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Agradecimentos
Para Jess
Parte Um
1
Antes de ir atrás de Ava, trato de enfiar o convite no bolso. Ela disse que
esperaria por mim do lado de fora do Centro de Artes Narrativas e se
comunicaria comigo em pensamento. “Porque eu é que não vou entrar aí,
Smackie. Foi mal. Você sabe por quê.” Assenti com firmeza. “Sei, sim.”
Mas na verdade eu não sei muito bem, tirando o fato de ela ser totalmente
contra a Warren e achar que esta universidade está cheia de babacas
arrogantes, além de acreditar que está acabando com minha
alma/criatividade. E pode afirmar isso com propriedade, pois sofreu a
mesma coisa na escola de artes ao lado, quase tão famosa e renomada
quanto a Warren. Mas ela não permitiu que destruíssem sua alma.
Abandonou o curso antes de isso acontecer. “Foda-se essa faculdade.
Fodam-se todos eles.” Agora ela trabalha no porão do laboratório de
ciências naturais, lá no fim da colina, catalogando insetos mortos. Cada
um deles tem sua própria gavetinha de vidro. Até que é legal. E
infinitamente melhor para o bem-estar espiritual e criativo de Ava do que
conviver com os estudantes de Arte, que se fingem de pobres com sua
elegância perturbada.
A única coisa que Ava gosta de fazer na Warren é revirar as latas de lixo
atrás dos dormitórios e atrapalhar as visitas guiadas pelo campus. De vez
em quando, chegamos até a nos embebedar em um banco ao lado da
infame estátua da lebre voadora e ficamos de butuca para espiar os futuros
alunos e seus pais. As mães sempre examinam o campus como
compradoras interessadas, as mãos repletas de joias acariciando as costas
de suas crias como se dissessem: “Aquilo ali pode ser seu um dia, tudo isso
pode ser seu”. Os futuros alunos olham com avidez ou pertencimento para
o gramado do campus, orvalhado como sua própria pele, talvez fantasiando
com os dormitórios luxuosos ou com as orgias de que tanto ouviram falar e
que, segundo Ava, só são frequentadas por gente muito sem graça que
ninguém gostaria de ver pelada. Não fantasiam, tenho certeza, com a
possibilidade muito real de serem decapitados a caminho de casa enquanto
voltam de uma noitada em um bar de estudantes. Ou então de serem
espancados com pés de cabra pelos bandidos que perambulam pelos
arredores do campus. Porque a violência deste lugar, inevitável no coração
frágil de uma cidade assolada pela pobreza, nunca é mencionada durante o
passeio guiado, que é sempre conduzido por um aluno com roupas
esportivas de grife e talento para disparar curiosidades aleatórias sobre
estátuas e lustres enquanto caminha de costas. Daí a vontade de Ava de se
intrometer.
“Warren foi fundada em 1775 e bem ali podemos ver…”
“Blá-blá-blá”, completa Ava, sentada ao meu lado no banco. “Ele só se
esqueceu de contar que aqui neste campus tem muita gente doidinha para
arrancar a cabeça de vocês”, grita ela para as mães, que a encaram,
horrorizadas. “É isso mesmo que vocês ouviram! Com um machado! Deste
jeitinho.” E então se levanta e se aproxima deles, brandindo um machado
invisível até que uma, duas ou todas elas comecem a gritar.
Por mais perplexa que eu esteja, sempre rio tanto que chego a chorar.
Esse banco se tornou nosso ponto de encontro não oficial. É onde Ava
deveria estar sentada agora mesmo, olhando feio para os alunos que
passam enquanto rabisca o que ela chama de “a verdade monstruosa” em
seu bloquinho, como sempre faz.
Quando vejo o banco vazio, entro em pânico. Todos os dias que passei
sozinha no ano passado voltam à tona e minha visão começa a ficar turva.
E então alguém agarra meu braço direito e sou envolvida por um aroma
familiar. Duas mãos enluvadas cobrem meus olhos.
“Bu!”, sussurra ela no meu ouvido.
Mesmo sabendo quem é, finjo surpresa. Pulo como se tivesse levado
um susto.
Ela começa a gargalhar, depois bate palmas.
“Nossa, é tão fácil enganar você.”
“Eu sei. Onde você estava?”, pergunto.
“Tinha dois otários discutindo Virginia Woolf com uma seriedade tão
orquestrada que precisei sair de perto. Aliás, por que você demorou tanto?
Passou uns cinco anos lá dentro.”
Lembro-me, então, do convite escondido no bolso, do bico do cisne
que me cutuca a barriga enquanto ela fala comigo.
“Eu conversei um pouquinho com o Jonah.”
“Ah, o poeta sonhador que quer comer você?”
“Ele não quer me comer!”
“Quer tanto que chega a ser ridículo.”
“Ele disse que eu era sombria, distorcida e violenta.”
“Que fofo. Então ele está apaixonado.”
“Será que podemos mudar de assunto?”
Ava olha para mim.
“Aconteceu alguma coisa, né? Pode ir me contando.”
“Não foi nada. É que… Acabei dando de cara com o… Bom, você
sabe.”
Ela assente. Claro que sabe.
“E você falou alguma coisa?”
“Eu não ia conseguir… confrontá-lo, sabe? Depois de tudo que…”
E aí perco o fio da meada porque ela está me encarando fixamente,
mas não sei se está decepcionada comigo ou irritada com ele.
“Já pensou em atear fogo no escritório dele? Pois deveria…”, diz ela por
fim, e então sorri. “Por um momento achei que você tinha sido sequestrada
por aquelas bonobos.”
“Bunnies”, corrijo, e sinto o rosto corar.
Penso nas carinhas sorridentes no convite. Nos coraçõezinhos
desenhados à mão.
“Tanto faz. Mas fiquei preocupada com você.”
Ela estremece ao ver as árvores frondosas, como se não fossem árvores,
e sim algo inteiramente perverso, como se toda aquela luz amarelo-rosada
que sempre parece banhar o campus estivesse prestes a socá-la com seu
punho de riqueza. Ava observa tudo com repulsa — os prédios antigos, os
portões ornamentados, o gramado perfumado que se estende até se perder
de vista, repleto de esquilos e coelhos de olhinhos reluzentes, os alunos
andando por aí enquanto discutem Derrida e as plásticas que fizeram no
nariz, os cabelos beijados por uma luz de setembro tão dourada e perfeita,
que parece até que o sol só está ali para servi-los. Não consigo ficar
indiferente a toda essa beleza. No ano passado, tirei uma porção de fotos
do campus — clique, clique, clique com meu tijolão velho e quebrado —
em todas as estações, em diferentes horas do dia, sob todos os tipos de luz.
Mas nunca mais parei para admirá-las, nunca as mostrei para ninguém.
Um banco entre dois salgueiros. Um campanário de duzentos anos. Uma
lareira gigantesca como a de Cidadão Kane. Tirei uma selfie lá. E também
uma foto minha e de Ava diante da lareira, os rostos colados, sem sorrir,
porque preferimos assim. Seu braço, envolto em renda arrastão, ao redor
do meu corpo. E tenho uma foto só de Ava. Parada sozinha diante das
chamas de um jeito que a faz parecer uma bruxa na fogueira.
Agora, ela pousa a mão no meu rosto e esboça um sorriso.
“Será que podemos dar o fora daqui?”, pede. “Você sabe que só venho
por sua causa.”
Já faz tanto tempo que não vou do meu apartamento até a faculdade que
até esqueci o caminho. Eu me perco. Não há o menor sinal de Ava. O ar
está repleto dos crepitares do outono e dos murmúrios de gente louca. Este
lugar é tão lindo que é difícil acreditar que está cheio de pessoas malucas,
desesperadas e solitárias, que a violência corre solta quase todo dia.
Estupros, espancamentos, facadas e tiroteios são tão comuns quanto as
taças de vinho rosê nos cardápios dos bistrôs. Rumores de decapitações
arbitrárias circulam com cada vez mais frequência. Qualquer dia desses,
você pode avistar um homem de aparência respeitável do outro lado da
rua, caminhando sob o sol oblíquo do outono, e pensar que estou
equivocada sobre este lugar. Ora, não pode ser uma cidade cheia de
psicopatas violentos. Não tem nada de errado aqui. As pessoas até
caminham despreocupadas sob o sol outonal. É uma cidade cujo nome
devoto expressa gratidão e fé. E então a brisa sopra e o casaco do homem
se abre como as asas de um morcego. E, quando ele chega mais perto,
você percebe que está falando sozinho. E não para por aí, claro que não.
Na verdade, ele está discutindo com alguém invisível. O rosto vermelho.
As feições contorcidas de raiva. Todas as veias de seu pescoço latejam a
ponto de arrebentar. E é aí que você começa a reparar em todas as casas
abandonadas, as vitrines estilhaçadas nas lojas, os para-brisas quebrados,
uma bolsa vazia jogada na calçada. Você observa tudo isso e lembra, é
verdade, estou em Sombriópolis. Estou no Covil de Cthulhu.
Caminho na direção do que acredito ser a faculdade e me perco mais e
mais até que as fachadas decrépitas de lojas vazias enfim dão lugar a
barracas de suco e pet shops e tenho um vislumbre da bolha universitária.
As torres onde Ava e eu nos sentamos feito gárgulas. Os transeuntes que
até então pareciam figurantes de filme de zumbis de repente se
transformam nas estrelas de um filme francês da Nouvelle Vague.
O seminário acontece em um lugar que chamamos de Caverna, mas que
na verdade é apenas um auditório no subsolo do Centro de Artes
Narrativas. A sala não tem portas nem janelas à vista, muito menos
relógios. Apenas paredes escuras e úmidas que evocam o ventre materno.
Chego atrasada e peço desculpas baixinho. Nem sinal de Ava na
lanchonete, onde o único cliente era um sujeito de rosto vermelho e
ombros curvados que, sentado ao balcão, parecia gritar para o próprio
prato. As Bunnies, ao me verem entrar, sorriem como bibliotecárias e
depois desviam o olhar. Não parecem estar de ressaca. Nem um
pouquinho. Estão amontoadas como de costume nas carteiras do canto,
deixando os outros três lados livres para mim. Sinto o estômago afundar.
Mas o que eu esperava, afinal? Que elas me acolhessem da noite para o
dia?
Um medo gelado se espalha no meu peito. Meu coração palpita como
as asas de um beija-flor.
Lanço um olhar interrogativo para elas, mas as quatro estão
observando, através dos óculos de grife, nossa professora Ursula, a quem
apelidaram de MuiMui, porque ela se importa muuito, muuito conosco. Eu
a chamo de Fosco, em homenagem ao vilão do romance gótico A mulher de
branco. Nem sei por quê. Imagino que seja por causa de seu
comportamento taciturno, sua voz espessa como névoa, as mãos brancas e
compridas sempre gesticulando e seus olhos violeta sacádicos, o que
sugere que ela mantém donzelas aprisionadas no porão e fígados humanos
na geladeira; alguma coisa que me faz pensar que ela trata ratos como se
fossem bebês e assiste a óperas em um camarote, de onde aplaude
baixinho nas sombras. “Nossa, sim”, disse Ava quando a viu. “Exatamente.”
“Samantha”, Fosco me chama com sua voz estrondosa quando as portas
pesadas se fecham atrás de mim. “Que bom que conseguiu se juntar a
nós.”
Todas me observam caminhar em direção ao centro da sala, onde elas
se sentam como se estivessem em uma peça de teatro, formando o que
Fosco gosta de chamar de “círculo hermenêutico” ou um “espaço seguro”
onde podemos tomar a decisão corajosa de desnudar nossa alma por meio
da enigmática arte das palavras. Onde podemos descrever nossas
experiências e experimentos alquímicos. “Um lugar onde a obra realiza o
Corpo e o Corpo realiza a obra.” Seja lá o que isso signifique. Já faz um ano
que estou aqui na Warren e ainda não descobri. Esta faculdade é
conhecida por sua abordagem experimental da narrativa, daí a ausência de
janelas e relógios na Caverna. Porque não podemos ser, e não seremos,
escravos do continuum espaço-tempo, ou seja, da trama. E ainda assim, de
alguma forma, ela sabe que cheguei atrasada.
“Nós estávamos preocupadas”, continua Fosco, batendo no punho
como se houvesse um relógio ali.
Nunca sei se Fosco está usando o plural majestático ou se referindo a
ela mesma e às Bunnies.
“Preocupadas?”, repito.
“É, de que tivesse acontecido alguma coisa com você. Não foi,
meninas?”
Ela olha para as Bunnies em busca de confirmação, e elas assentem,
seus rostos orvalhados voltados para a professora como se cultuassem o
templo de uma deusa. Fosco foi nossa orientadora no seminário na última
primavera, e neste outono deveria ser o Leão, mas as Bunnies fizeram de
tudo para trazer MuiMui de volta. “É que ela nos entende melhor, sabe?
Além do mais, parece um ursinho muuito fofo! Muuito carinhoso!
MuiMui!”
“Sim, MuiMui”, elas concordam agora. “Preocupadas. Nossa. Muito
preocupadas.”
“Desculpem”, peço. “Só fiquei meio…”
“Perdida?”, completa Boneca Sinistra. Seus olhos de tigre não revelam
nada, mas os lábios em formato de coração se curvam em um leve sorriso.
“Cobri seus ombros trêmulos com minha capa de chapeuzinho vermelho
enquanto você estava bêbada e chorando. Lembra?”
“Perdida”, repete Fosco, a voz profunda reverberando pelo auditório.
Seu tom sugere que ela acha que a palavra me descreve perfeitamente.
“Talvez, Samantha, você esteja perdida em vários sentidos.”
E então sorri para mim com aqueles lábios rosa-prateados, e seu
silêncio hermético preenche o ar como fumaça de gelo-seco. Tem gente
que vem até a Warren só para respirar o mesmo ar saturado de incenso que
Fosco. Fãs raivosas que têm o nome dela tatuado no punho, na lombar, nas
omoplatas em forma de asas. Que carregam os romances experimentais
que ela escreve grudados no peito, como se fossem talismãs de bruxa, e
sussurram trechos como se fossem orações, feitiços. Porque ela é tão
mística, tão maternal, tão sábia. Eu não sou uma dessas garotas. Quando
vejo Fosco falar sobre os textos que ela provavelmente leu pouco antes da
aula, vestida com sua bata iridescente de sacerdotisa New Age, as mãos
ocupadas com gestos quase ginecológicos, os lábios rosados jorrando
comentários enigmáticos pontuados vez ou outra por seus célebres
silêncios profundos, sei que jamais serei uma dessas garotas.
E, ainda assim, não sou completamente imune ao escrutínio de seus
olhos, que me avaliam como se eu fosse um caso perdido.
“Desculpe.”
Sinto meu rosto corar.
“Este prédio parece um labirinto mesmo”, comenta Cupcake, sem
olhar para mim.
Eu a vejo acariciar o colar de pérolas, distraída, as mechas louras
brilhando sob a luz do cômodo. Hoje, está usando um vestido com
estampa de grama e um cardigã verde para combinar. Lembro-me dela
ontem à noite, raspando freneticamente o pau de canela, a cabeça dourada
jogada para trás, o pescoço perolado salpicado de veias azuis, a boca
escancarada em êxtase, e de repente sinto uma vontade louca de abraçá-la.
Ela nunca havia me defendido assim.
“Eu ainda me perco no campus”, acrescenta Boneca Sinistra.
“Acontece direto.”
“Sério, Kira?”, pergunta MuiMui. “Acontece direto?”
“Bom, de vez em quando. Aconteceu no mínimo uma vez, com
certeza”, explica ela, olhando para mim. “Oi, Bunny.”
Abro um sorriso cheio de gratidão, mas ela rapidamente desvia o olhar.
Só então percebo que já cheguei ao meu lugar habitual, do outro lado do
quadrado de carteiras. Deve ter sido força do hábito. A memória muscular
deve ter me trazido até aqui. Hesito por um instante, as mãos apoiadas no
encosto da cadeira. Será que eu não deveria me sentar mais perto delas?
Será que elas haviam deixado essa decisão para mim? Será que devo ir até
lá agora? Eu me viro naquela direção, mas as quatro estão com o olhar
vidrado em MuiMui.
“Tudo bem aí, Samantha?”
“Arrã. Tudo, sim. Claro. Desculpe.”
Sento-me no lugar de sempre. Fosco retoma seu discurso sobre a
importância deste semestre, que é o penúltimo do curso. E o último de
seminário. Devemos usar esses meses para nos explorar a fundo. Para nos
fazer as perguntas difíceis e assustadoras sobre nós mesmas. Viver
plenamente a experiência alquímica da Criação antes de sermos soltas na
natureza selvagem do último período, quando cada uma deve escrever a
própria dissertação. Assim como no ano passado, ela usa muitas metáforas
sobre parto e nascimento, mas só as ouço pela metade, mergulhada como
estou no torpor da ressaca, no ligeiro pânico que se agita no meu peito.
Enquanto isso, o terrier agasalhado de Fosco late em seus calcanhares ou
então corre em círculos bobos ao nosso redor. Ela o trouxe para todas as
aulas do semestre passado, e as Bunnies passavam uns bons quinze
minutos paparicando a criatura enquanto eu, com o nariz enterrado no
livro, fingia reler qualquer texto formalmente experimental que Fosco
tivesse nos passado naquela semana. Eu ficava olhando as linhas densas e
ilegíveis enquanto elas soltavam gritinhos de “Ai, que fofinho! Aimeudeus,
é tão fofinho”. Tentava me lembrar de que era um privilégio estar aqui,
que esta faculdade iria me abrir muitas portas — tantas portas, não iria? —
e que resolvi vir para cá porque oferecia a melhor bolsa e mais tempo para
escrever, duas coisas de que eu precisava desesperadamente. Não tive
nenhuma delas enquanto trabalhava como vendedora de livraria,
garçonete, recepcionista, garçonete outra vez, os únicos empregos que eu
conseguia arranjar com meu bacharelado em literatura.
“Pobre Cinderela”, diz Ava sempre que eu lhe conto essa história.
“Cadê seus ratinhos falantes? E seus vestidos de gata borralheira?”
“Mas eu precisava…”
“Você queria”, ela sempre me corrige. “Precisar, meu bem, é algo
totalmente diferente. E não que você esteja escrevendo a rodo por aqui,
sabe.”
É verdade que eu escrevia muito mais antes de vir para a Warren. Saía
do trabalho e passava as noites imersa em um êxtase febril, escrevendo em
qualquer superfície que estivesse disponível. Desde que cheguei à
universidade, isso quase não aconteceu. No outono passado, mostrei
alguns rascunhos para o Leão, quando ainda conversávamos. Depois disso?
Apenas trechos incompletos, alguns fragmentos, um punhado de frases.
Muitos, muitos desenhos de olhos. Que me encaram.
“Eu falei que isso estava acabando com a sua alma.”
Mas como eu poderia imaginar que seria assim? Não podia desperdiçar
uma oportunidade dessas. Ir para a Warren? Tipo, é a Warren. A
abordagem altamente experimental e os jargões me irritam, claro, mas vale
a pena.
“Será que vale mesmo?”, Ava sempre rebate.
Finalmente começamos a discutir os textos desta semana, que Fosco
nos pediu para escrever durante o verão depois de arrastar nas cinzas um
talismã de nossa escolha ou pegar uma carta de tarô aleatória e estudá-la
enquanto caminhávamos em sentido anti-horário ao redor de uma
encruzilhada.
“E você ainda se pergunta por que não consegue escrever, Smackie?”
Primeiro, o texto de Vinheta: uma série de vinhetas sem pontuação
sobre uma mulher chamada Z que vomita sopa enquanto se entrega a
reflexões niilistas e depois é sodomizada em um trailer. Odeio os textos de
Vinheta, sempre quebra-cabeças monótonos que nunca tenho vontade
nem paciência de resolver. Cada parágrafo é um meio sorriso, uma testa
meio franzida, tudo pretensioso para cacete. Além de levantar questões do
tipo: quando essa garota, durante sua jornada perigosa e rocambolesca de
Interlochen a Barnard, foi parar em um trailer?
“Gente rica se fazendo de pobre”, diria Ava. “Baboseira de gente branca
escrita pelos superqualificados. Do pior tipo. Tem aos montes na escola de
artes.”
Fosco admira o texto de Vinheta como de costume, da mesma maneira
que admira os textos de todas elas, mas nunca os meus. Como se fossem
bebês agitados, brilhantes, mas que ainda assim têm algum probleminha.
Aconteceu alguma coisa com o canal de parto? E então ela arqueia uma
sobrancelha, preocupada, como se tentasse averiguar. “Bom”, ela vai
retomar por fim, “o que achamos disso? Alguém tem algum comentário?”
“Achei a sopa fascinante”, diz Cupcake, como se estivesse mesmo
fascinada.
Percebo que minha vontade de abraçá-la sumiu por completo.
“Eu também, Caroline”, concorda Fosco. “Eu também.”
E aí volta a admirar as páginas.
“Eu só queria ter acreditado mais, eu acho”, comenta a Duquesa, como
se estivesse preocupada com o prognóstico de uma doença. “Mas devo
dizer, Victoria, que a sua forma de envolver o Corpo é sempre muito
interessante.”
Sussurros de aprovação por toda parte. Pequenos acenos de cabeça.
“Ah, com certeza. Concordo. Muito interessante.”
Escrevo “1.098” no caderno. Foi a quantidade de vezes que ouvi “o
Corpo” ser mencionado desde que pisei na Warren. Porque, nesta
faculdade, o Corpo está na moda. Parecia que todos os acadêmicos tinham
acabado de descobrir que eram cativos de uma casa precária de carne e
osso e, aimeudeus, que assunto interessante. Que fonte inesgotável de
temas e tramas! Ainda não entendi muito bem o que significa escrever
sobre o Corpo em letras maiúsculas, mas sempre finjo entender. “Ah, sim,
o Corpo, é claro.”
Outras palavras que venho contando: espaço, transparecer e
desempenhar. E suas variações.
“Gostei da incerteza que transparece no texto”, diz Boneca Sinistra. “Só
acho que poderia se aprofundar mais no espaço dos sonhos. É tão
interessante ver como ela desempenha e revive o trauma.”
Olho para Vinheta, que anota tudo em seu caderno como se esses
comentários fossem realmente úteis, o cabelo acobreado caído em cascata
sobre um dos ombros, a nuvem de ópio a cercando, mesmo aqui.
Enquanto ela escreve, Cupcake faz carinho em seu braço. Bunny, eu te
amo.
“E você, Samantha? O que acha?”, pergunta-me Fosco.
Acho que é um lixo pretensioso. Que não diz nada, não entrega nada.
Acho que não entendo, que provavelmente ninguém entende e jamais vai
entender. Que não ser entendida é um privilégio que não posso me
permitir. Que nem acredito que essa mulher está sendo paga para vir aqui.
Acho que ela deveria pedir desculpas às árvores. Passar um dia inteiro
ajoelhada na floresta e, com lágrimas nos olhos lânguidos, dizer aos álamos
e carvalhos e a quaisquer outras árvores de que é feito o papel: “Me
desculpem. Me desculpem por achar que sou muito interessante quando
está na cara que não sou. Sabem o que eu sou? Uma assassina de árvores
sem graça”.
Mas então me viro para Vinheta, Boneca Sinistra, Cupcake e a
Duquesa. As quatro me encarando com um sorriso tímido no rosto.
“Acho que eu também gostaria de ler mais sobre a sopa”, ouço-me
dizer.
Por fim, chegamos ao meu texto, uma das últimas histórias que
consegui escrever antes do bloqueio criativo. As cinco passam um bom
tempo em silêncio. Fosco encara o papel como se nem soubesse por onde
começar. Nem um pingo de experimentação formal. Nenhum personagem
com nome de uma letra do alfabeto. Nem uma gotinha de sopa de vômito
niilista. E ainda por cima tem uma trama, que absurdo!
Eu me preparo para ouvir as críticas de sempre.
Violento.
Hostil.
Distante.
Sombrio, mas não no bom sentido?
Engraçado, verdade, mas acho que até demais?
Exatamente. Tipo, o que está por trás desse riso, sabe?
Mas elas ainda estão quietas, analisando a história com atenção.
“É curioso”, começa Cupcake, enfim. “Na primeira vez que li, confesso
que fiquei meio decepcionada.”
Ela torce o nariz como se a história exalasse um odor desagradável.
“Fale mais sobre isso, Caroline”, pede Fosco.
“Então, é que parecia tão… hostil à primeira vista.”
“E violento também”, acrescenta Boneca Sinistra, sem olhar para mim.
“E brutal.”
“Sombrio, mas não no bom sentido”, diz Vinheta.
“E dando muita importância à sua própria estranheza.”
“Exatamente. O texto afasta o leitor a princípio. Mas depois…”
“Mas depois?”, encoraja Fosco.
“Hum, sei lá. Enquanto lia pela segunda vez, percebi que estava
começando a gostar de todas essas coisas, afinal. A angústia bruta, o lado
cru da adolescente. É… envolvente.”
Ela olha para mim do outro lado da sala, com a cabeça dourada
pendida para o lado.
“É mais vulnerável do que eu esperava. Quase desesperado.”
“Triste”, acrescenta Vinheta.
“Mas no bom sentido”, complementa Boneca Sinistra.
“Olhe só, eu ainda acho que o texto poderia se abrir um pouco mais…”
“Bem mais.”
“E sem dúvida precisa de um pouco de… movimento?”, sugere
Vinheta, olhando para a Duquesa, que ainda não se pronunciou.
“Acho que o que estamos tentando dizer, Samantha, é que queremos
mais”, declara a Duquesa, com as mãos cruzadas sobre meu texto, o olhar
dirigido não para mim, mas para Fosco, que assente com uma seriedade
maternal.
“Faz sentido?”
8
Ava. Não a vejo ao longo de toda a semana. Passo na frente da casa dela:
está tudo escuro. Passo na lanchonete: está vazia. Vou até as entranhas do
laboratório de ciências naturais, onde ela costuma ficar entre as gavetas de
insetos mortos, ou então na biblioteca do porão, organizando o que ela
chama de “Verdadeiros Cadáveres”. “Porque os livros estão mortos,
Smackie, sabia? Porque quase ninguém vem aqui além de você.” Acendo as
luzes crepitantes de todos os corredores, mas ela não está lá, fumando e
lendo entre as estantes altas e escuras. Repito seu nome em voz alta até
que um homem sentado a uma mesa ali perto se vira e olha feio para mim.
“Posso ajudar?”
Ela não está sentada na caçamba atrás dos dormitórios, com as pernas
dependuradas e as mãos cheias dos espólios que encontrou no lixo. Não
está na livraria anarquista folheando as novidades. Não está encarapitada
no telhado abobadado do departamento de ciências como uma gárgula do
glam rock.
Volto para o parque, onde costumo encontrá-la no banco junto ao lago.
Mas não tem ninguém ali. Contemplo a superfície imóvel da água, as
folhas das árvores balançando e tremeluzindo à luz da tarde. Mesmo antes
de conhecer Ava, eu vinha aqui com frequência. Para me sentir menos
sozinha. Para escrever, ainda que nunca tenha conseguido. Só ficava
sentada, com um café intocado ao meu lado no banco, um caderno no colo
e uma caneta pendendo frouxa de meus dedos, enquanto observava um
cisne solitário traçar círculos na água lamacenta. Eu passava horas assim.
Vinha para cá depois da aula, com as risadas tacanhas das Bunnies ainda
ecoando nos meus ouvidos. Ou até mesmo antes da aula, enquanto tentava
criar coragem para ir. Só vá de uma vez, isso é ridículo, porra, do que você
tem tanto medo, hein? Ou nos fins de semana, quando tentava me
convencer de que gostava desse momento de descanso, que a
oportunidade de passar um tempo sozinha, sem compromissos, sempre
sem compromissos, fazia bem para o meu trabalho, com certeza. Mas a
verdade é que eu amava a tranquilidade do parque. E o fato de estar
sempre vazio. Com exceção do cisne, é claro. Rodopiando sem parar em
seus círculos solitários. Ou então apenas flutuava à deriva. Até que, certa
manhã, uma manhã terrível e maravilhosa, lá estava Ava. Sentada no banco
como se sempre tivesse estado ali. Em seguida, me pediu um isqueiro que
eu nem sabia que tinha.
Mas agora não há o menor sinal do cisne.
Nem de Ava.
Tudo o que vejo são as pessoas que ela odeia e a luz dourada que ela
odeia mais ainda banhando os prédios que ela adoraria incendiar.
E coelhos.
Tantos coelhos. Mal posso acreditar nos meus olhos. Mas aqui estão
eles. Acho que sempre estiveram aqui. Saltitando pelo gramado. Correndo
pela trilha para em seguida desaparecer nos arbustos. Fazendo-me tropeçar
nos caminhos sinuosos do campus como se fossem pedras pesadas e
macias. Cada vez que avisto um, sinto uma pontada de medo e empolgação
no estômago. Lembro-me da sensação mágica, ao mesmo tempo suave e
pesada, do animal no meu colo naquela noite. Vejo-me ali observando, em
minha embriaguez, seu trêmulo rostinho leporídeo. Lembro-me de uma luz
se acendendo e se apagando na janela do segundo andar. Suas vozes de
menininhas, quentes e macias como pelos nos meus ouvidos.
“Viu como é fácil, Samantha? A gente bem que falou.”
Durante toda a semana, volto sozinha para o apartamento onde Ava disse
que eu não deveria morar. Devoro o chili enlatado de marca genérica que
comprei no outono passado para me preparar para um furacão que, no fim,
não passou de uma garoa triste. Pego a garrafa de vinho que está na minha
geladeira há meses e sirvo em uma caneca de souvenir das cataratas de
Falling, minha cidade natal, depois bebo o líquido que tem gosto de
agulhas ácidas.
Você já deve ter visitado as cataratas de Falling. Por uma horinha, ou
várias, ou um dia inteiro no máximo, você deixou seu carro no
estacionamento para contemplar a atração, mesmo que não haja nada ali
além de água. E depois se apoiou na grade para tirar uma selfie ou uma
foto em família, com as cataratas rugindo ao fundo, vestindo uma bermuda
de que você vai se arrepender mais tarde, com um sorriso forçado ou talvez
genuíno enquanto a água lhe borrifa as pernas, os braços e os cabelos com
uma névoa perpétua. Depois você pode ter feito aquele passeio de barco
chamado “Sob as cataratas”, que não passa debaixo das cataratas porque
isso significaria morte na certa, usando uma daquelas capas de chuva
amarelas que não impedem ninguém de ficar encharcado até os ossos,
porque eu não estava lá para avisar que não valia a pena. Eu estava no
centro de Falling, um lugar que só os locais frequentam, talvez na sala dos
professores levando uma bronca por ter entregado histórias em vez do
dever de matemática, ou então as escrevendo no salão de beleza da minha
mãe, ou quem sabe no meu quarto ou nos galhos finos das árvores lá fora,
sonhando que estava em outro lugar.
Duvido muito que você tenha ido ao centro de Falling, mas talvez
tenha decidido passar o dia na passarela turística à beira do rio, e depois
desperdiçar dinheiro nos fliperamas patéticos, se perder no labirinto de
espelhos onde fui barrada aos nove anos por ser alta demais, provar o
“sorvete do futuro” e se deliciar com um jantar em um restaurante em
formato de navio. Ali, você cortou um bife seco, sentado ao lado das
escotilhas, sob uma rede cheia de peixes falsos, apreciando a música da
banda Heart, que está por toda parte, como se reverberasse pela neblina
que permeia o ar. Se por acaso estivesse por lá na época do Halloween,
poderia ter dado uma passadinha na casa mal-assombrada, onde um
homem com máscara de hóquei e uma serra elétrica falsa persegue você
por túneis escuros feito breu. De 1985 a 1992, esse homem era meu pai.
Talvez você tenha perdido alguns trocados no cassino, onde ele trabalhou
depois disso, subindo na hierarquia de garçom a gerente.
Mas duvido muito que você tenha feito qualquer uma dessas coisas, a
menos que use um corte mullet ou tenha um profundo senso de ironia.
É mais provável que você tenha tirado só uma selfie nas cataratas e
depois dado no pé. Pode ser que tenha comprado um copinho ou uma
caneca superfaturada como a minha antes de ir embora. Ou quem sabe
um ímã com uma foto das quedas d’água bem melhor do que todas as que
você tirou. Talvez tenha até um arco-íris na imagem. Ou um trocadilho do
tipo “Tenho uma quedinha por você”. Minha mãe me deu um ímã assim
uma vez, de brincadeira. Levei-o comigo para todo canto. Coloquei o ímã
em todas as geladeiras que tive desde então, inclusive nesta. E aí nesse
verão eu o dei de presente para Ava, que o colocou na geladeira dela.
“Nossa geladeira”, dizia ela.
Tomo mais um pouco do vinho ácido. Escuto o gigante pervertido que
mora ao lado rir de uma série de tv, mas sempre na hora errada. Não faço
ideia de como ele consegue viver naquele cubículo, considerando que é
maior do que qualquer outro ser humano. As galochas pretas que ele deixa
ao lado da porta lascada são tão grandes que poderiam esmagar uma foca.
No andar de cima, a Cantora Lírica que Não dá Trégua cantarola uma
ópera qualquer. Parece um pássaro canoro esquizofrênico que perdeu o
rumo. Mantenho as cortinas fechadas para não dar de cara com o
Exibicionista outra vez, com receio de que esteja de butuca, cheio de
expectativa, para me mostrar seu membro reluzente. Sempre nu, apesar da
noite fria. Com o pau na mão, o hálito embaçando a vidraça, talvez me
olhando, talvez não — nunca deixo as cortinas abertas por tempo
suficiente para descobrir. Isso sem contar que, toda vez que as abro agora,
vejo aquele mesmo coelho sentado no parapeito, como se nunca tivesse
saído de lá. Os olhos fixos em mim.
Bebo o resto do vinho e tento escrever alguma coisa. Eu tenho que
escrever, eu preciso escrever. É por isso que estou aqui. Olho para as
páginas do caderno, em branco a não ser por um olho mal desenhado.
Alguns redemoinhos. A frase “Não sei” rabiscada várias e várias vezes.
Cercadas por flores murchas.
Sinto saudade do meu primeiro cantinho de escrita, a sala de espera do
salão de beleza onde minha mãe trabalhava quando eu era criança. Eu
escrevia com um abandono delirante naquele sofá molenga entre o Buda
empoeirado e as flores falsas mais empoeiradas ainda, sob as fotos de
mulheres sorridentes com os cabelos penteados de um jeito que parecia
impossível, doloroso. As clientes se acomodavam nas cadeiras ao redor e
fingiam ler revistas, mas não paravam de me olhar de rabo de olho,
perguntando-se quem era aquela garotinha esguia com camiseta do
Monstro do Pântano e o caderninho de sereia abraçado junto ao peito, que
retribuía seu olhar através da franja que eu quase nunca deixava minha
mãe cortar. Tinha medo de que ela arrancasse meus olhos.
“O que você está aprontando aí?”, às vezes me perguntavam.
Tentando descobrir seus segredos vergonhosos, eu respondia em
pensamento.
“Não liguem para minha filha”, dizia minha mãe enquanto conduzia as
clientes até o lavatório e pedia para que recostassem a cabeça na pia,
quando imediatamente fechavam os olhos. Eu as observava ali nas cadeiras
giratórias, cobertas por uma capa, enquanto se admiravam no espelho
como se contemplassem seu reflexo pela primeira vez. E aí começavam a
dizer todo tipo de coisa — se dirigidas à minha mãe ou ao próprio reflexo,
eu jamais saberia. Coisas que eu não conseguia escutar em meio às Mais
tocadas de Heart e ao zumbido dos secadores e cabelo, então só me restava
tentar adivinhar.
“Na verdade, sou uma mulher-lagarto.”
“Eu converso com alienígenas à noite, por isso preciso cortar o cabelo.”
“Tem um esquilo no parque que na verdade é o homem que eu amo.
Vou pintar o cabelo como um agrado para ele.”
“Esta noite vou pular de cabeça nas cataratas e quero meus cachos
esvoaçantes enquanto despenco lá de cima.”
E aí minha mãe assentia ou ria enquanto passava a escova, a tesoura, a
navalha, a chapinha naquelas cabeças ligeiramente inclinadas e cheias de
grampos, e depois enrolava suas mechas molhadas, uma a uma, em
quadradinhos de papel-alumínio, e só então as acomodava sob o que eu
via, na época, como um forno sugador de cérebro. E ali elas se deixavam
cozinhar, contentes, enquanto folheavam uma revista.
Às vezes, minha mãe não conduzia a pessoa até uma cadeira giratória, e
sim a uma salinha mal iluminada no fim do corredor. Os sons que
escapavam daquela porta fechada serviram de inspiração para as primeiras
histórias de terror que escrevi. Ouvi gritos que mais pareciam rosnados,
grunhidos. Risadas nervosas. Gritos mais suaves também, quase como
suspiros. E mais um punhado de sons inteligíveis que me assustaram, me
confundiram, me impressionaram. Eu esperava que as clientes saíssem
daquela salinha com o rosto chamuscado, com guelras profundas nas
bochechas e chifres encravados na cabeça. Mas, quando passavam pela
porta, estavam quase iguais a antes, apenas com o rosto ligeiramente mais
avermelhado.
Uma sala de depilação, minha mãe nunca me explicou, mas eu
também nunca perguntei.
As histórias delirantes que escrevi no salão de beleza eram cópias dos
livretos de terror e suspense que ela devorava nos intervalos e no fim da
tarde, e que eu lia às escondidas. Baseei meus personagens nas clientes
dela, nos meus colegas da escola, nos professores que me atormentavam.
“Quero ler”, dizia minha mãe quando me via escrever à noitinha.
“Ainda não terminei”, eu respondia, embora fosse mentira.
“Sua filha inscreveu isto aqui no concurso de redação e, além de não
ser uma redação, devo dizer que estamos preocupadíssimos com o teor do
texto”, informou a professora à minha mãe certo dia.
“Ora, deixe disso”, respondeu minha mãe. “Samantha tem medo até da
própria sombra. Ela só tem uma imaginação fértil — que criança não
tem?”
Mas eu sabia que ela estava preocupada com minha mania de inventar
versões cada vez mais horripilantes e fantasiosas para tudo que acontecia.
Eu contava a ela uma porção de mentiras quando me perguntava “E aí,
como foi a aula?”, em vez de relatar a verdade enfadonha. Desaparecia no
meu quarto ou no bosque atrás do complexo de apartamentos munida do
meu caderno de sereia. “O que você está fazendo aí?”, perguntava minha
mãe pela frestinha da porta, como se eu não estivesse no mesmo
apartamento que ela, e sim em um lugar distante, longe de seu alcance,
onde eu havia decidido morar.
Não tenho mais aqueles romances que escrevi no salão de beleza.
Gosto de pensar que foram engolidos pelas cataratas depois que ela
morreu. Ainda considero que nunca tive um período de escrita tão prolífico
quanto naqueles anos, embora eu nunca tenha ficado sem escrever, nunca
tenha deixado de fugir para outro mundo de minha imaginação, nunca
tenha aprendido a viver neste mundo de cá sem que minha alma ansiasse
por viver em outro. Até que cheguei aqui.
“De vez em quando é bom fazer uma pausa”, disse-me o Leão em
janeiro, enquanto mexia o chá. “E se concentrar em outras coisas. Ler. Ser
uma convidada em outros mundos. Talvez você esteja crescendo.
Evoluindo. Tenha confiança, Samantha. Tenha paciência.”
Encontrei-me com ele em seu escritório para explicar a ausência de
textos novos. Àquela altura, nossa amizade já tinha degringolado. Ainda nos
encontrávamos, mas apenas a cada duas semanas ou mais, e sempre no
escritório dele, sempre de porta aberta. Nunca perguntei por que ele parou
de me enviar playlists na calada da noite ou de me convidar para tomar
uísque no meio da tarde, e ele nunca explicou.
“Não tem por que se envergonhar”, disse ele, com um sorriso forçado.
“É só que eu não entendo o que aconteceu”, respondi, estreitando os
olhos, cegada pelos raios de sol que se infiltravam pela janela atrás dele. “O
que aconteceu comigo, sabe? Eu vivia escrevendo. E agora…”
“Tudo na vida tem seus altos e baixos”, filosofou ele, com o olhar fixo
no relógio.
E aí eu achei que estava ficando louca. Que tinha imaginado seu afeto,
nossa proximidade.
“Mas que palhaçada”, comentou Ava. “Aposto que ele se afastou por
causa das bonobos. Elas devem ter percebido que vocês dois eram
próximos e torceram o narizinho açucarado. Aí devem ter espalhado um
boato e ele surtou feito um frangote. Ele não é leão coisa nenhuma, não
passa de um lemingue.”
Tentei me controlar, focar a escrita, deixá-lo de lado. Ele nem era mais
o professor responsável pelo seminário, só o meu orientador da dissertação.
Por acaso ele me devia alguma coisa além de um e-mail ou outro
perguntando sobre o andamento do trabalho? Na teoria, absolutamente
nada.
“Ele que se foda. Agora você tem a mim.”
Dou uma olhada no celular. Nem sinal de Ava. Volto a encarar as
páginas quase em branco, mas tudo o que vejo é o rosto do Leão em seu
escritório naquele dia.
“Você está pensando demais no assunto, Samantha. Sério.”
“Pode ser. Então, vamos nos encontrar de novo semana que vem?”,
perguntei a ele.
“Por que não adiamos por enquanto?” Mas não foi uma pergunta.
“Pode me mandar alguma coisa quando estiver pronta.”
Mas não mandei mais nada desde então. Até cogitei fazer isso antes
das férias de verão, mas aí veio aquela festa de fim de semestre na
primavera. Se as coisas já estavam esquisitas entre nós antes disso, depois
ficaram impossíveis.
Em teoria, eu deveria ter conversado com ele algumas vezes durante o
verão. E com certeza deveria ter feito isso esta semana para discutir o
andamento da dissertação, enviar atualizações sobre meu progresso. Mas
não entrei em contato, e ele tampouco. Nem consigo suportar a ideia de
vê-lo agora. E, de todo modo, não tenho nada além de olhos e flores tristes
e rabiscos de “Não sei” para mostrar a ele.
“Samantha”, começa Cupcake, segurando meu rosto com tanta força, que
sinto que vai afundar. “Você iria ficar muito brava se a gente fizesse uma
trança no seu cabelo?”
Ela está com um vestido de gola Peter Pan que, segundo me contou,
foi comprado em uma loja on-line chamada “Ela só quer causar”. Um
protetor labial cor de pêssego que, bêbada como estou de ponche das
Bunnies, eu a deixo espalhar nos meus lábios com seu dedinho perfumado.
Estamos na sala de estar de Boneca Sinistra, que está todinha decorada
como um baile de formatura do ensino médio. Lindos enfeites de papel
crepom pendurados no teto. Uma torre de bolinhos e uma tigela de ponche
acomodadas sobre a toalha branca da mesa. Kate Bush ressoa em todos os
alto-falantes. “Wuthering wuthering wuthering heights.” Um globo de
discoteca rodopia devagarinho acima de seus penteados de inspiração
arturiana.
Quando abriram a porta para mim, estavam usando vestidos em tons
pastel com bainhas esvoaçantes. Um ramalhete de flores atado ao punho.
“Porque hoje é o baile de formatura, não sabia? E o tema é Esses sonhos.”
“Todos os alunos de mestrado organizam um, Samantha. Você não sabia? É
tradição. Além do mais, a gente queria uma desculpa para usar isto aqui”,
dizem elas, agitando as mãos enluvadas. “Não avisamos nada, Samantha,
porque, se a gente tivesse contado antes, bem…”
“Achamos que você não iria querer vir.”
“Mas você veio.”
“E estamos muito felizes por isso.”
“O problema é que você não está arrumada para o baile.”
“Podemos arrumar você?”, elas me perguntam, já me puxando em
direção ao quarto. “Aliás, a gente viu um penteado na internet que
combinaria taaanto com seu rosto. Sério. Você se importa? Não mate a
gente.”
Penso em Sissy Spacek coberta de sangue de porco enquanto vejo
Boneca Sinistra vasculhar o guarda-roupa em busca de um vestido que,
segundo ela, vou amar tanto que vou querer me casar com ele. Dou uma
espiada no quarto dela, as paredes forradas com sua coleção de máquinas
de escrever e inúmeras ilustrações de lobos e outras criaturas de contos de
fadas, além de um altar de onde sobe uma fumaça com cheiro esquisito.
Tomo mais um golinho de ponche. Penso: Isso até que é legal, não é? Suas
mãos afagam meu cabelo, trançando-o em um penteado de aspecto
medieval. Não seja tão ríspida e arrogante, Samantha, digo a mim mesma.
Não seja tão desconfiada. Elas só devem estar tentando ser legais. É o jeito
delas. Seja legal também.
“Obrigada por fazerem isso”, agradeço, com os olhos fixos no espelho
enquanto observo o reflexo de Cupcake, que, ligeiramente bêbada, trança
meu cabelo em um penteado bem parecido com o delas.
“Penteados infernais”, minha mãe os chamava, os preferidos das noivas
e formandas alucinadas, a cruz que ela tinha que carregar — e eu também,
já que às vezes servia de cobaia. As clientes do salão não tinham nada a ver
com as Bunnies, é claro — eram muito mais pobres e não sabiam nada de
latim, teoria da abjeção ou alaúde —, mas traziam no rosto a mesma
vontade intensa de passar por uma transformação impossível, uma
expressão que me dava tanta vergonha que sempre me fazia desviar o olhar.
A mesma expressão que, para meu desespero, vejo estampada no meu
rosto agora.
“Não foi nada, amiga. Estamos felizes por você ter vindo.”
Boneca Sinistra observa Cupcake trançar meu cabelo e sorri. Percebo
que suas mechas ruivas foram presas em um coque apertado no topo da
cabeça e adornadas por uma fita, deixando algumas partes do couro
cabeludo rosado à mostra.
“E aí, Samantha? Como foi seu baile de formatura?”, pergunta Boneca
Sinistra. “Você odiou?”
Ela faz uma careta de repulsa que me instiga a fazer o mesmo.
“Porque a gente imagina que você tenha odiado.”
“Ou que fosse descolada demais para ir.”
“Não, eu não odiei.”
Só detestei com todas as minhas forças.
“Você arranjou um acompanhante?”, pergunta Cupcake, puxando meu
cabelo com tanta força, que uma lágrima escorre pela minha bochecha.
“Fui com a minha melhor amiga da época.”
Alice. Uma garota gótica de olhar preguiçoso com quem eu vivia
matando aula para ir à biblioteca ler livros de terror. No dia do baile, ela
apareceu na minha casa com um vestido cheio de rosas e caveiras e uma
tiara do Dia dos Mortos. Eu usei um vestido preto de seda com estampa de
dragão que me pareceu o ápice da ousadia quando o encontrei no brechó.
Mas, quando o vesti naquela noite e vi meus ombros à mostra, as chamas
do dragão enroladas no meu decote, me senti estranhamente tímida. Passei
a noite de braços cruzados para tampar a língua bifurcada do dragão, morta
de vergonha. Ava teria tirado de letra, é claro, e o usado de cabeça erguida.
Com saltos pontiagudos. O batom Lady Danger nos lábios. E uma piteira
que eu jamais teria coragem de usar. Penso em Ava parada no escuro do
lado de fora do estúdio de tango. Smackie. Desculpe. Volte. Ela não me
disse para voltar?
“Ah”, responde Cupcake. “Que legal. Mas também é um pouquinho
triste, né?”
“E aquele cara gostoso sobre quem você comentou outro dia?”,
pergunta Boneca Sinistra. “Aquele por quem você era totalmente obcecada
no ensino médio? Com quem você vivia morrendo? Ele realmente existiu?”
Olho para seu rostinho inquisitivo em formato de coração.
“Ele era meio que uma mistura de várias pessoas”, minto.
“Ah. Ele parecia tão real. Como era o nome dele mesmo? Rob de quê?”
Quero arrancar aquele nome, que escrevi tantas vezes em tantos
cadernos durante o ensino médio, de sua boquinha arqueada.
“Rob Valentino?”, arrisca ela.
“Valencia”, corrige Cupcake. “A gente stalkeou suas redes sociais.”
“Espero que você não ache isso esquisito”, diz Boneca Sinistra.
“Não.”
É claro que é esquisito pra cacete. As quatro agrupadas ao redor de
uma tela, bebericando champanhe e comendo bolinhos enquanto
esmiuçavam cada foto minha que conseguiam encontrar. Ainda bem que
nem tenho tantas assim.
Pelo vão da porta, vejo a Duquesa e Vinheta na sala de estar, dançando
e rindo com quatro caras incrivelmente bonitos. Eles me encaram
intensamente com olhos vazios do mesmo tom azul-esverdeado dos lagos
glaciais.
“Kira, será que dá para fechar a porta?”, pede Cupcake. “Preciso me
concentrar no penteado dela.”
Sinto Cupcake passar os dedos pelo meu cabelo, os movimentos
suaves como se eu fosse um cavalo arisco que ela pretende domar. Uma
parte de mim quer afastar a mão dela com um tapa, mas me limito a fechar
os olhos.
“É o mesmo Rob Valencia que você tem adicionado no Facebook?”,
pergunta Boneca Sinistra enquanto vai fechar a porta. “Aquele com
calvície precoce?”
“É.”
Ele quase nunca posta nada. E, quando posta, é sempre
decepcionante. Uma música chata para celebrar a chegada do fim de
semana. Uma foto de um drinque também para celebrar a chegada do fim
de semana. Uma foto dele com os colegas de trabalho em uma mesa
abarrotada de comida mexicana. Acho que é vendedor, mas não o
acompanho o suficiente para saber de quê. A foto de perfil é a mesma
desde sempre: ele diante da escadaria de uma igreja espanhola, com o
colarinho da camisa desabotoado, parecendo tão alto quanto nos meus
sonhos.
“Bom”, retoma Cupcake, e começa a massagear minha nuca, “ele
realmente se parece com Zeus.”
“Samantha”, começa Boneca Sinistra, pousando a mão no meu punho,
“tenho certeza de que Rob queria muito ir ao baile com você.”
“É claro que queria. Só deve ter ficado muito intimidado.”
Cupcake volta a puxar meu cabelo, trançando-o no que parecem nós
muito elaborados.
“A gente também ficou no ano passado”, acrescenta Boneca Sinistra.
“Sério?”, pergunto, surpresa, enquanto tento ignorar a dor.
Penso em tudo o que aconteceu no ano passado. Todas as vezes que
elas me encararam do outro lado da sala. As vezes que esperamos que o
Leão chegasse para abrir a porta da Caverna antes do seminário. Nessas
ocasiões, elas se sentavam no chão do corredor, escoradas na parede como
se não tivessem forças para ficar de pé, como se as pernas tivessem cedido,
amontoadas em volta do relógio de pêndulo como bonecas que alguém
esqueceu de guardar. E sorriam entre si. Conversavam baixinho sobre o
que haviam feito na noite anterior, usando as palavras difíceis do jargão
acadêmico. E mergulhavam em silêncio quando eu chegava perto. Erguiam
o olhar, mais e mais, para me ver lá no alto. De jeans e alguma camiseta
com estampa de animal selvagem. Se elas achavam que era uma escolha
proposital para intimidá-las, estavam certas. Às vezes, alguma delas —
quase sempre Cupcake ou Boneca Sinistra — me dirigia a palavra
enquanto a Duquesa e Vinheta trocavam olhares.
“Adorei sua bolsa, Samantha”, dizia Boneca Sinistra. “Onde você
comprou?”
Eu não sabia muito bem como reagir. Até parece que ela iria gostar da
minha bolsa.
“Ah, numa lojinha aí. Fica num porão.”
“Ah. Legal.”
“Adorei seus brincos”, dizia Cupcake. Mesmo que eu não estivesse de
brinco.
O que eu deveria responder? Não sabia, então só ficava a encarando
em silêncio.
“O que você fez ontem à noite, Samantha?”
Será que era pegadinha?
“Que legal”, elas respondiam a qualquer coisa que eu murmurasse de
volta. E depois assentiam e trocavam olhares entre si.
“Seríssimo”, responde Boneca Sinistra, tirando-me do meu torpor.
“Ainda estamos um pouquinho intimidadas. Você é tão… Enfim, aposto
que ele passou esses anos todos fantasiando com você.”
“Nossa, com certeza. Não tem a menor dúvida.”
Cupcake puxa e torce meu cabelo com tanta força que meu crânio
parece em chamas. Cada nervo do couro cabeludo clama por ajuda.
“Talvez ele tenha morrido por sua causa. Já pensou?”
“Ele não morreu, Kira. Pare de tentar transformar tudo em uma das
suas histórias de fantasma. Ele só deve estar de coração partido porque
tem uma vida patética. Mas aposto que, se estivesse aqui agora, ele diria:
‘Ó, Samantha, minha querida, dance comigo. Tenha filhos comigo, por
favor’.”
Ela vira minha cabeça dolorida na direção do espelho, e ali vejo o
reflexo de uma mulher que não reconheço. A franja dela foi penteada para
trás. O cabelo dela parece o das rainhas de mundos de fantasia. Os olhos
estão lacrimejados de dor.
“Aimeudeus, está incrível”, comenta Cupcake, ofegante. “Eu sou
incrível. O que você acha?”
A pergunta não foi direcionada a mim, e sim a Boneca Sinistra, que se
vira para mim com a cabeça pendida para o lado.
“Acho que, se Rob Valencia estivesse aqui agora, ele iria morrer.
Principalmente se você usasse isto aqui.”
Ela me entrega um vestido todo estampado com garotas louras
decapitadas com penteados volumosos, as cabecinhas sorridentes
flutuando ao lado dos corpos.
“São Marias Antonietas”, diz.
Dançar com Rob é totalmente diferente de dançar com Diego. Sinto seu
peitoral de jogador de futebol-americano. Os ombros largos. As mãos
grandes e confiantes que deslizam pelas minhas costas como se eu fosse
uma coisinha minúscula, e não uma mulher de um metro e oitenta. Tudo
nele parece sólido como tijolos ou pão velho. Tão diferente de Ava, com
suas mãos enluvadas e estrutura franzina. O cabelo platinado roçando meu
ombro. Seu perfume de folhas caídas e lenha não se parecia em nada com
o aroma doce e açucarado de Rob Valencia, o cheiro de animal queimado
que emanava de sua pele.
Por cima do seu ombro, vejo as outras Bunnies dançando com seus
respectivos acompanhantes. Estão todas de olhos fechados, menos a
Duquesa, que me observa com atenção. Quando nosso olhar se encontra,
ela dá uma piscadinha. Sorrio para ela. O lindo cômodo começa a girar.
Das janelas abertas sopra uma brisa suave de outono que agita as cortinas
de seda.
Fecho os olhos e escuto alguém cochichar no meu ouvido, uma voz
feminina e aveludada que diz: “Flutue, flutue, não é gostoso?”.
“Não é gostoso, Samantha?”, pergunta ele.
Muito gostoso. Exceto pelo cheiro cada vez mais forte de açúcar
queimado. Olho para Rob. Não. Ele é Rob Valencia. Estou dançando com
Rob Valencia. Em carne e osso.
Penso em Ava sozinha lá fora, fumando na escuridão de seu telhado, ou
quem sabe lendo em sua poltrona de veludo vermelho, mas a imagem
parece muito distante. Só consigo distinguir sua silhueta. Mal vejo seu
rosto.
E de repente escuto o som de mastigação. O ranger de dentes
pontuado por um ou outro grunhido.
Abro os olhos. Cupcake ainda dança com o galã de série, a cabeça
encostada no ombro dele, os olhos fechados, os lábios entreabertos em
êxtase. Enquanto isso, o rapaz mastiga a alcinha alaranjada do vestido dela,
os olhos abertos, porém vazios. Quando me vê, deixa cair a tira de tecido,
mas logo a abocanha outra vez e retoma a mastigação. Está com uma
expressão vidrada, satisfeita.
Viro-me para Boneca Sinistra e percebo que seu acompanhante está
fazendo a mesma coisa. Só que, em vez de tecido, mastiga uma mecha do
cabelo dela.
Quando me viro na direção da Duquesa, eu a vejo com a cabeça
aninhada no ombro de Beowulf, que mordisca o colar de pérolas em seu
pescoço. Ela nem parece notar.
E lá está Vinheta, bêbada, equilibrada no peitoril da janela como uma
bailarina de caixinha de música, com uma cerveja na mão enquanto seu
acompanhante descansa em seu colo, ocupado em mastigar suas saias de
crinolina.
E de repente eu sinto. A mordida no meu punho. Rob Valencia está
curvado sobre minha mão, os dentes cravados nas orquídeas. Por um
instante, apenas me olha como um cachorrinho que foi pego no flagra.
Depois volta a mastigar.
Tento me desvencilhar, mas ele agarra meu punho com força e começa
a devorar as flores com ainda mais fúria.
“Você está maluco? Pare já com isso! O que está fazendo?!”
Mas ele continua a mastigar com cada vez mais afinco, os olhos
estreitos e escuros como fendas.
“Já falei para parar!”
Dou um tapa no rosto dele. Mais forte do que pretendia. O estalo me
surpreende, mais agudo do que eu imaginava.
A música para. Todo mundo para de dançar e olha para mim. Rob me
encara, em choque. Ele leva a mão enluvada ao rosto. Os olhos turvos. O
nariz franzido. A boca cheia de flores mastigadas se abre para falar…
“Olhe só, me desculpe”, interrompo. “Não foi minha intenção…”
“Brutal”, diz ele, esfregando a lateral do rosto. “Hostil. E dando muita
importância à sua própria estranheza. E sombrio. Ah, tão sombrio.”
“Quê? Do que você está falando?”
E de repente seu olhar se enche de ódio.
“Você se acha melhor do que todos nós, Samantha. Mas saiba que não
é melhor porra nenhuma.”
“Quê?”
Ele agarra meu rosto e começa a sibilar, a boca espumando, ainda
cheia de flores.
“Nós tentamos pentear seu cabelo, mas você não deixou. Convidamos
você para um monte de coisas, mas você nunca foi. Chamamos você para
almoçar bentô, mas você disse: ‘De jeito nenhum, sou ocupada e
importante e boa demais para almoçar com vocês’. Mas você não se lembra
de nada disso. Só lembra que Samantha Heather Mackey é a vítima.
Samantha Heather Mackey é a sofredora. Samantha Heather Mackey tem
um coração abarrotado de sentimentos que ninguém mais sente, só ela.”
O cheiro de açúcar queimado se torna insuportável e me faz pensar em
um polvo soltando tinta. Tento me desvencilhar do aperto de Rob, mas ele
começa a gritar. Apenas abre a boca e se põe a berrar mais e mais, olhando
para mim como se eu fosse a coisa mais assustadora que já viu.
Em seguida os outros caras também começam a berrar. Ficam parados
ali, gritando para o teto. O barulho é ensurdecedor. Cubro os ouvidos com
as mãos enquanto as Bunnies tentam convencê-los a parar.
Elas agarram Rob e o puxam em direção a uma porta, não a da frente, e
sim a que leva ao sótão. Mas ele está agitado demais para obedecer.
Balança a cabeça. Berra a plenos pulmões. Por mais que eu tenha tapado
os ouvidos, ainda consigo entender cada palavra.
“Samantha Heather Mackey acha que escreve tão bem! Samantha
Heather Mackey pode fingir que não, mas ela se acha boa demais para a
porra do mundo todinho! Samantha Heather Mackey adora bancar a
pobre, mas então por que age como se fosse uma princesa? Samantha
Heather Mackey transou com o professor! Chupou o professor! Porque
queria tratamento preferencial! Até parece que Samantha Heather Mackey
é alta assim de verdade, ela usa pernas de pau! Samantha Heather Mackey
usa pernas de pau para poder se achar superior a todo mundo! Ho, ho, ho,
ho, e ela adora cada segundinho! Samantha Heather Mackey acha que
temos tudo de mão beijada, que nascemos em berço de ouro, e que ela
passou a vida jogada na lama. Acha que ela não tem nada, nadinha mesmo,
e ainda acha que isso faz dela uma pessoa profunda. Isso não faz de você
mais profunda, Samantha Heather Mackey, só a deixa toda amarrotada e
cheirando a batata podre. Samantha Heather Mackey acha que entende
tudo, mas não entende as profundezas do coração humano. Não entende
as profundezas do nosso coração. Nosso coração nosso coração nosso
coração! Nós também lemos Jane Eyre, sua vadiazinha, e também lemos As
ondas, e, depois que lemos, saiba que passamos uns bons minutos
chorando.”
E então ele começa a chorar.
Vá embora, penso. Dê o fora daqui. Mas o cômodo gira e rodopia, e
percebo que não consigo sair do lugar, estou paralisada diante da raiva de
Rob Valencia. Diante daquela raiva sibilante, cuspida. De suas lágrimas.
Diante da visão das Bunnies tentando acalmá-lo. Do cheiro horrível e
sufocante de bolinhos queimados. Parece uma peça de teatro desastrosa.
Talvez acabe com Rob Valencia e eu nos estrebuchando no chão. Quase
tenho vontade de rir. Uma risadinha histérica escapa de mim como um
ataque de tosse.
E de repente a cabeça de Rob Valencia explode. Literalmente explode.
Há sangue e miolos por toda parte — em mim, nas paredes. Nas Bunnies
com seus garotos chorões. Fragmentos de crânio caindo como granizo no
assoalho de madeira. Seu corpo decapitado continua em pé, bem diante de
mim. E em seguida ele desaba no chão.
Ouço meus próprios gritos repuxando a pele do rosto.
Algo cai aos meus pés. Uma orelha. A orelha de Rob Valencia.
Desabo no chão. E aí continuo caindo e caindo e caindo sem parar. É
uma queda longa até o assoalho coberto de sangue e ossos. E, ao fundo,
ainda ouço aquela música que me pareceu tão familiar, a música que meu
coração de dezessete anos conhece tão bem, por mais que o nome tenha
me escapado, ela enfim se transforma em uma canção que eu finalmente
reconheço: “Slave to Love”.
12
Acordo em uma cama que não é a minha. Abro os olhos e vejo o pôster de
uma famosa atriz inglesa, abraçada com um homem vestido de pirata, os
dois envoltos por um redemoinho de fumaça. Ela o agarra como se sua vida
dependesse disso, a cabeça jogada para trás em êxtase. Ao lado do pôster
há um mural de cortiça cheio de fotos de uma garota ruiva sorridente junto
da família e de amigos. Ela posa em uma praia cheia de pedrinhas, no meio
de uma vinícola carregada de uvas, no topo de uma montanha, e, em todas
as fotos, a mesma expressão feliz, equilibrada. Ela me parece familiar,
muito familiar, e ainda assim não consigo associar um nome ao rosto.
Então me viro para uma janela com vista para folhas verdes e douradas.
Sou invadida por uma paz inexplicável. Observo os acontecimentos da
noite anterior bem de longe, como se os estivesse vendo do alto de uma
nuvem. Observo também que o colchão não é nem muito duro, nem muito
molenga. É a cama perfeita. Na medida certa. Cachinhos Dourados
poderia passar o resto da vida aqui. Poderia até se masturbar aqui.
Imagino-a nesta cama, se masturbando na cara dura enquanto os Três
Ursos assistem. Ela os observa através dos olhos semicerrados, como se os
desafiasse a lhe pedir que parasse. Mas os Ursos são educados demais para
dizer qualquer coisa. Começo a rir da cena. Ha. Hahaha. O edredom tem
cheiro de amaciante caro, como se fosse feito com pinheiros de verdade.
Parece até que estou no meio de uma floresta. Deitada em um leito de
musgo.
“Bunny?”
Viro a cabeça e vejo uma mulher sentada na beira da cama.
Abro um sorriso.
“Ava”, chamo. “Nossa, Ava. Ainda bem que você está aqui.”
“Quem é Ava?”
A silhueta se dissolve diante dos meus olhos, dando lugar a uma
mulher adulta com orelhinhas de gato. Minha alma grita e sai uivando do
quarto. Meu coração desaba no chão e se põe a chorar. Mas continuo onde
estou, na cama dela, enquanto sua mãozinha gelada acaricia meu rosto.
“Sou eu, a Kira”, repete ela várias vezes, porque eu não paro de
balançar a cabeça. Não e não e não. Ela não é a Kira. Esse não é o nome
dela. É outra coisa. Como é mesmo?
“Ki-ra.”
As lágrimas escorrem pelo meu rosto, ou ao menos acho que escorrem,
porque sinto a pele molhada. A noite de ontem volta em lampejos, como as
colagens de vídeo artísticas que Fosco às vezes projeta no telão da
Caverna, sequenciadas de modo a encorajar outras criações, a nos inspirar
em direção a uma grande epifania criativa. A cabeça sibilante e cuspidora
de Rob Valencia, meu amor adolescente. Os respingos de sangue nas
paredes. Uma luva manchada. Uma boca cheia de orquídeas. O miolo
rosado e venoso daquela flor, semelhante a uma boca pronta para um beijo.
E eu vejo tudo isso do alto de uma nuvem de algodão. Deixo escapar um
soluço de choro.
“Sshhh”, me tranquiliza ela. Depois me oferece dois comprimidos
clarinhos e um copo gigante com estampa de melancias sorridentes.
“Aqui, tome isto, Bunny”, instrui.
Olho os comprimidos na palma da mão dela. Parecem Tic Tacs.
“O que é isso?”
“Vai ajudar. Confie em nós.”
Eu os engulo com a ajuda do líquido açucarado no copo de melancias
sorridentes. Acho que é limonada. Limonada rosa. Ela fica olhando
enquanto bebo.
“Você está bem, Bunny?”, pergunta com uma voz que não tem nada de
infantil.
É uma voz grave, como a de uma jovem normal, a de uma mulher
normal e apreensiva que me olha como se eu estivesse prestes a entrar em
combustão espontânea.
“Estou, sim.”
Estou na minha floresta de pinheiros. Estou na cama perfeita que
roubei, com meus cachos dourados espalhados no travesseiro. Olho para a
janela outra vez e admiro as folhas verdes e douradas.
“Rob Valencia”, conto para as folhas. “A cabeça dele explodiu.”
Quando digo isso em voz alta, percebo como soa engraçado. Uma
risada escandalosa e estridente escapa de mim. Não consigo parar.
E de repente ela me dá um tapa bem forte. É o suficiente para eu calar
a boca. Em seguida, faz carinho na minha bochecha.
“Isso é o que você acha que viu, tá? Corta essa”, responde ela.
Corta essa. Penso em uma serra, a lâmina prateada e cheia de dentes
que corta tudo. Árvores. Mulheres. Animais de desenho animado. Granizo
de crânio. Chuva de cérebro. Uma orelha decepada ainda quente.
“Corta essa”, repito. “Corta essa. Corta essa, corta essa, corta essa,
corta…”
Ela me dá outro tapa, dessa vez mais forte.
“As coisas nem sempre são o que parecem, são?”
Observo suas orelhas de gato. Seus olhos dourados, suplicantes. As
melancias sorridentes do copo piscam para mim. A lâmina serrilhada se
dissolve em riachos de águas prateadas banhadas pelo sol. Eu flutuo em
meio às ondas.
“Bunny”, chama ela, “que tal almoçar com a gente hoje? Depois do
seminário. Está livre?”
Tento pensar em algum compromisso. Algo que realmente preciso
fazer, aí não teria que mentir. Alguém que preciso encontrar. Vasculho meu
cérebro em busca desse alguém, mas não o encontro. Cada contorno ali é
escuro, indistinguível, como se alguém tivesse apagado a luz. Tudo o que
vejo são folhas brilhantes.
“Estou livre, sim.”
“Vamos nos atrasar para a aula”, avisa ela, ficando de pé. “Você pode ir
de SafeRide comigo.”
“SafeRide”, repito. É o serviço de carona da universidade para os
estudantes que não se sentem seguros para ir ou voltar do campus. Olho
para o sol raiando lá fora. “Mas está de dia.”
Ela encolhe os ombros.
“Melhor prevenir do que remediar.”
Penso na cabeça de Rob Valencia. Os respingos de sangue na parede.
Tento gritar, mas tudo o que sai dos meus lábios é um leve suspiro.
“Você precisa se arrumar. Separei um vestido para você, porque o de
ontem está… Enfim, é aquele ali.”
Ela aponta para um montinho de tecido azul pendurado na cadeira.
Olho para o vestido. Tem estampa de gatinhos tomando sorvete, com
coroas ligeiramente tortas na cabeça.
“Tá bom”, respondo.
“Também fiz café pra você. Ah, acho que é melhor você colocar isto”,
diz, atirando na cama um par de óculos em formato de coração. “Você vai
ficar meio sensível à luz por causa dos comprimidos.”
Ela sai do quarto e me deixa ali, ainda segurando o copo de melancias
sorridentes, com os óculos de sol jogados no colo. Na mesinha de
cabeceira, um príncipe sapo de pelúcia me observa com uma espécie de
horror alegre. Samantha, ah, Samantha, o que você vai fazer?
Na Caverna, elas são superlegais comigo. Todas se sentam tão, tão perto de
mim! Não do outro lado da sala, e sim nas carteiras bem ao meu lado. E
me chamam de Bunny. Já tinha esquecido seus nomes, mas elas me
ajudam a lembrar. A de aparência comestível com um corte chanel
dourado é Caroline. A direta, linda e translúcida que parece ter vindo de
outro século se chama Victoria. E aí tem a rainha delas, que parece uma
nobre islandesa malvada, mas que hoje me lança um olhar que transborda
gentileza. Essa é Eleanor. “Isso mesmo, Eleanor”, confirma ela, apertando
minha mão como se eu tivesse escapado da morte por um triz.
Elas tecem comentários incrivelmente gentis sobre meu texto, outra
história que escrevi há muito tempo e depois lapidei às pressas. Pelo jeito,
até numerei e grampeei as páginas que agora elas leem com tanta atenção,
entre um ou outro murmúrio de aprovação.
“Isso aqui está incrível, Samantha.”
“Uau, simplesmente uau.”
“Estou deslumbrada, sério.”
“Muito deslumbrada.”
“Sério. Que comentário fascinante sobre as políticas sociais por trás
de…”
Uma música abafa suas vozes. Um arranjo de violinos etéreos como os
de Henry Mancini, como se eu estivesse em um filme antigo.
“Tão fascinante.”
Elas me comparam a Woolf, a Borges, e os seus elogios são tão
extravagantes quanto suas bolsas. Nem sinal das futilidades que as vi fazer
fora desta sala de aula. As tranças no cabelo. Os abraços esmagadores.
Quase chego a pensar que sonhei com seus arrulhos, com sua coelhice.
Agora é a vez de analisar o texto daquela de cabelo dourado. Caroline.
E me vejo dizer coisas muito gentis sobre a história de uma garota que está
vivendo um romance indefinido com uma névoa que só ela consegue
enxergar.
“Isso está maravilhoso, Caroline”, elogio.
E o nome dela parece estranho na minha boca, mas também adorável,
como um novo tipo de doce. Caroline, quanta originalidade. Que reflexão,
Caroline. Caroline, que fraseado poético.
“E o que você achou do livro que passei, Samantha?”, pergunta-me
Fosco quando nós, de um jeito muito repentino, passamos a discutir a
leitura.
Olho para a capa do livro, uma foto artística de uma garota que parece
radiante por estar com o cabelo em chamas. Folheio as páginas e não
encontro nada além de blocos de texto sem pontuação. Volto a olhar para
Fosco, que me encara com ar de quem sabe que não li nem uma palavra.
Por um instante, imagino a cabeça dela explodindo.
“Fosco”, começo a dizer baixinho. “A verdade é que eu não…”
“Você estava me dizendo agorinha mesmo que achava que este livro
apontava para um paradigma complexo dos desejos femininos”, interrompe
a garota chamada Eleanor, sem olhar para mim. “Que dá voz à circum-
navegação do círculo hermenêutico. E, a meu ver, o texto de Samantha
traça um paralelo claro com este livro. Você deve ter se inspirado de
alguma forma…”
Fosco assente.
“Eleanor, você tem toda razão. Samantha”, chama ela, virando a grande
cabeça na minha direção. “Fiquei muito impressionada com o texto que
você escreveu esta semana. Você tem se desenvolvido muito no âmbito
emocional ultimamente, isso é nítido.”
Todas elas concordam e sorriem para mim.
Observo Fosco através dos meus óculos em formato de coração. A
tonalidade das lentes faz com que ela pareça estar tingida de rosa-escuro.
As outras também.
“Nítido”, respondo. “Fico muito feliz.”
Mordisco o cupcake que Caroline me ofereceu antes de a aula
começar. “Para curar a ressaca”, disse-me ela, acanhada, enquanto estendia
as mãozinhas rosadas que seguravam o doce confeitado.
13
Três explosões de coelhos depois, durante as quais o machado fica cada vez
mais salpicado de sangue e o ar fica cada vez mais carregado com o odor de
garotos e coelhos mortos, Odisseu iv surge diante de nossos olhos. Cabelos
cor de areia. Um cachecol em volta do pescoço. Um leve lábio leporino.
“Bonjour”, dizemos. “Oi.”
Odisseu iv olha no fundo dos olhos de cada uma. Depois sorri com
seus lábios retorcidos.
“Contem-me tudo”, pede.
E de repente me perco em seus olhos, azuis como corante alimentício.
Meu sangue está reluzindo. Meu coração está em êxtase. Uma música de
que antes eu me culpava por gostar de repente domina toda a minha alma.
É uma canção sobre pesadelos disfarçados de devaneios, sobre trocar a
alma por um beijo. E eu penso: Essa música não, qualquer uma menos essa.
Mas minha alma já se pôs a cantar, navegando pelos versos como se
fossem uma onda cintilante do oceano.
Kira dá um tapinha nas minhas costas, o cabo do machado
ensanguentado ainda frouxo em seus dedinhos minúsculos.
“Bem-vinda ao seminário, Bunny.”
Parte Dois
15
Aqui no Mini tem muitos minicupcakes, mas deveria ter mais. Por que não
tem mais? Deveria ter mais mini, mais! Então dizemos a eles que deveria
ter mais mini, e eles não parecem dar a mínima.
Bunny mal toca na comida. É a que está mais chateada por causa das
coisas nada agradáveis que MuiMui disse sobre seus proêmios de
diamante.
“Bunny”, dizemos, “quem é ela para falar isso, sabe?”
“Coma, Bunny”, pedimos, “por favor, coma alguma coisa.”
“Por nós?”
“Porque não queremos que você morra, Bunny!”
“Não queremos viver em um mundo sem você!”
“Se você morresse, nós também morreríamos. Por favor, Bunny, coma
alguma coisa! Por favor, por favor, por favor.”
“Bunny, nós sabemos que às vezes você fica deprimida porque sua irmã
é tipo uma neurologista incrível ou algo do tipo e que você basicamente
passou vinte anos vivendo à sombra dela enquanto lia e fervilhava de raiva.
Mas aí chegou o dia em que você entrou no quarto da sua mãe e usou o
anel de diamante dela para arranhar o espelho da penteadeira e depois
todas as janelas da casa, entalhando mensagens da deusa da Sabedoria. Foi
nesse dia que nasceu uma estrela literária, Bunny. Foi nesse dia que você
começou a compartilhar seu dom com o mundo. Sua irmã pode salvar
vidas, Bunny, mas você salva almas com seus proêmios de diamante. E
quantas pessoas são capazes de fazer algo assim?”
Então vemos Bunny tocar um minichurro com seus dedinhos
delicados. E batemos palmas quando ela começa a tocá-lo com a boca. Ela
não vai morrer, hoje não, e agradecemos à deusa unicórnio, a quem
dirigimos uma breve oração.
Mudamos o rumo da conversa para algo mais interessante: “Quem vai
ser nosso próximo Garoto… queremos dizer, Híbrido? Hein?”.
Refletimos um pouco. É tão divertido debater possibilidades com
nossas canetas de glitter. Fazer várias e várias anotações nos nossos blocos
encadernados em couro e feitos de papel de luxo! Esmiuçar a literatura e o
cinema e a música e os mitos do mundo e escolher só a nata.
Mas Bunny diz que não estamos nos aprofundando o bastante. “Temos
que ir além. Precisamos ser mais duras, mais brutas e mais ricas, como a
noite.”
“Tudo bem, Bunny”, sussurramos. “Tudo bem.”
E refletimos, refletimos, refletimos.
Bunny toma um golinho de seu minicoquetel e nos observa, uma de
cada vez, como se nos desafiasse. Talvez até querendo ver se nos
atreveríamos. Desafiando suas companheiras Bunnies. Isso é um pouco
cruel, mas deixamos passar porque amamos você, Bunny.
“Talvez uma abordagem revisionista dos contos de fadas?”, sugere
Bunny. “Uma peça subversiva com tropos canônicos?”
Sabemos que isso significa que Bunny quer um tritão de novo. Ou
outro lobo da floresta. Ou então um príncipe pálido e sisudo emergindo
dos arbustos para escalar seus cabelos. Bunny olhando para ele do alto de
sua torre. Vestindo uma capa vermelha, ou talvez um vestido feito de
trapos. Ou, quem sabe, um vestido feito de ouro?
Mas Bunny não gosta dessa abordagem. Bunny acha que
tritão/lobo/príncipe é uma ideia idiota. Infantil. Muito heteronormativa.
Nós concordamos. “Não, Bunny. Nós amamos você, mas não.”
“Que tal uma mistura de pós-colonialismo e terror literário?”, sugere
Bunny.
Então ela deve querer uma versão suavizada do Drácula outra vez. Não
alguém disposto a arrancar sangue com uma mordida, mas com quem
talvez possa beber um ou outro coquetel vermelho no escurinho de um bar.
Alguém com um sotaque leve, quase imperceptível. Que não vai matá-la
de fato, mas vai passar essa impressão o tempo todo — é só seu jeito
intenso, forasteiro. Ou talvez um príncipe mouro com olhos delineados
com kajal, familiarizado com os escritos de Sade e técnicas pouco
ortodoxas de trançar o cabelo. Um Outro, mas não um Outro Assustador
que não consiga lhe preparar um chá com os gestos graciosos de um
britânico anêmico.
Torcemos o nariz para a sugestão da Bunny. “Estamos preocupadas
com o nível de Alteridade, de Orientalismo com que você está se
envolvendo, Bunny. Achamos que você precisa ter mais cuidado em
relação a isso.”
“Quem sabe, então, a gente possa recorrer aos filmes, brincar com a
possibilidade de nos entregar a uma nostalgia exagerada”, sugere Bunny.
Então ela deve querer James Dean outra vez, encostado em uma
cerquinha de madeira. John Cusack em Diga o que quiserem outra vez,
segurando uma caixa de som debaixo de chuva. Marlon Brando outra vez,
gritando por Stella na noite abafada. E Bunny no terraço outra vez, com
um vestido branco tomara que caia estampado com pássaros caolhos.
Gotas de suor brotando no buço a cada vez que ele gritava o nome dela.
Outra vez.
Mais narizes torcidos. “Tsc, tsc. Reforçando velhas narrativas, Bunny.
É muito legal que mesmo tendo sido uma atriz fracassada você ainda
queira que tudo pareça uma cena de filme. Você devia ser tão incrível,
mesmo que dissessem que você não era bonita nem magra o suficiente,
independentemente do quanto você vomitasse. Mas, Bunny, eles não
sabem de nada, nós achamos que você é tão, tão linda. Mas você não está
mais nos palcos, Bunny. Precisa ser mais ambiciosa, mais ousada, por
favor.”
“E se tentássemos usar outros animais?”, ouvimos nossa voz sugerir.
“No lugar de coelhos, sabe?”
Silêncio repentino. Minicomidas deixadas no prato. Taças de
champanhe interrompidas a meio gole.
Bunny nos olha como se não tivesse entendido. Outros animais? No
lugar de coelhos?
“Que outros animais, Bunny?”
“Vai saber”, dizemos.
De repente é muito difícil pensar em outro animal além de coelhos.
Quando vasculhamos nossa mente, tudo o que vemos são orelhas caídas e
rabinhos felpudos.
“Ah, que tal um lobo?”, sugerimos por fim. “Ou um cervo. Ou, quem
sabe, até um pássaro. Pode ser interessante. Tipo um experimento.”
Bunny nos olha como se fôssemos malucas. Como se quiséssemos nos
rebelar.
“Só um experimento”, esclarecemos em um sussurro, baixando os
olhos. “Só podemos usar coelhos?”
“Por que usaríamos outra coisa além de coelhos, Bunny?”
“Bom, então talvez pudéssemos tentar fazer outra coisa além de
garotos?”, sugerimos, mas nos arrependemos de imediato.
“Bunny, nós não fazemos garotos, já falamos. São Híbridos.”
“Queridinhos.”
“Rascunhos.”
“Além disso, nós não os fazemos.”
“Ok. Bem, talvez se…”
Bunny nos interrompe, dizendo que estamos desvirtuando o propósito
do exercício. O que ela quer dizer é que precisamos de uma abordagem
mais profunda, mais rica, mais esquisita. Beber da fonte de…
“Precisamos de um pau que funcione. Pelo menos sei que eu preciso.”
Mais silêncio. Contemplamos nossos minipratinhos. Será que Bunny
precisa mesmo ser tão grosseira? E ainda assim seu argumento é válido.
Ela é do tipo que vai direto ao ponto, não tem como negar. É por isso que
nós a amamos, por mais que às vezes seja difícil de lidar. É verdade que,
mesmo depois de tantos experimentos, não conseguimos fazer um Híbrido
com órgãos genitais funcionais. Ou mãos de carne e osso.
“Que se fodam as mãos”, diz nossa Bunny mais direta e grosseira. “Eu
quero saber do pau.”
“Talvez esteja na hora de Samantha participar mais da conversa”,
comenta uma de nós.
E nos parece tão estranho ouvir esse nome em voz alta. Tão familiar,
mas tão distante.
Aguçamos nossos ouvidos inquietos. Ainda não conduzimos o
seminário. “Logo, logo, Bunny”, sempre diz Bunny. “Estamos muito
empolgadas com o que você tem a oferecer. Considerando todos os seus
dons, toda a sua história de vida.”
Mas a verdade é que estamos apavoradas. E se esse for o dom de
Bunny, e não o nosso?
Ora, não seja boba!
“Os garotos, quer dizer, Híbridos, estão ficando melhores só de ela
estar aqui. As bocas estão menos esquisitas, a gosma diminuiu. Os gritos
também estão menos frequentes. E os rabos.”
“Além disso, eles parecem mais… dispostos.”
“E melhores na cama. Quer dizer, não na cama, obviamente, mas pelo
menos já não têm mais tanto medo de camas.”
“Ou talvez a gente esteja melhorando”, argumenta Bunny. “Acho que
também estamos nos aprimorando.”
“Eu gosto dos que têm rabinho” comenta outra de nós. “Acho sexy.
Podemos fazer um com rabinho para mim, por favor? Ooh, e um focinho
também. A gente deveria organizar outra festa de Garotos Avariados, quer
dizer, de Rascunhos. Já faz séculos que não fazemos uma.”
“Bunny, você é nojenta”, dizemos. “Aimeudeus, você é tão nojenta. Mas
nós a amamos mesmo assim, Bunny, como se você fosse nosso bebezinho
esquisito e doentinho que parece um velho nojento, do mesmo jeito que às
vezes os bebês são parecidos com qualquer um, menos com a mãe.”
Bunny faz uma careta engraçada para nós.
“Ah, Bunny, você é tão engraçada.”
Dizemos que Bunny é muito engraçada e rimos porque é mesmo. Ela é
tão engraçada.
E então rimos e rimos sem parar até que um garçom aparece e
pergunta por que tanto riso e se está tudo bem com uma voz tão
preocupada que torna tudo ainda mais engraçado, então desatamos a rir
ainda mais. Nossa risada o deixa incomodado porque ele não entende
nada, não faz parte da piada, por mais que queira, dá para ver o desejo
estampado no rosto dele, o que torna tudo ainda mais engraçado. Então
rimos ainda mais, abraçando nossas barrigas torneadas com tanta força que
nem conseguimos respirar. Quase morremos ali mesmo, cercadas de
minicomidinhas. “Aimeudeus, aimeudeus, aimeudeus, tão engraçado.”
Devemos ter queimado umas mil calorias só de rir porque é muito, muito
engraçada essa piada sobre Bunny ser engraçada. Uma Bunny
engraçadinha.
E agora estamos com fome outra vez. Com vontade de tomar iogurte da
Pinkberry. “Com tanta, tanta vontade, aimeudeus. Aimeudeus, a gente
deveria ir. Será que tá aberto?”
“Sim, então a gente deveria ir.”
“A gente deveria ir. A gente deveria ir, deveria ir, deveria ir. Então
vamos?”
“Vamos, Bunny.”
“Aimeudeus, será que a Bunny ama Pinkberry? Ela ama tanto tanto
tanto tanto ela ama tanto nossa tanto aimeudeus. Estamos tão felizes agora
que dá vontade até de pular, de dançar. Quem quer dançar com a gente?”
Quando fazemos essa pergunta, uma dor se apodera de nós, a
lembrança de um telhado. Uma mão feminina coberta por uma luva de
renda. Um par de olhos, um azul e outro castanho, iguais aos de um cantor
descolado. Como ele se chama mesmo? Por um minuto, nem conseguimos
respirar. Ela tem um nome, essa mulher com mãos enluvadas. Ela nos
manteve perto uma vez, mas nunca perto demais. E tinha cheiro de
alguma coisa, do que era mesmo? Algo almiscarado. Algo relvado. E os
cabelos pareciam penas brancas. Como ela se chamava mesmo? Acho que
era…
“Nós queremos dançar com você, Bunny.”
Então dançamos durante todo o caminho até o shopping. Às vezes por
dentro, às vezes por fora, às vezes dos dois jeitos. Encontramos tantas
coisas engraçadas pelo caminho e rimos de todas elas. E também
encontramos tantas coisas fofas. Não conseguimos deixar de arrulhar e
bater palminhas diante das coisas tão, tão fofas deste mundo. “Olhe só os
patinhos, aimeudeus, os patinhos, que fofos.” “Olhe só o céu, aimeudeus, o
céu, que fofo.” “Olhe só aqueles prédios tão altos que refletem o pôr do
sol, que brilhantes, aimeudeus, que brilhantes.” “Morador de rua não olhe,
não olhe, faz dodói por dentro.” “Não, pode olhar, sim. É triste. Deixa a
gente mais reflexiva, deixa a gente mais profunda.” Nossas mães sempre
diziam que devemos encarar as coisas que fazem dodói nos olhos porque
vão colorir ainda mais nosso arco-íris interior. Uma de nós faz uma postura
de ioga bem ali, no meio da rua, um movimento exibido em que faz uma
parada de cabeça, com as pernas no ar, usando a cabeça e os cotovelos
para se equilibrar. É a postura do corvo. Observamos seu corpo longo e
esbelto, todos os músculos torneados de balé contraídos na parte superior
desse corpo longo e esbelto, e lembramos que ela quase foi reprovada na
escola de dança de Interlochen. Lembramos que ela tem um rosto de
formato esquisito e um cabelo meio tosco que fica lambido na testa.
Lembramos que as histórias dela são bobas, que ela não ganhou nenhum
prêmio na Universidade Barnard. O nariz parece até meio esmagado no
rosto. Os olhos até que ficam bonitos dependendo da luz, mas na maioria
das vezes são de uma cor bem sem graça. Nós lembramos de tudo isso e aí
dizemos: “Aimeudeus, que incrível. Você é maravilhosa. Uau. Podemos ser
iguais a você, por favor?”.
E assim seguimos colina abaixo, lá-lá-lá, aquela onde as torres e os
sinos da Warren reluzem como um desejo. Como as flores que usamos nos
Bailes de Quinta. Quanto mais nos aproximamos do centro da cidade, mais
sombrio fica. O ar é diferente aqui. Mais úmido. Mais sujo. O céu é
tingido de um rosa-escuro que lembra a cor das entranhas, que lembra o
que acontece com o machado no banheiro quando os Queridinhos não
estão prontos. Passamos por lugares assustadores, porque para chegar à
Pinkberry temos que atravessar alguns lugares assim e para reunir coragem
é preciso mentalizar Pinkberry Pinkberry Pinkberry. Esta cidade não é fofa
como Pinkie Pie nem assustadora de um jeito fofo igual ao jovem Marlon
Brando. Passamos abraçadas por estúdios de tatuagem e lojas
abandonadas. Pela velha com uma tatuagem de aranha no pescoço que vai
estar em todas as histórias que escrevermos na próxima semana. Ela está
esperando o ônibus, um ônibus imundo, imaginamos, que a levará para sua
casa cheia de lixo e ratos onde ela come coisas viscosas direto do pote.
“Bunny, me abrace. Será que pode me abraçar? Mais forte?” Mas não tem
como abraçar mais forte, mesmo que a gente já esteja sem ar com a força,
com a intensidade desse aperto, e ainda assim parece que estamos
abraçando o nada. Como se nos faltasse algo. Como se pudéssemos nos
abraçar mais e mais e mais até nossas costelas quebrarem e nossos
corações explodirem e nossos pulmões colapsarem e nossos braços
falharem. E ainda assim estaríamos abraçando o ar. Não um corpo.
E então a gente percebe, não, sente. Sentimos o cheiro dela primeiro.
Lenha. Folha. Estamos na metade da descida quando sentimos uma mão
enluvada cobrir nosso rosto e de repente somos arrastadas, mais e mais e
mais, até um beco entre as lojas abandonadas.
“Não grite”, sussurra uma voz no nosso ouvido, com um hálito de
cigarro mentolado. “Não respire.”
Da rua, ouvimos Bunny chamar nosso nome.
“Bunny? Bunny? Bunny, cadê você? Bunny, para onde você foi?”
“Bunny? Para onde ela foi?”
“Aqui, Bunny!”, queremos gritar através dos dedos enluvados.
Conseguimos ouvir Bunny andando em círculos em suas sapatilhas,
seus mocassins, seus sapatos Mary Jane, seus coturnos. Tap tap tap na
calçada. Estão nos procurando.
“Estamos aqui, Bunny!”, queremos gritar. “Na escuridão assustadora!
No beco sórdido com sabe-se lá quantos ratos, aranhas e assassinos.” É
isso que gostaríamos de responder, mas estamos com muito medo
enquanto uma mão perfumada cobre nossa boca, e a outra segura com
força nossos braços atrás das costas.
Soltamos um grunhido através de seus dedos enluvados. Um som de
protesto.
“Sshhhh”, diz a voz, que parece sibilar e estalar como uma cobra. Se
cobras falassem, seria exatamente assim.
“Bom, vamos andando”, ouvimos Bunny dizer. “Ela vai achar a gente.
Se ela quiser, vai nos encontrar.”
Então vemos Bunny espiando o beco, os olhos semicerrados.
“Bunny? Você está aí?”
“Sim!”, gritamos.
Mas a mão aperta nosso rosto ainda mais forte, abafando o som. E
então Bunny dá uma última olhada no beco antes de se virar. Assim que
ela se vai, uma boca perto do nosso ouvido conta devagar até trinta, depois
as mãos que nos prendiam finalmente nos soltam.
Corremos pelo beco para ver para onde elas foram. Mas a rua está
vazia e, ah, tão, tão escura. De repente, todos os postes se apagam. Não
conseguimos enxergar nada.
“Bunny”, sussurramos. “Alguém aí?”
O mundo está mais escuro do que nunca. Estamos perdidas. Nós
estamos perdidas, perdidas, perdidas…
16
Sigo o Soldador Francês Órfico até a sala de estar, onde as quatro estão
sentadas em uma rodinha, os golden retrievers de Eleanor logo ao lado.
Está na cara que estavam falando de mim. Estão com as bochechas
coradas e rechonchudas de quem comeu muito doce, mas na verdade é o
Brilho da Fofoca, o ar de rubor que surge ao puxar o tapete de outra
mulher. O cômodo está tomado pelo aroma de seus perfumes relvados e
seus condicionadores orgânicos. Diante de cada uma delas há uma tacinha
cheia até a borda com um líquido violeta e borbulhante, com algo que
parece um globo ocular assentado no fundo. Uma lichia.
Sinto o coração martelar no peito. Os mantras. Não esqueça os
mantras.
“Samantha, estamos tão felizes por você estar aqui.”
“Samantha, a gente estava conversando…”
E então se entreolham.
“E tem algo que queremos lhe dizer.”
De repente, toda a minha determinação cai por terra. Eu também tenho
algo a dizer! Tenho mesmo. Não tenho?
“O que é?”
Elas trocam outro olhar entre si.
Vão me dizer que devo ir embora. Vão me expulsar do grupo. Vão tirar
seus Queridinhos do porão e ordenar que me acompanhem até a porta da
frente. E eles vão me encarar com seus olhos insípidos e brilhantes e abrir
suas bocas malformadas para dizer: “Vá embora”. Os mais burrinhos vão
apenas apontar para a porta. E aí eu não terei escolha a não ser retornar a
um mundo frio sem Ava. Retornar ao meu quarto de paredes finas,
espremida entre o gigante pervertido e a garota de rosto pálido, e para a
escrivaninha que tenho evitado.
“Sobre o que vocês queriam conversar?”, pergunto.
“Sente-se.”
“É que você é tão alta”, explica Boneca Sinistra. “Então vai ser menos
estranho se você se sentar.”
Elas apontam para um pufe vazio no chão, onde me acomodo de frente
para elas. Parece aquela primeira noite, muito tempo atrás, quando
pediram que eu lhes trouxesse um coelho. Um ultimato, penso. Elas vão
me dar um ultimato. “Você não pode. Você…” A Duquesa sorri para mim.
“Quem quer contar para ela?”
“Conte você, Bunny.”
“Não, é melhor você.”
“Que tal se todas contarmos juntas?”, oferece ela, como se fosse um
petisco.
“Vamos contar juntas.”
“Mas primeiro vamos contar até três, né?”
“Isso! Um… dois… três.”
E então uma enxurrada de palavras gritadas e incompreensíveis,
seguidas de uma explosão de gargalhadas.
“Ai, gente… vamos tentar mais uma vez, ok?”
“Ok!”
“Um, dois, três.”
A cena se repete. Elas desatam a rir e eu continuo as observando do
pufe. “Puta merda, vá embora. Só dê o fora daqui. Por que não levanta e
sai?”, pergunta uma voz feminina no meu ouvido. Um pouco irritada. Já
quase sem paciência. E cada vez mais distante. A voz de Ava. Minha voz. O
ódio fervilha na minha alma e mesmo assim estou paralisada pelo medo de
que elas me expulsem de vez.
A Duquesa pousa a mão no joelho de Cupcake e, uma a uma, elas se
calam, como em um efeito dominó.
“Samantha”, começa a Duquesa depois de uma longa pausa, “queremos
que você lidere o seminário esta noite.”
“Achamos que você está pronta, Bunny.”
“Na verdade, estamos ansiosas para ver do que você é capaz.”
“Toda essa sua energia bruta em ação. Toda essa sua imaginação.”
Sorrisos acanhados, diminutos, por toda parte. Seguidos por uma
expressão preocupada — olhos piscando sem parar — ao fitar meu rosto,
que deve estar se contorcendo involuntariamente, só pode estar.
“Bunny, o que foi?”
“Você está chorando, Bunny?”
“Não chore, Bunny.”
“Desculpem. É só que eu achei que vocês iriam dizer outra coisa.”
“O que você achou que a gente iria dizer?”
“Sei lá, eu só…”
Por causa das lágrimas, eu as vejo como silhuetas borradas e aquosas.
Elas se transformaram em uma bolha disforme cor de pêssego com um
vestido arco-íris em tons pastel, os golden retrievers assomando como
pilares reluzentes de cada lado.
“Achou que a gente iria expulsar você? Que não queríamos mais ser
suas amigas?”, pergunta a bolha, com um tom preocupado.
Olho para a bolha, que ri baixinho com todas as suas bocas.
“Bunny, a gente não está mais no ensino médio.”
“Nem na graduação, Bunny.”
“Nem em um filme dos anos oitenta.”
“Nem mesmo em um dos anos noventa.”
“Somos todas adultas instruídas aqui.”
Atrás da bolha, vejo outro Queridinho à espreita. Ele segura uma
colher de pau em uma das mãos e um martelo na outra. Cozinteiro, já que
elas não conseguiram decidir se ele deveria ser chef de cozinha ou
carpinteiro. Eu o vejo mexer e martelar o ar em confusão. Depois me
observa com aquele olhar aflito, vazio.
“Aqui, Bunny”, diz a bolha, e então me entrega Pinkie Pie, o pônei que
elas usaram como símbolo de seus desejos — complexos e cheios de
nuances — naquele primeiro dia no Mini.
Analiso seus olhos gigantescos de plástico, grandes demais para sua
cara de cavalo.
“Nem sei o que dizer.”
“Esse é o lado bom de ser nossa amiga, Bunny.”
“Às vezes nem precisa de palavras.”
“Você poderia nos mandar um emoji de baleia amanhã à tarde e nós
diríamos: A gente entende. A gente sabe muito bem o que você está
sentindo.”
A bolha assente com as quatro cabeças. Depois se levanta de seus
muitos tronos. E se aproxima de mim meio sem jeito, quase acanhada.
Hesita por um instante. Então avança e me envolve com todos os seus
braços. Pressiona seu corpo cheio de seios contra meu rosto, e só consigo
sentir o aroma de cupcake e perfume relvado. Começo a me afogar. Estou
sufocada. Fervilhando de ódio. Tomada por um desejo desesperado de
escapar desse abraço açucarado. Digo a mim mesma que preciso lutar
contra isso — não esqueça que você as odeia, não esqueça que elas odeiam
você —, mas tudo desmorona de uma vez. Eu sucumbo a elas. Permito que
essa necessidade doentia, a qual repulsa nenhuma consegue matar, seja
resgatada da escuridão fria e úmida e então acariciada. E eu me derreto em
seu abraço, me deixando, ou melhor, desejando ser esmagada. Até me
tornar parte da bolha. Ou quase isso.
“Bunny”, diz uma das bocas, “vá buscar o coelho.”
Elas contam que o apanharam para mim mais cedo naquele dia. Quando
puxam o pano vermelho que cobre a gaiola, chego a arfar.
“O que você achou? Não é perfeito?”
“Nós olhamos para ele e pensamos ‘aimeudeus, esse coelho é tão a cara
da Samantha’.”
“Tão fofo, mas também meio assustador.”
Contemplo a monstruosidade felpuda à minha frente. Branco como a
neve. Orelhas e focinho pretos. Uma manchinha escura em cima de um
dos olhos vermelhos, como se estivesse de tapa-olho. Nem sei dizer se é
lindo, horrível ou só sinistro pra cacete. Mas elas o pegaram para mim.
Olho para seu rostinho manchado e fico emocionada com o gesto.
“É perfeito mesmo”, respondo. “Obrigada.”
“A gente tinha certeza de que você iria gostar.”
Elas acenderam as velas perfumadas e um incenso que parece mais
almiscarado, mais picante, mais pútrido do que os de baunilha que
costumam usar.
“Perguntamos ao Fern na loja qual era o melhor incenso para quem é
meio vadia.”
“Tipo, se você fosse uma vadia, mas no bom sentido, sabe?”
“Ou se você fosse só uma vadia mesmo.”
“E ele nem pestanejou, só respondeu: ‘Ah, este aqui’.”
“Nada de estímulos audiovisuais esta noite”, disseram elas, “porque
você com certeza não precisa disso, Samantha. Não queremos influenciar
sua essência. Não queremos atrapalhar seu fluxo criativo.”
Não sei há quanto tempo estamos sentadas ali, observando essa criatura
que se enrolou como uma bolinha imperturbável. Seus olhos vermelhos
zombam de mim. Sua expressão ri da minha cara. Exploda. Exploda de uma
vez, seu merdinha.
Caroline esconde um bocejo. Victoria boceja na cara dura. Kira olha
para o relógio, depois para cada uma delas e depois de volta para o relógio.
Eleanor mantém os olhos vidrados em mim.
“Desculpe”, peço baixinho. “Eu nunca fiz isso antes.”
“Não precisa pedir desculpa, querida. Acontece. Tipo, nunca
aconteceu comigo.”
“Nem comigo.”
“Nem comigo. Mas sempre fico paranoica achando que vai acontecer,
sabe?”
“Você precisa se divertir, usar sua intuição, deixar a imaginação correr
solta”, aconselham elas.
“Toda aquela energia bruta e raivosa.”
“Todas aquelas coisas sombrias e complexas que aparecem nos seus
textos.”
“Ela já entendeu. Estou entediada para caralho aqui. E excitada
também.”
E então sorriem para mim. Com tanta bondade. Estamos ansiosas para
ver, Samantha. Estamos ansiosas para descobrir do que você é capaz. E me
sinto como naqueles casos em que alguém pede para você sorrir para a
foto, e no instante seguinte sua boca fica travada. Você percebe que não
consegue mais mexer os lábios.
O tempo passa, não sei quanto. Nada muda. Peço desculpas outra vez.
E elas abrem aqueles sorrisos inundados de algo que não consigo decifrar.
Decepção? Impaciência? Prazer?
“Talvez você só esteja pensando demais, Samantha.”
“Talvez seja melhor simplificar as coisas.”
“Talvez um estímulo audiovisual venha bem a calhar, afinal?”
“Talvez você possa imaginar todos os caras com quem gostaria de
trepar”, sugere Victoria. “Que tal?”
Um monte de atores e cantores passam pela minha cabeça. Tento ir
além. Imagino que estou estirada sobre lençóis baratos e penso nas
músicas que me fariam sentir que estou flutuando em direção ao teto. A
brisa úmida da primavera soprando pela janela. O dulçor relvado que ela
traz. A sombra linda e comprida que Rob Valencia projetava ao passar por
mim no corredor da escola, deixando para trás seu aroma de fumaça e
animais abatidos. O Leão mexendo o chá enquanto me conta alguma coisa,
mas nem sei o quê. Porque atrás dele, pela janela, eu podia admirar a
vastidão daquele céu amarelo-púrpura que ele podia contemplar a
qualquer hora. Penso em dançar com um Diego que nunca teve rosto. O
cheiro de sálvia salpicada de chuva. Tendões retesados no pescoço. Os
braços musculosos e tatuados de um cuspidor de fogo que vi certa vez em
Edimburgo. A maneira como me olhou quando enfiou a chama na boca.
Um lobo caolho pelo qual fiquei obcecada quando visitei o zoológico na
adolescência. Seria terrível se ele escapasse, mas de certa forma seria lindo
também. E então eu penso no cervo que acabei de ver lá fora. Os olhos
como fumaça líquida. Já deve ter desaparecido entre as árvores outra vez.
“Samantha?”
Mas o coelho continua onde está. Confirmando meus piores medos.
Confirmando que não sou igual a elas, afinal. Não consigo fazer isso,
jamais conseguiria.
“Será que não é melhor a gente ajudar?”, sugere Caroline. Mas ela não
está olhando para mim, e sim para Eleanor, que balança a cabeça devagar
como quem diz: “Nada disso. Samantha é quem deve lidar com esta
catástrofe”.
Ocorre-me de repente que esse convite pode não ser um gesto de
bondade ou confiança, e sim um teste. Ou, pior, uma forma de me
humilhar, para esfregar na minha cara que são elas que têm o dom, não eu.
Você não, Samantha. Foi mal. Simplesmente nascemos com essa habilidade.
Nós a herdamos, assim como nossas casas de praia, nossos pianos de cauda,
nosso gosto perfeito e cheio de nuances.
“Acho que não consigo”, declaro. “Desculpe.”
Olho para as quatro. Estão felizes? Irritadas? Com pena de mim? Nem
sei dizer. Os sorrisos vacilam por um instante. E então elas deixam escapar
pequenos suspiros de frustração.
“Você precisa ser mais confiante, Bunny.”
Pelo seu tom de voz, fica claro que isso já foi tópico de discussão em
uma de suas reuniões perfumadas. Uma nuvem de cochichos maliciosos
como pó mágico envenenado.
Samantha não tem um pingo de confiança, é tão frustrante.
Ela não acredita em si mesma. Tipo, se liga, sabe?
Dá vontade de sacudi-la pelos ombros, mas com delicadeza.
Ou dar um tapa na cara dela.
Ou de repente um soco, quem sabe? E depois dizer amo você. Você é
incrível.
“Você precisa se concentrar mais.”
“Esvazie sua mente.”
“Pense no que você deseja, Samantha”, diz a Duquesa de repente,
como se quisesse ir direto ao ponto. “É só pensar naquilo que você quer.”
O que eu quero ou o que você quer que eu queira? Não é tão simples
assim.
“É simples assim, Bunny.”
Então olho atentamente para os olhinhos vermelhos e redondos do
coelho, que continua ali, enrolado em si mesmo como um pequeno e
felpudo “Se Fode Aí”.
“Você não faz ideia mesmo, né?”, o coelho parece me dizer. “Que triste.
Muito triste, Samantha. Estar perdida desse jeito. Triste, triste, triste saber
que, quando alguém pergunta O que você quer?, a única coisa que lhe
vem à mente é um par de punhos segurando um monte de cacos.”
Ergo a cabeça e vejo que as quatro me observam com seus olhos de
fadas. Estão tirando uma com a minha cara. Só pode ser. E ainda assim
sinto aquele olhar revirar minha alma, saqueando qualquer dor e desejo
que elas acreditam residir ali. Todas as coisas que as impediram de se
aproximar de mim no ano passado, e que de alguma forma agora as atrai.
Uma ervilha a ser colocada debaixo de seus vinte colchões de modo que a
consigam sentir durante a noite, alguma coisa lá das Profundezas onde elas
acham, onde de alguma forma dei a entender, que moro. Liberte tudo,
Bunny. Mostre para nós. Ou faça papel de boba enquanto assistimos de
camarote.
“Vamos lá, Samantha.”
Fecho os olhos e vejo Ava, sozinha enquanto vaga sem rumo pela neve
com seus sapatos gastos. Ava e eu dançando no telhado da casa dela. Com
quem estávamos dançando mesmo? Com ninguém. Uma com a outra.
Com o ar. Lembro-me das noites que passei sozinha. E de repente percebo
que qualquer dor e desejo que eu sinta, qualquer coisa que se esconda sob
essa necessidade ensebada e covarde de agradar, não é algo que eu queira
entregar a elas.
O coelho olha para mim. Mexe as orelhas. Depois finalmente se
empertiga. Em seguida, me encara fixamente com seus olhinhos vermelhos
de coelho e sai correndo do círculo.
Sai pulando, acho, é um jeito melhor de descrever.
“Não se sinta mal”, dizem elas. “Sabemos que você está se sentindo assim.”
“Acontece. Tipo, nunca aconteceu antes”, comenta Cupcake, olhando
para Boneca Sinistra.
“Mas pode acontecer”, concorda Boneca Sinistra. “Tipo… acho que
pode.”
“Acabou de acontecer”, diz Vinheta, como se quisesse me fuzilar com
os olhos.
As três se viram para a Duquesa, que não precisa dizer nada, pois seu
silêncio diz tudo. Ela beberica seu coquetel violeta, que Borges Julio
Bolaño vii preparou com todo o cuidado. Até colocou uma lichia a mais, do
jeitinho que ela gosta.
“No que você estava pensando, Samantha?”
“Nada”, minto. “Só tentei pensar no que eu queria, como vocês me
instruíram.”
Elas olham para mim. Mentirosa.
“Mas você mentalizou? Tentou se concentrar? Como a gente falou?”
“Arrã. Bom, eu tentei.”
Mantenho o olhar fixo no piso imaculado, o assoalho de cerejeira
escuro, polido e sem arranhões até onde a vista alcança.
Vinheta fica de pé.
“Vou embora”, avisa. “A gente se vê na aula amanhã.”
Nós a observamos se afastar. Ouvimos seus coturnos marchando pelo
corredor. Aí ela se detém de repente.
“Aimeudeus, gente”, grita diante da porta. “Venham aqui.”
Lá fora, na neve que reluz ao luar, avistamos um monte de pegadas de
algum animal. Elas começam bem no meio do gramado, logo abaixo da
janela, e seguem em uma trilha sinuosa pela neve, dando uma volta ao
redor de uma árvore esguia antes de alcançar a calçada e atravessar a rua
até o ponto de ônibus.
Não podem ser de um coelho, acho, pois são grandes demais, mas
então sigo o olhar de Vinheta e avisto uma figura curvada sob o toldo do
ponto de ônibus.
A figura de um garoto.
Um garoto.
Meu coração começa a martelar forte no peito.
20
Que especial tem sido este grupo, diz Fosco, e, pela maneira como ela
evitou meu olhar, sei que está se referindo a elas, não a mim. O primeiro
grupo de ficção exclusivamente feminino da Warren. E com talentos tão
variados, tão grandiosos. Uma energia coletiva tão distinta. Nós realmente
nos exploramos a fundo. Realmente abraçamos a Experiência. Todas nós,
continua ela, e mais uma vez fico de fora do falso abraço mágico e
maternal de seu olhar.
“Ursula”, chama a Duquesa de repente, e aperta as mãos de Cupcake e
Vinheta, que a cercam como dobermanns, “acho que falo por todas nós
quando digo que foi um privilégio enorme trabalhar com você. Essa
experiência redefiniu a forma como abordamos a Obra. Aprendemos muito
com você, todas nós.”
Vejo quando entregam a ela um vaso de fícus adornado por um grande
laçarote vermelho, e eu nem fazia ideia de que pretendiam presenteá-la
com isso, nem sequer me pediram para ajudar no rateio. Tem um cartão
também, com um coelhinho vestido de Papai Noel, assinado por todas
elas, menos eu.
“Hum, quando vocês planejaram tudo isso?”, pergunto.
Mas minhas palavras se perdem em meio ao arrulho coletivo. Fosco
leva a mão ao peito, como se estivesse profundamente emocionada. As
Bunnies fingem estar emocionadas por sua falsa emoção. Ou será que é
tudo emoção genuína? Já nem sei mais.
“Ora, meninas”, diz Fosco. “Vocês não precisavam ter feito isso. E com
o dinheiro da bolsa, ainda por cima.”
“Ah, faça-me o favor, elas são ricas”, quero gritar. Mas apenas continuo
sentada onde estou, com um sorriso congelado no rosto, pregado no lugar,
embora abalado por espasmos.
“Mas a gente quis mesmo assim”, responde a Duquesa.
Fosco parece tão emocionada que seu lenço de seda chega a ondular
com a intensidade de sua empolgação fingida. Diz outra vez que devemos
aproveitar este período de férias, porque o próximo semestre, o último
antes de nos formarmos, vai passar voando igualzinho a este. E espera que
já estejamos bem encaminhadas na nossa dissertação, porque,
infelizmente, a jornada coletiva termina aqui. No próximo semestre vamos
ter que Cutucar a Ferida por conta própria. As quatro assentem em
concordância, de um jeito humilde, respeitoso, mas eu nem me mexo. Por
que não tem um maldito relógio nesta sala? É muito desorientador não
saber a hora.
“Alguém sabe que horas são?”, pergunto.
Todas se viram para mim, em choque, como se só agora tivessem
notado minha presença.
“Está com pressa para ir a algum lugar, Samantha?”, pergunta Fosco.
“Não. É só que… eu gosto de saber que horas são, nada mais.”
“Entendo.”
Ela me olha como se talvez fosse melhor eu analisar essa vontade.
Esmiuçá-la. Virá-la do avesso. Recorrer ao tarô, a uma pedra rúnica, às
folhas de uma erva amarga que mastiguei e cuspi.
“Bom, eu prefiro não saber”, comenta Vinheta.
“Eu também. Tão melhor”, concorda Boneca Sinistra.
“Tão revigorante a sensação de deixar o mundo real lá fora”, acrescenta
Eleanor.
“Aimeudeus, era exatamente o que eu ia dizer”, anuncia Cupcake.
“Eu fico desorientada”, declaro.
Silêncio. Uma tosse. Então, com a voz de quem está preparando uma
poção complexa, Fosco diz:
“A desorientação pode ser um lugar muito interessante para ocupar
como escritora, Samantha. Você deveria dar uma chance a isso durante as
férias, como uma espécie de exercício. Acredito que seria muito
esclarecedor para você.”
Em seguida, ela se vira para as quatro e acrescenta:
“Escrevam durante as férias, meninas. Mas não se esqueçam de relaxar
também, vocês merecem. Já se esforçaram tanto neste semestre… Agora,
que tal tomarmos um vinhozinho?”
Elas a ajudam a servir o vinho nos copinhos de plástico, mas só Fosco e
eu bebemos. Dou um gole na esperança de que isso me aqueça, pois de
alguma forma ainda estou atormentada pelo frio de ontem à noite, mas tem
um gosto rançoso, gelado, espesso como sangue. Estou prestes a me
levantar e dar o fora — a aula acabou, não? — quando a Duquesa se
pronuncia:
“Será que podemos fazer um exercício de escrita para comemorar
nosso último dia?”, sugere.
Uma onda de calor me invade. Não. Por favor, Fosco. Não.
Mas Fosco já está espumando de prazer. Quanto empenho! Quanto
interesse em usar cada minutinho do seminário para criar.
“Eleanor, que ideia maravilhosa! Infelizmente não tenho nenhum
exercício planejado, mas…”
“Ah, puxa. Que pena”, interrompo e faço menção de pegar meu casaco,
mas percebo que nem o tirei.
“Bom, na verdade eu tenho uma ideia do que a gente poderia fazer”,
avisa Boneca Sinistra.
Olho para Fosco, na esperança de que ela interprete isso como uma
rebelião, uma tentativa de superá-la ou destroná-la, mas ela é toda ouvidos
caridosos.
“Compartilhe com a gente, Kira.”
“Bem, ultimamente eu tenho pensado muito sobre… voltar para casa.”
Assim que ela diz essas palavras, o frio evapora de repente e me sinto
corar. Estou derretendo e congelando no meio de uma rua coberta de neve
enquanto vejo um ônibus desaparecer na escuridão.
“Já que… bom, as férias chegaram, então vamos todas voltar para casa”,
continua ela. “E como esse período realmente tem a ver com o retorno ao
lar… achei que poderíamos tirar alguns minutinhos para escrever sobre o
que isso pode significar para cada uma de nós. Por exemplo, o que casa
significa para Samantha?”
“Quê?”, digo, mas não é uma pergunta.
“Tipo, é um lugar de verdade? Com endereço e tudo?”
“Ou é algo mais… elusivo?”
“Que imagens isso desperta?”
Sinto o calor se espalhar pelo meu rosto e pescoço. Tirando sarro de
mim. Elas estão mesmo tirando sarro de mim.
“Para todas nós, claro”, esclarece a Duquesa, em tom magnânimo.
“Para cada uma de nós”, acrescenta Vinheta.
Fosco assente com veemência.
“Interessante”, diz, embora seja um exercício bobo demais até para
uma criança de doze anos. “Por que não tiramos uns minutinhos para
refletir sobre o assunto?”
Durante esses minutos, tomo mais alguns goles de vinho. O calor fica
mais intenso. Já não se limita ao pescoço e às orelhas: tomou meu corpo
inteiro. Imagino que estou tirando um suéter atrás do outro enquanto as
observo escrever nos cadernos.
Quando o tempo acaba, não me surpreende ouvi-las dizer: “Que tal se
a gente compartilhar o que escreveu? Que tal se a gente ler em voz alta?”.
“Concordo. Todas nós.”
O último trabalho que vamos compartilhar como um grupo, como o
Círculo.
Fosco acha a ideia fantástica.
Ouço descrições prolixas sobre admirar as chamas de uma fogueira no
litoral da Costa Rica. De fingir que se perdeu em um jardim labiríntico
repleto de cantinhos escondidos. De praticar o existencialismo em Los
Angeles, em Nova York, mas acima de tudo, óbvio, de ser uma pessoa rica.
E feliz. E sempre acompanhada.
“Samantha, é sua vez.”
“Isso, Samantha, quero muito saber o que casa significa pra você.”
Olho para o meu caderno, onde escrevi “Vocês nunca vão saber”
centenas de vezes.
“Samantha?”, insiste Fosco.
“Prefiro não compartilhar.”
“Perdão, o que você disse? Eu não ouvi.”
“prefiro não compartilhar.”
Meu grito ricocheteia nas paredes da Caverna, ecoando e ecoando sem
parar.
Elas me olham boquiabertas, tomadas por um horror fingido. Depois
abrem um sorriso impotente para Fosco — está vendo? —, e ela olha para
mim como se realmente estivesse vendo tudo. “Minha nossa, Samantha.
Ainda temos uma longa jornada pela frente, não é?” Seu cachorro vestido
de rena para de latir. Levanta as orelhinhas caídas e inclina a cabeça para o
lado. Depois me observa, quase com pena.
Uma festinha regada a quitutes para comemorar o fim do semestre! Na
área comum da faculdade. Ideia delas. “Seria tão divertido, não seria? tão
divertido.” Todo mundo aparece, claro. Todo o corpo docente. Todo o setor
de administração. Até mesmo os poetas foram atraídos pela promessa de
comida gratuita.
Fico nos cantos e observo as pessoas se aglomerando ao redor da mesa
repleta de doces preparados pelas Bunnies, cada vez mais coradas e
atônitas conforme se deliciam com os quitutes natalinos. Bonecos de neve
de marshmallow disformes me encaram com seus olhinhos cruéis.
Surpresinhas de limão que com certeza não vão surpreender ninguém. Um
ponche colorido de sherbet sibilando e efervescendo no centro da mesa
como um caldeirão nefasto. As Bunnies cacarejam ao redor da mesa como
as bruxas que realmente são, e isso está muito claro para mim agora.
Percebo que logo, logo vão começar a se abraçar. E não quero estar aqui
quando isso acontecer, então…
“Já está indo, Samantha?”, pergunta Benjamin, o administrador do
departamento, quando passo por ele em direção à porta.
Benjamin já foi meu amigo, ou quase isso. Sempre me convidava para
bater um papo em seu escritório depois das festas, e lá nos deliciávamos
com os nacos de queijo que os professores tinham deixado para trás. Mas
nossa relação esfriou depois do incidente do churrasco. No fim do primeiro
ano, ele teve a gentileza de organizar um churrasco para todos os
estudantes de Artes Narrativas. Fiquei de ir, mas mudei de ideia em cima
da hora porque, no dia combinado, as Bunnies começaram a mandar uma
enxurrada de mensagens no e-mail da turma. A primeira foi Cupcake, pois
tinha ouvido falar que tinha uma jacuzzi na casa de Benjamin, então será
que deveria levar maiô?
então vamos todas peladas eba aliás era bom a gente levar umas
comidinhas, né??? :D
especiarias?!?!?!?!?!?!?
Caminho sem rumo pelo que parecem horas, dias, semanas. Meus olhos
vasculham as ruas borradas e enganosas em busca de qualquer vislumbre
daquela casa tão familiar. Em busca das flores morrendo do lado de fora.
Dos guaxinins que moravam no telhado. Por acaso eu não deveria saber
onde fica? Eu também não morava lá? Talvez ela tenha levado tudo junto
quando foi embora. Talvez a tenha guardado em sua mala de couro de
cobra, junto com as meias arrastão furadas e sua pena da sorte e o cantil
em formato de mulher caolha. Para que eu nunca mais a achasse.
Tamanha era sua decepção. Eu a imagino dobrando as paredes da casa
como se fosse um suéter. Tudo dobradinho e pronto para levar embora.
Atravesso a cidade até chegar ao oceano. Ela não está lá. Nem no céu.
Nem nesta lixeira. Nem atrás daquela árvore.
Esgueiro-me de volta ao apartamento sem grandes dificuldades, apesar
da distância que percorri e das voltas e reviravoltas da cidade. Sento-me
atrás da escrivaninha e digo a mim mesma que vou escrever, que preciso
escrever, que está na hora de escrever. Mas só consigo observar os
tijolinhos através da janela. Avisto um senhor de corte militar em um
apartamento oposto ao meu, também sentado a uma escrivaninha. Está
muito, muito imóvel. Horas se passam e ele não se levanta da cadeira.
Nem chega a se mexer. Talvez esteja morto.
Eu me arrasto de volta para a cama, derrotada. Pego o celular. Na tela
de fundo, uma foto de cinco Bunnies reunidas em um abraço apertado.
Antes era uma foto minha e de Ava no telhado dela, os rostos colados, sem
sorrir, mas com a alma alegre. Quando foi que mudei a foto? O mais triste
é que nem me lembro.
Começo a escrever uma mensagem para ela.
Cadê você?
Apago.
vc foi embora mesmo? Apago. me desculpe por tudo, não sei onde eu
tava com a cabe… Apago.
sei que não tenho sido uma boa Apago.
sei que tenho sido uma amiga de merd Apago.
Apago apago apago apago.
Deixe quieto. Deixe-a em paz. Você não a merece.
Quando abro os olhos, ela está aqui. Bem no meio do meu quarto idiota,
que é muito baixo para ela. Com uma cesta de cerejas frescas e brilhantes,
onde foi que as arranjou? Um smoothie de pêssego e gengibre daquela
banca de sucos moderninha.
“Desculpe por ter abandonado você várias e várias vezes”, peço a ela.
“Não sei o que deu em mim.”
“Sshhh”, responde ela. Depois coloca a mão gelada na minha testa
ardendo de frio, e, apesar do toque enregelante, a sensação é maravilhosa.
É exatamente a mão dos meus sonhos, a mão que eu tanto queria.
“Achei que você tinha ido embora”, digo a ela.
Mas no instante seguinte ela desaparece.
Ela desaparece e eu grito.
Acordo ensopada de suor. Não há nada aqui além do ar abafado. Uma
luz fraca se esgueira pela janela do quarto enquanto a risada maníaca do
gigante pervertido atravessa as paredes.
24
Lá fora, o sol está fraco e alto no céu. A neve cai devagar. Avisto a casa da
Duquesa não muito longe dali. O ímpeto de invadi-la me consome por um
instante. Eu poderia atear fogo em todos os proêmios de diamante.
Derrubar as pilhas e mais pilhas de romances latino-americanos. Lamber a
tampa de todos os probióticos e kombuchas na geladeira. Penso no meu
apartamento, do lado oposto da cidade. Frio. Com a geladeira vazia.
Entornei as últimas gotas do vinho ácido antes de sair. Do outro lado da
rua, avisto o ponto onde o vi desaparecer no ônibus que desapareceu na
escuridão.
Bem na hora, um ônibus dobra a esquina como em um passe de
mágica.
Observo seu rosto macilento e lupino sob a luz azulada do ônibus. Seus
olhos estão fixos em mim, como se esperassem uma resposta.
“Você falou que ele morreu”, digo baixinho.
“Falei?”
E então ele encolhe os ombros. Vira-se para a janela, embora não tenha
nada para ver ali além de sujeira. Avisto um machado preto tatuado em seu
pescoço. Sinto um arrepio na nuca, como se atingida por estrelinhas
afiadas. Ele volta a me observar com aqueles olhos que ao mesmo tempo
têm todas as cores e nenhuma.
“Então, cadê suas amigas?”
“Amigas?”
Quando ele olha para mim, sinto minhas costelas se expandindo, se
abrindo como uma porta. Tudo o que me mantém viva de repente exposto,
pronto para ser levado.
“Não são minhas amigas. Eu odeio todas elas.”
As palavras escapam dos meus lábios em uma espiral de fumaça.
Ele sorri. Os raios de sol entre folhas verdes. Meu rosto voltado para
cima enquanto observo as nuvens correndo no céu, a grama úmida colada
nas minhas costas. O cheiro de flores molhadas desabrochando ao meu
redor. Tenho quinze anos.
“Então cadê aquelas garotas que não são suas amigas, Samantha?”
Um bar na cidade onde cresci. Uma parede de tijolinhos lascados
colada nas minhas costas. O moicano branco de um estranho entre meus
dedos. Testa de Frankenstein, mas uma boca vermelha e macia como um
travesseiro. Ele vestia uma blusa prateada que cintilava na escuridão do
bar como um peixe no aquário. Meu coração martelava ao som do baixo de
uma canção new wave. A boca dele como um túnel de fumaça e cravo pelo
qual me deixei levar.
“Estamos de férias. Elas foram passar o Natal em casa.”
“Todas no mesmo avião? O mesmo avião que está despencando do céu
agora mesmo?”
Quando ele sorri, vejo o baterista de uma banda de black metal que
tocou minha alma profundamente certa vez.
“Aviões diferentes. Lugares diferentes”, respondo.
“Que pena.”
E então ele tira um cantil prateado do casaco e toma um gole antes de
me oferecer, chacoalhando-o quando hesito. Aceito e tomo um gole
também. Chamas esverdeadas lambem minhas entranhas. Tento devolver o
cantil, mas ele não deixa.
“Pode ficar. Você tá com cara de que está precisando.”
“Mas e você?”
“Já estou embriagado de amor, Samantha.”
Flores de cerejeira caindo. Rob Valencia convulsionando no palco. Um
peixeiro com quem transei uma vez cujos olhos diziam: “Eu conheço tudo
de cabo a rabo”.
Ele chega mais perto, tão perto que consigo sentir seu hálito frio no
meu rosto. Florestas. Coisas recém-mortas. O aroma de sálvia branca
molhada. Ele estende a mão em direção ao meu rosto. Talvez me mate.
Não ligo. Em vez disso, porém, ele acaricia minha bochecha de leve.
Quando abro os olhos, ele me mostra a palma de sua mão, salpicada do
glitter dourado que as Bunnies passaram no meu rosto quando me
fantasiaram de princesa das fadas. Nem sei há quanto tempo está
entranhado na minha pele.
Ele espalha o glitter na própria bochecha, depois sorri para mim.
Mesmo com o rosto salpicado de glitter, ainda consegue reunir tudo o que
não é fofo em um único homem. E então a ficha cai. É como uma canção
reverberando por minha pele, uma chama correndo nas minhas veias,
como se meu próprio coração estivesse escancarado. Por acaso você é
minha…
“Casa”, diz ele.
E, bem nessa hora, o ônibus para. Ele se levanta. Coloca os fones de
ouvido e, em seguida, atravessa o corredor em direção à porta, assobiando
pelo caminho.
27
Uma eternidade. Passo uma eternidade parada na neve suja diante da casa
dela, segurando a maçaneta congelada que se soltou na minha mão.
Observo as janelas vazias. O olhar atento, esperando por qualquer sinal de
vida, qualquer réstia de luz. Mas lá dentro só tem morte e escuridão.
Como se ela nem morasse aqui. Como se nunca tivesse morado. Como se
ninguém morasse aqui há muito, muito tempo.
Não vejo o menor sinal dele, como se não tivesse passado de um
sonho. Ao meu redor não há nada além de escuridão.
“Desista”, diz a escuridão. “Desista, desista, desista. Vá embora. Vá
embora e seja uma coelhinha, Bunny. Pule, pule, pule de cabeça. Não era
isso que você queria?”
Eu não sabia o que queria.
“Tarde demais”, responde a escuridão. “Agora já é tarde demais.”
Escuto um som de arranhão vindo de cima e ergo o olhar. Guaxinins
me fitam com curiosidade do telhado — “meus padres”, Ava os chamava.
“Já confessei tudo para eles. Não que eu queira deixá-los sobrecarregados,
sabe? Mas guaxinins sabem lidar com essas coisas. Adoram lixo, podridão,
tudo que vem de baixo. Você devia dar uma chance a eles qualquer dia,
Smackie.”
E então eles se afastam até sumir de vista. Todos menos o menorzinho,
por quem costumávamos torcer entre a hora do cachorro e a do lobo,
enquanto ele descia com cuidado pelo cano de esgoto. O pequeno
guaxinim está imóvel na beirada da calha, os olhos fixos em mim.
Diga a ela que eu sinto muito. Diga a ela que eu nunca deveria ter ido
embora. Eu estraguei tudo. Sinto saudade dela. Tanta, tanta saudade.
Eu o vejo sumir pela lateral da casa. Fecho os olhos.
“Smackie, é você?”
Um quadradinho amarelo que ilumina a noite toda. O contorno de
seus cabelos emplumados, como se estivesse parada ali o tempo todo.
“Céus, faz quanto tempo que você está aí?”
Uma eternidade. Mas apenas respondo: “Ah, só um minutinho”.
“Sua besta, eu não dei uma cópia da chave pra você há um tempão?”
Parte Três
28
Depois, Ava me conta que dormi por uma eternidade. A Bela Adormecida
não é páreo para mim. Mas não é um sono tranquilo, com pálpebras
tremulando lindamente, os lábios entreabertos, silenciosos, à espera do
beijo do meu príncipe sem sal. Em vez disso, acordo empapada de suor,
estrangulada pelas tranças de Bunny que ainda adornam meu cabelo, a
garganta dolorida, logo vou descobrir, de tanto gritar durante o sono.
Acordo diante de uma janela branca, a neve caindo como um cardume
ligeiro do lado de fora. Uma mulher com quimono de dragão está sentada
ao pé da cama. Com uma das mãos segura uma xícara de café alta como
um vaso e, com a outra, um cigarro cujas cinzas ela bate em um cinzeiro
de sereia. Parece preocupada.
“Você dormiu bem?”, pergunta ela.
“Acho que sim.”
“Você gritou pra caramba.”
“Sério?”
“Os vizinhos devem ter achado que eu matei alguém com uma
motosserra. Ou que tive o melhor sexo da minha vida.”
Ela abre um sorrisinho. Depois parece preocupada outra vez. Muito
preocupada.
“Mas que porra aquelas meninas fizeram com você, hein? Bom, deixa
pra lá. Não vamos falar disso agora. Só estou feliz por você estar em casa.”
“Casa”, repito.
E a palavra tem o mesmo efeito que os pãezinhos chineses que vamos
comer em sua mesinha bamba, que o chá-verde que vamos beber. É como
a mesa e as cadeiras e nós duas sentadas ali, juntas, fumando e batendo as
cinzas no mesmo pratinho cheio de migalhas.
“Eu também estou.”
Nem sinal dele. O cara do ônibus. Meu coelho? Começo a achar que tudo
não passou de um sonho. Vai ver tomei um dos comprimidos de Jonah
depois que fui embora da casa de Fosco. E aí conjurei meu próprio coelho
branco para me guiar de volta até Ava. Às vezes fico tentada a perguntar:
“Por acaso você já viu um cara com um machado tatuado no pescoço por
aí? Alto? Com um sobretudo preto? Segurando um buquê de gravetos?”.
Mas algo sempre me impede. Abro a boca e torno a fechá-la. Observo este
cômodo, esta casa, este mundinho só meu e dela, e apoio a cabeça em seu
ombro. Fecho os olhos. Deixo a noite dar lugar ao amanhecer. Deixo a neve
cair lá fora como se fosse nos soterrar. Por favor, faça isso. Eu não me
importaria nem um pouquinho.
E então, certa noite, ouvimos um rangido no teto.
Que barulho foi esse?
Olho para Ava, que não parece estar nem aí. Fico esperando que faça
uma brincadeira, que diga que é Cthulhu, mas ela apenas diz:
“Ah. Deve ser o Max.”
“Max?”
“Meu inquilino. Ele se mudou lá para cima depois que você foi
embora.”
“Lá para cima? Aqui? Mas como é que eu nunca nem…”
“Ele passa o dia todo fora e só chega tarde da noite. Espero que a gente
não tenha incomodado com o barulho.”
“Barulho?”
Que tipo de barulho?
“Falando no diabo…”, diz Ava.
Não faço ideia do que transparece no meu rosto enquanto o observo ali,
apoiado no batente, como se não fosse fruto das minhas emoções
descontroladas e de uma minúscula bolinha de pelo, e sim um humano em
carne e osso. Desde sempre. E não um humano qualquer. Um cara legal.
Sexy. Sexy de um jeito assustador. E que pelo jeito se chama Max. Um cara
legal e sexy chamado Max que tem olhos de fumaça, uma postura
desleixada, graciosa, e roupas pretas rasgadas repletas de alfinetes. Um
cara que transforma uma coisa simples como se recostar em um batente
em algo inerentemente seu. O braço agasalhado ainda enlaçado em Ava,
que pergunta:
“Ah, vocês já se conhecem?”
“Não”, trato de responder, ao mesmo tempo em que ele diz:
“Sim.”
Ava olha para mim. Depois para ele. Depois de volta para mim. Ué, se
conhecem ou não?
“A gente já se trombou por aí”, explica ele, com ar casual.
Tão, tão casual. Vejo que suas unhas estão pintadas de prata. Lixadas
até se transformarem em pontinhas afiadas.
“Não é mesmo, Samantha?”
De repente, sinto o celular vibrando no bolso. Pela primeira vez em
semanas.
Ele sorri para mim.
“Você”, é tudo que consigo dizer.
Ava me olha como quem diz: “Cacete, qual é o seu problema?”.
“Não ligue para a Smackie. Ela passou por maus bocados. É uma longa
história.”
Ele assente com compaixão, como se entendesse. Depois caminha na
minha direção, ficando cada vez mais alto conforme se aproxima.
Lançando uma sombra comprida e eriçada sobre mim. Escurecendo o
canto onde estou sentada, com as mãos espalmadas no chão.
E então ele se agacha diante de mim e me observa com aqueles olhos
envoltos em fumaça. Minhas costelas se expandem. Um zumbido atravessa
meu corpo. Ele pega minha mão, depois a leva até seus lábios humanos. E
então planta um beijo ali com muita, muita delicadeza.
E, em um piscar de olhos, ele a solta. Estica o braço e bagunça meu
cabelo como se eu fosse um cachorrinho.
“Acho melhor eu ir andando, meu amor”, diz, virando-se para Ava.
Meu amor? Meu amor?
“Já estou embriagado de amor, Samantha”, ele me disse no ônibus
naquela noite.
Vejo a marca dos lábios de Ava que ele deixou no dorso da minha mão.
E em seguida percebo o jeito como ele olha para ela. Da mesma forma
como um dia olhei para os raios de sol que dançavam entre as folhas de
uma árvore. Eu estava deitada na grama, as sombras das folhas
tremeluzindo sobre mim, banhando-me com toda aquela luz verde-
dourada. Ele a olha assim enquanto ela, aparentemente alheia, sugere que
ele volte para casa — casa! — mais cedo para que a gente possa passar um
tempinho juntos. Quem sabe até beber alguma coisa?
“Eu não perderia por nada”, promete ele. Vai até trazer o jantar.
“Algo que já esteja morto desta vez, hein, por favor”, pede Ava.
Ele sorri, concorda. Mas seus olhos e a curva de seus lábios dizem:
“Ah, quem sabe do que sou capaz?”. Eu os vejo trocar um sorriso secreto,
achar graça do que deve ser uma piada interna. Só entre os dois.
E então ele a beija outra vez. Um beijo tão intenso, tão demorado, que
tenho a impressão de que o sol nasceu e se pôs e tornou a nascer enquanto
fico ali, estirada no sofá, sem conseguir me mover, observando os dois.
Quando enfim se afastam, não há mais vestígio de batom nos lábios dela,
agora cercados por um contorno rosa-claro. Os dele têm o mesmo contorno
quando ele se vira para mim e diz:
“Vejo você por aí, Samantha.”
E em seguida sai pela porta, deixando para trás um cheiro de floresta
mesclado a um aroma animal pungente que não me deixa esquecer…
Como se fosse possível.
Pego o celular, que não parou de vibrar um segundo. Quatro chamadas
perdidas. Quatro mensagens de texto. Cada uma delas com uma única
palavra, uma palavra longa e familiar, seguida por um ponto de
interrogação/exclamação, uma tulipa e um fantasma, um ponto-final e
coisa nenhuma.
E de repente uma mensagem nova:
Bunny, cadê você?
31
Depois que terminamos a última garrafa, ele volta a falar sobre tango, seu
gênero de dança preferido. Espere aí, é o preferido dela também? De vocês
duas? Caramba. Que loucura. Mas que coincidência, hein, Samantha?
Ava sugere que a gente enrole o tapete para abrir espaço na sala.
“Ora, vamos lá, Smackie. Posso ser o Diego desta vez.”
E ele pergunta:
“Diego? Quem é Diego?”
“Ah, um cara clichê que Smackie e eu inventamos para ser nosso
parceiro de dança. Mas a verdade é que estávamos dançando uma com a
outra, não é?”
“É, sim.”
Ele sorri.
“Que fofo. Quero ver.”
Quando Ava e eu dançávamos juntas, para onde a gente olhava? Uma para
a outra? Não lembro. Só sei que agora mantemos nosso olhar fixo em outro
lugar. Tento sorrir para aquele espaço vazio, como se ela estivesse bem ali,
mas é Max quem vejo ao longe. Encostado no batente da porta com seu ar
sexy, assustador, assomando como uma árvore linda e maligna. Segurando
um cigarro e um copo cheio de uísque âmbar. Exalando aromas sedutores,
sombras estranhas. Tudo enquanto nos observa atentamente. Não. Apenas
Ava. Na verdade ele só tem olhos para Ava.
“Já estou bem cansada”, aviso, enquanto me desvencilho dela. “Acho
melhor eu ir dormir.”
Mas não vou dormir. Fico sentada ali e os vejo rodopiar sem parar
diante da lareira cujas chamas nunca se apagam. Levo seu cigarro ainda
aceso aos lábios. Tomo um gole do uísque e sinto o gosto de uma fogueira
no mar do Norte. Vejo suas almas emaranhadas como os tentáculos de
uma lula. Estou horrorizada. Fascinada. Envergonhada em níveis que nem
sei explicar. E cada vez mais embriagada, mas não consigo parar de olhar.
O jeito como ele olha para Ava. O jeito como Ava olha para ele. Tomo outro
gole da fogueira que ele despeja no meu copo. Ignoro as vibrações
incessantes do meu celular.
Bunny, isso não tem a menor graça. Você sumiu do mapa.
Bunny, vc morreu?? Aquele apartamento nojento q vc mora te matou???
Se vc ainda estiver viva, me manda uma msg pfvr!
porra! kd vc??
S, não tenho visto você no campus ultimamente. Isso me preocupa. Por
que não nos encontramos? O quanto antes.
O mundo parece se suavizar enquanto ele rodopia Ava pelo cômodo.
Mesmo quando a música para, os dois continuam girando. Então a ficha
cai, embora eu já soubesse.
Eles estão trepando. É claro que estão.
32
“É claro que sim”, diz Ava no dia seguinte. “Quantos anos você tem?
Doze?”
Estamos sentadas no telhado, o céu paira sobre nós como uma chapa
cinzenta de ardósia. Ela olha para mim como se quisesse saber, como se
quisesse mesmo saber, se tenho doze anos. Porque só alguém dessa idade
chegaria para uma mulher adulta e perguntaria, aos cochichos: “Então,
vocês já… sabe…?”.
“Transaram?”, concluiu ela por mim.
E pelo jeito meu rosto se contorceu em dor.
“Nossa, por que essa cara de espanto?”, pergunta ela. E eu respondo
que não fiz cara nenhuma, e ela diz: “Bom, você deveria se olhar no
espelho.” Pois fique sabendo que ela consegue ver meu rosto muito bem
graças ao penteado das bonobos. Minha franja de puta ainda não retomou
a antiga forma, então ela pode olhar bem no fundo dos meus olhos. Pode
ver o tremor nos meus lábios enquanto tento fingir que estou calma,
tranquila, descontraída. Nem um pouco chocada, satisfeita ou horrorizada
ao descobrir que Max, ao contrário dos garotos-coelhos eunucos, consegue
transar. Com a minha melhor amiga.
“Dormiu bem, Samantha?”, perguntou ele esta manhã, e nem esperou
uma resposta antes de beijar a pontinha do meu nariz e depois beijar Ava
na boca, no pescoço, na orelha, no ombro, na boca de novo, na outra
orelha, no pescoço outra vez. E aí ele foi embora. Sabe-se lá para onde.
Para onde ele vai, afinal?
“Sei lá. Para sua faculdade, talvez? Para trabalhar no projeto. Ele diz
que é site-specific, mas não faço ideia do que isso quer dizer.”
“Não vejo a hora de mostrar a você, Samantha”, sussurrou ele para mim
enquanto saía pela porta. “Quando estiver pronto, claro.”
“Mas em que lugar da minha faculdade, exatamente?”, perguntei a Ava.
“Ué, e como vou saber? Eu não fico vigiando cada passo que ele dá, ok?
Aqui não é a Bonobolândia!”
Vejo a grama começar a aparecer entre as camadas de neve que
revestem o chão. As árvores úmidas e gotejantes cheias de brotos. Porque,
de alguma forma, já é primavera. O ar tem um aroma doce e florido, como
o de plantas se reproduzindo. Meu cérebro fica emaranhado feito algodão
enquanto Ava me conta sobre como o conheceu. Quando ainda acreditava
que eu estava morta ou tinha virado ração de bonobo. E ela estava
arrasada, sozinha pra cacete, mas ainda assim tentava me esquecer, pois eu
não passava de um fantasma do que tinha sido. Até que um dia ele
simplesmente tocou a campainha e perguntou sobre o quarto vago, embora
ela não o tivesse anunciado em lugar nenhum. Simplesmente brotou do
nada. Um anarquista com gosto musical impecável. E um artista muito
dedicado. Não que ela saiba muita coisa sobre o projeto, já que ele é todo
misterioso em relação a isso. E dedicado também. Parece até alguém que
ela conhece… Enfim. Ela tem certeza de que vai ser um espetáculo. E,
como se não bastasse, ele ainda é um cozinheiro de mão-cheia. Mas isso
eu pude comprovar por conta própria ontem à noite, não é?
“É, sim”, concordo enquanto aceno com a cabeça.
Acenar com a cabeça é uma coisa tão estranha se parar pra pensar. A
cabeça fica ali, balançando para cima e para baixo sobre o pescoço.
“O que deu em você, Smackie?”
“Quê? Como assim?”
“Você está meio, sei lá, esquisita.”
“Esquisita? Não estou, não.” Nego com a cabeça. Esquisita, eu?
Imagine. “Só estou… preocupada, sabe?”
Nem consigo olhar para ela enquanto digo isso, então me ponho a
observar os padres guaxinins que claramente querem que eu abra o bico.
“Você precisa contar tudo a ela, Samantha”, aconselham eles. “Porque
está na cara que ele não é quem diz ser, não é? Então ela tem o direito de
saber.” Mas será que Ava acreditaria em mim? Será que alguém acreditaria
em mim?
“Preocupada”, repete ela, como se fosse uma palavra muito suspeita.
E é mesmo. Mas sigo em frente mesmo assim.
“É só que ele parece meio… intenso.”
Ela escancara um sorriso, como se ele tivesse acabado de se
materializar no telhado.
“Mas eu gosto disso”, confessa. “Ele é…”
“O quê?”, pergunto, tentando não parecer muito ansiosa.
Ava olha em volta como se o ar estivesse cheio de um brilho que só eu
não consigo ver. Um brilho que nunca vou conseguir ver, porque meus
olhos não foram feitos para isso. Mas está lá.
“O quê?”, insisto.
“Sexy”, responde ela por fim, soprando uma nuvem disforme de
fumaça.
Eu observo a fumaça subir pelos ares até desaparecer entre a copa das
árvores.
“Ava, preciso contar uma coisa.”
“Pode contar.”
Não conte a ela. Você vai perdê-la para sempre se contar.
Ava me olha por um bom tempo. Depois, dá um beijo na minha testa.
“Não precisa se preocupar, Smackie. Eu ainda amo você mais do que
tudo no mundo.”
Pelo jeito ele está morando mesmo no quarto do segundo andar. Quando
entro pela porta, tento me convencer de que não estou bisbilhotando. Este
era o meu quarto, afinal. E ele deixou a porta aberta. Ou quase isso. Mas
pelo menos não estava trancada. Então era praticamente um convite.
Varro o quarto com os olhos em busca de… nem sei de quê. Está
quase idêntico a como o deixei. Um punhado de coisas novas. Caixinhas
de comida chinesa empilhadas, todas vazias. Uma caixa de som barata com
luzes que giram e mudam de cor enquanto toca “Bring On the Dancing
Horses”, de Echo & the Bunnymen. Tirando isso, não tem o menor indício
de que outra pessoa morou aqui além de mim. Nenhum indício de que
qualquer pessoa tenha morado aqui. A cama parece intocada. Os livros que
deixei para trás ainda se empilham contra as paredes, intactos. Vou até a
escrivaninha preta e gasta junto à janela, um presente de Ava. “Um teto
todo seu etc.” Ela até entalhou um S no tampo com sua faca, para que a
mesa soubesse que era minha. Mas a verdade é que quase todo dia
acabávamos trabalhando frente a frente na mesa da cozinha. Ava
trabalhava, pelo menos. Eu estava coçando minhas feridas, rodeando o
caderninho preto como um tubarão à espreita, só esperando uma deixa
para dar o bote. Um caderno idêntico a este, aliás. Igualzinho ao que vejo
agora, jogado bem no meio da escrivaninha.
Como se quisesse ser encontrado. Como se quisesse ser lido.
Sinto um aperto no peito quando vejo minha própria letra. Algumas
páginas de anotações fervilhantes e rabiscos tristes. Um punhado de
citações aleatórias e insignificantes. Listas. Muitas listas. A frase “Eu não
sei” rodeada de vinhas emaranhadas e olhos escancarados. Odeio minha
letra. A caligrafia febril, quase ilegível, tão inclinada que parece capaz de
tombar a qualquer instante, só para em seguida escapulir da linha e se
atirar nas margens como pequenas suicidas. Tantas palavras riscadas.
Parágrafos inteiros rasurados. Até mesmo as listas parecem atormentadas
pela incerteza. Mas, ao folhear o caderninho agora, percebo que há algo
novo na primeira página. Logo abaixo de uma citação sensível sobre a
solidão que devo ter copiado de algum lugar no passado, mas que agora já
não significa mais nada para mim: um texto em tinta preta brilhante. Uma
lista. Escrita com uma caligrafia diferente, que ao mesmo tempo parece e
não parece minha letra. É mais retinha. Mais confiante. Como se nunca se
perguntasse: “Isso está certo? Será que eu errei?”.
Dou uma olhada na lista.
Samantha_Mackey@warren.edu louvadosejaxenu
Caroline_Anderson@warren.edu Euamocorgies
Kira_Stone@warren.edu Unicorniospfvr
Victoria_Fielding@warren.edu leitedesangueprogogol
Eleanor_Brown@warren.edu ledaeocisne
Ursula_Radcliffe@warren.edu 7BruXadoMAr7
Alan_Reid@warren.edu fleshmarketclose
Prezadas,
Saudações,
Ursula
“Nossa”, comenta ele, lendo por cima do meu ombro, com uma
surpresa fingida. “Parece importante. Acho que é melhor você ir logo.”
Ele despenteia meu cabelo outra vez, e a franja de puta se solta,
fazendo com que eu volte a enxergar o mundo com um olho só.
“Sabe como é, Samantha. A Ferida não vai se Cutucar sozinha.”
33
Não faço ideia. Não faço a menor ideia do que vou encontrar na Caverna.
Prendo a respiração ao entrar no auditório, me preparando para vê-las
depois de tanto tempo. Repasso suas mensagens na minha cabeça, mas
nem me atrevo a adivinhar seu significado, a tentar descobrir o que raios
está acontecendo. Abro a porta, tentando me preparar para todos os
cenários possíveis e imagináveis, para dar de cara com…
As carteiras dispostas no quadrado de sempre, vazias por enquanto.
Fosco sorrindo para mim com sua bata iridescente. Nenhum cachecol fora
do lugar.
“Samantha”, chama ela da escuridão da Caverna, e parece
genuinamente feliz em me ver. “Não precisa ter pressa. Relaxe. Respire.
Você chegou na hora certa. Na verdade, está até um pouquinho adiantada.”
“Para variar”, diz seu sorriso.
Ela segura minha mão. E, mesmo que estejamos sozinhas, diz em um
sussurro:
“Adorei seu e-mail, aliás.”
“Meu e-mail?”
Lembro-me da senha dela, rabiscada ao lado do e-mail na caligrafia
confiante de Max.
“Samantha, nunca se envergonhe de ser sincera. De pedir ajuda.
Outros professores até poderiam ver isso como uma demonstração de…
hum… fraqueza, imagino. Mas eu achei muito honesto. Corajoso. E suas
colegas maravilhosas concordam comigo e estão ansiosas para ajudar. Um
grupo tão maravilhoso que sempre se apoia tanto.”
Ela aperta minha mão com força.
“Achamos que estamos sempre sozinhos. Que somos especiais. Mas
estamos redondamente enganados. Graças ao seu e-mail, eu sei que você
não tem nenhum texto para compartilhar com a gente hoje. Mas não se
preocupe. Não é motivo para se envergonhar. Hoje você está aqui para
ouvir. Para observar e talvez tecer alguns comentários. Se você sentir
vontade, claro. O que acha?”
Ela está me olhando com um ar tão triunfal que fico tentada a
desmascarar a mentira dele, a contar a Fosco que desta vez tenho, sim,
muitos textos para compartilhar. Em vez disso, porém, apenas concordo
com um aceno.
“Legal. Obrigada por… entender.”
“Você tem certeza de que está bem, Samantha? Está tremendo.”
Abro a boca para inventar uma desculpa sobre ter pegado um resfriado
no caminho, mas de repente escuto um barulho atrás de nós. Passos leves
se aproximando. Prendo a respiração. Por força do hábito, me preparo para
a explosão de perfume relvado, de vozes estridentes e açucaradas, de
demonstrações tão intensas de carinho físico e verbal, que beiram a
violência. Mas não sinto cheiro nenhum. Não ouço nada além de passos
discretos.
E de repente vejo Caroline emergir da escuridão. Sozinha. Com um
sorriso no rosto.
“Oi, Ursula. Oi, Samantha.”
Está com um vestido lilás. Um cardigã branco. As duas mãos ocupadas
em segurar uma caixinha branca. Semelhante a uma embalagem de
comida chinesa. Igualzinha às que vi no quarto dele.
Meu coração começa a martelar forte nos meus ouvidos quando ela se
acomoda na carteira à minha frente. Os olhos enevoados fixos em mim. A
expressão suave e sonhadora de uma protagonista de filme em preto e
branco, as lentes da câmera lambuzadas de vaselina.
“Samantha, que bom ver você”, diz.
Sua voz parece distante. Como se ela sonhasse estar bem longe dali.
Flutuando entre nuvens sorridentes. Reparo nos botões de seu cardigã
branco, pequenos cupcakes antropomórficos. Por acaso eu já a tinha visto
com essa roupa antes? Ela nunca fez tanto jus ao apelido quanto agora,
usando o cardigã e o vestido lilás, o cabelo recém-cortado tingido do que,
no escuro, me parece ser um loiro quase platinado. Parece mesmo um
cupcake. Ou uma das crianças de A colheita maldita.
“Gostei do seu cabelo”, comento.
Ela o toca com ar sonhador, como se não tivesse certeza de que ainda
está lá. Depois abre um sorriso que me dá calafrios.
“Obrigada. Ainda estou me acostumando.”
“Um efeito colateral do Processo”, observa Fosco.
Em seguida ela nos explica que tais transformações são comuns no
último semestre da dissertação. Quando deixamos o abraço maternal da
Caverna e nos recolhemos em nossos próprios recônditos escuros — para
pegar a dor, o medo e a vergonha que vivem ali e transformar tudo em
tesouros literários. Os órgãos genitais são empalados com alfinetes. Os
cabelos são cortados com serrote, às vezes arrancados pela raiz. Os gêneros
se tornam fluidos, as orientações mudam, os brancos de repente
descobrem outras raças na sua linhagem. E algumas pessoas vão longe
demais, claro. Teve aquele pobre rapaz que cortou a orelha fora. Foi
lamentável, sem dúvida, mas também revelador. Um sinal da
Transformação mais profunda exigida pela Obra. Há sempre um Preço a
pagar pela Obra.
Caroline fica sentada ali, cantarolando baixinho uma versão deturpada
de “Summertime” enquanto ignora o cachorro de Fosco, que não para de
pular em suas canelas. Por fim, ele desiste e se afasta com o rabinho entre
as pernas. Agora consigo ver que o cabelo dela está tingido de um tom bem
claro de roxo.
“Estou surpresa em ver você aqui sozinha”, diz Fosco a Caroline.
“Vocês sempre vinham juntas.”
Caroline abre um sorriso educado, mas não diz nada. Baixa o olhar e
balança a cabeça como se a caixinha branca em suas mãos estivesse lhe
contando um segredo. Depois se empertiga e olha para mim.
“Samantha, ouvi você falando que está resfriada.”
Será que eu disse isso em voz alta?
“Quer meu cardigã emprestado?”, ela oferece e já faz menção de tirá-lo.
E então eu vejo as palavras me coma entalhadas com uma navalha em
seu peito e seus braços. As cicatrizes parecem frescas, o sangue mal
coagulado ao redor das letras. E, ainda assim, ela está com um sorriso no
rosto enquanto estende o cardigã branco de cupcakes para mim. Será que
não quero mesmo? Certeza? Bom, então tá. Se eu mudar de ideia, é só
avisar. Ela o pendura nas costas da cadeira, depois olha para mim,
satisfeita. A expressão no meu rosto é toda a recompensa de que ela
precisa.
“Gostou?”, pergunta, como se estivesse se referindo a um bolinho que
assou, a um cachecol que tricotou. “Faz parte de uma obra performática
em que estou trabalhando. Uma arte colaborativa. Resolvi envolver o
Corpo de um jeito mais visceral.”
“Encantador”, comenta Fosco, impassível, como se elogiasse o gatinho
ou o arco-íris que uma criança desenhou. “Não é encantador, Samantha?”
“Sim, encantador.”
“Eu sabia que você ia gostar, Samantha.”
Caroline abre um sorriso nebuloso que faz minha alma sair do corpo.
Depois ela volta a olhar para a caixinha branca, segurando-a com tanta
força que parece que vai se desfazer em suas mãos, e por fim torna a olhar
para mim. De um jeito ainda mais nebuloso.
“Samantha, mandei umas mensagens para você…”
Bunny, isso não tem a menor graça.
“Mandou?”
Você sumiu do mapa.
“Mandei várias.”
“Ah, desculpe. Meu celular está meio…”
“Entendi.”
Mas ela sabe que estou mentindo. Dá para ver.
“Enfim, que bom que você está bem. Eu fiquei preocupada.”
A névoa fica mais espessa, as nuvens em sua voz ficam mais escuras.
As cicatrizes vermelhas reluzem em sua pele branca.
“Talvez a gente possa sair para tomar um café ou algo do tipo”,
continua. “Para botar o papo em dia…”
Seus lábios se curvam em um sorrisinho passageiro. E só então
percebo que ela está de batom, um rosinha bem claro em vez do hidratante
labial incolor de costume. Batom é coisa de puta, Bunny.
“Claro”, minto.
Ela sorri de novo, parecendo tão aliviada que quase fico com pena.
“Quando?”, quer saber. “Que dia você…”
Mas os passos ecoam outra vez, e ela se cala. Os olhos estão fixos na
caixa, fingindo não ver os saltos que caminham em nossa direção com um
anúncio estridente a cada passo. Não um clique diminuto, mas um claque
retumbante. E de repente ela está aqui. Kira. Também sozinha. Kira, que
nunca está sozinha. Kira, que está sempre agarrada no braço de alguém
como se estivesse perdida em uma floresta de contos de fadas. Kira, que
está com um vestidinho de veludo vermelho com um capuz vermelho
combinando. Kira, que também segura uma caixinha branca. Kira, que não
solta um gritinho de alegria ao ver sua grande amiga, Caroline, que olha
para as pernas expostas e esculturais de Kira naquelas meias-calças
aracnídeas como se fossem cobras. Kira, que não puxa sua amiga Caroline
para um abraço esmagador. Que nem ao menos se senta ao lado dela. Que,
em vez disso, olha para as cicatrizes no torso de Caroline e revira os olhos
antes de se acomodar ao meu lado.
“Sam”, cumprimenta ela com uma voz que não é infantil nem
estridente nem sussurrante. É profunda. De uma profundidade insondável.
Sua voz verdadeira. Em seguida, coloca a mão sobre a minha e sorri com
seus lábios preto-azulados.
“Quanto tempo”, continua.
E ignora Caroline completamente. E Caroline a ignora completamente.
E as duas ignoram completamente o cachorro de Fosco, que está
espumando no meio da sala, rodopiando em círculos desesperados
enquanto tenta chamar a atenção delas.
“Então, Sam, me conte”, retoma Kira, acariciando minha mão. A voz
ainda mais profunda, um abismo sem fundo. “Como você está?”
Ela está ótima, aliás, faz questão de dizer. A Obra (sorrisinho secreto)
está caminhando muito bem.
Tem mais alguma coisa diferente nela. Nem sinal das orelhinhas de
gato. Seus cabelos longos e ruivos caem soltos como os de uma princesa
bruxa vagando pelas brumas de Avalon.
Lanço um olhar para Caroline, que me observa com uma expressão
que só posso descrever como desespero contido. Mas que merda
aconteceu com vocês duas? Por que não estão abraçadas? Por que não
arrulham em uníssono só de pensar em um gato?
“Samantha”, chama Kira, perfurando meu crânio com seus olhos de
tigre.
E então pergunta onde foi que eu me meti. E diz que mandou dezenas
de mensagens.
Bunny, vc morreu?
Abro a boca para responder, mas de repente algo me tira o fôlego. E
tira o delas também. Porque lá vem Victoria pisando forte, o cabelo mais
parecendo um ninho de rato, o batom vermelho borrado em uma diagonal
no rosto. Ela veste uma regata manchada e uma saia de crinolina imunda,
como uma bailarina de caixinha de música que ganhou vida e saiu dos
trilhos. Exala um fedor azedo de chorume que nos faz ofegar enquanto se
deixa cair ruidosamente em uma carteira. Em seu colo imundo eu vejo,
claro, uma caixinha branca cheia de manchas de dedo. Com exceção de
um breve cumprimento para Fosco e um sorriso simpático para mim, não
dirige a palavra a ninguém. Apenas cantarola baixinho enquanto o cachorro
choraminga a seus pés. Acaricia a caixa de um jeito provocante, os dedos
sujos de terra como se tivesse passado a manhã inteira cavoucando a lama.
O rosto todo contorcido em um sorrisinho zombeteiro, um grande foda-se
dirigido a ninguém em particular.
“Victoria, você parece estar de bom humor hoje”, comenta Ursula.
“Ah, estou mesmo. Um humor muito bom.”
Ela está olhando para mim. Todas elas estão. Ainda sorrindo. Ainda
ignorando umas às outras. Sentadas a uma carteira de distância. Segurando
três caixinhas brancas que tiquetaqueiam como bombas-relógio.
Ursula apenas observa a cena como se tudo estivesse dentro do
esperado para o último semestre, a esta altura do Processo. Por falar nisso,
talvez seja melhor começarmos, já que…
Então ouço o som que eu mais temia. Os passos leves de botas feitas
de camurça macia, cara e enrugada como a pelagem de um shar-pei. Seu
rosto enluarado desponta da escuridão com uma expressão…
…envergonhada, arrependida. E frágil. Pálida, tão pálida. É o tom da
pele ou o contraste com as roupas pretas? Um cafetã comprido e abotoado
até o pescoço como o hábito de uma freira. O cabelo todo puxado para
trás, como se alguém estivesse dependurado na outra ponta.
“Eleanor, você está atrasada.”
Vejo o semblante dela se contorcer em confusão, pânico. Algo inédito.
Uma alegria doentia irradia pelo meu corpo enquanto ela pede desculpas
(outra coisa inédita) e, então, argumenta baixinho:
“Mas… no e-mail dizia que só começaria às cinco e onze.”
“Eu avisei que começaria às cinco. Por que alguém marcaria uma
reunião para cinco e onze?”
Eleanor se retrai, parecendo ainda mais confusa. Imagino os dedos
humanos de Max batucando as teclas do notebook enquanto escrevia um
e-mail suplicante para Fosco em meu nome, depois outro de Fosco para
Eleanor, tudo enquanto cantarolava baixinho.
“Mas…”
“Podemos continuar a discussão depois da aula, Eleanor. Por ora, por
que não se senta para que a gente possa começar?”
Ela abre a boca, depois olha para mim e torna a fechá-la. Melhor não
irritar MuiMui, a única professora da faculdade que tem algo gentil a dizer
sobre os proêmios de diamante. Em seguida ela se afunda devagar na
carteira, justo na que fica no canto mais afastado, o que não é de seu feitio.
A pontinha de uma caixa branca escapa de sua bolsa escura. Quando
percebe que estou olhando, trata de guardar a bolsa debaixo da carteira.
“Pois bem, se não estou enganada, todas vocês têm algo para me
mostrar hoje. Menos Samantha, claro.”
Nem me dou o trabalho de corrigir.
“Isso mesmo”, concordam elas, quase em uníssono.
Ainda sem trocar olhares entre si. Ainda sorrindo sozinhas. De um jeito
sonhador. Presunçoso. Ou, no caso de Eleanor, preocupado. Como se
guardassem um segredo ao mesmo tempo fantástico e perigoso. Sinto o
medo se aproximando. Um medo tremeluzente, cintilante.
“Enfim. Quem quer ir primeiro?”
“Eu começo”, oferecem todas elas ao mesmo tempo.
Fosco parece satisfeita. Quanta motivação!
“Certo… Bom, para facilitar as coisas, por que não seguimos a ordem
de chegada? Caroline, você começa.”
Ela se levanta, as cicatrizes irregulares reluzindo sob os holofotes.
“Este aqui se chama ‘Descascada’”, diz baixinho. “Para ser sincera,
ainda não sei muito bem como classificar. Uma espécie de poema, acho…
Quase nunca escrevo poemas, mas…” Ela contém seu sorriso lilás. “Eu
estava inspirada.”
As mãos tremem um pouco enquanto segura a página.
“Enfim”, continua. “acho mesmo que isso pode ser o começo de algo
maior.”
Um muxoxo audível de Victoria. Sinto Kira me lançar um olhar de
soslaio, mas não tiro os olhos de Caroline, que observa a página trêmula
com uma expressão apaixonada, como se fosse o rosto dele em suas mãos.
Em seguida, começa a ler como se estivesse enfeitiçada.
Um homem aparece na sua sala de estar, munido de uma navalha.
É um invasor ou ela mesma o deixou entrar?, pondera a heroína sem
nome de “Descascada”, e está na cara de que se trata da própria Caroline.
E assim começa sua obsessão psicossexual e possessiva por um devasso
demoníaco chamado Byron. O chá é misturado de um jeito sugestivo. O
tilintar da colher na xícara induz ao transe.
E aí…
E aí eu me lembro da expressão no rosto de Caroline ao raspar a canela
em pau no Salon Sacana. A cabeça jogada para trás em um êxtase contido.
As pálpebras tremelicando como se ela estivesse possuída. Será que foi ele
quem entalhou as palavras em sua pele aveludada ou foi ela mesma,
enquanto ele via e incentivava do sofá, vigiando tudo com seus olhos de
alcatrão esfumaçado enquanto perguntava, aos sussurros, de que adiantava
permanecer incólume, qual o propósito da ferida sem o prazer da cicatriz?
Quando chego em casa, dou de cara com ele no quintal. Está encostado
na cerca, com um cigarro entre os lábios, usando as orelhinhas de gato de
Kira. Os olhos estão fixos no cantinho irregular do gramado onde, segundo
disse, pretende plantar alguma coisa. Sabe-se lá o quê. Quando me vê,
sorri e ergue o copo de uísque. Ah, tão descontraído com sua postura de
cara descolado. Até me faz lembrar de um ex-namorado, um baterista de
black metal que sempre vinha falar comigo depois dos shows, com o colete
cheio de manchas de sangue falso, a maquiagem pesada escorrendo nos
olhos, doido para saber o que eu achava, mas descolado demais para
perguntar.
“E aí, Samantha? Como foi o seminário?”
Observo aquela boca que proferiu tantas mentiras. Aquelas mãos que
devem ter tocado sabe-se lá quais partes daqueles corpos pálidos e rosados.
“Edificante”, respondo.
“Edificante”, murmura ele, enquanto dá uma tragada pensativa no
cigarro.
Hum. Não era exatamente o adjetivo que ele estava esperando, mas…
“O que você fez com elas?”, deixo escapar.
Ele olha para mim. Confuso. Decepcionado. Sinceramente, até um
pouquinho irritado.
A fumaça escapa devagar por entre seus lábios, soprada bem na minha
cara.
“Você precisa me contar.”
Ele torna a olhar para mim, para minha tentativa de soar autoritária, o
apelo desesperado oculto por trás disso, e então abafa uma risada e desvia
o olhar. Meneia a cabeça. Dá outra tragada, desta vez desafiadora.
“Não posso simplesmente entregar as coisas de bandeja, Samantha.
Minha intenção era deixar tudo aberto à interpretação.”
Ele esboça um sorriso com a palavra interpretação, como se trouxesse à
tona lampejos de sua própria genialidade.
“Você precisa me contar tudo o que fez. Tim-tim por tim-tim.”
“Preciso, é?”
Dá para ver que está irritado. “E bastante ofendido, Samantha.” Eu sou
o único público que ele tem, será que não percebo? Ele se dedicou tanto a
isso, se esforçou tanto. E esperava, tem que admitir, que eu ficasse
impressionada. Mas cá estou eu, querendo saber os detalhezinhos idiotas,
e pior: exigindo explicações.
“Ora, por que me dei o trabalho se é para entregar o jogo assim? Cadê a
diversão? Se é para ser assim, qual é o propósito da arte? De criar?”
“Mas eu nunca lhe pedi para criar nad…”, começo a dizer, mas me
interrompo.
Ele chega mais perto, as sobrancelhas arqueadas. “O que você falou
aí?”
Mordo os lábios, sentindo o rosto corar.
Então ele ri e joga a cabeça para trás, o pescoço iluminado pelo luar.
Quando olho, a tatuagem de machado está toda exposta, desde o cabo até
a lâmina. Então ele para de rir e me observa com ternura. Com algo que se
assemelha a amor. Ah, Samantha.
Passo a fitar meus sapatos, a lama que os rodeia.
“Você sabe que elas estão apaixonadas por você, né?”, pergunto
baixinho, em um tom acusador.
Mas a acusação é dirigida à lama.
Enfim ergo o olhar, mas ele se esquiva.
“Bom para elas”, murmura.
Isso não tem a menor importância para ele, essa notícia. Só danos
colaterais do Processo, da Obra. Não se faz omelete sem quebrar os ovos
etc.
“Mas elas estão agindo como se estivessem… possuídas.”
Ele abre um sorriso sonhador.
“Mas estão livres agora… umas das outras, pelo menos.”
“Elas são perigosas, sabia?”, aviso, recordando suas feições distorcidas
de raiva no seminário de hoje. E nos seminários que fazíamos no sótão.
Com o machado.
“Estou morrendo de medo”, ironiza ele baixinho. “Juro.”
“Eu estou falando sério.”
“Eu também. Olhe para mim. Viu como estou assustado?”
“Você dormiu com elas?”
Ele faz uma careta.
“Eca.”
“Você as cortejou?”
“Se eu as cortejei?”, repete. Argh. “Juro que não cortejei ninguém.”
“Você as machucou?”
Céus, essa pergunta é um porre. Qual é, Samantha? Você viu as
cicatrizes com seus próprios olhos. Os hematomas, as mordidas, o cabelo, a voz
profunda como um abismo… esqueceu?
Mas ele entra no jogo.
“O que você acha que eu sou, Samantha? Um monstro?”
Isso mesmo. E eu soltei você no mundo.
Faço menção de afastar seu cabelo do rosto, porque está me dando
agonia não poder olhar nos seus olhos. É o que Caroline fazia comigo.
Trançava minha franja de puta para longe do rosto, depois a prendia no
topo da cabeça como uma coroa. “Assim está melhor, Bunny.” Mas,
quando estico a mão para afastar a mecha e revelar o olho sempre
escondido, ele afasta minha mão com um tapa. Sibila para mim como um
gato. Quando percebe que estou assustada, sorri para mim.
Envolve meu rosto com as mãos sem luvas. Não vou me deixar levar
pelo toque de seus dedos humanos. Consigo sentir até as linhas que
correm pelas palmas. Por instinto, fecho os olhos ao sentir seu calor. Sua
maciez.
“Samantha”, começa a dizer. “Você gostou ou não?”
Se gostei de vê-las se humilhar? E humilhar umas às outras? Gritar
entre si? Abraçar nada além de seus próprios corpinhos pálidos e rosados,
cheios de açúcar, cicatrizes e machucados? Ler textos horríveis que devem
ter sido escritos durante algum tipo de transe amoroso? Uma obra e um
amor que zombavam delas? Se gostei de vê-las levar bronca de Fosco?
Ele move minha cabeça fazendo que sim com ela com delicadeza
enquanto respondo: “Não. Não gostei nem um pouquinho”.
“E Ava?”, pergunto.
Ele solta meu rosto. Vira o sr. Sinceridade Pura. Christian Slater com
uma bomba escondida no bolso do sobretudo. Christian Slater com o
coração de babuíno.
“O que tem Ava?”, pergunta.
“Ela não ficaria chateada se descobrisse?”
“Se descobrisse o que exatamente, Samantha?”
E mantém o olhar fixo em mim até meu rosto corar.
“O que vocês tanto cochicham aí embaixo?”, grita Ava. Está no telhado
com seus padres guaxinins, já no fim de seu cantil beba-me.
Ele olha para Ava como se ela fosse o próprio sol. Tudo o que lhe falta
é um buquê de gravetos. Um filtro suave. O céu se abrindo para derramar
uma chuva cinematográfica, as gotas escorrendo de seu cabelo até os
cílios, descendo em filetes por suas maçãs do rosto afiladas. Aquilo são
lágrimas ou gotas de chuva? Jamais saberemos. Seja como for, a canção de
amor começa a ganhar forma à nossa volta.
“Oi, tem alguém aí?”, pergunto para o interior da Caverna. Mas só escuto
minha própria voz reverberando pelas paredes gotejantes. Está mais escura
que o normal. Nem um pingo do calor uterino de costume. Ele não disse
que seria às sete? Mas não tem relógios na Caverna. Nem luzes. Até a
porta pela qual entrei já foi devorada pela penumbra.
“Oi, tem alguém aí?”, pergunto outra vez.
Nada.
“Alan?”
Nenhuma resposta, apenas o eco repetindo o nome dele sem parar.
Deve estar tirando uma com a sua cara. Ele gosta de tirar uma com a sua
cara, esqueceu?
Enquanto espero por ele, procurando sua silhueta no escuro, sinto meu
coração bater cada vez mais rápido. O silêncio e a escuridão trazem à tona
seu julgamento silencioso. A estratégia pedagógica e psicossexual que
adotava. Trazem à tona sua figura esguia, que apareceu no beco naquela
noite, durante a festa de primavera. Naquela noite em que nada
aconteceu, nadinha mesmo. Naquela noite em que ele emergiu da
escuridão como um sonho quando eu estava tão bêbada que o céu e a terra
tinham se tornado uma coisa só. “Rameiras!”, gritei para Jonah antes de
enveredar pelo beco rumo à noite inclinada. E lá estava ele, parado onde o
beco desemboca na rua, apoiado na parede de tijolinhos como se eu tivesse
escrito a cena, com a camiseta de um monstro devorando uma garota, os
galhos pretos enrodilhados em seus braços. Absolutamente imóvel
enquanto o beco balançava como um navio.
“Samantha”, chama agora uma voz aveludada, masculina, melodiosa,
como cardo e urze soprando à brisa de um penhasco.
Ouvir aquela voz no escuro me faz estremecer, mesmo sabendo que
deveria estar aliviada.
“Alan”, respondo, instilando o alívio na minha voz, mas o eco revela o
tremor. “Você está aqui.”
Olho em volta, mas não há nada além da escuridão.
“Estou aqui, Samantha.” Eterna paciência. “Cadê você?”
Lembro-me de sair do beco com ele. Sentar-me no banco do passageiro
de seu carro. Observá-lo nos levar para algum lugar. Para onde estamos
indo? Nem pensei em perguntar. Então, em um sinal vermelho que ele
quase ultrapassou tamanha a embriaguez, eu avistei as Bunnies pela janela.
Elas tinham decidido continuar o festival de abraços bêbados no terraço de
um bistrô perto do campus que vende champanhe em taça. Apesar dos
meus olhos grudados no para-brisa, observando a interminável luz
vermelha do sinal, percebi que elas me viram dentro do carro dele. Que
elas nos viram. Mantive minha cabeça erguida, meu olhar reto. Podem
pensar o que quiserem, podem imaginar o pior, quero só ver. Arrisquei uma
olhada para ele. Também estava voltado para a frente, os olhos fixos além
do para-brisa, tão reto quanto possível. E então eu soube que ele também
as tinha visto. Que percebeu que elas tinham nos visto ali. E aí, em um
piscar de olhos, tudo aquilo parecia errado. Eu no carro dele. Nós dois
juntos. As meias-calças furadas de renda que cobriam minhas pernas
cruzadas, os saltos altos pendurados nos meus calcanhares, minha mente
cambaleante, a junção estranha de céu e terra, o terrível vislumbre do meu
reflexo no espelho do retrovisor. Tudo errado. E ele. Sentado ao meu lado
no banco do motorista. Tentando esconder a embriaguez enquanto
esperava o sinal abrir. Ele também parecia errado.
“Samantha”, chama a voz outra vez. Aveludada. Mais perto agora. Mas
ainda não vejo nada além da escuridão.
“Cadê você?”, pergunto.
Mal me lembro do trajeto até o apartamento dele naquela noite. Tenho
uma vaga lembrança de ter subido aos tropeços uma escada em caracol
escura que parecia se estender eternamente. De me sentar diante dele em
uma sala que não parava de rodar. Nossa conversa arrastada saltou de um
livro para outro, de um assunto para outro, como se avançássemos aos
solavancos. Tentei me convencer de que não era diferente de todas as
outras vezes, e que deveria estar feliz por, enfim, termos voltado a
conversar. Mas, dessa vez, só eu falava. Dessa vez, eu falava alto, como se
quisesse ser ouvida por alguém do lado de fora. Tentei pronunciar cada
palavra com muita precisão. Recusando-me a ver que o nome de coisas e
pessoas e livros vertiam dos meus lábios e se derramavam no chão dele
como vinho. Recusando-me a ver que tudo aquilo era errado. E ele me
observava em silêncio. Como se eu fosse uma peça de teatro que ele já
conhecia muito bem, que já tinha visto encenada tantas vezes, e que a essa
altura já lhe parecia um pouco maçante, mas ainda poderia ter uma ou
outra parte boa, quem sabe. Só dependia da montagem. E então eu disse
que estava feliz por termos voltado a conversar, embora só se ouvisse a
minha voz. Minha voz em meio a um silêncio tão alto que parecia ter vida
própria. Que parecia crescer cada vez mais, até ganhar forma e sombra,
mesmo que eu continuasse falando sozinha como se tudo estivesse bem.
Até que todas as minhas palavras estivessem esparramadas no chão. E
eu ali, bêbada demais para recolhê-las. Então deixe-as lá.
Lembro-me de olhar para o piso encerado, com a cabeça cheia de
sangue, o coração martelando nos ouvidos, o silêncio de repente
ensurdecedor ao meu redor.
E aí, para minha grande vergonha, comecei a chorar. Contei tudo a ele.
Coisas constrangedoras. Coisas humilhantes. Eu estava disposta a
qualquer coisa para acabar com aquele silêncio, com aquele tipo de
silêncio. Contei o quanto eu odiava as Bunnies. O quanto elas me
odiavam. A solidão que enfrentei no inverno. A preocupação por tê-lo
decepcionado. Contei sobre meu bloqueio criativo. Sobre minha vida
itinerante e solitária antes de vir para cá, meu pai foragido, até mesmo
sobre minha mãe. Chorei feito um bebê, mas na verdade era uma mulher
adulta despejando essas palavras nas próprias coxas rendadas. A qualquer
momento, esperava que ele quebrasse o silêncio, que a sala parasse de
girar, que se iluminasse, se endireitasse. Esperava uma mão estendida,
uma voz gentil oferecendo palavras de conforto. Mas ele só bebeu, só
observou. Sem palavras, sem toques. Não senti um braço ao redor do meu
ombro. Nem uma mão no meu joelho. Nenhum pau contra minha coxa.
Nenhuma boca no meu pescoço, nenhum hálito quente no meu ouvido. A
ausência de sua voz, de seu toque, era tão palpável que chegava a me pesar
os ombros.
Observo os arredores da Caverna outra vez em busca de sua silhueta.
Ainda nada além da escuridão, uma escuridão vazia.
“Aqui, Samantha. Estou bem aqui.”
Seu sotaque escocês de novo, cada vez mais impaciente.
“Desculpe, eu… não estou enxergando nada…”
Nas histórias que tentei escrever sobre aquela noite, algo acontece
durante o silêncio. Não termina com nós dois nos levantando para cruzar o
corredor escuro, ele dando as costas para subir as escadas enquanto eu
cambaleio em direção à rua. Em vez disso, preencho o silêncio com
alguma coisa. Sexo, quem sabe. Uma insinuação de violência. Um avanço.
Uma linha cruzada. Alguma coisa em vez de nada. Definitivamente alguma
coisa, não nada. Porque essa é a única maneira de explicar por que os dois
passaram o resto do ano sem conseguir olhar para a cara um do outro. Para
explicar a vergonha e a mágoa que irrompiam no meu peito sempre que ele
fingia que não me via, ou, pior ainda, quando apenas me cumprimentava
com um breve aceno de cabeça. Por que nunca mais ficamos juntos em
uma sala fechada depois disso? Por que saí naquele estado da casa dele
naquela noite? Tentando entender que raios tinha acontecido. Sabendo
que, mesmo que nada tivesse acontecido, tudo havia mudado. E como me
senti vazia e esvaziada ao ir embora, com todas as minhas palavras ainda
esparramadas no chão de sua sala. Queria voltar para buscá-las. Levar
todas de volta. Acabar com a noite, com minhas lágrimas idiotas, com as
palavras que jorraram em uma confusão interminável. Eu nunca quis dar
isso a você. Como estava sozinha. Tão, tão sozinha, enquanto abria
caminho pela escuridão, o chão parecendo ceder sob meus pés, a
escuridão da rua e a do céu unidas em uma coisa só. Tão perdida que de
alguma forma fui parar no lago em vez de voltar para casa. “Onde você me
conheceu”, Ava me lembra. “Viu só, Smackie? Às vezes se perder pode ser
maravilhoso.”
“Você está perdida, Samantha?”, pergunta Alan, bem baixinho. “Nós
estamos bem aqui.”
“Nós?”
“Sim, Samantha”, diz outra voz.
Feminina. Também familiar.
“Bem aqui.”
Fosco.
“Ursula? Não imaginei que…”
“Samantha, siga o som da nossa boca, por favor”, instrui Fosco.
Som da nossa boca?
“Isso mesmo”, concorda Alan. “Ou então, hum, continue falando e nós
iremos até você.”
Corra, diz uma voz na minha cabeça. Agora. Corra o mais rápido que
você…
E de repente uma mão cobre minha boca na escuridão. Luva. Couro.
Um aroma doce de bolo queimado me sufoca, como um projeto culinário
que terminou em desastre. Tento gritar, mas a mão me impede. Um braço
se enrosca no meu peito como uma cobra e outra mão segura minha nuca.
Dou um berro por trás da mão enluvada. Mordo os dedos com força.
Escuto um gritinho estridente atrás de mim, como o de uma garota. A
outra mão aperta minha nuca com força, e de repente tudo mergulha em
uma escuridão sem fim.
Uma silhueta diante de mim. Duas. A luz ou a escuridão é tão forte que
não consigo distinguir seus rostos, seus corpos. Só vejo suas formas.
Grandes. Um contorno atarracado, a outra silhueta, esguia. Atarracado e
Esguia. “Quem são vocês?”, quero perguntar, mas pelo jeito minha boca
não funciona mais. Foco. Focofocofocofocofoco. Mas é tão difícil manter
os olhos abertos, e por que será? Por causa das drogas. A compreensão
percorre meu corpo como um xarope doce e espesso. Uma gota. Outra.
As silhuetas estão sentadas. Talvez estejam até sorrindo, acho. Para
mim. Que bom. Vai ver são pessoas legais. E, ao que tudo indica, estão
esperando alguma coisa. Tão pacientes. Mas esperando o quê, hein? E de
repente o medo me invade. Ops, tô com medinho, diz meu cérebro. É
melhor eu dar no pé. Tchauzinho. Estou prestes a acenar para as figuras e
dizer “tchauzinho, foi um prazer conhecer vocês, figuras”, mas descubro
que não consigo erguer os braços, não consigo me mexer. Também estou
sentada. Amarrada a uma cadeira dura. Presa. Presa, presa, presa. Por mais
que esteja apavorada, o pensamento é agradável, como um balão vermelho
flutuando pelo céu azul. Eu o vejo voar pelo ar como em um sonho,
nenhuma nuvem à vista, e penso: Já estive aqui antes, observando esse balão
vermelho em devaneio. De repente escuto gritos. Vindos de mim. Uma
vozinha bem lá no fundo que diz: Corre logo, porra.
“O que você disse, Samantha? Desculpe, não entendi”, diz uma das
silhuetas.
Atarracado. O cabelo brotando de sua cabeça feito uma juba. Uma voz
que diz: “Confie em mim”.
Quem é você?, quero perguntar, mas não consigo mover os lábios.
Quando abro a boca, só sai um som gorgolejante.
“Samantha, isso é inaceitável. Você vai ter que falar com mais clareza.”
Isso vem de Esguia, e agora vejo que tem longos cabelos pretos e
prateados como aquela mulher assustadora dos contos de fadas, como ela
se chama mesmo? A bruxa. Eu conheço essa voz. A outra também. Mas de
onde? De onde conheço essas vozes?
“Afinal, esta é a reunião do seu comitê, Samantha, e temos muita coisa
para discutir.”
“Tanta coisa para discutir, Samantha.”
Reunião do comitê? Discutir? Sou inundada de alívio. Alan e Ursula. Dá
até vontade de chorar.
Faço menção de abraçar os dois, mas minhas mãos estão atadas. Ao ver
meus gestos, os dois se inclinam para me desamarrar, imagino, e aceitar
meu abraço. Mas não é isso. Eles só chegam mais perto para que eu
consiga enxergar suas feições sob a fraca luz vermelha. Vejo seus traços
distorcidos. A pele de zumbi. Os lábios torcidos e rasgados de um lado só.
O par de orelhas compridas, cinzentas e trêmulas que começam a
despontar de suas cabeças.
Tento gritar, mas não sai nada. Minha boca morta não faz nenhum
som.
Eles me observam com curiosidade com seus olhos da cor errada, e
sinto o olhar animalesco e sombrio da Duquesa sobre mim. Oi, Samantha.
“Está pronta para discutir ou não, Samantha? Será que podemos
começar, por favor?” pergunta Coelho-Leão com seus lábios retorcidos. As
mãos estão cobertas pelas luvas pretas de couro tão familiares, “porque
fazer as mãos é difícil, Bunny”. O corpo irregular revestido por um terno
azul-escuro feito sob medida para esconder todas as deformidades e
imperfeições. “Porque fazer os corpos também é difícil.” Ele parece ter sido
criado em cinco minutos.
Mais gritos silenciosos escapam dos meus lábios. Estou mergulhada no
torpor das drogas das Bunnies que conheço tão bem.
“Samantha, que tal você nos ajudar a começar, hein?”
Isso vem de Bunny-Fosco, a cabeça aninhada em seus cachecóis
sibilantes. Seus olhos são abismos roxos onde vejo o olhar de anime de
Caroline, que parece ávida por me devorar, mas ah, que pena, ainda não
estou no ponto de que ela gosta. Ela segura um machado nas mãos, tão
frouxamente como se fosse um feixe de sálvia que trouxe para purificar o
ambiente.
“Não? Ora, então eu mesma vou começar, mesmo que esta seja sua
reunião, Samantha. Você está pronta?”
Eu a vejo abrir um livro de capa preta onde se lê História de uma garota
triste, de Samantha Mackey.
Debaixo do título tem uma bonequinha de palito de braços cruzados e
beicinho armado.
“Estive analisando seu trabalho, Samantha. E devo dizer, Samantha,
que estou muito decepcionada.”
“Eu também. Tão decepcionado. Tão decepcionado”, concorda Coelho-
Leão. “Quer dizer, a princípio eu estava meio ‘intrigado’.”
Ele faz aspas com as mãos enluvadas.
“Ah, a princípio todos nós ficamos ‘intrigados’. Talvez até
deslumbrados. Encantados com aquele aspecto brutal, com aquele charme
sombrio.”
“Claro, claro, tudo isso”, concorda Coelho-Leão. “Mas agora?” Ele
encolhe os ombros deformados. “Eca. É isso que eu acho.”
E então olha para Bunny-Fosco, que assente em concordância.
Ambos viram suas cabeças horripilantes para mim. Depois me
examinam com seus rostos cinzentos e pensativos.
“Samantha, não estamos sentindo a entrega do seu texto. Parece até
que ele é… esquivo”, dispara ela.
“De propósito”, acrescenta Coelho-Leão. “Deliberadamente
inacessível. Infiel à sua premissa.”
“E era uma premissa e tanto. Quem poderia discordar?”
“Eu é que não.”
Ambos me lançam um olhar faminto. Penso em Rob Valencia olhando
avidamente para o ramalhete de flores. Lembro-me de sua boca cheia de
orquídeas. Os dois olham para mim como se meu próprio rosto fosse uma
orquídea.
Então chegam mais perto, lambendo os beiços.
“Samantha, devo admitir que estou muito preocupada com sua
heroína”, comenta Bunny-Fosco.
“Tão preocupados. Tão preocupados”, acrescenta Coelho-Leão.
“Mas eu nem sei se dá para chamar aquilo de heroína, não é? O que
acha, Samantha? É possível considerá-la uma heroína?”
Suas orelhinhas de coelho, ainda meros cotos no topo da cabeça,
estremecem feito antenas.
“Ela é muito passiva, Samantha, você não acha?”, continua, curvando
sua cabeça feia e cinzenta.
Tento protestar, mas sinto algo macio preenchendo minha boca. A
mesma maciez em torno dos meus punhos. Uma mordaça. Isso sempre
esteve aqui?
“As coisas simplesmente acontecem com ela, não é verdade,
Samantha?”
Um som gorgolejante escapa através da mordaça macia, que parece
cada vez maior em contato com a minha língua. Tenho a impressão de que
esse material macio que enche minha boca e ata meus punhos está vivo.
Parece algo animalesco. O aroma pútrido de bicho morto paira no ar ao
meu redor, mesclado a um cheiro adocicado que mal camufla a podridão.
Sinto seus oito olhos em mim enquanto a droga se espalha por minhas
veias. Algo aveludado parece envolver meu cérebro e minhas funções
motoras, enquanto um xarope espesso percorre meus braços e pernas. Por
que não consigo traçar um plano de fuga? Mas a verdade é que meu
cérebro foi invadido por pôneis cor-de-rosa com os dentes arreganhados.
“Quando ela vai se tornar empoderada, hein, Samantha? Me diz?
Quando vai tomar as próprias decisões? Quando vai assumir a
responsabilidade por toda a merda que fez?”
“Quando”, rosna ele, “vai dar um basta naquele trisal pervertido em
que ela nem consegue trepar com ninguém, hein? É isso que eu quero
saber.”
Bunny-Fosco assente com tristeza, como quem diz: “Ah, verdade, ainda
tem mais essa”.
“Aquela ‘amiga’ dela, né? Ada ou algo do tipo. Tanto faz.”
“Tanto faz”, concorda Coelho-Leão, revirando os olhos.
Fosco se aproxima ainda mais, com o rosto distorcido tão perto do meu
que consigo sentir seu hálito podre.
“Ainda assim”, continua aos murmúrios, “acho que é meio triste. O que
acontece com ela no fim.”
O que acontece? O que acontece com ela no fim?
Ela chega ainda mais perto, examinando meu rosto com um misto de
ternura e fome. Eu a sinto girar o machado de Kira em suas mãos
enluvadas enquanto a coisa viva e macia parece inchar por trás dos meus
lábios, empurrando o céu da boca, pressionando a língua.
“Samantha, você sabe o que um livro sempre deve ser? O que todo
grande livro deve ser? Inclusive uma dissertação de mestrado da Warren?”
E então aponta o machado para minha garganta. Desliza a lâmina
suavemente pelo meu pescoço suado, e a sensação me lembra o arranhar
de um gatinho.
“E aí, Samantha?”
“Me solta. Para. Por favor”, gorgolejo enquanto babo.
“Isso mesmo, Samantha. Um machado. O livro deve ser como um
machado.”
“Para romper o mar congelado dentro de nós”, conclui Coelho-Leão.
Ela afunda um pouco mais a lâmina no meu pescoço. Não, suspiro
através do veludo que me entorpece. Tento me livrar das amarras, mas não
consigo encontrar minhas mãos. Elas sumiram. “As mãos são difíceis,
Bunny.”
Os dois ficam olhando enquanto eu me debato em vão. Depois soltam
um suspiro de tristeza fingida.
“Samantha, depois de ler isso, estamos começando a achar que você
não é boa o bastante para a Warren.”
“E disso a gente entende, Samantha. Afinal, damos aula aqui.”
“Nunca deveríamos ter deixado você entrar, Samantha. Você não estava
preparada.”
“Tão despreparada.”
“Mas, mesmo que você seja uma idiota”, continua Bunny-Fosco,
“queremos ajudar. Queremos mesmo. Então vamos lhe oferecer um
presente, Samantha. Porque somos muito, muito legais. Algo para observar
e refletir e considerar.”
“Uma coisa simbólica. Um prompt de escrita. Uma surpresa”,
acrescenta Coelho-Leão. “Vai estar à sua espera quando chegar em casa.”
“Isso se ela voltar para casa. Será que a gente… deveria deixá-la ir
embora?”
Eles parecem refletir por um instante. Hum.
Eles vão me matar. Puta que pariu, eles vão me matar.
Não. Eu nego e nego e nego com a cabeça, mas ela apenas se move
para cima e para baixo.
Bunny-Fosco se levanta da cadeira, e Coelho-Leão faz o mesmo. Em
seguida, ela ergue o machado enquanto ele estica a mão enluvada e roça a
lateral do meu rosto. Com tanta, tanta delicadeza. Depois envolve minha
nuca. Ele vai me beijar. Ele vai me matar. Em vez disso, apenas pressiona
um pontinho da minha nuca e o mundo todo mergulha em escuridão outra
vez.
36
“Ei.”
Abro os olhos e sou cegada pelas luzes fortes no teto. Estou estirada no
chão da Caverna, ainda amordaçada e presa à cadeira que tombou. A
mente livre de pôneis saltitantes, o cérebro liberto do invólucro risonho.
Um zelador está parado na minha frente, com uma vassoura gigante na
mão, parecendo entediado. Ele mal pisca quando vê minhas mãos atadas,
como se já tivesse visto esse tipo de coisa antes.
“Muito bem, mocinha. Hora de ir embora.”
E então cutuca minhas costelas com o cabo da vassoura.
“Por favor, me solta”, tento gritar através da mordaça.
Penas brancas jorram da minha boca como flocos de neve.
Ele as observa cair no chão, imperturbável.
“O que foi que disse?”
“Você pode me soltar, por favor?”, reformulo.
Ele encolhe os ombros. Estica os braços e desamarra as fitas que
prendem meus punhos e tornozelos, que “soltam com muita facilidade,
viu, mocinha?”.
“Obrigada”, agradeço, sem fôlego, cuspindo mais penas brancas. “Você
me salvou. Estavam tentando me matar.”
O zelador balança a cabeça.
“Ai, ai. Vou te contar, viu? Vocês, jovens, com sua arte conceitual…”
“Não, não é isso. Realmente tentaram me…”
Uma última pena escapa dos meus lábios, e, entediado, ele a observa
flutuar entre nós dois até pousar no chão ao lado das outras plumas, ao
lado da pilha de fitas, que agora ele terá que varrer.
Ele solta um suspiro.
“O mundo real está lá fora, mocinha. Sabia disso? E cedo ou tarde você
vai ter que encará-lo.”
Uma lua vermelha ilumina o caminho enquanto corro para longe da
Warren. Mais e mais rápido conforme as drogas das Bunnies deixam meu
corpo. O tempo todo achando que estou sendo seguida. Avançando por
ruas laterais para tentar despistar meus perseguidores invisíveis, mas
inevitáveis. Com uma sensação horrível por dentro, como se um
animalzinho se debatesse em pânico nas minhas entranhas.
“Então vamos lhe oferecer um presente, Samantha. Porque somos
muito, muito legais.”
“Vai estar à sua espera quando chegar em casa.”
Quando me aproximo da casa de Ava, percebo que a janela da frente
está aberta. Nada fora do comum, já que ela gosta de sentir a brisa. “A
brisa é minha amante, Smackie”, Ava me diz o tempo todo. “Conheça
minha amante, a brisa. Ela fala comigo com sotaque escocês. Refresca
meus pés, minhas pernas.” Uma luz rosada vindo de dentro, uma música
tocando baixinho. Sinto o cheiro de Ava, o aroma de folhas molhadas e
chá-verde pairando no ar doce da primavera.
Sou inundada de alívio. Ela ainda está aqui. Claro que está.
Onde mais eu estaria?
“Ava”, chamo assim que passo pela porta.
Lá dentro, todos os abajures estão acesos, assim como as velas e os
pisca-piscas de Natal. “La Vie en Rose” ressoa do toca-discos. Os mil
incensos queimados deixam seu aroma no ar, e há um novo aceso em
algum canto. Os pássaros caolhos me observam da tapeçaria pendurada
sobre a cama.
Chamo o nome dela enquanto vasculho os cômodos, enquanto subo as
escadas.
“Max? Ava? Max?”
Chego ao último degrau, e o que vejo me deixa paralisada.
Sempre achei que era besteira quando os livros diziam que “o tempo
parou”. Mas acontece. Às vezes o tempo pode ficar tão parado quanto eu
estou agora, imóvel ao lado da porta que foi arrancada das dobradiças. Tão
parado quanto as paredes salpicadas de sangue e a vidraça quebrada. Tão
parado quanto o cisne que jaz morto no meio do quarto, com um machado
cravado nas costas, as asas brancas estendidas como se em pleno voo, uma
poça de sangue escuro vertendo de sua enorme silhueta. Pode ficar tão
parado quanto Max, sentado como está ao lado da poça de sangue que se
espalha pelo piso. Tão parado quanto meus próprios lábios, que não gritam
mesmo quando meu corpo se enche de algo escuro, fluido e ardente.
Fico olhando para o pescoço comprido e sem vida. A lâmina brilhante
cravada nas penas brancas. É um sonho, tento me convencer enquanto o
chão afunda sob meus pés, fazendo-me flutuar na água vermelho-escura.
“Max”, digo e ouço minha voz falhar ao chamar seu nome. “O que é
isso? O que aconteceu?”
Mas ele não responde. Está debruçado sobre o cisne, alheio a qualquer
coisa. A cabeça pendida para frente. O cabelo caído nos olhos.
Absolutamente imóvel.
Volto a observar o cisne branco, o sangue se empoçando aos meus pés.
Caio de joelhos e sinto o sangue escuro e quente ao redor das minhas
pernas.
“Max.”
Estico o braço e o sacudo pelos ombros. Ele sempre foi assim tão
frágil? Sempre teve ombros tão magros, tão franzinos?
“O que aconteceu? O que você fez?”, pergunto, e a falha na minha voz
se expande como a rachadura em um espelho.
Ele ainda está com a cabeça baixa, o pescoço estirado para a frente.
Isso só pode ser um sonho. Só um sonho, nada mais. Ava vai me
acordar a qualquer minuto. Mas, de alguma forma, eu sei que ela não está
aqui.
“Max.”
“Ela me mandou embora.”
“Quê?”
“Depois que você saiu. Ela me mandou embora. Falou que queria ficar
sozinha.”
“Do que você está falando?”
“Ela nunca tinha me mandado embora. Não entendi o que eu fiz de
errado, o que eu falei. Mas ela simplesmente disse vá. Então eu fui. Saí de
casa, dei um espaço a ela. Mas de repente tive um pressentimento. Uma
sensação horrível, horrível mesmo. E aí voltei correndo para cá.”
Ele ainda não tirou os olhos do cisne, cujo corpo branco domina minha
visão. Tão, tão imóvel.
“Max, por favor. Ainda não entendi o que aconteceu. Por favor, me
explique o que aconteceu.”
Eu o puxo pelos ombros e o viro de frente para mim, mas é como
tentar controlar um brinquedo, uma bonequinha barata que se recusa a
seguir seus comandos. Eu o chacoalho e chacoalho e chacoalho enquanto
chamo seu nome, e ainda assim a cabeça continua caída para a frente.
Minha mãe costumava me chacoalhar assim. Quantas vezes não me
sacudiu pelos ombros quando eu era criança, quando era adolescente.
“Samantha. Por favor, me escuta. Pare já com isso, entendeu? Chega. Você
precisa parar de fingir.”
Uma sensação horrível. Uma sensação horrível, horrível mesmo.
Estendo as mãos e levanto sua cabeça para olhar para mim.
“Max.”
Seu rosto é tão macio, tão leve e delicado. Sinto minhas palmas
formigarem.
“Por favor, fale comigo. Cadê a Ava?”
Mas já sei a resposta. A resposta é o calafrio sombrio que percorre meu
corpo. A resposta está estampada no rosto dele, que olha para o cisne com
tanto amor. Como se ela fosse as flores de cerejeira que se soltam dos
galhos. A luz do luar. Os raios de sol entre as folhas das árvores. A resposta
é a voz da minha mãe inundando meus ouvidos de repente, cansada,
preocupada, irritada enquanto chama meu nome, “Samantha”. A resposta é
o aroma de chá-verde e folhas molhadas que ainda persiste no ar, fraco,
leve, desprendendo-se do corpo como um desejo. A resposta são as penas
brancas ainda sopradas com tanta, tanta delicadeza pela brisa que entra
pela janela. Soprando com delicadeza nos seus cabelos emplumados
sempre que refletiam a luz. “A brisa é minha amante, Smackie. Conheça
minha amante, a brisa.” Soprando com delicadeza nos seus cabelos
emplumados, soprando no rosto dela na última vez que me sorriu com
amor, sempre com amor.
A resposta é meu próprio coração, que está desmoronando.
Há um cisne no lago hoje. Tirando isso, nada mudou desde a última vez
em que estive aqui. O banco está vazio e bambeia de um jeito perigoso
quando me sento. Fumo um cigarro, o primeiro de cinco milhões, imagino.
Ouço os barulhos da festa ao longe. As toalhas brancas ondulando ao
sabor da brisa. O gramado florido apinhado de lixo de gente rica. As mães
que não param de tirar fotos. Os pais com as mãos enfiadas nos bolsos,
parecendo um pouco perdidos, mesmo que não estejam. Os irmãos mal-
encarados. Os formandos de beca e capelo, posando para as fotos diante
dos portões, diante dos prédios onde ela só pisou uma vez, por minha
causa.
“Você sabe que eu só venho aqui por sua causa.”
Tudo isso se foi. Deixando-me para trás. Como as palavras que
derramei no chão da sala do Leão. Então deixe-as lá. Observo o cisne
deslizar pela superfície da água. O que eu achei? Que ela fosse estar aqui?
“Samantha! Ei!”
Jonah se aproxima de beca e capelo, acenando para mim. Deve ter sido
o único da nossa turma que participou da cerimônia formal da formatura.
Ele sorri enquanto caminha na minha direção, deixando um rastro de
fumaça de cigarro, e segura o que parece ser um copo d’água.
Retribuo o sorriso. Aceno.
“Procurei você por toda parte, Samantha! Fiquei com medo de você já
ter ido embora.”
“Não, ainda estou aqui. Você realmente foi com tudo na beca e no
capelo.”
Ele sorri.
“Pois é.”
“Foi divertido?”
“Para falar a verdade, a gente meio que só ficou parado. Ah, aliás, eu
tirei algumas fotos suas recebendo o diploma.”
“Sério?”
“Ué, claro que sim. Você é minha amiga. Ei, o que foi?”
Olho para o chão para que ele não veja meu rosto.
“Nada.”
“Tem certeza?”
“Tenho. Só estou feliz. Feliz que você seja… meu amigo.”
“Quer ver as fotos?”
“Pode ser.”
Ele pega o celular e começa a me mostrar.
“Ah, esta aqui é boa. Você está segurando o diploma falso com tanta
força. Chega a ser engraçado, olha.”
“Pois é.”
“Não esquenta, eu também quase esqueci que era falso. Mas aí o Eric
me refrescou a memória bem a tempo.”
Ele acena para Eric e os outros poetas que ainda estão aglomerados
perto da tenda. Quatro homens de preto com barbas de tamanhos variados
que parecem fazer tudo, até piscar, em perfeita sincronia. Seus olhares de
puro desprezo chegam a ser palpáveis. Mas Jonah continua acenando
como se não fosse nada. Completamente alheio. Ou talvez não esteja tão
alheio assim. Talvez perceba e só não dê a mínima. Deve ser bom.
Ele sorri para mim. Seus olhos não mudam de tom. Os dois de uma cor
só.
“Então, para onde você vai agora?”, pergunta.
“Sinceramente, eu não faço ideia. Bem, o futuro é incerto, né? Talvez
eu passe mais um tempinho aqui, mas depois… Não sei.”
Seu sorriso muda e ele cutuca a lateral do meu corpo.
“Eu estava falando de hoje à noite. Para onde você vai hoje à noite?”
“Ah, acho que vou só ficar em casa mesmo.” Nossa casa. “Subir no
telhado e comemorar com os padres guaxinins.”
Esperar o cachorro dar lugar ao lobo. Sentir o vento acariciar meu rosto
como as mãos de floresta dele. Admirar aquele cantinho do jardim onde
uma árvore começou a nascer.
“Padres guaxinins, é? Parece legal.”
O cisne chega mais perto, contornando a beira do lago. Penso naquela
manhã de primavera, pouco antes do amanhecer. Como ela apareceu ao
meu lado no banco. Como de repente me senti tão cheia de possibilidades.
Nela enxerguei um mundo maravilhoso, uma mão estendida, uma pessoa
que eu sabia que iria amar. E eu não fazia ideia. E não saber era tão
maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Olho para o cisne deslizando junto
à margem. Talvez eu consiga fazer outra vez. Imaginá-la de volta. Viver para
sempre nos telhados e nas árvores da minha mente com outra versão dela
ao meu lado. Agarrar sua mão enluvada e, desta vez, não soltar nunca mais.
E em seguida vejo o cisne se afastar sob a sombra trêmula.
“Você pode ir comigo”, digo a Jonah. “Se quiser.”
Baixo meu olhar para a lama no chão.
“Claro, Samantha”, responde a lama. “Eu vou adorar.”
Agradecimentos
Publicado originalmente por Viking, um selo da Penguin Random House LLC. Direitos de tradução
adquiridos por intermédio de MB Agencia Literaria SL. e The Clegg Agency, Inc., USA.
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Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº
54, de 1995)
1ª edição, 2024
A974b
Awad, Mona
Bunny / Mona Awad ; tradução Gabriela Peres Gomes. — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Globo
Livros, 2024.
336 p.; 23 cm.
Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora
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