá-lo em São Paulo, levando com ela a esposa de Dionísio. Eles eram bem pobres na época, e Miriam, depois de tudo resolvido, aceitou Dionísio e matriculou em uma das melhores academias da região para ser seu segurança particular. Ele continuou: — A senhora sabe que o vereador Orlando não virá sozinho, e também sabe que isso é obra dele, não é? Talvez ele nem apareça... — Sei sim. Mas é a única chance de encontrar minha filha antes que o pior aconteça. — Devaneou um pouco pelo vidro serenado do carro. — A vida é feita de riscos, meu caro. Ninguém chega a lugar nenhum sem assumir alguns. Viu alguém lá dentro? — Tirando meia-dúzia de vagabundos comemorando o fim do mundo, não. Vai ver era um trote. — Hoje? Ninguém teria senso de humor para isso. Esperaram mais quatorze minutos tentando enxergar algo através do vidro embaçado. Às vezes Dionísio ligava o ar condicionado, tentando garantir uma visibilidade mínima, mas não resolvia muita coisa. Podiam ouvir claramente os animais excitados. Morcegos, cães, gatos, parecia que todos faziam hora extra com seus silvos, latidos e miados satânicos. Pelo caminho até ali, um exagero de insetos se chocou contra os vidros do carro. Perto do clube da cidade, o Enoque Country Club, chegaram a quase parar o carro. Toda aquela gosma e restos transformaram o vidro em um fundo de pote de requeijão. — O que é aquilo? — Miriam perguntou. Dionísio aproximou o rosto do para-brisa. — Algum tipo de luz, parece alguém piscando uma lanterna. — Vamos até lá — ela disse, destravando a porta direita. Dionísio tocou seu braço, apertou com força, contendo seu ímpeto em descer. Miriam o encarou sobressaltada, será que até o seu homem de confiança perdera o juízo? — Vai precisar de uma arma, prefeita. Sabe atirar? — Desde criancinha — Miriam sorriu. Apanhou o revólver estendido por Dionísio e checou se a automática, uma 765, estava destravada. — Tem outra arma? — Preciso de uma arma compatível com meu tamanho — disse com sua voz rouca. Apanhou uma doze cerrada do banco de trás. Miriam desceu e esperou por ele, perguntou sobre a chave, e Dionísio explicou que era melhor deixá-la no contato, para o caso de precisarem sair correndo dali. Ele desceu e tomou a frente. — Lado a lado, grandão. Ninguém aqui é melhor que ninguém. Ele assentiu, e Miriam disse em seguida: — Se alguma coisa acontecer comigo, encontre minha menina. Não deixe que eles descontem nela o ódio que sentem por mim, Patrícia é só uma garotinha. — Não precisa me pedir isso, prefeita. E sobre sua filha, a Pati, ela tem metade do seu sangue nas veias. Tenho certeza que vai se sair bem, com ou sem a nossa ajuda. — Miriam gostou de ouvir aquilo e teria pedido a Deus que fosse verdade se acreditasse nele. Infelizmente, depois de tudo que viu e ouviu na política, a ideia de um criador que tudo vê, tudo sabe e tudo pode não era plausível. — Cadê a porcaria da luz? — Lá dentro. O safado correu entre as tumbas. Atravessaram a rua, as armas em punho funcionando como algum tipo de garantia contra a má sorte. Um cão apareceu na calçada à frente, um Dobermann. Ele sentou e ficou olhando para eles, seus olhos refletiram a luz de um carro que passou correndo e deixando um pouco do refrão de Since I Don’t Have You na versão Guns N’ Roses. O cão rosnou quando os dois avançaram, parecia tentar dizer que eles estavam prestes a cometer outra idiotice — mas talvez só estivesse assustado como o resto da cidade. Dionísio estalou os dedos, e ele saiu correndo. Parou uns cinquenta metros à frente; uivou e continuou correndo. — Isso foi esquisito — disse Miriam. — Animais sentem as coisas, prefeita. Eu tinha um gato em casa, antes do meu coração pifar. Sempre que eu deitava no sofá para ver tevê, ele ficava deitado sobre o meu coração, ronronando. Um dia antes de eu piorar de vez, ele fugiu. — Não queria ver você sofrendo... — Acredito nisso, mas acredito mais ainda que ele não queria que eu me preocupasse com ele. O gato sabia. Pararam rentes ao meio fio, em frente à estrutura que ficava sobre as colunas que sustentavam o portão aberto. Cem quilos de aço trabalhado que estavam ali há muito tempo. Dionísio teve a intuição que a porcaria toda podia vir abaixo quando eles atravessassem. Guardou para si, mas pela expressão de Miriam, olhando para cima, ela pensava o mesmo. Ele foi na frente dessa vez, tanto para provar que era seguro quanto para poupá-la caso o troço realmente caísse. Parou logo que atravessou, antes de tomar o chão de cimento trincado que levava aos mortos. — Ele está ali? Consegue vê-lo? Dionísio fez que não com a cabeça. — Vamos, quero botar minha filha na cama essa noite. Passaram pelos primeiros túmulos, e Dionísio sentiu seu corpo arrepiar em frente a cada um deles. Os Andaluz, os Noronha, o mausoléu da família Sultão que tinha recebido alguém recentemente. Quando passaram pela cova mais cara, pertencente à família da prefeita, a luz da lanterna distante começou a piscar, parecia ter um ritmo, brilhando uma vez a cada dez segundos, talvez um pouco mais. Miriam se benzeu pedindo proteção aos seus. Um pássaro noturno soltou seu assovio mordaz, cheio de maldições. — Tá estranho, prefeita. — E o que poderia ser normal em um cemitério? — Estou falando sobre a luz. Não está como antes. — O safado quer que a gente vá até lá. Não vamos decepcioná-lo. Seguiram em frente, e Dionísio teve um orgulho sufocante daquela mulher. Mesmo com o que diziam sobre a prefeita, que ela era uma vaca egoísta e que privilegiava a elite da cidade deixando os pobres na merda, ela era uma mulher e tanto. Quantas seriam capazes de enfrentar um cara de fama ruim como Torque? Pela cidade também corriam boatos sobre ele, bem piores do que ter roubado a merenda de um monte de criancinhas. Torque era um bandido, alguns laranjas assumiam suas picas, mas à boca pequena diziam que ele chefiava uma quadrilha de sequestros para pagar suas campanhas. Isso, assaltos a bancos, e de tudo um pouco que cheirasse a dinheiro ilícito. — Cuidado — ele disse, apanhando a prefeita que pisou em falso. Ela agradeceu e em seguida quebrou os saltos dos sapatos. Não era hora de ser elegante. Caminharam um pedaço de solo íngreme e pararam pouco antes da luz, em um pedaço de noite onde nada estava nítido. A noite que por dias brilhou clara não ajudava mais, havia ganhado nuvens e um vento carregado de umidade. Mesmo distante três ou quatro metros, a luz ainda era um mistério, oculta em um arbusto de acácia. Miriam avançou depressa demais para ser alcançada por Dionísio. Ele tocou seu braço direito, mas o suor o impediu de agarrá- la. Ao lado do arbusto, o túmulo reservado aos Torque. Miriam invadiu o espaço com raiva e destruiu o arbusto com as próprias mãos. Depenou a pobre arvorezinha e apanhou o que encontrou oculto pelas folhas. — O que é isso? — perguntou a Dionísio. Ele chegou mais perto. Era algum tipo de equipamento programado. A lanterna estava lá, brilhando automaticamente. — É uma armadilha, prefeita! Armaram para gente! — gritou, e olhou para os lados com histeria. Correu até ela, mas não chegou a dar dois passos. Um som explosivo vindo de algum lugar à frente, encheu o silêncio do ar. Miriam viu o brilho, claro que era uma arma. Atirou de volta, até descarregar a 765. O covarde respondeu dois ou três tiros, e ela ouviu passos se afastando. Correu para o seu anjo da guarda, pouco preocupada consigo mesma. Dionísio estava de joelhos no chão trincado do cemitério. — Aguenta firme, grandão. Vamos tirar você daqui. Seus olhos grandes estavam mareados e surpresos. A mão saiu de perto do coração, foi onde o tiro o acertou. Ele a espalmou e mostrou a Miriam. Estava tremendo um bocado. — Tá ficando frio, dona Miriam. — Estendeu a arma que havia derrubado no chão. — Fica com ela. — Não! — Miriam protestou. Então outro disparo acertou a árvore do lado oposto a tumba dos Torque. — Sua filha precisa da mãe, prefeita. Eu fico com a sua arma; vou recarregar. — Não! — disse outra vez. Tentou arrastá-lo. Dionísio tomou a mão direita de Miriam, fez força para que ela aceitasse sua arma. Caibre grosso, cano serrado, carregada e pronta para pacificar qualquer animal doente. Tomou a arma que estava com ela e a recarregou com um pente que tirou do paletó. A mão e o pente voltaram cheios de sangue. — Precisa ir. Eu já sou grandinho. Miriam estava chorando quando outro tiro resvalou no granito caro da sepultura dos Vasques. Família rica e que infelizmente teve seu último representeando enterrado em dois mil. Era um garoto, Miguel Vasques. Acabou se afundando depressa no rio de cocaína que corria solto na cidade. — Vá prefeita. Já me deu mais vida que eu merecia — disse com muita dificuldade. Ela relutou mais um instante e correu. Torcia para chegar aos portões antes do safado que baleou seu anjo da guarda. Seu corpo não era mais o mesmo, suas pernas estavam cansadas, seus músculos fibrilavam. Pouco antes do portão, ouviu alguém gritando da parte que ficou para trás: — Não vai fugir para sempre, Miriam! Matei seu gorila e vou fazer o mesmo com você! Cadela! Era Torque. Parecia um pouco embriagado, rindo e gritando palavrões. Miriam parou de correr quando atravessou o portão, apanhou seu celular e discou o número de Zétia. Não soube bem porque fez aquilo, os telefones estavam malucos, então... — Delegado! Graças a Deus. Preciso de ajuda no cemitério! — Miriam? Prefeita? Não posso ir até aí agora, estamos indo até a usina. — Encontraram minha filha? É isso? Ela está bem? Torque apareceu no corredor e atirou de novo. O projétil acertou o portão, e a bala desviada riscou a barriga de Miriam. Com a dor ela deixou o celular cair e acabou pisando sobre ele. O apanhou de volta, ignorando o corte razoável na barriga. O I-Phone estava arruinado. Deu um tiro de volta, apenas para atrasar Torque, atirou o smartphone no chão e correu para o carro. Iria buscar sua filha. AINDA ESTOU VIVO
Quando Jota abriu os olhos de novo, estava tomado pelo cansaço. Suas pernas formigavam, seu peito doía, sua mente de tão superaquecida não reagia aos cadáveres. Pêra estava caído bem ao seu lado, mais à frente, o clone mal produzido de Mike Tyson exibia um pescoço torcido. Perto da porta, Barba — que agora poderia ser conhecido como barba vermelha. Ainda se perguntava o que teria sido realidade de tudo o que viu. Ergueu o corpo e notou que estava livre. Não foi fácil, seu corpo magro pesava uma tonelada. A boca ardia rasgada nos lábios. Checou as marcas nos pulsos e nos tornozelos, sem dúvida a parte do espancamento foi verdade. Caminhou até B. Tyson. — Você teve o que mereceu, desgraçado — disse. Chutou a carcaça. Três moscas saíram pela boca escancarada do morto e ganharam o ar fedido do galpão. Jota chegou bem perto e pousou a mão sobre a boca do cadáver. Gelado. — Foderam você todinho — disse, enquanto avaliava o rosto negro e atormentado do homem. Os olhos estavam arregalados, tanto ou mais que a boca. Havia pequenos ferimentos pelo rosto, alguns com sangue já coagulado, outros em carne viva. Uma das serpentes deve tê-lo abocanhado no nariz que agora parecia pertencer a um palhaço de circo. Teve a decência de fechar os olhos (precisou tentar mais de uma vez para conseguir) do desgraçado e foi até o segundo homem a descer para o inferno em mão única. Sentiu vontade de ir até Pêra e rezar por ele, porém nunca fez isso. Uma que não acreditava em orações e outra que, se Deus permitiu aquilo tudo, devia estar bastante ocupado ou distraído. Barba estava mais comprometido que B. Tyson. Um dos olhos estava fora das órbitas, uma perna virada por cima do joelho como um trapo velho, e não havia partes em seu rosto livres de sangue. Ele estava completamente inchado, inflado, parecia alguém ou alguma coisa em pleno estado de decomposição. Jota precisou olhar para outra direção ou vomitaria em cima dele. Jota, o cara durão, o mais esperto entre os vagabundos, agora resumido a uma testemunha ocular do impossível. Seu corpo todo tremia enquanto o ar entrava pela metade nos pulmões. Pensava em quantas costelas aqueles medonhos haviam quebrado com suas botas. Armou-se com um pedaço de madeira que estava no chão entre os dois homens e foi até a porta. Antes de tocá-la, notou que nem todos os monstrinhos tinham ido embora. Viu larvas, dois escorpiões pequenos e uma aranha. Golpeou o metal com o pedaço de madeira. Soou alto, um sino tocando no meio do inferno. BLEIN! BLEIN! BLEIN! Os insetos e larvas caíram. — Onde vocês foram parar? — perguntou, pensando nas cobras. Ainda que gostasse delas, se encontrasse alguma a partiria ao meio, em três partes se possível. Mas talvez essa parte tivesse mesmo sido um sonho, onde teriam se escondido dezenas, centenas (?) de cobras? Colou os ouvidos à folha de metal, esperando ouvir os dois homens que ficaram do lado de fora. Por mais pestes que existissem no mundo, era improvável que não tivessem conseguido fugir ou se esconder. Cobras são perigosas, mas o resto dos insetos? Um pisão bem dado resolveria. Não ouvia som nenhum. Preciso de uma arma, pensou. Olhou a porcaria em suas mãos. Deviam ter acertado pancadas demais em sua cabeça para lembrar disso só agora. Acertaram mesmo, uma delas, bem em cima da cabeça; pulsava junto com o coração. Jota tateou suavemente a ferida e tirou os dedos rapidamente, assustado com o comprimento do rasgo. Abandonou a porta mais uma vez e foi até B. Tyson. Procurou em suas mãos e não encontrou nada que não fosse sangue. Tateou com nojo a musculatura da barriga morta do corpo, precisou agachar para fazer isso e só então percebeu que seu pobre saco estava dolorido. As bolas dentro do jeans de Jota deviam estar com uns seis centímetros de diâmetro. — Ah, danada, como foi parar aí? Havia uma arma sim, estava embaixo do corpo daquele boçal. O que dava para ver dela era só a pontinha do cano. Jota prendeu os pés na cintura de B. Tyson, o agarrou pelas calças e pela camiseta e puxou com força. Seus braços doeram muito e o corpo só girou um pouquinho, não o suficiente para que Benê saísse de cima da arma. Esfregou as mãos para relaxá-las, respirou fundo um bocado de vezes, quando estava pronto repetiu o movimento. — Ah, que merda! — gritou. O corpo rolou de uma vez e Jota acabou se desequilibrando e caindo no chão melecado com sangue. Pensou em todas as doenças que aquele animal cultivou durante a vida. Gonorreia, herpes, hepatite, o senhor fortão ali devia ter até pulgas. Limpou as mãos ensanguentadas nas partes limpas das roupas dele. E chega desse negócio de honrar os mortos, a única maneira digna se honrar um cadáver é seguir em frente. Encontrou balas no bolso de trás da calça e foi igualmente nauseante retirá-las do tecido apertado que delineava a bunda generosa do senhor cadáver. Voltou para porta e colocou a arma na cintura. Precisaria das duas mãos para abrir aquela joça. Puxou com tudo e a porta se moveu bem pouco. Acabou sendo útil. Pela pequena abertura ele não conseguiria sair, mas ninguém do outro lado conseguiria entrar, o buraco serviria bem somente para espionar. Antes de meter o rosto arrebentado pela abertura, colocou as mãos e acenou, arriscando perder uns dedos. Também não aconteceu. Ele tomou coragem e olhou para o lado de fora. Uma brisa fresca o atingiu devolvendo o que precisava de energia, não muito, apenas o suficiente para trocar uns socos, uns tiros e sair daquele inferno. Jota estava impressionado com a falta que sentia de sua casa de merda, de suas amizades perniciosas e de sua vida inútil. Com seu novo referencial de dor, sofrimento e surpresas desagradáveis, nada parecia tão bom quanto o passado. O cheiro da terra foi tão bom que ele fechou os olhos quando se assegurou que nada do outro lado o ameaçava. Junto com a terra, algum cheiro de madeira queimada vindo dos restos de uma fogueira. — Socorro... — alguém disse do outro lado. Disse não; gemeu. Quis fechar a porta, mas ficar dentro daquele maldito galpão abafado não era solução razoável. Entre ficar ali e arriscar ser morto? Ninguém é feliz de verdade enquanto teme a própria morte. Empunhou a fechadura e a empurrou usando sua reserva de energia, sentiu a coragem irrigar alguns órgãos. Sabendo que era inútil pensar demais, empunhou a arma e saiu; peito aberto e projetando o braço armado em todas as direções possíveis. Nada novo, a não ser o terreno plano que se estendia por uns cinquenta metros. Um pouco mais além, a cana-de- açúcar que continuava pilhando a terra. À direita, o terreno era bem mais estreito e alongado, era a parte que levava à estrada. A noite estava escura, soprando o vento mais frio dos últimos meses. Logo Jota deixou isso de lado e procurou pelo dono daquele pedido de socorro. Andou por uns vinte metros, sempre colado à parede de blocos do galpão. Sentiu seu calor reativo depois de um dia coalhando ao sol. Já desistia, crente que o pedido havia sido outra projeção de sua cabeça estressada. Projeção? Delírio? Os três homens lá dentro não pareciam uma psicose. — Aqui! Aqui em cima! — repetiu a voz. Jota se afastou da parede e encontrou Siqueira suspenso por cordas. Estava agarrado a elas, se as soltasse ficaria mais morto que B. Tyson e Barba. Jota procurou pela base da corda, olhou ao redor, também checou o interior do galpão. Talvez alguém tivesse subido por dentro, pelas escadas. — Não encontro a corda! — disse. — Anda... An-da com is-so — sibilou. Os pés sacudiram um pouco, tentando encontrar algum apoio que não existia. Um pouco de urina escorreu. Jota teve pena do detetive Siqueira. Quando era garoto, ele e Lobo gostavam do detetive. Ele era polícia, mas era legal, não implicava que eles soltassem pipa pelas ruas ou fumassem escondido. Um dia ele até aliviou para eles depois de tê-los flagrado com mais meia dúzia de indecentes pichando a parede da igreja. Eram os anos noventa, e todo cara pobretão da cidade gostava de Heavy Metal — e a maior parte deles não gostava nada do Deus que nunca deu dinheiro a eles. Siqueira foi compreensivo e deixou que outros dois policiais resolvessem tudo com uns chutes na bunda em vez de levá- los ao juiz boçal e impotente da Nova Enoque do passado (o cara gostava mais da Febem do que da esposa). Nada demais. Quando se tem quinze anos e merda na cabeça, apanhar da polícia é quase diversão. — Quem fez isso com você? — Jota perguntou, enquanto se movia feito uma barata tonta. Havia olhado em todas as direções, não restava nenhuma, a não ser mesmo a escada lá dentro. Ele estava indo até lá quando o isqueiro Zippo de Siqueira se espatifou no chão. — Não! Eu vou tirar você daí! — Jota gritou. Não dava para ver muita coisa com a noite tão escura, mas Jota enxergou uma lâmina na mão direita de Siqueira. Era bem pequena, e ele apostaria que era um canivete disfarçado de caneta que sempre andava com Siqueira desde os tempos de policial fardado. Todo mundo se amarrava naquilo, era perfeito. Pequeno, inútil e perfeito. Não que fosse inútil agora, quando o detetive o usava para cortar as cordas. — Vai morrer! É muito alto! Pelo menos oito metros até o chão. Jota olhou ao redor, pensando em algo que pudesse servir de colchão. Talvez um dos caras mortos lá dentro. Bobagem... Não conseguiria arrastá-los a tempo, nem Pêra que era bem magro. — Não! — gritou outra vez. Em seguida o corpo de Siqueira desabou como um saco de farinha. Ele ainda tentou se agarrar ao muro, mas suas mãos fizeram bem pouco. Ele desceu rápido e acabou caindo de costas. — Minha nossa! Em um segundo Jota estava com ele, sentado no chão e apoiando sua cabeça rachada. Um sangramento razoável saía por um corte frontal, do lado direito da testa, e também pelo nariz. Siqueira tossiu e cuspiu mais do seu estoque de sangue. Limpou a boca com a manga da camisa. Ele estava todo furado, picado, sua pele era um mar de furúnculos e erupções nojentas. — Eu não queria... Morrer enfor-forcado. Isso é pra vagabundos. — Ei, não vai sair dessa se ficar conversando comigo. — Não vou sair... Não vou sair dessa de jeito nenhum, rapaz. Eu — tosse —; eu mal posso respirar. Estou me afogando. — Quem fez isso? Os homens do Orlando? — Sim, mas não... Estava difícil completar as frases, Siqueira estava perdendo temperatura depressa, seus olhos não conseguiam encontrar um foco, o peito subia e descia galopante. O homem estava morrendo. — Não fizeram sozinhos. Alguém apareceu e os convenceu a isso. Depois os... Convenceu os safados a acenderem uma fogueira e se atirarem nas chamas... Ele não era humano, rapaz. — Onde eles estão? Precisa me dizer onde estão! — No fogo. Eu vi enquanto queimavam. — Quem fez isso com vocês?! — Jota perguntou, o sacudindo um pouco para que não morresse. O olhar de Siqueira ficou ainda mais distante, seu corpo tremeu, ele agarrou a camiseta escura de Jota e o puxou para chegar bem perto de seu ouvido direito. Usando sua última arfada de ar, disse: — Ele. Jota cedeu os olhos para uma explosão que encheu o ar de amarelo. A fogueira que Siqueira mencionara estava lá, ardendo de novo, com um sujeito estranho à sua frente. Jota deixou o detetive no chão, ajoelhou e empunhou sua arma, algum lugar escuro em sua mente disse que era idiotice. DEMÔNIOS AMAM OS SEUS
— Não se mexe, irmão! Não se mexe ou juro por Deus que atiro. O homem à frente riu e ajustou o colarinho da gravata. Usava um terno antigo com risca de giz, devia ser valioso. Ele não se moveu, apesar de Jota duvidar muito que sua ameaça tivesse sido o motivo. — Abaixe isso, rapaz. — Antes me diz quem é você! — exigiu Jota. Suas mãos tremiam segurando a arma. Estava um pouco distante da fogueira, porém perto o bastante para sentir o cheiro de carne queimada. Siqueira estava certo, o cara de pescoço irritado e os outros capangas de Orlando Torque ainda estavam assando naquelas brasas. O vereador voltou sozinho para a cidade. — Sou quem você procurou a vida toda. — Eu não procurei por você, aberração. — Saiu do chão e ficou em pé, sentindo que os joelhos queriam outra coisa. O direito estava inchado. Ele agulhava, mesmo com os pequenos movimentos de Jota. — Agora fica quietinho, eu vou amarrar você. — Sua valentia me comove — disse, para sem explicação racional, reavivar a fogueira. Logo as chamas tinham quase um metro de altura. Jota não se abalou com o show pirotécnico, o homem continuou onde estava, e ele se aproximou. Não muito perto, só o suficiente para mais tarde (quando pudesse falar com o delegado) reconhecê-lo. Zétia era um filho da mãe bem grande, mas queria o melhor para Nova Enoque. E o melhor era prender aquele maluco. Estava na cara que ele acabou com os homens que ficaram para fora. E de alguma maneira, com os dois lá dentro. Devia ter uns sessenta anos, grisalho, bem cuidado. Um pouco alto, um e oitenta ou mais. Jota aproveitou o brilho do fogo para olhar bem para ele. Sapatos polidos, um quê de cinismo no azul extremo dos olhos, nada surpreendente em um assassino. O único detalhe que o separava de uma pessoa absolutamente normal eram as unhas. Ao contrário do resto, eram negras e mofadas, grossas demais e com as pontas arruinadas. — Tenho que te contar uma história, rapaz. — Deu um passo à frente. — Fique onde está, coisa ruim! Não se mexa ou ganha um buraco novo no terno. O homem riu, gargalhou, e em seguida ergueu as mãos por trás da cabeça. Girou o corpo sem sair do lugar, e o que mostrou a Jota sugou o ar de seus pulmões estropiados. Jota recuou um passo e baixou a arma. — Não se preocupe com o terno — o homem disse. Ainda estava de costas e um pouco de vapor deixou sua boca, embaçando a luz sibilante da fogueira. — Mãe de Deus! — Jota disse. O terno caro era outro pelas costas. Para começar, não havia muito tecido. Os poucos fiapos estavam mofados e desprendiam terra. E isso não era tudo... O homem não vestia um terno completo e comum, vestia a roupa que antigamente servia aos mortos. Jota trabalhou um tempo (muito pouco, uns três meses) para o maquiador de cadáveres da cidade e, entre um cadáver e outro, folheou um álbum antigo, cheio de funerais mais antigos ainda. Seu Ducatte tinha pedido que fizesse isso, o velho tinha esperanças de transferir a ele o que havia aprendido. Antes a profissão era respeitada, mas nos anos modernos, Ducatte era considerado um urubu. — De onde você saiu? Quem é você? — Jota perguntou, quando viu as larvas. Elas emergiam em alguns pontos, abreviando a podridão da carne como deveriam fazer às escuras. As mãos desceram de onde estavam, e o estranho estalou os dedos com um truque de circo. As fibras soltas do terno ganharam vida, ganharam forma, e começaram a se reconstruir. Fios entrelaçando-se sem agulhas ou mãos, fios saltando sobre a carne podre do homem. Jota sentia os ossos congelados, os olhos expurgando o nervosismo impossível de conter dentro da cabeça. Devia ter saído correndo ali mesmo, atirado no homem pelas costas e cuidado de sua própria bunda. Antes de virar-se de frente, o estranho estalou o pescoço, o som foi tão alto e enjoativo que pareceu ter vindo de ossos quebrados. Jota recuou outro passo, certificou-se do caminho livre até a estradinha (é... porque aquele moribundo podia não ser o único safado presente no terreno maldito da usina). — O que é você? Outra vez, os olhos azuis encaravam Jota. Eram ruins. Pareciam ler sua alma e roubá-la aos poucos. Pareciam conhecer todos os segredos. Antes da resposta do estranho, os mesmos olhos mudaram de cor, foram inundados da periferia para o centro por um negrume líquido. Logo tudo era preto naqueles olhos, olhar para eles era como cuspir nas obras de Deus. — Sou? Sou ou fui? — Não me interessa! Só diga quem é você! — Sou o homem que matou seu pai, rapaz. — Meu pai morreu em um acidente! O estranho riu; um pouco contido. Os olhos continuaram negros, as unhas continuaram sujas, compridas e trincadas. Ele não era humano, não havia nada de humano no desgraçado, nada que não fosse o terno e os sapatos polidos. — Foi o que disseram a você, Jota? Que o papaizinho morreu acidentado? — Arregalou os olhos, e um pouco daquela fumaça fria escapou pelo nariz. — Claro que disseram isso, rapaz. Se tivessem contado toda a verdade, você não voltaria para essa cidade inútil. Você daria o fora e nunca mais teria coragem ou vontade de pisar nessas terras. Mas sua mãe concordou em ficar calada depois de umas palavrinhas com um amigo. Ela tentou fugir, sabia? Deu a você outro sobrenome. Inútil. Ninguém consegue tirar a família do sangue. — Isso é mentira. Você é uma mentira, e eu provavelmente morri sufocado pelas cobras lá dentro. Isso faz de você a última gota de pensamento do meu cérebro. Ou talvez nem as cobras sejam verdade. Eu devo ter sido morto pelos safados lá dentro, assassinado igual ao Pêra. — NÃO SE COMPARE A ELE! NÃO DESONRE SUA FAMÍLIA! — o homem gritou. As chamas da fogueira arderam dois metros ou mais, e a cabeça de um dos cadáveres (impossível saber qual) explodiu com um som pastoso. — Eu não sou sua família! Pode ter matado meu pai e minha mãe, mas isso não faz de mim seu parente. Você é o quê? O demônio? Satanás? Como entrou em nosso mundo? Jota não acreditava nas palavras que escapavam por sua boca. Ele era cético, era prático, se esforçava para ser o cara mais durão da cidade. Em toda sua vida deve ter pensado sobre demônios e anjos umas duas vezes, e enquanto contava no relógio os minutos que faltavam para acabar a missa. — Chega de conversa, preciso de você para terminar o que comecei. — Não chega perto! — Você deve ceder! É o seu destino! O filho homem deve servir à família! — Fica longe de mim! — gritou. Foi inútil. O homem grisalho continuou andando, os olhos negros e líquidos mostrando o reflexo ovalado do rosto assustado do herdeiro. Jota colocou o dedo no gatilho e deu outro passo para trás. Tropeçou e se enroscou com o corpo morto de Siqueira, acabou no chão. Rastejou de costas, se afastando do morto, sem tirar os olhos do estranho. A arma na mão direita. — Não! As unhas apodrecidas estavam perto, e o desgraçado que as possuía não caminhava, ele flutuava como uma maldita assombração. Aquilo não era humano, não podia ser. Melhor assim. Jota teria dificuldades em atirar em um humano. — Morre maldito! — disse. Descarregou a arma em cima dele. As balas perfuraram o terno caro, perfuraram a carne, e nenhuma gota de sangue molhou o chão. Tudo o que saiu foi poeira e algo esverdeado que cheirava a esterco. Os tiros projetaram a entidade para trás, enquanto a carne absorvia o impacto. Jota queria correr dali, mas não parecia o melhor a fazer. Tinha que finalizar com aquela coisa, deitar seu corpo na fogueira e esperar que ardesse até desaparecer. Seria o único jeito de dormir outra vez. — Terminou? — perguntou, limpando o terno. Furo por furo, ele foi reconstruído, como suas costas podres minutos atrás. Jota continuou disparando. Click Click Click — Preciso de você. Não posso deixar essa terra até terminar minha vingança. Eles desonraram nossa família, rapaz. Desonraram a mim e a todos os que nasceram depois. — Por favor... não — suplicou. A visão aterradora do ser esmagava sua sanidade. O ar poluído por morte, só havia dor e ódio naquela criatura, sentimentos tão potentes que contaminaram Jota. Ele se afastou mais, sempre rastejando de costas, até encontrar a porta do galpão. Estava fechada de novo. Jota a pressionou, tentando atravessar para o outro lado, empurrou a cabeça com força buscando um desmaio. Não aconteceu. A escuridão do ser a sua frente partiu dos olhos para o resto do corpo e o transformou em fuligem. Antes que Jota conseguisse se levantar, o fumo maléfico tomou a forma de uma gota e o invadiu pela boca aberta. Ele ainda reagiu, apertou a garganta com as mãos, depois tentou regurgitar o mal que o encarnou. Logo, seus olhos também estavam negros. A CULPA É SUA!
Prefeita Miriam estava à frente, acelerando o que conseguia em seu carro. Dos vidros da parte de trás, sobrou bem pouco. O da frente também tinha um rombo feito por uma bala de Orlando Torque. Ele deixou o cemitério e saiu logo atrás da prefeita. Estava enlouquecido. Sua vida resumida à única missão de acabar de vez com aquela vagabunda. — Maldito! — Miriam gritou, depois da Curva do Jambeiro. Uma árvore enorme ficava no ponto mais inclinado da curva, se você não reduzisse, dava de frente com ela. O terreno era arenoso e seco, o carro patinava. Que se soubesse, o velho jambeiro já havia matado três pessoas, mas podia ter sido bem mais. Torque disparou de novo e acertou na traseira do carro, a placa de Miriam voou pelos ares e acabou acertando o vidro da frente do carro de Orlando. Ele riu. Estava ouvindo um CD do seu filho, Murilo não era muito fã de Rock antigo, preferia bandas novas como a que estourava os falantes do carro: Slipknot. O nome da música, Orlando não arriscaria — ele nem arriscaria ouvir aquela porcaria de novo. Na reta após a Curva do Jambeiro — que dava acesso às terras da usina abandonada — Miriam acelerou. Torque não, ele viu algo emergindo em um acesso à estradinha que a prefeita não percebeu. A intuição de Torque fez com que ele diminuísse e deixasse aquela tonta da prefeita se encurralar sozinha na usina. Além dos seus capangas que acabariam com ela, não havia saída, a não retornando por aquela estradinha. A polícia havia fechado o segundo acesso pouco tempo atrás, a pedido do Conselho dos Amigos da Juventude (uma organização ridícula e incompetente, encabeçada por brochas e mulheres em menopausa físico- intelectual). Os adolescentes da cidade costumavam fazer festas ali, todo sexo, drogas e rock and roll que podiam ter; bem longe dos conselhos de papai e mamãe. Que a prefeita fosse para o inferno, depois cuidaria dela. Orlando tinha uma longa lista de itens que adoraria desenvolver com uma mulher sozinha em uma usina abandonada. Parou o carro e esperou que o desconhecido viesse até ele. Acompanhou tudo pelo retrovisor. Era uma garota, estava mancando e com as roupas em frangalhos. Mais que isso, era alguém que presenciara seu carro perseguindo Miriam Guerra, uma testemunha indesejável. É... Mas ela só foi indesejável até colocar seu rosto na abertura do vidro do carona. — Me ajuda, seu Orlando! Me ajuda, pelo amor de Deus! — ofegou Patrícia. Estava bem ruim, parecia prestes a desmaiar quando Orlando abriu a porta do carro. Ela entrou, olhou para ele e pensou que aquele bolo fofo poderia ter sido o responsável por seu sequestro. Sentiu-se estúpida. Mas era entre Orlando e a morte; e ninguém gosta da morte. — Calma filha. Vou ajudar você. Sua mãe e eu descobrimos os safados por trás disso. Patrícia começou a chorar e se atirou nos braços de Orlando. Ele ficou onde estava, petrificado pela inesperada demonstração de carinho. As mãos se mexeram aos poucos, o peito sentia os soluços de Patrícia e queria fazer o mesmo. Ele afagou os cabelos sujos da garota e a beijou no topo da cabeça. Talvez eu tenha que matá-la junto com a sua mãe, mas eu não sou um monstro. Não posso deixar uma garota sofrer desse jeito. Claro que não. Mas tão logo Patrícia parou de chorar, ele acelerou a caminho da usina. — Vamos encontrar sua mãe. O delegado Zétia está com ela e com os safados que fizeram isso. — Mais de um? Eram mais de um? — Sim, filhinha. Eles pertencem a uma gangue. Estão tentando acabar com essa cidade. Você foi mais uma vítima inocente, como meu pequeno Murilo. — Quando disse isso apertou com força o volante do carro. Seu garoto, seu filho varão, seu filho morto que jamais seguiria ou desviaria dos seus passos. Sua vontade agora era arrancar a cabeça daquela putinha e entregá-la a Miriam, junto com um copo de veneno. Mas nem só de vontades vive um político, às vezes, você precisa se controlar. — Tem certeza que eles estão lá dentro? Parece que estão colocando fogo no lugar, eu vi o clarão na estrada. Também era uma surpresa para Orlando. Ele não sabia nada sobre fogo ou o motivo para aquilo. Se bem que seus homens eram profissionais (ou quase, se tratando dos que ficaram junto com Siqueira), devem ter tido alguma razão prática para acender um fogo tão alto — por exemplo: se livrarem dos corpos. — Devem ter acendido uma fogueira para iluminar o terreno. Meus homens estão lá e renderam os safados. Eles confessaram tudo, eu estava indo buscá-la, então a vi pela estrada. — Eles me mantiveram em uma fábrica abandonada ou coisa assim. Orlando sorriu por dentro. Pelo jeito, a putinha não tinha herdado a inteligência dos Guerra. Se ela tivesse perguntado mais um pouquinho, se tivesse ao menos tentado, ele teria se enrolado todo, afinal, não saberia dizer de onde pretendia resgatá-la. Mesmo assim ele se garantiu: — Graças a Deus eu a encontrei. Aliás, como conseguiu escapar daqueles monstros e tomar a estrada? E você estava indo na direção errada, meu anjinho... — Eu... Eu não sabia para onde ir. — Uma mentirinha branca era bem melhor que começar a falar de mendigos- do-além e acabar entupida de Diazepam na clínica dos garotos felizes. — Claro que não. Mas não se preocupe mais com isso, pequena, nós vamos cuidar de vocês. Havia algo sombrio na entonação de Torque. Mas podia ser implicância. Patrícia nunca gostou dele, não seria possível com Miriam dizendo o tempo todo que ele era um porco facínora. Fosse o que fosse, decidiu confiar nele pelo menos até encontrar Miriam, Zétia ou alguém melhor para acreditar. Cruzaram o terreno abandonado com aceleração mínima. Orlando olhando para os lados, tentando encontrar Miriam que faria de tudo para acabar com ele. Vaca estúpida. Ela não podia ter incendiado a escola. Matar tantos garotos, destruir famílias, sem dúvida um motivo e tanto para queimar no inferno. E pensando assim, para que esperar o inferno se ele podia queimá-la ali mesmo? — Não vejo ninguém — Patrícia disse. Passou as mãos pelos braços, contento os arrepios. Estava fraca e faminta, sua boca tão seca que ganhou uma bolha no céu da boca. — O que foi isso na perna? — Saí por um lugar apertado. Esse não é único corte, seu Orlando... Acho que preciso de um médico. Orlando estava com os vidros abertos. O silêncio quebrado apenas pelo ruído ronronante do motor. O volume do rádio também estava baixo, tocando Like a Stone do Audioslave (outra música que Murilo gostava, Torque deixou o CD rodando, trazia um pouco de Murilo de volta à terra). O fogo alto iluminava, mas também enganava os olhos. Era quase impossível enxergar algo na noite escura com todo aquele amarelo roubando a paisagem. Estavam bem perto da fogueira, tanto, que o calor atingia o carro e os corpos. Patrícia levou a mão à maçaneta, sentindo que Orlando desligaria o motor. — Cuidado! — ela gritou em seguida, esvaziando o ar dos pulmões. Orlando olhou para a direção que ela apontava. Não conseguiria fugir. Dois faróis altos de aproximavam com tudo, arrancando terra do chão e trepidando sobre o terreno irregular. Torque buscou o acelerador e conseguiu arrancar só um pouco, o suficiente para, sem ter a intenção, poupar Patrícia de ser reduzia a uma panqueca ensanguentada. Patrícia observou as luzes ficando maiores e maiores até conseguir ler as iniciais da placa. BTQ. Ou era uma coincidência infernal ou sua mãe. E por que, diabos, ela tentava matá-los? Teria ficado maluca como o resto da cidade? Pouco antes de seu sequestro, ouviu boatos sobre como o pessoal andava estranho. Gente acabando com a própria vida, fofocas sobre espancamentos, seu próprio sequestro era uma prova cabal de que tudo ia de mal a pior em Nova Enoque. Fechou os olhos, puxou o cinto de segurança em uma manobra assertiva e esticou os pés pressionando seu corpo contra o banco. CRASH! ROUCH! RUMMMM! SPLINGHT! O impacto atirou o carro sobre a fogueira e o fez atravessar sobre ela. Tudo ficou escuro, segundos ganharam tempo extra, enquanto os corpos ricocheteavam como balas de borracha. O mundo lá fora ficou borrado e indecifrável, todas aquelas imagens, a fogueira brilhando, os tons verdes da cana de açúcar. Patrícia ainda se preocupou com Orlando, com o vereador Orlando que era lento demais para colocar o cinto de segurança a tempo. Ele levou a pior nessa, o rosto se chocou contra o volante, Orlando sentiu o couro vencendo a dureza de alguns ossos. Só depois do estrago, o Air-Bag foi acionado. Em vez de ajudá-lo, acabou de foder de vez seu nariz recém-arrebentado. O carro ainda gastou alguns segundos se acomodando, como uma cama vibratória de motel em fim de ciclo. Patrícia começou a se apalpar, checando se todas as peças de seu corpo estavam no lugar. Apertou o botão do cinto de segurança. — O senhor está bem, seu Orlando? Torque não se mexia. Continuava com a cabeça enfiada no Air-Bag. Patrícia queria descer do carro, mas não podia deixar o homem que a tirou do inferno abandonado e ferido. Tateou seu pulso com um pouco de medo do que sentiria ou não. E se ele estivesse morto? Se aquele maluco do carro não fosse sua mãe? Eu sou a próxima. — Eu não morri, putinha! — Orlando disse, e a tomou pelo pulso. Segurou bem forte como se deve fazer com uma égua indigesta. Aquela megerazinha não passava disso afinal, uma nojenta cuja única utilidade era servir de isca. — O que você está fazendo!? — ela perguntou, tentando se libertar. Orlando apertava com força. Ele se livrou do maldito Air-Bag e escancarou a porta. — Você vem comigo! — Mas... — Foi a maluca da sua mãe, menina. Foi ela quem tentou nos matar. Patrícia gritou e olhou para a mão que a prendia. Arreganhou os dentes e mordeu com força. — AI! CADELA! — Orlando gritou de volta. Contudo, não a libertou. Preferiu golpeá-la no rosto com a outra mão. Como era a esquerda, ele não calculou a força e quase desmaiou Patrícia. Ela estava fraca, tinha perdido sangue, qualquer assopro a derrubaria. Orlando fez com que ela saísse do carro e a tomou pelo pescoço. Apertá-lo, além de prazeroso, fez com que ela ficasse inteiramente a sua mercê. Queria mesmo era apertar o pescoço flácido da puta da prefeita, mas a cadelinha servia. Pelo menos até que Miriam aparecesse. Caminhou com Patrícia para perto da porta do galpão, checou com a mão livre se estava aberto. Fez força. Só quando desistiu e assumiu que alguém trancara a droga da porta, reconheceu Siqueira — o que sobrou dele. Patrícia gritou quando o viu. Orlando apertou mais um pouco sua garganta para que parasse com aquilo. Então ouviu: — Larga minha filha, desgraçado. Era Miriam, armada com a Doze adaptada de Dionísio. Orlando reposicionou a garota para que servisse de escudo, escondeu a outra mão atrás dela, fingindo ter uma arma. — Calminha, Miriam. Calminha ou vai perder sua filha. — Solta ela! Orlando deu um passo para esquerda, um bem curto. Patrícia estava arroxeada no rosto, tossia, tentando respirar. — Eu decido o que faço ou não. E seria justo que você perdesse sua vaquinha. Foi isso o que decidiu sobre o meu filho, não foi? Me dê um motivo para não matar sua cadelinha agora mesmo. — Não fui eu, Torque! Eu nunca faria isso. Miriam ganhava tempo. Ela não tinha balas na arma e sabia disso. Mas Torque, não. Miriam precisava de um espaço justo, um pequeno erro nos passos de Orlando que a permitisse abatê-lo com a coronha. — Chega! — ele gritou. Seus olhos encheram depressa, e Orlando ficou tão furioso que começou a salivar. Era uma gosma raivosa, o tipo de reação que só o ódio genuíno proporciona. — Você matou meu filho, sim! Eles me contaram tudo, seus capangas. Eles estão mortos, deixei ordens para isso! — Precisa acreditar em mim, Torque. Eu não seria capaz de fazer mal a uma criança. E nem você. Agora, solte a minha filha — disse, tentando uma calma, um autocontrole impossível. Torque deu outro pequeno passo para o lado, não um inteiro, mas somente deslizou com a perna direita. O espaço entre as pernas diminuiu e também a pressão que ele fazia sobre Patrícia. Era agora, a ocasião que perfeita esperava, mas Patrícia teria que fazer a sua parte. Precisaria captar as intenções de Miriam com um único olhar. Sem tempo para planos heroicos, Miriam olhou para a virilha de Orlando. Patrícia fechou os punhos e sacudiu o que pôde da cabeça. Estava com medo, estava aterrorizada. Temia que um erro a matasse de vez. Miriam apertou os olhos, da mesma maneira que fazia quando as notas da escola despencavam, era hora de reagir, sem desculpas. Lançou os olhos para ela e de novo e para a parte baixa de Orlando. Ele não teve tempo de notar. Patrícia baixou as mãos a agarrou com tudo. Apertou até sentir algo esmagado entre os dedos. — Auughhh — gemeu Orlando. Por uns dois segundos, foi capaz de mantê-la refém. Depois, caiu de joelhos. — Corre! Corre e encontre o Zétia! Ele está vindo pra cá! — Não! — Faça o que eu estou mandando! Orlando estava no chão, mas não ficaria assim por muito tempo. Miriam continuou com ele na mira, ansiosa por espalhar seu cérebro melequento por todo o chão ressecado da usina. — Acaba comigo, vagabunda. Faz comigo o que fez com meu filho. Miriam chegou bem perto. Colocou a arma contra a testa oleosa de Orlando. Ele a encarou sem medo, o semblante rude amaldiçoando cada passo que ela ainda trilharia. — Faça o que tem que fazer ou eu mato sua filha. Miriam respirou fundo. Suas mãos tremeram e pressionaram meia volta do gatilho. Seu suor estava por todo rosto. Ela quer me matar. Por que não faz isso?, pensou Orlando. — Vamos pro carro, você vai ficar trancado até o delegado chegar. Era mais que óbvio. Mãe nenhuma arrisca a própria cria. — Você não tem balas. Você não tem nada nessa porra de arma, não é, Miriam? — Levantou-se debilmente. Miriam se afastou. — Eu não quero fazer isso! Não me obrigue! — Faça, Excelência. Por que não faz o que tem que fazer? Mais um passo para trás, a arma empunhada sem convicção alguma. Um bastão com pregos teria mais utilidade que aquela porcaria. E ainda era pesada, francamente? Miriam não teria forças para usá-la em uma coronhada. Olhos nos olhos, narizes arfando cada átomo de oxigênio do ar, suores exalando o mau cheiro misto de raiva e carne queimada. Os olhos se desviaram em seguida. A fogueira cresceu alta mais uma vez, depois, um trovão estupendo que acabou sequestrando definitivamente a atenção dos dois. Havia alguém em frente ao fogo. Ele batia palmas e sorria. — Os dois podem se matar na pancada, mas eu tenho uma ideia melhor. CAPÍTULO ÚLTIMO — DESCENDÊNCIA
Torque o reconhecia e também Miriam, mas aquele rapaz não era, de modo algum, o que ambos conheceram um dia. Ele tinha olhos negros, estava arqueado, e uma estranha aura dançava ao seu redor, desaparecendo quando os olhos conseguiam o foco. Jota estava de costas para o fogo, bem perto, e ninguém vivo estaria tão à vontade tostando as costas. De repente pareceu uma boa ideia que os políticos mais influentes da cidade se unissem para enfrentar o que viam, mas não aconteceria com Miriam e Orlando. — Filho, eu não sei o que aconteceu entre você e os meus homens, mas temos um assunto aqui que não é do seu interesse. Jota (ou o que sobrou dele) enfiou a mão no fogo e apanhou algo que ali derretia. Fez força, a coisa estalou. Arrancou do fogo o que parecia um pedaço de madeira. — Tá falando desse aqui? — perguntou, erguendo um braço derretido, restos de carne e roupas diluídos. — Jesus! — disse Miriam. Acabou abaixando a arma que não enganava mais ninguém. — Você perdeu o juízo, filho? O braço morto voltou ao fogo, e Jota caminhou até eles. Estava curado. Não havia marcas em seu rosto, seus joelhos estavam adolescentes e fortes, e, tirando os olhos, ele parecia até bonito — na opinião de Miriam, porque Torque só queria mandá-lo para o inferno. — Não chega perto! — Torque gritou. — Eu não sou seu inimigo, vereador. Nunca fui. Tudo o que fiz foi a pedido dela. — Não escute! É mentira! — Miriam tentou. — Cala a boca, vadia! — Assim é melhor, vereador. Ela só diz mentiras. Ateamos fogo no seu carro e depois no seu filho. Deve ter percebido que eu tenho informantes do outro lado. Posso dizer qual foi o último pensamento do seu filho, se quiser saber. Os olhos de Orlando vidraram em Jota. Claro que ele queria saber. O que resta ao pai de um moribundo, senão suas últimas palavras? Jota abriu a boca e por seus lábios vegetou a voz infantil de Murilo. — Queria meu pai aqui. Meu pai nunca está por perto quando preciso dele. Depois de um soluço, Orlando avançou para a prefeita. — Vai precisar disso, vereador — disse Jota, e atirou a ele um canivete. Um que costumava ficar guardado na última gaveta do guarda-roupa de Murilo. Fora um presente de Orlando. Aos dez, Murilo tinha medo de voltar sozinho da aula de inglês. Orlando revolveu o assunto dando a arma a ele, dissera que um homem precisa aprender a se defender desde cedo. Orlando tomou a lâmina e sorriu, adoecido. — Essa é para você, Guerra — disse Jota. Miriam ficou com um punhal. Tão velho quanto afiado. Reconheceu a peça. Pertencera ao seu avô. Pelo que se lembrava, tinha sido enterrado com ele. — Isso é mentira, Torque! Não seja burro! Podemos enfrentá-lo juntos! — Farei isso quando finalizar você — disse. Estocou a lâmina com tudo. Atingiu o braço esquerdo de Miriam, o direito continuou segurando o punhal. Um pouco de sangue emergiu do ferimento, manchando o terninho salmão de vermelho. Miriam assumiu que morreria se não fosse capaz de se defender. Jota a incentivava; começou a fingir a voz de Álvarez Guerra: — Foi ele, mana. Foi ele quem acabou comigo. Ele também matou seu marido. Everton morreu assim que saiu da cidade, e adivinha do quê? Acidente de carro. Mata logo esse porco! — Não sou eu quem está dizendo — disse Jota. Sorriu em seguida. Miriam e Torque estavam incendiando, tão ou mais quentes que a fogueira. Não conseguiam conter a fúria. A voz do estranho trilhava o ar até seus ouvidos, corrompendo bom senso e traços finos de discernimento. Não só a voz. Eles experimentavam uma raiva contida por anos, raiva que era incrementada pela maldade inerente àquele ser. Quem era ele? Não importava mais, nada disso importava. A única razão para ainda estarem vivos era sangrarem um ao outro. Como porcos, cordeiros imolados e virgens do oriente extremo. Torque estocou pela segunda vez e dessa, Miram desviou. O corpo de Orlando projetou-se para frente, e ela o apunhalou nos ombros. Orlando vergou-se e apanhou um pouco de terra do chão. Atirou contra Miriam e não errou os olhos. A prefeita ergueu o punhal e fatiou o ar, estava cega, seu corpo à disposição de Orlando. Ele se atirou contra ela, mas então ouviu um estampido, sentiu algo quente penetrando sua nuca. Levou as mãos até o local e as observou ensanguentadas. O outro braço perdeu o tônus, derrubando o canivete no chão. Seus pensamentos iam e vinham, os olhos enxergavam escuridão. Tossiu e expeliu seu último gole de combustível. Orlando caiu e a figura de Zétia surgiu atrás dele. — Não se mexe, assombração — disse para Jota em seguida. Miriam podia enxergar de novo e seu primeiro impulso foi terminar o que Zétia começou. Antes ela perguntou: — Ele está morto? — Mãe! — Ouviu, antes da resposta. Ela Patrícia. Estava ao lado da maluca da Madame Safira. Parecia ferida e transtornada, mas o importante é que estava viva. Miriam correu até ela esquecendo punhal e fobias pelo chão. Patrícia fez o mesmo, apesar da intenção de Safira em contê-la. Miriam avançou dois passos e gritou, tateando a canela desnuda com as duas mãos. — Fica aí! Não venha até aqui! — gritou. Olhou para o chão. Estava cercada de cascavéis. Pelos menos uma dúzia delas. — Mãe! Safira correu e dessa vez apanhou Patrícia. Ela se debateu, mas a preservação de sua vida falou mais alto. Aprendeu no cativeiro que vida é algo precioso. Também achava que era tarde demais para sua mãe. Outra picada acertou-a mais alto, perto da virilha de Miriam. Outra na parte de trás, na coxa. De repente eram dezenas, e ela presa em um círculo de morte. — Faz isso parar! — Zétia disse. Jota espalmou as mãos e vergou os lábios para baixo. Seus olhos avermelharam e voltaram ao horror negro. Zétia estava pronto para atirar nele, então presenciou o impossível. Quando Miriam pereceu, o corpo de Jota começou a se expandir, a ficar maior, e coisas começaram a deixar seu corpo. No princípio, silhuetas escuras, espectros esfumaçados. Mas tão logo se afastaram dele, mostraram suas identidades. Um, dois, três deles... Ao fim, Zétia tinha cinco alvos para acertar. Jota era apenas um deles e provavelmente um inocente. As cascavéis que acabaram com Miriam recuaram, foram sumindo na escuridão da noite. Patrícia correu até sua mãe e se atirou sobre ela, dessa vez Safira não interferiu. Tinha assuntos maiores a tratar. — Basta! — ela gritou. — De quanto sangue ainda precisa? Um dos espectros, um negro de terno caro com um sorriso franco de Denzel Washington, perguntou: — O que faz aqui, feiticeira? O que acontece nessas terras não é do seu interesse. Zétia alternava a arma. Deus! Em qual deles? E qual seria a consequência de fazer isso? Ele era um policial honesto, mas não era burro. Zétia não queria morrer, ser amaldiçoado ou acabar todo picado como a prefeita e o homem morto que viu de relance às portas do Galpão. — Qual deles? — perguntou. Safira espalmou a mão direita pedindo que lhe desse algum tempo. Na esquerda, ela trazia um livro. Tão velho quando a maldição que enfrentava. Um vento novo tentava arrancar o volume de suas mãos. — Não vai funcionar, feiticeira! Eles são meus! — Jota gritou. Rugiu como um leão em seguida. — Vocês amaldiçoaram a si mesmos e isso me dá o direito. Zétia via um panteão de rostos desconhecidos. Um negro elegante, um homem claro, alto e de cabelos pelos ombros, um garotão de jaqueta de couro e cabelos engomados. O andarilho que assustou Patrícia também estava ali, ao lado de uma figura esboçada, parecida com uma tevê fora de sintonia. Jota estava atrás deles, alternando entre sua própria aparência e a de um homem grisalho, com olhos frios, azuis e desalmados. — Me entrega isso, homem da lei — disse o homem negro. Sorriu de modo complacente e terno. — Não vai querer que mais alguém se machuque. — Não chega perto! — Zétia gritou. Arrumou o dedo no gatilho. — Ainda não! — disse Madame Safira. O vento parecia se concentrar nela e soprava tão forte que a velha tinha dificuldade de continuar de pé. Seus cabelos finos chicoteavam o rosto, o vestido colava no pouco de carne que a idade avançada não pôde consumir. Safira resistia e com apenas uma das mãos segurava o livro. Com a tensão se tornando quase sólida, ambos se distraíram de Patrícia. Foi Zétia quem notou que ela não estava mais ao lado do cadáver de Miriam. Ela conseguiu fugir, pensou. Como se um Guerra aceitasse ser derrotado... O delegado voltou para o covil de fantasmas e notou que eles estavam mais fortes. Seus contornos, suas expressões, não havia nada de borrado, aparentemente, estavam tão vivos quanto ele ou Safira. O que ela está fazendo? Patrícia vinha se esgueirando por trás deles. Estava com uma determinação horrenda no rosto, o apetite pelo sangue enchendo a boca de saliva. Ela queria vingança, estava disposta a perder a vida só para sangrar um daqueles malditos. Ninguém poderia culpá-la (ainda que fosse idiotice usar um punhal contra fantasmas). Mas Patrícia Guerra, como seus antecessores, era mais esperta que a maioria dos enoqueanos, ela sabia que só precisava acertar um deles. Ela correu e enfiou o punhal nas costas de Jota. Foi como esfaquear todos eles. Um a um, os demônios, os fantasmas, foram girando os pescoços e encontrando seus corpos feridos. Sem piedade, ela torceu a lâmina dentro do corpo de Jota, projetando-a em todas as direções. Alguma coisa ela acertaria, pulmões, fígado, rins, baço. Chegou bem perto do corpo de Jota, arqueado pela dor, e disse entredentes: — Hora de voltar para o inferno, maldito! Sem proferir uma palavra, ele respirou fundo, girou a mão pelas costas e a agarrou. O punhal amoleceu sob os dedos de Patrícia e antes que a lâmina mergulhasse na terra, estava nas mãos Jota. — Isso é o que vocês são, menina. Gente que acerta os outros pelas costas. Estou aqui para cuidar disso. — Solta ela! — Zétia gritou e disparou. A bala saiu do cano, explodiu como era talhada a fazer, mas antes de acertar o alvo, caiu vagarosamente, como se tivesse sido disparada dentro d’água. Mais perto da fogueira, os fantasmas, malditos e amaldiçoados, se voltaram para Jota e Patrícia. Formavam algum tipo de escudo contra as balas. Patrícia caiu de joelhos, Jota torcendo seu pulso, esperando o estalo da quebradura dos ossos e um pedido de perdão. Ele iria matá-los, moveu céus e infernos para isso, mas antes... Por que não aproveitar um pouco? A dor não merece ser desperdiçada. — Vai quebrar o meu braço! — ela gritou. Jota riu, os outros fizeram o mesmo, mas foi o homem grisalho de olhar mais tenebroso, quem disse ao se desdobrar de Jota: — Claro que vai. Em seguida Jota aumentou a torção e conseguiu o que queria. Clarckp. — DEUS! — Patrícia gritou. Esmoreceu com a dor e usou sua mão esquerda para manter a pele e os músculos sustentando o pulso que parecia um pedaço de lençol torcido. Os risos terminaram. Jota entregou o punhal ao homem grisalho que estava fora de seu corpo. — Não faça isso, Coronel! Não se condene ao inferno! — Safira disse. Mostrou a figura de um pentagrama no livro que segurava. — Já estou no inferno, feiticeira. Chamo o lugar de lar. Aproximou-se lentamente do pescoço delicado de Patrícia. Ela era uma das amaldiçoadas. Os Guerra do passado foram os que armaram tudo para arruiná-lo. Eles, os Torque, os Sultão, os Minotto (que cuidaram para que nada saísse da cidadezinha além do terrível surto de um homem louco), os Bosco que cercaram e ameaçaram (muitos, eles mataram) quem tentou dizer a verdade. Uma prostituta que acabou gerando uma costureira medíocre e seu filho bastardo. E claro, o clero. A mão torta de Deus representada pelos homens-de-saia e por imbecis xucros como a família Sultão remanescente daqueles dias. E havia tantos outros... Todos pagaram seus pecados, exceto aquela pequena verruga adolescente dos Guerra. Patrícia não chorava, apesar da dor. Também não chorou quando foi agarrada pelos cabelos para que seu pescoço ficasse à mostra. Era valente, bem mais valente que seus antecessores. Mas quando a lâmina começaria seu serviço, alguém que não tinha nada a ver com os erros da cidade apareceu, voando para cima do Coronel. Rockfeller era enorme e, de algum modo, ele pôde tocar a pele do fantasma. Desse modo, Safira estava cuidando, recitando palavras que só seriam compreendidas pelos que habitam as moradias do pós-morte. Ela estava materializando todos eles, devolvendo a carne que não souberam ou puderam usar quando estavam em seu momento no mundo. Alguns deles estavam voltados para ela, projetando pensamentos que torciam suas vontades e seus ossos. Mas Safira era forte, como todas as mulheres antes dela. — Animal estúpido! — gritou Constâncio. Dominado pelo ódio, pela vontade de atacar o responsável pela morte de Roger e Ricardo, Rockfeller mastigava os tecidos meio podres, meio revitalizados do Coronel. — Deixem-nos, espíritos! — disse Safira. Seus olhos ficaram brancos, e o vento pareceu nascer dela em vez de atingi-la. — Deixem-nos e voltem para suas terras. Esse não é mais o seu mundo! O mal foi expiado, toda a cidade dorme ensopada em sangue. Precisam entender que o verdadeiro mal é esse homem. Foi ele quem os aprisionou! Entre eles, uma figura continuava inexpressiva. O homem de cabelos pelos ombros que conseguia misturar demônios e anjos em cada sorriso. Ele não sorriu dessa vez, ele chutou Rockfeller na barriga, chutou-o duas vezes com suas botas. O cão grunhiu sua dor e olhou para Zétia, partindo seu coração. — Sai daí, garoto, eles estão na mira! Não foi o que Rockfeller fez. Era treinado para proteger humanos, ensinado a perder sua vida para que eles seguissem em frente. Em vez de se render aos ossos quebrados, Rock apertou a mordida. O homem de cabelos nos ombros o apanhou pelo pescoço. Com a força de seis homens o atirou contra o carro de Orlando Torque. Rockfeller bateu na lataria, rasgou a pele da barriga, soltou um suspiro mocho e caiu. Tremeu as duas patas traseiras em um ato convulsivo e ficou onde estava. Fez sua parte. Patrícia estava livre e ao lado do delegado. Safira também se aproveitou e se aproximou deles. Estava em transe, parecia bem mais velha agora, como se toda energia projetada no ritual consumisse parte do seu ser. — Não vai conseguir! Eles são meus, eu os invoquei! — gritou o Coronel. — Você não fez isso, Constâncio. Você os escravizou como fez com essa cidade toda — disse. Do ritual continuou: — Eu vos liberto, espíritos sofridos. Não precisam mais servir a esse homem. Uma injustiça não lava a outra, estão livres para realizarem suas vontades. Depois de um rugido, Coronel Constâncio mostrou o rosto de sua própria danação. Estava queimado vivo, da mesma forma que morreu sob os olhares satisfeitos dos Guerra, dos Torque e dos Sultão. A pele do braço despregando junto com os tecidos do terno podre. Cabelos encolhendo em volta do crânio. Metade do rosto sem carne. — O que fez, feiticeira!? — Existe muito sangue na terra, é hora de terminar essa atrocidade. — Posso acabar com ele? — Zétia perguntou. Sem mover o rosto, sem derrubar os olhos brancos, Safira respondeu: — Não, eles precisam fazer isso. O rapaz e a menina, os últimos descendentes. — Jota! Precisa acordar! — Zétia gritou. Não adiantou muito. Ele estava tomado, paralisado, Jota era a bateria de sangue que animava todos eles. O último descendente dos Trindade. Quando Safira terminou suas palavras, Jota saiu do torpor a que estava confinado. Não conseguia respirar direito, no entanto, estava consciente de tudo o que estava acontecendo naquele terreno maldito. Acima disso, ele via através dos olhos do Coronel, não só o presente, mas também o passado. Era tenebroso. Sentiu a fúria que animou Constâncio a escravizar crianças, adultos e espíritos. Ele era um malnascido, como diziam em seu tempo. Havia matado os próprios pais para absorver sua fortuna. O resto pilhou, tomou, usurpou e estuprou. Depois dos escravos, Constâncio Trindade contratou serviços dos homens livres, prometeu-lhes a bonança que nunca lhes fora dada. — Chega. Não vou participar da sua doença — disse Jota, limpando o pó dos joelhos. O tom calmo de sua voz surpreendeu aos vivos e aos mortos. Um pouco distante Safira fechou o livro, seus olhos voltaram a descer das órbitas. Uma gota de chuva caiu sobre ela, animando um pouco de esperança. O céu rugiu de novo. — O que estão fazendo!? Vocês devem me obedecer! Isso é o que foi prometido! O homem negro chegou mais perto e parou ao lado de Jota, de frente para Constâncio. — Não cumpriu sua parte, Coronel. Matá-los não vai nos libertar, a feiticeira diz a verdade. Constâncio, a figura consumida de Constâncio, caminhou de costas até encontrar a fogueira. Iria se atirar nela, mas quando girou o corpo foi abraçado pelo andarilho. Sua barba imunda deixou sujeira sobre ele. — Me solte, infeliz! Você não tem poder sobre mim! O homem riu e continuou seu abraço. — De joelhos — disse outro. O cara de jaqueta que parecia moderno demais perto dos outros. — Olhem só para vocês, traindo seus próprios espíritos. Não deviam usar essas roupas. — Espíritos são livres — ressoou a voz do único entre eles que não tinha um rosto definido. Pobre homem. Perdera a vida aos poucos, com fome, sede e frio, amarrado e ouvindo rádio e estática dentro da antiga senzala abandonada da fazenda. Ele aproximou a mão fluida da boca do Coronel e foi entrando por ela. Pulso, braço, antebraço, aos poucos penetrou seu corpo todo em Constâncio, minando as energias que o Coronel havia aprisionado dentro de si. Constâncio tossiu, pedaços de carne queimada pularam de seu rosto. Os demais espíritos também se aproximaram. Safira disse de onde estava: — Patrícia, só você pode fazer isso. Você e o rapaz, as sementes boas que o mal deixou. Patrícia não revogou. Andou trôpega até eles e ganhou de volta, do homem de cabelos pelos ombros, seu punhal. O cabo estava quente, chegava a machucar a mão, mas Patrícia o agarrou mesmo assim. Jota a olhou nos olhos e envolveu suas mãos nas dela, sacudiu vigorosamente, dando a coragem que faltava a ambos. Sentia dor em toda a extensão da pele, mas ainda havia vida suficiente para um ponto final. — Não vão conseguir! — gorgolejou Constâncio Trindade. A voz elétrica e entrecortada. O hálito cheirando a decomposição. Juntos, Patrícia e Jota mergulharam o metal enferrujado em seu peito, do lado esquerdo, onde parecia improvável ter batido um coração um dia. Trindade perdeu o ar e, logo depois, explodiu um grito longo e lamentoso. O som feriu aos ouvidos, feriu a alma de quem resistia em estar perto da fogueira. Jota retirou o aço da carne e deixou o punhal com Patrícia. Os espíritos, os escravizados que finalmente ganhariam sua liberdade, se vergaram e apanharam o corpo de Trindade antes que desabasse no solo seco. Dois deles o tomaram pelos braços. Jota o tomou pelas pernas. Começaram a caminhar para o fogo. Pouco antes de encontrarem as chamas, o andarilho imundo tocou os ombros de Jota. — Eu cuido disso. Ele é meu pai. Jota assentiu e deixou que seu antepassado, outro que teve a coragem de se opor ao próprio pai facínora, o levasse ao seu descanso ou danação final. O andarilho cuidou das pernas e, como prometido, seguiu com o cortejo. Como aquele monstro pôde fazer isso com seu próprio filho? Se o andarilho estava lá, era tão escravo quanto os outros, tão assassinado quanto os outros. Patrícia tomou o braço direito de Jota e forçou-o a recuar. As entidades caminharam e foram desaparecendo no fogo que lambia as nuvens. Uma a uma, fingindo que as chamas as acariciavam como algodão. Perdendo roupas e contornos, perdendo o que ainda restava de vida e de morte. Perto da porta do galpão, Safira caiu de joelhos e agarrou-se a terra. Esfregou o pó entre suas mãos até que a maioria dos grãos caísse de volta. Fez isso algumas vezes. Ela chorava um pouco, em parte consumida por aquele homem que voltou dos mortos. Zétia tocou seus ombros. Ela olhou para seu semblante preocupado e disse: — Está terminado. Raios riscaram o céu. O firmamento rugiu e derramou seu perdão. Depois de meses, chovia. EPÍLOGO Semanas depois.
Choveu por muito tempo em Nova Enoque, e só depois que a terra ficou seca de novo, homens e mulheres puderam enterrar os seus. Foi uma semana dura, havia mais mortos que vivos. Na noite maldita, enquanto Zétia e Safira tratavam de cuidar do Coronel Trindade, a cidade se consumiu em caos. Assassinatos, justiças tortas, torturas; todas as atrocidades que homens cometem quando Deus não está olhando. Na mesma noite, logo que voltaram (acompanhados por Jota e Patrícia) para a cidade, encontraram a igreja em chamas. Mesmo com a chuva inclemente, metade da catedral não resistiu ao seu fim. O posto de gasolina da cidade também incendiou, a UTI do hospital ficou sem energia matando cinco pessoas (entre eles Mariana Sultão, única irmã de Galileu), e o cinema perdeu o teto, matando mais dois coitados que se refugiaram lá dentro (ninguém foi capaz de reconhecer os corpos). Delegado Zétia continuou na cidade, enterrado em inquéritos que o trouxeram de volta ao mundo real. O mesmo não aconteceu com Safira. De algum modo, tudo aquilo sugou o que ela tinha de vida. Junto com a chuva, ela também se foi. Agora tudo era um grande canteiro de obras. Muita gente se aproveitou disso, mas o mais bem sucedido foi mesmo Jota, agora, Jota Trindade. Ele agremiou quem estava disponível e montou uma pequena empresa, precisou chamar gente de fora e, com isso, fez a cidade que seu antepassado tentou destruir, renascer. Estava em horário de almoço, apoiado em seu Maverick e comendo um PF que comprou na rua. Não deveria estar fazendo aquilo, se Jota tivesse juízo seguiria a dieta rígida do hospital — depois de tomar cem pontos pelo corpo e sobreviver milagrosamente. Ninguém por lá soube responder como ele estava se recuperando tão bem, os pontos ainda estavam segurando tudo, por dentro e por fora, costurando o corpo e, em certo ponto, a alma. Enfiou um pedaço de carne assada na boca e notou um Eco Sport aparecendo na esquina. Continuou mastigando, sem se importar com o esculacho que levaria. O veículo estacionou do outro lado da rua, dele desceram seus únicos amigos vivos na cidade. — Não devia se encher com porcarias — Patrícia disse. — Pois é... E ninguém me contou que a idade para dirigir baixou para quinze anos. — Dezessete! — Oh, claro. Esqueci. Alguns dias de dezessete fazem uma enorme diferença. Os dois riram, e Jota tratou de separar um pedaço de carne no canto do prato de alumínio. — Rock! Vem aqui, rapaz! Rockfeller trotou como um bezerro até eles. Mijou na roda do Maverick para dizer que gostava mais de Patrícia do que dele e parou com a boca escancarada e cheia de cuspe pendendo pelas beiradas. — Tá se achando com esse abajur na cabeça. — ÁUR! — Não implica com ele, Jota. Tadinho do Rock, ele quase morreu, esqueceu? — Não, Miss-Frankstein. É só me olhar no espelho que me lembro de tudo. Ou olhar para você. — Seu bobo. Jota atirou um pedaço de carne, e Rock o apanhou no ar. O cão não pensaria em derrubar aquilo. Com sua cabeça de abajur, seria o mesmo que perder a carne e chafurdar o chão como um porco. Qual é? Ele era um cão ferido, mas ainda tinha seu orgulho. — Tá vindo de onde? — Jota perguntou. — Cemitério — respondeu Patrícia. — A maioria das pessoas que conheço mudou para lá — completou com um fio de voz. Um trovão rugiu lá em cima. Um dos homens pendurado nos andaimes na igreja quase despencou de uns seis metros. Jota deixou a comida sobre o capô do carro e gritou: — Não tem mais lugar no cemitério, chapa! É bom tomar cuidado aí! — Meneou a cabeça, lamentando a estupidez alheia. Voltou para Patrícia. Ela estava bem contando tudo o que se passou, mas por dentro era um mosaico de vidro. Às vezes, nas muitas que se encontraram para discutir e tentar entender o que aconteceu (sem conseguir muita coisa, principalmente depois da morte de Safira), Patrícia chorou. Tinha um jeito forte de fazer isso, baixando a cabeça e permitindo poucas lágrimas silenciosas pelo rosto. Antes de apanhar seu almoço de volta, Jota avistou Carlo Euripes, o dedetizador da cidade. Vinha depressa e queimando um cigarro irritado. Ele ia passando direto, e Jota teve que chegar bem perto para ser notado. — Oh, Jotinha. Nem tinha visto você. — A cidade anda maluca, eu não culpo o senhor — sorriu. — É lamentável, meu filho. Lamentável. Podia ser lamentável, mas continuar se lamentando só piorava as coisas. Assim, Jota perguntou: — Como vão os negócios? Carlo tirou o boné verde e marrom, feio como o diabo (presente da casa agrícola que ainda estava de portas fechadas), e coçou os cabelos ralos e sempre meio envenenados. — Tá uma bosta, Jotinha. Parece que nem os cupins querem ficar nessa cidade. Não vejo uma debandada de pragas dessas desde que era menino. Aconteceu há muito tempo, nas terras da usina. Patrícia fez uma cara que amedrontou os dois homens. O velho percebeu e recolocou o boné. Atirou o cigarro longe e cuspiu saliva amarga para o lado. — Desculpa a indelicadeza, moça. Depois de tanto tempo mexendo com pragas, a gente fica meio insensível. — É o seu trabalho — disse Jota. — Claro que é. Uns cuidam de cachorro e gato, eu cuido do que ninguém gosta. Cumprimentou Patrícia com a aba do boné e saiu andando, em cinco passos acendeu outro cigarro. Pobre homem, não era justo o que acontecia com ele. Jota talvez lhe oferecesse um emprego, tinha uma longa fila de vagas abertas que não seriam preenchidas tão cedo. Lá em cima, o céu ronronou de novo, um ronco longo e abafado. — Parece que vai chover de novo — Patrícia disse. Jota olhou para o céu, procurando as respostas que nunca teria. — Vai sim. Sempre que a terra precisar, vai chover de novo. Confira outros títulos desse autor:
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