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DADOS DE ODINRIGHT

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OUÇA O QUE EU DIGO


 
CESAR BRAVO
Direitos autorais do texto original © 2015
Cesar Bravo
 
Todos os direitos reservados
 
Edição: Cesar Bravo
Diagramação: Cesar Bravo
Capa: Cesar Bravo e B. Tavares
Revisão: Cesar Bravo
 
Ficção: Literatura Brasileira
Drama, Horror, Violência, Sexo.
Terror/Sobrenatural. Tensão psicológica.
(Conteúdo adulto. Recomendado para maiores.)
 
Cesar Bravo
cesarbravoescritor@gmail.com
@cesa_bravo_1977
http://www.facebook.com/pages/Cesar-
Bravo/167745786701987
 
Ofereço esse livro a todos os que oram e não são atendidos.
Algumas palavras
 
Olá, meu amigo leitor — meu insistente amigo leitor.
Gostaria de tomar um tempinho para falar sobre o livro que
você está prestes a ler.
“Ouça O Que Eu Digo” foi uma ideia que perambulou por
anos em minha cabeça. As articulações, o poder subversivo
da fala humana, as conspirações e suas consequências
nefastas. Nesse livro, como na maioria das minhas obras,
escolhi a máscara do horror para contar uma história. Pelo
teor das páginas seguintes, pode ser que você se pergunte
se eu não acredito na raça humana. Bem, digamos que eu
acredito em algumas facetas. Acredito no amor, na paixão e
nas longas horas dedicadas a um propósito. Se eu acredito
que somos bons por essência? Realmente não.
Conforme o livro foi passando para o papel, notei que
algo se escondia nas entrelinhas, algo que precisava ser
dito, escrito e compreendido. Falo sobre nosso país é claro,
e também sobre a raiva que às vezes nos domina e nos faz
agir como crápulas. Você encontrará alguns palavrões aqui
e ali, porque é assim que as pessoas falam quando estão
nervosas e apavoradas — pelo menos é assim que eu me
comporto... O que mais? Emoção. Pretendo que você sinta o
amor e a dor dos personagens à medida que as páginas
forem avançando, desejo que você pense que todas as
atrocidades descritas poderiam — de alguma maneira
inexplicável — ter sido reais em algum outro plano ou
dimensão.
Sobre o momento em que escrevi esse livro, posso dizer
duas palavras: Paraíso e Inferno. Você notará, aqui e ali,
rompantes de fúria, em outros momentos, se pegará
sorrindo como um bobalhão. E quando terminar esse livro,
eu espero realmente que você me perdoe se, em algum
momento, desperdicei seu tempo e seu dinheiro. Escrevi
“Ouça O Que Eu Digo” com todo meu coração sangrento, da
mesma forma que abro os olhos e sempre espero um dia
glorioso no amanhã.
Fiquem bem, continuem lendo e apoiando quem faz o
que faz por amor. Continuem apaixonados.
Um forte abraço.
Cesar.
 
PRIMEIRA PARTE
AS PEÇAS E O TABULEIRO
 
 
SEGUNDA PARTE
A LOUCURA
 
 
TERCEIRA PARTE
CARNE QUEIMADA
“Eu não sou um homem, sou um campo de
batalha.”
 — Friedrich Nietzsche
 
 
 
“O demônio sempre se infiltra
entre os políticos. Então, eles
começam a brigar entre si. O
poder se transforma em uma
questão de orgulho. Não tem
mais nada a ver com vivermos
juntos e acabar com a guerra.”
— Bob Marley
 
 
 
“E é nisto que se resume
o sofrimento
cai a flor, — e deixa o perfume
no vento!”
— Cecília Meirelles
 
Fazia um calor insano no mês mais frio do ano. Era
junho em Nova Enoque. Lagos e rios estavam vazios ou pela
metade, autoridades, em estado de alarme, gafanhotos e
cupins comiam a cidade. Seria um ano ruim, foi o que disse
Madame Safira no começo de janeiro. E todos riram dela.
 
 
PRIMEIRA PARTE
 
 
AS PEÇAS E O TABULEIRO
 
 
 
 
“Há seis coisas que o Senhor odeia,
sete coisas que ele detesta: olhos altivos, língua
mentirosa,
mãos que derramam sangue inocente, coração que
traça planos perversos,
pés que se apressam para fazer o mal, a
testemunha falsa que espalha mentiras
e aquele que provoca discórdia
entre irmãos.”
— Provérbios 6:16-19
 
ROGER E MILENA
 
Perto das três da manhã, Roger estava dentro de seu
Opala Diplomata, tentando arrancar a calcinha de Milena.
Ela resistia, tão molhada quanto os vidros embaçados do
Opala, mas ela resistia. Claro que sim, como disseram que
todas as boas garotas de uma cidade ranzinza como Nova
Enoque deveriam fazer.
— Qual é, Milena? Você quer tanto quanto eu. Para com
isso...
— Não! Já disse que não — ela respondeu, enquanto
tentava desenroscar o dedo indicador de Roger de sua
calcinha. O rádio dizia o oposto tocando This is Love, do
Coverdale, os lábios trocando saliva também concordavam.
Roger teria conseguido, estava perto, muito perto do que
perseguia sempre que estava com ela. Ninguém apostaria
que Milena o recusasse como uma virgem — e desde
noventa e oito não parecia existir virgens com mais de doze
anos, ali ou em qualquer lugar.
— Só um pouquinho...
— Não! Eu quero ir pra casa.
Roger bufou e cedeu. Quarenta minutos de amasso era
o seu limite. Abriu a porta do Opala e deixou um pouco de
vento seco entrar. Quente, mas estava bem mais fresco que
o interior do carro. Milena se afastou e arrumou a saia, a
parte de cima não tinha cedido em nada, ela morria de
vergonha dos seios pequenos que pareciam grandes demais
para Roger. Tudo nela parecia demais para ele. E era
mesmo.
— Que cheiro é esse?
— Meu cigarro? — ele perguntou. Tinha acabado de
acender um Marlboro Gold.
— Não, é outra coisa.
Depois disso o rádio ficou falando sozinho por três
longos minutos. O cigarro de Roger estava pela metade e
seu humor abaixo disso. Como ela podia resistir tanto? E
quem ela pensava que era afinal de contas? A última garota
da cidade? Era bom que Milena tivesse algum segredo novo
dentro daquela calcinha. Para fazer que ele esperasse tanto
tempo e gastasse seus espermas no ralo, era bom ter um
presente daqueles quando resolvesse transar de novo.
— Desculpa — ela disse. Estava meio chorosa, ela
sempre ficava assim quando a coisa não acontecia e Roger
terminava a noite frustrado. Mas por que ele não podia
apenas concordar em ir até lá, até o Morro como
chamavam, e namorar um pouco? Por que tinha que ter
sexo para ser bom? Sexo não era Roger. Sexo era outro
departamento...
— Tá tudo bem — ele respondeu e apanhou uma cerveja
no banco de trás.
— Aonde você vai?
— Urinar — respondeu ríspido. Ela deixou que saísse.
Um pouco de solidão faria bem.
O vento quente do lado de fora era irritante. A umidade
do ar devia estar por volta de quinze por cento e isso era
praticamente respirar poeira. Mas por que, diabos, Roger
estava tão irritado? Tudo bem que pela sexta vez seguida,
aquela gostosinha da Milena tinha chegado perto e o
deixado na mão (ou nem na mão nessa noite quente e
gloriosa). Talvez Roger devesse socar uma só pra
descontrair. É... Encher a mão de gosma quente e deixar
tudo no pasto, junto com o que saía dos cavalos. Foi até
uma mangueira enorme que não dava mais frutas. Tirou o
Amigão para fora. Ainda estava duro e isso faria doer.
Maldita Milena! Ela podia pelo menos ter feito com a boca.
Era o que as garotas boazinhas da cidade faziam quando
mantinham a calcinha na cintura.
— Ohhh — gemeu, recuando um pouco a pelves para
que não doesse. A cerveja não ajudava, urinava feito um
cavalo.
Parecia exagero como tinha ficado tão bravo. Ele ainda
pensava nisso e também pensava em coisas inéditas, como
voltar lá e afundar a cabeça daquela vadia com uma chave
de rodas. E depois aproveitar da carcaça. É... Ela que se
fodesse. Mas Roger não era um assassino, embora tivesse
dentro de si a semente encolhida da maldade, ela ainda não
havia germinado.
— Você devia fazer isso — disse alguém. Um cheiro forte
de pólvora subiu pelo ar enquanto o sangue de Roger era
drenado para baixo. Ele guardou o Amigão de qualquer jeito
dentro da calça e quase o cortou com o zíper.
— Quem é você? — perguntou. Não conseguiu ver quem
estava ali. Luz clara, noite cheia de estrelas, mas o estranho
tinha a escuridão em volta dele. Como uma camuflagem.
— Nessa noite, sou sua força de vontade. E pode
acender outro cigarro se quiser. Eu não vou te morder.
— Estou maluco? A Milena colocou alguma coisa na
minha cerveja? — apertou os olhos.
— Ou quem sabe tenha colocado no seu cigarro — disse
o outro.
Tinha o contorno de um homem, mas bloqueava o que
havia de paisagem atrás dele, como era possível não vê-lo?
E pior, por que não conseguia resistir a ele? Mas a cabeça
de Roger não pensava nisso. Pensava em por que não
acender outro cigarro.
— Pode fumar, garoto. Pode fazer o que tiver vontade.
Roger sentiu um impulso de correr dali, gritando e
acenando os braços, mas não fez isso. Seu impulso era
menor que a vontade de ouvir a coisa camuflada pela
escuridão da noite. E ele tinha uma voz doce, não era uma
voz de mulher, mas ouvi-lo era como ouvir a própria mãe.
Incentivando, dizendo o quanto você é capaz de fazer
qualquer coisa. Roger não resistia a ele como um viciado em
recuperação não resiste a um bom gole de álcool quando a
vida se torna insuportável.
Quando controlou o tremor das mãos, apanhou o cigarro
do bolso. A calça estava úmida com um pouco de urina. Não
teve tempo de chacoalhar o palhaço, não com o senhor
Noite Escura querendo conversar. A luz do isqueiro Bic
iluminou seu rosto recém-saído da adolescência, a chama
também fez o homem estranho desaparecer por um
segundo. Roger tragou o cigarro e sentiu o peito apertado
aliviar-se. Era a vontade. Sentir vontade e não satisfazer
devia ser proibido por lei. E a vontade era viciante, potente.
Talvez fosse letal na presença daquele cara. Daquela coisa.
Roger não conseguia se esquivar de sua influência.
— O que você quer? — perguntou.
A criatura espalmou as mãos aos céus e imediatamente
a camuflagem se desfez. Era alguém de uns quarenta anos.
Bonitão até. Vestia jeans, botas e uma jaqueta de couro.
— Tem um cigarro aí?
Roger cedeu um a ele. O estranho o apanhou e colocou
nos lábios.
— Fogo?
— Oh, claro.
O homem agradeceu e devolveu o acendedor. O plástico
estava quente.
— Não é muito importante quem eu sou, Roger Minotto.
— Como sabe meu nome?!
— Isso é menos importante ainda. O importante é que
aquela putinha deixou você na necessidade. Assim que a
deixar em casa, ela vai pegar o telefone e discar para o
Luciano. Seu amigo, Luciano. E eles vão foder a noite inteira
e rir da sua cara, enquanto você vai ficar em casa se
masturbando e pensando na vagabunda.
— Não... Ela é minha. Ela era virgem e tudo!
O homem soltou uma gargalhada. Tão alta que fez Roger
olhar para trás e procurar por alguma movimentação no
Opala. Mas estava tudo quieto dentro dele, só o rádio
cantando alguma porcaria melosa que Milena gostava de
ouvir.
— Virgem? Acorda, garoto... Nem a mãe do JC era
virgem. Mas não ensinam isso nas escolas. Sua
namoradinha está fodendo com ele sim. E faz tempo. A
questão é: o que você vai fazer sabendo de tudo isso?
Roger estava sem chão. Não era só sexo com Milena. Na
verdade ele gostava mesmo daquela puta mentirosa. Oh,
como garotas conseguem mentir desse jeito? Ele tinha
mudado sua vida, tinha arranjado um emprego, tirado
carteira de motorista, enfrentou seu pai, porra! Não era
justo ser tratado como um anão com fimose.
— Eu quero que ela se foda.
— Não, Roger. Você não quer só isso. Você deseja que
ela sofra. Que ela pague o preço por seu sofrimento. E
também quer o seu corpo outra vez. Ou não?
Roger assentiu com a cabeça. Claro que ele queria
aquele corpo. Trocaria uma nova noite por dez anos de sua
vida. E agora ele se sentia livre. Porque, convenhamos, se
Milena era mesmo uma vagabunda como aquele homem
dizia — e Roger não conseguia mais se lembrar que minutos
atrás, o estranho era um pedaço escuro da noite, — ele faria
todo o abecedário de putarias conhecidas com ela. Faria
mais.
— Quero sim. Eu quero.
— Então vá em frente, jovem. Eu fico vigiando. Faça o
que deve ser feito e depois vá para casa.
— E o que eu faço com ela?
— Ela é merda, garoto. Deite-a no chão junto com o que
sai dos cavalos, eu sou a garantia que nem um traço de
remorso corroerá seu corpo.
 
DELEGADO ZÉTIA
(Dia seguinte; Delegacia de Polícia de Nova
Enoque)
 
— Eu não fiz nada! Quantas vezes vou precisar repetir
isso?!
— Até alguém acreditar, seu animalzinho nojento. E
pensar que eu conheço seu pai. Por que não pensou nele,
Roger? Ou na coitada da sua mãe?
Aos fundos, Zétia deixou a xícara de café fumegando
sobre a mesa e foi averiguar o que acontecia em sua
delegacia. Restavam ele e Regina naquela manhã. Os outros
integrantes da corporação estavam cobrindo o comício de
Orlando Torque. Vereador Orlando tinha sido apanhado
desviando verba da merenda escolar, e, mesmo sem
ninguém provar nada, a boca esquentou, como dizem. Os
partidários da oposição tentaram cancelar o tal comício.
Como não conseguiram, era possível que o sabotassem.
— Ei, ei. Que falação é essa? O que o Romeu aí
aprontou?
— Nada! Eu não fiz nada!
— Claro que fez, seu safado. A coisa é séria, chefe —
disse cabo Fábio.
— Leva ele pro fundo.
— Não! — gritou Roger. Estava com a roupa coberta de
sangue. O rosto também, e junto com o sangue havia barro.
Estava sem os sapatos e com o cabelo ensebado.
— É melhor facilitar, garoto. Depois conversaremos
sobre o que você fez ou não. Faz o que o soldado Fábio está
mandando.
Isso bastou e depois de cinco minutos o delegado ouvia
o som das trancas metálicas das celas. Os passos pesados
de Fábio vieram em seguida. Chegou de volta ao hall,
vermelho e suado. O delegado o esperava.
— E então? O que foi isso?
— Ninguém avisou por aqui?
— Desembucha, Fábio. O que esse garoto está fazendo
dentro da minha delegacia?
Fábio olhou para os lados, evitando algum curioso. Logo
todos ficariam sabendo, mas manter segredo o maior tempo
possível seria prudente. Pelo menos até esclarecem os
motivos daquele marginal.
— Ele matou a namorada.
— Como é que é?! Roger matou quem?
Regina ergueu a cabeça e parou de prestar atenção no
computador. Zétia a repreendeu com os olhos, e ela acatou,
voltando à tela fria.
— Matou e fez coisa pior — completou Fábio. — Coisas.
— Quem abriu a ocorrência?
— Os vizinhos. Ednardo e Hélio Monfa. Eles levam os
cavalos pra pastar no morro. Os dois encontraram o corpo.
Saíram correndo e toparam com minha viatura no
entroncamento para a rodovia, eu vinha voltando do
comício. Estavam tão apavorados que achei melhor correr
até lá e ver o que tinha acontecido. Também não acreditei
quando me contaram.
— E o garoto?
— Roger? Estava sentado ao lado do carro. Os Monfa
viram que ele estava ali, tentaram falar com ele, como
Roger não respondia, foram até o carro. Eles viram a garota
morta e saíram correndo. Roger nem se mexeu. Ele parecia
drogado ou... eu sei lá. O maldito só saiu de onde estava
quando toquei nele. Então pareceu tão horrorizado quanto o
resto de nós, como se não soubesse nada sobre a moça.
— E quem é ela?
— Milena Sultão. Filha do...
— Merda. Claro que sei quem é ela — disse Zétia.
Apanhou a chave de sua viatura, entornou o café que já
estava quase frio, e bateu a mão no bolso. Procurava os
cigarros que não estavam lá há três semanas, três longas
semanas.
— Para onde você vai?
— Alguém tem que avisar os pais da garota. Chamou o
pessoal da técnica?
— Chamei sim. E os bombeiros. Eles já tinham chegado
quando eu saí, deixei ordem para não mexerem com o
corpo até que a perícia chegasse.
— Fique no meu lugar por aqui. Se a coisa apertar,
mande um rádio pro Anderson e peça a ele pra voltar. Eu
não sei quando conseguirei voltar, nunca dei uma notícia
dessas ao pai de ninguém.
Disse isso e saiu pela porta blindada da delegacia.
Regina saiu de onde estava e colou em Fábio, sedenta pela
carniça das novidades. E ninguém a culparia por isso, em
Nova Enoque, o último assassinato que se tinha notícia
tinha sido cometido dez anos antes, e era um cachorro com
cinomose chamado Espirro.
Zétia já estava enfiando a chave no contato quando
Fábio apareceu correndo, com um bloquinho de anotações
na mão.
— O que é isso? — perguntou Zétia.
— Não quer saber os detalhes? O velho vai perguntar.
— Ele vai ouvir que a filha está morta, Fábio. Que
importância tem o resto?
Fábio deu de ombros e o Santana saiu fritando o chão.
 
PERTO DAS DEZ DA MANHÃ, o delegado pegava a Vicinal
Mario Covas. A propriedade dos Sultão ficava a uns dez
quilômetros da cidade. Nova Enoque parecia ter parado nos
anos setenta e isso afetava tudo. Roupas, tecnologia, estilo
de vida. Ninguém estava muito preocupado com o que
acontecia em Brasília, se é que deu pra entender. Os
enoquenos queriam mais era saber da novela das oito, do
resultado da loteria e se teriam comida na mesa durante o
ano todo. O resto era lucro, e lucro demais não era bom,
lucro é o primo invejoso da felicidade.
Antes de entrar da fazenda, Zétia checou o rádio da
viatura. Estava quieto demais. Não estava reclamando, mas
não esperava isso com o comício da manhã. Tampouco
esperava um assassinato, porém ali estava ele, na casa do
homem mais pacífico da cidade para informá-lo que sua
filha estava morta. Diga como um dia pode ficar pior que
isso?
Um dos vira-latas de Galileu Sultão veio dar as boas
vindas e urinou na roda da viatura. O delegado desceu em
seguida. Deixou os vidros abertos, atravessou a porteira e
foi até a frente da casa. Uma cadeira de balanço ainda se
embalava no piso elevado da varanda. O passageiro devia
ter acabado de entrar.
Zétia acariciou o vira-lata caramelo e subiu os dois
degraus até a varanda. Não havia campainha, então ele
bateu na porta com o nó dos dedos. Quem apareceu foi a
senhora Sultão. Ela não saía muito, o único lugar onde era
vista era na missa, aos domingos. Sempre com o marido e
sua única filha (que agora estava morta). Rosana
desapareceu pela porta e foi buscar o marido. De dentro,
um som de descarga. Depois, passos calçados com botas.
— Delegado? Eu ia mesmo atrás do senhor — disse
Galileu. Coçou a barba grisalha e cheia que cobria todo o
pescoço. — Minha menina não voltou para casa.
Zétia baixou os olhos e isso bastou.
Rosana estava atrás do corpo enorme de Sultão, e ele se
agigantou mais um pouco para que ela não visse ou ouvisse
nada do delegado. Em seguida virou para trás, cochichou
alguma coisa com ela, fechou a porta e ganhou sozinho o
lado de fora da casa.
— Vamos caminhar um pouco, Delegado. Não tenho
certeza se quero ouvir o que tem a dizer. Parece que alguma
coisa bem ruim trouxe você até aqui.
Sem dizer nada, os dois tornaram a descer as escadas.
Sultão tomou a frente e sacou do bolso um cigarro de palha.
Zétia notou que ele tremeu um pouco ao acendê-lo. Já
estavam perto da porteira da frente quando o dono da casa
voltou a falar.
— O que aconteceu com ela? O que aconteceu com a
minha menina? Ela está machucada?
— É um pouco pior que isso, senhor Galileu.
O homem virou-se de frente, e Zétia temeu levar um
soco. Em vez disso, Galileu sondou sua expressão com dois
pequenos olhos azuis.
— Ela está...?
— Não pudemos fazer nada. Quando meu pessoal
encontrou o carro, ela já estava sem vida.
O gigante tremeu e se encurvou. Colocou um dos pés na
parte de baixo da porteira aberta; mirou na distância.
Precisou respirar fundo meia dúzia de vezes para conseguir
falar de novo, mas o fez. Sultão era um sobrevivente. Não
tinha nada, trabalhou duro, arranjou uma esposa, construiu
uma casa; uma vida.
— Ela estava com o vagabundo do Roger Minotto? Ele
anda atrás da minha filha com um cachorro no cio. Ela
estava conversando com a mãe esses dias, contando que
não queria mais nada com o porco. Olha delegado, se
aquele animal fez alguma coisa com minha princesa, eu
quero saber! — terminou gritando. Seu rosto, onde não
havia barba, estava vermelho. Os olhos com um excesso
d’água. O cigarro esquecido em uma das mãos suadas.
— Ainda é cedo para concluir qualquer coisa.
— Aonde ela está?
— Estamos cuidando de tudo, Galileu. Eu só vim porque
queria dar a notícia pessoalmente.
Galileu deu um riso tão seco quando o ar da roça.
— Não, delegado. Você veio até aqui porque sabe que
eu vou arrancar cada gota de sangue daquele moleque.
— Eu ainda sou o delegado, Galileu.
— O senhor tem filhos, delegado?
— Não tive essa sorte.
Galileu desencostou de onde estava e estalou o
pescoço.
— Tente pensar no que faria se a carne de sua carne
estivesse morta.
MADAME SAFIRA
 
Estranha foi a noite passada. Pesadelos, sonambulismo
e um acesso de calafrios que durou três horas. Safira não
esperava que a manhã trouxesse algo pior.
Depois de suas leituras, tomava uma xícara de café,
ainda sem acreditar no que as cartas disseram. Também
havia alimentado suas duas gatas fêmeas (Pupi, uma cinza
rajada, e Shaloon, amarela e arisca) e agora acariciava
Constantino, um macho preto de olhos verdes, sentada em
uma poltrona na sala. A tevê mostrava como o mundo
mentia com duas reportagens sobre o novo Brasil e o fim da
pobreza. A pobreza não estava no fim porcaria nenhuma,
era só abrir a janela para ver isso.
Havia uma mesinha de centro entre Safira e a tevê. Em
cima da mesa, uma toalha rendada branca e um copo
d’água que sempre ficava ali, para renovar as energias da
casa (e deixar o ar menos seco, é claro).
— Porcaria de televisão — disse Safira, falhando em
trocar o canal. Constantino pulou de seu colo, o controle
remoto pagou o preço levando duas pancadas de Safira.
Madame Safira era velha, de um tempo onde tecnologia e
pancadas dependiam uma da outra como um velho
depende de suas fraldas. Graças a Deus, ela ainda não
estava precisando delas.
A imagem ia e vinha, ondulava e deformava sem sair
totalmente de sintonia. O som acompanhava e ficava
recortado, às vezes distorcendo um pouco.
— Se for um dos seus amigos no telhado é bom mandá-
lo embora — avisou a Constantino.
Grunhau!
Dentro da casa as janelas ficavam fechadas, com ou
sem clientes. O pessoal da cidade era curioso e toda vez
que uma janela ficava aberta alguém se debruçava
esperando ver o diabo. Safira sabia que deuses e diabos não
perderiam tempo com uma velha vidente. Ela até gostaria
disso, um pouco de mágica, de milagres que fosse.
Qualquer agitação faria bem aos negócios.
Não demorou e a tevê apagou de vez. Foi ao mesmo
tempo em que a mesinha do centro mostrou algo muito
estranho.
— Minha nossa — benzeu-se quando passou a mão
direita sobre o copo. Estava fervendo, borbulhando, como se
embaixo dele houvesse um fogareiro.
Foi quando a luz que vinha do lado de fora sumiu de
dentro da casa. Madame Safira olhou para os lados,
consciente que algum mal invisível tentava assustá-la. E
estava conseguindo, pode apostar que sim. As cortinas
farfalharam como asas, ricochetearam, o vento que as
movimentava era frio como o sopro da morte.
— O que você quer? — perguntou.
Sua voz foi e voltou como se a casa estivesse
desabitada. Um sorriso baixo e cínico veio em seguida. O
cheiro do ar apodreceu. Os três gatos correram e
desapareceram pelo corredor que levava aos quartos. Safira
não os culpou. O que dizem sobre gatos serem egoístas não
é verdade, mas um gato sabe quando não pode com
alguém.
— Quem é você?
— Velha...
Depois do sussurro, o lustre de cristais da sala se agitou.
Nenhum vento faria aquilo dentro de uma casa fechada,
mover um lustre pesado como aquele só poderia ser
conseguido com alguém o empurrando. O cheiro ficou pior,
o vento explodiu a porta da cozinha contra o batente.
— Mostre-se, imundo! — gritou Safira. — Mostre-se!
O ventou continuou e estava trazendo coisas com ele.
Folhas, sujeira, uma carta de baralho que não por
coincidência caiu sobre o colo de Safira. Estava virada, e a
vidente se perguntou que revelações traria. O mau cheiro
esmoreceu quando ela tocou a carta. As cortinas pararam
de reclamar. A tevê piscou duas vezes e voltou ao jornal.
Safira arrastou a carta pela barriga e, quando a carta estava
entre os seios, a virou para si. Fechou os olhos em uma
expressão de pesar.
— O enforcado.
PAULINE E BOSCO
 
Para Pauline, uma e meia da tarde significava uma hora
de atraso no almoço de seu marido, o rei dos porcos, Bosco.
E esse era um grande atraso, que ficaria ainda maior se Elis,
dona do mercadinho de hortifrútis Verve-Vida, não
acelerasse na cobrança do que ela havia comprado. Elis não
tinha pressa, foi devagar que ela chegou aos sessenta e
três.
— Vai fazer o que com tudo isso? Alimentar um
comboio?
Mesmo sem querer dizer algo a respeito, seria falta de
educação cortar uma conversa.
— É pro Bosco. Isso aqui dá pra uma semana.
— Para ele e mais quem?
— Ele come bem. Quanto eu devo?
Elis continuou com seu ritmo bossa-nova e foi pesando
os sacos. Espinafre, tomate, alface, cebolinha, mais
cebolinhas com cheiro verde, pimentão, mandioquinha, um
queijo fresco, duas latas de legumes em conserva, cenouras
frescas, dois melões, batatas, agrião, rúcula e um saquinho
com jilós.
—Vai pagar no cartão?
Pauline tirou da bolsinha de mão uma nota de cem toda
amassada. Tremeu e a estendeu a Elis.
— O que foi no pulso?
— Isso aqui? Nada...
— Mulher, consegue me explicar o tamanho do nada
que fez uma mancha feia dessas? Tá até verde!
— Foi o varal. Estava consertando depois que o vento
arrebentou. A tonta aqui enrolou a cordinha no pulso
enquanto subia a escada para prendê-la na parede.
— E o seu marido não ajudou?
— O Bosco? Não... Ele não é bom nisso. Varal é coisa de
mulher.
Elis abortou o assunto. Não adiantaria falar com Pauline.
Metade da cidade já havia tentado colocar um pouco de
amor próprio dentro daquela toupeira e o máximo que
conseguiram foi que Pauline virasse a cara para todo
mundo. Bosco sentava a mão nela há muito tempo e Pauline
nunca teve boca para nada. Era daquelas que acreditavam
merecer as pancadas.
— Seria coisa de mulher se ele não usasse o varal para
pendurar as cuecas...
— Pode me dar o troco agora?
Elis entregou três notas e duas moedas e sacudiu a
cabeça observando Pauline correr para casa.
— Idiota — resmungou.
— Tudo bem, Pauline? — Cumprimentou o rapaz dos
correios, Tony-Seco. Menos de sessenta quilos e um sorriso
irritante. Como alguém podia ser tão feliz trabalhando como
uma mula nos correios? Bem, Tony conseguia...
Pauline não respondeu e quase foi atropelada quando
tentou atravessar a rua. Os cabelos encrespados e secos
davam a ela a loucura que ainda não tinha, Pauline era mais
dócil que uma ovelha demente. Alguns rapazes (entre eles,
um que estava conhecendo em detalhes a segunda cela da
delegacia) a chamavam de saco-de-soco, por causa do que
passava nas mãos do marido. Bosco trabalhava no
matadouro dos Minotto, o único da região. Lá, tudo ainda
funcionava à moda antiga (isso significa nada de pistolas de
ar, a matança era na base do machado). Antes dos Minotto,
ele teve empregos melhores, um deles foi dirigindo o
caminhão do lixo. Bosco acabou demitido depois de jogar
um dos garis no triturador — rixa de futebol —, por sorte,
desligaram a máquina a tempo.
Perto da igreja, Pauline parou, fez uma mesura, e fez o
sinal da cruz no peito. O diácono da igreja, Camargo, estava
na porta, ele sacudiu a cabeça quando viu a pobre criatura
derrubando uma das sacolas logo depois da reverência.
Olhou para cima como quem pergunta a Deus por que
deixou aquela coitada, aquela mula de carga, derrubar tudo.
Os melões rolaram pela calçada até caírem na rua. Havia
um pouco de água escorrendo, de alguém que lavava a
calçada. Os melões acabaram sujos e Pauline os secou
contra a camiseta de Nossa Senhora que usava. Deu uma
risadinha sem graça para quem estivesse olhando, e seguiu
seu caminho.
Precisou andar mais quatro quarteirões até chegar aos
portões altos da casa número quarenta e cinco. Um
cachorro velho a recebeu abanando o rabo e mijando
felicidade. Ela disse algo acalentador, passou, e fechou o
portão atrás de si. Precisou voltar porque esquecera duas
das sacolas na rua. O carro de Bosco (um Del Rey ouro todo
fodido) estava na garagem, isso significava que as orações
de Pauline para que ele se atrasasse não tinham sido
ouvidas.
A tevê estava ligada, passando o jornal da tarde. Tevê
local. Falava sobre o assassinato de alguém. Ela ficou
curiosa, mas não parou para ouvir, tinha menos de dez
minutos para colocar algo na mesa.
— Oi amor.
Bosco não respondeu. Deu um gole em uma lata cerveja
e peidou mais alto que a tevê. Tudo bem, ela pensou
olhando a silhueta que ocupava a poltrona. Parecia calmo
naquela manhã, tão calmo que sequer reclamou do atraso
— não imediatamente...
“Não é fácil ser uma boa mulher”, era uma das frases
preferidas de sua mãe — que Deus a tenha — e também
uma das suas. Ela precisava repetir aquela frase dez, vinte
vezes, todos os dias. Um pouco mais quando lavava as
cuecas meladas de Bosco, cozinhava sua comida e limpava
a casa que ele tratava como um chiqueiro. Precisava quase
repetir em voz alta nas noites em claro em que Bosco
roncava como um porco com edema de glote. Cristo, não
era fácil ser uma boa mulher, mas se o homem ao seu lado
fosse Galeano Bosco era quase o impossível.
Ele pigarreou da sala, e o coração de Pauline deu um
salto. Esperou em silêncio que ele invadisse a cozinha e
partisse para cima dela. Isso não aconteceu. Depois de se
acalmar, Pauline ligou o rádio da cozinha — um Motorola
bem velhinho — e sintonizou uma estação de AM que só
tocava Roberto Carlos.
— Agora sim — sorriu quando ouviu o rei. Eu te amo,
disse o rádio, Pauline suspirou, imaginando como seria ouvir
aquilo de verdade. Galeano Bosco tinha dito a ela que a
amava apenas duas vezes. Uma foi na copa de noventa e
quatro, quando o Brasil foi campeão do mundo — nesse dia
ele também disse ao cachorro que o amava. A outra foi
quando ela impediu que ele se afogasse com um pedaço de
frango — Pauline se arrependera disso muitas, muitas
vezes.
Ficou fácil com o rei.
Do refrigerador (um Consul com a lataria pior que a do
carro da família), apanhou um pouco do macarrão que
sobrou da noite passada. Colocou para esquentar em seu
fogão quatro bocas (onde só funcionavam duas) e sacou das
compras um macinho de cheiro verde e um pouco de
tomate fresco. Disfarçaria direitinho, Bosco odiava comida
requentada, mas do jeito que ela faria, ele não notaria.
Apanhou uma faca e foi fatiando o tomate e cantarolando,
sempre de olho no relógio. Seu homem não podia perder
aquele emprego. Era ruim mexer com morte de gado, ele
estava mais agressivo, mas o salário compensava. Ganhava
o suficiente para dali a cinco anos trocar o carro (prioridade
para Bosco) e, com mais cinco, poderiam terminar a casa
(pelo menos o banheiro que ainda não tinha revestimento
nas paredes).
Não demorou vinte minutos. Pratos postos à mesa,
cadeiras afastadas, suco de limão (instantâneo de saquinho,
ela esqueceu de comprar limões) e uma macarronada que
enganaria um perito. Pauline lavou o suor do rosto na pia,
secou com o avental e o tirou em seguida, amarrou os
cabelos que pareciam uma vassoura excitada.
— Vem, Bosco. Tá na mesa.
Ouviu um arroto e uma latinha amassada. Ouviu-o tocar
o cachorro velho para que não ficasse em seu caminho. No
caminho do homem que a tirou de casa prometendo
mundos e fundos que hoje pareciam piadas.
Ele entrou e sentou. Estava com a camisa escura do
matadouro, um tecido grosso e azul, cheirava a suor
acumulado. A calça respingada com um pouco de sangue. O
boné também era dos Minotto. Vermelho, com um desenho
de um boi dando um joinha e sorrindo. Ninguém acreditaria
se não o visse de frente. Aquele boné, mais que todo o
conjunto, incomodava Pauline.
— Tira o boné, amor. Tá calor.
Os olhos pesados pararam nos dela. Fixos, dissecantes
como adagas afiadas. Bosco trastejou a garganta e tirou a
porcaria da cabeça. Seria melhor ter ficado com o maldito
boné. Bosco tinha cabelos finos, rareados pelos anos, pretos
e lisos. Estavam agora, com o suor e a sujeira, empapados
sobre a cabeça, como se estivessem colados. A barba
crescia há dois dias e dois riscos cinza de sujeira
manchavam o pescoço como um colar.
— Tá olhando o quê?
— Experimenta o macarrão.
Ele espalmou as mãos na mesa. Esticou-se o suficiente
para cheirar a panela. Arfou profundamente e voltou para
onde estava. Tamborilou os dedos da mão direita sobre a
mesa, tão forte que aqueles dedos pareceram cotos de
madeira. Bosco era grande, mais de cem quilos, um metro e
oitenta e seis, braços que ganharam dinheiro engrossando.
Estava com a cabeça baixa. Os olhos na mesa. Pauline
pensou se estaria rezando. Ficou feliz com isso, seu homem
andava afastado de Deus, quem sabe se voltasse para a
igreja ficaria mais calmo... Mais gentil pelo menos. Mas os
olhos de Bosco procuraram os dela sem erguer a cabeça.
Ele a sacudiu de um lado pro outro.
— Achou que eu não perceberia?
Pauline engoliu o ar seco do dia. Foi doloroso, mas bem
menos do que o que viria a seguir.
— O quê, amor?
— O quê, amor — ele ironizou com uma voz empapada.
— O que você acha, sua besta? Eu estou esperando naquele
maldito sofá faz uma hora! O que você fez nesse tempo?
Saiu para rua balançando sua bunda seca, foi isso que você
fez. E eu ainda dei uma chance, Pauline. Fiquei sentado,
assistindo a porra da tevê. Abri uma cerveja e pensei: Ela
deve ter seus motivos.
— Eu...
— Cala essa boca! Eu, porra nenhuma. Você chegou
com as sacolas, e eu pensei: Ela vai preparar um almoço
decente. Vai fazer isso porque ela sabe que eu ralo feito um
filho da puta naquele maldito matadouro para manter essa
casa. Minha Pauline sabe que eu teria um futuro se não
tivesse feito a imbecilidade de me casar. Mas aí? O que eu
vejo? Uma porcaria de macarrão requentado! É isso o que
eu mereço? É isso, amorzinho?
— Tá gostoso, Bosco. Experimente, pelo menos.
Bosco não provou. Saiu da cadeira delicadamente,
apanhou a panela e a levou até o nariz de Pauline. Deu um
sorriso frouxo.
— Vou pedir que faça o mesmo, amorzinho.
— O que tem de errado, Bosco? — perguntou, sem
entender onde ele queria chegar. Imaginou que ele atiraria
tudo pela janela, como já tinha feito quando ela errou o sal
do feijão.
Bosco estava bem perto quando ela virou seu prato para
cima, na esperança que ele a visse comer um pouco e
fizesse o mesmo. Como um garotinho. Mas aquele era um
garotinho mau, bem mau mesmo.
Ele apanhou a panela e a inverteu de uma vez, virou
toda a panela em cima de Pauline. Ela fungou, sentindo o
cheiro sufocante do molho de macarrão. O choque foi tão
grande, a surpresa com o que aquele homem terrível era
capaz de fazer, que ela não se moveu. Continuou parada,
sentindo a massa queimar o topo de sua cabeça, seu rosto,
seus ombros. Bosco ria.
— Tá gostoso, Pauline? Por que não come essa merda
toda?
Pauline deixou escapar um soluço. Sabia que fazer isso
irritaria mais seu Bosco, mas chorar era o que ainda tinha
de dignidade. Faria o quê? O deixaria? Para quê? Viveria
como? Seus pais estavam mortos, ela não tinha família na
cidade, a polícia não passava de um projeto naquele fim de
mundo.
— Não... — tentou dizer.
Bosco então apanhou a jarra de suco e derramou sobre
ela. Pauline pensou nas facas da gaveta da pia. Sempre
pensava nisso e em outras coisas terríveis que iam embora
quando se acalmava. E ela era a culpada, ela se atrasou, ela
requentou a comida, ela não era uma boa mulher.
— Olha só o que me obrigou a fazer!
— Seu monstro — ela disse bem baixinho. Então Bosco a
socou no olho direito e a jogou no chão.
Deixou a cozinha em seguida. Apanhou a chave do carro
e saiu. Os pneus cantaram por dois quarteirões. Foi o tempo
que Pauline levou para sair de onde estava e começar a
limpar tudo, parcialmente feliz por não ter apanhado feio.
Talvez merecesse aquilo tudo. Mesmo que fosse por ser
burra demais. Seu rosto ardia.
ALAN SÉRPIA
 
O dia a dia de um garoto com a popularidade de um
lagarto gripado nunca é fácil, mas durante as aulas e entre
quatro paredes, é suportável. Existe certa ordem quando o
chamado professor veste um terno ou um vestido cinza —
no caso de uma professora bonita como a senhorita Shirley
que dá aulas de inglês — e comanda o bando de babuínos.
Mas oh, rapaz, para alguém que não é aceito no bando, a
aula de educação física é o mais próximo que se pode
chegar do inferno.
— Olha só esse babaca — disse Murilo, um dos garotos
mais altos da turma da sexta série C. Não só o mais alto,
mas também o mais velho. Murilo entrara tarde na escola e
só continuava ali porque seu pai era importante. Seu pai
não o detestava, mas parecia não dar a mínima para ele. O
importante na vida de Orlando Torque era a cadeira de
vereador, quem sabe a de prefeito em um futuro muito
próximo.
Alan sabia que o maior babaca ali era Murilo, mas
continuou quieto, olhando para os tênis brancos e evitando
cruzar os olhos com os capitães dos dois times. Murilo
Torque era um deles, Anderson Rocha, o outro. Os dois
estavam encarregados de formar os times enquanto
professor Juliano (ou China como o chamavam apesar dele
ser descendentes de portugueses) fumava um cigarro. Ele
não se importava em fazer isso na frente dos meninos, mas
não incentivava, dizia que o cigarro era feito da bosta de
Satanás.
Era a vez de Anderson escolher e Alan esperava não ser
escolhido de novo. E que todos fossem para o inferno! Ele
não gostava de futebol — ao contrário do resto dos homens
do país que passavam o sábado e o domingo inteiros
bebendo cerveja e procurando campeonatos que ainda
desconheciam. Para Alan, mais de vinte marmanjos
correndo atrás de uma bola era uma atração de circo que
perdera a graça, pura perda de tempo. Coitado.
Infelizmente, tinha nascido brasileiro e, de quebra, em uma
cidadezinha de bosta chamada Nova Enoque. Olhou para o
lado. Quem ainda estava disponível para os times eram o
Fumaça (e não estava sobrando porque era preto e sim
porque tinha um braço só — mesmo sendo o futebol um
jogo para os pés ninguém nunca o escolhia) e o Rolha
(obviamente o garoto mais gordo da turma, aos quinze,
tinha mais seios que qualquer menina da sexta série). Oh, e
também tinha o Fimose — o CDF da sala —, filho da
professora Ruth de história e detestado pela escola toda.
Escolheram o Fimose primeiro.
— Não acredito — ele mesmo disse. Foi para o lado de
Anderson e estava tão feliz que estendeu a mão para
agradecer. Anderson o fritou com os olhos e deixou sua mão
parada no ar. Fimose baixou a cabeça e foi para trás dos
caras, catalogando novos xingamentos.
— Sua vez — disse Anderson.
Murilo subiu a parte de baixo dos olhos e escaneou suas
escolhas.
— Merda ou bosta... — zoou.
Anderson deu uma gargalhada, mostrou o dedo do meio
para o trio-derrota à sua frente. Murilo riu com ele. Estavam
em times separados, se provocariam, xingariam suas mães,
mas depois do apito final iriam juntos para casa. Ambos
moravam no mesmo condomínio, o único da cidade.
— Quero o Baleia.
Rolha subiu o short de nylon e foi para outro lado da
linha.
Enfim, Fumaça ou Alan. Alan rezou para que não ficasse
por último pelo menos uma vez na vida. Poxa vida, não era
porque o Fumaça não tinha um dos braços ou porque ele
era preto, o problema é que ele era ruim de verdade, o
Fumaça quando conseguia chutar, errava o lado do campo.
— Me dá o aleijado — disse Anderson.
Fumaça comemorou silenciosamente. Seus olhos
disseram algo como: “Quem é o pior agora? Eu pelo menos
tenho uma desculpa para ser detestado, evitado, ninguém
gosta de um coto, mas e você? Qual seu problema,
garotinho?” O problema com Alan é que, mesmo de boca
fechada, ele era melhor que todo mundo ali — e eles
sabiam disso.
Passou sorrindo por Alan e foi para a turma de
Anderson.
Nesse ponto todos os garotos estavam atrás da linha
laranja do meio do campo, do outro lado, Alan. Ele teria
rompido o concreto do chão e afundado se sua cabeça fosse
mais dura. Os garotos riam. Em um último insulto, antes
que o professor Juliano voltasse de seu cigarro, eles tiraram
par ou ímpar, quem perdesse levava Alan. Para ele, a aula já
tinha terminado ali mesmo, mas sem essa... Ele ainda teria
sessenta minutos de humilhação, provocação e revolta.
— Tá, nós ficamos com o Pé de Frango — disse Murilo.
Passaria por ele calado. O que poderia dizer? Mas Murilo
o puxou pelo braço quando Alan chegou mais perto.
— Se você sabe o que é bom, fica longe da bola.
Alan concordou com a cabeça e foi para perto de
Fimose. O garoto — Ruan, de batismo — ainda se arriscava
e falava com ele, só mais uma prova de que os nerds não
pensam direito antes dos quinze anos. Alan não queria
conversa. Seu estômago estava fundo e revirado. Por que
ele sempre tinha que passar por aquilo? Por que ninguém
nunca dava uma mãozinha? E por que pagavam um salário
para alguém como o professor Juliano? Ele deveria tomar
conta dos alunos e não de um maço de cigarros Plaza.
— Muito bem — disse o professor. O time do Anderson
joga sem camisa.
Rolha soltou um suspiro aliviado, tão alto que todo
mundo ouviu. Estava feliz por não precisar balançar suas
tetas moles naquela manhã escaldante.
Depois do apito de Juliano, o jogo. Alan pensando em
tudo, menos naquela partida estúpida. Pensava
principalmente em Paloma, a menina mais bonita da escola,
tão bonita que nem sabia que ele existia. E ninguém iria
culpá-la por isso também. Quando se é um furúnculo social
como Alan, se aprende a lidar com esse tipo de...
Casualidade.
O primeiro time a fazer o gol foi o de Alan, ele participou
da comemoração, afinal de contas, estava ganhando, um
grande acontecimento! Murilo o encarou com raiva, Alan
recolheu os braços que comandavam as palmas. Uma
verruga não merece comemorar um gol.
Não demorou muito e, depois de uma cagada de
Fumaça (ok, Murilo mirou no braço fantasma e fumaça
rodopiou deixando uma avenida até o gol), um golaço, um
torpedo daqueles, sem chances para o goleiro.
Anderson acabou empatando com dois gols. Depois, o
jogo continuou sem novos gols. O suor escorria dos corpos
e, conforme o tempo passava, a rivalidade entre Murilo e
Anderson se espalhava entre seus times. Houve duas
brigas. Em uma delas, alguém empurrou o Rolha no chão.
Ele ralou o braço e todo mundo riu, inclusive Alan que se
arrependeu logo depois. Quem era ele para rir de alguém
naquela quadra? Ele era o último, o rejeitado, o esfíncter
mais mal cheiroso do universo conhecido. Ele era Alan
Sérpia.
— Toca pra mim! — pediu Murilo. Dez minutos para o
final e Alan mantinha a bola nos pés sem saber direito o que
fazer com ela. Saber, sabia, mas seus músculos não se
comportavam como deveriam. Ele calculava a rota, a força,
o ângulo de subida, e quando chutava era aquela coisa
torta, bêbada. Era sempre óbvio, ridículo e deprimente. Mas
se ele acertasse, oh rapaz, se ele acertasse realmente
ganharia uns pontos com Murilo. Ele era o mais forte da
sala. Anderson era seu amigo e tudo mais, mas era o
segundo no comando. O vice.
Depois de meter a língua para fora de tanto caprichar
na preparação, Alan estava suado. Ele era branco, bem
branco, e agora estava vermelho. Coisa de italianos, pelo
menos seu avô narigudo sempre dizia isso. — Toca a bola,
pô! — gritou Murilo. E ele tocou! Como sempre, como um
leproso que perdeu metade dos dedos. O chute não chegou
nem perto de Murilo, mas caiu direto nos pés de Anderson.
Ele correu e fez fila. Passou por tudo mundo. O último
em seu caminho era de novo Alan. Se aquela não era a
última oportunidade de salvar o dia, ele era um alce
vermelho! Esperou a hora certa, teria que fazer falta, e em
cima de Anderson valentão, mas que se fodessem! Se ele
parasse aquele ataque, teria uma chance mínima de sair de
cabeça erguida da quadra.
— Segura ele! — gritou outro dos garotos do time
adversário. Fabiano, um cara legal. É... Outro cara legal que
nunca seria legal com ele. Não com Alan cabeça de
marimbondo, o Alan, filhinho de mamãe.
Anderson corria e Alan entrou em seu caminho.
Anderson deu um chapéu, e Alan ficou olhando para cima...
— Humilhou agora! — gritou Fimose. Logo o Fimose que
deveria ser seu amigo. Era demais. Mas também era demais
levar um chapéu. Alan ainda se entortou todo para
acompanhar a trajetória da bola. Caiu no processo e meteu
o cotovelo no chão. Estava deitado quando viu Anderson
entrando com bola e tudo no gol. O vice comemorou, o time
todo comemorou. Rolha balançou sua pança enorme e
lamentou. Juliano apitou em seguida, fim de jogo. A bola foi
para cima com um chute de Anderson. Ele passou por Alan
e agradeceu: — Valeu, Zé-Roela.
Os garotos estavam suados, cheirando bunda suja, mas
enquanto todos iam para o banheiro, Murilo vinha na
direção de Alan. Estava com a bola de futsal nas mãos. Alan
nutria a esperança vazia que ele estendesse a mão e
dissesse: “Ok, cara. Eu sei que você fez o melhor que pôde”.
Ahn-ham... Quem sabe em outro mundo.
Alan levantou do chão.
— Foi mal...
— Foi mesmo, seu bicha — disse Murilo. Arremessou a
bola com tudo contra ele.
Alan sentiu o couro duro deformando seu rosto. Uma dor
pontuda brotou em seu cérebro, a dor parecia nascer do
nariz, talvez estivesse quebrado. A boca também doía, a
maldita bola era um soco do Mike Tyson (oh, sim, quando
ele ainda dava bons socos...). Alan encontrou o chão antes
que a bola o fizesse e ouviu professor Juliano gritar de
longe:
— Tá tudo bem aí?
Com o cu na mão, Murilo saiu dali depressa e deixou
Alan no chão.
Alan tateou o nariz. — Porcaria. — Estava sangrando
bastante e não dava para respirar direito. Pingos de sangue
molhavam seu peito descamisado.
Ele estava zonzo, mas conseguiu chegar até a camiseta
(estava em cima da grade que cercava a quadra). Alguém
tinha limpado o suor nela, estava fedendo. Estava fedendo
bunda também.
Sentindo cheiro de encrenca (ninguém quer um
professor displicente, mesmo em uma escola xexelenta
como a municipal), Juliano correu até Alan.
— Deixa eu ver seu rosto, o que aconteceu? — Apanhou
o queixo de Alan e o ergueu, tentando enxergar não sei o
quê dentro do nariz que já começava a parecer uma batata.
— O de sempre, professor. Mas o senhor não precisa
fazer nada. Ninguém nunca faz nada.
— Podemos falar com a direção...
— Vai piorar se fizer isso. O diretor também não quer
saber. Posso ir pra casa?
— Sangrando assim?
— Não tá doendo. Se alguém perguntar, digo que fui
atropelado.
— Vou conversar com o Murilo, foi ele quem fez isso. Eu
vi.
Alan sorriu com um pouco de sangue nos dentes. Graças
a Deus, era do nariz.
— E o senhor vai me escoltar para casa a semana toda?
Juliano não respondeu.
— Foi o que eu pensei — disse Alan, valente de tanta
vergonha. Alguns garotos haviam terminado o banho e
viram quando Alan saiu pela porta da quadra. Eles imitaram
galinhas.
LOBO, PÊRA E JOTA
 
Eles estavam no porão. Um dos únicos da cidade e
ficava bem embaixo da casa de Pêra. O rádio tocava Mama
I’m Comming Home de Ozzy Osbourne, e Lobo enfiava o
rosto em uma marica enorme e cheia de fumaça de
maconha pairando sobre um lago de vinho.
— Brother, isso é bom demais — disse. Tombou a cabeça
para trás e sentiu o couro velho do sofá resfriar sua nuca.
— Vai devagar com isso — disse Jota. Puxou os cabelos
sem corte para trás e se jogou no sofá.
Em um canto perto da tevê, Pêra arranhava um violão
imitando Zack Wilde de um jeito absolutamente ridículo.
Língua para fora, olhos orgásticos, movimentos
semiparalíticos com os joelhos.
— Brother — repetiu Lobo, depois de outra puxada. Os
olhos derretendo, vermelhos. — Tava aqui pensando...
— Lá vem bosta — disse Pêra, esquecendo o violão.
— Deixa o maluco falar — Jota.
Lobo perguntou: — Lembra da Mi?
— Qual Mi? Milena, Michele ou a Mirtes Puta?
— Não, Pêra, tava pensando na Miriam, na senhora
Miriam.
Lobo conseguir pensar com tanta maconha na cabeça
era realmente incrível, mas pensar na Prefeita Miriam? Era
impossível estabelecer uma correlação entre os
pensamentos de Lobo e a Prefeita; eram como estrume e
perfume.
— Mata minha curiosidade, Lobo — Jota disse,
apanhando para si a marica de quase um metro de
comprimento. Ele mesmo tinha engenhado a peça. Depois
mandou um vidraceiro da cidade, que também gostava de
fumo — Ernesto Vidreiro —, fazer a Marica. Custou caro,
mas como tudo foi pago no baseado, não ficou tão caro
assim (não depois de misturar bosta de vaca na
maconha...).
— Imagina só a prefeita. Imagina só a prefeita Miriam...
peladinha... — Lobo respondeu como se falasse da Sasha
Grey. Jota cuspiu a fumaça e engatou uma tosse daquelas.
Os olhos querendo saltar do rosto. O riso saindo na marra,
raspando na garganta como uma lixa d’água.
— Como é que é?! — confirmou Pêra. Ele tinha mesmo
ouvido aquilo?
Lobo sussurrou:
— Imagina a prefeita Miriam pe-la-di-nha.
— Isso aí é só maconha mesmo?
Pêra não conseguia acreditar e, pelo visto, estava bem
mais difícil para Jota — ele estava praticamente se mijando
de rir. Deu dois tapas gentis nos ombros de Lobo que
continuava no mundo encantado das prefeitas peladinhas. A
marica foi parar nas mãos de Pêra que ainda achava
impossível imaginar a prefeita Miriam Guerra sem roupa.
Só pararam de rir quando o último suspiro da melhor
erva prensada da cidade saiu pelo vidro da marica. Estavam
chapados, mas para aqueles filhos-da-mãe era pouco; ainda
faltava cerveja em seus neurônios. Não demoraria para
alguém lembrar disso.
O porão tinha sido a melhor ideia de todos eles nos seus
vinte e poucos anos de vida. Era escuro, tinha cheiro de
peido, um sofá velho e uma televisão que só sintonizava a
Record, mas que se dane. Ali eles ainda viviam nos anos
setenta, e em Amsterdã. A iluminação vinha de uma
lâmpada de sessenta watts pendurada no teto com uma
fiação que devia ter uns quarenta anos. A mesma idade da
casa de Pêra. Seus pais haviam ido embora da cidade, e ele
ficou para trás. Ninguém sabia exatamente se ele tinha
escolhido isso ou se tinha sido abandonado, e menos gente
ainda se importava em perguntar. Pêra e os outros dois
caras no porão eram os futuros abastecedores de carros e
serventes de pedreiro da cidade, isso se conseguissem
escapar da cadeia.
— E aí, vamos fazer ou não? — perguntou Jota. Não era
líder de muita coisa, mas entre os três, era o único com
metade dos neurônios vivos. E Jota tinha certa nobreza no
olhar, costumava ser sincero entre os seus.
— Sei não, cara. Acho que vai dar merda... — disse Pêra.
— Você sempre acha que vai dar merda — disse Lobo (o
senhor peladinha).
— E eu sempre acerto. Já pegou a grana? — perguntou
para Jota.
— O adiantamento tá na mão do Crocodilo. Ele vai
transformar tudo em farinha.
— Farinha, mano? A gente não tinha combinado erva? —
indagou Pêra. Lobo não se importava com isso. Por ele,
podiam comprar até combustível de foguete se alguém
dissesse que dava barato.
— Farinha dá mais dinheiro — respondeu Jota. — Quer
morrer pobre nesse buraco de merda?
Jota ficava bem puto quando alguém questionava suas
ideias. Ele era bom nos negócios, daqueles três, era o único
a ter chegado ao terceiro colegial. E ele tinha até trabalhado
em um banco (por seis meses, depois o pegaram metendo a
mão no depósito mensal do Rotary Club). A verdade sobre
Jota é que ficaria rico ou levaria um tiro tentando, mas era
mais provável que ficasse rico. Aquele filho da mãe era
esperto (e ficou bem mais esperto depois do episódio do
banco). Sua única burrice foi voltar para a cidade. Jota e sua
mãe desapareceram de Nova Enoque quando ele era bem
pequeno. Ele tinha treze quando voltaram. Fazia uns cinco
anos que Joana estava morta. E para onde ele poderia ter
ido depois disso? Que soubesse, Jota não tinha família em
Nova Enoque ou em qualquer lugar. O mais próximo que ele
tinha de uma família era aquela cidade.
— Eu não penso em morrer — disse Pêra. — Vamos
seguir o plano.
Saíram do porão para a parte de cima da casa.
Conseguia feder um pouco mais que o resto. Era um mofo
misturado com suor e gordura, o pesadelo da mãe de
qualquer um. Talvez não fosse o da mãe de Lobo, mas ela
perdera parte do olfato uns dez anos antes, depois de
dormir bêbada e atear fogo na casa. Um vizinho salvou a
vida de Nora, mas ela se ferrou grandão, como diziam os
caras. Nora Lobo queimou um pedação das costas. Oh, e
começou a curtir drogas.
O dia lá fora obrigou os três a sacarem seus óculos
escuros comprados em um camelô da praça. Legitimas
réplicas especializadas em queimar retinas, mas que todo
mundo fosse para o inferno. Eles ficavam mui-machos com
aquelas porcarias nos olhos. O sol não brilhava mais, mas o
calor insano ainda fritava o asfalto. A secura do ar fazendo o
dia ainda pior ao que havia amanhecido. O carro de Jota —
um Maverick verde com motor de Santana Quantum —
estava do lado de fora, embaixo de uma árvore pata-de-
vaca e todo cagado pelos pardais. Estava ali desde a noite
passada. Os caras às vezes dormiam na casa de Pêra que
era algum tipo de quartel general da vagabundice.
— Que horas são?
— Três e meia — Pêra respondeu a Lobo.
— A gente almoçou?
Jota riu de novo. Era foda, muito foda mesmo ficar ao
lado de Lobo e não rir. Ele era um desses eternos
adolescentes retardados que de tão gente boa tem um
desconto prêmio em suas mancadas. Lobo não era mau,
Deus sabe que ele não conseguiria nem pensar nisso, mas
era bobo. E um bobo no meio de um monte de gente
esperta precisa se adaptar se não quiser se ferrar.
— Não, mano, a gente ficou chapado a manhã toda —
Jota explicou. Pêra completou, depois de tombar o banco da
frente para que Lobo entrasse no carro.
— E você ficou pensando na prefeita peladinha.
— Eu ainda tô pensando nisso.
Começaram a rir de novo, o escapamento do Maverick
verde soltou uma explosão pirotécnica, e eles seguiram e
frente. Para a praça do comício.
 
CHEGARAM VINTE minutos depois. Quando desceram do
carro (depois de Lobo ter peidado lá dentro), todos estavam
com um cigarro na boca, fazendo cara de James Dean e
azarando o máximo de garotas possível. Não eram muitas e,
além disso, nenhuma garota razoavelmente bonita sairia de
casa para ver um comício de Orlando Torque. Mesmo assim
a praça estava cheia. Algodão doce, carrinho de pipoca, o
furgão da tevê local, o rádio, até a prefeita Miriam-Peladinha
estava na multidão com seus dois gorilas-segurança.
Miriam estava diferente naquela tarde. Usava seu
terninho azul marinho, sua saia apertando o bumbum
conservado de cinquenta e quatro anos. Mastigava um
chiclete tentando dissipar a ansiedade. Em cima do
palanque estava Torque. Gordo, barrigudo, careca e
imponente. O álter ego da política seminal da cidade.
Miriam tinha sido eleita, mas Nova Enoque ainda estava nas
mãos daquele filho da mãe.
— Cadê o carro dele? — perguntou Lobo.
— Esconde essa merda, mano! Pelo amor de Deus! Quer
ser preso? — Jota.
— De novo? Eu não?
— Me dá isso aqui — disse Pêra, apanhando a KS cheia
de gasolina das mãos de Lobo. Enfiou por dentro da jaqueta
jeans, que usava apesar daquele calor de bosta. Contudo,
ninguém parecia notar. Se Nova Enoque fosse atacada por
formigas mutantes estupradoras de freiras demoraria meses
para alguém perceber.
— Tá ali. Tá logo ali o carro do porco imundo — apontou
Jota. O Subaru importado de Torque estava perto do pessoal
da tevê (do carro deles, o pessoal da tevê estava perto do
palanque, tentando captar tudo o que pudessem distorcer
ou piorar na edição).
— Dá até dó do carro.
Nem nos seus sonhos mais punheteiros, Lobo teria um
daqueles. O máximo que almejava da vida em termos
automobilísticos era um Corcel II, ou um fusca com uma
pintura que não parecesse um quadro cubista.
Caminharam até uns dez metros do carro, então se
misturaram com a pequena aglomeração do pessoal
carismático da igreja. Estavam todos com camisetas de
apoio ao safado do Orlando. As camisetas tinham uma foto
dele estampada e embaixo: A voz de Deus na política.
Coitado de Deus, se Deus soubesse o que faziam com seu
nome em Nova Enoque mandaria outro dilúvio (com vômito
em vez de água). Lobo parou atrás de uma garota loira,
pernas roliças escapando de um vestido curto; dezoito anos,
no máximo. Chegou mais perto e cheirou seu cabelo, a mãe
da garota olhou feio para ele e perguntou se ele estava no
cio. Lobo ergueu os ombros.
— Para com isso, pô. Agora não! — disse Jota.
Esperou que a garota e a mãe se afastassem e analisou
o contexto.
Perto deles, uns doze metros à frente, tinha gente da
polícia. Do jeito que estavam organizados e atentos, os três
não teriam a menor chance. Precisavam de uma distração.
Felizmente, quem tem Pêra e Lobo ao seu lado tem um
estoque praticamente eterno desse material. Juntos, eram
mais instáveis que dinamite velha.
— Tá pensando em quê? — Lobo perguntou antes da
hora.
— Não é na prefeita peladinha — disse Pêra. Lobo soltou
uma gargalhada nojenta que chamou a atenção de todo
mundo. Riu tão esganado que os policiais à frente olharam
procurando alguém tendo um ataque.
— Vai foder com tudo desse jeito! — disse Jota. Prefeita
Miriam deu uma olhada de soslaio para ele, Lobo e Pêra
nem repararam, estavam absorvidos por Orlando Torque,
que fazia uma dancinha dizendo que a oposição não
conseguiria ferrar com ele. O pessoal da igreja ficou meio
assustado, dois papais taparam os ouvidos virgens das
filhas, mas Orlando doava uma grana forte para a
congregação carismática, então ele podia falar sobre
ferração à vontade.
— Preciso que vocês dois comecem uma briga — disse
Jota.
— Ah! Tá zoando né? — Lobo perguntou. Deus do céu,
ele às vezes chegava tão perto da incapacidade mental que
Jota tinha vontade de socá-lo — e às vezes socava mesmo.
— Não. Sem zoeira, Lobo. Quero que vocês vão lá no
meio, bem longe daqui, e arrumem uma confusão um com o
outro. Finjam que estão brigando, e se alguém se meter,
melhor ainda. Só não deem mole pra polícia, senão eles
fodem a gente.
— Sei não, tá cheio de polícia aqui, eles vão prender eu
e o gênio aqui.
— Ei! Tá me chamando de burro? — perguntou Lobo.
— Não, gênio.
— É a mesma coisa! — Lobo protestou. Jota dispensou o
raciocínio ilógico e acelerou o plano. Não dava para discutir
com o cérebro de Lobo. São ou chapado, era impossível.
— Escuta, Lobo. Você e o Pêra começam uma treta.
Quando a polícia vazar atrás de vocês, eu resolvo com o
carro do Orlando Porco. O povo vai ficar insano e quando eu
terminar com o carro, ninguém vai ligar para briguinha de
vocês.
— Sei não... — disse Pêra.
— Já deixei vocês na mão?
— Umas mil vezes — disse Lobo. Riu em seguida. “Que
se foda”, ele disse e saiu na frente. Pêra foi atrás, antes que
ele começasse uma briga com ele mesmo.
O SUBARU DE ORLANDO TORQUE
 
Pêra só conseguiu alcançar Lobo no meio da
aglomeração. Os olhos do povo estavam neles desde que
saíram de perto de Jota.
— Que monte de gente escrota — resmungou Pêra um
pouco antes de Lobo parar de andar. Como eles diziam: A
Favela, o pessoal pobre de Nova Enoque. Eles não eram
simplesmente pobres, eram burros e desgraçados, gente
que não sairia do lugar nem que um caminhão de estrume
estivesse vindo na direção contrária. Pêra também era
pobre, mas não aceitava a realidade na qual estava
inserido. Ele se dopava, fazia merda e enchia a cara de
porcarias, mas não era como aqueles animais de curro.
Nisso, ele, Jota e o sem noção que olhava para ele
esperando um soco eram iguais, três doidos que só queriam
sair dali. Nova Enoque era mesmo um curral e quando eles
menos percebessem estariam com uma marreta no crânio,
sem nunca ter pensado em pular a cerca.
— Tá falando o que aí, mano? — gritou Lobo. Deu duas
pancadas fortes contra a própria cabeça careca. O pessoal
mais próximo (um deles, o diretor quarentão do colégio,
Antony-Cabeça-De-Cebola) saiu de perto com o grito. Lobo
parecia desnorteado, os olhos esbugalhados e um cheiro de
pinga do caramba. Bebeu uns goles de amarelinha dentro
do carro. Para Lobo, não bastava erva e cerveja, ele tinha
que completar com pinga.
— Vai se fudê, seu fresco! — retribuiu Pêra.
Lobo chegou mais perto e o empurrou.
— Ah é?! — perguntou Lobo. O doente estava levando a
encenação a outro nível. Ele estava mesmo brigando!
— Pega leve — disse Pêra, meio que cochichando.
PLAFT!
Aquele filho da mãe doente.
Lobo tinha mesmo enfiado um tabefe no rosto de Pêra.
Os dedos ficaram marcados, e Lobo fez de novo aquilo de
bater contra a própria cabeça. Pêra ficou puto e apanhou
um monte de terra e grama do chão. Jogou no rosto de
Lobo. Ele começou a gritar:
— Tô cego! Você me cegou! Seu monte de bosta!
Longe dali, Jota via os homens da polícia trocando
Q.A.P.’s e Q.R.U.’s em seus rádios de mil novecentos e
sessenta. A polícia de Nova Enoque estava parada no
tempo, a polícia, a saia das garotas, os salários, a única
coisa que evoluía por ali era a safadeza dos velhos. Que se
danassem todos, era graças a safadeza deles que Jota e
seus dois malucos estavam sendo pagos.
Jota esperou a panela esquentar mais um pouco e
recuou para perto do Subaru.
— Dá até dó — disse baixinho, arrancando a garrafa
cheia de gasolina que agora estava perto do seu traseiro.
Encharcou um tecido que envolvia a garrafa, deixou
bem ensopado mesmo, e colocou dentro do escapamento.
Depois acrescentou um limão, de modo que ficasse vedado,
apenas um fio de tecido para fora, um pavio. Parte da
gasolina fora derramada sobre o carro, principalmente no
capô.
Ninguém reparou nele, exatamente como esperava. A
simulação de Pêra e Lobo foi tão bem-feita que até ele
acreditou. Isso não era nada bom. Lobo era meio sem noção
e se tomasse uma prensa da polícia abriria o bico. Também
abriria o bico se uma garota bonita perguntasse... tá certo,
ele era mesmo uma merda em guardar segredos. Uma
olhada ao redor, outra na praça, e a caixa de fósforos
pinheiro (metade dela cheia) esperando para fazer seu
trabalho.
— E fogo... — disse bem baixinho quando incendiou a
caixa. Depois a lançou sobre o carro e andou para o meio da
praça, mesclando-se a multidão. Nenhum policial notou,
tampouco os políticos rabo-preso que apoiavam o vereador
Torque.
  — Que cheiro é esse? — perguntou Sara, sobrinha do
diretor da escola. Mariana, sua melhor amiga e filha do
diretor do único hospital da cidade (Tulio assunção),
também sentiu e fez uma careta.
— Parece gasolina...
Quando as duas olharam na direção daquele fedor
estranho, muita gente fazia o mesmo. No começo ninguém
gritou ou saiu correndo. Assistir um carro queimando no
meio de um comício já seria interessante, mas o carro do
safado do Torque? Era uma espécie se prêmio de consolação
para quem perdeu a tarde ouvindo desculpas esfarrapadas.
Houve um golpe seco no sistema de som, POF! Depois
microfonia. Só depois desses dois ou três segundos
dramáticos, o pessoal que assistia a briga na praça ouviu
em alto e bom som: — O que fizeram com meu carro?!
Quem não estava acordado também prestou atenção
depois dessa.
Torque desceu correndo do palanque, empurrando cada
puxa-saco em seu caminho e atingindo com sua barriga
enorme quem insistisse em ficar. Estava vermelho quando
desceu os seis degraus de madeira. Um zum-zum-zum
mocho acompanhava seus passos, todos cochichando se
aquilo estava acontecendo de verdade.
— Chamem os bombeiros! — gritou.
Seu segurança de dois metros de altura, negro e com
uma careca reluzente, tentou detê-lo e o segurou pelo
braço.
— Chefe, o carro vai explodir, é melhor não chegar
perto.
Torque o derreteu com os olhos.
— Melhor tirar essa mão de mim, filho. Ou quem vai
explodir sou eu.
No meio da praça, a confusão entre Pêra e Lobo perdia a
graça, e olha que os dois estavam se atracando no chão
como duas minhocas enroscadas. A única pessoa que ainda
prestava atenção neles era um policial, mas com o rádio
berrando, ele também desistiu e partiu na direção contrária.
Pêra saiu correndo quando percebeu a nova
movimentação. Para sua casa. Lobo saiu do chão e ficou
falando alto que ninguém mexia com ele, que ele era o
cara, e que se mais alguém estivesse interessado em brigar,
que tomasse um lugar na fila. Lobo era tão sem noção, que
quando Jota chegou perto dele para arrastá-lo dali antes
que entregasse o plano para se vangloriar, estava flertando
com a prefeita. Estava fazendo cara de sexo que era
basicamente os olhos entreabertos, um biquinho, e a mão
perto do saco. Uma vergonha.
— Vai ser preso desse jeito; ‘bora Lobo!
Ele obedeceu, mas antes mandou um beijo para a
prefeita. Claro que ele a imaginava. Ela era coroa, mas
ainda dava um caldo, ainda mais se estivesse como ele a
queria: Pe-la-di-nha.
Perto da locadora falida Horse Magic, encontraram Pêra.
Lobo olhou feio para ele, provando que aquela geleia que
ele guardava dentro do crânio não chegava mesmo a ser
um cérebro. Pêra estava branco, olhando para todos os
lados, gaguejou quando tentou perguntar sobre o que
aconteceu na praça, depois de ter saído.
— Pegou fogo que foi uma beleza! Ninguém percebeu a
gente.
— E se eles desconfiarem? — perguntou Pêra. Ele era
cagão, naturalmente cagão.
— Vocês confirmam a história da briga.
— Que briga? — Lobo perguntou.
— A briga de vocês dois, pombas! Agorinha na praça! —
gritou Jota.
— Ah tá, essa briga.
Pêra sacudiu a cabeça se perguntando como alguém
podia ser tão besta. Estava pronto para dizer em voz alta e
rir da cara de Lobo quando o silêncio morno da tarde foi pro
beleléu.
Uma explosão sacudiu os cabelos da nuca dos três, os
carros na rua pararam de andar, e o pessoal do boteco que
ficava do outro lado dos canteiros saiu para olhar. Devem
ter imaginado que era o fim do mundo. Dois deles se
benziam, e outro havia derrubado a garrafa de cerveja
cheinha no chão (uma grande perda, sem dúvida).
— Puta merda! — disse Lobo.
— Acha que foi o carro? — Pêra.
— É melhor cairmos fora daqui antes que chegue
alguém.
— E o dinheiro? Eu quero minha parte — disse Lobo.
Podia ser um pouco lento, não se importar muito com
suas roupas, ou em tomar banho pelo menos duas vezes
por semana, mas Lobo gostava de dinheiro. Não do dinheiro
em si, isso para ele não fazia diferença. Mas Lobo era um
tipo de viciado em sexo e para isso ele precisava da grana
(ninguém em Nova Enoque transaria com ele de graça, não
do sexo feminino).
— Eu não peguei a grana toda. Mas já tá certo; peguei
trinta por cento e joguei na mão do Crocodilo.
— E quanto é isso?
— É pouco, Lobo, o resto eu pego amanhã e levo no
porão pra gente investir.
— E a minha parte?
— Mano, ele acabou de explicar! — disse Pêra.
— A minha parte eu quero em dinheiro.
— Eu sei, Lobo. Não viaja, tá? Vamos investir em farinha,
mas vai sobrar uma grana pra Madame Paraíso.
Um sorriso ensolarado nasceu entre as espinhas do
rosto de Lobo, o Madame Paraíso era o prostíbulo com a
melhor mercadoria da cidade. Lobo era tão popular por lá
que as meninas o chamavam de namorado. E ele merecia
essa honra, Lobo sozinho tinha gastado mais ali que o time
de futebol da cidade quando ganharam o campeonato do
ano passado. E ele tinha carisma. Ninguém no Madame
Paraíso tratava as meninas como gente. Tratavam como
lixo, no máximo como um tomate de supermercado em que
todo mundo já meteu a mão. Lobo não era assim, ele
realmente gostava delas. E elas, dele. Não davam de graça,
mas gostavam.
— Ah-ah! — riu alto demais de novo, como um retardado
com cólica renal. O pessoal do bar, que se dividia entre
beber cerveja e prestar atenção na explosão que acabaram
de ouvir, também prestou atenção em Lobo. Aquela era a
deixa para caírem fora antes que desse merda (mais
merda).
 
NA PRAÇA, Orlando Torque usava o celular para brigar
com alguém da seguradora. Era um homem prático e o que
o preocupava agora era perder dinheiro. Ao lado dele, a
prefeita fazia uma cara de indigestão e repetia a pergunta
de como uma fatalidade daquelas era possível. Chegou a
perguntar a ele, seu inimigo declarado, se aquilo não podia
ser algum tipo de atentado. Orlando torceu a boca e
continuou com o telefone que era bem mais útil que aquela
capivara bunduda da prefeita Miriam. O Subaru queimando
a vinte metros de distância. As chamas chegaram perto do
carrinho de pipoca e por muito pouco não incendiaram a
carcaça velha de Dito, seu dono, que formou dois filhos na
faculdade de direito pilotando aquela geringonça.
Quando Orlando avistou a viatura de Zétia, parou de dar
atenção ao celular. De qualquer jeito ele recuperaria aquele
dinheiro, se não pudesse cobrar da seguradora faria a
prefeitura pagar. Diria que fora vítima da péssima
segurança da cidade, ou que fora mesmo vítima de um
atentado. E outra, dependendo de como a história
repercutisse, um carro queimado seria útil para limpar toda
a lama da história da merenda. Mesmo assim ainda estava
curioso, e nisso o verminoso do delegado podia ajudar.
Zétia desceu do carro e coçou a cabeça, ouvindo o que
dois dos seus homens tinham a dizer sobre o carro que
queimava ao lado do dono. Orlando caprichou na cara de
coitadinho.
— O que vamos fazer sobre isso? — perguntou assim
que o delegado chegou perto.
— Boa tarde — disse Zétia. — Notou algo suspeito,
vereador?
— Se eu tivesse visto, meu carro estaria inteiro. — O
segurança que estava por perto de novo, riu. Zétia fritou-o
com os olhos e explicou.
— O senhor estava no palanque, certo? Tinha um ponto
de vista privilegiado dali de cima. Não notou nada suspeito?
— Dois babacas, dois marginais daqui, você os conhece,
um deles é o Filho do Arlindo Pêra que caiu fora da cidade.
Eles estavam rolando no chão quando aconteceu.
— Isso não prova nada, mas é uma pista. Esses
desajustados sempre conhecem outros, então... — Olhou ao
redor. Nada suspeito. — Alguma chance de falha mecânica?
— Delegado, pelo amor de Deus. O que está queimando
ali na frente não é a porra de um Logus, aquilo é um
Subaru, um avião desses não pega fogo à toa.
— Já fez boletim de ocorrência?
— Vai me dar outro carro?
— Vereador... Entendo que esteja nervoso, mas precisa
colaborar para descobrirmos o que aconteceu aqui.
Precisamos nos documentar. Para sua própria segurança.
Miriam chegou perto, braços cruzados, expressão
gelada. Um pouco provocativa para quem a conhecia como
o vereador. Aquela ratazana estava vibrando, isso sim. De
um jeito ou de outro, o carro incendiado acabou com o
comício do seu principal opositor político. Se ela não fosse
apenas uma mulherzinha em constante TPM, ele
desconfiaria dela, mas Miriam Guerra não seria capaz disso.
Poucas pessoas na cidade teriam colhões para desafiar
Orlando Torque.
— Prefeita — cumprimentou Zétia.
— Manhã movimentada — ela disse. — E ainda nem
almoçamos.
— Viu algo que pode nos ajudar?
— Não. Mas depois do que aconteceu... Não sei. O que o
senhor faria se o seu filho ficasse sem refeições na escola
se tratando dessa gente pobre daqui? Por causa de um
vereador corrupto? — cochichou.
— Eu não tenho filhos na escola daqui, prefeita.
Depois do assassinato do assunto, olhou ao redor
procurando evidências enquanto a prefeita se afastava com
seu motorista-segurança. Zétia não precisou procurar muito.
Encontrou metade de uma garrafinha KS jogada no meio do
gramado, perto de um cartaz amassado e todo zoado (com
bigodinhos, dentes faltando e chifres) com a foto do
vereador Torque. Ele a apanhou e levou ao nariz. O cheiro
volátil o irritou um pouco e ele confabulou consigo mesmo,
pensando no rosto desvairado de Galileu Sultão.
O que está acontecendo com essa cidade?
RICARDO MINOTTO
 
Notícias ruins chegam logo, mas demoraram um pouco
até caírem nos ouvidos de Ricardo Minotto. Ele estava
acompanhando o dia-a-dia imprestável de dois de seus
funcionários quando o telefone tocou em seu bolso. Não
atendeu, aguardando Bosco (o imbecil com um machado na
mão que chegou atrasado depois do almoço porque
precisou reeducar a mulher) partir o crânio de mais um boi.
E era melhor que fizesse isso bem depressa, tinha mais
meia dúzia de cabeças na fila. Carga roubada... Nesses
casos, era agilidade ou cadeia. Ninguém tinha chegado ao
matadouro-curtume, mas em um fim de mundo como Nova
Enoque, as cabeças de gado sequestradas tinham poucos
lugares para onde ir.
VAP!
O cabo do machado cortou o ar, e Anisinho, uma
espécie de aprendiz de feiticeiro de Bosco, gritou
empolgado: — Mata o filho da puta! — Ricardo riu da
gracinha. Era bom ter caras empolgados em um emprego
fedido como aquele. Ajudava a cabeça a não pirar com todo
aquele sangue, tripas e fedor. O boi soltou um mugido e
deixou um pouco de urina verter da bexiga. Revirou os olhos
e caiu. Estrebuchou duas vezes e aceitou a morte.
— Esse aí virou bife — disse Bosco, limpando as gotas
de sangue do rosto.
— Calem a boca, agora. Tenho que atender aqui.
Bosco apoiou o machado no chão como um gladiador
exausto e deixou Anisinho fazer as honras com o defunto.
Ficaria de olho para que ele não estragasse a carne depois
de tanto trabalho. Ricardo estava longe, afrouxando o
colarinho para se livrar do calor. Clicou no botão e atendeu
ao aparelho.
— É bom ser importante — disse, antes do alô.
— Pai? Sou eu. O Roger.
— E que porra de número é esse? Perdeu o celular de
novo?
— Escuta, pai. Não tenho muito tempo. Eu tô preso.
— Como é que é? Que merda você aprontou agora?
Matou alguém?
Ouviu um soluço do outro lado da linha e se escorou na
passarela onde os bois condenados faziam seu último
cortejo. — Jesus Cristo, Roger. Conta bem devagar o que
aconteceu.
— Eu não sei direito, eu estava com a Milena e... E ela
morreu.
— A pistoleira? Puta merda, Roger! Onde você está?
Vamos resolver isso, fique calmo.
— Ele está na delegacia, Minotto.
— Zétia?
— Seu filho foi encontrado com a namorada morta
dentro do carro. Ele tinha direito a uma ligação e pediu que
entrássemos em contato.
— Meu filho não é um assassino, porra. Por que
prenderam o garoto?
— Tudo indica que ele matou a moça. Preciso saber se
vai mandar alguém ou aciono o advogado do município.
— Eu tô indo pra aí. E vou levar a porra do advogado.
Acessou a agenda do celular e ligou para o Doutor Cotia.
O verme estava acostumado a resolver os problemas mais
cabeludos da família e não preguntaria: culpado ou
inocente, só perguntaria se o pagamento seria cheque ou
dinheiro vivo. Cotia preferia dinheiro, destino próprio em vez
de um banco onde o imposto de renda comeria metade.
— Quer mais quantos, chefe? — perguntou Bosco.
Ricardo sequer olhou para ele quando disse: — Mate
quantos conseguir. Quero ouvir os gritos quando estiver
saindo.
— Vichi... — disse Anisinho. Eles nunca matavam mais
de seis cabeças por dia.
Bosco gostou da ideia, pensou que se mandasse um
monte daqueles bois idiotas para o céu-dos-bois-idiotas
sentiria menos raiva da marmota que chamava de esposa.
Ricardo subiu as escadas de metal e entrou depressa
em seu escritório. Tinha falado com Cotia e combinado de
se encontrarem na delegacia. O safado cobrou uma nota e
ainda tentou recusar o caso. Concordou quando Minotto
ameaçou abrir o bico sobre suas aplicações financeiras.
Minotto apanhou a chave da Captiva, seu chapéu importado
e um maço de cigarros novos. Ainda pensava que tudo era
um grande engano. Roger? Um covarde metido a new
hippie? Roger não mataria um frango.
Passou por Sofia, a secretária que às vezes dormia com
ele.
— Se alguém me procurar, marque para amanhã.
— O senhor volta hoje?
— Não, aconteceu um probleminha com o Roger.
Ela parou de teclar. Também tinha transado com Roger
umas três vezes.
— Tudo bem com ele?
— Ainda não sei — disse Ricardo. Em seguida saiu,
deixando a porta aberta.
 
EM VINTE MINUTOS estava na delegacia. Doutor Cotia já
estava lá há dez. Minotto desceu da Captiva e socou a
porta. Tragou com fome metade de um cigarro e jogou o
resto longe. A delegacia estava abandonada naquela
manhã. Ele sabia o motivo, tinha ouvido no rádio sobre o
carro do vereador Torque. Teve o que merecia. Quem
mandou roubar criancinhas? Roubar um homem adulto,
tudo bem, até usar um pouco de violência ou mexer uns
pauzinhos para livrar a cara do filho sem-noção da cadeia,
aceitável, mas roubar criancinhas? Ah, não, isso não era
coisa de Deus.
— Onde está ele? — perguntou. Cotia estava do lado de
fora.
— Enjaulado. A coisa foi feia, Minotto. Bem feia.
— Quanto tempo pra tirar ele daqui?
— Não se trata de quando, mas de se. Apanharam seu
filho perto do carro. A menina estava morta, foi violentada.
Seu garoto estava sujo de sangue.
— Acha que foi ele?
— Não é para isso que o senhor me paga, mas acho
bem difícil provarmos o contrário. Você conhece o delegado
Zétia.
— Sem preço...
— Pois é. Deus fez poucos filhos da mãe como ele. O
que podemos fazer é enrolar, alegar um surto de loucura de
Roger e tentarmos uma pena reduzida. Ninguém vai
acreditar que ele é inocente.
— E os pais da vagabunda?
— Zétia foi até eles e contou tudo. Parece que o velho
pediu um tempo para contar para a esposa. Acho prudente
o senhor ficar longe da cidade por enquanto. Ele não vai
conseguir machucar o Roger, mas um pai desesperado vai
procurar retaliação.
Ricardo bateu na cintura.
— Tenho seis retaliações esperando por ele.
Cotia arregalou os olhos castanhos e olhou sobre os
óculos finos.
— Perder o juízo, Ricardo? Pelo amor de Deus... Seu filho
vai ser acusado de assassinato e você aparece com um
revólver na delegacia? Deixe essa porcaria no carro!
— Eu tenho porte.
— Tem sim, mas não pra andar na rua.
Minotto obedeceu e recuou até a Captiva. Escondeu a
arma debaixo do banco do motorista. Voltou e subiu os dois
degraus até a entrada da delegacia. Cotia ao seu lado.
— Eu falo com o delegado. E se o garoto começar a se
justificar, peça para ele ficar calado. Ele pode se complicar
mais ainda.
Dentro, deram de cara com a sonsa da escrivã Regina. O
delegado surgiu em seguida e chamou os dois para dentro
do balcão de atendimento.
— Cadê o meu filho?
— Ele está sob custódia. O senhor pode esperar aí fora
se quiser, meu assunto é com seu advogado.
— Vai sonhando, Zétia. É do meu garoto que estamos
falando. Eu vou entrar aí e vou falar com ele, e se não me
deixar fazer isso, vai ter que se explicar ao governador.
— Não tenho medo de suas ameaças, Minotto. Mas pode
vir se conseguir segurar a língua; consegue fazer isso?
Minotto concordou depois de um toque suave de Cotia
em seu antebraço. Ficaria calado sim, por enquanto, porque
quando começasse a falar de novo enterraria aquele
delegadinho de merda em sua própria bosta.
Os três homens ficaram na sala do delegado até às seis
da tarde. Zétia explicou a Minotto a gravidade da situação,
mostrou algumas fotos que deixaram Ricardo vermelho e
enojado, depois pediu para que ele mantivesse a calma se
acreditasse na inocência do garoto. Disse que se Roger
fosse mesmo inocente ele descobriria, mas que havia uma
probabilidade muito pequena disso ser verdade. Depois de
prometer manter o controle, o delegado concordou que
Minotto se encontrasse com o filho.
Entraram no corredor curto da parte de trás da
delegacia e depois de cinco passos encontraram Roger. Ele
estava sentado no chão, ao lado da cama de alvenaria,
olhava para a parede à frente; desolado.
— Pai! — gritou quando reconheceu Minotto. — Vai me
tirar daqui, certo?
— Vou, Roger, mas não consigo fazer isso hoje.
— Mas eu não fiz nada! Já disse a eles que eu não fiz
nada!
— É mais complicado que isso. Podemos entrar? —
perguntou ao Delegado.
— Não foi o que combinamos — disse Zétia. Quase riu
de si mesmo. Minotto não era o tipo de homem que cumpria
acordos, ninguém pobre que consegue ficar rico é assim.
— Qual é o risco? Não vamos atravessar a parede,
delegado. Ele é meu filho!
Zétia procurou pela sanidade de Cotia. O advogado deu
de ombros como quem diz: “Esse é um problema só seu”.
— Tudo bem. Cinco minutos. E vou revistar você.
Minotto ergueu os braços e sorriu, pensando na arma
que deixara no carro. Seu advogado não riu. Cotia temia
que Minotto tivesse outra arma com ele. Aquele era o filho
da mãe mais teimoso de Nova Enoque.
Depois dos procedimentos — um pouco mais agressivos
que a rotina, era verdade —, Zétia abriu a porta de aço e
deixou Minotto entrar. Cotia também.
— O que acontecer aí dentro não é problema meu —
Zétia disse, quando trancou os três dentro da jaula. Saiu
assoviando e sentou-se na cadeira de uma pequena mesa
que ficava na entrada do corredor. Olhou para o relógio e
marcou o tempo. Queria estar em casa. Aquele estava
sendo um dia muito, muito estranho. Ouviu Roger soluçar
quando abraçou o pai.
— Merda, Roger, como se meteu nisso?
— Eu só estava lá.
— Falem baixo, pelo amor de Deus! — disse Cotia,
temendo uma confissão acidental. Em seguida foi para um
canto aonde cruzou os braços e ficou.
Roger falou o mais baixo que pôde. Não era nada fácil
porque sua vontade era gritar até que alguém acreditasse
nele.
— Eu estava lá. Estávamos namorando, ouvindo música.
Estava quente e tínhamos bebido cerveja, eu tinha bebido
cerveja e saí do carro para urinar. E aí... E aí minha cabeça
apaga. Minha próxima lembrança é um policial me
algemando e me colocando dentro da viatura. Foi como se
eu tivesse acordado de repente.
Ricardo procurou pelo advogado. Cotia estava atento,
catalogando cada palavra que ouvia para depois decidir o
que faria com elas.
— Você viu a garota? Depois do que aconteceu? Chegou
a ver?
— Não, pai. Eu vi os pés cobertos de sangue. Ela estava
sem a unha do dedão direito. Não fiquei olhando, eu não
posso com sangue, o senhor sabe.
— Tinha mais alguém com vocês? A cidade toda vai
naquele maldito morro pra dar uns amassos.
Roger pensou um pouco. Tinha alguém sim, mas aquela
lembrança, a tal presença, era tão sutil quando uma
imagem no canto dos olhos, uma sombra borrada que não
significa muita coisa quando o olhar se fixa sobre ela.
— Tente lembrar, qualquer um que estivesse no morro
pode ter feito essas coisas horríveis com a moça.
Sua cabeça doía. Quando mais forçava aquela memória
mais sua cabeça latejava. Ele já tinha perdido o dia inteiro
fazendo isso.
— Droga, pai. Se existisse uma maneira de acessar essa
parte, eu faria. Bateria minha cabeça no concreto da cama,
até rachar, se alguma lembrança saísse junto com o
sangue.
Começou a chorar de novo. E não era só o choro que
preocupava Minotto.
— Você comeu alguma coisa? Olha a cor do seu rosto, tá
parecendo um fantasma.
— Eu preferia ser um fantasma. Preferia ser qualquer
coisa do que me tornar isso que estão dizendo. Nós
estávamos numa boa, ela era durona, mas eu nunca...
Sabe? Eu nunca faria aquelas coisas com ninguém, ainda
mais com a Mi.
— Nós vamos sair dessa, garoto. Prometo. Eu vou tirar
você aqui — Minotto disse. Em seguida ouviu a cadeira do
delegado se arrastar no chão. Seus cinco minutos haviam
terminado. Cinco minutos curtos demais para convencer
Minotto que seu filho era inocente.
SEGUNDA PARTE
 
A LOUCURA
 
 
 
 
“Nada melhor do que descobrir um inimigo, preparar
a vingança e depois dormir
tranquilo.”
— Joseph Stalin
 
 
PAULINE E SEU LADO ESQUERDO
 
Pauline chorou o dia todo. Não havia sido sua primeira
surra, não tinha sido a pior, mas a humilhação de ter uma
panela de macarrão quente jogada sobre o rosto conseguia
ser mais forte que a dor. Depois que Bosco saiu, ela encheu
o rosto com uma pomada anestésica e limpou o chão da
cozinha. Se Bosco chegasse e encontrasse a casa imunda a
atacaria de novo. Ultimamente — desde que ele começou a
ter problemas eréteis —, tudo era motivo para uma nova
explosão.
O chão estava limpo e o rádio agora, perto das sete da
noite e fora da estação Roberto Carlos, cantava uma música
antiga do Seal, Crazy. Algumas lágrimas novas minaram dos
olhos de Pauline. Culpa daquela música cretina. Na época
em que a música fazia sucesso, Pauline namorava Marcos,
um caminhoneiro que estava a fim de casar com ela e fixar
moradia em Nova Enoque. O pai de Pauline não concordou.
Um forasteiro? Ainda mais um caminhoneiro? Com sua filha?
Não... Inadmissível para um pastor evangélico. Um pastor
evangélico que acabou casado com uma gatinha de
dezenove anos que fez aquele pangaré velho sentir-se um
alazão. Não moravam mais na cidade.
Quem pagou pelas lembranças foi a linguiça calabresa
que iria para o feijão. Foi bem mais esmagada do que
fatiada.
— Homens, vocês são todos uns desgraçados! — disse.
A faca tremeu contra a tábua de carnes. O rádio agora
estava tocando outra música, Eyes of The Tiger, ou como
diria Pauline, a música do Rocky Balboa.
Deixou a linguiça em paz depois de usar metade dela e
foi até a geladeira apanhar salsa e cebolinhas. E também
folhas de louro, porque era assim que Bosco gostava do
feijão que o fazia peidar litros de metano. A luz do
refrigerador a atingiu, ao mesmo tempo uma estática chata
deixou a música no rádio toda embaralhada.
— Até você? — perguntou ao rádio que não cantava
mais nada. Ficava com aquele som de rádio AM procurando
estações. Pauline sugou o muco do nariz e voltou para a pia.
Então ouviu:
— Você não devia permitir.
Com o susto, Pauline apanhou a faca afiada e cortou o
vento às suas costas. Um pouco dos temperos foi para o
chão. Ela estava tremendo. Os olhos saltados e vibrantes
procurando o dono daquela voz. Talvez estivesse embaixo
da mesa. Ela se abaixou e checou o espaço.
— Lugar errado, Boneca de Louça.
Ficou ligeiramente mais calma ouvindo isso. Só havia
uma pessoa no mundo que a chamava de Boneca-de-Louça.
Era estranho porque sua mãe não tinha aquela voz
masculina, e, além disso, Clécia estava morta há quinze
anos.
— Quem é você? Um espírito — Afastou-se, andando de
costas e procurando o dono da voz. A faca em punho.
— Não. Sou só o rádio.
Olhou para janela e lá estava ele, o senhor rádio.
— Brincadeira idiota. Quem está fazendo isso? Se eu
descobrir, juro por Deus que chamo a polícia!
— Pode chamá-los, Pauline. Mas eu duvido que alguém
virá ajudar você com seus problemas conjugais.
— Como sabe disso? — A faca ainda nas mãos, o brilho
do metal refletindo a luz da cozinha nos azulejos floridos.
— Todo mundo sabe, fofura. A cidade inteira sabe.
Pauline foi até o aparelho e o puxou da tomada.
Respirou fundo tentando dissipar a raiva. Apanhar dentro de
casa era injusto, porém aceitável dependendo da condição
em que acontecia. Mas ter a cidade inteira rindo às suas
costas? Operando rádios?
— Posso falar por aqui também, mas prefiro o rádio —
disse a tevê da sala. — Eu não estou puxando essa
conversa para humilhar você. Eu só quero um pouco de
justiça, entende? Quero justiça para você e para toda
mulher que tem um porco do outro lado da cama.
Pauline riu tapando os dentes grandes da frente com a
mão esquerda. A direita ainda segurava a faca, mas não por
muito tempo. Ela foi até o rádio e o ligou de novo. Apanhou
os temperos do chão, juntou cada folhinha calmamente e
colocou tudo sobre a tábua de carne.
— É assim que se faz, essa é a minha garota! — o rádio
disse, feliz em poder ajudar.
— Agora me conta como a cidade inteira sabe o que
acontece em minha casa.
— Preciso mesmo contar?
Ela agitou a cabeça, esquecendo que o rádio não tinha
olhos. Ou pelo menos não deveria ter. O fato é que o rádio
soube que ela concordou.
— Seu marido Bosco anda falando pelos cotovelos sobre
vocês dois. Ele conta tudinho no bar quando todos os
homens estão de cara cheia.
— Maldito.
— E ele não conta somente sobre as brigas. — O rádio
começou a cochichar quando disse: — Ele também conta o
que fazem dentro do quarto.
— Oh, seu desgraçado infeliz! Como ousa? — ela
perguntou.
— Eu?
— Não, senhor rádio, não você. Como ELE ousa, foi o
que eu quis dizer.
— Ele trata você como um efeito colateral da vagina. É
só isso que você significa para ele, Pauline. Eu não quero
jogar mais lenha na fogueira, mas um homem desses não
merece uma mulher como você.
— Como ele pode fazer uma coisa dessas? — Apertou as
mãos sobre o granito frio da pia.
— Eu não deveria dizer, mas ele não comenta só com os
amigos do bar. Não... Não posso falar sobre isso.
— Vai falar sim! — Pauline levou a faca para perto do
autofalante do rádio. — Ou vai ficar mudo para sempre. E se
mudar para a tevê, eu farei o mesmo.
— Quer mesmo saber? Você está pronta para isso?
— Desembucha.
Alguma estática de novo. Pauline mexeu na antena com
medo de perder de vez seu novo amigo. E não importava
mais se fosse alguém com um transmissor de FM. Quem
estava do outro lado não era importante, as coisas que dizia
sim.
— Diga-me, Pauline, já ouviu falar do Madame Paraíso,
certo?
— Todo mundo nessa cidade já ouviu falar daquele
chiqueiro... Peraí! Tá querendo dizer que o meu marido anda
se esfregando com as mulheres daquele inferninho? É isso,
senhor rádio?
Ela estava mesmo falando com o rádio? Devia estar
perdendo o juízo, mas não parecia isso. Ao contrário,
parecia perfeitamente normal. O rádio estava sendo mais
franco que toda aquela gentinha que ria pelas suas costas.
Qual era o grande problema? Que estivesse perdendo o
juízo... A conversa com seu velho rádio estava sendo o
melhor momento da semana. Do mês. Ela insistiu:
— Vai responder minha pergunta?
— Antes, preciso dizer que você não está perdendo o
juízo. Se me permite, Pauline; quero dizer que você nunca
esteve tão perto da realidade do seu casamento quanto
agora.
— Obrigado.
— E sobre sua pergunta. O gordo do seu marido fala de
você quando trepa com as vagabundas do Madame Paraíso.
Ele fala de você, trepa com elas e sorri. E ele não faz com
elas como faz com você. Ele até as beija na boca. Ele é
gentil e faz questão de demorar bastante.
— Filho da mãe! — Suas mãos estavam tremendo de
novo. Tanto que ela abandonou a faca sobre a pia da
cozinha. Começou a chorar e não era de tristeza, era raiva.
Aquele canalha guardava tudo de bom que tinha para
entregar para as piranhas do Madame Paraíso. Não era
justo. Por isso que ele andava broxando e enfiando a mão
nela quando isso acontecia! Estava gastando seu
combustível em outras pistas.
— Ele é sim, é um grande gordo filho da mãe.
O rádio ficou calado, permitiu mais um pouco de choro
compulsivo. Pauline estava entrando no clima, não seria
produtivo apressar esse momento. Quando sentiu Pauline
ligeiramente recomposta, continuou.
— E sabendo de tudo isso, Pauline, o que faremos a
respeito?
— Vou deixar essa casa hoje mesmo.
— Não, Pauline. Você vai pensar melhor sobre isso. De
quem é essa casa? Metade dela que seja?
— Minha. Usamos a herança da minha mãe para
comprar. Bosco inteirou o que faltou.
— E acha justo sair do seu lar com uma mão na frente e
outra atrás?
— Não, mas eu... Eu não tenho forças para enfrentar o
Bosco. Ele é forte e é malvado. Eu jamais conseguiria.
— Posso te ajudar nisso, Boneca de Louça. Mas vai
precisar fazer exatamente o que eu disser. Sem discutir.
Por cinco ou seis segundos, a cozinha ficou silenciosa.
— Acha que pode fazer isso, Pauline?
— Estou ouvindo, senhor rádio. Pode acreditar que estou
ouvindo.
 
DEMOROU UMA HORA E MEIA para o carro de Bosco
dobrar a esquina, gastando mais borracha dos pneus. O
som estava alto, tocando uma porcaria de pagode que
Pauline detestava. Ela só ficaria feliz se aquela coisa horrível
fosse a última música que o canalha ouvisse em vida.
Bosco socou o portão e arrotou, antes de entrar em
casa. Pelo horário, devia ter passado no bar e enchido
metade do tanque. O resto completaria em casa, entupindo
o peito com Derby e assistindo o que encontrasse de pior na
tevê.
— Oi, assombração — disse quando passou por Pauline.
Ela tinha um pouco de pomada no rosto, perto dos olhos,
onde a pele era mais sensível.
Bosco foi até o banheiro, urinou com a porta aberta de
modo que o som enchesse a casa toda, e tirou a camisa.
Voltou para a cozinha em seguida e só então prestou
atenção de verdade em Pauline.
— Por que essa roupa de puta?
Pauline manteve o salto. O rádio estava ligado e a
incentivou com uma canção mais serena. Vapor Barato na
versão de Zeca Baleiro.
— Preparei algo especial.
Bosco coçou o queixo oleoso. — Que história é essa?
— Sente-se, amor. Eu pego sua cerveja.
Bosco estava desconfiado, mas obedeceu. Exceto pela
cerveja, essa ele fez questão de apanhar. Abriu explodindo o
lacre e deu uma golada de meia lata. Soltou um Ahhh
refrescante em seguida.
Pauline o esperava, recostada à pia. Cabelos escovados,
unhas pintadas, batom vermelho. No corpo, uma minissaia e
uma blusinha cavada. Estava sem sutiã e seus dois mamilos
pequenos saltitavam livres. Bosco não parecia interessado
em nada que não fosse comestível — como Pauline não era
há muito tempo. Sua garota estava de salto alto, o que
deixava seu bumbum amolecido um pouco mais empinado.
Tinha esperança que Bosco se interessasse por ela. Se isso
acontecesse, esqueceria todas as ideias malucas do senhor
rádio e daria uma chance ao marido. Homens são idiotas, e
o seu Bosco não seria o primeiro a desabafar em um balcão
de bar terminando a noite no consolo nas prostitutas.
— Vai me dizer o que está aprontando ou posso assistir
tevê? Comece explicando por que está pintada feito uma
palhaça.
Os olhos de Pauline ameaçaram um dilúvio, ela os
conteve. Fazia parte do plano não gastar lágrimas com
aquele miserável. Mas ele tinha razão.
Pauline se sentia uma palhaça. A roupa (que tentava ser
provocante) servia para dizer ao senhor rádio que ele
estava errado, que seu homem ainda a amava. Pura ilusão.
A única razão daquele homem ainda dividir a casa com
Pauline é que era cômodo, era fácil. Roupas limpas, lençóis
perfumados, sexo duas vezes por mês para satisfazer
necessidades biológicas. E obviamente a comida que aquela
coitada preparava. Boa comida. Foi sobre esse ponto que
Pauline quis falar.
— Tentei fazer uma surpresa, Bosco. Tinha esperança
que nosso casamento tivesse jeito.
— Tá falando do quê? Qual é o problema com o
casamento?
— Nenhum, amor. Nenhum. — Foi até o fogão e retirou a
tampa da panela de pressão. Um cheiro bom tomou conta
da cozinha. Bosco farejou duas vezes, como um cachorro
sentindo o cheiro de carniça nova. Olhou em direção ao
fogão.
— Sabe, Pauline, você mal serve pra trepar, mas adoro
sua comida. E que porcaria você estava dizendo sobre o
nosso casamento?
De costas, Pauline sugou o nariz. Não era fácil resistir ao
choro ouvindo palavras tão rudes. Bosco sabia disso, sabia
onde doía e fazia questão de limpar suas botas nas feridas
mais profundas.
— Deixa pra lá. Fico feliz em fazer o que uma mulher
deve fazer.
Colocou um porta-panelas de madeira sobre a toalha
branca da mesa e, sobre ela, a panela quente de feijão.
Bosco já ia avançando e, pela primeira vez, ela o impediu.
Ele rosnou; — Ei! — Pauline só escapou de novos socos
porque já tinha apanhado uma vez no dia. O pai de Bosco
sempre dizia que uma mulher aguenta uma surra todo dia,
mas nenhuma aguenta apanhar o dia todo.
— Eu vou comer com você — Pauline se justificou.
Passou pela geladeira e apanhou uma maçã. A mais
vermelha e suculenta que encontrou.
— E vai comer essa porcaria que não sustenta um
frango?
— Belisquei alguma coisinha no meio da tarde. Mas vá
em frente; eu faço companhia.
— É melhor não tá tentando perder peso. Se você
emagrecer mais um pouco vão te confundir com um poste.
Dá pra ver suas costelas, meu Deus!
Pauline sorriu, complacente como um hímen cansado.
— Posso comer, agora? — perguntou o rosto gordo, mal
barbeado e oleoso de Bosco.
O rádio deu uma pausa na programação (tocava um
sertanejo universitário até então, Ressentimento) e
começou a chiar. Pauline, mesmo com o volume baixo,
conseguiu ouvir claramente:
“Vá em frente, gordão.”
Em seguida, a música recomeçou.
— Ficou assim o dia inteiro. A estação está perdendo a
sintonia.
— Devia trocar de estação. Parece que gosta de sofrer...
Agora vamos ver o que temos aqui — Chegou perto da
panela. Pauline correu para virar o prato na posição correta,
Bosco já estava mergulhando a concha dentro da panela de
feijão.
Ele bufou. Bosco nunca entendeu porque os pratos eram
colocados invertidos na mesa. Devia ser coisa de mulher,
frescura para dar mais trabalho.
Uma mordida na maçã enquanto ele colocava o rosto
bem perto do prato cheio.
— Tá com cheiro diferente.
— É amor — ela disse e voltou a cravar os dentes na
maçã.
— Amor não cheira. E quando cheira, fede.
Tornou a cheirar o prato. Dessa vez mergulhou a colher
funda no marrom do feijão. Estava forte. Pedaços de carne e
gordura, muita cebola, louro, e a pimenta-do-reino que
pediria uma cerveja digestiva ao fim. Estava com um cheiro
tão bom que ele abriria mão de outra cerveja por enquanto.
Mas só por enquanto. O dia não terminava de verdade até
ele tomar meia-dúzia delas, ainda mais um dia pesado
como aquele. Matar gado era bom, mas desossar cansava.
Tocaram mais duas músicas antes que aquele prato
terminasse, Como uma onda, com Tim Maya e uma música
sonsa da Wanessa Camargo. Só depois da última garfada,
que gerou um arroto longo e profundo em Ré maior, uma
que agradou Pauline. Ela a conhecia de algum lugar
esquecido por seu cérebro. Uma voz grossa, melancólica,
tinha algo nela que valia a pena.
“Quando chega a madrugada…” — disse o senhor rádio.
A música era Outro Cigarro de Renato Godá.
Bosco se esticou todo e deu outro daqueles arrotos que
azedam a garganta quando estão perto do fim.
— Água? — Pauline perguntou.
— É isso que dá carregar na pimenta.
— Ninguém reclamou enquanto comia.
Bosco socou a mesa e se não estivesse sentindo uma
tonelada dentro da barriga, teria dado a ela o que merecia.
Aquela retardada. Pauline devia era agradecer por ter um
homem bom feito ele. Alguém que cuidava dela, que botava
comida na mesa e que, vez ou outra, dava a ela um pouco
de amor. Do amor que ele tinha para dar, é claro, nada
muito meloso, amor de homem.
Outro arroto e, dessa vez, ele precisou segurar o azedo
que tentou subir.
— O que você fez com esse feijão? — perguntou,
beliscando o rosto. A pele estava queimando e a área perto
da boca, dormente. Um monte de cuspe deixava a língua
amarga e não adiantava engolir, porque a garganta
simplesmente não obedecia.
— Fiz um tempero novo, achei que você merecia.
— Eu não consigo...
Bosco levou as mãos ao pescoço e apertou. Sua visão
ficando embaçada, a cozinha parecia clara demais. Seu
estômago reagiu com espasmos. As mãos tremeram.
— Me ajuda! — gorgolejou. Acabou se desequilibrando e
caindo da cadeira, arrastou a toalha da mesa consigo. O
corpo gordo, melado de suor, se espatifou sobre o piso frio
como um grande saco de carne podre. Pauline não diria que
ele era melhor que isso. O rádio continuava. Pauline
dançava.
Jesus, quanto tempo fazia que ela não dançava? Seria
bem mais fácil perguntar sobre sua última tristeza. Os saltos
altos não eram tão bons para dançar, mas ela os manteve
nos pés. Queria ficar o mais longe possível, o mais alto
possível em relação àquele saco de lixo.
O verme se arrastava pelo chão, a boca vertia baba, um
muco vermelho. Ótimo! O porco tinha começado a sangrar.
Quanto tempo restaria a ele? Horas? Minutos? Segundo o
senhor rádio, seria bem rápido. Mas não havia pressa,
Pauline queria saborear cada tremor, cada pequeno
desvario de dor do homem espatifado ao chão. Homem?
Seria um elogio dos bons chamar o porco de homem.
— Tá cansadinho, amor?
— Sua puta! — Um pouco de muco sanguinolento
escorreu do nariz e entrou pela boca. Um odor novo tomou
conta da cozinha.
— Parece que alguém sujou a cuequinha... É normal,
amor. Não sinta vergonha.
Pauline foi até a geladeira. Pisoteou a mão direita de
Bosco que tentou agarrá-la. Ele gritou e a recolheu, não
estava conseguindo coordenar seus movimentos. Arfou o ar
e começou a tremer em seguida, balançava um pouco mais
nas pernas do que nos braços, o pescoço parecia uma mola.
Pauline apanhou uma cerveja importada, a lata tinha um
demônio desenhado no metal. Extraforte. Ela abriu e deu a
volta na mesa. Voltou para perto do rádio, só então explodiu
o anel da latinha. Sorveu um grande gole, o pouco que
derramou pela boca limpou com as costas da mão direita.
Bosco já estava nas últimas.
— Você vai morrer, Bosco. Vai morrer como um rato de
esgoto. Tá curiosinho sobre o que aconteceu?
Bosco virou de frente e parecia ter algo vivo alojado na
barriga. As mãos voltaram para o pescoço tentando abrir a
traqueia com as unhas. Os olhos estavam tingidos, escorria
um pouco de sangue pelo olho esquerdo.
— Veneno de rato, amor. Você me fez comprar para
matar o gato do vizinho, lembra? Sobrou um montão... Hoje
alguém me deu a ideia certa sobre o que fazer com ele.
— Me aju... — O vômito não deixou que terminasse a
frase.
— Ajudar você? — Mais um gole na cerveja. — Prefiro
ajudar a mim mesma. Tente fechar essa boca e morrer com
dignidade.
… e sonho com o meu amor — disse o rádio.
VAI PASSAR LOGO, ELES DISSERAM
 
Alan viu quando a mulher esquisita da casa da frente foi
até o portão. Ele estava sentado de lado de fora de sua casa
porque sua mãe estava atendendo duas mulheres com mais
plásticas que carne no rosto. Ele não conhecia nenhuma das
mulheres pelo nome, mas sua mãe, sim. Janice Sérpia era
costureira daquelas duas há anos.
A mulher esquisita era Pauline. Alan a conhecia e sabia
o seu nome. Todo mundo sabia seu nome desde que ela
começou a apanhar do marido. Dois vizinhos da rua
chamaram a polícia, mais de uma vez, mas como Pauline
nunca aceitava ajuda, acabaram desistindo. Se Pauline
Bosco queria viver como um saco de areia, que fosse. Cada
um com suas preferências e o preço a pagar por elas.
Pauline havia retornado à sua casa pouco tempo depois de
ficar falando sozinha com o portão. Ela era estranha, magra,
desbotada. Mas falar sozinha era novidade.
Alan chegara em casa perto das dez da manhã e Janice
não estava. Mamãe também trabalhava em uma loja no
centro onde ganhava dinheiro de verdade. A costura rendia
uma miséria e mal dava para pagar o aluguel. Eles tiveram
uma casa própria no passado, mas antes de fugir (depois do
papai se endividar em todas as mesas de baralho da
cidade), Fausto Sérpia deu a casa para os credores. Janice e
Alan não esperavam mais encontrá-lo, Fausto era um rato e
sabia se esconder quando precisava. Além disso, era bem
provável que alguém tivesse acabado com ele.
Uma mosca sentou no nariz de Alan, e ele deu um
tapinha em si mesmo tentando afugentá-la.
— Ai! — gemeu.
Tinha esquecido completamente daquela escultura
horrível que se tornara seu nariz. Tinha inchado bastante e
doeu o dia inteiro. Janice fez uma compressa com gelo, e
Alan disse a ela que levou uma bolada na aula de Educação
Física — não era mentira, ele só se esqueceu de mencionar
Murilo Torque, e que todo mundo riu dele.
A lua já estava no céu e, com as duas mulheres em sua
casa, ainda era cedo para o jantar. Alan estava morto de
fome. Em um dia como aquele era difícil pensar em como a
vida podia ficar pior. Sem jantar, sem prognósticos positivos
sobre o dia seguinte na escola, sem vontade de entrar em
casa e encarar aquelas mulheres de cera que tratavam sua
mãe como uma escrava branca.
— Ei, Lango, vem cá!
Seu cãozinho baixou as orelhas e colocou o rabo entre
as pernas. Ele sempre agia assim, sempre na defensiva.
Lango tinha sido resgatado pelos Sérpia há dois anos,
estava magro, desidratado, no pescoço havia uma cordinha
azul de Nylon — que ele deve ter roído para escapar de
onde morava. A cordinha estava tão apertada que tinha
roído os pelos, no pescocinho fino. Não dava para saber a
raça do Lango, mas era um cachorro pequeno.
Ele chegou mais perto de Alan e lambeu sua mão.
— Não precisa fazer isso, garotão. Precisa parar de ser
tão submisso.
Lango olhou para cima como se dissesse o mesmo.
Dois garotos passaram em frente ao portão cheio de
ferrugem onde Alan estava com seu cachorrinho. Um deles
olhou para Alan e deixou seu coração cheio de raiva. Era
Murilo. Anderson, que era quase tão malvado quanto Murilo,
estava com ele. Os dois desaceleraram as bicicletas e
pararam no meio da rua. Quase não havia movimento.
— Sarou o nariz, veadinho? — perguntou Murilo.
— Me deixa em paz.
— Vai ficar, se responder a pergunta.
— Ainda tá doendo.
— E vai doer o dobro se abrir o bico sobre o que
aconteceu. Levei uma prensa do professor. O que disse a
ele?
— Nada.
Murilo olhou para Anderson, Anderson deu de ombros e
olhou para o relógio.
— Você vai falar com o China amanhã e dizer que está
tudo bem. Só pra garantir.
Alan assentiu.
Anderson não aguentou. Era quase uma ofensa um
garoto como aquele Alan Sérpia. Por que não reagia? Como
conseguia ficar calado e servir de penico para todo mundo
mijar em cima? Ele era uma afronta à evolução humana e
isso, se por um lado era engraçado (sempre é engraçado ter
uma barata para pisar todo dia), por outro era uma
vergonha. Alan Sérpia era um chiclete irremovível preso na
sola do mundo.
— Como você consegue, Sérpia?
Murilo riu de novo. Satisfeito.
Os ombros de Alan subiram e desceram.
— Para com isso, senão ele vai chorar pra mamãezinha.
No colo de Alan, Lango rosnou e mostrou os dentes.
— É bom segurar seu hamster, Alan. Eu não quero
machucá-lo — disse Murilo.
— Quietinho, rapaz — disse Alan. O cãozinho tremia.
— Sabe, meu pai conheceu o seu pai. Ele disse que o
seu velho era um filho da puta. Ele deu o nó em todo mundo
quando fugiu e deixou você e a sua mãe na bosta.
Atrás de Alan, na varanda, a luz acendeu. A porta da
frente fez um ruído.
Mãe... Era o que faltava.
Janice apareceu na varanda com uma fita métrica no
pescoço, uma almofadinha cheia de agulhas no pulso e uma
bermuda jeans velha e desfiada. Usava uma camiseta do
Faith No More mais velha ainda. Atrás dela, duas madames
transpirando arrogância e supremacia com suas bolsas de
quinhentos paus batendo contra os culotes.
— Tudo bem aí? — perguntou Janice. Sacudiu os cabelos
lisos de Alan e pediu passagem. Ele não se mexeu, não faria
isso enquanto aqueles dois piolhentos estivessem do lado
de fora.
— Oi, dona Janice — disse Murilo. Um sorriso carismático
no rosto. Alan lembrou que os nazistas também tinham esse
mesmo sorriso.
Janice acenou de volta.
Alan saiu do caminho e soltou Lango que latiu duas
vezes para depois sair correndo para dentro da casa.
— Já disse que não quero esse cachorro lá dentro.
— Depois eu tiro, mãe.
— Quer ajuda, Alan? — perguntou Anderson.
Queria ajuda sim, mas para não vomitar. Seu estômago
dava pulos. Caramba, como podia existir gente assim?
— Tá tudo certo — Alan respondeu.
— Não esquece o que a gente combinou — disse Murilo
e piscou o olho direito.
Depois foram embora. Janice ainda gritou:
— Mande um abraço para a sua mãe, Anderson. Diz pra
ela que estou com uns tecidos novos!
— Pode deixar — ele gritou de volta.
Alan se retirou antes que começasse a urrar no meio da
rua. Às vezes era isso que tinha vontade de fazer, botar
para fora toda aquela raiva. Passou pelas duas pavões-
fêmea, entrou e bateu a porta da frente. Foi para o seu
quarto e ligou Slipknot, não tão alto quanto queria. Seus
punhos estavam cerrados, e ele imaginava dentro de si
todas as atrocidades que gostaria de cometer com aqueles
dois imbecis.
Deus, se você está aí em cima, me ajuda. Eu nunca fui
um garoto ruim, nunca matei uma mosca, por que isso está
acontecendo comigo? Por que não dá um jeito naqueles
dois?
O computador traria a resposta.
Sem que ninguém tocasse o teclado, a tela piscou com
um tom vermelho muito escuro e depois estabilizou em um
site desconhecido. Alan abaixou o volume e sentou-se em
frente à escrivaninha doada. Ainda estava novinha, e ele
estaria satisfeito se não soubesse que aquilo era outro
prêmio de consolação por eles não terem grana suficiente
para nada que não fosse almoço e jantar.
— Como você entrou aqui? — perguntou ao monitor
enorme.
Hackers é claro. Com um pouco de imaginação, Murilo,
Anderson, ou algum de seus empregadinhos, teria feito
aquilo. Mas se era uma página da internet, era a mais
estranha que ele já tinha visto. Para começar, não estava
abrindo pelo Chrome ou pelo renegado Internet Explorer.
Alan apanhou o mouse e o movimentou. Não deu certo, a
setinha nem estava lá. A única coisa escrita na tela era a
palavra ENTRE. Mas como podia entrar sem o maldito
mouse?
Teclado...
Moveu as setas direcionais, depois teclou TAB, tentou
também da F1 a F12. Só restava uma coisa a fazer.
CTRL+ALT+DEL.
Alongou os dedos e fez. A tela soltou um flash. Um
relâmpago. Alan se assustou e afastou a cadeira.
— Droga — falou sozinho.
Chegou mais perto. Com um pouco de receio tocou o
monitor tela.
Tá quente.
Deslizou os dedos, e pensou em algo impossível. E se
aquela tela fosse touchscreen? A tela não era, é claro, mas
e se existisse alguma tecnologia, alguma daquelas novas e
muito, muito esquisitas, que emulasse a tela para que
funcionasse assim? Para que ficasse sensível ao toque?
Quando estava prestes a tocar o ENTRE, no monitor, a
luz do quarto tremeu um pouquinho, uma leve oscilação que
o desencorajou. Alan olhou para suas costas, tinha a
sensação que havia alguém atrás dele, respirando em seu
cangote. Suas pernas e braços estavam incomodados, os
olhos não estavam mais úmidos, e sim, esperançosos.
Aquela tela surreal parecia uma passagem, algo mágico
estava acontecendo em seu quarto. Talvez fosse Deus
ouvindo seus pedidos — ou alguém mais atento e disposto,
certo? Alan cerrou o punho direito e em seguida abriu.
Receoso e com o indicador da mesma mão, ele tocou a tela,
ENTRE. A palavra ficou amarelada como fogo e depois se
apagou. A tela toda se apagou. Alan golpeou a caixa do
monitor (de tubo, é claro, e doado, é claro...) pelas laterais.
A porcaria estava morta. Já estava desistindo, tinha
inclusive afastado a cadeira da escrivaninha, quando algo
novo animou a tela. Uma cascata de letras, todas brancas,
descendo pela tela preta — só podia ser o bom e velho DOS
(que ele só conhecera superficialmente nas aulas de
informática da escola). Então duas novas piscadas, e uma
mensagem com a mesma letra branca e insípida.
<DESEJA SEGUIR EM FRENTE?>
R – Repetir
A – Abortar
P – Prosseguir.
Não precisou pensar muito para tocar “P”.
A cascata começou de novo, e uma nova tela apareceu
sem precisar de nenhum carregamento. Foi como acender
uma luz, instantâneo. Plim!
Quase tudo era negro. Apenas no centro, escrito em
verde-Matrix, formou-se mensagem:
<DIGITE O SEU PROBLEMA, FICAREMOS FELIZES EM
AJUDAR>
Alan olhou para trás. A sensação de estar acompanhado
tinha ido embora, dessa vez a olhadinha serviu para
garantir que sua mãe não bisbilhotasse o que estava
fazendo. Provavelmente mamãe não aprovaria um
computador que, de repente, era mais útil que ela.
Alan se aproximou do teclado e escreveu:
...ESTOU SENDO PERSEGUIDO...
Uma ampulheta verde apareceu logo abaixo (não se
movia, era apenas o contorno estático de uma ampulheta
vazia), ficou ali até que novas instruções apareceram na
linha seguinte.
<ELES TERÃO O QUE MERECEM>
— Caraca! — gritou e saiu de perto da tela. Como diria
sua avó que era crente, aquele computador não era coisa
de Deus. Correu até e tomada e a apanhou entre os dedos
com força. Antes de puxar olhou outra vez para a tela.
<NÃO TENHA MEDO, ALAN> <CHEGA DE MEDO>
<NÓS PODEMOS AJUDAR>
A ampulheta piscou por três vezes. Em seguida Alan leu:
<DESEJA CONTINUAR SOFRENDO OU DESEJA SEGUIR EM
FRENTE?>
A – Aceitar proposta e definir planos
D – Desistir
O fio que estava em suas mãos era bem mais que cobre
e borracha. O computador que não era coisa de Deus se
tornara uma esperança útil. E que mal havia? Se a coisa
toda saísse do controle, era só voltar para parte de trás do
PC e puxar a tomada. E também... sejamos honestos, não
foi difícil decidir quando lembrou daqueles dois bastardos e
de seu dia glorioso. Alan deixou o cabo cair e executou o
comando: A.
LOBO E SUA IDEIA RUIM
 
Lobo não estava feliz. Pelo que tinha entendido do lance
com o carro do prefeito, ele devia ter recebido mais de
duzentos paus. Desse dinheiro, ele só viu a cor de dez
misérias que usou para comprar um lanche — uma porcaria
de pão com presunto. Depois de procurar Pêra e Jota pela
cidade toda, Lobo parou em um bar. Tomou quatro
Antárticas e fumou meio maço de cigarros. Antes que
ficasse bêbado a ponto de se perder, saiu do Bar Amigos II e
voltou para casa. Sentia-se estranho, a cabeça pesada em
vez de aliviada com as cervejas. Pensava em Jota e no que
ele teria feito com o dinheiro. Investir uma ova, ele deve ter
cheirado a porra toda, ou quase toda.
Passou pelo portão, fez um carinho em seu vira-lata de
sessenta anos caninos e errou o buraco da fechadura na
primeira tentativa de abrir a porta da frente. Conseguiu rir
disso, rir de si mesmo era uma especialidade de caras como
Lobo. Passou as mãos sobre o rosto oleoso tentando se
concentrar e acertar o furo.
Assim que entrou e sentiu um cheiro doce na sala, doce
e grudento. Reconheceria aquela porcaria mesmo sem
olfato. Crack, a boa e velha pedra que o jogou mais vezes
no chão que a polícia da cidade.
Foi até o braço do sofá e conferiu o que já sabia. O
cachimbo usado ainda estava ali, em cima de um prato
âmbar. Ainda estava quente.
— Pô, mãe... De novo com essa porcaria? — disse
baixinho. No fundo tinha esperanças que não fosse dela
aquela sujeira toda, mas era uma esperança vazia. Sua mãe
gostava tanto da pedra quanto ele, e única diferença é que
ela, Nora Lobo, conseguia ser mais fraca que o filho.
Ouviu um som desmotivado que vinha do corredor que
levava aos quartos. Antes de entrar por ele percebeu que a
tevê e o aparelho de som (eles ainda estavam pagando as
prestações pelos dois) não estavam mais na sala. Em seu
lugar, só um monte de poeira e algumas teias de aranha.
— Mãe?
Teve medo de encontrá-la morta, que o som sem
vontade tivesse sido seu último suspiro. E não foi só medo
que sentiu. Lobo seria sincero se dissesse que a ideia de
ficar órfão era bastante agradável. Sua mãe já havia
morado na rua (e com ele junto) nos anos difíceis, estava
em recuperação graças à pastoral da cidade que a acolhera
e tratou como gente quando Nora Lobo não era mais digna
que um papel higiênico sujo dos dois lados.
O corredor fedia a cigarros, Lobo agradeceu a Deus por
isso, Nora estava vida. Ouviu garrafas rolando pela
porcelana do chão. Andou mais depressa quando ouviu sons
tussígenos. Parou à porta do quarto de Nora e acendeu o
interruptor. Nada de luz. Ele entrou assim mesmo.
Um cigarro aceso queimava entre os dedos da mãe.
Nora estava com os olhos fechados, o tubinho aceso sobre a
barriga magra. Estava de sutiã, rindo quem sabe do quê.
— Mãe! Vai pôr fogo na casa desse jeito!
Lobo tirou o cigarro dos dedos dela, deu um trago e
apagou em um cinzeiro no chão. Estapeou o rosto melado e
úmido de Nora. Ela muxoxou alguma coisa e virou de lado.
Os cabelos duros se espalharam sobre o travesseiro sujo.
— O que aconteceu com a tevê da sala?
— Nada — resmungou.
— Trocou por pedra, não foi? Trocou tudo por porcaria.
— Vá te catar, garoto. Me deixa em paz.
Mesmo sem luz, Lobo podia ver o que restou de sua
mãe.
Nora Lobo tinha quarenta e seis anos, mas parecia ter
sessenta. Sua pele era queimada de sol e enrugada, ela
tinha uma enorme cicatriz nas costas. Os cabelos
despontados e sem vida, toda sua vaidade estava resumida
a cortar as unhas das mãos e pintá-las com o esmalte mais
barato que encontrasse. As unhas dos pés tinham micose, e
ela já estava sem duas delas, nos dedinhos. Seus dentes
também não eram grande coisa. Faltavam alguns e os que
resistiam eram amarelos e opacos. Lobo tinha raiva de olhar
para ela, para dizer a verdade, em recaídas como aquela,
ele torcia para que uma overdose a levasse de vez. Não era
o primeiro Lobo a pensar no assunto. Nora contara a ele que
quando sua mãe, avó de Lobo, estava nas últimas e bebia
quase duas garrafas de cachaça por dia, ela deixou de
socorrê-la na rua por duas vezes.
Um som de passos veio da sala de tevê. Lobo torceu
para que fossem os traficantes que venderam a porcaria
que agora estava dentro de sua mãe. Acabaria com eles ali
mesmo, adoraria fazer isso.
Beijou Nora na cabeça, sentindo o cheiro doce em seus
cabelos, e puxou o lençol encardido sobre ela. Cruzou de
novo o corredor.
 
NÃO ENCONTROU ninguém na sala, mas a janela estava
aberta. Lobo não lembrava de tê-la aberto. Quando entrou
em casa o cheiro da pedra o revoltou, mas também
confundiu seu cérebro que jamais esqueceria como era bom
estar chapado. Com erva e pó não era a mesma coisa. Dava
barato, mas passava logo, a pedra não, a pedra amansava
os doidos, de verdade.
Sentou no sofá da sala e acendeu um cigarro. Estava um
pouco bêbado e preocupado, não só com Nora.
Aquilo de meter fogo no carro de Orlando Torque não
ficaria desse jeito. Era questão de tempo até que alguém
ligasse a confusão no meio da praça ao Subaru fumegante.
Certeza que viriam até sua casa e o levariam em cana. Ah,
mas se isso acontecesse, ele entregaria Jota. Talvez
aliviasse para o Pêra que era tão besta quanto ele, mas Jota
não teria essa dádiva. Ele era um filho da mãe esperto,
tanto que estava com o dinheiro da prefeita enquanto Lobo
se preocupava com sua mãe viciada e sem noção. Apanhou
o celular do bolso e discou para Jota. Ele tinha tentado a
mesma coisa mais cedo sem sucesso. O mesmo com Pêra.
Deviam estar juntos, deviam estar torrando a grana e
deixando o bobão do Lobo de lado.
Estava repetindo a discagem quando alguém bateu
palmas à frente da casa.
— Merda.
Era a polícia, só podia ser.
Lobo deixou o cigarro no cinzeiro e foi até a janela.
Havia um homem lá fora. Devia ser algum indecente
fazendo propaganda política de Deus. Só esses tipos
andavam para cima e para baixo usando terno em um
calorão daqueles. Ou gente doida. Como não estava a fim
de receber nenhum dos dois, tentou despachar ao homem:
— Não tenho dinheiro e não converso com Deus.
O homem negro sorriu e seus dentes eram tão brancos
que deixavam a frente podre da casa razoavelmente mais
bonita. Tinha aquele sorriso de Silvio Santos que faz você
confiar em quem não merece.
— Ei, eu só quero conversar. Você pode conversar, não é
mesmo?
Lobo conhecia essa lengalenga. Conversar uma ova.
— Tá vendendo o quê, chefe?
O homem sorriu de novo. Balançou a cabeça pra lá e pra
cá, ainda sorrindo.
— Tá certo. Você me pegou. Eu vendo aspiradores de pó
— disse, e ergueu um dos aparelhos. Era do tipo compacto e
ruim, que não aguentaria dois dias seguidos de uso.
— Tô sem grana — repetiu.
— Mas eu nem disse o quanto custa essa belezinha —
Bateu na caixa de papelão.
— Não tô interessado.
— E se eu dissesse que esse aspirador faz mais do que
tirar poeira dos tapetes? Se eu disser que ele remove ideias
ruins da cabeça? Isso interessaria a você?
Lobo deu um sorriso sincero.
— Você é maluco, né? Tá de induto da cadeia ou o quê?
— Posso provar que o aparelho faz isso.
— Merda nenhuma.
— Bom. Se você não precisa e não se interessa, posso
arranjar quem queira. Passar bem mesmo assim.
O homem se abaixou e foi juntando as duas caixas que
tinha consigo. Uma delas estava aberta com o aparelho
para demonstração, a outra, lacrada. Olhou para a janela
vazia e deu um único passo. Então olhou para a porta e
esperou que ela abrisse.
— O que você disse que esse aspirador faz?
— Demonstração grátis, chapinha. É só me deixar
entrar.
Abrir a porta para um doido com um aspirador de
ideias? Quem faria uma barbaridade estúpida dessas?
Quem abrira a porta da própria casa para a loucura entrar?
Lobo girou a chave e puxou a maçaneta para baixo.
Caminhou até o portão baixo. O homem sorriu e atravessou.
Entrou com um pouco de dificuldade, por causa dos
aparelhos que carregava. Lobo não o ajudou. Carregar as
porcarias para dentro não era problema dele, já estava
fazendo muito em deixar que aquele esquisito entrasse.
Mas a verdade é que não pôde resistir a ele, não conseguiu.
Ele tinha alguma coisa naqueles dentes brancos demais que
desarmava você. E também... Desarmar Lobo era mais fácil
que fazer uma criança chorar.
— Obrigado, meu jovem. Tem um gole d’água para mim
antes de começarmos? Andei a manhã toda com esses
aparelhos.
— E vendeu algum?
— Você sabe... é difícil alguém admitir que tem ideias
ruins na cabeça.
Lobo riu enquanto ia até a cozinha, pensava merda o dia
inteiro. Apanhou um copo que estava na pia há uns dois
dias e encheu com água da torneira. A pedra do filtro tinha
quebrado e nenhum dos Lobos daquela casa comprou outra.
Voltou com a água e estendeu ao homem, ele a bebeu em
dois goles.
— Mais?
— Não, um copo é o suficiente. Se beber muito, vou
precisar do banheiro de alguém mais tarde. É mais fácil
vender um desses — tornou a bater na caixa de papelão —
do que conseguir uma privada limpa.
— O povo daqui é reservado. Ninguém gosta de
estranhos. Mas e isso aí? O que esse aspirador faz?
— Já disse a você, ele aspira ideias ruins.
— Tudo bem, senhor Mágico de Oz, e quanto custa?
— Caro. Mas dou uma amostra grátis, como disse lá
fora.
Lobo estava de pé, e o homem sentado, os aparelhos
perto dos pés do vendedor, sobre o tapete mofado que
estava ali há dez anos.
— O senhor deve ser algum tipo de doido, mas como eu
fui doido de colocar você pra dentro, quero ver o que isso
faz.
— Só uma amostra, está lembrado?
Lobo ficou quieto.
— Então, como vai ser? — perguntou o homem,
desembalando uma das peças. Era um aspirador de pó
comum, portátil, vermelho metálico, como algo saído dos
anos cinquenta, quando tudo era bonito.
— Eu quero parar de pensar na prefeita.
— Na prefeita Miriam? — confirmou o homem.
— É. Eu estava chapado e pensei na prefeita peladinha e
não consigo parar de pensar nisso. Vejo as pernas dela, a
barriga meio grande, a bunda mole. Vejo os peitos dela e
suas aureolas enormes e fico de pau duro. Eu não quero
mais pensar em uma velha e ficar assim, entendeu?
— E não tem nada mais importante dentro da sua
cabeça que você queria se livrar?
Lobo continuou bem sério, o mais sério que conseguia
ficar com a cara de bobo que tinha desde os treze anos.
— Acho que não.
Tinha sim, milhares de coisas, mas depois da ressaca de
um punhado de cervejas, e de dar um flagrante na mãe
fumada de crack, tirar a prefeita da cabeça parecia uma
excelente ideia.
— Não nos apresentamos. Meu nome é Talião.
— Lobo — Estendeu a mão. Quando se tocaram, Lobo
sentiu uma descarga elétrica, uma faísca. Não deu
importância. Também sentia faíscas no portão de ferro da
frente às vezes, e Pêra explicou que aquilo era estática.
— Muito bem, Lobo, vou precisar colocar o bocal na sua
testa e ligar o aparelho.
Uma ideia terrível se apoderou do cérebro torto de Lobo.
E se aquela porcaria sugasse seu cérebro? Ele tinha visto
um documentário na casa do Pêra sobre um cara que fez
uma lipoaspiração no porão usando um aspirador de pó
industrial. Acabou tendo a barriga sugada e depois os
intestinos, só parou de sugar quando ele estava morto.
— Não tem perigo?
— Relaxa. Isso aqui é superseguro. Não vai sentir nada,
a não ser uma coceirinha.
— E o que eu tenho que fazer?
Talião entregou a ele a mangueira sanfonada e disse:
— Coloque em sua testa e pense pela última vez no que
quer tirar da cabeça.
Lobo fechou os olhos. Não estava acreditando em nada
daquilo, mas queria acreditar.
Porque se, por acaso, aquela loucura ridícula desse
certo, ele faria o mesmo com sua mãe, tiraria dela a
vontade de fumar aquela porcaria e de se comportar como
uma cadela de rua, ele a salvaria.
— Não precisa ligar na tomada? — perguntou, já com a
boca da coisa em sua testa.
— Essa belezinha usa outro tipo de energia. Tá pronto?
Lobo fechou os olhos e visualizou.
— Peladinha... — disse.
Depois ouviu um clique e, em vez do som de ar
aspirado, ouviu algum tipo de sucção, como uma bomba
d’água ou petróleo, mas com um som meio pastoso de
chomp-chomp. Sentiu em seguida algo parecido com uma
coceira, bem no fundo da sua cabeça cheia de porcarias. No
começou foi leve, mas aos poucos ficou tão forte que todo
seu equipamento mental se concentrou na sensação
irritante. A boca do aparelho pressionada contra a pele com
um pouco de força. Antes que a visão de Lobo ficasse turva
e, enfim, não conseguisse ter nitidez alguma, ele viu o
sorriso vendedor do sacana. Dentes brancos demais,
pequenas rugas ao redor dos olhos grandes. Depois um
mergulho longo e profundo no vácuo dos sentidos.
— Terminamos — disse a voz que o trouxe de volta.
Os olhos foram se abrindo, e ele viu o vendedor de
aspiradores enrolando a mangueira e colocando dentro da
caixa. Lobo estava recostado ao sofá, um monte de baba
tinha escorrido de sua boca e molhado a gola da camiseta.
— O que fez comigo?
— Tenha calma, companheiro. É normal sentir um pouco
de desorientação, afinal, acabei de sugar uma ideia ruim de
você.
— Que ideia?
— Sobre a prefeita. Sobre a prefeita sem roupas.
Consegue se lembrar?
Lobo riu e tentou saber do que aquele homem estava
falando. Por que, diabos, ele imaginaria com a prefeita
pelada? Encontrou uma vaga lembrança antes que
descartasse a ideia.
— Não tem mais graça — disse.
— Homp-domp! — brincou Talião, como um bobão saído
de uma reprise da tevê. — Agora, se me dá licença, preciso
ir embora. Não vendi nenhuma peça hoje e preciso
alimentar as crianças.
— O senhor tem filhos?
— Não, mas tenho dois Rootweilers albinos que gastam
uma fortuna em loções para pele e colírios, já viu um
Rootweiler albino?
— Nunca.
— São criaturas magníficas. Erros na natureza e, quem
sabe, de Deus nosso senhor, mas criaturas fantásticas.
Talião deu os passos que precisava até a porta, Lobo
continuava lesado no sofá, pensava não ser capaz de abrir a
porta para o homem. Estava com uma expressão pensativa,
concentrada. A ponta da língua para fora da boca e
amassada pelos lábios. A respiração acelerada como um
peixe que perdeu a casa no aquário.
— Peraí! — gritou. Talião parou onde estava. A mão no
trinco da porta.
— Lembrou da prefeita de novo? Porque se for isso,
garanto que não é possív...
— Preciso desse aspirador outra vez.
— Rapaz, rapaz. Sempre é a mesma coisa. Preciso disso,
preciso daquilo, no começo vocês me tratam como uma
gonorreia vietnamita e depois querem favores. Eu disse que
esse aspirador tem um preço. Se quiser pagar por ele,
bem... custa mil. Mas posso deduzir os impostos e fazer por
novecentos e noventa.
— Não tenho essa grana.
O homem pensou um pouco.
— Oitocentos. Última oferta.
Moço. Se eu tivesse oitocentas Dilmas aqui em casa,
não precisaria do seu aspirador. Eu pagaria um psicólogo e
acabava com isso.
— O que é o isso que você quer acabar? — Coçou o
queixo. — Creio que podemos chegar a um entendimento,
caso queira realmente usar o aspirador uma segunda vez.
— Voltou a colocar os aparelhos no chão.
Lobo levantou do sofá e foi até a entrada do corredor.
Seguiu por ele e abriu a porta do quarto de Nora, apenas
para testar se ela realmente ainda estava por lá. Teve uma
ideia besta de que aquele homem, o aspirador e todo o
resto (sua mãe fumando crack, e ele tendo ideias aspiradas
por um aparelho de satanás) fossem ilusões de sua cabeça
de pudim e que, confrontando a mãe, ele acordaria deitado
em algum buraco mais sujo que sua casa. Mas Nora estava
lá, coberta e de bruços, mostrando a cabeça que parecia um
ninho de rolinhas cegas.
Voltou para a sala e encostou a porta do corredor.
— Minha mãe tem um problema. Uma doença dentro da
cabeça. Quero saber quanto custa para tirar isso dela. E não
me venha com historinha de mil e não sei quanto...
Talião coçou a testa, ficou bem sério, e disse, antes de
desembalar o aspirador:
— Isso depende do tamanho do seu comprometimento,
filho. Para tudo tem jeito nessa vida, só não se dá jeito na
morte.
A MULHER DOIDA QUE DANÇAVA EM FRENTE À
IGREJA
 
No começo ninguém precisou da polícia. O mundo
andava tão esquisito que alguém dançando e gritando como
uma pomba-gira na frente da igreja dos católicos não
pareceu surpreendente.
— Onde essa retardada pensa que está? — perguntou
Jota. Ele estava com seu único amigo com mais de quarenta
anos (Escova) na porta do bar Quinze, com um copo de
cerveja esquentando na mão. Tinha acabado de receber
algum dinheiro da prefeita, já havia separado as partes de
Pêra e do idiota do Lobo. Que se matassem com prostituição
e farinha se quisessem. Tinha ouvido por aí que Lobo estava
atrás dele, falando que tinha sido roubado e que iria contar
tudo para todo mundo se não encontrasse Jota.
Jota trabalhava com Escova, transportando todo tipo de
coisas em um caminhãozinho que não teria mais dois anos
de vida sem uma retífica no motor. O mesmo podia ser dito
a respeito de Escova, que não duraria muito tempo quando
o açúcar do sangue terminasse de entupir suas veias.
— Mulher maluca.
— Ela ainda é a mulher do Bosco?
— Sei lá — respondeu Escova. — Pelo menos era, até
ontem. Do jeito que ela está soltinha vai arrumar um
homem loguinho. Se antes não arrumar uma surra do
Bosco.
Pensou mais um pouco e deu outro gole na cerveja. —
Melhor ligar para ele.
— O senhor é quem sabe. Conhece o Bosco melhor que
eu — disse Jota.
Escova estava com o celular descarregado, e seu amigo,
fodido e sem crédito. Mas Jota foi até perto do balcão e
pediu para o Raul-Bigode — dono do bar que se recuperava
de um infarto — para usar o telefone. Raul deu a ele o
aparelho sem fio, ensebado de gordura de linguiça e
torresmo, e Jota explicou a emergência. Na praça, mais
confusão.
— Quero que você, me aqueça nesse inverno, e que
tudo mais vá pro inferno! ... — cantou Pauline. Estava fora
de si, cantar aquela música na frente da casa de Deus não é
coisa de gente normal. Esse tipo de pensamento estava em
onze das dez cabeças brancas que assistiam à cena sem
coragem de perguntar o que, diabos, estava havendo com
Pauline. Todos a conheciam. Nova Enoque era uma cidade
pequena, uma cidadezinha de bosta como todo o resto
daquele pedaço quente do estado de São Paulo, um lugar
onde todo mundo conhecia seus peidos pelo nome.
Mas Pauline era esposa de Bosco, e isso seria um motivo
e tanto para ninguém se meter. Bosco era violento, já tinha
arranjado encrenca com muita gente, tinha inclusive puxado
o revólver no bar em que os homens tomavam cerveja
agora. Bosco também acabou com uma missa, meses atrás,
porque cismou que Pauline estava dando mole para o padre
— talvez estivesse mesmo, pelo menos foi o que o padre
também pensou naquela manhã de domingo. Padre Estevão
estava fora da cidade há uma semana, ou ele mesmo teria
acabado com aquela falta de decoro em frente à casa de
Deus. Estevão teria esse tipo de autoridade, ao passo que o
ministro Camargo saiu correndo assim que viu Pauline por
perto das portas da igreja.
— Ninguém atende — disse Jota.
— É melhor alguém dar um jeito nela. A mulher está
doida — disse Escova, e cuspiu para o lado. Estavam na
calçada.
— É a mulher do Bosco? — perguntou Raul, vindo dos
fundos do bar.
— A própria. Pauline — Jota confirmou.
— Coitada dessa moça. O sacana do Bosco acabou com
a vida da pobrezinha.
— Tá falando do quê, Raul?
— Ele abusou dela. Eles namoravam, e ela e o Bosco
ficaram sozinhos na chácara dos pais da Pauline. Ele fez
com ela à força. O pai da moça ficou sabendo e obrigou a
coitadinha a casar, para não ficar falada na cidade. Como
ela gostava de verdade do filho da mãe do Bosco, aceitou
numa boa, mesmo depois do que ele fez com ela.
— Burra — disse Jota.
— É o coração, Jota. Você ainda é novo, mas o tempo vai
ensiná-lo que o coração da gente sempre é burro —
filosofou Escova. Acendeu um cigarro.
— Eu vou até lá resolver essa merda — disse Jota.
Saiu depressa e já estava no meio da rua quando
Escova o alertou:
— Não é sua merda, Jota.
Ele deu de ombros como quem diz: “Não posso resistir”,
e terminou de atravessar. Deu uma corridinha até perto de
Pauline que agora cantava — gritava — Ilariê, da Xuxa. Ela
percebeu Jota e reclamou:
— Não chega perto de mim, seu drogado!
Depois riu como uma maluca. Estava cheirando à
bebida, uma maravilha para deixar mulheres com raiva
naquele estado deplorável.
Seus joelhos estavam ralados, um rasgo na parte de trás
do vestido deixava um bom pedaço de suas pernas
aparecendo. No rosto, sombras derretiam uma maquiagem
carregada. A camiseta branca (que dizia Gatinha do papai e
tinha uma foto dela com Bosco) estava suja com algo
vermelho, parecia suco de tomate. Na foto de Bosco na
camiseta, havia um monte de rabiscos deixando seus
dentes pretos e os olhos torcidos em uma expressão
imbecil. Na rua, Hudson, um cara de vinte e sete anos que
era DJ da única emissora de rádio da cidade — que tocava
gospel em oitenta por cento da programação — passou com
seu opala envenenado tocando Queen, Bohemian
Rhapsody, na parte mais acelerada em que Freddy cuspia
no microfone. Pauline se agitou de novo, cantando em um
inglês mediúnico e girando sobre si mesma. Ria como uma
maritaca.
— Chega dessa loucura. Vem, vou levar você pra casa.
— Jota se adiantou.
— Nem pense nisso, cowboy. Estou me divertindo, e a
noite ainda nem começou.
— Pauline, pense bem, o que o Bosco vai fazer quando
encontrar você assim?
Ela riu, doida de pedra. Seus olhos estavam vazios e não
focavam em nada. Quando ela os concentrou nos olhos de
Jota, foi como se ele olhasse um aquário.
Fazia tempo que não a via, Bosco não deixava que
Pauline saísse de casa sem ele, Deus, ela só tinha trinta e
cinco anos, mas para Jota, parecia ter cinquenta. Estava
magra, os cabelos começando a branquear, seu rosto sem
muita carne estava chupado pelos ossos.
— Se o Bosco me visse agora? Você não sabe o que diz,
maconheiro.
Jota se adiantou, e ela recuou, procurando alguma coisa
em sua cintura.
— Chega mais perto e vai ter um buraco novo no rosto!
— Pauline sacou um revólver. Era pequeno, devia ser do
marido. Jota espalmou as mãos e recuou um passo. Queria
ajudar, mas levar uma bala? Não... Ele não levaria seu
altruísmo tão longe, ainda mais para ajudar uma ratazana
burra como Pauline. Talvez fizesse isso pela filha da prefeita
Miriam, mas não por Pauline Bosco.
— Ei, abaixa isso, Pauline! Perdeu o juízo?
Ela apontou, e a arma tremeu um pouco. Armas são
pesadas para quem não tem o costume de empunhá-las.
Alguns cabeças-brancas que até então acompanhavam
a encrenca com sorrisos no rosto começaram a se agitar e
correr. Mãe de Deus, ela estava com uma arma! A
brincadeira tinha ido longe demais, ninguém queria voltar
para casa com a camisa suja de sangue.
— Cuidado com isso, você não quer machucar ninguém!
Do começo do quarteirão, a sirene do carro de polícia
deixou tudo mais tenso. Jota aproveitou para se afastar. Não
era burro de ficar em evidência depois do carro fumegante
de Orlando Torque. Saiu andando de costas. Parou bem
perto do meio fio, junto a dois velhos conhecidos — Nelson
e Cabral, dois despachantes. Eles estavam putos da vida
porque não puderam terminar seus assuntos enferrujados
naquele começo de noite.
O carro de polícia encostou.
PENA DE MORTE
 
Zétia saltou do carro tão logo o estacionou. Pauline
percebeu e correu para trás da igreja, ainda feliz, mesmo
com a expectativa de ser presa. Saltava e ria, assustando o
pessoal que acompanhava a cena de longe. A loucura tem
esse dom maravilhoso de assustar que se julga são.
— Precisa de ajuda? — perguntou Jota. Zétia devolveu
um não seco e mandou que ele e os despachantes ficassem
longe da praça e de um possível confronto (literalmente, o
que ele disse foi: “Tirem o rabo daqui antes que levem um
tiro”). Nelson e Cabral fizeram isso, mas Jota continuou por
perto, abrigado contra um Escort velho com placa de São
Paulo, capital.
O maior vira-lata da cidade foi no encalço do delegado,
latindo e torcendo para o lado errado (que era Pauline). Urso
não gostava muito de policiais, ele já tinha sido chutado
uma ou duas vezes pelos subalternos de Zétia. Coitado,
Urso não entendia por que eles sempre implicavam com ele
quando tentava proteger a rua dos terríveis carros que
passavam com luzes e sirenes ligadas.
Zétia seguia cauteloso. Pauline estava armada e, pelo
que disseram no telefone, bem fora do seu juízo perfeito.
Antes de subir na viatura, tentou ligar para a casa dos
Bosco, ninguém atendeu. O mesmo no emprego de Bosco,
no Matadouro-Curtume onde os bois sobreviventes
esperavam a próxima dança da marreta. O delegado
mandou dois de seus homens até lá, eles ainda não tinham
retornado o chamado. Zétia estava com um pressentimento
ruim sobre isso.
Já havia passado metade da extensão da igreja e nada
de Pauline. Ela devia ter circulado a parte de trás e
continuado até a lateral. Mas o que Pauline queria com esse
showzinho? Provocar Bosco? Provar alguma coisa depois de
dez anos de surras? Possível, mas ninguém dá uma
apresentação daquelas sem plateia, e não havia nem sinal
do seu marido.
Palmeiras povoavam a praça toda. Estavam ali há tanto
tempo que já eram árvores grossas o bastante para ocultar
um policial que não estava disposto a encerrar sua carreira,
baleado por uma mulher em TPM.
Zétia olhou para todos os lados e, pouco antes de
avançar de peito aberto, localizou Pauline. Estava na fonte
luminosa da praça, dentro da fonte.
A atração mais bonita da cidade estava ligada, e Pauline
tomava toda a água dos respingos. Seus cabelos já
molhados, escorridos pelo rosto magro e branco. A roupa
colada ao corpo, delineando formas que ninguém na cidade
(a não ser Bosco, talvez) conhecia. Os seios ainda eram
firmes, as aureolas pequenas, o vestido colou à carne e
rasgou mais, trazendo a coxa direita para fora. Não era uma
mulher bonita, mas ali, tão crua e selvagem, foi impossível
desprezar Pauline.
— Chega, Pauline. Vamos para casa.
Ela sorriu. Abaixou-se e apanhou um pouco de água da
fonte para jogar sobre si. Soprou o que entrou pela boca
como um aerossol.
— Estou no banho, Zétia. É falta de educação ficar
espiando.
— Coloque o revólver no chão. O revólver não vai
disparar, molhado desse jeito.
Pauline virou a boca da arma para o olho direito. A
chuva artificial continuava caindo sobre ela.
A fonte da praça não ficava ligada quase nunca, mas de
manhãzinha um pessoal da prefeitura fez alguns reparos,
resolveram deixá-la funcionando o dia inteiro. O plano é que
ficasse acesa à noite e mostrasse para a cidade toda que a
prefeita Miriam estava cuidando tão bem de tudo que podia
ser reeleita.
Zétia não esperava quando Pauline ergueu o revólver e
disparou. Pássaros saíram voando dos ninhos. Umas três
pessoas que acompanhavam de longe (entre elas Escova)
se atiraram contra o chão. Voltar para trás da Palmeira era
boa ideia, mas Zétia calculou que isso daria mais coragem a
Pauline. E outra: ela não sabia atirar; estava coberta de
água gelada, acertar qualquer coisa mais distante que um
metro seria um milagre. Mas estavam perto de uma igreja
então... Melhor prevenir.
— Solte isso antes que você se machuque ou machuque
alguém. Você precisa de ajuda, Pauline. Estou aqui para
isso.
— Mentira, você está aqui porque o povo dessa cidade
prefere me ver no cabresto. Bando de urubus!
— Não é certo o que está fazendo. Ainda mais na frente
da casa de Deus.
— Acha que ele mora aqui, delegado? No meio dessa
cidade fedida?
— Você me entendeu, Pauline. Me entregue a arma e
vamos sair daqui. Seu marido deve estar preocupado.
— Bosco? O porco do Bosco? Não, Delegado Zétia,
aquele maldito só se preocupa quando a cerveja acaba.
Aproveitando que ganhava confiança, Zétia avançou
mais um passo. Não havia mais árvores entre ele e Pauline,
então se ela resolvesse atirar, o chão (e sua falta de mira)
seria a única defesa.
— Paradinho aí mesmo, delegado! Não terminei o que
vim fazer.
Era loucura... Não só dela. Também havia Roger Minotto
e Milena Sultão, Orlando Torque e seu carro incendiado. O
que estava acontecendo com sua cidade? Com Nova
Enoque, onde geralmente o maior acontecimento da
semana era a morte de algum velho da casa de repouso
Ventos Felizes? Zétia deixou um arfar pesado sair do peito e
perguntou:
— O que você veio fazer aqui?
— Vim agradecer — Apontou para a igreja.
— Deus? Está falando de Deus?
Pela lateral dos olhos, Zétia percebeu que não eram só
ele e Pauline na praça. Uma dúzia de crianças, que acabara
de sair do cinema quase falido de Nova Enoque, estava
acompanhando a tudo. Adolescentes armados com as
malditas câmeras que se proliferavam mais depressa que
larvas na carniça. Teria que neutralizar Pauline bem rápido,
tirá-las dali seria impossível. Mesmo assim ele tentou:
— Saiam daqui, é perigoso.
— Eu não vou atirar neles — disse Pauline. Baixou a
arma, mas a manteve nas mãos.
É isso aí, garota, pensou Zétia.
Foi quando um novo elemento ganhou a praça. Era um
garoto, e se Zétia não estava muito enganado, filho de
Orlando Torque. Murilo parou com a bicicleta à frente da
aglomeração de garotos e gritou:
— Ela pirou! Ela matou o marido, envenenado!
— Isso é verdade? — Zétia perguntou. Murilo deve tê-lo
ouvido, porque explicou:
— É verdade sim, essa doida aí matou o Bosco e ainda
tirou foto. Recebi no meu e-mail! Pode olhar se não acredita
em mim.
— Pauline, essa confusão já foi longe demais. Entregue a
arma e vamos sair daqui. Você não quer machucar
ninguém.
— Você não entende, Zétia. Lembra quando éramos
crianças? Eu e você? Lembra como eu era bonita? Eu não
era menos bonita que uma dessas meninas com o celular
apontado para nós. Mas eu só fui bonita até conhecer o
Bosco. Aquele desgraçado me sugou como uma doença.
— E você o matou? É isso?
— Ele matou a si mesmo. Eu só preparei o jantar.
Em seguida a água da fonte foi finalmente desligada.
Pauline olhou para cima com uma expressão decepcionada
e infantil. Já era noite, e o espetáculo perdendo as cores da
iluminação rotativa da fonte não a agradou.
— Mata ela!
Pauline tentou encontrar o garoto que disse aquilo. Era
Murilo Torque, claro. E ninguém o culparia por ser um
imbecil, sendo filho de quem era. Era bem provável que ele
mesmo tivesse organizado tudo, tivesse espalhado a notícia
que Pauline envenenou Bosco, e arrumado a aglomeração
de garotos na praça — ou talvez fosse o destino o colocando
bem ali, no momento exato.
Ela não conseguia se controlar mais, o peso dos olhares
a adoecia. Na igreja era assim, na rua era assim, com os
poucos amigos, na vizinhança. Sempre alguém reparando
nela, cochichando como era tonta e fraca. Pauline poderia
ter retomado algum juízo se a praça não estivesse tomada
por tantos olhos críticos.
— Não faça nada que vá se arrepender, Pauline.
— Não sobrou muita coisa, delegado. Vim até aqui para
me despedir.
— De quem?!
— Dele! — Apontou para a igreja. Do Deus que me
ajudou a resolver meu problema com Bosco. Foi bom me
sentir vingada depois de tanto tempo. Mas quer ouvir uma
coisa engraçada? Eu também quero voltar para casa. Não
sei viver sem o Bosco. Eu sou como um burro que só
aprendeu a comer nas mãos do dono.
Ela sorriu. O revólver saiu da altura das pernas e foi para
cima. O cano parado em sua têmpora direita. Seus olhos
estavam pulsando, tentando jogar a adrenalina para fora. A
colmeia de garotos estava maior, e algumas meninas
gritaram quando a arma se mexeu de novo. Zétia arriscou
tudo e partiu para cima. A pólvora estava molhada e, com
um pouco de sorte, o primeiro tiro falharia, teria tempo de
rendê-la. Mas a sorte não estava com os caras bonzinhos, a
sorte estava com Pauline naquele início de noite. Ela puxou
o gatilho e depois da explosão, o cabelo do lado esquerdo
foi empurrado com um tufo de lixo vermelho. Os garotos
gritaram, todos eles dessa vez. Então saíram correndo,
como os pássaros que tinham desistido dos ninhos.
— Deus! — disse Zétia. O corpo destonificado de Pauline
desmontava sobre a água rasa da fonte.
Caiu de costas, a arma ainda em sua mão, os olhos
estalados, e um fio caudaloso de sangue tingindo a água
rasa de vermelho. Três ou quatro pessoas (que Zétia não se
deu o trabalho de reconhecer) tentaram se aproximar,
cochichando e dizendo bobagens cristãs que nunca
ressuscitaram ninguém.
— Saiam daqui! Quem chegar mais perto vai responder
por isso!
  Eles pararam. Zétia ouviu um velho resmungando:
“quem esse policialzinho de merda pensa que é?”.
Finalmente entrou na fonte e tirou a arma de Pauline.
Ainda restavam três balas e era inacreditável que uma delas
tivesse disparado. Tão inacreditável quanto Pauline sendo
suspeita de envenenar o marido. O rádio na cintura de Zétia
bipou duas vezes, e ele o atendeu, sem saber o que mais
poderia fazer naquele momento.
— Na escuta.
— Achamos o Bosco, chefe. Ele está em casa.
— Vivo?
— É melhor o senhor vir até aqui, não sobrou muita
coisa dele...
— Lacrem a casa. Chamem reforços de Santa Glória. A
esposa dele está aqui comigo, acabou de se matar.
Do outro lado da linha, silêncio absoluto. Zétia sentiu
um pouco de inveja.
MADAME SAFIRA E PADRE ESTEVÃO
 
Padre Estevão estava fora de Nova Enoque. Viajou dias
antes para encontrar seu único irmão vivo (também seu
único familiar vivo), que ainda dizia a ele como tinha sido
idiota em escolher abraçar a igreja em vez de uma mulher
bonita. Estevão ria e respondia que as escolhas eram
problema dele. Julius estava mal, tinha uma bolha de
sangue nos pulmões e agora precisava andar para todo lado
com um balãozinho de oxigênio. Não duraria muito, mesmo
com as orações de Estevão.
Os dois estavam em uma praça, perto da casa de Julius.
Ele vestia um moletom bege, o padre usava calça social e
uma camisa escura. Estevão estava com um chapéu de
abas pequenas — Julius, quando viu aquilo na cabeça do
irmão caçula, perguntou se, depois de velho, ele tinha
resolvido dar a bunda. O padre riu, ele não criticava o que
ainda não havia experimentado.
Jogavam damas e tomavam um pouco do sol da manhã.
Perto deles, alguns pombos comiam o que Julius dava a
eles. Tanto ele quanto Estevão tinham às mãos um saquinho
com pedaços de pão-duro, para fazer amizade com os
pombos. Gente velha tem poucos amigos e pombos não
rejeitam ninguém que dê comida a eles, o tipo de
associação mútua perfeitamente funcional. Um vento frio
passeava por ali revirando folhas que haviam caído na noite
passada. Um garoto implicava com seu cachorro que não
queria sentar. Uma mulher vinha em direção ao homem que
usava chapeuzinho de quem dá a bunda.
 — Padre? — ela perguntou, confirmando se era mesmo
Estevão. Ele estava tão à vontade, tão leve que não parecia
o velho capelão de Nova Enoque.
— Shii... — Julius resmungou. Estevão deixou a pedra no
tabuleiro e olhou para ela. Esperava qualquer pessoa, mas
Madame Safira? A vidente que o desafiava com a intimidade
de uma esposa era uma novidade sombria.
— O que aconteceu com a minha igreja? — foi o que
conseguiu perguntar. Não imaginou outro motivo que
fizesse Safira abandonar a cidade.
Sentindo a tensão aumentar, Julius aumentou o fluxo de
ar do balão e arfou profundamente. Ele às vezes fazia isso.
Não podia beber, nem pensar em fumar, o médico não
concordava com psicotrópicos, o que restava era o oxigênio
em excesso.
— Não é sobre a igreja, não unicamente sobre a igreja.
— Diga logo o que a trouxe aqui — pediu irritadiço.
Estevão era prático, nunca gostou de rodeios.
Safira olhou para Julius. Ele sorriu, sabendo exatamente
o que dizer. Não seria a primeira vez... Desde que ficou
velho e começou a usar um balãozinho nas costas, muita
gente não se sentia à vontade com ele. Sabe-se lá, talvez
tivessem medo que alguma emoção mais forte antecipasse
sua ida para a cova — como se existisse emoção mais forte
que esperar a morte quatorze horas por dia...
— Já entendi o recado — ele disse. — Podem sair para
trocar figurinhas, eu já me acostumei a jogar sozinho. Além
disso, eu estava perdendo.
— Desculpe por isso — pediu Estevão. Julius assentiu,
sem muita emoção. Safira o agradeceu, depois ouviu: —
Uma moça bonita como você não mereceria menos que
isso. Estevão agitou a cabeça.
De moça, Safira tinha somente os dentes que não eram
dela. Contudo, se comparada aos noventa e dois de Julius,
era bem jovenzinha. Ela ruboresceu com o elogio, ainda que
preferisse tê-lo recebido do outro irmão, do velho com
chapéu de quem dá a bunda que estava com uma vergonha
danada daquela cantada de pedreiro.
Saíram cortando a praça tomando um caminho calçado
com granito. Não falaram nada até ultrapassarem os vinte e
tantos velhos que se empoleiravam pelos bancos como
pombos em um armazém abandonado. Safira teve pena
daqueles homens, quase todos deixando escapar a vida que
lhes restava. Tudo bem que a velhice não seja um projeto
fácil, mas terminar daquele jeito? Não, jogatinas e mau
humor não pareciam bons.
— Como ele está?
— Julius? Ele é um filho da mãe teimoso. Acabou com os
pulmões, quase acabou com o fígado, penso que não tem
muito tempo.
— Mas pelo menos viveu — disse Safira. Estevão sentiu
a fisgada e ignorou. Falar com Safira era sempre assim, era
como mergulhar em um rio caudaloso, cercado de natureza
selvagem e cachoeiras, um pôr do sol exuberante se
descortinando à frente. E dentro do rio, piranhas.
— O que a trouxe aqui?
— Ainda não sei, mas tem algo acontecendo em nossa
cidade. Algo ruim.
— Pode ser mais específica? — O padre olhou ao redor e
apalpou um maço de cigarros no bolso da calça. —
Incomoda você?
Safira sacudiu a cabeça e esperou que ele acendesse o
tubinho.
— Uma pessoa foi assassinada, Estevão.
— Minha nossa... — Benzeu-se. — Quem?
— A filha de Galileu Sultão.
— Milena? Pobrezinha. Como isso aconteceu?
Mais um trago, e o padre direcionou Safira até um
laguinho na mesma praça. Havia alguns patos ali, meia
dúzia deles, entre brancos e pardos. Sentaram-se ao lado
desse lago, em um banco de madeira. A grama era verdinha
sob os pés. Estevão suspirou e tirou o chapéu, seus cabelos
estavam bagunçados, ele os alisou com as mãos.
— Como aconteceu? A polícia tem algum suspeito?
— Roger Minotto, namorado dela.
Estevão parecia surpreso.
— Conheço aquele garoto desde sua primeira confissão.
Ele não faria mal a um pardal doente. Nem que pedissem a
ele.
— Era o que eu pensava, Estevão. Eu, o delegado Zétia
e o resto da cidade toda. Mas encontraram a garota morta
dentro do carro do menino. No morro. Ele também estava lá,
catatônico.
— E o pai? Ricardo Minotto?
— Até eu sair da cidade, ele estava com um advogado,
tentando tirar o filho da cadeia. Mas me preocupo bem mais
com Galileu Sultão. Conhece gente do campo. São mansos,
mas nada de provocá-los. Ele vai querer vingança.
— Jesus, que Deus tenha piedade do pobre homem. Não
sei como alguém suporta perder um filho, ainda mais em
uma brutalidade dessas.
— Deus tenha piedade de nossa cidade toda, Estevão,
não foi só isso o que aconteceu desde que saiu de Nova
Enoque.
— Conte o que sabe, Safira. Ou o que sente...
Havia um pouco de deboche no tom. O que sente se
referia a mediunidade de Safira que para Estevão não
passava de charlatanismo. O pior de tudo é que a cidade
inteira dava crédito a ela. Muita gente, que Deus os perdoe
por isso, preferia seus conselhos às palavras sagradas da
bíblia.
Safira fingiu não notar a provocação e explicou:
— Eu vinha percebendo algo estranho na cidade, um
peso diferente, mas não dei importância. É época de
eleição, e tudo fica muito delicado, muito nervoso. Sei que
entende do assunto, aposto que a igreja também passa por
mudanças nesse período.
— O povo fica assustado. Muita gente procura
aconselhamento.
— Aconteceram fenômenos em minha casa, padre.
— Vamos parar por aqui, Safira. Sabe o que eu penso
dessas suas práticas. Eu não acredito em fenômenos.
— Mas acredita em milagres, certo? De Deus... ou do
Diabo!
— Milagres são de Deus, malefícios são do Diabo. Não os
coloque juntos.
— Pois bem. Presumo que o Diabo esteve em minha
casa, Estevão. Um Diabo. E ele deixou o vento mais frio, me
atacou e mandou uma mensagem clara para que eu não me
metesse em seus negócios. Só que eu, eu e você, nós não
podemos simplesmente fechar nossos olhos. Pouco antes de
sair, ouvi que também houve um incidente na praça. Na
praça da sua igreja.
— A igreja é de Deus.
Odiava quando ele se fazia de humilde. Isso a fez dar a
notícia da pior maneira possível:
— Pauline Bosco se matou na frente da Igreja do seu
Deus. Foi o que disseram.
— Deus a perdoe por isso. Alguém sabe o motivo? Por
que essa pobre alma tirou a própria vida? Digo, deve ter
acontecido alguma coisa.
— Todos sabem o que aconteceu, padre. Ela procurou
seus conselhos e também os meus, procurou a ajuda que
pôde. O Bosco, marido dela, de um jeito de outro foi ele
quem a matou. Aos poucos, fazendo dela seu capacho.
— E ele nisso tudo? O Marido?
— Pauline o envenenou antes de matar a si mesma com
um tiro na cabeça. Ouça-me, padre: tem alguma coisa
nascendo em nossa cidade. Um mal muito poderoso.
Precisamos agir antes que seja tarde.
— Do que estamos falando, Safira?
— Ainda é cedo para saber, mas ele me assediou.
Entrou pelas portas fechadas de minha casa e me ameaçou,
chame de milagre se preferir. O que eu sei é que estamos
lidando com algo além de nossa compreensão, pelo menos
além da minha.
O céu ficou carrancudo nesse ponto da conversa. Um
vento frio nasceu no meio da brisa leve e deixou o coração
de Estevão apertado. As ondulações do lago ficaram como
que congeladas, até os patos pararam de se mover sobre a
água, um deles inverteu o pescoço e colocou sobre o dorso.
As árvores não se moviam dando a impressão que o vento,
a pior parte do vento, preferia soprar sobre Estevão e Safira.
De tão quieto, ouviam seus próprios corações.
— Creio que seja hora de voltar para casa. Meus planos
eram para o domingo, mas com essas mortes, as pessoas
vão ficar desnorteadas. A polícia está cuidando de tudo,
você disse?
— A polícia de Nova Enoque é Zétia. E desde que ele
perdeu a mulher não tem sido metade do que era. Minha
sobrinha, Regina, trabalha com ele, é escrivã. Ela está me
mantendo informada. Parece que Zétia está segurando bem
a histeria do povo, ou estava até o que aconteceu com
Pauline.
— Será que nossa cidade não pagou o suficiente? —
perguntou Estevão. Seu queixo tremeu um pouco e, por um
momento, pareceu que começaria a chorar. Mas Estevão,
Padre Estevão, era um homem bem durão.
— O que fizemos, o que fizeram, foi muito grave. Se
tudo isso se trata de um resgate, precisaremos da sua fé,
padre. Da sua, da minha, e de todos os anjos disponíveis no
firmamento. Sinto muito por tirá-lo de seu irmão, mas senti
que precisava vir até aqui.
Estevão deixou o assento e a encarou com ternura.
— Você é boa nesse negócio de sentir — sorriu. — E
quanto ao Julius, não faz a menor diferença o fato de eu
estar aqui ou não. Se ficasse mais muito tempo,
acabaríamos brigando como sempre acontece. É melhor sair
enquanto tudo está bem. — Estendeu as mãos para que
Safira se levantasse. — Meu ministério me paga para esses
eventos, é minha obrigação dar apoio aos que precisam,
não importa se são assassinos ou possuídos pelo demônio.
— Você é um bom homem, Estevão.
— Não, Safira. Não sou. Mas tento ser um bom padre.
PREFEITA MIRIAM E SUA REELEIÇÃO
 
Miriam Guerra, a perfeita definição de inteligência
política na cidade de Nova Enoque, mas principalmente, a
oposição irrefreável a Orlando Torque, o político mais safado
da região (com uma probabilidade bem alta de logo se
tornar o político mais safado do estado).
Miriam se meteu na política depois da morte de seu
irmão — Álvaro Guerra —, então líder da câmara dos
vereadores e o candidato com as maiores chances de
assumir a prefeitura de 2006. Mas isso nunca aconteceu, o
carro de Álvares perdeu a direção e mergulhou de cara no
Rio do Justo, na saída para a estrada vicinal Orestes Anísio
que o levaria até sua chácara, na qual passava os fins de
semana enchendo a cara com vodca russa. Até então,
Miriam Guerra era somente sua principal cabo eleitoral. Mas
Miriam não era sutil e dispersa como Álvarez, quando ela
viu a chance certa se lançou na política e abarcou de uma
só vez os eleitores do irmão e todas as feministas da cidade.
Miriam era esperta, ela sabia jogar o jogo.
Com os últimos acontecimentos, a atual prefeita estava
acuada e precisava dar uma resposta à população. Três
mortes? Em Nova Enoque? E ainda teria que explicar o
Subaru de Orlando Torque pegando fogo bem no meio da
praça. Esse ponto, diga-se, era o que menos a preocupava.
Orlando tinha inimigos em cada esquina, muita gente
gostaria de ferrá-lo. Por outro lado, Orlando era um filho da
mãe esperto. Era bom tomar cuidado e ficar de olho nos três
idiotas que fizeram o serviço. O líder, o tal Jota Moreno,
nesse a prefeita confiava, mas os outros dois valiam menos
que o próprio Orlando.
A prefeitura ficava no prédio mais antigo da cidade,
tinha passado por mais de dez reformas e agora estava
tombado pela secretaria de cultura. Originalmente era a
casa de um barão do café, mas já tinha sido inclusive um
prostíbulo, até se tornar prédio oficial em 1922. Miriam
estava sozinha na sala de despacho. Do lado de fora, seu
melhor segurança, uma estátua de ébano chamado
Dionísio.
Miriam abanou o rosto e passou a mão direita pela nuca.
Uma estranha queda de temperatura atingiu Nova Enoque
na noite anterior, depois das oito da noite — pouco depois
que a maluca da Pauline Bosco se matou na praça da igreja
—, mas hoje, as nove, as janelas estavam de novo abertas.
Miriam estava sem seu terninho, apenas de camisa branca,
calça social e uma caneta dourada na mão. À sua frente um
notebook mostrando que as coisas não iam nada bem com
o seu partido. Miriam era uma prefeita do PT, uma mulher;
não faltavam bobos que a comparassem a atual presidente
da república, Dilma Rousseff — o que, antes, era uma
enorme vantagem. Perto da copa do mundo, entretanto, o
jogo virou e estar perto de Dilma era cutucar um vespeiro
com os dedos melados.
Massageou as têmporas, sua cabeça estava rachando.
— O que eu vou fazer com você? — Bateu os dedos
contra a mesa. A foto de Orlando brilhando em seu
notebook.
É claro que Orlando aproveitaria a onda de crimes da
cidade para virar o jogo ao seu favor. O incêndio do seu
carro — antes uma ideia boa de doer — agora funcionava
como um tiro nos joelhos. Porcaria, o safado do Orlando
estava no mesmo balaio que a cidade, pagando o preço
pela insegurança. Ontem mesmo, logo depois do incidente
na praça, ele se pronunciou no rádio. Disse que a prefeita,
que se preocupava mais com a cor dos seus cabelos do que
com a cidade, estava pagando o preço por sua moleza com
a bandidagem. Tentou estabelecer uma correlação entre ela
e o crime, citando seus dois seguranças — Cidão tinha
trabalhado para a polícia da capital, mas estava afastado
pela corregedoria depois de ser acusado da chacina de três
menores, e Dionísio tinha um longo histórico de violência
em Nova Enoque.
— Posso entrar? — perguntou, já entrando, uma garota
bonita demais para aquela sala.
— Filha? O que faz aqui? — perguntou Miriam, tomando
o cuidado de voltar o notebook ao Google. Se Patrícia visse
a foto de Orlando iria querer saber mais do que Miriam
estava disposta a explicar. Se a política havia ensinado uma
coisa a Miriam Guerra era que cada assunto tem sua hora.
— Vai dormir aqui essa noite? — Patrícia deixou o corpo
cair sobre uma poltrona que ficava perto da entrada. Usava
o uniforme branco da escola, com um moletom amarrado na
cintura. Servia apenas para cobrir a bunda com um calor
daqueles.
Miriam sorriu.
— Se eu quisesse resolver tudo o que tenho pendente,
precisaria de uma semana. Já estou terminando aqui. Tudo
bem na escola?
— Tá todo mundo meio maluco por causa da moça da
praça. Poxa vida, o pessoal tinha acabado de saber sobre a
Milena e Roger, e bomm! Outra bomba. Sabe como é o
povinho daqui... Aproveitaram para falar mal da senhora.
Miriam ganhou uma tonalidade vermelha no rosto. Não
bastava fazerem dela saco de pancadas nos jornais e no
rádio, não... Eles precisavam encher a cabeça de sua filha
de bobagens.
— O que eles disseram? Quem disse?
— Uns manés da escola. Sabe como eles são, mãe.
Ninguém nessa cidade machista gosta de uma mulher
mandando em tudo. Falaram o de sempre: que a senhora
faz vistas grossas, que finge que não está acontecendo
nada e que deviam tirar a senhora da prefeitura antes que a
cidade pegue fogo.
Por baixo da mesa, Miriam apertou os dedos contra as
palmas das mãos.
Quem aqueles enoqueanos de merda pensavam que
eram? O povo tem uma memória curta dos diabos. Todo
mundo se esqueceu dos cofres públicos depenados quando
ela assumiu? Deus sabe que estavam mais rasos que a
represa da cidade que não via chuva decente há dois
meses. A pilhagem corria solta entre os vereadores, todos
crápulas chefiados por Orlando Torque. Ela tinha alguma
culpa, sim. Tinha mandado meter fogo no carro de Torque e,
antes disso, fez o que precisava para mudar o vento a seu
favor. Mas e daí? Essa é a política nacional, certo? Ninguém
em sã consciência quer ser mais certo que o rei.
— Sinto muito que tenha ouvido isso.
— Política fede, mãe. Mas você não fede. Você é minha
mãe, dona Miriam Guerra. Pai e mãe! — sorriu, mastigando
um chiclete de menta com a boca aberta.
Não estava sendo fácil, mas ouvindo a filha, Miriam
conseguia quase agradecer a canalhice do seu ex-marido.
Everton era um bon-vivant, e quando as vacas ficaram
magras para a família Guerra (quando Alvares morreu), ele
deu no pé, abandonou Miriam, sua filha e uma casa vendida
sem que elas soubessem. Patrícia perguntara sobre ele uma
ou duas vezes, uma delas no aniversário de onze anos, a
outra quando Miriam proibiu uma viagem ao Hopy Hari
(Patrícia disse que se o seu pai estivesse ali, ele permitiria,
Miriam disse que ele não teria dinheiro para isso, porque,
além de safado, era burro).
— Um povinho da chapa do Orlando ficou falando um
monte... Disseram que a senhora está envolvida com o
pessoal do PT e que vocês vão incendiar o país antes de
deixar o governo.
Não deu para não rir.
— Incendiar o país? Esse país é um barril de pólvora,
filha! Tudo o que o PT tenta fazer, e não é só o nosso
partido, é evitar que exploda. Nós nunca soubemos lidar
bem com a democracia, nós que eu digo, são os brasileiros.
Pegamos a receita pronta do bolo estragado de alguém e
erramos o tempo de forno. Deus me livre de riscar esse
pavio! Mas vamos parar com a política... Como vai o
coração?
Patrícia se encolheu, ficou toda murcha. Talvez tivesse
sido melhor continuar com a política.
— O Davi tá namorando outra menina. A idiota da Stela.
— Stela Nogueira? Sua melhor amiga?
— Ex-melhor-amiga. Eu vi os dois se beijando perto da
loja da Levis. No Stars-Café. Puta merda, mãe... Eles não
podiam ter escolhido outro lugar?
Davi já tinha tido um affaire com a filha da prefeita,
justamente ali, no Stars-Café. Ficaram umas duas vezes,
depois mais uma no cinema e outra no aniversário da
cidade, na praça mesmo, depois da queima de fogos. Foi ali
que Patrícia perdeu seu coração para ele — e foi ali, dois
dias depois, que ele esmagou o mesmo coração, dizendo
que era muito novo para namorar e que precisava se
concentrar nos estudos. Safado, agora Patrícia sabia a
matéria que ele andava estudando.
— E vocês duas?
— Não tem mais vocês duas. Não quero ver aquela
nojenta nunca mais.
— Não faça isso — disse Miriam. Saiu de onde estava e
empurrou a cadeira que ficava em frente à mesa até perto
da poltrona de Patrícia. Sentou-se em frente à filha.
— Precisa ser mais esperta que isso, mocinha. Isso é...
Se você ainda gosta desse garoto.
— Eu gosto — disse com o tipo de sinceridade que só se
tem com a mãe.
— Então vejamos... Você já esteve com o Davi, não é?
Sabe do que ele gosta e do que ele não gosta.
— Sei até que ele tem medo de escuro.
— Você vai ser mais esperta que eles. Nada de ficar
explodindo, quem quer coisas boas, precisa aprender a
fazer concessões, e a dar tempo ao tempo. Quero que você
ligue para sua amiga ainda hoje, para a Stela.
— Não vou fazer isso, mãe! Eu não tenho estômago.
— Claro que tem. Mas também tem um cérebro teimoso
e é disso que estamos falando. Escute a mamãe. Ligue para
Stela e peça desculpas, diga que você está arrependida e
que quer reatar a amizade com ela. Diga que torce pelo
namoro dos dois e que está feliz de vê-los juntos.
— Posso dizer que prefiro eles dois juntos do que o Davi
com outra pessoa...
— Isso serve. E enquanto isso, você dá as dicas erradas
para a Stela. Ensine-a como ser detestável para o Davi. Por
outro lado, você continua fazendo tudo o que ele gosta. A
cor das roupas, o jeito de falar, faça até mesmo o que você
não gosta para agradá-lo. E dê um tempo para ele faça as
comparações.
Patrícia olhou bem fundo nos olhos de Miriam.
— Mãe, você é um gênio.
— Não sou não. Mas aprendi a jogar de acordo com o
adversário. Agora vá para casa, está ficando tarde. — Deu
um beijinho no rosto esperançoso de Patrícia. — Não quero
você andando por aí até a cidade voltar ao normal.
A conversa tinha sido boa, Patrícia estava sorrindo outra
vez. Ela deixou a cadeira e abriu a porta, antes que
atravessasse, ouviu:
— E pelo amor de Deus, tenha cuidado. Nós não
sabemos quando a loucura dessa cidade vai parar.
GALILEU SULTÃO E O HOMEM DO OUTRO LADO DA
CERCA
 
O enterro demorou demais na opinião de Galileu, mas
enfim, estava terminado. Ele e a esposa fizeram o que tinha
que ser feito. Galileu sentiu raiva, a vontade de chorar ficou
com Rosana. Muitos garotos foram até o cemitério, mas
nenhum deles teve coragem de falar com os pais da garota
morta. A não ser Luciano. Ele conhecia Milena há muito
tempo, tinham sido melhores amigos até o começo do ano
passado, foi quando ela — inexplicavelmente — o trocou
pelo playboyzinho fedido chamado Roger Minotto. Mas
Milena Sultão não servia para Roger, não era para ser
assim, e a filha do fazendeiro estava tentando dar o fora em
Minotto há mais de um mês — enquanto saía às escondidas
com Luciano.
Agora o dia estava morto, e Galileu limpava sua arma
enquanto fumava um cigarro na varanda de casa e ouvia os
soluços intermitentes de Rosana. Pobre mulher, já era a
segunda vez que a vida lhe arrancava um filho. O primeiro
ainda na barriga, cinco meses e uma cólica que os médicos
da cidade chamaram de aborto espontâneo. Era comum no
campo, Galileu sabia disso, mas Rosana era diferente, ela
não era uma mulher do campo, era uma mulher da cidade
tentando, há trinta anos, viver no campo.
Na distância, alguns vagalumes voavam sobre o milho.
Criaturinhas felizes que atraem a morte por causa de seu
brilho. Até na natureza ser feliz parecia um pecado. Para
Galileu, o dia mais duro de sua vida estava terminado, e a
lua reinava mais sangrenta no horizonte triste.
Olhava para o longe quando um homem com cabelos
compridos e barba esganiçada apareceu em sua
propriedade. Apareceu do nada, mas os olhos de Galileu não
eram mais os mesmos desde que o tal do astigmatismo
apareceu e o obrigou a usar os óculos que nunca comprou.
Além disso, a diabetes tentava tomar o resto.
— Boa noite — disse o homem. A voz cansada de quem
andou muito.
— Não é uma noite boa, amigo. E já é tarde. Siga sua
estrada se quer um bom conselho.
— Só preciso de um pouco de água...
Galileu tornou a olhar para a cerca. Saiu empertigado da
cadeira em que estava e cruzou a porta para dentro de
casa. Não era atitude decente negar água, nem mesmo a
um condenado.
Foi até o filtro de barro e tirou dele um copo bem cheio
(para não precisar volta e pegar mais, ele não faria isso).
Por segurança, deixou a arma por perto. Ouviu dizer que
morte costuma visitar a mesma família várias vezes quando
encontra facilidade. Desceu os degraus que precisava e foi
até a entrada limitada por uma porteira. Sondou melhor ao
visitante. Era só um andante.
— Obrigado — disse o homem, e deu um gole curto na
água. Galileu imaginou que fizesse aquilo por estar sem
beber água há algum tempo. Andarilhos sabem que depois
que o corpo se acostuma a ficar sem água, precisa de um
tempo para aceitá-la de volta.
— De passagem pela cidade?
— Acho que sim. — Deu outro gole. Respirou bem fundo
depois. — Ah, Nova Enoque. Lugarzinho hospitaleiro esse
aqui.
— Se você diz — deu de ombros, Galileu.
O homem na entrada tentava reconhecê-lo. Foi o que
pareceu.
— Conheço você? — perguntou, quando desistiu. Galileu
cuspiu para o lado.
— Duvido. Eu nunca esqueço um rosto e o seu ainda não
tinha visto.
— Mas talvez eu tenha visto o senhor. Por acaso o
senhor não é pai da garota que... O senhor sabe...
— Bom, companheiro, se você já tomou sua água, pode
seguir seu caminho. Fiz a minha obrigação e conversar com
você não é outra delas. O pagamento de quem ouve
conversa fiada é dor de cabeça.
— É você sim! Claro que é você!
— Passar bem, moço — disse Galileu, e virou de costas.
Não perderia seu tempo com um vagabundo. Gente com o
pino frouxo acaba afrouxando os pinos dos outros e
ninguém com o cheiro daquele homem joga com os onze
em campo. Galileu já estava perto da escada quando o
homem disse:
— Também conheci o pai do moleque que fez aquilo com
sua menina. Ricardo Minotto. Trabalhei para ele quando
estava começando. O senhor já deve saber, mas ele vai
conseguir tirar o rapaz da cadeia. Ele sempre consegue o
que quer.
— Tem certeza do que está falando? — perguntou
Galileu. Ainda de costas.
Dentro da casa, uma luz foi acesa, iluminando as frestas
da janela do quarto em que ele dormia com Rosana. Depois
a luz da cozinha. Galileu quase nunca usava energia
elétrica, mas Rosana sim. Ela não conseguia enxergar feito
uma coruja como seu homem.
— Quem está aí com você?
— É um amigo. Fique aí dentro, Rosana.
Ela ficou, mas antes acendeu a luz da varanda e deu
uma espiada pela porta da frente. Seus olhos estavam
inchados, o rosto vermelho. Os cabelos enovelados e soltos,
como ela nunca deixava. Rosana era religiosa e mantinha os
cabelos presos a maior parte do tempo. Só os soltava à
noite, para dormir e estar com seu homem.
— Dona — cumprimentou o sujeito lá fora.
Ela não respondeu, e Galileu voltou até a porteira. Dessa
vez, trouxe a arma com ele.
— Agora me explica direitinho isso do garoto sair da
cadeira. Eu mesmo falei com o delegado Zétia e ele me
disse que não tem a menor possibilidade do maldito sair de
lá antes de provarem sua inocência. O que não vai
acontecer, segundo ele.
— Inocência? — riu o estranho.
Com a luz da varanda acesa, um pouco de claridade
chegava até a porteira. Então Galileu deu uma nova olhada
no homem. Ainda era novo, quarenta anos, no máximo.
Tinha uma barba bem comprida e castanha que passava do
peito e dava a velhice que o andante não tinha. Pela barba,
um pouco de sujeira grudada, pedacinhos de folhas das
árvores. O cabelo também estava sem corte. Era da mesma
cor da barba, porém, mais sujo. Estava preso de qualquer
jeito na parte de trás. As roupas que usava estavam
definhando junto com ele. Calça social, camisa de flanela,
algo de couro nos pés. Era esquisito olhar para ele, o tal
homem era cheio de astúcia no olhar, seus olhos eram
azuis, quase tendendo ao violeta, e brilhavam o tempo todo.
— O verme que atacou sua filha não tem nada de
inocente, seu Galileu.
— Não me alembro di tê falado meu nome — disse,
empunhando a arma e mirando entre aqueles olhos azuis.
O homem do outro lado da cerca não recuou um
centímetro. Era como se aquela arma nem estivesse ali,
ameaçando abrir seu cérebro como uma melancia madura.
Ele tornou a sorrir de um jeito muito, muito estranho.
Galileu, em um primeiro olhar, pensou ter visto dentes de
serra, mas quando piscou, eles estavam normais de novo.
Podres pelas laterais, dois a menos na parte de baixo, mas
normais.
— Não vai querer fazer isso, chefe. Você é a vítima
dessa história toda, você, sua filha e a sua senhora. Eu não
estou aqui para trazer mais dor para sua família, mas não
posso presenciar uma injustiça como a que está sendo
planejada. Eu fui pedir emprego para o safado do Minotto,
foi quando ouvi tudo.
Galileu baixou a arma e colocou rente à porteira. O ar
estava mais frio, um pouco de vento sacudia o milho
distante. Era para lá que ele estava olhando quando disse:
— Minha menina, a que foi morta por aquele animal,
gostava do vento sobre o milho. Ela dizia que pareciam
cabelos dos anjos. Pobrezinha. Quando eu penso no que foi
feito dela, moço... — Apertou as mãos contra a madeira da
porteira. Seus olhos ficaram cheios, e o queixo duro tremeu
embaixo da boca.
— Ele tem que pagar o preço, Galileu. Todos tem que
pagar pelo mal que fazem na terra. Esse negócio de fogo e
danação é bonito, faz bem para um bando de carolas que
moram na igreja de domingo a domingo, mas homens
criados na lida como eu e você? Nós queremos a justiça
aqui e agora. Dane-se toda essa baboseira de vida eterna.
— Pode me contar o que ouviu nos Minotto.
— O advogado dele, o tal de Cotia, ele está entrando
com pedido de habeas corpus.
— E esse troço aí vai tirar o menino da cadeia?
— Vai sim. Roger Minotto é réu primário, significa que
ele não tem ficha na polícia. Doutor Cotia é um safado, mas
é um advogado dos bons. Ele vai alegar que a polícia não
tem provas conclusivas e vai pedir que o garoto aguarde o
julgamento em liberdade. Amanhã mesmo o safado sai da
jaula.
— Impossível. Não foi isso o que o delegado me disse.
— O delegado? Delegado Zétia? Ele não manda em
nada, Galileu. Ele só abre e fecha a porta da cadeia. Quem
decide mesmo é o dinheiro.
— Eu... Eu não acredito nisso.
— Pode apostar no que eu digo. Se quiser mesmo
justiça, aquela justiça que nós dois conhecemos, vai ter que
conseguir sozinho.
Galileu pensou sobre o que tinha ouvido. Ele era um
homem do campo, um homem simples, mas não era burro.
Ele não daria ouvidos ao primeiro vagabundo falador que
encontrasse em sua porteira. Antes disso descobriria quais
as verdadeiras intenções daquele andarilho.
— Preciso saber qual seu interesse nisso tudo, senhor.
Não me leve a mal, mas alguém que aparece no meu portão
precisando de um banho não é exatamente digno de
confiança. Não a ponto de eu cometer uma injustiça.
O homem girou o pescoço, olhou às suas costas, e o
vento afagou o milho com mais força. Mas não havia nuvem
no céu que pudesse trazer chuva, era só aquele vento frio.
Em seguida voltou a olhar para frente, sem nenhum traço
de ofensa por ter ouvido aquilo de precisar de um banho.
Ele suspirou, sorriu de um jeito que pareceu doloroso.
— Injustiça? Você está com medo de cometer uma
injustiça? Galileu, Galileu... Injustiça foi o que fizeram com
sua garotinha. Ele abusou dela, sabia?
Galileu ruboresceu e respirou fundo.
— Acho que ninguém contou essa parte... Mas ele fez
isso sim. O Roger Minotto violentou sua menina. Ele fez isso
com ela ainda viva. No fim, a coitadinha estava tão
machucada que não conseguia mais gritar. Então o garoto
sádico apanhou algumas porcarias do chão e usou nela.
Usou a chave de rodas do carro e...
— Já chega! — gritou Galileu. A arma estava de novo em
suas mãos e por um momento ele quis enfiá-la na própria
boca e acabar com os anos desgraçados que teria que
enfrentar. Ele não teria mais netos, não tinha mais uma
filha, sua mulher estava a um passo da depressão (e talvez
já estivesse deprimida). Galileu queria se afundar no poço
mais fundo que encontrasse.
— Você não tem culpa, Galileu. Você e sua esposa são
inocentes.
— Eu vou até a delegacia resolver isso.
— Não vai não.
— Como é? Se você acha que pode vir ao meu portão e
dizer o que eu devo ou não fazer, moço, perdeu o juízo pela
estrada.
— Ouça o que eu digo. Você pode fazer melhor que isso,
tem mais gente para fazer parte dessa lista.
— Eu não quero a família inteira dos Minotto. Posso não
gostar do Ricardo, mas ele não merece morrer pelo crime
do filho.
— Roger Minotto não foi o único culpado pela desgraça
de sua filha.
Galileu sentiu que não teria forças para ouvir mais nada.
Suas pernas fraquejaram, seu estômago parecia fundo, e
ele não queria mais falar com aquele homem. De onde ele
saiu afinal? Como sabia de tudo aquilo? Não... Na verdade
não importava como e sim se o que ele dizia era verdade. E
devia ser. Aquele coitado esfarrapado não arriscaria levar
um tiro.
— Continue — pediu Galileu usando a porteira como
escora para suas dores. Debruçou-se sobre ela.
— Luciano Juta.
— Tá dizendo que ele matou minha filha com o Roger?
Luciano estava trabalhando com o pai quando aconteceu!
— Ele e sua filha... Bem... Galileu, não sou eu quem
inventou isso, lembre-se. Eu só estou contando o que
aconteceu.
— Não precisa temer por sua vida, homem. Eu já tenho
motivos para atirar em você se quiser fazer isso. Conte o
que sabe.
— Sua Milena e Luciano estavam se encontrando pelas
costas de Roger. Não me pergunte como, mas Roger soube
de tudo.
— E como você soube? — perguntou mesmo assim. O
estranho respondeu, mesmo assim.
— Ricardo. Ele e o advogado tiveram uma longa
conversa enquanto eu esperava do outro lado da sala. As
paredes...
— As paredes são finas. São divisórias sem teto. Eu já
estive lá.
— O rapaz que o abraçou no enterro tem sangue nas
mãos. Se você tiver duas balas nessa arma, elas têm
endereço certo.
— Eu não sei se consigo fazer isso. Talvez seja melhor
contar tudo a polícia e...
— E ficar na mão da justiça que sempre falha? Galileu,
Galileu... Eu tenho uma ideia melhor, Galileu. Você não
precisa ir até a cadeia. Se Roger for mesmo solto, vai estar
na sua mira sem que você precise se esforçar muito. E
mesmo que você seja flagrado, que juiz o condenaria?
Quem condenaria um homem por vingar a morte da própria
filha? De uma filha violentada e assassinada?
Antes que Galileu tivesse tempo de reagir, o estranho
ainda disse:
— Luciano viria no mesmo pacote. Tenho uma ideia de
como reunir os dois vagabundos para uma conversinha com
você.
As mãos de Galileu acariciaram o cano de sua arma. Ela
estava fria e limpa. A noite também estava mais fria e mais
escura. A noite era seu próprio coração.
VOCÊ VEM COMIGO!
 
Lobo estava de olho em sua mãe. Desde a visita do
esquisitão dos aspiradores de pó, ele não desgrudava os
olhos dela. Queria acreditar que Nora sozinha conseguiria se
libertar mais uma vez do vício, embora todas as
prerrogativas dissessem que não aconteceria. A tevê da sala
estava de volta — Lobo a recuperou e pagaria vendendo
papelotes de maconha no bairro —, e Nora e Lobo assistiam
um episódio de Bob Esponja pouco antes das onze da
manhã.
— Você não precisa ficar em cima de mim como uma
coruja — ela disse. Tinha acabado de terminar um cigarro e
a fumaça azeda do toco começava a subir do cinzeiro.
— Tô vendo o desenho.
Na tevê Bob parecia cheio de maconha na esponja.
Estava com os olhos vermelhos e Patrick Estrela comia tudo
o que via pela frente (inclusive as mãos do Lula Molusco).
Nora riu.
— Onde você dormiu a noite passada?
— Aqui mesmo, mãe. Dormi no meu colchão, do lado da
sua cama.
Nora deu um riso curtinho.
— Eu nem vi. Acho que apaguei feio.
Claro que apagou... Ela e Lobo ainda não tinham
conversado sobre a fada do crack, e Nora tentava parecer
normalíssima, apesar de não fazer ideia de onde tinha ido
parar seu cachimbo e a droga que sobrou. Tampouco
perguntou sobre a tevê. Quando acordou, ela já estava lá,
Nora pensou que tivesse sonhado sobre isso. Quanto ao
aparelho de som, ainda não sabia o que pensar — ele não
estava de volta. Também não deu muito crédito ao
desaparecimento, um cérebro chapado costuma tratar
mentiras e verdades da mesma maneira.
— A gente precisa trocar umas ideia — disse Lobo.
— Em que porcaria você se meteu agora? Polícia? Olha
aqui, garoto, se algum homem fardado bater aqui em casa,
entrego você antes que ele mostre o distintivo.
Lobo baixou o volume da tevê, mas a deixou ligada. Um
pouco de desenho animado faria bem àquela conversa
escrota. Não é todo dia que uma família passa por uma
inversão de valores tão absoluta.
— Não é nada comigo, mãe. — Apanhou um cigarro dos
seus (estavam em cima do banquinho de madeira, onde
estava também o cinzeiro) e acendeu. — Você não tem
nada pra me contar? Nadinha?
Nora engoliu a seco e continuou olhando para frente,
para Bob.
— Se tem alguma coisa pra dizer, faz isso logo, Lobo.
Tenho que arrumar seu almoço. Depois vou sair e tentar
arranjar um emprego. Estou sabendo que a prefeitura está
pegando gente na limpeza pública. Eu sei que o emprego é
uma porcaria, mas preciso ganhar dinheiro. O que eu recebo
de aposentadoria não está dando para o gasto.
— Se você não gastasse com porcarias, dava e sobrava.
— E se você ajudasse aqui em casa em vez de fumar
maconha com seus amigos eu não precisaria morar nessa
casa de merda. Sabe quanto custa manter um cavalão da
sua idade?
— Menos que um mês de pedra.
Nora desviou os olhos para o cinzeiro. Seu maço de
cigarros já era, e ela não tinha vergonha de se humilhar
mais um pouco.
— Posso?
— É nosso — Lobo disse. Ela apanhou um e acendeu.
Disse enquanto soltava a fumaça devagar:
— Não vai adiantar mentir pra você, né?
Lobo balançou a cabeça.
— Eu fui fraca — foi o que Nora conseguiu dizer.
Os dois ficaram em silêncio por um tempo, tomando o
vento quente que entrava pela janela da sala e ouvindo o
ventilador que estava com a gradinha solta. Bob não estava
mais na tevê, que agora passava propagandas sobre outro
reality show pipoquento. Nora sentiu-se na obrigação de
dizer mais. Não devia ser fácil para o garoto. Lobo era quase
um marginal, mas era ele quem estava puxando a orelha da
mãe viciada. Ele merecia saber mais.
— Semana passada, eu fui até o centro. Recebi um
dinheiro que não esperava e resolvi gastar um pouco. Sei lá
há quanto tempo eu não comprava um vestido, então a
idiota aqui pensou que era uma boa ideia. Queria comprar
um vestido e sair com você no dia das mães. Em algum
restaurante desses, de gente rica.
— Eu não ligo para isso.
— Mas eu ligo. Não gosto quando vejo você se tornando
alguém pior que o vagabundo do seu pai. E odeio abrir meu
guarda-roupa e me sentir com oitenta anos. Eu apanhei um
pouco de dinheiro e fui até aquela loja que fica perto do
correio do centro, aquela cheia de fru-fru. Madame Lulú.
Assim que entrei percebi duas atendentes de nariz
empinado me vigiando. Acharam que eu ia roubar;
putinhas...
— Não gosto daquela loja. Eu não gosto de nada nessa
cidade.
— Nem eu, filho. Mas quis mudar de opinião. E não foi só
isso, eu queria dar uma chance pra nós dois. Sair de casa é
bom, esquecer um pouco da vida dura, sair de perto da
gentinha desse bairro. — Tragou o cigarro. — Eu continuei
vendo os vestidos. Separei os dois mais bonitos e levei pra
uma das putinhas. Pedi para provar. — Mais um trago no
cigarro, esse bem longo e rápido. — A mocinha me mediu
de cima em baixo, depois perguntou se eu sabia quanto
custava o vestido. Ela ainda disse que se eu o sujasse ou
estragasse, ia pagar pela peça. Eu já estava humilhada o
suficiente, mas para acabar com meu juízo, uma cliente
veio me defender. Achei bom na hora, me enchi de razão,
porra Lobo, eu tava pronta para rodar a baiana! Mas quando
olhei para ver quem era, dei de cara com a Eliete Torque,
irmã do safado do Orlando. Eu não via a Eliete fazia muito
tempo, uns dez anos. Senti vontade de me matar ali
mesmo, de vergonha, de ser tão horrível. Eu não queria ter
me tornado essa coisa velha, Lobo. Ela estava linda, sabe?
Começou a chorar em seguida. Tapou os olhos para que
Lobo não olhasse para ela.
— Do resto você já sabe. Fui fazer o que eu sei: acabar
comigo mesma. E não tem nada melhor para isso que
Pedra.
— Que é isso, mãe. Você não é esse lixo todo. E não
devia pensar esse monte de merda.
— Mas eu penso. Eu penso o tempo todo, e não tem
Jesus e Nossa Senhora nesse mundo que tire esse monte de
asneiras da minha cabeça. Eu sou fraca, meu filho. Fui fraca
com seu pai, com você e comigo mesma.
— O crack leva a gente pro fundo.
— Eu já conheço o fundo, Lobo. Conheço tanto que
prefiro ficar lá embaixo onde não preciso mostrar para
ninguém o que me tornei. Meu cabelo seco, minha pele
manchada, minhas rugas. Eu posso lidar com o espelho,
mas com o olhar das pessoas? Não Lobo, esse é o tipo de
merda que enterra você. Agora me deixa em paz.
Lobo olhou firme para ela, mesmo que ela negasse
devolver o olhar.
— Vai tentar parar? Vai fazê isso?
— Eu estou arrependida. É só o que eu posso dizer
agora. Estou envergonhada e arrependida.
Foram mais dois minutos até que Nora deixasse o sofá e
voltasse a subir o som da tevê. A conversa tinha terminado.
Lobo calçou seu tênis, ergueu sua bermuda do Corinthians,
apanhou um vidrinho dos fundos do guarda-roupa em seu
quarto e saiu com o Del Rey de Nora sem pedir autorização.
Ninguém saiu à porta para protestar. Lobo sabia como
ajudar Nora. Lutou consigo mesmo, tentou encontrar outra
saída, mas ele não era do tipo que perdia tempo pensando
muito sobre um problema. Seu estilo era fazer a merda para
depois descobrir o quanto fedia. No meio do caminho —
bem em frente à agência dos correios e à loja da Madame
Lulú —, Lobo parou o carro e sacou seu celular. Discou um
número esquisito no Nokia. O telefone do outro lado mal
tocou e alguém o atendeu.
— Eu topo — disse Lobo. — Tô indo pra lá.
 
CHEGOU À FRENTE DA Escola Municipal Afonso Alegrete
em oito minutos, dez minutos antes de o sinal da saída
tocar. O sol brilhava sobre uma viatura de polícia à frente do
portão, era a porcaria da ronda municipal. Por conta disso,
ele precisou estacionar dois quarteirões depois. Não tinha
problema, o carro estaria no caminho da filha da prefeita do
mesmo jeito. Segundo o cara do aspirador de ideias, ela
entraria em uma sorveteria e se separaria do resto dos
playboyzinhos do municipal. Como o cara do aspirador sabia
disso, não era importante para Lobo, importante era tirar
sua mãe daquele maldito vício e de sua vida de bosta.
Fumou mais um cigarro antes de ouvir o sinal que
parecia uma sirene de guerra. Sua cabeça estava dolorida,
ele tinha bebido demais na noite anterior. Fazia um bom
tempo que sua cabeça doía. Lobo não era um cara ruim,
qualquer pessoa que o conhecesse em um ponto de ônibus
ou jogando conversa fora, concordaria com isso. O problema
com ele é que não conhecia a palavra limite. Sua mãe o
travava como um incapacitado mental, os professores
desistiram dele depressa, seu pai desistira dele. Todo
mundo acabava virando as costas para Lobo. Até os caras,
pensou. Mas com Pêra e Jota — o safado ladrão do Jota
Moreno — ele se acertaria depois.
A primeira horda de adolescentes passou falando
besteiras ao lado do Del Rei. O calor abafava o interior do
carro e fritava os miolos sobreviventes de Lobo, mas ele não
reclamava. Dessa vez estava ali por uma boa causa (um
que não era boa somente para ele).
— Que cara esquisito — disse uma garota com a
camiseta do uniforme colada demais. Devia ter uns quinze
anos, era alta demais e boazuda demais para uma criança.
Isso de crianças não fazia sentido na cabeça simplificada de
Lobo, para ele, apareceram peitinhos, estava boa para
aquilo. E a tal garota que o chamou de esquisito tinha cara
que já conhecia aquilo de perto. Lobo a imaginou...
Peladinha. Mandou um beijinho, e ela o chamou de porco.
Ele riu. Gostava dos porcos, eram animais inteligentes e
simples, nunca ninguém ouviu falar de um porco morrendo
de fome.
Precisava ficar atento. Ele conhecia a filha da prefeita,
mas com tanta gente passando e falando como um bando
de pardais epiléticos ficava fácil se confundir.
Patrícia apareceu quando o esgoto adolescente
terminava de escoar. Lobo a viu e desceu com o carro até a
sorveteria do Mamão. Ele conhecia o cara, estudaram juntos
na quarta série. Mamão já vendia sorvete naquela época e
todo mundo ria dele. Agora quem ria era Mamão, dono de
três sorveterias na cidade e prestes a abrir uma loja de Açaí.
Lobo desceu do carro e esperou que Patrícia se
separasse das duas magrelas espinhentas que grudavam
nela como pulgas. O outro era um moleque com cara de
panaca. Todo adolescente tem um pouco de cara de panaca,
mas aquele era especial. Lobo imaginou se ele teria algum
tipo de retardo mental para cortar o cabelo daquele jeito,
todo seboso e caído nos olhos. Ficava pior ainda quando ele
ria, parecia um galo com aneurisma na glote.
Como esperava, os garotos foram andando, e Patrícia
ficou sozinha na sorveteria. As meninas deram uma
risadinha e isso fez Lobo pensar que a desculpa para ela
estar ali sozinha era encontrar algum namorado babaquinha
(estava certo nisso, alguém mandou um e-mail para
Patrícia). Lobo estava em frente à sorveteria, não
exatamente em frente, mas uns dois metros abaixo. Ele viu
a filha da prefeita checar o celular por duas vezes e
balançar a cabeça. Ela estava brava, tinha levado o cano. A
garota ainda demorou dez minutos, e um monte de
mensagens no celular, para desistir de esperar. A rua já
estava vazia depois desse tempo, o bando de pardais
epiléticos adolescentes tinha voltado para o ninho e deixado
aquela avezinha rica sozinha. Lobo não perguntou para o
cara do aspirador o que ele faria com ela, só agora pensava
nisso. Mas já era tarde demais, ele já estava com um pouco
de éter (que usava às vezes para ficar doidão) ensopando
um lenço vermelho de Nora. A sorveteria também estava
vazia, era hora do almoço e ninguém tomaria sorvete ali
antes das duas da tarde.
— Patrícia? — chamou quando ela botou o pé direito na
calçada.
Ela se virou de repente, seus cabelos loiros espalharam
perfume de morango no ar. Antes que percebesse, Lobo a
envolveu com um abraço tóxico. Ele foi rápido.
Antes que o atendente da sorveteria (outro adolescente
espinhento chamado Maycon) olhasse para fora de novo,
para ver a bundinha empinada da filha da prefeita, o Del
Rey tinha dado partida e arrancado. Patrícia dormia
desmaiada no encardido do banco de trás.
PREJUÍZO NÃO CONSTA NO MEU DICIONÁRIO
 
Orlando Torque não era o tipo de homem que se calava
depois de perder uma briga. No fundo, foi o que acabou
acontecendo com a história do Subaru. Delegado Zétia,
completamente atolado de trabalho depois do que
aconteceu com Milena Sultão, Pauline e Bosco, não foi capaz
de (ou quis) vasculhar cada quintal da cidade atrás dos
culpados pelo ataque ao carro. Para não sair no prejuízo (o
seguro do carro disse que pagaria pelos danos, mas queria
o nome do culpado), Orlando contratou um detetive
aposentado que ainda morava na cidade para descobrir
tudo. Matias Siqueira.
Por anos, Matias trabalhou para a polícia de Horizonte
como investigador, mas os cigarros, o café e principalmente
um sistema nervoso quente como pólvora acesa,
decretaram sua aposentadoria prematura. Desde então
Siqueira ganhava algum descobrindo adultérios e falcatruas
contra as seguradoras de Nova Enoque (e ajudando caras
como Torque).
O contrato com Orlando deixou Siqueira feliz como um
passarinho. Era trabalho de verdade, encomendado pelo
vereador Torque (que apesar de safado era um figurão da
cidade), se ele fizesse tudo certinho e entregasse o pilantra
que meteu fogo no carro do homem, teria mais clientes e de
maior expressão. Mas ele não ligava muito para isso, a
polícia já pagava bem para Siqueira ficar em casa coçando o
saco. O que a polícia não pagava era respeito. Um trabalho
como aquele daria isso, reconhecimento.
Por dois dias Siqueira varreu a cidade. Não foi fácil.
Orlando demorou muito para falar com ele, com isso,
qualquer prova que tivessem deixado para trás já estaria
evaporada. Mesmo assim Siqueira voltou ao local do
comício e perguntou para o dono do lugar, do terreno, se ele
não havia visto nada estranho acontecendo no meio do
corre-corre. Galileu Sultão disse que alguém contou sobre
dois moleques brigando, mas não entrou em detalhes.
Siqueira, então, foi de novo falar com os policiais de Zétia.
Um deles conhecia os dois rapazes. Segundo o soldado
Fábio, os dois não teriam cérebro para organizar um ataque,
também não teriam motivos. Siqueira não engoliu, porque
conhecia algo que motivaria um padre a erguer a batina:
dinheiro. Primeiro ele bateu na casa de Lobo, mas quem
atendeu foi a mãe do rapaz. Não estava dizendo coisa com
coisa, parecia drogada. O que ela conseguiu dizer é que o
filho não estava em casa. Mas Siqueira tinha o outro garoto.
Segundo Fábio (o cara da polícia), ele era um pouco mais
esperto que o tal do Lobo, mas nenhum cientista... Garotos
pobres e ferrados como aqueles não aguentam muita
pressão. Além disso, havia uma grande vantagem em
espremer o Pêra: ele morava sozinho.
Siqueira ajeitou o paletó creme, secou o rosto suado
com um lencinho de bolso, e apertou a campainha. O botão
era um nojo, devia ter uns dez anos de sujeira impregnados
nele.
Atende, seu bostinha, sei que você está aí dentro.
Mais uma vez, apertou o botão nojento. Alguém mexeu
nas cortinas da única janela da frente da casa. Siqueira
espetou o dedo de novo e a campainha de cigarra gritou.
Dessa vez ele bateu à porta também, só para garantir.
A madeira abriu um pedacinho de claridade.
— Pois não?
— Edgar Monção?
— Quem deseja? — Pêra perguntou. Estava cheirando a
bagulho.
— Sou da polícia. Quero conversar com você.
— O que eu fiz?
— Se não abrir essa porta logo, posso arranjar um
monte de coisas, moleque. Por enquanto, só quero
conversar.
— Só um instantinho. Tô de pijama.
Por mim, podia estar pelado, pensou e bufou Siqueira.
Ele detestava perder tempo, na mesma proporção que
detestava aquele bairro maldito. Ninguém gostava do
Bueiro (que na verdade se chamava Explanada Esperança).
Os piores marginais, drogas, tudo de errado escorria ali
como um maldito bueiro de verdade. O ar era mais quente,
a cidade mais barulhenta, as garotas começavam a transar
com doze anos e tinham netos aos trinta e seis. Todos os
bares ficavam cheios de homens testando o fígado com a
pior pinga que encontrassem.
— Pode entrar — disse Pêra. Abriu de vez a porta.
Estava com a cara amassada de quem acabou de
acordar. Vestia uma bermuda com um furo na bunda e uma
camiseta com uma caricatura do Bob Marley.
Siqueira entrou e sentou no sofá pulguento da sala. O
lugar era pequeno, mas amplo, bem mais agradável do que
esperava. Não havia muitas paredes naquele espaço, dava
para ver a cozinha e depois da cozinha, a área de serviço
(que só tinha um tanque e uma máquina de lavar roupas
beirando o ferro velho). Ainda dava para sentir um rastro de
mulher pela casa. Siqueira começou a conversa com isso.
— E os seus pais?
— Mudaram daqui faz tempo. Eu fiquei.
— E eles concordaram com isso?
Pêra deu de ombros.
— Eu disse que me matava se me obrigassem a ir junto.
Siqueira não duvidou que Pêra o fizesse, ele nem piscou.
— Quer uma água? — ofereceu quando Siqueira tornou
a secar o rosto com o lencinho.
— Aceito sim. Gelada se você tiver aí.
Depois de desligar a tevê, Pêra foi até a torneira e serviu
um copo.
— Pode tomar tranquilo. A água é limpa.
Tomaria água com barro com a sede que estava.
Siqueira entornou o copo e o devolveu a Pêra. Ele o colocou
em cima da tevê.
— Vai me contar o que eu fiz?
— Direto ao ponto?
— Você não é da polícia, é? Da polícia de verdade?
— Já fui. Hoje sou detetive, mas você já sabe disso.
Nessa cidade de merda todo mundo sabe de tudo. Vim falar
com você sobre sua briga no dia do comício.
— Briga?
Ele realmente não lembrou. A briga tinha sido uma
simulação, ninguém brigou de verdade, então precisou de
um tempinho para cair a ficha. Siqueira ajudou sua
memória.
— Todo mundo viu você e o outro marginal se pegando
no dia do comício. Por que estavam brigando?
— Oh, aquilo... Eu nem lembrava. A gente tinha bebido,
deve ter sido por causa de alguma mina. Ou alguma
estupidez que o Lobo disse. Ele é meio lerdo às vezes.
— Então são amigos?
Seu burro...
— Interessante, porque ouvi dizer que se socaram
bastante enquanto o doutor Orlando usava o microfone.
Agora você me diz que são amigos?
— Essa conversa tá ficando esquisita, seu...
— Siqueira. Meu nome é Siqueira.
Ficaram alguns segundos quietos. Pêra acendeu um
cigarro, ofereceu outro à visita que declinou.
— Vou jogar limpo com você, rapaz. Estou aqui por
causa do carro do vereador Orlando, o homem que fazia o
comício naquela manhã explosiva. Quando ouvi sobre a
briga de vocês, tive um pressentimento muito, muito
esquisito. Por que não nos poupa um bocado de tempo e diz
o que sabe sobre isso?
— E como eu ia saber? Eu tava brigando nessa hora,
você mesmo disse.
— Brigando? Com seu amigão? Meu filho... isso me
parece uma desculpa de merda. Penso que pode ter
acontecido algo bem diferente na verdade. Do tipo, “vamos
distrair esses babacas enquanto alguém mete fogo no carro
do homem”.
Pêra perdeu a cor e tragou o cigarro com força. Como
aquele filho da puta gordo sabia de tudo isso? Lobo? Jota? A
prefeita Miriam? Alguém tinha a língua comprida.
— Tá viajando, seu Siqueira. Eu só briguei com o Lobo.
— Não foi o que ele disse.
— Você… Não interessa. O Lobo só fala merda, doutor.
Ainda mais quando ele tá chapado, e isso é quase o tempo
todo. Eu não tenho nada a ver com o incêndio do carro do
Orlando Torque, com a prefeita, eu não sei de nada. Só
quero continuar com minha vida.
Um sorriso vencedor brotou como uma erva-daninha no
rosto corado de Siqueira. Aquele moleque era burro demais
ou estava traçando um plano tão inteligente que ninguém
entenderia. Ergueu os olhos para Pêra.
Ele é burro mesmo.
— Eu não disse nada sobre a prefeita, filho.
— Ela estava lá também. Eu mesmo vi.
Siqueira continuou encarando, rindo daquele jeito que
dizia: Você se fodeu, amiguinho.
— Droga... — desabafou Pêra e se jogou no sofá. — Eu
não tive nada a ver com isso, não diretamente. Eu só
arranjei uma briga.
— Você sabe mais que isso. E vai me contar tudinho.
Tenho o dia inteiro para esperar. Estou aposentado e minha
mulher me detesta. Por que não abre de vez essa sua boca
estúpida e me conta tudo? Vai ser melhor para você. Para
vocês todos.
Ele estava ferrado. Não adiantaria enrolar Siqueira. O
gordo maldito parecia teimoso feito uma mula. Ele não
sairia dali até ter as respostas que queria e talvez nem
assim. Mas se ele já tinha mesmo sido da polícia, bom, se
fosse assim, Siqueira saberia dos direitos antes de levar
alguém preso. Pêra respirou fundo e lembrou de todos os
seriados policiais que assistiu na vida.
— Eu respeito o senhor, seu Siqueira, mas não pode
entrar na minha casa e me ameaçar desse jeito. O senhor
não tem provas, e eu não tenho um advogado. E o senhor
nem é mais da polícia, então eu não sou obrigado a dizer
nada que não tenha vontade. Eu nem precisava ter aberto a
porta.
O riso foi morrendo no rosto do homem. Em seu lugar
nasceu uma vermelhidão perigosa. Siqueira sacou o
lencinho do bolso e secou a testa molhada. Suspirou.
Afrouxou o colarinho da camisa.
— Nisso tudo, você só tem razão em uma coisa, filho. Eu
não estou mais na polícia.
Pêra estava indo para a porta. Iria abri-la e acabar com
o assunto. Se o detetive não saísse, sairia ele!
— Mas... — disse Siqueira. Pêra engoliu a isca e olhou
para trás.
— Eu ainda tenho amigos na polícia. Gente graúda que
não pouparia esforços em foder sua bunda magra para me
agradar. Acha que o delegado Zétia, ouvindo tudo o que eu
disse a você, engoliria sua história de advogados e direitos
civis? Cai na real, garoto, você é um pedacinho fedido da
escória da humanidade.
— Não pode falar assim comigo — respondeu baixinho.
Pêra já era.
Siqueira deixou o sofá e foi até ele. Ficaram frente a
frente. Siqueira ajeitou o colarinho da camiseta de Pêra.
— Eu poderia moer seus ossos aqui dentro e ninguém
me chamaria para conversar na delegacia. Andei
perguntando sobre você. Descobri que você e seu outro
amiguinho receberam grana de alguém. E eu sei o que você
esconde no porão dessa casa. É o mesmo que sai da sua
boca, é erva, garoto. Eu duvido que lá embaixo exista só um
ou dois saquinhos para você passar o mês. Agora
desembucha. Ou abre essa boca fedida ou vou usar meu
celular bem aqui na sua frente e ligar para o delegado.
— Se eu contar tudo, o senhor me deixa em paz? Não
vai sujar para mim?
— Vamos colocar de outra maneira, pivete. Se você não
me contar tudo, vai ficar tão sujo que vai precisar de um
caminhão pipa para limpá-lo. Agora senta a bunda suja
naquele sofá e me explica direitinho por que resolveram
meter fogo no carro de Orlando Torque.
DOIS DINOSSAUROS EM UMA GAIOLA
 
Perto das seis da tarde, Miriam deixou a prefeitura e foi
com seu motorista-segurança até a delegacia da cidade.
Esperou cerca de vinte minutos até que Zétia voltasse do
enterro de Pauline e Bosco. Na cerimônia, as famílias
acabaram se estranhando — por causa dos túmulos
conjuntos, a família de Bosco não concordava que ela
ficasse com Bosco, mas metade da sepultura era herança
de Pauline —, e o delegado, que naquele fim de mundo
tinha quase a mesma autoridade que Deus, foi chamado
para intermediar a conversa. Acertaram que depois de cinco
anos, resolveriam o que seria feito. Por hora, os dois
ficariam juntos.
Miriam estava sentada no hall de entrada, suada e com
alguns cabelos escapando do coque. Usava óculos escuros
grandes e espelhados e tremia as pernas sem parar. Zétia
sabia que viria uma bomba assim que a viu — mas ele
esperava uma bomba, só uma.
— Prefeita? Algum problema? — perguntou por
perguntar. Ninguém ia à delegacia se não tivesse um
problemão daqueles, nem o Laércio dos correios (que agora
estava com irritação intestinal crônica) gostava de entregar
seus envelopes por lá.
— Tem algum lugar mais privativo para conversarmos?
Ninguém me viu até agora, e eu prefiro que continue assim.
— Podemos falar na minha sala.
Miriam se levantou e, junto com ela, Dionísio.
— Não é necessário que ele a acompanhe, prefeita.
Dionísio já ia abrindo a boca para dizer besteira, mas
Miriam refrigerou a situação.
— Pode deixar. Fica de olho aqui fora e no seu telefone.
Pode ser que ela tente ligar para você.
  — Pode me acompanhar, prefeita — Zétia ergueu uma
portinhola oculta no balcão e esperou que a prefeita
passasse antes de tornar a baixá-la. Miriam tirou os óculos
escuros e atravessou.
Não gostou nada de estar do outro lado. Todas as vezes
que esteve em uma delegacia ficou de frente para o balcão,
livre de policiais ou bandidos.
Passaram pelo pequeno espaço da escrivã Regina (que
fingia ser cega) e seguiram até uma porta de vidro. Estava
só encostada. Depois dela, tomaram outro corredor. Já no
comecinho ficava a sala com uma plaquinha escrita:
Delegado.
— Não repare o calor, prefeita. Não conseguimos verba
para o ar-condicionado, mas a senhora já sabe disso.
Era para ter doído, pelo menos no ego (isso se políticos
tivessem algum). A prefeita tinha a resposta certa antes de
entrar na sala.
— Teríamos verba para isso e muito mais, se o
excelentíssimo vereador Orlando Torque não tivesse
desviado metade do orçamento para os seus bolsos. Muito
do que era para ser investimento público precisou ir para as
escolas.
Miriam entrou e puxou uma cadeira para si, enquanto
Zétia abria uma pequena janela e ligava o ventilador de
parede. Estava quente como o inferno lá dentro, a prefeita
logo estava se abanando com um envelope pardo vazio que
encontrou sobre a mesa. Havia vários ali, envelopes virgens.
Zétia também sentou e ligou o computador da mesa.
Assim de ouvir o bip, o deixou de lado.
— Podemos conversar agora. Qual é o assunto, prefeita?
— Eu ainda não sei, não com certeza, mas estou aflita. É
a minha filha, delegado. Patrícia não me dá notícias desde
manhã. Também não pareceu na aula de inglês, não voltou
para casa...
Zétia consultou o relógio em seu pulso.
— Sei o que parece, Zétia, mas Patrícia não é uma
adolescente bobalhona. Minha menina é responsável, ela
ligaria se tivesse tido algum problema ou mudasse seus
planos.
— Não duvido, prefeita. Porém, precisamos contar com a
possibilidade de uma vez na vida ela se comportar como
uma adolescente. Tentou ligar para ela? Entrou em contato
com alguma amiga?
— Foi a primeira coisa que eu fiz. Nas primeiras vezes o
telefone chamava, mas depois começou a dar direto na
caixa postal. O celular deve ter descarregado. Também
liguei para duas amigas da Patrícia, nenhuma delas sabia de
nada. O mais perto que cheguei foi uma terceira garota, que
nem é tão amiga assim da minha filha. Ela contou sobre um
encontro com um garoto, na sorveteria perto da escola.
Mandei o Dionísio até lá para investigar. O rapaz que
trabalha na sorveteria disse que a viu. Ela ficou pouco
tempo por lá, depois pagou por um sorvete e foi embora.
Isso é tudo o que descobri.
— E esse rapaz que ela supostamente encontraria? Sabe
quem é ele?
— Consegui descobrir isso também. Falei com a diretora
da escola e ela me passou o número. O garoto não fazia a
menor ideia do que estava acontecendo até eu falar com
ele. Tomou um susto inclusive. Ele não está metido nisso,
Zétia. Usaram seu nome para marcar um encontrou pelo
computador; é o que parece.
— Conhece a rotina, prefeita. Não posso registar queixa
até completar...
— Vinte e quatro horas — ela completou. — Tempo
suficiente para um maníaco acabar com uma boa garota
para sempre. Faria o mesmo se o desaparecimento fosse de
um filho seu?
— Eu não tenho filhos, prefeita. — Soou um pouco triste,
até mesmo incompetente. Zétia queria ter filhos, é claro.
Mas para isso precisaria arranjar uma nova esposa, ou pelo
menos uma namorada. Não era fácil. Em Nova Enoque, se
você passasse dos trinta, já era. — Mas se eu tivesse um
filho — continuou —, faria o que está tentando fazer. Eu não
disse que não faria nada a respeito, só disse que não tenho
autorização para tratar desse assunto antes de vinte e
quatro horas, oficialmente. Existe algum outro
relacionamento de sua filha além dos que checou? Alguém
que a esteja perseguindo, entende o que quero dizer?
— Nada que eu me lembre. Minha filha não é dessas que
mostram peitinhos na internet. Ela é uma garota decente.
Até o ano passado nem Facebook ela tinha. E outra; eu
tenho inimigos nessa cidade, todos sabem disso. Nós
tomamos conta uma da outra, sabe? Temos uma espécie de
pacto, normas que sempre seguimos. Alguma coisa
aconteceu, Zétia. Meu coração de mãe não para de gritar
dentro do peito.
— Inimigos ou rivais políticos?
A prefeita riu, perdendo um pouco do decoro. Até ali,
estava incrivelmente controlada, apesar de toda a tensão
que havia sobre ela.
— Delegado... No fim é a mesma coisa. Aliás,
geralmente os inimigos naturais são mais clementes que os
políticos. Entre nós o ódio é mais perigoso, o campo minado
é estreito e tem dez vezes o número de bombas de uma
guerra normal.
— Precisamos de nomes, prefeita. E não preciso dizer
que essa informação ficará em sigilo. A senhora chegou a
receber algum tipo de ameaça? Ou a sua família?
— Minha caixa de e-mails está cheia de ameaças. Devo
ter mais ameaças que mensagens de feliz natal do ano
passado. Mas se eu tivesse que citar um nome. Bem, só tem
um homem com vontade e força suficiente para me atacar
desse jeito.
O escritório de Zétia não ficava muito distante da frente
da delegacia, as paredes não eram grande coisa, então
dava para ouvir bem o que se falava na entrada e na área
em que a polícia efetivamente trabalhava com seus dados e
informações. O sincronismo da voz estridente de Orlando
Torque com a resposta da prefeita foi quase fantasmagórico.
“Cadê aquela piranha, seu infeliz?!”, ouviram do lado de
dentro, enquanto Miriam prenunciava o nome de seu
principal desafeto político.
— Mas que inferno! O que está acontecendo agora? —
desabafou Zétia. A prefeita estava saindo junto com ele,
mas Zétia pediu que ficasse. Reconheceu a voz de Orlando,
e aqueles dois eram sódio e água, seria uma ideia muito
ruim misturá-los antes que conseguisse descobrir o motivo
daquela gritaria.
Saiu pela porta do corredor e viu Dionísio parado, estava
de cara amarrada e braços cruzados, impedindo o acesso à
abertura do balcão. À frente dele, Orlando espumava
enquanto era seguro por Anderson, um dos soldados que
tinha acabado de voltar da ronda. Torque estava suado, o
rosto todo transtornado pela raiva. Cuspia mais do que
conseguia articular em palavras.
— Cadê aquela vagabunda!? — repetiu quando notou
Zétia.
— Melhor tomar cuidado com a língua, xará. Estamos
em uma delegacia, e eu adoraria botar na sua bunda —
disse Dionísio.
— Ei! Quem manda aqui ainda sou eu — assumiu Zétia,
dando uma pancada sobre o balcão. Dionísio saiu da frente,
e o delegado atravessou. Zétia encarou Orlando trazendo
um pouco do seu bom senso de volta.
— Me solta! — grunhiu mesmo assim. Tinha feito um
rasgo no paletó, embaixo do braço direito.
— Não até você esfriar a cabeça! — disse Anderson. Era
jovem, no máximo trinta anos, e tinha braços suficientes
para prender a obesidade de Orlando por muito tempo.
Com Zétia por perto, Orlando parou de se debater, os
braços ainda seguros pelo policial fardado.
— Podemos conversar como gente ou vou precisar
registrar o que aconteceu aqui?
A língua que todo político entende. Processo...
— Já entendi o recado, delegado. E você pode me soltar,
a menos que esteja gostando de ficar aí atrás.
Anderson confirmou com Zétia, ele assentiu para que
soltasse ao homem.
Orlando saiu do abraço, ajeitou o terno e apertou os
olhos em Anderson. Depois em Dionísio, que continuava na
mesma posição de antes. Ele só movimentava a mandíbula,
mascando uma goma antiácida.
— Quero falar com ela — disse Orlando.
— Ela?
— Sabe de quem estou falando, Zétia. Quero falar com
Miriam e quero agora! Aquela ordinária mandou atearem
fogo no meu carro! Tenho provas, delegado. Arranjo uma
confissão assinada em meia hora!
— Seu porco! Cadê minha filha! — Emergiu Miriam,
gritando dos fundos da delegacia como uma maluca. — Se
tocar num fio de cabelo da Patrícia vai comer sua própria
merda!
— Do que está falando, mafiosa?
— Segura ele de novo! — Zétia para Anderson. — E
você, me ajuda com sua chefe — pediu a Dionísio. Ele
obedeceu e agarrou a prefeita tão logo ela atravessou o
balcão (mas só porque, nervosa como ela estava, acabaria
fazendo besteira).
— Meu Deus do céu! Olha o decoro! — disse Anderson.
— Decoro é o caralho! Essa mulherzinha mandou
incendiar meu carro!
— E você sequestrou minha filha! Porco! Eu vou fritar
você, Orlando, você vai sair tão queimado que nem pra
carvão vai servir! Nem carvão, tá ouvindo?!
— Está falando do quê, prefeita? Perdeu o juízo?
— Devolve a minha filha!
Zétia entrou no meio da confusão e quase levou um
chute da prefeita, entre as pernas. Desviou a tempo e
conseguiu alcançar o conjunto de algemas no cinturão de
Anderson. Dionísio se esforçava, mas não estava sendo fácil
domar a prefeita. Além disso, ele não apertava demais com
medo de perder o emprego de segurança. Do outro lado,
Orlando começava a fazer menos força. Calculou que a
prefeita estava fora-de-si, se ela o atacasse, poderia usar
isso. Miriam Guerra já havia incendiado seu carro, se ela o
arranhasse no rosto, então? Na frente do delegado da
cidade? Oh, isso seria perfeito.
Seria, porque Zétia estava pronto para agir.
Ele ergueu as algemas e mostrou para a prefeita. Foi
como um gás tranquilizante. Miriam parou de se debater,
parou de grunhir e, enfim, voltou a prestar atenção nos seus
cabelos que pareciam uma samambaia podada demais.
Estava chorando de raiva. Se aquele gordo maldito
estivesse mesmo com a sua filha... Como ele pôde ir tão
longe? Bandido filho da mãe!
— Vou precisar usar isso se não se comportarem.
— Foi ela quem ferrou meu carro! — disse Orlando. Já
estava solto de novo. Suava bastante e respirava depressa.
Parecia perto de um infarto.
— Arranje água, Regina — pediu Zétia. Ela balançou a
cabeça e foi para os fundos. Como se ela não tivesse
trabalho com todas as novidades indecentes na cidade,
ainda tinha que trabalhar de copeira. Ninguém falou sobre
isso quando entrou para a polícia.
— Agora me diga com calma, o que a prefeita tem a ver
com o seu carro, vereador?
— Ela pode dizer melhor do que eu.
— Prefeita?
— Não sei do que esse ladrão está falando.
— Eu já fui inocentado! — disse Orlando.
— Embargado! E seu processo ainda vai provar o monte
de bosta que você é!
— Quero registrar isso, delegado! Ela me chamou de
bosta!
Antes que o clima pegasse fogo outra vez, Zétia jogou
um balde de gelo nos ânimos de Orlando. E na prefeita
também.
— Ok, vamos anotar tudo. Que você chamou a prefeita
de vagabunda, que ela o chamou de porco e de ladrão, e
que vocês dois tentaram se agredir bem na minha frente. E
quem sabe eu não concorra nas próximas eleições para
ocupar o vácuo deixado por vocês dois? Ficaria bom assim?
Orlando procurou os olhos da prefeita. Miriam negou no
começo, mas enfim ergueu a cabeça e o encarou. Orlando
ergueu a bandeira branca como bom político que era.
Safado, mas esperto pra caramba.
— Eu não sei nada sobre a sua filha, Miriam, garanto
que não. Posso ter minhas diferenças com você, mas tenho
limites. E o que a senhora tem a dizer sobre o meu carro?
— Não aqui. Podemos conversar depois, tentaremos
entender juntos o que aconteceu.
O que aconteceu? Era hora de tirar o delegado daquela
conversa, ora essa... Depois se acertariam colocando algum
vagabundo no banco dos réus e tirando o cu da reta como
era costume entre os políticos do mundo todo.
— E sobre minha filha, delegado... Eu vou para casa. Vou
ligar para mais alguns amigos da escola. Se souber de
alguma coisa, qualquer coisa, me ligue.
— Faça isso, prefeita. Vou tomar o depoimento do
Orlando, já que ele está aqui e...
— Está me acusando, Zétia?
— Ainda não, Orlando. Mas o que espera que eu faça
depois do que aconteceu aqui? E sobre o seu carro, amanhã
falarei com a prefeita. Certo, prefeita?
Miriam assentiu com a cabeça e foi saindo. Estava com
alergia daquela delegacia e da safadeza de Orlando. Mas ele
não seria idiota de sequestrar sua filha e aparecer na
delegacia, mesmo depois de descobrir sobre a porcaria do
Subaru. Miriam ajeitou um pouco do terninho torto e checou
o rosto em um espelhinho que tirou da bolsa Louis Vuitton.
Saiu e deixou Orlando com o delegado.
Já dentro do carro, sorvendo o ar condicionado e tirando
o calor daquela discussão infame, ela disse:
— Vou precisar de você, Dionísio. Quero conversar com
o indecente que abriu a boca sobre o Subaru de Orlando
assim que Patrícia aparecer. Precisamos garantir que essa
gentinha fique quieta.
Dionísio sorriu pelo espelho retrovisor; gostava de
conversar.
DE VOLTA PARA CASA
 
Padre Estevão dormiu boa parte da viagem de volta.
Estava exausto, mas o intuito daquela viagem nunca foi
recuperar suas energias. Estevão saiu de Nova Enoque
justamente para o oposto, para oferecer um pouco de sua
própria energia — ainda que fosse espiritual — ao seu irmão
mais velho. Sob esse aspecto, tinha tido sucesso.
Acordou pouco antes do trevo de Nova Enoque, depois
de sentir um assopro frio sobre si. Era a presença do mal.
Isso de fogo era um grande exagero, o demônio podia se
apresentar de qualquer jeito pelo que estudara. E ele se
apresentou, antes, na forma de pesadelos. Estevão teve
muitos deles enquanto dormia embalado pelos sacolejos
macios do ônibus. Do último que se lembrava, sonhou com
um grande incêndio na igreja. Estavam todos lá, o delegado,
Madame Safira, Prefeita Miriam e Orlando Torque (e eles
vestiam a mesma roupa, uma espécie de turbante branco,
todo manchado de sangue). Havia dois lobos, um em cada
canto do altar e cada um deles tinha um bebê vivo
chorando aos seus pés. As portas da igreja estavam
impedidas por dois rapazes com olhos revirados nas órbitas.
Estevão não teve forças para abri-las. Ele não podia se
mover porque, quando percebeu, quando deu por si, estava
suspenso em um crucifixo cor de âmbar. Sua carne doía, sua
bexiga não tinha controle. A igreja ria.
Logo abaixo do crucifixo havia alguém. Estevão não
conseguiu ver quem ele era, estava de costas. Vestia terno
chumbo e seus pés pegavam fogo. O cheiro que saía dele
era penetrante e tóxico. Próximo de gasolina, mas bem mais
azedo.
“Por que não fogem! Eles são poucos”, tentou Estevão.
Seus pulmões doíam, uma ou mais costelas estavam
moídas dentro dele. Pés e pulsos transpassados por
espículas de vidro deixavam seu sangue ir embora. As
mulheres da fila da frente estavam em êxtase. Expressões
orgásticas animavam seus corpos suados e cobertos por
pouco tecido. Duas delas, adolescentes, estavam com parte
dos seios para fora. Usavam camisetas largas demais e
rasgadas nas laterais. Faziam gestos obscenos, e quando
Estevão arriscava um olhar curioso, elas se acariciavam e se
beijavam.
“Mostre-se!”, o padre exigiu no sonho. O homem à sua
frente ergueu o punho esquerdo fechado. Todos dentro da
igreja se calaram e olharam para ele. Prefeita Miriam caiu
de joelhos, Orlando Torque começou a gritar e a chorar.
Então o homem misterioso baixou a mão e da parte do meio
da igreja apareceram três cadáveres, todos de pé. Um era o
corpo de Milena Sultão. Ela estava nua e pedaços de carne
deixavam seu corpo apodrecido. Seus ossos estalavam
quando ela caminhava, pessoas tapavam os narizes para
escapar do cheiro de decomposição. Iam para a frente da
igreja, para onde o padre estava aprisionado. Do mesmo
lugar onde apareceu Milena, outros dois cadáveres se
animaram a caminhar atrás dela. Um deles, Bosco,
vomitava um fluido denso e negro. Ele estava com os olhos
perfurados, e seus lábios estavam cortados até as orelhas.
Vestia um terno mortuário, só a parte da frente coberta, as
costas estavam nuas e por ela vazavam enormes manchas
de rigor mortis. Pauline vinha seguindo o marido. Seu corpo
também apodrecia, mas ela ria sem parar. Seu cabelo tinha
caído em alguns pontos da cabeça, deixando grandes
crateras de carne suja. A ferida por onde a bala atravessou
ainda sangrava.
Chegaram bem perto do homem de terno, e ele tocou
de leve a cabeça dos três cadáveres. Carinhosamente
sussurrou algo aos ouvidos de Milena. Ela contou o que
ouviu aos outros. Pauline riu, deixando seu eco tomar conta
da igreja.
“Façam o que vieram fazer”, disse o pastor daquela
missa bizarra. E em seguida:
“Comam do cordeiro, comam até se fartarem.”
Estevão sentiu seus pés sendo mastigados e gritou
tentando acordar o dono daquela igreja. Gritou mais ainda
quando a filha da prefeita (que ele mesmo havia crismado)
apareceu. Patrícia apanhou uma tocha com Madame Safira
e ateou fogo no corpo de Orlando Torque. Ele gritou e se
abraçou a Galileu Sultão. Suas carnes começaram a ferver e
derreter. A combustão da gordura dos corpos ateou fogo em
outros e, em segundos, toda a igreja ardia. Ninguém
tentava sair de onde estava, eles apenas gritavam e se
regozijavam com o sofrimento que experimentavam.
Estevão assistiu cada um deles definhar, cada corpo
reduzido a uma vela feita de carne humana.
Ele ainda chorava quando acordou dentro do ônibus.
Suas pernas estavam dormentes, e Estevão teve medo que
elas estivessem roídas e queimadas de verdade. Não voltou
a dormir desde então.
Desceu na rodoviária às sete da noite. Infelizmente, um
pouco tarde para a visita que pretendia fazer a Galileu
Sultão. No sonho, Galileu chamou mais sua atenção que os
outros, mesmo os três cadáveres que o roeram dos pés até
os joelhos o impactaram menos. Galileu era uma mensagem
clara na opinião do padre, ele precisava falar com ele. O
pobre homem devia estar atormentado, e ninguém o
culparia por isso, é claro, mas mentes atribuladas concebem
ideias ruins. Ainda mais quando inspiradas pelo oculto.
Precisou esperar dez minutos para conseguir um táxi. O
diácono da igreja não pôde ir buscá-lo, seu filho estava com
virose por causa do tempo seco. Pelo que Safira contou
quando esteve com Estevão, ele não era o único, metade da
cidade sofria com diarreias e doenças respiratórias.
— Aqui! — disse, sacudindo a mão pela terceira vez.
Dessa vez o táxi diminuiu a velocidade e parou bem perto
da plataforma.
Ainda concentrado na ausência de outros carros,
Estevão perguntou, sem olhar para o rosto do motorista: —
Onde está todo mundo? Acho que o seu táxi é o único por
aqui.
O homem ao volante não respondeu. O que fez foi abrir
o bagageiro do Santana para que o padre colocasse sua
mala. Também bombeou o acelerador para apressá-lo.
Estevão esperou sua ajuda por alguns segundos, mas o
motorista não se mexeu. Tudo bem. O homem devia estar
cansado. Se ele era mesmo o único taxista de plantão
naquela noite, devia ter trabalhado um bocado. Depois de
bater a tampa do porta-malas, Estevão entrou pela porta
traseira do carona.
— Para onde? — o homem perguntou.
— Me deixe perto da igreja. Dois quarteirões está bom.
Quero caminhar um pouco antes de repousar. Preciso
esticar as pernas.
— E suas malas? Vai carregá-las?
— Não tem muita coisa. Um pouco de esforço físico
sempre ajuda a cabeça a desligar-se dos problemas.
O carro arrancou suavemente e tomou a avenida que
dava acesso ao centro. A igreja ficava logo depois, Estevão
morava somente a duas quadras. Por ele, moraria dentro da
catedral, mas não era permitido fazer isso.
— Nada de chuva por aqui? — perguntou. Já sabia a
resposta, mas depois de tanto tempo calado, tendo
pesadelos em um ônibus sem ar condicionado, queria
conversar um pouco.
— Não chove em lugar nenhum, amizade. Acho que
Deus está puto da vida com a raça humana.
Estevão riu.
— Não diga isso sobre o pai, meu filho. Deus não nutre
sentimentos humanos em seu coração.
— Seu Deus não tem coração, padre. Ainda vai descobrir
isso.
A conversa não era bem vinda, Estevão se calou. Olhou
para fora e viu um anoitecer estranho. O ar estava com um
tom meio bege, muita poeira suspendida, mas não era só
isso. O mundo de Nova Enoque parecia escurecido. Estevão
resolveu tentar mais informações com o motorista. Pelo que
sabia dos homens, todos eles (taxistas ou não) gostavam de
falar pelos cotovelos quando o assunto eram desgraças.
Precisava de outra opinião depois de Safira.
— E além da secura da terra? Como anda nossa cidade?
Eu soube sobre a morte da filha de Galileu Sultão. Ouviu
algo a esse respeito?
— E quem não ouviu? A tal menina andava se
esfregando com o garoto errado enquanto enganava o
garoto certo. Então o namoradinho dela, filho do dono do
matadouro, o tal do Roger Minotto, acertou as coisas com a
menina. Não sobrou muita coisa dela, deve ter sido um
trabalhão no enterro.
— Deus tenha piedade. E o pai da moça?
— Como alguém fica quando perde um filho? Eu não sei,
padre..., não tenho filhos, mas imagino que o homem deva
estar maluco. Soube que ele andou ligando para o
delegado, tentando garantir que o tal do Roger Minotto
apodreça na cadeia. Sabe como são essas coisas... O pai
dele tem grana, influência...
O padre ouviu, filtrou toda a maldade que saía pela boca
do motorista e a desprezou. Tentou encontrar os olhos do
homem no espelho retrovisor, mas ele nunca os cruzava
com Estevão.
— Não lembro de tê-lo visto na cidade, e olha que eu
batizei metade do povo daqui. Os que eu não batizei têm a
minha idade ou mais.
— Sempre estive aqui. Sou um homem discreto,
amizade; prefiro passar batido. Estou nesse táxi fedido para
cobrir a um amigo. Ele pegou uma gripe forte, e a esposa
não deixou que viesse trabalhar. Combinamos meio a meio
do que eu faturar hoje.
— E os outros táxis?
— O senhor deu azar. Vários carros estavam parados
antes do seu ônibus chegar.
Circularam o hospital e depois o centro da cidade
propriamente dito em silêncio. Estava movimentado com
aquele calor todo. Homens de bermuda, alguns sem camisa;
minissaias nas mulheres. Nova Enoque parecia uma cidade
praiana. Todo mundo caminhava devagar, meio sem
vontade, até os cachorros tinham preguiça, e muitos deles
ficavam na porta das lojas que persistiam abertas,
aproveitando o que escapava de ar fresco.
— E sobre o casal? Os Bosco?
— Estive no velório deles. Um calorão danado. Tinha
muita gente ali, mas a família dos defuntos estava mais
interessada em brigar do que em sepultar os dois — riu. Riu
com deboche, realmente achando graça naquilo. — Acredita
que precisaram chamar o delegado para apaziguar os
ânimos? Eu não sei... Em minha opinião, um marido e uma
mulher devem procurar o entendimento sozinhos. Esses
dois morreram sem encontrar — riu de novo. — E quanto à
família dos infelizes, brigar por causa de um buraco na
terra? Precisa ser muito burro para fazer isso.
— Vamos ter um pouco de respeito — disse o padre. O
carro já estava estacionando, em um trecho sem
movimento logo depois do centro. A dois quarteirões da
igreja, como pediu Estevão. O motorista puxou o freio de
mão e respondeu antes que o padre pensasse em tocar a
maçaneta.
— Vamos ter respeito sim, padre. O mesmo respeito que
vossa santidade tem quando espia os decotes das
vagabundas que frequentam sua igreja.
— Quem é você? — Estevão perguntou, e dessa vez
puxou pela maçaneta.
— Eu? Não sou ninguém, padre. Ou sou alguém que
pode te foder embaixo da saia.
— Me deixe descer! — Forçou a maçaneta emperrada.
— Está com medo do quê, Estevão? Teme que seu Deus
não saia do trono para te defender? Você é um velho brocha
e tonto. Se eu quisesse o esmagaria agora mesmo, a dois
quarteirões da casa do seu precioso Deus.
— Você não tem poder sobre mim, não tem poder sobre
mim!
— Veremos...
Um cheiro ruim começou a tomar conta do carro, não só
ruim, como intoxicante.
— O que está fazendo? — perguntou e tossiu. Depois
tossiu mais, e a fumaça que vinha do banco da frente o fez
quase se afogar. A falta de oxigênio e a composição daquele
fumo fizeram o padre confundir os sentidos. O motorista ria,
gargalhava.
Cansado de torturar Estevão, desceu do carro e foi para
a parte de trás. Em seguida, voltou. Virou o espelho para
enxergar Estevão nos olhos, e disse:
— Saia do meu carro, verme. E se você se meter
comigo, vai ficar mais perto do seu Deus.
Mais uma vez Estevão tentou a maçaneta. Estava
praticamente sem ar, os músculos do abdômen doloridos
pelo esforço da tosse. A garganta parecendo incendiada. O
mundo girava quando ele finalmente saiu daquele carro
maldito. O homem ligou o rádio e Estevão reconheceu uma
banda antiga, que seu sobrinho adorava; AC/DC. A música
ele não conhecia. O vocalista dizia Hells Bells.
— Mãe de Deus, quem é esse homem? — perguntou,
olhando para cima. Contudo, sabia que não era um homem.
Aquele era a personificação do que acontecia com sua
amada Nova Enoque.
Estevão apanhou a mala jogada na sarjeta e agradeceu
por não ter ninguém naquele pedaço de rua para vê-lo tão
humilhado. Caminharia o que precisava, mas tudo o que
desejava agora era um copo com água e uma cama macia.
Olhou para o alto e viu o relógio da igreja. Estava sem
forças para chegar até ela.
NO COVIL DO LOBO: Sequestro e instalações
 
Patrícia abriu os olhos e pensou: Me ferrei grandão.
Sua segunda intenção foi gritar até arrebentar os
pulmões, mas sua boca estava tapada com tecido. Também
tinham colocado alguma coisa dentro de sua boca, um
pedaço de pano, imaginou; como uma meia. E havia um
cheiro pungente, adocicado e enjoativo. Foi o cheiro que
deu a ela a certeza de estar sequestrada. Era clorofórmio ou
um composto parecido — ela cheirou loló no carnaval,
passou mal, chegou a desmaiar. Aquela porcaria tinha o
mesmo cheiro.
As mãos estavam amarradas às costas, e os pulsos
doíam bastante. As pernas também não responderam na
primeira vez que ela tentou movê-las. Estavam dormentes.
Respirar era difícil.
Fazia muito calor ali, era um lugar pequeno, escuro e
abafado. Bem mais escuro e abafado do que pequeno,
pensando bem. Tinha uns três metros por três e dois focos
de luz. Um em uma janela tapada porcamente com cimento,
e outro vindo da soleira de uma porta bem grande e de
metal. Acima (bem, pelo menos era o que parecia a
Patrícia), pombos arrulhavam um som demoníaco. Pensou
em sua mãe. No verão de dois mil e nove, Prefeita Miriam
tentou controlar a população de pombos, mas os
enoqueanos foram contra. Eles não entendiam que os
pombos transmitiam doenças que poderiam matar; no
mínimo, deixar doentes seus animais e filhos. O povo é uma
besta estúpida quando se trata de medidas saneantes,
preferem viver como porcos.
Já era dia. Pelo calor e pela fome que sentia, entre meio-
dia e duas da tarde.
Checou suas chances.
O lugar era bem fechado, mas não era um fosso de
segurança máxima. Era só uma sala velha, caindo aos
pedaços. Se procurasse direito, encontraria uma saída, nem
que fosse pelo teto. Sim, pelo teto. Havia um alçapão na
sala, perto da porta, mas era muito alto. Ela só o alcançaria
de subisse nas costas da cadeira, mas mesmo assim, aquela
porcaria tanto poderia estar solta quanto com um quilo de
concreto nas frestas. Bem, mas era uma ideia. Mas para
essa ideia, Patrícia precisaria executar outra. Precisava
soltar seus braços e pernas e sair daquela cadeira.
— Hummpg! — Forçou as mãos. A única coisa nova
naquele buraco eram as malditas cordas. Devem ter sido
compradas especialmente para isso, para mantê-la presa. O
que a levava ao ponto que ela só chegava agora: Quem a
sequestrou?
O primeiro nome surgiu em neon florescente para não
deixar dúvidas: Orlando Torque. Sua mãe andava jogando
pesado com ele, e Orlando era um bandido de gravata, todo
mundo na cidade (inclusive quem votava naquele bosta)
sabia disso. Mas o que Orlando ganharia a fazendo de
refém? Desestabilizaria Miriam? Tá... E daí? Miriam era
durona e era possível que arranjasse alguma vantagem
política se fazendo de vítima para a cidade toda — depois se
trancaria no quarto e pensaria em suicídio, o que era de se
esperar, mas antes se garantiria nas urnas.
Tudo bem, as cordas são novas. Mas e essa cadeira?
Patrícia jogou o corpo à frente e ouviu um rangido suave
na parte de trás. Fez isso mais uma vez e o rangido foi um
pouco mais forte. Pena, mas a droga da cadeira era firme.
Ok, nada de cordas, nada de cadeira. Oh, e nada de gritos e
de alçapão para fugir. Mas ela ainda tinha uma ideia.
Olhou para os lados para ter certeza. Muito bem, as
paredes eram feitas de tijolos baianos e a cobertura (que
era o que lhe interessava) era um chapisco pontudo.
Perfeito para desfiar essa porcaria de corda.
Com aquele calor todo, estava molhada. Os braços
davam nojo quando a pele tocava as costas, os cabelos
empapados em cima da testa úmida. Graças a Deus que
ninguém está me vendo nesse estado, pensou com seu pior
lado filha-da-prefeita. Pensou em Davi. Ele nem deve ter
mandado aquele e-mail. Alguém deve ter invadido sua caixa
postal, Davi era bonitinho, mas também era tonto o
suficiente para não tomar conta do seu próprio e-mail.
Deu uns pulinhos com a cadeira, tentando chegar mais
perto da parede. No segundo salto, a cadeira quase virou.
Patrícia sentiu o sangue congelar dentro dela. Se ela caísse,
o plano já era. E se ela caísse e batesse forte demais com a
cabeça, então já era seu plano e ela junto.
Cuidado garota... Não vai ferrar com tudo antes da hora.
Antes da hora, porque ela já pensava que se algum
sequestrador safado tentasse colocar suas mãos podres em
cima dela, perderia um olho. E o pinto junto! Esse era o fim
da linha para ela, Patrícia não permitiria. Morreria antes.
Parou de se mexer quando estava pronta para o terceiro
salto. Alguém estava assoviando do outro lado da porta.
Estava assoviando o maldito hino do Corinthians. Não era
maldito até então, ela não perdia seu tempo assistindo
futebol (só na copa do mundo, mas aí não conta, na copa,
todo mundo liga a tevê e passa vergonha junto, até quem
não gosta de futebol).
Meu Deus, me ajuda!
A pessoa do outro lado não foi direto para a porta. O que
era bom. Talvez não fosse nenhum sequestrador, talvez
fosse alguém a procurando! Polícia? Não, ainda era cedo
para estarem atrás dela, cedo demais para que o delegado
Zétia a encontrasse.
— HUMMPPH! — gemeu. Balançou a cadeira outra vez.
Deu certo. Os passos do outro lado chegaram mais
perto, e os calçados nos pés de quem estava ali bloquearam
o pedaço de luz que escapava pela soleira. A porta fez um
pouco de barulho. A maçaneta desceu, uma fresta maior de
luz entrou. Patrícia tentou manter os olhos abertos, mas não
conseguiu; a luz forte machucava depois de tanto tempo no
escuro. O estranho abriu e cruzou a porta. Tornou a encostá-
la, deixando de luz, apenas o suficiente para não tropeçar
em nada. Parou de frente para Patrícia. Ela o mediu dos pés
à cabeça, começou pelos pés.
Lobo usava um tênis explodido que tinha uns seis anos.
Não usava meias e suas canelas finas estavam à mostra. Na
panturrilha direita, uma tatuagem. Já era de se esperar que
fosse o emblema do Corinthians. Que tipo de sequestrador é
imbecil a ponto de dar uma pista dessas? Uma tatuagem?
Deus!
A bermuda comprida começava logo depois da tatoo.
Era florida demais e de tecido vagabundo. Patrícia já tinha
visto bermudas como aquela quando ia com Miriam até a
periferia da cidade fazer doações. Miriam tinha feito uma
promessa uma vez, e todo Dia das Crianças ela doava um
porta-malas cheio de brinquedos. Quando podia, Patrícia ia
junto para ajudar.
Depois da bermuda, vinha uma camiseta grande demais
— chegava até o meio da coxa. O tecido era roxo e
desbotado e seguia o resto daquele cara. A cabeça estava
coberta por um saquinho quadriculado de feira. Sobre ela,
um boné que surpreendentemente não era do Corinthians,
mas do Racionais MC’s. O que ele era afinal? Algum tipo de
maníaco, um rapper tarado por futebol? Se fosse isso estava
bom, desde que não fosse um tarado por filhas de prefeitas.
— Oi — disse Lobo. A voz falhou um pouco no começo.
Ele nunca foi muito bom em conversar com mulheres, com
garotas. Era bom com prostitutas, mas não era a mesma
coisa. Ele bem que preferia estar com uma puta agora,
mesmo com aquele calor todo. E ela estaria pe-la-di-nha.
— HUMHHH! — Patrícia grunhiu. Balançou a cadeira de
um jeito perigoso, acabaria no chão loguinho se não
tomasse cuidado.
— Eu trouxe comida.
Patrícia arregalou os olhos. Estava faminta, mas comida
não era a primeira coisa que esperava. Pensou melhor...
Comida é claro. E ele vai precisar me desamarrar para eu
comer. Desfez a expressão furiosa e a trocou por outra feliz
e ansiosa. Lobo percebeu e se adiantou:
— Moça. Eu não tenho culpa de nada disso, então não
tenta me ferrar, tá bom? Eu vou tirar o pano da sua boca. E
não vai adiantar gritar, porque ninguém vai ouvir você. Aqui
é muito longe da cidade. Mas se gritar demais, eu vou
precisar amordaçar você de novo.
Patrícia sacudiu a cabeça, mantendo a expressão feliz
no rosto. Era quase impossível com a vontade que estava
de quebrar aquela cadeira nas costas daquele homem.
Homem nada... O tipo era um garotão ainda, tinha espinhas
aqui e ali que vazavam pela máscara improvisada.
Ele se aproximou vagarosamente, parecia um tratador
de leões. Deu à volta por trás da cadeira, Patrícia o seguiu
com os olhos. Sentiu uma brisa fresca com o movimento de
Lobo e quase pediu que ele trocasse a comida por um
ventilador. Depois sentiu uma pressão na parte de trás da
cabeça e alguns puxões nos cabelos.
Lobo voltou a ficar de frente para ela. Ele tinha cheiro de
suor e maconha. Também de cigarros comuns e
vagabundos. E devia ter bebido.
— Dá licença, moça. Vou tirar minha meia da sua boca.
Colocou os dedos com calma, com medo de perder um
deles. Patrícia não tentou nada, não tentaria até ter a
certeza que conseguiria. Herdou esse lado da prefeita
Miriam, Patrícia era uma estrategista.
— Obrigado — ela disse. Virou para o lado e cuspiu
várias vezes. Com a entrada de ar novo, sentia mais cheiros
e gostos, além do diluente que a apagara. Um deles era um
gosto salgado, de suor, aquela nojeira em sua boca devia
estar usada.
— Sabe quem eu sou? — ela perguntou.
— Todo mundo sabe — respondeu Lobo.
— Então sabe que a minha mãe vai arrancar seu saco
quando me encontrarem?
— É né? — perguntou, e coçou o topo da cabeça. — Mas
não interessa, moça. Eu tenho que fazer isso. Eu trouxe
água para você. E comida.
— Preciso ir ao banheiro.
Hora de testar a idiotice daquele cara. Ele não parecia
esperto, mas soltá-la seria um ato de estupidez extrema.
Lobo não era tão burro assim.
— Pode ir, mas vai ter que fazer na minha frente.
— Vai sonhando!
Lobo virou as costas e andou até a porta.
— Aonde você vai? — Patrícia quase implorou para que
ele ficasse com ela, mesmo sendo o culpado por tudo
aquilo. Ou talvez nem fosse o culpado. Ele estava
cumprindo ordens, não foi isso o que disse?
Logo estava de volta, com um cantil de água em uma
das mãos e um prato de comida na outra. Arroz, feijão e um
pedaço de carne. Ele colocou no chão e abriu o cantil.
— Vou dar água pra você. Depois eu vou pensar em
algum jeito de você ir no banheiro.
— É só me desamarrar!
— Ahm-ram. É sim. E depois você sai correndo e me
coloca na cadeia.
— Eu não vou fazer isso. Juro que não!
Lobo a calou colocando o cantil em seus lábios. Beber
água era bom, mas ela tomou tanto que sentiu um pouco de
ânsia de vômito.
— Devagar, moça. Eu trago mais depois.
— Olha aqui, cara. Se você insistir nisso, eu vou acabar
com sua vida quando sair daqui. Vou te ferrar tanto que
você vai precisar de uma cirurgia anal!
Lobo riu. Nunca tinha conhecido uma garota tão valente.
Tão valente que chegava a ser burra. Ele era um cara legal,
mas se ela falasse daquele jeito com os caras barra-pesada
do bairro, eles arrancariam os dentes dela. Depois usariam
a boca macia para outras coisas.
— Você num vai ferrá ninguém. Vai ficá aí até o cara do
aspirador mandar eu soltar você.
— Como é que é? Seu animal! Você não tem a menor
noção que isso aqui é um sequestro, tem? Quando
prenderem você, vai demorar uns trinta anos para sair da
cadeia e... HUMMPH!
— Chega moça! Acabou de perder o almoço.
Lobo recolocou também a mordaça e dessa vez tomou
cuidado com as pontas dos dedos, aquela vaquinha tentou
mordê-lo. Encostou a porta e saiu. Patrícia continuou
protestando na escuridão, se remexendo na cadeira e
ameaçando se atirar no chão. Lobo sentiu pena, mas não
voltou a entrar na sala. Estava com medo daquela garota.
PODERIA TER SIDO DIFERENTE (I)
 
No dia seguinte ao desaparecimento de Patrícia, a
escola recebeu várias visitas. A primeira dessas foi a do
delegado, Zétia queria falar com Davi e com outros garotos
e garotas entre primeiro e segundo colegial. Todo mundo
estava um pouco assustado, principalmente quem tinha
culpa no cartório, era o caso de Edmund Rovre. Edmund
tinha dezessete anos e mais dinheiro no banco que o pai,
ele vendia drogas na escola, mas era bem mais fanfarrão
que traficante. Mesmo assim ele jogou o que tinha no
armário esgoto abaixo.
Para a maioria dos garotos, a agitação era bem vinda,
geralmente nada acontecia em Nova Enoque que não fosse
estourar o pneu de um carro, mas aqueles últimos dias
estavam sendo empolgantes.
Perto das nove da manhã, Zétia tinha terminado com
Davi e estava com a papelada do desaparecimento pronta
— o que dava a ele autorização para varrer a escola de cima
a baixo. Contudo, ele duvidava que um daqueles garotos
tivesse envolvimento direto com o caso. É, mas ele também
não achava que Roger Minotto teria coragem de fazer todas
aquelas atrocidades com uma garota doce como Milena.
Zétia preencheu as últimas anotações do depoimento
informal de Davi e chamou pelo diretor Antony Granville. Ele
estava do outro lado da porta da diretoria; na secretaria.
— E então? Teve sorte? — perguntou, assim que entrou.
Zétia não parecia empolgado.
— Não muito. O garoto não teve nada a ver com isso,
estou convencido. Ele não é um dos durões, não aguentaria
duas conversas como a que tivemos. Segundo suas próprias
palavras, Davi mal reparava nela. Estava surpreso em ver o
seu nome envolvido no que aconteceu.
Claro que sim, filho da mãe...
Granville juntou um pouco as sobrancelhas grossas e
coçou o queixo de bumbum.
— E o que exatamente aconteceu?
Zétia respirou fundo mais uma vez. Detestava ficar
repetindo a mesma história.
— A filha de Miriam, nossa prefeita, desapareceu. Pelo
que descobri até aqui, ela não tinha problemas com as
notas, não usava drogas, não tinha namorados ou inimigos.
O diretor deu uma risadinha sem vontade.
— Sobre essa última afirmação, você deve estar errado.
Alguém como Patrícia Guerra, filha da prefeita da cidade,
tem mais inimigos que um mafioso.
Notando a expressão desentendida de Zétia, Granville
explicou.
— Ela é uma adolescente e é popular. Essa combinação
traz uma inveja terrível.
— O senhor acredita que um garoto daqui da cidade,
dessa escola, teria coragem para desaparecer com ela?
Granville suspirou, pareceu cansado demais quando
disse:
— O senhor ficaria chocado com a audácia de alguns
deles.
 
NA SALA “TERCEIRA C” da mesma escola, que estava
vazia naquela manhã, porque os garotos da última turma
tinham um simulado de vestibular na Escola Técnica Rubião
Ledo — algum cretino achou que retirar os alunos de onde
estavam acostumados, os colocaria um pouco mais perto da
tensão do dia da prova —, Alan tinha seus próprios
problemas com a audácia à qual o diretor Granville se
referiu.
Alan Sérpia estava sozinho, terminando de montar sua
maquete de vulcão para a exposição da feira de ciências da
sala. Estava empolgado, seu projeto era bom e se ele
conseguisse a pontuação que esperava (nada menos que
um nove, por favor!) estaria livre das últimas provas.
A base do vulcão era feita de Argila. Ele mesmo foi atrás
do barro, em uma área brejeira da cidade. Depois de deixar
curar, escavou a peça como precisava, deixando uma
galeria oca para colocar o material que incendiaria. A
princípio pensou em pólvora, mas o computador (que falava
com ele regularmente mesmo sendo um caso clássico de
doideira) trouxe uma nova combinação de ingredientes com
soda, gordura e plástico (tampas derretidas de caneta Bic
junto com óleo de cozinha). E também havia o último
ingrediente: um potinho cheio de sílica, pó de alumínio e
ferrugem. Segundo esperava, a coisa transformaria o
pequeno vulcão em um inferno de fogo e colocaria Murilo e
os outros babacas em um penico.
Mesmo antes do computador falar com ele, Alan perdeu
muito tempo naquela maquete. Deixou o videogame de
lado, esqueceu filmes e passeios ao shopping de El
Dourado, perdeu até a festa de Valéria Norato que era a
menina mais bonita da sala. Mas valeria à pena. O projeto
ficou tão, mas tão incrível, que ele acabou deixando de lado
a lição que pretendia dar em Murilo Torque. Alan desistiu da
vingança e do potinho especial com sílica e poeira de metal
— mas o manteve em seu bolso. Segundo o computador, o
último ingrediente do vulcão mostraria que Alan não era
alguém para se provocar. Anular o plano inicial também
teve a ver com o delegado circulando pela escola. Os
escrotos que o perseguiam manteriam distância. Bem, isso
era o que Alan pensava quando a porta da sala vazia
mostrou que certas partes do destino não podem ser
modificadas.
— Tá fazendo o que aí, Mané?
Era Murilo e não estava sozinho. Anderson e um garoto
que pesava uns cem quilos entraram na sala atrás dele.
Antes que os três entrassem, Alan foi para frente da
maquete que descansava em cima de uma das carteiras.
Ele tinha pedido para um dos professores para deixar seu
projeto na sala vazia, justamente para escapar dos animais
que o emboscavam agora.
— Nada demais. Já tô saindo.
— Não tão depressa, Alan Sapo. Primeiro eu quero ver o
que é isso aí atrás.
— É só um projeto bobo, não tem nada de interessante
nele.
— Quem decide isso sou eu — disse Murilo e avançou.
Alan não se rendeu e continuou onde estava. Olhou para
Anderson, pedindo o pouco do bom senso que não viria
salvá-lo.
— Sai do meu caminho, esterco.
Murilo o tirou com um empurrão e Alan-Sapo acabou se
enroscando em uma das carteiras, caiu de bunda. A carteira
foi para cima dele, e a carteira que sustentava seu projeto
quase fez o mesmo. Quando estava prestes a tombar,
Murilo a estabilizou.
— Não põe a mão nisso, tô avisando! Esse projeto é
meu!
— Que gracinha! Então o projeto voltou a ser
interessante?
— Qual é, Murilo? Eu preciso dele, preciso dos pontos
para passar de ano.
Murilo olhou para Anderson.
— Você viu? Ele precisa passar de ano. O que você acha
disso, Anderson? E você, Buba?
Quem respondeu foi Anderson.
— Todo mundo precisa passar de ano.
— Olha só, bostinha, tenho um trato para você. Esse
aqui — tirou do bolso uma geringonça feita com um
carretel, elásticos e uma vela — é o meu projeto de
ciências. É um carrinho.
— Isso aí? — Alan perguntou, e não poupou uma
risadinha cínica.
— Boca fechada ou vai perder uns dentes, Sérpia! —
disse o gordo-Buba. Seu nome verdadeiro era Luizão, e ele
era um imbecil. Até dois anos antes, quem apanhava nos
corredores e bebia água da privada era ele, mas Luizão
começou a engordar e ficou grande demais para ser um
inimigo, então os caras o chamaram para o time.
Murilo chegou bem perto da maquete.
— É bem realista — disse. — Nem parece que foi feita
por um Zé Bosta como você.
— É feito de argila. Eu mesmo fui até o brejo para
apanhar — explicou.
— Devia ter ficado por lá, seu lesma — disse Anderson.
Sérpia tentou sair do chão, mas a criatura obesa chutou
o braço em que estava apoiado. Alan gemeu, voltou a cair e
ficou onde estava. Murilo teve outra ideia brilhante.
— Duvido que essa coisa aguente um soco.
— Não faz isso!
— Cala a boca, lesma! — Anderson.
Eles estavam nervosos naquela manhã. Para Alan,
garotos eram como abelhas. Quando uma delas fica
nervosa, libera algum tipo de substância, feromônios que
fazem o mesmo com as outras. De uma hora para outra, a
colônia inteira está daquele jeito, afiando os ferrões e
disposta a morrer para enfiá-lo em alguém. O caso da filha
da prefeita, a menina do primeiro colegial, tinha deixado
toda a escola à flor da pele, a presença do delegado
transtornou o resto.
— É perigoso! — alertou Sérpia.
— Vou te contar. Eu gostei mesmo dessa porcaria, mais
ainda porque é perigosa. O trato é esse: eu fico com o seu
projeto, você fica com o meu, e nós não damos uma surra
em você hoje, que tal?
— Nem ferrando, cara. E se botar a mão em mim, vou
contar pro delegado Zétia!
— Ah vai? Faz isso, seu merda. Faz isso que eu peço pro
meu velho, o cara que manda nessa cidade toda, mandar o
delegado esquecer o que você disser. E ele vai esquecer,
como esqueceu um monte de coisas antes.
Alan aproveitou uma distração de Buba Gordo e saiu do
chão. Correu em direção a Murilo. Estava disposto a acabar
com tudo e partir para um corpo a corpo com ele. Ganharia
um olho roxo, mas e daí? Perto de perder o projeto e suas
férias antecipadas era uma baita vantagem. Ele armou o
braço e mandou!
E nem chegou perto, pobre Alan. Ele nunca tinha
acertado um soco em alguém que não fosse feito de
plástico e cheio de ar. Com o impulso, se desequilibrou. O
que faltou para devolvê-lo no chão veio com um empurrão
nas costas. Anderson. Alan caiu todo enroscado nos metais
e ganhou um monte de chute dos três. Gordo batia com
mais vontade, parecia que fazendo isso se esquecia de seu
próprio passado de bosta. Ele já esteve naquele chão
maldito, tomou os mesmos chutes e escutou provocações
piores (ninguém ganha de um gordo nessa especialidade).
— Você vai ficar aí, Alan. E vai me ensinar a usar essa
coisa.
Alan limpou os olhos molhados, respirou fundo e pediu o
brinquedo de Murilo. Enfiou a mão no bolso e tirou um
vidrinho transparente com um pozinho esquisito dentro
dele.
— O que é isso?
— Ingrediente secreto. Quando você colocar, o vulcão
explode de um jeito alucinante.
— E é seguro, senhor Alucinante? — perguntou
Anderson.
— Se quiserem tirar um dez, vão ter que confiar em
mim.
PODERIA TER SIDO DIFERENTE (II)
 
Cinco minutos depois, estavam dentro da sala de aula. A
turma tinha sido dividida de três em três para a
apresentação dos trabalhos, Alan optou por ficar sozinho. A
ideia do vulcão já estava em sua cabeça fazia algum tempo,
ele tinha lido sobre o projeto em uma revista e quando a
professora deu a data da apresentação, ele já estava na
metade. Mas ainda faltava a propulsão, a erupção. Isso veio
do computador que falava com ele. Alan não precisava
aceitar o último ingrediente, o projeto explodiria de
qualquer maneira, mas segundo o computador, adicionar os
elementos especiais traria a justiça que ele tanto queria.
Alan pressionou ENTER e o computador respondeu o
mesmo, mais de dez vezes; JUSTIÇA, JUSTIÇA, JUSTIÇA...
As primeiras carteiras da sala estavam com os projetos
em seus tabuleiros. A turma de Isabel Dentão tinha feito
uma maquete de instalação elétrica residencial, com
lâmpadas em série e em paralelo, transformadores e tudo.
Era um projeto bem legal e quem deve ter montado quase
tudo foi o pai dela, seu Tenório (ele era eletricista, claro).
Outro grupo, o de Fabiano Poente, fez uma estação de FM
pirata. Outro bom projeto, mas que dificilmente passaria
pelo crivo da professora, era legal demais — e também
avançado demais. Oh, e tinha o computador experimental
da equipe de Hashio Naruto. Não era nenhum Apple I, mas
era um sistema rudimentar de perguntas e respostas. Esse
tinha chance. Além desses, nenhum merecia muito
destaque. Quase todos eram feitos de cartolina, isopor e
objetos reciclados. Projetinhos ordinários.
O carrinho-carretel, que era o projeto de Alan agora,
estava em uma das mesas e todo mundo que dava uma
olhada ria dele. Até a professora riu quando viu, riu tanto
que derramou um pouco daquela mistura inseticida — que
chamava de café — no chão. Ao lado do carrinho-carretel
estava o vulcão.
Devia ter quase um metro de altura e era tão pesado
que Alan o trouxe para a escola adaptando rodinhas. Aquele
troço já tinha vencido a competição antes mesmo de
começar a ferver. Os três bastardos ficavam por perto,
cercando o projeto e principalmente Alan, para que não
desse com a língua nos dentes. Alan fervia por dentro, louco
para meter fogo naquilo e colocar o plano do senhor
computador em ação. Mas não demoraria muito, não
demoraria nada.
— Antes de iniciarmos, quero dar uma palavrinha com
vocês, tudo bem? É sobre a visita do delegado Zétia.
Em vez de olhar para a professora, Murilo olhou para
Alan. Deu um soco na palma da mão esquerda. Anderson
colocou o indicador na frente da boca e foi flagrado —
afastou a mão quando a professora percebeu.
— Eu disse alguma coisa engraçada?
— Foi mal, fêssora... — disse Anderson. Em seguida,
Murilo deu uma cotovelada em sua cintura que o fez
arquear.
— Agora que os engraçadinhos ficaram quietos,
podemos conversar — disse Clélia.
Clélia Braga era a professora que mais sabia se impor
dentro de uma sala de aula do Municipal. Era negra, segura,
tinha cabelos escovados e sempre usava saltos médios nos
pés, que a deixavam bem alta. Não era muito magra, mas
não chegava a ser gorda, Clélia tinha um corpo mais forte
que o padrão, panturrilhas musculosas e uma voz decidida.
Sua figura por si só imporia respeito, mas ela ainda tinha
uma história.
O pai de Clélia, Garcia Braga, foi um ativista negro
durante toda a vida. Opunha-se ferozmente à elite branca e
ao sistema político da cidade que mantinha os negros do
lado de fora desde sempre — e quando negros estavam por
dentro era para cozinhar, servir ou limpar. Garcia batalhou e
conseguiu mais progresso para os negros de Nova Enoque
em dez anos do que haviam conseguido até então. Seu
único erro foi se meter com os fazendeiros da cidade
quando baixaram os salários dos trabalhadores rurais ao
ponto deles não conseguirem se sustentar. Garcia tinha
contatos, procurou advogados aliados e conseguiu reverter
tudo com a ajuda do estado — que estava sensível a
movimentos revolucionários. Quem não gostou foram os
fazendeiros, claro. Então eles arrumaram um acidente para
Garcia. Viajava de Nova Enoque para Três Rios quando em
um descuido caiu do trem que o transportava. Morreu
fatiado pelas rodas de aço dos vagões. Mas antes disso,
Garcia já era uma lenda.
A tradição ficou com a professora que não tinha vontade
ou tempo de seguir os mesmos passos. Preferiu ficar nas
escolas e tentar amansar os homens enquanto eram
pequenos e frágeis. Clélia continuou:
— O delegado Zétia veio até aqui para procurar
evidências. Estou falando de Patrícia Guerra, a menina
bonita do primeiro colegial. Acho que todo mundo aqui sabe
que ela é filha da prefeita Miriam.
A única ruiva da escola ergueu o braço.
— Pode falar, Estér.
— O delegado acha que alguém da escola está
envolvido?
— Não diretamente, mas o delegado está procurando
pistas. Ele pretende falar com alguns de vocês e eu gostaria
de pedir a colaboração de todos. Pensem nessa garota
como pensam em alguém da família, certo?
Aqui e ali, rostos preocupados. Murilo tinha mais
motivos para isso, afinal, sendo filho de Orlando Torque,
tudo soava como uma indireta (uma indireta bem no meio
do queixo). Anderson também não estava nadinha à
vontade, e o gordo-com-seios ao lado dele, menos ainda.
Estavam aprontando alguma e, segundo as impressões
certeiras de Clélia, tinha uma estreita relação com outro dos
garotos, um miudinho que estava com o uniforme sujo de
poeira. Clélia resolveu aproveitar a visita do delegado para
dar alguma justiça a Alan Sérpia.
— Eu imagino que poucos alunos da escola têm motivos
para se preocupar com a visita da polícia. Mesmo assim,
caso alguém esteja escondendo alguma coisa — e não me
refiro somente ao caso de Patrícia Guerra aqui —, peço que
pensem melhor. Gente, perseguir colegas é coisa séria e já
é considerado infração faz tempo, aproveitem esse
momento e botem a mão na consciência. Nós, os
professores... Bem, pessoal, nós sabemos de praticamente
tudo o que acontece pelos corredores e banheiros da escola,
mas preferimos não nos envolver diretamente. Caso tenham
alguma denúncia a fazer — violências, perseguições, maus
tratos —, podem me procurar. Ou se preferirem, tratem
diretamente com o delegado.
Clélia deu um tempo para que os garotos digerissem
suas palavras. Era uma chance e tanto, ela gostaria de ter
tido a mesma oportunidade quando tinha a mesma idade e
recebia cartinhas ameaçadoras endereçadas à Nêga Fedida.
Mas seus professores achavam que o racismo não existia,
era só brincadeira de criança.
— Alguém?
Todos estavam calados, inclusive os garotos que
apanhavam e precisavam pagar para usar o banheiro.
Alguns pareciam momentaneamente encorajados, mas logo
voltavam a baixar os olhos. Não seria tão inteligente sair
por aí contando que bebeu água da privada ou levou uma
surra de apagadores sujos. Resolveria na hora, alguém
levaria uma advertência e ficaria sem mesada, mas... E
quanto ao dia seguinte? Quando os calhordas mirins se
juntassem para espatifar os delatores? Não, ninguém gosta
de dedos-duros, e não existe isso de nova identidade nas
escolas primárias.
— Excelente. Já que todos somos pessoas inocentes e
de bom coração, vamos aos projetos. Preciso de um grupo
para começar.
Murilo se adiantou, ergueu o braço e pediu para ser o
primeiro. Clélia tinha outra ideia na cabeça. Se aquele
vulcão enorme do filho do vereador Torque funcionasse
como ela esperava, esmagaria qualquer concorrência; isso
desestimularia os outros garotos a mostrarem seus projetos.
Poxa, até ela queria ver aquela geringonça funcionando!
Assim, fez o contrário e escolheu o projeto mais peidorreiro
para começar.
— Alan, o que acha do seu projeto?
— Eu?
— Tem algum outro Alan na sala? — ela perguntou
sorrindo. Alan apanhou o carrinho e levou para cima da
mesa da professora, no centro da sala, na área mais
elevada onde os professores davam aula.
Alan estudou aquela coisinha escrota em suas mãos
com a repugnância que merecia. Era ridículo e, além disso,
era inútil. Qualquer criança incapacitada pela radiação
mortal de Chernobyl produziria algo melhor. Ele olhou de um
lado, do outro, olhou para seu vulcão... Que se fodessem, se
eles queriam tanto aquele vulcão, que se matassem com
ele! No brinquedo caquético de Murilo, ele deu cordas
girando um palito de fósforos preso ao carretel e à parafina
do outro lado. Estava bem tensionado, e Alan colocou aquilo
na mesa. O carrinho — carrinho seria um elogio elegante —
caminhou cinco centímetros, então o elástico estourou e ele
parou onde estava. Ferrado para sempre.
— Já terminou?
— Acho que o motor fundiu — disse Alan, ciente que sua
nota fundiria junto.
— Pode nos dizer o que era esse projeto?
O que uma bosta dessas seria?
— É um protótipo — enrolou. — Tensão convertida em
força mecânica.
— Interessante — disse Clélia. Mas não achava isso de
verdade, como todo mundo que viu a encenação sebosa da
coisa tentando andar, ela achava o carrinho uma tentativa
ridícula e preguiçosa de apresentar um projeto feito às
pressas.
— Posso desenvolver melhor, professora.
Clélia não gostou dessa.
O garoto era legal, Alan sempre se esforçava e tinha
boas notas, prestava atenção às aulas. Ela tinha esperança
que seu projeto fosse ser um dos melhores. E agora ele
queria mais tempo? Oh, não...
— O senhor teve tempo para seu projeto, senhor Sérpia.
O que está feito, está feito. Sua nota será proporcional ao
esforço na criação do projeto. A vida é assim, Alan:
precisamos cumprir prazos. Além disso, eu não posso
subestimar você, todos nessa sala têm a mesma
capacidade. Sua ideia base foi razoável, mas podia pelo
menos ter testado o projeto, não acha?
— O Bill Gates testou o Windows e não adiantou nada
também...
— Oh, Bill Gates... Tá certo. Recolha seu veículo e deixe
o nosso Steve Jobs japonês apresentar seu projeto, sim?
Alan queria um buraco bem fundo para pular dentro.
Murilo estava bem à sua frente, com seu vulcão. O desafio
que consumiu tempo, boa vontade e dinheiro para ser
produzido. Era tão legal, puxa, o que ele não daria para
mostrar seu projeto! Mas apanhar não era legal. Era mais
esperto fazer o que fez, deixar que a natureza seguisse seu
curso. Que aqueles palhaços se dessem mal de verdade
pelo menos uma vez na vida.
A pedido da professora, Hashio Naruto subiu com sua
parafernália semidigital. Parecia uma caixa de sapato com
um conjunto de cartões com perguntas e respostas de cada
lado e dois fios escapando — um iria para a pergunta, outra
para a resposta. De cada lado da caixa havia cinco
respostas para cada pergunta. Quando a resposta estava
certa, uma luz vermelha, um Led acendia. Se errasse, nada
acontecia. Ele começou e... enfim... O negócio era sem
graça demais. Na terceira pergunta, Clélia agradeceu e o
tirou de lá. Elogiou o projeto, disse que funcionar bem era
tão importante quando o projeto em si (e Alan cavou mais
um pouco em seu buraco) e, quando se livrou de Hashio,
chamou o pessoal da instalação elétrica.
Mais fios, mais cabos e mais inconsequência pré-
adolescente.
Isabel subiu e ficou um tempo arfando com a boca
aberta, como um camelo sem água. Ela tinha grandes
dentes na arcada superior, tão grandes que não a deixavam
fechar a boca direito. Coitada. Também era magra demais e
antes de ser chamada de Isabel Dentão, era chamada de
Rascunho. Ser chamada de Dentão era menos doloroso,
desviava a atenção do resto do corpo.
Só para montar a coisa toda, com fios e interruptores no
lugar certo, ela e mais dois garotos do grupo levaram mais
de dez minutos. Clélia já estava impaciente, chegou a tomar
outro café para aditivar o sangue.
— Nosso projeto é uma instalação domiciliar completa —
disse Dentão.
Os caras no fundo da sala continuavam conversando e
só pararam quando Clélia ameaçou tirar pontos da
caderneta. Murilo estava perto deles, mas não falava muito,
estava concentrado em Alan Sérpia. Aquele bostinha ainda
podia entregar todo mundo, ainda mais com o delegado
rondando a escola.
— Continuando — disse Dentão, e alguém no fundão a
imitou. Clélia cozinhou o fundo da sala com os olhos. Dentão
seguiu em frente: — Nós fizemos uma instalação com
fusíveis, lâmpadas diferentes para cada quarto, instalação
em série e em paralelo, e blá, blá, blá...
Eles mostraram todo o projeto e, bem, era melhor que
as duas merdas anteriores. Estavam com a nota garantida,
Professora Clélia tinha gostado do que viu. O pessoal da
Dentão fez até apostilas explicando tudo, apostilas com
desenhos, extremamente didático. Mas então a ganância
falou mais alto e a soberba de Isabel pediu para ir além
naquela apresentação.
— Não acho uma boa ideia mexer com energia da
tomada. A rede da escola é duzentos e vinte, um choque
pode ser mortal.
— É seguro, professora. Fizemos isso em casa — disse
Isabel.
Mais uma maluca por popularidade. Isabel tiraria as
roupas na frente da sala se isso a colocasse entre os dez
mais em vez de o último lugar da fila. Os garotos ao lado
dela, os colegas de grupo, não pareciam tão seguros. Um
deles, com cabelo armado e aparentemente cortado por um
cego, tinha se afastado quando ela mencionou corrente
alternada. Mas a empolgação da sala foi tão alta e legítima
(e quem não gosta de um pouco de perigo) que Clélia voltou
atrás.
— Tem certeza que é seguro?
— Totalmente — disse Isabel.
Clélia acenou a cabeça para não precisar dizer sim.
Isabel apanhou um fio que saía da parte de trás da maquete
e o esticou até a única tomada da sala.
— Não alcança — ela disse.
— Graças a Deus — suspirou Clélia. Mas ninguém ouviu
de onde ela estava.
— Pode usar minha extensão — disse Junior. Um garoto
gordo que tinha um projeto de estufa artificial.
Isabel agradeceu, e um dos seus parceiros desceu do
tablado para pegar a tal extensão. A maioria dos garotos
estava recuada, teve gente que foi para perto da porta. A
professora descruzou os braços e sacou uma goma de
mascar da bolsa, mastigar a acalmava. Isabel tomou o cabo
para si e foi até a tomada.
— Tudo pronto? — perguntou aos dois garotos que
ficaram perto da maquete. Eles pareciam assustados. Um
deles, o menor e de cabelos espetados que tinha raspado a
cabeça por causa de piolhos há pouco tempo, fez que sim
com a cabeça. Isabel sorriu como se tivesse seu grande
momento e socou os pinos na tomada.
FLOOP!
A luz da sala oscilou, os ventiladores pararam e Clélia
correu antes que algo pior acontecesse. Olhou de perto o
que acontecia em sua mesa. A casinha não chegou a pegar
fogo, mas alguns cabos derreteram, soltando um fedor
horrível de plástico queimado. Uma pequena nuvenzinha
saiu de dentro da casinha sem teto. As meninas da sala
gritaram e os caras riram em uma mistura de empolgação e
desespero. Estavam excitados e uma movimentação quase
histérica começou em segundos.
Mas Clélia estava atenta, ela correu para a tomada e
apanhou o cabo que estava quente pra caramba. Arrancou
com um puxão e salvou a vida de todo mundo. Pelo menos
por enquanto.
ERUPÇÃO
 
Mais dois projetos sem graça foram apresentados depois
que o acidente elétrico foi contornado pela professora
Clélia. Nada que merecesse uma menção.
— Quem falta apresentar? — Clélia perguntou, quando o
tablado ficou novamente vazio.
Faltavam três grupos, um deles era de química —
apresentariam a reação mais manjada do mundo, tintura de
Sangue do Diabo. Esse não seria o último, mas também era
chato demais para entrar em ação agora, Clélia queria algo
que mantivesse os garotos empolgados.
— Aqui — ergueu a mão Fabiano Poente.
Seu projeto era o tal rádio pirata. Era legal também,
mas... Era meio estático, meio sem emoção, principalmente
meio ilegal. Os melhores continuavam sendo seu rádio e o
vulcão de Murilo Torque e Anderson. Notando a cabeça
baixa de Alan Sérpia, a professora tentou se livrar da
escolha com o pretexto de animá-lo.
— O que acha, Alan?
Ele foi apanhado de surpresa.
Para Clélia, o pior problema de toda aquela manhã é que
Alan não estava bem. Ele era um dos melhores alunos, um
dos mais participativos nas aulas inclusive, e não bastasse o
projeto ridículo que apresentou, estava calado e com os
olhos no relógio, contando os minutos para que a aula, a
apresentação, ou todo o resto do mundo terminassem.
— O que eu acho do quê?
— Quem deve se apresentar agora?
Murilo o encarou e costurou sua boca. Alan não
conseguia olhar para ele, não conseguia nem pensar nisso.
Seus braços ficavam arrepiados quando ele pensava em
Murilo e no que ele poderia fazer se ficasse irritado demais.
Anderson também não era fácil. Uns meses atrás, a polícia o
apanhou pichando o muro da prefeitura. Levaram-no para a
delegacia, Anderson ficou mais de quatro horas sem dizer
uma palavra, isso com um monte de policiais — disseram
que até o delegado — o pressionando. Acabaram ligando
eles mesmos para o pai dele, médico obstetra, Evandro
Rocha. Disseram que Anderson não arregou nem para o
velho.
Alan já ia dizendo que não sabia, mas o celular começou
um escândalo em seu bolso. Ele olhou para a perna direita
quando o aparelho começou a tremer. Mais essa agora,
pensou Clélia. O combinado na escola é que nenhum celular
ficaria ligado durante as aulas — só mesmo em um caso de
emergência, mas o professor deveria ser avisado antes.
— Pode atender, senhor Alan.
— Desculpa, minha avó tá meio ruim de saúde.
Ele enfiou a mão direita no bolso enquanto todo mundo
ria. Alan estava sendo um macaco idiota naquela manhã
inteira. Ninguém entendia o motivo, mas ele ficava
engraçado quando estava com medo. Alan deslizou os
dedos sobre a tela do aparelho e leu uma nova mensagem:
“AGORA! FAÇA O QUE DEVE FAZER!”
Com medo do que tinha acabado de ler, tornou a
guardar o aparelho no bolso.
— Tudo bem com ela? — perguntou Clélia.
— Com quem?
— Alan! Quem da sua família está doente?
— Ah, sim. Minha tia melhorou bastante. A mensagem
era da minha mãe.
— Tá feia a coisa hoje... — disse Fabiano. Clélia olhou
torto para ele enquanto o resto da classe ria. Para reassumir
de vez o controle, ela pressionou mais um pouco o rei da
esquisitice daquela manhã.
— Preciso que decida o projeto seguinte.
— Quero ver o projeto do Murilo. Vamos ver o que esse
monte de barro faz — disse Alan.
Um roaming provocante começou entre as carteiras.
Murilo ficou vermelho, queria partir para cima de Alan, mas
Anderson apanhou seu braço com força e o lembrou que
eles ainda estavam dentro da sala de aula — e sem os
pontos na caderneta que aquele monte de barro traria.
Murilo sacudiu o braço e se libertou. Pediu ajuda de
Anderson e de Luizão-Gordo-Buba e levou aquela coisa
enorme até a frente da sala.
— Como isso pesa! — disse Luizão.
— Agora você sabe como seus pés se sentem! — disse
Murilo. Anderson continuou quieto e fazendo força.
— Vão com calma! Não deixem cair antes de assistirmos
a apresentação — Clélia.
Os três se arrebentavam para subir a maquete e colocá-
la em cima da mesa. Alan foi para perto da porta e dividiu
um espacinho com Clara e Aline — duas irmãs Gêmeas que
estavam por lá desde o experimento elétrico de Isabel
Dentão.
— Força! — disse Murilo. Enfim os três colocaram a peça
sobre a mesa da professora. Como a tirariam de lá não
importava muito, Murilo imaginava que quando a lava (os
fogos de artifício de dentro) queimasse, o peso diminuiria
bastante.
— Essa coisa é segura meninos? Quanto material tem aí
dentro?
Sem saber o que dizer, Murilo procurou o pai da criança.
Alan estava pálido, muito branco mesmo. Ele deu de
ombros. Seria pedir muito, depois de tudo, que ele
respondesse o que demorou semanas para aprender. Só se
fosse muito burro. Anderson acabou resolvendo.
— Pesa assim por causa da argila. Toda a parte de fora
foi feita com barro do brejo, nós mesmos fomos buscar.
O pessoal da sala ficou surpreso, ficaram empolgados. Ir
até o brejo, se sujar todo, só para montar uma maquete?
Ok, aqueles três podiam ser uns desgraçados violentos com
os outros garotos, mas deram duro de verdade para
produzir a miniatura de vulcão.
— E não tem perigo, professora. Nós testamos dentro de
casa, só sai uma fumacinha.
— Não querem ir lá pra fora?
— Não, o vento pode atrapalhar a direção da erupção —
improvisou Luizão.
Atrapalhar a erupção? Quem eles pensavam que eram?
Spielberg? E o mais impressionante é que a explicação
convenceu todo mundo (principalmente a professora que
tinha compromisso com seu namorado dez anos mais jovem
logo depois daquela aula. Não, não... atrasar não era uma
opção). Só não convenceu Alan-Sapo que tinha mais com
que se preocupar.
Olhar para aqueles três escrotos trouxe muita coisa ruim
para fora. No primário, quando ele conheceu Murilo, eles se
tornaram os melhores amigos. Murilo era uma criança
adorável para qualquer adulto, mas com os garotos ele
começou a ser mais próximo de um carrasco. Alan não, Alan
era doce e bobo, e quando Murilo não conseguiu convencê-
lo a matar o gato de estimação de um garoto que implicou
com ele, também o tornou seu inimigo. Alan pagava a conta
até hoje. Puxadas na cueca, empurrões, tachinhas na
cadeira, provocações, purgante no refrigerante, e mais,
muito mais. Anderson veio depois. Uniu-se a Murilo na
terceira série e aprendeu depressa que implicar com Alan
era pré-requisito para ter sua amizade.
Agora os três indecentes tomavam mais do que era seu.
E eles estavam felizes, vitoriosos. Alan sentia-se violado,
pilhado de um jeito que não havia volta. E também pensava
no que viria a seguir, embora não pudesse dimensionar o
estrago. Eles que se fodessem, não era o que diziam a ele?
Que se fodessem.
— Que se fodessem...
— Disse alguma coisa, Alan?
— Não. Tava pensando em voz alta — respondeu a Aline.
Clara pediu que Aline prestasse atenção nos garotos do
vulcão. Murilo parecia perdido na frente da sala.
— Droga — ele disse, olhando para a boca do vulcão.
— Que foi agora? — Anderson perguntou.
— Não sei acender essa porcaria.
— Tá brincando? O veadinho não disse?
— Mais ou menos, eu não entendi direito.
— Vê se não tem nenhum pavio solto — disse Luizão. Já
estava vermelho e suado, pensando onde estava com a
cabeça quando aceitou se juntar àqueles caras. Logo
lembrou. Murilo era encrenca, mas era filho do vereador que
mandava em metade da cidade. O resto ficava com o pai de
Anderson, que tirava todo mundo da barriga da mamãe. É...
Não tinha sido má ideia, mas às vezes, eles o deixavam
irritado com tanta falta de planejamento. Do modo como
agiam, acabariam presos antes dos vinte.
— Eu já olhei, gênio. Não tem pavio nenhum!
— O que estamos esperando? — perguntou Clélia.
— Enrola ela! — Murilo pediu a Luizão. Os três estavam
de costas, vasculhando o vulcão.
— Eu? Por que eu?
— Porque você é gordo! Agora faz o que eu tô
mandando!
Luizão sacudiu a cabeça, bufou e obedeceu. Dos três,
era o que mais precisava da nota, então não era tão injusto
que passasse algum ridículo. Ajeitou a calça trazendo a
cintura para perto do peito e secou a testa com as mãos.
— Esse aqui é nosso vulcão.
— Já percebemos isso, Luiz. Por que não nos apresenta
os materiais que usaram?
— Materiais?
— É. Além da argila que estamos vendo — Clélia
explicou.
— O que eu falo? — disse, cochichando com Anderson
que estava agachado logo trás.
— Enrola ela, pô. Fala que usou tinta acrílica e que
esculpiu o fundo. Inventa alguma coisa!
Na porta, Alan se deliciava. Era bom ver o trio estupidez
tendo o que merecia. O problema é que por mais que eles
se enrolassem e dissessem aquele monte de lengalenga,
quando acendessem a coisa, nossa! Ninguém ganharia
menos que um dez. Mesmo que o gordinho ali gaguejasse
sem dizer uma única palavra certa, eles se dariam bem. Ok,
mas isso não continuaria depois que Murilo, o idiota
prepotente, colocasse a sílica dentro do buraco.
— Nós usamos barro para o molde, e pintamos toda a
parte de fora com tinta acrílica.
— Parece guache — disse Marina, uma menina das
primeiras fileiras.
— Usamos guache também. Para fazer a parte de baixo,
tudo isso verde aqui é guache.
— Mas parece massinha de modelar — disse Paulo
Pereba. Sentava na segunda carteira, logo atrás de Marina.
Ele já tinha tomado uns cascudos do gordo gago, não
perderia a chance de humilhá-lo.
Depois disso, o Deus dos canalhas foi providencial.
— Aqui. Tá vendo aqui? — disse Murilo para Anderson. É
o fósforo que vai acender essa coisa! — Em seguida, antes
que Luizão dissesse mais besteiras: — Tudo pronto aqui,
professora.
Anderson virou de frente e encarou Paulo Pereba. O
garoto se apavorou e se recolheu na carteira, como um
ermitão. Marina também ficou quieta, mas por outro motivo:
ela era louquinha por Anderson Rocha.
— Então vamos com isso. Ainda temos dois grupos.
Outra vez, Anderson chegou perto do ouvido de Murilo:
— Tem certeza que vamos fazer isso? — Murilo riu e sacudiu
uma caixinha de fósforos que veio de brinde junto com o
projeto.
Tarde demais. Murilo acendeu a coisa.
 
COMEÇOU DEVAGAR, como deve começar uma erupção
de verdade. Ninguém na sala reagiu muito, apenas alguns
suspiros. Uma fumacinha escura começou a sair da boca do
vulcão. Ficou assim por uns dez segundos. Murilo estava
bem perto, tentando olhar para dentro da cratera sem ter a
menor noção do que viria a seguir. Luizão e Anderson eram
mais cautelosos e não chegavam tão perto.
— Só isso? — perguntou Mário. Filho do dono do posto
de gasolina Mercúrio.
— Espera aí, está acontecendo alguma coisa — disse
Isabel Dentão. No fundo, estava torcendo para aquela bosta
derreter e todo mundo tirar zero. Por enquanto, os únicos
projetos a darem um fiasco tão grande tinham sido o
carrinho-caracol do Sérpia e o dela.
Começou com um estalinho. Alguma coisa sofreu
ignição dentro do vulcão.
— Uau! Isso é demais! — tietou Clélia, quando a
fumacinha mudou do fuliginoso para um vermelho bem
forte. Alan havia caprichado e colocado cheiro de morango
na fumaça colorida.
E veio outro estouro, um pouco mais forte. Alan deu um
salto distraído para trás, bem curtinho.
Em seguida um chiado começou na parte de dentro da
maquete. Fraquinho e depois mais forte. Ia aumentando aos
poucos, e na mesma proporção, a empolgação da classe.
Todo mundo estava achando o máximo, os CDF’s, a turma
do fundão, a professora, todo mundo mesmo! Menos Alan
Sérpia. Alan queria um vulcão de verdade.
O que veio a seguir não impressionou Alan, mas deixou
o pessoal sem fôlego.
A boca do vulcão começou a jorrar luz, como aquelas
estrelinhas de festa de aniversário, mas muitas, muitas
delas. Saiu um bocado daquilo, por quase dez segundos, e
então, começou tudo a tremer, o vulcão e a mesa da
professora que servia de base. O pessoal das primeiras
carteiras reagiu e tentou levantar, Clélia roeu as unhas.
BOMM!
Uma explosão mais forte. Gritos. As gêmeas abriram a
porta e só voltaram quando o mundo não explodiu. Clélia
ficou mais atenta ainda, temendo que a experiência fugisse
ao seu controle. Estava arrependida de ter deixado os
garotos do lado de dentro do prédio. Onde ela estava com a
cabeça?
Só ficou mais calma com o fim da explosão.
Uma nova fumacinha (amarela e depois laranja) tomou
o lugar das estrelinhas flamejantes. A sala relaxou sem
saber que o melhor ainda estava por vir.
— Muito bom! — gritou Clélia. Estava empolgada de
verdade (e também aliviada). Ela nunca tinha visto um
projeto de ciências tão bom. Ainda pensava sobre como
aqueles garotos burros (era isso que Murilo, Luizão e
Anderson eram para ela) conseguiram produzir um projeto
tão engenhoso. Havia pirotecnia, reações em cadeia,
tremores! Caramba! Aquela coisa tremeu de verdade!
— Ainda falta a LAVA, fessôra! — disse Murilo, sacando
um potinho do bolso da calça jeans e chacoalhando no ar.
Antes que alguém pudesse impedi-lo (e além da professora,
Alan pensava seriamente a respeito), ele entornou a coisa
toda dentro da cratera colorida do vulcão.
O protótipo ficou quieto por algum tempo, uns trinta
segundos. Quieto demais. Clélia suspirou aliviada, alguma
coisa naquele vidrinho não estava certa. Ela podia sentir
isso, como um pássaro em uma mina de carvão. O silêncio
continuou e ficou tão incômodo que Hashimoto, o garoto
que só tinha um nove no currículo (e de Educação Física),
perguntou:
— É só isso?
Não era só isso, porque a coisa começou a feder. Um
cheiro terrível misturado com algo esfumaçado que parecia
glicerina de gelo-seco de mentira. As meninas da sala
reclamaram imediatamente, duas delas, as gêmeas que
estavam perto da porta, colocaram as mãos sobre os lábios
para não vomitarem. Anderson, perto demais daquela coisa,
teve uma crise de tosse.
— Que cheiro horrível! — disse Isabel Dentão.
Murilo não gostou daquilo e encarou Alan. E o que ele
esperava que Alan fizesse? Que fosse até o centro do
tablado arrumar seu projeto roubado? Não, senhor Murilo,
nem nos seus sonhos mais doces.
— Melhor dar um jeito nisso — disse Luizão a Murilo. A
professora estava começando a estressar. Clélia era boa
demais para aquela escola e mais ainda para os seus
alunos, ela detestava fracassos.
Sem saber como contornar a gafe, Murilo tratou a
miniatura como o computador do seu quarto.
Deu um forte soco na maquete. Um trinco se abriu perto
da boca e um pedaço de torrão de argila rolou pela
superfície íngreme. Caiu no chão e descansou. Clélia não
gostou nada, aproveitou para dizer:
— Se já terminaram, podem ceder a vez ao próximo
grupo.
— Anda porcaria! — disse Murilo.
Não terminaria assim, não mesmo! Não seria justo,
depois de todo risco que correram com Alan. E aquele
seboso ainda podia dar com a língua nos dentes, aquele
filho da mãe mimado. Alan tinha enganado aos três,
direitinho.
— Desiste, Murilo. Pelo menos a fumaça foi legal — disse
Luizão.
— Ainda não acabou.
Murilo puxou a cadeira para si e subiu em cima da
mesa.
— Murilo! Isso não é permitido! — disse Clélia.
— O dispositivo enroscou — mentiu. Embora acreditasse
nisso.
Assim que tocou a parte de baixo da maquete sentiu
que estava quente. Não a ponto de queimar a pele, mas
quente o suficiente para que ele tirasse a mão da argila.
Tinha algo acontecendo lá dentro, alguma nova reação.
Murilo meio que abraçou o vulcão tentando encontrar um
interruptor escondido, Alan devia saber onde ficava, mas ele
não podia simplesmente pedir que o garoto apontasse o
local na frente de todo mundo — seria mais fácil assinar
uma confissão de culpa.
— O que foi isso? — Anderson, que estava bem perto,
perguntou.
— Ele vibrou — respondeu Murilo e colocou o rosto na
abertura.
Clélia sentiu um calafrio poderoso, um deja-vu maldito
sem imagens projetadas em sua mente. Ela sabia que
alguma coisa estava prestes a acontecer. Infelizmente não
descobriu o que era antes de tirar Murilo dali. A maquete
entrou em erupção.
BOOWWWNNNN!
Pela boca do vulcão, o que saiu depois da explosão
altíssima foi um líquido incandescente. A maquete ejetou
aquele primeiro jato diretamente no rosto de Murilo Torque.
O garoto gritou como louco enquanto perdia a visão. E não
era só isso. O líquido vermelho, meio dourado em alguns
pontos, também era corrosivo. Murilo se jogou no chão e em
seu desespero cego agarrou Anderson pela camiseta.
— Socorro! — gritaram as gêmeas, praticamente ao
mesmo tempo. Alguém da sala chegou à porta e as
empurrou para o centro da sala. Em seguida, um monte de
garotos começou a se espremer pela abertura. Muita gente
ficou paralisada com o show de horrores e outros saíram
correndo, então não era muito fácil chegar até a porta e
atravessar. No meio do caminho estava Alan, horrorizado
pelo que deixara acontecer, com o que desejou acontecer.
Uma das metades do rosto de Murilo estava vermelha,
sangue puro. A outra estava com a carne explodindo em
feridas e bolhas, um bom pedaço perto da mandíbula tinha
chegado aos ossos. O cheiro que infestava a sala era de
carne derretida e cabelos queimados. Um dos olhos de
Murilo explodiu como uma uva na fogueira, o outro estava
arregalado e injetado. Anderson tentava se livrar dele,
socando e empurrando, mas o pânico de Murilo o animou
com a força de um homem adulto. A coisa em seu rosto, o
sangue e o líquido corrosivo, respingaram em Anderson, ele
estava preso, chorando, mas o que acabou com ele não foi
Murilo. Foi uma nova explosão.
Em vez de líquidos, o que saiu do vulcão foi o recheio de
seu corpo argiloso. Alan havia usado grandes pedaços de
vidro misturados com a argila. O vidro combinado a ela
fornecia um bom isolante térmico, e ninguém esperava que
aquela coisa explodisse de verdade. Bem, não Alan, pelo
menos. A vingança prometida pelo senhor computador era
dar uma lição em Murilo e seus comparsas, mas matá-los?
Pobre Alan, ele daria tudo para voltar atrás.
BOMM!
FLASPSHH
— Urrrghhhh! — disse Anderson quando um dos cacos
entrou em seu pescoço. Foi no exato momento em que
Murilo não conseguiu mais resistir à corrosão de seu rosto e
desabou. Luizão já estava no meio da sala, cercado por
outros garotos tão apavorados quanto curiosos, eles não
conseguiriam correr dali antes que tudo terminasse.
Um pouco da coisa corrosiva, da lava, acertou o peito de
Anderson e também outros cacos. Ele não duraria tanto
quanto Murilo. Logo estaria no chão e somente suas pernas
se mexeriam em pequenos movimentos convulsivos. Mas
não ainda.
A gritaria era extrema. Isabel Dentão acabou pisoteada
durante o tumulto, estava machucada no rosto e nas
pernas. Mas estava viva o suficiente para cair fora dali.
Quase todos estavam. E eles pareceram acordar de vez
quando Anderson tombou. Clélia agarrou dois ou três alunos
e os arrastou para fora, depois mais dois, e quando tentou
voltar pela terceira vez, encontrou uma corrente de garotos
em fuga que a impediram. Eram alunos das outras salas. O
alarme de incêndio ainda não tinha tocado, mas a explosão
deixava poucas dúvidas sobre algo estar muito errado.
Dentro da sala restaram Alan, as Gêmeas, Luizão
incapacitado pelo medo e os dois quase-cadáveres.
— Você sabia, Alan! Você acabou com eles!
— Cala essa boca, gordo! Eu não sabia de nada disso.
— Você deu o potinho para ele, foi você!
As gêmeas estavam entre eles, acabaram ficando por
último, com medo do empurra-empurra da porta. Elas não
eram grandes e não queriam ser esmagadas como a boboca
da Isabel Dentão.
— Deixa a gente passar! Pediram a Alan. Ele saiu do
caminho, mas então outra explosão mandou o que restava
daquela porcaria pelos ares. Pelos ares e na direção deles!
Dentro da maquete havia uma parte mecânica que foi
ditada pelo senhor computador. Nessa parte, um sistema de
seringas que empurrava a fumaça para fora enquanto
outras injetavam corantes. Havia mais coisas também,
como fios e dois motores pequenos (que Alan retirou de
carrinhos velhos que entulhavam o quartinho dos fundos de
sua casa).
Uma dessas seringas voou direto no olho direito de uma
das gêmeas — Clara —, ela ainda sobreviveu e rodopiou até
encontrar o corpo de Anderson e tropeçar nele. Quando caiu
de frente, com o rosto no chão da sala, a seringa mergulhou
em seu crânio. Os pés fizeram um movimento curto, se
esticando, e ela parou de respirar. Aline ainda gritava,
arranhando o próprio rosto, quando a maquete trouxe sua
última surpresa.
A tal lava até então corrosiva, mas somente corrosiva,
começou a pegar fogo. Isso mostrou que Murilo Derretido
ainda estava vivo, porque ele gritou e começou a rolar no
chão. Anderson moveu os pés quando a camiseta em seu
peito começou a pegar fogo. A mesa estava ardendo em
segundos.
— Vamos embora! É tarde demais para eles! — disse
Alan. Estava segurando Aline pelo braço. Ela não se mexia.
Olhava para a irmã morta. Olhar para Clara era olhar para o
seu próprio cadáver, elas eram iguaizinhas.
Luizão a empurrou para tirá-la do caminho, mas não
passou por Alan. Dessa vez Sérpia revidou e o empurrou de
volta. O gordo voltou dois passos e partiu para cima de
novo. Alan viu seu punho fechado vindo na direção do seu
olho esquerdo, mas antes que fosse atingido, a mão recuou.
— Me solta! — Luizão disse logo depois. Alan olhou para
baixo, para o chão. Anderson estava mantendo Luizão
preso. Suas mãos pegavam fogo e agarravam a canela
gorda de Luizão. Logo as pernas de Luizão também
pegavam fogo. E não eram as únicas.
Percebeu isso quando Aline começou a gritar.
Parte daquele líquido também tinha acertado sua
camiseta de uniforme quando a maquete explodiu pela
segunda vez. Agora incendiava. Alan não foi atingido,
estava limpo daquela substância terrível. Pena não ter a
mesma sorte em relação às mortes. Os garotos, todos eles
gritavam ou gemiam. Ele ainda tentou ajudar Luizão, mas a
sala estava ardendo em todos os cantos. A mesa havia
queimado depressa e a coisa, a lava corrosiva, caminhava
pelo chão como uma língua de fogo. Seguia em direção a
Luizão. Alan ficou onde estava, morreria junto com aqueles
caras, seria justo. Pensou que com isso se livraria do
inferno. Mas alguém tinha outros planos.
— Vamos garoto! — disse Clélia.
— Me ajuda! — gritou Aline.
Clélia olhou para baixo, a pobrezinha não tinha chance,
estava queimando viva. Os garotos gemendo (deles, só
Luizão Gordo ainda conseguia gritar de verdade); dava
vontade de vomitar. Bem, que ela pudesse salvar Alan
Sérpia.
Empurrou Isabel Dentão com os pés para liberar a porta
(Isabel ainda estava do lado de fora, espionando o desastre)
e arrastou Alan para fora. Olhou para o alarme intacto
(nenhum daqueles gênios tinha lembrado de quebrar o
vidro e apertar o botão). Clélia fez isso e ativou o alarme
que começaria a soar com dois minutos de atraso. A sala
atrás dela queimava como o inferno.
 
O SOM DOS CORREDORES cresceu exponencialmente e
logo chegou à diretoria. Por lá, Zétia conversava com a
melhor amiga de Patrícia, dessa vez com o diretor
acompanhado a tudo — a pedido da garota que foi muito
sincera e disse que não confiava em nenhum policial do
Brasil. Zétia não tentou culpá-la; em setenta por cento dos
colegas que conhecia, nem ele confiava. Stela Nogueira
estava com grandes bolsas sob os olhos, tinha chorado
bastante à noite e o resto chorou durante a conversa com o
delegado. Ela sentia culpa pelo que aconteceu com Patrícia,
pensava que a amiga poderia ter fugido, por causa do lance
dela com o Davi. Se Stela soubesse que seu namorado e
sua melhor amiga andavam se pegando escondido,
certamente faria alguma coisa tão estúpida quanto
desaparecer.
— Ouviu isso? — Granville perguntou.
Zétia levantou depressa e foi até a porta. Assim que a
abriu o alarme de incêndio começou a tocar.
— Treinamento de brigada? — perguntou a Granville.
— Não, algum espertinho deve ter apertado o botão de
alarme. Sua presença aqui mexe com os ânimos deles,
delegado.
— E esse cheiro? — perguntou Stela. E uma nuvem de
fumaça invadiu a sala.
— Meu Deus do céu! Vocês dois pra fora, eu vou até as
salas de aula. Chamem os bombeiros!
Não seria preciso, o alarme de incêndio tinha contato
direto com o batalhão. Estariam ali em pouco tempo. Zétia
sabia que não podia perder esses minutos. Ele saiu da
secretaria e entrou no inferno.
Havia muita fumaça logo na entrada do corredor,
também muita gente pequena correndo, garotos e garotas
com os joelhos ralados, olhos vermelhos, uma garota tinha
tido fratura exposta no braço e o osso saltava para fora uns
cinco centímetros. Os mais inteiros e espertos estavam com
as camisetas no rosto, tentando filtrar um pouco da fumaça.
Zétia apanhou a camisa de um garoto de óculos fundo de
garrafa emprestada, molhou em um bebedouro do corredor
e seguiu para o fundo. Ajudou um garoto loiro, todo cheio de
fuligem no rosto, a recobrar a consciência, pediu a outro
mais alto para ajudar o rapazinho de óculos a chegar lá fora,
teve fé que o garoto alto fizesse aquilo em vez de salvar o
próprio rabo. Dois passos adiante e foi seguro pela mão de
outro menino.
— A professora Clélia! Ela desmaiou! — ele disse. Zétia
o reconheceu. Sua mãe era costureira, Janice Sérpia. Uma
guerreira, como diziam. Ela e Zétia já tinham trocado
figurinhas algumas vezes, mas fazia muito tempo.
— Onde ela está?
— A dona Clélia caiu e eu não consegui levantá-la! Tá
perto daqui, uns vinte metros em frente. Eu mostro onde é!
— Você cai fora daqui, Sérpia. Eu ajudo a professora.
— Eu posso ajudar! — disse aquele garoto burro. Estava
todo sujo e suado, os olhos estavam escorrendo água, e ele
os esfregava sem parar. Podia ser irritação, mas para Zétia
eram lágrimas. O que significava más notícias.
— Você vai para fora como eu disse! — Agarrou firme
seu braço, depois perguntou: — Tem mais alguém lá dentro?
Em alguma das salas?
— Todo mundo morreu! O Murilo, o Anderson, o gordo e
as gêmeas, eles...
Antes que terminasse, alguma coisa explodiu aos
fundos. O fogo deve ter chegado à cozinha e atingido às
tubulações de gás, foi o que pensou o delegado.
— Corre! Corre daqui! — repetiu. Dessa vez Alan
obedeceu.
O corredor continuou esquentando pelos próximos dez
metros. Zétia ofegava; respirar estava tão difícil quanto
enxergar. Seus olhos queimavam e não era só irritação, era
calor. Foi depois da sala do oitavo ano (a única plaquinha
que ele conseguiu ler naquela loucura) que ele viu o corpo
de Clélia estendido. Pensou que estivesse morta, seria mais
fácil, embora nunca fosse confessar isso a alguém —
carregá-la de volta parecia quase impossível.
— Professora? Clélia?!
Precisou golpeá-la no rosto para que recobrasse os
sentidos. Ela abriu os olhos e havia pânico dentro deles.
Estava completamente acordada em um segundo.
— Acabou? Salvaram as crianças?
— Acho que sim. Vou tirar você daqui. Passe a mão pelo
meu pescoço e não solte. Vamos sair dessa, juntos.
Zétia a apanhou; gemeu um pouco até acondicioná-la
em seus braços. Estava exausto. Antes de sair pelo
corredor, Zétia deu uma olhada no que ficaria para trás.
Pensou em novas vítimas, alguém que ele pudesse ajudar.
No corredor encontrou alguém entre as chamas. Alguma
coisa que parecia não se incomodar com aquele calor que
derreteria ossos. Estava bem no meio do caminho, parado,
olhando para frente, olhando para ele. O fogo o circundava,
estava mais claro, quase branco, perto do corpo. O homem
usava terno e sapatos. Não fazia sentido que aquela coisa
existisse, mas sim, ele estava ali, saboreando a desgraça.
Quando outra explosão trouxe o teto acima dele para baixo,
Zétia correu com Clélia em seus braços.
NÃO O MEU FILHO!
 
A saída da escola era um inferno ainda mais quente que
seu interior flamejante. Muitos garotos ainda gritavam,
perplexos e sem acreditar que aquilo estava mesmo
acontecendo. Outros estavam mudos, cravados em seu
próprio pânico. Deus, como a vida pode mudar tanto e tão
de repente?
Delegado Zétia voltou a entrar na escola mais duas
vezes. Resgatou uma garota de treze anos chamada Camila
Guto que talvez não sobrevivesse (teve queimaduras de
terceiro grau em sessenta por cento do corpo) e perdeu um
garoto para as chamas, mais tarde identificado como Luiz
Augusto Calmon, neto do dono da concessionária de carros
Novos e Antigos — ficava perto da escola, apenas três
quarteirões, mas Eriberto Calmon não conseguiu ir até lá
quando soube do ocorrido, ele passou mal e foi levado às
pressas ao hospital Santo Expedicionário onde o salvaram
de um infarto.
Professora Clélia teve dois desmaios seguidos quando
saiu do pesadelo em chamas. Estava dentro de uma
ambulância agora, recebendo oxigênio enquanto olhava
preocupada para dois alunos: um transtornado e outro ainda
inconsciente.
Ela esperou que o enfermeiro saísse e tirou a máscara
que incomodava seu rosto. Alan estava sentado ao seu lado,
os olhos no limbo, os cabelos e o rosto molhados, traços de
fuligem pelas bochechas e formando colares sujos no
pescoço. Respirava com a boca aberta e, na opinião de
Clélia, ele nem percebia fazer isso. Como não percebia uma
porção de outras coisas. Pobrezinho, um garotinho tão novo
não teria condições de suportar o horror que presenciara.
— Alan? Está tudo bem aí? Está machucado?
Nenhuma resposta, Alan nem mesmo movimentou o
pescoço em direção a ela.
— Sei o que está pensando, Alan. Também já pensei isso
e Deus sabe quantas vezes ainda vou pensar, mas não
podíamos ter feito nada. Eu sou uma adulta, uma
professora, tenho o dobro da sua altura e não consegui. Não
pode se culpar pelo que aconteceu.
Mesmo imóvel, o rosto de Alan ficou diferente quando
que ela terminou. Alguma coisa nos olhos, um movimento
tão sútil que passaria por impressão. Então uma gota rolou
do seu olho direito, depois outra do esquerdo. Debruçaram
pelo queixo sujo e chegaram ao chão metálico da viatura
médica. Clélia desejou sair da maca e abraçá-lo, mas não
estava certa quanto a fazer isso. Somente psicólogos
poderiam dizer com certeza o que seria melhor para Alan
Sérpia.
— Onde está ele? — alguém perguntou do lado de fora
da ambulância. Alan não se moveu, mesmo sabendo que
era sua mãe. Não que ele não quisesse sair dali e abraçar
Janice, mas sua mente estava presa em outro lugar. Ainda
estava ouvindo os gritos de Murilo, assistindo seu rosto
derreter enquanto Anderson e Luizão gritavam, enquanto
todos gritavam.
— Dona Janice, ele está em choque — disse um dos
médicos. — Ele vai parecer estranho, mas voltará ao
normal.
— Sai da minha frente! — ela disse. Antes que Clélia
entendesse que Janice era a mãe do garoto já estava dentro
do veículo. O médico pensou em entrar junto, mas ficou do
lado de fora, observando. Janice agarrou Alan pelos ombros
e começou a fiscalizá-lo, certificando-se que ele não
estivesse muito ferido. Médicos mentem para mães o tempo
todo, e mentiriam ainda mais em uma desgraça como
aquele incêndio.
— Ele está bem — disse Clélia. Janice ignorou e
continuou com Alan.
— Graças a Deus que você está vivo. Como uma coisa
dessas foi acontecer? Eu vi pela tevê e vim correndo para
cá.
Alan continuou na mesma.
— Filho, fala comigo!
— Ele não pode — disse Clélia.
— E quem é você?!
Elas já tinham se encontrado umas duas vezes, mas
Clélia agora parecia um espantalho surrado. Não era
estranho que Janice não a reconhecesse.
— Sou professora do Alan. Uma das professoras. Clélia.
— Pode me dizer o que aconteceu dentro da escola?
— Posso dizer o que eu vi, mas também não entendo
como aconteceu. Os meninos estavam apresentando os
projetos para a feira de ciências e um dos projetos saiu do
controle, a coisa explodiu dentro da sala onde eu e seu filho
estávamos.
No fundo dos olhos de Janice imediatamente surgiu a
imagem de um vulcão em miniatura no quartinho dos
fundos de sua casa. Alan trabalhou nele por semanas, Janice
odiou a coisa assim que a viu. Era grande, tinha
ingredientes químicos e pólvora na parte de dentro, Deus
sabe que ela teria jogado aquela porcaria fora se não
tivesse tanto trabalho de Alan envolvido. E ele queria
mesmo apresentar o vulcão na escola. Estava confiante,
Janice não o via tão feliz desde que deu a ele um
Playstation. Mas ela não diria nada disso para a professora,
caso se tratasse do vulcão, Clélia já teria dito. Janice
preferiu as bênçãos da ignorância.
— Consegue andar, Alan?
— Os psicólogos ainda vão falar com ele, mãe. Por que
não espera mais um pouquinho? Vai ser melhor para ele.
— Com todo o respeito, professora, com o respeito que
eu nem devia ter depois do que aconteceu: quem sabe o
melhor para o meu filho sou eu.
Clélia não insistiu e se recostou à maca. Ela mesma
recolocou a máscara de oxigênio. Precisaria estar inteira se
conhecia bem aquela cidade. Quando começassem as
perguntas, ela teria que respondê-las. Que Deus me ajude,
pensou antes de apagar pela terceira vez.
Nenhum dos bombeiros, policiais ou médicos ficou no
caminho de Janice Sérpia. Como Alan não andava por
vontade própria, ela praticamente o arrastou até o carro
(um Fiat). Colocou-o no banco e passou o cinto. A única
pessoa que falou com ela foi uma garota, Lidiane. Alan tinha
falado com Janice sobre essa garota, parece que ele gostava
bastante dela. A menina perguntou se estava tudo bem com
ele.
— Ele só precisa descansar, meu bem. Todos nós
precisamos.
Janice deu a volta e entrou no carro. Saiu devagar, mas
mesmo assim quase colidiu com um Vectra prateado. Ela
buzinou e chamou o motorista de imbecil. A confusão
chamou a atenção de Zétia. Ele não quis acreditar quando
percebeu a silhueta gorda que desceu do carro prateado.
Janice já estava longe quando Orlando Torque veio trotando
como um búfalo pelo gramado da frente da escola — o
municipal tinha passado por uma grande reforma dez anos
antes, chegaram a chamá-la de escola modelo, o gramado
da frente tinha moldes americanos, com árvores, ciclovias e
espaço para debates com mesas e cadeiras de alvenaria.
Torque foi direto para Zétia, ele tomava um Gatorade de
morango — que tinha gosto de laranja e cor de tangerina
podre.
— Cadê o meu filho? Murilo precisa ir ao dentista e
colocar a porra do aparelho nos dentes. Gastei uma nota
preta com o doutor Elias, não vou deixar esse incêndio de
merda acabar com meu investimento.
— Não é um bom momento, vereador.
— Bom momento? Bom momento para quê, homem!
Cadê o meu moleque?
Zétia apertou os lábios e franziu as sobrancelhas.
Jesus... O que diria ao homem? Qual é a melhor maneira de
dizer a alguém que seu filho está morto?
— Desembucha! Está escondendo o quê? O Murilo se
machucou, é isso?
— É um pouco mais sério, vereador.
— E chega de me chamar de vereador. Você só me
chama desse jeito quando tem bosta voando no ventilador.
Onde está o diretor dessa favela? Se não vai me responder
nada, eu quero falar com ele.
Granville já estava acompanhando a discussão de longe.
Contava aos bombeiros o que sabia sobre o incêndio
quando Orlando chegou atropelando todo mundo. O diretor
tinha esperanças que o delegado resolvesse tudo com o
homem, mas nada disso. Era ele o responsável por aquelas
crianças, inclusive pelas crianças mortas, organizadas em
doze macas cobertas, no estacionamento da escola — os
homens de Zétia fizeram um perímetro ao redor dos corpos.
Caminhou com os olhos nos sapatos até chegar bem
perto. Zétia dessa vez fez o mesmo, sem coragem de
encarar Orlando e dizer a verdade.
— E então? Vão me contar agora o motivo esse
teatrinho? Onde está o meu filho?
— Tenha calma, Orlando. É um momento muito delicado
para todos nós.
— Delicada é a sua bunda! Onde ele está, Granville?
Orlando estava vermelho, suava. Tinha afrouxado a
gravata e sua camisa salmão tinha grandes poças de suor
nas costas e na parte de baixo dos braços. O cabelo ralo
estava jogado na frente da testa, tirando o que sobrava de
compostura.
Granville não pensou muito sobre como diria aquilo.
Saiu andando, ciente que o vereador e o delegado viriam
atrás dele. Às vezes uma palavra amiga, um pouco de
consolo, torna tudo mais fácil, mas tratando-se de homens
como Orlando Torque, o choque, perder o chão, atingiam
melhor resultado. Podia parecer desumano, mas não era,
aquele era o único jeito.
— Eu ainda estou falando com você, seu engomadinho
de bosta!
— Tenha calma, Orlando. Estamos indo até o seu filho.
Preciso muito que mantenha a cabeça no lugar e...
— Cala essa boca, delegado. Eu só quero o meu
moleque.
Anderson Dias, Fábio Andino e mais dois policiais que
isolavam a área fecharam o tempo para cima do diretor.
— Não pode passar, senhor — disse Fábio.
— Acho que ele pode sim — corrigiu Anderson. O
delegado confirmou que fizesse isso e tomou o vereador
pelo braço. O diretor parou logo à frente, quase a lado do
camburão-ambulância.
— O que pensa que está fazendo? Tira essa mão de
mim!
Zétia apertou firme. Olhou incisivo nos olhos de Orlando
e tentou mandar uma mensagem em seu tom de voz
placebo.
— Pelo amor de Deus, tenha calma.
Sem saber o motivo de tudo aquilo (mas intuindo seus
piores pesadelos), Orlando puxou o braço com um tranco e
continuou sozinho. Zétia sinalizou aos seus homens para
que ficassem atentos.
Orlando só parou quando chegou ao ponto de onde o
diretor Granville não passou. Olhou para frente e perdeu a
firmeza das pernas quando viu.
— O que é isso? O que está me mostrando?
— É o que tentamos explicar, vereador. Eu não queria
que fosse assim, mas o senhor causaria uma nova tragédia
se continuasse gritando daquele jeito.
— Eu não... Não me digam que...
Falava baixo agora. Pobre homem.
A verdade é que Orlando Torque, o safado mais valente
e inescrupuloso daquela cidade, estava sem forças para
seguir em frente, sem forças para repetir a maldita
pergunta que o trouxera até ali quando ouviu no rádio sobre
o incêndio da escola.
— Foi muito sério, Orlando. Muito, muito, sério. Temos
uma catástrofe terrível em nossa cidade — explicou Zétia.
Mas não teve coragem para dizer a palavra. O delegado
também não. Quem a disse foi mesmo Orlando, e quase
sem voz:
— Morto? Querem dizer que ele está... Que o meu filho
Murilo está dentro de um daqueles malditos... Sacos?
As pernas recuperaram as forças e o levaram até as
macas. Zétia sinalizou para os policiais e foi atrás dele.
Orlando estava fora de si.
— Em qual deles?! — gritou, abrindo o primeiro dos
sacos.
Não era seu filho, mas a imagem terrível que saiu do
saco fez com que Orlando congelasse pelos segundos
precisos até a chegada de Zétia e do cabo Anderson.
Orlando não conhecia aquela criança, mas foi como se
olhasse para seu próprio filho. Os cabelos derretidos sobre o
crânio, a pele ressecada e esfumaçada, bolhas. Uma das
pálpebras tinha sido carbonizada, então o olho sem
proteção mirava vitrificado à frente do rosto. Ele fedia com
um trapo apodrecido jogado no fogo.
— Não precisa vê-lo, Orlando. Eu já fiz isso por você, fiz
isso com todas essas crianças — disse Zétia.
— Não, isso não está acontecendo, vocês se
enganaram!
O homem caiu de joelhos, socou o chão e levou as mãos
cobertas de terra e grama até o rosto. Deslizou-as pelos
cabelos úmidos de suor.
— Não pode ter acontecido com Murilo. Ele era esperto,
meu filho sairia vivo dessa confusão. E ele saiu! Quem está
dentro desses sacos imundos são os garotos burros, não
meu Murilo!
Granville procurou por Zétia. Ele assentiu com a cabeça.
Cheio de pesar e com um arrependimento prévio, o diretor
disse:
— É o sexto saco, da esquerda para a direita.
 
NADA É TÃO RUIM...
 
Uma frase popular no compêndio de atrocidades de
Dolores Griffante era: Nada é tão ruim que não possa piorar.
Seu filho, Zétia Griffante, nunca acreditou nesse
pensamento agourento. O fim de tarde em Nova Enoque
provou que estava errado. E olha que uma manhã como
aquela dificilmente teria concorrência.
Zétia permaneceu no colégio municipal até que a última
pessoa — no caso, o diretor Granville — deixasse o local.
Antes disso, precisou conter o desespero de Orlando Torque
que tentou acabar com a raça do diretor ali mesmo, na
frente de meia dúzia de policiais. Orlando tirou o plástico
especial que cobria seu filho e olhou para ele, para o que
restou de Murilo. Depois chorou ao lado do caixão. Punhos
cerrados, uma expressão de ódio e revolta inundando seu
rosto. Ficou assim por mais de dez minutos. Quando se
afastou, tinha um alvo, o homem que deveria estar no lugar
de seu filho. Depois de contido, Orlando se arrastou até o
carro e dali até o bar Troubador, onde pediu o melhor uísque
da casa para brindar o cadáver de seu filho. Ele não pensou
em sua esposa Edna ou em Andreza — sua filha que já
morava fora da cidade há dois anos. Vereador Torque só
pensou nele e na dor horrível, irreparável, que sentia.
Estava agora na segunda dose dupla daquele veneno
maltado. Doze anos, um sabor que aprendeu a apreciar na
glória e na derrota. Mas nunca pensou que encontraria uma
maneira tão nojenta de tomar um uísque. À sua frente, o
barman; um homem bom que não merecia aquele emprego
vegetal. Atendentes de bar são sempre boas pessoas,
dispostos a ouvir e aconselhar. São tão bons quanto
qualquer padre ou psicólogo. O nome do homem era Lauro,
mas todo mundo chamada de Lau. Era alto, cabelos claros e
meio ralos organizados com um pouco de gel. Olhos verdes
e expressivos. Gostava de ouvir seus fregueses, talvez por
alguma tara escondida. Entretanto, o homem à sua frente
não tinha dito uma palavra até ali. Lau enxugava copos e
recarregava as máquinas de Chopp para passar o tempo.
Tentava não olhar muito para o vereador.
Um pouco de luz nova invadiu a sala e atingiu o rosto
demolido de Orlando. Ele espremeu os olhos e não olhou em
direção a luz. Não importava quem estava entrando, o que
ele queria mesmo era beber daquele uísque até que suas
memórias evaporassem. As boas, as ruins, até que Murilo
evaporasse. Não parecia errado pensar nisso, não com toda
a dor que experimentava.
— Uma soda — pediu o estranho.
— Desculpe, estamos fechados. O vereador veio falar
com o chefe e por isso está aqui — mentiu Lau.
— Tem certeza? Vai negar uma bebida a um homem
com esse sol todo lá fora? — Virou o rosto na direção de
Orlando. — O que me diz, vereador? Acha certo que me
ponham para fora antes de uma bebida? Uma soda?
— Vocês dois podem comer merda desde que não me
encham o saco — respondeu. Ainda de cabeça baixa: —
Tudo bem, Lau. Sirva o homem.
Lau concordou e desfez a expressão fechada. O
estranho de terno escuro agora era seu cliente, então ele o
trataria bem. Apanhou um copo tinindo de limpo, três
pedras de gelo e perguntou: — Limão?
— Não. Com gelo está ótimo.
Depois de encher o copo com soda, Lau o deixou sobre o
balcão. Logo voltou com um descanso para copos. Era uma
promoção de um escritor que resolveu lançar seu livro ali
mesmo, no bar. O livro até que vendeu bem, pelo menos
para a história-tema manjada sobre viagens no tempo — e o
bar ganhou duas dúzias de bolachas promocionais.
O estranho agradeceu, apanhou o copo e olhou para o
descanso. Deixou um riso casual escapar e comentou:
— Ele ainda chega lá.
Orlando pagou com o mesmo descaso a observação e a
presença do estranho. O homem não insistiu. Preferiu
apanhar o copo e ir até uma réplica de Jukebox que ficava
perto dos banheiros. Colocar uma música para animar as
coisas. Pensou muito pouco, ele sempre escolhia a música
número quarenta e dois; quarenta e dois é a resposta de
tudo, não é o que disseram?
Blueberry Hill com Fats Domino começou logo e Orlando
não pode deixar de se sentir melhor. Só que não (como diria
seu filho sem rosto enchendo uma mesa do necrotério). O
homem negro voltou dançando cautelosamente, e Lau
sacudiu a cabeça para que parasse com aquilo. Orlando o
surpreendeu e quebrou seu novo silêncio dizendo:
— É uma boa música, apesar de ser música de preto.
— Sim. E esse foi um bom comentário apesar de sair da
boca de um branco — sorriu o estranho. — Dia difícil? —
perguntou quando tornou a se sentar.
Outro risinho daqueles que mais parecem um desabafo.
— O pior deles, meu caro. O pior.
— Eu soube do incêndio na escola, espero que seu
uísque não tenha relação com isso.
Orlando escorregou o copo para frente e pediu outra
dose. Aproveitou o intervalo para olhar direito para aquele
homem.
Definitivamente não era da cidade, ele não esqueceria
um negro metido daqueles se já o tivesse visto antes. Os
rapazes negros de Nova Enoque não andavam naquela
elegância toda — coitados, eles nem teriam dinheiro para
isso. Os cabelos eram raspados na máquina um, bem
curtinhos mesmo, e desenhados na navalha para dar
acabamento na testa e perto das orelhas. Em uma delas, na
orelha direita, havia um brinco de ouro com um brilhante.
No dedo anelar esquerdo, um anel estranho, com uma
pedra turquesa.
— De onde você saiu?
— Estou de passagem. Vim a trabalho.
— Posso saber o que veio fazer em Bosta Enoque?
O homem sorriu: — Estou investigando a prefeita.
— Miriam? Está investigando Miriam Guerra? E como eu
não sei quem você é?
— Mas eu sei quem é o senhor, doutor Orlando.
O tom confiante do estranho tinha ido longe demais
dessa vez. Espionar a safada da prefeita era uma coisa, mas
espionar seus inimigos era bem diferente. E perigoso.
Aquele homem era esperto, andava bem vestido, e tinha
o dom da oratória, como dizem os analistas políticos que
pensam saber tudo.
— Essa conversa azedou, meu amigo. Prefiro tomar a
próxima dose sozinho, se não se importa.
— Você teria muito a perder com isso, senhor Orlando.
Tenho informações do seu interesse.
Lau entregou o copo recarregado a Torque, ele o levou
aos lábios. Deu outro grande gole, como todos os que
vieram antes.
— E suponho que essas informações tenham um preço?
Um bem alto, hã?
— Nem tudo é dinheiro, doutor Orlando. Às vezes se
trata de justiça.
— Se não custa nada, eu que posso ouvir. Depois do dia
de merda que eu tive um pouco de diversão é bem-vindo.
Mas se disser uma palavrinha que me desagrade vai pagar
pela ousadia.
O homem não se intimidou nadinha. Encarou Orlando
como um hipnotizador de serpentes e atirou: — É sobre o
seu filho.
Orlando saiu do banquinho e partiu para cima dele. Seu
copo de uísque voou para o chão e espatifou. Lau, sentindo
o cheiro de problemas mais sérios que um copo quebrado,
correu para o telefone fixo (uma réplica de um telefone anos
cinquenta, preto), e espetou o dedo no número um. O
estranho olhou na direção do barman, avisando Torque que
os dois se dariam mal com aquilo (principalmente Orlando,
um vereador brigando bêbado não soava bem, mesmo com
a morte do filho).
— Não — disse Torque. E não precisou mais que isso
para que Lau deixasse o aparelho.
Lau foi até o centro do balcão. Orlando não sabia, mas
havia uma arma ali, um trinta e oito que não era usado há
vinte e um anos. Orlando apertou o colarinho do sabichão e
colou seu rosto bem perto do dele, tão perto que o bafo de
soda recendido da boca parecia fresco.
— É melhor explicar o que o nome do meu garoto faz
nessa boca suja.
O negro sorriu. Estava tranquilo. Tranquilo como um
cacto no deserto.
— Não sou seu inimigo, vereador. Sou inimigo do seu
inimigo.
— Solta essa língua antes que eu a puxe para fora.
Foi a vez do estranho olhar na direção de Lau.
Aquela conversa interessava somente aos dois, nada de
atendentes enxeridos, portanto. Lau fingiu que não
entendeu e continuou perto da arma guardada dentro do
armário. Suava um pouco, o cabelo louro estava escuro
perto da testa e das têmporas.
— Dá um tempinho pra gente, Lau. A máquina de som
não precisa de uma limpezinha?
— Tem certeza?
— Tenho sim. Eu e o senhor gentileza aqui vamos ter
uma conversinha de cavalheiros. Pode deixar a garrafa de
uísque. E você bebe comigo — disse ao homem.
Lau puxou um copo limpo, a garrafa mais cara da casa,
e os pousou perto do copo de Orlando. Não gostou de fazer
isso, não por conta da conversa que perderia, mas era uma
heresia alguém consumir aquele uísque sem um barman,
era como mijar na cruz com o Cristo lá em cima. Já estava
com sua flanela amarela na Jukebox quando Orlando
autorizou o estranho a falar. Antes, quis saber seu nome.
— Posso dar vários nomes, vereador. E mostrar várias
identidades. Mas penso que o mais importante são as
informações que eu tenho. Pode me chamar de Dubá. O
sobrenome não importa muito.
— Que seja. Do que você sabe, Dubá? O que sabe a
respeito do meu filho falecido?
— Até ontem eu só sabia que ele era seu filho. Um
garoto esperto que mandava em metade da sala
submetendo os outros ao seu controle.
— Se isso foi uma crítica, não funcionou. Meu filho era
como todo homem da nossa família, um predador.
— Ainda não cheguei onde queria, vereador. Eu esbarrei
no seu filho por acaso, enquanto investigava as ligações da
prefeita Miriam com um grupo de mercenários pagos por
ela. Estavam hospedados perto do hotel Glória.
— Continue.
— Foram eles. O incêndio na escola, justamente na sala
do seu garoto, foi tudo obra da prefeita.
As mãos de Orlando se fecharam com tanta força sobre
o copo de uísque que o teria explodido se fosse um
milímetro mais fino. Ele tremia, o copo se chocava sobre o
balcão como sinos de uma igreja abandonada.
— Aquela vagabunda!
— Ela é sim. Miriam fez isso para se vingar, doutor
Orlando. Nas minhas investigações também esbarrei no seu
nome. É do seu conhecimento que a filha da prefeita foi
sequestrada, suponho?
— Sei que a vadiazinha desapareceu, mas sobre
sequestro? Não, não sei nada sobre isso.
— Bom. Estamos conversando aqui, tomando um bom
uísque, então vou confiar no senhor. A menina foi mesmo
sequestrada. Ainda não sabemos quem fez isso, mas sei
que inimigos políticos em comum, seus e dela, enviaram um
dossiê acusando você da coisa toda. Imagine como ela se
sentiu, vereador? A menina tem menos de dezesseis anos,
sequestrada, bandidos malucos salivando perto da sua
carne macia e rica.
Orlando somou dois mais dois.
— E aquela trepadeira incendiou a escola para acertar
meu garoto? Para matar meu garotinho? É isso mesmo o
que acabou de me dizer?
— As evidências, vereador. As evidências disseram.
Conhece a prefeita Miriam. E conhecia seu irmão, presumo.
Os Guerra têm a mesma história política dos Torque em
Nova Enoque. É assim tão difícil aceitar que ela seja capaz
do que aconteceu?
— Parece loucura. E eu não tive nada com o sequestro
daquela putinha!
— Não foi o que Miriam Guerra soube, vereador.
— E quem disse a ela? Quem mais quer me ver pelas
costas nessa cidade de merda?
— Não cheguei tão longe. Interceptei o e-mail que o
denunciava como mandante e isso foi tudo. Eles usaram um
garoto da escola, se quiser eu passo o nome, mas aposto
que é um dos outros garotos mortos.
— Meu filho, meu único filho... — Perdeu o olhar em um
dos espelhos do bar. — Eu tinha planos para ele. Murilo
estava indo tão bem. Foi como você disse, ele estava muito
acima de todos esses moleques piolhentos daqui, meu
Murilo era melhor que todos eles.
— Era sim. E alguém tirou seu menino de você. Prefeita
Miriam, vereador Orlando. Esse é o nome para grifar na sua
agenda.
— Está errado nisso, Dubá. O nome dessa vagabunda
acaba de ser riscado. — Levantou-se. — Lau, vou deixar o
dinheiro aqui.
Empurrou suavemente a garrafa de uísque para perto
de Dubá. Um gestual simbólico.
— Pode ficar com o que sobrou, senhor Dubá. Suas
informações valem muito mais que essa garrafa. Mas eu
garanto que se estiver blefando... Eu vou encontrá-lo e
costurar sua pele ao contrário.
Deixou o assento e antes de sair, estendeu a mão ao
homem. Apertou-a com gratidão e raiva. Não gostava de
dever favores a um negro. Ainda mais, a um negro que
pensava e agia como um branco. Lau esperou que Orlando
se retirasse do bar para sair de perto do Jukebox. Pensava
que, no último minuto, ele voltaria e daria aquela garrafa a
ele em vez de presentear um estranho.
Nunca aconteceu. Quando Lau voltou para o balcão
encontrou somente o dinheiro.
A garrafa e o forasteiro haviam sumido.
LIVRE PARA MORRER
 
Zétia estava exausto perto das seis da tarde, quando
finalmente retornou à delegacia. O pessoal da capital,
perícia especializada, estava vindo para Nova Enoque. E que
os dias seguintes trouxessem surpresas mais desagradáveis
que as atuais, pelo menos ele teria ajuda. Certo, mas para
chegar amanhã, faltava terminar o hoje.
— O que esse chacal faz aqui? — disse a si mesmo antes
de descer do carro oficial da polícia. O carro de Cotia e a
caminhonete de Ricardo Minotto (a única da cidade com um
adesivo dizendo “que a inveja corroa seu cu”) estavam
estacionados em frente à delegacia. O que ainda falta
acontecer?
Desceu, apanhou a maleta com alguns documentos e
entrou. A porta escurecida da delegacia estava encostada,
ainda aberta na tranca.
— Até que enfim! — reclamou Ricardo, assim que o viu.
Cotia meneou a cabeça, possivelmente se perguntando
como seus clientes tinham essa capacidade divina de tornar
seu trabalho mais difícil.
— Delegado — ele disse. E estava bom demais. Depois
estendeu a mão direita e ganhou um aperto mais forte do
homem da lei.
O que Zétia disse a seguir mostrou toda sua falta de
paciência.
— Vamos ao que interessa, pessoal. O que trouxe vocês
aqui? Algum problema no matadouro, no curtume? Se for
sobre Roger, o horário de visitas não é flexível, e vocês
sabem disso.
— Não vamos mais precisar da bosta do horário de
visitas — disse Ricardo. Havia um sorriso tão irritante em
seu rosto que chegava a dar alergia.
Cotia estendeu a mão hesitante, segurava um papel
entre os dedos. Tinha algum pré-conhecimento sobre o tipo
de reação que o papel timbrado causaria no delegado.
Antes de abrir, Zétia avaliou a expressão dos dois homens.
Olhou para a parte de dentro do balcão e avaliou Regina
que devia ter visto aquele papel há algum tempo; ela
ergueu os ombros e torceu a boca, querendo dizer que os
filhos da puta tinham encontrado uma brecha.
— Eu não vou fazer isso hoje.
Ricardo empinou o peito e já ia soltar outra das suas,
Cotia foi mais rápido.
— Precisa fazer, delegado. É uma ordem do juiz.
— Agora? É quase noite! Não podem simplesmente
chegar aqui e levar Roger. Existem procedimentos.
— Temos tempo — insistiu Cotia. — Estamos aqui desde
as quatro da tarde. Se o senhor estivesse na delegacia, já
teríamos resolvido esse assunto.
— Seu f... (mordeu a língua antes de qualificar a mãe do
advogado). — Você tem alguma noção do tipo de reação
que a soltura de Roger vai causar? Você dois têm noção de
onde eu estava até agora?
— Se é sobre o incêndio, eu...
— Ricardo! Não é sobre o incêndio, é sobre crianças
mortas! E outras duas no hospital, tentando segurar a pele
torrada sobre os músculos. Vão mesmo colocar mais pólvora
nesse barril?
— Não vejo relação — disse Minotto.
— Não?! Seu filho matou uma jovem. Matou, violentou,
e agora finge ter uma amnésia perfeitamente cômoda.
— Se Roger matou ou não a moça, não está decidido,
delegado. Esse documento diz isso.
— Habeas Corpus? Isso não diz que Roger é inocente,
diz que vocês têm grana pra molhar a mão de alguém para
que ele responda o processo em liberdade.
— São acusações sérias, delegado Zétia.
Ouvir isso de Cotia foi a gota que faltava. Zétia foi para
cima dele, não usou as mãos, mas seu corpo todo para
intimidá-lo. À medida que se aproximava o corpo esguio de
Cotia se encolhia.
— Vai mesmo entrar na minha casa e me desafiar,
Cotia? Tem certeza que fará isso? — Depois mais baixo, aos
ouvidos — Tem certeza que uma busca em seu carro não vai
esmagar sua carreira? Tenho poderes para isso, sabe? Posso
ser tão safado quanto você e seus clientes.
— Zétia? — disse Regina do lado de dentro do balcão.
Era perigoso intimidar Cotia, ele era um verme e, como
tal, conhecia buracos onde se esconder. Zétia não era
assim, não tinha chances naquele jogo de corrupção, não
contra Cotia. Assim ele se acalmou o suficiente para tentar
outra abordagem.
— Ricardo, pense comigo. É para o seu próprio bem. Se
o garoto for solto hoje, com os ânimos como estão, pode
acontecer outra desgraça. Tem muita gente querendo o
sangue que perdeu dentro da escola. O filho de Orlando
Torque está morto, a filha da prefeita, desaparecida. O que
eles teriam pensado se o seu filho Roger, um acusado de
homicídio, estivesse solto por aí?
— Ele é meu filho e fica comigo. Eu me preocupo em
como defendê-lo. E você está errado, Zétia. O Roger não
matou ninguém.
Zétia procurou um pouco de apoio no homenzinho
acuado à sua frente, mas o homenzinho era um advogado.
Ele só entendia a língua do dinheiro que Zétia não dominava
muito bem. O principal motivo de estar encalhado até hoje
em Nova Enoque.
— Tudo bem. Não vou me opor a uma ordem judicial,
mas estejam avisados do erro que estão cometendo. Nossa
cidade se tornou um ninho de serpentes, Minotto, e você
está cutucando a casa das cobras com os dedos.
— Estou acostumado — disse Ricardo.
Contrariado e vencido, Zétia apanhou o documento das
mãos pequenas de Cotia. Leu e entregou a Regina. Ela
apanhou o papel com a mesma vontade, fechou a página de
fofocas da internet, e começou a digitar o que precisava
para soltar aquele marginal assassino. Regina tinha uma
filha adolescente (que estava com febre e, graças ao bom
Deus, não foi outra vítima da escola municipal). Sentia
náuseas só de imaginar o que teria que fazer. Pensou
inclusive em negar a tarefa, mas isso só prejudicaria ainda
mais o delegado. Zétia era um bom homem, ele não
merecia o que estava acontecendo.
— Venham comigo — Zétia disse, e esperou que Ricardo
e aquele homenzinho estúpido passassem pelo balcão.
Cruzaram o corredor que levava à cela sem trocar uma
palavra, apenas as respirações pesadas preenchendo o ar
que cheirava a tédio.
Roger estava em um canto, sentado no chão e olhando
para a parede à sua frente. O vaso sanitário estava cheio de
urina velha, e o cheiro recendia pelo ar parado. Havia
roupas no chão, um pedaço de comida do dia anterior
estava ao lado, cheio de formigas. Quando Ricardo chegou à
frente da cela, Roger continuou do mesmo jeito. Zétia
esperou que Ricardo tivesse um surto de sanidade e
desistisse de tirá-lo dali, mas claro que nada disso
aconteceu.
— Vamos para casa — disse Ricardo.
Roger olhou para fora sem demonstrar alegria ou
surpresa. Ele não demonstrou nada.
— O juiz concedeu o habeas corpus. Eles não têm
provas suficientes para mantê-lo aqui dentro — explicou
Cotia.
— Ainda. Eles ainda não têm provas — disse Zétia,
tirando a chave do bolso e girando-a na fechadura da cela.
— O fato do laboratório não ter competência para trancafiar
você de vez não garante sua liberdade.
Cotia pensava em ameaçar Zétia por assediar seu
cliente, mas o delegado abriu a cela antes disso. Ficou de pé
na abertura e esperou que Roger se levantasse. Roger saiu,
passou de cabeça baixa por Zétia, Ricardo o abraçou. Roger
não retribuiu, continuou com os braços esticados ao lado do
corpo. Ele estava diferente, algo havia mudado, quebrado
dentro dele. Naquele instante pareceu apenas estranho, e
nenhum daqueles homens imaginava o que havia de errado
com Roger Minotto.
— Vai ficar tudo bem — disse Ricardo, ainda mantendo o
abraço. Por cima dos seus ombros, Roger chorava.
— Vamos depressa antes que eu mude de ideia — disse
Zétia.
Roger voltou para apanhar o que tinha de roupa dentro
da cela.
— Deixe esses trapos aí. Não quero lembranças desse
lugarzinho fedido. Nós vamos para casa, Roger. Você vai
tomar um banho e esquecer os últimos dias. Esquecer
ouviu? — repetiu, segurando o rosto pálido de Roger com as
duas mãos. Os olhos úmidos recusaram os de Ricardo por
alguns segundos, mas logo se renderam. Roger balançou a
cabeça dizendo que sim.
Cotia foi na frente dessa vez, Minotto e Roger logo atrás,
Zétia na escolta.
— O que eu faço com o que ficou na cela?
— Ponha fogo, deixe para o próximo da lista, eu sei lá —
disse Ricardo.
Em seguida cruzou a porta e adentrou a área
administrativa.
— Precisam assinar os documentos — disse Regina.
Estava trêmula e não conseguia olhar direito para Roger. Ela
o conhecia desde menino e observá-lo, agora um assassino,
era perder um pouco de esperança no mundo.
Cotia esperou do outro lado do balcão, Roger e Ricardo
atrás dele. Ricardo abraçava o filho nos ombros, Roger
tremia um pouco, talvez estivesse doente dos nervos.
Alguém tão novo, dormindo na cadeia depois de perder a
namorada assassinada, poxa, claro que isso virou a cabeça
dele. Mas Ricardo iria consertá-la. No dia seguinte, Minotto
planejava pagar umas sessões de terapia ao garoto. Com as
pílulas certas, ele ficaria bem.
— Assine as três vias, por favor — disse Regina. O tom
de sua voz não dizia: por favor. Dizia: quero que vocês três
se fodam!
Cotia assinou os papéis com uma caneta de ouro e saiu
do caminho. Roger apanhou as folhas, olhou para elas sem
muito interesse. Assinou com uma caneta vagabunda que
ficava sobre o balcão. O delegado veio em seguida, olhou
para as mesmas folhas com vontade de limpar a bunda com
elas e também assinou com a caneta do balcão.
— Podemos ir? — perguntou Ricardo. Perguntou para
Cotia, talvez sabendo que qualquer pergunta ao delegado
soaria provocativa.
— Sim. A lei nos assegura esse direito — respondeu,
olhando na direção de Zétia.
— Vai ficar tudo bem — disse Ricardo. Roger continuava
mudo e cabisbaixo, sem qualquer reação de esperança ou
felicidade.
Do outro lado da rua, quase em frente à delegacia,
havia um barzinho xexelento. De dentro, um homem seguia
de perto os passos dos Minotto. Ele viu pai e filho saindo
abraçados e sentiu o estômago encolher de raiva. Deu um
gole em seu Campari e apertou o copo com força antes de
devolvê-lo ao balcão de mogno. O homem à sua cerca
estava certo. Ele não quis acreditar que a polícia fosse
mesmo libertar o assassino de sua menina, mas foi
exatamente o que fizeram. Desgraçados. Agora caberia a
ele fazer justiça, como devia ter sido desde o começo.
Galileu sacou o telefone celular do bolso e ligou para um
número que encontrou no telefone de Milena. Esperou três
toques até ser atendido.
— Quem fala? — ele perguntou.
— Quer falar com quem, senhor?
— Com o cara que desrespeitou minha filha.
O outro lado ficou mudo. Sultão continuou: — Aqui é o
pai da Milena, filho. Quero ter uma conversa com você sobre
Roger Minotto.
— Seu Galileu? Roger já está tendo o que merece
senhor, e eu n...
— Ele está solto, Luciano. Soltaram o filho da mãe. E não
foi só isso. Pelo que estou sabendo colocaram seu nome na
lista de suspeitos. Por causa de uns exames que a polícia
fez no corpo da minha menina. O resultado saiu hoje.
Mais silêncio do outro lado da linha. Do lado no qual
Luciano se lembrava de ter feito sexo com Milena e deixado
um monte de esperma dentro dela. Roger podia ter sofrido o
flagrante, mas, se eles encontraram mesmo vestígios de
Luciano, estava ferrado. Não que precisasse disso para
esmagar aquela barata rica do Roger Minotto, mas era um
bom pretexto.
— O que tem em mente, senhor?
— Posso livrar a sua cara, filho. Mas se formos em frente
com isso, precisaremos de um bom plano. E eu também
tenho isso. Pode me encontrar daqui a meia hora?
Dessa vez não houve silêncios incômodos.
— Onde o senhor está?
— Longe, mas diga onde está que eu encontro você.
A NOITE E O PADRE ESTEVÃO
 
A sensação de não estar fazendo seu papel está entre
as piores sensações desse mundo, e era o principal
pensamento de Padre Estevão. A dúvida corrosiva que
antecipa a noite e a faz durar para sempre, as sombras que
se movem no canto dos olhos, o coração que dispara
quando recordações horríveis emergem das profundezas do
cérebro cansado. Um dos motivos de Estevão manter as
portas da igreja abertas depois das sete da noite era seu
sentimento de culpa.
Ele havia saído da cidade quando mais precisaram dele,
e agora parecia ser tarde demais. Se ele tivesse ficado, se
tivesse dado ouvidos às confissões dos fiéis, poderia ter
evitado a morte daquelas crianças? Alguns pais estiveram
na igreja mais cedo, ajoelhados e pedindo que Deus
afastasse suas dores. Estevão pegou a parte daquela dor
que lhe cabia e tentou consolá-los. Mas o que dizer em um
momento tão ruim? O que alguém como ele, sem filhos ou
uma esposa, poderia dizer? Que sentia muito? Que Deus
tinha planos? Não... Os planos que se desenrolavam em
Nova Enoque vinham de outras mãos. A parte de Deus nisso
tudo era ignorar aquela gente, era o que parecia, e Estevão
pedia a todo instante que estivesse errado. Ele amava Deus,
mais que a si mesmo.
Desacostumado a não saber como agir, Estevão
aproveitava a catedral para obter suas respostas. Sua mãe,
falecida sob as garras de um câncer de útero que a fez
emagrecer cinquenta quilos em dois meses, costumava
dizer, quando ele era criança, que Deus sempre ajuda um
homem a seguir seu caminho, desde que o homem dê o
primeiro passo. Mas Deus não decide qual direção tomar.
Às suas costas, percebeu os últimos fiéis partindo para
as suas casas. Estavam exaustos. Olhos vermelhos, pernas
formigando, joelhos gritando, porque esse era o preço da fé.
Só agora, no silêncio perigoso dos templos, Padre
Estevão lembrava que devia uma visita a Galileu Sultão. Ele
não pôde encontrar com seu amigo naquela noite terrível
quando o mal se mostrou dentro de um táxi, também não o
fez no dia seguinte. Todos aqueles fiéis querendo abrir seu
coração e dizer as coisas terríveis que andavam pensando...
Dona Erminda, uma viúva simpática que sempre trazia
bolos de cenoura para ele, disse que sentia sua vulva
queimar quando pensava no padre. Disse que ficava úmida
de um jeito que chegava a molhar as pernas. Pediu
conselhos e ele. Estevão a fez ficar de joelhos por três
horas, durante esse tempo ficou do lado de fora da igreja.
Outro caso foi o do professor de Educação Física do colégio,
Juliano China. Ele começou a chorar assim que Estevão o
autorizou a confessar seus pecados. Chorou por muito
tempo e quando abriu a boca, o padre desejou nunca ter
ouvido o que saiu dela. China estava atraído pelos garotos,
não eram as garotas, mas os menininhos. Contou ao padre
que tinha conversado com um amigo novo, um psicólogo
que encontrou na internet. Segundo o tal terapeuta, ele
deveria confessar a um dos garotos o que sentia. E se o
garoto reagisse, ele deveria insistir e tocá-lo. O psicólogo
disse que garotos são como leões e que não seria um
grande problema iniciá-los sexualmente, desde que pudesse
convencê-los a isso. Alertou que escolhesse um mais tímido,
mais recalcado, alguém que não sairia por aí contando tudo
sobre o professor que gostava mais dele que dos outros
meninos. Mas Juliano foi mais forte e, apesar de ter
confessado que fantasiou relações com os garotos por dias,
nunca tocou nenhum deles — em vez disso, foi até a igreja.
Estevão aconselhou-o a arrumar uma garota, paga se fosse
preciso, para aliviar tanta tensão. Disse que nem aos padres
o celibato ajuda nesses casos. Que o melhor remédio era
que ele liberasse toda aquela energia sexual contida.
Depois ordenou que se ajoelhasse e rezasse todos os dias,
por sete dias. Um desses, China cumprira hoje mesmo, mais
cedo e dentro da igreja.
E isso não foi tudo.
Mércia, sobrinha de Orlando Torque, queria matar seus
dois filhos porque eles não comiam direito na hora do
almoço. Ela contou ao padre os detalhes, que ela iria colocar
veneno nos doces dos garotos, e que culparia o pai deles
que estava tendo o caso com a gerente do Unibanco.
Segundo ela, um estranho tocou a campainha de sua casa,
pediu um pouco de comida, e como retribuição, contou o
que sabia. O resto ela mesma descobriu, acessando um
celular de Giovanno que ficava sempre dentro do carro — o
imbecil usou como senha a data de nascimento do primeiro
filho. Estevão chamou os dois para uma reunião e Mércia
concordou em fazer algumas sessões conjuntas de terapia
com Giovanno.
A cidade inteira parecia maluca, tinham perdido o
juízo... Mas como? Em menos de uma semana?
E para terminar seu dia, o terrível incêndio na escola.
Estevão sentia o peito apertado, uma vontade
irresistível de abandonar a igreja, ou de se trancar dentro
dela e atear fogo em tudo. Ele talvez merecesse arder em
vida, queimar até seus ossos vaporizarem, mas as crianças?
Elas não, não bom Deus, não as crianças.
Ergueu os olhos, um pouco acima do altar, e encarou a
imagem de Jesus envolvido em um manto vermelho. A
imagem sempre esteve ali, mas agora parecia diferente.
Dias antes, Jesus olhava para cima, para os céus, com uma
expressão serena e amorosa. Hoje era diferente. Jesus
parecia imerso em decepção e perguntando ao seu pai:
como você permitiu isso?
— Fazendo hora extra, padre?
Estevão deixou a imagem com suas próprias dúvidas e
olhou para o lado. As mãos juntas ainda em seu colo.
— Delegado? Confesso que não o esperava por aqui.
— Posso sentar com o senhor?
Estevão se deslocou para a esquerda. Zétia baixou a
cabeça reverenciando o altar e ocupou o banco. Parecia
exausto, o cabelo oleoso formando pequenos cachos, a
barba crescida demais. Não era comum, o delegado
costumava levar muito a sério sua aparência.
— Precisando desabafar?
Zétia se permitiu um suspiro.
— Eu e o resto da cidade...
— Uma cidade toda é exagero, mas recebemos muita
gente hoje.
— O maldito incêndio — disse Zétia.
— Sim. Suponho que teve muito a ver com isso.
Do lado de fora da igreja, alguém atirou uma garrafa de
um carro em movimento, pelo menos foi o que pareceu com
o barulho do motor e os estilhaços de vidro correndo pela
calçada. Alguém que provavelmente foi o alvo da garrafa
gritou:
“Roberto, seu filho da puta! Eu sei onde você mora,
veado!”
Estevão esperou alguma decisão de Zétia. Ele não se
moveu.
— Foi assim o dia todo. E para terminar, soltei o garoto.
— De quem você está falando?
— Roger Minotto.
Alguém passou com outro carro, o volume estourando
em uma música que Zétia conhecia de sua adolescência.
The Evil That Men Do, do Iron Maiden. Soltou um risinho
pequeno e muito apropriado. O padre continuou o assunto
prévio.
— Eu conhecia Roger, sabe. Batizei aquele garoto. Casei
seus pais, enterrei seus avós e por pouco também não
enterrei a esposa de Ricardo. Roger não saiu ao pai, ele
sempre me pareceu um bom garoto. Diga-me, delegado:
acredita mesmo que ele foi capaz daquilo? O que o seu
coração diz?
— Que as pessoas mudam, padre. Para uma criança não
importa o lado quando se brinca de polícia e ladrão, demora
um tempo até definirem seu time. Talvez tenha acontecido
isso com Roger. A maldade do homem é assim, gradual.
— Sim, mas ele fez tudo o que está sendo acusado?
— Padre. Eu sou delegado há alguns anos e antes era
policial nas ruas. Via muita coisa errada acontecendo nos
becos quando ninguém mais estava olhando. Pense comigo.
Roger e Milena sozinhos, a noite convidando os hormônios
para fora. Eles tinham bebido um pouco, ela deve ter
deixado que ele avançasse. Então, em um surto de
consciência, disse não, eu não posso e não quero. O garoto
fica bravo e resolve fazer de qualquer jeito. No dia seguinte
ele acorda de ressaca e lembra o que aconteceu, mas não
confessa a ninguém. Ele prefere ficar mudo e chamar pelo
advogado do pai.
— E o resto dessa história?
— No capítulo de hoje, Ricardo Minotto e seu advogado
seboso tiram o garoto da cadeia. — Zétia apertou as mãos
sobre o colo. — E eu não posso fazer nada, mesmo sentindo
que essa é a pior decisão em uma cidade que está
enlouquecendo. E eu venho até aqui, falar com ele —
apontou para o altar e para o Jesus enrolado em um manto
vermelho.
— Tem algo ruim voltando para casa, delegado Zétia.
— De que tipo?
— Do pior tipo. Eu não sabia do que acontecia por aqui,
estava visitando meu irmão que não tem muito tempo de
vida quando Safira me procurou pedindo ajuda.
— Lamento por seu irmão.
— Não; não lamente. Meu irmão é um jumento teimoso
que sempre comeu da grama mais verde. Agora está
pagando o preço pelo abuso. Eu o amo o suficiente para
sentir sua falta, mas não foi por falta de aviso que ele
chegou onde está agora com um balão de oxigênio
amarrado nas costas.
— O senhor citou Safira, não achei que tivessem uma
relação amigável.
— Já tivemos. Hoje somos rivais. Todo mundo precisa de
concorrência, delegado. É como você e os homens maus.
Um não faz sentido se não houver o outro. A única diferença
é que eu e Safira lutamos lado a lado, apesar de não
parecer. Mas os métodos daquela mulher. Céus! Ela ainda
joga cartas e acredita em runas!
O delegado acabou rindo do estresse de Estevão. Não
lembrava de um padre sendo tão sincero.
— Dessa vez Safira me abriu os olhos. Alertou-me para o
que enfrentamos.
— Acha que tudo isso que está acontecendo está
relacionado?
— Pense, delegado. Começou com Roger, depois os
Bosco, o incidente com o carro de Orlando, a filha da
prefeita. Agora esse incêndio, que eu aposto, vai cair nas
costas de alguém.
— Já caiu. O filho de Orlando está morto. Só não vejo
relação em Pauline. Ela se matou depois de acabar com o
marido, mas a história deles acabou por aí.
— É o que sabemos. Mas Pauline pode ter sido apenas
uma peça desse quebra-cabeça, pode ter sido usada para
distrair as autoridades, nesse caso, você. Ou para chamar a
atenção das pessoas para a nova onda de violência. Gerar
comentários. Todo mundo dessa cidade adora uma fofoca.
— Precisamos interromper essa avalanche. Por isso
estou aqui, padre. Vim conversar com seu chefe, mas
também preciso de um favor seu.
— Se eu puder ajudar.
— Conhece Galileu Sultão a ponto de marcar um
encontro? Consegue trazer o homem até aqui?
— Há uma semana, diria que sim, mas agora? Acho
muito difícil ele deixar o sítio e trazer a esposa até aqui.
Rosana anda deprimida. Uma moça que faz a unhas dela
disse na confissão que... Olha só... Eu nem posso falar sobre
isso, onde estou com a cabeça? — meneou a mesma
cabeça, envergonhado.
— Eu pesquei a ideia, padre.
— Posso fazer o que me pede, Zétia, mas qual seria o
motivo dessa conversa?
— Galileu vai tentar acabar com Roger Minotto. Estive
falando com gente que conhece o velho. Ele anda esquisito,
comprou uma arma nova de um vagabundo. Quando nos
falamos, Galileu pediu que eu mantivesse Roger na cadeia
ou ele mesmo resolveria. Entende onde quero chegar?
— Vou falar com ele, delegado. Estou encerrando por
hoje e não sinto um pingo de sono. Com esse incêndio,
tenho uma boa desculpa para a visita que estou devendo.
Rosana faz parte do grupo de orações, posso ir até lá e
pedir ajuda. Mesmo que suas suspeitas não estejam
corretas, mal não fará. E você. Não quer aproveitar para
confessar seus pecados?
— Se fizermos isso, você vai ficar preso a noite toda,
padre — disse Zétia.
Sorriu, tocou as mãos finas e quentes do padre,
despediu-se do altar com um aceno quase informal e tomou
o corredor que o levou para a porta.
Dez minutos depois, Estevão também saiu do mesmo
assento para cumprir sua parte do acordo. Ele precisava ir
até era a casa de Sultão e conversar com o homem, plantar
boas ideias naquela mente que era terra fértil para o
demônio.
Olhava para seu amigo Jesus quando a igreja ficou mais
fria, tanto que Estevão assoprou as mãos tentando aquecê-
las. Lembrou-se do que disseram mais cedo, no jornal que
iniciava o dia da tevê. A moça do tempo havia dito que seria
uma noite quente e com pancadas de chuva, ele devia ter
trazido um casaco. Os meteorologistas diziam isso sobre
chuva há dois meses e, desde então, duas represas que
abasteciam a cidade estavam um metro abaixo do nível
esperado.
Ouvindo o tilintar das chaves, Betinha e Isaura, duas
beatas que só saíam quando o padre também fosse embora,
arrumaram o xale e cruzaram os braços uma na outra para
se aquecerem.
— Boa noite — disse o Estevão sem receber resposta.
Elas não falavam quando estavam sob os xales, coisa de
gente antiga. Tão antiga quanto Nova Enoque.
Seguiu as duas até a porta e já estava puxando uma das
folhas pesadas da porta quando um raspar de garganta o
impediu.
Quem ainda está aqui?, pensou.
Encontrou o homem no lado esquerdo, perto do local
onde as velas ficam queimando dia e noite, mais ou menos
na sétima fileira de bancos.
— Estamos fechando, amigo, vai precisar de muito
tempo para terminar suas orações?
A figura não se moveu ou respondeu. Nem parecia
respirar.
— Ouviu o que eu disse? — reforçou Estevão. Caminhou
até perto dele, parou a uns dois metros de onde estava.
Pelo menos o homem estava vivo. Era possível ouvir sua
respiração cheia de catarro. Devia ser algum coitado de rua.
Eles passavam por Nova Enoque às vezes, mas nunca
ficavam mais que uma noite. Parece que alguma vibração,
algo que só eles mesmos conheciam, os impelia a irem
embora. Estranho que um deles entrasse na igreja.
Geralmente paravam na porta e pediam um prato de
comida, ou alguma ajuda em dinheiro. Eles não entravam
na casa do Deus que não estava nem aí para suas
desgraças.
Estevão precisou chegar mais perto, tocou os ombros do
casaco encardido que vestia o homem e parou ao lado dele.
— Minha nossa senhora!
O rosto do homem estava todo trincado, em carne viva
em alguns pontos, nos sulcos mais profundos. Vespas
andavam pela carne e escapavam pela boca. Estava com os
olhos brancos e revirados para cima. Os insetos também
estavam pelos cabelos e pela barba comprida demais. Ele
cheirava mal, fedia como uma fossa aberta. Os piolhos que
rastejavam pelo crânio eram tantos que Estevão ouviu sua
conversa, patinhas deslizando tic-crics.
— Deus! O que é você! — Estevão recuou um passo.
Em vez de resposta, um enxame de vespas voou em sua
direção. Estevão girou o corpo, esquecendo-se da arma
mais poderosa que tinha em mãos. Não se lembrou de ter
um pouco de fé naquele momento de atribulação. Ele
correu, mas quando chegou ao meio da igreja, uma
serpente saiu de um dos corredores entre os bancos e se
enrolou em seus pés. Estevão não conseguiu gritar. Ele
tombou, e sua cabeça encontrou a quina de um dos bancos.
O mundo esmaeceu. As portas da igreja se chocaram contra
os batentes. O homem cheio de pragas se desfez em um
milhão de insetos, que viravam fumaça negra e fuligem.
Depois disso, nada mais que pudesse ser tocado ou visto,
exceto as velas que queimavam dia e noite, deixando de
brilhar.
A NOVA MÃE DA MATILHA
 
Lobo estava preocupado.
Desde que o vendedor de aspiradores de pó colocou a
mangueira na testa de Nora, ela dormia demais. Dormia tão
profundamente que, mais de uma vez, Lobo levou um
pequeno espelho para perto do nariz dela e esperou até
ficar embaçado. Ela estava viva, sim, mas ainda era cedo
para dizer que estava bem. Lobo estava sóbrio ao fim do
dia. Já tinha ficado bêbado, fumado maconha e ouvido três
vezes seguidas o único CD do Bob Marley que tinha em
casa. Também deu uma geral no quarto de Nora e
encontrou o buraco no chão onde ela escondia suas
porcarias. Algumas pedras, um cachimbo artesanal, uma
faca pequena e um isqueiro verde limão. Sentiu vontade de
fumar tudo aquilo. Mas nenhum viciado que preste rouba
alguém mais fodido que ele (se estiver em situação melhor,
tudo bem, mas nunca mais fodido).
— Lobo? — ouviu enquanto preparava uma quentinha
para a garota sequestrada. Lobo duvidava muito que
Patrícia conseguisse ficar outra noite, outro dia, sem comer
nada. O homem do aspirador de pó telefonou um pouco
mais cedo e disse a Lobo que assumiria o cativeiro dali a
dois dias. Também disse que Lobo podia se divertir um
pouco antes disso, que não havia problemas.
Lobo deixou a marmita (daquelas de alumínio, de
pedreiro mesmo) em cima da mesa e correu até a sala onde
Nora criava raízes desde o tratamento com o aspirador.
Apareceu devagar pela abertura da porta, olhos arregalados
e dentes mordendo os lábios superiores.
— Mãe? Tá tudo bem?
Nora olhou para ele como uma garotinha. Um pouco de
medo e curiosidade. Parecia tão inocente, Lobo sentiu um
remorso terrível do que tinha feito a ela. Tudo aquilo de
jogar suas coisas fora, de retirar suas memórias com um
aspirador de pó dos infernos, só agora calculava as
consequências. Mas e daí? Nada nesse mundo era pior que
vê-la se entupindo de pedra doce, seria melhor que ela
virasse puta — pelo menos traria dinheiro para casa, e
precisaria se cuidar um pouco, ninguém paga muito por
uma puta feia.
— Eu não sei... O que aconteceu? Parece que eu dormi
uma semana.
Alongou-se um pouco, erguendo os braços e depois os
deixando cair. Bocejou fazendo um barulho irritado ao fim.
Lobo tomou coragem e foi correndo até o sofá, se atirou no
chão como um cachorrinho e ficou olhando para ela. Mamãe
estava mais corada, as olheiras tinham ido embora e
devolvido os cinco anos que roubavam, até o cheiro dela
estava diferente, um cheiro de pele limpa que ela
costumava ter anos atrás.
— Quer que eu chame um médico?
— Médico? Pra quê? O que você tem, filho?
— Nada. Pra dizer a verdade eu tô bem demais. Tá com
fome?
— Um pouco. O que você preparou na cozinha? O cheiro
está ótimo.
— É que... Eu vou levar essa comida para uma amiga.
Ela não tá passando bem desde ontem.
— Uma garota? Quem é ela, Lobo? Eu a conheço?
— Não. Quer dizer, acho que não. Ela é legal, mas se
meteu ‘numas paradas sinistras.
— Você não está escondendo uma namorada da sua
mãe, né?
Lobo riu de um jeito que pareceu um infarto. A boca
aberta demais e a garganta mostrando a sineta. Bateu com
as mãos no braço do sofá.
— Eu e a...? Eu e ela? Não mãe, nem rola. Ela não é
minha namorada. É só alguém que se deu mal pra cacete.
— Pode me trazer um pouco de comida ou é tudo para
essa magrela? Prometo que não vou comer demais.
— Você tá mesmo bem? Não sente falta de nada?
— Do que você está falando, moleque? Bateu com a
cabeça em algum lugar?
— Tô falando daquilo, mãe. Da coisa ruim que encontrei
com você.
— Coisa ruim? Lobo, tá se drogando de novo, meu filho?
— Eu não, mas...
Pensou um pouco. Não conseguiria saber se tinha dado
certo até fazer a maldita pergunta. Mas Lobo tinha medo
que, se fizesse isso, se mencionasse aquela pedra porca
vinda do inferno, Nora tivesse outra recaída. Pior ainda, ela
podia resistir e tentar se matar como havia feito dois anos
antes, quando um dos seus namorados roubou todo o
estoque de lixo de outro buraco — na parede, atrás de um
quadro de um garotinho chorando. Bom, se era para sofrer,
que não fosse em pensamento.
— Quero saber se você sente vontade fumar pedra.
— Como é que é? Lobo, meu filho. Como uma pessoa
pode fumar uma pedra? Tá doido? Eu fumo cigarro do
Paraguai, já fumei erva-do-diabo, mas pedra? Nunca ouvi
ninguém falar sobre isso.
Lobo continuou olhando para ela, analisando suas
reações. Quando Nora mentia, olhava para a esquerda e
sempre fazia alguma coisa com as mãos. Enrolava o cabelo,
mexia com os dedos da outra mão, não... Ela não estava
fazendo nada daquilo, Nora estava sendo sincera. Lobo deu
outra daquelas risadas estúpidas e exageradas.
— Pô mãe, tava zoando você. Vou pegar um prato de
comida. Qué suco?
— Não. Suco me enjoa. Tem cerveja?
— Acabou faz umas duas semanas.
— Humm. Só a comida está bom.
Tudo bem. Estava em cima da hora e já era mais tarde
do que ele gostaria, mas ainda tinha tempo para alimentar
sua própria mãe. Lobo saiu do chão e correu até a cozinha,
apanhou um prato do escorredor e serviu um pouco de arroz
branco. Colocou um pedaço de carne também — precisou
sacrificar um dos pedaços de Patrícia para isso, mas nada
que lhe desse remorso, Patrícia deve ter comido mais carne
antes dos seis anos do que Lobo e Nora comeram até hoje.
Não demorou cinco minutos e estava de volta, Nora
bocejou mais uma vez e olhou para ele de um jeito
esquisito. Pareceu que ele estava fazendo besteira. Lobo
costumava fazer besteiras o tempo todo, mas não entendeu
do que se tratava.
— Que foi? — O prato na mão, esquentado as palmas de
um jeito irritante. O cheiro de comida crescendo dentro da
sala.
— O que aconteceu comigo, filho? Parece que eu dormi
uma semana.
Lobo pendeu a cabeça para a esquerda. Ou estava
muito enganado ou Nora já tinha dito uma frase muito
parecida há uns minutos.
— A senhora...
— Essa comida é pra mim? Ou você arranjou uma
namorada? Porque se for isso, já passou da hora. Seu pai na
sua idade já era seu pai.
— É, eu...
— Quem é ela?
Rápido, preciso pensar rápido!
— É uma coitada viciada em pedra.
Inicialmente Nora manteve o jeito esquisito de encarar.
Mas o olho no olho não durou muito e foi exorcizado de vez
com uma gargalhada que deixou Lobo sem jeito. Sentia-se
um palhaço que não entendeu a própria piada.
— Você fala cada coisa, Lobinho. Como alguém pode ser
viciada em pedra? Ela coleciona pedras, é isso? Como sua
coleção de moedas? Ah, esqueci. Você fumou a coleção
inteira, não foi? Espero que não esteja se metendo em
porcarias de novo.
— Não lembra mesmo do que conversamos antes de eu
ir pra cozinha?
— Tá me assustando, moleque. Tá querendo dizer o quê?
Lobo olhou para relógio. Oito da noite. Se saísse agora,
conseguiria voltar e terminar aquela conversa antes das
dez, isso se não se enrolasse com a filha da prefeita. E claro
que se enrolaria; qualquer uma mulher bonita com menos
de sessenta anos causava esse efeito desastroso nele.
— É que eu tô em cima da hora. Depois a gente
conversa.
— Deixa a comida aí. Tô com fome. Tem cerveja na
geladeira?
Lobo sacudia a cabeça. Deixou o prato com Nora,
passou pela estante e apanhou as chaves do Del Rey. Nora
não disse nada, mas olhou para ele, e foi como se não
entendesse nem mesmo o prato de comida em seu colo.
Lobo sentiu uma vontade danada de chorar. O que estava
acontecendo com ela? O que ele e aquele vendedor filho da
mãe tinham feito com Nora Lobo? Antes de entrar no carro,
porém, pensava se esquecer tudo a cada cinco minutos não
seria melhor que lembrar o tempo todo de fumar crack.
Achou que sim.
NO COVIL DO LOBO: Garota, alguém precisa
ceder!
 
Um dia inteiro no cativeiro obrigou Patrícia a rever seus
conceitos sobre resistir às ofertas do sequestrador. A fome é
boa em torcer opiniões, principalmente de alguém que
dorme em travesseiros mais macios que um doce de maria-
mole. A verdade é que nos primeiros momentos naquele
cubículo, Patrícia estava nervosa demais para sentir fome,
mas depois de uma noite inteira sem conseguir fugir, ou
mesmo ir ao banheiro, ela havia se tornado mais...
maleável.
Além disso, aquele cara parecia bem idiota, e se ela
fosse esperta e tivesse o sangue frio necessário, conseguiria
sair dali sem se machucar muito. Machucaria o orgulho, mas
isso curaria depressa, nada que uma viagem com suas
melhores amigas não resolvesse.
Poderia tecer um plano ali mesmo, mas a fome não a
deixava pensar direito. Deus, seu estômago doía tanto que
parecia estar cheio, não de comida, mas de chumbo
derretido. Não estava sentindo suas pernas. Uma ou duas
vezes no meio do dia, Patrícia tentou mover-se para que
elas não dormissem. Quem sabe precisasse das pernas para
uma fuga rápida? Pensou melhor sobre isso e decidiu que
armazenar energia era mais importante que manter as
pernas acordadas. Estava bem amarrada, as tentativas de
sair dali não deram em nada, e ainda arranharam suas
mãos presas às costas. Falando em dormências, elas não
significavam nada perto das câimbras. As piores faziam os
braços repuxarem por dentro, de um jeito que a fez chorar
de dor. Também chorou com saudades de Miriam e da vida
que costumava ter. Quando a noite caiu, chorou com medo
que alguém pior intencionado que seu sequestrador
entrasse ali e fizesse com ela o que os bastardos fazem.
E a noite trazia outros demônios. Um exemplo era o
senhor rato que entrou e saiu da sala umas vinte vezes. Em
uma dessas, ele chegou bem perto dos pés da cadeira e
olhou para cima, para os olhos daquela humana amarrada.
Talvez esteja esperando minha morte, pensou Patrícia. Logo
se conformou que o roedor estava atrás de algum resto de
comida. Provavelmente ele continuaria fazendo isso até que
ela mesma se tornasse um enorme resto de comida com
cabelos loiros e lisos — nem tão enorme assim, afinal ela
estava de dieta e não comia nada há dois dias...
Ratos ela podia suportar, mas não um inseto bem menor
e menos perigoso. Sua cabeça agora estava parada,
emperrada nesse ponto. Na dona barata que não teria
metade do respeito que aquele ratinho imundo demonstrou.
Baratas eram as putinhas sem noção do mundo animal.
Baratas destroem famílias e chupam o pau de outros
baratos casados com baratas. Baratas são maníacas
suicidas por natureza, são a décima primeira praga do Egito
e uma das piores ideias de Deus — a pior deve ter sido
aquele sequestrador corintiano.
Não venha aqui, por favor, não venha aqui!
Dona barata estava no vão da porta, no chão. Ela
recebia um pouco de luz do outro lado, provavelmente luz
da lua. Por mais que aquele cara fosse idiota, ele não
deixaria uma luz acesa no meio do lugar nenhum que devia
ficar aquele lugar. E que lugar era aquele? Podia ser na
fazenda velha — uma propriedade tomada de um canastrão
que morreu devendo uma nota para a prefeitura. A fazenda
estava impugnada desde então, esperando que algum
herdeiro (e havia dois) pagasse a conta. Garotos da cidade
costumavam ir até lá para zoar, fazer fogueiras, atirar com
espingardas de chumbinho, beber e fumar.
Eu já estive aqui antes?
Não naquela sala. Ela se lembraria. Patrícia podia ser
horrível em um monte de coisas (como matemática e em
lidar com garotos bonitos), mas sua memória era muito boa.
Ótimo, porque assim que aquele inferno terminasse, ela
colocaria aquele corintiano indecente na cadeia. E pediria
que Miriam acabasse com ele!
Você não desiste!, pensou olhando para dona Barata.
Estava se limpando agora, do jeito nojento que uma
barata faz. Cada vez que aquela bostinha abria e fechava as
asas o coração de Patrícia ameaçava escalar a garganta. E
se ela voasse? Baratas histéricas costumam fazer isso e não
importa o que digam: elas têm algum senso de orientação
paranormal que as faz sempre detectar a pessoa com mais
medo na sala. Em toda sua vida, Patrícia nunca tinha ouvido
falar que uma barata enfrentou Miriam Guerra, mas as
malditas faziam fila quando se tratava dela.
Lá fora, o ronco de um escapamento conhecido
começou a encher a noite. Era ele, o sequestrador maldito
que a levou para o inferno. Mas ela não foi a única a ouvir o
som de seu carro ridículo, não... Dona Barata também ouviu
aquela tragédia.
As duas também ouviram o puxão horrendo no freio de
mão e a música — Mantenha o Respeito do Planet Hemp —
que tocou dentro do carro por mais um minuto depois do
motor parar de funcionar. Ouviram uma pancada forte na
porta do carro e um gemido de quem encontrou um
obstáculo em um tropeção. Também outros passos, um som
metálico e assovios. Patrícia, pela primeira vez, torceu para
ouvir de novo a voz de seu algoz, pelo menos seria algo
conhecido depois de um dia todo ouvindo sua própria
respiração. Ela não conseguiu ver o rosto, tudo o que podia
reconhecer do bastardo era seu timão ridículo tatuado na
perna e a personalidade de quem ganhou barba no rosto
sem nunca passar dos treze.
A barata empinou as patas e balançou as antenas.
Ela vai sair voando! Vai voar em cima de mim!
A porta abriu e Lobo passou por ela, a barata não teve
qualquer reação que não fosse emitir um estalinho seguido
por um som de tripa esmagada, mucoso e úmido. Lobo não
viu o que tinha feito, mas Patrícia o teria agradecido se não
estivesse com tanta raiva outra vez.
— Eu trouxe comida, mina. Cê vai comer dessa vez?
Patrícia não pensou em nada que não fosse sacudir a
cabeça para cima e para baixo.
— Vou tirar esse pano da sua boca, mas não faz
nenhuma cagada, tá bom? Eu tô pensando em acabar com
isso amanhã.
Vendo o pânico brotar nos olhos da garota, ele explicou:
— Não é acabar com você, é com o sequestro. Tô pensando
em devolver você, mas antes preciso falar com um cara que
fez uma promessa e não cumpriu direito.
Ele estava com a redinha na cabeça de novo. A
bermuda, o tênis, o cheiro de suor e bebida, eram os
mesmos, mas existia alguma diferença naquela cena. Algo
em sua voz ressoava tristeza. O cheiro forte de comida
caseira logo tomou a sala-prisão e encheu a boca de Patrícia
de saliva. Cheiro de carne e feijão. Droga, ela estava com
tanta fome que transaria por um prato de comida quente.
Pensando bem... Não transaria não, mas talvez deixasse
alguma coisa mais quente acontecer. E não com aquele
moleque vencido que não sabia sequestrar ninguém direito.
Faria isso com Davi. Oh, sim, com Davi que devia estar
transando com a piriguete da Stela Nogueira.
Lobo chegou mais perto e antes de puxar a mordaça,
disse:
— Não grita hein, mina. Não quero machucar você e
nem levar a comida de volta — Puxou o tecido para baixo e
retirou a meia molhada da boca de Patrícia.
— Seu filho da puta! Vai me deixar morrer de fome
nesse buraco imundo? Tinha um rato e uma porra de uma
barata e eu quase fiz xixi nas calças porque você não me
deixou usar o banheiro e... Hummph! HumMMPPHHH!
— Se não parar de me esculachar, vai ficar com a
mordaça e sem comida, entendeu?
Como alguém podia ser tão imbecil? Patrícia deu de
ombros já que ainda não conseguia falar por telepatia.
— Ah é... — riu Lobo. — Cê não pode falar com isso aí na
boca, né? — riu mais um pouco. Saiu meio exagerado,
quase um relincho.
— Vou tirar o pano de novo. Nada de me xingar, tá
certo?
Ficou esperando de novo. Dessa vez Lobo não levou
tanto tempo para perceber que ela não diria nada com um
pano enchendo sua boca. Deu a volta na cadeira e soltou a
parte de trás; voltou para frente. Ela não tinha gritado pelo
menos.
— Se quiser pode tirar essa coisa ridícula do rosto.
— Ah! Nem fodendo. Eu não sou nenhum idiota.
— Não, claro que não. E é por isso que veio com essa
tatuagem mal feita aparecendo.
— Mal feita? Como assim?
— De verdade? Parece que desenharam isso aí com giz
de cera. Eu pediria meu dinheiro de volta.
— Não dá — disse cabisbaixo. — A tatoo foi pagamento
por um trampo que eu fiz. Pintei a casa do cara. — Riu. — E
ficou uma bosta!
— E ele se vingou direitinho...
— Não tô nem aí, o que importa é o conceito. E pode
parar de me enrolar, porque eu não vou mostrar meu rosto.
Um monte de gente deve ter uma tatuagem dessa aí, do
maravilhoso Timão!
— Se liga... Ninguém é retardado de fazer uma porcaria
dessas na batata da perna, pelo menos não uma porcaria
torta como essa sua.
Lobo baixou a cabeça e a balançou de um lado pro
outro.
— Tá quase ficando sem comida de novo, moça. Eu não
gosto de ninguém, de ninguém mesmo, falando mal do meu
timão. Ainda mais uma menininha mimada feito você.
Futebol é a nação do povo, moça! Nação!
— Tudo bem, senhor sequestrador. Agora me dê um
pouco de comida antes que eu morra de inanição.
Como ele continuou onde estava, Patrícia supôs que não
conhecesse a palavra.
— Fome, inanição é fome! — explicou.
— Eu sei o que significa.
Lobo foi até o outro cômodo e começou a mexer em
algumas compotas de alumínio que deixou em cima de uma
cadeira de lata, daquelas de bar. Deve ter roubado a coisa
como roubava tudo em sua vida. Inclusive garotas com
menos de dezessete anos.
Aproveitando a luz que entrava, Patrícia voltava a
analisar suas chances. Talvez a ideia de economizar energia
não fosse tão boa assim, havia algo que ela ainda não tinha
percebido. A sala da frente tinha uma porta bem
vagabunda, a da sala em que ela estava era mais nova, mas
uma das dobradiças estava cheia de ferrugem. Ela poderia
arrebentá-la. Claro gênio, mas para isso precisaria ficar fora
da cadeira, certo? E como fará isso?
— Por favor, moço. Preciso comer alguma coisa ou vou
desmaiar.
Só testando. Aposto que esse débil mental não aguenta
uma garota chorando.
Lobo continuou no outro cômodo, mas começou a ir
mais depressa com o que fazia. Tanto que derrubou uma
colher no chão. Ele a apanhou e limpou contra a bermuda.
Patrícia achou nojento, mas não perderia o apetite por isso.
Se nem aquela maldita barata esmagada conseguiu tirar
sua fome, nada mais o faria.
— Ei, não precisa disso, sua comida tá quase pronta —
disse Lobo, depois de ouvir um soluço úmido da filha da
prefeita. Patrícia caprichou e encenou um choro ainda mais
convincente. Também não foi difícil. Estar sequestrada há
dois dias e com os ossos da mandíbula pegando fogo
facilitava bastante. Além da saudade de sua mãe. Desde
que o pai se foi, ela e Miriam ficaram muito próximas;
Miriam era durona, era uma vaca, mas com Patrícia era o
oposto. Esforçava-se para ser a mãe que ela gostaria de ter
tido (e também não teve, vovó era outra vaca).
— Não é nada. É só o meu braço.
Lobo colocou o prato descartável no chão,
perigosamente perto da dona barata esmagada e olhou
penalizado para sua prisioneira. Pobrezinha. Tão bonita e...
Pobrezinha. Sentiu uma vontade quase irresistível de
desamarrá-la e levá-la para casa.
— Tá doendo muito? — Mordeu a isca.
Agora era só caprichar no drama. E Patrícia era uma
especialista nisso. Tino de família, todo Guerra nascido em
Nova Enoque nascia com habilidade de persuasão extrema.
— É que... Eu tenho um problemão no ombro direito.
Fiemófolis Muscularis.
O rosto de Lobo ficou preocupado e tenso.
— É muito sério?
— Já ouviu falar em gangrena? — Jogou.
Claro que ele já ouvira falar em gangrena, mesmo que
fosse pela banda de rock mais porcaria desse mundo,
Gangrena Gasosa, mas a verdade é que ele ouvira aquela
palavra como ouviu setenta por cento das outras que
enchiam o dicionário: sem fazer ideia do que significava.
Sabia que era uma doença, que era sério, e isso era tudo e
mais do que se esperaria de um semianalfabeto como ele.
— Claro que já, mina. É quando o braço apodrece.
Perfeito...
— É quase isso com meu braço, dá uma olhada para
mim, vê se tá vermelho perto do pulso.
— E o que acontece se estiver vermelho?
— Depois eu digo, mas primeiro olha.
Lobo deu a volta e colocou a mão na boca quando viu.
Patrícia ouviu de onde estava sua respiração acelerando. Se
ela estivesse certa, seu braços estariam roxos depois de
quase dois dias amarrados. E poderia ter sido perigoso de
verdade se ela não os afrouxasse um pouco a cada meia
hora para manter o sangue circulando. É, mas aquele porco
adolescente eterno não sabia disso.
— E então?
— Tá feio.
— Oh, meu Deus, não! Vou perder meu braço!
— Calma aí, mina! Me diz o que eu faço!?
— Precisa desamarrar e deixar que eu me movimente
um pouco, talvez ainda dê tempo.
— Não tá mentindo para mim, né?
— Tá doido? Você mesmo viu, deve estar quase preto, o
sangue parou de circular, eu não sinto meus dedos!
— Ai-ai-ai! O que eu faço? — golpeou a cabeça com a
base das mãos. A filha da prefeita estava chorando; e se
fosse mesmo verdade aquilo sobre o braço? E se ele
condenasse a moça à gangrena e àquela outra doença
horrível? Como era mesmo o nome? Fimosis Terrível? Dane-
se! Ele não faria isso com uma menina bonita, talvez fizesse
com uma feia ou com uma das putas da linha do trem, mas
a filha da prefeita era da aristocracia (mesmo que ele não
soubesse o que significava, mas sabia que era coisa de
gente rica).
— Precisa me soltar, moço! Você não parece alguém
mau de verdade, não a ponto de deixar meu braço
apodrecer! Se não me soltar, o sangue vai coagular, e eu
posso parar de respirar!
— Por causa do braço?
— É! Por causa da gangrena! Meu coração vai ficar todo
infeccionado!
Enfim uma palavra que ele compreendia e respeitava:
Infecção.
Sua irmãzinha tinha morrido por causa de uma infecção.
Começou no dedão do pé e foi se alastrando. Quando
finalmente a levaram ao médico, ela estava com quarenta
graus de febre e delirando. Os médicos deram uma porção
de antibióticos, mas não conseguiram salvá-la, a infecção
de alguma maneira chegou ao sangue e daí se espalhou
pelo corpo inteiro, foi o que os médicos disseram — e na
família Lobo, médicos e Deuses estavam lado a lado.
Ele não pensou mais. Sacou um canivetinho suíço (falso,
claro que era falso) e cortou a corda que prendia os braços.
Patrícia fez sua parte e gritou alto quando moveu os braços.
De fato a sensação de formigamento era horrível, mas o
teatro que ela fez ganharia uma estatueta dourada. Quando
parou de gritar, moveu o pescoço como um fã de heavy
metal. Cabelos sacolejando e espalhando o perfume que
ainda existia neles.
— O que tá acontecendo?!
— O sangue! Preciso fazer meu sangue circular!
— Meu Deus, mina! O que eu faço? O que eu posso
fazê?
Em certo momento, Patrícia riu. Aquele idiota maníaco
por futebol era bem mais estúpido do que ela pensava.
Alguém com neurônios operando na reserva seria mais
inteligente que aquela besta. Ok, mas não era bom
exagerar. Vamos supor que, por um surto de sanidade, ele
resolvesse dar umas pancadas para ela não entrar em
pânico? Meter a mão calejada no seu rosto fino?
Os movimentos head-banger pararam, e ela deixou os
cabelos cobrindo seu rosto. Os braços estavam caídos ao
lado do corpo, ela os fazia tremer de propósito com
pequenos movimentos convulsivos. Então ela foi subindo o
rosto bem devagar. Senhor cabeça-de-redinha estava ao
seu alcance, talvez devesse furar seus olhos idiotas com as
unhas ou arrancar um pedaço de seu rosto. Mas era
arriscado, o mais esperto era sair dali sem combate. Se ela
conseguisse manter as mãos soltas, teria muito tempo para
tentar escapar. Além disso, estava fraca e faminta. Talvez
tenha sido a fome quem finalmente decidiu por ela.
— Acho que estou bem.
— Seu braço não vai apodrecer?
— Não. Não ainda. Mas se você me prender de novo, vai
me condenar a uma morte horrível. Mas pode me matar se
quiser. Eu estou tão triste que vou morrer de qualquer jeito.
— Sem essa, tristeza não mata.
É sim. Lobo acreditava nisso de verdade. Se tristeza
matasse, ele e Nora teriam morrido há uns dez anos. E
tentar explicar a ele o que era depressão e a diferença disso
para frescura ou demência levaria tanto tempo que faria
aquela comida cheirosa parecer vômito.
— Mas fome mata. Vai me dar aquela comida ou vai me
torturar como fez ontem?
— Tá. Pode comer. Depois a gente resolve o que faz com
seu braço podre.
MALDITO COMPUTADOR!
 
Alan chorou muito depois de chegar em sua casa. Janice
o consolou como pôde. Pelo que ouviu, seu filho presenciou
o incêndio de perto. Nora ainda não tinha juntado coragem
suficiente para perguntar a ele sobre seu projeto na feira de
ciências. Era tão óbvio. Mas como um garoto tão bom
quando Alan acaba envolvido em algo tão terrível quanto
aquele incêndio?
A tevê da sala estava ligada e Janice assistia a reprise
da reportagem sobre o incêndio. Disseram que outra criança
havia morrido, uma garota. Também especularam sobre a
causa do incêndio, até então ninguém disse nada sobre o
vulcão de Alan. O que era bom e alimentava um fio de
esperança muito pequeno de que ele não tinha culpa no
incidente. Mas seu coração dizia outra coisa, toda mãe
conhece seu filho, e Alan não chorava apenas de tristeza e
choque. Era remorso.
Desde que terminou seu banho, Alan estava na frente
do computador. Janice não pensava mais em tirá-lo dali.
Melhor que focasse sua atenção em outros assuntos,
qualquer coisa seria melhor que rever ininterruptamente
seus amiguinhos de escola pegando fogo, gritando e
derretendo.
— Cadê você? — Alan perguntou ao computador.
Seus olhos ardiam e perdiam o foco com facilidade. A
cabeça estava dolorida, e ele já tinha afanado dois Tylenol’s
de Janice da gaveta do banheiro. Mamãe tinha enxaquecas
horríveis e encontrar remédios não era exatamente difícil. E
Janice não se preocupava: Alan preferia morrer de dor a
tomar remédios. Alan, que naquela noite precisava
encontrar o safado que o condenou a uma vida de
remorsos, queria ter certeza que não era o único culpado
por tudo aquilo. Ainda ouvia os gritos dentro de sua cabeça,
Anderson, Luizão, o babaca do Murilo. Eles mereciam
mesmo uma morte daquelas? Agora que a poeira baixava e
ficava claro que nenhum deles estaria na escola no dia
seguinte para fazer de sua vida um inferno, Alan não tinha
tanta certeza.
Pelo dia todo procurou casos como o dele na rede —
quando o computador não precisa de energia ou de internet
para falar com você. Esbarrou em inúmeras propagandas de
filmes e livros de horror, principalmente dos anos oitenta
quando todo mundo adorava Poltergeists. O que encontrou
mais seriamente falava sobre transcomunicação, mas esse
era um assunto espírita e embora Alan não acreditasse em
uma palavra, morria de medo. Oh, e quem não fica com
medo quando a tevê e o rádio parecem mais interativos que
o computador do quarto? Além disso, ele tinha novas razões
para ter medo.
Estava quase desistindo e se entregando aos pesadelos
quando o computador voltou a falar com ele. A tela piscou,
o HD da CPU fez um ruído estranho — como se a agulha
estivesse perdida no meio do disco, e então tudo ficou
escuro. Foi sem a CPU que a tela escreveu:
<O QUE VOCÊ QUER? MINHA PARTE DO ACORDO FOI
CUMPRIDA, NINGÚEM IRÁ PERTURBÁ-LO NA ESCOLA>
Alan digitou:
“Precisava acabar com a escola e matar os garotos?”
Depois, a resposta parou de vir em caixa alta, o que foi
um alívio, porque era bem menos assustador.
<RSRS. Não me diga que está com peninha deles? Dos
escrotinhos que obrigaram você a lavar o rosto com água da
privada>
“Vou procurar o delegado.”
<Não se precipite, Alan Sérpia. Não esqueça que foi
você quem enviou aquele e-mail bonito para a filha da
prefeita. Sabe onde ela está agora? Graças a você? Em uma
sala escura que fede urina e mofo. Ela está com alguém que
adoraria fazer coisas com ela. Você me entendeu, hã?
Coisas... Coisas como as que você faz no chuveiro e pensa
que ninguém vê>
“O delegado Zétia é legal. Ele vai resolver essa
bagunça.”
Um ruído esquisito, parecido com uma tentativa de
conexão discada, fez Alan tirar as mãos do teclado e se
afastar. A tela do computador ficou vermelha, ele correu e
encostou a porta do quarto.
<E o que pensa que Zétia vai fazer com você?>
— Eu não sei, mas vou correr o risco. Pior do que já está
não fica — disse em voz alta.
<Ele vai mandá-lo para um lugar escuro, garoto. Vai
botar a culpa em você, e eu não vou defendê-lo. Acredita
mesmo que vão encontrar rastros desse nosso diálogo e
passar algum antivírus em mim? Esqueceu que eu não sou
limitado a esse processador ridículo? Cai na real, garotão, se
você abrir a boca estará acabado>
  — Eu já disse, senhor — Alan reafirmou em voz alta,
duvidava muito que precisasse de um teclado. — Não quero
mais guardar esse segredo. E para começar: se eu soubesse
que alguma coisa tão ruim iria acontecer, nunca teria
concordado com seu plano. Não me importo se vão me
internar em um hospício ou me prender até os sessenta
anos, eu só não quero sentir esse vazio no meu estômago.
<Tem certeza?>, perguntou a tela. Estava negra de
novo, as letras em branco, como uma tela de DOS.
— Tenho — Alan respondeu.
<AGUARDE, SEU PEDIDO ESTÁ SENDO PROCESSADO>
Depois disso, uma barra parecida com o antigo Scandisk
apareceu logo embaixo da última linha escrita:
15%.
20%...
Alan roía as unhas, sem tirar os olhos da tela. O que
aconteceria quando chegasse a 100%? Uma nova explosão?
Não, claro que não. Se o computador quisesse explodi-lo,
não faria uma contagem regressiva (progressiva, naquele
caso). A melhor das hipóteses era um novo contrato, com
novas cláusulas, e uma delas talvez permitisse nunca mais
ouvir ou ver aquela tela-guru-estúpida.
48%...
— Alan? Tudo bem aí? — perguntou Janice, tão perto da
abertura da porta que estava praticamente dentro do
quarto. Alan saiu correndo e parou em frente a ela antes
que entrasse.
— Eu... Eu tô ocupado.
— O dia todo? O que nós combinamos sobre computador
demais?
Quando ela disse computador, a CPU adormecida soltou
um Bip. Alan olhou para dentro do quarto, esperando
encontrar um ciborgue assassino, mas não viu nada mais
apavorante que seu computador que falava e pensava
sozinho. De qualquer maneira não queria Janice dentro do
quarto enquanto não resolvesse seu assunto com a
máquina.
— É só hoje, mãe. O computador mantem minha cabeça
ocupada. Quando eu penso neles, eu ainda vejo tudo. Dá
até pra escutar os gritos.
Janice sentiu um arrepio daqueles e deixou o garoto em
paz. Pelo menos por um tempo. O tempo que aquela
máquina dirigida pelo mal precisava.
— Tudo bem, Alan. Mas quero você na cama antes das
dez. Amanhã vamos ter que conversar sobre o futuro.
— Que futuro?
— Sobre sua nova escola, Alan. Você não pode perder
um ano porque a escola pegou fogo. Amanhã conversamos
melhor.
Janice voltou para a sala. A tevê sorria como a única
felicidade sobrevivente da casa.
Alan se atirou na cadeira da escrivaninha.
88%...
Quase lá. Quase lá do que quer que fosse aquela
porcaria.
95%...
Os dedos de Alan estavam úmidos e trêmulos, seus
lábios, gelados e brancos. Estava com uma sensação ruim.
Mas era tarde demais para isso, porque depois de piscar os
olhos, a contagem estava em:
99%...
100%
 
<SE DESEJA CANCELAR ESSE PROGRAMA, APERTE A
TECLA VERMELHA NA TELA>
<SE QUISER OUTRO PRGRAMA TECLE “N”>
<DESEJA REALMENTE ENCERRAR O PROGRAMA?>
 
Alan roeu as unhas por alguns segundos. Mas ele tinha
uma resposta.
A tal tecla vermelha estava ali, piscando e fazendo da
tela uma plataforma touchscreen. Era loucura. Ninguém na
terra tinha tecnologia para fazer uma manobra daquelas,
ninguém mesmo, nem Bill Gates, ou o que sobrou da Apple,
nem todos os hackers comedores de rosquinhas da Nova
Zelândia juntos.
Ele chegou bem perto, o dedo indicador direito tremia
um pouco, a cabeça pensando, pensando não, se
enganando que tudo ficaria bem ou um pouco melhor que a
merda onde acabou enfiado. Se o remorso fosse embora...
bem, isso seria uma grande coisa. Ele apertou.
A luz fraquinha do abajur que projetava morcegos de luz
nas paredes oscilou. Alan não olhou para ela, e nem
conseguiria fazer isso. Quando pensou em afastar seu dedo
da tela, já estava grudado nela, preso e circulado por
milhares de volts. Seus cabelos eriçaram e uma correntinha
de ouro voou do seu pescoço como se explodisse. Alguns
raios emergiram dos dedos de Alan, procurando rotas de
fuga como em uma bobina de Tesla. Alan sofria, as dores
eram tão fortes que ele duvidou que fossem muito melhores
que ser queimado vivo. Quando sua mandíbula se chocou
tão forte que arrancou um dente, ele preferiu ser queimado.
Os olhos foram os seguintes, arruinados como dois tomates
lançados à fogueira. Pobre Alan, ele nem conseguiu gritar,
todos os seus músculos, inclusive os da fala, estavam
travados e sobrecarregados.
A luz da sala também falhou, a tevê saiu do ar e depois
desligou. Janice praguejou contra ela e pensou que o
computador do quarto sofreria danos com toda aquela
oscilação. Gritou que Alan o desligasse. Ele não teria outro
se aquele computador queimasse, não tinham de onde
arrancar dinheiro. Mas pobre Alan-Queimado... Quando o
cheiro de sua carne morta e esturricada chegou à sala,
Janice ainda perguntou: — Alan! Que cheiro é esse? Não
mandei desligar essa porcaria?
MAS QUE DROGA!
 
Quem vive em cidades pequenas (ou minúsculas como
Nova Enoque) precisa aprender a se divertir com pouco ou
enlouquece. Jota Moreno era um desses e um bom
passatempo nas noites mais quentes era observar os
vagalumes perto da linha do trem. Ele sempre ia para lá
quando não tinha nada melhor para fazer. Levava umas
cervejas, um maço novo de cigarros; se pudesse levar uma
garota, tudo seria ótimo. O que não aconteceu depois do
incêndio da escola. Para arruinar com todo o resto, Jota
tinha discutido feio com sua mais séria candidata à
namorada. Tudo por causa da porcaria do Subaru de
Orlando Torque. Caramba, ele já tinha tido ideias ruins, mas
topar essa com a prefeita estava dando uma dor de cabeça
assombrosa. Agora, com o sumiço da garota, da tal Patrícia
Guerra, a cidade estava maluca, todo mundo parecia
desconfiar de todo mundo, e vagabundos como ele estavam
florescentes no caderninho da polícia. Desde a morte de
Pauline Bosco, Jota ficava na dele. Poucas saídas na rua,
chegava cedo em casa, os planos para ampliação da rede
de tráfico com Lobo e Pêra já eram. Parte do dinheiro ainda
estava com ele, mas era dinheiro sujo. Até que fosse limpo
(até que a cidade se acalmasse), usá-lo seria assinar um
atestado de burrice. Jota estava cansado de ser burro,
queria mudar de vida.
O ar estava pesado, uma nuvem de poeira dormia sobre
as luzes de iodo acendidas há pouco, simulando um
nevoeiro de sangue. A lua nasceu enorme aquela noite,
amarela demais para ser verdadeira. Pensando bem, nada
parecia de verdade em Nova Enoque.
O lance com os vagalumes era uma desculpa para ficar
sozinho; essa era toda a verdade.
Como sempre eles começaram a voar quando os trilhos
vibraram. Em segundos um bocado de luz cobriu a
vegetação com seu brilho alienígena. O trem não passava
mais por Nova Enoque, as linhas estavam abandonadas há
anos, mas ainda tremiam quando ele se arrastava por Três
Rios, Acácias ou Gêvá, as cidades próximas.
Jota apanhou a cerveja de um isopor pequeno e abriu
usando a camiseta. Deu um bom gole tentando tirar o peso
dos últimos dias. Crianças mortas na escola, pessoas
sequestradas, o safado do Roger Minotto solto da cadeia
onde deveria ter sido enforcado se o mundo fosse justo. Jota
e Roger já tinham se estranhado duas vezes. Jota não
gostava do seu jeito mandão, de dono da cidade. Roger não
gostava de se sentir diminuído perto de ninguém. O
problema é que Jota era pobre e ferrado, mas também era
esperto e tinha jeito com as mulheres. Pensando em Roger,
Jota acendeu um cigarro e deitou sobre o capô do carro,
apoiando as costas nos vidros, as botas riscando a lataria do
Maverick que escapara do ferro velho graças a ele.
Também pensava em outras pessoas, por exemplo, o
cara mais inocente, gente fina e burro que conheceu na
vida. Lobo andava sumido desde o lance com o vereador
Orlando e isso não podia ser bom. Lobo gostara de uns
lances pesados em um passado breve, cocaína, craque,
chegou a usar heroína, embora negasse.
O que esse maluco está aprontando?
Outro que estava sumido era Pêra. Isso não era tão
estranho, porque Pêra sempre foi o mais reservado dos três.
Tão reservado que às vezes deixava de fazer falta. Uma vez
passou dias enfurnado dentro do porão. Queimando erva,
comendo sanduíches e assistindo televisão. Dias perfeitos
de um cara novo que não tinha família ou enchimento de
saco por perto.
O céu estaria limpo segundo a previsão, mas pra variar
erraram feio. O que havia acima dos olhos era um laranja
carrancudo e estático. Estrelas ocultas, só mesmo a lua
brilhava, mas até ela, à medida que foi subindo, ficou menor
e mais tímida.
Do outro lado da linha os vagalumes continuavam
interessando mais que o céu. Era como um maremoto de
luzes verdes, caóticas e velozes, piscando sem parar. Às
vezes formavam pequenos torvelinhos e sempre que isso
acontecia, Jota se lembrava de uma reportagem que viu na
tevê há três anos, talvez um pouco menos. Falava de uma
cidade do leste, Acácias. Uma família teve um problema
sério por lá, disseram que foi presença do demônio,
exorcismos, essas coisas. O repórter da tevê contou que os
pais do garotinho possuído relataram que na noite em que o
coisa-ruim entrou nele, ele foi cercado por vagalumes. O
que Jota achava é que o pai acabou com a família toda em
um surto psicótico. Ele meteu fogo na casa, na esposa e nos
três filhos, e se matou junto. Mas isso não tirava o brilho dos
vagalumes, como o Demônio e sua ira contra Deus também
não tiravam sua inteligência. Era o que Jota acreditava
depois do pouco (umas dez páginas) que leu da Bíblia. Jota
não gostava daquilo de profetas e mandamentos. O que
acreditava é que um homem deve fazer o que lhe é
conveniente, o resto é cabresto para gado de corte.
Deixou os vagalumes em paz quando viu alguns faróis
vindo em sua direção. Seis deles. O primeiro carro era mais
alto, devia ser uma Pick-Up. Os outros dois eram carros de
passeio. Não estavam velozes, o que era muito bom — a
polícia costumava andar depressa. Pensou em entrar no
carro e cair fora dali, mas não fez isso. Ele não estava
devendo nada a ninguém que tivesse carros sem sirenes.
Na verdade estava sim, mas Orlando Torque não mobilizaria
tanto esforço por causa de um carro que estava no seguro
— ele era amigo do filho do corretor de seguros de Torque e
o rapaz contou que o vereador provavelmente receberia
tudo e mais um pouco pelo Subaru.
Do outro lado da linha, poucos vagalumes enfrentando o
brilho das lâmpadas. Se fosse esperto, Jota teria feito o
mesmo. Ele acendeu um cigarro novo quando a Pick-up
parou atrás do seu carro levantando um monte de poeira.
Não se intimidou e cobriu os olhos com a mão esquerda. O
que um filho da puta pretendia com um farol daqueles?
Bronzeá-lo artificialmente?
Ouviu a porta abrir, não conseguiu identificar quem
desceu. O homem entrou na frente de um dos faróis e disse:
— Jota Moreno?
— Quem quer saber?
— Precisamos conversar.
Atrás da caminhonete, os outros carros chegaram e
deixaram os motores ligados. Alguém desceu de um deles,
também não deu para ver de quem se tratava. A voz
parecia desconhecida, mas o medo distorce as coisas.
— Eu não tô a fim de conversar. Quero ficar sozinho e
olhar para a linha do trem. Se você e seus amigos querem a
mesma coisa, eu não me importo. Ou posso ir embora daqui
e fingimos que nada disso aconteceu. O que acha disso,
amigo?
— Não sou seu amigo, senhor Moreno. Estou aqui a
trabalho. Agora saia dessa lata velha e entre no carro.
Pretendo acabar logo nossa conversa.
Ticlakc!
— Merda — Jota resmungou. Conhecia bem o som de
uma arma engatilhando. O homem à frente do farol reduziu
o estresse.
— Tudo bem, não vamos precisar disso. Ele entendeu o
recado.
Jota deixou o capô, tragou o cigarro e jogou o que
sobrou no chão. Parou recostado ao Maverick. O carro às
suas costas desligou os faróis. Demorou um tempo para os
olhos se acostumarem de novo com a escuridão, mas
quando o fizeram não adiantou nada.
— Não acho que você me confundiu com alguém, certo?
Do que se trata?
— Vamos dar um passeio, Jota.
— Não, cara. Ou diz do que se trata ou vai precisar
acabar comigo.
Siqueira riu e coçou o bigode grisalho com os dedos.
Aquele filho da mãe tinha fibra. Bem mais que o retardado
que não conseguiram encontrar naquela noite gloriosa. Mas
não importava, porque Jota era o cabeça.
— Filho, tira a bunda desse carro e venha comigo, sim?
Ainda não temos motivos para arrebentar essa sua cara
feia, mas se nos der esse mole, como vocês dizem, vamos
ter prazer em nos exercitar. O que me diz?
Ele era um cara grande. Baixinhos são mais irritantes,
mas caras grandões quase sempre dizem a verdade e
arriscam suas bundas grandonas. E o filho da mãe do
Siqueira sempre teve um rosto confiável. Jota o conhecia,
mas não abriu a boca para dizer isso.
— Tudo bem. Mas preciso voltar para pegar o carro, não
vão me deixar longe, não é?
— Vai depender de você. Agora vamos, nossos amigos
estão com pressa e não queremos deixar ninguém nervoso.
Pode entrar no carro de trás. Nesse aqui, só eu e o
Anizinho.
Jota deu uma olhada no tal do Anizinho. Ela tão grande
que a caminhonete parecia pequena para ele. Tinha barba
meio grisalha e suja, e ele não tinha a mesma expressão de
confiança de Siqueira. Anizinho era só um jagunço, leão de
chácara, capacho, um vagabundo que espancaria alguém
por duas garrafas de cerveja. Jota achou uma boa vantagem
não dividir o carro com ele. Sua vantagem terminou ao
encontrar quem já ocupava o lado direito do assento
traseiro do Santana (o tal segundo carro, o terceiro era um
Passat Alemão escuro). Ele entrou e bateu a porta antes de
dizer: — Que merda cara, tá fazendo o que aqui?
— Ele foi atrás de mim, o detetive. Eu juro que não
queria abrir o bico, mas aí pegaram a filha da prefeita e
meteram fogo na escola... Eles acham que a gente teve
alguma coisa a ver com isso. Eu disse que não, mas eles
conseguiram seu nome então...
— Então você me ferrou. Valeu Pêra...
— As princesas podem namorar depois. Agora calem a
porra da boca — disse o motorista. Sua voz era rouca e
grossa. Voz de fumante. O cara ao lado (que pelo braço, era
bem grande) deu uma risada curta e maldosa.
Ficaram calados por vinte minutos, tempo em que
tomaram outra estrada, a que levava ao matadouro-
curtume dos Minotto — não por coincidência uma estrada
deserta à noite. Eles estavam ferrados...
Não chegaram aos Minotto, tomaram um entroncamento
para a antiga usina de cana. Estava abandonada há um dez
anos, tempo suficiente para que nada ficasse inteiro, exceto
a plantação abandonada que formava labirintos como
também acontece nos milharais. Era um lugar terrível para
estar à noite, fácil de se perder, sombrio e fedido. Se o
sujeito caísse ali, já era. Ninguém conseguiria encontrá-lo.
— Chegamos — disse o motorista. Mas quem virou para
trás foi o cara do braço de lenhador. Ele era negro e tinha
um quê de Mike Tyson no rosto, os olhos pequenos e
raivosos mesmo quando sorria.
— Vou dar um conselho. Não irritem o chefe.
Pêra engoliu tão forte que sua garganta estalou. Jota na
mesma, olhando para fora e tentando supor por que estava
sequestrado àquele lugar.
Não gostava dali, ninguém da cidade gostava. A usina
tinha sido palco de uma desgraça no passado, bem antes de
ser uma usina. Aquele terreno era maldito e todo
enoqueano sabia disso.
— Não fizemos nada — disse Pêra. Estava com a voz
úmida, e Jota se envergonhou por ele. Que merda de
homem... Se já estava chorando agora, não serviria para
nada quando o primeiro soco viesse. E por mais otimista
que fosse Jota duvidava muito que sairia daquela porcaria
de usina sem mancar um pouco. E se fosse só isso, estaria
bom, Jota conhecia um cara que não pode ter filhos depois
de uma surra.
Do Passat desceram mais dois capangas, vestidos como
seguranças de verdade, com ternos e sapatos polidos (e
deviam ter armas polidas também). O mais alto deles era
bem magro e tinha o pescoço todo irritado por causa do uso
excessivo de lâminas de barbear. O outro tinha o rosto
esburacado. Tinha os olhos meio amarelados, cheios de
alguma doença que subiu do fígado. E então ele desceu.
— Seu Orlando, eu... — tentou dizer, Pêra. Antes que
concluísse o punho de Tyson-braço-de-lenhador acertou seu
estômago. Ele gemeu e caiu de joelhos, Jota se abaixou para
ajudá-lo.
— Pra que isso, pô! Viemos até aqui, não foi?
— Quando ele devia falar, não quis. Agora vai falar
quando o chefe mandar.
Orlando sorriu como quem vê a mesma cena pela
centésima vez. Jota sentiu o sangue gelar com aquele
sorriso. Era meio doente. Aquele homem não estava em seu
juízo perfeito, e seu sorriso estragado não era o único traço
a dizer isso. Orlando estava com o cabelo bagunçado, com
olheiras, o colarinho desabotoado e a camisa social molhada
de suor. E ele olhava meio vidrado para você, como um
viciado abstinente.
— Levem os dois para dentro. Temos o lugar certo para
fazer isso.
— Vem cara. Não vai adiantar implorar. E o Lobo? — Jota
perguntou ao amigo.
— Ninguém sabe dele. Eles me obrigaram a ir até a casa
dele. A mãe do Lobo pirou.
— Pedra de novo?
— Não. Ela perdeu o juízo de vez — disse com muita
dificuldade em respirar. Em seguida ficou quieto e se
escorou em Jota até chegarem à entrada de um galpão. Jota
já tinha estado por lá quando era mais novo e tinha
esperanças em sumir daquela cidadezinha de bosta. Ok, e
nada deu certo para ele...
Um cara do terceiro carro, branco demais e com a pele
toda trincada e judiada pelo sol excessivo, chegou à porta
de metal que media uns três metros de altura. Ele sacou
algumas chaves do bolso e abriu o cadeado da tranca. Outro
chegou perto (o motorista da Pick-Up) e o ajudou a puxar o
portão. Estava um pouco engripado, e as rodas fizeram um
som dolorido quando deslizaram. As folhas de metal
estalaram.
— Vamos acabar logo com isso — disse Siqueira.
Ficou para trás com Torque. Um dos capangas entrou
antes, outro ficou na escolta de Jota e Pêra. Outros dois
deles — o cara branco demais e o senhor Rosto Esburacado
— esperaram rentes ao portão.
— Eu duvido que esses dois aí tenham alguma coisa a
ver com o incêndio da escola. São dois coitados, vereador.
Eu tratei pessoalmente com um deles, com o mais novo que
está se cagando de medo. Ele teria aberto o bico.
— Quero ver com meus próprios olhos, Siqueira. Se
aquela vaca da prefeita tiver um dedinho metido com o que
aconteceu com o meu filho eu vou atear fogo nela. E antes
vou queimar esses dois. Vamos logo com isso, minha
mulher está dopada e eu tenho medo que ela tente alguma
idiotice se não me encontrar quando acordar.
Torque entrou na frente e Siqueira teve um pouco de
pena dos garotões lá dentro. Que droga, eles tinham a idade
do seu filho mais novo. É, mas seu filho não era o tipo que
saía por aí depredando carros a pedido da prefeita que
temia não ser reeleita. Ou será que era? Não importava. O
que importava é que seus garotos estavam bem longe
daquela loucura que infestava a cidade como o calor insano
e as toneladas de cupins famintos.
MAMÃE FOI PASSEAR
 
Lobo conseguiu sair do cativeiro onde prendia seu mais
novo animalzinho de estimação perto das dez da noite. A
filha da prefeita podia ter fama de mimada, de fresquinha e
de um monte de coisas ruins, mas não parecia mais esse
tipo de garota aos olhos de Lobo. Ela comeu como uma
hiena, sem talheres, sem mastigar direito, comeu sem
respirar entre as bocadas. No final ainda deu um arroto que
macho nenhum botaria defeito. Tá certo, ela era uma garota
legal. Mais legal que qualquer outra riquinha com quem ele
tivesse conversado. E aquela coitadinha estava sozinha, em
um lugar escuro e frio que botava medo até nele. O que
aconteceria se ela a soltasse? Se deixasse de lado o que
combinou com o cara do aspirador de pó? A verdade é que
o prêmio de Nora não chegava nem perto do combinado.
Lobo podia ser lerdo, mas já tinha percebido que dos pinos
originais de sua mãe, mais da metade estava ferrado. Mas
se aquilo, se a coisa que aspirava ideias não fez mal a Lobo,
por que tinha feito a Nora?
Porque quem regulou o aparelho foi ele. É por isso que
deu tudo errado. Ele deve ter me sacaneado grandão, como
todo mundo faz. Como o babaca do Jota e do Pêra fizeram
comigo. Filhos da mãe, devem ter se entupido de farinha
com a minha grana.
E esse não era um bom motivo para soltar a garota?
Era sim, mas soltá-la também significava polícia, uns
oito anos guardado e o anel traseiro doendo por todo esse
tempo. Cadeia é lugar de vagabundos de categoria,
considerados. Iniciantes no crime como Lobo acabavam
virando mulherzinha. Era o que seu penúltimo padrasto —
um safado e traficante chinfrim chamado Edmar Pézão —
dizia. Ele já tinha estado na cadeia, cumprindo pena por
assassinado de policiais. Não tentaram foder com ele
(literalmente), mas outros caras não tiveram a mesma
sorte. Ele contava sobre um deles, o Borracha. Antes de
entrar na cadeia ele se chamava Wilson, mas depois de
aguentar meio pavilhão ganhou o apelido desonroso —
Pézão disse que seu rabo aguentava qualquer coisa.
Podia convencê-la a ficar quieta. Se ele conseguisse
isso, se Patrícia acreditasse de alguma maneira que Lobo
tinha sido obrigado, chantageado a fazer aquilo com ela,
talvez não o entregasse de bandeja. Mas quem garantiria
isso? Tá certo, ela parecia uma garota legal e tudo mais,
mas seria tão, mas tão legal, a ponto de não entregar seu
raptor?
Estava bem perto de tomar sua decisão quando o
destino rangeu seus dentes de novo, ou talvez nem fosse o
destino.
— Eu não acredito — desabafou quando seu Del Rey
pimbado se recusou a acelerar. Já estava perto de casa, há
trezentos metros, na Rua Voluntário Baleiro. Bombeou o
acelerador e engatou uma segunda, tentando pegar no
tranco. Nem sinal. Tentou engatar uma primeira e deixou o
carro cantar de leve os pneus com o freio motor. Também
não funcionou. Só restou assistir as árvores correrem
devagar, e encostar enquanto podia aproveitar-se da
inércia. A calota da frente, do lado esquerdo, ralou na guia,
assustando Lobo que trouxe o carro de volta com um puxão
no volante.
— Que bosta, mano! — Socou o volante.
Pensou em pane elétrica e girou a chave, sem dar a
partida, uma ou duas vezes, apenas para checar o painel —
e também para evocar algum tipo de simpatia que só ele
conhecia sobre o afogamento de um carro velho.
— Tudo bem, Mixuruca. Agora vê se pega.
Bateu a chave e foi como encostar dois fios de energia
descarregados. Nenhum barulhinho, nem uma luz diferente,
nada. Aquele dinossauro parecia mesmo ter aceitado sua
extinção. Mas Lobo não desistiria, uma de suas qualidades
(segundo a última professora a desistir dele, na segunda
semana de aula) era ser mais teimoso que um cupim. Mas
Lurdinha não disse isso como uma qualidade, na época soou
como burrice.
Ele tentou mais uma vez, e mais duas depois. Girou o
botão do ventilador (ainda teimando que era um problema
com a bateria) e ouviu seu giro cheio de trastejos.
Se ele fosse um pouquinho mais esperto não precisaria
ter feito isso uma vez que os faróis estavam acesos, mas
Lobo não era nenhum gênio e a cidade toda sabia disso.
Quando lembrou dos faróis, olhou para frente, para o longe.
Alguém caminhava em sua direção. Duas pessoas.
— Merda de carro! Pega logo, Mixuruca! Não faz isso,
não!
Não era da polícia que ele tinha medo. Lobo andava
devendo dinheiro para os caras errados, desconfiava que
Nora também não houvesse pagado por tudo o que andou
enfiando nos pulmões; de fato, a polícia ali traria um grande
alívio. Principalmente se eles conseguissem dar um jeito no
carro. Se fosse um problema na bateria, como carga
insuficiente para a partida (isso explicaria os faróis acesos),
poderiam rebocá-lo.
As sombras foram chegando mais perto, e o coração de
Lobo acelerando com o toc-toc dos passos. A noite não era
nada legal naquele bairro, para Lobo, a escuridão sempre foi
uma companhia megera. A noite nunca trazia boas notícias.
Às vezes era um parente morto, amigos, às vezes, era seu
pai ou algum padrasto aceitável que sumia. Algum vizinho
com problemas. Pelo que sabia ou se lembrava, ninguém
nunca bateu em seu portão com um bilhete de loteria
premiado pedindo que ele o aceitasse. Não. Em bairros
como o dos Lobo, ninguém decente se arriscava à noite.
Dois deles? Era encrenca da grossa.
Um deles era alto e magro. Não era muito forte, e
provavelmente Lobo daria conta dele. O outro também não
era grande coisa. Muito bem, eram dois, não muito fortes ou
muito altos. Estavam armados, certeza... Era a única
explicação para aquela confiança toda que os levava direto
para um carro desconhecido — o Bueiro era perigoso para
todo mundo, não só para Lobo.
Quando a expectativa queimou seu sangue, Lobo se
encolheu no banco. Deixou só a cabeça aparecendo. Não
demorou a subir o tronco.
— Mãe!? Mãe! Sai de perto dele. Esse cara fodeu com a
sua cabeça!
— Que boca suja, Lobo! Respeita o seu, seu, seu...
— Talião, Madame Lobo. Mas meu nome não é
importante.
— Deixa ela em paz — disse Lobo. Saiu do carro e
chegou mais perto. Agarrou Nora pelo braço e tentou
arrastá-la para dentro. Nora resistiu. Ela não tinha usado
droga nenhuma, mas não estava com todo o equipamento
da caixola no lugar. Olhava esquisito para o carro, como se
nunca o tivesse visto.
— Oh-oh! Quanta hostilidade! O que temos aqui?
Precisando de uma ajudinha com o carro?
— Num é nada! Sai daqui e deixa a gente em paz!
— Garoto... Ei! Toc-toc? — Bateu contra a própria
cabeça, olhando para a de lobo. — Tem alguém aí dentro?
Temos negócios pendentes, lembra?
— Você não fez o que combinamos.
— O que você combinou com o seu... seu... seu...?
— Mãe, fica quietinha agora, valeu?
Nora obedeceu. Cruzou os braços e encostou no Del Rey
sujo de poeira. Depois mostrou a língua para Lobo.
— O que fez com ela?
— Como assim? Fiz o que você me pediu, Lobo. Fiz que
ela esquecesse a droga, os vícios, a autodepreciarão.
— Mas ela tá esquecendo mais coisas. Olha só para ela!
Você transformou minha mãe numa retardada!
— Retardado é você! — Nora disse. Os olhos encheram
rápido.
— Precisa desfazer isso.
— Garoto... — disse o homem de terno. Ainda o mesmo
terno, ainda impecável, as partículas de poeira iluminadas
pelos faróis se afastavam dele como mágica. — Eu estava
quase fazendo isso, sabe? Sua mãe ficou um pouquinho...
digamos... desmemoriada, às vezes acontece durante o
processo. O problema em nosso acordo é que fontes
seguras me disseram que você não está disposto a seguir
com o plano. Essa informação procede?
— Como entrou dentro da minha cabeça?
— Lobo, lobo... Você é mesmo muito inocente. Acabou
de confessar tudo, não percebeu?
— Eu não sou burro, e toda vez que alguém me chama
de inocente quer dizer burro. Olha aqui, negão, se a gente
tinha algum acordo, acabou de acabar, tá ligado? Você vai
deixá a minha mãe novinha ou eu vou te bater tanto que vai
precisar desse aspirador para os pedaços dos dentes!
Lobo chegou mais perto, os olhos injetados e cheios de
uma coragem que não era dele. Ah, tá bom! Quem aquele
bosta-preta pensava que era? Entrava em seu bairro,
enganava ele e sua mãe, deixava a cabeça da velha
arruinada, organizava um sequestro, e ainda tinha a cara de
pau de fazer ameaças? Não, brother, não é assim que as
tretas se resolvem no gueto.
As mãos de Lobo estavam bem perto do terno de Talião,
mas antes que tocassem no tecido, os olhos do homem
flamejaram como duas rodelas de metal derretido. Lobo deu
um passo para trás e caiu de costas, o homem deu um
passo em sua direção.
— O que é você?
— Vai cumprir sua parte do acordo ou não? Ela precisa
sofrer, garoto! — disse de volta o vendedor. Lobo focou os
olhos, mas não viu nada de estranho dessa vez. Talvez fosse
a noite e suas ilusões, ou o brilho fraco dos postes, talvez
fosse o medo fazendo que seus olhos enxergassem
mentiras.
— Primeiro a minha mãe. Desfaz o que fez com a cabeça
dela!
Em vez de fúria ou raiva, o vendedor estava com um
sorriso no rosto. Um sorriso plácido e pacificador. Cada
dente, uma bandeira branca.
— Eu gostaria de fazer isso, mas não posso.
— Claro que pode. É só você pegar o aspirador de ideias
e ligar no modo reverso. Até eu que sou burro sei disso.
— Não funciona assim, rapaz. Mas eu posso tentar outra
coisa se me disser para onde levou a filha da prefeita. Eu
gostaria de assumir tudo agora. Sua parte foi feita e de
cortesia eu ainda vou arrumar um bom dinheiro. Inclusive
uma vaga para sua mãe em uma clínica de repouso. Oh, e
nada de drogas ilícitas para ela, eu garanto.
— Ah tá! Então você chega, transforma o célebro
(porcaria, ele nunca acertava essa palavra!) da minha mãe
em pudim de bosta e quer minha ajuda? Vai sonhando,
mano! Vai sonhando! Eu não sei se você é Deus ou o Diabo,
mas sei que você não é gente. Eu não vou fazer mais nada
que me pedir. Pode vazar daqui e levar seus aparelhos com
você!
— Ainda pode dar a ela uma vida digna. O que vai fazer
com Nora? Como vai cuidar de sua mãe, Lobo?
— Eu dou um jeito.
— Não. Você vai fazer o que sempre fez, vai decepcioná-
la e deixá-la na mão. Não faça isso, Lobo. Cumpra o resto do
acordo. Eu só preciso do endereço, tá bem? Me dê o
endereço, e você nunca mais sentirá falta de dinheiro.
— Já era mano, já era! Eu não vou mais fazer negócios
com você. JÁ E-RA!
— Por que está gritando com o moço, Lobo? Que falta de
educação é essa? — Nora voltou a interferir. Estava quieta
há tanto tempo que Lobo pensou que nem estivesse mais
acordada.
— Eu tô... É... Deixa pra lá, mãe.
Olhou de volta para a frente do Del Rey. Olhou também
para os lados e dentro do carro.
— Para onde ele foi?
— Não sei de quem você está falando, rapazinho, mas
seu pai não vai gostar nada de como anda se comportando.
E o que é isso na sua perna? Ah, meu Deus do céu! Não me
diga que isso aí é uma tatuagem!? Sabia que isso aí dá
Aids? Isso é coisa que cadeieiro, meu filho.
Lobo ainda procurou o tal Talião pelos cantos. Ele era
negro, seu terno era escuro, e a noite estava com poucas
estrelas e nenhuma lua que ele pudesse ver. O homem
podia estar se escondendo.
— E o que nós estamos fazendo fora de casa a essa
hora?
— Nada mãe. Nada. Vamos embora.
Lobo abriu o Del Rey e abraçou Nora. Deu a partida, e
Mixuruca rangeu seu motor velho e cansado. Foram direto
para casa. Nora não lembrava o caminho. Isso não
incomodou Lobo naquele momento, ele tinha coisas mais
sérias para pensar. Agora ele não poderia ir até o cativeiro
de Patrícia, se fizesse isso, aquele demônio, fantasma ou sei
lá o que, ele o seguiria e descobriria onde ela estava. E ele
também não podia simplesmente deixá-la morrer. A filha da
prefeita parecia legal pra caramba.
CALOR E PRAGAS
 
Zétia estava sentado em frente à praça mais próxima da
delegacia, Praça Almirante Cantão. Há dez minutos, ele
havia feito algo que não era costume e tomado uma bebida
forte para terminar seu expediente. Expediente... Soava
engraçado dizer isso. Nos últimos dias, o expediente da
polícia não acabava nunca. Um pouco antes do seu
merecido trago de conhaque atendeu ao chamado de Janice
Sérpia. Pobre mulher. Seu filho, Alan Sérpia, se envolveu em
algum acidente bizarro com a rede elétrica e acabou morto.
Ironicamente, morreu mais torrado do que morreria no
incêndio da escola do qual escapou. Zétia e o pessoal da
perícia (eles ainda estavam na cidade por conta do acidente
da escola, deram um pulinho na casa dos Sérpia como sinal
de boa vontade) disseram que era algo com o computador.
Mas era estranho. Placa mãe, cabos de energia, nem
mesmo o Hard-Disk queimou. Mas o dedo de Alan sim, um
pedaço de pele acabou grudado na tela.
O que eu não estou vendo?, pensou enquanto
bloqueava um arroto ácido (beber de estômago vazio dá
nisso) na altura da garganta. Estava exausto, bocejava a
cada dez minutos. Mas não adiantaria ir para casa. Toda vez
que fechava os olhos, via o desespero das boas pessoas de
Nova Enoque em suas pálpebras. Por que tudo aquilo estava
acontecendo? Quem e o que estava por trás de tanta má
sorte? Coincidências não explicariam o que acontecia na
cidade, Deus sabe que ele tentou acreditar nisso como
cético que era.
Alguém cruzou a frente da viatura, do lado da rua,
oposto ao lado do carona onde Zétia estava sentado com a
porta aberta.
— Chega por hoje?
Zétia ergueu os olhos, desesperançoso de ser alguém
decente. Mas não era de todo ruim
— Seu Carlo. Muito trabalho hoje?
Carlo Euripes, único dedetizador credenciado em Nova
Enoque. Geralmente outro morto de fome incapaz de faturar
mais de dois mil por mês, mas não naquele mês, naquele
junho bizarramente quente, ele estava ficando rico. Foi mais
ou menos isso o que disse.
— Tô trabalhando feito um corno.
Ele vinha a pé, o aparelho dedetizador em seus ombros,
olhos tapados por óculos encardidos de veneno (sim, era
um milagre que ele enxergasse alguma coisa por aquelas
lentes). Vestia calças cinza de um tecido grosso que com
algum cuidado duraria uns vinte anos, camisa da mesma
cor — de um material mais leve — e botinas de couro.
Parecia tão exausto ou mais que Zétia. Seus cabelos
molhavam a testa e seu nariz grande escorria um pouco,
então ele fungava o tempo todo.
— Cupins?
— Começou com cupins. — Cuspiu de lado. Deixou o
aparelho no chão e sentou-se à frente do delegado, na
calçada mesmo. — Quando eu atendi o primeiro chamado
na casa do seu Galileu, não imaginei que fosse ficar feio
desse jeito. Parece que os bichos tomaram conta de tudo.
Depois do seu Sultão, foi a casa do Minotto, longe que só.
Então veio o pessoal daqui, um monte de gente. Agora eu
devia di tá na igreja, mas o padre me deu os canos.
— Padre Estevão? Isso sim é esquisito. O padre é o
homem mais sistemático que eu conheço. Estive com ele há
pouco.
— Também tive na casa da colega dele, da macumbeira.
— Madame Safira?
— Hum-rum. Delegado do céu, os bichos tão comendo
até as roupas da cuitada. Nunca vi nada igual nesses anos
todos. Comeram o armário da cozinha, o guarda-roupa, o
assoalho; encontrei cupim até nas paredes. Taquei veneno
em tudo, e cá entre nós — chegou mais perto um pouco
como quem conta um segredo —, acho que posso dizer, já
que o senhor não é autoridade sanitária...
— Eu guardo segredo, Carlo. Além disso, já encerrei por
hoje.
— Eu usei o velho e maligno DDT. Aquilo tem mais
câncer que uma usina atômica.
— Nuclear?
— Nuclear, atômica, você me entendeu. O pobrema é
que as praga nem tomaram conhecimento. Nadinha, nem
uma morte. Aquilo não é coisa de Deus, delegado. Minha
avó dizia isso sobre cupim e outras praga fora de época,
dizia que era sinal do tinhoso.
— E você? O que acha sendo um matador deles?
— Que não tenho nenhuma explicação para dar. É um
exagero.
Zétia ficou quieto e matou outro daqueles arrotos
azedos. Ficou olhando para Carlo. Tanto tempo em uma
profissão que acabaria o enterrando. Não era tão diferente
dele, como não era tão diferente de todo o resto do mundo.
Alguns homens parecem ter uma programação base na
sociedade moderna: tornar sua existência miserável.
— Disse que está pior agora, mais cupins?
— Antes fosse, seu Zétia. O que eu encontrei nas casas
da cidade me deixou de cabelo em pé.
— Pior que cupins? O que é pior que algo feito para
destruir casas?
— Gafanhotos, formigas e traças. E escorpiões.
Zétia olhou para o poste da rua à sua frente, olhou na
direção da luz. O velho Carlo Euripes estava certo, havia
todo um ecossistema alado rondando as lâmpadas.
Mariposas, besouros, insetos minúsculos; outros tão grandes
que podiam ser baratas. Carlo completou:
— Eles estão em todos os cantos. Na escola onde teve o
incêndio, e que Deus ajude aquelas pobres famílias, aquilo
ali parecia um pântano! No forro, embaixo das telhas, eu
tirei sozinho sete ninhos de vespas, e ainda mais dois de
marimbondos. E rapaz, eu nunca vi tanto morcego junto.
Não reclamo porque eu vivo disso, mas do jeito que tá indo?
Ah, senhor Deus. Não sei como vamos terminar. Até no
mercadinho dos Okamura. Eles perderam mais de vinte
sacos de arroz e o que tinham de feijão precisou ser
queimado. Um prejuízo de mais de cinco mil.
— Coitados. Mais gente que não merece tanto azar. E
esses insetos? Eles não podem estar se reproduzindo mais
por causa do calor? Está muito quente e faz muito tempo.
— Nem é época, seu Zétia. Estamos em junho, ninguém
ouviu falar de um meio-de-ano tão quente nessa região. Eu
apostaria que as pragas se aproveitaram do calor, mas o
que esse calorão tá fazendo aqui em junho é o grande
mistério. Tenho uns parentes em Consolação, fica a menos
de trinta quilômetros daqui, e o pessoal lá tá usando brusa
de frio.
Zétia bocejou mais uma vez, um sinal involuntário para
Carlo deixá-lo em paz. Por mais que tivesse a impressão que
o delegado apreciaria mais um pouco de conversa, não
arriscaria ser inconveniente. Sem contar que suas costas
reclamavam um bocado. Passava das dez horas da noite,
faria bem esticar as pernas e tomar umas cervejas. Carlo já
estava quase saindo quando se lembrou de algo que quis
dividir.
— Que eu me lembre (ele disse alembre, como todo
velho com mais de setenta dizia por aquelas bandas), eu vi
uma infestação dessas uma vez só. Não alembro de ter sido
tão ruim, mas é minha única memória.
— Aqui mesmo em Nova Enoque?
— Foi sim. E foi no mês mais quente do ano. Sabe onde
fica a usina de cana-de-açúcar, não sabe? Craro que sabe...
— Na saída para estrada de Três rios?
— Isso. Lá mesmo. Aquilo tudo pertencia ao Coronel
Constâncio Trindade. Era uma enorme plantação. Ele tinha
de tudo ali; milho, cebola, café, algodão. Ele plantava até
gente pelo que dizem.
— Gente? — Zétia sabia o que significava, mas
perguntou mesmo assim.
— O Coronel tinha sangue nos olhos. Como o pai dele,
Constâncio também foi dono de escravos, ele se achava
dono de todo mundo. Quando a escravidão acabou, ele
recebeu uma leva de italianos para trabalhar na colheita,
depois japoneses, o Coronel não mudou o modo como lidava
com eles, era tudo no chicote e na perseguição. Eu não sei
como o senhor enxerga essas coisas, delegado, mas para
mim, todo sangue que cai na terra deixa ela meio podre. Foi
isso o que aconteceu por lá. Meu pai, que Deus o tenha, já
cuidava de insetos naquela época. Do jeito dele é claro
(craro), não dava conta de nada mais forte que mosca
varejeira. Coitado... Eu não entendia muito do mundo na
época, e o que eu soube foi através dele. Mas deixa para
outro dia, o senhor deve di tá cansado.
— Pelo amor de Deus, seu Carlo, termine sua história! —
disse Zétia. Aquele velho safado sabia mesmo como
amarrar alguém à sua conversa fiada. Verdade ou mentira,
Zétia estava hipnotizado pelo que ouvia — principalmente
por achar que era tudo verdade.
— Eu era criança quando meu pai foi chamado naquelas
terra. E o pior já tinha acontecido há anos. A cidade não
comenta esse tipo de coisa, é um assunto maldito como o
seu Jorge Araão que tem aquele filho doido dele.
— Nem eu sabia dessa...
— Pois é. Ninguém sabe. O rapaz deve di tê uns
quarenta anos e ainda mija na roupa. O velho deixa ele
trancado em um cômodo escuro, em um quartinho dos
fundos.
— E o que aconteceu nas terras da usina?
— Com a queda do café na depressão de trinta, o
Coronel entrou em parafuso. Começou a exagerar para cima
dos colonos, agrediu um deles até quase matar, e dizem
que fez maldade com uma moça, mulher desse mesmo
colono. O tal desobedeceu uma ordem dele, coisa boba que
não vem ao caso e que não justificaria uma violência tão
grande. Os colonos ficaram desagradados e ameaçaram
tomar a casa grande. E o Coronel deixou que acontecesse,
atraiu todos eles para dentro e ateou fogo na casa.
— Minha nossa. E como eu nunca soube sobre isso?
— Quando sua família chegou aqui?
— Meu pai foi o primeiro, faz um trinta anos. O pai dele,
meu avô, era de Três Rios.
— Então é por isso. Essa história não é motivo de
orgulho, principalmente para quem acobertou o caso na
época. Depois disso, meses depois, o Coronel não conseguia
se reerguer, as pessoas decentes da cidade começaram a
boicotar os negócios, terminou que ele devia para muita
gente sem escrúpulo, gente pior que ele mesmo. Precisa
entender, delegado, que se ele fosse acusado de
assassinato, corria um sério risco de ir para a cadeia. Terras,
comércio, casas da cidade que recomeçava a nascer, tudo
isso ficaria com o governo já que seu único herdeiro tinha
desaparecido dez anos antes; o Coronel o deserdou, como
dizem. O povo endinheirado da época não permitiria um
prejuízo desse tamanho. Obrigaram Constâncio a assinar
um contrato de penhora, torturaram o homem. Pelo
contrato, o banco cuidaria de tudo caso ele morresse,
redistribuindo o que era de cada um a preços miseráveis.
Isso porque o banco era chefiado pela pessoa de Emanuel
Torque. Tudo isso foi resolvido em segredo, e acabou em
segredo. Dizem que ele foi queimado vivo, do mesmo jeito
que matou aqueles pobres coitados. As pragas e a cana da
terra deram conta do que sobrou. Já viu cana-de-açúcar
queimando, delegado? Não sobra nada. Até os bichos saem
correndo, cobras, lagartos, escorpiões, tudo o que a terra
esconde.
— Segredos atraem a maldade do homem para fora,
meu pai dizia isso.
— E ele estava certo, seu Zétia. Quando eu fui até lá
com o meu velho, a fazenda parecia o maior ninho de
pragas desse mundo. Insetos voando e cavucando a terra,
piolhos, eu raspei a cabeça depois daquele dia, saí de lá
infestado. E não era só no que sobrou da casa, era na
fazenda toda.
— Mas foi resolvido como me disse. O que foi feito?
— Não posso falar sobre isso, seu Zétia. Foi obra de
feitiçaria. Eu não acredito muito, mas também não duvido.
Se o senhor quiser mesmo saber sobre essa parte vai ter
que falar com a Dona Safira. Uma parenta dela, velha e sem
nenhum dente legítimo, também mexia com esses assuntos
do além. Se não me falha a memória, quem foi lá bem antes
do meu pai encher a terra de veneno para construírem uma
usina por cima foi ela.
Zétia pensou um pouco sobre o que acabara de ouvir.
— É uma boa história. Gostaria de acreditar nela
também.
O velho sorriu e ficou de pé, colocou o tanque de
veneno nas costas.
— Histórias como essa só servem para tirar o sono,
delegado. É uma dádiva não crer nelas. Mas para quem viu
parte do rosto do demônio, é tarde demais — suspirou e
deixou o olhar distante por alguns segundos. — Agora eu
vou mesmo, minhas costas tão queimando de dor.
Zétia agradeceu a história com a certeza de preferir
nunca tê-la ouvido. Mas valeu a pena. Agora ele tinha uma
pista sobre tudo que não entendia.
EU NÃO SEI!
 
Nenhum dos dois reagiu enquanto eram amarrados. Jota
sentiu vontade de espatifar com a cara de Orlando Torque,
não gostava de ninguém que roubasse comida das
criancinhas pobres da cidade, mas era esperto demais para
tentar uma idiotice dessas. Pêra, amarrado na cadeira podre
ao seu lado, não faria diferença em uma luta mesmo que
estivesse segurando um revólver (Pêra tremia tanto que não
acertaria um tiro).
Os homens os deixavam quietos por enquanto, ficavam
cochichando entre si e dando risadinhas. Às vezes olhavam
para os dois, deixando claro que os risos não eram privilégio
da turma das cadeiras. O cara de barba era raivoso, os
outros também, mas o problema maior naquele galpão era
o homem com a arma mais letal no bolso. Torque tinha
dinheiro.
— Esses aí não vão aguentar meia hora. Minha tia
viciada em Gardenal é mais corajosa que eles — disse
Barba. Era caladão, mas o mais falante entre os que
desceram dos carros.
Jota não reagiu, continuou guardando a energia que
acabaria precisando. Não devia estar amarrado ali para
trocar palavras civilizadas e amorosas.
A posição vulnerável levou Jota de volta à adolescência.
Ele e uns amigos tinham sido apanhados com maconha,
mas, como todo mundo tinha menos de dezoito anos, os
policiais não puderam fichá-los. Isso não significou que eles
estavam livres, não mesmo. O primeiro apanhado foi o
Berro (que chorava por qualquer coisa). Ele acabou
entregando o resto dos garotos e o esconderijo (um módulo
de armário de aço reforçado que Jota recuperou do lixão)
onde guardavam a erva. Jota tinha algum dinheiro no bolso,
não muito. Dinheiro que nem era dele. Serviria para
comprar remédios para mãe que tinha algum tipo horrendo
de herpes incurável nas costas. O resto dos garotos — que
não tinham grana para escapar da pancadaria — pagou com
gemidos e machucados. Um deles, o Flecha, teve
traumatismo craniano e ficou bobo por uns tempos.
Ninguém abriu o bico, é claro, disseram que tinha sido briga
de rua e que a polícia apareceu para ajudar. Os policiais
envolvidos ainda ficaram na cola de Jota e do bando todo
por uns meses. Jota frequentou a igreja por um tempo,
alguns dos garotos saíram da cidade. A perseguição só
acabou mesmo quando o antigo delegado (que foi
aposentado com uma bala nas costas na vizinha Três Rios)
deu a vaga para Zétia.
— O que eles vão fazer com a gente? — perguntou Pêra.
Estava a ponto de se urinar. Aquilo de esperar acabava
com ele mais do que qualquer soco. Ficar com vida nas
mãos de outras pessoas. Tá certo que sua vida não era
grande coisa desde sempre, mas poxa, com a grana que
receberam da prefeita ele poderia recomeçar. Pretendia
montar “O Lance” com Jota, chamar o Lobo para vender
bagulho no bairro dele. Então, o que ele estava fazendo ali
com aquela cara azeda e ruim? O que deu tão errado?
O cara de Barba chegou mais perto e disse aos ouvidos
de Pêra:
— Vão contar tudo o que queremos saber.
— Espera aí, eu já falei com você, seu Siqueira. Por que
eu estou aqui junto com ele?
— Seu fedido! Contou o que para essa gente? —
perguntou Jota. Pêra não era grande coisa, mas nunca tinha
caguetado ninguém. Pensando bem, para alguém que não é
grande coisa, trair um amigo, um parceiro, é questão de
tempo.
— Ele ia me prender!
— Chega de lamentação, moleque — disse Orlando.
Apanhou um lenço do bolso e enrolou na mão direita,
formando uma meia luva.
— Por que estamos aqui!?
Orlando olhou para Siqueira, depois para Barba. Então
ficou olhando para Jota, fixo, sem piscar nem nada. Estava
testando sua coragem, como tinha acabado de fazer com
Pêra, descobrindo qual deles teria a língua mais solta. Pelo
que via, pela respiração controlada de Jota, ele era coisa
ruim. Carne de pescoço, como dizem. O outro moleque era
meio babacão. Dentes bonitos, cabelos grandes, um tênis
Nike nos pés (era velho, mas era Nike). Orlando já tinha um
alvo. Ele chegou mais perto e bateu com tudo.
POF!
A cabeça de Pêra foi para o lado, um pouco de cuspe
voou no chão, quando a cabeça retornou, havia sangue
escorrendo da boca.
— Ei! Não precisa disso! O cara já disse que vai
colaborar.
— Fica quieto, monte de lixo. Já vai chegar sua vez —
disse o senhor braços de Mike Tyson. Jota pensou que, no
fundo, era uma sorte danada estar apanhando de Orlando
Torque. O vereador era grande, mas não tinha metade da
massa muscular do outro. Isso também trouxe uma má
notícia. E se eles revezassem?
Pêra cuspiu algo vermelho e grosso no chão. Seus olhos
estavam queimando de raiva, úmidos de vergonha. Antes
que esboçasse qualquer reação, Torque o agarrou pelos
cabelos e vergou seu pescoço, o obrigando a olhar para
cima.
— Sabe o que eu fiz durante o dia, seu bostinha? Eu
inverti a ordem das coisas. Eu enterrei meu próprio filho.
Medo e pena. Era o que dava para sentir, mesmo sendo
um prisioneiro. Quando Torque disse isso, seus olhos
faiscaram de um jeito que pareceram elétricos. Era como se
de uma hora para outra, daqueles olhos fosse sair um raio
cheio de ódio e angústia e derreter quem se metesse à
frente deles.
— Eu não...
SOC!
Outro golpe. Dessa vez com mais impacto e frontal.
Direto no nariz. A cabeça soltou-se da mão que a prendia
pelos cabelos e ricocheteou para trás, os olhos reviraram
nas órbitas. Jota pensou que Pêra apagaria. Preparou-se
para assumir a vaga de sparring, contudo, não aconteceu.
Pêra estava de volta, só não conseguia respirar direito com
todo o sangue que descia pelo nariz. Deve ter fraturado
todos os ossinhos de uma vez só.
— Só responde quando eu mandar, cachorro. Mas
estávamos falando do meu menino — disse com uma nova
calma falsificada, tão frouxa quanto seu colarinho. — Ele era
um bom garoto. Forte, decidido, puta merda, aquele carinha
era o melhor de mim e da mãe dele. Mas então, algum filho
da puta vai até a escola municipal e começa um incêndio.
Meu garoto tentou fugir, disseram, ah, mas eles dizem um
monte de coisas para um pai desesperado. Coisas como:
“foi um acidente” e “tomara que Deus o conforte”. Vou dizer
aos dois safados o que me conforta: vingança.
Torque virou para trás, para onde estava o detetive
Siqueira, e cochichou alguma coisa com ele. Pouco
interessava o que era, os sussurros incompreensíveis e o
mistério do que viria a seguir deram conta do que sobrou de
Pêra. Ele começou a chorar.
— O que é isso, garoto! Seja homem. Estamos apenas
nas apresentações por aqui. O show vai ser muito melhor.
— Eu não fiz... eu não... eu não fiz nada, vereador. Pode
perguntar... Pergunte para quem o senhor quiser.
— E não é exatamente isso o que estamos fazendo? —
disse Torque. Andou até os fundos onde havia uma escada
de metal. Embaixo dela, havia outra cadeira, tão velha e
empoeirada quando as duas outras. Ele a trouxe arrastando
pelo chão, sem fazer questão de erguê-la. O barulho era
irritante, principalmente para os dois rapazes amarrados e
com os nervos à flor da pele.
Torque pousou a cadeira ao lado de Pêra e sentou-se
sobre ela.
Jota não sabia o que fazer, mas estudava cada
centímetro do lugar.
O galpão era grande e escuro. Havia luz somente onde
eles estavam, e vinha de uma lâmpada de no máximo
sessenta watts. O cheiro de poeira era impressionante,
também o cheiro do que o pessoal da cidade chamava de
garapão, um subproduto da cana que às vezes era jogado
nas estradas de terra para reduzir a poeira. Se não fosse
assustador o suficiente estar ali amarrado aos caprichos de
um homem transtornado que acabara de perder o próprio
filho, aquele galpão completava a façanha. Antes que o
vereador destilasse mais de seu veneno de dor, um estalo
nas folhas de zinco do teto fez os homens olharem para
cima. Quase todos eles — Pêra estava amedrontado demais
para tirar os olhos de Torque. Logo baixaram os pescoços,
na descida os olhos de Jota esbarraram em Siqueira. Ele
também não era grande coisa, e Jota apostaria que ele
estava mais inseguro que seu amigo de nariz aplainado.
Então Torque chegou aonde queria.
— Sei o que fizeram com o meu carro. Você, o valentão
aí do lado e o outro retardado. Eu conheci a mãe dele,
sabiam? Nora. Ela era puta e ainda deve ser. E aquele
garoto deve ter tido hidrocefalia. Pelo que sei, ele tem um
QI de ameba. Mas já que o destino e o Siqueira ali atrás me
arrumaram vocês dois, terei que me satisfazer. Bom, jovem,
agora que você teve dimensão de onde essa nossa
conversa pode nos levar, responda: Quanto aquela ordinária
da prefeita pagou para vocês meterem fogo na escola do
meu filho?
— Senhor, nós não tivemos nada a ver com isso.
Podemos provar se nos der uma chance — disse Jota.
— Vou dar a chance de ficar sem uns dentes se você se
meter de novo na minha conversa com seu amigo. Quanto a
você — voltou para Pêra — o que me diz? Quando ela
pagou? Mil, dois mil, dez mil? Quanto valeu a cabeça do
meu menino?
Pêra começou a soluçar.
— Quanto, seu filho da puta de merda? — gritou, e
tornou a sair da cadeira.
— Não! Não me... não me machuque, senhor.
— Somos inocentes nisso, vereador. Ferramos com o seu
carro, mas isso foi tudo!
— Ferramos com seu carro, mas isso foi tudo — imitou-o
efeminadamente Torque. — Ferra com a cara do imbecil,
Barba. Aproveita e deixa o Benê treinar um pouco.
Jota não pensava em senhor Tyson como Benê, mas
conseguia pensar nele como B. Tyson. Tinha mais a ver com
seu tipo físico. Alguém com nome de Benê simplesmente
não encaixava.
— Você perdeu o juízo, vereador! Vai machucar dois
inocentes! — Jota ainda gritou.
Orlando não deu bola e deixou que seus homens
batessem um pouco no capitão do trio-tragédia. Era mesmo
uma pena que o outro, o retardado, não estivesse ali para
receber sua parte. Mas Torque também tinha planos para
ele, logo que os dois confessassem e explicassem
detalhadamente por que fizeram aquilo, ele cuidaria do filho
de Nora Lobo.
Pêra não escapou de receber sua parte outra vez. O
único naquela sala que não se envolveu diretamente na
pancadaria (batendo ou apanhando) foi Siqueira. Ele tinha
acertado com Torque que não participaria da sessão tortura
a menos que a coisa fugisse ao controle. Agora pensava em
interceder. O garoto que lembrava seu filho, Pêra, ele não
era muito forte, mais quinze minutos apanhando e
precisariam abrir uma cova.
— Chega! Já chega! — disse, meio babando, Pêra. Não
estava totalmente consciente depois de tantos golpes.
Torque estava todo suado, o lenço em suas mãos manchado
com sangue.
Do lado esquerdo, Barba e B. Tyson pararam o
espancamento seguindo a mão espalmada de Torque. Jota
ainda disse ao amigo:
— Não confesse nada que não fizemos! Eles vão acabar
com a gen... Ufhfhh. — Um novo soco no estômago o
silenciou. Um soco de B. Tyson. Barba sorriu como uma
criança de dez anos.
— Pode falar, filho. Estou ouvindo sua confissão — disse
Torque.
No começo ninguém entendeu nada, Pêra mais chorava
que falava. É terrível ser obrigado a dizer uma mentira,
ainda mais quando ela provavelmente vai ferrar de vez com
sua vida. Terrível sim, mas apanhar até morrer não era uma
resposta melhor. Pêra quis tentar se safar e nem mesmo
Jota o culpou por isso.
— Foi a prefeita sim — mentiu. — A gente não sabia de
nada. Nem eu, nem o Jota. Depois que nós colocamos fogo
no carro do senhor, ela me ligou de novo. Disse que não
tinha sido o suficiente, e que o senhor tinha mandado
sequestrar a filha dela. A gente abriu o gás da escola e
deixou queimando. Não era para morrer ninguém, vereador.
Foi um acidente.
Torque bufou, meneou a cabeça, depois o abraçou.
Reergueu-se e baixou a cabeça para os pés. Ficou assim por
alguns segundos. Barba e Benê olharam para Siqueira que
deu de ombros. Bem baixinho, Jota perguntou: — Por que
você disse isso? — Torque acabou com o suspense depois
de um longo suspiro. Olhou para Siqueira e, dessa vez, foi
ele quem deu de ombros. Voltou para o lado de Pêra, sacou
um revólver e disparou contra sua têmpora. A bala
atravessou sua vida e passou bem perto de Jota, respingos
quentes molharam seu rosto.
Com o pânico contido, Jota viu seu amigo morrer. A
cabeça de Pêra pendeu para baixo e ficou desse jeito. Muito
sangue escorreu dela até se esgotar de vez.
— Termine com esse aí — disse Torque. — Eu vou atrás
daquela cadela.
— Quer que eu vá junto? Algum dos homens? —
perguntou Siqueira. Com extrema frieza, ele limpava seus
óculos com um lencinho cinza que tirou do bolso de trás da
calça.
— Não. Eu vou levar o Branco comigo. Peça a eles para
limparem tudo antes de saírem. — Foi andando.
— Está errado, vereador! Ele não fez nada, e nem eu!
Orlando parou de andar, olhou para trás e sorriu.
— Filho... Eu até acreditaria nos dois juntos, mas ele
confessou tudo. Aceite seu fardo e seja tão homem quanto
seu amigo.
SANTO DEUS!
 
Foram tantos golpes seguidos que era quase um milagre
Jota ainda manter a consciência. Bateram tanto nele que o
chão ficou todo respingado de sangue. Moscas enfurecidas
tomaram conta de cada respingo daqueles, enquanto os
homens grandes continuaram seu serviço de triturar o rosto
de Jota.
— Me surpreendeu, frangote. Achei que não aguentava
metade disso — disse Barba.
E soco!
Tyson estava pingando suor pelo rosto e pelos braços.
Tinha tirado a camisa e seu corpo parecia untado com óleo.
O desgraçado era forte e, além de forte, era ruim para
caramba. Sem dúvida estava na profissão certa.
Havia um rádio com eles, uma porcaria que devia ser
um dos primeiros toca-CD’s a aparecer no mercado. Born on
the Bayou do Creedance Clearwater Revival se tornava a
música que Jota jamais esqueceria.
— Por favor — disse com sua voz fofa e edemaciada.
Metade da pálpebra direita pendia para baixo, estava
partida em dois pontos diferentes. A boca teve a mesma
sorte, e o lábio inferior parecia vítima de uma alergia
extrema (devia estar com uns três centímetros de
espessura). O cabelo tinha sangue vindo dos cortes da
cabeça. Dois deles foram feitos por Barba, com os pés. Ele
disse que era o Van Damme quando seus pés chicotearam a
nuca de Jota. Benê disse que “só se fosse depois da Aids”.
— O chefe mandou acabar contigo, moleque — disse
Barba. Havia um sorriso podre habitando seu rosto. Bem
parecido com o de Lobo, quando estava na fissura de pó.
— Façam isso mais depressa, pelo amor de Deus — falou
alto, Siqueira. Ele estava sentado perto da escada de metal
aos fundos, fumando. Não teve estômago para ver outro
rapaz sendo brutalmente assassinado. Tragava o cigarro e
fazia planos.
Ele não trabalharia mais para Orlando Torque, Deus sabe
que nem ficaria na cidade. Sairia de Nova Enoque o quão
rápido pudesse. Siqueira não era nenhum santo, claro que
não, mas a loucura instalada nas últimas semanas deixava
somente duas escolhas: enlouquecer junto ou fugir. Para
alguém novo como aquele garoto morto, ou o que estava
indo para o mesmo buraco, podia ser vergonhoso isso de
fugir, mas depois dos cinquenta, esse papo de valentia não
fazia sentido algum.
Os gemidos incomodavam bastante e por incrível que
parecesse vinham dos dois homens ainda de pé. Eles
estavam moídos de cansaço. Abduzir o moleque que agora
estava morto deu um trabalhão, levaram quase a tarde toda
para descobrir onde Pêra estava (dentro da caixa d’água
vazia do mercadinho abandonado que fazia fundos com a
sua casa). Um dos garotos da rua (que não gostava do jeito
meio metido a inteligente de Pêra) o entregou.
Siqueira já estava na metade do cigarro quando
percebeu a fumaça fazendo algo bem estranho. Ele
aproximou a mão e observou. A fumaça se condensava na
ponta do cigarro, se concentrava, para só depois escorrer
como um líquido cinzento. No chão, uma pocinha ia se
formando aos poucos. Diabos, aquilo definitivamente não
era normal.
Sentiu vontade de atirar o cigarro para longe e sair
correndo daquele galpão assombrado (todo mundo na
cidade dizia isso). Siqueira não era muito dado a
assombrações, mas respeitava a opinião de quem
acreditava, sobretudo do pessoal mais velho que era quem
mais entendia do assunto. Eles gostavam de falar sobre o
galpão e sobre o que entrava e saía de lá sem precisar das
portas. Ernesto Quaglia, dono de um laticínio que encerrou
suas atividades em noventa e quatro, tentou comprar as
terras para transformar tudo em produção de queijo e
iogurtes. Na primeira visita, desistiu. Ele foi atacado por
uma crise de tosse que quase o matou asfixiado. É um lugar
ruim, ele disse, e ninguém duvidava do velho.
Mesmo sem sair de onde estava Siqueira checou a
fumaça espessa e tentou espalhá-la com a ponta do sapato
polido. Foi como tocar a água. A fumaça do cigarro tinha
peso, tinha volume, oh merda, nem em um milhão de anos
aquela droga era só fumaça de cigarros. Mais estranho
ainda foi o que aconteceu depois.
A fumaça formou um pequeno regato, bem fino, e se
desprendeu do cigarro. Siqueira tentou reacendê-lo, mas era
como se estivesse molhado, inclusive o cheiro. A fumaça
empoçada no chão começou a correr como um riozinho.
Curioso com o que era ou significava aquilo, resolveu seguir
a trilha até o interior escuro do galpão. Não faria isso se Jota
não estivesse perto de morrer de tanto apanhar daqueles
dois, mas seus gritos e gemidos, as provocações de Barba e
Benê, não... Ninguém decente ouviria uma sessão daquelas
sem se incomodar.
Enquanto aceitava o escuro tendo a segurança da luz às
costas, acelerava para seguir aquela coisa. Mas quando a
luz ficou distante a ponto de não o atingir diretamente, o
riozinho de fumaça foi se encolhendo em um canto. Então
da mesma maneira que se formou a fumaça subiu e se
dissolveu no ar. Só aí Siqueira percebeu que a fumaça não
era importante, mas sim o caminho apontado por ela.
— O que é isso? — perguntou a si mesmo, notando a
parede se movimentando.
Sim, gênio. Paredes não se movem.
Sacou do bolso o celular Galaxy que ganhou da esposa e
ainda parecia meio alienígena para ele e tentou lembrar
onde, diabos, ficava a luz de emergência. Enquanto ele
deslizava os dedos pesados e incompetentes pela tela, a
parede que parecia um chapisco vivo começou a chiar. Bem
de leve, como um raspar de chinelos no chão.
— Maldição — disse sem encontrar o que queria.
Atrás, na luz abandonada, os dois capangas tiravam
sarro de Jota.
— O que é isso aqui? Um dente? O que você acha que é
isso? — Barba perguntou a B. Tyson.
— Sei lá, vai ver arrancamos um pedaço da mandíbula.
Siqueira sacudiu a cabeça, preferindo não ouvir o resto.
E ainda teria que ajudar aqueles macacos a se livrarem
dos corpos. Pensava em queimá-los em um pedaço isolado
de cana que ainda resistia mesmo sem manutenção.
Quando a cana queima, leva o que estiver por perto com
ela. Deve ser por causa do açúcar, foi o que um cara que
trabalhava em uma usina de álcool disse, mas o tal cara não
era de confiança. Era desses que dizia qualquer coisa para
não ficar por baixo.
— Aleluia — resmungou Siqueira, quando encontrou o
ícone da lanterna.
O cacoete de falar sozinho veio com a profissão de
detetive. Possivelmente era culpa de passar tanto tempo
sozinho; muitas vezes precisando formular ideias em voz
alta para consolidá-las, para que não escapassem sem
antes ocuparem um lugar nas estantes de memória do
cérebro. Escritores também falam sozinhos, ele tinha ouvido
falar.
Apertou a tela e depois de um flash cegador direto no
olho, apontou a coisa para a parede.
— Meu Deus do céu! — disse, e recuou um passo.
 
A PAREDE ESTAVA forrada de escorpiões.
Em um primeiro olhar foi isso o que viu, mas quando
apontou a luz pela segunda vez — em vez de correr dali e
ser mais esperto —, reconheceu outros insetos. Baratas,
larvas, cupins, moscas, todo um ecossistema nojento
grudado à parede como se ela fosse feita de cola. Foi
quando sentiu o cheiro. Um pus azedo e concentrado, cheiro
de podridão e carniça, parecido com o cheiro velho que saía
da boca de sua tia avó Ester. Siqueira tinha pena, mas a
boca dela fedia como o diabo.
A sensação de vômito veio em seguida, o estômago
rebelado, a boca cheia de saliva morna. O mais próximo que
ele havia chegado de uma infestação como aquela foi pela
tevê, em um programa de natureza selvagem do Discovery
Channel. Pelo que se lembrava (e certamente não gostaria
se tivesse escolha), era a barriga de um cervo abatido.
Parecia aquela parede. A carne estava aberta e um rio vivo
de larvas e vermes se fartavam da imundice decomposta da
criatura.
— Ei! — reclamou com uma mosca que zumbiu perto
demais. Ela mudou o voo e bateu com tudo contra seu
ouvido direito, quando Siqueira abriu a boca para reclamar
outra vez, outra criatura (e ele pediu que fosse uma mosca
em vez de algo descolado daquela parede viva) entrou por
ela. Ele tossiu e cuspiu, mas não viu nada saindo enquanto
sua garganta começava a coçar.
Desequilibrou-se um pouco e, quando trocou o pé de
posição, pisou em algo semissólido. Não era muito
resistente e explodiu como um biscoito de vento. A lanterna
apagou, e ele ouviu mais dois daqueles crecks até conseguir
reencontrar o aplicativo.
— Merda! Que merda é essa?! — gritou. O azar é que
ninguém o ouviu. Os abutres estavam socando para valer
aquele pedaço de carniça fresca chamado Jota Moreno, e o
som no rádio colocava Creedance acima de qualquer
escândalo.
O chão estava tão vivo quanto a parede, eram
escorpiões; centenas, milhares. A maioria deles, caramelo,
pareciam feitos de açúcar e ouro, mas a verdade é que
eram matadores habilidosos. Também havia escorpiões
negros, bem maiores e com ferrões eriçados para cima.
Entre eles lacraias disputavam espaço, raspando seus pés
contra escorpiões menores e mais frágeis.
Siqueira deu mais um passo, ouviu de novo aquele som
partido. Dessa vez mais úmido, devia ter esmagado um
monte deles.
— Seus filhos da puta! — disse. Ergueu o pé bem alto
para repetir a dose. Ele os esmagava e ria, dominado pela
doença humana que nos coloca no topo da cadeia
alimentar. Não mexam com os humanos seus insetos de
merda! Ninguém tem o direito de foder com um humano a
não ser outro humano!
Ria de um jeito doente, bastante semelhante ao modo
como Tyson-braço-de-lenhador e Barba sorriam depois de
cada golpe em Jota. No fim das contas, eles faziam a
mesma coisa: livravam a terra de espécies perigosas e
inferiores, fáceis de serem esmagadas.
Não tão fácil porque no meio daquela dança de Sant
Vitus o pé esquerdo de Siqueira patinou sobre a sujeira que
acabara de fazer com seu showzinho ridículo de sapateado.
Tentou se reequilibrar e o que conseguiu foi deixar o celular
cair no chão. Logo depois foi ele próprio. Foi como cair em
um chão de pipocas.
— Ai!
Era a primeira picada. Podia ser de uma lacraia ou de
um daqueles escorpiões, mas com certeza foi uma picada.
Instintivamente, ele levou as mãos ao meio das costas onde
fora flagelado, a mão também foi atacada. Doeu bem mais,
doeu como se uma agulha enorme estivesse transpassando
seu dedo.
— Socorro! Me ajudem aqui! — gritou. Suzie-Q não
deixou que ninguém o ouvisse na área iluminada. A música
e a sequência de gritos disseram a Siqueira que pelo menos
um homem dentro daquele galpão teve um azar
proporcional ao dele.
— Abaixem o rádio! — gritou. — Me ajud...
Desistiu dos gritos quando a lanterna do celular
iluminou o teto acima dele. Era bonito, bizarro e ao mesmo
tempo irreal. Pelo menos parecia isso aos olhos surpresos
de Siqueira. Ele estava apavorado e sentindo calafrios a
cada nova picada (e já eram muitas, pernas, braço,
pescoço, vários pedaços do dorso). O teto era um mar de
aranhas. Um mar vertical que despejava ondas de insetos
sobre o chão inimigo. Elas eram enormes e deviam estar de
olho naquele monte de insetos. Foram se atirando e
encontraram Siqueira pelo caminho. Enquanto ele fazia a
única coisa que ainda conseguia — gritava —, as aranhas
procuravam maneiras de dominá-lo. Logo não respirava, o
corpo entrou em colapso e convulsionou. Siqueira alcançou
uma arma em seu coldre torácico e disparou para cima.
Ficou feliz quando o projétil explodiu um pedaço da parede
e as porcarias que brotavam dela. Então algo o içou pelas
costas, levando escada acima a uma velocidade vertiginosa.
A voz disse: — Preciso de um favor.
NADA DISSO É POSSÍVEL
 
— Que foi isso? — perguntou Barba quando Creedance
parou de cantar depois de um disparo. Respirou fundo e
olhou para os fundos.
— Detetive? Tudo certo aí? — B. Tyson.
Jota começou a rir. Um pouco de sangue escorreu dos
lábios.
— Vocês estão ferrados — disse olhando para o chão.
B. Tyson desarmou o punho que arrebentaria de vez
aquele molenga (que não era tão molenga assim pelo visto)
e vergou o corpo para a direção dos olhos. Barba aproveitou
para respirar fundo. Tinha pelo menos quinze anos a mais
que B. Tyson e o dobro de vontade para bater. Foi ele quem
arriscou o primeiro palpite.
— Diz pra mim que o chão não está se mexendo.
— Que merda é aquela?
— São cobras, seus filhos da puta, um monte de cobras.
A primeira a aparecer, como um maldito líder de
esquadrão da morte, foi uma cascavel. Ela se esticou
armando um bote e exibiu seu peito fino, recheado de
losangos. Esticou o guizo e o agitou. Atrás, outras fizeram o
mesmo. Organizadas, eréteis e com os mesmos olhos
recheados de hipnose.
— Jesus Cristo, como elas entraram aqui?
— Esse lugar é maldito, Benê, você conhece as histórias.
— Cala essa merda de boca, Barba! A única coisa
maldita aqui dentro é esse escroto na cadeira.
A primeira fileira de répteis avançou cerca de um metro,
atrás delas, dezenas de cascavéis fizeram o mesmo. Elas
não se enfileiravam, mas tinham algum tipo estranho de
organização. Deslizavam umas sobre as outras, sempre da
esquerda para direita. Os guizos se tocavam e vibravam,
enchendo de som o galpão. Barba, sem perceber, estava
dando passos para trás. B. Tyson não fez isso, preferiu
apanhar a arma da cintura e esperar o momento certo para
explodir uma daquelas bastardas. Ele as mataria de
qualquer jeito, elas estavam em seu caminho, e ele, um
cara grande com um cérebro pequeno, não podia suportar
isso. Mas o problema maior é que B. Tyson odiava cobras
desde os treze anos. Seu avô, a única figura paterna que
conheceu com alguma decência maior que a de um
macaco, morreu vítima de uma delas, uma Coral legítima. B.
Tyson foi quem encontrou o velho. A perna dele estava preta
onde foi picada, tão inchada que chegou a trincar perto do
tornozelo e dos joelhos. Ainda estava vivo quando o neto,
pequeno demais, não conseguiu arrastá-lo. B. Tyson ficou
com ele até que o peito parasse de ofegar.
— Deixa disso, Benê! Não vai acabar com todas elas!
— Eu só quero uma. Quando eu acabar com a líder, elas
vão debandar.
— Me soltem! Me desamarrem ou acabem logo com
isso! — disse Jota. Ele não tinha o mesmo repúdio de B.
Tyson, mas com certeza não era fã de alguma coisa que
rasteja com a barriga no chão.
Barba deu dois passos à frente e colou a arma na
cabeça de Jota. Era isso o que aquele merdinha queria, não
era? Não era o que estava pedindo? Porque se a intenção
era um blefe, não funcionaria com o velho Barba.
— Não — intercedeu B. Tyson e golpeou Barba.
Com a pancada no antebraço, Barba por pouco não
deixou a arma cair.
— Não? E não foi isso que o porra do vereador pediu?
— Que se foda o que aquele barriga mole pediu, esse
filho da puta vai virar comida de cobra.
Barba relaxou o braço e concordou. Aquele idiota não
merecia clemência alguma depois do que fez com as pobres
criancinhas da escola municipal. Ninguém ali era santo, B.
Tyson e Barba juntos, tinham no mínimo dez mortes sobre
os ombros, mas maltratar uma criança? Não, isso não fazia
parte do código de ética dos bandidos malditos. Maltratar
um inocentezinho? Matá-lo?! Barba e B. Tyson não
conheciam uma palavra que definisse o ato, o mais próximo
para alguém que faz isso talvez fosse abominação, e como
diz na Bíblia dos homens de bem: toda abominação deve ir
para o inferno.
Com a desistência de explodir os miolos de Jota, Barba
foi cuidar da própria vida e sair daquele inferno. Benê atrás
dele, cuidando das cobras que se aventurassem à frente.
Elas continuavam vindo, marchando.
— Porcaria, isso parece um jogo de Atari. Cobras não
agem desse jeito! — Barba disse, sem se importar que
ninguém dava a mínima para Ataris e olhando para o tapete
réptil que estava bem perto da cadeira de Jota. Ele parecia
rendido agora, a surra tinha feito metade do serviço, que o
resto ficasse com as cobras. Jota estava tão completamente
arrebentado que não reagia mais. Só acabem depressa com
isso.
B. Tyson disparou em uma das cascavéis a poucos
centímetros de Jota. Tão perto que lascas de couro
resvalaram em suas pernas.
— Tá vendo? Elas não sabem agir sem a primeira da fila
— sorriu, e em seguida disparou de novo.
O sorriso morreu depressa. Elas continuavam vindo.
B. Tyson conseguiu abater quatro cobras da primeira fila
que devia ter dez ou doze delas. Imediatamente, as cobras
anteriores tomaram seus postos, passando sobre suas
carcaças explodidas sem nem mesmo desviar. Os olhos
focados no principal agressor, elas estavam ignorando Jota,
pelo menos até ali.
— Anda logo com essa porta, Barba! Elas estão vindo!
— Como posso fazer isso!? A porta tá cheia dessas
malditas!
Hora de B. Tyson aprender que tudo sempre pode piorar.
Não era só o chão próximo à porta da frente que estava
recheado de serpentes, elas estavam escalando a porta,
pela parede toda, estavam entrelaçadas e se movendo
como se compartilhassem o cérebro. Um bem grande e
faminto que deve ter nascido na pior metade do inferno. Os
chocalhos batendo, e eram tantos que ecoavam pelo
galpão. Além das cobras, escorpiões foram surgindo e
ocupando os poucos nichos vagos. Baratas fizeram o
mesmo, e aranhas enormes e negras pendiam do teto em
teias resistentes.
— Isso é obra do diabo, homem! — disse Barba. —
Animais não fazem isso!
Estavam tão preocupados com o zoológico perto da
porta que não se deram conta do que acontecia com Jota.
Nenhuma das serpentes da primeira fileira o tocou. As
demais fizeram isso, mas passaram por ele como um abraço
úmido. Roçaram suas pernas, braços, se enrolaram em seu
pescoço. Um filhote de cascavel se aninhou entre suas
pernas e roçou seu pênis.
— Por favor! — disse, tão baixo e desesperado quando
podia. A cobrinha não desceu imediatamente, mas acabou
fazendo isso quando serpentes maiores passaram por ela.
Jota ouvia os disparos de Barba e B.Tyson e tremia,
imaginando quem o mataria primeiro: uma daquelas
serpentes ou uma bala na nuca.
— Acerta elas! — gritou Barba.
B. Tyson disparou contra o teto, nas aranhas, e não
passou nem perto. Apanhou a cadeira onde Pêra havia
sentado antes de cair morto e a destruiu contra o chão.
— Agora sim! — disse com um grande pedaço de
madeira nas mãos, um taco capaz de explodir aquelas filhas
da mãe. Mas eram muitas filhas da mãe, centenas de filhas
da mãe, descendo em suas teias como paraquedistas
saltando em Normandia.
Bateu com tudo em uma delas, e um monte de gosma
de aranha, vísceras e coisas que aqueles animais nojentos e
adoráveis têm por dentro, voou pelos ares.
— Você cuida das cobras! — disse.
Dizer era fácil. Que Barba soubesse não tinha as mil
balas nos bolsos que precisava para resolver todas elas. Era
assim que eles, os caras maus da cidade, diziam sobre
acabar com a raça de alguém. Vamos resolver fulano. Era
melhor que dizer matar, ou espancar, ou deixar aleijado.
Resolver era uma palavra elegante.
— De onde elas estão saindo? — B. Tyson gritou quando
viu que não conseguiria resolver sua parte do assunto. Ele
batia bem, mas a sessão anterior com Jota minou boa parte
de sua energia. Além disso, ele precisaria de uma
hidroelétrica nas veias para dar conta daquilo tudo.
Estavam avançando por todos os lados. Escorpiões,
salamandras, baratas. Serpentes pelo chão, pelo alto as
aranhas. Não somente aranhas grandes, agora chovia todo
tipo de espécies, principalmente venenosas, como os
homens do vereador descobririam em breve.
Jota continuava sentado, suando e esperando que um
daqueles animais frios decidisse alvejá-lo com suas presas.
Sentia novamente algo apertado em suas pernas e quando
tomou coragem suficiente, esticou seu pescoço e olhou para
baixo. Ficou feliz quando viu a calda e não viu um chocalho,
mas logo voltou a apavorar-se. A barriga amarela, o formato
diamantado da cabeça, o peso.
É uma jiboia!?, pensou. Uma merda de jiboia?
Era sim e pelo que conhecia dessas criaturas, elas
quebravam a perna de um homem como um palito de
dentes. Ela apertava o suficiente para fazer doer, aquela
droga de cobra era um alicate de pressão, Deus do céu!
Perder esperança era fácil, mas quando Jota se
preparava para ouvir o estalo dos ossos, a surpresa. Uma
das cascavéis se desenovelou do grupo e deslizou para
perto da cadeira.
Como você é grande, pensou Jota quando a viu
crescendo verticalmente. Tinha mais de dois metros. Os
dentes estavam úmidos, o sibilar era fraco, porém decidido.
Ela estava avisando a colega, orientando que aquele pedaço
de carne não seria seu, ou ao menos, não seria ainda.
Isso colega, fala com ela, mostra quem manda.
Seria fácil demais... A jiboia não estava disposta a abrir
mão daquela briga. Ao contrário, ela apertou bem mais,
fazendo a boca arrebentada de Jota se encher de saliva
nova.
— Ah, meu Deus! Acaba logo com isso!
A essas alturas a dor era tanta que restava apenas o
fim, o estalo do osso e jorro de sangue, isso excitaria o resto
daquelas malditas. Não foi o que aconteceu. Como quase
sempre ocorre no reino animal, a insubordinação foi punida
com a morte. A cascavel se eriçou um pouco mais, seu
guizo se sobressaiu aos demais como um chocalho xamã,
então veio o bote. Não só o bote, mas um arrastar de presas
que cortou o couro da inimiga como não seria natural
acontecer. Mas o que era natural em uma situação como
aquela? Cobras, escorpiões, salamandras? Não, seria mais
natural um filme de Oliver Stone.
A jiboia tentou adiar a derrota apertando um pouco mais
o abraço, tendões se esticaram ao ponto de ruptura. Os
músculos, não sabendo direito o que fazer, começaram a
tremer.
— Solta, filha da mãe teimosa! Obedeça a sua chefe!
Soltou sim, mas só depois da aproximação de mais duas
cascavéis. A líder se enrolou sobre ela e procurou pelo rosto
de Jota. Ele pode observá-la bem de perto. Era uma cobra
velha, com escarificações de guerra no corpo, uma bem no
topo da cabeça, como se alguém tivesse apagado um
cigarro bem ali.
Não havia tempo para comemoração, e um grito agudo
de Barba refrescou a memória de Jota.
— O que aconteceu aí? — gritou B. Tyson.
— Um desgraçado me picou! — respondeu Barba,
estapeando o próprio rosto. — Um desses escorpiões de
merda!
B. Tyson deu pouca ou nenhuma importância. Tinha
motivos mais sérios para se preocupar.
As cobras estavam mais perto e não havia liderança à
sua frente. Era um carnaval de escamas beges e douradas
se misturando, guizos chacoalhando no ar, enchendo os
ouvidos de pânico. B. Tyson estava de novo com a arma na
mão, o pedaço de cadeira na outra, servindo bem à tarefa
de aniquilar aranhas.
— Não tá dando certo! — disse Barba. Seu rosto doía
tanto que mal podia articular as palavras, o interior da pele
trançado com fios quentes de metal, costurando a carne por
dentro, sobrecarregando suas terminações nervosas.
— Elas estão fazendo alguma coisa — disse B. Tyson,
depois de golpear uma aranha das grandes. Ela não era
negra, mas marrom, agora era uma mancha de gosma
peluda.
B. Tyson tinha razão. De repente a parte de cima, uns
dois metros acima dos dois e outros dois abaixo do teto,
estava repleto delas. Um mar de aranhas e teias prontas
para o ataque final. As cobras chegando mais perto, rolando
pelo chão como um espaguete vivo. Escorpiões emergiam
entre elas, escorpiões como o que ferrou com o rosto de
Barba.
— Tá doendo, cara. Ele me pegou!
— Para de reclamar feito uma frang...
Parou de falar quando o viu.
Não entendia muito de escorpiões, não entendia nada
além de eles serem venenosos e se matarem quando
alguém os coloca em um círculo de fogo. B. Tyson não foi
capaz de entender como um bicho tão pequeno foi capaz de
estragar Barba daquele jeito.
— Seus olhos, cara, tá enxergando alguma coisa?
— Qual é Benê, tá me tirando?
Tirando nada, o rosto de Benê estava mais deformado
que o de Jota cuja cadeira acabara de tombar. Os olhos
quase fechados, o lado direito edemaciado; mesmo com a
barba cerrada dava para ver. Ele não tinha tomado uma
única picada, não mesmo.
Jota soltou um grito abafado, e B. Tyson sequestrou um
tempo para rir. Gostou de ver aquele desgraçado se dando
mal, ninguém seria capaz de fugir de um mutirão de cobras
irritadas. Elas eram tantas que logo soterraram a cadeira e
o safado grudado nela. O corpo de Pêra estava na mesma;
aprofundado nos répteis, com a sorte dele estar morto.
— Estão muito perto! — repetiu Barba.
B. Tyson diria alguma coisa, provavelmente o mandaria
calar a boca, mas antes disso as aranhas resolveram descer.
Todas elas.
Então, como um milagre bíblico maldito, estava
chovendo aranhas. E elas desceram aramadas, se
emaranhando nas roupas à procura de um pedacinho de
pele nua onde pudessem espetar suas quelíceras cheias de
veneno. Em menos de um minuto, apesar das tentativas de
rechaçá-las, os dois capangas de Torque estavam cheios
delas. Barba tinha problemas mais sérios porque os
malditos pelos de seu rosto permitiam que elas não
escorregassem ao chão. Atrás delas, enquanto os dois ainda
gritavam sentindo a pele perfurada em inúmeros pontinhos,
cascavéis e escorpiões alcançaram seu objetivo. Um dos
escorpiões, mais esperto que os outros, encontrou uma
brecha na calça de B. Tyson, logo acima do tornozelo. Entrou
e o ferrou na batata da perna. Ele gritou, mas enquanto
tentava arrancar a calça e acabar com o bastardo, chegou a
vez das cascavéis. Elas fizeram sua parte, com B. Tyson e
também com Barba, trabalharam tão bem que quando
terminaram não haveria como reconhecê-los sem a ajuda de
um dentista. O chão do galpão pertencia às pragas, parte
do teto também. E elas só saíram dali quando
completassem seu objetivo. Não demoraria nada...
HORA DE DORMIR EM CASA (?)
 
Depois de dias de cativeiro, finalmente Patrícia
enxergava alguma chance de sair daquele buraco imundo.
Seus braços estavam livres, mas Lobo, não tão
incrivelmente burro quanto ela pensou, prendeu suas
pernas com correntes e com um RTA (recurso técnico
alternativo, também conhecido como gambiarra) feito a
partir de um velho cinto de couro. Nada muito apertado,
porque Lobo estava gostando um pouco da filha da prefeita
— como gostava de toda mulher que desse bom-dia a ele.
Lobo também levou um balde amarelo de massa corrida
vazio para que ela fizesse suas necessidades, também
deixou meio rolo de papel higiênico — certo, como ela
conseguiria chegar ao balde era outro detalhe...
Patrícia pensou em quase tudo, mas ainda não tinha
calculado como conseguiria passar pela primeira porta de
saída. Parecia forte, mas era velha, e tudo o que é velho
tem um pouco de ferrugem. Se ela tivesse a força de um
homem talvez conseguisse, mas não com seu corpo de
Sandy-Xororó. Mas ela não precisava ser forte fisicamente,
sua tia-avó que era ligeira como toda mulher mineira, dizia
que uma mulher precisa ser inteligente ou bonita, a força
não é pré-requisito para nada, força deve ser feita por
homens enquanto as mulheres ficam bonitas e têm filhos.
Para sair dali ela precisaria antes soltar as pernas e não,
ela não tinha nenhum grampo mágico nos cabelos — e
mesmo que tivesse, não era nenhum MacGyver para saber
usá-lo, aliás, Patrícia Guerra nem conhecia “O Cara” além
das piadinhas na internet sobre ele não conseguir arrumar o
próprio carro.
Qual é, garota? Você é mais esperta que aquele
retardado.
Bem, não que fosse muito mérito ser mais esperta que
Miguel Lobo, uma taturana selvagem era mais esperta que
ele.
Olhou para os pés e forçou o corpo para frente, doeu
para caramba.
— Porcaria!
Melhor tentar outra coisa.
Puxou a fivela com os braços, mas aquele corintiano
retardado tinha feito um bom trabalho. Como todo doido
sempre faz. É... Talvez ele não fosse retardado, mas
somente doido. Um coitado.
Como é? Você está mesmo com peninha dele? Do cara
que meteu um pano cheio de lo-ló em sua boca e trouxe
você para o inferno? Ah, garota... Você não é daquelas
nojentas com síndrome de Estocolmo que acabam
transando com o sequestrador. Se pelo menos o
sequestrador fosse um fofo como o Davi, talvez fizesse isso,
mas aquele cara? Nem ferrando! O imbecil devia comer
cocô de nariz!
Tentou com as pernas outra vez. As correias eram feitas
de cintos comuns, cintos de couro que aquele imbecil usou
até gastarem. Eles não tinham muita cor perto das fivelas.
Estavam cinzentos e trincados. Ele passou cadeados pelo
meio deles e...
— Ele colocou duas camadas de couro.
De fato não era tão burro. Com as duas camadas de
couro, ela não conseguiria rasgar o tecido com a força das
pernas. Além disso, ele a amarrou no tórax, de um jeito que
seus braços não chegavam às pernas. Ainda não chegavam.
Patrícia olhou para trás, para a parede cheia de
chapiscos. Ainda, sua melhor chance. Apoiou os braços no
assento, respirou fundo e saltou. Acabou saltando forte
demais, alto demais.
— Opa! — disse, abrindo os braços para não tombar.
A cadeira gingou de um lado para o outro, Patrícia jogou
o corpo na direção oposta a tempo de inverter o
movimento. O coração acelerou de repente, e ela precisou
respirar fundo, três, quatro vezes, para parar de tremer.
Resolveu bem pouco. Suas pernas, seus braços livres, até
seus lábios tremiam. Pensou que talvez fosse hipertensa
como Miriam. Mamãe descobriu isso em sua gestação,
também descobriu diabetes e que seu bebê era
incrivelmente grande (quase cinco quilos) para uma
menina, e precisou de uma cesárea de emergência.
— Vamos lá, garota. Não é hora de ficar histérica.
Outra respiração, o corpo arqueado para frente, quatro
pés da cadeira fora do chão e um salto perfeito. A
aterrisagem também foi boa, o que a motivou a repetir o
movimento por mais três vezes. Estava perto do objetivo,
bem perto mesmo. O único detalhe é que, com os novos
saltos, a cadeira acabou ficando de lado para a parede —
precisaria ficar de costas para sua ideia brilhante ter
sucesso. Mas tudo bem, depois dos últimos saltos, o que
poderia dar errado? Era só colocar as mãos embaixo da
cadeira, usar os músculos do abdômen, e PULO!
Foi o que fez, mas Patrícia não contava com um chão
apodrecido embaixo dela. O salto e um giro no ar, a ginga
do corpo como um lutador de capoeira, tudo tão perfeito
quanto sua ideia de fuga. Foi sim, e é uma pena que uma
das leis sobre os sequestros é: nada é perfeito. Aquela
historinha de movimentos sincronizados de Treze Homens e
Um Segredo — e outro, e mais um segredo — é bem
bonitinha, uma pena que nunca funcionaria na vida real. Na
vida real a manobra foi um bosta.
A perna traseira da cadeira — direita para quem olha de
frente — acabou furando o concreto vagabundo e se
enterrando uns seis centímetros. Mixaria suficiente para
desequilibrar a dona da nave. Outra vez senhorita confiança
excessiva tentou reequilibrar-se, Hello Houston, we have a
fucking problem, man!
Foi com tudo para o chão. Tentou um giro que não saiu
e, pouco antes da colisão, lembrou que bater a cabeça e
sangrar até a morte não resolveria seus problemas. Patrícia
retesou o pescoço e as costas, jogou a cabeça para cima e
tentou amortecer com os braços. O chão chegando mais
perto e então o impacto, tão forte que uma lasca de
madeira voou longe.
— Ahhhiiii! — gritou. Gritou bem alto, e seus olhos
ficaram cheios de dor.
A lasca restante dos pés da cadeira acabou enfiada em
sua perna, uma porcaria estilhaçada furando a carne. No
mínimo, cinco centímetros. O sangue jorrava, o cheiro de
poeira úmida (umedecida com o sangue que escorria dela)
começou a ficar mais forte. Patrícia sentiu-se a mulher mais
burra do mundo todo. Deus, como aquilo de gastar as tiras
que prendiam seu tórax à cadeira poderia dar certo? Ainda
mais de costas?
Sua perna queimava, mas já não doía tanto assim — e
claro que essa sorte não duraria. Assim que a adrenalina
das veias parasse de correr, a dor voltaria com tudo.
Sangue novo escorria pra valer e aumentava a pequena
poça do chão, outro motivo forte para sair dali enquanto
tinha energia.
— Ah! Deus! — gritou quando tentou mover a perna. De
todo modo, não foi um esforço inútil. Com o movimento,
descobriu que a lasca vinha de uma das partes que
sustentava a cadeira. Se ela aguentasse firme, se
conseguisse se mexer só mais um pouquinho, teria uma
chance bem melhor do que se esfregar de costas na parede
rústica da sala.
Calminha, você consegue garota. É a filha da prefeita,
não é?
— Sou sim — disse, sentindo suor e lágrimas escorrerem
para o chão.
Tentou o mesmo movimento e sentiu a mesma dor, e
tudo bem com isso, poderia sentir dor até quase perder a
maldita perna se aquilo a tirasse do calabouço. Agora
pensava em Lobo, no desgraçado com uma meia na cabeça.
Queria arrancar seus olhos, pisotear seu saco sujo até que
tudo o que saísse dele fosse o sangue espesso que sobrou
das bolas.
— Eu consigo! — gemeu. — Eu vou conseguir.
Suas costas doíam. O ombro direito acertara o chão com
tudo, não estava quebrado, mas doía bastante. Por sorte
não estava arruinado, porque Patrícia precisaria daquele
braço para agitar a cadeira e escapar.
— Mais uma vez — disse. Em seguida outro grito.
Sentiu algum tecido intacto sendo rasgado. Não viu, não
conseguia ver a parte da panturrilha que estava perfurada.
— Dá pra doer menos, porcaria de perna?
Olhou para baixo e precisou suportar mais um pouco de
ardência e dor até enxergar o ponto certo. O pescoço girou
o que podia e, enfim, conseguiu. Não era exatamente uma
boa notícia.
— Eu não acredito...
A lasca também estava presa entra as duas correias do
cinto velho que servia de corda. Isso explicava a dor
profunda a cada pequeno movimento. Como sair dessa?
Tá certo, não vou sair desse chão, não adianta, mas...
Mas ainda podia forçar para baixo. A lanceta de madeira
iria ferrar com a perna, ok... Mas sejamos práticos: era sua
melhor chance.
Patrícia não respirou fundo dessa vez, preferiu acelerar o
tórax e deixar o oxigênio em excesso fazer sua mágica
entorpecente. Ela não precisava de calma, ora essa!
Precisava de um banho de raios gama!
Um, dois...
Ai, meu Deus, me ajuda tá?, pensou. Eu não sou uma
garota ruim, você sabe. Eu nem tive tempo para isso.
— Três! — gritou.
Sentiu duas coisas: uma dor terrível e seus pés voando
soltos. Deu mais dois trancos daqueles sem nenhuma dor
profunda. Suas pernas estavam livres.
Agora, preciso levantar.
Ainda estava presa à cadeira, pelo assento e pelo tórax.
As pernas de trás da cadeira ainda estavam por lá, as duas
pernas da frente, arrebentadas. Os pedaços de couro dos
cintos, caídos no chão, como duas cobras que desistiram
das peles. Patrícia olhava para elas de onde estava; do
chão.
Tentou levantar, arremessando os joelhos contra o chão
cimentado e depois caindo de lado. Bateu a maçã do rosto e
ralou a pele. Os braços se preocuparam apenas em não
piorar a ferida da perna com uma nova queda. A cadeira
ainda tinha o assento e a parte de trás; tórax e bumbum
presos. Não dava para simplesmente sair andando. Mas...
Posso engatinhar... Andar como um cachorrinho.
Foi isso o que fez. Patrícia espalmou as mãos no chão,
eriçou o bumbum sem forçar o ângulo formado pela cadeira
e andou até perto da parede. Agora podia partir para o
plano B — gastar aquelas malditas cordas que a prendiam
pela barriga. Foi engatinhando até a parede mais irregular
da sala. Antes do Plano B, olhou para o sangue que se
acumulava depressa no chão. Era melhor andar depressa,
uma infecção parecia mais provável que fugir daquele
inferno.
Conseguiu ficar quase de pé. Colou a parte de trás da
cadeira na parede e forçou as cordas contra ela. A perna lá
embaixo ardendo pra valer, os músculos doíam. Aquela
porcaria de lasca parecia estar fora da perna. Mas não dava
para saber, se, antes de sair, aquele pedaço da cadeira
deixou uma lembrança. Parecia que sim — se bem que,
Patrícia não tinha referenciais para uma dor como aquela,
sua vida de filha da prefeita não a preparou para nada mais
forte que uma bomba no vestibular (Deus sabe que nem
para isso...). Suando frio, seus intestinos não estavam em
ordem, o rosto ardia.
— Desiste, cadeira de merda! — disse, se balançando
como o pêndulo de um relógio. Não conseguia ser muito
precisa e as costas já estavam raladas e doloridas. Acertou
também a parte de trás da cabeça.
— Mais um pou-qui...nho! — gemeu. As mãos estavam
segurando as cordas e empurrando para frente. Havia muito
pouco espaço para trabalhar, o suor corria em bicas
empapando os cabelos contra o rosto. Ela devia estar
horrível, realmente horrível. Essa era a única sorte de um
sequestro muxiba como aquele, podia ficar feia à vontade.
Pensou em Davi a enxergando como estava agora. Depois
em Stela, rindo e beijando o Davi, o abraçando...
Aquelazinha!
Foi com raiva vindo à tona que a primeira corda cedeu.
O resto veio com as mãos.
Com paciência, Patrícia se livrou das cordas e depois do
assento. Chorou um pouco com a tensão indo embora. E
perdeu muito tempo sentindo pena de si mesma. Ela ainda
precisava sair dali e, além disso, havia sua perna. Um
pedaço de madeira ficou mesmo para trás, soterrado,
inacessível a menos que ela o arrancasse abrindo a pele
(sim, ideia genial morrer sangrando na estrada de volta
para casa). Decidiu que a perna ficaria como estava. Patrícia
a forçou contra o chão e sentiu dor, mas nada que a
impedisse de andar — achava isso. Olhou para a porta da
frente e respirou fundo. Tinha uma porta de aço para
encarar.
ABENÇOADO SEJA
 
— Misericórdia, parece que até Deus entrou de férias...
— resmungou Galileu Sultão.
Era costume em sua família, um costume muito pouco
usado por ele, pedir proteção antes de uma guerra, e era
isso que Sultão tinha em mente. Lá dentro, nos confins
doloridos e surrados de seu cérebro, a imagem de Milena
clamava incessantemente por ele. Não a garota adulta que
ela se tornou, mas uma garotinha com sonhos limpos e
doces. Seu primeiro olhar, diferente dos bebês homens, era
cheio de ternura. E ela o olhou nos olhos assim que saiu da
manta ensanguentada da pediatria. Depois ela cresceu um
pouquinho e ficou esperta, Deus, como ela ficou esperta.
Galileu ainda não entendia como Milena perdeu essa
inteligência e se meteu em uma enrascada daquelas. Agora
ele tinha um trapo em casa substituindo a esposa. O que
restou dentro da residência dos Sultão foi só isso: dor,
revolta e a necessidade de se vingar de alguém. Ainda
assim ele acreditava em Deus. No Deus irresponsável que
de uma maneira desprezível permitiu que Roger Minotto
fizesse o que fez com ela. Toda aquela sujeira, sexo e
sangue. Ele não via uma mulher de bem, não foi o que viu
quando visitou o corpo no necrotério. Trataram sua filha
como uma rameira, uma prostituta. O que lhe restava
agora, e julgava ser de seu merecimento, era a benção do
Deus tortuoso dos homens para fazer justiça com as
próprias mãos.
— Padre! — gritou, socando a porta da frente. A madeira
tremeu entre seus dedos sem causar nenhuma dor. De
fato... Havia algum espaço para sentir dor?
Ninguém respondeu de dentro da igreja. O que era
estranho, visto que as luzes ainda escapavam pelos vitrais
coloridos que estampavam o que aquele Deus estranho
permitiu ao seu único filho chamado Jesus. Mais estranho
ainda eram aquelas mesmas luzes acesas tão tarde da
noite. A igreja foi a segunda parada de Galileu, antes, ele foi
até a casa do padre. A cidade estava mesmo
enlouquecendo. Sultão ouviu histórias antes de chegar à
igreja matriz, todas elas esvicerantes e tão ou mais malditas
que a sua. Ouviu sobre o hospital da cidade onde, pela
primeira vez em anos, nenhuma criança nasceu ou chorou.
Segundo Sara, enfermeira chefe da neonatal, eles pareciam
vidrados e assustados. Não choravam sequer durante o
banho ou quando tinham seu sangue retirado para os
exames de rotina. Sara, que era muito religiosa, arranjou
uma explicação prática. Disse que eles não choravam
porque sabiam sobre o que acontecia na cidade. Disse que
eles têm um elo maior e mais resistente com o outro
mundo, desse modo eles sabem coisas que os homens e
mulheres crescidos não sabem.
— Tem alguém aí? — gritou mais uma vez, já
desesperançoso em receber respostas.
A noite soprou mais fria sobre ele, sem conseguir
refrigerar sua alma. Galileu incendiava. Memórias vinham
torrencialmente. Planos de um futuro possível vasculhavam
brechas para inundar sua alma de dor. Bolas, ele queria um
neto, como poderia ter isso agora? A mãe de Milena havia
ligado trompas há muito tempo, e ele não tinha condições
ou vontade de arranjar uma nova esposa. Roger tirou tudo o
que ele tinha. Seu pai, aquele maldito arrogante que reza
para o dinheiro enquanto empresta favores do demônio,
também não teria mais um filho em muito pouco tempo. E
ele faria com Roger o que foi feito de sua filha. Colocaria
coisas dentro dele, abriria sua garganta, limparia seus pés
em cima da carcaça. E ainda assim seria pouco.
Bateu à porta mais uma vez.
Um pouco do eco de dentro vazou para fora enquanto
ele colava os ouvidos no carvalho da entrada. A guardiã era
como o padre lá dentro, alguém capaz de celebrar velórios e
batizados sem mudar o tom de voz.
— Sultão? — perguntou alguém às duas costas.
Galileu girou sobre os calcanhares e empunhou o
revólver que trazia na cinta.
— Padre? Santo Deus, padre. Quase me matou de susto.
— Ninguém morre antes da hora, Galileu. O que o traz a
casa de Deus?
— Podemos entrar?
A figura do padre enrugou um pouco. Ele parecia
diferente sob a luz fraca do poste de iluminação. Um pouco
sisudo e ereto, com um orgulho que não costumava ter.
Também estava sem o colarzinho branco que todo padre
usa no pescoço. Sultão pensou em perguntar sobre isso,
mas imaginou que aquele homem também estivesse
cansado.
— É algo que não podemos tratar aqui fora? Eu já
tranquei tudo — bocejou. Seus olhos negros voltaram a sair
das pálpebras e brilharam o reflexo da luz distante.
— Quero sua benção, padre.
— Eu já o abençoei, homem. Como fiz com a cidade
toda. Mas o que tem em mente? É algo relacionado à sua
Milena?
Foi impossível para Sultão não apertar as mãos até que
tremessem um pouco. Ouvir falar de Milena nos últimos dias
ativava seu velho vulcão adormecido. E adormecido seria
um enorme exagero. Seu vulcão particular estava apenas
cochilando, em vigília na maior parte do tempo.
— É sobre ela sim, padre. Vou buscar a justiça que
ninguém me deu. O senhor já deve saber do que estou
falando.
— Ele foi solto, o Roger...
— Quero que ele pague pelo que fez e não vou esperar o
reino dos céus para isso. Quero sua benção, padre.
— Para matar um homem? Não sei se posso faze...
— Quero sua benção para fazer justiça. E se não puder
fazer isso, vou continuar do meu jeito.
— Calma, homem, tenha calma. Ninguém vai tomar seu
direito.
Sultão rasou os olhos quando ouviu isso. O padre
provavelmente era o único da cidade, além de Luciano, a
endossar sua proposta. Sultão limpou os olhos em seguida.
Não deixou de achar estranha a falta de insistência do
padre em demovê-lo daquela ideia homicida. Tanto que
perguntou: — Existe pecado no que vou fazer?
— O pecado sempre existe nesse mundo, e eu não sou
ninguém para julgá-lo. Meu senhor colocou em minhas
mãos a possibilidade absolvê-los. Vou dar sua benção,
Galileu. Se já pensou em tudo e nas consequências, está
pronto para ser abençoado. Ajoelhe-se.
Sultão guardou a arma na cintura e obedeceu. Sentiu
um longo arrepio, daqueles que eriçam até os pelos da
barba, e baixou o rosto. Seus olhos rasaram de novo, e ele
deixou que as lágrimas caíssem dessa vez. Juntou as mãos
sobre o colo e aguardou pelas palavras do padre.
— Sinta-se abençoado para ouvir seu coração.
Quando Sultão se concentrou na palavra de Deus e nas
orações que conhecia, o padre retirou as mãos. Na árvore
mais próxima, uma árvore de jambolão, morcegos deixaram
o descanso e voaram para longe. Galileu ouviu seu silvo e
apertou mais as mãos em oração. Quando enfim abriu os
olhos, o padre não estava mais lá. Ele olhou para as luzes
da igreja, elas continuavam acesas. Passou a mão pela
porta, notando algo que não havia reparado quando bateu
pela primeira vez.
— Cupins.
SEU DEUS ESTÁ MORTO
 
Sultão saiu com o peito cheio de coragem, e o falso
padre que o encheu com isso, voltou a ser quem realmente
era. Um dos tantos que realmente era. Dessa vez a roupa
escolhida foi a de um homem de cabelos claros, barba
cerrada de uns dois centímetros, e um olhar complacente
acariciado por olhos verdes. O nariz pronunciado, o corpo
alto e bem fortalecido. Usava um terno cinza, caro demais
para Nova Enoque, camisa também escura, nada de
gravatas. Sapatos polidos e reflexivos nos pés. Tocou a
porta da igreja e as portas se abriram sem esforço visível.
Estevão continuava caído perto do altar. Um pouco de
sangue no chão, uma mosca lambendo seus lábios que
ostentavam uma expressão de paz que não duraria muito
tempo. A maneira escolhida para acordá-lo foi um rápido
movimento do estranho com os dedos. Feito isso, a estátua
do Jesus açoitado do altar veio abaixo, uma torrente de
gesso colorido encheu de sons a igreja, enquanto Estevão
acordava e se sentava massageando a cabeça. Olhou para o
visitante e tentou reconhecê-lo. De fato o fez, mas não
fisicamente. A urina ameaçando descer de sua bexiga fez
isso por ele. Aquele estranho era o mal que, de alguma
maneira, estava encarnado.
— Pesadelos, Padre Estevão?
Depois de checar o sangue que vinha da parte de trás
da cabeça, o padre o encarou com receio.
— Quem é você?
Talvez fosse um anjo. Estevão nunca estivera na
presença de um. Anjos são criaturas estranhas, sempre com
as asas sujas de sangue, sempre conspirando aos pedidos
de alguém. Se tivesse que dizer a verdade, Estevão diria
que um anjo nunca traz boas notícias. Mesmo quando eles
vêm para ajudar, só o fazem porque uma desgraça terrível
se abateu antes disso.
— Sou alguém que o quer fora do caminho.
Anjos? Não... De jeito nenhum.
— Como entrou aqui? Na casa de Deus?
— Não seja idiota, padre. Deus não tem casa. Essa
construção esnobe serve apenas a um propósito: o coração
sujo da sua igreja.
Caminhou para mais perto, seus sapatos faziam um
barulho suave e ritmado. Chegou ao lado do homem e olhou
com desprezo para a pobre criatura.
— Tenho notícias ruins — disse.
— O que sai de sua boca não me interessa.
— Mesmo? — sorriu. Os dentes brancos e rigidamente
posicionados deram a ele uma sinceridade que não tinha. —
Mesmo que se trate do seu irmão? Daquele pulmão cinzento
que já devia ter murchado faz tempo?
— O que fez com ele? — perguntou um pouco ofegante.
Seu próprio pulmão parecia discernir que o ar dividido com
aquele homem não prestava.
— Eu? Eu nada, Estevão. Quem fez foi seu Deus.
— Lave essa boca para falar o nome de Deus. Você não
é digno de estar, sequer, entre seus inimigos.
Estevão tentou se levantar, mas o estranho com olhar
angelical fez outro daqueles movimentos com as mãos.
Estevão sentiu seus ossos impulsionados para trás, sentiu a
madeira do banco esmagando suas costas, verteu um
pouco de sangue pelos lábios.
— Seu Deus é um doente, padre. É uma criança com
uma arma nas mãos. Como ainda não enxergou isso? Como
vocês, tantos anos à frente da civilização que pariu essa
religião medíocre, ainda não perceberam?
— Deus é amor.
Uma gargalhada debochada e com resquícios de catarro
encheu a igreja.
— Uma criatura que sujeita seu próprio filho a ser
imolado como um carneiro? Amor? Padre, vou contar um
segredo... Eu conheci uma prostituta chamada Isabel que
tinha bem mais amor que o seu Deus. Como pode se sentir
amado? Um homem formado, agindo como um eunuco,
desejando secretamente que seu pênis encontre a fenda de
algum garotinho para não tocar uma mulher. Chama isso de
amor?
— Não blasfeme — pediu sem convicção alguma que
seria atendido.
— Eu classifico como tortura. É só isso que a criatura
que você reconhece como criador sabe fazer. Brincar com
os homens, tratá-los como um rato dentro de um aquário de
serpentes. E digo mais, padre... Se o seu Deus é assim tão
poderoso, onde ele está agora? Se masturbando? Ou quem
sabe ele esteja respondendo às orações de algum doente
religioso carregado de bombas na cintura.
— O que você pretende? O que pretende vestido como
um homem? Você não é um homem, demônio!
— Não... Infelizmente não. Não mais.
Caminhou e se agachou perto do padre. Apanhou uma
pedra violeta do bolso e olhou para Estevão. Os olhos
verdes e bonitos disseram que o fim estava próximo.
— Você e a velha bruxa vão ficar fora do meu caminho.
Já se meteram demais. Padre, homem, se você tivesse
metade da inteligência e o dobro do juízo dentro dessa
cabeça branca jamais teria voltado para Nova Enoque. Olha
só o que ganhou com isso... Um irmão morto com os olhos
bicados pelos pombos que não encontraram nenhuma
comida em suas mãos.
— Deus... — lamentou Estevão.
— Eu não queria fazer aquilo com o pobre Julius. Ele era
bem menos burro que você, santidade. Ele conheceu mais
bocetas que você sonhou na vida, e conheceu alguns pintos
também.
— Cale-se!
— Oh... Machuquei você, padre?
Esticou os braços com a rapidez de um coelho e agarrou
o pescoço de Estevão. Sentiu o suor nascendo do medo e
chegou mais perto, querendo sentir seu cheiro e seu sabor.
O medo, o melhor e mais poderoso sentimento humano.
— Seu irmão estuprou uma garotinha, padre. Fez isso
enquanto você era ordenado e se vendia para a igreja. Mas
claro que você sempre soube dessa parte.
As veias de Estevão, sequestradas no pescoço,
incharam depressa. O rosto ganhou uma coloração azul e
cianótica, os lábios perderam a cor. Quando Estevão estava
bem perto de perder a consciência — e ele queria, ansiava
por isso —, o estranho o soltou.
— Você o perdoou, não foi? Usou do que a igreja o
ensinou e o perdoou em nome do seu Deus retardado. Eu
não esperava outra coisa de um sacerdote hipócrita.
— Por quê? — ofegou. — Por que está fazendo isso com
a nossa cidade?
Outro riso nasceu nos dentes brancos do oponente.
— Você vai ter que perguntar para o seu Deus. Sabe o
que ele faz com pedidos e preces, padre? Ele usa contra
vocês. Seu Deus é um banqueiro.
Estevão ofegou e não conseguiu muito ar de volta, sua
nuca estava latejando, os olhos ganhando pontinhos
coloridos que sinalizavam o fim da linha. Ele não tinha muito
tempo e sabia disso. Então orou em seu silêncio
desesperado:
Pai, eu nunca fui contra tua obra, sempre fiz a sua
vontade e se errei, não foi por omissão. Eu apenas
acreditava que era a coisa certa a fazer. Nossa cidade não
merece esse mal, pai. Nós não merecemos ser subjugados
às asas dessa criatura. ME AJUDE, DEUS! Ajuda-me contra
esse mal!
— Acha que seus pensamentos estão seguros, capelão?
É isso que sua cabeça branca pensa? Posso ler o que
escreve antes de pegar o lápis, seu porco.
Em um sacrifício de fé, em uma última muleta religiosa,
Estevão procurou pela imagem de Virgem Maria que ficava
à sua esquerda, estava bem atrás do homem-demônio de
olhos verdes.
— Ela? A mulher? Oh, padre. Pensei que o seminário
tivesse ensinado o quanto ela vale.
O hálito pantanoso e apodrecido do agressor chegou
forte às suas narinas. Estevão agradeceu por conseguir
respirar tão pouco. Era um odor horrível e escurecido. Uma
brisa de angústia e desalento. Respirá-lo era arfar da morte
mais lenta e dolorosa possível. Estevão focou ainda mais
nos olhos da estátua, procurando uma brisa mais leve, um
sopro que o levasse para longe da entidade.
— Isso mesmo, olhe para ela, boçal.
A imagem chorou sangue, esse foi o primeiro
pensamento de Estevão. Foi só prestar mais atenção para
notar que o fluido tinha bem mais de marrom e negro do
que de vermelho. O cheiro giárdico logo tomou conta do
resto.
— Sua santa chora merda, desgraçado! Merda!
— N-ão — suspirou. E não era o fim do horror. O
demônio de olhos verdes tinha mais para mostrar.
Do vestido claro, da parte pélvica onde devia estar
anatomicamente a vagina, um líquido avermelhado, grosso
e cintilante começou a brotar. Aquilo escorreu pelo manto e
começou a respingar pelo chão de granito da igreja. As
velas, dezenas delas, se acenderam e voltaram a apagar. O
cheiro fétido de fezes e sangue ficou mais forte que o hálito
cinicamente risonho do estranho.
— Olhe sua virgem, sacerdote. Olhe para aquela que
deveria ampará-lo. Diga agora; se ela não cuidou do próprio
filho, se o seu Deus esnobe não cuidou dele, o que ele faria
por você?
— Vai pa-gar... por...
— Ela está menstruando padre, está abortando o filho
condenado do seu Deus maldito.
Com tanto esforço e sufocamento, a garganta de
Estevão parou de lutar, como seu corpo todo. Suas pernas
se agitaram brevemente e seu tórax relaxou. A morte, a
dama maldita, era bem vinda.
— Ainda não, desgraçado — trouxe-o de volta. — Sua
cidade e seus homens são tão sujos quanto seu Deus. Seu
Deus do holocausto que não se importa com nada além do
seu umbigo celestial.
Um pouco de nervosismo apareceu no semblante calmo
e atracado do homem. O queixo do estranho tremeu como
se fosse possível que ele chorasse com sinceridade. Não
durou muito.
— Ele, seu Deus, deixou injustiças demais dormirem
nesse pedaço apodrecido de chão. Sua amada Nova Enoque
não passa de um terreno amaldiçoado pelo tempo,
corrompido por sua gente doente. E ele, seu Deus, permitiu
tudo isso, como permitirá o resto.
— Não — ofegou. — Ele vai puni-lo, vai cuidar do seu
rebanho. Ninguém escapa da justiça divina, seu monstro.
O estranho riu e mostrou seus caninos protuberantes.
— Tem razão, capelão. Tem toda razão.
Do alto da nave, um enorme lustre de cristal e bronze
tilintou. Estevão olhou para cima e apoiou os braços no
chão. Depois os pés para que pudesse correr antes do que
esperava acontecer. O estranhou girou os dedos e junto
com eles, os joelhos do padre. O estalar dos ossos foi tão
alto que suprimiu o primeiro pedaço de teto que veio ao
chão, junto com um dos fixadores do lustre.
— AH! DEUS! — gritou. Os joelhos estavam arruinados,
tão arruinados quanto sua fé.
Ainda assim, Estevão cruzou as mãos e clamou por uma
intervenção. Sequestrou toda fé que ainda tinha na alma;
imagens de cada cerimônia que celebrou naquela igreja, os
sorrisos das crianças e a esperança dos noivos. Evocou a
vida após a morte das dezenas de despedidas fúnebres que
celebrou.
Mas Deus parecia não se importar.
A imagem da virgem tombou e explodiu em cima de
excrementos e sangue. Dela saíram escorpiões, baratas e as
larvas brancas que comumente habitam cadáveres.
Então uma explosão no teto. Um pouco de cal e
concreto disseram que era o fim para Estevão. Ele pensou
que talvez aquela aberração de olhos verdes tivesse razão.
Se Deus abandonou seu próprio filho, o amor encarnado,
que valor teria um humano?
MÃE? VOCÊ ESTÁ AÍ DENTRO?
 
As ruas do subúrbio pareciam movimentadas na noite
que caiu mais escura que as outras. Era como se
soubessem, como se as desgraças da vizinhança
mostrassem a todos que o tempo de sorrir e ter esperanças
havia chegado ao fim. Lobo tomou conhecimento de alguns
desses casos pouco antes de convencer Nora Lobo a sentar-
se no sofá em vez do chão.
Havia um carteiro na rua, senhor Gilberto Brisa. Um
homem alto e calmo na maior parte do tempo, daqueles
que para morrer de repente levariam uma semana inteira.
Também havia o velho Ernesto (um pracinha que passava
seus dias em um banco de concreto em frente à sua casa).
Foi esse último quem contou a Lobo que depois de Gilberto
chegar em casa, ele encontrou a esposa, Marta Brisa,
enforcada na cozinha. Ela deixou uma carta o convidando a
fazer o mesmo já que seus anjinhos (um garotinho ruivo de
seis anos e uma garotinha de dois) foram para o Papai do
Céu minutos antes dela. Gilberto não chegou a descê-la da
corda, ele foi atrás dos garotos. Encontrou os filhos na
banheira, de bruços. Havia pétalas de rosa sobre eles e
sobre a água. Gilberto então foi até o telhado com sua
espingarda (herança do pai, militar morto em serviço há
vinte anos) e acabou com a própria vida. Duas casas depois,
praticamente na frente da casa dos Lobo, os cães da família
Lorca (dois filas, Trovão e Tempestade) atacaram seus donos
e comeram pedaços de seus corpos. O que sobrou dos
cadáveres ainda estava dentro da casa porque nem a
polícia e nem o corpo de bombeiros tinha efetivo para tudo
aquilo — e como acontecia em todos os lugares desse
mundo, Zétia deslocou seu pessoal para a área mais rica da
cidade. Ernesto voltou para dentro de sua casa fazia cinco
minutos. Alguém gritou, houve um baque seco na porta, e
as luzes da casa foram apagadas. Lobo não se meteu; como
todo cara do subúrbio, sabia o risco de visitar alguém sem
ser convidado, mesmo que fosse o velho Ernesto que não
fazia mal maior que um peido fedido.
Ainda no portão da casa, sacou um cigarro do bolso —
uma marca paraguaia tragicamente cancerígena — e olhou
para a luz oscilante do poste de rua. Havia muitos, muitos
insetos voando ao redor da lâmpada. Besouros, mariposas,
havia até abelhas, e de modo algum abelhas voando à noite
parecia natural, mesmo a um desinteligente feito ele. No
chão, um círculo de insetos. Alguns mortos tendo sido
atacados por outros. Os vivos lá em cima zumbiam alto, um
som raivoso. As abelhas alvoroçadas, dando longos loopings
até o chão. Sua mente ficou ocupada por algum tempo, mas
tão logo chegou à metade do cigarro, pensou na garota.
Tinha pena dela, do que tinha feito em troca de coisa
nenhuma. Que droga, ele era burro, ele se achava burro
desde a primeira série quando confundiu o bidê de um
amiguinho com um vaso sanitário e o encheu de bosta. Os
anos seguintes provaram que ele estava certo, e Lobo tinha
certeza, depois do lance do Subaru de Orlando, que ele
nunca ganharia dinheiro suficiente para sair da lama onde
fora cuspido de um útero. E aquela coitadinha da filha da
prefeita não tinha culpa nenhuma nisso.
Eu devia voltar lá e soltar ela. Mas e se o carro parar de
novo? Porra... O que sobrou para mim foi uma mãe
retardada e um futuro na cadeia. Porque ela vai contar tudo
quando sair dali. E eu não tenho coragem de deixar uma
menina morrer de fome.
Nem coragem, nem vontade. Lobo estava começando a
gostar dela, gostar de verdade e de um jeito que não
deveria. Mas também, perto das biscas que conhecia,
mulheres que chupavam um cara por cinco pilas, Patrícia
era praticamente a Princesa Diana. E ela era forte. Nada de
maconha e picos nas veias, nada de perfume barato e bafo
de cerveja. Patrícia era melhor que elas, que ele, que aquela
maluca trancada lá dentro que por acaso era sua mãe. Ele
iria soltá-la sim, assim que amanhecesse o dia.
— Tá fazendo o que no meu portão, vagabundo? —
ouviu atrás dele. Engoliu a fumaça pelo buraco errado e
tossiu sentindo os olhos ficarem cheios d’água. O que ela
queria agora? Olhou para trás, para a porta que Nora
acabara de atravessar.
— Jesus Cristo, mãe! Que é isso?
Nora estava nua.
Sua magreza era tão intensa quanto a ser ofensiva. As
pernas não eram grande coisa, nunca foram, mas estavam
além de secas, com manchas avermelhadas por toda parte.
Os olhos de Lobo, apesar de sua luta, acabaram no sexo de
Nora, naquela coisa horrível e felpuda que mais parecia um
gambazinho. Ele os retirou dali antes de imaginar qualquer
coisa que o consumiria para sempre, mas não adiantou; os
olhos encontraram os seios, o que restou dos seios. Duas
maminhas murchas e sem vida, os mamilos escuros e
inapetitosos, estrias, Lobo não conseguiria fazer sexo por
dez anos, nem que quisesse.
— Mãe, pelo amor de Deus, volta para dentro.
— Do que me chamou, cafajeste?
— De mãe, você é minha mãe. Agora vamos para
dentro.
Antes que Lobo chegasse a ela, Nora se virou, coçou o
rego profundamente e atravessou a porta. Lobo percebeu
dois garotos escandalizados do outro lado da rua. Eram
adolescentes e sabe como é... Sempre era bom ver uma
perseguida. Contudo, não foi isso o que Lobo viu em seus
olhos, ele viu horror e nojo, o mesmo que sentia.
— Saiam daqui, seus merdas.
Um dos garotos suspendeu o dedo médio, outro agarrou
a virilha e esticou a pelves, saudação padrão do bairro.
Depois correram dando gargalhadas. Lobo atirou a guimba
do cigarro para longe e procurou Nora dentro da casa.
— Mãe? Cadê você?
Ela não estava na sala, mas deixou um presente para
Lobo. Nora havia defecado no chão, também urinou em
cima do sofá.
— Que é isso, mãe, por que isso?
Em seguida Lobo ficou quieto, afinando os ouvidos, sem
ter muita certeza de querer descobrir o resto. O que ainda
faltava para provar que Nora e um caramujo estavam com
níveis cerebrais idênticos?
Caminhou pela sala desviando do presente amolecido
ao chão. Depois de passar por ele, deu uma olhada mais
atenciosa.
— Jesus...
Havia alguns objetos no meio da massa mole. Lobo
apanhou o controle do videocassete (sim, ele e Nora eram
provavelmente os únicos da rua a manterem um objeto
arqueológico na estante) para movimentar a sopa.
Descobriu um anjinho de porcelana, um carrinho de criança
todo mastigado, e duas bolinhas de Gude. Sabia de onde
vinha aquilo. Nora ainda mantinha os brinquedos de criança
do filho, Lobo achava mórbido, mas por outro lado,
entendia. Nora não tinha netos, não tinha maridos ou
sobrinhos com quem se distrair. Tudo o que restava a ela
eram suas lembranças.
Um suspiro no segundo quarto do corredor fez que
deixasse a sopa.
A casa toda recebeu como um presente aquele cheiro
podre. Só Deus e o Diabo sabiam o que estava diluído
naquele monte de porcarias, o que escapava aos olhos.
Lobo rezava baixinho para que não houvesse nenhum tipo
de veneno. Também rezava pelo oposto com algum
arrependimento instantâneo. Com a escuridão tomando
Nora, pensava se não seria melhor o crack que a
anestesiava e a deixava sonhar. O que resta da desgraça
senão os sonhos, quando se está enterrado em um buraco
tão fundo que a luz mostra apenas o quão distante está a
felicidade?
Deu alguns passos dentro do corredor. Passos curtos que
esperavam a queda em um calabouço de fogo.
— Não... — disse Nora atrás da porta.
Dava para ouvir sua respiração. Seu ofegar assustado e
infantil. Lobo foi além e recostou-se à porta.
— Mãe, abre pra mim. Posso ajudar — disse com a voz
fraquinha.
— Não vou deixar você me foder, vagabundo! Essa
boceta tem dono! — Nora gritou.
— Mãe! — socou a porta. — Sou eu, porra! Seu filho!
— Meu filho? Eu não tenho um filho!
Pensa cara, pensa!
Nora Lobo não nasceu drogada, esmagada e inútil. Nora
um dia havia tido fé, isso talvez a ajudasse agora. Lobo não
tinha fé em nada que não fosse o Corinthians, mas se
pudesse usá-la, como fizeram os caras da clínica de
recuperação quando tiraram Nora do lodo pela primeira
vez... Bem... Quando o que resta é a fé, ela se torna útil.
— Sou um anjo, Nora. Um anjo de Deus.
Um pouco de silêncio do outro lado. A respiração de
Nora desacelerou, os sons úmidos de choro esmoreceram.
— Um anjo?
— É sim, dona Nora — disse Lobo, tentando parecer
mais nobre do que conseguiria ser. — Sou um anjo e vim
anunciar boas notícias. Abra a porta.
— Anjo? Com essa cara de tarado? Com essa cara de...
Se você é um anjo, moço, eu não consigo imaginar o rosto
de satanás.
— Não zombe! Estou aqui com um... (como é mesma a
palavra?, pensou)... propósito.
Mais quietude.
Propósito... Essa é uma palavra difícil, não é muito
comum na boca de um vagabundo, a menos que ele esteja
dizendo que fez alguma merda de propósito.
Cleckt.
Um rangido enferrujado. Fechadura aberta.
Ouviu Nora recuando. Ficou feliz porque agora ela
estava calçada. Era uma excelente notícia que se lembrasse
da utilidade das roupas. Excelente notícia que não durou
nada... Lobo abriu a porta.
Nora estava recuada à parede, em frente à janela aberta
do quarto. A luz estava desgraçadamente acesa. Ela estava
calçada sim, com o único sapato de salto alto que tinha
estocado. Era vermelho, de vinil. Mas Nora continuava nua;
seus seios murchos buscando algo onde se escorar, o
tapete de pelos da pelve estufado, farto e um pouco
grisalho. E essa não era a pior parte.
— O que você fez, mãe?
Nora estava com os pulsos vermelhos. Dois cortes
fundos que a levariam para a terra do nunca em pouco
tempo.
— Facilitei as coisas, anjo. Quero encontrar Deus antes
que me esqueça dele.
— Mãe, precisamos de um hospital! Você vai morrer! —
Lobo gritou.
— Vou morrer de qualquer jeito. Você pode levar minha
alma agora, pode dizer a Deus que eu fiz escolhas erradas,
que eu fui fraca e que... e...
Seus olhos focaram o vácuo, o lugar onde todos os
sonhos e pesadelos se escondem da incompreensão.
— Eu não sei o que estou dizendo... — confessou
esmorecendo.
Lobo olhou para a cama ensanguentada e encontrou
objetos sobre ela. Nora Lobo estava viajando bem mais do
que ele imaginava.
— Isso tudo é seu? — Lobo perguntou, sentindo seu
próprio apetite corrompendo a vontade vítrica que tinha de
ficar sem aquilo. Talvez fosse genético, talvez fosse uma
programação-base do subúrbio aquilo de se entupir com
farinha e maconha. Oh, e claro, de crack.
— Acho que sim. Eu acho. O que são essas coisas, anjo?
Lobo deixou a porta e foi para perto da cama. Olhou
para a caixinha de madeira (que um dia fora a caixinha de
seu jogo de dominó) e sentou-se ao lado. Tinha crack ali;
também maconha, farinha, até comprimidos caros que
explicariam porque Nora estava tão magra e falida. Era
anfetamina, bolinha, como chamavam no bairro.
— Pode ficar com tudo, se quiser — ela disse. — Não sei
o que um anjo de Deus quer com essas coisas estranhas,
mas é tudo seu.
Lobo estava com o saquinho de pó nas mãos. Estava
hipnotizado, ansioso pela anestesia mágica da cocaína. Do
gelo no cérebro, da língua dormente e da sensação de que
tudo ficaria bem por um tempo.
— Não. Você precisa de um hospital — disse, sem tirar
os olhos do saquinho. Abriu e passou um pouco de pó nas
gengivas, só para ficar ligado.
Então sentiu a cama afundando atrás de si. Era Nora se
abraçando a ele. Ela estava fria, mas não importava, Nora
Lobo era sua mãe e, Jesus Cristo, como ele precisava de um
abraço! Instintivamente foi o que recebeu. Nora o envolveu
e, apesar da repugnância dos seios nus pressionados contra
as costas, Lobo aceitou o abraço. Sentiu o sangue
bombeado para fora do pulso cortado molhando seu
pescoço.
— Nós vamos ficar bem, mãe.
— Claro que sim — Nora disse.
Em seguida riscou o pescoço de Lobo com a mesma
lâmina (que encontrou no estojinho Woodstock) que usara
nos pulsos. Lobo não soube o que aconteceu até tentar
engolir. Então percebeu que conseguia respirar pela
garganta. Ele empurrou Nora e caminhou de costas,
apertando a própria ferida, até encontrar o guarda-roupa
em um baque. Uma estátua pequena de São Miguel Arcanjo
tombou lá de cima e se espatifou. Lobo não conseguia
respirar, engolir, não conseguia mais dar um passo. Sentia
seu corpo esfriando.
Nora estava de volta às cortinas. O rosto e o busto
cheios de sangue. Ela tapava a boca com as mãos e ria feito
uma garotinha. Estava bem pálida, trêmula, os lábios
arroxeados.
— Você não é um anjo. É um demônio! Anjos não
sangram.
Lobo caiu sobre os tornozelos e desistiu de lutar contra
a morte. Ele podia ser burro, uma besta sem noção, cérebro
de maionese como disseram em um jogo de futebol, mas
até um expoente da imbecilidade feito Lobo reconhecia que
a morte sempre vence. Quando ele tombou, Nora fez o
mesmo.
NADA MAIS COMO ANTES
 
Depois das onze da noite, Zétia estava praticamente
entorpecido com tantas ocorrências. Ele não voltou para
casa, e dois cafés o livraram do álcool que bebera antes.
Dentro de si, uma parte considerável do cérebro repetia
sem parar a história do velho Carlo. Mas como acreditar
naquilo tudo? Maldições, pragas, justiça divina? Um policial
era sumariamente proibido — para seu próprio bem — de
acreditar nisso. Difícil? Claro. Proibido? Óbvio. Mas o
impossível, essa palavra maldita que não devia existir em
um dicionário humano, ainda não estava dentro do coração
de Zétia.
O rádio bipou pouco depois de Zétia passar pela igreja.
As luzes apagadas tiraram um pouco de sua esperança em
falar com o Padre. Estevão era antigo na cidade, bom em
guardar segredos como todo padre é, mas com o incentivo
correto — a uma cidade perdendo o juízo era uma ótima
dica — ele abriria o bico sobre a história de Carlo Euripes.
Só faltava encontrá-lo...
— Na escuta.
Um monte de estática fez com que o delegado afastasse
rapidamente o aparelho do ouvido direito.
— Na escuta, repita, por favor.
— É o Anderson, Zétia. Onde você está?
— Estava pensando em dar uma passada no Bueiro.
— Não faça isso, delegado. Aquele buraco está fora de
controle. Meteram fogo no posto do José Xerxes e colocaram
barricadas nos acessos, o lugar virou zona de guerra.
— Mais um motivo, Anderson.
— Não, chefe. Ouça o que eu digo: se entrar lá vai
acabar morto.
— Para onde então? Por que me chamou no rádio?
— Alguma agitação na casa dos Minotto. Um vizinho
telefonou para a delegacia e disse que viu dois homens
estranhos saltando de um carro, estavam armados.
— Um Santana?
— Isso aí. Parece que Sultão está procurando confusão.
— Estou a caminho. Você está na delegacia?
— Negativo. Fomos atacados e com a graça de Deus
ninguém se machucou. A bandidagem sonha com uma noite
infernal dessas, acho melhor nem passarmos perto da
delegacia.
— As armas?
Mais daquele chiado estático alto demais.
— Anderson? E quanto às armas?
— Levaram tudo, chefe. Levaram até as algemas.
— Merda — disse Zétia e acelerou a viatura.
Perto da única locadora viva na cidade, a Star-Vídeo, ele
puxou o freio de mão e girou o carro para o sentido oposto.
Quando a viatura parou, Zétia riscou os olhos em um cartaz
exibido. Entre os Leões. Ele já tinha visto o filme, sentiu
raiva do produtor, do escritor e de toda equipe que se
envolveu naquilo. Não era de todo ruim, mas que merda,
pessoas vão ao cinema para entretenimento e não para
serem torturadas. Balançou a cabeça de um lado para o
outro e enfiou o pé no acelerador tatuando o chão calmo do
centro com borracha quente.
— Que droga, Galileu! — Socou o volante. — Não dava
para esperar a justiça resolver isso?
Zétia gostava do homem, como todo mundo na cidade.
Galileu era o tipo caladão que quando abria a boca fazia os
mais despreparados chorarem de rir. Também era o tipo de
homem que perde a linha uma única vez na vida. E como
culpá-lo? Depois de ter a filha rasgada ao meio como uma
porca, depois de ver o criminoso escapando impune com o
safado do Ricardo Minotto?
A cidade estava sendo pilhada como Zétia já sabia. A
loja de Cd’s de Gusmão e Cléssia Audrish, a Sorveteria
Bandeirantes de Amanda Parentes, a loja de sapatos Sorião
que tinha sido inaugurada há uma semana. André Sorião
estava chorando sentado à porta, assistindo sua loja ser
pilhada. Segurava uma garrafa de bebida na mão, já pela
metade. Zétia teve o impulso de parar e ajudá-lo, mas
levaria um tiro. Pelo menos dez vagabundos faziam o
serviço dentro da loja, colocando tudo em uma Saveiro
vagabunda. O que eles pretendiam fazer com aquilo quando
toda confusão terminasse? Esconder em casa? Traficar até a
cidade vizinha? Eram uns idiotas, gentinha. Se fossem
mesmo espertos, não estariam roubando um monte de
calçados, estariam roubando a porra do banco. E de onde
saíram tantos vagabundos?
Não são só vagabundos, concluiu quando reconheceu
Pietro Vargas, um dos caras com pai rico na cidade. Ele era
mais esperto e estava pilhando, com outros dois, a Enoque
Magazine — eletrodomésticos e o que havia de mais
tecnológico na cidade. Zétia diminuiu a velocidade quando
passou por eles.
— Vargas? O que está fazendo?
O garoto olhou para a rua, e Zétia não o reconheceu. Ele
tinha frieza no olhar, do tipo: não faz diferença o que
acontecer daqui a meia-hora.
— Não é da sua conta, Delegado. Agora é cada um por
si.
Zétia deixou um riso curto escapar pela boca.
— Vai se lembrar disso quando os bandidos de verdade
encontrarem você e sua ganguesinha de bosta?
Vargas subiu a camisa e mostrou uma arma presa à
cintura.
— Eles vão atirar em você com sua própria arma,
garoto. Se tiver algum juízo, chame o resto dos retardados e
me siga. Posso esquecer, se isso parar por aqui.
Foi a vez de Vargas rir. Outros dois vagabundos com
estampas de grife nas camisetas (um deles, outro
conhecido, trabalhava na agência do Banco do Brasil,
gerente de contas; o segundo Zétia não reconheceu)
chegaram e apontaram para o carro da polícia. Zétia sacou
sua doze e colocou sobre o vidro entreaberto. Um dos
garotos baixou a arma. Voltou a erguê-la em seguida, sob o
olhar rasteiro de Vargas.
— Eu sei atirar, molecada. Mas se querem mesmo foder
com suas vidas, vão em frente. Preciso ajudar as pessoas
decentes de Nova Enoque.
Ninguém se moveu por dois, três segundos. Só então
Vargas baixou sua arma e a devolveu à cintura. Zétia saiu
em seguida, decidido a fazer algo melhor do que defender
um bando de punheteiros mimados.
CORAGEM, GAROTO
 
Os cães foram os primeiros a perceber o cheiro da
desgraça, assim que Galileu Sultão e Luciano Juta desceram
do Santana, eles choraram como filhotinhos. Uivos finos,
melancólicos e assustados, que faziam o corpo arrepiar
depressa. Os matadores, vestidos com as armas de Jorge,
ainda esperavam o momento certo de entrar na casa dos
Minotto.
— Quantos homens estão lá dentro? — Luciano
perguntou.
Sultão baforou um cigarro de palha enrolado mais cedo.
— Não importa se acertarmos antes.
Luciano não parecia tão seguro. Estava tremendo e
segurando a urina para não sujar a cueca. Céus, eles
estavam mesmo prestes a matar alguém? A vida muda
como o curso de um rio, e do passado calmo de semanas
atrás — semanas onde os dias eram acelerados para
encontrar soturnamente Milena — só restavam gotas. A
verdade é que Luciano nunca fora considerado mais
perigoso que uma samambaia, nem por ele mesmo. Agora,
com uma arma na mão e a impossibilidade de recuo
(porque ele sabia, oh como ele sabia, que se desse para trás
seria alvejado pelas costas) esperava ser diferente.
— Seu Galileu, sabe o quanto eu amava sua filha, mas
isso que estamos fazendo não vai trazê-la de volta.
Sultão o encarou bem sério, seus olhos mortificados
pela dor poderiam ter dito o resto, mas ele insistiu em falar:
— Não quero trazê-la de volta, isso seria doentio.
Soou como um alívio ouvir aquilo, porém Sultão não
havia terminado.
— Quero o sangue deles para mim. Para honrar a
memória da minha filhinha.
Parou de falar e olhou para frente, percebendo o
movimento vultuoso de alguém pelas grades vazadas do
portão de ferro fundido.
Ele e Luciano estavam bem em frente da casa.
Protegidos pela escuridão de algum vagabundo que
resolveu aproveitar a tempestade de dor da cidade para
acertar as contas com a riqueza. Das câmeras ainda ativas,
Sultão mesmo se encarregou, desviando a ocular com um
galho que apanhou trezentos passos atrás, da árvore que
fazia uma sombra desnecessária sobre o Santana.
— É ele? — Luciano quis saber.
— Não. É só um macaco armado.
— Consegue enxergar daqui?
Nesse ponto Sultão riu com um desprezo nato.
— Não acabei com meus olhos vendo tevê, filho. Tenho
uns problemas da idade, mas ainda enxergo bem. Meus
olhos sempre foram bons com a terra, e ela com eles.
Assistindo a cara de bobo de seu candidato a genro
bastardo, explicou:
— A terra é como uma garota nova. Gosta de ser
admirada e acariciada. Não como os homens da cidade
fazem com suas mulheres, mas um homem do campo, um
matuto como eu, nós sabemos o jeito certo. A terra não é
ingrata como a maioria das mulheres. — Se perdeu um
pouco.
Luciano respeitou o silêncio e quando a expressão dura
do velho se dissipou, perguntou como entrariam na casa.
— Eu cuidei disso.
Nas mãos de Sultão, um controle remoto.
— De onde isso veio?
— Tenho amigos de verdade nessa cidade. Gente que
me deve. Uns meses atrás, a mulher do Roque, o chaveiro,
precisou de uma carona até o médico. O Roque estava de
serviço, então ela ligou para nossa casa. Sabrina é muito
amiga da minha mulher, fizeram um curso de artesanato
juntas e outras coisas que mulheres fazem quando ficam
muito tempo sem seus maridos. Fomos nós que a levamos
ao médico. Apendicite. O doutor disse depois que se
tivéssemos esperado até o dia seguinte ela podia ter
morrido.
— E então ele te ajudou?
— Não. Ele me ajudou porque também detesta os
Minotto.
A varanda estava vazia de novo. Ficava a uns vinte
metros do portão, depois de um gramado mais bem cuidado
que os cabelos do dono da casa. O desgraçado do Minotto
tinha bom gosto. Carros caros; um Land Rover e uma
Mercedes branca, tinindo de tão polidos e novos. Também
estátuas que imitavam alguma porcaria grega. Devia ser
bom ser rico, uma pena que para chegar lá fosse preciso
vender a alma.
— Tá pronto, filho?
— Não vai desistir, né?
A resposta foi o clique no controle remoto. O portão
abriu o suficiente para a passagem de uma pessoa gorda.
Antes de entrar, os dois esperaram que alguém viesse até
portão — parecia impossível que a abertura do portão não
disparasse algum sinal dentro de uma casa tão vigiada. Mas
quem disse que todo rico é esperto? Na verdade, a maioria
deles não é; seu sucesso e a grana que vaza do colchão
vem da safadeza, não da inteligência.
— Vem garoto, preciso que honre suas bolas agora.
Sultão atravessou e se refugiou atrás de uma topiaria.
Não era grande coisa, era um pinheiro rigidamente cortado
em forma de gota. Luciano entrou logo depois, deu com a
canela na parte de baixo do portão e fez o aço tilintar.
— Ei! Quieto aí! — sussurrou Sultão, enquanto meneava
a cabeça. Devia ter vindo sozinho. Um moleque cagão
daqueles podia pôr tudo a perder antes mesmo de começar.
Pensou melhor em seguida. Luciano estava metido,
literalmente metido, naquele novelo de lã. Foi ele quem se
emporcalhou com Milena e acendeu o pavio da dinamite.
Sultão ferveu raiva pelos poros. Imaginar aquele safado em
cima de sua garotinha, fazendo coisas sujas com ela,
lambendo seus ouvidos como uma hiena no cio. Talvez
devesse começar por ele. Encher aquele saco covarde com
chumbo quente.
— Que foi? — Luciano perguntou, alvejado pelo olhar
impiedoso do velho.
— Vê se toma cuidado.
Eu ainda preciso de você, seu bostinha. Nem que seja
pra servir de escudo.
— Tá vendo aquela luz nos fundos? — perguntou Galileu.
Luciano se esgueirou por trás da árvore, tomando
cuidado para que seu corpo continuasse oculto pelas
sombras. Galileu continuou:
— Tem uma porta lá atrás, também tem um cachorro.
— Droga, seu Galileu. Odeio cachorros.
— Isso aqui vai cuidar dele — disse o velho, erguendo
um saquinho de supermercado cheio com alguma coisa
pastosa. No escuro não dava para ver o que era, mas
Luciano tinha um palpite.
— Vai envenenar um cachorro?
— Não. Eu não mataria uma criatura inocente de Deus.
Isso aqui só vai fazer ele dormir. É Rivortril — falou como
entendia. — Minha mulher anda tomando esse lixo que
deixa ela parecendo um peru bêbado. Ele vai dormir rápido.
“Eu não mataria uma criatura inocente de Deus.”
Ouvir isso deu alguma esperança a Luciano. O velho
Sultão, enfim, não era um maluco com uma arma na mão.
Se ele estava disposto a poupar a vida de um cão, talvez
fizesse o mesmo com ele. Luciano não era burro, passou no
vestibular e começaria a faculdade em seis meses,
faculdade federal. Isso, em Nova Enoque, era o equivalente
a Harvard. Claro que Sultão tinha planos para ele...
— Fica de olho, se alguém aparecer na varanda, acerta o
desgraçado.
— Acertar? Pelo amor de Deus, seu Galileu, eu nunca
atirei em uma galinha na vida.
— Então é melhor chegar bem perto — disse Sultão e
correu até o outro lado, de onde podia tomar o corredor que
dava acesso aos fundos da casa.
— Merda! Que merda! — resmungou Luciano ao vê-lo
mesclado com a escuridão. Sultão talvez não soubesse
manejar bem uma arma (e Luciano esperava estar errado
quanto a isso), mas sabia usar a natureza. Ele se deslocava
com suavidade, os pés rápidos tocando mansamente o
chão. Logo não via mais que uma silhueta. O coração de
Luciano estava na boca.
A JUSTIÇA HUMANA ECOA NOS CÉUS
 
O cão não estava dormindo, é claro.
Sultão estava frio, determinado, exaurido de medo ou
coragem. Seu único mandamento era o que transforma
homens em assassinos naturais. À sua frente, com um
rosnado firme de quem não precisa latir para espantar a
presa, Rockfeller, o cão dos Minotto. Sultão o olhou nos
olhos, dizendo que não teria medo de uma luta até a morte.
Com isso o pastor belga de quase cinquenta quilos atrasou
o salto. Deve ter pensado que se um homem, um macaco
sem muitos pelos, era capaz de demonstrar tamanho
controle, devia ser perigoso.
Sem movimentos bruscos, Galileu tirou a carne
ensopada de sangue do saquinho e partiu um pedaço com
as próprias mãos. Cheirou quase tocando o próprio nariz e
atirou ao cão. Rockfeller continuou rosnando, a saliva
quente vertendo pelos lábios finos e escurecidos. A carne
acertou seu peito, e ele continuou como estava.
— Come isso, au-au. Come ou vamos ter uma conversa
bem ruim — sussurrou Galileu.
Rockfeller deu um pequeno passo à frente. Sultão
devolveu a arma à mão direita, bem devagar, sentindo o
suor frio crescer entre os dedos. Preferia estar cara a cara
com qualquer um dos Minotto àquele cão enorme. Cães são
fiéis, tão fiéis que chegam a ser burros. O rosnado
aumentou um pouco, a traseira se abaixou do dorso na
nítida expressão de caça. E quando Galileu decidiu que de
forma alguma atiraria no cão, Rockfeller recuou e
abocanhou seu jantar.
— Isso, come tudo. Come essa gororoba e vamos ficar
bem. Eu e você.
O som pastoso da carne trouxe pensamentos ruins a
Sultão. Sobre o que fizeram com sua filha, sobre o som de
seus vinte e dois gramas de alma deixando o corpo. Era isso
o que diziam, não era? Que vinte e dois gramas é a prova
cabal de que existe um espírito dentro de cada humano que
andou sobre a terra. Bem, foi isso o que um documentário
disse anos atrás, quando ele achava que os homens eram
bons por essência.
— Quer mais? — perguntou.
Parecia que sim. A saliva nodosa de ódio agora estava
fluida de apetite. Sultão atirou o pedaço restante e teve
confiança bastante para se agachar como um sertanejo.
Esperou até que Rockfeller terminasse sua refeição.
GRUUUAAÃÃÃ.
— Calma, rapaz. Nós dois estamos cheios disso.
Estamos por conta com homens com dinheiro no banco
dando suas sobras para gente comer. Quanto tempo fazia
que você não comia um bom bife?
Uma piscada dura, mas longe de derrubar Rockfeller,
veio em seguida. Ele lambeu o que sobrou de sangue no
chão. Sangue e medicação controlada suficiente para
derrubar um homem adulto. Exato, um homem adulto,
pensou Sultão. Mas o que faria com um cachorro? Quem
sabe nem fosse suficiente para fazê-lo dormir. E se fosse
esse o caso, tudo bem. O monstro negro estava entorpecido
o suficiente para perder uma briga. Ele deu outro passo à
frente, curto e seguro.
— Não teime, rapaz. Você não pode com essa porcaria
de Risvotrí — errou de novo, ele nunca acertava o nome
daquela porcaria de remédio.
Outro passo e outra daquelas piscadas pesadas, essa
um pouco mais lenta que as anteriores. A saliva em sua
boca já pendia diferente, como o cuspe de um doente
mental cheio de Valium. Os passos continuaram, estava a
um metro de distância de Galileu.
Um bocejo decretou o fim da luta de Rockfeller antes da
mordida que pretendia dispensar àquele velho maluco que
cheirava ração de galinha e diesel. Rockfeller já tinha
sentido antes, na jovem humana que se engraçava com o
jovem humano dono daquela casa. O jovem humano não
era ruim, mas ele estava diferente desde que voltou para
casa. Tinha cheiro de quem não toma banho, cheiro de
gente ruim.
Os olhos de Rockfeller pesaram pela última vez, e ele
tombou como um cavalo abatido. A língua para direita, os
olhos entreabertos e revirados. Sultão, em um ato suicida
de dignidade, colocou seu relógio Orient (velho, riscado,
mas ainda funcionando, exatamente como seu dono) perto
do focinho do animal e conferiu o vidro nublado. Ótimo, sem
vítimas inocentes podia seguir com seus planos.
Apanhou as patas traseiras pensando em arrastar
Rockfeller para perto de sua casinha. Iria prendê-lo na
coleira que havia ali — era impossível saber a duração
daquele remédio de doidos. Tomara que ele ficasse tão
dopado quanto sua esposa que não diferenciava chocolate
de bosta depois das nove da noite.
Arrastou o animal com algum sacrifício, prendeu-o a
coleira e voltou para convocar Luciano. Desceu a mão
armada e o chamou com o dedo indicador na boca, pedindo
que não fizesse nenhuma idiotice. O xexelento demorou um
pouco, devia estar se borrando. Luciano ainda não tinha
passado pela mesma mágica que Sultão. Ele não tinha
perdido um filho e metade de seu coração. O rapaz
apareceu uns cinco segundos depois e atravessou a
escuridão do jardim como um babaca que pensa que
abaixar a cabeça forma algum tipo de escudo em uma
guerra. Guerra... O mais perto que Luciano Juta e sua família
chegaram de uma guerra foi a disputa pelo último pedaço
da sobremesa na ceia de natal da APAE.
— E o cachorro?
— Tá dormindo. Agora escuta, filho — disse bem
baixinho. Chegou mais perto e o intimidou contra a parede
do lado de fora da porta da cozinha. — Eu não gosto de
você nem um pouco, mas acho que você entende o que
deve para minha filha.
— Eu não...
— Você nada — disse com raiva. — Você escuta!
Luciano concordou, tremendo o queixo contrariado.
— Vamos nisso até o fim, e eu juro por Deus que se me
deixar na mão ou ajudar os sacanas lá dentro, atiro em você
primeiro.
— Eu gostava da Milena, seu Sultão.
— Vai ter chance de provar isso lá dentro. Aqui fora você
é o cara que espetou sua imundice nela; tão sujo quando o
dono dessa casa. Agora vamos. — Deu algum espaço a ele e
confirmou que a porta estava aberta (ninguém com um
cachorro como Rockfeller se lembra de passar a chave,
torna-se desnecessário). — E não esquece essa nossa
conversa.
Sultão abriu a porta e a segurou para que Luciano
atravessasse. Depois tomou a frente, dividindo olhares
entre o que os esperava e o covarde metido a Don Juan
atrás dele. Moleques cagões como Luciano Juta tinham um
cérebro perigoso, cérebro de jacaré. Eles não se
importavam com honra, justiça ou todas as palavras bonitas
da Bíblia, eles só queriam sobreviver. Ouviram alguma
conversa no andar de cima quando estavam no meio da
cozinha. Um lugar esnobe, cheio de armários, inox e
aparelhos inúteis para quem nunca fez um arroz sozinho.
 
ENQUANTO A CASA ERA INVADIDA, Ricardo Minotto tinha
seus próprios problemas para resolver. Roger estava à sua
frente, em seu quarto. Continuava falando pouco, dormindo
menos ainda, e seu cheiro, apesar dos banhos que tomou,
continuava sendo o da cadeia. Sua culpa era a dona
daquele odor. Roger podia não lembrar perfeitamente, mas
quando fechava os olhos, tudo o que via era Milena
sangrando e implorando por sua vida.
— Você precisa seguir em frente, Roger. Nada que fizer
irá trazê-la de volta.
— Não está certo, pai. Não importa morar dentro ou fora
da cadeia. Não vou viver em paz enquanto não souber o
que fizeram com ela.
— Milena não merece o que está passando.
Roger ergueu os olhos. Do que o velho estava falando?
— Ela não era nenhuma santa.
— Chega, pai. Não quero continuar essa conversa.
Roger arriscou levantar. Antes disso, Ricardo estava ao
seu lado, soltando um longo suspiro.
— Jurei para mim mesmo que nunca contaria. — Tirou
um envelope da parte de trás da calça. O manteve nas
mãos, passando os dedos sobre o papel pardo como quem
acaricia uma navalha.
— O que é isso?
— Isso é Milena Sultão, a mulher que você chama de
inocente.
Com a vontade de quem se agarra a um fio de vida,
Roger tomou o envelope para si. Ricardo foi até a janela e
acendeu um cigarro, ficou olhando para fora, esperando a
tempestade cair do lado de dentro.
Ouviu os papéis passando pelos dedos ávidos do filho.
Ricardo tinha visto aquelas fotos dezenas de vezes. Em
cada uma delas sentiu-se tão idiota quanto o filho. Roger,
entretanto, ele não era assim. Era bobo e inocente, idiota o
bastante para acreditar em uma caipira.
— O que significa isso? De quando são essas fotos?
— Dois dias antes do que aconteceu. Eu estudava um
meio de contar tudo a você — respondeu ainda de costas.
Depois virou o corpo em direção a Roger. — Esse aí com as
mãos nas tetas dela é Luciano Juta. Sua namoradinha
estava saindo com ele.
Roger uniu as mãos e sentiu toda raiva do mundo.
Parecia a primeira vez que ouvia sobre isso. Como ela foi
capaz? Tudo o que dizia, todos os planos, merda, ela dizia
que o amava!
— Mandou forjar isso — disse a Ricardo.
— Sua namorada era uma vagabunda, Roger. Milena
Sultão estava atrás do seu dinheiro, do nosso.
— Não! — gritou. Os olhos estavam injetados e úmidos.
O som da voz, fraquejando apesar da raiva. Beijos, carinhos,
sexo, chupadas e mais chupadas. Porra! Ela fazia a mesma
coisa com o babaca do Luciano. E o que ela viu nele? Onde
ele era melhor? Luciano Juta era um verme de camisa
flanelada, isso é o que ele era. Um bostinha que perde
metade do tempo tentando reviver os anos noventa.
— Aceite, Roger. Vai ficar mais fácil. Independentemente
do que tenha acontecido naquela noite do diabo, você teve
suas razões.
Roger amassou o envelope contra o peito e ruboresceu.
Seus cabelos ficaram eriçados, seus lábios perderam a cor.
Ricardo fez o oposto e se tranquilizou. Por maior que fosse a
dor de ser traído, de levar um chifre, pesava bem menos
que o remorso.
Então um disparo no térreo da casa. Estilhaços de vidro
e um grito abafado.
— O que foi isso? — perguntou Roger, se esquecendo de
ter pena de si mesmo.
— Merda! Alguém invadiu nossa casa!
— Quem?!
— Foda-se quem! Essa cidade perdeu o juízo. Vamos pro
meu quarto, precisamos das armas.
Não houve discussão, e Roger, a exemplo do pai, não
tentou espionar pela escada e descobrir quem estava
atirando lá embaixo. Os disparos eram suficientes para se
armarem.
Roger ficou parado à porta enquanto Ricardo apanhou
duas armas na última gaveta do closet. Uma prateada que
ficou com ele, e uma automática que entregou ao filho.
— Cuidado. Tá destravada.
— Pai, isso é loucura!
— É sim. Mas não pretendo morrer hoje. Fica atrás de
mim — disse, e voltou para o corredor. Depois sussurrou
asperamente:
— Vai me ajudar ou não?
Sem tempo de pensar direito, Roger saiu do quarto. A
arma estava em suas mãos, meio bamba, parada ao lado da
coxa. Ricardo estava perto do corrimão vazado de madeira.
Olhou para o filho e precisou dar um jeito naquela postura
de uma vez por todas. Saiu de onde estava e foi para perto
da porta que Roger tinha acabado de atravessar. Colocou a
arma na parte de trás da calça e apanhou as mãos do filho
com força. Fez com que empunhasse a arma.
— Isso aqui é sério, Roger. Se eles mataram o Saulo lá
embaixo, vão fazer o mesmo com a gente.
Sacudiu as mãos de Roger com força.
— Olha para mim, rapaz. Não importa o que aconteceu
antes. Você não foi o único a ter perdido a razão. Talvez
tenha sido o primeiro nessa cidade de merda, mas a
pergunta é: vai mesmo morrer por causa de uma garota
imprestável?
O rosto abatido de Roger se contraiu como uma cólica.
Nos olhos, tudo o que ele não dizia: raiva, decepção,
vontade. E libertação. Memórias. Ricardo estava certo,
Milena estava onde merecia. E finalmente as lembranças de
Roger estavam claras como um dia de sol, o que aconteceu
dentro de seu Opala; e nenhum traço de arrependimento. O
primeiro golpe, o corpo sangrando um fio de vida enquanto
ele se fartava dos restos. O estranho daquela noite terrível
estava certo: nada de remorso.
— Tudo bem. Vamos sair dessa — disse a Ricardo.
Antes que saíssem de onde estavam, uma bala destruiu
o batente da porta. Os dois Minottos se abaixaram, Roger se
atrapalhou com a arma e por pouco não a derrubou no
chão. Ricardo estava de pé outra vez, com a mão na orelha
esquerda. Algo quente e viscoso pingou em cima da cabeça
de Roger, ele passou a mão esquerda livre sobre a ferida e
tremeu.
— Puta merda! Atiraram na minha orelha! — gritou
Ricardo. Lá embaixo alguém gritou:
— Era pra ser na sua cara, filho da puta!
Roger se revirou e ficou de pé outra vez.
— Tudo bem, pai?
— Não, porra! Claro que não, olha essa boceta na minha
orelha!
— É o velho. O pai da Milena.
Incrível como a raiva consegue fortalecer alguém, e foi
isso que ela fez com Ricardo. Naquele ponto, a orelha
estava praticamente anestesiada, o sangue que jorrava
esquentava o pescoço, a cabeça zunindo evocava reações
de luta. Ele livraria sua casa daquele roceiro estúpido e
cuspiria em seu cadáver!
— Sultão, seu capial de merda! O que pensa que está
fazendo?
— Livrando a terra de dois animais, Minotto. Mas se
deixar seu filho descer aqui e resolver feito homem, eu
poupo sua vida.
Antes que Roger percebesse, Ricardo estava de novo
perto do parapeito. E dessa vez atirando.
— Filho da puta! — gritou quando viu a cabeça branca
de Galileu. Refez a mira com o olho esquerdo e disparou.
Mas alguém intercedeu, desviando a bala do crânio.
Luciano se jogou sobre o velho e, no momento exato, o
tirou do caminho. Os dois caíram sobre uma mesinha com
tampo de vidro no centro da sala. Mergulharam nos cacos, e
Luciano ganhou um corte fundo no ombro direito. Sultão,
embaixo dele, se esperneava como uma barata sob a sola.
— Sai de cima de mim! — disse, em vez de agradecer.
Empurrou Luciano para um canto da sala e mirou na direção
daquele riquinho de bosta ainda escondido no andar
superior.
O som explosivo encheu de novo o hall e Roger fez um
movimento mínimo com a cabeça, tentando evitar a bala
resvalada. Deu certo. O projétil arrebentou o corrimão e fez
descer uma chuva de lascas de madeira.
— Não precisa ser assim, Sultão! Não seja estúpido!
— Ele não vai ouvir, pai. Precisamos deitar o búfalo —
disse Roger. Ricardo olhou para trás e encontrou o filho
estranhamente calmo. A arma estava firme em suas mãos
e, pela primeira vez na vida, ele se orgulhou da semente
covarde que botou na terra. Roger era um Minotto, enfim.
Roger caminhou até o primeiro degrau da escada, de peito
aberto, e abriu fogo.
— Cuidado aí, garoto! — disse Sultão a Luciano.
Procurou um lugar para se esconder enquanto balas
destruíam o porcelanato caro da sala. Um dos tiros explodiu
a tevê e outro acertou um quadro de família, direto na testa
da mamãe morta. Luciano, que estava bem perto desse
quadro, se atirou no chão com as mãos na cabeça. Na
opinião de Sultão teria sido bem mais útil se ele fizesse o
mesmo que o filho da mãe lá em cima, Roger Sultão.
Comparado a Luciano, ele era um huno, e isso deixou
Galileu em dúvida sobre quem tinha culpa do que naquela
salada de desgraças. Porque se Luciano não tivesse
seduzido sua filha (e claro que foi sedução, sua princesinha
jamais se comportaria como uma puta de rodoviária
voluntariamente), que motivos Roger teria para matá-la?
Galileu conhecia o suficiente do ciúme para reconhecer
como era corrosivo. E que fosse culpa do ciúme... Um crime
passional era preferível à maldade pura.
Luciano conseguiu sair do chão e limpou os estilhaços
da moldura que caíram sobre ele. Cortou a mão em um
deles e a nitidez do sangue enjoou seu estômago. Iria
morrer, mas se era isso mesmo que Deus queria para ele,
morreria com dignidade. Ele apontou a arma para Roger,
para aquele infeliz que nunca mereceu Milena.
— Toma! — gritou e crivou de balas os degraus
inferiores.
Nenhum tiro acertou Roger.
Frio, Roger Minotto apontou para aquele desgraçado que
encheu sua vida de vergonha. Seu próprio pai havia visto as
fotos, testemunha ocular de sua incapacidade de reter uma
mulher na cama.
Disparou.
A bala acertou o ombro esquerdo de Luciano, ele
absorveu o impacto, recuou e foi em frente sem cair.
Restavam duas balas em seu tambor, e uma vontade
incrível de acabar com Roger. Mas antes disso, duas balas
de Roger atingiram sua barriga.
— Não é assim, moleque! Desse jeito, vai morrer junto!
— gritou Sultão. Luciano ficou onde estava.
Roger disparou mais vezes. Pela contagem de Sultão,
restava apenas uma bala antes que fosse obrigado a
recarregar. Poderia ter ajudado Luciano, óbvio, mas preferiu
deixar que os dois se aniquilassem.
No terceiro degrau da descida, Roger continuava
encarando Luciano sangrar, o safado que esteve com sua
Milena antes de tudo acontecer. Ele deve ter visto seus pés
remexerem, e ela se arrepiando toda na hora do orgasmo,
deve ter sentido sua umidade exagerada. Os dois devem ter
rido dele, feito piadas, quase certo que enquanto trepavam
diziam palavrões que ele nunca teve coragem de usar. E
Luciano continuava de pé, um merdinha com uma arma na
mão. Uma arma perfeitamente alinhada com o espaço entre
os olhos vermelhos de Roger. Luciano respirou fundo e
empurrou o gatilho, sabendo que não poderia errar.
Antes que a pólvora incendiasse, entretanto, o corpo
alto e confiante de Ricardo Minotto emergiu do alto da
escada. Ele atirou antes — contando com anos de aulas de
tiro (privilégio de todo cara com grana) — e não errou.
Luciano enfim tombou, ganhando um novo umbigo. Ficou
em posição fetal, abraçado ao fio de vida que o animava.
— Acaba com esse bosta — disse Ricardo, oferecendo
outro pente carregado a Roger. Ele o apanhou e espetou na
arma, desceu mais dois degraus.
— Essa noite você dorme no inferno — sussurrou Sultão,
satisfeito por terem-no esquecido. Enfim, aquele pamonha
do Luciano Juta fez algo de alguma valia.
Galileu saiu de trás do sofá e disparou. Ricardo
arregalou os olhos e assistiu o projetil abrindo caminho pelo
crânio do filho. A parte de trás da cabeça soltou um tampo
cabeludo e, logo depois, sangue quente começou a sair.
Sangue e algo viscoso que parecia cuspe.
— Não! Não o meu filho! — gritou Ricardo. Roger não
estava mais vivo, estava de joelhos esperando seu corpo
tombar. Ricardo o amparou nos braços antes disso. Beijou
sua face pálida e pediu perdão por não ter sido pai o
suficiente para mantê-lo em segurança. Rememorou o
primeiro choro, o primeiro passo e a primeira mijada em pé
do filho varão, tudo aquilo que seria passado até o fim dos
seus dias.
— Isso acaba aqui, Ricardo. Um filho meu, um filho seu
— disse Sultão com a arma em paralelo ao peito, perto do
coração, mostrando respeito.
— Seu doente — disse Ricardo, dispersando os soluços.
Deixou o corpo de Roger amolecer na escada, reergueu-
se e atirou contra Sultão.
Acertou sua perna. O tiro estraçalhou músculos e
tendões, mas não derrubou o homem. Sultão era forte e
atirou de volta, acertou a mão armada de Ricardo. Dois
dedos voaram dela. Ricardo saltou pela escada arriscando
quebrar o pescoço, pedindo para quebrar o pescoço. Sultão
tornou a alvejá-lo quando Ricardo tropeçou em um dos
degraus. Sentindo o sangue engrossar na garganta, Ricardo
se reergueu outra vez e conseguiu apanhar outra arma de
sua cintura. A mão esquerda ainda seria capaz de dar
alguns tiros. Faltavam dois degraus para chegar ao chão.
— Não precisa ser assim! — gritou Sultão. Em seguida
foi ferido, logo no começo da pelve. O sangue jorrou sem
medo, e ele viu a sala valiosa, de gente rica, nublar-se
completamente. Mesmo com toda adrenalina disponível,
sentiu a nuca latejar e o peito falhando em respirar. Ricardo
deve ter acertado alguma veia importante, daquelas que
não aceitam remendos. Antes que desmaiasse, Sultão deu
um último tiro, direto no coração de Ricardo. Ricardo riu e
atirou mais uma vez. Acertou o pescoço do velho, lavando
definitivamente o chão de vermelho. Sultão estava sentado
no chão, assistindo seu oponente morrer. Deitou em seguida
e esperou o mesmo destino. Foi quando o impensado
aconteceu.
Luciano estava vivo. Ele caminhou até o moribundo e
olhou para ele, cheio do orgulho que não tinha direito de
sentir: — Parece que eu escapei, seu Galileu.
— Me... Me ajuda, garoto — suplicou Galileu. Junto com
as palavras, um pouco de sangue em bolhas que
estouravam depressa. Os olhos tinham dificuldade em
manter o foco, a sala estava escura, Luciano era apenas um
borrão ensanguentado.
— Não. Eu vou sair desse inferno. Não mereço morrer.
Sultão tossiu. Movimentou o braço que ainda tinha vida
suficiente para um último tiro e mirou as costas de Luciano.
A pólvora brilhou pela última vez na sala dos Minotto.
Luciano foi ao chão. Imediatamente um monte de urina
molhou suas calças.
Com muito esforço, Sultão repousou a arma no chão e
sorriu.
— Bunda mole — suspirou.
Depois morreu em paz.
A ESPERANÇA TAMBÉM ERRA
 
Patrícia estava exausta. Tinha sangrado um bocado e
precisou rasgar uma parte da camiseta para estancar a
ferida da perna. Seria leviandade dizer que estava pronta
para uma maratona, mas ela tinha esperanças de percorrer
o caminho de volta até a cidade e sobreviver a ele. A porta
de aço ainda estava de pé à sua frente, lembrando-a de que
a qualquer momento poderia abrir e trazer o sequestrador
retardado de volta. Também a preocupava bastante que ele
ainda tentasse alguma coisa mais nojenta que dividir o
oxigênio do calabouço com ela. Ele tinha olhado para seus
seios, tinha encarado suas pernas mais de uma vez. E ele
era homem, como todos os outros, devia pensar que era
uma boa chance de conseguir uma trepada grátis.
Preciso sair daqui, dona porta. Por favor, abra!, pensou
se lançando contra ela de novo.
O braço direito estava dormente e, embora isso
facilitasse cada nova investida, Patrícia temia algum dano
permanente. Ela estava horrível, podia sentir isso. Os
cabelos empapados de suor, o rosto pálido e brilhante,
roupas encardidas e rasgadas. E havia o cheiro. Ela não
conseguiu resistir, e assim que saiu da cadeira, soltou o que
tinha nos intestinos. O cheiro da comida horrível que aquele
animal trouxe ainda perpetuava nas fezes. Patrícia rasgou a
calça jeans transformando-a em uma bermuda estilo
Seattle. Seus pés estavam descalços, aquele burro deve ter
pensado que isso a impediria de fugir dali e andar
quilômetros de estrada. Engano dele, Patrícia andaria sobre
a lava se isso a levasse para casa.
Olhou para porta: — Sua filha da mãe teimosa! —
grunhiu. Socou mais duas vezes sentindo toda raiva e
impotência do mundo. Sentou-se no chão imundo sem dar
importância aos caquinhos de pó e entulhos que
penetravam sua carne nobre.
Começou a chorar nesse ponto. Chorar de soluçar. A
ideia de continuar presa naquele inferno era a opção mais
provável. Se isso acontecesse, poderia apanhar um pedaço
de madeira da cadeira e afiar, transformar em uma arma.
Teria que fazer bem feito, não devia ser muito fácil
atravessar um homem com uma estaca. Calculou a dureza
de músculos e ossos, mesmo com raiva — com muita raiva
mesmo —, ela era bem mais fraca que o desgraçado. E se
houvesse luta, se o elemento surpresa fosse desmascarado?
Ela não teria a menor chance. O bestalhão era forte, além
disso, devia ter cinquenta vezes mais experiência que ela.
Gentinha como ele aprende a brigar cedo, a defender o pão
com unhas e dentes. Ou poderia seduzi-lo. Quem sabe
perder a virgindade com ele, e quando ele estivesse
realmente entregue ao gozo, arrancar seu saco com as
mãos. Oh, porcaria... Quem ela queria enganar? Preferia
morrer do que perder a virgindade com um porco. E havia o
“Se”. Porque talvez ele não voltasse, talvez tivesse sido
baleado pela polícia ou caído de bêbado em alguma
esquina. Pode ter sido atropelado, espancado, ele podia
estar em coma, porra!
— Você precisa cair fora daqui, garota — disse a si
mesma.
A força não estava resolvendo, todas as suas tentativas
de colocar a porta abaixo tinham sido dolorosas e inúteis.
Assim, quando conseguiu conter o choro e a vontade se
entregar a própria má sorte, Patrícia foi olhar mais de perto.
Começou a dar pequenas pancadinhas pela lateral da porta.
O som metálico era meio trincado. Em alguns pontos, o
metal trastejava como se estivesse solto. Mas onde
exatamente?
Em cima estava mais sólido. Devia estar mesmo, porque
ninguém tocava ali. Checou perto da fechadura, bateu de
leve, os nós dos dedos começando a doer. Colou o ouvido à
porta para ouvir melhor. Dessa vez não golpeou, apenas
pressionou.
Shiii.
Um chiado leve e sútil escorregou pelo metal.
Pressionou outra vez. Mais daquele som. Começou a
procurar de onde vinha, sempre pressionando a porta.
Imaginou que fosse das dobradiças, mas se alguma coisa
estivesse podre, depois de tantos golpes, a porta teria
cedido. É, mas não custava nada forçar mais um pouco.
Encheu o peito de ar e gemeu, empurrando o metal.
— Mal-di-ta! — gritou. Colocou tudo de si na palma das
mãos.
PAING!, estalou o metal.
Patrícia se agachou e olhou bem a tempo de ver um
pouco de cimento sujando o chão. Vinha mesmo da
dobradiça. Levantou-se e foi até os estilhaços da cadeira.
Ergueu-a bem alto e jogou contra a porta, com toda
força. Um pedaço grande continuou agregado à forma
original. Outro, bem longo, saiu rodopiando e resvalando no
chão. Ela correu até ele e o levou para a porta.
— Agora eu quero ver! — disse cheia de vontade.
Com aquele pedaço de madeira começou a raspar o
cimento da parede. Não era tão fácil, como todo o resto
daquela situação infernal. Patrícia tinha pressa, sabia das
probabilidades com a sorte que andava tendo. A parede
resistia, mas não muito. Os braços doíam como o diabo, o
suor escorria com a ameaça da desidratação. Era tudo ou
nada.
Depois de dez minutos cavando, conseguiu ver todo o
ferrolho. O filho da mãe que fez aquilo acabou enterrando
uns vinte centímetros de ferro no concreto. Estava comido,
corroído pelo próprio cimento, mas longe de ser estourado.
Patrícia entortou um pouco a porta com os pés e fez uma
espécie de alavanca com a madeira. Os músculos
tremeram, a boca ficou apertada e o abdômen contraiu-se
com o esforço.
— Anda! — gritou. Deu uma folga e repetiu o
movimento. — Vamos, você não pode aguentar para
sempre!
E não aguentou.
Houve um estalo e a madeira partiu de uma vez, um
estilhaço voou para o rosto de Patrícia. Acertou em cheio e
ela sentiu um soco na maçã direita. Gritou e chutou a porta,
dizendo todos os palavrões do catálogo. Só depois, quando
cansou daquela birra merecida, se lembrou de verificar seu
rosto. Passou as mãos, bem de leve, e sentiu a pele úmida.
Deus! O que ela não daria por um espelho, por uma porra
de bacia com água na qual pudesse ver seu reflexo. Tateou
mais fundo e supôs que o rasgo tinha uns cinco, seis
centímetros. Aquilo era terrível. Não bastava estar presa e
lutando pela própria vida... Ainda tinha que ganhar um talho
no meio do rosto. Levantou realmente furiosa e foi para
cima da porta, chutando com os pés nus sem se importar
com uma nova cicatriz onde ninguém notaria.
— Seu monte de merda! Desgraçada! Fedi-daaaaaaa! —
gritou.
Patrícia não percebia, mas enquanto surrava o monte de
ferro velho, o ferrolho desistia da parede. O ódio cego a
incapacitava de perceber boas notícias. Melhor assim,
porque quando caiu de exaustão (depois de tanto estresse
era uma milagre não ter estourado uma veia do cérebro),
notou a porta com uma nova abertura na parte de baixo. O
metal havia se soltado da moldura mais grossa. Só aí ela
arriscou um sorriso.
— Vagabunda.
Saiu do chão e foi verificar mais de perto.
Com alguma habilidade ela seria capaz de empenar a
porta e se arrastar por baixo. Juntou as forças restantes e
cravou os dedos com força no metal afiado da porta. Sentiu
alguns cortes novos que ignorou.
— Força! — gemeu.
O metal era duro como o coração de sua mãe, a
poderosa prefeita Miriam Guerra que na maior parte do
tempo preocupava-se apenas em ser apenas a poderosa
prefeita Miriam Guerra.
Um novo estalo proveu o que faltava, Patrícia se animou
e fez tanta força que seus olhos ficaram vermelhos. O peito
ofegava sem respirar. Ela ia em frente, só pararia morta. Um
novo som estalado, o metal estava se movendo, provando
que a adrenalina e a vontade fazem mais milagres que
Deus. Ainda assim ela pensou nele, no cara de barba
comprida que sabia o que era melhor para todo mundo,
inclusive para ela.
Então a lâmina escapou de seus dedos, Patrícia rolou
para trás e ficou onde estava, sem coragem de olhar para o
resultado de tanto esforço. Chorou mais um pouco,
implorando para acordar daquele pesadelo horrível. Não foi
o que aconteceu. Depois de dois minutos suficientes para
que recuperasse o fôlego, ela estava sentada e olhando
para a porta. Para a abertura que devia ter uns trinta
centímetros e, em relação a um corpo, era apertada como
sua vagina. Sem tempo para pensar — isso mesmo, ela
ainda sentia-se ameaçada pelo cara de meia na cabeça, o
filho da mãe mais burro desse mundo —, saiu do chão e
meteu a cabeça pela abertura.
A sala do outro lado estava vazia, a porta era de
madeira e ela duvidava muito que tivesse tranca. De onde
estava, parecia apenas uma porta encostada. Viu seus tênis
em cima da mesa e sentiu um lampejo de sorte — também
de humanidade, daquele filho da mãe. Pelo menos ele
guardou os tênis em vez de roubá-los e vender por duas
porções de maconha no bairro fedido onde devia morar.
Empurrou mais o corpo à frente e ganhou um corte nos
ombros.
— Ai! Porta maldita!
Suspirou e continuou, se arrastando, esvaziando o ar
dos pulmões. Logo estava livre até os quadris. Queria ter
menos bunda; perderia alguns garotos, perderia um pouco
do amor próprio, mas algo que ela não precisava ali era de
sua maldita bunda. Puxou o jeans para cima antes de
continuar, deixou o tecido contra a lâmina para proteger a
pele. Ainda parecia fino. Arrancou a camiseta e a colocou
entre o short e a lâmina, ficou só com o sutiã. Pelos menos
seus peitos estavam inteiros (e eles eram pequenos, graças
a Deus, se ela tivesse peitos como Cristina Petra — a
menina da sala apelidada de Combustão — morreria
entalada).
— Lá vamos nós — disse.
Arrastou-se para fora do inferno sabendo de todos os
novos cortes que receberia se os tecidos não resistissem. E
isso nunca aconteceu. Priscila se livrou da próxima porta —
e Deus deve ter tirado um tempinho para se lembrar dela, a
porta estava apenas recostada —, apanhou a camiseta,
calçou os tênis e respirou fundo quando avistou a estrada
de chão que levava até a cidade.
Correu até ela, um pouco cambaleante, mas cheia de
uma nova energia. O vento soprava fresco sobre seu corpo,
ouvia os sons da noite, exuberantes de tanta vida. Foi só
quando chegou efetivamente à estrada que ela pensou em
outro detalhe.
— Onde eu estou?
Ficou parada, de pé, olhando para os dois lados da
estrada de chão. Estava em terreno baixo e não conseguia
ver as luzes da cidade, também nenhuma casa por perto. O
safado do sequestrador provava outra vez que não era tão
burro assim. Pensar nele trouxe algo novo para sua cabeça:
ele podia não estar sozinho. Que se dane, pensou. Vou para
esquerda.
Deu um passo desencorajado e parou antes de repetir o
movimento. Ela ouviu alguém dizer:
— Eu não faria isso, moça.
Patrícia girou sobre os calcanhares e sentiu falta dos
pedaços de madeira que deixou para trás. O que faltava
acontecer? Ser violentada? Não, não mesmo! Se o farrapo
de homem à frente quisesse alguma coisa, faria com um
cadáver.
— Eu tenho Aids! — ela gritou.
— Ei, ei, ei. Podemos falar disso depois, coração. Nesse
momento você precisa de ajuda. Estou certo?
— Quem é você?
— Alguém que pode ajudar.
Olhou bem para ele. Aquele verme não conseguiria
ajudar a si mesmo. Fedia tanto que o seu cheiro logo
empestou o nariz fino de Patrícia. Era um mendigo, um
andarilho sem rumo.
— Pra que lado fica a cidade?
Ele riu. Mostrou seus dentes podres sob a luz do luar
que conseguia vencer as nuvens aqui e ali. O céu soltou um
rugido. Chuva? Em Nova Enoque?
— Não vai encontrar a porca da sua mãe na cidade,
mocinha. Ela está do outro lado, Dona Miriam está tendo
uma reunião desagradável. — Passou as mãos pelas barbas
encardidas e castanhas. — Mas se der um pouco de prazer a
um velho vagabundo, posso te arranjar comida. Você me
entendeu, coração, eu como você, e você come da minha
comida.
— Não chega perto de mim! — disse, cobrindo
instintivamente os seios. Vestia a camiseta que sobrou do
apetite da porta, mas os rasgos mostravam um bom pedaço
do seu sutiã preto.
— Então corre, coração! Melhor correr para mamãe
antes que você se foda!
O andarilho deu um passo em direção a ela e abriu os
braços, sua jaqueta velha, cor de terra, farfalhou. Patrícia
ganhou dois metros de distância e passou diante dos olhos
famintos do homem. Ele agarrou a própria virilha e sorveu o
ar com vulgaridade. Meteu a língua para fora e a moveu
como uma serpente. Seus olhos ficaram vermelhos, olhos
de lebre. Patrícia não ficou parada para ver mais nada.
Tomou a esquerda que estava livre, não arriscaria passar
perto dele outra vez, nem para chegar à cidade. Patrícia só
parou de correr quando seus pulmões estafaram. Então
pensou em Miriam e no que disse o vagabundo.
TERCEIRA PARTE
 
 
CARNE QUEIMADA
 
 
 
 
“É esse o mundo que dizem ter sido criado por um
Deus? Não, deve ter sido criado por
um demônio!”
— Arthur Schopenhauer
O CHEIRO DO SANGUE
 
As ruas estavam lotadas. De dor, falta de esperança e
malucos. Zétia fez o que pôde para chegar à casa dos
Minotto antes que o pior acontecesse, mas é como dizem:
Deus tem seus planos e o diabo tem os dele.
Desceu da viatura com a arma em punho e ignorou os
gritos vindos do quarteirão anterior. O portão estava
fechado, Zétia tentou o interfone. O som chato e eletrônico
bipou até cansar, sem que ninguém atendesse. Zétia não
desprezou o carro de Sultão estacionado três quarteirões
antes da casa e, em vez de forçar o portão, disparou sobre o
motor. Seus tiros não trouxeram ninguém à porta.
Moradores ou vizinhos. Todo enoqueano decente estava
com medo, resolvendo seus próprios assuntos. Os mais
sacanas estavam fazendo o mesmo, porém piorando tudo.
Era o cheiro, o cheiro do sangue infestava cada milímetro na
cidade.
Puxou o portão com força e checou se sua outra arma,
que ficava no coldre torácico, estava carregada. Uma vez
sua faxineira, Shirley, disse que não se lava paredes, que é
preciso pintá-las. Zétia agora entendia o motivo. Nada
apagaria a agonia da cidade, mas se os maus e loucos
estavam sujando as paredes, caberia a ele uniformizar a cor
vermelha.
Entrou e ouviu o rufo do cachorro dos Minotto. Zétia
conhecia Rockfeller desde filhotinho, ajudou a adestrá-lo.
Sentiu uma pontada no peito imaginando que ele pudesse
ser mais uma vítima da loucura da cidade. Esgueirou-se
pelo muro e viu a silhueta de um cão deitado. Foi até ele.
— Ei, garoto — disse, e tateou sua pele em busca de
ferimentos. Rockfeller rosnou em um primeiro momento,
mas foi só até reconhecê-lo. Em seguida lambeu sua mão.
— Tá tudo bem, campeão. Vou cuidar de você.
Zétia afrouxou a coleira e o ajudou a se levantar. Não foi
fácil, Rockfeller parecia bêbado. Um pedacinho de carne
estava bem ao lado, Zétia o apanhou e atirou para longe.
Rockfeller chacoalhou a cabeça e deixou um pouco de baba
na jaqueta de couro do delegado, depois pareceu bem o
suficiente para caminhar. Seja lá o que deram para ele, não
iria matá-lo. Talvez fosse só um tranquilizante, uma
esperança ao mesmo tempo boa e cruel. Só um homem
pensaria na saúde de um cachorro em uma situação tão
desastrosa, o último homem de coração bom da cidade.
— Galileu — suspirou. — Foi ele quem temperou seu
bife, não foi, Rock?
Depois de um espirro, Rock tomou a frente e entrou pela
cozinha. Zétia logo atrás, com a arma empunhada.
Deu dois passos na cozinha e sentiu o cheiro
inconfundível de pólvora. De novo atrasado. Que porcaria,
de repente ele não conseguia fazer mais nada por aquela
cidade. Não está em minhas mãos, pensou e, embora não
aceitasse uma regra tão bastarda, sabia que estava certo.
Pensando bem, desde que os cupins e a falta de chuva
assolaram a cidade, seu fardo era apenas observar a
destruição. Foi assim com Milena Sultão, com os garotos da
escola, com Pauline Bosco. Antes de chegar à casa dos
Minotto, viu alguns caras mortos na porta do bar Quinze,
pareciam ter matado uns aos outros.
Atravessou a porta para a sala suando frio, ciente que
veria outra obra de horror.
— Rock, sai daí! — disse. O cão obedeceu e chiou
fininho.
Zétia guardou a arma e caminhou até o centro da sala.
De repente estava no Iraque, perto do que sobrou de um
carro bomba.
Passou pelo corpo de Sultão primeiro, tateou sua
garganta e seu pulso. Teve o carinho de fechar seus olhos
para que ele não ficasse olhando o teto para todo o sempre.
Luciano não causou nenhuma reação no delegado, nem
piedade.
Logo chegou ao corpo de Roger. Estranhou um cadáver
que ainda não tinha passado pelas mãos hábeis de seu
Ducatte, tanatopraxista da cidade, sorrir daquele jeito.
Roger tinha dormido em paz. Ricardo estava no pé da
escada, todo furado. No peito, na cabeça... O chão estava
molhado de sangue, os degraus da escada, buracos de bala
pelas paredes, alguns no teto. Rockfeller foi até Roger e
lambeu suas mãos mortas, deitou ao lado dele e de Ricardo,
em um pedacinho de degrau bem perto do chão. — Não
perca tempo com os mortos — alguém disse às costas de
Zétia. Seu primeiro impulso foi sacar a arma e atirar sem
perguntar, mas não foi o que fez. De tão exausto
emocionalmente, Zétia a devolveu ao coldre e girou o corpo
para ver quem era.
— Safira? O que está fazendo aqui?
Ela vestia calça branca e uma blusinha de seda azul,
tudo tipicamente da terceira idade — menos os tênis
brancos que pareciam grandes demais.
— O mesmo que você, delegado Zétia. E antes que me
pergunte como cheguei aqui, tenho meus informantes.
Como você tem os seus.
— E eles são tão incompetentes quanto os meus,
suponho?
Safira mordeu um sorriso breve e sincero.
— São sim. Ou não teríamos chegado a esse ponto, não
é?
— Sabe alguma coisa sobre o que aconteceu aqui?
— Meus informantes, meus guias, eles disseram que
você estaria aqui. Não estou atrás de Sultão ou dos Minotto,
vim até aqui para falar com você, delegado. Precisamos
conter esse mal antes que seja tarde demais.
— Já é tarde demais, Safira.
— Tarde demais para quê? Para salvar vidas? Para
impedir que as pessoas enlouqueçam? Provável... Mas não é
tarde demais para salvarmos nossas almas.
— Do que está falando, vidente?
— Você sabe. Do que ouviu mais cedo, pouco antes da
cidade perder o juízo que tinha. Falo sobre Constâncio
Trindade. Se preferir, Coronel Trindade como era conhecido.
Zétia suspirou, cansado demais para outro mergulho nas
águas lodosas da crendice. A história de Carlo Euripes ainda
fresca na memória, tão sucinta a apodrecer e desaparecer
quanto um pedaço de banana. Como a velha sabia sobre a
conversa era a menor de suas preocupações.
— Isso é demais para minha cabeça, Safira. Estou com
corpos jogados em cada esquina da cidade e ninguém para
me ajudar a carregá-los. Pode fazer suas orações se quiser;
encomendar as almas dos mortos; faça seus rituais. Só
preciso terminar meu trabalho e dormir uma semana inteira.
— Quem faz esse tipo de coisa é o Padre Estevão, e ele
não está mais apto a isso.
Zétia perguntou por perguntar, já imaginava o destino
do padre: — Esteve com ele?
— Com o cadáver dele. O mal que assola nossa cidade
não ia deixar o capelão, alguém capaz de rechaçá-lo, vivo.
Se quiser ver o que sobrou dele pode pegar seu carro e
acelerar até a igreja, mas eu garanto que isso não trará seu
sono de volta.
— Deus...
Sentiu-se enfraquecido e por pouco não perde os
sentidos. Precisou se apoiar no sofá antes de encará-la de
volta. Respirou bem fundo e secou as mãos suadas no
tecido. — O que sabe sobre o Coronel além dele ser um
desgraçado justiçado pelas pessoas da época?
— Minha avó o conhecia. Constâncio enriquecera com a
fortuna herdada dos pais, mas não parou por aí. Ele tinha
poder em suas palavras, ardil, dizem que seus olhos azuis e
sua língua ligeira eram capazes de convencer uma pessoa a
qualquer coisa. Conquistou políticos, prestígio, chegou a
concorrer a um cargo influente na capital. E não que isso de
convencimento seja uma grande coisa. Hitler também era
bom em convencer os homens e qual foi o resultado? Com
minha avó foi diferente. Ela relutou em ajudá-lo.
— Seu Carlo do controle de pragas contou que ele
abusou de um dos empregados.
— Um? — escarniou. — O Coronel abusou de cada
homem ou mulher que trabalhou em suas terras. Ele fez
coisas horríveis. Mulheres engravidaram e perderam seus
filhos, filhos dele, sob a sola de suas botas. Garotinhos
foram trancafiados e abusados, os homens que se punham
contra ele foram mortos. Sabe como chamavam a fazenda
nessa época? — Zétia balançou a cabeça em negativa. —
Fazenda Inferno. E era isso mesmo. Mas o pior ainda estava
por vir. Depois que Constâncio os incendiou, temendo que
os espíritos se vingassem, ele os encarcerou na morte. O
Coronel os manteve escravos mesmo depois da morte,
entendeu?
Zétia se reergueu e procurou um cigarro que não tinha.
Seria um bom remédio, tanto para o cheiro adocicado e
ferruginoso do sangue que tomava a sala quanto para
acalmá-lo. Mas ele teve a brilhante ideia de parar de fumar
na hora errada. — Como espera que eu entenda uma
insanidade dessas? Como é possível escravizar alguém
morto?
— Ninguém nesse mundo é santo, delegado. Minha avó
conhecia sobre rituais secretos, cerimônias nascidas nos
confins da África bem antes do homem se achar mais
importante que os Deuses. Ela não entregaria nada ao
Coronel, mas ele a obrigou. Constâncio Trindade colocou
uma faca no pescoço da minha avó e disse que a mataria se
não tivesse as respostas que procurava. Minha avó cedeu e
o amaldiçoou logo depois, disse que estaria viva para vê-lo
morrer. E assim foi, mas acredito que os espíritos
escravizados deram a ele a força para a vingança que
assola nossa cidade.
— Então são eles? Quer me convencer que os próprios
colonos assassinados estão manipulando as pessoas?
Incitando todo mundo a fazer besteira?
— Convencer alguém a qualquer coisa não é o meu
trabalho, é do Coronel Constâncio Trindade e do que sobrou
dele. Estou apenas mostrando os fatos. O que vai fazer com
eles é problema seu.
Zétia engoliu o orgulho e se permitiu acreditar em boa
parte daquilo. Mas quis saber mais antes de sair caçando
fantasmas.
— Existe alguma maneira de parar isso tudo?
Safira apanhou a bíblia que trazia dentro da bolsa
escura. Era velha e sábia, como todo bom livro. De dentro
da Bíblia, apanhou um envelope. Foi até o sofá e sentou-se.
Esperou por Zétia. Rockfeller cansou dos cadáveres e deitou
ao lado dos pés do delegado.
— Parece que ganhou um amigo — disse Safira. — Eu
tinha três gatos. Encontrei-os agora a pouco, fervendo em
um tacho no fogão.
— Eu lamento.
— Eu também. E isso não vai trazê-los de volta.
Devemos nos preocupar com os vivos, delegado. Quem
cuida dos mortos são outros mortos.
Abriu o envelope e tirou um papel velho a amarelado.
De dentro, algumas fotos.
— Isso veio da biblioteca, não preciso dizer que não
devia estar comigo, mas não acho que vá me prender por
isso...
— E o que significa?
— Aqui está o nome de três famílias que participaram de
tudo isso, mas pode haver mais. Uma delas, os Torque, eles
sempre estiveram metidos com política e dinheiro. Veja se
reconhece esse rosto.
Zétia apanhou o retrato e quase o deixou cair.
— Impossível. Ele é...?
— Não é o doutor Orlando. Mas a semelhança é incrível
— Safira explicou e se esticou para chegar mais perto do
retrato. — Não tenho fotos de nenhum ascendente dos
Guerra, da família da prefeita, mas não duvidaria se a
semelhança com ela também fosse impressionante, pelo
que me lembro, era. Foram os Guerra que ajudaram a dar
cabo do Coronel Trindade. Eles e Mariano Sultão, capataz da
família Guerra. O fim de Constâncio foi o mesmo fogo que
condenou seus colonos e um buraco entre as fileiras da
cana-de-açúcar. Minha mãe, coitada, ela tentou entender
tudo isso. Morreu bem antes de conseguir.
— Tem alguma ideia do motivo? Por que isso está
acontecendo agora?
Ela pensou um pouco, as rugas da testa tornaram-se
grandes sulcos de uma expressão incerta. Safira arriscou
seu melhor palpite.
— Os espíritos precisam de tempo até descobrirem o
que aconteceu com eles. Creio que o Coronel tenha
acordado só agora. A numerologia também explica uma
parte disso tudo. Estamos fechando um ciclo, delegado.
Algo que ainda não terminou. Expiações, provas, dor e
sofrimento; tudo para que os próximos herdem um mundo
melhor.
Zétia não acreditava nadinha naquela lorota Maia de
ciclos e de fim do mundo, então preferiu perguntar de novo:
— E não podemos fazer nada?
— Temos um descendente do Coronel entre nós, alguém
que pode trocar vingança por paz.
— Conseguiu um nome?
— Não, mas...
Um ruído de telefone antigo cortou a conversa. Era o
celular de Zétia. Estranho que funcionasse agora. Horas
antes, tentando reforço com outras cidades, tudo o que
conseguiu foi o sinal ininterrupto de ocupado. Em todos os
telefones fixos ou móveis que tentou.
— Só um minuto... — disse Zétia e saiu do sofá.
Ficou perto da porta da frente, coçando o queixo e
conversando frases cortadas. Sacudiu a cabeça e bufou.
Disse para a pessoa do outro lado que “não era possível”.
Em seguida desligou, se irritando um pouco com o aparelho
que voltou a não dar linha.
— Colocaram fogo nas terras da usina abandonada.
Acha que tem algo a ver com o que acabamos de
conversar?
Safira riu, se perguntando até quando a autonegação
estúpida do delegado iria perdurar.
Tão logo os papéis foram guardados, eles saíram da
casa dos Minotto. Rockfeller os acompanhou, enchendo o
banco de trás da viatura.
GUERRA E TORQUE
 
Miriam recebeu uma ligação perto das nove e meia,
horas atrás, dizendo que, se quisesse ver sua filha com
vida, deveria estar em frente ao cemitério da cidade,
sozinha, em trinta minutos. Ela já sabia o que esperar: mais
um truque da cabeça doente de Orlando Torque. Mesmo
assim foi até lá. Não sozinha; isso seria desafiar demais sua
inteligência. Dionísio estava com ela.
— Sabe que é uma péssima ideia, não é? — ele
perguntou. Miriam estava ao seu lado, dentro do carro,
fumando um cigarro abandonado quando Patrícia nasceu.
— Não temos ideia melhor. Se quiser ir embora, pode
me deixar aqui.
Dionísio soltou o ar dos pulmões com algum ruído. Era
um homem grande, forte, sua respiração não era diferente.
— Eu não deixaria a senhora sozinha, prefeita. Quando
eu precisei, você e sua família estavam lá.
Em noventa e dois, Dionísio teve um problema sério no
coração. Seu tamanho exagerado e a carga de exercícios
quase acabaram com sua musculatura cardíaca. Foi levado
às pressas até o hospital de Nova Enoque. Estava
agonizando, esperando uma internação de emergência que
não resolveria muita coisa. Era isso ou uma transferência
para São Paulo, para o hospital Albert Einstein. Miriam
estava no saguão, era vereadora ainda, acompanhando
Patrícia, internada por causa de uma bronquite. Miriam
acabou penalizada com a situação do homem e com três
telefonemas — e a cobrança de um punhado de favores —
arranjou tudo. Em uma hora, a transferência para o hospital
em São Paulo estava autorizada. A recuperação inicial de
Dionísio levou semanas. Sua recuperação final, meses. Por
todo esse tempo a então vereadora Miriam Guerra
acompanhou o caso de perto, chegou inclusive a visitá-lo
em São Paulo, levando com ela a esposa de Dionísio. Eles
eram bem pobres na época, e Miriam, depois de tudo
resolvido, aceitou Dionísio e matriculou em uma das
melhores academias da região para ser seu segurança
particular.
Ele continuou:
— A senhora sabe que o vereador Orlando não virá
sozinho, e também sabe que isso é obra dele, não é? Talvez
ele nem apareça...
— Sei sim. Mas é a única chance de encontrar minha
filha antes que o pior aconteça. — Devaneou um pouco pelo
vidro serenado do carro. — A vida é feita de riscos, meu
caro. Ninguém chega a lugar nenhum sem assumir alguns.
Viu alguém lá dentro?
— Tirando meia-dúzia de vagabundos comemorando o
fim do mundo, não. Vai ver era um trote.
— Hoje? Ninguém teria senso de humor para isso.
Esperaram mais quatorze minutos tentando enxergar
algo através do vidro embaçado. Às vezes Dionísio ligava o
ar condicionado, tentando garantir uma visibilidade mínima,
mas não resolvia muita coisa. Podiam ouvir claramente os
animais excitados. Morcegos, cães, gatos, parecia que todos
faziam hora extra com seus silvos, latidos e miados
satânicos. Pelo caminho até ali, um exagero de insetos se
chocou contra os vidros do carro. Perto do clube da cidade,
o Enoque Country Club, chegaram a quase parar o carro.
Toda aquela gosma e restos transformaram o vidro em um
fundo de pote de requeijão.
— O que é aquilo? — Miriam perguntou.
Dionísio aproximou o rosto do para-brisa.
— Algum tipo de luz, parece alguém piscando uma
lanterna.
— Vamos até lá — ela disse, destravando a porta direita.
Dionísio tocou seu braço, apertou com força, contendo seu
ímpeto em descer. Miriam o encarou sobressaltada, será
que até o seu homem de confiança perdera o juízo?
— Vai precisar de uma arma, prefeita. Sabe atirar?
— Desde criancinha — Miriam sorriu. Apanhou o
revólver estendido por Dionísio e checou se a automática,
uma 765, estava destravada.
— Tem outra arma?
— Preciso de uma arma compatível com meu tamanho
— disse com sua voz rouca. Apanhou uma doze cerrada do
banco de trás.
Miriam desceu e esperou por ele, perguntou sobre a
chave, e Dionísio explicou que era melhor deixá-la no
contato, para o caso de precisarem sair correndo dali. Ele
desceu e tomou a frente.
— Lado a lado, grandão. Ninguém aqui é melhor que
ninguém.
Ele assentiu, e Miriam disse em seguida: — Se alguma
coisa acontecer comigo, encontre minha menina. Não deixe
que eles descontem nela o ódio que sentem por mim,
Patrícia é só uma garotinha.
— Não precisa me pedir isso, prefeita. E sobre sua filha,
a Pati, ela tem metade do seu sangue nas veias. Tenho
certeza que vai se sair bem, com ou sem a nossa ajuda. —
Miriam gostou de ouvir aquilo e teria pedido a Deus que
fosse verdade se acreditasse nele. Infelizmente, depois de
tudo que viu e ouviu na política, a ideia de um criador que
tudo vê, tudo sabe e tudo pode não era plausível.
— Cadê a porcaria da luz?
— Lá dentro. O safado correu entre as tumbas.
Atravessaram a rua, as armas em punho funcionando
como algum tipo de garantia contra a má sorte. Um cão
apareceu na calçada à frente, um Dobermann. Ele sentou e
ficou olhando para eles, seus olhos refletiram a luz de um
carro que passou correndo e deixando um pouco do refrão
de Since I Don’t Have You na versão Guns N’ Roses. O cão
rosnou quando os dois avançaram, parecia tentar dizer que
eles estavam prestes a cometer outra idiotice — mas talvez
só estivesse assustado como o resto da cidade. Dionísio
estalou os dedos, e ele saiu correndo. Parou uns cinquenta
metros à frente; uivou e continuou correndo.
— Isso foi esquisito — disse Miriam.
— Animais sentem as coisas, prefeita. Eu tinha um gato
em casa, antes do meu coração pifar. Sempre que eu
deitava no sofá para ver tevê, ele ficava deitado sobre o
meu coração, ronronando. Um dia antes de eu piorar de vez,
ele fugiu.
— Não queria ver você sofrendo...
— Acredito nisso, mas acredito mais ainda que ele não
queria que eu me preocupasse com ele. O gato sabia.
Pararam rentes ao meio fio, em frente à estrutura que
ficava sobre as colunas que sustentavam o portão aberto.
Cem quilos de aço trabalhado que estavam ali há muito
tempo. Dionísio teve a intuição que a porcaria toda podia vir
abaixo quando eles atravessassem. Guardou para si, mas
pela expressão de Miriam, olhando para cima, ela pensava o
mesmo. Ele foi na frente dessa vez, tanto para provar que
era seguro quanto para poupá-la caso o troço realmente
caísse. Parou logo que atravessou, antes de tomar o chão
de cimento trincado que levava aos mortos.
— Ele está ali? Consegue vê-lo?
Dionísio fez que não com a cabeça.
— Vamos, quero botar minha filha na cama essa noite.
Passaram pelos primeiros túmulos, e Dionísio sentiu seu
corpo arrepiar em frente a cada um deles. Os Andaluz, os
Noronha, o mausoléu da família Sultão que tinha recebido
alguém recentemente. Quando passaram pela cova mais
cara, pertencente à família da prefeita, a luz da lanterna
distante começou a piscar, parecia ter um ritmo, brilhando
uma vez a cada dez segundos, talvez um pouco mais.
Miriam se benzeu pedindo proteção aos seus. Um pássaro
noturno soltou seu assovio mordaz, cheio de maldições.
— Tá estranho, prefeita.
— E o que poderia ser normal em um cemitério?
— Estou falando sobre a luz. Não está como antes.
— O safado quer que a gente vá até lá. Não vamos
decepcioná-lo.
Seguiram em frente, e Dionísio teve um orgulho
sufocante daquela mulher. Mesmo com o que diziam sobre a
prefeita, que ela era uma vaca egoísta e que privilegiava a
elite da cidade deixando os pobres na merda, ela era uma
mulher e tanto. Quantas seriam capazes de enfrentar um
cara de fama ruim como Torque? Pela cidade também
corriam boatos sobre ele, bem piores do que ter roubado a
merenda de um monte de criancinhas. Torque era um
bandido, alguns laranjas assumiam suas picas, mas à boca
pequena diziam que ele chefiava uma quadrilha de
sequestros para pagar suas campanhas. Isso, assaltos a
bancos, e de tudo um pouco que cheirasse a dinheiro ilícito.
— Cuidado — ele disse, apanhando a prefeita que pisou
em falso. Ela agradeceu e em seguida quebrou os saltos dos
sapatos. Não era hora de ser elegante.
Caminharam um pedaço de solo íngreme e pararam
pouco antes da luz, em um pedaço de noite onde nada
estava nítido. A noite que por dias brilhou clara não ajudava
mais, havia ganhado nuvens e um vento carregado de
umidade. Mesmo distante três ou quatro metros, a luz ainda
era um mistério, oculta em um arbusto de acácia. Miriam
avançou depressa demais para ser alcançada por Dionísio.
Ele tocou seu braço direito, mas o suor o impediu de agarrá-
la.
Ao lado do arbusto, o túmulo reservado aos Torque.
Miriam invadiu o espaço com raiva e destruiu o arbusto
com as próprias mãos. Depenou a pobre arvorezinha e
apanhou o que encontrou oculto pelas folhas.
— O que é isso? — perguntou a Dionísio. Ele chegou
mais perto.
Era algum tipo de equipamento programado. A lanterna
estava lá, brilhando automaticamente.
— É uma armadilha, prefeita! Armaram para gente! —
gritou, e olhou para os lados com histeria. Correu até ela,
mas não chegou a dar dois passos.
Um som explosivo vindo de algum lugar à frente,
encheu o silêncio do ar.
Miriam viu o brilho, claro que era uma arma.
Atirou de volta, até descarregar a 765. O covarde
respondeu dois ou três tiros, e ela ouviu passos se
afastando. Correu para o seu anjo da guarda, pouco
preocupada consigo mesma.
Dionísio estava de joelhos no chão trincado do
cemitério.
— Aguenta firme, grandão. Vamos tirar você daqui.
Seus olhos grandes estavam mareados e surpresos. A
mão saiu de perto do coração, foi onde o tiro o acertou. Ele
a espalmou e mostrou a Miriam. Estava tremendo um
bocado.
— Tá ficando frio, dona Miriam. — Estendeu a arma que
havia derrubado no chão. — Fica com ela.
— Não! — Miriam protestou. Então outro disparo acertou
a árvore do lado oposto a tumba dos Torque.
— Sua filha precisa da mãe, prefeita. Eu fico com a sua
arma; vou recarregar.
— Não! — disse outra vez. Tentou arrastá-lo.
Dionísio tomou a mão direita de Miriam, fez força para
que ela aceitasse sua arma. Caibre grosso, cano serrado,
carregada e pronta para pacificar qualquer animal doente.
Tomou a arma que estava com ela e a recarregou com um
pente que tirou do paletó. A mão e o pente voltaram cheios
de sangue.
— Precisa ir. Eu já sou grandinho.
Miriam estava chorando quando outro tiro resvalou no
granito caro da sepultura dos Vasques. Família rica e que
infelizmente teve seu último representeando enterrado em
dois mil. Era um garoto, Miguel Vasques. Acabou se
afundando depressa no rio de cocaína que corria solto na
cidade.
— Vá prefeita. Já me deu mais vida que eu merecia —
disse com muita dificuldade.
Ela relutou mais um instante e correu. Torcia para
chegar aos portões antes do safado que baleou seu anjo da
guarda. Seu corpo não era mais o mesmo, suas pernas
estavam cansadas, seus músculos fibrilavam. Pouco antes
do portão, ouviu alguém gritando da parte que ficou para
trás:
— Não vai fugir para sempre, Miriam! Matei seu gorila e
vou fazer o mesmo com você! Cadela!
Era Torque. Parecia um pouco embriagado, rindo e
gritando palavrões.
Miriam parou de correr quando atravessou o portão,
apanhou seu celular e discou o número de Zétia. Não soube
bem porque fez aquilo, os telefones estavam malucos,
então...
— Delegado! Graças a Deus. Preciso de ajuda no
cemitério!
— Miriam? Prefeita? Não posso ir até aí agora, estamos
indo até a usina.
— Encontraram minha filha? É isso? Ela está bem?
Torque apareceu no corredor e atirou de novo. O projétil
acertou o portão, e a bala desviada riscou a barriga de
Miriam. Com a dor ela deixou o celular cair e acabou
pisando sobre ele. O apanhou de volta, ignorando o corte
razoável na barriga. O I-Phone estava arruinado. Deu um
tiro de volta, apenas para atrasar Torque, atirou o
smartphone no chão e correu para o carro. Iria buscar sua
filha.
AINDA ESTOU VIVO
 
Quando Jota abriu os olhos de novo, estava tomado pelo
cansaço. Suas pernas formigavam, seu peito doía, sua
mente de tão superaquecida não reagia aos cadáveres. Pêra
estava caído bem ao seu lado, mais à frente, o clone mal
produzido de Mike Tyson exibia um pescoço torcido. Perto da
porta, Barba — que agora poderia ser conhecido como
barba vermelha.
Ainda se perguntava o que teria sido realidade de tudo o
que viu. Ergueu o corpo e notou que estava livre. Não foi
fácil, seu corpo magro pesava uma tonelada. A boca ardia
rasgada nos lábios.
Checou as marcas nos pulsos e nos tornozelos, sem
dúvida a parte do espancamento foi verdade. Caminhou até
B. Tyson.
— Você teve o que mereceu, desgraçado — disse.
Chutou a carcaça. Três moscas saíram pela boca
escancarada do morto e ganharam o ar fedido do galpão.
Jota chegou bem perto e pousou a mão sobre a boca do
cadáver. Gelado.
— Foderam você todinho — disse, enquanto avaliava o
rosto negro e atormentado do homem. Os olhos estavam
arregalados, tanto ou mais que a boca. Havia pequenos
ferimentos pelo rosto, alguns com sangue já coagulado,
outros em carne viva. Uma das serpentes deve tê-lo
abocanhado no nariz que agora parecia pertencer a um
palhaço de circo.
Teve a decência de fechar os olhos (precisou tentar mais
de uma vez para conseguir) do desgraçado e foi até o
segundo homem a descer para o inferno em mão única.
Sentiu vontade de ir até Pêra e rezar por ele, porém nunca
fez isso. Uma que não acreditava em orações e outra que,
se Deus permitiu aquilo tudo, devia estar bastante ocupado
ou distraído.
Barba estava mais comprometido que B. Tyson. Um dos
olhos estava fora das órbitas, uma perna virada por cima do
joelho como um trapo velho, e não havia partes em seu
rosto livres de sangue. Ele estava completamente inchado,
inflado, parecia alguém ou alguma coisa em pleno estado
de decomposição. Jota precisou olhar para outra direção ou
vomitaria em cima dele. Jota, o cara durão, o mais esperto
entre os vagabundos, agora resumido a uma testemunha
ocular do impossível. Seu corpo todo tremia enquanto o ar
entrava pela metade nos pulmões. Pensava em quantas
costelas aqueles medonhos haviam quebrado com suas
botas. Armou-se com um pedaço de madeira que estava no
chão entre os dois homens e foi até a porta.
Antes de tocá-la, notou que nem todos os monstrinhos
tinham ido embora. Viu larvas, dois escorpiões pequenos e
uma aranha. Golpeou o metal com o pedaço de madeira.
Soou alto, um sino tocando no meio do inferno.
BLEIN!
BLEIN!
BLEIN!
Os insetos e larvas caíram.
— Onde vocês foram parar? — perguntou, pensando nas
cobras. Ainda que gostasse delas, se encontrasse alguma a
partiria ao meio, em três partes se possível. Mas talvez essa
parte tivesse mesmo sido um sonho, onde teriam se
escondido dezenas, centenas (?) de cobras?
Colou os ouvidos à folha de metal, esperando ouvir os
dois homens que ficaram do lado de fora. Por mais pestes
que existissem no mundo, era improvável que não tivessem
conseguido fugir ou se esconder. Cobras são perigosas, mas
o resto dos insetos? Um pisão bem dado resolveria.
Não ouvia som nenhum.
Preciso de uma arma, pensou. Olhou a porcaria em suas
mãos. Deviam ter acertado pancadas demais em sua
cabeça para lembrar disso só agora. Acertaram mesmo,
uma delas, bem em cima da cabeça; pulsava junto com o
coração. Jota tateou suavemente a ferida e tirou os dedos
rapidamente, assustado com o comprimento do rasgo.
Abandonou a porta mais uma vez e foi até B. Tyson.
Procurou em suas mãos e não encontrou nada que não
fosse sangue. Tateou com nojo a musculatura da barriga
morta do corpo, precisou agachar para fazer isso e só então
percebeu que seu pobre saco estava dolorido. As bolas
dentro do jeans de Jota deviam estar com uns seis
centímetros de diâmetro.
— Ah, danada, como foi parar aí?
Havia uma arma sim, estava embaixo do corpo daquele
boçal. O que dava para ver dela era só a pontinha do cano.
Jota prendeu os pés na cintura de B. Tyson, o agarrou
pelas calças e pela camiseta e puxou com força. Seus
braços doeram muito e o corpo só girou um pouquinho, não
o suficiente para que Benê saísse de cima da arma.
Esfregou as mãos para relaxá-las, respirou fundo um bocado
de vezes, quando estava pronto repetiu o movimento.
— Ah, que merda! — gritou.
O corpo rolou de uma vez e Jota acabou se
desequilibrando e caindo no chão melecado com sangue.
Pensou em todas as doenças que aquele animal cultivou
durante a vida. Gonorreia, herpes, hepatite, o senhor fortão
ali devia ter até pulgas. Limpou as mãos ensanguentadas
nas partes limpas das roupas dele. E chega desse negócio
de honrar os mortos, a única maneira digna se honrar um
cadáver é seguir em frente. Encontrou balas no bolso de
trás da calça e foi igualmente nauseante retirá-las do tecido
apertado que delineava a bunda generosa do senhor
cadáver. Voltou para porta e colocou a arma na cintura.
Precisaria das duas mãos para abrir aquela joça.
Puxou com tudo e a porta se moveu bem pouco. Acabou
sendo útil. Pela pequena abertura ele não conseguiria sair,
mas ninguém do outro lado conseguiria entrar, o buraco
serviria bem somente para espionar. Antes de meter o rosto
arrebentado pela abertura, colocou as mãos e acenou,
arriscando perder uns dedos. Também não aconteceu. Ele
tomou coragem e olhou para o lado de fora.
Uma brisa fresca o atingiu devolvendo o que precisava
de energia, não muito, apenas o suficiente para trocar uns
socos, uns tiros e sair daquele inferno. Jota estava
impressionado com a falta que sentia de sua casa de
merda, de suas amizades perniciosas e de sua vida inútil.
Com seu novo referencial de dor, sofrimento e surpresas
desagradáveis, nada parecia tão bom quanto o passado. O
cheiro da terra foi tão bom que ele fechou os olhos quando
se assegurou que nada do outro lado o ameaçava. Junto
com a terra, algum cheiro de madeira queimada vindo dos
restos de uma fogueira.
— Socorro... — alguém disse do outro lado. Disse não;
gemeu.
Quis fechar a porta, mas ficar dentro daquele maldito
galpão abafado não era solução razoável. Entre ficar ali e
arriscar ser morto? Ninguém é feliz de verdade enquanto
teme a própria morte.
Empunhou a fechadura e a empurrou usando sua
reserva de energia, sentiu a coragem irrigar alguns órgãos.
Sabendo que era inútil pensar demais, empunhou a arma e
saiu; peito aberto e projetando o braço armado em todas as
direções possíveis.
Nada novo, a não ser o terreno plano que se estendia
por uns cinquenta metros. Um pouco mais além, a cana-de-
açúcar que continuava pilhando a terra. À direita, o terreno
era bem mais estreito e alongado, era a parte que levava à
estrada. A noite estava escura, soprando o vento mais frio
dos últimos meses. Logo Jota deixou isso de lado e procurou
pelo dono daquele pedido de socorro. Andou por uns vinte
metros, sempre colado à parede de blocos do galpão. Sentiu
seu calor reativo depois de um dia coalhando ao sol. Já
desistia, crente que o pedido havia sido outra projeção de
sua cabeça estressada. Projeção? Delírio? Os três homens lá
dentro não pareciam uma psicose.
— Aqui! Aqui em cima! — repetiu a voz. Jota se afastou
da parede e encontrou Siqueira suspenso por cordas. Estava
agarrado a elas, se as soltasse ficaria mais morto que B.
Tyson e Barba.
Jota procurou pela base da corda, olhou ao redor,
também checou o interior do galpão. Talvez alguém tivesse
subido por dentro, pelas escadas.
— Não encontro a corda! — disse.
— Anda... An-da com is-so — sibilou. Os pés sacudiram
um pouco, tentando encontrar algum apoio que não existia.
Um pouco de urina escorreu. Jota teve pena do detetive
Siqueira. Quando era garoto, ele e Lobo gostavam do
detetive. Ele era polícia, mas era legal, não implicava que
eles soltassem pipa pelas ruas ou fumassem escondido. Um
dia ele até aliviou para eles depois de tê-los flagrado com
mais meia dúzia de indecentes pichando a parede da igreja.
Eram os anos noventa, e todo cara pobretão da cidade
gostava de Heavy Metal — e a maior parte deles não
gostava nada do Deus que nunca deu dinheiro a eles.
Siqueira foi compreensivo e deixou que outros dois policiais
resolvessem tudo com uns chutes na bunda em vez de levá-
los ao juiz boçal e impotente da Nova Enoque do passado (o
cara gostava mais da Febem do que da esposa). Nada
demais. Quando se tem quinze anos e merda na cabeça,
apanhar da polícia é quase diversão.
— Quem fez isso com você? — Jota perguntou, enquanto
se movia feito uma barata tonta. Havia olhado em todas as
direções, não restava nenhuma, a não ser mesmo a escada
lá dentro. Ele estava indo até lá quando o isqueiro Zippo de
Siqueira se espatifou no chão.
— Não! Eu vou tirar você daí! — Jota gritou.
Não dava para ver muita coisa com a noite tão escura,
mas Jota enxergou uma lâmina na mão direita de Siqueira.
Era bem pequena, e ele apostaria que era um canivete
disfarçado de caneta que sempre andava com Siqueira
desde os tempos de policial fardado. Todo mundo se
amarrava naquilo, era perfeito. Pequeno, inútil e perfeito.
Não que fosse inútil agora, quando o detetive o usava para
cortar as cordas.
— Vai morrer! É muito alto!
Pelo menos oito metros até o chão.
Jota olhou ao redor, pensando em algo que pudesse
servir de colchão.
Talvez um dos caras mortos lá dentro. Bobagem... Não
conseguiria arrastá-los a tempo, nem Pêra que era bem
magro.
— Não! — gritou outra vez.
Em seguida o corpo de Siqueira desabou como um saco
de farinha. Ele ainda tentou se agarrar ao muro, mas suas
mãos fizeram bem pouco. Ele desceu rápido e acabou
caindo de costas.
— Minha nossa!
Em um segundo Jota estava com ele, sentado no chão e
apoiando sua cabeça rachada. Um sangramento razoável
saía por um corte frontal, do lado direito da testa, e também
pelo nariz. Siqueira tossiu e cuspiu mais do seu estoque de
sangue. Limpou a boca com a manga da camisa. Ele estava
todo furado, picado, sua pele era um mar de furúnculos e
erupções nojentas.
— Eu não queria... Morrer enfor-forcado. Isso é pra
vagabundos.
— Ei, não vai sair dessa se ficar conversando comigo.
— Não vou sair... Não vou sair dessa de jeito nenhum,
rapaz. Eu — tosse —; eu mal posso respirar. Estou me
afogando.
— Quem fez isso? Os homens do Orlando?
— Sim, mas não...
Estava difícil completar as frases, Siqueira estava
perdendo temperatura depressa, seus olhos não
conseguiam encontrar um foco, o peito subia e descia
galopante. O homem estava morrendo.
— Não fizeram sozinhos. Alguém apareceu e os
convenceu a isso. Depois os... Convenceu os safados a
acenderem uma fogueira e se atirarem nas chamas... Ele
não era humano, rapaz.
— Onde eles estão? Precisa me dizer onde estão!
— No fogo. Eu vi enquanto queimavam.
  — Quem fez isso com vocês?! — Jota perguntou, o
sacudindo um pouco para que não morresse. O olhar de
Siqueira ficou ainda mais distante, seu corpo tremeu, ele
agarrou a camiseta escura de Jota e o puxou para chegar
bem perto de seu ouvido direito.
Usando sua última arfada de ar, disse: — Ele.
Jota cedeu os olhos para uma explosão que encheu o ar
de amarelo. A fogueira que Siqueira mencionara estava lá,
ardendo de novo, com um sujeito estranho à sua frente. Jota
deixou o detetive no chão, ajoelhou e empunhou sua arma,
algum lugar escuro em sua mente disse que era idiotice.
DEMÔNIOS AMAM OS SEUS
 
— Não se mexe, irmão! Não se mexe ou juro por Deus
que atiro.
O homem à frente riu e ajustou o colarinho da gravata.
Usava um terno antigo com risca de giz, devia ser valioso.
Ele não se moveu, apesar de Jota duvidar muito que sua
ameaça tivesse sido o motivo.
— Abaixe isso, rapaz.
— Antes me diz quem é você! — exigiu Jota. Suas mãos
tremiam segurando a arma. Estava um pouco distante da
fogueira, porém perto o bastante para sentir o cheiro de
carne queimada. Siqueira estava certo, o cara de pescoço
irritado e os outros capangas de Orlando Torque ainda
estavam assando naquelas brasas. O vereador voltou
sozinho para a cidade.
— Sou quem você procurou a vida toda.
— Eu não procurei por você, aberração. — Saiu do chão
e ficou em pé, sentindo que os joelhos queriam outra coisa.
O direito estava inchado. Ele agulhava, mesmo com os
pequenos movimentos de Jota. — Agora fica quietinho, eu
vou amarrar você.
— Sua valentia me comove — disse, para sem
explicação racional, reavivar a fogueira. Logo as chamas
tinham quase um metro de altura.
Jota não se abalou com o show pirotécnico, o homem
continuou onde estava, e ele se aproximou. Não muito
perto, só o suficiente para mais tarde (quando pudesse falar
com o delegado) reconhecê-lo. Zétia era um filho da mãe
bem grande, mas queria o melhor para Nova Enoque. E o
melhor era prender aquele maluco. Estava na cara que ele
acabou com os homens que ficaram para fora. E de alguma
maneira, com os dois lá dentro.
Devia ter uns sessenta anos, grisalho, bem cuidado. Um
pouco alto, um e oitenta ou mais. Jota aproveitou o brilho do
fogo para olhar bem para ele. Sapatos polidos, um quê de
cinismo no azul extremo dos olhos, nada surpreendente em
um assassino. O único detalhe que o separava de uma
pessoa absolutamente normal eram as unhas. Ao contrário
do resto, eram negras e mofadas, grossas demais e com as
pontas arruinadas.
— Tenho que te contar uma história, rapaz. — Deu um
passo à frente.
— Fique onde está, coisa ruim! Não se mexa ou ganha
um buraco novo no terno.
O homem riu, gargalhou, e em seguida ergueu as mãos
por trás da cabeça. Girou o corpo sem sair do lugar, e o que
mostrou a Jota sugou o ar de seus pulmões estropiados. Jota
recuou um passo e baixou a arma.
— Não se preocupe com o terno — o homem disse.
Ainda estava de costas e um pouco de vapor deixou sua
boca, embaçando a luz sibilante da fogueira.
— Mãe de Deus! — Jota disse.
O terno caro era outro pelas costas. Para começar, não
havia muito tecido. Os poucos fiapos estavam mofados e
desprendiam terra. E isso não era tudo... O homem não
vestia um terno completo e comum, vestia a roupa que
antigamente servia aos mortos. Jota trabalhou um tempo
(muito pouco, uns três meses) para o maquiador de
cadáveres da cidade e, entre um cadáver e outro, folheou
um álbum antigo, cheio de funerais mais antigos ainda. Seu
Ducatte tinha pedido que fizesse isso, o velho tinha
esperanças de transferir a ele o que havia aprendido. Antes
a profissão era respeitada, mas nos anos modernos, Ducatte
era considerado um urubu.
— De onde você saiu? Quem é você? — Jota perguntou,
quando viu as larvas. Elas emergiam em alguns pontos,
abreviando a podridão da carne como deveriam fazer às
escuras.
As mãos desceram de onde estavam, e o estranho
estalou os dedos com um truque de circo. As fibras soltas do
terno ganharam vida, ganharam forma, e começaram a se
reconstruir. Fios entrelaçando-se sem agulhas ou mãos, fios
saltando sobre a carne podre do homem.
Jota sentia os ossos congelados, os olhos expurgando o
nervosismo impossível de conter dentro da cabeça. Devia
ter saído correndo ali mesmo, atirado no homem pelas
costas e cuidado de sua própria bunda.
Antes de virar-se de frente, o estranho estalou o
pescoço, o som foi tão alto e enjoativo que pareceu ter
vindo de ossos quebrados. Jota recuou outro passo,
certificou-se do caminho livre até a estradinha (é... porque
aquele moribundo podia não ser o único safado presente no
terreno maldito da usina).
— O que é você?
Outra vez, os olhos azuis encaravam Jota. Eram ruins.
Pareciam ler sua alma e roubá-la aos poucos. Pareciam
conhecer todos os segredos. Antes da resposta do estranho,
os mesmos olhos mudaram de cor, foram inundados da
periferia para o centro por um negrume líquido. Logo tudo
era preto naqueles olhos, olhar para eles era como cuspir
nas obras de Deus.
— Sou? Sou ou fui?
— Não me interessa! Só diga quem é você!
— Sou o homem que matou seu pai, rapaz.
— Meu pai morreu em um acidente!
O estranho riu; um pouco contido. Os olhos continuaram
negros, as unhas continuaram sujas, compridas e trincadas.
Ele não era humano, não havia nada de humano no
desgraçado, nada que não fosse o terno e os sapatos
polidos.
— Foi o que disseram a você, Jota? Que o papaizinho
morreu acidentado? — Arregalou os olhos, e um pouco
daquela fumaça fria escapou pelo nariz. — Claro que
disseram isso, rapaz. Se tivessem contado toda a verdade,
você não voltaria para essa cidade inútil. Você daria o fora e
nunca mais teria coragem ou vontade de pisar nessas
terras. Mas sua mãe concordou em ficar calada depois de
umas palavrinhas com um amigo. Ela tentou fugir, sabia?
Deu a você outro sobrenome. Inútil. Ninguém consegue tirar
a família do sangue.
— Isso é mentira. Você é uma mentira, e eu
provavelmente morri sufocado pelas cobras lá dentro. Isso
faz de você a última gota de pensamento do meu cérebro.
Ou talvez nem as cobras sejam verdade. Eu devo ter sido
morto pelos safados lá dentro, assassinado igual ao Pêra.
— NÃO SE COMPARE A ELE! NÃO DESONRE SUA FAMÍLIA!
— o homem gritou. As chamas da fogueira arderam dois
metros ou mais, e a cabeça de um dos cadáveres
(impossível saber qual) explodiu com um som pastoso.
— Eu não sou sua família! Pode ter matado meu pai e
minha mãe, mas isso não faz de mim seu parente. Você é o
quê? O demônio? Satanás? Como entrou em nosso mundo?
Jota não acreditava nas palavras que escapavam por
sua boca. Ele era cético, era prático, se esforçava para ser o
cara mais durão da cidade. Em toda sua vida deve ter
pensado sobre demônios e anjos umas duas vezes, e
enquanto contava no relógio os minutos que faltavam para
acabar a missa.
— Chega de conversa, preciso de você para terminar o
que comecei.
— Não chega perto!
— Você deve ceder! É o seu destino! O filho homem
deve servir à família!
— Fica longe de mim! — gritou.
Foi inútil. O homem grisalho continuou andando, os
olhos negros e líquidos mostrando o reflexo ovalado do
rosto assustado do herdeiro. Jota colocou o dedo no gatilho
e deu outro passo para trás. Tropeçou e se enroscou com o
corpo morto de Siqueira, acabou no chão. Rastejou de
costas, se afastando do morto, sem tirar os olhos do
estranho. A arma na mão direita.
— Não!
As unhas apodrecidas estavam perto, e o desgraçado
que as possuía não caminhava, ele flutuava como uma
maldita assombração. Aquilo não era humano, não podia
ser. Melhor assim. Jota teria dificuldades em atirar em um
humano.
— Morre maldito! — disse.
Descarregou a arma em cima dele. As balas perfuraram
o terno caro, perfuraram a carne, e nenhuma gota de
sangue molhou o chão. Tudo o que saiu foi poeira e algo
esverdeado que cheirava a esterco. Os tiros projetaram a
entidade para trás, enquanto a carne absorvia o impacto.
Jota queria correr dali, mas não parecia o melhor a fazer.
Tinha que finalizar com aquela coisa, deitar seu corpo na
fogueira e esperar que ardesse até desaparecer. Seria o
único jeito de dormir outra vez.
— Terminou? — perguntou, limpando o terno. Furo por
furo, ele foi reconstruído, como suas costas podres minutos
atrás.
Jota continuou disparando.
Click
Click
Click
— Preciso de você. Não posso deixar essa terra até
terminar minha vingança. Eles desonraram nossa família,
rapaz. Desonraram a mim e a todos os que nasceram
depois.
— Por favor... não — suplicou. A visão aterradora do ser
esmagava sua sanidade. O ar poluído por morte, só havia
dor e ódio naquela criatura, sentimentos tão potentes que
contaminaram Jota. Ele se afastou mais, sempre rastejando
de costas, até encontrar a porta do galpão. Estava fechada
de novo. Jota a pressionou, tentando atravessar para o outro
lado, empurrou a cabeça com força buscando um desmaio.
Não aconteceu. A escuridão do ser a sua frente partiu dos
olhos para o resto do corpo e o transformou em fuligem.
Antes que Jota conseguisse se levantar, o fumo maléfico
tomou a forma de uma gota e o invadiu pela boca aberta.
Ele ainda reagiu, apertou a garganta com as mãos, depois
tentou regurgitar o mal que o encarnou.
Logo, seus olhos também estavam negros.
A CULPA É SUA!
 
Prefeita Miriam estava à frente, acelerando o que
conseguia em seu carro. Dos vidros da parte de trás, sobrou
bem pouco. O da frente também tinha um rombo feito por
uma bala de Orlando Torque. Ele deixou o cemitério e saiu
logo atrás da prefeita. Estava enlouquecido. Sua vida
resumida à única missão de acabar de vez com aquela
vagabunda.
— Maldito! — Miriam gritou, depois da Curva do
Jambeiro. Uma árvore enorme ficava no ponto mais
inclinado da curva, se você não reduzisse, dava de frente
com ela. O terreno era arenoso e seco, o carro patinava.
Que se soubesse, o velho jambeiro já havia matado três
pessoas, mas podia ter sido bem mais.
Torque disparou de novo e acertou na traseira do carro,
a placa de Miriam voou pelos ares e acabou acertando o
vidro da frente do carro de Orlando. Ele riu. Estava ouvindo
um CD do seu filho, Murilo não era muito fã de Rock antigo,
preferia bandas novas como a que estourava os falantes do
carro: Slipknot. O nome da música, Orlando não arriscaria —
ele nem arriscaria ouvir aquela porcaria de novo.
Na reta após a Curva do Jambeiro — que dava acesso às
terras da usina abandonada — Miriam acelerou. Torque não,
ele viu algo emergindo em um acesso à estradinha que a
prefeita não percebeu. A intuição de Torque fez com que ele
diminuísse e deixasse aquela tonta da prefeita se encurralar
sozinha na usina. Além dos seus capangas que acabariam
com ela, não havia saída, a não retornando por aquela
estradinha. A polícia havia fechado o segundo acesso pouco
tempo atrás, a pedido do Conselho dos Amigos da
Juventude (uma organização ridícula e incompetente,
encabeçada por brochas e mulheres em menopausa físico-
intelectual). Os adolescentes da cidade costumavam fazer
festas ali, todo sexo, drogas e rock and roll que podiam ter;
bem longe dos conselhos de papai e mamãe. Que a prefeita
fosse para o inferno, depois cuidaria dela. Orlando tinha
uma longa lista de itens que adoraria desenvolver com uma
mulher sozinha em uma usina abandonada.
Parou o carro e esperou que o desconhecido viesse até
ele. Acompanhou tudo pelo retrovisor. Era uma garota,
estava mancando e com as roupas em frangalhos. Mais que
isso, era alguém que presenciara seu carro perseguindo
Miriam Guerra, uma testemunha indesejável. É... Mas ela só
foi indesejável até colocar seu rosto na abertura do vidro do
carona.
— Me ajuda, seu Orlando! Me ajuda, pelo amor de Deus!
— ofegou Patrícia. Estava bem ruim, parecia prestes a
desmaiar quando Orlando abriu a porta do carro. Ela entrou,
olhou para ele e pensou que aquele bolo fofo poderia ter
sido o responsável por seu sequestro. Sentiu-se estúpida.
Mas era entre Orlando e a morte; e ninguém gosta da
morte.
— Calma filha. Vou ajudar você. Sua mãe e eu
descobrimos os safados por trás disso.
Patrícia começou a chorar e se atirou nos braços de
Orlando. Ele ficou onde estava, petrificado pela inesperada
demonstração de carinho. As mãos se mexeram aos poucos,
o peito sentia os soluços de Patrícia e queria fazer o mesmo.
Ele afagou os cabelos sujos da garota e a beijou no topo da
cabeça.
Talvez eu tenha que matá-la junto com a sua mãe, mas
eu não sou um monstro. Não posso deixar uma garota
sofrer desse jeito.
Claro que não. Mas tão logo Patrícia parou de chorar, ele
acelerou a caminho da usina.
— Vamos encontrar sua mãe. O delegado Zétia está com
ela e com os safados que fizeram isso.
— Mais de um? Eram mais de um?
— Sim, filhinha. Eles pertencem a uma gangue. Estão
tentando acabar com essa cidade. Você foi mais uma vítima
inocente, como meu pequeno Murilo. — Quando disse isso
apertou com força o volante do carro. Seu garoto, seu filho
varão, seu filho morto que jamais seguiria ou desviaria dos
seus passos. Sua vontade agora era arrancar a cabeça
daquela putinha e entregá-la a Miriam, junto com um copo
de veneno. Mas nem só de vontades vive um político, às
vezes, você precisa se controlar.
— Tem certeza que eles estão lá dentro? Parece que
estão colocando fogo no lugar, eu vi o clarão na estrada.
Também era uma surpresa para Orlando. Ele não sabia
nada sobre fogo ou o motivo para aquilo. Se bem que seus
homens eram profissionais (ou quase, se tratando dos que
ficaram junto com Siqueira), devem ter tido alguma razão
prática para acender um fogo tão alto — por exemplo: se
livrarem dos corpos.
— Devem ter acendido uma fogueira para iluminar o
terreno. Meus homens estão lá e renderam os safados. Eles
confessaram tudo, eu estava indo buscá-la, então a vi pela
estrada.
— Eles me mantiveram em uma fábrica abandonada ou
coisa assim.
Orlando sorriu por dentro. Pelo jeito, a putinha não tinha
herdado a inteligência dos Guerra. Se ela tivesse
perguntado mais um pouquinho, se tivesse ao menos
tentado, ele teria se enrolado todo, afinal, não saberia dizer
de onde pretendia resgatá-la. Mesmo assim ele se garantiu:
— Graças a Deus eu a encontrei. Aliás, como conseguiu
escapar daqueles monstros e tomar a estrada? E você
estava indo na direção errada, meu anjinho...
— Eu... Eu não sabia para onde ir. — Uma mentirinha
branca era bem melhor que começar a falar de mendigos-
do-além e acabar entupida de Diazepam na clínica dos
garotos felizes.
— Claro que não. Mas não se preocupe mais com isso,
pequena, nós vamos cuidar de vocês.
Havia algo sombrio na entonação de Torque. Mas podia
ser implicância. Patrícia nunca gostou dele, não seria
possível com Miriam dizendo o tempo todo que ele era um
porco facínora. Fosse o que fosse, decidiu confiar nele pelo
menos até encontrar Miriam, Zétia ou alguém melhor para
acreditar.
Cruzaram o terreno abandonado com aceleração
mínima. Orlando olhando para os lados, tentando encontrar
Miriam que faria de tudo para acabar com ele. Vaca
estúpida. Ela não podia ter incendiado a escola. Matar
tantos garotos, destruir famílias, sem dúvida um motivo e
tanto para queimar no inferno. E pensando assim, para que
esperar o inferno se ele podia queimá-la ali mesmo?
— Não vejo ninguém — Patrícia disse. Passou as mãos
pelos braços, contento os arrepios. Estava fraca e faminta,
sua boca tão seca que ganhou uma bolha no céu da boca.
— O que foi isso na perna?
— Saí por um lugar apertado. Esse não é único corte,
seu Orlando... Acho que preciso de um médico.
Orlando estava com os vidros abertos. O silêncio
quebrado apenas pelo ruído ronronante do motor. O volume
do rádio também estava baixo, tocando Like a Stone do
Audioslave (outra música que Murilo gostava, Torque deixou
o CD rodando, trazia um pouco de Murilo de volta à terra). O
fogo alto iluminava, mas também enganava os olhos. Era
quase impossível enxergar algo na noite escura com todo
aquele amarelo roubando a paisagem.
Estavam bem perto da fogueira, tanto, que o calor
atingia o carro e os corpos. Patrícia levou a mão à
maçaneta, sentindo que Orlando desligaria o motor.
— Cuidado! — ela gritou em seguida, esvaziando o ar
dos pulmões.
Orlando olhou para a direção que ela apontava. Não
conseguiria fugir. Dois faróis altos de aproximavam com
tudo, arrancando terra do chão e trepidando sobre o terreno
irregular. Torque buscou o acelerador e conseguiu arrancar
só um pouco, o suficiente para, sem ter a intenção, poupar
Patrícia de ser reduzia a uma panqueca ensanguentada.
Patrícia observou as luzes ficando maiores e maiores até
conseguir ler as iniciais da placa. BTQ. Ou era uma
coincidência infernal ou sua mãe. E por que, diabos, ela
tentava matá-los? Teria ficado maluca como o resto da
cidade? Pouco antes de seu sequestro, ouviu boatos sobre
como o pessoal andava estranho. Gente acabando com a
própria vida, fofocas sobre espancamentos, seu próprio
sequestro era uma prova cabal de que tudo ia de mal a pior
em Nova Enoque. Fechou os olhos, puxou o cinto de
segurança em uma manobra assertiva e esticou os pés
pressionando seu corpo contra o banco.
CRASH!
ROUCH!
RUMMMM!
SPLINGHT!
O impacto atirou o carro sobre a fogueira e o fez
atravessar sobre ela. Tudo ficou escuro, segundos ganharam
tempo extra, enquanto os corpos ricocheteavam como balas
de borracha. O mundo lá fora ficou borrado e indecifrável,
todas aquelas imagens, a fogueira brilhando, os tons verdes
da cana de açúcar. Patrícia ainda se preocupou com
Orlando, com o vereador Orlando que era lento demais para
colocar o cinto de segurança a tempo. Ele levou a pior
nessa, o rosto se chocou contra o volante, Orlando sentiu o
couro vencendo a dureza de alguns ossos. Só depois do
estrago, o Air-Bag foi acionado. Em vez de ajudá-lo, acabou
de foder de vez seu nariz recém-arrebentado. O carro ainda
gastou alguns segundos se acomodando, como uma cama
vibratória de motel em fim de ciclo. Patrícia começou a se
apalpar, checando se todas as peças de seu corpo estavam
no lugar. Apertou o botão do cinto de segurança.
— O senhor está bem, seu Orlando?
Torque não se mexia. Continuava com a cabeça enfiada
no Air-Bag. Patrícia queria descer do carro, mas não podia
deixar o homem que a tirou do inferno abandonado e ferido.
Tateou seu pulso com um pouco de medo do que sentiria ou
não. E se ele estivesse morto? Se aquele maluco do carro
não fosse sua mãe?
Eu sou a próxima.
— Eu não morri, putinha! — Orlando disse, e a tomou
pelo pulso. Segurou bem forte como se deve fazer com uma
égua indigesta. Aquela megerazinha não passava disso
afinal, uma nojenta cuja única utilidade era servir de isca.
— O que você está fazendo!? — ela perguntou, tentando
se libertar. Orlando apertava com força. Ele se livrou do
maldito Air-Bag e escancarou a porta.
— Você vem comigo!
— Mas...
— Foi a maluca da sua mãe, menina. Foi ela quem
tentou nos matar.
Patrícia gritou e olhou para a mão que a prendia.
Arreganhou os dentes e mordeu com força.
— AI! CADELA! — Orlando gritou de volta. Contudo, não
a libertou. Preferiu golpeá-la no rosto com a outra mão.
Como era a esquerda, ele não calculou a força e quase
desmaiou Patrícia. Ela estava fraca, tinha perdido sangue,
qualquer assopro a derrubaria.
Orlando fez com que ela saísse do carro e a tomou pelo
pescoço. Apertá-lo, além de prazeroso, fez com que ela
ficasse inteiramente a sua mercê. Queria mesmo era
apertar o pescoço flácido da puta da prefeita, mas a
cadelinha servia. Pelo menos até que Miriam aparecesse.
Caminhou com Patrícia para perto da porta do galpão,
checou com a mão livre se estava aberto. Fez força. Só
quando desistiu e assumiu que alguém trancara a droga da
porta, reconheceu Siqueira — o que sobrou dele. Patrícia
gritou quando o viu. Orlando apertou mais um pouco sua
garganta para que parasse com aquilo. Então ouviu:
— Larga minha filha, desgraçado.
Era Miriam, armada com a Doze adaptada de Dionísio.
Orlando reposicionou a garota para que servisse de
escudo, escondeu a outra mão atrás dela, fingindo ter uma
arma.
— Calminha, Miriam. Calminha ou vai perder sua filha.
— Solta ela!
Orlando deu um passo para esquerda, um bem curto.
Patrícia estava arroxeada no rosto, tossia, tentando respirar.
— Eu decido o que faço ou não. E seria justo que você
perdesse sua vaquinha. Foi isso o que decidiu sobre o meu
filho, não foi? Me dê um motivo para não matar sua
cadelinha agora mesmo.
— Não fui eu, Torque! Eu nunca faria isso.
Miriam ganhava tempo. Ela não tinha balas na arma e
sabia disso. Mas Torque, não. Miriam precisava de um
espaço justo, um pequeno erro nos passos de Orlando que a
permitisse abatê-lo com a coronha.
— Chega! — ele gritou. Seus olhos encheram depressa,
e Orlando ficou tão furioso que começou a salivar. Era uma
gosma raivosa, o tipo de reação que só o ódio genuíno
proporciona. — Você matou meu filho, sim! Eles me
contaram tudo, seus capangas. Eles estão mortos, deixei
ordens para isso!
— Precisa acreditar em mim, Torque. Eu não seria capaz
de fazer mal a uma criança. E nem você. Agora, solte a
minha filha — disse, tentando uma calma, um autocontrole
impossível.
Torque deu outro pequeno passo para o lado, não um
inteiro, mas somente deslizou com a perna direita. O espaço
entre as pernas diminuiu e também a pressão que ele fazia
sobre Patrícia. Era agora, a ocasião que perfeita esperava,
mas Patrícia teria que fazer a sua parte. Precisaria captar as
intenções de Miriam com um único olhar.
Sem tempo para planos heroicos, Miriam olhou para a
virilha de Orlando. Patrícia fechou os punhos e sacudiu o
que pôde da cabeça. Estava com medo, estava aterrorizada.
Temia que um erro a matasse de vez. Miriam apertou os
olhos, da mesma maneira que fazia quando as notas da
escola despencavam, era hora de reagir, sem desculpas.
Lançou os olhos para ela e de novo e para a parte baixa de
Orlando. Ele não teve tempo de notar. Patrícia baixou as
mãos a agarrou com tudo. Apertou até sentir algo
esmagado entre os dedos.
— Auughhh — gemeu Orlando. Por uns dois segundos,
foi capaz de mantê-la refém. Depois, caiu de joelhos.
— Corre! Corre e encontre o Zétia! Ele está vindo pra cá!
— Não!
— Faça o que eu estou mandando!
Orlando estava no chão, mas não ficaria assim por
muito tempo. Miriam continuou com ele na mira, ansiosa
por espalhar seu cérebro melequento por todo o chão
ressecado da usina.
— Acaba comigo, vagabunda. Faz comigo o que fez com
meu filho.
Miriam chegou bem perto. Colocou a arma contra a
testa oleosa de Orlando. Ele a encarou sem medo, o
semblante rude amaldiçoando cada passo que ela ainda
trilharia.
— Faça o que tem que fazer ou eu mato sua filha.
Miriam respirou fundo. Suas mãos tremeram e
pressionaram meia volta do gatilho. Seu suor estava por
todo rosto.
Ela quer me matar. Por que não faz isso?, pensou
Orlando.
— Vamos pro carro, você vai ficar trancado até o
delegado chegar.
Era mais que óbvio. Mãe nenhuma arrisca a própria cria.
— Você não tem balas. Você não tem nada nessa porra
de arma, não é, Miriam? — Levantou-se debilmente. Miriam
se afastou.
— Eu não quero fazer isso! Não me obrigue!
— Faça, Excelência. Por que não faz o que tem que
fazer?
Mais um passo para trás, a arma empunhada sem
convicção alguma. Um bastão com pregos teria mais
utilidade que aquela porcaria. E ainda era pesada,
francamente? Miriam não teria forças para usá-la em uma
coronhada. Olhos nos olhos, narizes arfando cada átomo de
oxigênio do ar, suores exalando o mau cheiro misto de raiva
e carne queimada.
Os olhos se desviaram em seguida.
A fogueira cresceu alta mais uma vez, depois, um trovão
estupendo que acabou sequestrando definitivamente a
atenção dos dois. Havia alguém em frente ao fogo. Ele batia
palmas e sorria.
— Os dois podem se matar na pancada, mas eu tenho
uma ideia melhor.
CAPÍTULO ÚLTIMO — DESCENDÊNCIA
 
Torque o reconhecia e também Miriam, mas aquele
rapaz não era, de modo algum, o que ambos conheceram
um dia. Ele tinha olhos negros, estava arqueado, e uma
estranha aura dançava ao seu redor, desaparecendo
quando os olhos conseguiam o foco. Jota estava de costas
para o fogo, bem perto, e ninguém vivo estaria tão à
vontade tostando as costas. De repente pareceu uma boa
ideia que os políticos mais influentes da cidade se unissem
para enfrentar o que viam, mas não aconteceria com Miriam
e Orlando.
— Filho, eu não sei o que aconteceu entre você e os
meus homens, mas temos um assunto aqui que não é do
seu interesse.
Jota (ou o que sobrou dele) enfiou a mão no fogo e
apanhou algo que ali derretia. Fez força, a coisa estalou.
Arrancou do fogo o que parecia um pedaço de madeira.
— Tá falando desse aqui? — perguntou, erguendo um
braço derretido, restos de carne e roupas diluídos.
— Jesus! — disse Miriam. Acabou abaixando a arma que
não enganava mais ninguém. — Você perdeu o juízo, filho?
O braço morto voltou ao fogo, e Jota caminhou até eles.
Estava curado. Não havia marcas em seu rosto, seus
joelhos estavam adolescentes e fortes, e, tirando os olhos,
ele parecia até bonito — na opinião de Miriam, porque
Torque só queria mandá-lo para o inferno.
— Não chega perto! — Torque gritou.
— Eu não sou seu inimigo, vereador. Nunca fui. Tudo o
que fiz foi a pedido dela.
— Não escute! É mentira! — Miriam tentou.
— Cala a boca, vadia!
— Assim é melhor, vereador. Ela só diz mentiras.
Ateamos fogo no seu carro e depois no seu filho. Deve ter
percebido que eu tenho informantes do outro lado. Posso
dizer qual foi o último pensamento do seu filho, se quiser
saber.
Os olhos de Orlando vidraram em Jota. Claro que ele
queria saber. O que resta ao pai de um moribundo, senão
suas últimas palavras? Jota abriu a boca e por seus lábios
vegetou a voz infantil de Murilo.
— Queria meu pai aqui. Meu pai nunca está por perto
quando preciso dele.
Depois de um soluço, Orlando avançou para a prefeita.
— Vai precisar disso, vereador — disse Jota, e atirou a
ele um canivete. Um que costumava ficar guardado na
última gaveta do guarda-roupa de Murilo. Fora um presente
de Orlando. Aos dez, Murilo tinha medo de voltar sozinho da
aula de inglês. Orlando revolveu o assunto dando a arma a
ele, dissera que um homem precisa aprender a se defender
desde cedo.
Orlando tomou a lâmina e sorriu, adoecido.
— Essa é para você, Guerra — disse Jota.
Miriam ficou com um punhal. Tão velho quanto afiado.
Reconheceu a peça. Pertencera ao seu avô. Pelo que se
lembrava, tinha sido enterrado com ele.
— Isso é mentira, Torque! Não seja burro! Podemos
enfrentá-lo juntos!
— Farei isso quando finalizar você — disse. Estocou a
lâmina com tudo.
Atingiu o braço esquerdo de Miriam, o direito continuou
segurando o punhal. Um pouco de sangue emergiu do
ferimento, manchando o terninho salmão de vermelho.
Miriam assumiu que morreria se não fosse capaz de se
defender.
Jota a incentivava; começou a fingir a voz de Álvarez
Guerra:
— Foi ele, mana. Foi ele quem acabou comigo. Ele
também matou seu marido. Everton morreu assim que saiu
da cidade, e adivinha do quê? Acidente de carro. Mata logo
esse porco!
— Não sou eu quem está dizendo — disse Jota. Sorriu
em seguida.
Miriam e Torque estavam incendiando, tão ou mais
quentes que a fogueira. Não conseguiam conter a fúria. A
voz do estranho trilhava o ar até seus ouvidos, corrompendo
bom senso e traços finos de discernimento. Não só a voz.
Eles experimentavam uma raiva contida por anos, raiva que
era incrementada pela maldade inerente àquele ser. Quem
era ele? Não importava mais, nada disso importava. A única
razão para ainda estarem vivos era sangrarem um ao outro.
Como porcos, cordeiros imolados e virgens do oriente
extremo.
Torque estocou pela segunda vez e dessa, Miram
desviou. O corpo de Orlando projetou-se para frente, e ela o
apunhalou nos ombros. Orlando vergou-se e apanhou um
pouco de terra do chão. Atirou contra Miriam e não errou os
olhos. A prefeita ergueu o punhal e fatiou o ar, estava cega,
seu corpo à disposição de Orlando. Ele se atirou contra ela,
mas então ouviu um estampido, sentiu algo quente
penetrando sua nuca. Levou as mãos até o local e as
observou ensanguentadas. O outro braço perdeu o tônus,
derrubando o canivete no chão. Seus pensamentos iam e
vinham, os olhos enxergavam escuridão. Tossiu e expeliu
seu último gole de combustível. Orlando caiu e a figura de
Zétia surgiu atrás dele.
— Não se mexe, assombração — disse para Jota em
seguida.
Miriam podia enxergar de novo e seu primeiro impulso
foi terminar o que Zétia começou. Antes ela perguntou:
— Ele está morto?
— Mãe! — Ouviu, antes da resposta. Ela Patrícia. Estava
ao lado da maluca da Madame Safira. Parecia ferida e
transtornada, mas o importante é que estava viva. Miriam
correu até ela esquecendo punhal e fobias pelo chão.
Patrícia fez o mesmo, apesar da intenção de Safira em
contê-la. Miriam avançou dois passos e gritou, tateando a
canela desnuda com as duas mãos.
— Fica aí! Não venha até aqui! — gritou. Olhou para o
chão. Estava cercada de cascavéis. Pelos menos uma dúzia
delas.
— Mãe!
Safira correu e dessa vez apanhou Patrícia. Ela se
debateu, mas a preservação de sua vida falou mais alto.
Aprendeu no cativeiro que vida é algo precioso. Também
achava que era tarde demais para sua mãe. Outra picada
acertou-a mais alto, perto da virilha de Miriam. Outra na
parte de trás, na coxa. De repente eram dezenas, e ela
presa em um círculo de morte.
— Faz isso parar! — Zétia disse.
Jota espalmou as mãos e vergou os lábios para baixo.
Seus olhos avermelharam e voltaram ao horror negro.
Zétia estava pronto para atirar nele, então presenciou o
impossível.
Quando Miriam pereceu, o corpo de Jota começou a se
expandir, a ficar maior, e coisas começaram a deixar seu
corpo. No princípio, silhuetas escuras, espectros
esfumaçados. Mas tão logo se afastaram dele, mostraram
suas identidades. Um, dois, três deles... Ao fim, Zétia tinha
cinco alvos para acertar. Jota era apenas um deles e
provavelmente um inocente. As cascavéis que acabaram
com Miriam recuaram, foram sumindo na escuridão da
noite. Patrícia correu até sua mãe e se atirou sobre ela,
dessa vez Safira não interferiu. Tinha assuntos maiores a
tratar.
— Basta! — ela gritou. — De quanto sangue ainda
precisa?
Um dos espectros, um negro de terno caro com um
sorriso franco de Denzel Washington, perguntou:
— O que faz aqui, feiticeira? O que acontece nessas
terras não é do seu interesse.
Zétia alternava a arma. Deus! Em qual deles? E qual
seria a consequência de fazer isso? Ele era um policial
honesto, mas não era burro. Zétia não queria morrer, ser
amaldiçoado ou acabar todo picado como a prefeita e o
homem morto que viu de relance às portas do Galpão.
— Qual deles? — perguntou.
Safira espalmou a mão direita pedindo que lhe desse
algum tempo. Na esquerda, ela trazia um livro. Tão velho
quando a maldição que enfrentava. Um vento novo tentava
arrancar o volume de suas mãos.
— Não vai funcionar, feiticeira! Eles são meus! — Jota
gritou. Rugiu como um leão em seguida. — Vocês
amaldiçoaram a si mesmos e isso me dá o direito.
Zétia via um panteão de rostos desconhecidos. Um
negro elegante, um homem claro, alto e de cabelos pelos
ombros, um garotão de jaqueta de couro e cabelos
engomados. O andarilho que assustou Patrícia também
estava ali, ao lado de uma figura esboçada, parecida com
uma tevê fora de sintonia. Jota estava atrás deles,
alternando entre sua própria aparência e a de um homem
grisalho, com olhos frios, azuis e desalmados.
— Me entrega isso, homem da lei — disse o homem
negro. Sorriu de modo complacente e terno. — Não vai
querer que mais alguém se machuque.
— Não chega perto! — Zétia gritou. Arrumou o dedo no
gatilho.
— Ainda não! — disse Madame Safira. O vento parecia
se concentrar nela e soprava tão forte que a velha tinha
dificuldade de continuar de pé. Seus cabelos finos
chicoteavam o rosto, o vestido colava no pouco de carne
que a idade avançada não pôde consumir. Safira resistia e
com apenas uma das mãos segurava o livro.
Com a tensão se tornando quase sólida, ambos se
distraíram de Patrícia. Foi Zétia quem notou que ela não
estava mais ao lado do cadáver de Miriam. Ela conseguiu
fugir, pensou. Como se um Guerra aceitasse ser derrotado...
O delegado voltou para o covil de fantasmas e notou que
eles estavam mais fortes. Seus contornos, suas expressões,
não havia nada de borrado, aparentemente, estavam tão
vivos quanto ele ou Safira.
O que ela está fazendo?
Patrícia vinha se esgueirando por trás deles. Estava com
uma determinação horrenda no rosto, o apetite pelo sangue
enchendo a boca de saliva. Ela queria vingança, estava
disposta a perder a vida só para sangrar um daqueles
malditos. Ninguém poderia culpá-la (ainda que fosse idiotice
usar um punhal contra fantasmas). Mas Patrícia Guerra,
como seus antecessores, era mais esperta que a maioria
dos enoqueanos, ela sabia que só precisava acertar um
deles. Ela correu e enfiou o punhal nas costas de Jota. Foi
como esfaquear todos eles. Um a um, os demônios, os
fantasmas, foram girando os pescoços e encontrando seus
corpos feridos. Sem piedade, ela torceu a lâmina dentro do
corpo de Jota, projetando-a em todas as direções. Alguma
coisa ela acertaria, pulmões, fígado, rins, baço.
Chegou bem perto do corpo de Jota, arqueado pela dor,
e disse entredentes:
— Hora de voltar para o inferno, maldito!
Sem proferir uma palavra, ele respirou fundo, girou a
mão pelas costas e a agarrou. O punhal amoleceu sob os
dedos de Patrícia e antes que a lâmina mergulhasse na
terra, estava nas mãos Jota.
— Isso é o que vocês são, menina. Gente que acerta os
outros pelas costas. Estou aqui para cuidar disso.
— Solta ela! — Zétia gritou e disparou. A bala saiu do
cano, explodiu como era talhada a fazer, mas antes de
acertar o alvo, caiu vagarosamente, como se tivesse sido
disparada dentro d’água.
Mais perto da fogueira, os fantasmas, malditos e
amaldiçoados, se voltaram para Jota e Patrícia. Formavam
algum tipo de escudo contra as balas.
Patrícia caiu de joelhos, Jota torcendo seu pulso,
esperando o estalo da quebradura dos ossos e um pedido
de perdão. Ele iria matá-los, moveu céus e infernos para
isso, mas antes... Por que não aproveitar um pouco? A dor
não merece ser desperdiçada.
— Vai quebrar o meu braço! — ela gritou.
Jota riu, os outros fizeram o mesmo, mas foi o homem
grisalho de olhar mais tenebroso, quem disse ao se
desdobrar de Jota: — Claro que vai.
Em seguida Jota aumentou a torção e conseguiu o que
queria.
Clarckp.
— DEUS! — Patrícia gritou. Esmoreceu com a dor e usou
sua mão esquerda para manter a pele e os músculos
sustentando o pulso que parecia um pedaço de lençol
torcido.
Os risos terminaram. Jota entregou o punhal ao homem
grisalho que estava fora de seu corpo.
— Não faça isso, Coronel! Não se condene ao inferno! —
Safira disse. Mostrou a figura de um pentagrama no livro
que segurava.
— Já estou no inferno, feiticeira. Chamo o lugar de lar.
Aproximou-se lentamente do pescoço delicado de
Patrícia. Ela era uma das amaldiçoadas. Os Guerra do
passado foram os que armaram tudo para arruiná-lo. Eles,
os Torque, os Sultão, os Minotto (que cuidaram para que
nada saísse da cidadezinha além do terrível surto de um
homem louco), os Bosco que cercaram e ameaçaram
(muitos, eles mataram) quem tentou dizer a verdade. Uma
prostituta que acabou gerando uma costureira medíocre e
seu filho bastardo. E claro, o clero. A mão torta de Deus
representada pelos homens-de-saia e por imbecis xucros
como a família Sultão remanescente daqueles dias. E havia
tantos outros... Todos pagaram seus pecados, exceto aquela
pequena verruga adolescente dos Guerra.
Patrícia não chorava, apesar da dor. Também não chorou
quando foi agarrada pelos cabelos para que seu pescoço
ficasse à mostra. Era valente, bem mais valente que seus
antecessores.
Mas quando a lâmina começaria seu serviço, alguém
que não tinha nada a ver com os erros da cidade apareceu,
voando para cima do Coronel.
Rockfeller era enorme e, de algum modo, ele pôde tocar
a pele do fantasma. Desse modo, Safira estava cuidando,
recitando palavras que só seriam compreendidas pelos que
habitam as moradias do pós-morte. Ela estava
materializando todos eles, devolvendo a carne que não
souberam ou puderam usar quando estavam em seu
momento no mundo. Alguns deles estavam voltados para
ela, projetando pensamentos que torciam suas vontades e
seus ossos. Mas Safira era forte, como todas as mulheres
antes dela.
— Animal estúpido! — gritou Constâncio.
Dominado pelo ódio, pela vontade de atacar o
responsável pela morte de Roger e Ricardo, Rockfeller
mastigava os tecidos meio podres, meio revitalizados do
Coronel.
— Deixem-nos, espíritos! — disse Safira. Seus olhos
ficaram brancos, e o vento pareceu nascer dela em vez de
atingi-la. — Deixem-nos e voltem para suas terras. Esse não
é mais o seu mundo! O mal foi expiado, toda a cidade
dorme ensopada em sangue. Precisam entender que o
verdadeiro mal é esse homem. Foi ele quem os aprisionou!
Entre eles, uma figura continuava inexpressiva. O
homem de cabelos pelos ombros que conseguia misturar
demônios e anjos em cada sorriso. Ele não sorriu dessa vez,
ele chutou Rockfeller na barriga, chutou-o duas vezes com
suas botas. O cão grunhiu sua dor e olhou para Zétia,
partindo seu coração.
— Sai daí, garoto, eles estão na mira!
Não foi o que Rockfeller fez. Era treinado para proteger
humanos, ensinado a perder sua vida para que eles
seguissem em frente. Em vez de se render aos ossos
quebrados, Rock apertou a mordida. O homem de cabelos
nos ombros o apanhou pelo pescoço. Com a força de seis
homens o atirou contra o carro de Orlando Torque.
Rockfeller bateu na lataria, rasgou a pele da barriga, soltou
um suspiro mocho e caiu. Tremeu as duas patas traseiras
em um ato convulsivo e ficou onde estava.
Fez sua parte. Patrícia estava livre e ao lado do
delegado. Safira também se aproveitou e se aproximou
deles. Estava em transe, parecia bem mais velha agora,
como se toda energia projetada no ritual consumisse parte
do seu ser.
— Não vai conseguir! Eles são meus, eu os invoquei! —
gritou o Coronel.
— Você não fez isso, Constâncio. Você os escravizou
como fez com essa cidade toda — disse. Do ritual
continuou: — Eu vos liberto, espíritos sofridos. Não precisam
mais servir a esse homem. Uma injustiça não lava a outra,
estão livres para realizarem suas vontades.
Depois de um rugido, Coronel Constâncio mostrou o
rosto de sua própria danação. Estava queimado vivo, da
mesma forma que morreu sob os olhares satisfeitos dos
Guerra, dos Torque e dos Sultão. A pele do braço
despregando junto com os tecidos do terno podre. Cabelos
encolhendo em volta do crânio. Metade do rosto sem carne.
— O que fez, feiticeira!?
— Existe muito sangue na terra, é hora de terminar essa
atrocidade.
— Posso acabar com ele? — Zétia perguntou.
Sem mover o rosto, sem derrubar os olhos brancos,
Safira respondeu:
— Não, eles precisam fazer isso. O rapaz e a menina, os
últimos descendentes.
— Jota! Precisa acordar! — Zétia gritou. Não adiantou
muito. Ele estava tomado, paralisado, Jota era a bateria de
sangue que animava todos eles. O último descendente dos
Trindade.
Quando Safira terminou suas palavras, Jota saiu do
torpor a que estava confinado. Não conseguia respirar
direito, no entanto, estava consciente de tudo o que estava
acontecendo naquele terreno maldito. Acima disso, ele via
através dos olhos do Coronel, não só o presente, mas
também o passado. Era tenebroso. Sentiu a fúria que
animou Constâncio a escravizar crianças, adultos e
espíritos. Ele era um malnascido, como diziam em seu
tempo. Havia matado os próprios pais para absorver sua
fortuna. O resto pilhou, tomou, usurpou e estuprou. Depois
dos escravos, Constâncio Trindade contratou serviços dos
homens livres, prometeu-lhes a bonança que nunca lhes
fora dada.
— Chega. Não vou participar da sua doença — disse
Jota, limpando o pó dos joelhos.
O tom calmo de sua voz surpreendeu aos vivos e aos
mortos. Um pouco distante Safira fechou o livro, seus olhos
voltaram a descer das órbitas. Uma gota de chuva caiu
sobre ela, animando um pouco de esperança. O céu rugiu
de novo.
— O que estão fazendo!? Vocês devem me obedecer!
Isso é o que foi prometido!
O homem negro chegou mais perto e parou ao lado de
Jota, de frente para Constâncio.
— Não cumpriu sua parte, Coronel. Matá-los não vai nos
libertar, a feiticeira diz a verdade.
Constâncio, a figura consumida de Constâncio,
caminhou de costas até encontrar a fogueira. Iria se atirar
nela, mas quando girou o corpo foi abraçado pelo andarilho.
Sua barba imunda deixou sujeira sobre ele.
— Me solte, infeliz! Você não tem poder sobre mim!
O homem riu e continuou seu abraço.
— De joelhos — disse outro. O cara de jaqueta que
parecia moderno demais perto dos outros.
— Olhem só para vocês, traindo seus próprios espíritos.
Não deviam usar essas roupas.
— Espíritos são livres — ressoou a voz do único entre
eles que não tinha um rosto definido. Pobre homem. Perdera
a vida aos poucos, com fome, sede e frio, amarrado e
ouvindo rádio e estática dentro da antiga senzala
abandonada da fazenda. Ele aproximou a mão fluida da
boca do Coronel e foi entrando por ela. Pulso, braço,
antebraço, aos poucos penetrou seu corpo todo em
Constâncio, minando as energias que o Coronel havia
aprisionado dentro de si. Constâncio tossiu, pedaços de
carne queimada pularam de seu rosto. Os demais espíritos
também se aproximaram.
Safira disse de onde estava: — Patrícia, só você pode
fazer isso. Você e o rapaz, as sementes boas que o mal
deixou.
Patrícia não revogou. Andou trôpega até eles e ganhou
de volta, do homem de cabelos pelos ombros, seu punhal. O
cabo estava quente, chegava a machucar a mão, mas
Patrícia o agarrou mesmo assim. Jota a olhou nos olhos e
envolveu suas mãos nas dela, sacudiu vigorosamente,
dando a coragem que faltava a ambos. Sentia dor em toda
a extensão da pele, mas ainda havia vida suficiente para
um ponto final.
— Não vão conseguir! — gorgolejou Constâncio
Trindade. A voz elétrica e entrecortada. O hálito cheirando a
decomposição.
Juntos, Patrícia e Jota mergulharam o metal enferrujado
em seu peito, do lado esquerdo, onde parecia improvável
ter batido um coração um dia. Trindade perdeu o ar e, logo
depois, explodiu um grito longo e lamentoso. O som feriu
aos ouvidos, feriu a alma de quem resistia em estar perto
da fogueira. Jota retirou o aço da carne e deixou o punhal
com Patrícia.
Os espíritos, os escravizados que finalmente ganhariam
sua liberdade, se vergaram e apanharam o corpo de
Trindade antes que desabasse no solo seco. Dois deles o
tomaram pelos braços. Jota o tomou pelas pernas.
Começaram a caminhar para o fogo.
Pouco antes de encontrarem as chamas, o andarilho
imundo tocou os ombros de Jota.
— Eu cuido disso. Ele é meu pai.
Jota assentiu e deixou que seu antepassado, outro que
teve a coragem de se opor ao próprio pai facínora, o levasse
ao seu descanso ou danação final. O andarilho cuidou das
pernas e, como prometido, seguiu com o cortejo. Como
aquele monstro pôde fazer isso com seu próprio filho? Se o
andarilho estava lá, era tão escravo quanto os outros, tão
assassinado quanto os outros. Patrícia tomou o braço direito
de Jota e forçou-o a recuar.
As entidades caminharam e foram desaparecendo no
fogo que lambia as nuvens. Uma a uma, fingindo que as
chamas as acariciavam como algodão. Perdendo roupas e
contornos, perdendo o que ainda restava de vida e de
morte.
Perto da porta do galpão, Safira caiu de joelhos e
agarrou-se a terra. Esfregou o pó entre suas mãos até que a
maioria dos grãos caísse de volta. Fez isso algumas vezes.
Ela chorava um pouco, em parte consumida por aquele
homem que voltou dos mortos. Zétia tocou seus ombros.
Ela olhou para seu semblante preocupado e disse:
— Está terminado.
Raios riscaram o céu. O firmamento rugiu e derramou
seu perdão.
Depois de meses, chovia.
EPÍLOGO
Semanas depois.
 
Choveu por muito tempo em Nova Enoque, e só depois
que a terra ficou seca de novo, homens e mulheres
puderam enterrar os seus. Foi uma semana dura, havia
mais mortos que vivos. Na noite maldita, enquanto Zétia e
Safira tratavam de cuidar do Coronel Trindade, a cidade se
consumiu em caos. Assassinatos, justiças tortas, torturas;
todas as atrocidades que homens cometem quando Deus
não está olhando. Na mesma noite, logo que voltaram
(acompanhados por Jota e Patrícia) para a cidade,
encontraram a igreja em chamas. Mesmo com a chuva
inclemente, metade da catedral não resistiu ao seu fim. O
posto de gasolina da cidade também incendiou, a UTI do
hospital ficou sem energia matando cinco pessoas (entre
eles Mariana Sultão, única irmã de Galileu), e o cinema
perdeu o teto, matando mais dois coitados que se
refugiaram lá dentro (ninguém foi capaz de reconhecer os
corpos).
Delegado Zétia continuou na cidade, enterrado em
inquéritos que o trouxeram de volta ao mundo real. O
mesmo não aconteceu com Safira. De algum modo, tudo
aquilo sugou o que ela tinha de vida. Junto com a chuva, ela
também se foi.
Agora tudo era um grande canteiro de obras. Muita
gente se aproveitou disso, mas o mais bem sucedido foi
mesmo Jota, agora, Jota Trindade. Ele agremiou quem
estava disponível e montou uma pequena empresa,
precisou chamar gente de fora e, com isso, fez a cidade que
seu antepassado tentou destruir, renascer.
Estava em horário de almoço, apoiado em seu Maverick
e comendo um PF que comprou na rua. Não deveria estar
fazendo aquilo, se Jota tivesse juízo seguiria a dieta rígida
do hospital — depois de tomar cem pontos pelo corpo e
sobreviver milagrosamente. Ninguém por lá soube
responder como ele estava se recuperando tão bem, os
pontos ainda estavam segurando tudo, por dentro e por
fora, costurando o corpo e, em certo ponto, a alma.
Enfiou um pedaço de carne assada na boca e notou um
Eco Sport aparecendo na esquina. Continuou mastigando,
sem se importar com o esculacho que levaria. O veículo
estacionou do outro lado da rua, dele desceram seus únicos
amigos vivos na cidade.
— Não devia se encher com porcarias — Patrícia disse.
— Pois é... E ninguém me contou que a idade para dirigir
baixou para quinze anos.
— Dezessete!
— Oh, claro. Esqueci. Alguns dias de dezessete fazem
uma enorme diferença.
Os dois riram, e Jota tratou de separar um pedaço de
carne no canto do prato de alumínio.
— Rock! Vem aqui, rapaz!
Rockfeller trotou como um bezerro até eles. Mijou na
roda do Maverick para dizer que gostava mais de Patrícia do
que dele e parou com a boca escancarada e cheia de cuspe
pendendo pelas beiradas.
— Tá se achando com esse abajur na cabeça.
— ÁUR!
— Não implica com ele, Jota. Tadinho do Rock, ele quase
morreu, esqueceu?
— Não, Miss-Frankstein. É só me olhar no espelho que
me lembro de tudo. Ou olhar para você.
— Seu bobo.
Jota atirou um pedaço de carne, e Rock o apanhou no ar.
O cão não pensaria em derrubar aquilo. Com sua cabeça de
abajur, seria o mesmo que perder a carne e chafurdar o
chão como um porco. Qual é? Ele era um cão ferido, mas
ainda tinha seu orgulho.
— Tá vindo de onde? — Jota perguntou.
— Cemitério — respondeu Patrícia. — A maioria das
pessoas que conheço mudou para lá — completou com um
fio de voz.
Um trovão rugiu lá em cima. Um dos homens pendurado
nos andaimes na igreja quase despencou de uns seis
metros. Jota deixou a comida sobre o capô do carro e gritou:
— Não tem mais lugar no cemitério, chapa! É bom
tomar cuidado aí! — Meneou a cabeça, lamentando a
estupidez alheia. Voltou para Patrícia. Ela estava bem
contando tudo o que se passou, mas por dentro era um
mosaico de vidro. Às vezes, nas muitas que se encontraram
para discutir e tentar entender o que aconteceu (sem
conseguir muita coisa, principalmente depois da morte de
Safira), Patrícia chorou. Tinha um jeito forte de fazer isso,
baixando a cabeça e permitindo poucas lágrimas silenciosas
pelo rosto.
Antes de apanhar seu almoço de volta, Jota avistou
Carlo Euripes, o dedetizador da cidade. Vinha depressa e
queimando um cigarro irritado. Ele ia passando direto, e Jota
teve que chegar bem perto para ser notado.
— Oh, Jotinha. Nem tinha visto você.
— A cidade anda maluca, eu não culpo o senhor —
sorriu.
— É lamentável, meu filho. Lamentável.
Podia ser lamentável, mas continuar se lamentando só
piorava as coisas. Assim, Jota perguntou: — Como vão os
negócios?
Carlo tirou o boné verde e marrom, feio como o diabo
(presente da casa agrícola que ainda estava de portas
fechadas), e coçou os cabelos ralos e sempre meio
envenenados.
— Tá uma bosta, Jotinha. Parece que nem os cupins
querem ficar nessa cidade. Não vejo uma debandada de
pragas dessas desde que era menino. Aconteceu há muito
tempo, nas terras da usina.
Patrícia fez uma cara que amedrontou os dois homens.
O velho percebeu e recolocou o boné. Atirou o cigarro longe
e cuspiu saliva amarga para o lado.
— Desculpa a indelicadeza, moça. Depois de tanto
tempo mexendo com pragas, a gente fica meio insensível.
— É o seu trabalho — disse Jota.
— Claro que é. Uns cuidam de cachorro e gato, eu cuido
do que ninguém gosta.
Cumprimentou Patrícia com a aba do boné e saiu
andando, em cinco passos acendeu outro cigarro. Pobre
homem, não era justo o que acontecia com ele. Jota talvez
lhe oferecesse um emprego, tinha uma longa fila de vagas
abertas que não seriam preenchidas tão cedo.
Lá em cima, o céu ronronou de novo, um ronco longo e
abafado.
— Parece que vai chover de novo — Patrícia disse.
Jota olhou para o céu, procurando as respostas que
nunca teria.
— Vai sim. Sempre que a terra precisar, vai chover de
novo.
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