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nasceu no Canadá, é graduada em artes pela Universidade Brown e

mestre em literatura inglesa pela Universidade de Edimburgo, onde


conduziu uma pesquisa sobre o papel do medo nos contos de fadas. Em
2018, concluiu o doutorado em escrita criativa na Universidade de
Denver. Atualmente, vive em Boston e é professora na Universidade de
Siracusa. É autora de quatro livros, todos eles sucessos de público e
crítica. Bunny é sua primeira obra lançada no Brasil.
Sumário
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Parte Um
Parte Dois
Parte Três

Agradecimentos
Para Jess
Parte Um
1

Nós as chamamos de Bunnies porque é assim que elas se chamam. Sério.


Bunny: coelhinha.
Tipo:
“Oi, Bunny!”
“Oi, Bunny!”
“O que você fez ontem à noite, Bunny?”
“Ué, eu saí com você, Bunny. Esqueceu, Bunny?”
“Verdade, Bunny, saímos juntas e eu nunca me diverti tanto.”
“Bunny, eu te amo.”
“Te amo, Bunny.”
E aí elas se abraçam com tanta força que parece até que vão explodir.
E de onde quer que eu esteja — sentada, de pé, apoiada na parede, do
outro lado da sala de aula, do auditório, do departamento acadêmico —
chego até a torcer para que isso aconteça mesmo enquanto sou obrigada a
testemunhar minhas colegas de faculdade, quatro mulheres adultas,
estrangulando umas às outras entre arrulhos de oi. Ou tchau. Ou “você é
tão maravilhosa, Bunny”. Agarram os corpos pálidos e rosados umas das
outras com tanta força, formando uma rodinha abafada de amor e
compreensão tão esmagadora, que fico até sem ar. E em seguida o roçar de
narizes arrebitados e bochechas aveludadas como pêssego. Têmporas
pressionadas de um jeito que me faz pensar na fricção genital dos bonobos
ou na telepatia das crianças lindas e assassinas dos filmes de terror. Os oito
olhos fechados, como se essa asfixia coletiva fosse algum tipo de êxtase
religioso. As quatro bocas brilhantes deixando escapar gritinhos de um
amor monstruoso que faz meu rosto doer.
Te amo, Bunny.
Passei o último ano inteirinho rezando em silêncio pela explosão
daquele abraço. Torcendo para que, naquele aperto fervoroso, as entranhas
derretessem feito glacê de bolo e escorressem pelas mangas, golas e
bainhas de seus vestidos rodados. Queria que ficassem emaranhadas
naquela cabeleira digna de Game of Thrones, sufocadas pelas mechas que
elas viviam trançando em formato de coração em suas cabecinhas, que se
engasgassem com o perfume suave e relvado que exalavam.
Mas não aconteceu. Nem uma vezinha sequer.
Elas sempre saíam intactas e ilesas desses abraços, apesar da
hostilidade que emanava de meu olhar penetrante como o veneno de um
vilão de histórias em quadrinhos. Em seguida se encaravam, sorridentes.
As mãos entrelaçadas balançando. A pele viçosa de tanto carinho e
pertencimento, como se tivessem acabado de se banhar nas águas límpidas
de um riacho da montanha.
Bunny, eu te amo.
Totalmente alheias ao desdém de sua colega de mestrado. Eu.
Samantha Heather Mackey. Que não é uma Bunny. E nunca será.
Sirvo mais uma tacinha de champanhe para mim e para Ava no canto
mais afastado do gramado, onde me apoio contra uma coluna dórica
branca revestida com um tule esvoaçante. Setembro. Universidade
Warren. A Demitasse anual de boas-vindas do departamento de Artes
Narrativas, porque esta faculdade é muito Ivy League e Nova Inglaterra
para chamar uma festa de festa mesmo. Vejam só os arranjos de mesa
apinhados de lírios. Vejam só as toalhas brancas e iluminadas flutuando
por toda parte como fantasmas. Vejam só as bandejas de estanho com
canapés de salmão e crostini de fígado de ganso cobertos com orquídeas de
açúcar. Vejam só as pessoas brancas vestidas de preto falando sobre as
bolsas que ganharam para traduzir poetas franceses que ninguém lê. Vejam
só a tenda luxuosa sob a qual socializam os superqualificados, versados em
todas as artes exceto a da conversa. Todos com um sorriso no rosto, sem ter
a menor ideia de que estão na boca do inferno. Ou, como Ava e eu
chamamos, no Covil de Cthulhu, o monstro gigante e cheio de tentáculos
criado por um escritor de terror que enlouqueceu e morreu aqui mesmo. E
quer saber de uma coisa? Faz todo o sentido. Quando se anda pelas ruas
mais afastadas da bolha da Warren, dá para sentir que tem algo de errado
com esta cidade. Tem alguma coisa esquisita nas casas, nas árvores, na luz.
Mas, se você toca no assunto, a maioria das pessoas não esboça a menor
reação.
Mas Ava é diferente. Ava diz: “Nossa, sim! A cidade, as casas, as
árvores, a luz — tudo esquisito pra caralho”.
Fico ali, cambaleante, abarrotada de champanhe morno, fígado de
bicho e seja lá qual destilado Ava continua servindo no meu copo de
plástico, direto de seu cantil beba-me.
“O que tem nisso aí mesmo?”, pergunto.
“Só bebe logo”, retruca ela.
Observo, por trás dos óculos de sol que peguei emprestados, o
reencontro das mulheres que sou obrigada a chamar de colegas depois de
terem sido cruelmente separadas durante todo o verão, que passaram
perdidas em ilhas tropicais remotas, no sul da França, nos Hamptons. Vejo
seus corpinhos fervorosos se agrupando em uma espécie de êxtase. Unhas
da cor de veneno cravadas em seus antebraços com um afeto tão intenso
que só pode ser, tem que ser, falso. Lábios cintilantes entreabertos para se
chamarem pelo apelido carinhoso que compartilham.
“Jesus, elas são assim de verdade?”, cochicha Ava no meu ouvido. Ela
nunca as tinha visto de perto. E não acreditou em mim quando lhe contei
sobre elas no ano passado. Disse: “Até parece que mulheres adultas
agiriam assim. Isso é coisa da sua cabeça, Smackie”. Durante o verão,
comecei a acreditar que era só invenção minha mesmo. Então, de certa
forma é um alívio vê-las ali, nem que seja apenas para confirmar que não
estou ficando maluca.
“São”, respondo. “Infelizmente são.”
Observo-a examiná-las através do véu arrastão, seus olhos de David
Bowie cheios de horror e tédio, a boca franzida em uma linha vermelha
nem um pouco impressionada.
“A gente já pode ir?”
“Ainda não posso ir embora”, aviso, com o olhar ainda fixo nelas.
Enfim se desvencilham umas das outras, seus vestidinhos fofos sem
um amassadinho sequer, os cabelos sedosos sem um fiozinho fora do lugar,
a pele exalando saúde enquanto se agacham em sincronia para paparicar o
shih-tzu saltitante de uma professora.
“Por que não?”
“Já falei. Tenho que ser vista.”
Ava olha para mim, escorregando de tão bêbada pelo pilar. Não
cumprimentei ninguém. Nem os poetas, eles próprios um porre com seus
resmungos. Nem os escritores de ficção novatos que riem sem jeito perto
dos coquetéis de camarão. Nem mesmo Benjamin, o administrador
amigável com quem costumo ficar grudada em eventos assim, ajudando-o a
espalhar patê de miúdos em pedaços de torrada. Nem Fosco, a orientadora
do meu seminário na primavera passada, ou qualquer outro membro do
respeitado corpo docente. “E como foi o seu verão, Sarah? E como vai a
dissertação, Sasha?”, perguntam com indiferença educada, sempre me
chamando pelo nome errado. E não importa a resposta que eu dê a eles —
uma confissão sincera sobre meu fracasso iminente, uma mentira
descarada que me deixa vermelha feito pimentão —, sempre recebo o
mesmo aceno de cabeça compreensivo, o mesmo sorriso cansado, uma
enxurrada de clichês sobre como o Processo é ardiloso, como a Obra é
uma amante ingrata. “Confie, Sasha. Tenha paciência, Sarah. Às vezes é
melhor deixar o texto descansar um pouquinho, Serena. Às vezes,
Stephanie, é preciso arregaçar as mangas.” Esses conselhos são quase
sempre acompanhados do relato de um bloqueio criativo/avanço
semelhante vivido durante um programa agora descontinuado na remota
Grécia, Bretanha, Estônia, os quais escuto enquanto concordo com a
cabeça, as unhas fincadas no antebraço.
E é claro que não falei com o Leão. Mesmo que ele esteja aqui. Em
algum canto. Eu o vi de relance mais cedo, com a juba mais cheia e o
corpo mais tatuado do que nunca, servindo-se de uma taça de vinho tinto
no open bar. Por mais que não tenha erguido a cabeça, senti que ele me
viu. E aí senti que ele viu que eu o vi enquanto continuava a encher a taça.
Não o vi de novo desde então, mas ainda sinto sua presença como um
arrepio na nuca. Assim que chegamos, Ava teve a impressão de que ele
estava por perto porque, olha, o céu escureceu do nada.
Esta noite, minha tentativa de socializar consistiu em esboçar um
sorriso para o cara que as Bunnies chamam de Jonah Psicopata, meu
equivalente social entre os poetas, que agora está sozinho ao lado do
ponche, sorrindo alegremente em seu próprio sonho febril alimentado
pelos antidepressivos.
Ava solta um suspiro e acende um cigarro com uma das velas
espalhadas pela mesa. Depois dá outra conferida nas Bunnies, que agora
acariciam os braços umas das outras com suas mãozinhas diminutas.
“Estou com saudade de você, Bunny”, dizem entre si com vozes
fingidas de garotinha, embora estejam coladas e eu consiga sentir na ponta
da língua o gosto metálico do ódio que permeia seus corações.
“Não, eu que estou com saudade, Bunny. Foi tão difícil passar o verão
longe de você. Nem consegui escrever direito. Fiquei tão, tão triste. Não
vamos nos separar nunca mais, hein? Por favor.”
Ava deixa escapar uma risada. Chega até a gargalhar. Joga a cabeça
emplumada para trás e nem se preocupa em cobrir a boca com a mão
enluvada. É um som delicioso, estridente. Enche o ar da noite na ausência
de música.
“Fique quieta”, sibilo para ela, mas agora já é tarde demais.
A risada captura a atenção daquela que chamo de Duquesa, que vira a
cabeça repleta de cachos prateados de fada em nossa direção. Ela nos
observa. Primeiro Ava. Depois eu. Então Ava outra vez. Parece surpresa,
talvez, ao ver que não estou sozinha, que tenho uma amiga. Ava a encara
com os olhos bem arregalados, do jeito que eu adoraria poder fazer. Ela
tem um olhar formidável, europeu, e não para de fumar e bebericar meu
champanhe enquanto observa Duquesa sem perder o contato visual.
Uma vez ela me disse que travou um duelo de encaradas com uma
cigana no metrô de Paris. A mulher estava olhando para ela, então Ava
olhou de volta, as duas mirando o olhar como uma arma enquanto
atravessavam a Cidade das Luzes. E assim ficaram, cada uma do seu lado
no vagão barulhento. Em certo ponto, Ava arrancou os brincos, ainda sem
tirar os olhos da mulher. Por que fez isso? Ora, pois estava convencida de
que, àquela altura, era inevitável que as duas duelassem até a morte. Mas,
quando o trem chegou à última estação, a mulher apenas se levantou para
ir embora e até segurou as portas para que Ava saísse primeiro.
“O que podemos aprender com isso, Smackie?”
“Nunca tire conclusões precipitadas?”
“Nunca seja a primeira pessoa a desviar o olhar.”
Ao se virar para nós, a Duquesa incita as outras Bunnies a fazerem o
mesmo, como um efeito dominó. A primeira a olhar é Cupcake. Depois
vem Boneca Sinistra, com seus olhos de tigre. E por fim é a vez de
Vinheta, com suas adoráveis feições de caveira vitoriana, a boca de
maconheira escancarada. Elas olham para Ava, depois para mim, e nos
examinam da cabeça aos pés, sorvendo-nos com os olhos como se
fôssemos uma bebida exótica. Suas narinas se contraem e os oito olhos
permanecem fixos em nós, sem piscar. Em seguida elas se viram para a
Duquesa e se agrupam, aos cochichos com os lábios lambuzados de gloss.
Ava aperta meu braço com força.
A Duquesa volta a nos observar e arqueia uma sobrancelha. Depois
levanta a mão. Será que tem uma arma invisível ali? Não. Só uma mão
vazia e aberta. Que ela usa para acenar. Para mim. Com o que parece ser
um sorriso nos lábios. “Oi”, diz sua boca.
Minha mão se levanta sozinha antes que eu consiga impedir. E aí
começo a acenar uma, duas, três vezes. “Oi”, respondo com minha boca,
mas não sai nenhum som.
Em seguida, as outras Bunnies também levantam a mão e acenam.
E todas ficamos ali acenando umas para as outras em lados opostos do
gramado coberto.
Todas, menos Ava, que ainda fuma e as encara como se fossem um
bicho de quatro cabeças. Quando enfim abaixo a mão e me viro para ela,
percebo que está me olhando como se nem me reconhecesse.
2

No dia seguinte, encontro um convite na minha caixa de correio da


faculdade, dobrado como um cisne de origami. Uma delas deve tê-lo
enfiado ali, entre os periódicos de poesia experimental e os panfletos de
saraus dos professores, um documentário romeno e uma peça sobre a
cidade ser o Corpo e o Corpo ser a cidade. Resolvi vir mais cedo, durante
meu tempo livre, para ver se o cheque mensal da bolsa havia chegado.
Nem sinal dele. Jogo o resto das correspondências no lixo e volto a
examinar o origami, no qual uma delas desenhou um rostinho tosco com
caneta magenta. Dois olhinhos sangrentos, um de cada lado do bico afiado
que, com a ajuda de covinhas e lábios pintados de tinta, parece sorrir para
mim. Em uma das asas, vejo as palavras: abra aqui .

Samantha Heather Mackey,


você está cordialmente convidada para o nosso…
SALON SACANA
Quando: na hora azul
Onde: você sabe
O que levar: você mesma, por favor

Analiso a caligrafia arredondada e brilhante, os coraçõezinhos que uma


delas (provavelmente Cupcake, ou talvez Boneca Sinistra?) desenhou em
volta do meu nome. Sinto que começo a suar, apesar do frio que faz no
corredor. Um engano. Só pode ter sido um engano. Até parece que essas
garotas me convidariam para o Salon Sacana. Era um dos seus rituais de
Bunnies, como se abraçar às terças-feiras, maratonar The Bachelorette ou
fazer bichinhos de marzipã. O tipo de coisa sobre a qual elas cochichavam
o tempo todo no ano passado enquanto esperávamos o seminário começar.
“Aimeudeus, o Salon Sacana de ontem foi uma loucura, hein?”
“Nossa, eu enchi a cara no Salon Sacana ontem.”
“Que tal se no próximo Salon Sacana a gente…”
E aí elas chegavam mais perto e cochichavam o resto.
Releio o convite. Não é possível que seja para mim. Mas é meu nome
que está ali. Samantha Heather Mackey, com um coraçãozinho de cada
lado. Ao ver meu nome naquela caligrafia tão elegante, sou tomada por
uma emoção estranha e vergonhosa. Penso em como me cumprimentaram
na noite anterior. Primeiro a Duquesa, depois as outras Bunnies. E em
como acenei de volta, sem parar, com tanta convicção.
Ainda seremos só nós cinco no seminário este semestre. E as aulas
começam amanhã. Passei o verão inteirinho apavorada com essa ideia.
Apenas eu e essas quatro garotas na mesma sala por duas horas e vinte
minutos, sem ter para onde fugir. Toda semana, durante treze semanas.
Tentei me convencer de que seria bem parecido com o ano passado. Eu de
um lado da mesa, e elas, do outro, grudadas de tal modo que, quanto mais
eu estreitava os olhos, mais se pareciam um único corpo com quatro
cabeças. A Duquesa lia em voz alta o que havia escrito com um diamante
em uma placa de vidro enquanto as outras Bunnies fechavam os olhos
como se estivessem ouvindo uma ária. De mãos dadas enquanto elogiavam
os textos umas das outras. “Será que tem como você escrever mais umas 5
mil páginas, por favor? Eu só queria dizer que amei viver nessa história e
quero passar o resto da vida aí.” E aí trocavam carícias, distraídas,
enquanto discutiam a leitura da semana. De repente desatavam a rir de
alguma piada interna, da qual eu sempre ficava de fora porque não
entendia e que nunca me explicavam, pois estavam muito ocupadas rindo.
“Desculpe, Samantha”, diziam, sem fôlego, “mas você não estava lá para
entender.” Não, eu poderia concordar, não estava mesmo. E às vezes o riso
se estendia por vários minutos. Elas chegavam a chacoalhar de tanto rir, os
olhos marejados, agarrando-se pelos punhos ou pelos ombros enquanto eu
continuava ali, sentada do outro lado da mesa, contemplando suas feições
ou o espaço mínimo que as separava. Enquanto isso, Fosco nos observava
em silêncio. Comecei a chegar cada vez mais atrasada à aula. Até que, a
certa altura, simplesmente deixei de ir. “Cadê Samantha?”, Fosco deve ter
perguntado. “Não temos ideia”, seguido de um encolher de ombros sob os
suéteres. De um sorriso indiferente.
Mas talvez elas estejam mesmo tentando me incluir este ano. Talvez o
convite seja uma demonstração de gentileza. Ou talvez seja só uma piada.
Só pode ser isso. Imagino um par de mãos com dedinhos delicados fazendo
o origami em uma grande mesa de carvalho com vista para a copa das
árvores. Dentinhos brancos curvados em um sorriso acetinado.
“Vagabundas”, praguejo baixinho no corredor.
“Oi, Sam.”
Pulo de susto. Jonah, parado ao meu lado enquanto vasculha sua caixa
de correio, olhando para mim com seu sorriso de Brilho eterno de uma
mente sem lembranças.
“Nossa, Jonah, você me assustou.”
“Foi mal, Sam”, desculpa-se ele, e parece genuinamente arrependido.
“Ei, com quem você estava falando agorinha mesmo?”
“Com ninguém. Sozinha. Eu falo sozinha às vezes.”
“Eu também”, responde, sorrindo. “O tempo todo.”
Cabelo tigelinha. Uma jaqueta que ele nunca tira, o zíper sempre
aberto. Por baixo, veste uma camiseta com estampa de um gatinho tocando
teclado no espaço. Jonah é um ex-viciado tão dopado de remédios que sua
voz parece se arrastar pela lama. É de longe o melhor poeta da faculdade.
E também o mais gentil, o mais generoso com os cigarros. Não sei por que
é tão rejeitado pelos outros estudantes de poesia — com exceção de
algumas turmas mistas, poetas e escritores de ficção tendem a não se
misturar nem no âmbito acadêmico, nem no social. Mas já vi Jonah ser
isolado pelos colegas na rua, ou então se sentar no canto mais afastado da
sala durante os seminários, contemplando o nada enquanto os outros o
destroem com suas críticas. Sei muito bem como é, obviamente. A
diferença é que Jonah não parece dar a mínima. Ele parece mais ou menos
satisfeito em permanecer isolado em sua nuvem de poesia.
“O que você veio fazer aqui, Sam?”
“Ah, nada demais. Só vim conferir se o cheque da bolsa tinha
chegado.”
“Ei, eu também”, responde, empolgado. “Estou precisando muito do
dinheiro. Torrei tudo em livros e discos e tive que passar o resto do mês à
base de miojo. Já aconteceu com você?”
“Arrã.”
Mentira. Nunca fiz isso. Não posso me dar o luxo de fazer uma coisa
dessas. Eu me empertigo um pouquinho.
“E aí, vai dar uma passadinha lá?”, pergunta ele, mostrando o panfleto
da peça de teatro.
“Não”, respondo secamente, mas logo me sinto culpada e trato de
acrescentar: “Eu meio que odeio teatro, Jonah.”
“Ah, eu também. Em geral. Ei, vi você na festa ontem. Levei um
cigarro a mais para você, mas você nem deu as caras no beco.”
“É. Fui embora mais cedo.”
“Ah.”
Ele assente com ar pensativo, como se entendesse. Basicamente, me
aproximei de Jonah de tanto fumarmos juntos nos becos, esquinas e
varandas das inúmeras festas e eventos da faculdade de que tento escapar.
Sempre saio de fininho, desesperada para ir embora, e acabo dando de cara
com ele na escuridão lá fora, tremendo de frio enquanto fuma ao lado das
caçambas. “Oi, Samantha.” Foi assim que descobri que, como eu, Jonah é
o único de sua turma que não veio de um bacharelado de renome. Ele
também se candidatou de brincadeira a um programa de mestrado em
belas-artes que, segundo nos dizem, é um dos mais prestigiados, seletivos e
difíceis do país, pensando: Até parece que vou conseguir.
“Não é uma doideira estarmos aqui?”, ele me perguntou em uma das
primeiras festas.
“É mesmo”, respondi com a voz arrastada, o olhar fixo nas Bunnies, já
no meio de um abraço coletivo de jiboia, mesmo tendo acabado de se
conhecer.
“Parece até um sonho”, continuou Jonah. “Toda hora acho que vou
acordar, sabe? Como se talvez fosse melhor eu pedir para alguém me
socar.”
“Não quer dizer ‘beliscar’?”
“Ah, acho que um beliscão não seria o suficiente para me acordar desse
sonho. E, se fosse, eu acordaria em Fairbanks, ainda morando no porão do
meu pai. Onde você acordaria se eu socasse você, Samantha?”
Atrás de uma caixa registradora no oeste dos Estados Unidos, analisando o
beco sem saída que era a minha vida, pensei. As noites dedicadas a escrever
outro destino para mim.
“Em Mordor”, respondi a Jonah.
“Acho que, então, é melhor a gente não se socar”, disse ele, sorrindo
para mim.
“Então, como vai a escrita, Sam? Você ‘fez bom uso do verão’?”
Ele abre um sorriso. Está zombando do nosso professor do seminário
misto do semestre passado, Halstrom, que vivia dizendo que não podíamos
deixar o verão passar em branco. Porque este ano, o nosso último ano,
aquele em que todos precisamos ter um manuscrito finalizado até abril,
passaria tão, tão rápido que nem conseguiríamos acreditar. Porque, em um
piscar de olhos, tudo isso — e ele apontava a mão bem cuidada para o ar
abafado da sala, os pilares falsos, a lareira apagada, as paredes que
lembravam uma caverna — desapareceria. Vi como as Bunnies
estremeceram e se abraçaram com o olhar. Os poetas já se preparavam
para a vida de pobreza dos superqualificados.
“Eu fiquei à toa na maior parte do tempo”, confessa Jonah. “Tipo,
escrevi uns dois livros de poesia, mas estão péssimos, então voltei à estaca
zero. Mas aposto que você escreveu feito doida esse verão, né?”
Penso no verão, nos dias que passei contemplando as partículas de
poeira atrás do balcão da audioteca da faculdade, nas noites ao telhado da
casa de Ava, bebendo e dançando tango até mergulharmos em
esquecimento. Às vezes eu olhava para uma folha em branco, com um
lápis frouxo entre os dedos. Às vezes desenhava olhos na página. Rabiscava
a frase “O que estou fazendo aqui?” sem parar. Na maior parte do tempo,
contudo, eu apenas encarava a parede. Durante todo o verão, a folha e a
parede se fundiram em uma coisa só.
“Não sei se ‘feito doida’…”
“Ainda lembro daquele texto que você leu no seminário no ano
passado. Sabe? Aquele que todo mundo odiou?”
“Sim, Jonah, eu me lembro muito bem.”
As expressões horrorizadas. Cabeças ligeiramente curvadas.
“Eu ainda penso nele. Tipo, é bem difícil esquecer, né? Era tão…”
“Violento?”, sugiro. “Propositalmente distorcido? Agressivamente
sombrio? Eu sei, acho que foi o consenso da turma.”
“Não! Quer dizer, sim, era violento, distorcido e sombrio e me deixou
apavorado por semanas. Mas eu amei tudinho. Amei o fato de ser tão
violento, distorcido e sombrio”, conta ele, sorrindo para mim. “Quem diria
que ir a um aquário poderia ser tão perigoso e terrível, sabe?”
“Pois é.”
“Mas, quando a gente para e pensa no assunto, meio que é perigoso
mesmo.”
“Obrigada, Jonah. Também gostei do seu texto que todo mundo odiou.”
“Sério? Eu ia jogar fora, mas…”
“Não faça isso! É justamente o que eles querem”, digo com mais
intensidade e amargura do que pretendia.
Jonah parece confuso.
“Quê?”
“Nada, não. Acho melhor eu ir andando. Estou atrasada para a aula.”
Mentira. Nem tenho aula agora. Mas Ava deve estar me esperando no
banco lá fora, fuzilando os calouros com seu olhar assassino. “Porra,
Smackie, será que dá pra vir logo?”
“Ah, tudo bem. Ei, Sam, posso ler outro texto seu qualquer dia desses?
Eu meio que gosto deles. Tipo, quer dizer, gosto muito deles. Na verdade,
fiquei até em abstinência querendo mais.”
“Hum… claro. Pode ser.”
“Maravilha. E talvez a gente possa sair algum dia e…”
No fim do corredor, atrás de Jonah, ouço o barulho do elevador e sinto
um embrulho no estômago. Porque já sei, antes mesmo de a porta se abrir,
quem vai estar do outro lado. Sei disso antes mesmo de ver sua silhueta
alta e graciosa sair assobiando porta afora. Sua juba, um caos
cuidadosamente cultivado. Braços tatuados com corvos vigilantes. Leão.
Cada vez mais perto. Com a camiseta de banda obscura que sempre veste.
Uma das bandas sobre as quais a gente conversava quando ainda estava
conversando. Ele traz consigo o cheiro do chá-verde que sempre preparava
para nós em seu escritório e que mexia com cerimônia antes de despejá-lo
em xícaras cor de lama. “Como vai a escrita, Samantha?”, ele perguntava
com o sotaque escocês carregado e melodioso.
Vejo seu rosto leonino estremecer ligeiramente ao avistar alunos com
quem precisa confraternizar. A quem deve perguntar se tiveram um bom
verão. Conseguiram escrever? Por acaso o valor da bolsa chegou direitinho?
Isso sem contar que eu sou uma das alunas em questão. O que só dificulta
as coisas. Mas ele sorri. Claro que sorri. É o trabalho dele.
“Olá, Jonah. Samantha.”
Sua voz ficou mais grave quando disse meu nome, embora estivesse
tentando soar despreocupado, impassível. Percebo que dá um aceno sutil
com sua juba.
Depois começa a vasculhar sua própria caixa de correio, abarrotada de
cartas e livros, enquanto assobia baixinho. Sem pressa.
“Tá tudo bem, Samantha?”, pergunta Jonah.
Eu deveria simplesmente ir até lá, como imaginei tantas vezes, cutucar
seu ombro e dizer: “Olhe só, será que a gente pode conversar?”. Ele vai
parecer surpreso, quem sabe? “Conversar?”, vai dizer, esquadrinhando os
arredores em busca de uma rota de fuga. Como se eu tivesse sugerido algo
muito suspeito. Ilícito. “Agora não posso, Samantha. Mas que tal se você
der uma passadinha durante o expediente?” Ou talvez ele se faça de bobo.
Talvez olhe para mim com uma expressão fria, neutra, sem revelar nada.
“Claro, Samantha. O que foi?”, enquanto me diz com os olhos: “Claro, vá
em frente, pode falar”.
“Samantha?”
E depois? O que acontece? Eu poderia ir direto ao assunto e dizer: “Eu
não sei muito bem o que aconteceu entre nós, mas será que podemos
deixar a estranheza de lado?”. Mas tenho medo de que ele me olhe como
se eu fosse maluca. Estranheza? O que aconteceu? Entre nós? “Samantha,
sinto muito, mas não tenho a menor ideia do que você está falando.” Mas
vai parecer que não sente muito coisa nenhuma.
Mas agora que o vejo ali, assobiando enquanto folheia a
correspondência, com um sorriso no rosto, sinto uma onda de… não sei
exatamente o que, mas preciso ir embora.
“Ei, Samantha, espere aí…”, chama Jonah.
“Eu estou muito atrasada para a aula.”
O Leão levanta os olhos do seu armário. Deve saber que não estou
atrasada para nada. Que nem tenho aula agora. Que estou fugindo dele
como uma cadelinha assustada. Qual é a presa de um leão mesmo?
“Ah, claro. Boa aula, Samantha.”
E, então, Jonah acena para mim uma, duas, três vezes, me lembrando
do meu gesto da noite anterior, quando minha própria mão acenava sem
parar.
3

Antes de ir atrás de Ava, trato de enfiar o convite no bolso. Ela disse que
esperaria por mim do lado de fora do Centro de Artes Narrativas e se
comunicaria comigo em pensamento. “Porque eu é que não vou entrar aí,
Smackie. Foi mal. Você sabe por quê.” Assenti com firmeza. “Sei, sim.”
Mas na verdade eu não sei muito bem, tirando o fato de ela ser totalmente
contra a Warren e achar que esta universidade está cheia de babacas
arrogantes, além de acreditar que está acabando com minha
alma/criatividade. E pode afirmar isso com propriedade, pois sofreu a
mesma coisa na escola de artes ao lado, quase tão famosa e renomada
quanto a Warren. Mas ela não permitiu que destruíssem sua alma.
Abandonou o curso antes de isso acontecer. “Foda-se essa faculdade.
Fodam-se todos eles.” Agora ela trabalha no porão do laboratório de
ciências naturais, lá no fim da colina, catalogando insetos mortos. Cada
um deles tem sua própria gavetinha de vidro. Até que é legal. E
infinitamente melhor para o bem-estar espiritual e criativo de Ava do que
conviver com os estudantes de Arte, que se fingem de pobres com sua
elegância perturbada.
A única coisa que Ava gosta de fazer na Warren é revirar as latas de lixo
atrás dos dormitórios e atrapalhar as visitas guiadas pelo campus. De vez
em quando, chegamos até a nos embebedar em um banco ao lado da
infame estátua da lebre voadora e ficamos de butuca para espiar os futuros
alunos e seus pais. As mães sempre examinam o campus como
compradoras interessadas, as mãos repletas de joias acariciando as costas
de suas crias como se dissessem: “Aquilo ali pode ser seu um dia, tudo isso
pode ser seu”. Os futuros alunos olham com avidez ou pertencimento para
o gramado do campus, orvalhado como sua própria pele, talvez fantasiando
com os dormitórios luxuosos ou com as orgias de que tanto ouviram falar e
que, segundo Ava, só são frequentadas por gente muito sem graça que
ninguém gostaria de ver pelada. Não fantasiam, tenho certeza, com a
possibilidade muito real de serem decapitados a caminho de casa enquanto
voltam de uma noitada em um bar de estudantes. Ou então de serem
espancados com pés de cabra pelos bandidos que perambulam pelos
arredores do campus. Porque a violência deste lugar, inevitável no coração
frágil de uma cidade assolada pela pobreza, nunca é mencionada durante o
passeio guiado, que é sempre conduzido por um aluno com roupas
esportivas de grife e talento para disparar curiosidades aleatórias sobre
estátuas e lustres enquanto caminha de costas. Daí a vontade de Ava de se
intrometer.
“Warren foi fundada em 1775 e bem ali podemos ver…”
“Blá-blá-blá”, completa Ava, sentada ao meu lado no banco. “Ele só se
esqueceu de contar que aqui neste campus tem muita gente doidinha para
arrancar a cabeça de vocês”, grita ela para as mães, que a encaram,
horrorizadas. “É isso mesmo que vocês ouviram! Com um machado! Deste
jeitinho.” E então se levanta e se aproxima deles, brandindo um machado
invisível até que uma, duas ou todas elas comecem a gritar.
Por mais perplexa que eu esteja, sempre rio tanto que chego a chorar.
Esse banco se tornou nosso ponto de encontro não oficial. É onde Ava
deveria estar sentada agora mesmo, olhando feio para os alunos que
passam enquanto rabisca o que ela chama de “a verdade monstruosa” em
seu bloquinho, como sempre faz.
Quando vejo o banco vazio, entro em pânico. Todos os dias que passei
sozinha no ano passado voltam à tona e minha visão começa a ficar turva.
E então alguém agarra meu braço direito e sou envolvida por um aroma
familiar. Duas mãos enluvadas cobrem meus olhos.
“Bu!”, sussurra ela no meu ouvido.
Mesmo sabendo quem é, finjo surpresa. Pulo como se tivesse levado
um susto.
Ela começa a gargalhar, depois bate palmas.
“Nossa, é tão fácil enganar você.”
“Eu sei. Onde você estava?”, pergunto.
“Tinha dois otários discutindo Virginia Woolf com uma seriedade tão
orquestrada que precisei sair de perto. Aliás, por que você demorou tanto?
Passou uns cinco anos lá dentro.”
Lembro-me, então, do convite escondido no bolso, do bico do cisne
que me cutuca a barriga enquanto ela fala comigo.
“Eu conversei um pouquinho com o Jonah.”
“Ah, o poeta sonhador que quer comer você?”
“Ele não quer me comer!”
“Quer tanto que chega a ser ridículo.”
“Ele disse que eu era sombria, distorcida e violenta.”
“Que fofo. Então ele está apaixonado.”
“Será que podemos mudar de assunto?”
Ava olha para mim.
“Aconteceu alguma coisa, né? Pode ir me contando.”
“Não foi nada. É que… Acabei dando de cara com o… Bom, você
sabe.”
Ela assente. Claro que sabe.
“E você falou alguma coisa?”
“Eu não ia conseguir… confrontá-lo, sabe? Depois de tudo que…”
E aí perco o fio da meada porque ela está me encarando fixamente,
mas não sei se está decepcionada comigo ou irritada com ele.
“Já pensou em atear fogo no escritório dele? Pois deveria…”, diz ela por
fim, e então sorri. “Por um momento achei que você tinha sido sequestrada
por aquelas bonobos.”
“Bunnies”, corrijo, e sinto o rosto corar.
Penso nas carinhas sorridentes no convite. Nos coraçõezinhos
desenhados à mão.
“Tanto faz. Mas fiquei preocupada com você.”
Ela estremece ao ver as árvores frondosas, como se não fossem árvores,
e sim algo inteiramente perverso, como se toda aquela luz amarelo-rosada
que sempre parece banhar o campus estivesse prestes a socá-la com seu
punho de riqueza. Ava observa tudo com repulsa — os prédios antigos, os
portões ornamentados, o gramado perfumado que se estende até se perder
de vista, repleto de esquilos e coelhos de olhinhos reluzentes, os alunos
andando por aí enquanto discutem Derrida e as plásticas que fizeram no
nariz, os cabelos beijados por uma luz de setembro tão dourada e perfeita,
que parece até que o sol só está ali para servi-los. Não consigo ficar
indiferente a toda essa beleza. No ano passado, tirei uma porção de fotos
do campus — clique, clique, clique com meu tijolão velho e quebrado —
em todas as estações, em diferentes horas do dia, sob todos os tipos de luz.
Mas nunca mais parei para admirá-las, nunca as mostrei para ninguém.
Um banco entre dois salgueiros. Um campanário de duzentos anos. Uma
lareira gigantesca como a de Cidadão Kane. Tirei uma selfie lá. E também
uma foto minha e de Ava diante da lareira, os rostos colados, sem sorrir,
porque preferimos assim. Seu braço, envolto em renda arrastão, ao redor
do meu corpo. E tenho uma foto só de Ava. Parada sozinha diante das
chamas de um jeito que a faz parecer uma bruxa na fogueira.
Agora, ela pousa a mão no meu rosto e esboça um sorriso.
“Será que podemos dar o fora daqui?”, pede. “Você sabe que só venho
por sua causa.”

Passo o dia sem contar a Ava sobre o convite das Bunnies.


Em vez disso, vamos comemorar o que ela chama de “meu último dia
de liberdade” na lanchonete dos condenados, onde ela desenha e eu
escrevo. Em teoria. Na verdade, abro o caderno e fico imóvel enquanto a
observo desenhar. Depois vamos ao zoológico para cumprimentar o urso-
negro. Em seguida, damos uma passadinha no centro da cidade para tomar
café vietnamita no lugar duvidoso de que gostamos, onde quase tomei um
tiro uma vez.
“Ninguém ia atirar em você, Smackie. Pelo amor de Deus. Deve ter
sido o escapamento de um carro ou coisa do tipo”, desconversou ela
quando toquei no assunto.
“Foi um tiro, sim.”
“Você precisa sair mais.”
“Ué, mas eu saio. Estou aqui com você agora, não estou?”
E por fim voltamos para a casa dela para beber sua sangria caseira, tão
forte que tenho quase certeza de que é veneno. Já é aquela hora da noite
que Ava chama de “a hora entre o cão e o lobo”. Momentos assim
conseguem tornar magnífica esta região lamentável da Nova Inglaterra,
quando um crepúsculo cor de flamingo incendeia o céu. Acomodadas
naquele telhado que ameaça ceder, escutamos um tango argentino para
abafar a música mexicana que estrondeia do vizinho. Praticamos os passos
de tango, como fizemos durante todo o verão, revezando-nos no papel de
Diego, um homem imaginário com movimentos de pantera que, em nossas
fantasias, um dia aparecerá de repente para nos deixar nas nuvens. Ele tem
a aparência ardente e hipnotizante de Rodolfo Valentino, mas com o olhar
risonho e confiável de Paul Newman; o sorriso insano e o torso comprido
de Lux Interior, o vocalista do The Cramps, mas com a sinceridade
arrebatadora de Jacques Brel. Diego usa ternos brancos ou camisas
guayaberas pretas com estampas de chamas alaranjadas. Ele nos assa um
pão fresquinho pela manhã. Colhe flores e as coloca nos vasos do
apartamento. Não escreve poesia, mas lê por lazer. Tem um pied-à-terre em
Paris, uma mansão em Buenos Aires. E o mais importante de tudo: dança
tango como um deus. Estou fazendo o papel de Diego agora, o que
significa que eu conduzo enquanto ela está livre para fechar os olhos e
sonhar.
O convite das Bunnies continua a tiquetaquear no meu bolso como
uma bomba.
Vc vem hj? , uma delas me perguntou por mensagem durante a tarde.
“Não dá para fantasiar que você é Diego se continuar dançando feito
um nerd, Smackie. Movimentos graciosos como os de uma pantera,
esqueceu?”
“Foi mal.”
“O que deu em você hoje?”
“Nada.”
“Você está tão distraída.”
Eu deveria simplesmente responder Tô doente, não posso , e acabar
com isso de uma vez por todas. Porque eu não deveria ir até lá. Porque só
de estar na presença delas e ouvir suas vozes infantis do outro lado da sala
já sinto meus dentes rangerem. E, ainda assim, o sol já se pôs. E eu ainda
não neguei o convite. Elas nem devem querer que eu vá mesmo. Só devem
ter me convidado por educação. Por educação? Não. Não é bem isso. Foi
só para que possam dizer: “Bom, pelo menos a gente tentou. Foi ela que
não quis vir”.
“Viu, Bunny? Eu falei que ela não viria. É isso que ela quer. Prefere
que as coisas continuem como estão.”
“Mas por que, hein?”, perguntará Boneca Sinistra, usando as orelhas de
gatinho que ela não tira desde o último Halloween.
“Eu já disse”, responderá Cupcake, fazendo carinho na outra. “Ela é
uma esquisitona.”
“Ah, você é tão engraçada, Bunny. Eu te amo.”
“Eu te amo mais, Bunny.”
“Chega”, diz Ava. “Vamos parar.”
“Por quê?”
“Está na cara que você não está a fim de dançar hoje.”
“Estou, sim”, minto. “Sério.”
“Aconteceu alguma coisa?”
Já são seis e meia da tarde. Preciso decidir. Não posso ir até lá. Então
não vou.
“Talvez eu tenha que sair hoje à noite”, aviso.
Ela parece um pouco ressabiada. Nem posso culpá-la. Desde que nos
conhecemos na primavera passada, nunca tive outros planos.
“É uma coisa da faculdade”, continuo.
“A gente já não foi nesse evento esses dias?”
“É outro.”
Ela olha para mim.
“Você não está cansada de mim, está?”
“Não. Nunca”, respondo com veemência, porque é verdade.
“Se for isso, pode me falar, tá? Eu não vou chorar nem nada.”
Pego o convite no bolso e estendo na direção dela.
Ava não encosta no papel, apenas olha para ele.
“Acho que foi a Caroline que escreveu”, comento. “Cupcake?”, trato de
esclarecer, pois percebo que nunca cheguei a lhe contar os nomes
verdadeiros.
Ela me encara, impassível.
“A loira com o corte chanel perfeito e as pérolas e a pulseira de
orquídea azul? Você falou que ela parecia um bolinho. Ou uma das
crianças de Colheita maldita indo ao baile de formatura?”
“Eu acho que todas elas parecem um bolinho, Smackie: pegajosas,
cheias de doçura artificial, com embalagens sem graça. Aposto que ela
usou uma daquelas canetas com cheiro”, diz Ava. Então arranca o convite
da minha mão, esfrega o dedo ali e o leva até o nariz. “Mas quando foi que
você recebeu isto?”
“Estava na minha caixa de correio esta manhã.”
“Ah, então é por isso que você passou o dia todo esquisita.”
“É que não sei o que responder. E acho que se eu não disser nada…”
“Aqui”, interrompe-me ela, puxando o isqueiro do bolso e o
posicionando no cantinho do papel.
“Ei, espere”, peço. “O que você está fazendo?”
“Não vá me dizer que você está cogitando ir a essa festa cheia de gente
imbecil, né?”
“Não.”
“Então…”
Ela aproxima o isqueiro do convite outra vez, chegando cada vez mais
perto, e então olha para mim.
O papel começa a estalar.
“Calma, calma, calma.”
“Que foi?”
“É só que… Bom, o seminário começa amanhã.”
“E daí?”
“E daí que seremos só eu e elas de novo neste semestre. Só nós cinco.”
“E?”
“Não quero ser mal-educada. Tipo, é claro que vou recusar o convite,
mas é que… Sabe, essas mulheres estão no mesmo curso que eu, são
minhas… hum… colegas.”
“A quem você chama de Rameiras.”
“Eu só preciso escolher as palavras certas. Para que elas não fiquem
achando que eu as odeio.”
Ava se vira para mim.
“Mas, Smackie, você as odeia mesmo!”
Eu a encaro através da minha franja, que ela me encorajou a deixar
crescer até cobrir os olhos. “Assim você fica mais punk”, disse. Observo
seus olhos, um de cada cor, o cabelo descolorido e emplumado — tão
diferente do das Bunnies —, com corte assimétrico e alguns pontos
totalmente raspados, e o véu arrastão que ela usa como uma barreira a ser
cruzada apenas pelos corajosos. E é isto que percebo: Ava jamais usaria
luvas de gatinho ou um vestido com gola Peter Pan. Ela jamais diria “Amei
seu vestido” se o tivesse odiado. Jamais perguntaria “Tudo bem com você?”
se não desse a mínima para o seu bem-estar. Jamais comeria um cupcake
de lavanda com gosto de perfume nem usaria um perfume com cheiro de
cupcake. Jamais usaria protetor labial só por estética. Só se os lábios
estivessem muito, muito rachados. E, mesmo assim, ainda arremataria com
uma camada de Lady Danger, o batom que ela sempre usa, um vermelho-
azulado que fica um absurdo de lindo nela, mas que me deixou parecendo
uma maluca na única vez que experimentei. Seu perfume cheira a chuva e
fumaça, e ela passa tanta sombra nos olhos que chega a assustar
criancinhas e sempre usa salto alto, mesmo que seja uns cinco centímetros
mais alta que eu, e olha que pareço um poste. E por quê? Ora, porque a
vida é muito curta, diz ela, então por que ficar de enrolação?
“Odeio mesmo”, concordo baixinho. “Então é melhor recusar. Tipo… O
que você acha que eu devo fazer?”
Um leve odor de chorume permeia o ar com o calor do fim do dia.
Olho para Ava por um momento, mas sua expressão permanece impassível.
Ela acende um cigarro. Eu observo minhas pernas sob a calça jeans preta e
sem graça.
Depois do que parece uma eternidade, durante a qual uma rajada forte
de vento agita os galhos da figueira e me tira o fôlego por um instante,
lembrando-me de que estamos perto do mar, embora eu nunca o tenha
visto — mas as Bunnies já o viram, claro, porque uma delas tem um suv e
elas vão até a praia nos fins de semana e tiram fotos com maiôs iguais aos
de Esther Williams, rindo enquanto andam de braços dados pela espuma
das ondas —, Ava responde:
“Vá, se é isso que você quer.”
“Quê? Mas eu não quero ir.”
“Mas você também não quer ser mal-educada, né? Essas mulheres
estão no mesmo curso que você.”
Ela me encara até eu desviar o olhar.
“Escute, você não faz ideia de como é estar na mesma sala que elas.
Frequentar o mesmo seminário que elas. Sei lá, talvez elas estejam
tentando fazer um esforcinho este ano. Vai ver querem ser mais legais ou
coisa do tipo.”
Ava abafa uma risada.
“É sério. E, se eu esnobar o convite, elas vão…”
“Vão o quê? Ande, diga que raios elas vão fazer.”
Começo a me lembrar do ano passado. Quando elas tratavam cada um
dos meus textos como um bebê malcriado, para logo em seguida trocarem
olhares de soslaio entre si.
“É tão… hostil”, diziam elas por fim.
“Isso. Talvez um pouco brutal demais para o meu gosto.”
“Exatamente. Como se estivesse apaixonado por sua própria
estranheza? Por sua própria narrativa crua? Mas talvez seja só impressão
minha.” (Sorrisinho educado.) “Mesmo assim. Queria que a escrita se
abrisse um pouquinho mais.”
“Escute, vou ficar só uma hora lá”, aviso. “No máximo. Só para dar as
caras.”
“Como quiser.”
“Vou mandar um monte de fotos do apartamento delas para você ver
como é terrivelmente fofo.”
Ava assente com a cabeça.
“Claro.”
“Você pode ir comigo se quiser”, ofereço, sem muita convicção.
“Não esquenta, Smackie. Eu não iria a essa festinha nem por todo o
dinheiro do mundo. Enfim, é melhor não perder tempo. Vá logo.”
“Já, já eu volto. Daqui a umas horinhas, acho. Mas qualquer coisa a
gente conversa por mensagem.”
Ava não diz nada, apenas olha feio para o livro que acabou de abrir,
como se ele tivesse lhe mostrado a língua.
Tenho a impressão de que a ouço me chamar enquanto desço a escada
do telhado, mas, quando olho para cima, percebo que não está virada para
mim. Ainda está com os olhos grudados no livro. O vento sopra outra vez,
agitando as páginas, virando-as para lá e para cá, mas Ava continua lendo
como se nada estivesse acontecendo.
4

Há quanto tempo estou aqui, parada diante da porta da frente, olhando


para a tulipa que ela desenhou ao lado da campainha e das letras graciosas
que soletram seu nome verdadeiro? Tempo suficiente para o céu escurecer.
Para um aroma adocicado tomar a rua. Para as sombras ficarem mais
compridas e assustadoras. Ouço risadas femininas escapando por uma
janela do andar de cima. Mudo o peso de um pé para o outro. Viro de
costas. Não é tarde demais para voltar para a casa de Ava e assistir à família
de guaxinins descer pela calha como fazem todas as noites, torcendo pelo
pequenino que sempre tem medo de despencar lá de cima. “Vamos lá,
pequenino”, Ava e eu sempre dizemos, fazendo um brinde a ele. “Seja
corajoso. Seja ousado.”
Este bairro é um absurdo de lindo. Não tem como não ficar
embasbacada enquanto admiro a escadaria de mármore, ladeada por duas
estátuas de grifos, com os bicos escancarados em pleno grito. Uma fileira
de casas imponentes, uma rua cheia de árvores frondosas. A apenas um
quarteirão do campus, perto de uma ruazinha elegante e pitoresca onde os
bistrôs servem champanhes em taças, as cafeterias preparam os expressos
com espuma decorada que todos os professores bebem, as lanchonetes
vendem sucos prensados a frio e petiscos orgânicos para cachorro. Ao
contrário da minha rua, que cheira a mijo de homem infeliz, a dela cheira a
folhas de outono.
Ainda estou ali, com o dedo na campainha, quando as risadas se
transformam em gritinhos travessos. Quatro guinchos estridentes. Toco a
campainha, não porque quero, mas porque está esfriando e, mesmo no
bairro de Cupcake, a cidade continua sendo ridiculamente perigosa depois
de certo horário. Nem preciso olhar para cima para saber que quatro
cabeças aparecem de repente na janela do andar de cima, ladeadas por
cortinas esvoaçantes. Quatro cabeças cheias de dentes branquinhos e
alinhados. Com cabelos tão brilhantes que, como um eclipse, quase cegam
quem os admira a olho nu. Meu celular vibra e vejo que recebi uma
mensagem de um número desconhecido, um emoji de um macaquinho
cobrindo os olhos com as mãos. E logo penso: Tenho que ir embora, tenho
que ir, tenho que ir. Mas continuo onde estou. E espero. Espero tanto que
o céu fica ainda mais escuro. Um odor pútrido se mistura ao cheiro
adocicado da rua. As folhas de uma árvore frondosa começam a cair, e eu
as conto. Uma. Duas. Três.
5

Olho no fundo dos olhos daquela que chamo de Cupcake. Porque é


isso que ela parece. Veste-se como um cupcake. Exala um aroma cítrico e
açucarado de algo que acabou de sair do forno. Tem uma beleza que
remete a floreios de glacê. Não aquelas coisas pavorosas em verde-escuro e
azul-elétrico dos bolos de supermercado, mas aqueles em tom pastel dos
bolos servidos em casamentos ou almoços elegantes de Páscoa. Ela parece
tanto com um cupcake que, na primeira vez em que a vi, cheguei a sentir
vontade de devorá-la, de dar uma mordida em seu ombro pálido, de enfiar
um garfo em sua bochecha. Esta noite, ela usa um vestido azul-celeste
estampado com nuvens brancas sinuosas e um de seus muitos cardigãs.
Cabelo loiro escorrido de chapinha. Lábios lambuzados de gloss
transparente, porque batom é coisa de puta, Bunny, como eu a ouvi dizer
certa vez, e até hoje não sei se estava falando sério mesmo. Um colar de
pérolas cintilantes que ela nunca tira do pescoço e que muitas vezes
enrosca no dedo enquanto lê em voz alta um de seus textos no seminário,
sendo o mais recente um diálogo pós-feminista entre ela e diversos
utensílios de cozinha.
Digo a mim mesma que ela vai me tratar do jeito costumeiro, como se
eu fosse uma nuvem carregada indesejável da qual deve se proteger antes
que a tempestade chegue, ou então uma árvore alta infestada de pragas,
tão triste e esquisita com seus galhos nus e indecorosos. Normalmente, se
me vê nos corredores ou em qualquer outro lugar do campus, ela fecha
ainda mais o cardigã de Christopher Robin e aperta os livros ainda mais
forte contra o peito como se ping, ping!, parecesse que vai chover. E em
seguida diz: “Ah, oi, Samantha”, buscando nos arredores qualquer coisa
que a resgate da minha presença. Um poste telefônico ao longe. Um
mosquitinho que só ela consegue ver. Para ser sincera, não sei o que fiz
para Cupcake me odiar tanto. Talvez ela tenha percebido minha fome
quando nos conhecemos e decidido manter distância, o que é
compreensível.
Esta noite, porém, Cupcake sorri para mim. Seu rosto pálido e rosado
se ilumina.
“Samantha, oi!”
Como se estivesse extasiada em me ver. Como se eu fosse um cardigã
novinho em folha. A primeira edição de A redoma de vidro. Um esquilo de
marzipã. Uma cabeleireira que sabe cuidar direitinho — direitinho — de
seu corte chanel dourado.
“Que bom que você veio! Bunnies! Vejam quem está aqui! Ela veio
mesmo!”

Ela pega minha mão — pega mesmo — e me conduz em direção à


gigantesca sala de estar, que é ao mesmo tempo do jeitinho que imaginei e
totalmente diferente. Cheia de tecidos macios, luxuosos e felpudos, um
pé-direito que se estende a perder de vista, uma lareira branca na qual ela
colocou um vasinho cheio de flores cor-de-rosa. As outras três estão
sentadas ao redor de uma mesinha iluminada por velas, como se
estivessem à espera de alguém. Boneca Sinistra, também conhecida como
Kira. Vinheta, que na verdade se chama Victoria. E, é claro, a Duquesa,
que em outra vida é apenas Eleanor. Ao longo do caminho, eu me preparei
para todos os cenários terríveis que podia imaginar. Tive receio de
encontrá-las todas nuas, estiradas em móveis malucos dignos de Alice no
País das Maravilhas. Ou então vestindo lingeries em tons pastel, usando os
livros eróticos de Anaïs Nin como leques. Massageando-se ao som de
Stereolab. Assistindo a um pornô obscuro e intelectual em um telão.
Lendo manifestos sexuais da década de 1970 enquanto usavam vibradores
como microfone. Petiscando bolinhos com tema erótico. Eu não fazia ideia
do que esperar. Mas a verdade é que estão apenas sentadas em círculo,
como se estivessem no seminário. Vestem as mesmas roupas de sempre, os
cadernos aconchegados no colo como se fossem bolsas. Normalmente,
quando chego na aula, elas me cumprimentam com um “oi” contido, os
sorrisos tensos, o que me dá a impressão, enquanto me acomodo na
carteira, de que uma névoa sinistra acaba de dominar o ambiente. Mas
desta vez elas me olham e sorriem como se eu fosse o próprio sol. Sorrisos
escancarados que chegam aos olhos.
“Samantha!”, exclama Boneca Sinistra. “Você veio mesmo. Achamos até
que tinha se perdido no caminho.”
Eu… me perdido? Admiro os olhos âmbar daquela que chamo de
Boneca Sinistra, porque ela me lembra as bonecas aterrorizantes que eu
sempre quis ter quando era pequena, com seus olhões arregalados e
vestidinhos de veludo, os cachos vermelho-sangue como os da Shirley
Temple e os lábios em formato de coração entreabertos em um suspiro
maravilhado. Porque ela escreve contos de fadas sobre meninas-demônios
e príncipes-lobos, a fantasmagoria aconchegante de New Hampshire, sua
terra natal. Porque coleciona máquinas de escrever antigas e afirma que
todas elas têm uma “energia fantasmagórica” que transparece nas histórias
que ali escreve, com a cabeça jogada para trás e os olhos fechados. Ela é a
bonequinha das outras Bunnies. Aninha-se no colo delas como um gato.
Ronrona enquanto recebe carinho, sibila quando param. Tem a vozinha
doce das crianças de filmes de terror. Já ouvi essa mesma voz descer quase
cinco oitavas quando ela pensa que está sozinha, tornando-se tão profunda
quanto um poço. De todas as garotas, é a que mais tenta me incluir, seja
por meio de um emoji aleaório de troll ou de um convite de última hora
para um lugar onde elas já estão.
Oi, Samantha. A gente tá almoçando bentô. Pode vir se quiser
Também é a única que tenta conversar comigo nas festas da faculdade.
Nessas ocasiões, vem até mim e faz uma série de perguntas como se
tentasse reconhecer o terreno, e, enquanto respondo, ela assente e
sussurra “que legal” enquanto lança olhares de um lado para o outro.
Como se fosse uma criança que se atreveu a bater na porta de Boo Radley
e não sabe o que fazer quando ele a abre — será que deveria dar no pé?
Agora, porém, seus olhos dourados estão repletos de bondade. De
todas as Bunnies, ela é de longe a mais bonita, a mais sexy, embora de um
jeito estranho, quase obsceno. Ainda está usando as orelhas de gatinho
com estampa de leopardo que as três amigas bêbadas enfiaram em sua
cabeça no último Halloween (vi as fotos no Facebook) e um vestido preto
estampado com fantasmas brancos que parecem ter gotinhas de sangue no
lugar dos olhos. Ela sabe muito bem que não me perdi no caminho. Sem
dúvida me viram parada diante da porta lá fora por uns bons quinze
minutos.
Sinto minhas orelhas esquentando. Meu lábio começa a tremer.
“Hum, não. Eu…”
“Bunny, a gente não achou isso de verdade”, interrompe Vinheta. Ela
está sentada em uma poltrona à esquerda da Duquesa, sob um abajur em
formato de pescoço de cisne cuja luz faz suas longas madeixas ruivas
brilharem. Vinheta, a punk sexy. A mais direta das Bunnies. Com um
vestido delicado que destoa dos coturnos, os cabelos despenteados e a
boca sempre entreaberta. Tem olhos cinzentos e nebulosos com uma
expressão perpétua de vai se foder. Ela escreve para chocar, sempre
vinhetas existencialistas sobre princesas da Disney entregando-se a orgias
de sangue, mulheres selvagens rastejando de quatro nas profundezas da
mente beckettiana enquanto mastigam bonecas Barbie. Parece chapada na
maior parte do tempo, como se estivesse sempre envolta pela fumaça do
ópio. Ao que parece, já foi bailarina em outra vida, antes de sair dos trilhos
e descobrir a arte conceitual e a má postura. Apesar de sua beleza
translúcida, que deixa à mostra as veias azuladas e lembra a Ava um
esqueleto, e a mim, a Era Vitoriana, ela nem sempre se vestiu como uma
coquete. Quando a vi pela primeira vez, no coquetel de boas-vindas da
universidade, ela também usava calça jeans e camisa xadrez e segurava sua
taça de vinho como se nunca tivesse segurado uma taça antes, então
pensei que talvez pudéssemos nos tornar amigas. Certa vez, tentei me
aproximar dela em uma festa, quando ela ainda estava sozinha, antes de ser
sugada para o Reino das Bunnies. “Oi”, eu disse. “Oi”, ela respondeu, e me
lançou um olhar que transbordava gratidão. Tivemos uma conversa
hesitante, que prolonguei fingindo gostar de pilates. Depois de um tempo,
a conversa deu lugar a um ou outro comentário sobre os invernos rigorosos
da Nova Inglaterra, enquanto trocávamos acenos de cabeça e tomávamos
goles cada vez maiores de bebida. E aí ela pediu licença para ir ao
banheiro. Desde então, sempre que nos trombamos em uma festa, ela fita
os arredores como se estivesse encurralada. Todas as portas de seu rosto se
fecham uma a uma. Agora, porém, ela me olha como naquele primeiro dia,
com uma expressão que diz: “Venha, pode entrar”.
“Ah, a gente meio que achou que ela tinha se perdido, sim”, insiste
Boneca Sinistra.
“Só você achou isso”, rebate Vinheta, pousando sua mão delicada sobre
a de Boneca Sinistra. “Nós só não sabíamos se ela viria mesmo. Mas aqui
está ela.” E então se vira para mim. “Você está mesmo aqui, Samantha.”
Ela esboça um sorriso.
“É”, concorda Boneca Sinistra. “Você está mesmo aqui.”
As duas olham para a Duquesa, sentada em um sofazinho de veludo
macio, com a cabeça inclinada para o lado. Seus longos cachos prateados
reluzem de um jeito estranho, adornados aqui e ali com o que parecem ser
aves-do-paraíso. Está vestindo uma bata rendada com manga boca de sino
que a faz parecer a estátua de uma deusa da lua desconhecida ou uma
daquelas garças vigilantes que se empoleiram nos salgueiros do zoológico.
Os detalhes rendados do tecido cheiram a quantias vultosas de dinheiro
gastas em uma boutique que também vende cristais.
Ela me observa com uma expressão neutra de paciência infinita, a
mesma que adota sempre que digo alguma coisa no seminário. De todas,
ela é quem tem a prosa mais inacessível e enigmática, que entalha em
placas de vidro usando o diamante em formato de adaga que usa de colar.
Ela os chama de “proêmios”. Quando sou obrigada a dizer alguma coisa
sobre seus textos em sala de aula, eu os descrevo como joias enigmáticas.
E ela sempre olha para mim como se soubesse que estou mentindo. Como
se ela fosse minha terapeuta e eu estivesse tentando lhe passar a perna, o
que ela já esperava. Mas, poxa, Samantha, que tal a gente levar isso aqui a
sério? Como se ela soubesse que me acho melhor que todo mundo. Como
se minha timidez gaguejante, os fones de ouvido, as roupas escuras
modestas e minha educação fossem um bom disfarce, mas ela conseguisse
enxergar, sim, Samantha, o que tem por baixo disso tudo, e o que ela viu, o
que está escondido bem lá no fundo, é um ódio profundo, uma raiva
profunda, uma mágoa social profunda. O que foi que aconteceu com você,
Samantha? Como se soubesse que apelidei todas elas e, nossa, que triste
isso, sério. Mas, como ela é uma deusa da lua, uma artista mais evoluída,
um ser repleto de amor e brisa tropical (mesmo que na verdade tenha
morado em Charleston e no Upper West Side antes disso), vai tolerar esse
comportamento, vai me amar de longe apesar de tudo, desejar o meu bem
enquanto trilho meu caminhozinho atrofiado e me apego à raiva como se
fosse um livro ou um ratinho de estimação. Afinal, cada um tem seu próprio
caminho a trilhar, não é?
Meus lábios estão tão trêmulos que sinto um ímpeto de sair correndo
da sala. Considero a ideia por um instante. Não vou nem me preocupar em
encontrar a porta, posso simplesmente correr e abrir um buraco na parede.
E de repente ela abre um sorriso que me envolve como um abraço.
“Samantha”, diz. “Estamos tão felizes por você ter vindo mesmo.”
Boneca Sinistra e Vinheta assentem ao lado dela. Consigo até sentir o
aceno de Cupcake ao meu lado. “Sim, tão felizes. Tão felizes”, diz a
expressão no rosto de cada uma. “Felizes mesmo.”
“Quer que eu pendure seu casaco?”, oferece Cupcake.
Eu me viro para ela, que me lança um olhar esperançoso. Tão disposta
a pendurar um casaco que nem estou usando que quase sinto vontade de
lhe oferecer minha pele no lugar. Sinto meu peito arder em chamas.
“Hum…”
“Ela não está de casaco, Bunny”, avisa Vinheta, envolta por sua nuvem
invisível de ópio, ainda olhando para mim com aquele sorrisinho
conspiratório.
Todas caem na gargalhada. Cupcake cobre a boca com a mão e olha
para mim, atônita, como se eu estivesse completamente nua e ela só
tivesse percebido agora. De repente, sinto um calor insuportável. O suor
começa a escorrer pelas minhas costas.
“Desculpe”, deixo escapar antes de conseguir me conter.
“Por que você está pedindo desculpa, Samantha?”, pergunta Boneca
Sinistra, a voz ofegante carregada de emojis demoníacos e carinhas
sorridentes.
“Por quê?”, repito.
Estão todas olhando para mim. “É, por quê?”
Fico tonta, dolorosamente consciente do fato de ainda estar de pé
enquanto elas estão acomodadas em um pequeno círculo aconchegante.
Não há outro lugar para me sentar além de um pufe em formato de
coração entre Boneca Sinistra e Vinheta, e imagino que esteja ali para
servir de apoio de pé. Será que devo esperar até que me ofereçam um
lugar? Ou será que é melhor…
“Samantha”, chama a Duquesa, com os braços estendidos. “Venha cá.
Pode se sentar aqui.”
E então dá um tapinha no lugar livre ao seu lado. As outras olham para
Cupcake, que observa aquele espacinho no sofá como se eu o tivesse
tomado dela. Depois se vira e me olha como se tivesse levado um tapa.
Mas então sorri.
“Claro, Samantha”, diz. “Sente-se, por favor.”
“Posso me sentar ali”, ofereço, apontando para o pufe.
“Imagine, Samantha. Pode ficar no sofá”, insiste Cupcake. “Sério. Você
é tão alta.”
“Igual a Alice depois de devorar aquele cogumelo”, comenta Boneca
Sinistra.
“Ou Gilgamesh”, acrescenta Vinheta, ainda estirada na poltrona. “Ou a
Torre de Babel.”
“Isso, mas no bom sentido.”
Vou até a Duquesa. Nunca me sentei perto dela antes. Ela abre os
braços e me envolve em um abraço leve, cheio de cachos perfumados,
ossos frágeis e rendas elegantes. Tem um aroma floral e esfumaçado.
Quando se afasta, abre um sorriso íntimo, como se tivéssemos acabado de
vivenciar algo inexplicável. Depois envolve meus braços com seus dedos
compridos e olha para mim como olharia para a sua favorita entre um
grupo de crianças com necessidades especiais.
“Samantha”, começa a dizer enquanto segura minhas mãos, “estamos
tão felizes por você ter vindo. Aceita uma bebida? Preparamos um coquetel
especial só para você.”
“Para mim?”
Sinto algo ceder dentro de mim. Aquela sensação estranha que senti
quando vi meu nome na asa do origami. Sem acreditar que o convite era
mesmo para mim. Para mim, sério?
Todas elas concordam com a cabeça. “Sério, Samantha. É para você.”
“Aqui, tome um golinho”, oferece Boneca Sinistra, estendendo a
bebida para mim.
Dou uma olhada no líquido verde-bile no qual flutua algo que mais
parece um pedacinho de cocô. Quero perguntar do que é feito, mas sinto
que seria falta de educação. Principalmente quando todas sorriem para
mim daquele jeito.
Elas me observam tomar a bebida que me foi oferecida. “Por que vocês
estão sendo legais comigo?”, quero gritar. “Por que, por que, por que, por
quê?” Mas, em vez disso, apenas retribuo o sorriso. Levo o copo aos lábios.
Quando o líquido atinge minha língua, eu estremeço.
“E aí?”
“Não é a sua cara?”, pergunta Boneca Sinistra.
O coquetel tem um gosto ácido e escuro, com um retrogosto amargo
persistente que traz lágrimas aos meus olhos e um tremor aos meus lábios.
Tusso sem querer enquanto elas me olham.
“É um pouquinho forte, né?”
“Meio difícil tomar puro, não acha?”
“Posso botar um pouquinho de açúcar se preferir. Talvez resolva.”
Elas parecem preocupadas de verdade.
“Não, está tudo bem, sério.”
“Tem certeza?”
“Claro. Está ótimo.”
Tomo outro gole dessa bebida horrível e me esforço para não fazer
careta.
Todas sorriem, exceto a Duquesa.
“Samantha”, volta a dizer, apertando meu joelho de leve. “É proibido
mentir no Salon Sacana. Esta é uma noite de Verdade Absoluta.”
Olho para suas coxas cobertas de renda branca, sobre as quais ela
equilibra uma placa de vidro envolta em pele de coelho. Parece haver
algumas palavras gravadas na superfície. Sinto o medo revirar minhas
entranhas.
“Eu amei”, declaro. “Amei mesmo. Eu…”
Elas começam a rir. “Estão achando graça de que, hein, inferno?”,
quero perguntar. Mas não digo nada. Só rio junto. “Ha. Haha. Hahaha.”
“Ah, Samantha, estamos tão felizes por você ter vindo”, repete a
Duquesa.
“Também estou”, respondo.
O coquetel misterioso chegou aos meus dedos do pé. Faz florezinhas
delicadas desabrocharem por todo o meu corpo, como aquelas que
florescem na lareira falsa da sala. Como a frésia na mesinha de centro.
Como as tulipas que agora vejo estampadas nas paredes altíssimas em tons
pastel. De fato há um teto em algum lugar lá em cima, de onde uma
misteriosa luz rosa-dourada brilha sobre nós.
Abro a boca e as desculpas começam a jorrar em profusão. Sinto muito
por ter deixado todas elas esperando. Eu não as fiz esperar muito, fiz?
Hein? Fiz?
“Não se preocupe com isso, Samantha. Sério. A gente estava só
começando.”
Percebo que os livros colocados sobre a mesinha hexagonal pontilhada
de velas foram escolhidos a dedo: as obras completas de Byron e Keats.
Alguns volumes de Sade. O erotismo, de Barthes. O morro dos ventos
uivantes. Metamorfoses, de Ovídio. E, quem diria, um livro do Leão. Seu
romance infame, horrendo e bacântico, um sonho febril sobre um
sociopata escocês que assassina mulheres por razões profundamente
filosóficas, foi colocado no topo de uma antologia de contos de fadas
russos. Sinto o rosto corar ao ver o nome dele na capa, ao ver a capa em si.
Quando a Duquesa me pega olhando, dá um jeito discreto de enfiar o livro
embaixo da pilha.
Não faço ideia do que elas acham que aconteceu entre mim e Leão no
ano passado. Devem achar que eu dei para ele. Talvez seja até por isso que
ficaram longe de mim. Ou talvez seja justamente por isso que eu me
aproximei dele, sei lá. No outono passado, elas sempre trocavam olhares
furtivos quando ele elogiava meus textos no seminário. Porque, sem
dúvidas, nos viram sair juntos da sala de aula, conversar no corredor, trocar
livros e discos de vinil. Devem ter nos flagrado juntos em alguma cafeteria
ou nos fundos do pub irlandês, tomando uma bebida e mais outra e “Pode
trazer a saideira, por favor?”. Devem ter percebido como ele vinha
conversar comigo em todas as festas do departamento, como sempre se
sentava ao meu lado nos saraus. E aí, durante o inverno, devem ter notado
que tudo isso parou de repente, que ele já não se sentava mais ao meu lado
nos saraus nem falava comigo nas festas, nem me encontrava fora do
campus. E então, claro, na festa de fim de semestre na primavera, elas com
certeza devem ter me visto embriagada no banco do passageiro do Subaru
dele.
Acho que elas imaginaram as coisas mais absurdas. Aposto que ele a
amarra como nas histórias doentias que escreve e ela adora por causa das
histórias doentias que ela escreve. Quero me defender dessas acusações
implícitas, do jeito ligeiramente ofensivo como a Duquesa, toda sorridente,
ajeita a pilha de livros já perfeitamente alinhada.
“Vocês acham que sabem”, quero dizer a elas. “Vocês acham que
sabem, mas não sabem de nada.”
Mas não sabem o que, exatamente? O que há para saber? Às vezes,
quando conto a história para mim mesma ou para Ava, ela toma forma e
vira alguma coisa. Sem dúvida vira alguma coisa. Outras vezes, escapa por
entre meus dedos como ar. Mas, se me lembrar dos detalhes certos, se eu
contar a elas na ordem correta, se pausar no momento exato, abaixar a voz
quando necessário…
A Duquesa sorri para mim enquanto ajeita os outros objetos na mesa
— um saco plástico cheio de gravetinhos marrons e pétalas secas.
Nenhum vibrador à vista.
“Samantha”, chama ela com delicadeza. “Você nunca frequentou um
Salon Sacana?”
“Vocês nunca me convidaram”, sinto vontade de responder. Em vez
disso, porém, deixo o olhar recair no sorridente pônei de plástico cor-de-
rosa, disposto no meio da mesinha como um sacrifício.
“Hum. Acho que não. Eu deveria ter trazido alguma coisa ou… tem
alguma regra?”
“Você vai se sair bem”, incentiva Cupcake, afastando minha pergunta
como se fosse uma mosca. “É só fazer igual a gente. O intuito desta noite é
nos inspirar, nada mais. Como artistas, sabe?”
“E despertar nossa criatividade”, continua Boneca Sinistra. “Abrir
nossos corações.”
“E ser perversas”, acrescenta Vinheta.
“Bunny. Enfim, Samantha, você vai ver como é”, retoma a Duquesa.
“Caroline estava prestes a começar, não estava, Bunny?”
Cupcake assente com seriedade e pousa o copo na mesa.
“Apague as luzes, por favor, Kira”, pede ela a Boneca Sinistra, que se
levanta de um salto.
De repente, estamos na penumbra. A única luz vem das chamas das
poucas velas sobre a mesa e do brilho sedoso de seus cabelos. Cupcake se
levanta do chão. Pigarreia. Pega o saquinho cheio do que agora percebo ser
canela em pau. Puxa uma e a segura diante do rosto como se fosse uma
vela. Inala o aroma com fervor. Os olhos cerrados.
E então ela começa.
“Se eu fosse um descascador de canela”, declama com a voz trêmula,
“cavalgaria na sua cama…”
Enquanto recita o poema de Ondaatje, ela começa a raspar a canela
com gestos demorados e tenros. Um pozinho amarronzado salpica o tampo
da mesa. Olho em volta. As outras três escutam com atenção, concordando
com acenos solenes de cabeça. A Duquesa está de olhos fechados. Boneca
Sinistra acaricia a crina macia do pônei, distraída. Vinheta encara o nada, a
boca entreaberta. Não sei muito bem o que fazer, então continuo sentada
ali, agarrada ao copo, enquanto observo Cupcake recitar o poema e raspar
o pau de canela com uma intensidade cada vez mais febril. Está com a
cabeça jogada para trás, quase em êxtase. Um pouco sem fôlego. Durante
toda a recitação, a Duquesa segura minha mão com firmeza, como se me
acompanhasse durante o parto. Uma risada inapropriada se forma na
minha garganta, mas trato de engolir.
Quando Cupcake termina, todas ficam em silêncio por um minuto.
Solene. Como se tivessem acabado de ouvir uma oração.
Por fim, Boneca Sinistra sussurra:
“Minha nossa. Foi tão erótico.”
“Sexy”, concorda Vinheta.
A Duquesa assente.
“Adoro como o erotismo se expressa por meio de uma experiência tátil
e olfativa. Toda vez que você lê esse poema, Bunny, ele parece possuí-la.”
E então percebo que todas elas estão olhando para mim, cheias de
expectativa. Querem que eu fale alguma coisa.
“Muito bom mesmo”, murmuro, mas soa falso, então trato de
acrescentar: “Adorei a canela em pau”.
“Eu ia trazer só a versão em pó ou servir biscoitos de canela, mas aí
pensei: não, a casca. Tem que ser a casca.”
“E você também não quis alterar a pureza da canela”, observa a
Duquesa.
“Exatamente”, concorda Cupcake, como se a Duquesa tivesse
articulado uma verdade que ela vinha tentando formular havia anos.
A Duquesa respira fundo, depois solta o ar devagar, os olhos bem
fechados, como fazia minha antiga terapeuta. Aquela que meu pai me
obrigou a consultar na adolescência depois que minha mãe morreu. Aquela
que usava lenços com nós elaborados no pescoço. Eu vivia mentindo para
ela. “Você ouve vozes?” “Sim.” “Vê entidades demoníacas?” “Ora,
Samantha, agora me diga: por que você acha que esse sonho significa que
você vai morrer queimada em breve?”
“Kira, Bunny, é a sua vez”, avisa a Duquesa.
E elas começam, uma após a outra. Boneca Sinistra lê uma versão
erótica de Chapeuzinho Vermelho enquanto veste uma capa vermelha,
Vinheta declama um capítulo de O amante, de Marguerite Duras,
enquanto Cupcake distribui rolinhos primavera vietnamitas, e por fim a
Duquesa tira a placa de vidro da pele de coelho e começa a recitar um
trecho muito evasivo e tortuoso de Julia Kristeva sobre a natureza do
erotismo.
Ao final de cada apresentação, todas elas suspiram ao mesmo tempo,
como se tivessem acabado de atingir o orgasmo. Eu suspiro junto. A essa
altura da noite, já tomei vários coquetéis Samantha, bem como alguns
Light & Sunnies, um drinque azulado criado por elas que é o inverso de
um Dark & Stormy. Estou inquieta no sofá. A Duquesa continua dando
tapinhas reconfortantes na minha mão. O pônei cor-de-rosa pisca para
mim com seus olhos cintilantes orlados por cílios invejáveis. “Maravilhoso,
tão maravilhoso”, estou murmurando. “Isso é divertido, é divertido, é
divertido. É divertido mesmo”, digo a mim mesma. E realmente é. Não é
estúpido ou patético. Bato palmas com as outras, e elas sorriem para mim
como se eu fosse uma criatura selvagem que finalmente as deixou enfeitar
seus tentáculos e trançar sua crina.
“Estamos tão felizes por você ter vindo, Samantha”, repetem elas sem
parar.
“Eu também estou”, respondo.
E estou mesmo. Cada vez mais. E afirmo isso com veemência para
aqueles quatro pares de olhos. Para a frésia na cornija da lareira. Para as
almofadas em tons pastel. Para o pônei piscante na mesa, a quem
proponho um brinde com meu copo que parece sempre cheio. “Eu
também estou feliz.”
De vez em quando penso em Ava, e sua gargalhada irrompe na minha
cabeça como fogos de artifício perigosos. Nem teria lugar para ela nesta
sala, pois qual dessas cadeiras diminutas acomodaria sua altura? Imagino-a
com suas roupas roubadas, as meias rasgadas, mordiscando o lábio por trás
do véu, derrubando cinzas no tapete felpudo em formato de coração,
enchendo o cômodo com seu cheiro de chuva e fumaça. O olho azul e o
castanho perfurando o rosto delas. “Patético”, diria sua expressão.
“Patético, patético, patético.”
“Você disse alguma coisa, Samantha?”
“Não.”
“Cale a boca”, digo a Ava, cambaleante. “Essas mulheres estão no meu
curso. São minhas colegas.”
“Mulheres? Elas estão mais para crianças, Smackie. Estão mais para
mulheres adultas que agem feito garotinhas.”
“Elas são alunas de mestrado”, rebato.
“Exatamente. Estão se escondendo da vida do jeito mais mimado,
insular e presunçoso.”
Mas de repente vejo que a Duquesa enrolou o proêmio de diamante na
pele de coelho e está me encarando. Todas estão.
“Bom, Samantha, agora é a sua vez.”
Olho para elas, dispostas em um semicírculo ao meu redor, os cabelos
com aquele mesmo brilho indistinto sob a luz.
“Minha vez? Mas… eu nem preparei nada.”
“Então conte alguma coisa para nós…”
“Alguma coisa sacana, é claro.”
“Como acabamos de fazer”, diz Boneca Sinistra, com a capa vermelha
ainda enrolada nas costas.
A Duquesa pousa a mão no meu ombro com delicadeza.
“Aposto que você tem um montão de histórias sacanas, Samantha.”
“Toda uma outra vida libertina e misteriosa.”
“Quê? Não tenho isso, n…”
“Claro que tem.”
Elas se tornaram uma coisa só na escuridão, uma massa disforme
repleta de pernas, os oito olhos me encarando com expectativa.
“Desembuche. Desembuche.”
“Não tenho, sério. Eu…”
“Ah, qual é, Samantha.”
Seus olhos se estreitam. Os sorrisos diminuem. Elas me olham como
se soubessem que estou escondendo um segredinho sujo. Como se
estivesse impedindo que vasculhassem minha vagina devassa e isso fosse
um problemão. É por isso que você fica sempre de fora, Samantha. O
problema não somos nós, é você. Não percebe? É você que não está disposta a
se expor e confiar nos outros.
Olho para o coquetel verde e amargo que elas prepararam em minha
homenagem. Depois observo a pilha de livros sobre a mesa, com o nome
dele impresso em uma das lombadas.
“Nós nunca transamos, se é isso que vocês pensam”, sussurro.
“O que você disse, Samantha?”
“Nada.”
Deixo o olhar recair sobre o meu colo, a mente vazia, ofuscante.
“Eu não sei mesmo o que posso contar para vocês. Desculpe.”
“Bem, você tem que contar alguma coisa, Samantha. São as regras.”
“Regras? Mas vocês não me contaram nada sacana!”
Olho para a Duquesa, que dá um aceno triste de cabeça, como quem
diz: “Desculpe, mas regras são regras. Não podemos quebrá-las, mesmo
que tenham sido inventadas por nós”.
“E se eu ler um poema ou um trecho de um desses livros?”, sugiro, e
estendo a mão em direção à pilha. “Foi o que vocês fizeram”, tenho
vontade de acrescentar.
Elas não dizem nada. Vinheta dá um bocejo exagerado. Cupcake cobre
uma tosse com o punho. Eu as observo enquanto fingem arrancar fiapos
invisíveis das roupas e bebericam o restinho dos coquetéis azulados,
fazendo de tudo para evitar meu olhar.
Quero me explicar. Dizer que seja lá o que as tenha feito pensar que
levo uma “vida libertina e misteriosa” — me ver com Ava? Com o Leão?
Ler minhas histórias “doentias”? — não reflete a realidade. Não tenho uma
vida libertina e misteriosa. Nem sequer tenho uma vida. Se ao menos vocês
soubessem os dias vazios e monótonos que vivi ano passado. Talvez seja melhor
eu ir embora.
Em vez disso, digo:
“Acho que posso contar sobre a vez que morri com Rob Valencia.”
Elas enfim encontram meu olhar. E aí?
Respiro fundo, depois tomo um gole de Samantha. Estremeço mais
uma vez ao sentir o gosto amargo, mas ele desliza com facilidade pela
minha garganta. É aveludado. Quase doce.
“Rob Valencia era um carinha da minha escola”, começo. “Era alguns
anos mais velho que eu. Naquela época, eu o achava o cara mais gostoso
do mundo.”
Por enquanto é tudo verdade.
“Com quem ele se parecia?”, quis saber Cupcake.
Começo a pensar em Rob Valencia. Mais alto e mais largo do que o
corredor da escola, ou assim me parecia naquela época. Olhinhos escuros
como fumaça líquida. Cabelos castanhos e cacheados que ele já estava
começando a perder. Lábios finos e um sorriso leve que me faziam ofegar
de desejo imensurável.
“Zeus”, declaro por fim.
“O deus grego?”
Concordo com a cabeça.
“Mas com dezessete anos. E ele gostava de usar ternos vintage. Ele
transpirava carisma… escorria de sua pele como suor.”
Elas chegam ainda mais perto.
“O que o tornava sexy, Samantha?”
“Sexy?”, repito.
Elas olham para mim, cheias de expectativa.
“Não tinha nada em particular, na verdade. Era algo mais... complexo,
entendem? Ele tinha uma espécie de… magnetismo animal.”
As quatro me observam de olhos arregalados, como se fossem
garotinhas. “Conte-nos tudo, Samantha.”
Então eu conto que ele tinha sido criado na tradição católica espanhola
e que sua família abatia cabras no quintal de casa. E por isso ele sempre
tinha um cheiro quase bíblico. Como incenso e carne assada.
“Que sexy”, comenta Vinheta.
“E a voz dele…”, continuo. “Tinha uma daquelas vozes profundas e
serenas que parecem saber tudo, como a de um narrador de documentário.
Como se a qualquer momento pudesse contar um fato sobre pinguins ou a
guerra, e você não teria escolha a não ser acreditar. Era reconfortante. Mas
também sexy. Como se uma língua deslizasse pela parte interna da sua
coxa toda vez que ele dizia ‘oi’.”
As quatro estão atentas a cada palavra que sai da minha boca. Não há
mais fiapos invisíveis para arrancar na roupa.
“Mas o melhor de tudo, a coisa mais sexy em relação a Rob Valencia”,
retomo, parando para tomar um gole da bebida, “era morrer com ele.”
“Conte tudo, Samantha.”
Conto a elas que por muito tempo eu o amei de longe. Depois
interpretei a esposa dele em uma peça da escola. E, como se tratava de um
mistério policial, nós dois morríamos eletrocutados no meio do espetáculo.
Na cena em questão, estávamos de mãos dadas, e, quando ele enfiasse o
abajur na tomada, deveríamos convulsionar e morrer.
“Sexy”, repete Vinheta.
E eu conto a elas que morremos juntos várias e várias vezes. Que todas
as segundas e quartas-feiras à tarde, durante três meses de ensaio, depois
cinco apresentações à noite e uma durante o dia, eu morri com Rob
Valencia. Contei que ficávamos de mãos dadas e estremecíamos e
tombávamos juntos no chão do palco. Que ficávamos ali deitados enquanto
todos fingiam gritar e acusar uns aos outros do nosso assassinato. E
continuávamos ali até o palco ser engolido pela escuridão e, só nessa hora,
só nesse momento, nos levantávamos. E como eu odiava quando tínhamos
que nos levantar.
“É claro que odiava”, murmuram todas, menos a Duquesa.
Ela continua em silêncio. Apenas toma um gole de sua bebida, os olhos
fixos à frente.
Conto a elas como foi erótico ficar deitada ao lado dele no palco e
senti-lo tentar permanecer imóvel sem sucesso, seu peito subindo e
descendo, a respiração ofegante no meu rosto, o aroma de carne assada e
incenso enchendo meus pulmões. Às vezes, caíamos tão perto um do
outro, que chegávamos a nos tocar. Outras vezes, ficávamos separados por
apenas uns poucos metros, e ele parecia tão perto e tão longe ao mesmo
tempo. As duas experiências eram eróticas à sua própria maneira.
“Era como transar”, declaro, tomando outro gole da bebida. “Mas bem
mais intenso, sabe? Cósmico.”
Cupcake e Boneca Sinistra concordam com a cabeça. Sim. Claro.
Muito cósmico.
“Então você nunca chegou a transar com ele?”, pergunta Vinheta.
Olho para a Duquesa, que apenas me encara, impassível. Seus lindos
olhos azul-escuros veem toda a verdade, que no fim das contas nem é tão
interessante, tão sombria, tão obscura assim. Não é, Samantha? Chega a ser
triste, hein? Até patética. Sem graça. A fantasia de uma virgem de um livreto
qualquer, um castelo frágil feito de ar.
Nunca transei com Rob. Ele não sentia tesão por mim, que dirá amor,
mesmo que fôssemos perfeitos um para o outro em termos de altura.
Mesmo sabendo que ele via além da minha pele destruída e do meu cabelo
escorrido e conseguia enxergar o fundo da minha alma. Mesmo que
tivéssemos gostos semelhantes para músicas e livros — ele também tinha
lido o Inferno de Dante à luz de velas, disso eu tinha certeza. Mesmo
sabendo que ele via todos os mundos que existiam em mim. Uma vez, ele
dançou “Slave to Love” comigo na festa de elenco, mas foi por pena. E
ficou por isso mesmo. Ele estava apaixonado por Alyssa Fisher, que
interpretava Véronique, sua amante francesa. Ele a levou ao baile. Acenou
para mim da pista de dança. “Oi, Samantha.”
Mas quem quer ouvir uma história dessas?
Olho para as mulheres à minha volta, suas peles brilhando mesmo no
escuro, que aguardam o que tenho a dizer com tanta expectativa e talvez
até… será que é admiração? Todas, menos a Duquesa. Por um instante,
sinto que ela consegue me ver de cara emburrada na lateral da pista de
dança, com meu vestidinho de brechó com estampa de dragão, sofrendo ao
ver Rob e Alyssa dançarem uma música lenta que tentei me convencer de
que odiava, ansiando por uma catástrofe ao estilo Carrie, a estranha, para
aplacar meu coração partido, meu desprezo adolescente.
Então, em vez disso, conto a elas que na última noite em que
morremos juntos, logo depois que a cortina baixou, com as luzes ainda
apagadas, ele estendeu a mão para mim na escuridão e me conduziu até o
bosque atrás da escola. Ali, entre os álamos de galhos trêmulos, Rob
Valencia me devorou como um lobo. Descrevo o estalar das folhas
multicoloridas sob nosso corpo. A forma como olhei para o céu cinzento
enquanto ele fazia milagres com a boca. A terra lamacenta em que afundei
as mãos durante o orgasmo. A intensidade da conexão mente-corpo-
espírito que vivemos naquele bosque depois de tantos meses morrendo
juntos foi tão forte que, bem, nunca mais nos falamos. E conto a elas que,
quando morríamos, era como se estivéssemos transando. Mas quando
transamos foi como se tivéssemos morrido. Para valer. E depois disso…
“Depois disso o quê?”, pergunta Cupcake, sem fôlego.
“Depois disso, éramos apenas passado”, arremato.
Silêncio.
“Que sexy”, diz Vinheta por fim, erguendo o copo.
“Tão sexy”, concorda Cupcake.
“Tão sexy”, acrescenta Boneca Sinistra.
Abro um sorriso. Sim. Foi sexy mesmo, não foi? Sinto uma pontada de
orgulho vergonhoso. Elas gostaram da minha história. E eu gostei de elas
terem gostado da minha história. Sinto o rosto corar e tomo outro gole de
Mim, que já não tem mais o amargor de antes. Está perfeito.
“Mas também é bem… triste, Samantha”, diz a Duquesa, e me olha
com a cabeça pendida para o lado, o rosto zen perscrutando, com uma
onda súbita de calor e preocupação se espalhando por suas feições como
uma alergia. “Ele partiu seu coração, não foi?”
Assinto com a cabeça. Meu lábio estremece. Volta a tremer de um jeito
incontrolável.
As quatro me olham com muita compaixão.
“Está tudo bem, Samantha.”
Lágrimas enchem meus olhos. Lágrimas genuínas.
A Duquesa segura minha mão e a aperta.
“Vamos pegar mais uma bebida para você.”
6

Acordo com o rosto afundado no colchão, ainda com as roupas da noite


anterior. Uma capa vermelha adorna meus ombros. Minha pele exala um
aroma de canela, de algo cítrico e açucarado, de todas as coisas fofas do
mundo, que paira no ar abafado ao meu redor.
Não tenho ideia de como vim parar aqui. Só me lembro de ver faróis de
carro. Um nariz rosado que se mexe. Orelhas compridas marrom-
acinzentadas. O preto cintilante do olhinho de um animal. Um coquetel
azulado do tamanho da minha cabeça sendo reabastecido sem parar por
uma garota com cara de coelho. “Um drinque só para você, Samantha”,
disse a garota-coelho enquanto me servia. “Obrigada”, agradeci. “Sou grata
a todas vocês.” E tomei um gole e outro e outro. E então eu lhes disse… o
que foi que eu disse mesmo? Só me lembro de ver os acenos de cabeça. Os
sorrisos. “Isso. Conte-nos tudo, Samantha.”
Quantas mentiras eu inventei, afinal? Devem ter sido milhares.
“Por que você mente tanto? E sempre sobre umas coisinhas tão nada a
ver?”, minha mãe vivia me perguntando.
“Não sei”, eu sempre respondia. Mas sabia, sim. Era simples. Assim a
história ficava melhor.
Olho para o meu teto rachado. As manchas de bolor parecem ter se
espalhado desde a última vez que estive aqui, me encarando como uma
fera com as presas à mostra. A luminária do teto recebeu uma nova
camada de carcaças de mariposas, então agora há mais mariposas do que
luz. Os livros se amontoam contra as paredes, algumas pilhas já quase
tombadas, e as próprias paredes, finas e amarelas como mijo, a única coisa
que me separa de um gigante pervertido e de uma garota de rosto pálido,
parecem ter se fechado ainda mais ao meu redor. As cortinas pretas de
vinil, que já vieram com o apartamento e parecem ter sido esfaqueadas
pelo último inquilino, estão abertas, revelando uma parede de tijolinhos
lascados.
Eu não voltava para casa desde que conheci Ava. “Não more aqui”,
disse-me ela, assomando com toda a sua altura no meio do meu quarto,
que parecia triste e minúsculo em comparação. “Nem quero imaginar você
morando em um lugar desses.”
“Não é tão ruim assim”, argumentei. Muito melhor do que meu
primeiro apartamento na cidade, um quartinho azul que fedia a mijo de
gato no porão de um holandês desequilibrado que afirmava ser professor da
Warren, mas que logo descobri que era apenas um cara meio tarado que se
autointitulava filósofo e estava desesperado por uma aluna submissa.
Também era melhor do que meu carro, onde fui forçada a viver por um
tempinho quando o holandês se recusou a devolver o valor do aluguel por
eu ser “impossível de ensinar” e a bolsa só cairia em outubro. Ou que o
dormitório estudantil, onde passei um tempo alojada depois que um
professor me pegou dormindo no carro. Quando o avistei através do para-
brisa cheio de insetos, me culpei por ter estacionado em uma rua tão
arborizada e luxuosa, onde até os cachorros pareciam endinheirados.
Depois de apenas algumas semanas vivendo entre estudantes ricos de
verdade, em seus dormitórios incompatíveis que mais pareciam uma
prisão, decidi vender meu carro, e foi aí que arranjei este lugar. Uma
quitinete na zona oeste que dava para o gasto, embora não tenha passado
no meu teste de visualização de suicídio. Eu conseguia me imaginar me
matando aqui? Com certeza. E me enforcando? Sem dúvidas. Em algumas
noites, eu conseguia até ver a corda pendurada na luminária do teto. Mas
achei que, com alguns pôsteres bem-posicionados, talvez conseguisse
abafar o grito de futuro suicídio que às vezes inundava meus ouvidos
quando entrava neste apartamento. Ou, quem sabe, até conseguisse
escrever minha obra-prima ali. Ou pelo menos ter boas ideias e sonhar
com universos inteiros para explorar. Mas não fiz nada disso. Só me
preocupei com besteiras. Contei as mariposas mortas no teto. Pensei em
dinheiro.
“Não é tão ruim assim mesmo”, eu disse a Ava. “Enfim, é o único lugar
que eu consigo bancar sozinha. Não consigo escrever se tiver que dividir o
apartamento, já falei.”
Mas àquela altura ela já estava empacotando minhas coisas. “Você vai
morar comigo.”
Agora o apartamento está praticamente vazio, exceto por alguns livros e
uma escrivaninha de pinho que achei na rua e nunca usei. E o colchão,
claro, em que estou deitada neste momento, com a capa vermelha pesando
sobre meus ombros. Meus dedos estão fechados sobre uma flor
pontiaguda. “Aqui”, lembro-me de a Duquesa dizer enquanto a removia de
seu cabelo prateado. “Para você, Samantha.” Ainda posso ouvir seus
arrulhos de compaixão. Ainda posso sentir a ponta de seus dedos
enxugando minhas lágrimas. Porque eu realmente chorei. E por que chorei
mesmo? O que eu contei para elas? Suas mãozinhas acariciando meus
joelhos, meus ombros, minhas mãos. “Conte-nos outra história, Samantha.
Mais uma. Tão erótica. Tão sombria. Tão brilhante.”
É quando o vejo empoleirado no parapeito externo da janela. Está
olhando para dentro, diretamente para mim, ou assim parece. O nariz se
contrai. Os olhinhos estreitos e brilhantes me espiam através da vidraça
embaçada. As orelhas felpudas pendem de cada lado da cabeça como as
tranças de uma garotinha.
Eu grito até que a garota pálida que mora ao lado começa a esmurrar a
parede que nos separa.
De repente recordo tudo o que aconteceu ontem à noite. Como eu
contei a elas sobre Rob Valencia. E como continuamos a beber. Àquela
altura, a sala começou a rodopiar como se estivesse dançando, e os móveis
em tons pastel começaram a mudar de forma. As sombras na parede
pareciam se alongar. Os cabelos das quatro ficaram mais longos e
brilhantes, seus olhos ficaram vermelhos, e eu já não sabia mais qual
mãozinha pertencia a qual corpo pálido e rosado, qual arrulho vinha de
qual boca lambuzada de gloss, quais dedos estavam enroscados no meu
cabelo. E então ouvi uma voz cálida como uma pelugem, os lábios suaves
colados no meu ouvido.
“Vá lá fora e traga um coelho para nós, Samantha.”
Lembro-me de olhar para cada uma delas, sentadas à mesma distância
de mim, as bocas fechadas como zíperes de bolsa.
“Quê?”
“Você entendeu”, disse a Duquesa.
“Na verdade, é bem fácil, Samantha.”
“Moleza.”
“Tem um montão deles espalhados pelo campus, você nunca
percebeu?”
“Mas por quê?”, perguntei.
“É um desafio”, respondeu Vinheta.
“É assim que encerramos todo Salon Sacana”, acrescentou Cupcake.
Eu não sabia dizer se elas estavam brincando ou não. Era brincadeira?
“Nunca brincamos quando o assunto é coelho, Bunny.”
Bunny. Elas acabaram de me chamar de Bunny?
“Sim, Bunny.”
Tenho uma vaga lembrança de ter argumentado que já estava escuro,
que já era tarde, que era perigoso sair na rua naquele horário. Com a fala
arrastada, citei as notícias recentes e terríveis — a garota que foi estuprada
quando voltava para o dormitório, o cara que foi espancado quando voltava
do laboratório, esses dias mesmo. E aqueles rumores de gente sendo
decapitada, hein? Por acaso elas tinham ficado sabendo?
“Mas não estamos pedindo que você vá até o laboratório, Samantha.
Basta ir ali fora.”
“Deixa pra lá, Samantha”, interrompeu a Duquesa. “Está tudo bem. Já
está ficando tarde mesmo. É verdade, acho melhor você ir para casa.”
“Não, calma”, eu disse.
Depois a lembrança de cambalear bêbada na grama molhada na frente
da casa, com a capa de chapeuzinho vermelho nos ombros, enquanto elas
me observavam da janela do segundo andar por não sei quanto tempo.
Mas ainda não lembro como vim parar em casa. Será que vim a pé? Ou
de ônibus? Alguns flashes voltam a mim. Estou esperando o ônibus na rua
luxuosa da casa dela, com os olhos fixos na calçada reluzente, achando que
cada barulhinho vinha de algum maníaco com um facão. E me preparo
para dizer a ele: “Não sou rica. Não sou uma Delas. Não julgue uma
mulher por sua capa vermelha tão macia quanto pele de tigre. Não há nada
nesses bolsos além de fiapos”.
E foi aí que ouvi o farfalhar. O som inconfundível de folhas sendo
afastadas. Pisadas. Uma sombra se alongando. Duas sombras. Três.
Quatro. Sete. Emergindo dos arbustos.
Fechei os olhos. Esperei que o destino inevitável se abatesse sobre
mim. Esperei que a lâmina atingisse meu pescoço. Por favor, seja rápido.
Falei um “oi” para minha mãe no céu, a quem eu me juntaria em breve.
Ela me lançou um olhar de censura: “Mas que idiotice ter saído de casa a
uma hora dessas para ver essas putas. Você merece o destino que vai
receber”, disse-me ela. “Mas, sim, até logo. É legal aqui. Tem um montão
de flores roxas e sombras de salgueiros frondosos, e folhas verde-douradas
farfalhando ao sabor do vento enquanto uma luz de fim de agosto se
estende sobre tudo.” Mas não era a voz dela, e sim a de Ava. Depois vi o
rosto de Ava. E mais nada. Nenhum porrete na minha cabeça. Nenhuma
lâmina na minha garganta. Nada no meu pescoço além de uma brisa de
outono muito mundana. E então, de repente, algo saltou no meu colo. Era
pequeno. Pesado. Macio. Olhei para baixo e vi que me encarava com seus
olhinhos escuros e brilhantes.
“Viu?”, sibilou uma voz da janela do segundo andar.
Ergui o olhar bem a tempo de ver uma luz acender e apagar. Quando
olhei para baixo, não tinha mais nada no meu colo.
Foi isso que aconteceu? Foi isso que eu vi? Impossível. Não pode ter
sido isso. Não foi isso que eu vi ou ouvi. “Não”, digo ao coelhinho sentado
no parapeito da janela. “Impossível.”
E então ele sai pulando, deixando para trás uma janela gradeada vazia,
com vista para uma parede de tijolos e o céu da Nova Inglaterra em toda a
sua desolação matutina. A névoa em meu cérebro se dissipa. Ava. Pego o
celular para ver se tem alguma mensagem dela.
Nada além de um emoji de troll da Boneca Sinistra, seguido por uma
tulipa e um fantasma de braços abertos. E, então, de um número
desconhecido:
Você chegou bem em casa, amiga? E mais uma de outro número
desconhecido: Vejo você na aula amanhã .
Aula. O primeiro dia do seminário. Vou passar na lanchonete a
caminho de lá. Ava e eu sempre vamos lá de manhã. Onde ela bebe seu
chá-verde regado com álcool e desenha o mundo como uma série de
zumbis. Seu céu está carregado de relâmpagos. Seu sol tem dentes. Ela
acrescenta guelras, presas e asas a todas as garotas mimadas da Warren e
incendeia os garotos da fraternidade. Enquanto ela faz tudo isso, eu
contemplo a Nova Inglaterra. Às vezes eu escrevo. Às vezes eu só olho
mesmo.
7

Já faz tanto tempo que não vou do meu apartamento até a faculdade que
até esqueci o caminho. Eu me perco. Não há o menor sinal de Ava. O ar
está repleto dos crepitares do outono e dos murmúrios de gente louca. Este
lugar é tão lindo que é difícil acreditar que está cheio de pessoas malucas,
desesperadas e solitárias, que a violência corre solta quase todo dia.
Estupros, espancamentos, facadas e tiroteios são tão comuns quanto as
taças de vinho rosê nos cardápios dos bistrôs. Rumores de decapitações
arbitrárias circulam com cada vez mais frequência. Qualquer dia desses,
você pode avistar um homem de aparência respeitável do outro lado da
rua, caminhando sob o sol oblíquo do outono, e pensar que estou
equivocada sobre este lugar. Ora, não pode ser uma cidade cheia de
psicopatas violentos. Não tem nada de errado aqui. As pessoas até
caminham despreocupadas sob o sol outonal. É uma cidade cujo nome
devoto expressa gratidão e fé. E então a brisa sopra e o casaco do homem
se abre como as asas de um morcego. E, quando ele chega mais perto,
você percebe que está falando sozinho. E não para por aí, claro que não.
Na verdade, ele está discutindo com alguém invisível. O rosto vermelho.
As feições contorcidas de raiva. Todas as veias de seu pescoço latejam a
ponto de arrebentar. E é aí que você começa a reparar em todas as casas
abandonadas, as vitrines estilhaçadas nas lojas, os para-brisas quebrados,
uma bolsa vazia jogada na calçada. Você observa tudo isso e lembra, é
verdade, estou em Sombriópolis. Estou no Covil de Cthulhu.
Caminho na direção do que acredito ser a faculdade e me perco mais e
mais até que as fachadas decrépitas de lojas vazias enfim dão lugar a
barracas de suco e pet shops e tenho um vislumbre da bolha universitária.
As torres onde Ava e eu nos sentamos feito gárgulas. Os transeuntes que
até então pareciam figurantes de filme de zumbis de repente se
transformam nas estrelas de um filme francês da Nouvelle Vague.
O seminário acontece em um lugar que chamamos de Caverna, mas que
na verdade é apenas um auditório no subsolo do Centro de Artes
Narrativas. A sala não tem portas nem janelas à vista, muito menos
relógios. Apenas paredes escuras e úmidas que evocam o ventre materno.
Chego atrasada e peço desculpas baixinho. Nem sinal de Ava na
lanchonete, onde o único cliente era um sujeito de rosto vermelho e
ombros curvados que, sentado ao balcão, parecia gritar para o próprio
prato. As Bunnies, ao me verem entrar, sorriem como bibliotecárias e
depois desviam o olhar. Não parecem estar de ressaca. Nem um
pouquinho. Estão amontoadas como de costume nas carteiras do canto,
deixando os outros três lados livres para mim. Sinto o estômago afundar.
Mas o que eu esperava, afinal? Que elas me acolhessem da noite para o
dia?
Um medo gelado se espalha no meu peito. Meu coração palpita como
as asas de um beija-flor.
Lanço um olhar interrogativo para elas, mas as quatro estão
observando, através dos óculos de grife, nossa professora Ursula, a quem
apelidaram de MuiMui, porque ela se importa muuito, muuito conosco. Eu
a chamo de Fosco, em homenagem ao vilão do romance gótico A mulher de
branco. Nem sei por quê. Imagino que seja por causa de seu
comportamento taciturno, sua voz espessa como névoa, as mãos brancas e
compridas sempre gesticulando e seus olhos violeta sacádicos, o que
sugere que ela mantém donzelas aprisionadas no porão e fígados humanos
na geladeira; alguma coisa que me faz pensar que ela trata ratos como se
fossem bebês e assiste a óperas em um camarote, de onde aplaude
baixinho nas sombras. “Nossa, sim”, disse Ava quando a viu. “Exatamente.”
“Samantha”, Fosco me chama com sua voz estrondosa quando as portas
pesadas se fecham atrás de mim. “Que bom que conseguiu se juntar a
nós.”
Todas me observam caminhar em direção ao centro da sala, onde elas
se sentam como se estivessem em uma peça de teatro, formando o que
Fosco gosta de chamar de “círculo hermenêutico” ou um “espaço seguro”
onde podemos tomar a decisão corajosa de desnudar nossa alma por meio
da enigmática arte das palavras. Onde podemos descrever nossas
experiências e experimentos alquímicos. “Um lugar onde a obra realiza o
Corpo e o Corpo realiza a obra.” Seja lá o que isso signifique. Já faz um ano
que estou aqui na Warren e ainda não descobri. Esta faculdade é
conhecida por sua abordagem experimental da narrativa, daí a ausência de
janelas e relógios na Caverna. Porque não podemos ser, e não seremos,
escravos do continuum espaço-tempo, ou seja, da trama. E ainda assim, de
alguma forma, ela sabe que cheguei atrasada.
“Nós estávamos preocupadas”, continua Fosco, batendo no punho
como se houvesse um relógio ali.
Nunca sei se Fosco está usando o plural majestático ou se referindo a
ela mesma e às Bunnies.
“Preocupadas?”, repito.
“É, de que tivesse acontecido alguma coisa com você. Não foi,
meninas?”
Ela olha para as Bunnies em busca de confirmação, e elas assentem,
seus rostos orvalhados voltados para a professora como se cultuassem o
templo de uma deusa. Fosco foi nossa orientadora no seminário na última
primavera, e neste outono deveria ser o Leão, mas as Bunnies fizeram de
tudo para trazer MuiMui de volta. “É que ela nos entende melhor, sabe?
Além do mais, parece um ursinho muuito fofo! Muuito carinhoso!
MuiMui!”
“Sim, MuiMui”, elas concordam agora. “Preocupadas. Nossa. Muito
preocupadas.”
“Desculpem”, peço. “Só fiquei meio…”
“Perdida?”, completa Boneca Sinistra. Seus olhos de tigre não revelam
nada, mas os lábios em formato de coração se curvam em um leve sorriso.
“Cobri seus ombros trêmulos com minha capa de chapeuzinho vermelho
enquanto você estava bêbada e chorando. Lembra?”
“Perdida”, repete Fosco, a voz profunda reverberando pelo auditório.
Seu tom sugere que ela acha que a palavra me descreve perfeitamente.
“Talvez, Samantha, você esteja perdida em vários sentidos.”
E então sorri para mim com aqueles lábios rosa-prateados, e seu
silêncio hermético preenche o ar como fumaça de gelo-seco. Tem gente
que vem até a Warren só para respirar o mesmo ar saturado de incenso que
Fosco. Fãs raivosas que têm o nome dela tatuado no punho, na lombar, nas
omoplatas em forma de asas. Que carregam os romances experimentais
que ela escreve grudados no peito, como se fossem talismãs de bruxa, e
sussurram trechos como se fossem orações, feitiços. Porque ela é tão
mística, tão maternal, tão sábia. Eu não sou uma dessas garotas. Quando
vejo Fosco falar sobre os textos que ela provavelmente leu pouco antes da
aula, vestida com sua bata iridescente de sacerdotisa New Age, as mãos
ocupadas com gestos quase ginecológicos, os lábios rosados jorrando
comentários enigmáticos pontuados vez ou outra por seus célebres
silêncios profundos, sei que jamais serei uma dessas garotas.
E, ainda assim, não sou completamente imune ao escrutínio de seus
olhos, que me avaliam como se eu fosse um caso perdido.
“Desculpe.”
Sinto meu rosto corar.
“Este prédio parece um labirinto mesmo”, comenta Cupcake, sem
olhar para mim.
Eu a vejo acariciar o colar de pérolas, distraída, as mechas louras
brilhando sob a luz do cômodo. Hoje, está usando um vestido com
estampa de grama e um cardigã verde para combinar. Lembro-me dela
ontem à noite, raspando freneticamente o pau de canela, a cabeça dourada
jogada para trás, o pescoço perolado salpicado de veias azuis, a boca
escancarada em êxtase, e de repente sinto uma vontade louca de abraçá-la.
Ela nunca havia me defendido assim.
“Eu ainda me perco no campus”, acrescenta Boneca Sinistra.
“Acontece direto.”
“Sério, Kira?”, pergunta MuiMui. “Acontece direto?”
“Bom, de vez em quando. Aconteceu no mínimo uma vez, com
certeza”, explica ela, olhando para mim. “Oi, Bunny.”
Abro um sorriso cheio de gratidão, mas ela rapidamente desvia o olhar.
Só então percebo que já cheguei ao meu lugar habitual, do outro lado do
quadrado de carteiras. Deve ter sido força do hábito. A memória muscular
deve ter me trazido até aqui. Hesito por um instante, as mãos apoiadas no
encosto da cadeira. Será que eu não deveria me sentar mais perto delas?
Será que elas haviam deixado essa decisão para mim? Será que devo ir até
lá agora? Eu me viro naquela direção, mas as quatro estão com o olhar
vidrado em MuiMui.
“Tudo bem aí, Samantha?”
“Arrã. Tudo, sim. Claro. Desculpe.”
Sento-me no lugar de sempre. Fosco retoma seu discurso sobre a
importância deste semestre, que é o penúltimo do curso. E o último de
seminário. Devemos usar esses meses para nos explorar a fundo. Para nos
fazer as perguntas difíceis e assustadoras sobre nós mesmas. Viver
plenamente a experiência alquímica da Criação antes de sermos soltas na
natureza selvagem do último período, quando cada uma deve escrever a
própria dissertação. Assim como no ano passado, ela usa muitas metáforas
sobre parto e nascimento, mas só as ouço pela metade, mergulhada como
estou no torpor da ressaca, no ligeiro pânico que se agita no meu peito.
Enquanto isso, o terrier agasalhado de Fosco late em seus calcanhares ou
então corre em círculos bobos ao nosso redor. Ela o trouxe para todas as
aulas do semestre passado, e as Bunnies passavam uns bons quinze
minutos paparicando a criatura enquanto eu, com o nariz enterrado no
livro, fingia reler qualquer texto formalmente experimental que Fosco
tivesse nos passado naquela semana. Eu ficava olhando as linhas densas e
ilegíveis enquanto elas soltavam gritinhos de “Ai, que fofinho! Aimeudeus,
é tão fofinho”. Tentava me lembrar de que era um privilégio estar aqui,
que esta faculdade iria me abrir muitas portas — tantas portas, não iria? —
e que resolvi vir para cá porque oferecia a melhor bolsa e mais tempo para
escrever, duas coisas de que eu precisava desesperadamente. Não tive
nenhuma delas enquanto trabalhava como vendedora de livraria,
garçonete, recepcionista, garçonete outra vez, os únicos empregos que eu
conseguia arranjar com meu bacharelado em literatura.
“Pobre Cinderela”, diz Ava sempre que eu lhe conto essa história.
“Cadê seus ratinhos falantes? E seus vestidos de gata borralheira?”
“Mas eu precisava…”
“Você queria”, ela sempre me corrige. “Precisar, meu bem, é algo
totalmente diferente. E não que você esteja escrevendo a rodo por aqui,
sabe.”
É verdade que eu escrevia muito mais antes de vir para a Warren. Saía
do trabalho e passava as noites imersa em um êxtase febril, escrevendo em
qualquer superfície que estivesse disponível. Desde que cheguei à
universidade, isso quase não aconteceu. No outono passado, mostrei
alguns rascunhos para o Leão, quando ainda conversávamos. Depois disso?
Apenas trechos incompletos, alguns fragmentos, um punhado de frases.
Muitos, muitos desenhos de olhos. Que me encaram.
“Eu falei que isso estava acabando com a sua alma.”
Mas como eu poderia imaginar que seria assim? Não podia desperdiçar
uma oportunidade dessas. Ir para a Warren? Tipo, é a Warren. A
abordagem altamente experimental e os jargões me irritam, claro, mas vale
a pena.
“Será que vale mesmo?”, Ava sempre rebate.
Finalmente começamos a discutir os textos desta semana, que Fosco
nos pediu para escrever durante o verão depois de arrastar nas cinzas um
talismã de nossa escolha ou pegar uma carta de tarô aleatória e estudá-la
enquanto caminhávamos em sentido anti-horário ao redor de uma
encruzilhada.
“E você ainda se pergunta por que não consegue escrever, Smackie?”
Primeiro, o texto de Vinheta: uma série de vinhetas sem pontuação
sobre uma mulher chamada Z que vomita sopa enquanto se entrega a
reflexões niilistas e depois é sodomizada em um trailer. Odeio os textos de
Vinheta, sempre quebra-cabeças monótonos que nunca tenho vontade
nem paciência de resolver. Cada parágrafo é um meio sorriso, uma testa
meio franzida, tudo pretensioso para cacete. Além de levantar questões do
tipo: quando essa garota, durante sua jornada perigosa e rocambolesca de
Interlochen a Barnard, foi parar em um trailer?
“Gente rica se fazendo de pobre”, diria Ava. “Baboseira de gente branca
escrita pelos superqualificados. Do pior tipo. Tem aos montes na escola de
artes.”
Fosco admira o texto de Vinheta como de costume, da mesma maneira
que admira os textos de todas elas, mas nunca os meus. Como se fossem
bebês agitados, brilhantes, mas que ainda assim têm algum probleminha.
Aconteceu alguma coisa com o canal de parto? E então ela arqueia uma
sobrancelha, preocupada, como se tentasse averiguar. “Bom”, ela vai
retomar por fim, “o que achamos disso? Alguém tem algum comentário?”
“Achei a sopa fascinante”, diz Cupcake, como se estivesse mesmo
fascinada.
Percebo que minha vontade de abraçá-la sumiu por completo.
“Eu também, Caroline”, concorda Fosco. “Eu também.”
E aí volta a admirar as páginas.
“Eu só queria ter acreditado mais, eu acho”, comenta a Duquesa, como
se estivesse preocupada com o prognóstico de uma doença. “Mas devo
dizer, Victoria, que a sua forma de envolver o Corpo é sempre muito
interessante.”
Sussurros de aprovação por toda parte. Pequenos acenos de cabeça.
“Ah, com certeza. Concordo. Muito interessante.”
Escrevo “1.098” no caderno. Foi a quantidade de vezes que ouvi “o
Corpo” ser mencionado desde que pisei na Warren. Porque, nesta
faculdade, o Corpo está na moda. Parecia que todos os acadêmicos tinham
acabado de descobrir que eram cativos de uma casa precária de carne e
osso e, aimeudeus, que assunto interessante. Que fonte inesgotável de
temas e tramas! Ainda não entendi muito bem o que significa escrever
sobre o Corpo em letras maiúsculas, mas sempre finjo entender. “Ah, sim,
o Corpo, é claro.”
Outras palavras que venho contando: espaço, transparecer e
desempenhar. E suas variações.
“Gostei da incerteza que transparece no texto”, diz Boneca Sinistra. “Só
acho que poderia se aprofundar mais no espaço dos sonhos. É tão
interessante ver como ela desempenha e revive o trauma.”
Olho para Vinheta, que anota tudo em seu caderno como se esses
comentários fossem realmente úteis, o cabelo acobreado caído em cascata
sobre um dos ombros, a nuvem de ópio a cercando, mesmo aqui.
Enquanto ela escreve, Cupcake faz carinho em seu braço. Bunny, eu te
amo.
“E você, Samantha? O que acha?”, pergunta-me Fosco.
Acho que é um lixo pretensioso. Que não diz nada, não entrega nada.
Acho que não entendo, que provavelmente ninguém entende e jamais vai
entender. Que não ser entendida é um privilégio que não posso me
permitir. Que nem acredito que essa mulher está sendo paga para vir aqui.
Acho que ela deveria pedir desculpas às árvores. Passar um dia inteiro
ajoelhada na floresta e, com lágrimas nos olhos lânguidos, dizer aos álamos
e carvalhos e a quaisquer outras árvores de que é feito o papel: “Me
desculpem. Me desculpem por achar que sou muito interessante quando
está na cara que não sou. Sabem o que eu sou? Uma assassina de árvores
sem graça”.
Mas então me viro para Vinheta, Boneca Sinistra, Cupcake e a
Duquesa. As quatro me encarando com um sorriso tímido no rosto.
“Acho que eu também gostaria de ler mais sobre a sopa”, ouço-me
dizer.
Por fim, chegamos ao meu texto, uma das últimas histórias que
consegui escrever antes do bloqueio criativo. As cinco passam um bom
tempo em silêncio. Fosco encara o papel como se nem soubesse por onde
começar. Nem um pingo de experimentação formal. Nenhum personagem
com nome de uma letra do alfabeto. Nem uma gotinha de sopa de vômito
niilista. E ainda por cima tem uma trama, que absurdo!
Eu me preparo para ouvir as críticas de sempre.
Violento.
Hostil.
Distante.
Sombrio, mas não no bom sentido?
Engraçado, verdade, mas acho que até demais?
Exatamente. Tipo, o que está por trás desse riso, sabe?
Mas elas ainda estão quietas, analisando a história com atenção.
“É curioso”, começa Cupcake, enfim. “Na primeira vez que li, confesso
que fiquei meio decepcionada.”
Ela torce o nariz como se a história exalasse um odor desagradável.
“Fale mais sobre isso, Caroline”, pede Fosco.
“Então, é que parecia tão… hostil à primeira vista.”
“E violento também”, acrescenta Boneca Sinistra, sem olhar para mim.
“E brutal.”
“Sombrio, mas não no bom sentido”, diz Vinheta.
“E dando muita importância à sua própria estranheza.”
“Exatamente. O texto afasta o leitor a princípio. Mas depois…”
“Mas depois?”, encoraja Fosco.
“Hum, sei lá. Enquanto lia pela segunda vez, percebi que estava
começando a gostar de todas essas coisas, afinal. A angústia bruta, o lado
cru da adolescente. É… envolvente.”
Ela olha para mim do outro lado da sala, com a cabeça dourada
pendida para o lado.
“É mais vulnerável do que eu esperava. Quase desesperado.”
“Triste”, acrescenta Vinheta.
“Mas no bom sentido”, complementa Boneca Sinistra.
“Olhe só, eu ainda acho que o texto poderia se abrir um pouco mais…”
“Bem mais.”
“E sem dúvida precisa de um pouco de… movimento?”, sugere
Vinheta, olhando para a Duquesa, que ainda não se pronunciou.
“Acho que o que estamos tentando dizer, Samantha, é que queremos
mais”, declara a Duquesa, com as mãos cruzadas sobre meu texto, o olhar
dirigido não para mim, mas para Fosco, que assente com uma seriedade
maternal.
“Faz sentido?”
8

Ava. Não a vejo ao longo de toda a semana. Passo na frente da casa dela:
está tudo escuro. Passo na lanchonete: está vazia. Vou até as entranhas do
laboratório de ciências naturais, onde ela costuma ficar entre as gavetas de
insetos mortos, ou então na biblioteca do porão, organizando o que ela
chama de “Verdadeiros Cadáveres”. “Porque os livros estão mortos,
Smackie, sabia? Porque quase ninguém vem aqui além de você.” Acendo as
luzes crepitantes de todos os corredores, mas ela não está lá, fumando e
lendo entre as estantes altas e escuras. Repito seu nome em voz alta até
que um homem sentado a uma mesa ali perto se vira e olha feio para mim.
“Posso ajudar?”
Ela não está sentada na caçamba atrás dos dormitórios, com as pernas
dependuradas e as mãos cheias dos espólios que encontrou no lixo. Não
está na livraria anarquista folheando as novidades. Não está encarapitada
no telhado abobadado do departamento de ciências como uma gárgula do
glam rock.
Volto para o parque, onde costumo encontrá-la no banco junto ao lago.
Mas não tem ninguém ali. Contemplo a superfície imóvel da água, as
folhas das árvores balançando e tremeluzindo à luz da tarde. Mesmo antes
de conhecer Ava, eu vinha aqui com frequência. Para me sentir menos
sozinha. Para escrever, ainda que nunca tenha conseguido. Só ficava
sentada, com um café intocado ao meu lado no banco, um caderno no colo
e uma caneta pendendo frouxa de meus dedos, enquanto observava um
cisne solitário traçar círculos na água lamacenta. Eu passava horas assim.
Vinha para cá depois da aula, com as risadas tacanhas das Bunnies ainda
ecoando nos meus ouvidos. Ou até mesmo antes da aula, enquanto tentava
criar coragem para ir. Só vá de uma vez, isso é ridículo, porra, do que você
tem tanto medo, hein? Ou nos fins de semana, quando tentava me
convencer de que gostava desse momento de descanso, que a
oportunidade de passar um tempo sozinha, sem compromissos, sempre
sem compromissos, fazia bem para o meu trabalho, com certeza. Mas a
verdade é que eu amava a tranquilidade do parque. E o fato de estar
sempre vazio. Com exceção do cisne, é claro. Rodopiando sem parar em
seus círculos solitários. Ou então apenas flutuava à deriva. Até que, certa
manhã, uma manhã terrível e maravilhosa, lá estava Ava. Sentada no banco
como se sempre tivesse estado ali. Em seguida, me pediu um isqueiro que
eu nem sabia que tinha.
Mas agora não há o menor sinal do cisne.
Nem de Ava.
Tudo o que vejo são as pessoas que ela odeia e a luz dourada que ela
odeia mais ainda banhando os prédios que ela adoraria incendiar.
E coelhos.
Tantos coelhos. Mal posso acreditar nos meus olhos. Mas aqui estão
eles. Acho que sempre estiveram aqui. Saltitando pelo gramado. Correndo
pela trilha para em seguida desaparecer nos arbustos. Fazendo-me tropeçar
nos caminhos sinuosos do campus como se fossem pedras pesadas e
macias. Cada vez que avisto um, sinto uma pontada de medo e empolgação
no estômago. Lembro-me da sensação mágica, ao mesmo tempo suave e
pesada, do animal no meu colo naquela noite. Vejo-me ali observando, em
minha embriaguez, seu trêmulo rostinho leporídeo. Lembro-me de uma luz
se acendendo e se apagando na janela do segundo andar. Suas vozes de
menininhas, quentes e macias como pelos nos meus ouvidos.
“Viu como é fácil, Samantha? A gente bem que falou.”

Todos os dias, eles me seguem como pequenas sombras peludas. Certa


tarde, no banco, afasto os olhos do livro por um instante e avisto um, dois,
quatro coelhos. Eles formam um pequeno círculo felpudo à minha volta,
como se eu fosse sua líder, prestes a fazer um discurso. Chego até a abrir a
boca. Mas depois trato de fechá-la. Saio do banco e vou embora. Ando
apressada em direção à biblioteca. “Não me sigam, hein?”
Duas garotas saídas de um filme de Wes Anderson me encaram através
de seus óculos moderninhos. Usam vestidinhos franceses de seda com
estampas discretas. Sorrisinhos zombeteiros para combinar. Porque sou
uma mulher adulta que está falando com coelhos. Penso no homem que vi
a caminho da faculdade, gritando com uma árvore. “O que foi que ela
fez?”, quis perguntar. Agora já não sei se posso julgar.
“Parem de me seguir!”, sibilo baixinho para os coelhos.
“Samantha?”
Jonah está com sua jaqueta de sempre, um cigarro aceso entre os
dedos. O cabelo cor de trigo caindo sobre os olhos. Ele sorri para mim
como se eu fosse o Natal.
“Oi, Jonah. Foi mal, eu estava…”
“Ei, por acaso você estava conversando com aqueles coelhos?”
“Não.”
“Tudo bem se estivesse, sabe. Às vezes eu também gosto de conversar
com as coisas.”
Ele assente como se quisesse me tranquilizar.
“E eles não param de olhar para você”, continua. “Que esquisito.”
“Sério?”, pergunto, mesmo sabendo que é verdade.
“Seríssimo. Nossa. Eu nunca vi uma coisa dessas. Parece até que eles
estão tentando falar com você. Você não está assustada com isso, não?”
“Não”, minto.
“Mas deveria. Uma vez, lá no Alasca, um urso me seguiu até em casa e
a gente acabou conversando por um tempão. Ele me contou várias coisas.
Acho que é porque ele sabia que eu era poeta e precisava de alguém para,
sei lá, contar a história dele.”
Voltamos a olhar para os coelhos, que ainda continuam vidrados em
mim.
“Talvez você seja meio coelho e não saiba”, teoriza ele, e sorri para
mim. “Ei, quer sair para beber alguma coisa? Acabei de sair da aula. Que
tal se a gente der uma passada na cervejaria?”
“Achei que você não bebia.”
“E não bebo mesmo. Mas talvez eu possa ver você beber. Eu gosto de
fazer isso.”
Espio por cima do ombro dele e vejo que os malditos coelhos
continuam me encarando.
“Agora eu não posso, Jonah. Desculpe. Quem sabe outro dia, tá?”
Saio correndo e quase tropeço em um coelho cinza peludo
atravessando a rua. Ele é atropelado por um carro, que nem freia, e eu
grito.
“Oi, Samantha”, as Bunnies dizem sempre que me veem no campus. Elas
sorriem para mim como se eu fosse um cara de quem talvez poderiam
gostar, mas ainda não decidiram. Acenam para mim do outro lado do
gramado, onde estão sentadas juntas. “Oi.” “Olá.” “E aí.” “Bonjour,
Samantha.” Elas tentam puxar conversa. Perguntam como está minha
semana. O meio sorriso de Vinheta passa a ter três quartos. Cupcake, toda
tímida, me oferece um cupcake. Elogia meu vestido mesmo que eu não
esteja usando um. Nunca estou. Mas respondo: “Obrigada. Também gostei
do seu”. Boneca Sinistra me dá uma pedra preta afiada. “Para o seu altar,
Bunny. Você tem um altar, né?” Não tenho, mas apenas sorrio como se
dissesse: “Tenho, sim, muito obrigada”. Duas vezes durante a aula, a
Duquesa estende o braço e coloca a mão no meu punho. Ela diz meu
nome com uma voz que parece um abraço rendado.
Nem tocam no assunto do Salon Sacana, a não ser para dizer: “Foi
superdivertido, não foi?”.
“Arrã”, respondo. “Foi mesmo.”
Só quando digo isso percebo que não estou mentindo. É verdade.
“Foi muito divertido”, repito.
Quero perguntar a elas: “Vocês me pediram mesmo para caçar um
coelho? Um coelho realmente pulou no meu colo?”.
Quero dizer a elas: “Sabe, agora os coelhos começaram a me seguir”.
“A gente deveria repetir a dose qualquer dia desses”, sugere Boneca
Sinistra, toda acanhada, como se elas estivessem me convidando para um
segundo encontro.
9

Durante toda a semana, volto sozinha para o apartamento onde Ava disse
que eu não deveria morar. Devoro o chili enlatado de marca genérica que
comprei no outono passado para me preparar para um furacão que, no fim,
não passou de uma garoa triste. Pego a garrafa de vinho que está na minha
geladeira há meses e sirvo em uma caneca de souvenir das cataratas de
Falling, minha cidade natal, depois bebo o líquido que tem gosto de
agulhas ácidas.
Você já deve ter visitado as cataratas de Falling. Por uma horinha, ou
várias, ou um dia inteiro no máximo, você deixou seu carro no
estacionamento para contemplar a atração, mesmo que não haja nada ali
além de água. E depois se apoiou na grade para tirar uma selfie ou uma
foto em família, com as cataratas rugindo ao fundo, vestindo uma bermuda
de que você vai se arrepender mais tarde, com um sorriso forçado ou talvez
genuíno enquanto a água lhe borrifa as pernas, os braços e os cabelos com
uma névoa perpétua. Depois você pode ter feito aquele passeio de barco
chamado “Sob as cataratas”, que não passa debaixo das cataratas porque
isso significaria morte na certa, usando uma daquelas capas de chuva
amarelas que não impedem ninguém de ficar encharcado até os ossos,
porque eu não estava lá para avisar que não valia a pena. Eu estava no
centro de Falling, um lugar que só os locais frequentam, talvez na sala dos
professores levando uma bronca por ter entregado histórias em vez do
dever de matemática, ou então as escrevendo no salão de beleza da minha
mãe, ou quem sabe no meu quarto ou nos galhos finos das árvores lá fora,
sonhando que estava em outro lugar.
Duvido muito que você tenha ido ao centro de Falling, mas talvez
tenha decidido passar o dia na passarela turística à beira do rio, e depois
desperdiçar dinheiro nos fliperamas patéticos, se perder no labirinto de
espelhos onde fui barrada aos nove anos por ser alta demais, provar o
“sorvete do futuro” e se deliciar com um jantar em um restaurante em
formato de navio. Ali, você cortou um bife seco, sentado ao lado das
escotilhas, sob uma rede cheia de peixes falsos, apreciando a música da
banda Heart, que está por toda parte, como se reverberasse pela neblina
que permeia o ar. Se por acaso estivesse por lá na época do Halloween,
poderia ter dado uma passadinha na casa mal-assombrada, onde um
homem com máscara de hóquei e uma serra elétrica falsa persegue você
por túneis escuros feito breu. De 1985 a 1992, esse homem era meu pai.
Talvez você tenha perdido alguns trocados no cassino, onde ele trabalhou
depois disso, subindo na hierarquia de garçom a gerente.
Mas duvido muito que você tenha feito qualquer uma dessas coisas, a
menos que use um corte mullet ou tenha um profundo senso de ironia.
É mais provável que você tenha tirado só uma selfie nas cataratas e
depois dado no pé. Pode ser que tenha comprado um copinho ou uma
caneca superfaturada como a minha antes de ir embora. Ou quem sabe
um ímã com uma foto das quedas d’água bem melhor do que todas as que
você tirou. Talvez tenha até um arco-íris na imagem. Ou um trocadilho do
tipo “Tenho uma quedinha por você”. Minha mãe me deu um ímã assim
uma vez, de brincadeira. Levei-o comigo para todo canto. Coloquei o ímã
em todas as geladeiras que tive desde então, inclusive nesta. E aí nesse
verão eu o dei de presente para Ava, que o colocou na geladeira dela.
“Nossa geladeira”, dizia ela.
Tomo mais um pouco do vinho ácido. Escuto o gigante pervertido que
mora ao lado rir de uma série de tv, mas sempre na hora errada. Não faço
ideia de como ele consegue viver naquele cubículo, considerando que é
maior do que qualquer outro ser humano. As galochas pretas que ele deixa
ao lado da porta lascada são tão grandes que poderiam esmagar uma foca.
No andar de cima, a Cantora Lírica que Não dá Trégua cantarola uma
ópera qualquer. Parece um pássaro canoro esquizofrênico que perdeu o
rumo. Mantenho as cortinas fechadas para não dar de cara com o
Exibicionista outra vez, com receio de que esteja de butuca, cheio de
expectativa, para me mostrar seu membro reluzente. Sempre nu, apesar da
noite fria. Com o pau na mão, o hálito embaçando a vidraça, talvez me
olhando, talvez não — nunca deixo as cortinas abertas por tempo
suficiente para descobrir. Isso sem contar que, toda vez que as abro agora,
vejo aquele mesmo coelho sentado no parapeito, como se nunca tivesse
saído de lá. Os olhos fixos em mim.
Bebo o resto do vinho e tento escrever alguma coisa. Eu tenho que
escrever, eu preciso escrever. É por isso que estou aqui. Olho para as
páginas do caderno, em branco a não ser por um olho mal desenhado.
Alguns redemoinhos. A frase “Não sei” rabiscada várias e várias vezes.
Cercadas por flores murchas.
Sinto saudade do meu primeiro cantinho de escrita, a sala de espera do
salão de beleza onde minha mãe trabalhava quando eu era criança. Eu
escrevia com um abandono delirante naquele sofá molenga entre o Buda
empoeirado e as flores falsas mais empoeiradas ainda, sob as fotos de
mulheres sorridentes com os cabelos penteados de um jeito que parecia
impossível, doloroso. As clientes se acomodavam nas cadeiras ao redor e
fingiam ler revistas, mas não paravam de me olhar de rabo de olho,
perguntando-se quem era aquela garotinha esguia com camiseta do
Monstro do Pântano e o caderninho de sereia abraçado junto ao peito, que
retribuía seu olhar através da franja que eu quase nunca deixava minha
mãe cortar. Tinha medo de que ela arrancasse meus olhos.
“O que você está aprontando aí?”, às vezes me perguntavam.
Tentando descobrir seus segredos vergonhosos, eu respondia em
pensamento.
“Não liguem para minha filha”, dizia minha mãe enquanto conduzia as
clientes até o lavatório e pedia para que recostassem a cabeça na pia,
quando imediatamente fechavam os olhos. Eu as observava ali nas cadeiras
giratórias, cobertas por uma capa, enquanto se admiravam no espelho
como se contemplassem seu reflexo pela primeira vez. E aí começavam a
dizer todo tipo de coisa — se dirigidas à minha mãe ou ao próprio reflexo,
eu jamais saberia. Coisas que eu não conseguia escutar em meio às Mais
tocadas de Heart e ao zumbido dos secadores e cabelo, então só me restava
tentar adivinhar.
“Na verdade, sou uma mulher-lagarto.”
“Eu converso com alienígenas à noite, por isso preciso cortar o cabelo.”
“Tem um esquilo no parque que na verdade é o homem que eu amo.
Vou pintar o cabelo como um agrado para ele.”
“Esta noite vou pular de cabeça nas cataratas e quero meus cachos
esvoaçantes enquanto despenco lá de cima.”
E aí minha mãe assentia ou ria enquanto passava a escova, a tesoura, a
navalha, a chapinha naquelas cabeças ligeiramente inclinadas e cheias de
grampos, e depois enrolava suas mechas molhadas, uma a uma, em
quadradinhos de papel-alumínio, e só então as acomodava sob o que eu
via, na época, como um forno sugador de cérebro. E ali elas se deixavam
cozinhar, contentes, enquanto folheavam uma revista.
Às vezes, minha mãe não conduzia a pessoa até uma cadeira giratória, e
sim a uma salinha mal iluminada no fim do corredor. Os sons que
escapavam daquela porta fechada serviram de inspiração para as primeiras
histórias de terror que escrevi. Ouvi gritos que mais pareciam rosnados,
grunhidos. Risadas nervosas. Gritos mais suaves também, quase como
suspiros. E mais um punhado de sons inteligíveis que me assustaram, me
confundiram, me impressionaram. Eu esperava que as clientes saíssem
daquela salinha com o rosto chamuscado, com guelras profundas nas
bochechas e chifres encravados na cabeça. Mas, quando passavam pela
porta, estavam quase iguais a antes, apenas com o rosto ligeiramente mais
avermelhado.
Uma sala de depilação, minha mãe nunca me explicou, mas eu
também nunca perguntei.
As histórias delirantes que escrevi no salão de beleza eram cópias dos
livretos de terror e suspense que ela devorava nos intervalos e no fim da
tarde, e que eu lia às escondidas. Baseei meus personagens nas clientes
dela, nos meus colegas da escola, nos professores que me atormentavam.
“Quero ler”, dizia minha mãe quando me via escrever à noitinha.
“Ainda não terminei”, eu respondia, embora fosse mentira.
“Sua filha inscreveu isto aqui no concurso de redação e, além de não
ser uma redação, devo dizer que estamos preocupadíssimos com o teor do
texto”, informou a professora à minha mãe certo dia.
“Ora, deixe disso”, respondeu minha mãe. “Samantha tem medo até da
própria sombra. Ela só tem uma imaginação fértil — que criança não
tem?”
Mas eu sabia que ela estava preocupada com minha mania de inventar
versões cada vez mais horripilantes e fantasiosas para tudo que acontecia.
Eu contava a ela uma porção de mentiras quando me perguntava “E aí,
como foi a aula?”, em vez de relatar a verdade enfadonha. Desaparecia no
meu quarto ou no bosque atrás do complexo de apartamentos munida do
meu caderno de sereia. “O que você está fazendo aí?”, perguntava minha
mãe pela frestinha da porta, como se eu não estivesse no mesmo
apartamento que ela, e sim em um lugar distante, longe de seu alcance,
onde eu havia decidido morar.
Não tenho mais aqueles romances que escrevi no salão de beleza.
Gosto de pensar que foram engolidos pelas cataratas depois que ela
morreu. Ainda considero que nunca tive um período de escrita tão prolífico
quanto naqueles anos, embora eu nunca tenha ficado sem escrever, nunca
tenha deixado de fugir para outro mundo de minha imaginação, nunca
tenha aprendido a viver neste mundo de cá sem que minha alma ansiasse
por viver em outro. Até que cheguei aqui.
“De vez em quando é bom fazer uma pausa”, disse-me o Leão em
janeiro, enquanto mexia o chá. “E se concentrar em outras coisas. Ler. Ser
uma convidada em outros mundos. Talvez você esteja crescendo.
Evoluindo. Tenha confiança, Samantha. Tenha paciência.”
Encontrei-me com ele em seu escritório para explicar a ausência de
textos novos. Àquela altura, nossa amizade já tinha degringolado. Ainda nos
encontrávamos, mas apenas a cada duas semanas ou mais, e sempre no
escritório dele, sempre de porta aberta. Nunca perguntei por que ele parou
de me enviar playlists na calada da noite ou de me convidar para tomar
uísque no meio da tarde, e ele nunca explicou.
“Não tem por que se envergonhar”, disse ele, com um sorriso forçado.
“É só que eu não entendo o que aconteceu”, respondi, estreitando os
olhos, cegada pelos raios de sol que se infiltravam pela janela atrás dele. “O
que aconteceu comigo, sabe? Eu vivia escrevendo. E agora…”
“Tudo na vida tem seus altos e baixos”, filosofou ele, com o olhar fixo
no relógio.
E aí eu achei que estava ficando louca. Que tinha imaginado seu afeto,
nossa proximidade.
“Mas que palhaçada”, comentou Ava. “Aposto que ele se afastou por
causa das bonobos. Elas devem ter percebido que vocês dois eram
próximos e torceram o narizinho açucarado. Aí devem ter espalhado um
boato e ele surtou feito um frangote. Ele não é leão coisa nenhuma, não
passa de um lemingue.”
Tentei me controlar, focar a escrita, deixá-lo de lado. Ele nem era mais
o professor responsável pelo seminário, só o meu orientador da dissertação.
Por acaso ele me devia alguma coisa além de um e-mail ou outro
perguntando sobre o andamento do trabalho? Na teoria, absolutamente
nada.
“Ele que se foda. Agora você tem a mim.”
Dou uma olhada no celular. Nem sinal de Ava. Volto a encarar as
páginas quase em branco, mas tudo o que vejo é o rosto do Leão em seu
escritório naquele dia.
“Você está pensando demais no assunto, Samantha. Sério.”
“Pode ser. Então, vamos nos encontrar de novo semana que vem?”,
perguntei a ele.
“Por que não adiamos por enquanto?” Mas não foi uma pergunta.
“Pode me mandar alguma coisa quando estiver pronta.”
Mas não mandei mais nada desde então. Até cogitei fazer isso antes
das férias de verão, mas aí veio aquela festa de fim de semestre na
primavera. Se as coisas já estavam esquisitas entre nós antes disso, depois
ficaram impossíveis.
Em teoria, eu deveria ter conversado com ele algumas vezes durante o
verão. E com certeza deveria ter feito isso esta semana para discutir o
andamento da dissertação, enviar atualizações sobre meu progresso. Mas
não entrei em contato, e ele tampouco. Nem consigo suportar a ideia de
vê-lo agora. E, de todo modo, não tenho nada além de olhos e flores tristes
e rabiscos de “Não sei” para mostrar a ele.

Fecho o caderno vazio. Tomo uma ducha na banheira cinzenta. Escovo os


dentes na pia lascada, evitando meu reflexo no espelhinho enferrujado. Em
vez disso, fico olhando para os azulejos amarelos acima da privada velha
que o único cara com quem dormi aqui achou parecida com um navio da
marinha. Eu já fui rica. Só por um tempinho. Logo depois que minha mãe
morreu. Quando eu, uma aborrecente de treze anos, fui morar com meu
pai nômade e o segui por todo o país enquanto ele perseguia uma
oportunidade de riqueza atrás da outra, mesmo que ele fosse o único a
enxergar seu potencial. Para ser sincera, nunca entendi muito bem como
ele ganhava a vida. “Falando um monte de merda”, disse minha mãe certa
vez, quando estava bêbada. Meu pai chamava isso de “empreendimentos
imobiliários, oportunidades de negócios aqui e no exterior, Samantha, ter
visão, discernimento”. Uma rede de resorts na América do Sul. Um spa no
mar Negro. Ele só precisava de investidores, pessoas que vissem o que ele
via, alguém que acreditasse em seus sonhos. E aí finalmente os encontrou
— um ou dois príncipes do Oriente Médio, um punhado de
empreendedores búlgaros, uma porção de texanos —, e nossa vida mudou
da noite para o dia.
Essa maré de sorte durou apenas alguns anos e me deu uma ideia do
que imagino ser a vida das Bunnies. Férias passadas em hotéis que um dia
já foram castelos. Tratamentos de spa com algas marinhas. Pias fundas
como o oceano. Colchões dignos de sonhos. Janelas altas com vista para
parques bem-cuidados, colinas verdejantes, mares azuizinhos. Tudo nessa
outra vida era mais extenso, mais brilhante, mais perfumado. Cada cômodo
tinha um botão que me permitia controlar a temperatura. Eu deveria ter
me sentido como o próprio Deus. Mas, em vez disso, esqueci que já tinha
sido pobre um dia. Eu me acostumei tão rápido àquela vida. Quando penso
naquela época, lembro-me de estar sentada junto a uma janela com a vista
mais linda e serena do mundo, mas tão entediada que nem chegava a
admirá-la. No pescoço, um colar de pérolas que achei que fosse me
estrangular assim que o coloquei, mas que depois de uma semana mal me
lembrava de estar usando.
“Então você era uma Bunny”, disse Ava por trás de sua nuvem de
fumaça assim que eu lhe contei.
“Não era, não.”
“Claro que era.” Então ela estreitou os olhos e apontou o cigarro para
mim. “Agora está tudo explicado.”
“Tudo explicado? Quê?”
Ela me encarou até que eu desviasse o olhar.
“Você é muito triste e obcecada pela pobreza para sempre ter sido
assim”, respondeu ela, recostando-se na poltrona como se fosse óbvio.
Eu a observei em seu quimono azul com estampa de dragão, rasgado e
puído de um jeito tão perfeito que parecia até proposital. Ela estava
esparramada na poltrona de veludo vermelho que encontramos
abandonada em uma calçada. As unhas vermelhas dos pés pareciam
jujubas ao escapar pelos furos da meia arrastão. A luz do abajur roubado
piscando sobre sua cabeça emplumada como o letreiro oscilante de um
motel. Ela bebericava champanhe em uma taça de bocal largo. Onde ela
arranjou isso? “Não importa. Em algum lugar.” Ava nunca parece se
preocupar com dinheiro. E ainda assim, de alguma forma, o apartamento
dela parece ter saído de um filme parisiense sobre a pobreza artística.
Decrépito, mas de um jeito charmoso.
“Você fica melhor assim”, continuou Ava. “É sério, Smackie. O seu
quimono espiritual bem que precisava de uns furos. Juro. Uma quedinha
não faz mal a ninguém, né? Além do mais, você precisa aprender a matar
suas próprias aranhas.” Estava se referindo à infestação de aranhas na
minha banheira, que ela estava resolvendo para mim. “Só não perca a
cabeça com os violinos. Não troque um tipo de cegueira por outro.”
“Pode deixar”, respondi. “Espera aí. O que isso quer dizer?”
Mas ela apenas ficou em silêncio, bebericando seu champanhe.
Tiro o celular do bolso e mando uma mensagem para ela: Tô com
saudade. E depois: Tá tudo bem? E depois: Eu fiz alguma coisa errada? E
depois: Seja lá o que eu tenha feito, me desculpa. E depois: Tem uma
aranha gigantesca no meu banheiro. Porque deve ter mesmo.
Nada.
Até que, certa manhã, seis dias depois, acordo de um pesadelo horrível
em que minhas mãos estão cobertas de sangue e penas brancas. Recebo
uma mensagem. Duas. Três! Quatro!!! Estou tão eufórica que corro para
pegar o celular, mas não são de Ava.
Emoji de troll. Tulipa. Fantasma de braços abertos.
E então: Oi, amiga. Só pra avisar que a gente vai dar uma festa hj à
noite.
E então: Se vc quiser vir.
E então:
Ela usou o emoji da dançarina de vestido vermelho no final da primeira
mensagem.
E de repente me ocorre: aula de tango. Hoje à noite. É lá que vou
encontrar Ava. É lá que ela vai estar.
Vou pedir desculpas a ela. Vou pedir que nunca mais me abandone.
10

O estúdio de tango fica no centro da cidade, em um predinho sem


elevador com vista para árvores mortas e uma rua esburacada. Chama-se
Palácio do Tango, embora não passe de uma salinha de teto baixo decorada
com luzinhas que quase nunca funcionam. A aula é ministrada por uma
linda polonesa de modos bruscos, sempre vestida de preto, e um sujeito
carrancudo de terno que parece estar sempre encharcado de suor.
Eles nos repreendem quando erramos algum passo e depois dão bronca
para todo mundo ouvir: “Ei, você! O que acha que está fazendo?”. “Não
sei”, sempre respondo, sentindo o rosto ficar vermelho. Mas, de modo
geral, eu costumo lidar bem com a vergonha.
Os alunos são em sua maioria pessoas da vizinhança, além de um
punhado de nerds que fazem engenharia na Warren e viram nisso uma
oportunidade de socializar. Nunca vimos o menor sinal do mítico Diego, e
é por isso que Ava e eu sempre acabamos voltando, além do puro prazer de
dançar, embora sejamos péssimas (eu sou, pelo menos). Dançamos juntas
porque é melhor do que dançar com os engravatados e os nerds. Mas
sempre esperamos por Diego.
Ela não faltaria esta noite.
Mas, quando chego ao estúdio, não há nem sinal dela. Nem na rodinha
de alunos amontoados em torno dos instrutores, que já estão ensinando os
passos do dia. Nem fumando no banco lá fora, nem enfurnada em um
canto enquanto trama o apocalipse social.
A música começa e estou prestes a ir embora porque Ava não está aqui
e eu nem prestei atenção aos passos novos mesmo. Mas o nerd à minha
direita se vira para mim com um sorriso esquisito no rosto. Eu sou a pessoa
à esquerda dele, não sou? Sou. Então dançamos.
Sou péssima. Não consigo acompanhar. Essa é a desvantagem de
sempre dançar com Ava. Nunca sabemos quem está conduzindo, apenas
fechamos os olhos e improvisamos. Piso no pé dele, que diz que não foi
nada, mas dá para ver que está frustrado. Peço desculpas, mas sem me
estender muito, já que estou distraída. Cadê ela? Por que não está aqui?
E é neste momento que a vejo, um pouco afastada da roda de dança.
Ela nem me vê. Finge estar interessada em aprender os passos novos, em
observar os pés de todo mundo. Tento chamar sua atenção, mas não
consigo. Quando ela finalmente se vira na minha direção, abro um sorriso.
Mas ela olha além de mim, através de mim. Um cara a convida para
dançar, e ela aceita.
“Ei”, chama o rapaz com quem estou dançando. “Ai.”
“Desculpe.”

Durante o intervalo, ela sai da sala em disparada. Eu a sigo até a rua


escura. Ava! A princípio não enxergo nada, mas meus olhos logo se
adaptam à escuridão e consigo distinguir sua silhueta, envolta por uma
nuvem de fumaça, parada sob o letreiro do Palácio do Tango.
Corro até ela.
“Ava!!!”
“Oi”, responde ela. E sorri. Como se tudo estivesse normal. Como se
ela não tivesse passado duas semanas me ignorando. Como se não fosse
estranho termos vindo separadas para a aula pela primeira vez em meses.
Só um: “E aí, como vai?”.
Tenho vontade de perguntar: “Que porra é essa? Onde você se meteu?
Por que sumiu?”. Mas ela está me olhando com tanta naturalidade, que só
consigo dizer:
“Oi. Como você está?”
Ela encolhe os ombros.
“Normal. Você sabe. A vida entre insetos mortos e cadáveres de livros.
E você?”
Eu a observo através do véu arrastão. Será que está irritada? Não
consigo ler sua expressão nesse breu. Abro um sorriso, como se não fosse
nada, mas sinto meus lábios repuxarem para o lado.
“Normal também. Meio estressada. Com as aulas e tudo o mais.”
Ela assente para a lua, que nunca ficaria estressada com coisas bobas
como as aulas. Eu queria que Ava olhasse para mim.
“Senti a sua falta”, continuo, e o sentimento transborda nessas
palavras. Até demais. “Tentei mandar uma mensagem para você. Achei até
que você tinha ido embora da cidade ou algo do tipo.”
“Não, continuo aqui. Bom, passei uns dias com Diego em Paris. Ele me
deu este casaco.”
“É bonito.”
Digo isso antes mesmo de ver o casaco, mas, depois que paro para
olhar, percebo que realmente é bonito, muito bonito mesmo, e que nunca
a tinha visto com ele. Deve ter sido mais um de seus achados na caçamba
da Warren, se bem que, não, parece novinho em folha. A gola é revestida
de pele.
“Isso aí é pele de verdade?”
“De coelho”, responde ela, e solta a fumaça pelas narinas como um
dragão. “Ele mesmo esfolou. Não precisa ficar tão horrorizada, Smackie.
Isso é normal na Europa. Enfim, o coelho levava uma vida boa antes de ser
abatido. Um montão de grama e passeios no Bois de Boulogne ou algo
assim.”
Ela sorri para mim, os olhos faiscando.
“Ah, aliás, como foi sua festinha do sexo?”
“Ok.”
“Legal.”
“Quer dizer, foi bem patético”, acrescento. “Nem pretendo voltar.
Nunca mais.”
Ela olha para mim.
“Você sabe que pode se divertir sem mim, né?”
“Sei”, respondo. “Mas não me diverti mesmo. Nem um pouquinho.”
Ava me encara até eu desviar o olhar.
Silêncio.
Quando volto a olhar para ela, seu rosto está virado para a lua, com um
sorriso sereno nos lábios como se ela fosse sua nova melhor amiga, que lhe
contava as coisas mais incríveis do mundo, afinal, nunca a trairia por causa
de umas vadias idiotas. Eu nunca chegaria aos seus pés. Nem adiantava
tentar.
“Eu senti mesmo a sua falta esta semana. Achei que você estava
chateada comigo.”
“Por que você acharia isso?”
“Sei lá.”
“Só porque você foi àquela festinha patética?”
Quando ela diz isso em voz alta assim, parece de uma estupidez sem
tamanho.
“Não. Sei lá. Talvez”, respondo.
Ava ri e balança a cabeça.
“Não seja idiota.”
Depois se vira em direção à lua.
“Ao contrário das suas novas amigas, eu sou uma mulher adulta.”
“Eu sei.”
“Também tenho minhas coisas.”
Ela olha para a rua como se um táxi fosse se materializar a qualquer
momento e a levar para longe dali. Está tudo escuro e vazio, com exceção
de um grupinho de estudantes assustadas que andam com pressa pela
calçada, de cabeça baixa, as bolsas de marca cintilando no escuro. Devem
estar a caminho do único bar legal no centro da cidade.
O tango fica mais alto lá dentro.
“É melhor a gente voltar”, sugere Ava, seguindo em direção à porta.
“Desculpe por ter ido”, deixo escapar. “Eu preferiria mil vez ter ficado
com você.”
E é verdade. Tão verdade que nem consigo olhar para ela.
“Você quer que eu fique brava com você? É isso?”
“Não”, respondo.
“Porque eu posso ficar, Samantha. Como você se atreve?”
“Ava.”
“Por que, ah, por que você me abandonou por três horas?”
“Pode parar.”
“Sabia que eu quase morri? Na verdade”, ela se vira para me olhar,
“estou mortinha.”
“Pare com isso.”
“Ah, sim. Agora eu sou um fantasma, Samantha. Morri de desgosto.
Morri de tristeza. Está na autópsia. E é tudo culpa sua. Minha lápide diz:
‘Amiga abandonada por uma noite’. Nem convidei você para o velório
porque achei que você nem iria ligar.”
“Ava, por favor, pare…”
Ela chega ainda mais perto e envolve meu rosto com as mãos. Sinto
seus dedos gelados, macios e fortes através das luvas de renda que
arranham minha pele. Ava tem cheiro de folha molhada, lenha e chá-verde.
Seu cabelo acaricia meu rosto como plumas platinadas. Vejo a maquiagem
borrada e assustadora em seus olhos, tanto o castanho como o azul
perfurando meu crânio. Estamos balançando de leve, como se
estivéssemos prestes a dançar.
Na primeira vez que fomos à aula de tango, chegamos atrasadas e todos
os homens já tinham par. Então a professora disse: “Ei, vocês duas!
Formem dupla! E se revezem para conduzir”.
“Quem vai conduzir primeiro? Eu ou você?”, perguntei a Ava.
“Tanto faz”, respondeu-me ela. “Nós duas podemos conduzir.”
“Tudo bem”, concordei, sem saber o que fazer. Então eu meio que
conduzi e fui conduzida ao mesmo tempo. Ava me olhava com um ar
sonhador, feliz, como se dissesse “Que gostoso, que divertido, não acha?”,
mas eu não sabia para onde olhar, então mantive os olhos fixos no brinco
de pena de pavão pendurado em sua orelha esquerda. Parecia até que eu
estava sonhando.
Agora estou olhando para aquela pena outra vez, mas não parece um
sonho.
“Samantha”, diz Ava, “eu não ligo, tá? Realmente não ligo. Estou pouco
me fodendo se você quer ir a uma festa pretensiosa para confraternizar
com bonobos. Não dou a mínima para o que você faz ou para onde vai,
entendeu?”
De repente, sinto todo o ar se esvair dos meus pulmões.
“Entendi.”
Ela olha para mim.
As lágrimas começam a escorrer pelo meu rosto.
“Smackie”, chama ela baixinho.
Mas já estou indo embora, primeiro hesitante, depois correndo.
Mesmo que a noite me assuste. Mesmo que eu a ouça chamar meu nome
enquanto mergulho na escuridão da rua. Eu a ouço me dizer para voltar,
mas não olho para trás. Quero mostrar a ela que não tenho medo. Não
tenho medo do homem esquisito que de repente se aproxima de mim e
grita: “sozinho, estou tão sozinho!”. Sou capaz de atravessar a noite sem
ela. Com passos apressados. Com passos galopantes. Sinto o celular
vibrando no bolso. Pego para ver, jurando que é ela, que está pedindo:
“Volte aqui”. Que não foi isso que quis dizer. Mas na tela vejo um número
que reconheço vagamente. Palavras ladeadas por tulipas e fantasmas de
braços abertos.
Vc vem hj? :D
11

“Samantha”, começa Cupcake, segurando meu rosto com tanta força, que
sinto que vai afundar. “Você iria ficar muito brava se a gente fizesse uma
trança no seu cabelo?”
Ela está com um vestido de gola Peter Pan que, segundo me contou,
foi comprado em uma loja on-line chamada “Ela só quer causar”. Um
protetor labial cor de pêssego que, bêbada como estou de ponche das
Bunnies, eu a deixo espalhar nos meus lábios com seu dedinho perfumado.
Estamos na sala de estar de Boneca Sinistra, que está todinha decorada
como um baile de formatura do ensino médio. Lindos enfeites de papel
crepom pendurados no teto. Uma torre de bolinhos e uma tigela de ponche
acomodadas sobre a toalha branca da mesa. Kate Bush ressoa em todos os
alto-falantes. “Wuthering wuthering wuthering heights.” Um globo de
discoteca rodopia devagarinho acima de seus penteados de inspiração
arturiana.
Quando abriram a porta para mim, estavam usando vestidos em tons
pastel com bainhas esvoaçantes. Um ramalhete de flores atado ao punho.
“Porque hoje é o baile de formatura, não sabia? E o tema é Esses sonhos.”
“Todos os alunos de mestrado organizam um, Samantha. Você não sabia? É
tradição. Além do mais, a gente queria uma desculpa para usar isto aqui”,
dizem elas, agitando as mãos enluvadas. “Não avisamos nada, Samantha,
porque, se a gente tivesse contado antes, bem…”
“Achamos que você não iria querer vir.”
“Mas você veio.”
“E estamos muito felizes por isso.”
“O problema é que você não está arrumada para o baile.”
“Podemos arrumar você?”, elas me perguntam, já me puxando em
direção ao quarto. “Aliás, a gente viu um penteado na internet que
combinaria taaanto com seu rosto. Sério. Você se importa? Não mate a
gente.”
Penso em Sissy Spacek coberta de sangue de porco enquanto vejo
Boneca Sinistra vasculhar o guarda-roupa em busca de um vestido que,
segundo ela, vou amar tanto que vou querer me casar com ele. Dou uma
espiada no quarto dela, as paredes forradas com sua coleção de máquinas
de escrever e inúmeras ilustrações de lobos e outras criaturas de contos de
fadas, além de um altar de onde sobe uma fumaça com cheiro esquisito.
Tomo mais um golinho de ponche. Penso: Isso até que é legal, não é? Suas
mãos afagam meu cabelo, trançando-o em um penteado de aspecto
medieval. Não seja tão ríspida e arrogante, Samantha, digo a mim mesma.
Não seja tão desconfiada. Elas só devem estar tentando ser legais. É o jeito
delas. Seja legal também.
“Obrigada por fazerem isso”, agradeço, com os olhos fixos no espelho
enquanto observo o reflexo de Cupcake, que, ligeiramente bêbada, trança
meu cabelo em um penteado bem parecido com o delas.
“Penteados infernais”, minha mãe os chamava, os preferidos das noivas
e formandas alucinadas, a cruz que ela tinha que carregar — e eu também,
já que às vezes servia de cobaia. As clientes do salão não tinham nada a ver
com as Bunnies, é claro — eram muito mais pobres e não sabiam nada de
latim, teoria da abjeção ou alaúde —, mas traziam no rosto a mesma
vontade intensa de passar por uma transformação impossível, uma
expressão que me dava tanta vergonha que sempre me fazia desviar o olhar.
A mesma expressão que, para meu desespero, vejo estampada no meu
rosto agora.
“Não foi nada, amiga. Estamos felizes por você ter vindo.”
Boneca Sinistra observa Cupcake trançar meu cabelo e sorri. Percebo
que suas mechas ruivas foram presas em um coque apertado no topo da
cabeça e adornadas por uma fita, deixando algumas partes do couro
cabeludo rosado à mostra.
“E aí, Samantha? Como foi seu baile de formatura?”, pergunta Boneca
Sinistra. “Você odiou?”
Ela faz uma careta de repulsa que me instiga a fazer o mesmo.
“Porque a gente imagina que você tenha odiado.”
“Ou que fosse descolada demais para ir.”
“Não, eu não odiei.”
Só detestei com todas as minhas forças.
“Você arranjou um acompanhante?”, pergunta Cupcake, puxando meu
cabelo com tanta força, que uma lágrima escorre pela minha bochecha.
“Fui com a minha melhor amiga da época.”
Alice. Uma garota gótica de olhar preguiçoso com quem eu vivia
matando aula para ir à biblioteca ler livros de terror. No dia do baile, ela
apareceu na minha casa com um vestido cheio de rosas e caveiras e uma
tiara do Dia dos Mortos. Eu usei um vestido preto de seda com estampa de
dragão que me pareceu o ápice da ousadia quando o encontrei no brechó.
Mas, quando o vesti naquela noite e vi meus ombros à mostra, as chamas
do dragão enroladas no meu decote, me senti estranhamente tímida. Passei
a noite de braços cruzados para tampar a língua bifurcada do dragão, morta
de vergonha. Ava teria tirado de letra, é claro, e o usado de cabeça erguida.
Com saltos pontiagudos. O batom Lady Danger nos lábios. E uma piteira
que eu jamais teria coragem de usar. Penso em Ava parada no escuro do
lado de fora do estúdio de tango. Smackie. Desculpe. Volte. Ela não me
disse para voltar?
“Ah”, responde Cupcake. “Que legal. Mas também é um pouquinho
triste, né?”
“E aquele cara gostoso sobre quem você comentou outro dia?”,
pergunta Boneca Sinistra. “Aquele por quem você era totalmente obcecada
no ensino médio? Com quem você vivia morrendo? Ele realmente existiu?”
Olho para seu rostinho inquisitivo em formato de coração.
“Ele era meio que uma mistura de várias pessoas”, minto.
“Ah. Ele parecia tão real. Como era o nome dele mesmo? Rob de quê?”
Quero arrancar aquele nome, que escrevi tantas vezes em tantos
cadernos durante o ensino médio, de sua boquinha arqueada.
“Rob Valentino?”, arrisca ela.
“Valencia”, corrige Cupcake. “A gente stalkeou suas redes sociais.”
“Espero que você não ache isso esquisito”, diz Boneca Sinistra.
“Não.”
É claro que é esquisito pra cacete. As quatro agrupadas ao redor de
uma tela, bebericando champanhe e comendo bolinhos enquanto
esmiuçavam cada foto minha que conseguiam encontrar. Ainda bem que
nem tenho tantas assim.
Pelo vão da porta, vejo a Duquesa e Vinheta na sala de estar, dançando
e rindo com quatro caras incrivelmente bonitos. Eles me encaram
intensamente com olhos vazios do mesmo tom azul-esverdeado dos lagos
glaciais.
“Kira, será que dá para fechar a porta?”, pede Cupcake. “Preciso me
concentrar no penteado dela.”
Sinto Cupcake passar os dedos pelo meu cabelo, os movimentos
suaves como se eu fosse um cavalo arisco que ela pretende domar. Uma
parte de mim quer afastar a mão dela com um tapa, mas me limito a fechar
os olhos.
“É o mesmo Rob Valencia que você tem adicionado no Facebook?”,
pergunta Boneca Sinistra enquanto vai fechar a porta. “Aquele com
calvície precoce?”
“É.”
Ele quase nunca posta nada. E, quando posta, é sempre
decepcionante. Uma música chata para celebrar a chegada do fim de
semana. Uma foto de um drinque também para celebrar a chegada do fim
de semana. Uma foto dele com os colegas de trabalho em uma mesa
abarrotada de comida mexicana. Acho que é vendedor, mas não o
acompanho o suficiente para saber de quê. A foto de perfil é a mesma
desde sempre: ele diante da escadaria de uma igreja espanhola, com o
colarinho da camisa desabotoado, parecendo tão alto quanto nos meus
sonhos.
“Bom”, retoma Cupcake, e começa a massagear minha nuca, “ele
realmente se parece com Zeus.”
“Samantha”, começa Boneca Sinistra, pousando a mão no meu punho,
“tenho certeza de que Rob queria muito ir ao baile com você.”
“É claro que queria. Só deve ter ficado muito intimidado.”
Cupcake volta a puxar meu cabelo, trançando-o no que parecem nós
muito elaborados.
“A gente também ficou no ano passado”, acrescenta Boneca Sinistra.
“Sério?”, pergunto, surpresa, enquanto tento ignorar a dor.
Penso em tudo o que aconteceu no ano passado. Todas as vezes que
elas me encararam do outro lado da sala. As vezes que esperamos que o
Leão chegasse para abrir a porta da Caverna antes do seminário. Nessas
ocasiões, elas se sentavam no chão do corredor, escoradas na parede como
se não tivessem forças para ficar de pé, como se as pernas tivessem cedido,
amontoadas em volta do relógio de pêndulo como bonecas que alguém
esqueceu de guardar. E sorriam entre si. Conversavam baixinho sobre o
que haviam feito na noite anterior, usando as palavras difíceis do jargão
acadêmico. E mergulhavam em silêncio quando eu chegava perto. Erguiam
o olhar, mais e mais, para me ver lá no alto. De jeans e alguma camiseta
com estampa de animal selvagem. Se elas achavam que era uma escolha
proposital para intimidá-las, estavam certas. Às vezes, alguma delas —
quase sempre Cupcake ou Boneca Sinistra — me dirigia a palavra
enquanto a Duquesa e Vinheta trocavam olhares.
“Adorei sua bolsa, Samantha”, dizia Boneca Sinistra. “Onde você
comprou?”
Eu não sabia muito bem como reagir. Até parece que ela iria gostar da
minha bolsa.
“Ah, numa lojinha aí. Fica num porão.”
“Ah. Legal.”
“Adorei seus brincos”, dizia Cupcake. Mesmo que eu não estivesse de
brinco.
O que eu deveria responder? Não sabia, então só ficava a encarando
em silêncio.
“O que você fez ontem à noite, Samantha?”
Será que era pegadinha?
“Que legal”, elas respondiam a qualquer coisa que eu murmurasse de
volta. E depois assentiam e trocavam olhares entre si.
“Seríssimo”, responde Boneca Sinistra, tirando-me do meu torpor.
“Ainda estamos um pouquinho intimidadas. Você é tão… Enfim, aposto
que ele passou esses anos todos fantasiando com você.”
“Nossa, com certeza. Não tem a menor dúvida.”
Cupcake puxa e torce meu cabelo com tanta força que meu crânio
parece em chamas. Cada nervo do couro cabeludo clama por ajuda.
“Talvez ele tenha morrido por sua causa. Já pensou?”
“Ele não morreu, Kira. Pare de tentar transformar tudo em uma das
suas histórias de fantasma. Ele só deve estar de coração partido porque
tem uma vida patética. Mas aposto que, se estivesse aqui agora, ele diria:
‘Ó, Samantha, minha querida, dance comigo. Tenha filhos comigo, por
favor’.”
Ela vira minha cabeça dolorida na direção do espelho, e ali vejo o
reflexo de uma mulher que não reconheço. A franja dela foi penteada para
trás. O cabelo dela parece o das rainhas de mundos de fantasia. Os olhos
estão lacrimejados de dor.
“Aimeudeus, está incrível”, comenta Cupcake, ofegante. “Eu sou
incrível. O que você acha?”
A pergunta não foi direcionada a mim, e sim a Boneca Sinistra, que se
vira para mim com a cabeça pendida para o lado.
“Acho que, se Rob Valencia estivesse aqui agora, ele iria morrer.
Principalmente se você usasse isto aqui.”
Ela me entrega um vestido todo estampado com garotas louras
decapitadas com penteados volumosos, as cabecinhas sorridentes
flutuando ao lado dos corpos.
“São Marias Antonietas”, diz.

Elas me levam para a sala de estar, onde a Duquesa e Vinheta rodopiam na


pista de dança improvisada, conduzidas por seus lindos acompanhantes.
Nada parecidos com os alunos deprimentes que lotam a aula de tango.
Eles não têm aquele brilho masturbatório no rosto. Nem usam camisas
desbotadas. Não há uma luxúria desesperada em seus olhos de lago glacial.
Quando me vê, a Duquesa leva a mão enluvada ao coração. Vinheta apenas
sorri.
“Está perfeita, né?”, pergunta Cupcake.
“Muito perfeita”, dizem elas.
“Samantha”, chama a Duquesa, tomando minhas mãos como se eu
fosse uma enferma, “nós temos uma surpresa para você.”
Imagino uma caixa toda decorada e cheinha de vermes.
“Que tipo de surpresa?”
Elas trocam um olhar, depois sorriem.
“Vai se acomodando aí, que a gente já volta, tá?”
“Esperem, o que…”
“Nossos amigos vão cuidar de você. Hugo, Beowulf, Blake, Lars, esta é
Samantha. Sa-man-tha.”
A Duquesa repete meu nome como se estivesse falando com surdos,
estrangeiros ou crianças.
“Samantha”, todos eles repetem de um jeito inquietante.
E ficam ali me olhando enquanto as Bunnies desaparecem, aos risos,
por uma porta à direita do quarto de Boneca Sinistra.
Passamos um tempo ali, eu e os caras. A sala parece rodopiar. Kate
Bush ainda canta “Wuthering Heights”. Quanto tempo tem essa música,
afinal? O globo de discoteca rodopia a esmo no teto. Tomo algumas goladas
de ponche. Depois os observo mais de perto. Beowulf parece um jovem
Marlon Brando, e os outros três lembram qualquer ator de série
adolescente. Os quatro estão vestindo ternos azul-escuros. E os quatro
encaram meu cabelo como se fosse um vulcão prestes a entrar em
erupção.
“Então, vocês também estudam na Warren?”, pergunto, entornando o
restinho do ponche no copo.
Eles se entreolham. Um deles, acho que Lars, tosse na minha cara.
Em seguida, Beowulf diz, em um tom melancólico:
“Sua beleza é tão labiríntica e intrincada quanto uma frase de Proust.”
Começo a rir, mas Beowulf não parece estar brincando. Ele ergue o
copo em um brinde, e percebo que está tomando o ponche de canudinho.
E que está vestindo luvas pretas de couro.
“Melanie Shingler é uma vadia comparada a você”, declara o garoto ao
lado dele. Blake. “Perna torta. Maquiagem feia. Eu não conseguia enxergar
na época porque era um idiota, mas fiquei mais esperto desde então.”
Ele também ergue o copo com canudinho para mim, como em um
brinde solene. Assim como o outro, vejo que está com luvas de couro.
Todos eles estão.
De repente, ouço gritos vindos do andar de cima.
“Jesus. O que foi isso?”
“Samantha”, retoma Beowulf. “Conte-nos mais sobre você, Samantha.”
“Samantha, conte-nos tudo, Samantha.”
“Samantha, queremos ouvir você.”
“Samantha”, diz Blake, segurando minhas mãos, “estamos morrendo de
vontade de saber.”
E ele parece mesmo à beira da morte. Deve estar bêbado.
Ouço mais gritos vindos lá de cima.
“Vocês não ouviram isso?”
Eles se entreolham. Uma confusão genuína enruga suas testas.
“Se ouvimos?”
“Os gritos?!”
“Sua beleza é como um grito, Samantha”, declara Beowulf, acariciando
meu rosto com a mão enluvada, como se minha pele fosse um bichinho
delicado.
As luzes se apagam. Depois se acendem. Um farfalhar. Um baque.
Depois silêncio. O trepidar de saltos altos descendo as escadas. Beowulf
afasta a mão e Blake esmaga o copo em seu punho.
As quatro irrompem pela porta lateral como um enxame de penteados
e tafetá.
“Oi”, dizem.
Estão um pouco desalinhadas. As orelhas de gato da Boneca Sinistra
estão tortas, e ela agarra o braço de Cupcake como se estivesse perdida na
floresta, sendo que estamos no meio de sua sala de estar. Tem uma
manchinha escura na luva de Cupcake, e sua pele tem um brilho rosado
como se ela tivesse acabado de se masturbar.
“Onde vocês estavam?”
Vinheta enfia um punhado de batatinhas na boca, depois as engole. E
então me encara com seus lindos olhos de vai-se-foder.
“Surpresa”, diz.
“Não podemos contar ainda”, explica Cupcake, como se fosse a
tradutora da outra.
“Achei até que tinha escutado uns gritos.”
“Fui eu”, confessa Boneca Sinistra. “Eu grito às vezes.”
Desajeitada, começa a servir mais ponche no meu copo, depois enche
o dela.
“É tipo um distúrbio nervoso.”
Elas parecem inquietas. Empolgadas. E percebo que não tiram os
olhos da porta da frente.
“O que está acontecendo?”, pergunto.
“Nada, nada”, isso vem de Cupcake, que está com os nós dos dedos
brancos de tanto contrair o punho, os olhos colados na porta da frente.
Um toc, toc na porta.
As quatro se entreolham. Por fim, a Duquesa diz:
“É melhor você ir lá ver quem é, Samantha. Acho que você tem um
convidado.”
E então olha para mim como se eu fosse uma criancinha doente, e ela,
uma enfermeira prestes a me dar o maior pirulito da história.
“Venha”, chama. “Eu vou com você.”
Então se levanta, estende a mão para mim e sorri. Ela nunca me olhou
com tanta gentileza. Por um momento, até me lembra Ava.
Aceito sua mão, gelada e lisa como uma pedra, e caminhamos juntas
até a porta.
“Abra”, instrui ela, apontando para a maçaneta como se fosse um
presente.
“O que está acontecendo?”
“Só abra a porta, Samantha. Confie em nós desta vez, ok?”
Seu rosto parece dizer: “Já passou da hora de você confiar na gente,
hein?”. Parece dizer que esse tem sido o problema até então. Minha
desconfiança.
Abro a porta.
“Samantha Heather Mackey”, diz ele.
Meu coração explode no peito. Sinto vontade de gritar, mas me falta a
voz. Quero correr, mas minhas pernas estão bambas. Ele não mudou nada.
Ainda meio calvo. Olhinhos pequenos, que no meu último diário descrevi
como fumegantes. Alto e forte em seu terno azul-escuro. Será que é o
mesmo que usou naquela noite? Naquela em que fui embora antes de a
quarta música acabar? Quando o vi dançar com Alyssa Fisher enquanto eu
roía um pãozinho duro a duas mesas de distância, acompanhada de Alice.
O último cara cujo nome rabisquei em um caderno. Várias e várias vezes
com uma esperança desvairada.
“Rob Valencia.”
“Samantha Heather Mackey”, repete ele. “Oi.”
“Minha nossa, o que você está fazendo aqui?”
Ele olha para a Duquesa.
“Nós que convidamos”, explica ela, com um aceno de cabeça. “E a
gente espera que você não fique brava, Samantha. Nós ligamos para Rob e,
quando ele descobriu que você estaria aqui, veio na hora. Não foi?”
Rob também assente. Depois segura minha mão e percebo que
também está usando luvas pretas de couro.
“Eu vim na hora, Samantha”, declara ele, e aperta minha mão.
Rob Valencia está segurando minha mão, diz um letreiro gigante na
minha cabeça, que pisca sem parar.
“Nem acredito que você está aqui mesmo.”
“Pode acreditar, Samantha”, responde a Duquesa.
“O que você está fazendo aqui?”, pergunto outra vez.
Rob Valencia torna a olhar para a Duquesa.
“Você está na cidade a trabalho, não é?”, continua ela.
“Isso, estou na cidade a trabalho”, concorda Rob. “Agora eu sou
empresário, Samantha. Viajo bastante e sou muito bem-sucedido.”
“Que baita coincidência”, comenta a Duquesa, com um suspiro.
Depois olha para mim e acrescenta: “Não acha?”
Rob concorda com um aceno.
“Bom, vou deixar vocês dois a sós”, sussurra ela, e dá um tapinha nas
costas de cada um antes de me dar um apertãozinho no ombro.
E aí ela se afasta.
Rob Valencia ainda está segurando minha mão.
“Samantha, eu adoraria entrar um pouco”, diz ele. “Você vai me
convidar para entrar, Samantha?”

Estou sentada ao lado de Rob Valencia na sala de estar de Boneca Sinistra.


Espio o espelhinho na parede algumas vezes para confirmar que não estou
imaginando, que Rob Valencia não é uma miragem. Ele está mesmo aqui.
Sentado ao meu lado no sofazinho. Um homem de carne, osso e terno
azul. Um pouco parecido com Zeus. Bebi mais ponche. Esqueci que sou
uma mulher de 25 anos. Rob Valencia tem nas mãos meu coração de
dezessete anos, todo torto e rabiscado com tinta roxa. É como a Samantha
Heather Mackey adolescente enxergava o próprio coração. E bem no
centro está o nome de Rob Valencia, escrito em letras tortas e sangrentas.
“Nem acredito que você está aqui”, ouço-me dizer com uma voz que
não parece a minha. É uma voz cheia de estrelinhas reluzentes, com olhos
de desenho animado com cílios fartos.
Ele sorri para mim e eu vejo as ruguinhas nos cantos dos olhos, aquelas
que já me deixavam louca de desejo na adolescência. Nunca liguei para o
fato de Rob Valencia já ser calvo aos dezesseis anos, e vou explicar por quê.
Rob Valencia transbordava carisma. E, com mais de um metro e noventa
de altura, é o único homem no mundo que já me fez me sentir pequena.
“Você está surpresa”, responde ele, com um sorriso.
“Estou mesmo”, concordo, um pouco tonta de tanto ponche. “Muito
surpresa. Nem acredito.”
“Pois acredite, Samantha”, insiste ele. “Por favor. Assim o sexo vai ser
mais rápido.”
O sexo vai ser mais rápido?
“Eu…”
Ele coloca um dedo enluvado sobre meus lábios.
“Sshhh”, pede. “Quietinha, Samantha. Eu preciso dizer uma coisa.
Sinto que falta algo na minha vida desde aquela noite, sete anos atrás,
quando fui ao baile com aquela vagabunda qualquer, tão irrelevante para
mim que já nem lembro o nome dela.”
“Alyssa Fisher”, lembro a ele.
“Alyssa não sei das quantas”, continua Rob. Depois solta um suspiro e
aperta minha mão com mais força. “Sabia, Samantha, que quando eu me
masturbo não fico pensando que trepei com ela naquela limusine
alugada?”
Nego com a cabeça.
“Mas é verdade”, afirma ele.
Depois nos serve um pouco de ponche, que bebo em duas goladas.
“Sabe no que eu penso quando me masturbo, Samantha?”
Nego com a cabeça outra vez, e meu corpo inteiro pinica como se
estivesse coberto de alfinetes. Porque é impossível. Com certeza não vai
dizer que…
“Eu penso que estou morrendo com você, Samantha. Três meses de
ensaio. Cinco apresentações noturnas e uma matinê. E ainda hoje é o
momento mais erótico que já vivi.”
Rob Valencia me encara com um olhar que eu não me lembrava de ser
tão fumegante. Uma onda de eletricidade percorre meu corpo, descendo
pelos meus braços e pernas. As borboletas eclodem nas minhas entranhas
e saem voando, as asas batendo em frenesi contra meu peito. As tranças
intrincadas no meu cabelo parecem prestes a irromper em chamas.
“Sério?”, pergunto baixinho.
“É sério, Samantha. Para ser sincero, enquanto eu dançava com aquela
fulaninha qualquer, enquanto eu transava com outras mulheres em todos
os lugares possíveis e imagináveis, mas principalmente no meu carro, eu
sabia que nada daquilo era erótico de verdade. E aí pensava que era
infinitamente melhor, infinitamente mais sexy, morrer eletrocutado com
Samantha Heather Mackey. Porque, quando morríamos, era como se
estivéssemos trepando, não era, Samantha?”
Concordo com a cabeça. Era. E como era.
Ele segura minha mão outra vez e eu estremeço.
“Samantha, sempre achei muito sexy o fato de você ser tão alta que
parece um poste, e nem consigo descrever como gostava do seu jeito
sombrio de se vestir. Eu passava o dia me segurando para não chupar o
broche de caveira que você usava no peito. Mas sempre consegui me
conter. Eu ficava intimidado, já que você era tão…”
“Tão o quê?”, pergunto com um sussurro.
“Tão formidável. Hostil. De um jeito que chegava a assustar. Você
estava sempre de cara amarrada. A gente passou o ano inteirinho com
medo de você, Samantha Heather Mackey. Mas nós sabíamos qual era a
verdade por trás.”
“Nós? Do que você está fal…”
“Nós sabíamos que, no fundo, você não passava de uma garota
solitária. Não passava de uma garota triste.”
Ele estende o braço e, com delicadeza, envolve meu rosto com suas
mãos enluvadas. Depois me lança um olhar cheio de ternura com seus
olhos de fumaça. Os olhos fumegantes de Rob Valencia.
“Não é verdade, Samantha?”
Começo a chorar. Deve ser por causa do ponche. Choro no ombro
largo de Rob Valencia, duro feito pedra, e percebo que tem o mesmo
cheiro que tinha sete anos atrás, quando nos deitávamos lado a lado no
palco coberto de serragem. O mesmo cheiro de suor adolescente, incenso
e carne assada. Mas agora tem algo além, algo que lembra mistura pronta
para bolo.
“Samantha”, começa ele, “não tem por que chorar.”
“Quê?”
“No fim das contas, nós achamos você vulnerável e desesperada, mas
de um jeito cativante.”
De canto de olho, vejo a Duquesa se aproximar e deslizar uma caixinha
transparente pela mesa. Há um ramalhete de flores lá dentro. Um adorno
de punho. Parecem orquídeas. Brancas e sedosas, com um miolo que
parece uma boquinha roxa cheia de veias rosadas.
Ele abre a caixa e equilibra o ramalhete na palma da mão como se
fosse um passarinho. Lança um olhar faminto para as flores. Por um
instante, chego a pensar que ele vai enfiar tudo na boca.
Mas então a Duquesa chega mais perto e dá um tapinha no ombro
gigantesco de Rob Valencia, que segura minha mão e encaixa o adorno no
meu punho. Uma música familiar começa a tocar, mas não consigo
lembrar o nome.
“Samantha”, chama ele, se levantando, “você quer dançar com a
gente?”

Dançar com Rob é totalmente diferente de dançar com Diego. Sinto seu
peitoral de jogador de futebol-americano. Os ombros largos. As mãos
grandes e confiantes que deslizam pelas minhas costas como se eu fosse
uma coisinha minúscula, e não uma mulher de um metro e oitenta. Tudo
nele parece sólido como tijolos ou pão velho. Tão diferente de Ava, com
suas mãos enluvadas e estrutura franzina. O cabelo platinado roçando meu
ombro. Seu perfume de folhas caídas e lenha não se parecia em nada com
o aroma doce e açucarado de Rob Valencia, o cheiro de animal queimado
que emanava de sua pele.
Por cima do seu ombro, vejo as outras Bunnies dançando com seus
respectivos acompanhantes. Estão todas de olhos fechados, menos a
Duquesa, que me observa com atenção. Quando nosso olhar se encontra,
ela dá uma piscadinha. Sorrio para ela. O lindo cômodo começa a girar.
Das janelas abertas sopra uma brisa suave de outono que agita as cortinas
de seda.
Fecho os olhos e escuto alguém cochichar no meu ouvido, uma voz
feminina e aveludada que diz: “Flutue, flutue, não é gostoso?”.
“Não é gostoso, Samantha?”, pergunta ele.
Muito gostoso. Exceto pelo cheiro cada vez mais forte de açúcar
queimado. Olho para Rob. Não. Ele é Rob Valencia. Estou dançando com
Rob Valencia. Em carne e osso.
Penso em Ava sozinha lá fora, fumando na escuridão de seu telhado, ou
quem sabe lendo em sua poltrona de veludo vermelho, mas a imagem
parece muito distante. Só consigo distinguir sua silhueta. Mal vejo seu
rosto.
E de repente escuto o som de mastigação. O ranger de dentes
pontuado por um ou outro grunhido.
Abro os olhos. Cupcake ainda dança com o galã de série, a cabeça
encostada no ombro dele, os olhos fechados, os lábios entreabertos em
êxtase. Enquanto isso, o rapaz mastiga a alcinha alaranjada do vestido dela,
os olhos abertos, porém vazios. Quando me vê, deixa cair a tira de tecido,
mas logo a abocanha outra vez e retoma a mastigação. Está com uma
expressão vidrada, satisfeita.
Viro-me para Boneca Sinistra e percebo que seu acompanhante está
fazendo a mesma coisa. Só que, em vez de tecido, mastiga uma mecha do
cabelo dela.
Quando me viro na direção da Duquesa, eu a vejo com a cabeça
aninhada no ombro de Beowulf, que mordisca o colar de pérolas em seu
pescoço. Ela nem parece notar.
E lá está Vinheta, bêbada, equilibrada no peitoril da janela como uma
bailarina de caixinha de música, com uma cerveja na mão enquanto seu
acompanhante descansa em seu colo, ocupado em mastigar suas saias de
crinolina.
E de repente eu sinto. A mordida no meu punho. Rob Valencia está
curvado sobre minha mão, os dentes cravados nas orquídeas. Por um
instante, apenas me olha como um cachorrinho que foi pego no flagra.
Depois volta a mastigar.
Tento me desvencilhar, mas ele agarra meu punho com força e começa
a devorar as flores com ainda mais fúria.
“Você está maluco? Pare já com isso! O que está fazendo?!”
Mas ele continua a mastigar com cada vez mais afinco, os olhos
estreitos e escuros como fendas.
“Já falei para parar!”
Dou um tapa no rosto dele. Mais forte do que pretendia. O estalo me
surpreende, mais agudo do que eu imaginava.
A música para. Todo mundo para de dançar e olha para mim. Rob me
encara, em choque. Ele leva a mão enluvada ao rosto. Os olhos turvos. O
nariz franzido. A boca cheia de flores mastigadas se abre para falar…
“Olhe só, me desculpe”, interrompo. “Não foi minha intenção…”
“Brutal”, diz ele, esfregando a lateral do rosto. “Hostil. E dando muita
importância à sua própria estranheza. E sombrio. Ah, tão sombrio.”
“Quê? Do que você está falando?”
E de repente seu olhar se enche de ódio.
“Você se acha melhor do que todos nós, Samantha. Mas saiba que não
é melhor porra nenhuma.”
“Quê?”
Ele agarra meu rosto e começa a sibilar, a boca espumando, ainda
cheia de flores.
“Nós tentamos pentear seu cabelo, mas você não deixou. Convidamos
você para um monte de coisas, mas você nunca foi. Chamamos você para
almoçar bentô, mas você disse: ‘De jeito nenhum, sou ocupada e
importante e boa demais para almoçar com vocês’. Mas você não se lembra
de nada disso. Só lembra que Samantha Heather Mackey é a vítima.
Samantha Heather Mackey é a sofredora. Samantha Heather Mackey tem
um coração abarrotado de sentimentos que ninguém mais sente, só ela.”
O cheiro de açúcar queimado se torna insuportável e me faz pensar em
um polvo soltando tinta. Tento me desvencilhar do aperto de Rob, mas ele
começa a gritar. Apenas abre a boca e se põe a berrar mais e mais, olhando
para mim como se eu fosse a coisa mais assustadora que já viu.
Em seguida os outros caras também começam a berrar. Ficam parados
ali, gritando para o teto. O barulho é ensurdecedor. Cubro os ouvidos com
as mãos enquanto as Bunnies tentam convencê-los a parar.
Elas agarram Rob e o puxam em direção a uma porta, não a da frente, e
sim a que leva ao sótão. Mas ele está agitado demais para obedecer.
Balança a cabeça. Berra a plenos pulmões. Por mais que eu tenha tapado
os ouvidos, ainda consigo entender cada palavra.
“Samantha Heather Mackey acha que escreve tão bem! Samantha
Heather Mackey pode fingir que não, mas ela se acha boa demais para a
porra do mundo todinho! Samantha Heather Mackey adora bancar a
pobre, mas então por que age como se fosse uma princesa? Samantha
Heather Mackey transou com o professor! Chupou o professor! Porque
queria tratamento preferencial! Até parece que Samantha Heather Mackey
é alta assim de verdade, ela usa pernas de pau! Samantha Heather Mackey
usa pernas de pau para poder se achar superior a todo mundo! Ho, ho, ho,
ho, e ela adora cada segundinho! Samantha Heather Mackey acha que
temos tudo de mão beijada, que nascemos em berço de ouro, e que ela
passou a vida jogada na lama. Acha que ela não tem nada, nadinha mesmo,
e ainda acha que isso faz dela uma pessoa profunda. Isso não faz de você
mais profunda, Samantha Heather Mackey, só a deixa toda amarrotada e
cheirando a batata podre. Samantha Heather Mackey acha que entende
tudo, mas não entende as profundezas do coração humano. Não entende
as profundezas do nosso coração. Nosso coração nosso coração nosso
coração! Nós também lemos Jane Eyre, sua vadiazinha, e também lemos As
ondas, e, depois que lemos, saiba que passamos uns bons minutos
chorando.”
E então ele começa a chorar.
Vá embora, penso. Dê o fora daqui. Mas o cômodo gira e rodopia, e
percebo que não consigo sair do lugar, estou paralisada diante da raiva de
Rob Valencia. Diante daquela raiva sibilante, cuspida. De suas lágrimas.
Diante da visão das Bunnies tentando acalmá-lo. Do cheiro horrível e
sufocante de bolinhos queimados. Parece uma peça de teatro desastrosa.
Talvez acabe com Rob Valencia e eu nos estrebuchando no chão. Quase
tenho vontade de rir. Uma risadinha histérica escapa de mim como um
ataque de tosse.
E de repente a cabeça de Rob Valencia explode. Literalmente explode.
Há sangue e miolos por toda parte — em mim, nas paredes. Nas Bunnies
com seus garotos chorões. Fragmentos de crânio caindo como granizo no
assoalho de madeira. Seu corpo decapitado continua em pé, bem diante de
mim. E em seguida ele desaba no chão.
Ouço meus próprios gritos repuxando a pele do rosto.
Algo cai aos meus pés. Uma orelha. A orelha de Rob Valencia.
Desabo no chão. E aí continuo caindo e caindo e caindo sem parar. É
uma queda longa até o assoalho coberto de sangue e ossos. E, ao fundo,
ainda ouço aquela música que me pareceu tão familiar, a música que meu
coração de dezessete anos conhece tão bem, por mais que o nome tenha
me escapado, ela enfim se transforma em uma canção que eu finalmente
reconheço: “Slave to Love”.
12

Acordo em uma cama que não é a minha. Abro os olhos e vejo o pôster de
uma famosa atriz inglesa, abraçada com um homem vestido de pirata, os
dois envoltos por um redemoinho de fumaça. Ela o agarra como se sua vida
dependesse disso, a cabeça jogada para trás em êxtase. Ao lado do pôster
há um mural de cortiça cheio de fotos de uma garota ruiva sorridente junto
da família e de amigos. Ela posa em uma praia cheia de pedrinhas, no meio
de uma vinícola carregada de uvas, no topo de uma montanha, e, em todas
as fotos, a mesma expressão feliz, equilibrada. Ela me parece familiar,
muito familiar, e ainda assim não consigo associar um nome ao rosto.
Então me viro para uma janela com vista para folhas verdes e douradas.
Sou invadida por uma paz inexplicável. Observo os acontecimentos da
noite anterior bem de longe, como se os estivesse vendo do alto de uma
nuvem. Observo também que o colchão não é nem muito duro, nem muito
molenga. É a cama perfeita. Na medida certa. Cachinhos Dourados
poderia passar o resto da vida aqui. Poderia até se masturbar aqui.
Imagino-a nesta cama, se masturbando na cara dura enquanto os Três
Ursos assistem. Ela os observa através dos olhos semicerrados, como se os
desafiasse a lhe pedir que parasse. Mas os Ursos são educados demais para
dizer qualquer coisa. Começo a rir da cena. Ha. Hahaha. O edredom tem
cheiro de amaciante caro, como se fosse feito com pinheiros de verdade.
Parece até que estou no meio de uma floresta. Deitada em um leito de
musgo.
“Bunny?”
Viro a cabeça e vejo uma mulher sentada na beira da cama.
Abro um sorriso.
“Ava”, chamo. “Nossa, Ava. Ainda bem que você está aqui.”
“Quem é Ava?”
A silhueta se dissolve diante dos meus olhos, dando lugar a uma
mulher adulta com orelhinhas de gato. Minha alma grita e sai uivando do
quarto. Meu coração desaba no chão e se põe a chorar. Mas continuo onde
estou, na cama dela, enquanto sua mãozinha gelada acaricia meu rosto.
“Sou eu, a Kira”, repete ela várias vezes, porque eu não paro de
balançar a cabeça. Não e não e não. Ela não é a Kira. Esse não é o nome
dela. É outra coisa. Como é mesmo?
“Ki-ra.”
As lágrimas escorrem pelo meu rosto, ou ao menos acho que escorrem,
porque sinto a pele molhada. A noite de ontem volta em lampejos, como as
colagens de vídeo artísticas que Fosco às vezes projeta no telão da
Caverna, sequenciadas de modo a encorajar outras criações, a nos inspirar
em direção a uma grande epifania criativa. A cabeça sibilante e cuspidora
de Rob Valencia, meu amor adolescente. Os respingos de sangue nas
paredes. Uma luva manchada. Uma boca cheia de orquídeas. O miolo
rosado e venoso daquela flor, semelhante a uma boca pronta para um beijo.
E eu vejo tudo isso do alto de uma nuvem de algodão. Deixo escapar um
soluço de choro.
“Sshhh”, me tranquiliza ela. Depois me oferece dois comprimidos
clarinhos e um copo gigante com estampa de melancias sorridentes.
“Aqui, tome isto, Bunny”, instrui.
Olho os comprimidos na palma da mão dela. Parecem Tic Tacs.
“O que é isso?”
“Vai ajudar. Confie em nós.”
Eu os engulo com a ajuda do líquido açucarado no copo de melancias
sorridentes. Acho que é limonada. Limonada rosa. Ela fica olhando
enquanto bebo.
“Você está bem, Bunny?”, pergunta com uma voz que não tem nada de
infantil.
É uma voz grave, como a de uma jovem normal, a de uma mulher
normal e apreensiva que me olha como se eu estivesse prestes a entrar em
combustão espontânea.
“Estou, sim.”
Estou na minha floresta de pinheiros. Estou na cama perfeita que
roubei, com meus cachos dourados espalhados no travesseiro. Olho para a
janela outra vez e admiro as folhas verdes e douradas.
“Rob Valencia”, conto para as folhas. “A cabeça dele explodiu.”
Quando digo isso em voz alta, percebo como soa engraçado. Uma
risada escandalosa e estridente escapa de mim. Não consigo parar.
E de repente ela me dá um tapa bem forte. É o suficiente para eu calar
a boca. Em seguida, faz carinho na minha bochecha.
“Isso é o que você acha que viu, tá? Corta essa”, responde ela.
Corta essa. Penso em uma serra, a lâmina prateada e cheia de dentes
que corta tudo. Árvores. Mulheres. Animais de desenho animado. Granizo
de crânio. Chuva de cérebro. Uma orelha decepada ainda quente.
“Corta essa”, repito. “Corta essa. Corta essa, corta essa, corta essa,
corta…”
Ela me dá outro tapa, dessa vez mais forte.
“As coisas nem sempre são o que parecem, são?”
Observo suas orelhas de gato. Seus olhos dourados, suplicantes. As
melancias sorridentes do copo piscam para mim. A lâmina serrilhada se
dissolve em riachos de águas prateadas banhadas pelo sol. Eu flutuo em
meio às ondas.
“Bunny”, chama ela, “que tal almoçar com a gente hoje? Depois do
seminário. Está livre?”
Tento pensar em algum compromisso. Algo que realmente preciso
fazer, aí não teria que mentir. Alguém que preciso encontrar. Vasculho meu
cérebro em busca desse alguém, mas não o encontro. Cada contorno ali é
escuro, indistinguível, como se alguém tivesse apagado a luz. Tudo o que
vejo são folhas brilhantes.
“Estou livre, sim.”
“Vamos nos atrasar para a aula”, avisa ela, ficando de pé. “Você pode ir
de SafeRide comigo.”
“SafeRide”, repito. É o serviço de carona da universidade para os
estudantes que não se sentem seguros para ir ou voltar do campus. Olho
para o sol raiando lá fora. “Mas está de dia.”
Ela encolhe os ombros.
“Melhor prevenir do que remediar.”
Penso na cabeça de Rob Valencia. Os respingos de sangue na parede.
Tento gritar, mas tudo o que sai dos meus lábios é um leve suspiro.
“Você precisa se arrumar. Separei um vestido para você, porque o de
ontem está… Enfim, é aquele ali.”
Ela aponta para um montinho de tecido azul pendurado na cadeira.
Olho para o vestido. Tem estampa de gatinhos tomando sorvete, com
coroas ligeiramente tortas na cabeça.
“Tá bom”, respondo.
“Também fiz café pra você. Ah, acho que é melhor você colocar isto”,
diz, atirando na cama um par de óculos em formato de coração. “Você vai
ficar meio sensível à luz por causa dos comprimidos.”
Ela sai do quarto e me deixa ali, ainda segurando o copo de melancias
sorridentes, com os óculos de sol jogados no colo. Na mesinha de
cabeceira, um príncipe sapo de pelúcia me observa com uma espécie de
horror alegre. Samantha, ah, Samantha, o que você vai fazer?

Eu me sento ao lado de Kira na van da faculdade enquanto ela conversa


com a motorista, Elaine, que diz que está feliz por termos ligado, porque
com essa onda de violência não dá para bobear, e Kira responde:
“sim, a gente sabe, tá um absurdo, né?”
Aí ela muda de assunto e começa a falar sobre o clima.
“Um dia tão lindo, não é? Nem parece que estamos em outubro.”
Como se ninguém tivesse explodido. Como se as paredes da casa dela
não estivessem cheias de respingos de sangue e miolos.
E o mais estranho é que não estão mesmo. Quando passei pelo
cômodo antes de sair, estava tudo um brinco. Nenhuma prova do fim de
Rob Valencia, nenhum vestígio do baile improvisado. Apenas os livros dela
enfileirados na estante, as paredes forradas de ilustrações de ninfas
entediadas enquanto observam tritões emergindo de águas cristalinas.
Todas as superfícies brilhavam, o assoalho de madeira imaculado. E Kira
estava me esperando na porta, com seu casaco vermelho nas costas, tão
comprido que resvalava nos sapatos Mary Jane. “É melhor a gente ir logo,
Bunny.”
Cutuco Kira na van e ela se vira para mim.
“O que foi?”
“Eu não li o livro que a professora passou”, confesso.
Minha voz soa estranha, como se pertencesse a essa outra mulher
amarrada a uma van ao lado de uma lunática homicida. Quero dizer para a
mulher fugir, mas ela está tranquila. Não sai do lugar. Admira a vista da
janela, as mãos pousadas nos joelhos como um par de peixes mortos. As
palmeiras balançam em sua voz quando fala. “Eu não li o livro que a
professora passou”, ouço-a repetir.
“E quem é que lê essas coisas, Bunny? Sério. Espere um pouquinho,
Caroline está em crise e pediu minha opinião sobre uma roupa.”
E então começa a digitar sem parar. Está com um de seus vestidos
adoravelmente sombrios. Um colar de pentáculo no pescoço. Agarrada ao
caderno e ao livro ridículo que Fosco nos pediu para ler.
“Mas você leu”, comento.
“Só porque eu estava entediada”, rebate, como se não fosse nada.
Consigo imaginá-la na sala de estar, com um vestido esvoaçante em
tons terrosos e estampa de raposa, lendo o livro enquanto tranquilizava
Caroline, que a bombardeava com mensagens de texto. Ela sempre,
sempre lê o livro que a professora passou. A verdade é que, se você
frequenta a Warren, não importa o que esteja acontecendo na sua vida
pessoal — queda de cabelo, crise existencial, decapitação —, você sempre
lê o livro que a professora passou.
“É sobre o quê?”, pergunto enquanto aponto para o livro.
“Nem sei dizer. Não tem uma narrativa muito bem definida, sabe?”
“Mas aposto que ela vai me chamar. Ela sempre me escolhe para
responder”, sussurro.
“Quem?”
“Fosco.”
Kira parece confusa.
“Ursula.”
“Ah, você está falando da MuiMui?”, pergunta ela, e seus olhos de tigre
se iluminam de repente. “Aimeudeus, eu amo tanto a MuiMui que quero
ter filhinhos com ela. Aposto que seriam sereias. Olha só, se ela chamar
você, a gente vai estar lá para ajudar, Bunny”, ela me tranquiliza, dando um
tapinha nas minhas mãos entrelaçadas. “Só fique calma, tá?”
“Tá.”
Olho pela janela. Vejo folhas verdes, depois vejo sangue masculino.
Folhas verdes, sangue masculino. Ava. Eu vejo Ava. Parada debaixo de uma
árvore no acostamento, apenas observando a van passar.
“Ava! Pare o carro”, grito, mas as palavras saem em um sussurro.
Nem Kira, nem a motorista chegam a escutar. Pego o celular para ver
se tem alguma mensagem de Ava.
Não tem.
Em seguida, envio a ela um ponto de interrogação solitário, como um
pedido de socorro.

Na Caverna, elas são superlegais comigo. Todas se sentam tão, tão perto de
mim! Não do outro lado da sala, e sim nas carteiras bem ao meu lado. E
me chamam de Bunny. Já tinha esquecido seus nomes, mas elas me
ajudam a lembrar. A de aparência comestível com um corte chanel
dourado é Caroline. A direta, linda e translúcida que parece ter vindo de
outro século se chama Victoria. E aí tem a rainha delas, que parece uma
nobre islandesa malvada, mas que hoje me lança um olhar que transborda
gentileza. Essa é Eleanor. “Isso mesmo, Eleanor”, confirma ela, apertando
minha mão como se eu tivesse escapado da morte por um triz.
Elas tecem comentários incrivelmente gentis sobre meu texto, outra
história que escrevi há muito tempo e depois lapidei às pressas. Pelo jeito,
até numerei e grampeei as páginas que agora elas leem com tanta atenção,
entre um ou outro murmúrio de aprovação.
“Isso aqui está incrível, Samantha.”
“Uau, simplesmente uau.”
“Estou deslumbrada, sério.”
“Muito deslumbrada.”
“Sério. Que comentário fascinante sobre as políticas sociais por trás
de…”
Uma música abafa suas vozes. Um arranjo de violinos etéreos como os
de Henry Mancini, como se eu estivesse em um filme antigo.
“Tão fascinante.”
Elas me comparam a Woolf, a Borges, e os seus elogios são tão
extravagantes quanto suas bolsas. Nem sinal das futilidades que as vi fazer
fora desta sala de aula. As tranças no cabelo. Os abraços esmagadores.
Quase chego a pensar que sonhei com seus arrulhos, com sua coelhice.
Agora é a vez de analisar o texto daquela de cabelo dourado. Caroline.
E me vejo dizer coisas muito gentis sobre a história de uma garota que está
vivendo um romance indefinido com uma névoa que só ela consegue
enxergar.
“Isso está maravilhoso, Caroline”, elogio.
E o nome dela parece estranho na minha boca, mas também adorável,
como um novo tipo de doce. Caroline, quanta originalidade. Que reflexão,
Caroline. Caroline, que fraseado poético.
“E o que você achou do livro que passei, Samantha?”, pergunta-me
Fosco quando nós, de um jeito muito repentino, passamos a discutir a
leitura.
Olho para a capa do livro, uma foto artística de uma garota que parece
radiante por estar com o cabelo em chamas. Folheio as páginas e não
encontro nada além de blocos de texto sem pontuação. Volto a olhar para
Fosco, que me encara com ar de quem sabe que não li nem uma palavra.
Por um instante, imagino a cabeça dela explodindo.
“Fosco”, começo a dizer baixinho. “A verdade é que eu não…”
“Você estava me dizendo agorinha mesmo que achava que este livro
apontava para um paradigma complexo dos desejos femininos”, interrompe
a garota chamada Eleanor, sem olhar para mim. “Que dá voz à circum-
navegação do círculo hermenêutico. E, a meu ver, o texto de Samantha
traça um paralelo claro com este livro. Você deve ter se inspirado de
alguma forma…”
Fosco assente.
“Eleanor, você tem toda razão. Samantha”, chama ela, virando a grande
cabeça na minha direção. “Fiquei muito impressionada com o texto que
você escreveu esta semana. Você tem se desenvolvido muito no âmbito
emocional ultimamente, isso é nítido.”
Todas elas concordam e sorriem para mim.
Observo Fosco através dos meus óculos em formato de coração. A
tonalidade das lentes faz com que ela pareça estar tingida de rosa-escuro.
As outras também.
“Nítido”, respondo. “Fico muito feliz.”
Mordisco o cupcake que Caroline me ofereceu antes de a aula
começar. “Para curar a ressaca”, disse-me ela, acanhada, enquanto estendia
as mãozinhas rosadas que seguravam o doce confeitado.
13

Estamos na cafeteria de que elas tanto gostam, onde tudo é servido em


miniatura. Latinhas de refrigerante. Hamburguinhos. Batatinhas fritas.
Bolinhos. Quantas vezes eu as imaginei aqui, brindando com
minicoquetéis? Falando de mim, quem sabe. “E daí? Quem liga pra essa
porra?”, diria Ava. “Sério.”
Em vez de analisar o cardápio em formato de cupcake, que tenho
certeza de que sabem de cor, elas estão me observando. Quatro pares de
olhos vidrados em mim enquanto examino os itens do cardápio. Vejo cada
prato como um corpo decapitado em tons de rosa, mas o torpor dos
comprimidos já está começando a se dissipar, aos poucos se esvaindo, e
logo vai sumir por completo.
E eu tenho perguntas. E quero respostas. Abro a boca para dizer…
“Samantha”, interrompe Caroline, “queremos conversar com você
sobre ontem à noite.”
Ela está com um vestido estampado com bicos de Bunsen e seu
cardigã de Christopher Robin, o cabelo preso em um coque banana. Levo
a mão à cabeça e tateio as tranças elaboradas que ela fez em mim e
percebo, com estranheza, que já nem as sinto mais.
“Já nem sinto que estão aqui”, falo baixinho, apertando o cardápio em
formato de cupcake.
“Não sente o quê?”, pergunta Victoria.
“As tranças”, sussurro.
Elas se entreolham.
“Samantha, queremos conversar sobre o que aconteceu ontem à noite.”
“O que aconteceu…”, repito.
“Queremos falar sobre o que você viu”, continua ela entre dentes.
Dentes. Mais uma vez penso na lâmina maleável com dentes
serrilhados.
“Sobre o que você acha que viu”, corrige Caroline. “Samantha”, retoma
ela, “a noite passada não saiu exatamente como a gente esperava.”
“E a gente espera que você saiba disso, Bunny”, diz Kira.
Olho para o cardápio. Minichurros. Minifrango com waffles.
Minibatata-doce frita com aioli.
“Rob Valencia explodiu”, ouço-me dizer como se estivesse falando
sobre o clima. Vai chover mais tarde. Que chato.
Caroline deixa escapar um suspiro e afasta a franja loira dos olhos.
“Ele não explodiu.”
“Bom, ele meio que explodiu, sim”, argumenta Kira. “Mas ao mesmo
tempo, não. Nem sei mais o que estou falando. Deixa para lá.”
“Ele não explodiu”, insiste Caroline.
“Não explodiu mesmo, Bunny.”
“Isso é o que você acha que viu”, explica Victoria.
Olho para o lindo rosto cadavérico de Victoria, a pele reluzente como
orquídeas brancas. Vejo o tédio estampado em seu olhar vai-se-foder, mas
também divertimento. Ah, Bunny. Está segurando uma taça cheia de água
rosada borbulhante sobre a qual flutuo, à deriva, me debatendo para não
afundar. Lá dentro, também flutua uma coisa vermelha pontiaguda,
vertendo sangue nas profundezas rosadas. Será o meu coração ou o de Rob
Valencia? Penso nos respingos de sangue na parede. Lembro-me de como
Victoria permaneceu impassível ao ver a cabeça de Rob explodir, uma
expressão mais irritada do que perplexa. Talvez tenha até revirado os olhos.
“O que eu vi?”
Elas olham para aquela de cabelos prateados chamada Eleanor, que
está com as mãos esqueléticas cruzadas sobre uma minicesta de
minipãezinhos.
“Samantha”, começa ela em tom sonhador, “antes de tudo quero dizer
que sempre admirei seu trabalho.”
“Sério?”
Ela vira seus hipnotizantes olhos cobalto para mim.
“Seríssimo. Sou uma grande fã.”
“Jura?”
“Mas é claro! Seu estilo… sombrio. Aquele aspecto de sal da terra.
Todo aquele melodrama, a melancolia do ‘lado obscuro da alma’. É
simplesmente incrível. Claro, às vezes pode ser… chocante, não me leve a
mal. Um pouco exagerado. Provocante de um jeito deliberado. Mas o seu
talento é inegável. E sua voz é uma adição e tanto ao todo.”
“Uma certa rigidez, por assim dizer”, acrescenta Victoria.
As quatro assentem para mim, os cabelos radiantes como o sol lá fora.
“Obrigada”, agradeço.
“É por isso que fiquei tão triste quando soube que você não tem
conseguido escrever. Que está com… bloqueio.”
Agora elas desviam o olhar. Evitam me encarar. O sol desaparece e me
vejo sozinha na chuva, mergulhada nas sombras. Imagino o Leão contando
tudo a elas, aos cochichos. Consigo até vê-lo mexendo o chá enquanto diz,
com certa delicadeza: “Não tem por que se envergonhar. Pode acontecer
com qualquer um”.
“Quê? Quem contou para vocês?”
“Samantha”, continua Eleanor, inclinando a cabeça, enquanto dá um
tapinha na minha mão, “nós percebemos. Estava na cara.”
Nego com a cabeça sem parar.
“Eu não estou com bloqueio. Nunca estive. Vivo escrevendo.”
Mas as lágrimas me contradizem.
Kira me oferece um lencinho com estampa de arco-íris. Elas ficam em
silêncio enquanto eu assoo o nariz.
“Samantha”, retoma Eleanor, “não tem por que se envergonhar. Você é
uma artista. Todas nós somos. Nossos desejos, nossos anseios, o que nos
faz prosperar e florescer como artistas…”
“Como mulheres…”
“Exatamente. É algo delicado, complexo, não é? Algo imenso, cheio de
nuances.”
Concordo com um aceno.
“Aqui está o seu desejo”, diz Eleanor. Depois olha para Caroline, que
tira um pônei cor-de-rosa da bolsa e o acomoda na boleira no centro da
mesa. Observo seu corpinho longilíneo e rosado. Salpicado de corações.
Congelado a meio-galope. Vejo seus olhos grandes, sorridentes e cheios de
brilhos.
“Pinkie Pie”, sussurro.
“E aqui está o mundo”, continua Eleanor. E então olha para Kira, que
pega um quadradinho de plástico entrelaçado na bolsa.
Uma cerca. Uma cerquinha de brinquedo.
Ela a coloca diante de Pinkie Pie.
“Viu como a situação é péssima?”
“‘Deplorável’ é como costumamos dizer.”
“Sufocante.”
Todas olhamos para Pinkie Pie. Cercada e sozinha no topo da boleira,
tendo apenas as migalhas como companhia, tão afastada da mesa lá
embaixo.
“Não é à toa que você está com bloqueio, Bunny.”
“Samantha, nós criamos um projeto para resolver esse problema.”
“Uma espécie de… colaboração.”
“Ah”, respondo. “Tipo um conto? Ou um romance inédito?”
Elas sorriem. “Ah, Samantha. Tão desatualizada. Sentada sozinha na
escuridão de sua escrivaninha pré-histórica. Agarrada com tanta força a seu
lápis sem ponta!”
“Não, não. Nada disso. Não é um romance inédito, Bunny.”
“E hoje em dia nem tem como um romance ser inédito, sabe.”
“Um gênero tão saturado.”
“Flácido. Manco.”
“O que estamos fazendo é bem mais…”
“Inovador.”
“Experimental.”
“Performático.”
“Intertextual.”
“Muito intertextual.”
“Basicamente, um híbrido.”
Um híbrido. A mais obscura das feras acadêmicas. O nome que você
dá a algo que já não consegue discernir.
“Um híbrido. Então…. uma mistura de gêneros textuais?”
Elas sorriem daquele jeito crítico outra vez, depois balançam a cabeça.
“Samantha, nós estamos na Warren, a faculdade que tem o curso de
escrita mais experimental e inovador do país. Isso vai muito além do
gênero. Na verdade, subverte todo o conceito de gênero.”
“E de narrativas de gênero.”
“E do patriarcado da linguagem.”
“Isso sem falar na própria escrita como meio de expressão.”
“O projeto basicamente fode com a abordagem escrita, Samantha. Que
já está morta de qualquer maneira, sabe?”
“Exatamente. Isso tem a ver com o Corpo. A atuação do Corpo. E o
Corpo atuando em todas as nuances de sua própria visceralidade.”
“E o Corpo trepando”, acrescenta Victoria.
Eleanor lança-lhe um olhar sombrio, depois se vira para mim com um
sorriso vítreo.
Estão esperando, percebo, que eu diga alguma coisa.
“Ótimo. Tudo isso parece ótimo. Mas, desculpem, o que vocês estão
fazendo exatamente?”
Elas se entreolham outra vez. “Samantha. A gente sempre esquece que
ela fez o bacharelado em uma universidade de esquina. A primeira da
família a ir para a faculdade. Talvez até para o ensino médio? A gente vive
esquecendo. Mas está tudo bem, Bunny. Vamos explicar tudo
mastigadinho para você. Não vamos usar palavras difíceis.”
“Samantha, nós somos mulheres artistas. Certo?”
“Certo.”
“Então, você quer mesmo ser coadjuvante na narrativa de outra
pessoa?”
Todas elas olham para mim, cheias de expectativa. Tem um jeito certo
de responder a essa pergunta. Pense, pense, pense.
“Não?”
Os sorrisos despontam em seus lábios como um sol resplandecente
através de nuvens carregadas.
“É claro que não.”
“Você quer se sentir empoderada.”
“Quer ter poder criativo.”
“Quer ter poder, ponto-final. E controle.”
“Sobre sua arte.”
“Quer ter o controle da sua própria vida, Bunny.”
“De cada aspecto da sua vida… físico, emocional, mental, espiritual e
até mesmo…”
“Você quer foder, não ser fodida”, conclui Victoria.
“Samantha”, intervém Eleanor, “isso faz sentido?”
Eu as observo através dos óculos de coraçãozinho de Kira, com suas
lentes cor-de-rosa. É assim que elas devem ver o mundo. Olho para seus
semblantes rosados, tão sérios de repente. Eu deveria chamar a polícia.
Deveria fugir para o México.
“Todo o sentido.”
“Que maravilha! Porque nós achamos que você está pronta.”
“Pronta?”
“Para se juntar a nós.”
“No quê?”
“Ora, no que mais? No seminário, é claro.”
“Mas a gente acabou de sair de lá”, argumento.
Elas trocam olhares.
“É melhor a gente mostrar logo para ela”, sugere uma delas. Victoria,
eu acho, com a boca cheia de batatinhas fritas.
“Não sei, não, gente”, opina Kira. “Ela já teve um dia tão difícil.” Então
dá um tapinha na minha mão. “Não teve, Bunny?”
“E será que ela está pronta para isso?”
“Com certeza”, declara Eleanor.
Dou uma olhada no meu celular. Sem respostas de Ava. Sinto o coração
afundar ainda mais nas águas rosadas. A névoa que já estava quase se
dissipando começa a ficar mais espessa. Estou nas profundezas da
melancia sorridente.
“Então me mostrem”, peço.
14

O sótão de Kira. Um cômodo de casa de boneca encarapitado no topo de


uma escada em caracol. Um teto abaulado revestido com um mural do céu
que, segundo elas me dizem, pintaram juntas no ano passado. As nuvens
são fofas e brancas como as de um sonho de criança, o azul do céu,
cortado por um grande arco-íris de cinco cores. Admiro a pintura através
dos buracos na máscara de coelho que elas colocaram no meu rosto. “Por
que a máscara?”, perguntei. “Confie em nós”, foi a resposta. Percebo que
as bordas das cortinas estão carbonizadas, como se tivessem sobrevivido a
vários incêndios. No canto do sótão, vejo um extintor. No outro, um
machado. “Um machado? O que isso…”
“Você vai entender, Bunny, vai entender”, garantem-me elas, e me
conduzem pela mão até uma cadeira branca de vime em um dos cantos.
“Fique sentadinha aqui por enquanto, tá?”
Apesar da miríade de velas perfumadas, o cômodo está tomado por um
cheiro que não consigo identificar. Algo que me lembra das vezes em que
meu velho gato, Lúcifer, arrancava a cabeça dos ratos que encontrava no
porão e depois deixava os cadáveres apodrecendo debaixo do sofá. Ele
morreu assim que fui aceita na Warren. “Um baita presságio”, disse Ava.
“Ava. É melhor eu…”
“É melhor você relaxar um pouco, Bunny. Aqui. Se você surtar, pode
usar isto”, avisa Caroline, colocando um balde ao meu lado. “Assim, duvido
muito que você vá surtar, considerando sua experiência de vida e tudo o
que você já viu…”
Minha experiência de vida?
“Samantha não vai surtar”, diz Eleanor. “Ela já está afiada.”
Ela sorri para mim. Afiada. Faca afiada. Uma faca sendo afiada por um
emoji de troll.
Pelas fendas da máscara, eu as vejo arrumar alguma coisa no centro do
sótão. Uma exposição digna de Fosco. Um grande livro aberto, o centro das
páginas manchado com o que parece ser esmalte vermelho. Uma noiva de
brinquedo jaz em meio ao sangue de esmalte. Ao lado há uma grande caixa
forrada com veludo vermelho.
“O que é isso?”
“Você vai entender. Mas vê se não surta, Bunny.”
“Talvez ela surte.”
“Eu ainda fico meio surtada.”
“Só não assuste o garoto… quer dizer, o híbrido.”
“Que garoto?”, pergunto.
“Quando o vir entrar na sala, seja simpática, ok?”, instrui Caroline.
“Diga ‘oi’. Sorria. Sorrir é importante.”
Olho para os lábios dela, tão lambuzados de gloss. A voz parece
trêmula, hesitante, como um carro derrapando em uma estrada perigosa.
Concordo com a cabeça.
“Falar ‘oi’. Sorrir.”
“Ótimo.”
Ela me entrega mais Tic Tacs. O que era isso mesmo?
“Só uma coisinha para ajudar a relaxar.”
“E você bem que precisa relaxar, né?”
“Todas nós precisamos.”
“Precisamos mesmo.”
Imagino um penhasco. Minhas mãos agarradas na borda. Olho para os
comprimidinhos azuis na minha palma.
“Você precisa confiar, Bunny. Esqueceu?”
Sim. Claro que me lembro. Preciso confiar.
Engulo as pílulas. Minhas mãos se soltam da borda do penhasco.
Confie. Não vou cair, só flutuar. Rodopiar em direção ao céu azul cheio de
nuvens fofas e arco-íris que elas pintaram. E subir, mais e mais, até chegar
na névoa rosada banhada por uma luz risonha.
Enquanto isso, lá embaixo, elas parecem estar se arrumando para uma
espécie de festa. Eleanor ajeita a noiva de brinquedo no sangue esmaltado.
Victoria configura um aparelho de som. Kira afia o machado com uma
pedrinha preta, os olhos fixos em Caroline, que, sentada no chão, conversa
baixinho com a caixa de veludo vermelho.
“Às vezes eu não entendo por que o seminário sempre tem que ser na
minha casa”, sussurra Kira para seu machado.
“Bunny”, começa Caroline, abraçada na caixa, “vamos ter que explicar
de novo? Já falamos. Primeiro, sua tia é bombeira. Segundo, você tem um
sótão. Isso sem contar que meu apartamento não tem essa energia. Porque
ele é velho.”
“Eu queria que tivesse essa energia no meu”, comenta Eleanor. Depois
faz carinho no ombro de Kira, a manga de sua blusa rendada se abrindo
como a asa de uma garça. Ela admira o cômodo azulado e sorri como se
tudo fosse lindo demais para acreditar.
“Você colocou o terno no corredor, Bunny?”, pergunta Eleanor.
A voz dela ecoa de um jeito esquisito no meu cérebro. Corredor-dor-dor.
Bunny-ny-ny.
“Não”, responde Kira, e nega mil vezes com a cabeça. “Era para eu ter
feito isso?”
“Bom, da última vez em que ele apareceu pelado, a Caroline surtou,
esqueceu?”
Quem apareceu pelado?
“Não foi porque ele estava pelado, e sim porque estava todo gosmento”,
explica-se Caroline. “Foi por causa da gosma.”
“Gosma é sexy”, comenta Victoria de seu canto, onde está estirada em
uma poltrona do mais suntuoso brocado. “Sou a favor de mais gosma.”
Caroline estica o braço e afasta os cachos acobreados de Victoria da
testa cheia de veias, dos olhos lânguidos.
“Você é nojenta, Bunny.”
Com seu braço rendado, Eleanor envolve o ombro de Caroline, que
apoia o rosto ali e fecha os olhos como se aquele antebraço fosse Xanadu.
“Eu te amo”, diz ela.
“Eu te amo mais”, responde Eleanor.
E aí elas passam uns dez anos abraçadas.
Kira as observa, parecendo perdida.
“Eu só queria que alguém tivesse falado antes que isso seria
responsabilidade minha, só isso.”
“Não é tão difícil, Bunny”, rebate Caroline, a cabeça ainda apoiada no
ombro de Eleanor. “Você só coloca umas roupas no corredor e pronto,
grande coisa.”
“Não é isso… A questão é: por que eu tenho que ceder a casa e
arrumar a roupa? Não entendo por que isso tem que ser responsabilidade
minha.”
Como ninguém diz nada, ela acrescenta:
“Além do mais, vai que desta vez ele já aparece vestido? Nós estamos
pegando o jeito da coisa.”
Pegando o jeito da coisa? Que coisa?
“Eu gosto quando eles aparecem pelados”, confessa Victoria de sua
poltrona, que agora parece flutuar.
“Eles quem?”, ouço-me perguntar do canto.
Elas me ignoram.
“E o filme? A música?”, pergunta Caroline.
Victoria saca um controle remoto como se fosse uma arma. A tv no
canto liga e um filme em preto e branco começa a passar. Um homem e
uma mulher, sorridentes e de braços dados, caminham em círculos ao
redor de uma fonte. Ela aperta o botão outra vez e de repente alto-falantes
que não vejo inundam o sótão com “La Vie en Rose”.
E então elas se reúnem em volta da caixa, bem ao lado da noiva em seu
livro ensanguentado. Caroline puxa o pano e revela um coelhinho,
mexendo o nariz e agitando as orelhas de um jeito fofo. Ooh, diz uma voz
sussurrante de garotinha dentro de mim. Viu o coelhinho qui fofinhu?! Ooh.
“Oohh, ele é tão fofo!”, exclama Kira. “Olhem só esse narizinho
rosado!”
“Parou!”, protesta Caroline. “A gente não pode falar que o coelhinho é
fofo, esqueceu?”
Kira parece prestes a chorar, mas limita-se a crispar os lábios e assentir
com a cabeça. Imito o gesto.
“Mas ele é bem fofo mesmo”, cede Caroline.
Sim.
“Tão fofo.”
Tão fofo.
“Olhem só essas orelhas.”
“E esses olhos? Ele parece tão empolgado. Como se soubesse.”
Soubesse o quê??
“A gente não pode nem se despedir?”
Despedir? Por quê?
“Tchau, coelhinho.”
As quatro dão um aceno triste com a mão. Imito o gesto, mas não
entendo muito bem o que está acontecendo. Por que estamos acenando
mesmo?
“Certo”, retoma Kira. “Bom, vamos começar?”
Elas colocam os aventais como se estivessem prestes a preparar um
bolo. Ah! Posso ajudar?
“Aqui, Bunny, é melhor você vestir isto”, avisa Kira, e me entrega um
avental que diz “Sem gracinha na cozinha”.
Isso! Sim! Espera aí. O que vamos preparar mesmo?
“Vamos fazer um bolo, é isso?”, pergunto.
Caroline leva o dedo aos lábios.
“Sshh. Agora não é hora de falar”, avisa.
“Será que é mesmo uma boa ideia deixá-la participar do seminário?”,
pergunta Victoria, e me lança um olhar entediado.
Quero dizer tantas coisas para me defender dessa injustiça, mas,
quando faço menção de abrir a boca, tudo o que sai é uma baba alegre.
“Bunny”, chama Eleanor. “Não esqueça…”
Ela olha para mim, depois junta as mãos e cochicha no ouvido de
Victoria. Só consigo entender a palavra ela repetida várias vezes. Ela ela ela
ela. Como se um vento forte soprasse por entre as árvores.
Victoria se vira para mim e esboça um sorriso.
“Tudo bem”, diz. “Ela pode ficar.”
Isso! Isso, isso, isso, isso, isso.
“Ficar para quê?”
Elas não me respondem. Em vez disso, apenas colocam as máscaras de
coelho, idênticas à que vestiram no meu rosto. Têm até orelhas e bigodes.
Fendas para que possam enxergar.
“Que tipo de garoto estamos buscando hoje?”, pergunta uma das
máscaras de coelhinho, sem mover os lábios sorridentes.
“Garoto?”, repete outra Bunny. “Já falamos sobre isso, Bunny. Não os
reduzimos a um rótulo tão binário quanto ‘garoto’.”
Dá para perceber que seu rosto está contorcido de desgosto por trás da
máscara quando ela cospe a última palavra. Garoto. Como se fosse um
brinquedo idiota ou uma sopa rala.
“Desculpe. Como devemos chamar, então?”
Bunny lança um olhar curioso para Bunny. Seus olhos arregalados e
inocentes, orlados por cílios postiços cobertos de glitter.
“O que eles não são? Espaços intertextuais. Fruições. Híbridos.”
“Achei que a gente tinha decidido chamar de Rascunhos.”
“Será que podemos andar logo com isso? Estou com tédio e tesão.”
Eu as vejo se aproximar, formando um círculo mais fechado. Vejo
quando entrelaçam as mãos. Um anseio ardente irrompe dentro de mim
como uma onda vermelha. Espere. Eu também quero participar do círculo.
Eu, eu. Ainda no canto, entrelaço minhas próprias mãos e tento formar
meu próprio círculo solitário.
“Bunny, pare de se mexer.”
Fico quieta como um arco-íris. Imóvel como uma árvore. Eu as vejo
fechar seus olhos tão lindos. Fecho os meus também, mas mesmo assim
consigo enxergar. Uma atmosfera séria e assustadora domina o ambiente,
silenciosa demais até para a minha quietude de arco-íris.
Elas começam a entoar algumas palavras incompreensíveis. O pônei
dentro de mim bate os cascos e começa a dançar.
Sinto que as vidraças vão se estilhaçar, que o ventilador de teto vai
despencar na cabeça delas, mas por um bom tempo nada acontece. O
filme passa na tv. Édith Piaf canta. A noiva de brinquedo permanece em
sua poça de sangue falso no livro.
Elas observam o coelhinho mexer as orelhas no centro do sótão.
Uma delas tosse por trás da máscara barata, cujas bochechas são tão
rechonchudas e rosadas que o coelho parece estar de maquiagem. Outra
suspira. Patético. Está começando a ficar patético. Como quando eu e
minha melhor amiga Alice fizemos um tabuleiro Ouija usando meu
transferidor como prancheta. Passamos horas lá até minha mãe bater na
porta. “Desistam, meninas”, disse.
E de repente a luz se apaga. Um vento sopra. A cortina pega fogo. O
coelhinho explode.

Só percebo que estou gritando quando Kira me dá um tapa na cara. É o


suficiente para me fazer calar a boca, mas sinto que meus lábios ainda
estão entreabertos em espanto. E alguma coisa treme sem parar no meu
colo coberto de sangue. São minhas mãos. Também cobertas de sangue.
Mas não só disso. Pedaços de carne. Molhados, trêmulos, grudados nas
minhas roupas, na minha pele. Quero correr, gritar, mas não consigo sair
do lugar. Então fico sentada ali, com a boca aberta enquanto tento sorrir.
As Bunnies também estão cobertas de sangue e pedaços, dos cabelos
sedosos aos sapatos brilhantes. Mas elas não gritam, nem sequer se
mexem. Estão mergulhadas em silêncio como se esperassem alguma coisa.
Uma delas verifica o relógio.
Uma batida na porta. “Oh-oh! Quem será?”
Elas se entreolham pelas fendas da máscara.
“Kira”, chama Caroline.
“Quê? Mas eu fui da última vez”, protesta Kira.
Ninguém diz nada. Também fico de bico fechado.
“Não entendo por que sempre tem que ser eu”, continua Kira. “A
mesma coisa com o terno. Juro que não entendo.”
As três olham para Eleanor em busca de uma confirmação, um apoio,
um veredito, mas posso ver seus olhos fechados através da fenda da
máscara branca de coelho, como se estivesse meditando. Victoria tirou a
máscara do rosto e masca um chiclete como se nada tivesse acontecido,
como se não estivesse coberta de tripas de coelho.
“Que seja. Eu vou”, avisa Caroline enquanto se levanta.
Depois, tira a máscara de coelho e o avental. Alisa o vestido. Confere
seu reflexo no espelho salpicado de sangue e ajeita o cabelo brilhante de
tal forma que todas as mechas ondulam e dançam como uma luz risonha.
“Ela é magia pura”, diz o pônei cor-de-rosa dentro de mim. “Não é,
Samantha? É, sim”, sussurro de onde estou, bem lá no alto, no céu de
arco-íris para onde os Tic Tacs me levaram. Flutuo sem limites enquanto
observo Kira, que vai pegar o machado no canto. Ela nem chega a olhar
para ele, apenas pousa a mão no cabo, mantendo os olhos fixos na porta.
“Depois que acabar aqui, a gente deveria ir na Pinkberry”, diz ela para a
porta.
Victoria e Eleanor assentem devagar. Começo a assentir também. Ah,
sim. Pinkberry, que ideia maravilhosa.
E de repente Caroline entra pela porta, conduzindo um homem lindo
pela mão como se ele fosse um chimpanzé. Ele até anda um pouco como
um chimpanzé, percebo, sorridente, através da névoa de Tic Tacs.
Curvado. Os braços um pouco mais compridos do que o torso. Mas é
mesmo lindo, a não ser pelo lábio leporino que se aloja como um arco
malfeito em suas feições divinas. Veste um terno azul-escuro e uma camisa
azul-clara do mesmo tom dos olhos. Percebo as luvas pretas de couro em
suas mãos.
Um som ofegante escapa dos meus lábios. “Aimeudeus. Aimeudeus,
aimeudeus, aimeu…”
“Gente”, anuncia Cupcake , “este aqui é o Odisseu.”
“Olá”, murmuram as outras.
Sinto meus próprios lábios se mexerem em sincronia.
“Odisseu estava me contando que adora os filmes do Fellini e os livros
do Proust. Também é muito versado nos escritos eróticos de Barthes e tem
o francês como primeira língua”, continua Caroline, puxando a mão
enorme do rapaz como se fosse uma marionete. “N’est-ce pas?”
Ele se vira para ela, depois para o resto de nós, observando tudo com
seus grandes olhos azuis atordoados. Depois abre a boca malformada e
deixa escapar um grito horripilante.
Elas tapam os ouvidos. Quero repetir o gesto, mas não consigo
encontrar minhas mãos, então apenas continuo sentada onde estou.
“Kira”, chama Caroline, ainda tapando os ouvidos.
Mas Kira a ignora. Está sentada no chão, de braços cruzados, o
machado estirado aos seus pés. Os olhos fixos à frente.
“kira”, berra Caroline. “O que você está esperando?”
“Eu só acho que outra pessoa deveria fazer isso no meu lugar, só isso”,
argumenta Kira.
“que seja”, vocifera Victoria e apanha o machado no chão. “Venez avec
moi”, acrescenta ela para Odisseu, que ainda berra feito uma banshee. “Ici,
ici, dans la salle de bain.”
Ela o arrasta pela mão em direção ao banheirinho, e ele a segue,
berrando a plenos pulmões.
Assim que a porta se fecha, ouvimos ainda mais gritos.
“Não se preocupe, Bunny”, dizem elas enquanto dão tapinhas em todas
as minhas mãos, que conseguiram encontrar com tanta facilidade. “São os
primeiros Rascunhos. Faz parte do Processo. Às vezes é necessário matar
seus queridinhos, sabe? Aliás, às vezes nós os chamamos assim.
Queridinhos.”
Matar?
Victoria sai pela porta sozinha e a fecha tão rápido que nem consigo ter
um vislumbre do banheiro ou do garoto lá dentro. Só vejo Victoria.
Empapada de sangue fresco. A boca coberta com as duas mãos.
“Acho que fiz merda”, avisa ela.
“Como assim você acha que fez merda?”, pergunta Kira.
Uma criatura uivante irrompe do banheiro. Um homem animal. Com
pele felpuda. Orelhas caídas. Ainda com o terno azul-escuro. O machado
está fincado em seu ombro peludo, o sangue jorrando sem parar do corte.
Quando o vejo passar correndo pelo arco-íris onde estou sentada, começo a
gritar também. Mas tudo o que escapa dos meus lábios é uma gargalhada.
O riso de um riacho risonho, minhas águas reluzindo ao sol.
“Use o balde, Bunny!”
Por cima da borda do balde, vejo Caroline balançar a cabeça sem parar
enquanto lança um olhar raivoso para Kira, que suspira e revira os olhos
enquanto o garoto-coelho ferido corre em círculos frenéticos ao redor
delas. Kira se levanta devagar e caminha até a parede. Pega outro machado
atrás da cômoda. Depois se aproxima lentamente do garoto-coelho, que
agora jaz em um montinho choroso no chão. Em seguida ela levanta o
machado bem acima da cabeça.
Fecho os olhos, me debatendo.
Não.
Não, não, não, não, não, não…
Ouço um estalo agudo que faz minha cabeça zumbir. Depois um baque
surdo. O som de algo sendo arrastado de um jeito demorado, terrível. O
bater de uma porta.
Quando abro os olhos, Kira está apoiada na porta do banheiro, o
machado pendendo frouxamente de sua mãozinha. Está toda coberta de
sangue como a noiva de brinquedo no livro. Nunca pareceu tão pequena.
Com uma expressão solene em seu rosto pálido de boneca.
“Gente, não posso continuar com isso. Já, já vou começar a ter
pesadelos, sério.”
Caroline assente e a abraça enquanto ela chora.
“É o seu dom, Bunny. Você é incrivelmente corajosa. Eu amo você.”
“Eu te amo, Bunny.”
E então as quatro se abraçam, ainda cobertas de tripas de coelho. Vejo
seus corpos rosados através das fendas nos meus olhos de coelho. É fofo,
acho. São pessoas boas.
Por fim, Eleanor se desvencilha do abraço.
“Bom”, começa a dizer. “O que acharam? Algum comentário?”
“Acho que da próxima vez podemos buscar mais verossimilhança. A
parte das origens francesas não me soou convincente. Mas talvez seja fácil
de resolver. É só acrescentar uma coisinha simples, como um cachecol.”
“Eu quero ver mais complexidade, mais melancolia ao estilo Hamlet.
Mas também mais arrogância. E quem sabe mais uma pitada de orgulho?”
“Eu quero ver mais magnetismo animal.”
“Magnetismo animal? Mas o que isso tem a ver com francês? Temos
que buscar algo mais verossímil, não esqueça.”
“Em termos de visceralidade, não fiquei muito impressionada com seu
tamanho. Sei que o intuito é ser realista, mas ainda acho que poderíamos
exagerar um pouquinho mais. Acho que uns poucos centímetros a mais já
ajudariam.”
“Falando nisso, acho bom o pau dele funcionar da próxima vez. Sério.”
Silêncio.
“Que tal perguntarmos a opinião de Samantha? Ela já está aqui
mesmo.”
Todas elas se viram para mim.
“Samantha, algum comentário?”
Elas me dão um sorriso encorajador enquanto esperam por uma
resposta. Como se desejassem minhas palavras. Como se me desejassem.
Suas feições ensanguentadas me olham com tanta bondade, com tanta
franqueza, que sei que este é um momento de amizade. Tudo o que
preciso fazer é lhes entregar minhas palavras. Mas que palavras são essas?
Você sabe o que dizer, Samantha, e os olhos delas brilham e brilham para
mim como o olhar sorridente de Pinkie Pie em seu pedestal. Um brilho tão
intenso que chega a me cegar.
“Cachecóis. Eu amo cachecóis”, digo por fim.

Três explosões de coelhos depois, durante as quais o machado fica cada vez
mais salpicado de sangue e o ar fica cada vez mais carregado com o odor de
garotos e coelhos mortos, Odisseu iv surge diante de nossos olhos. Cabelos
cor de areia. Um cachecol em volta do pescoço. Um leve lábio leporino.
“Bonjour”, dizemos. “Oi.”
Odisseu iv olha no fundo dos olhos de cada uma. Depois sorri com
seus lábios retorcidos.
“Contem-me tudo”, pede.
E de repente me perco em seus olhos, azuis como corante alimentício.
Meu sangue está reluzindo. Meu coração está em êxtase. Uma música de
que antes eu me culpava por gostar de repente domina toda a minha alma.
É uma canção sobre pesadelos disfarçados de devaneios, sobre trocar a
alma por um beijo. E eu penso: Essa música não, qualquer uma menos essa.
Mas minha alma já se pôs a cantar, navegando pelos versos como se
fossem uma onda cintilante do oceano.
Kira dá um tapinha nas minhas costas, o cabo do machado
ensanguentado ainda frouxo em seus dedinhos minúsculos.
“Bem-vinda ao seminário, Bunny.”
Parte Dois
15

Ficamos abraçadas no gramado aveludado entre as cerejeiras em flor. Os


braços entrelaçados. Os olhos fechados para sentir melhor os corpos umas
das outras. Somos uma rodinha abafada de amor e compreensão. Rosto no
rosto, bochecha na bochecha, nossos cílios fazendo cócegas na pele como
as asinhas de um beija-flor, como o narizinho agitado de um coelho.
“Ah, Bunny, eu te amo.”
“Te amo, Bunny.”
Nós não sabemos quanto tempo dura esse abraço. Porque é aquele
momento do dia em que agradecemos a existência umas das outras. A hora
do abraço depois do seminário. Um abraço para curar todos os nossos
dodóis. Aqueles que surgem ao expor nossos textos — ou seja, nossa alma
— diante da sala inteira. Mas hoje nem precisávamos disso. Fomos tão
bem na Caverna. Brilhamos de um jeito tão intenso, tão ofuscante. Fomos
tão filhas de Woolf, vocês deveriam ter visto. Na verdade, tivemos até que
botar óculos escuros para nos proteger do brilho de nossas estrelas. E
dissemos entre nós: “Bunny, você é tão brilhante, uma estrela em ascensão,
será que pode nos dar um autógrafo?”.
Mas MuiMui fez alguns comentários nada agradáveis sobre nossos
textos.
“Nós somos lindas demais”, alegou ela. “Precisamos ser mais duras,
mais brutas.” Olhou para o sangue do nosso coração na forma de quatro
páginas com espaço duplo e fontes escolhidas a dedo e perguntou: “Cadê?
Cadê o coração? Cadê o calor?”.
“Além disso, precisamos chafurdar mais na lama.” Nós assentimos.
Anotamos tudinho com nossas canetas coloridas em nossos Moleskines,
nossos Clairefontaines, nossos Rhodias. Estreitamos os olhos e fingimos
estar pensativas. Enquanto isso, pensávamos: O que significa isso, chafurdar
na lama? E imaginamos um pântano horrível guardado por um deus do
pesadelo. Será que MuiMui é uma deusa do pesadelo?
Ela também não foi muito a favor da nossa ideia de escrever em pétalas
de rosa.

Os poetas, vulgos reptilianos, passam por nosso abraço no gramado.


Acabaram de sair de seu próprio seminário com o professor Sedoso, marido
de MuiMui, que quer muito comer a gente e deixou isso claro com seu
comportamento sedoso. Os poetas estão a caminho do bar no porão do
outro lado da rua, que cheira a barris velhos e queijo artificial. Eles nos
lançam um olhar julgador quando passam, soltando grunhidos nobres em
suas roupas de pobreza fingida. Acham que somos meninas muito
estúpidas. Porque às vezes nos entregamos a abraços exagerados. Porque às
vezes trançamos os cabelos umas das outras ao redor de suas fogueiras
idiotas em suas festas idiotas, enquanto eles reviram os olhos mais e mais
até que a íris desapareça por completo. Porque não queremos discutir
métricas. Não queremos fingir que somos pobres, foi mal (bom, pelo
menos a maioria de nós). Ou talvez seja também por causa da mente
coletiva incrivelmente empática que criamos ao nos abraçarmos com tanta
força até nos tornarmos um daqueles animais que têm um cérebro e um
coração em cada tentáculo, conectados a um cérebro-coração cósmico
maior que serve como um terceiro olho compartilhado que tudo vê? Quem
sabe? Quem liga? Vocês que se fodam, poetas. Vocês se acham tão
espertos, tão descolados com sua arte das palavras. Mas não sabem de
nada. Por acaso conseguem conjurar espaços híbridos? Conseguem
desempenhar o Corpo e fazer com que o Corpo desempenhe, literalmente?
Por acaso podem criar um viking massagista? Um Keats pré-tuberculose?
Um Tim Riggins tagarela?
Será que conseguem fazer um coelho explodir com a força combinada
de seus oito olhos?
“Dez, Bunny. Os seus também.”
É tão incrível ver o coelho explodir, aliás. Quase já não sentimos nojo.
Agora acendemos um cigarro enquanto ainda estamos com o cabelo cheio
de tripas e nos apoiamos no ombro ensanguentado da Bunny e esperamos
a batida na porta. É tão incrível ouvir o toc, toc. É tão incrível ver um
garoto em carne e osso sorrindo para nós de onde antes havia um coelho.
“Oi, Samantha”, ele dirá. “Conte-me tudo.”
“Não é um garoto, Bunny, não esqueça. Um Híbrido. Ou um
Queridinho. Ou um Rascunho. A gente já cansou de repetir.”
Isso quase nos faz sentir como Deus. Não, não podemos exagerar. Na
verdade, estamos com um pouquinho de medo de Deus agora se ele estiver
por aí.
“Ela, Bunny. Se Ela estiver por aí.”
“Ou nem um nem outro. Preferimos acreditar que é uma espécie de
energia.”
“E, não se preocupe, a Energia nos daria todo o apoio.”
“Tanto apoio. Tanto.”
“Porque veja só o que fizemos. Olhe só para ele.”
E daí que todos sejam iguais? Como Cape Cod em um corpo
masculino. Às vezes como os astros do cinema clássico ou os príncipes dos
contos de fadas de outrora.
E daí que todos digam a mesma coisa? “Conte-me tudo. Sua beleza é
como um grito, como Proust, como um filme francês com trilha sonora
completa. Você é uma filha de Woolf.”
E daí que lhes faltem algumas partes da anatomia? Coisas essenciais.
Como mãos, genitais. Uma boca que não seja torta. Quem sabe até uma
alma. Ainda assim, é um bom começo. Vamos melhorar.
Enquanto isso, veja só. Ele está nos oferecendo uma orquídea, e, se a
aceitarmos depressa, ele nem terá tempo de comê-la. Está escovando
nosso cabelo. De um jeito tão delicado que com certeza não teve a
intenção de bater o cabo no nosso couro cabeludo. Está pintando flores
estranhas e pássaros disformes nas nossas unhas. Está dizendo que somos
tão lindas e selvagens quanto as charnecas negras das irmãs Brontë, está
dizendo que nosso talento é tão profundo quanto o mar do Norte. Está
dizendo: “Adorei seu vestido”. E: “Quer um iogurte da Pinkberry?”. E está
nos ajudando a preparar coquetéis e chás na cozinha, e daí que ele mais
atrapalha do que ajuda? E daí que ele chora quando perguntamos: “Você
quer trepar com a gente?”. E daí que ele explode quando lhe dizemos:
“Conte-me algo sobre você”.
É incrível, tudo o que promete. Nunca sentimos um pingo de tédio,
nunquinha. Estamos sempre maravilhadas.
“Ei, Samantha”, chama um garoto com cabelo tigelinha do outro lado
do gramado, acenando para mim. “Como vai? Ainda está conversando com
coelhos? Ei, está tudo bem?”
“Está tudo incrível. Estamos todas incríveis.”
Continuamos abraçadas até que os reptilianos passem por nós como
uma nuvem carregada de energia negativa, até que nossos corações fiquem
leves outra vez, como se fossem explodir de tanta alegria, do mesmo jeito
que nos sentimos quando criamos um Viggo Mortensen Brilhante ou
sempre que pensamos em unicórnios, até que uma de nós diz: “Será que a
gente pode ir ao Mini, por favor?”.

Vamos ao Mini e pedimos tudo o que tem no cardápio. Minifritas,


minishakes, miniasinhas de um passarinho minúsculo. Conhecemos o cara
que as separa de seus corpinhos diminutos. Um dos nossos que escapou
do machado. Nem estremece quando nos detalha o processo, mesmo que
a gente fique tipo “eca, eca, eca, chega!”. Esquecemos o nome dele. Será
que era Hotspur, ou então Rimbaud vi, ou talvez Jorg?
Soltamos aqueles que, por uma série de razões, não têm utilidade para
nós. Sério, é a melhor coisa para eles, argumenta Bunny. Aqueles que
mordem, que gritam, quase sempre passam pela lâmina do machado. A
menos que Bunny esteja cansada demais para colocar o avental. Aí eles
passam um tempo no porão até que Bunny sinta que está na hora de dirigir
para bem, bem longe. Só então os levamos pela porta dos fundos na calada
da noite. Depois os colocamos no carro e os deixamos em algum campo ou
armazém na zona oeste da cidade. Bunny diz que estamos libertando eles.
Quase sempre é Bunny que os leva, porque tem um suv e um
emocional mais forte. Fomos com ela uma vez. “Quero companhia,
Bunny!”, disse Bunny. “Depois a gente pode passar para pegar batata frita
no drive-thru.”
“Claro, Bunny,” concordamos.
Mas não era nada agradável. Não com os garotos chorões — os
Híbridos chorões, Bunny — choramingando no porta-malas e falando tudo
fora de ordem. “Caçar vocês eu vou! Tudo me contem! Virginia Woolf não
é sua filha! Eu condeno vocês a um labirinto cheio de nuances.”
Bunny tentou abafar o barulho com o som angelical de sua harpa, mas
ainda conseguíamos ouvir. “Por que temos que deixá-los tão longe?”,
perguntamos a ela.
“Bunny, eu já expliquei. Se não for assim, eles voltam.”
“Mas será que isso é mesmo ético, Bunny? Levá-los para o outro lado
da cidade e deixá-los lá? E se eles forem perigosos? E se não tiverem para
onde ir?”
“Ético?”, repetiu Bunny como se nem soubesse do que se tratava, o
que não é verdade, claro, porque ela é muito, muito inteligente. Frequenta
as melhores escolas do mundo desde que tem cinco anos de idade. Toca
oboé, pratica esgrima e sabe falar três línguas mortas. “Ético”, repetiu
Bunny, como se tivéssemos inventado a palavra. Como se não passasse de
um monstrinho bobo que fizemos com nosso próprio cabelo, que ela
mesma trançou com tanto carinho.
Ela não tirou os olhos do para-brisa. Ah, não. A gente a deixou
chateada. “Não fique chateada, Bunny!”
“Nós vemos isso como arte ganhando vida, Bunny. Estamos criando
obras de arte. É como uma instalação interativa viva. Sabe? Mas, claro, se
vocês preferem matá-los, vão em frente, Bunny.”
“Não. Não precisa.” Ainda não conseguimos brandir um machado,
Bunny sabe muito bem disso.
Temos pesadelos todas as noites, Bunny também sabe muito bem
disso. E quem está lá para nos ajudar quando acordamos? Bunny.
“Calma, Bunny”, dirá Bunny enquanto acaricia nossa testa pegajosa,
nossas tranças suadas. E coloca a mão sobre nosso coração para acalmar os
batimentos. “Tome isto aqui. Vai ajudar a dormir.”
Ela aumenta o volume da harpa angelical. Cada música dura vinte
minutos e se arrasta como o miado exaustivo de um gato. A voz estridente
e folclórica da mulher machuca nossos dentes, mas jamais diríamos isso
para a Bunny. Dissemos que essa música era muito boa. “Muito boa.” Mas
Bunny não estava prestando atenção. Bunny estava cantando com sua
própria voz estridente. Ela gosta muito, muito do som da harpa angelical.

Aqui no Mini tem muitos minicupcakes, mas deveria ter mais. Por que não
tem mais? Deveria ter mais mini, mais! Então dizemos a eles que deveria
ter mais mini, e eles não parecem dar a mínima.
Bunny mal toca na comida. É a que está mais chateada por causa das
coisas nada agradáveis que MuiMui disse sobre seus proêmios de
diamante.
“Bunny”, dizemos, “quem é ela para falar isso, sabe?”
“Coma, Bunny”, pedimos, “por favor, coma alguma coisa.”
“Por nós?”
“Porque não queremos que você morra, Bunny!”
“Não queremos viver em um mundo sem você!”
“Se você morresse, nós também morreríamos. Por favor, Bunny, coma
alguma coisa! Por favor, por favor, por favor.”
“Bunny, nós sabemos que às vezes você fica deprimida porque sua irmã
é tipo uma neurologista incrível ou algo do tipo e que você basicamente
passou vinte anos vivendo à sombra dela enquanto lia e fervilhava de raiva.
Mas aí chegou o dia em que você entrou no quarto da sua mãe e usou o
anel de diamante dela para arranhar o espelho da penteadeira e depois
todas as janelas da casa, entalhando mensagens da deusa da Sabedoria. Foi
nesse dia que nasceu uma estrela literária, Bunny. Foi nesse dia que você
começou a compartilhar seu dom com o mundo. Sua irmã pode salvar
vidas, Bunny, mas você salva almas com seus proêmios de diamante. E
quantas pessoas são capazes de fazer algo assim?”
Então vemos Bunny tocar um minichurro com seus dedinhos
delicados. E batemos palmas quando ela começa a tocá-lo com a boca. Ela
não vai morrer, hoje não, e agradecemos à deusa unicórnio, a quem
dirigimos uma breve oração.
Mudamos o rumo da conversa para algo mais interessante: “Quem vai
ser nosso próximo Garoto… queremos dizer, Híbrido? Hein?”.
Refletimos um pouco. É tão divertido debater possibilidades com
nossas canetas de glitter. Fazer várias e várias anotações nos nossos blocos
encadernados em couro e feitos de papel de luxo! Esmiuçar a literatura e o
cinema e a música e os mitos do mundo e escolher só a nata.
Mas Bunny diz que não estamos nos aprofundando o bastante. “Temos
que ir além. Precisamos ser mais duras, mais brutas e mais ricas, como a
noite.”
“Tudo bem, Bunny”, sussurramos. “Tudo bem.”
E refletimos, refletimos, refletimos.
Bunny toma um golinho de seu minicoquetel e nos observa, uma de
cada vez, como se nos desafiasse. Talvez até querendo ver se nos
atreveríamos. Desafiando suas companheiras Bunnies. Isso é um pouco
cruel, mas deixamos passar porque amamos você, Bunny.
“Talvez uma abordagem revisionista dos contos de fadas?”, sugere
Bunny. “Uma peça subversiva com tropos canônicos?”
Sabemos que isso significa que Bunny quer um tritão de novo. Ou
outro lobo da floresta. Ou então um príncipe pálido e sisudo emergindo
dos arbustos para escalar seus cabelos. Bunny olhando para ele do alto de
sua torre. Vestindo uma capa vermelha, ou talvez um vestido feito de
trapos. Ou, quem sabe, um vestido feito de ouro?
Mas Bunny não gosta dessa abordagem. Bunny acha que
tritão/lobo/príncipe é uma ideia idiota. Infantil. Muito heteronormativa.
Nós concordamos. “Não, Bunny. Nós amamos você, mas não.”
“Que tal uma mistura de pós-colonialismo e terror literário?”, sugere
Bunny.
Então ela deve querer uma versão suavizada do Drácula outra vez. Não
alguém disposto a arrancar sangue com uma mordida, mas com quem
talvez possa beber um ou outro coquetel vermelho no escurinho de um bar.
Alguém com um sotaque leve, quase imperceptível. Que não vai matá-la
de fato, mas vai passar essa impressão o tempo todo — é só seu jeito
intenso, forasteiro. Ou talvez um príncipe mouro com olhos delineados
com kajal, familiarizado com os escritos de Sade e técnicas pouco
ortodoxas de trançar o cabelo. Um Outro, mas não um Outro Assustador
que não consiga lhe preparar um chá com os gestos graciosos de um
britânico anêmico.
Torcemos o nariz para a sugestão da Bunny. “Estamos preocupadas
com o nível de Alteridade, de Orientalismo com que você está se
envolvendo, Bunny. Achamos que você precisa ter mais cuidado em
relação a isso.”
“Quem sabe, então, a gente possa recorrer aos filmes, brincar com a
possibilidade de nos entregar a uma nostalgia exagerada”, sugere Bunny.
Então ela deve querer James Dean outra vez, encostado em uma
cerquinha de madeira. John Cusack em Diga o que quiserem outra vez,
segurando uma caixa de som debaixo de chuva. Marlon Brando outra vez,
gritando por Stella na noite abafada. E Bunny no terraço outra vez, com
um vestido branco tomara que caia estampado com pássaros caolhos.
Gotas de suor brotando no buço a cada vez que ele gritava o nome dela.
Outra vez.
Mais narizes torcidos. “Tsc, tsc. Reforçando velhas narrativas, Bunny.
É muito legal que mesmo tendo sido uma atriz fracassada você ainda
queira que tudo pareça uma cena de filme. Você devia ser tão incrível,
mesmo que dissessem que você não era bonita nem magra o suficiente,
independentemente do quanto você vomitasse. Mas, Bunny, eles não
sabem de nada, nós achamos que você é tão, tão linda. Mas você não está
mais nos palcos, Bunny. Precisa ser mais ambiciosa, mais ousada, por
favor.”
“E se tentássemos usar outros animais?”, ouvimos nossa voz sugerir.
“No lugar de coelhos, sabe?”
Silêncio repentino. Minicomidas deixadas no prato. Taças de
champanhe interrompidas a meio gole.
Bunny nos olha como se não tivesse entendido. Outros animais? No
lugar de coelhos?
“Que outros animais, Bunny?”
“Vai saber”, dizemos.
De repente é muito difícil pensar em outro animal além de coelhos.
Quando vasculhamos nossa mente, tudo o que vemos são orelhas caídas e
rabinhos felpudos.
“Ah, que tal um lobo?”, sugerimos por fim. “Ou um cervo. Ou, quem
sabe, até um pássaro. Pode ser interessante. Tipo um experimento.”
Bunny nos olha como se fôssemos malucas. Como se quiséssemos nos
rebelar.
“Só um experimento”, esclarecemos em um sussurro, baixando os
olhos. “Só podemos usar coelhos?”
“Por que usaríamos outra coisa além de coelhos, Bunny?”
“Bom, então talvez pudéssemos tentar fazer outra coisa além de
garotos?”, sugerimos, mas nos arrependemos de imediato.
“Bunny, nós não fazemos garotos, já falamos. São Híbridos.”
“Queridinhos.”
“Rascunhos.”
“Além disso, nós não os fazemos.”
“Ok. Bem, talvez se…”
Bunny nos interrompe, dizendo que estamos desvirtuando o propósito
do exercício. O que ela quer dizer é que precisamos de uma abordagem
mais profunda, mais rica, mais esquisita. Beber da fonte de…
“Precisamos de um pau que funcione. Pelo menos sei que eu preciso.”
Mais silêncio. Contemplamos nossos minipratinhos. Será que Bunny
precisa mesmo ser tão grosseira? E ainda assim seu argumento é válido.
Ela é do tipo que vai direto ao ponto, não tem como negar. É por isso que
nós a amamos, por mais que às vezes seja difícil de lidar. É verdade que,
mesmo depois de tantos experimentos, não conseguimos fazer um Híbrido
com órgãos genitais funcionais. Ou mãos de carne e osso.
“Que se fodam as mãos”, diz nossa Bunny mais direta e grosseira. “Eu
quero saber do pau.”
“Talvez esteja na hora de Samantha participar mais da conversa”,
comenta uma de nós.
E nos parece tão estranho ouvir esse nome em voz alta. Tão familiar,
mas tão distante.
Aguçamos nossos ouvidos inquietos. Ainda não conduzimos o
seminário. “Logo, logo, Bunny”, sempre diz Bunny. “Estamos muito
empolgadas com o que você tem a oferecer. Considerando todos os seus
dons, toda a sua história de vida.”
Mas a verdade é que estamos apavoradas. E se esse for o dom de
Bunny, e não o nosso?
Ora, não seja boba!
“Os garotos, quer dizer, Híbridos, estão ficando melhores só de ela
estar aqui. As bocas estão menos esquisitas, a gosma diminuiu. Os gritos
também estão menos frequentes. E os rabos.”
“Além disso, eles parecem mais… dispostos.”
“E melhores na cama. Quer dizer, não na cama, obviamente, mas pelo
menos já não têm mais tanto medo de camas.”
“Ou talvez a gente esteja melhorando”, argumenta Bunny. “Acho que
também estamos nos aprimorando.”
“Eu gosto dos que têm rabinho” comenta outra de nós. “Acho sexy.
Podemos fazer um com rabinho para mim, por favor? Ooh, e um focinho
também. A gente deveria organizar outra festa de Garotos Avariados, quer
dizer, de Rascunhos. Já faz séculos que não fazemos uma.”
“Bunny, você é nojenta”, dizemos. “Aimeudeus, você é tão nojenta. Mas
nós a amamos mesmo assim, Bunny, como se você fosse nosso bebezinho
esquisito e doentinho que parece um velho nojento, do mesmo jeito que às
vezes os bebês são parecidos com qualquer um, menos com a mãe.”
Bunny faz uma careta engraçada para nós.
“Ah, Bunny, você é tão engraçada.”
Dizemos que Bunny é muito engraçada e rimos porque é mesmo. Ela é
tão engraçada.
E então rimos e rimos sem parar até que um garçom aparece e
pergunta por que tanto riso e se está tudo bem com uma voz tão
preocupada que torna tudo ainda mais engraçado, então desatamos a rir
ainda mais. Nossa risada o deixa incomodado porque ele não entende
nada, não faz parte da piada, por mais que queira, dá para ver o desejo
estampado no rosto dele, o que torna tudo ainda mais engraçado. Então
rimos ainda mais, abraçando nossas barrigas torneadas com tanta força que
nem conseguimos respirar. Quase morremos ali mesmo, cercadas de
minicomidinhas. “Aimeudeus, aimeudeus, aimeudeus, tão engraçado.”
Devemos ter queimado umas mil calorias só de rir porque é muito, muito
engraçada essa piada sobre Bunny ser engraçada. Uma Bunny
engraçadinha.
E agora estamos com fome outra vez. Com vontade de tomar iogurte da
Pinkberry. “Com tanta, tanta vontade, aimeudeus. Aimeudeus, a gente
deveria ir. Será que tá aberto?”
“Sim, então a gente deveria ir.”
“A gente deveria ir. A gente deveria ir, deveria ir, deveria ir. Então
vamos?”
“Vamos, Bunny.”
“Aimeudeus, será que a Bunny ama Pinkberry? Ela ama tanto tanto
tanto tanto ela ama tanto nossa tanto aimeudeus. Estamos tão felizes agora
que dá vontade até de pular, de dançar. Quem quer dançar com a gente?”
Quando fazemos essa pergunta, uma dor se apodera de nós, a
lembrança de um telhado. Uma mão feminina coberta por uma luva de
renda. Um par de olhos, um azul e outro castanho, iguais aos de um cantor
descolado. Como ele se chama mesmo? Por um minuto, nem conseguimos
respirar. Ela tem um nome, essa mulher com mãos enluvadas. Ela nos
manteve perto uma vez, mas nunca perto demais. E tinha cheiro de
alguma coisa, do que era mesmo? Algo almiscarado. Algo relvado. E os
cabelos pareciam penas brancas. Como ela se chamava mesmo? Acho que
era…
“Nós queremos dançar com você, Bunny.”
Então dançamos durante todo o caminho até o shopping. Às vezes por
dentro, às vezes por fora, às vezes dos dois jeitos. Encontramos tantas
coisas engraçadas pelo caminho e rimos de todas elas. E também
encontramos tantas coisas fofas. Não conseguimos deixar de arrulhar e
bater palminhas diante das coisas tão, tão fofas deste mundo. “Olhe só os
patinhos, aimeudeus, os patinhos, que fofos.” “Olhe só o céu, aimeudeus, o
céu, que fofo.” “Olhe só aqueles prédios tão altos que refletem o pôr do
sol, que brilhantes, aimeudeus, que brilhantes.” “Morador de rua não olhe,
não olhe, faz dodói por dentro.” “Não, pode olhar, sim. É triste. Deixa a
gente mais reflexiva, deixa a gente mais profunda.” Nossas mães sempre
diziam que devemos encarar as coisas que fazem dodói nos olhos porque
vão colorir ainda mais nosso arco-íris interior. Uma de nós faz uma postura
de ioga bem ali, no meio da rua, um movimento exibido em que faz uma
parada de cabeça, com as pernas no ar, usando a cabeça e os cotovelos
para se equilibrar. É a postura do corvo. Observamos seu corpo longo e
esbelto, todos os músculos torneados de balé contraídos na parte superior
desse corpo longo e esbelto, e lembramos que ela quase foi reprovada na
escola de dança de Interlochen. Lembramos que ela tem um rosto de
formato esquisito e um cabelo meio tosco que fica lambido na testa.
Lembramos que as histórias dela são bobas, que ela não ganhou nenhum
prêmio na Universidade Barnard. O nariz parece até meio esmagado no
rosto. Os olhos até que ficam bonitos dependendo da luz, mas na maioria
das vezes são de uma cor bem sem graça. Nós lembramos de tudo isso e aí
dizemos: “Aimeudeus, que incrível. Você é maravilhosa. Uau. Podemos ser
iguais a você, por favor?”.
E assim seguimos colina abaixo, lá-lá-lá, aquela onde as torres e os
sinos da Warren reluzem como um desejo. Como as flores que usamos nos
Bailes de Quinta. Quanto mais nos aproximamos do centro da cidade, mais
sombrio fica. O ar é diferente aqui. Mais úmido. Mais sujo. O céu é
tingido de um rosa-escuro que lembra a cor das entranhas, que lembra o
que acontece com o machado no banheiro quando os Queridinhos não
estão prontos. Passamos por lugares assustadores, porque para chegar à
Pinkberry temos que atravessar alguns lugares assim e para reunir coragem
é preciso mentalizar Pinkberry Pinkberry Pinkberry. Esta cidade não é fofa
como Pinkie Pie nem assustadora de um jeito fofo igual ao jovem Marlon
Brando. Passamos abraçadas por estúdios de tatuagem e lojas
abandonadas. Pela velha com uma tatuagem de aranha no pescoço que vai
estar em todas as histórias que escrevermos na próxima semana. Ela está
esperando o ônibus, um ônibus imundo, imaginamos, que a levará para sua
casa cheia de lixo e ratos onde ela come coisas viscosas direto do pote.
“Bunny, me abrace. Será que pode me abraçar? Mais forte?” Mas não tem
como abraçar mais forte, mesmo que a gente já esteja sem ar com a força,
com a intensidade desse aperto, e ainda assim parece que estamos
abraçando o nada. Como se nos faltasse algo. Como se pudéssemos nos
abraçar mais e mais e mais até nossas costelas quebrarem e nossos
corações explodirem e nossos pulmões colapsarem e nossos braços
falharem. E ainda assim estaríamos abraçando o ar. Não um corpo.
E então a gente percebe, não, sente. Sentimos o cheiro dela primeiro.
Lenha. Folha. Estamos na metade da descida quando sentimos uma mão
enluvada cobrir nosso rosto e de repente somos arrastadas, mais e mais e
mais, até um beco entre as lojas abandonadas.
“Não grite”, sussurra uma voz no nosso ouvido, com um hálito de
cigarro mentolado. “Não respire.”
Da rua, ouvimos Bunny chamar nosso nome.
“Bunny? Bunny? Bunny, cadê você? Bunny, para onde você foi?”
“Bunny? Para onde ela foi?”
“Aqui, Bunny!”, queremos gritar através dos dedos enluvados.
Conseguimos ouvir Bunny andando em círculos em suas sapatilhas,
seus mocassins, seus sapatos Mary Jane, seus coturnos. Tap tap tap na
calçada. Estão nos procurando.
“Estamos aqui, Bunny!”, queremos gritar. “Na escuridão assustadora!
No beco sórdido com sabe-se lá quantos ratos, aranhas e assassinos.” É
isso que gostaríamos de responder, mas estamos com muito medo
enquanto uma mão perfumada cobre nossa boca, e a outra segura com
força nossos braços atrás das costas.
Soltamos um grunhido através de seus dedos enluvados. Um som de
protesto.
“Sshhhh”, diz a voz, que parece sibilar e estalar como uma cobra. Se
cobras falassem, seria exatamente assim.
“Bom, vamos andando”, ouvimos Bunny dizer. “Ela vai achar a gente.
Se ela quiser, vai nos encontrar.”
Então vemos Bunny espiando o beco, os olhos semicerrados.
“Bunny? Você está aí?”
“Sim!”, gritamos.
Mas a mão aperta nosso rosto ainda mais forte, abafando o som. E
então Bunny dá uma última olhada no beco antes de se virar. Assim que
ela se vai, uma boca perto do nosso ouvido conta devagar até trinta, depois
as mãos que nos prendiam finalmente nos soltam.
Corremos pelo beco para ver para onde elas foram. Mas a rua está
vazia e, ah, tão, tão escura. De repente, todos os postes se apagam. Não
conseguimos enxergar nada.
“Bunny”, sussurramos. “Alguém aí?”
O mundo está mais escuro do que nunca. Estamos perdidas. Nós
estamos perdidas, perdidas, perdidas…
16

“De nada”, diz uma voz atrás de nós.


Quando nos viramos, não vemos nada além de uma silhueta sombreada
e esbelta.
“Quem é você?”
“Você tá de sacanagem, porra?”, pergunta a silhueta escura enquanto se
aproxima.
Nossos olhos se ajustam à escuridão. Uma garota. Nós a encaramos
por um bom tempo. Estamos prestes a abrir a boca e gritar, mas algo em
seu rosto nos detém. Nós a conhecemos de algum lugar, de antes das
Bunnies. E estamos embasbacadas com sua feiura. Ela é feia aos nossos
olhos porque nos tirou as Bunnies e os nossos bons momentos juntas, mas
também porque tem uma aparência bem estranha. Isso deve estar
estampado no nosso rosto, porque ela desvia o olhar. Ótimo. Assim temos
um descanso. Observamos os tijolos atrás dela no beco. É um beco muito
assustador. Mas ela não parece assustada. Deve até morar aqui, com ratos
e aranhas e assassinos. Deve até…
“Smackie, eu estava doida atrás de você. Onde foi que você se meteu?”
Que estranho ela nos chamar disso. Pelo jeito acha que também nos
conhece.
“Na faculdade”, respondemos com indiferença. “Fazendo coisas da
faculdade. Tão ocupadas agora, aimeudeus.”
Nós olhamos para ela. Está com uma expressão que diz: “Tá achando
que eu tenho cara de palhaça?”.
“E você?”, perguntamos. “Por onde andou?”
“Eu estava procurando você.”
“Ah.”
Nós a imaginamos nos becos, abrindo as tampas de todas as lixeiras do
mundo para espiar. Entendendo tudo errado.
“Por quê?”, perguntamos.
“Porque eu estava morta de preocupação.”
“Não se preocupe”, respondemos.
“Quê?”
“Não se preocupe.”
“Porra, Smackie! Você sumiu da face da Terra por uns dois meses. Qual
é a do vestido?”
Nós olhamos para o vestido. Tem estampa de gatinhos que usam
coroas porque são os reis e rainhas deste mundo. Tem o tom azul dos céus
mais brilhantes, sob os quais esta garota com certeza nunca viveu. Dá para
ver, ô se dá, que o céu dela sempre foi cinza. Sempre. Porque ela preferia
assim. Arrã. De propósito. Tem gente que é assim mesmo.
“É um vestido lindo”, respondemos e quase rodopiamos no lugar, mas
aí percebemos que não podemos fazer isso na frente desta garota. Por
algum motivo, ela nos deixa com vergonha de rodopiar para mostrar nosso
vestido. Então mantemos os braços bem rígidos nas laterais do corpo.
“Seu vestido é lindo também”, elogiamos.
“Mentirosa”, acusa ela.
“Não”, rebatemos, mas era mentira mesmo. Nós odiamos o vestido
dela. Parece um trapinho rasgado e escuro. “É lindo.”
“Você sabe que está em uma seita, né? Você está na porra de uma
seita.”
Essa palavra machuca nossos ouvidos, então nós os tapamos e
começamos a cantar mentalmente uma música do filme mais recente da
Disney, que é nosso novo filme favorito. E, embora o tenhamos descoberto
recentemente, já o assistimos quinhentas vezes. É a história de duas irmãs
que moram em um lugar cheio de neve e uma delas fica com a alma
gelada. É baseado em um conto de fadas. Bom, o conto de fadas é sombrio
e perturbador igual a este beco, mas no filme tem um boneco de neve
falante e músicas que a gente ama cantar. Estamos cantando aquela em
que a garota gelada está sozinha em uma montanha de neve sofrendo
porque seu coração está gelado. E ela quer mudar, mas não consegue.
Porque o coração dela virou gelo.
“Cala a boca, Smackie.”
Começa a chover. Forte. Porque esse é o tipo de clima que esse tipo de
garota atrai. Ela tem uma aura tão pervertida e escura que deixa as nuvens
pervertidas e escuras também. Impregnadas dessa chuva forte e suja que
começa a cair sobre nós.
“Eu queria ter encontrado você antes”, começa a dizer. “Eu fui atrás de
você naquela noite em que você foi embora do nada, mas depois a perdi de
vista. Aí fiquei esperando na sua casa, mas você não voltou.”
Nossa casa? A gente tem uma casa? Uma imagem borrada se forma no
nosso cérebro, um corredor com cheiro de esgoto e coisas fervidas.
“Smackie, olhe aqui para mim.”
Por que ela não para de nos chamar disso? Enfim, a gente nem quer
olhar para ela, para esta garota. Porque ela é esquisita, por isso mesmo.
Porque o céu dela está nos deixando encharcadas até os ossos e fazendo
com que nosso hidratante de cacau-limão-baunilha e nosso perfume
relvado escorram do nosso corpo feito lágrimas, feito um riacho, afogando
os gatinhos nobres do nosso vestido. Quando olhamos para ela, mal
conseguimos respirar. E não é igual a não conseguir respirar de tanto rir,
como aconteceu mais cedo. Não é igual a não respirar porque olhe-só-
aqueles-patos-que-fofos. É diferente. Como se ela tivesse espetado nossos
pulmões com um alfinete terrivelmente afiado que vai ficar lá para sempre.
“Smackie”, chama ela baixinho, “olhe para mim.”
Ela não está mais falando com aquele jeito de cobra. Sua voz soa tão
familiar quanto a chuva caindo no telhado da nossa antiga casa. Quanto as
ondas em frente ao hotelzinho à beira-mar aonde fomos com nossa mãe.
Quanto o vento balançando as folhas das árvores do outro lado da janela do
nosso quarto, refrescando nossas pernas febris, embalando nossos sonhos.
“Olhe para mim”, pede ela.
Por que ela quer tanto que a gente olhe? Olhar para ela é assustador,
como olhar para uma aranha na nossa banheira branca e perfeita com pés
dourados. Não é nossa. É da Bunny. “Tome um banho, Bunny”, nos disse
Bunny certa noite depois do seminário. “Fique à vontade.” Mas então
vimos uma aranha gigantesca perambulando por lá, as oito patas
escorregando na porcelana polida e brilhante. Queríamos tanto tomar
banho e fechar os olhos e nos deixar levar na água cálida e perfumada do
esquecimento, mas não conseguimos por causa daquela aranha.
“Olhe para mim.”
Olhamos para ela, e nosso rosto parece um punho perfumado. Pronto
para esmagar a aranha. Mas a gente sabe que nunca conseguiria matá-la.
Preferimos deixar que outra pessoa cuide disso. Só a cobrimos com um
pote e a deixamos lá por vários dias até morrer. Mas agora olhamos para
ela. Todo aquele creme que espalhamos no corpo já escorreu, varrido da
nossa pele por sua chuva pervertida. E desta vez, quando olhamos para ela,
algo dentro de nós se abre. Contra a nossa vontade. Eu sinto algo se abrir.
Ela não matou uma aranha para mim uma vez? Ficou no meu banheiro
com a vassoura em riste enquanto eu a observava da segurança da porta.
“Não estou achando”, disse ela. “Mas está aí”, respondi. “Continue
procurando”, implorei. “Por favor, Ava.”
“Ava”, ouço-me dizer agora.
Ela esboça um sorriso, estende o braço e toma minha mão. Mesmo
com a luva, sua mão é sólida e familiar.
“Venha”, chama ela.
“Para onde?”, pergunto, mas já estou indo atrás.
Ela não responde. Eu a sigo mesmo assim.
17

Estou sentada diante dela, no estabelecimento que, segundo me diz,


chamamos de “a lanchonete dos condenados”, em um sofazinho puído
remendado com fita adesiva.
“Você adorava vir aqui comigo”, conta-me ela.
“Sério?”
Dou uma olhada nos clientes sinistros, que praguejam sobre suas
xícaras de café. Os cozinheiros com bigodes curvados e correntes de ouro
falsas. O peixe que parece um tubarão nadando no aquário turvo perto da
porta.
Ela segue meu olhar.
“O tubarão era a parte que você mais amava. E, não, não é um tubarão
de verdade.”
“Por acaso é…”
“Smackie, coma. Ou vou obrigar o tubarão a comer você.”
Ela pediu para mim o que disse ser meu prato favorito. Olho para um
prato que não é mini, coberto do que parecem ser bolhas de pus amarelo
em fossos marrons. Uma caneca lascada cheia de bile escura. O pônei cor-
de-rosa dentro de mim relincha baixinho.
“O que é isso?”, pergunto.
“Café. Ovos com torradas.”
“Será que tem calda de caramelo? Ou confeitos?”, quero perguntar,
mas estou receosa. Por isso, apenas balanço a cabeça. “Tô sem fome. Mas
valeu.” Minha boca está seca de tanto açúcar. Meu vestido está frio e
empapado. Não consigo olhar para ela, mas sinto como se ela estivesse me
observando. Meu celular não para de vibrar no meu colo cheio de gatinhos
afogados.
Ela me conta sobre todos os lugares onde foi me procurar. Aqui. A
biblioteca. O lago de cisnes. Livrarias. Cafés. O zoológico. No zoológico,
eu sempre ficava muito perto do recinto dos ursos. Por acaso alguém foi
atacado recentemente? Ela diz que tentou muito me encontrar. Ligou e
ligou várias vezes. Deve ter jogado sabe-se lá quantas pedras na minha
janela. Chegou até a escalar a escada de incêndio e bater na vidraça
quebrada, mas só encontrou uma cama vazia e arrumada. Enquanto estava
lá, conheceu o exibicionista que ronda meu prédio. Uma vez, até dividiram
um cigarro. Ele nem é tão ruim assim. Só é uma pessoa que precisa ficar
pelada depois de determinada hora. Mas ficar pelado em casa não basta.
Ele precisa ser visto. Depois que é visto, depois que a visão de seu corpo
nu faz alguém gritar, ele sente que aquela coceira foi sanada, então pode
voltar para casa e ver tv.
Foi o gigante pervertido que a deixou entrar no meu prédio. Então ela
subiu as escadas e ficou sentada diante da minha porta na esperança de
que eu voltasse para casa, imaginando que em algum momento eu voltaria,
teria que voltar, mas não voltei.
Tento imaginá-la sentada no meu corredor estreito e fedorento, com
suas pernas compridas em meias-calças rasgadas, sem ter para onde ir.
“Você fez isso mesmo?”
Ela nem me responde. Só continua a contar que foi até a Warren, que
chegou a entrar. “E você sabe que eu nem piso lá.” Mas ela fez isso por
mim. Gritou meu nome naqueles corredores imaculados. Procurou por
mim. Por sua amiga. Abriu as portas dos banheiros perfumados. Entrou em
salas de aula com lareiras. Esgueirou-se por sabe-se lá quantas palestras
sobre células-tronco e achados arqueológicos no Egito, e gritou meu nome
ali também. Berrou. Ninguém esboçou a menor reação. Devem ter achado
que ela era uma artista performática.
“Desculpe”, peço. “Eu sinto muito, muito mesmo.”
A princípio ela achou que eu tinha ficado brava e por isso a estava
evitando, mas não fazia ideia do que poderia ter feito para me irritar tanto
assim. Mas, com o passar das semanas, ela começou a ficar preocupada de
verdade. Estava prestes a denunciar meu desaparecimento à polícia, mas
ficou com receio de ir à delegacia porque teve uns problemas no passado.
Mas estava disposta a fazer isso mesmo assim. Mesmo que a prendessem,
ela não estava nem aí. Achou até que eu poderia ter sido uma das vítimas
dos Decapitadores, uma suposta gangue de maníacos homicidas. Ela
nunca acreditou que eles existiam de fato. Achava que a gangue não
passava de um boato infundado, uma lenda urbana, uma piadinha
elaborada por alguma fraternidade. Mas, quando eu desapareci, ela ficou
com medo. Começou a achar que podiam mesmo existir, que tinham
arrancado minha cabeça e a guardado em um armário e a deixado
apodrecer em algum corredor de mármore. Isso já aconteceu aqui. Sério.
“Mas aí eu finalmente vi você”, diz ela.
No gramado. Sentada na relva salpicada de luz ao lado das bonobos.
Eu estava viva. Minha cabeça ainda estava grudada no corpo. Eu estava
bem. Mas será que estava bem mesmo? Estávamos em uma rodinha, as
bonobos e eu. Agrupadas em uma espécie de abraço estranho. A expressão
no meu rosto era…
“O quê?” pergunto, mas a verdade é que nem quero saber.
Ela desvia o olhar, constrangida por mim, acho. Sinto algo parecido
com vergonha queimando meu rosto.
“Quase não reconheci você. Parecia até mais… baixa. E estava vestindo
um…” Seu olhar recai sobre meus gatinhos saltitantes. “Deixa para lá.”
Ela conta que acenou para mim. Chamou meu nome. E eu nem me
virei para olhar, mas ela tem certeza de que ouvi. Então ela gritou “Bunny”,
só de brincadeira, e aí, sim, eu me virei. Todas nos viramos.
“Você olhou direto para mim. Olhou bem na minha cara e depois
desviou o olhar.”
Eu não me lembro disso. Tento explicar a ela que não lembro.
“Eu não lembro mesmo. Juro. Não vi você. Juro que não vi.”
Ela olha para mim sem dizer nada.
“Desculpe mesmo por ter causado tanta preocupação. Sério. Estou me
sentindo péssima. Péssima mesmo.”
As palavras caem dos meus lábios como folhas mortas. Consigo ouvir o
crepitar mortiço delas. Mas a verdade é que não sinto nada. É como se eu
a observasse da outra ponta de um túnel comprido, do fundo de um poço
escuro. E ela me espia lá de cima, balançando a cabeça em repreensão.
“Que porra é essa? Como? Como você foi parar aí, Samantha? Qual é o
seu problema?”
“Não sei”, é a única resposta que tenho. Só meio que… aconteceu.
“Acho que só me deixei levar”, ouço-me dizer agora.
“Você se deixou levar? Pelo que, exatamente?”
Penso naquela noite com Beowulf vii na casa da Bunny. Estávamos
sentados no banco da janela ao pôr do sol, bebendo o melhor hidromel que
a Bunny tinha a oferecer. Ao menos eu estava bebendo hidromel; Beowulf
tomava golinhos de suco em um copo descartável (descobrimos que álcool
faz mal a eles, Bunny). Penso em como ele me elogiou sem parar. Envolveu
minha mão com suas luvas pretas de couro e disse que eu era a luz mais
brilhante que ele já tinha visto, por acaso eu sabia disso, Samantha?
Sim. Eu sabia.
E, se um dia eu precisasse de comida, ele caçaria por mim. Por acaso
eu sabia disso, Samantha?
Arrã. Também sabia.
“Conte-me tudo, Samantha, tudinho. Sou todo ouvidos. Quero muito
ouvir, ver, tocar e conhecer você de todas as maneiras respeitosas
possíveis.”
“Sério?”
“Ah, sem dúvida, Samantha.”
“Tudo o que estou sentindo?”
“Tudo, Samantha.”
Eu estava bêbada. E entediada. E Beowulf parecia um Donald Glover
com abismos azuis no lugar dos olhos. Dei uma olhada nos ombros largos,
mas um tantinho disformes, escondidos sob o terno da Brooks Brothers.
“Sabe o que eu estou sentindo? Que a gente deveria dar o fora daqui”,
sussurrei para ele. “Que a gente deveria usar um monte de drogas e trepar
feito coelhos no bosque lá fora.” Ao ouvir isso, ele contorceu o rosto e
começou a chorar.
“Bunny, você tem que parar de falar essas coisas para eles”, repreendeu
Bunny do seu lugar no sofazinho. Ela estava sentada ao lado de seu próprio
rapaz, que lhe penteava os cabelos com as costas da escova.
“Você sabe que isso só serve para deixá-los chateados”, concordou
Bunny. O garoto dela estava enrodilhado em seu colo como um gato,
falhando em abocanhar as pétalas de frésia que ela atirava.
Ou então aquela outra noite quando, farta de tantos elogios, de todos
os “conte-me tudo”, falei para aquele que chamávamos de Grandalhão:
“Não, é sua vez de me contar alguma coisa!”.
“Contar alguma coisa? Eu…” E aí a cabeça dele explodiu.
Ou então ontem à noite mesmo, quando tentei espiar por baixo das
luvas de Lancelot para descobrir o que poderia haver ali. Tocos de carne?
Garras? Ganchos? E ele me mordeu. Mordeu com vontade, cravou os
dentes no meu ombro e depois na minha mão. Soltei um berro e Lancelot
soltou outro berro e então Bunny pegou o machado enquanto eu cobria os
olhos e dizia “não, não, por favor, não”. E aí Bunny teve que me levar ao
hospital porque: “será que ele ainda transmite raiva mesmo depois de ter
passado de coelho a garoto?”. Pesquisamos e pesquisamos no Google e
consultamos nossas antologias de contos de fadas sem muito sucesso, e no
fim das contas achamos que era melhor ir ao médico por precaução. “Mas
a verdade é que eu deveria deixar você morrer, Bunny, porque quantas
vezes já falei para não mexer nas mãos deles?” E aí passamos o caminho
todo combinando o que dizer. “Meu coelho de estimação surtou. Não sei o
que deu nele.” E “Não se esqueça de chorar”, sibilou Bunny para mim,
com seus longos cabelos prateados adornados com flores pontudas, os
olhos cor de cobalto fervilhando de raiva, o rosto e o vestido salpicados de
sangue, mesmo que tenha usado o avental, aquele forrado com pérolas
verdadeiras que dizia “Diva da Cozinha” em letras cursivas cor-de-rosa. Eu
tinha arruinado o encontro dela. Mas que tipo de encontro é esse, Bunny?,
pensei. Que encontro é esse em que você nem chega a encostar na mão dele,
que dirá foder? Não está mais para um passeio na Disney? Mas guardei isso
para mim, por mais que minha boca já estivesse escancarada e as palavras
rebeldes estivessem na ponta da língua, só esperando que um movimento
da garganta as empurrasse para fora. Mas fiquei em silêncio.
“Sério, eu deveria deixar você morrer, Bunny”, disse Bunny outra vez. E
eu concordei. Verdade. Deveria mesmo. Era muita bondade dela não
deixar.
“Bom. É porque eu amo você, Bunny. Sério. Na verdade, você é a
minha preferida.”
“Você também é a minha preferida”, menti. Mas, naquele momento, foi
sincero. Tão sincero, que cheguei a chorar.
E então ela pegou minha mão machucada e a beijou com seus lábios
frios e acetinados.
“Mas não esqueça, por favor, que a Criação é uma grande
responsabilidade. E que a Obra, ainda que necessária, ainda que vital,
ainda que inovadora, também é volátil, perigosa, e não deve ser
subestimada.”
“Claro, Bunny.”
E aí pensei no restaurante Chuck E. Cheese. Quando meu pai me
levou lá para comemorar meu aniversário e ficamos vendo a banda de
animais mecânicos cantar. Depois do show, tentei perguntar a eles sobre os
instrumentos e eles apenas me encararam com um olhar vazio e…
“Smackie!”, grita Ava.
“Que foi?”
Ela pega o cardápio e o analisa, mesmo que eu saiba que ela já o
conhece de cabo a rabo, mesmo que nosso pedido já tenha chegado. “Eu
gostaria de um coração de lebre frito, por favor”, pediu ela à garçonete.
“Um o quê?”
“Um chá-verde, por favor.”
“Eu vou embora”, avisa ela.
De repente sinto toda a chuva fria que encharca meu corpo. Meu
coração se contrai no peito.
“Embora?”
Meu celular começa a vibrar outra vez.
“É melhor você atender”, diz ela.
“Espere. Como assim você está ind…”
“Atenda. Ou é capaz de elas mandarem a polícia das Bunny atrás de
mim. Aí vou parar na cadeia Bunny junto com todas as outras pessoas nada
agradáveis.”
“Ava.”
“Quem será que vão ser meus companheiros de cela? Pessoas que não
arrulham o bastante ao ver patinhos? Gente que não ama cupcake? Que
prefere comidas de tamanho normal? Gente que não liga para granulado?”
Ela sopra anéis de fumaça com formato de corações distorcidos.
“Como assim você está indo embora?”
Ela olha para mim. David Bowie. Esse é o nome do cantor cujos olhos
me fazem pensar nos dela.
“Estou indo embora daqui”, explica ela. “Do Covil de Cthulhu. De
Sombriópolis. Seja lá como você a chame agora. Vou dar o fora daqui.”
Uma onda de pânico me invade. Você não pode ir, não pode, não pode.
“Quando?”
“Ainda não sei. Mas vai ser logo.”
Ela olha pela janela, como se pudesse partir a qualquer minuto.
“Você não pode ir!”, grito, e ouço minha voz estridente falhar.
“Por que não?”
Ela me lança um olhar desafiador.
“Porque…”
Porque tem aquela coisa muito importante. Cadê as palavras? Fugiram
para longe. As palavras de que preciso estão bem lá no alto, flutuando no
céu como um balão. Quero que você fique. Não quero que você vá. Por que
não consigo puxar essas palavras do céu?
“Por quê?”, insiste ela.
“Achei que você gostasse daqui”, declaro por fim, sem muita convicção.
Ela faz careta.
“Eu odeio esta cidade. Posso não reclamar tanto quanto você, mas
odeio pra cacete. A Warren suga a vida deste lugar como um zumbi. Já
estou cansada de servir de comida de Bunny. Se quer saber, já estou
pensando nisso há algum tempo. Mas estava com receio de ir embora por
causa de…”
“De quê?”
Ela olha para mim.
“Por causa de Dolores”, responde ela, abrindo um sorriso carinhoso
para a garçonete, cujas costas cansadas estão voltadas para nós enquanto
berra com um cozinheiro.
Dolores sempre carrega uma faca no sutiã, que saca à menor das
provocações. Alguns caras vêm aqui só para ver Dolores cravar a ponta
afiada da faca em suas mesas sujas.
“Eu não queria deixá-la aqui sozinha com os babacas da Warren que a
tratam como uma aberração.”
“Você nunca me contou que pensava em ir embora.”
“Ultimamente tem sido difícil falar com você.”
Ela passa a mão pelas mechas platinadas que mais parecem plumas.
Percebo uma falha do tamanho de uma moeda na lateral do cabelo dela. A
visão é o suficiente para me encher de dor.
“Por favor, não vá embora”, peço.
Ela estica o braço por cima da mesa, e por um instante acho que vai
acariciar meu rosto, mas em vez disso pega os óculos escuros em formato
de coração que eu já tinha até esquecido que estava usando. Depois os
coloca. Dois corações sobre os olhos. O mundo perde seu tom escuro de
rosa e adquire uma cor cinza-esbranquiçada infernal sob as luzes
encardidas da lanchonete. Ava é a única coisa bonita que tem aqui.
“O que posso fazer para você não ir embora?”
Mas seu olhar está longe, fixo na porta da lanchonete.
“Tape os ouvidos”, pede ela.
“Por quê?”
“Só tape logo.”
Mas, antes mesmo que consiga erguer as mãos, eu ouço. Um som que
pressiona cada lado da minha cabeça como parafusinhos cravados nas
têmporas.
“Bunny?!?!?!”

Elas correm em direção à nossa mesa, os olhos arregalados e faiscantes, os


semblantes torcidos de preocupação e alívio.
“Bunny, graças a deus!”
“A gente estava doida atrás de você!”
Caroline. Kira. Parecem tão deslocadas na lanchonete quanto dois
ovinhos de Páscoa em meio ao apocalipse. Filhotes de cervo perdidos em
uma floresta de sombras pontiagudas. Meu coração dá um salto ao vê-las
ali.
“Eu…”
“A gente já ia até chamar a polícia.”
“Ou os seguranças do campus ou algo do tipo.”
“Mas aí a Eleanor falou: ‘Não se preocupem com a Samantha, é a
Samantha, sabe? Ela não é igual a gente. Já passou por muita coisa’. Então
a gente nem chamou.”
Cupcake olha pela janela e acena com a mão. Quando me viro, vejo
que Eleanor e Victoria estão paradas do lado de fora, apoiadas no suv de
Eleanor, nos observando através da vidraça quebrada. “Graças a deus você
está bem”, vejo Eleanor sussurrar, as mãos cruzadas sobre o peito. Victoria
só fica ali parada, a boca aberta como um peixe, me olhando com
perplexidade.
“Mas mandamos várias mensagens para você”, continua Caroline.
“No mínimo umas mil.”
Elas se viram para Ava, como se tivessem acabado de notar sua
presença. Observam suas roupas escuras, o véu na cabeça, os dedos
enluvados que seguram um cigarro com o qual estaria disposta a arrancar
um olho. E com prazer. Depois, voltam a olhar para mim.
“Enfim, o que aconteceu?”, pergunta Caroline. “Você estava com a
gente e aí no instante seguinte… já não estava mais.”
“Como se você tivesse sido… sequestrada… ou algo assim?”, teoriza
Kira, e então abre um sorriso tenso e receoso para Ava. “Não entendemos
nada.”
“Mas nós ficamos assustadas, com medo de que tivesse acontecido
alguma coisa com você”, acrescenta Caroline.
“Tão assustadas”, concorda Kira, lançando outro olhar furtivo para Ava
que o retribui de forma tão incisiva, tão ameaçadora que Kira vira o rosto
como se tivesse levado um tapa.
“O que aconteceu, Bunny?”, pergunta Caroline.
“É, Bunny. O que aconteceu?”
“Explique isso, por favor.”
Mais uma vez, percebo como minha garganta está seca.
“Bom, eu…”
“Ela quase foi atacada por um menino lobo gigante”, interrompe Ava,
com o cigarro dependurado entre os lábios. “Ele tinha uns dentes muito
brancos e unhas afiadas como as do Freddy Krueger.”
“Quê? Aimeudeus!”
“Samantha, isso é sério???”
“Foi horrível”, continua Ava, me chutando por baixo da mesa. “Ela
quase morreu. Ainda bem que eu estava no beco. Consegui resgatá-la bem
a tempo. Antes de ele estuprar você. E matar você. E estuprar seu
cadáver.”
Caroline e Kira ficam boquiabertas enquanto encaram Ava, que apenas
retribui o olhar, ainda fumando.
“Ele foi atraído por aqueles gatinhos”, continua ela, e aponta para meu
vestido com o cigarro. “Achou que eram gatinhos de verdade e a agarrou
para garantir o almoço, sabem como é. Mas aí percebeu que ela era uma
mulher de carne e osso e isso despertou outros tipos de apetites sórdidos.”
As duas estremecem e se abraçam, de mãos dadas.
“É por isso que nunca é uma boa ideia ir ao centro da cidade”, comenta
Caroline.
“Pelo menos não ao shopping”, acrescenta Kira.
“É melhor vocês só comprarem coisas pela internet de agora em
diante”, concorda Ava.
As duas a encaram como se ela fosse definitivamente Dodói. Mas
também parecem achar que Ava pode ser algo além. Uma coisa reluzente
na grama alta que à primeira vista parece um colar, mas poderia muito bem
ser uma cobra. Ou poderia ser mesmo um colar.
“Já vi você antes”, diz Caroline, estreitando os olhos, a cabeça inclinada
de um jeito pensativo.
“Já?”
“Na Demitasse de volta às aulas. Nós a vimos, não vimos?”
“Arrã”, concorda Kira. “Nós vimos você.”
As duas olham para ela com a cabeça inclinada, os olhos sonhadores e
curiosos. Colar? Cobra? Os dois?
Ava apenas as encara de volta como se estivesse no metrô de Paris.
Como se a qualquer momento fosse tirar os brincos e se erguer a toda a
sua altura vertiginosa.
“Você é amiga da Samantha.”
“Samantha, por que você nunca nos apresentou?”
“Eu mordo”, avisa Ava, levantando-se da mesa. “É um distúrbio terrível
e completamente voluntário.”
As duas parecem minúsculas perto dela.
“Aonde você vai?”, ouço-me perguntar.
Ela tira os óculos de sol e os coloca sobre a mesa. Depois olha para as
duas antes de se voltar para mim.
“Tomar um ar”, responde. “Só vou tomar um ar.”
“Espere, eu vou junto”, digo e faço menção de me levantar, mas as duas
me encurralam.
Caroline afunda ao meu lado no sofazinho e Kira se acomoda do outro
lado da mesa, e então as duas seguram minhas mãos com força, acariciam
meu cabelo molhado e começam a me bombardear de perguntas: “Bunny,
você tá bem?”; “Você foi mesmo atacada por um menino lobo? Quem era?
Como ele era?”; “Aimeudeus, é aqui que tem aquela garçonete que enfia a
faca na mesa?”; “Você está traumatizada?”; “Acha que essa experiência
pode servir de combustível para a Obra?”.
“Ele era gostoso?” (Isso vem de Victoria, que acabou de se juntar a
nós.)
“Bunny, ele não era gostoso, e por acaso isso é coisa que se pergunte
em um momento desses?”
“Nossa, foi mal por não querer trazer à tona as coisas assustadoras, tipo
se ela achou que ele pretendia decapitá-la.”
“Aimeudeus, será que ele queria decapitar você, Samantha?”
“Talvez. Sei lá”, respondo.
Mas elas me ignoram. Agora já não dirigem mais suas perguntas a mim,
e sim umas às outras. Vejo Ava do outro lado da vidraça quebrada. Está lá
fora com Eleanor. Elas estão conversando? É isso mesmo? Eleanor mexe os
lábios como se estivesse dizendo alguma coisa. E Ava parece ouvir, com
uma expressão neutra no rosto. Sinto meu estômago afundar, depois uma
pontada de pânico invade meu peito.
Ava se afasta de Eleanor e me pega olhando para ela.
Por um segundo, nosso olhar se encontra.
E então ela sai andando pelo estacionamento. “Vou embora.”
“Ava, espere!”
Passo por cima de Caroline e saio correndo da lanchonete, a porta de
vaivém fechando com um estrondo atrás de mim. Lá fora, não há o menor
sinal de Ava. O estacionamento está vazio, com exceção de alguns
moradores de rua e Eleanor, que olha para mim com um sorriso amigável e
curioso, a cabeça inclinada.
“Está tudo bem, Samantha?”, pergunta.
Samantha. Quando foi a última vez que ela me chamou pelo nome?
“As meninas estavam preocupadas com você, mas eu disse a elas: ‘Não
se preocupem com Samantha. Deem a ela o tempo necessário para
florescer’.”
E então me abre um sorriso triste. Ah, Bunny. Por que você ainda insiste
em se afastar de nós? Mesmo depois de eu ter matado por você. Depois de
todos os vestidos que lhe dei. De todas as confidências que trocamos diante de
uma lareira que a manteve mais aquecida do que você esteve em anos. Mas
entendo, claro, que você precisa desses seus momentinhos de excluída. E, olhe
só, nós deixamos que você vá, mesmo que, bem, isso nos deixe muito
magoadas. E entediadas também.
Fico de cabeça baixa, mas tenho que perguntar.
“O que foi que você falou para Ava?”
Posso dizer pela expressão dura em seus lindos olhos escuros que ela
parece pensar: “Ah, você está passando dos limites, Bunny”. Mas ela
decide entrar na onda.
“Quem?”, pergunta.
Ela finge não saber quem é, mas de repente se lembra.
“Ah. Está falando da sua amiga. Ela é sua amiga, né? Eva? Ada?”
“Ava”, corrijo, e logo tenho a impressão de que lhe entreguei algo que
não deveria.
“Ava. Verdade. Ela tem tanto estilo. Um pouquinho sombrio e
exagerado demais para o meu gosto, claro, mas funciona para ela. É
perfeito, até. Do jeitinho que eu imaginava.”
A tristeza estampada em seu semblante está me deixando mal.
“Como é que você nunca falou dela antes, Samantha?”, pergunta,
bancando a terapeuta preocupada, e então chega tão perto que consigo até
sentir os óleos essenciais com que ela se besunta.
“O que você falou para ela?”, repito a pergunta de uma forma tão
enérgica que chego a ficar surpresa.
O sorriso morre em seus lábios, e seus olhos se transformam em
abismos negros.
“Você é tão, tão linda”, eu disse a ela aos prantos certa noite. Mesmo
que naquele momento eu não a achasse nem um pouco bonita, e sim
assustadora com seus cabelos prateados e seus olhos escuros.
“A gente estava conversando e aí ela simplesmente virou e saiu.”
“Ela simplesmente virou e saiu? Do nada?”
“Bom, eu perguntei se ela teve algum bichinho de estimação quando
era criança. Só para puxar papo. Mas não sei se isso a deixou irritada. Nem
teria por quê.”
Eleanor dá de ombros. Como se não tivesse o que fazer. Ah, Samantha,
como você quer que eu entenda a esquisitice dessa gente da sua laia?
“Ela parecia estar com pressa. Talvez tivesse algum compromisso…
Mas não perguntei.”
Corro pelo estacionamento e procuro por ela na rua, mas não há nada
ali além de nuvens escuras pairando sobre casas decrépitas. Pessoas
descarnadas esperando o ônibus. “Este lugar cheira a desespero, Smackie.
Este lugar cheira a um puta desespero.”
Viro-me na direção de Eleanor, que está me observando da calçada,
com o rosto cheio de uma compaixão prepotente e algo além. Pena?
Curiosidade? Seja o que for, faz minha espinha gelar.
“Ah, nossa. Olhe ali. Não é aquele seu amigo Jonah?”
“Quê? Onde?”
“Ali, ó. Oi, Jonah! Ei, venha aqui! Jonah!”
Ela acena e eu sigo seu olhar em direção a uma figura curvada
encostada em um carro, um cigarro em uma das mãos e um livro aberto na
outra.
“Jonah! Jonah!”, chama Eleanor.
“Fique quieta”, quero dizer.
Mas Jonah levanta a cabeça. Estreita os olhos e, quando vê Eleanor
acenando, confere os arredores, porque com certeza ela não pode estar se
dirigindo a ele. Mas está. Então ele sorri e acena de volta, sem muita
convicção.
“Ei, Jonah! Venha aqui!”, grita ela.
Ele guarda o livro no bolso e caminha na nossa direção. Sorri para nós
duas com o que só posso descrever como felicidade genuína.
“Oi, Samantha. Oi, Ellie.”
“Jonah”, diz Eleanor, batendo palminhas como se ele fosse um
espetáculo itinerante. “É tão bom ver você.”
Ele a encara, surpreso. “É? Sério?”
“E Samantha estava falando de você agorinha mesmo.”
“Estava? Que legal, Samantha.”
Ele sorri para mim, mas não consigo retribuir.
“Pensei em você hoje”, diz. “Eu vi você mais cedo e tentei dizer ‘oi’,
mas não sei se você me viu. Parecia meio ocupada.”
“Pois é.”
“Você anda meio sumida. Deve estar ocupada escrevendo e tal, né?”
“Ah, Samantha está totalmente imersa na Obra, no Processo”, intervém
Eleanor. “Não é verdade?”
Nem respondo.
“Que legal. Eu também”, conta Jonah. “Vocês foram na lanchonete
para escrever? Às vezes eu faço isso também. Todo mundo lá é tão legal.
Dolores sempre me dá café de graça e tal. Ah, e eu adoro o tubarão.”
“O tubarão?”, pergunta Eleanor.
“É, no aquário tem um peixe que meio que lembra um tubarão.”
“Uau. Um peixe que meio que lembra um tubarão. Tão interessante.
Nem consigo imaginar. E você, Samantha, consegue imaginar?”
Olho para Eleanor, que abre um sorriso que transborda falsidade. Seu
ódio por mim é tão claro e profundo quanto os olhos glaciais de Beowulf
iv. Tão transparente quanto a felicidade de Jonah. Isso está nítido para
mim agora, assim como já esteve antes.
Jonah olha para nós, radiante. Não percebe nada, é claro. Apenas duas
garotas sorrindo uma para a outra. Que legal.
“E aí, Samantha, como vai o seminário?”
“Jonah, tá tudo certo, ok?”, explodo.
Mas logo me sinto culpada, então trato de acrescentar:
“Tipo, está bem puxado. Estou me sentindo até um pouco
sobrecarregada.”
De canto de olho, vejo Eleanor se afastar.
“Ah, que pena, Samantha. Sinto muito.”
“Pois é. Enfim, acho melhor eu…”
“É por causa dos coelhos?”
“Quê?”
“No começo do outono, você estava conversando com uns coelhos. No
gramado, lembra? Você parecia meio assustada.”
“No gramado”, repito, e vejo Eleanor e as Bunnies se amontoando no
suv. Um de seus golden retrievers late e abana o rabo no banco de trás,
todo feliz. Cuidado ou elas vão acabar transformando você no Ryan Gosling.
Tento acenar para que ela pare, espere, mas Eleanor apenas sorri e dá uma
piscadela como quem diz: “Não estou indo embora porque sou uma vadia
desgraçada, e sim porque quero deixar você e esse moleque esquisito aí
mais à vontade para conversar”.
“Enfim, saiba que não fiquei bisbilhotando, tá?”, diz Jonah.
“Bisbilhotando o quê?”
“Sua conversa com os coelhos. Foi muito intensa?”
“Foi. Não. Sei lá, Jonah.”
Começa a chover forte outra vez. Ava. Ela poderia estar em qualquer
lugar a esta altura.
“Desculpe, mas tenho que ir.”
“Ei, Samantha! Espere! Está chovendo para caramba. Você não quer
uma carona?”
18

Estamos no carro de Jonah, que ele apelidou de Baleia. Ele dirige a


cerca de dez quilômetros por hora, com os olhos fixos na estrada enquanto
fuma e sorri com um ar sereno. O rádio toca um jazz estranho que consiste
em buzinas e estalidos.
“Espero que não esteja incomodada com a música”, diz Jonah.
“De jeito nenhum.”
Quero arremessar o cd pela janela e, se possível, atear fogo nele antes.
“Eu sou muito fã de jazz”, conta ele.
Já fomos à rodoviária, à estação de trem e à casa de Ava (vazia), depois
voltamos para a rodoviária.
“Você vai viajar, Samantha?”
“Vou. Não sei. Talvez.”
“Para onde você vai?”
“Ainda não decidi.”
“Ah, está sendo espontânea? Que legal.”
Mas Ava não estava na rodoviária nem na estação de trem.
“Decidiu ficar, Samantha?”, pergunta ele quando volto para o carro,
depois de ter rodado a rodoviária feito um zumbi pela segunda vez.
Concordo com a cabeça, o olhar voltado para o para-brisa.
“Legal, Samantha. Fico feliz. Bom, para onde vamos agora? Quer tomar
um chá? Você está com cara de que…”
“Será que a gente poderia só dar mais umas voltas de carro?”
Ela não pode ter ido muito longe com essa chuva, pode? Mas aí me
lembro daquelas noites de tempestade em junho. Nós duas bêbadas no
telhado. Ava olhando para o temporal como se fosse um lindo céu azul.
“Vamos dar uma volta”, sugeria ela.
“Tá doida? Com uma chuva dessas?”, mas ela já tinha saído.
Horas depois, eu acordava com as gotas de chuva que escorriam de seu
rosto. As roupas pretas coladas no corpo dela.
“Bom dia, raio de sol.”
“Claro, Samantha. A gente pode dar umas voltas. Aonde você quer ir?”
“Sei lá. Só dar umas voltas por aí.”
Olho pela janela, mas tudo que vejo é o céu cinzento, as gotas de
chuva escorrendo pelo vidro.
“Está mesmo com vontade de viajar, hein?”
“Arrã.”
“Eu fico assim também. Às vezes, passo horas andando de carro por aí.
Sem rumo mesmo. Eu sempre passava em alguma livraria, mas tive que
maneirar porque estava comprando livros demais. Na última vez que pisei
em uma, gastei quase cem dólares. Acho que até mais.”
“Mas isso é legal.”
“Pode ser, só que fiquei zerado de dinheiro depois. Mas valeu a pena.
Comprei uns livros incríveis de poesia e jazz. E um livro New Age insano
chamado Moonchild, escrito por um cara maluco do século passado. Bem
doido mesmo. Mas achei legal.”
Ele olha para mim, então concordo com a cabeça.
“Parece legal mesmo.”
Se a tempestade passasse, seria mais fácil encontrar Ava. O que
Eleanor pode ter dito a ela?
Aliás, Samantha me contou que na verdade odeia você.
Ah, saiba que Samantha tem a gente agora. Não precisa mais de você.
Mas não consigo imaginá-la dizendo isso sem enrolar o cabelo na ponta
do dedo como se estivesse em um filme dos anos oitenta. E por que Ava se
importaria com algo dito por Eleanor? Ela já tinha dito que iria embora.
Estou começando a passar mal.
“Enfim, fico feliz que você tenha decidido ficar, Samantha. A gente mal
se viu neste semestre. Acho que você tem saído muito com Eleanor e as
outras agora, né?”
Imagino o rosto de Eleanor, seus ossos delicados e angulosos, os olhos
como abismos de pedras preciosas, e de repente me lembro de que ela é a
Duquesa. Como posso tê-la chamado por qualquer outro nome? Ela me
olhou com uma expressão tão terrível, tão cheia de… o que era mesmo?
Conhecimento. Olhou para mim como se soubesse de tudo. Como se
tivesse um segredo apetitoso sobre mim. Tão doce. Tão cremoso, tão
aveludado. Eu conheço você, Bunny.
“Mais ou menos”, respondo.
“Que legal”, comenta Jonah. “Mas também meio estranho, né?”
Olho para ele.
“Por quê?”
“Porque você as odeia, não odeia?”
Sinto meu rosto corar.
“Eu nunca falei isso.”
“Falou, sim”, insiste Jonah. “Não lembra? Foi naquela festa na
primavera, a gente estava fumando lá fora. Eu ofereci um cigarro, mas você
acendeu pelo lado errado, lembra? Aí ofereci outro, mas você quis fumar
aquele mesmo, o que foi legal. Acho que você já estava bem bêbada. E aí
perguntei como andavam as coisas e você falou ‘Péssimas’, e eu perguntei
‘Péssimas como, Samantha?’, e você respondeu ‘As meninas da minha sala
são Rameiras, Jonah’.”
A lembrança me invade de repente. O cheiro horrível de filtro de
cigarro aceso e do meu próprio cabelo chamuscado. A bile na garganta só
de pensar nas Bunnies. Meu coração embriagado martelando depois de
todos os coquetéis que misturei naquela festa patética. O beco ficando
cada vez mais estreito. A noite tombando um pouquinho para a esquerda.
A raiva que senti ao vê-las aos arrulhos naqueles abraços pantanosos
enquanto choramingavam por ter que passar o verão sem se ver. Suas
declarações embriagadas: “Vou sentir saudade de você, Bunny!”; “Eu
também vou, Bunny!”; “Vou sentir saudade de você, Bunny!”; “Não, Bunny,
eu é que vou morrer de saudade”.
Rameiras!!!
“Eu nunca falei isso”, repito, com o olhar ainda fixo no para-brisa.
“Tenho certeza de que falou, sim. Lembro até que fiquei meio
surpreso, mas pensei: ‘Bom, elas estudam juntas, então ela deve conhecer
elas melhor’. Mas eu nem reparo nessas coisas. Ou pelo menos tento não
reparar. Pelo que vejo, elas parecem ser legais.”
Ele se vira para mim e sorri, radiante em seu mundinho onde todo
mundo é legal. Onde todo mundo tem ótimas intenções. Claro.
“Elas não são legais”, ouço-me dizer de repente. “Não mesmo.”
“Não são?”
E estou prestes a contar a ele que “elas vivem tirando sarro da sua cara.
Dizem que você está sempre chapado de dissulfiram e só escreve poemas
bons porque é todo fodido. Elas riram da roupa que sua irmã usou no sarau
do ano passado”. Chegaram até a me mandar uma mensagem só para falar
disso, e olhe que nunca mandavam mensagens para mim. Menina, você viu
aquele chapéu? Macaco cobrindo os olhos. Macaco cobrindo a boca. Gato
chorando de tanto rir.
“Não”, respondo, e então me viro para o encarar. “Não são.”
“Hum.” Ele parece confuso. “Então por que você é amiga delas?”
Pois é, Samantha, por quê, hein? Essa é uma ótima pergunta.
“Eu…” De rabo de olho, através do para-brisa molhado, acho que vejo
Ava. Sua silhueta coberta de couro preto se afasta depressa pela calçada.
“Jonah, pare o carro!”
Abro a porta e saio para a chuva fria assim que ele estaciona, e quase
caio na calçada tão escorregadia que parece coberta de gelo, mas corro até
alcançá-la. Ava. Cutuco o couro desgastado no seu ombro.
Uma estranha se vira para me olhar.

Quando volto, Jonah está me esperando no carro, onde estrondeiam


aqueles sons dissonantes. Eu me acomodo no banco do carona, o couro
todo puído, e afundo a cabeça molhada nas mãos.
“Samantha? Tá tudo bem?”
“Sim. Não.”
“Você está tentando comprar droga?”
“Quê?”
“Primeiro a rodoviária, depois a estação de trem, depois aquela casa
esquisita e por fim a rodoviária de novo… E você acabou de sair correndo
do carro para falar com aquela traficante? Isso sem contar que você está
parecendo meio chapada. Tipo, não estou julgando, mas…”
“Isso não tem nada a ver com drogas, Jonah, juro. É só que…eu perdi
uma coisa.”
“Ah, que pena. O que você perdeu?”
Ele parece tão preocupado, tão cheio de boas intenções. Não posso
contar a ele. Não tenho palavras nem fôlego para começar a explicar.
“Um livro”, respondo.
“Sinto muito, Samantha. Era seu livro preferido? Um que você levava
para todo canto?”
“Isso.”
“Bom, e se a gente for a uma livraria? Talvez esteja lá.”
“Não vai estar.”
“Tem certeza? As livrarias aqui da cidade são muito boas por causa do
fluxo de estudantes. A gente pode visitar uma por uma se você quiser. Só
não me deixe entrar junto, senão já viu, né…”
“Eu sei. Você vai querer comprar tudo.”
Ele sorri. Um sorriso tão gentil que fico até com vontade de chorar.
“Jonah, me desculpe, sério. Fiz você ficar me levando de um lado para
o outro debaixo de chuva…”
“Não tem problema, Samantha. Eu entendo. Livros… são como velhos
amigos. Nesse último verão, eu carregava quatro ou cinco livros comigo
para onde quer que fosse.”
“Você passou o verão aqui?”
“Arrã. Bem, passei uma semana com meu tio em Vancouver, mas
depois voltei. Acho que fiquei meio maluco. Até roubei um gato.”
Dou risada.
“Você roubou um gato?”
Ele olha para o para-brisa e sorri. Vejo que o cabelo tigelinha está um
pouco mais comprido, as pontas já um tanto desgrenhadas.
“Só por um dia. Três. Ok, uma semana. Aí eu devolvi. Fiquei me
sentindo mal. Os donos foram tão legais comigo. Queriam até me dar
dinheiro e tal. Mas falei que não precisava.”
“Por que você não foi passar o verão no Alasca?”
“Porque, se eu fosse, iria beber. Ei, olhe! Está nevando.”
Olho pela janela. Está mesmo nevando. Vejo os minúsculos flocos de
neve cortando o ar como peixes. Estamos perto do canal agora, e as pontes
estão cheias de pisca-piscas natalinos, assim como os postes de luz. “É
melhor você ficar por aí”, disse meu pai em meio à estática do telefone
quando comentei sobre o Natal. “Mas eu quero muito ver você”, tive que
repetir, cada vez mais alto até ele conseguir me escutar.
Eu sei. Nós dois sabemos que ele não pode vir me visitar, como já fez
questão de explicar várias vezes, sempre com muito tato. Diz que está
fugindo de alguém — investidores, credores, talvez até as autoridades, vai
saber. Nunca vou entender a história toda. Tem alguma coisa a ver com se
associar a pessoas que angariaram fundos para construir um resort e depois
deram no pé, levando o dinheiro e o deixando sozinho para arcar com a
culpa. Os investidores queriam o dinheiro de volta. Alguns deles “eram o
tipo de gente com quem você nunca deve fazer um empréstimo”, contou-
me ele. “Enquanto a poeira não baixar, é melhor eu ficar quietinho no meu
canto.”
“Bom, e se eu for até aí?”, perguntei.
Silêncio. Mais estática.
“Acho que é melhor você ficar por aí mesmo. Pelo menos por
enquanto.”
“Mas eu só quero saber se você está bem.”
“Estou ótimo.” Mas ouvi o tremor em sua voz. A respiração pesada.
Conseguia até imaginá-lo grisalho e exausto, sentado ao telefone enquanto
fumava seu cigarro interminável. Cachorros latindo ao fundo. Galos
cantando.
“Não tem nenhuma amiga com quem você possa ficar?”, perguntou.
Pelo para-brisa, vejo todas as pessoas que não são Ava passarem.
“Eu também passei o verão aqui”, conto a Jonah.
“Sério? Poxa, queria ter ficado sabendo disso antes. Você não foi visitar
a família nem nada?”
Ouvir a palavra família sempre me atinge como um soco no estômago.
Evoca um portão de ferro, cercas altas ao redor de uma casa com as janelas
iluminadas, para a qual olho de fora, espiando de um jeito constrangedor.
Fingindo que também tenho pessoas para visitar, lugares para ir.
“Meu pai está fora do país a negócios.”
Eu me arrependo da frase logo de cara. Estremeço antes mesmo de ele
perguntar.
“E sua mãe?”
E de repente ela está bem ali na minha imaginação. Um cigarro aceso
entre os dedos. Os cabelos escuros e incrivelmente elegantes. Sua voz me
chamando da sala de estar. Pedindo que eu fique com ela em vez de
escrever ou me distrair com qualquer joguinho imaginário que estivesse me
entretendo no quarto. Terra chamando Samantha. Está na hora de descer das
nuvens, por favor.
“Ela morreu.”
“Porra. Sinto muito, Samantha.”
“Está tudo bem.” Não está. “Já faz muito tempo.”
“Como ela morreu?”
“Vou dar um pulinho no mercado, já volto.” O jeito como ela disse isso
— tão leve e rápido ao passar pela porta —, a voz familiar de Grace Slick
quando ela deu partida no carro, o azul radiante do céu naquele dia… não
imaginei nada disso. Não imaginei nada além de que ela logo estaria de
volta.
“Acidente de carro.”
“Meu Deus. Quantos anos você tinha?”
“Treze.”
“Meu pai morreu quando eu tinha dezessete. Câncer de pulmão, então
a gente já meio que esperava. Mas foi difícil mesmo assim.”
“Sinto muito, Jonah.”
“Fiquei bem fodido da cabeça por um tempo. Foi assim que comecei a
sair da linha. Sabe, a questão das drogas e tal. Tipo, eu já usava antes, mas
depois disso meio que perdi o controle, acho. Como se estivesse sem chão,
sabe?”
Ele abre um sorriso triste para mim.
“Escute, por que você não dá uma passadinha lá em casa?”, continua
ele. “Posso preparar um chá enquanto a gente escuta uns discos. Talvez eu
tenha até um exemplar daquele livro que você estava procurando. Você
nem chegou a me falar o título.”
“Livro?”
E então me lembro de Ava. Lá fora. Debaixo da nevasca.
“Não posso. Tenho que ir. Acho que é até melhor eu já ir andando.”
“Ah, ok. Bom, espero que você consiga encontrar seu livro, Samantha.
Talvez ele encontre você. Às vezes isso acontece, sabe?”
Meu celular vibra no colo.
Você vem hoje, Bunny?
E em seguida: Nós queremos ter uma conversa com você.
Uma conversa. Algo dentro de mim me faz cerrar os punhos, que
depois relaxam.
“Na verdade, Jonah, será que você se importaria de me levar a outro
lugar?”
19

Quando chego à casa de Eleanor, a neve está caindo em flocos lentos e


volumosos. Como os de um conto de fadas. Ou de um filme. Flocos de
neve perfeitos caindo sobre casas perfeitas, cujas torres — torres de
verdade — assomam brancas e pontiagudas como presas sob a lua perfeita.
Uma fina camada de neve cintilante reveste o gramado perfeito.
“Que lugar lindo”, disse Jonah quando estacionamos.
Agora vejo o carro se afastar pela rua até sumir de vista. “Elas não são
legais”, contei a ele. Saber disso me enche de coragem. Essas palavras
saíram dos meus próprios lábios. Enquanto caminho até a porta, trato de
mantê-las comigo. E do outro lado da porta imagino que estejam
cochichando sobre mim. Na verdade, sei que estão. Sei que Eleanor já lhes
disse alguma coisa. Não sei exatamente o quê, mas eu a imagino
acomodada na poltrona que mais parece um trono enquanto as outras se
amontoam ao seu redor. Prontas para engolir qualquer meia verdade
perversa a meu respeito como se fosse um doce barato. Quase ofegantes
em sua ânsia de regurgitar pequenas pepitas que validem as acusações de
Eleanor.
“Naquele dia, ela mal tocou no cupcake. Aposto que nem gosta de
cupcake.”
“Acho que ela só toma o iogurte da Pinkberry para agradar a gente e,
tipo, não faça isso só para agradar, sabe?”
“Tenho quase certeza de que ela chupou Você-Sabe-Quem. Deve ser
por isso que ele estava tão interessado nos textos dela no último outono.”
“Gente, vocês precisam ver o apartamento dela. Parece uma cela. Juro.
É igualzinho. É tudo tão sombrio, tão triste. Queremos mesmo nos cercar
de tristeza? Queremos uma nuvem para cobrir nosso sol?”
Toco a campainha. Estou aqui para perguntar uma coisa a Eleanor,
nada mais: “O que você disse para Ava?”.
Elas odeiam você, não esqueça. E você odeia todas elas. Repito isso sem
parar, como se fosse um mantra.
E de repente escuto um som fraco atrás de mim, como um galho se
partindo. Eu me viro, esperando ver um coelho ou um esquilo fugindo em
direção às árvores. Mas o que está ali faz todos os meus pelos se
arrepiarem.
Um cervo. Parado a poucos metros de mim no jardim coberto de neve.
Ele olha diretamente para mim, me examinando com aqueles olhos de
fumaça líquida.
Observo seu grande corpo luzidio sob a lua, a sombra que sua galhada
deixa na neve, a pontinha dos chifres afiados que poderiam me perfurar
como se eu não fosse nada. Ele é lindo. Tão lindo que por um segundo
esqueço onde estou, quem sou e por que estou ali. Só tenho consciência
das batidas aceleradas do meu coração.
Ele deve ter vindo da floresta atrás da casa de Eleanor. Mas a presença
dele, tão colossal e viva e selvagem, confere um aspecto etéreo ao jardim
pitoresco, ao absurdo de eu estar ali enquanto as Bunnies me esperam lá
dentro. Tudo parece um sonho.
E então ele olha para mim. Realmente olha para mim.
“Oi, Samantha. Conte-me tudo”, diz uma voz às minhas costas.
A porta da casa está aberta. Parado na soleira está Soldador Francês
Órfico Que Toca Guitarra, um de seus experimentos que deram errado
muito antes da minha época. Como de costume, parece afundado em
depressão. Provavelmente porque, assim como muitas das criações delas,
ele não sabe o que é. É só mais um fruto de seus caprichos combinados.
Nada além disso. O terno azul-escuro não esconde a deformidade do seu
corpo. As luvas pretas cobrem o que parecem ser patinhas minúsculas.
Estou surpresa que ele não esteja morto ou trancado no porão, ou
então correndo em círculos em um campo qualquer, que é o destino da
maioria deles. Às vezes, quando eles são bonitos e dóceis, elas os mantêm
por perto, fazendo-os de servos até que se cansem deles. Este parece uma
versão deformada de Montgomery Clift.
“Samantha”, continua ele. “Você sabe que estou disposto a caçar por
você, filha de Woolf.”
“Sim. Eu sei.”
Não esqueça, não esqueça os mantras.
“Venha, Samantha. Entre.”
Quando me viro para procurar o cervo, ele já não está mais lá.

Sigo o Soldador Francês Órfico até a sala de estar, onde as quatro estão
sentadas em uma rodinha, os golden retrievers de Eleanor logo ao lado.
Está na cara que estavam falando de mim. Estão com as bochechas
coradas e rechonchudas de quem comeu muito doce, mas na verdade é o
Brilho da Fofoca, o ar de rubor que surge ao puxar o tapete de outra
mulher. O cômodo está tomado pelo aroma de seus perfumes relvados e
seus condicionadores orgânicos. Diante de cada uma delas há uma tacinha
cheia até a borda com um líquido violeta e borbulhante, com algo que
parece um globo ocular assentado no fundo. Uma lichia.
Sinto o coração martelar no peito. Os mantras. Não esqueça os
mantras.
“Samantha, estamos tão felizes por você estar aqui.”
“Samantha, a gente estava conversando…”
E então se entreolham.
“E tem algo que queremos lhe dizer.”
De repente, toda a minha determinação cai por terra. Eu também tenho
algo a dizer! Tenho mesmo. Não tenho?
“O que é?”
Elas trocam outro olhar entre si.
Vão me dizer que devo ir embora. Vão me expulsar do grupo. Vão tirar
seus Queridinhos do porão e ordenar que me acompanhem até a porta da
frente. E eles vão me encarar com seus olhos insípidos e brilhantes e abrir
suas bocas malformadas para dizer: “Vá embora”. Os mais burrinhos vão
apenas apontar para a porta. E aí eu não terei escolha a não ser retornar a
um mundo frio sem Ava. Retornar ao meu quarto de paredes finas,
espremida entre o gigante pervertido e a garota de rosto pálido, e para a
escrivaninha que tenho evitado.
“Sobre o que vocês queriam conversar?”, pergunto.
“Sente-se.”
“É que você é tão alta”, explica Boneca Sinistra. “Então vai ser menos
estranho se você se sentar.”
Elas apontam para um pufe vazio no chão, onde me acomodo de frente
para elas. Parece aquela primeira noite, muito tempo atrás, quando
pediram que eu lhes trouxesse um coelho. Um ultimato, penso. Elas vão
me dar um ultimato. “Você não pode. Você…” A Duquesa sorri para mim.
“Quem quer contar para ela?”
“Conte você, Bunny.”
“Não, é melhor você.”
“Que tal se todas contarmos juntas?”, oferece ela, como se fosse um
petisco.
“Vamos contar juntas.”
“Mas primeiro vamos contar até três, né?”
“Isso! Um… dois… três.”
E então uma enxurrada de palavras gritadas e incompreensíveis,
seguidas de uma explosão de gargalhadas.
“Ai, gente… vamos tentar mais uma vez, ok?”
“Ok!”
“Um, dois, três.”
A cena se repete. Elas desatam a rir e eu continuo as observando do
pufe. “Puta merda, vá embora. Só dê o fora daqui. Por que não levanta e
sai?”, pergunta uma voz feminina no meu ouvido. Um pouco irritada. Já
quase sem paciência. E cada vez mais distante. A voz de Ava. Minha voz. O
ódio fervilha na minha alma e mesmo assim estou paralisada pelo medo de
que elas me expulsem de vez.
A Duquesa pousa a mão no joelho de Cupcake e, uma a uma, elas se
calam, como em um efeito dominó.
“Samantha”, começa a Duquesa depois de uma longa pausa, “queremos
que você lidere o seminário esta noite.”
“Achamos que você está pronta, Bunny.”
“Na verdade, estamos ansiosas para ver do que você é capaz.”
“Toda essa sua energia bruta em ação. Toda essa sua imaginação.”
Sorrisos acanhados, diminutos, por toda parte. Seguidos por uma
expressão preocupada — olhos piscando sem parar — ao fitar meu rosto,
que deve estar se contorcendo involuntariamente, só pode estar.
“Bunny, o que foi?”
“Você está chorando, Bunny?”
“Não chore, Bunny.”
“Desculpem. É só que eu achei que vocês iriam dizer outra coisa.”
“O que você achou que a gente iria dizer?”
“Sei lá, eu só…”
Por causa das lágrimas, eu as vejo como silhuetas borradas e aquosas.
Elas se transformaram em uma bolha disforme cor de pêssego com um
vestido arco-íris em tons pastel, os golden retrievers assomando como
pilares reluzentes de cada lado.
“Achou que a gente iria expulsar você? Que não queríamos mais ser
suas amigas?”, pergunta a bolha, com um tom preocupado.
Olho para a bolha, que ri baixinho com todas as suas bocas.
“Bunny, a gente não está mais no ensino médio.”
“Nem na graduação, Bunny.”
“Nem em um filme dos anos oitenta.”
“Nem mesmo em um dos anos noventa.”
“Somos todas adultas instruídas aqui.”
Atrás da bolha, vejo outro Queridinho à espreita. Ele segura uma
colher de pau em uma das mãos e um martelo na outra. Cozinteiro, já que
elas não conseguiram decidir se ele deveria ser chef de cozinha ou
carpinteiro. Eu o vejo mexer e martelar o ar em confusão. Depois me
observa com aquele olhar aflito, vazio.
“Aqui, Bunny”, diz a bolha, e então me entrega Pinkie Pie, o pônei que
elas usaram como símbolo de seus desejos — complexos e cheios de
nuances — naquele primeiro dia no Mini.
Analiso seus olhos gigantescos de plástico, grandes demais para sua
cara de cavalo.
“Nem sei o que dizer.”
“Esse é o lado bom de ser nossa amiga, Bunny.”
“Às vezes nem precisa de palavras.”
“Você poderia nos mandar um emoji de baleia amanhã à tarde e nós
diríamos: A gente entende. A gente sabe muito bem o que você está
sentindo.”
A bolha assente com as quatro cabeças. Depois se levanta de seus
muitos tronos. E se aproxima de mim meio sem jeito, quase acanhada.
Hesita por um instante. Então avança e me envolve com todos os seus
braços. Pressiona seu corpo cheio de seios contra meu rosto, e só consigo
sentir o aroma de cupcake e perfume relvado. Começo a me afogar. Estou
sufocada. Fervilhando de ódio. Tomada por um desejo desesperado de
escapar desse abraço açucarado. Digo a mim mesma que preciso lutar
contra isso — não esqueça que você as odeia, não esqueça que elas odeiam
você —, mas tudo desmorona de uma vez. Eu sucumbo a elas. Permito que
essa necessidade doentia, a qual repulsa nenhuma consegue matar, seja
resgatada da escuridão fria e úmida e então acariciada. E eu me derreto em
seu abraço, me deixando, ou melhor, desejando ser esmagada. Até me
tornar parte da bolha. Ou quase isso.
“Bunny”, diz uma das bocas, “vá buscar o coelho.”

Elas contam que o apanharam para mim mais cedo naquele dia. Quando
puxam o pano vermelho que cobre a gaiola, chego a arfar.
“O que você achou? Não é perfeito?”
“Nós olhamos para ele e pensamos ‘aimeudeus, esse coelho é tão a cara
da Samantha’.”
“Tão fofo, mas também meio assustador.”
Contemplo a monstruosidade felpuda à minha frente. Branco como a
neve. Orelhas e focinho pretos. Uma manchinha escura em cima de um
dos olhos vermelhos, como se estivesse de tapa-olho. Nem sei dizer se é
lindo, horrível ou só sinistro pra cacete. Mas elas o pegaram para mim.
Olho para seu rostinho manchado e fico emocionada com o gesto.
“É perfeito mesmo”, respondo. “Obrigada.”
“A gente tinha certeza de que você iria gostar.”
Elas acenderam as velas perfumadas e um incenso que parece mais
almiscarado, mais picante, mais pútrido do que os de baunilha que
costumam usar.
“Perguntamos ao Fern na loja qual era o melhor incenso para quem é
meio vadia.”
“Tipo, se você fosse uma vadia, mas no bom sentido, sabe?”
“Ou se você fosse só uma vadia mesmo.”
“E ele nem pestanejou, só respondeu: ‘Ah, este aqui’.”
“Nada de estímulos audiovisuais esta noite”, disseram elas, “porque
você com certeza não precisa disso, Samantha. Não queremos influenciar
sua essência. Não queremos atrapalhar seu fluxo criativo.”
Não sei há quanto tempo estamos sentadas ali, observando essa criatura
que se enrolou como uma bolinha imperturbável. Seus olhos vermelhos
zombam de mim. Sua expressão ri da minha cara. Exploda. Exploda de uma
vez, seu merdinha.
Caroline esconde um bocejo. Victoria boceja na cara dura. Kira olha
para o relógio, depois para cada uma delas e depois de volta para o relógio.
Eleanor mantém os olhos vidrados em mim.
“Desculpe”, peço baixinho. “Eu nunca fiz isso antes.”
“Não precisa pedir desculpa, querida. Acontece. Tipo, nunca
aconteceu comigo.”
“Nem comigo.”
“Nem comigo. Mas sempre fico paranoica achando que vai acontecer,
sabe?”
“Você precisa se divertir, usar sua intuição, deixar a imaginação correr
solta”, aconselham elas.
“Toda aquela energia bruta e raivosa.”
“Todas aquelas coisas sombrias e complexas que aparecem nos seus
textos.”
“Ela já entendeu. Estou entediada para caralho aqui. E excitada
também.”
E então sorriem para mim. Com tanta bondade. Estamos ansiosas para
ver, Samantha. Estamos ansiosas para descobrir do que você é capaz. E me
sinto como naqueles casos em que alguém pede para você sorrir para a
foto, e no instante seguinte sua boca fica travada. Você percebe que não
consegue mais mexer os lábios.
O tempo passa, não sei quanto. Nada muda. Peço desculpas outra vez.
E elas abrem aqueles sorrisos inundados de algo que não consigo decifrar.
Decepção? Impaciência? Prazer?
“Talvez você só esteja pensando demais, Samantha.”
“Talvez seja melhor simplificar as coisas.”
“Talvez um estímulo audiovisual venha bem a calhar, afinal?”
“Talvez você possa imaginar todos os caras com quem gostaria de
trepar”, sugere Victoria. “Que tal?”
Um monte de atores e cantores passam pela minha cabeça. Tento ir
além. Imagino que estou estirada sobre lençóis baratos e penso nas
músicas que me fariam sentir que estou flutuando em direção ao teto. A
brisa úmida da primavera soprando pela janela. O dulçor relvado que ela
traz. A sombra linda e comprida que Rob Valencia projetava ao passar por
mim no corredor da escola, deixando para trás seu aroma de fumaça e
animais abatidos. O Leão mexendo o chá enquanto me conta alguma coisa,
mas nem sei o quê. Porque atrás dele, pela janela, eu podia admirar a
vastidão daquele céu amarelo-púrpura que ele podia contemplar a
qualquer hora. Penso em dançar com um Diego que nunca teve rosto. O
cheiro de sálvia salpicada de chuva. Tendões retesados no pescoço. Os
braços musculosos e tatuados de um cuspidor de fogo que vi certa vez em
Edimburgo. A maneira como me olhou quando enfiou a chama na boca.
Um lobo caolho pelo qual fiquei obcecada quando visitei o zoológico na
adolescência. Seria terrível se ele escapasse, mas de certa forma seria lindo
também. E então eu penso no cervo que acabei de ver lá fora. Os olhos
como fumaça líquida. Já deve ter desaparecido entre as árvores outra vez.
“Samantha?”
Mas o coelho continua onde está. Confirmando meus piores medos.
Confirmando que não sou igual a elas, afinal. Não consigo fazer isso,
jamais conseguiria.
“Será que não é melhor a gente ajudar?”, sugere Caroline. Mas ela não
está olhando para mim, e sim para Eleanor, que balança a cabeça devagar
como quem diz: “Nada disso. Samantha é quem deve lidar com esta
catástrofe”.
Ocorre-me de repente que esse convite pode não ser um gesto de
bondade ou confiança, e sim um teste. Ou, pior, uma forma de me
humilhar, para esfregar na minha cara que são elas que têm o dom, não eu.
Você não, Samantha. Foi mal. Simplesmente nascemos com essa habilidade.
Nós a herdamos, assim como nossas casas de praia, nossos pianos de cauda,
nosso gosto perfeito e cheio de nuances.
“Acho que não consigo”, declaro. “Desculpe.”
Olho para as quatro. Estão felizes? Irritadas? Com pena de mim? Nem
sei dizer. Os sorrisos vacilam por um instante. E então elas deixam escapar
pequenos suspiros de frustração.
“Você precisa ser mais confiante, Bunny.”
Pelo seu tom de voz, fica claro que isso já foi tópico de discussão em
uma de suas reuniões perfumadas. Uma nuvem de cochichos maliciosos
como pó mágico envenenado.
Samantha não tem um pingo de confiança, é tão frustrante.
Ela não acredita em si mesma. Tipo, se liga, sabe?
Dá vontade de sacudi-la pelos ombros, mas com delicadeza.
Ou dar um tapa na cara dela.
Ou de repente um soco, quem sabe? E depois dizer amo você. Você é
incrível.
“Você precisa se concentrar mais.”
“Esvazie sua mente.”
“Pense no que você deseja, Samantha”, diz a Duquesa de repente,
como se quisesse ir direto ao ponto. “É só pensar naquilo que você quer.”
O que eu quero ou o que você quer que eu queira? Não é tão simples
assim.
“É simples assim, Bunny.”
Então olho atentamente para os olhinhos vermelhos e redondos do
coelho, que continua ali, enrolado em si mesmo como um pequeno e
felpudo “Se Fode Aí”.
“Você não faz ideia mesmo, né?”, o coelho parece me dizer. “Que triste.
Muito triste, Samantha. Estar perdida desse jeito. Triste, triste, triste saber
que, quando alguém pergunta O que você quer?, a única coisa que lhe
vem à mente é um par de punhos segurando um monte de cacos.”
Ergo a cabeça e vejo que as quatro me observam com seus olhos de
fadas. Estão tirando uma com a minha cara. Só pode ser. E ainda assim
sinto aquele olhar revirar minha alma, saqueando qualquer dor e desejo
que elas acreditam residir ali. Todas as coisas que as impediram de se
aproximar de mim no ano passado, e que de alguma forma agora as atrai.
Uma ervilha a ser colocada debaixo de seus vinte colchões de modo que a
consigam sentir durante a noite, alguma coisa lá das Profundezas onde elas
acham, onde de alguma forma dei a entender, que moro. Liberte tudo,
Bunny. Mostre para nós. Ou faça papel de boba enquanto assistimos de
camarote.
“Vamos lá, Samantha.”
Fecho os olhos e vejo Ava, sozinha enquanto vaga sem rumo pela neve
com seus sapatos gastos. Ava e eu dançando no telhado da casa dela. Com
quem estávamos dançando mesmo? Com ninguém. Uma com a outra.
Com o ar. Lembro-me das noites que passei sozinha. E de repente percebo
que qualquer dor e desejo que eu sinta, qualquer coisa que se esconda sob
essa necessidade ensebada e covarde de agradar, não é algo que eu queira
entregar a elas.
O coelho olha para mim. Mexe as orelhas. Depois finalmente se
empertiga. Em seguida, me encara fixamente com seus olhinhos vermelhos
de coelho e sai correndo do círculo.
Sai pulando, acho, é um jeito melhor de descrever.

“Não se sinta mal”, dizem elas. “Sabemos que você está se sentindo assim.”
“Acontece. Tipo, nunca aconteceu antes”, comenta Cupcake, olhando
para Boneca Sinistra.
“Mas pode acontecer”, concorda Boneca Sinistra. “Tipo… acho que
pode.”
“Acabou de acontecer”, diz Vinheta, como se quisesse me fuzilar com
os olhos.
As três se viram para a Duquesa, que não precisa dizer nada, pois seu
silêncio diz tudo. Ela beberica seu coquetel violeta, que Borges Julio
Bolaño vii preparou com todo o cuidado. Até colocou uma lichia a mais, do
jeitinho que ela gosta.
“No que você estava pensando, Samantha?”
“Nada”, minto. “Só tentei pensar no que eu queria, como vocês me
instruíram.”
Elas olham para mim. Mentirosa.
“Mas você mentalizou? Tentou se concentrar? Como a gente falou?”
“Arrã. Bom, eu tentei.”
Mantenho o olhar fixo no piso imaculado, o assoalho de cerejeira
escuro, polido e sem arranhões até onde a vista alcança.
Vinheta fica de pé.
“Vou embora”, avisa. “A gente se vê na aula amanhã.”
Nós a observamos se afastar. Ouvimos seus coturnos marchando pelo
corredor. Aí ela se detém de repente.
“Aimeudeus, gente”, grita diante da porta. “Venham aqui.”
Lá fora, na neve que reluz ao luar, avistamos um monte de pegadas de
algum animal. Elas começam bem no meio do gramado, logo abaixo da
janela, e seguem em uma trilha sinuosa pela neve, dando uma volta ao
redor de uma árvore esguia antes de alcançar a calçada e atravessar a rua
até o ponto de ônibus.
Não podem ser de um coelho, acho, pois são grandes demais, mas
então sigo o olhar de Vinheta e avisto uma figura curvada sob o toldo do
ponto de ônibus.
A figura de um garoto.
Um garoto.
Meu coração começa a martelar forte no peito.
20

Ele está parado nos fundos do ponto de ônibus, ao lado de um painel de


vidro estilhaçado. Com fones de ouvido, um cigarro entre os lábios. Não
ergue o olhar, apesar de cinco garotas desagasalhadas terem acabado de se
juntar a ele sob o toldo gotejante, encarando-o sem parar.
“E aí, Samantha?”, sussurra Boneca Sinistra, puxando a manga da
minha blusa.
A lua se escondeu atrás de uma nuvem, então não consigo ver o rosto
dele. Só percebo uma inclinação lupina em seu semblante. Cabelos
escuros, desgrenhados. Casaco preto surrado. Ele começa a balançar a
cabeça ao ritmo da música que está ouvindo. A verdade é que parece um
cara qualquer esperando o ônibus.
“É um desses esquisitões de ônibus”, cochicha Cupcake, observando-o
atentamente.
“Um esquisitão bem gostoso”, corrige Vinheta. “Mandou bem,
Samantha.”
“Mas olhe só o que ele está vestindo. Deve ser satanista.”
“Ou talvez um estudante de arte? Ou vai ver é morador de rua”,
sussurra Boneca Sinistra com sua voz de abraço grupal.
“Ele não bateu na porta da frente”, diz Cupcake baixinho. “Eles sempre
batem.”
“Bom, talvez o coelho da Samantha seja diferente”, teoriza Boneca
Sinistra. “Talvez seja mais… sei lá… babaca? Ou algo assim?”
Elas se viram para mim, como se esperassem algum tipo de declaração.
E aí? Ele é ou não é? Responda por ele, por favor. Eu o observo outra vez.
Está totalmente alheio à nossa presença, ou ao menos é o que parece. É
alto e largo como uma sequoia. Tem maçãs do rosto afiadas como facas. O
cabelo lhe confere um ar meio punk, com um quê de assassino. Parece
estar sorrindo sozinho. Será que está? Sim, sorri como se a música lhe
contasse um segredo. Então começa a cantarolar baixinho com uma voz
profunda.
“Não sei”, respondo.
“Você deveria falar alguma coisa para ele. Só por via das dúvidas…”
Mesmo na penumbra, ele parece capaz de nos decapitar em um
segundo. Exala uma energia que deixa claro que é melhor nem chegar
perto.
“Tipo o quê?”, sibilo.
“Sei lá. É o seu coelho. Ou talvez não.”
“Gente, mas que inferno, não é como se ele pudesse nos ouvir, sabe?”,
diz Vinheta com sua voz normal. “Fiquem olhando. ei, você é um garoto
ou um coelho?”
“Shhh. Cale a boca!”
“Oi?”
O cara desliza os fones de ouvido até o pescoço. Agora está olhando
diretamente para nós, seu rosto ainda oculto pelas sombras, mas consigo
distinguir uma boca perfeita, sem cicatrizes. Curvada em um leve sorriso.
Será que por nossa causa? Pode ser.
As Bunnies me empurram um pouquinho para a frente.
“Oi, desculpe incomodar”, digo a ele, que deve ser um cara qualquer.
Talvez um assassino. Ou um decapitador, mais provável. “A gente estava
procurando… a gente perdeu uma coisa.”
“Um coelho”, explica Cupcake. “Por acaso você viu um por aqui?”
“Pulando por aí?”, acrescenta Boneca Sinistra.
“Ou um garoto”, diz Vinheta, com uma voz que parece arreganhar as
pernas. As outras a fuzilam com o olhar.
Ele nos encara, mas não diz nada. Será que podemos ir embora antes que
ele nos mate? Mas estou presa ali, elas me encurralaram com seus ombros
ossudos.
“Um coelho, sabe?”, continua Boneca Sinistra. “Orelhas compridas?
Pulando por aí?”
“Ele sabe o que é um coelho, Bunny”, ralha Cupcake.
“E o que é um garoto”, acrescenta Vinheta, num tom de voz que parece
arreganhar as pernas ainda mais.
Aimeudeus, calem a boca, penso. Só calem a porra da boca e vamos dar o
fora daqui.
O cara franze a testa, como se estivesse pensando. Pela abertura do seu
casaco, vejo uma camiseta preta com estampa de uma caveira sobre um
mar iluminado pela lua.
“Um coelho”, diz ele devagar, com os olhos fixos em mim.
A voz dele é grossa, como se as palavras tivessem um gosto
surpreendentemente bom na boca. Precisa de uma pitadinha de sal, mas
não é ruim.
“É, com certeza vi um coelho.”
“Sério?”, pergunta Cupcake com avidez.
Mentiroso, penso.
A fumaça escapa de suas narinas como duas cobras idênticas.
“Arrã. Pulando bem ali na neve. Orelhas compridas e tudo. Foi para lá.”
Ele aponta para a rua.
“Obrigada!”
“Mas aí morreu tragicamente”, acrescenta ele.
“Quê?”
E então esboça um sorriso com seus lábios imaculados.
“Um lobo-vermelho surgiu do nada. Rasgou a garganta do pobrezinho.
Bem diante dos meus olhos. Foi tão triste.”
E de repente ele abre um sorriso de tristeza fingida, mas percebo que
elas estão caindo feito patinhos. Os olhos dele pousam em mim. Não são
vazios, nem azuis. Começo a sentir um arrepio na nuca.
“E aí o lobo o arrastou pelo pescoço até aqueles arbustos ali atrás.”
Olhamos para o lado, e a neve ao redor dos arbustos está mesmo
salpicada de pegadas diminutas. As quatro ofegam de um jeito teatral,
como se fossem garotinhas, e agarram meus braços como pítons.
“Não foi nada bonito de se ver”, comenta ele.
“Foi muito ruim?”, pergunta Vinheta.
Ele a observa com um ar sonhador, contemplando seu adorável rosto
cadavérico.
“Foi nojento”, responde baixinho, fazendo careta. “Tipo… eca.”
Eu as sinto assentir em concordância ao meu redor. “Eca. Credo. Que
nojo.”
“Vocês já ouviram um coelho gritar?”, pergunta ele.
Elas negam com a cabeça. “Não”, mentem. “Nunquinha.”
“É um som horrível. Mas também foi…”
Ele se detém. Dá para sentir o sangue delas fervilhar sob suas peles
macias.
“Bonito”, conclui por fim, e nos encara de um jeito tão sério, tão
intenso que mesmo com medo sinto vontade de cair na gargalhada. Então
as quatro suspiram ao mesmo tempo.
“Bonito”, repetem.
“Deve ter sido mesmo.”
“Sim.”
“Muito bonito.”
As quatro o observam com os lábios entreabertos, puxando as mangas
umas das outras e as minhas também. Mudam de posição. Ajeitam o
cabelo. Deslizam a língua pelos dentes.
Ele olha para mim e pergunta:
“Seu?”
“Meu?”
“O coelho.”
“Ah. Sim.”
“Mais ou menos”, corrige Boneca Sinistra.
“Estava mais para um esforço coletivo, para ser sincera”, explica
Cupcake.
“Era nosso”, declara a Duquesa friamente, e percebo que ela não tinha
dito nada até então. “Era nosso coelho.”
“A natureza é tão cruel”, comenta ele. “Tão selvagem.”
Então ele enfia a mão no casaco e as meninas ofegam outra vez.
Revólver? Faca? Machado? Cigarro. Isqueiro. Um vislumbre de seu rosto
lupino nas chamas. Mãos sem luvas e totalmente humanas. Sem garras,
sem cascos, apenas carne e osso. Mesmo que eu já soubesse que seria
impossível, sinto o coração afundar no peito. Um fracasso. Eu sou um
fracasso.
Eu me viro para ir embora, crente de que elas vão me seguir. Mas as
quatro continuam ali, observando-o fumar na escuridão.
“Meu nome é Caroline.”
“Kira.”
“Victoria.”
“Eleanor.”
Ele olha para mim. “E você?”
“Samantha”, digo.
“Samantha”, repete ele. Percebo que está sorrindo para mim em meio
ao breu.
“Quer uma carona?”, oferece Cupcake.
Ele se vira para ela, com seu vestido estampado com unicórnios
saltitantes.
“Acho que já não tem mais ônibus neste horário”, acrescenta ela.
Bem nesta hora, um ônibus começa a dobrar a esquina. Então ele se
empertiga em toda a sua altura e nem precisa pedir licença. Quando segue
em direção à entrada do ônibus, nós cinco nos afastamos como um mar
sereno. Ao passar por nós, sinto uma lufada de algo animalesco, vivo.
Urgente e vital como sangue. Depois um toque de sálvia branca.
“Para onde você vai?”, pergunto.
Ele sorri para mim.
“Para casa.”
“Para casa”, repito, mas escuto um eco. Será que tenho outras bocas?
Não. Todas nós falamos ao mesmo tempo.
“Onde fica sua casa?”, pergunta uma delas. Eleanor.
Mas ele apenas coloca os fones de ouvido outra vez. De repente, sinto
a neve lamacenta ao redor dos meus pés. Começo a tremer. Elas se
desvencilham dos meus braços enquanto eu o vejo desaparecer no ônibus.
E então vejo o ônibus desaparecer na escuridão.
21

Este é o último seminário do semestre. Volto a me sentar sozinha como


antes, no lado oposto do quadrado oco de carteiras, e tento furar a parede
da Caverna com os olhos. Queria que tivesse um relógio aqui. Uma janela
pela qual meu cérebro pudesse escapar, deixando para trás meu corpo,
esse saco inerte de carne. Olho para Fosco, que derrama seu discurso tolo
de fim de semestre. Sobre a mesa há um saquinho fechado de castanhas
de caju. Uma garrafa de vinho tinto nem tão cara, nem tão barata. “Para
celebrar nosso pequeno Círculo”, disse ela. Porque nós, meninas,
realmente “Cutucamos a Ferida”.
Observo seu terrier, hoje com um suéter natalino, rodopiando em
círculos. “Fracasso. Eu sou um fracasso.”
“O que foi que disse, Samantha?”
“Nada.”
Ela retoma seu discurso enquanto as quatro assentem em
concordância. “Isso mesmo, MuiMui. A Ferida. O Círculo.” Elas não
olham para mim. Também não olho para elas. A noite passada se
transformou em um daqueles assuntos em que nunca se deve tocar, como
perguntar a alguém seu salário ou quem foi que peidou.
“Que pena, Samantha”, me disseram logo depois. “Às vezes a gente
fracassa. De um jeito miserável, irrecuperável. Acontece com todo mundo.
Bem, com a gente não. Nunca passamos por isso. Mas pode acontecer. Na
teoria. E aquele cara! Nem acredito que ele não nos estuprou. Várias vezes.
Ou nos matou. Ou fez alguma outra coisa doentia com a gente, sabe? E,
aimeudeus, aquela história que ele contou sobre o lobo? Tão esquisito. E
distorcida, dava pra ver. A gente não devia ter falado nosso nome para ele,
né? Mas ele nem vai se lembrar, vai? Tipo, não tem como rastrear a gente,
tem? Será que tem? No Facebook ou algo do tipo? Ele é maluco,
esqueceu? Um assassino. Nem deve ter Facebook. Eu estava prestes a
chamar a polícia. Ou os seguranças do campus. Ou, sei lá, a gritar
‘estuprador’. Mas o certo é gritar ‘fogo’. Porque ninguém vem ajudar
quando você grita ‘estuprador’, você sabia disso, Bunny?”

Que especial tem sido este grupo, diz Fosco, e, pela maneira como ela
evitou meu olhar, sei que está se referindo a elas, não a mim. O primeiro
grupo de ficção exclusivamente feminino da Warren. E com talentos tão
variados, tão grandiosos. Uma energia coletiva tão distinta. Nós realmente
nos exploramos a fundo. Realmente abraçamos a Experiência. Todas nós,
continua ela, e mais uma vez fico de fora do falso abraço mágico e
maternal de seu olhar.
“Ursula”, chama a Duquesa de repente, e aperta as mãos de Cupcake e
Vinheta, que a cercam como dobermanns, “acho que falo por todas nós
quando digo que foi um privilégio enorme trabalhar com você. Essa
experiência redefiniu a forma como abordamos a Obra. Aprendemos muito
com você, todas nós.”
Vejo quando entregam a ela um vaso de fícus adornado por um grande
laçarote vermelho, e eu nem fazia ideia de que pretendiam presenteá-la
com isso, nem sequer me pediram para ajudar no rateio. Tem um cartão
também, com um coelhinho vestido de Papai Noel, assinado por todas
elas, menos eu.
“Hum, quando vocês planejaram tudo isso?”, pergunto.
Mas minhas palavras se perdem em meio ao arrulho coletivo. Fosco
leva a mão ao peito, como se estivesse profundamente emocionada. As
Bunnies fingem estar emocionadas por sua falsa emoção. Ou será que é
tudo emoção genuína? Já nem sei mais.
“Ora, meninas”, diz Fosco. “Vocês não precisavam ter feito isso. E com
o dinheiro da bolsa, ainda por cima.”
“Ah, faça-me o favor, elas são ricas”, quero gritar. Mas apenas continuo
sentada onde estou, com um sorriso congelado no rosto, pregado no lugar,
embora abalado por espasmos.
“Mas a gente quis mesmo assim”, responde a Duquesa.
Fosco parece tão emocionada que seu lenço de seda chega a ondular
com a intensidade de sua empolgação fingida. Diz outra vez que devemos
aproveitar este período de férias, porque o próximo semestre, o último
antes de nos formarmos, vai passar voando igualzinho a este. E espera que
já estejamos bem encaminhadas na nossa dissertação, porque,
infelizmente, a jornada coletiva termina aqui. No próximo semestre vamos
ter que Cutucar a Ferida por conta própria. As quatro assentem em
concordância, de um jeito humilde, respeitoso, mas eu nem me mexo. Por
que não tem um maldito relógio nesta sala? É muito desorientador não
saber a hora.
“Alguém sabe que horas são?”, pergunto.
Todas se viram para mim, em choque, como se só agora tivessem
notado minha presença.
“Está com pressa para ir a algum lugar, Samantha?”, pergunta Fosco.
“Não. É só que… eu gosto de saber que horas são, nada mais.”
“Entendo.”
Ela me olha como se talvez fosse melhor eu analisar essa vontade.
Esmiuçá-la. Virá-la do avesso. Recorrer ao tarô, a uma pedra rúnica, às
folhas de uma erva amarga que mastiguei e cuspi.
“Bom, eu prefiro não saber”, comenta Vinheta.
“Eu também. Tão melhor”, concorda Boneca Sinistra.
“Tão revigorante a sensação de deixar o mundo real lá fora”, acrescenta
Eleanor.
“Aimeudeus, era exatamente o que eu ia dizer”, anuncia Cupcake.
“Eu fico desorientada”, declaro.
Silêncio. Uma tosse. Então, com a voz de quem está preparando uma
poção complexa, Fosco diz:
“A desorientação pode ser um lugar muito interessante para ocupar
como escritora, Samantha. Você deveria dar uma chance a isso durante as
férias, como uma espécie de exercício. Acredito que seria muito
esclarecedor para você.”
Em seguida, ela se vira para as quatro e acrescenta:
“Escrevam durante as férias, meninas. Mas não se esqueçam de relaxar
também, vocês merecem. Já se esforçaram tanto neste semestre… Agora,
que tal tomarmos um vinhozinho?”
Elas a ajudam a servir o vinho nos copinhos de plástico, mas só Fosco e
eu bebemos. Dou um gole na esperança de que isso me aqueça, pois de
alguma forma ainda estou atormentada pelo frio de ontem à noite, mas tem
um gosto rançoso, gelado, espesso como sangue. Estou prestes a me
levantar e dar o fora — a aula acabou, não? — quando a Duquesa se
pronuncia:
“Será que podemos fazer um exercício de escrita para comemorar
nosso último dia?”, sugere.
Uma onda de calor me invade. Não. Por favor, Fosco. Não.
Mas Fosco já está espumando de prazer. Quanto empenho! Quanto
interesse em usar cada minutinho do seminário para criar.
“Eleanor, que ideia maravilhosa! Infelizmente não tenho nenhum
exercício planejado, mas…”
“Ah, puxa. Que pena”, interrompo e faço menção de pegar meu casaco,
mas percebo que nem o tirei.
“Bom, na verdade eu tenho uma ideia do que a gente poderia fazer”,
avisa Boneca Sinistra.
Olho para Fosco, na esperança de que ela interprete isso como uma
rebelião, uma tentativa de superá-la ou destroná-la, mas ela é toda ouvidos
caridosos.
“Compartilhe com a gente, Kira.”
“Bem, ultimamente eu tenho pensado muito sobre… voltar para casa.”
Assim que ela diz essas palavras, o frio evapora de repente e me sinto
corar. Estou derretendo e congelando no meio de uma rua coberta de neve
enquanto vejo um ônibus desaparecer na escuridão.
“Já que… bom, as férias chegaram, então vamos todas voltar para casa”,
continua ela. “E como esse período realmente tem a ver com o retorno ao
lar… achei que poderíamos tirar alguns minutinhos para escrever sobre o
que isso pode significar para cada uma de nós. Por exemplo, o que casa
significa para Samantha?”
“Quê?”, digo, mas não é uma pergunta.
“Tipo, é um lugar de verdade? Com endereço e tudo?”
“Ou é algo mais… elusivo?”
“Que imagens isso desperta?”
Sinto o calor se espalhar pelo meu rosto e pescoço. Tirando sarro de
mim. Elas estão mesmo tirando sarro de mim.
“Para todas nós, claro”, esclarece a Duquesa, em tom magnânimo.
“Para cada uma de nós”, acrescenta Vinheta.
Fosco assente com veemência.
“Interessante”, diz, embora seja um exercício bobo demais até para
uma criança de doze anos. “Por que não tiramos uns minutinhos para
refletir sobre o assunto?”
Durante esses minutos, tomo mais alguns goles de vinho. O calor fica
mais intenso. Já não se limita ao pescoço e às orelhas: tomou meu corpo
inteiro. Imagino que estou tirando um suéter atrás do outro enquanto as
observo escrever nos cadernos.
Quando o tempo acaba, não me surpreende ouvi-las dizer: “Que tal se
a gente compartilhar o que escreveu? Que tal se a gente ler em voz alta?”.
“Concordo. Todas nós.”
O último trabalho que vamos compartilhar como um grupo, como o
Círculo.
Fosco acha a ideia fantástica.
Ouço descrições prolixas sobre admirar as chamas de uma fogueira no
litoral da Costa Rica. De fingir que se perdeu em um jardim labiríntico
repleto de cantinhos escondidos. De praticar o existencialismo em Los
Angeles, em Nova York, mas acima de tudo, óbvio, de ser uma pessoa rica.
E feliz. E sempre acompanhada.
“Samantha, é sua vez.”
“Isso, Samantha, quero muito saber o que casa significa pra você.”
Olho para o meu caderno, onde escrevi “Vocês nunca vão saber”
centenas de vezes.
“Samantha?”, insiste Fosco.
“Prefiro não compartilhar.”
“Perdão, o que você disse? Eu não ouvi.”
“prefiro não compartilhar.”
Meu grito ricocheteia nas paredes da Caverna, ecoando e ecoando sem
parar.
Elas me olham boquiabertas, tomadas por um horror fingido. Depois
abrem um sorriso impotente para Fosco — está vendo? —, e ela olha para
mim como se realmente estivesse vendo tudo. “Minha nossa, Samantha.
Ainda temos uma longa jornada pela frente, não é?” Seu cachorro vestido
de rena para de latir. Levanta as orelhinhas caídas e inclina a cabeça para o
lado. Depois me observa, quase com pena.
Uma festinha regada a quitutes para comemorar o fim do semestre! Na
área comum da faculdade. Ideia delas. “Seria tão divertido, não seria? tão
divertido.” Todo mundo aparece, claro. Todo o corpo docente. Todo o setor
de administração. Até mesmo os poetas foram atraídos pela promessa de
comida gratuita.
Fico nos cantos e observo as pessoas se aglomerando ao redor da mesa
repleta de doces preparados pelas Bunnies, cada vez mais coradas e
atônitas conforme se deliciam com os quitutes natalinos. Bonecos de neve
de marshmallow disformes me encaram com seus olhinhos cruéis.
Surpresinhas de limão que com certeza não vão surpreender ninguém. Um
ponche colorido de sherbet sibilando e efervescendo no centro da mesa
como um caldeirão nefasto. As Bunnies cacarejam ao redor da mesa como
as bruxas que realmente são, e isso está muito claro para mim agora.
Percebo que logo, logo vão começar a se abraçar. E não quero estar aqui
quando isso acontecer, então…
“Já está indo, Samantha?”, pergunta Benjamin, o administrador do
departamento, quando passo por ele em direção à porta.
Benjamin já foi meu amigo, ou quase isso. Sempre me convidava para
bater um papo em seu escritório depois das festas, e lá nos deliciávamos
com os nacos de queijo que os professores tinham deixado para trás. Mas
nossa relação esfriou depois do incidente do churrasco. No fim do primeiro
ano, ele teve a gentileza de organizar um churrasco para todos os
estudantes de Artes Narrativas. Fiquei de ir, mas mudei de ideia em cima
da hora porque, no dia combinado, as Bunnies começaram a mandar uma
enxurrada de mensagens no e-mail da turma. A primeira foi Cupcake, pois
tinha ouvido falar que tinha uma jacuzzi na casa de Benjamin, então será
que deveria levar maiô?

Você devia ir pelada, Bunny! :D

Uuuuuh, e se todas nós fôssemos peladas, Bunny? Será que o

Benjamin iria ficar puto??

Claro que não, ele é tão fofinho!! Parece um unicórnio! :D

então vamos todas peladas eba aliás era bom a gente levar umas

comidinhas, né??? :D

Humm, que tal uma tonelada de cookies, hein?! ;)


mds Bunny vc é um gênio!! a gente também podia levar uns

biscoitinhos de chocolate com manteiga de amendoim, né?!?!

nossa com ctza e alguma coisa de abóbora com

especiarias?!?!?!?!?!?!?

aimeudeus, eu quero tudinho!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Vi a conversa se tornar cada vez mais intensa — as frases todas em


maiúsculas, os milhões de pontos de exclamação, a infestação de carinhas
piscando e sorrindo — como uma videira malévola a me estrangular.
Comecei a suar e meu coração acelerou e eu simplesmente não conseguia
sair da cadeira. Observei os minutos passarem no canto superior da tela do
notebook. Tarde. Mais tarde ainda. O sol se pôs. E só justifiquei minha
ausência para Benjamin na manhã seguinte, quando lhe enviei um e-mail.
“Desculpe, eu não estava me sentindo muito bem.” Imagino que elas
tenham passado aquela tarde no ouvido dele dizendo que eu era rabugenta,
que me isolava sem motivo, e agora ele tinha testemunhado isso em
primeira mão. E ficou do lado delas. Deve achar que sou uma Dodói.
Eu sempre quis explicar a Benjamin o que aconteceu naquele dia.
Dizer que eu queria muito ir à festa dele, mas fiquei paralisada ao ver
aqueles e-mails. Mas tenho a impressão de que ele apenas me encararia
sem entender nada. Como assim?
Por isso, digo apenas:
“Já, sim. Tenho um voo marcado.”
“Ah, que pena”, responde ele, com uma tristeza que parece genuína.
“Bom, se você já vai embora, pelo menos leve uns docinhos para casa…”
E então me entrega um saquinho de celofane recheado com as
atrocidades culinárias das Bunnies.
“Acho que foi Eleanor que fez esses aí” continua Benjamin quando me
vê olhando para os bonequinhos de pão de mel. “Não são uma gracinha?”
Analiso o rosto malicioso do boneco. Os membros deformados. Os
olhinhos de glacê que parecem capazes de qualquer coisa.
“Muito.”
Pego o saquinho de biscoitos, porque para dizer “Não, obrigada” e dar
explicações eu precisaria de palavras, e minha garganta ainda está em
chamas. Despeço-me de Benjamin como se realmente tivesse que ir.
Como se estivesse atrasada. Passo pela porta da frente com a cabeça baixa
e quase dou de cara com uma parede de carne e osso.
Ergo o olhar.
O Leão.
“Samantha, será que podemos dar uma palavrinha no meu escritório?”
22

“Feche a porta, por favor.”


Ele se acomoda atrás da escrivaninha e começa a ajeitar os papéis, sem
olhar para mim.
“Sente-se.”
Eu me sento diante dele. Ainda de casaco. Com o saquinho de
celofane na mão. Um pouco atordoada por causa do vinho.
Ele parece mais alto, mais magro. A juba brilhosa à luz do cômodo.
Mais tatuagens de árvores cobrindo seus antebraços. Ainda mais corvos
espiando de seus galhos escuros, me observando com olhinhos
esbranquiçados.
“Samantha, nós precisamos conversar.”
Ele olha para mim, depois para o saquinho de biscoitos na minha mão.
É a primeira vez que entro em seu escritório desde aquelas reuniões
mensais esquisitas no inverno passado, tão formais e engessadas em
comparação com as que tivemos fora do campus no outono. Chás
lânguidos no restaurante marroquino. Almoços no porão do pub, às vezes
jantares também. Um drinque. Dois. Por que não três? E depois…
“Ele te estuprou? Ou te drogou? Ou te amarrou numa cadeira?”
Não.
“Pediu um boquete?”
Não.
“Mas com certeza mostrou o pau, né?”
Não.
“Por favor, não me diga que ele colocou a mão no seu joelho ou eu vou
surtar.”
Ele elogiou minha meia-calça. E minha franja. E meu perfume uma
vez. Perguntou se tinha âmbar nas notas de fundo.
“E aí?”
E aí eu respondi que não. Depois falei que talvez tivesse, sim, mas eu
não sabia.
“E…?”
“O que você disse, Samantha?” pergunta ele agora.
“Nada”, murmuro.
“Enfim… Como foi seu semestre?”
“Bom”, respondo, assentindo. “Um espetáculo.”
Ele não parece muito convencido. Certa noite, quando estava bêbada,
contei-lhe o apelido que dei a Fosco e ele riu tanto que quase cuspiu vinho
na minha cara.
“Então você gostou do seminário da Ursula?”
“Arrã. Adorei.”
Ele assente. Outra mentira.
“E como vai a escrita, Samantha?”
“Tudo ótimo.”
“Escute, me preocupa que você não tenha me mostrado sua
dissertação este semestre. Você tem trabalhado nela?”
Penso no meu caderno cheio de olhos, redemoinhos e trechos
rabiscados.
“Claro.”
“Ursula me contou que você também não mostrou nada a ela.”
Estou começando a ficar com calor.
“É porque mudei um pouco a abordagem.”
“Entendi.”
Silêncio. Mantenho o olhar fixo no tampo da escrivaninha. Tonta.
Estou ficando tonta.
“Bom, será que você pode me mandar alguns trechos dessa nova…
abordagem?”
“Ainda está em andamento”, respondo para a escrivaninha.
“Em andamento”, repete ele.
Ergo o olhar, esperando encontrar raiva, decepção ou preocupação em
seu semblante, mas não vejo nada. Seu rosto é um verdadeiro espaço
negativo.
“Escute, Samantha, eu nunca achei que diria isso, mas a verdade é que
estou começando a ficar preocupado com você.”
“Preocupado comigo?”
“Eu me pergunto se você vai conseguir se formar.”
“Ah.”
“Você só tem mais alguns meses aqui. Sei que pode parecer um
tempão, mas passa num piscar de olhos.”
Observo sua camiseta preta, de uma banda alemã industrial de que nós
dois gostamos. A estampa mostra uma mulher peituda sendo estrangulada
por um monstro cheio de chifres. A mulher parece estar extasiada, claro. É
sempre assim.
“Samantha, quer me dizer alguma coisa?”
Quero. Não entendo o que aconteceu entre nós. Por que paramos de
conversar? Por que você começou a me tratar com tanta frieza? Como se eu
não passasse de uma desconhecida qualquer. Como se eu não passasse de um
arrependimento. Como se você estivesse envergonhado. É por causa daquela
noite esquisita que fingimos que nunca aconteceu?
“Não”, respondo.
“Porque, se você quiser falar comigo sobre qualquer coisa, sou todo
ouvidos.”
Mentiroso.
“Certo. Obrigada.”
Ele suspira.
“Sabe, Samantha, fui eu quem trouxe você para cá. Para a Warren.
Porque eu gostava do seu trabalho. Gostava de você.”
Gostava, no passado. Concordo com a cabeça.
“Quanta imaginação. Quanta criatividade. Quanto talento.”
Olho para o espaço vazio na mesa onde ficava o enfeite de carcaju que
eu roubei no inverno passado, e ele sabe que roubei. Enfiei-o no bolso
quando ele saiu para fazer xerox de um formulário qualquer. Ava ficou tão
orgulhosa quando lhe contei a história que eu dei o enfeite para ela.
“Olhe só, Samantha, se você não me enviar um trecho da dissertação
antes de as férias de inverno acabarem, eu e você vamos ter uma conversa
séria. Entendido?”
Fico esperando que sua expressão fria suavize, que sua voz derreta, que
ele retome os contornos amigáveis da pessoa que conheci no último
outono, que me diga algo delicado, algo gentil. Mas nada acontece. Só está
fazendo seu trabalho. Vendo em que pé anda a dissertação. O que mais eu
poderia esperar?
“Entendido.”
Satisfeito, ele começa a ajeitar as coisas.
“Então, vai passar as férias na sua casa?”
Ele olha para mim esperando uma resposta. Sabendo muito bem, claro,
que meu pai está escondido e que minha mãe já morreu. Nós dois
sabemos que não vou a lugar nenhum.
“Vou. Aliás, estou atrasada para o voo.”
Ele abre um leve sorriso.
“Tenha uma boa viagem.”
23

Eu me jogo na cama assim que chego ao apartamento, tremendo apesar


do calor que sinto. Achei que Ava poderia estar me esperando do lado de
fora, mas é claro que o corredor estava vazio, a não ser pelos Crocs
manchados do gigante pervertido. Um pântano de sacolinhas do Walmart
enxameava sua porta entreaberta, os logotipos amarelos me observando
com um sorriso perverso.
Quando estava a caminho daqui passei pelas Bunnies, que se
empanturravam de biscoitos natalinos e do amor que sentem umas pelas
outras, que deve estar ainda maior agora que testemunharam meu
fracasso. Radiantes em saber que ao menos elas têm um lugar para onde ir.
“Samantha, o que será que casa significa para você?”
Esparramada na minha cama, tão cansada de repente, eu as imagino
indo embora. Cada uma dando um pulinho em sua cidade natal. Bolsas de
couro macio penduradas nos ombros dos sobretudos de lã. Malas elegantes
sendo arrastadas pela neve por mãozinhas enluvadas. Os beijos soprados
umas para as outras enquanto entram nos táxis com destino ao aeroporto.
Lenços de caxemira emaranhados enquanto se abraçam em despedida.
“Tchau, Bunny.” “Espere.” “Não. Ainda não! Por que a gente não divide o
táxi até o aeroporto?” “É melhor, né?” “Vamos, por favor?” “Porque eu
simplesmente não aguento ficar longe de você, Bunny!” “Ainda não estou
pronta para me despedir!” “Vou sentir tanta, tanta saudade!” “Vamos
conversar todo dia, hein? Por favor.” “Eu mando mensagem pra você.”
Mas eu não vou receber mensagem nenhuma. Provei que não era uma
delas, que só era boa em fazer coelhos se afastarem aos pulos.
“Elas que se fodam”, diria Ava.
Isso me faz sorrir por um segundo. Até me dar conta de que também
não vou receber mensagens dela.
Então, apenas desligo o celular e fecho os olhos.
Quando acordo, a neve está caindo do céu escuro lá fora. Estou
congelando e derretendo ao mesmo tempo. Os braços e as pernas rígidos.
A garganta pulsando como se esmagada por um punho. Sinto um calafrio
percorrer todo o meu corpo. Água. Preciso de água, mas a pia está muito
longe. Não consigo me levantar da cama, que parece respirar sob meu
corpo. Sinto o colchão trepidar para cima e para baixo como se
estivéssemos à deriva no oceano. Pego o celular. Nenhuma mensagem,
nenhuma ligação. O que eu esperava?
Lá fora, a neve é carregada pelo vento.
A essa altura, todo mundo já deve ter ido embora. As Bunnies. Talvez
Jonah. Até o Leão já deve estar no avião a caminho de seja lá qual ilha
escarpada e neblinosa tenha vindo. E Ava? Sem dúvida já foi embora.
Talvez esteja em um lugar mais distante do que o Leão. E eu a deixei
partir, a deixei ir embora, fiquei ali sentada com um vestido de gatinho
enquanto ela dizia “Vou embora”. Sem dizer uma palavra que a impedisse,
sem dizer uma palavra que a fizesse voltar. Apenas fiquei ali, com os lábios
entreabertos, com todas as palavras entaladas na garganta.
O punho esmaga ainda mais minha garganta. Minha cabeça arde,
lateja. Calafrios percorrem meu corpo, meu coração afunda. E eu bem que
mereço isso.
Mereço tudinho.

As noites se transformam em dias, e os dias se transformam em noites.


Toda vez que abro os olhos, está mais escuro e mais frio lá fora. A
cidade faz jus a todos os apelidos que inventei para ela, e enquanto estou
deitada ali, trêmula de frio, invento mais alguns. AquárioPodre.
Cadeiópolis. CéuPretoTerraCinza. Zumbilândia. Está um verdadeiro
inferno lá fora, e a internet confirma isso. Vejo meteorologistas fazendo
gestos apocalípticos diante de mapas. Atrás deles, cenas de nevascas e
estradas cobertas de gelo. Os relatos de violência aumentam. Assim como
no último verão, o departamento de segurança do campus me inunda de
mensagens alarmantes sobre os crimes. Tiroteio no início da noite.
Sodomia pela manhã. Decapitação às três e meia da tarde. Fico me
perguntando qual é o momento mais seguro para ir comprar ginger ale.
Fecho os olhos. Sonho com xarope para tosse. Um tom escuro de
verde, como uma floresta. Estupidamente gelado depois de passar horas na
minha geladeira, que não está vazia — está apinhada de coisas lindas e
borbulhantes e ambarinas, como ginger ale. Bem ali na prateleira. Não é
uma miragem. Sonho com a água que vem das montanhas, dos riachos
puros, frios e doces. Servida em um copo alto e transparente como um
vaso. Uma mão flutuante a traz para mim. Põe o copo no chão ao meu
lado. A palma, ainda gelada pelo contato com o copo, pousa com
delicadeza no meu rosto. Fecho os olhos para sentir seu toque fresco,
macio. De quem é a mão? De quem é o toque? Ava? Você não merece essa
mão, Bunny, já falamos sobre isso. Pai? Está ocupado demais com os
próprios problemas. Está mais longe do que a pia. Mãe? Nunca mais, mas
melhor nem tocar nesse assunto. Jonah? O coitado não merece ser
envolvido nisso, também não é para o seu bico. Uma das Bunnies? Antes
até poderia ser, mas não mais. Já não faz diferença se você as ama ou odeia,
Bunny. Agora já é tarde demais. Tudo graças à sua mente que não tem um
pingo de magia, que não consegue nem transformar um coelho em gente, só
consegue fazer o coelho pular para longe. Então… Nada de mãos de Bunny
para você, Bunny. Foi mal, só que não. O Leão? Até parece.
Não sobrou mão nenhuma.
É melhor continuar deitada aqui. Sozinha na cama que respira. Neste
cômodo que está muito quente, depois muito frio, depois muito quente, a
depender das vontades do deus do radiador. Os calafrios estrondeiam pelo
meu corpo como uma ária. Escuto a garota da ópera do andar de cima
cantar em sincronia, mesmo sabendo que ela já foi viajar há muito tempo.
E me prometo que não vou olhar as fotos que as Bunnies estão postando
nas redes sociais. Mas vejo fotos e mais fotos delas em suéteres grossos de
uma lã tão macia que consigo imaginar o carneiro sendo tosquiado.
Afundadas nas profundezas dos sofás que parecem mares aveludados
diante de lareiras acesas, árvores luxuosamente decoradas, rodeadas pelas
pessoas que as geraram, todas com roupas combinando. Posando em trajes
de neve aerodinâmicos no sopé de montanhas majestosas, munidas de
bastões de esqui cor-de-rosa.
E então vejo as legendas:
Vinho quente e músicas natalinas da Mariah Carey?? aceito
#escrevendo

opa, acabei de devorar uma tonelada de biscoitinhos natalinos…


sem arrependimentos #escrevendo

quando vc tá tão empolgada pra ver o papai noel,


que quase faz xixi na calça #escrevendo

Pornô de duende é sexy #sincerona #escrevendo

Cada foto é acompanhada de comentários quilométricos: mds, Bunny,


vc é tão doidinha! mds tô com tanta saudade de vc!!! Vem pra cá! Vem vc,
Bunny! Não, vem vc pra cá agora mesmo pfvr!
“Me dá um tiro, por favor”, diria Ava. Ela não seria tomada pela vontade
vergonhosa de usar os sobretudos de lã delas (sem graça). De usar as luvas
forradas de pele e os gorrinhos de tricô (prefiro morrer de frio). Não ficaria
tentada a esticar os dedos enluvados e roubar aquelas bolsas macias. A se
esgueirar para dentro de suas peles sedosas e viver ali. Esparramar-se
naquelas camas de princesa, com lençóis branquinhos, e sonhar seus
sonhos insípidos. Entrar por aquelas portas emolduradas por colunas e ser
recebida por uma família de comercial de margarina. Um pai e uma mãe
que estão vivos. Que não estão endividados. Que não estão escondidos nas
montanhas do México entre cães desnutridos e montes de areia
escaldante. Que não são procurados por fraude ou corrupção.
“O que casa significa para você, Samantha? Eu queria saber.”
Ava. A casa de Ava. Preciso ir para lá. Consigo me levantar da cama
apesar dos calafrios, e, quando saio do prédio, o ar está tão gelado que
chego a ficar sem fôlego. Mas não lembro o caminho até lá. Tantos atalhos,
tantas esquinas. Passar por jardins. Atravessar becos. Será que cruzamos
um rio? Atravesso três só por precaução. Ando por todas as ruas que nunca
tive coragem de enfrentar sozinha. Carros passam por mim a toda a
velocidade e, às vezes, desaceleram de um jeito ameaçador. Mas apenas
ignoro e sigo em frente pelo caminho que costumávamos fazer quando eu a
seguia para sua casa no escuro. “É só me seguir.” Mantendo a cabeça
baixa, correndo como a presa de uma fera desconhecida, mas inescapável,
cuja forma ainda não tinha sido revelada.
“Mas por que raios você tá andando tão rápido?”, perguntava-me Ava.
“Sei lá. Acho que me deu na telha.”
Por mais que não enxergasse seu rosto, conseguia senti-la sorrir no
escuro.
“Tudo bem, Bunny”, diria ela, e então desaceleraria o passo só para me
irritar. Pararia para admirar uma árvore ou a lua. “A lua está linda, não
acha?”

Caminho sem rumo pelo que parecem horas, dias, semanas. Meus olhos
vasculham as ruas borradas e enganosas em busca de qualquer vislumbre
daquela casa tão familiar. Em busca das flores morrendo do lado de fora.
Dos guaxinins que moravam no telhado. Por acaso eu não deveria saber
onde fica? Eu também não morava lá? Talvez ela tenha levado tudo junto
quando foi embora. Talvez a tenha guardado em sua mala de couro de
cobra, junto com as meias arrastão furadas e sua pena da sorte e o cantil
em formato de mulher caolha. Para que eu nunca mais a achasse.
Tamanha era sua decepção. Eu a imagino dobrando as paredes da casa
como se fosse um suéter. Tudo dobradinho e pronto para levar embora.
Atravesso a cidade até chegar ao oceano. Ela não está lá. Nem no céu.
Nem nesta lixeira. Nem atrás daquela árvore.
Esgueiro-me de volta ao apartamento sem grandes dificuldades, apesar
da distância que percorri e das voltas e reviravoltas da cidade. Sento-me
atrás da escrivaninha e digo a mim mesma que vou escrever, que preciso
escrever, que está na hora de escrever. Mas só consigo observar os
tijolinhos através da janela. Avisto um senhor de corte militar em um
apartamento oposto ao meu, também sentado a uma escrivaninha. Está
muito, muito imóvel. Horas se passam e ele não se levanta da cadeira.
Nem chega a se mexer. Talvez esteja morto.
Eu me arrasto de volta para a cama, derrotada. Pego o celular. Na tela
de fundo, uma foto de cinco Bunnies reunidas em um abraço apertado.
Antes era uma foto minha e de Ava no telhado dela, os rostos colados, sem
sorrir, mas com a alma alegre. Quando foi que mudei a foto? O mais triste
é que nem me lembro.
Começo a escrever uma mensagem para ela.
Cadê você?
Apago.
vc foi embora mesmo? Apago. me desculpe por tudo, não sei onde eu
tava com a cabe… Apago.
sei que não tenho sido uma boa Apago.
sei que tenho sido uma amiga de merd Apago.
Apago apago apago apago.
Deixe quieto. Deixe-a em paz. Você não a merece.

Quando abro os olhos, ela está aqui. Bem no meio do meu quarto idiota,
que é muito baixo para ela. Com uma cesta de cerejas frescas e brilhantes,
onde foi que as arranjou? Um smoothie de pêssego e gengibre daquela
banca de sucos moderninha.
“Desculpe por ter abandonado você várias e várias vezes”, peço a ela.
“Não sei o que deu em mim.”
“Sshhh”, responde ela. Depois coloca a mão gelada na minha testa
ardendo de frio, e, apesar do toque enregelante, a sensação é maravilhosa.
É exatamente a mão dos meus sonhos, a mão que eu tanto queria.
“Achei que você tinha ido embora”, digo a ela.
Mas no instante seguinte ela desaparece.
Ela desaparece e eu grito.
Acordo ensopada de suor. Não há nada aqui além do ar abafado. Uma
luz fraca se esgueira pela janela do quarto enquanto a risada maníaca do
gigante pervertido atravessa as paredes.
24

É a manhã da véspera de Natal. A febre finalmente passou. Vim fazer


umas compras no Cheapo, um supermercado onde o desespero pode ser
ouvido na vida após a morte. Idosos se arrastam pelos corredores
deprimentes de porcaria enlatada que se estendem a perder de vista,
pontilhados por pirâmides de legumes que brilham de um jeito inquietante
sob as luzes fortes. As bananas daqui nunca ficam no ponto certo —
passam de verdes a estragadas em um piscar de olhos. Desconfio até das
maçãs, que parecem lustrosas demais, como animais de circo
embonecados a caminho do picadeiro. Encho o carrinho com o miojo que
vou comer hoje à noite e amanhã.
“Jesus, isso é deprimente”, diz Ava. “E sem graça. Você não cansa,
não?”
“Não posso me dar o luxo de comprar outra coisa”, respondo, porque o
fato de Ava não estar aqui não me impede de conversar com ela.
“Não pode se dar o luxo? Fala sério, Smackie, me poupe desse drama
todo com os violinos.”
“Eu não sou igual a você, tá? Não posso ser interessante pra caralho em
cada maldito aspecto da minha vida. Não consigo tirar leite de pedra.”
Na minha imaginação, porém, isso a diverte. Ela olha para mim com
um sorrisinho irônico, como se estivesse satisfeita com meu desabafo, mas
também com pena.
“Que seja, eu vou para a loja cara, ok? Vou fazer compras lá na
Forestier. É isso que você quer?”
“Só se você roubar alguma coisa incrível para você.”

O ar cheira a pinheiros cortados e aves assadas na Forestier. Quando passo


pela porta, dou de cara com uma montanha de flores veranis em pleno
inverno. “E aí?”, pergunto para Ava. “Feliz agora?” Mas ela me abandonou.
E por que estaria feliz? Se bem me lembro, ela odiava este lugar mais do
que o Cheapo. Então o que eu vim fazer aqui mesmo? Observo as florestas
de couve, as framboesas orgânicas, as maçãs e romãs luxuosas, um mix
interminável de castanhas exóticas, os corredores e mais corredores de
sucos prensados a frio em todas as cores do arco-íris da riqueza. “Sim, por
quê?”, tudo parece me dizer. De repente, me tornei o estranho e triste
vegetal de circo. E são os produtos orgânicos ridiculamente caros que me
observam com algo parecido com horror.
Não sei quanto tempo passo explorando os corredores. Talvez horas.
Lançando olhares desejosos para tudo o que vejo. Chocolate chique.
Molho de macarrão caro. Um pacote de cantarelos desidratados. Sementes
de romã. Não coloco nada na cesta. Só me perco mais e mais. Onde é que
fica o pão mesmo? Tenho que dar o fora daqui. Mas antes preciso comprar
alguma coisa. Quando faço menção de pegar algo parecido com miojo,
uma música pop começa a tocar em algum lugar. Uma voz cantarola
baixinho em sincronia. Roam if you want to.
Ergo o olhar. Ele está parado diante dos cogumelos chiques. O mesmo
casaco preto puído. O mesmo cabelo escuro e desgrenhado emoldurando
um rosto afilado e lupino. Olhos selvagens que parecem sorrir. Para mim.
O cara do ônibus.
Está com uma baguete mordida enfiada no bolso e segura um pacote
de cantarelos com sua mão definitivamente humana. Está prestes a enfiar
outra coisa no bolso quando me vê. Ele acena. “Oi.”
Aceno de volta. “Oi.”
E então ele continua a roubar na cara dura enquanto assobia a música
da B-52s. Molho de macarrão caro. Chocolate, extra-amargo,
extracremoso. Uma caixa de marrom-glacê — igualzinha à que meu pai
comprou quando passamos o Natal na França. “Não são divinos?”
Ele esconde tudo nas entranhas escuras do casaco, depois pisca para
mim e dá as costas. Eu o sigo enquanto caminha apressado pelos
corredores, ainda assobiando. E o sigo enquanto caminha apressado pela
seção de peixes em conserva, ainda roubando. Salmão escocês defumado,
ora por que não? Uma seleção dos melhores queijos de cabra, por favor.
Rodeando a vitrine de azeitonas feito um abutre. Ele só afana as verdes.
“São as únicas que valem a pena comer, Samantha”, explicou-me meu pai.
“Um toque francês. Cítrico. Sutil.”
“Ah, oi, Samantha.”
Fosco. Com os trajes de veludo que sempre veste em dezembro. A
cabeça teatral inclinada para o lado. O corpo apoiado na vitrine de carnes
alinhadas com maestria, como se ela tivesse o mundo inteiro a seu dispor.
“Ursula. Oi. Desculpe, eu estava…”
“Achei mesmo que havia visto você perambulando por aqui”, continua
ela, sorrindo. “Com um ar de perdida.”
“Não, eu… Sim, bom, esta loja me deixa um pouco…”
Dou uma olhada no corredor, mas ele sumiu. Eu o perdi de vista.
“Desorientada?”, completa ela.
Então abre um sorriso triste que é a versão adulta do que a Duquesa
sonha em ser com seu beicinho malicioso.
“É, talvez. Enfim… Não foi viajar?”, pergunta com as sobrancelhas
franzidas de preocupação.
“Não.”
“Eu não sabia que você tinha família aqui…”
“Não tenho.”
O silêncio se instala entre nós. Um aceno de cabeça. Ah, verdade, ela é
aquela aluna cheia de problemas. Pai arruinado. Mãe falecida. Algo assim.
Tão triste. Sinto-a me examinar com um olhar que ela acredita, tenho
certeza, ser capaz de penetrar tudo, até corações. Em seguida, avalia minha
cesta de compras vazia. Meu casaco puído. Os bolsos rasgados.
“Então, quais são os seus planos para o Natal?”
Invente uma mentira, qualquer uma. Minta minta minta.
“Eu…”
Mas ela olha para mim como se já soubesse. Como se pudesse me ver
enrolar o miojo em um garfo torto enquanto assisto a um filme pirata que
trava sem parar. Como se me visse regar uma muda de alecrim que enfeitei
com pisca-piscas.
“Espero que você não esteja pensando em passar sozinha, está?”
O jeito como ela diz sozinha remete a uma caverna. Como se eu fosse
me enfiar de bom grado, por vontade própria, em uma caverna horrível e
escura cujas paredes gotejantes fervilham com todas as coisas
desagradáveis do mundo, alimentando-me dos vermes que encontro ao
revirar a terra.
Eu respondo que não, claro que não. Não vou passar sozinha. Mas o
sorriso dela indica que conseguiu desmascarar minha mentira de garota
triste.
E então eu o vejo outra vez. Bem atrás dela. Parado diante da torre de
romãs lustrosas. Nosso olhar se cruza sobre o ombro de Fosco enquanto
ele enfia uma das frutas no bolso interno do sobretudo preto. Depois sorri
para mim. Acena outra vez, balançando os dedos.
“Ora, Samantha. Você deveria vir passar com a gente. David e eu
vamos organizar um pequeno banquete natalino.”
Por cima do ombro dela, eu o vejo enfiar mais algumas romãs no bolso.
Duas. Três. Como cabem tantas?
“Sshh”, gesticula ele, o dedo indicador pressionado contra os lábios.
Em seguida começa a roubar os produtos a granel. Pega punhados e mais
punhados de gengibre cristalizado, manga desidratada e mix de chocolate e
cereja com ômega-3 e enfia tudo nos bolsos, sem tirar os olhos de mim.
Não consigo evitar sorrir.
“Samantha”, chama Ursula, agarrando-me pelos ombros e bloqueando
minha visão, “isso é um ‘sim’?”
Agradeço muito, mas digo que acho melhor não, não quero incomodar.
Mas ela não vai aceitar um “não” como resposta, de jeito nenhum,
Samantha. Porque seria um prazer me receber, ora, como não? As pontas
de seus dedos estão fincadas nos meus ombros. Sua silhueta eclipsou
minha visão dele. Sinto um ímpeto de afastá-la. De agarrá-la pelos ombros
e empurrá-la para longe.
“Sério, Samantha. Seria um prazer enorme”, continua dizendo. “E você
não vai estar sozinha. Alguns outros alunos que não foram viajar também
vão dar uma passadinha.”
E então chega mais perto e acrescenta em um sussurro categórico:
“Você não está sozinha neste barco, Samantha.”
O rosto dela diz claramente: “Você não está morrendo de gratidão por
termos nos encontrado assim? Seja grata, por favor. Não vai ser grata?”. Ela
só vai me soltar quando eu concordar em ir.
“Estou muito grata pelo convite, Ursula. Foi muito gentil. Obrigada.”
“Então você vai?”
“Vou, sim.”
“Maravilha.”
Ela finalmente me solta, mas já é tarde demais. O corredor de verduras
e legumes está vazio, a não ser pelas pessoas esbeltas de sempre, com suas
roupas esportivas pretas, que nem hesitam enquanto lotam seus carrinhos
com todas as coisas bonitas do mercado.
25

Uma canção internacional irrompe de alto-falantes escondidos. Uma


mistura de ritmos célticos e zimbabuanos, ou pelo menos é o que ela me
diz quando lhe pergunto só para puxar assunto. É lindo, respondo, e minha
mentira ecoa por sua enorme sala de estar. Maior do que a de Cupcake ou
da Boneca Sinistra, maior até que a da Duquesa. Máscaras africanas me
encaram das paredes branquíssimas. Vejo um quadro inusitado de um
clitóris disfarçado de flor ou labareda ao estilo de O’Keeffe, mas ela mesma
deve ter pintado.
Se Ava estivesse aqui, ela diria: “Corra. Quebre a janela se for preciso”.
Ou então apenas me lançaria um daqueles olhares que transmitiam
tudo o que se passava na minha alma e me enchiam de conforto. Assim eu
conseguiria aturar as flautas e os tambores de aço com um sorriso no rosto.
Ela poderia até dizer a Fosco: “Que música agradável você escolheu”,
sem deixar transparecer um pingo de ironia.
“Obrigada, Samantha. Achei mesmo que seria mais agradável do que as
canções natalinas de costume”, confidencia ela.
“Tão mais agradável”, concordo, e logo penso: Eu disse isso em voz alta?
Acho que estou bebendo muito rápido o vinho que ela me ofereceu
assim que cheguei, rápido até demais. Porra, Samantha. Vai com calma.
“Eu sempre quis ir ao Zimbábue”, ouço-me dizer. Qual é o meu
problema?
“Jura, Samantha?”, pergunta Fosco, como se eu enfim tivesse ganhado
seu respeito.
Concordo com a cabeça.
“Ah, com certeza. Lá é tão…”
Mas não consigo concluir a frase. Todos os adjetivos que eu poderia
usar para descrever esse país que mal conheço evaporam da minha mente.
“Vasto”, digo por fim.
Ela me conduz até a sala de estar e percebo que por “alguns outros
alunos” parece ter se referido só a Jonah, sentado no meio do sofá de
camurça branca, com a jaqueta entreaberta como de costume. Nunca me
senti tão aliviada ao vê-lo. Há também uma adolescente magricela de
vestido preto — “minha filha, Persephone, já a conhecia?” — com as
pernas estiradas sobre o braço de uma poltrona, o olhar fixo no celular com
capinha de mangá. Sua expressão deixa claro que seu Natal foi arruinado
pelos alunos pobretões que a mãe insistiu em abrigar como se fossem
passarinhos machucados.
“Oi, Samantha”, cumprimenta Jonah assim que me vê. “Eu não sabia
que você ia passar o fim de ano por aqui.”
Ele acena alegremente com uma das mãos, a outra ocupada em segurar
um espetinho de camarão envolto em guardanapo.
“Por que você não consegue ser feliz? Por que sempre espera o pior das
coisas?”, imagino minha mãe perguntar, como sempre fazia. Mas estou
mesmo feliz em ver Jonah. Do cabelo desgrenhado à jaqueta e ao cheiro de
cigarro tão forte e reconfortante que, por um segundo, tenho vontade de
fumá-lo.
“Oi, Jonah! Eu também não sabia que você ia ficar por aqui.”
“Que feliz coincidência”, comenta Fosco, toda sorridente.
Quando me acomodo no sofá, vejo vasos e mais vasos de flores rosadas
como vulvas dispostas em arranjos esféricos. “Porque eu sempre preciso
estar rodeada de flores”, eu a imagino dizer à florista, aos colegas e alunos,
mas de repente sou tomada pela culpa. Ela convidou você, sua vadiazinha
ingrata. É uma festa de Natal na casa dela, afinal de contas. Ela não tinha a
menor obrigação de convidar você para se deliciar com canapés e iguarias
indianas. Sorrio para ela e para seu marido, Sedoso, que acabou de se
juntar a nós. É um sujeito esguio de cabelo estilo Eraserhead que faturou
milhares de bolsas e residências em castelos e vilas decadentes da Europa
para escrever poeminhas enigmáticos em um idioma que ele batizou de
“Árvore”.
Os poetas o idolatram, claro, mas nunca troquei mais do que uma ou
duas palavras com ele nos eventos da faculdade. “Olá, Sasha.” “E como
estão as aulas, Sarah?” Eu nunca o corrigia.
Os dois se acomodam do outro lado da mesinha de centro encimada
pelos arranjos esféricos e diversas bandejas de canapés que eles oferecem
sem parar. “Canapé? Canapé? Aceita um canapé, Samantha”?
“Já comi um, obrigada. Estava uma delícia.”
Uma delícia? Sério?
“Quer mais um?”
“Por enquanto estou satisfeita, obrigada.”
Tomo outro gole de vinho sob o olhar julgador de Persephone.
“Eu aceito unzinho” avisa Jonah.
“Fique à vontade, Jonah. Pode pegar dois. Aqui, tome logo três antes
que os outros alunos cheguem e devorem tudo!”
Sedoso concorda com um aceno. Persephone deixa escapar um muxoxo
de escárnio e se remexe com alarde na poltrona, como se para sinalizar sua
profunda irritação. Jonah nem percebe.
“Obrigado. São um espetáculo. Acho que eu conseguiria comer uns
cem de uma vez.”
“Ah, que bom que gostou.”
Ele mastiga, satisfeito, enquanto observamos. Depois engole. Depois
volta a mastigar. Se fosse possível assistir ao processo de digestão, sem
dúvida o faríamos. Fosco não para de repetir que está muito feliz por
termos vindo. Por estarmos todos aqui. Reunidos. Outros alunos também
devem chegar a qualquer minuto. Mas ninguém chega. Em vez disso,
Persephone sai com a promessa murmurada de que estará de volta a tempo
do jantar. Através da janela, admiro a rua de contos de fadas. A Duquesa
mora bem em frente, com seus cachorros de pelo dourado. As outras
Bunnies não podem se dar o luxo de morar aqui, embora o nome da rua
seja Amizade. “É porque só tem babaca nessa rua”, dizia Ava sempre que
passávamos pela placa. Achei que ela iria me ligar hoje, mas, quando o
telefone finalmente tocou, era meu pai. A princípio, não atendi. Tinha que
me preparar para ouvir sua voz distante e derrotada, para conversar sobre
qualquer que fosse o assunto do dia. Outros Natais mais felizes. O clima
daqui, o clima de lá. Como tudo estava mais caro. Mas não sobre minha
mãe, nunca sobre minha mãe. Se ele estivesse bêbado, poderia me contar
sobre o spa no mar Negro que nunca existiu nem nunca existirá. As
maravilhas de se banhar em águas salgadas. As cavernas curativas de vapor.
As suítes que mais “pareciam sonhos, Samantha, seria como sonhar
acordado. E ainda assim seria familiar”, acrescentava, “como se estivesse
em casa”. É muito importante que um lugar passe essa sensação.
Mas, quando enfim atendi ao telefone, ele me contou sobre um
episódio de quando eu tinha três anos, quando eu morria de medo do
vento na grama. “Eu levava você para o parque e aí você ficava brincando
bonitinha, bonitinha, e de repente vinha um vento e fazia a grama ondular
um pouco, sabe? E, quando você via isso, começava a berrar e saía
correndo. Simplesmente corria para fora do parque, sem parar de chorar.
Vou ser sincero com você, Sam. Isso me assustava pra cacete. Ver você sair
correndo da grama daquele jeito, sabe?”
Nem respondi. Só fiquei ouvindo a estática. O som de sua respiração.
Já ouvi essa história tantas vezes, e ele sempre a concluía do mesmo jeito.
“Eu ficava um pouco preocupado, agora posso admitir. Com você. Nós
dois ficávamos. Mas no fim deu tudo certo, não foi? Com você?”
Enquanto isso, Jonah está dizendo a eles:
“Assim, se eu não tivesse vindo para a Warren, a uma hora dessas eu
estaria desmaiado na neve depois de encher a cara de schnapps ou
tranquilizante de cavalo. Talvez os dois.”
E, então, sorri para nossos anfitriões.
Que interessante, responde Fosco. Depois de ouvir a confissão de
Jonah, ela leva a mão ao peito, como se o coração estivesse mesmo
apertado ali embaixo. Como sempre faz a Duquesa, que mesmo agora
repete o gesto em todas as fotos que posta, sempre com suas túnicas com
manga boca de sino, diante de sóis vermelhos, vulcões e uma floresta
encantada em um lugar que parece ser a Costa Rica. Na última que vi, ela
está de olhos fechados, o rosto pressionado contra o focinho de um cavalo
branco. No auge da minha febre, fui tomada por uma vontade terrível de
que ela acabasse morta por toda aquela beleza. De que o cavalo
confundisse sua cabeça com uma frutinha. Ou que, durante a montaria, a
jogasse para longe como quem abana uma mosca.
“Se bobear, a esta altura eu até estaria morto”, conclui Jonah.
Uma grave troca de olhares entre Fosco e Sedoso.
“E você, Samantha? Onde estaria?”, pergunta Sedoso, virando-se para
mim.
Seu rosto deixa claro que ele espera ouvir uma história de terror. Eu até
poderia lhe contar uma. Poderia dizer que meu pai trabalha no circo, em
uma trupe de aberrações. Que antes de vir para a Warren eu era a atração
principal por causa da minha altura. E que, se eu tivesse ido passar o Natal
em casa, e por casa me refiro a uma tenda sob o viaduto de uma rodovia
em Utah, ele me obrigaria a fazer o truque em que como vidro. Ou aquele
em que devoro grilos. É surpreendente como parece salada.
E eu também estaria morta, poderia contar a eles. Provavelmente.
Definitivamente. Ou no mínimo toda estropiada. Com o emocional em
frangalhos de tanta solidão. Meu corpo sem vida pendurado na luminária
do teto até que o cheiro de putrefação alertasse o pervertido que mora ao
lado. Mas graças a vocês dois, tão gentis, graças a este convite para me sentar
nesta sala com aroma de lavanda queimada, na cacofonia de uma música que
é pior do que o silêncio, graças a vocês fui salva, renasci. E me imagino
caindo de joelhos. Agarrando as calças roxas de Sedoso.
Em vez disso, limito-me a responder:
“Eu só queria focar a minha escrita.”
“Que dedicada”, comenta Sedoso.
“Sim, com certeza”, concorda Fosco.
Tomo um grande gole do vinho que ainda estou bebendo rápido
demais. Um homem invisível à minha direita não para de encher a taça
como em um passe de mágica.
“E como andam os estudos?”
Foi apenas uma pergunta descompromissada, uma mão estendida
frouxamente, mas Jonah a leva a sério.
“Os estudos? Tudo certo. Tipo, tudo ok. Fiz um montão de aulas que
nem precisava fazer porque, sei lá, estou na Warren, sabe? Então achei
melhor aproveitar para aprender tudo o que puder. Além do mais, todas
pareciam tão interessantes… aí não consegui decidir e acabei fazendo
todas.”
“Isso foi muito ambicioso da sua parte, Jonah.”
“Também foi muita idiotice. Fiz algumas aulas bem difíceis, tipo
matemática e robótica. Essa faculdade é complicada. Todo mundo é tão
inteligente. Por um tempo eu achei até que iria me matar.”
“Que adorável”, comenta Fosco enquanto abastece a taça de vinho de
todos. “É claro que, se isso prejudicasse sua escrita, seria péssimo…”
“Ah, ainda estou escrevendo. Acho que até demais.”
“Demais? Jonah, isso é maravilhoso.”
“Sei lá. Acho que realmente estou passando da conta.”
“Por favor, refresque minha memória… em que você está trabalhando
mesmo?”
Como se ela já tivesse sabido um dia.
“É um longo poema sobre o Alasca. Achei que seriam só umas duas
páginas, mas já passou de noventa. Só continuei escrevendo e
escrevendo… De certa forma é bom, mas também é um pouquinho
assustador, já que não consigo parar.”
“Bom, quando a inspiração vem… quando as musas se manifestam…”
“É, sei lá. Mas eu literalmente não consigo parar. Talvez não pare
nunca. Então estou mesmo um pouco assustado.”
“Que maravilhoso! Samantha, como você se sentiu em relação ao
seminário neste semestre?”
Seminário?
Imagino um Tom Cruise da época de Top Gun com lábio leporino. A
linda cabeça explodindo para todos os lados. A saraivada de ossos, a chuva
de sangue, os respingos de miolos dos quais nem quis me proteger graças
aos Tic Tacs mágicos. E em seguida seu adorável globo ocular pousando no
meu colo estampado de gatinhos, azul-esverdeado como o mar dos meus
sonhos, piscando para mim como uma turmalina conquistada a duras
penas. Depois, para calar os meus gritos, porque nenhuma quantidade de
Tic Tacs seria suficiente para abafá-los, Cupcake me mostrou seu closet.
“Veja só, Bunny.” Todos os seus vestidos rodados enfileirados como
fascistas, organizados por cor até formar um arco-íris.
“Muito bem” respondo. “Incrivelmente bem, na verdade. Estou muito
feliz aqui.”
Mas dá para ver que isso não é o bastante. Fosco está ávida por ouvir o
que Ava e eu chamamos de “surra de trauma”. Fale mais, sua vadiazinha.
Ou vou acabar me arrependendo de ter convidado você, e olhe que só fiz isso
por pena.
Ela arqueia as sobrancelhas.
“Jura?”
“Ah, com certeza.”
O que seria de nós, Fosco, sem o seu interesse fingido pelas nossas
histórias de terror? Sem sua insistência em extraí-las de nós por meio de
cartas de tarô, fantoches e lascas de pedra-sabão?
“Nossa, é um baita alívio ouvir isso, Samantha. Até porque eu sei que
você estava com um pouquinho de dificuldade de lidar com… as outras
alunas.”
Ela está se referindo ao inverno passado, quando fui ao seu escritório
apinhado de sinos de vento e pedi — implorei — que me dispensasse do
seminário naquele semestre. Prometi a ela que escreveria o dobro, o triplo,
que eu…
“Posso saber por que, Samantha?”
Então expliquei que eu me dava melhor trabalhando sozinha. E que
tinha uma ideia muito bem definida para o meu projeto, e que o seminário
poderia acabar me confundindo, me deixando sem rumo. Mas devo dar o
braço a torcer: ela não acreditou nem por um segundo nas mentiras que
inventei.
“Samantha”, respondeu ela, resignada. “O seminário é uma parte
fundamental do Processo. Jamais nos ‘confunde’, muito pelo contrário.
Amplia nossos horizontes, nos ajuda a crescer e nos conduz por novos
caminhos… caminhos árduos, emocionantes. Especialmente o seminário
que eu ministro. Por acaso você já considerou que perder o rumo pode ser
bom para o seu projeto? Uma espécie de desorientação produtiva?”
E sorriu para mim em seu cafetã sedoso. Percebi que o orgulho dela
estava em jogo, então achei melhor adotar outra tática.
“O problema não é o seminário em si, e sim meu grupo.”
“Está se referindo às outras garotas?”
“Isso.”
E aí senti que tinha quatro anos de novo. Uma criancinha birrenta
reclamando com a professora.
“Não me leve a mal, elas são todas muito legais e inteligentes e eu
admiro o trabalho delas”, menti. “É só que elas já formaram uma…
panelinha. E não tem problema. Não mesmo. Mas eu fiquei de fora, e
como sou a única outra aluna da turma… As coisas ficam meio…
esquisitas.”
“Entendo.”
Ela disse que iria ver o que poderia fazer para me ajudar, mas no fim
das contas, “após uma análise cuidadosa”, me fez retornar ao seminário. Na
aula seguinte, fez questão de pontuar como seu trabalho como professora,
como escritora, era pautado na inclusão; que era algo que unia as pessoas.
E não tirou os olhos de mim durante todo o discurso, como se dissesse:
“Viu? Viu só como estou preparando o terreno?”.
E as Bunnies olharam para ela, depois para mim, e pude jurar que
tinham entendido tudo. E eu quis morrer. Então observei aquelas mãos
entrelaçadas sobre as anotações de uma aula de trinta anos atrás, a
pelerine nos ombros, a fumaça de gelo-seco que eu sempre imaginava
rodear sua silhueta presunçosa… e o apelido Fosco me veio à mente.
Mas este último semestre é todo dedicado à dissertação, claro. Não
tem mais seminário. Então posso muito bem mentir e dizer que está tudo
ótimo.
“Ah, não. Isso ficou no passado. Agora somos uma família feliz.” Abro
um sorriso. “Aliás, nos últimos tempos andei testando novos métodos de
expressão.”
“Ah”, diz o rosto dela. “Bom, a Warren é o lugar certo para testar coisas
novas. Para se dedicar a um trabalho mais profundo, mais íntimo.”
Um funcionário do bufê, um rapaz alto de ombros largos, aparece para
lhe servir mais um pouco de vinho. Enquanto enche a taça, ele me observa
com seus olhos azuis de Barbie, depois sorri com seus lábios tortos.
“Algum problema, Samantha?”, pergunta Fosco, com um ar
preocupado, enquanto o rapaz ao lado dela me lança um olhar malicioso.
Oi. Eu conheço você, lembra? Você me criou.
“Sim.”
“Sim? Qual é o problema?”
“Eles não se lembram de nada, amiga”, garantiu Caroline quando
avistamos um atrás do balcão da Confortaria. “Não mesmo. Juro. São bem
infantis em alguns aspectos. Relaxa. Coma mais um bolinho.”
“Samantha?”
O garoto-coelho não para de olhar para mim. “Às vezes eles dão um
jeito de voltar”, contou-me Boneca Sinistra certo dia. “Muitos conseguem
até arranjar um emprego, acredite se quiser. Tudo por baixo dos panos,
claro. Se são violentos? Ah, acho que às vezes sim. Sei lá. Mas quem liga
pra isso, amiga? Vamos dar um pulinho no mercado pra comprar mais
cookies? Minha alma tá meio que precisando disso…”
“Nada. Tudo certo”, respondo com os olhos fixos na minha taça de
vinho.
“Bom”, continua Fosco, “fico feliz que você finalmente esteja
conseguindo ampliar seus horizontes, seu escopo criativo, por assim dizer.”
Em seguida estende a taça para que ele sirva mais vinho, e vejo as
luvas brancas cobrindo suas mãos defeituosas. Será que eu estava lá
quando o conjuramos? Nem sei dizer. Apesar de as Bunnies viverem
dizendo que a conjuração é cheia de nuances, todos os garotos são quase
idênticos. Mas esse me olha como se me conhecesse. Conte-me tudo,
Samantha.
“Ah, estou ampliando algumas coisas mesmo, com certeza.”
“Incrível. Sabe, Samantha, você faz parte da primeira turma só de
mulheres da Warren. De certa forma, vocês cinco são pioneiras.”
Atrás dela, o garoto-coelho pisca para mim. Samantha, eu posso caçar
para você.
“E são moças tão bacanas. Nós temos sorte aqui na Warren, temos
mesmo. Nossos alunos são sempre os melhores, a nata.”
“A nata”, concordo. “Com certeza.”
“Eu sempre digo que a turma é o sistema de apoio de todos os alunos
durante o curso.”
“Também acho.”
“Você precisa deles tanto quanto precisa da própria solidão. Talvez até
mais. Passar muito tempo sozinha, Samantha, pode nos deixar muito
paranoicas. A pessoa começa a olhar só para o próprio umbigo.”
“Exatamente.”
“Agora, por outro lado, quando aprendemos uns com os outros, quando
evoluímos juntos…”
Penso em nós cinco acomodadas naquele maldito sótão da Boneca
Sinistra, e então nos imagino aprendendo e evoluindo juntas e começo a
rir. E não consigo parar. Rio tanto que Jonah começa a rir também, mesmo
sem saber qual é a graça. O garoto-coelho também se junta a nós.
Fosco me olha como se eu estivesse maluca.
“Me desculpe”, peço, mas não consigo parar. É um ataque de riso
incontrolável. É a mesma gargalhada que Ava deu na Demitasse quando viu
as Bunnies pela primeira vez, quando apenas jogou a cabeça para trás e
desatou a rir. Naquele momento, achei difícil acreditar que ela não
conseguisse parar.
“Qual é a graça? Por acaso eu perdi alguma coisa?”
Mas nem consigo responder por causa da risada que borbulha na
minha garganta. É como uma toca de coelho da qual despenco tal como
Alice. Não tem como escapar. Só me resta continuar caindo, caindo e
caindo sem parar. Só me resta me deixar levar. Sucumbir. Meu corpo todo
chacoalha. A risada de Ava. De repente sinto tanta saudade dela que quase
choro. E então as lágrimas irrompem dos meus olhos de uma vez.
“Samantha?”, chama Jonah, e em seguida estica a mão para tocar meu
braço.
Estamos a sós na sala. Posso ouvir Fosco e Sedoso aos cochichos na
cozinha.
“Tenho um pouco de drogas se você quiser”, continua ele. “Não é crack
nem nada do tipo. Só comprimidos. Tudo dentro da lei. Talvez possam
ajudar você a se sentir melhor. A relaxar.”
Ele me entrega um saquinho de plástico recheado de comprimidos,
todos coloridos como as carapaças reluzentes de insetos venenosos.
Ele ainda segura um guardanapo natalino cheio de rabos de camarão.
Penteou o cabelo para parecer festivo ou apresentável, imagino. Ou então
as duas coisas.
“Jonah, eu sinto muito.”
“Pelo quê? É legal passar mais um tempinho com você.”
Ele sorri. Por baixo da jaqueta, vejo que está com uma camisa social e
uma gravata com a estampa de O grito, de Edvard Munch. O mesmo traje
formal que ele usou em todos os eventos da faculdade.
“Acho melhor eu ir embora.”
“Quer uma carona?”
“Não, é melhor você ficar. Já basta eu ir embora tão cedo. Não quero
arrastar você junto.”
“Tudo bem. Ei, você encontrou o livro, afinal?”
“Que livro?”
“O que você estava procurando naquele dia, lembra?”
O rosto de Ava através da vidraça da lanchonete. Vou embora.
“Acho melhor eu ir embora logo.”
“Já vai, Samantha?”, pergunta Fosco, saindo da cozinha.
Os três insistem para que eu fique mais um pouquinho. Pelo menos
para o jantar. É Natal, poxa.
“Não, não. Eu preciso ir para casa.”
Mas o olhar de Fosco parece perguntar: “Ah, Samantha. E o que isso
significa para você, afinal?”.
26

Lá fora, o sol está fraco e alto no céu. A neve cai devagar. Avisto a casa da
Duquesa não muito longe dali. O ímpeto de invadi-la me consome por um
instante. Eu poderia atear fogo em todos os proêmios de diamante.
Derrubar as pilhas e mais pilhas de romances latino-americanos. Lamber a
tampa de todos os probióticos e kombuchas na geladeira. Penso no meu
apartamento, do lado oposto da cidade. Frio. Com a geladeira vazia.
Entornei as últimas gotas do vinho ácido antes de sair. Do outro lado da
rua, avisto o ponto onde o vi desaparecer no ônibus que desapareceu na
escuridão.
Bem na hora, um ônibus dobra a esquina como em um passe de
mágica.

“Por favor, este ônibus vai pra onde?”


O motorista me observa com seu único olho.
“Para tudo que é canto. Para onde você tem que ir?”
“Hum… esqueci o nome da rua”, minto. “Mas vou reconhecer quando
passar por lá.”
Ele me lança um olhar indiferente. “Você que sabe, moça.”
Pago em dinheiro, sem usar o vale-transporte da Warren. Não vou dar
essa satisfação a ele. E não quero chamar atenção, me tornar um alvo.
“Como assim se tornar um alvo?”, perguntou Ava certa vez, ao que
respondi: “Todos acham que os estudantes da Warren são cheios de grana
e eu nem ia ter tempo de explicar que não sou igual a eles”.
E a expressão dela dizia: “É justamente por isso que você é igualzinha a
eles”.
Dou uma olhada no ônibus e não há o menor sinal de Ava, só um ou
outro passageiro em estado deplorável. Estão esparramados pelos bancos
revestidos de fita adesiva, as pernas abertas, a cabeça virada para as janelas
incrustadas de poeira, os rostos deprimidos, parecendo atordoados e
derrotados pela luz azulada do ônibus e pela escuridão que vem de fora.
Atravesso o corredor de cabeça baixa, depois me sento diante de uma
mulher muito velha e agasalhada que, à primeira vista, parece um pouco
minha falecida avó. Sinto certo conforto. Ali está minha vó, ou quase isso.
Com as roupas de uma pessoa ligeiramente insana. Uma tatuagem de
aranha no pescoço. Lendo em voz alta um panfleto rasgado sobre
esquizofrenia.

esquizofrenia: Você tem algum sintoma??

Ela lê cada sintoma da lista e diz:


“Ah, esse eu tenho. Ah, esse também.”
E solta uma exclamação surpresa a cada um, como se estivesse
encantada. Como se estivesse extasiada ao ler uma receita e descobrir
que…
“Que já tem todos os ingredientes. Que não precisa ir ao mercado”,
sussurra uma voz atrás de mim, fazendo cócegas nos cabelinhos da minha
nuca, tirando as palavras da… não da minha boca. Da minha mente.
Eu me viro para olhar. Ele está no banco puído atrás de mim. Fones de
ouvido ao redor do pescoço com “Your Silent Face” tocando no último
volume. Descontraído em seu sobretudo preto. O cabelo caótico caindo
sobre aqueles olhos esfumaçados e brilhantes. E então sorri para mim
como se fôssemos velhos amigos.
“E aí, Samantha? Conseguiu encontrar seu coelhinho?”

Observo seu rosto macilento e lupino sob a luz azulada do ônibus. Seus
olhos estão fixos em mim, como se esperassem uma resposta.
“Você falou que ele morreu”, digo baixinho.
“Falei?”
E então ele encolhe os ombros. Vira-se para a janela, embora não tenha
nada para ver ali além de sujeira. Avisto um machado preto tatuado em seu
pescoço. Sinto um arrepio na nuca, como se atingida por estrelinhas
afiadas. Ele volta a me observar com aqueles olhos que ao mesmo tempo
têm todas as cores e nenhuma.
“Então, cadê suas amigas?”
“Amigas?”
Quando ele olha para mim, sinto minhas costelas se expandindo, se
abrindo como uma porta. Tudo o que me mantém viva de repente exposto,
pronto para ser levado.
“Não são minhas amigas. Eu odeio todas elas.”
As palavras escapam dos meus lábios em uma espiral de fumaça.
Ele sorri. Os raios de sol entre folhas verdes. Meu rosto voltado para
cima enquanto observo as nuvens correndo no céu, a grama úmida colada
nas minhas costas. O cheiro de flores molhadas desabrochando ao meu
redor. Tenho quinze anos.
“Então cadê aquelas garotas que não são suas amigas, Samantha?”
Um bar na cidade onde cresci. Uma parede de tijolinhos lascados
colada nas minhas costas. O moicano branco de um estranho entre meus
dedos. Testa de Frankenstein, mas uma boca vermelha e macia como um
travesseiro. Ele vestia uma blusa prateada que cintilava na escuridão do
bar como um peixe no aquário. Meu coração martelava ao som do baixo de
uma canção new wave. A boca dele como um túnel de fumaça e cravo pelo
qual me deixei levar.
“Estamos de férias. Elas foram passar o Natal em casa.”
“Todas no mesmo avião? O mesmo avião que está despencando do céu
agora mesmo?”
Quando ele sorri, vejo o baterista de uma banda de black metal que
tocou minha alma profundamente certa vez.
“Aviões diferentes. Lugares diferentes”, respondo.
“Que pena.”
E então ele tira um cantil prateado do casaco e toma um gole antes de
me oferecer, chacoalhando-o quando hesito. Aceito e tomo um gole
também. Chamas esverdeadas lambem minhas entranhas. Tento devolver o
cantil, mas ele não deixa.
“Pode ficar. Você tá com cara de que está precisando.”
“Mas e você?”
“Já estou embriagado de amor, Samantha.”
Flores de cerejeira caindo. Rob Valencia convulsionando no palco. Um
peixeiro com quem transei uma vez cujos olhos diziam: “Eu conheço tudo
de cabo a rabo”.
Ele chega mais perto, tão perto que consigo sentir seu hálito frio no
meu rosto. Florestas. Coisas recém-mortas. O aroma de sálvia branca
molhada. Ele estende a mão em direção ao meu rosto. Talvez me mate.
Não ligo. Em vez disso, porém, ele acaricia minha bochecha de leve.
Quando abro os olhos, ele me mostra a palma de sua mão, salpicada do
glitter dourado que as Bunnies passaram no meu rosto quando me
fantasiaram de princesa das fadas. Nem sei há quanto tempo está
entranhado na minha pele.
Ele espalha o glitter na própria bochecha, depois sorri para mim.
Mesmo com o rosto salpicado de glitter, ainda consegue reunir tudo o que
não é fofo em um único homem. E então a ficha cai. É como uma canção
reverberando por minha pele, uma chama correndo nas minhas veias,
como se meu próprio coração estivesse escancarado. Por acaso você é
minha…
“Casa”, diz ele.
E, bem nessa hora, o ônibus para. Ele se levanta. Coloca os fones de
ouvido e, em seguida, atravessa o corredor em direção à porta, assobiando
pelo caminho.
27

Eu o sigo rumo à escuridão. Ele avança como um lobo, me deixando para


trás. Tenho a impressão de que a qualquer momento vai se virar e dizer:
“Que merda você acha que tá fazendo?”. Mas, pelo jeito, quer que eu o
siga. Dá uma ou outra olhadinha para trás para conferir se ainda estou ali.
Talvez com um sorriso nos lábios, mas não consigo ver.
Ele aumenta a distância entre nós, mas nunca o suficiente para que eu
o perca de vista. Não há muitos postes de luz na cidade, então às vezes ele
mergulha na escuridão por tanto tempo, que fico com medo de tê-lo
perdido de vez. Mas em seguida um foco de luz aparece e avisto sua
silhueta ao longe. Mais alto do que uma sequoia. Os cabelos escuros
salpicados de neve.
Dobramos uma esquina, depois outra. Atravessamos um bosque, um
estacionamento. Passamos por ruas legais e horríveis que eu nunca tinha
visto. Cortamos caminho pelos jardins alheios, onde o vejo partir um galho
de azevinho aqui, um graveto de pinheiro acolá. Contorno uma estufa
enquanto o observo colher as delicadas flores brancas que crescem lá
dentro. Depois as junta em um buquê e volta a caminhar, dessa vez mais
rápido. Avançamos pelas casas enfileiradas e adentramos um beco
interminável onde tenho certeza de que o perdi porque tudo vai ficando
cada vez mais escuro, mas finalmente avisto uma rua logo à frente, e a
silhueta dele segue em direção a…
…uma fileira de casas que parecem abandonadas. Jardins cheios de
lixo. Um gato preto encarapitado nos degraus de uma loja fechada.
Jesus, onde a gente se meteu? Mas já estive aqui antes. Não estive?
Ele enfim diminui o passo, o buquê balançando entre os dedos
enquanto espana a neve de todas as cercas por que passamos. “Pare com
isso!”, minha mãe gritava sempre que me via fazer o mesmo. “Pelo amor de
deus, você vai acabar pegando uma doença. Tem noção de como isso é
imundo?” Mas eu não conseguia resistir.
Estou prestes a estender a mão e imitar o gesto quando percebo que
ele se deteve de repente. Está parado no jardim coberto de neve de um
sobrado de tijolinhos.
Por que paramos aqui? O que vamos fazer?
Olho para a casa e sinto um aperto no peito. Porta vermelha. Flores
ainda mortas nos vasos. Toda a construção um pouquinho inclinada para a
esquerda — “parece até que estou em Amsterdã”, ela costumava dizer. “Se
fechar os olhos, dá para ouvir a buzina das bicicletas, os espetáculos de
sexo ao vivo.” O telhado onde dançávamos, agora coberto de neve.
Não reconheci o caminho, diferente daquele que Ava costumava fazer.
“O que viemos fazer aqui?”, pergunto, virando-me para ele.
Mas ele sumiu. Não vejo nada além de uma rua vazia salpicada de
neve. Só tem eu aqui, sozinha, diante da casa de tijolinhos dela.
Corro até a porta vermelha e tento abrir a maçaneta fria, mas está
trancada. Bato, mas ninguém atende. Esmurro a porta até meus punhos
arderem. Tento abrir a maçaneta outra vez, mas ela se solta na minha mão.
“Ava! Ava! Ava!”, grito até ficar rouca.
Quero gritar o nome dele também, mas agora percebo que não sei qual
é.

Uma eternidade. Passo uma eternidade parada na neve suja diante da casa
dela, segurando a maçaneta congelada que se soltou na minha mão.
Observo as janelas vazias. O olhar atento, esperando por qualquer sinal de
vida, qualquer réstia de luz. Mas lá dentro só tem morte e escuridão.
Como se ela nem morasse aqui. Como se nunca tivesse morado. Como se
ninguém morasse aqui há muito, muito tempo.
Não vejo o menor sinal dele, como se não tivesse passado de um
sonho. Ao meu redor não há nada além de escuridão.
“Desista”, diz a escuridão. “Desista, desista, desista. Vá embora. Vá
embora e seja uma coelhinha, Bunny. Pule, pule, pule de cabeça. Não era
isso que você queria?”
Eu não sabia o que queria.
“Tarde demais”, responde a escuridão. “Agora já é tarde demais.”
Escuto um som de arranhão vindo de cima e ergo o olhar. Guaxinins
me fitam com curiosidade do telhado — “meus padres”, Ava os chamava.
“Já confessei tudo para eles. Não que eu queira deixá-los sobrecarregados,
sabe? Mas guaxinins sabem lidar com essas coisas. Adoram lixo, podridão,
tudo que vem de baixo. Você devia dar uma chance a eles qualquer dia,
Smackie.”
E então eles se afastam até sumir de vista. Todos menos o menorzinho,
por quem costumávamos torcer entre a hora do cachorro e a do lobo,
enquanto ele descia com cuidado pelo cano de esgoto. O pequeno
guaxinim está imóvel na beirada da calha, os olhos fixos em mim.
Diga a ela que eu sinto muito. Diga a ela que eu nunca deveria ter ido
embora. Eu estraguei tudo. Sinto saudade dela. Tanta, tanta saudade.
Eu o vejo sumir pela lateral da casa. Fecho os olhos.

“Smackie, é você?”
Um quadradinho amarelo que ilumina a noite toda. O contorno de
seus cabelos emplumados, como se estivesse parada ali o tempo todo.
“Céus, faz quanto tempo que você está aí?”
Uma eternidade. Mas apenas respondo: “Ah, só um minutinho”.
“Sua besta, eu não dei uma cópia da chave pra você há um tempão?”
Parte Três
28

De certa forma, é como se eu nunca tivesse ido embora. Como se eu


nunca tivesse saído daqui, deitada em suas almofadas escuras de seda,
admirando a tapeçaria de pássaros caolhos empoleirados entre vinhas
retorcidas, segurando seu cantil beba-me cheio de vinho quente para
celebrar o inverno. Meus pés afundados no tapete de pele sintética que
acaricia meus calcanhares como grama macia. Nesta sala de estar que
cheira a mil incensos de olíbano velhos, onde sempre há um novo aceso. O
perfume de chuva dela que permanece entranhado no cômodo como uma
trilha que não consigo deixar de seguir. O toca-discos do qual reverbera um
tango ou uma música francesa esquisita dos anos 1960, que soa
exatamente como as canções com que sonhamos, mas nunca conseguimos
encontrar. Os abajures em formato de mulher ao nosso redor — há tantos
agora, mais do que antes, ou sempre foi assim? As cortinas de veludo
vermelho entreabertas. Pela janela, o luar se infiltra com uma intensidade
que nunca vejo onde moro.
É porque a lua odeia aquele lugar.
Ficamos deitadas perto de uma lareira que não me lembro de ter visto
ali antes. Toda decorada com pisca-piscas de Natal. Mais alta do que nós
duas. Uma bocarra cheia de labaredas grandes e saltitantes. Isso sempre
esteve aqui?
“Sshhh. Fica mais pertinho de mim. Você tá congelando, pelo amor de
Deus.”
Ela envolve minhas mãos com as dela, ainda cobertas com a luva
arrastão, como se estivéssemos em um baile de formatura gótico em 1985.
Admiro seu cabelo claro, todo rodeado de chamas que mais parecem
cobras vivas.
“Achei que você tinha ido embora”, digo.
“Eu achei que você tinha ido embora.”
“Eu? Mas foi você que…”
“Pra falar a verdade, achei que você tinha morrido.”
“Morrido?”
“Sua alma, pelo menos. Assassinada. Por aquele culto de garotinhas.
Até acendi uma vela por você.”
Ela aponta para o peitoril da janela, onde avisto uma vela azul
comprida, as chamas bruxuleantes, a base toda gotejada de cera. Depois
volto a fitar o rosto dela, a expressão séria por trás do véu rendado. Ela me
odeia.
“Porra, como eu conseguiria odiar você?”
Ela estica a mão e acaricia minha bochecha, depois usa a pontinha do
dedo indicador para alisar meu nariz. Em seguida me mostra seus dedos
enluvados salpicados de glitter. E aí me lembro dele. Sorrindo para mim na
luz azulada do ônibus. O glitter entranhado nas espirais das pontas dos
dedos. E penso em como o segui até aqui. Observei-o caminhar até a casa
dela e depois desaparecer na escuridão.
Tento perguntar se Ava o conhece, mas ela apenas diz:
“Sshhh. Durma um pouquinho agora.”
Ao ouvir essas palavras, sinto um peso imenso se instalar no meu
corpo. Há quanto tempo estou me arrastando por aí? Então apenas fecho
os olhos e me deixo levar.

Depois, Ava me conta que dormi por uma eternidade. A Bela Adormecida
não é páreo para mim. Mas não é um sono tranquilo, com pálpebras
tremulando lindamente, os lábios entreabertos, silenciosos, à espera do
beijo do meu príncipe sem sal. Em vez disso, acordo empapada de suor,
estrangulada pelas tranças de Bunny que ainda adornam meu cabelo, a
garganta dolorida, logo vou descobrir, de tanto gritar durante o sono.
Acordo diante de uma janela branca, a neve caindo como um cardume
ligeiro do lado de fora. Uma mulher com quimono de dragão está sentada
ao pé da cama. Com uma das mãos segura uma xícara de café alta como
um vaso e, com a outra, um cigarro cujas cinzas ela bate em um cinzeiro
de sereia. Parece preocupada.
“Você dormiu bem?”, pergunta ela.
“Acho que sim.”
“Você gritou pra caramba.”
“Sério?”
“Os vizinhos devem ter achado que eu matei alguém com uma
motosserra. Ou que tive o melhor sexo da minha vida.”
Ela abre um sorrisinho. Depois parece preocupada outra vez. Muito
preocupada.
“Mas que porra aquelas meninas fizeram com você, hein? Bom, deixa
pra lá. Não vamos falar disso agora. Só estou feliz por você estar em casa.”
“Casa”, repito.
E a palavra tem o mesmo efeito que os pãezinhos chineses que vamos
comer em sua mesinha bamba, que o chá-verde que vamos beber. É como
a mesa e as cadeiras e nós duas sentadas ali, juntas, fumando e batendo as
cinzas no mesmo pratinho cheio de migalhas.
“Eu também estou.”

E, em um piscar de olhos, voltamos ao que era antes. Um inverno igual ao


último verão. Dias, semanas, meses se estendendo infinitamente diante
dos nossos olhos. Ela desenha seus mundos lindamente monstruosos, eu
escrevo, finalmente escrevo, não sei o que aconteceu, mas…
“Você está pensando demais, Smackie.”
Sentadas frente a frente na mesa da cozinha. Cada uma com seu
caderninho preto. Compartilhando um cigarro interminável, uma xícara de
chá-verde sempre fumegante. Para nos manter aquecidas na cozinha fria,
não paramos de alimentar o forno com tudo o que pode ser assado —
batata-doce, abacate, banana —, como se atirássemos gravetos em uma
fogueira. Quando fica frio demais, simplesmente abrimos a porta do forno.
“Será que estamos nos intoxicando?”
“É bem provável.”
À noite, preparamos o jantar juntas, bêbadas com o que quer que
esteja em seu cantil, cambaleando pela cozinha como se estivéssemos em
um navio em alto-mar. É um mistério como ela consegue arranjar dinheiro
para comprar bebida e comida, já que não parece estar trabalhando, mas
ela apenas diz: “Eu tenho meus meios”. Depois do jantar, dançamos juntas
em seu tapete lacustre. Balançamos ao ritmo do tango que ecoa dentro de
nós, do jeito que fazíamos nas aulas. Aprendemos tantos passos de dança.
“Você se lembra de algum?”
“Pior que não.”
“Nem eu.”
Mas praticamos os que não esquecemos até desabarmos de exaustão.
Suas mãos enluvadas envolvem meu rosto, então não tenho escolha a não
ser observar aqueles olhos de cores diferentes.
“Tem certeza de que não morreu?”, está perguntando. “Tem certeza?
Tem certeza? Tem certeza?”
Concordo com a cabeça. Tenho. Não morri. Mas a verdade é que não
tenho tanta certeza assim.
Hoje foi um dia tão maravilhoso. Parece até que estou no paraíso. A
noite é uma cascata de música e luzes. É uma toca de coelho na qual
despencamos, dedos entrelaçados com mão enluvada. É uma terra escura
onde eu poderia cavar por toda a eternidade. A noite se transforma na
página de um livro que eu, aos dezesseis anos, pressionaria junto ao peito.
É uma…
Mas ela não está ouvindo. Está dizendo mais uma vez que achou que
elas tinham roubado minha alma. E a despedaçado com suas mãozinhas de
bonobo. Pulverizado meu coração com o perfume relvado que usavam.
Trançado meu cabelo com tanta força a ponto de o crânio quase explodir.
Ela achou que eu estava jogada em um beco qualquer, um corpo inerte
coberto de glitter, o rosto pintado como um gatinho feérico, os braços e as
pernas cobertos de estrelas douradas. Achou que elas haviam costurado
orelhas de coelho ou uma tiara ou as duas coisas na minha cabeça
infectada. Que a tinham apagado da minha memória com uma borracha
em formato de cupcake. Sem deixar qualquer resquício não apenas de
quem ela era, mas de quem eu fui, de todas as coisas que ela amava.
E ela continua a descrever esse cenário até que eu comece a chorar de
tão bêbada.
Ué, mas foi isso mesmo que ela imaginou, fazer o quê?
“Você tem ideia do que eu senti?”
Nego com a cabeça, que parece tão leve agora que me livrei das
tranças. Dá vontade de sacudi-la para sempre. Ava as desfez no dia
seguinte à minha chegada, cuidadosa como se estivesse desarmando uma
bomba. Tantas mechas torcidas, tantos nós elaborados com os quais acabei
me acostumando. Nós desmanchamos o penteado diante do espelho do
banheiro, e, enquanto ela soltava as tranças apertadas, eu afogava minha
dor no cantil de bebida.
Meu cabelo ainda paira ao redor da cabeça como uma nuvem escura e
revolta.
“Que nuvem o quê”, protesta Ava. “O que você tem agora é uma juba
poderosa.”
E em seguida solta meu rosto e desliza pela parede logo atrás. Deslizo
com ela até estarmos as duas sentadas no chão, as costas coladas nos
tijolinhos quentes e gotejantes ao lado da lareira. Na parede da frente os
apelos pintados em spray clamam para que Cthulhu “volte, por favor,
volte!”. E com a mesma letra, mas com outra tinta: “Que solidão, mas que
solidão”. Ava acha que foi pintado por quem morou aqui antes dela, quem
sabe algum desajustado que, assim como ela, abandonou a escola de artes.
Mas ela não teve coragem de cobrir com outra demão de tinta.
Lá fora, a neve cai devagar.
“Desculpe”, peço. “Por tudo.”
Ela estica o braço na minha direção como se fosse tocar meu ombro e
dizer que está tudo bem, mas em vez disso pega uma trancinha fina que
estava escondida em meio à minha nuvem de cabelo, e que deve ter
passado despercebida mais cedo.
Parece um rabo de rato. Não há o menor sinal de qualquer fita, laço ou
elástico brilhante que elas possam ter usado para prendê-la.
“A culpa é Delas”, responde Ava. “E daquela faculdade.” Então se vira
para mim. “A gente deveria explodir a porra toda.”
“Também acho”, concordo.
Ela me observa com aquele olhar embriagado.
“Acha? Sério? Mas você quer mesmo?”
Ava está com medo de que eu ainda esteja sendo controlada pelas
bonobos. Bunnies. Tanto faz. Dá na mesma. Enfim, é importante que eu
seja capaz de tomar decisões, de exercer meu livre-arbítrio. Então ela passa
o dia me fazendo praticar até com as coisas mais simples. No zoológico, no
brechó, na livraria anárquica, nos túneis e cafés. Eu, Samantha Heather
Mackey, quero passar horas observando a raposa-das-ilhas em sua árvore
triste e sintética no zoológico. Não quero ver o recinto dos macacos. Quero
assistir ao desfile dos pinguins ao meio-dia, mas primeiro preciso ter
certeza de que eles só estão ali porque querem. Quero que ela roube
aquele anel de caveira para mim. Prefiro tomar chá-verde hoje. Quero
comprar um pãozinho de feijão-azuqui na padaria chinesa.
Mas, quando experimentei o casaco preto que escolhi no brechó —
“porque está frio pra cacete e você precisa se agasalhar”, disse Ava — e saí
do provador e me olhei no espelho enquanto ela esperava cheia de
expectativa atrás de mim, eu disse “Ficou ótimo, Adorei”, só para agradá-la.
A verdade é que não vi nada. A silhueta alta e turva de uma estranha com
uma nuvem escura no lugar de cabelo. Uma mulher com os contornos
borrados. A Morte.
29

Janeiro, fevereiro, março. O inverno é uma torrente de neve. Flocos


lentos e grossos. Flocos ligeiros e cintilantes. O sol, quando aparece, não
passa de uma débil labareda pálida. Ava diz que nunca viu um inverno
assim. É insano, mas até que legal. Agora que não preciso mais ir às aulas,
a Warren se torna uma terra longínqua, onde nem acredito que morei um
dia. As Bunnies não passam de uma memória distante. Meu celular está
em um silêncio sepulcral e, pela primeira vez, gosto do som. “Como se a
gente estivesse morta mesmo, você tem razão”, concorda Ava com um
sorriso. “E esta fosse a vida após a morte.” E então propõe um brinde com
nossos copinhos de uísque.
Meu cabelo começa a voltar ao normal. Perde as marcas deixadas pelas
tranças. Cai livre e despenteado ao redor do meu rosto, de um jeito que a
faz pensar em franjas de puta velha. Meu couro cabeludo já não sofre mais
com as torções absurdas. “Fique quietinha, Bunny”, diria Cupcake. “Se
ficar caindo no seu rosto, a gente não consegue ver você.” Minhas unhas,
antes pintadas com inúmeros arco-íris e florezinhas tortas, agora só têm
uma ou outra lasca de esmalte azul-celeste ou menta. Os últimos
resquícios de glitter somem do meu rosto. Ainda grito enquanto durmo,
segundo Ava. Coisas estranhas. Sobre cupcakes. Lábios tortos. E um
machado. “Não me conte nada”, pede ela. “Eu não quero saber.”
E, quando acordo, o nome de Ava escapa dos meus lábios em uma
nuvem fria e vaporosa. Corro pelo corredor gelado do apartamento em
pânico enquanto grito seu nome. Às vezes não a encontro logo de cara e
fico sem ar, o coração martelando no peito. Mas ela sempre está lá. Toda
enrodilhada no tapete, a cabeça de encontro ao peito, os braços e as pernas
dobrados como um cisne de origami. “Nunca liguei muito para camas.” Ou
então está acordada, colocando uma batata-doce para assar. Preparando
um café vietnamita, que goteja da tampinha de metal nas grandes xícaras
de vidro. Sentada à mesa, fazendo um desenho no qual batalhamos contra
nossos inúmeros inimigos. Então ela olha para mim e sorri.
“Bom dia, raio de sol.”
“Bom dia.”
Não pergunto a ela: “Não vai trabalhar?”. E ela não me pergunta: “Você
não deveria estar na faculdade?”. Não que fosse me perguntar algo assim.
E, de todo modo, este semestre é dedicado à dissertação. “Mas, meninas,
saibam que esperamos que vocês apareçam de vez em quando, participem
dos eventos, Demitasses, saraus… que sejam membros ativos desta
comunidade tão rica da Warren porque o aprendizado não se limita às salas
de aula.” Mas estou pouco me lixando. Prefiro me sentar junto de Ava à
mesa e escrever. E, pela primeira vez em muito tempo, a escrita flui. Não
apenas flui, mas flui com facilidade. Nem consigo acreditar em como é
fácil. Tão fácil quanto estar aqui com ela. É alegre. É assustador. Talvez
esteja tudo horrível. Mas não ligo. Pelo menos está de volta, pelo menos
recuperei aquilo que pensei ter perdido ou matado, aquilo que pensei ter
me abandonado de desgosto. Não sumiu nem morreu, afinal. Está aqui
agora, assim como Ava. Bem aqui ao meu lado na mesa.
Trabalhamos e nos divertimos e comemos e dançamos o dia todo, até
que finalmente desabamos diante da lareira. Fechamos os olhos e ouvimos
a artista folk cantar sobre esquilos e solidão. Aquele que desapareceu certa
tarde, que sumiu da vida dela e nunca mais voltou. Escutamos tudo como
se sua voz de pombinha solitária fosse uma banheira na qual nos deixamos
afundar.

Nem sinal dele. O cara do ônibus. Meu coelho? Começo a achar que tudo
não passou de um sonho. Vai ver tomei um dos comprimidos de Jonah
depois que fui embora da casa de Fosco. E aí conjurei meu próprio coelho
branco para me guiar de volta até Ava. Às vezes fico tentada a perguntar:
“Por acaso você já viu um cara com um machado tatuado no pescoço por
aí? Alto? Com um sobretudo preto? Segurando um buquê de gravetos?”.
Mas algo sempre me impede. Abro a boca e torno a fechá-la. Observo este
cômodo, esta casa, este mundinho só meu e dela, e apoio a cabeça em seu
ombro. Fecho os olhos. Deixo a noite dar lugar ao amanhecer. Deixo a neve
cair lá fora como se fosse nos soterrar. Por favor, faça isso. Eu não me
importaria nem um pouquinho.
E então, certa noite, ouvimos um rangido no teto.
Que barulho foi esse?
Olho para Ava, que não parece estar nem aí. Fico esperando que faça
uma brincadeira, que diga que é Cthulhu, mas ela apenas diz:
“Ah. Deve ser o Max.”
“Max?”
“Meu inquilino. Ele se mudou lá para cima depois que você foi
embora.”
“Lá para cima? Aqui? Mas como é que eu nunca nem…”
“Ele passa o dia todo fora e só chega tarde da noite. Espero que a gente
não tenha incomodado com o barulho.”
“Barulho?”
Que tipo de barulho?
“Falando no diabo…”, diz Ava.

E de repente, e de repente ele está ali diante da porta, como se nunca


tivesse saído. E sorri para mim do mesmo jeito que sorriu na luz azulada do
ônibus. A tatuagem de machado reluzindo no tendão do pescoço. O cabelo
despenteado em um caos escuro e elegante. Os olhos que parecem
fumaça.
Então não foi um sonho.
“Não”, seus olhos me dizem. Não foi um sonho. De jeito nenhum.
Como se quisesse provar, Ava se aproxima e o beija. Um beijo intenso.
Íntimo. De um jeito que deixa claro que não é a primeira vez. Por fim, ele
se afasta e olha para mim. Nenhuma cicatriz nos seus lábios borrados de
Lady Danger. Os braços compridos enlaçados na cintura dela como se
estivesse muito, muito familiarizado com seus contornos.
“Oi, Samantha.”
30

Não faço ideia do que transparece no meu rosto enquanto o observo ali,
apoiado no batente, como se não fosse fruto das minhas emoções
descontroladas e de uma minúscula bolinha de pelo, e sim um humano em
carne e osso. Desde sempre. E não um humano qualquer. Um cara legal.
Sexy. Sexy de um jeito assustador. E que pelo jeito se chama Max. Um cara
legal e sexy chamado Max que tem olhos de fumaça, uma postura
desleixada, graciosa, e roupas pretas rasgadas repletas de alfinetes. Um
cara que transforma uma coisa simples como se recostar em um batente
em algo inerentemente seu. O braço agasalhado ainda enlaçado em Ava,
que pergunta:
“Ah, vocês já se conhecem?”
“Não”, trato de responder, ao mesmo tempo em que ele diz:
“Sim.”
Ava olha para mim. Depois para ele. Depois de volta para mim. Ué, se
conhecem ou não?
“A gente já se trombou por aí”, explica ele, com ar casual.
Tão, tão casual. Vejo que suas unhas estão pintadas de prata. Lixadas
até se transformarem em pontinhas afiadas.
“Não é mesmo, Samantha?”
De repente, sinto o celular vibrando no bolso. Pela primeira vez em
semanas.
Ele sorri para mim.
“Você”, é tudo que consigo dizer.
Ava me olha como quem diz: “Cacete, qual é o seu problema?”.
“Não ligue para a Smackie. Ela passou por maus bocados. É uma longa
história.”
Ele assente com compaixão, como se entendesse. Depois caminha na
minha direção, ficando cada vez mais alto conforme se aproxima.
Lançando uma sombra comprida e eriçada sobre mim. Escurecendo o
canto onde estou sentada, com as mãos espalmadas no chão.
E então ele se agacha diante de mim e me observa com aqueles olhos
envoltos em fumaça. Minhas costelas se expandem. Um zumbido atravessa
meu corpo. Ele pega minha mão, depois a leva até seus lábios humanos. E
então planta um beijo ali com muita, muita delicadeza.
E, em um piscar de olhos, ele a solta. Estica o braço e bagunça meu
cabelo como se eu fosse um cachorrinho.
“Acho melhor eu ir andando, meu amor”, diz, virando-se para Ava.
Meu amor? Meu amor?
“Já estou embriagado de amor, Samantha”, ele me disse no ônibus
naquela noite.
Vejo a marca dos lábios de Ava que ele deixou no dorso da minha mão.
E em seguida percebo o jeito como ele olha para ela. Da mesma forma
como um dia olhei para os raios de sol que dançavam entre as folhas de
uma árvore. Eu estava deitada na grama, as sombras das folhas
tremeluzindo sobre mim, banhando-me com toda aquela luz verde-
dourada. Ele a olha assim enquanto ela, aparentemente alheia, sugere que
ele volte para casa — casa! — mais cedo para que a gente possa passar um
tempinho juntos. Quem sabe até beber alguma coisa?
“Eu não perderia por nada”, promete ele. Vai até trazer o jantar.
“Algo que já esteja morto desta vez, hein, por favor”, pede Ava.
Ele sorri, concorda. Mas seus olhos e a curva de seus lábios dizem:
“Ah, quem sabe do que sou capaz?”. Eu os vejo trocar um sorriso secreto,
achar graça do que deve ser uma piada interna. Só entre os dois.
E então ele a beija outra vez. Um beijo tão intenso, tão demorado, que
tenho a impressão de que o sol nasceu e se pôs e tornou a nascer enquanto
fico ali, estirada no sofá, sem conseguir me mover, observando os dois.
Quando enfim se afastam, não há mais vestígio de batom nos lábios dela,
agora cercados por um contorno rosa-claro. Os dele têm o mesmo contorno
quando ele se vira para mim e diz:
“Vejo você por aí, Samantha.”
E em seguida sai pela porta, deixando para trás um cheiro de floresta
mesclado a um aroma animal pungente que não me deixa esquecer…
Como se fosse possível.
Pego o celular, que não parou de vibrar um segundo. Quatro chamadas
perdidas. Quatro mensagens de texto. Cada uma delas com uma única
palavra, uma palavra longa e familiar, seguida por um ponto de
interrogação/exclamação, uma tulipa e um fantasma, um ponto-final e
coisa nenhuma.
E de repente uma mensagem nova:
Bunny, cadê você?
31

Coelho cozido de quatro jeitos diferentes, sua especialidade. Ele


espera que a gente goste.
“Goste?”, interrompe Ava. “Porra, isso aqui é uma ópera na boca.”
“Ópera na boca”, repete ele. “Adorei.”
À luz de velas, eu o vejo usar suas mãos humanas para arrancar a carne
e os ossos do coelho, como se não tivesse a menor conexão com aquele
animal. Será que os Queridinhos comiam coelhos? Nunca os vi ingerir
nada além de balinhas. Depois o vejo arrancar um naco de carne com os
dentes retos e brancos e engolir tudo com um gole do vinho tinto que
trouxe para casa. Tenho certeza de que roubou a garrafa de algum lugar.
Ele não tira os olhos de Ava nem por um segundo. Como se ela fosse flores
de cerejeira sopradas ao vento. A luz do luar. O balançar das folhas verdes.
Enquanto isso, sua sombra animalesca avulta pelas paredes. Com
chifres, pelos, presas. Por acaso coelhos têm sombras chifrudas? Não que
eu tenha visto. Por que Ava não percebe nada? Mas ela continua alheia.
Sem ver nada. Ela o observa do outro lado da mesa, com o queixo apoiado
na palma da mão rendada, o cigarro reduzido a cinzas entre os dedos, como
se ele fosse Jacques Brel ou quem sabe Lux Interior e estivesse prestes a
lhe cantar uma música sobre Amsterdã ou perder a cabeça. E acredita
quando ele lhe diz que também adoraria explodir a Warren. Que também é
fissurado por The Cramps, Scott Walker, pop francês dos anos sessenta e
as trilhas sonoras de Mancini. Ah, e ele ama dançar. Principalmente tango.
A responsabilidade pesa sobre mim. As obrigações ético-morais.
Porque não dá para ficar de braços cruzados e permitir que sua melhor
amiga namore um homem-animal que você mesma criou. Não dá. E ficar
calada enquanto acontece? Isso seria errado. Em tantos níveis. Eu preciso
falar alguma coisa. Preciso dizer que…
“Mais uma taça de vinho, Samantha?”
“Sim, por favor.”
Está na cara que ele está tentando me embebedar. Eu o vejo servir o
vinho até a borda. Sorrindo para mim. Tão educado. Tão cavalheiro. Talvez
não tenha vindo de mim, afinal. Será que isso ainda é uma possibilidade?
Porque coelhos não comem outros coelhos. Nem bebem vinho. Nem têm
olhos que parecem fumaça e feições lupinas e afiladas. Não pode ter vindo
de mim. Mas o brilho em seu olhar diz o contrário, o esboço de sorriso
também. Ele sabe, eu sei, e é por isso que não consigo encará-lo sem
desviar o olhar. Porque olhar para ele é como contemplar um espelho
negro, como estar dentro dos meus próprios sonhos, dos meus próprios
pesadelos.
O jantar se arrasta como um déjà vu. Sei o momento exato em que ele
vai se inclinar para a frente na cadeira e olhar para ela com uma
intensidade que me faz corar. Ou quando vai se recostar, assentir e
concordar com o que ela acabou de dizer. Sei quando vai dizer: Sim,
Verdade, Eu também, Ah, concordo.
Meu celular vibra no colo, passou o dia assim. Por que começou tão de
repente, depois de semanas de silêncio? O que elas querem comigo?
Bunny, faz tempo que a gente não vê você no campus! Vamos sair pra
tomar uns drinques, por favor!
Ah, não, Bunny, vc ainda tá doente? Quer que eu leve uma sopinha pra
vc? Um suco? Qlqr coisa me manda msg!
Bunny kd vc??
?
“Que barulho é esse? É seu celular, Samantha?”
“Não.”
Sei exatamente por quanto tempo ele vai rir da piada que ela acabou de
contar — “hahaha você é tão engraçada” — antes de contar uma também.
Uma piada besta. Chego a ficar com vergonha alheia, mas sei que eu
provavelmente contaria algo parecido. Ava nunca vai rir disso. Você perdeu,
penso.
Mas ela ri. “Hahaha. Você se acha tão engraçadinho. Não é verdade,
Samantha?”
“Arrã.”
Sei o momento exato em que a tatuagem de machado vai reluzir à luz
das velas, com seu brilho escuro e vívido do outro lado da mesa. Um
lembrete de que ele pode ser perigoso. De que não posso baixar a guarda.
De que preciso…
“Samantha, você mal tocou no seu coelho”, comenta ele.
“Foi?”
Olho para o prato. Ele me serviu a cabeça do coelho que foi assado
inteiro. Um presente do chef. Contemplo as profundezas de seu olho
turvo. Samantha, você precisa contar para ela.
“Terra chamando Samantha”, diz Ava. “Está tudo bem?”
“Quê? Ah, está tudo ótimo, claro.”
“Perdida no seu mundinho outra vez?”
Abro um sorriso. Isso. É isso mesmo.
“Samantha é escritora”, conta ela para Max, que me observa por cima
da coxa que acabou de arrancar do coelho assado. Como se ele já não
soubesse disso.
“Jura? Quem diria… E sobre o que você escreve, Samantha?”
O que mais me assusta é o fato de as feições dele nunca
permanecerem iguais. Estão sempre mudando. Às vezes ele é o cuspidor
de fogo que vi em Edimburgo. Às vezes é o fã de dark wave com camisa
prateada e moicano branco, aquele cujos beijos tinham gosto de fumaça e
cravo.
“Smackie?”
O lobo solitário que eu e Alice visitávamos no zoológico durante a
adolescência. Eu admirava seu corpo esguio sob aquela árvore empenada
pelo vento e me perguntava o que aconteceria se ele conseguisse escapar.
“Tudo”, respondia Alice, extasiada.
“Smackie.”
O taxista tcheco que parecia prestes a estacionar o carro e me matar.
Eu tinha tanta certeza de que iria morrer que passei o caminho inteiro
rezando. Meu melhor amigo de infância, Brian, com seus cabelos cor de
trigo e sua voz gentil e a inteligência calma que minha mãe julgava
esquisita para uma criança de cinco anos. Ele prometeu que se casaria
comigo quando fôssemos adultos. Chegamos até a nos casar de mentirinha
antes de ele se mudar para longe. Usei um vestidinho branco, joguei um
buquê de dentes-de-leão por cima do ombro. O que será que aconteceu
com Brian? Ele ainda existe na minha lembrança como um raio de sol de
topete louro.
“Samantha!”
“Oi! Desculpe.”
“Max fez uma pergunta”, avisa Ava.
Olho para Max, que segura a taça de vinho pela haste, com as feições
diferentes outra vez, como será que ela não percebe? Agora é o retrato
perfeito da paciência cavalheiresca e sorridente, do namorado perfeito que
demonstra um interesse genuíno na vida das amigas da namorada.
“Só perguntei o que você escreve”, repete ele. “Histórias de terror?
Romances sombrios?”
Sorriso irônico.
Respondo que é meio difícil explicar.
Ele assente. Claro. Deve ser bem difícil mesmo.
Bom, ele diz que sente muito por não termos nos conhecido antes.
Mas tem andado tão ocupado, Samantha, tão ocupado. Teve que estar em
quatro lugares ao mesmo tempo, literalmente.
“Max é artista performático”, conta Ava. “Passou o inverno inteirinho
trabalhando em um projeto enorme. Lá na sua faculdade, aliás.”
“Na minha faculdade?”
Ela entende errado minha expressão horrorizada.
“Eu sei. Eca. Mas pelo jeito é uma parada bem subversiva. Um foda-se
gigantesco para a universidade, e você sabe que sou totalmente a favor
disso. Eu falei para ele, só toma cuidado para não ter sua alma roubada
pelas bonobos.”
“Bunnies”, corrijo no automático, mas logo me arrependo, porque ele
ergue o olhar. E o mantém fixo em mim. Seu sorriso é uma pergunta já
respondida.
“Bunnies?”, repete.
E me lembro de ouvi-lo dizer isso na noite em que nos conhecemos. A
palavra em sua boca. Boa, mas precisava de uma pitada de sal. Sem
dúvida. Ele espeta o garfo na carne de coelho ao vinho tinto, depois o agita
no ar.
Ava dá risada. Ele é uma figura, né?
“Quem me dera. São só umas garotas malucas com quem Samantha se
meteu. Elas tentaram devorar a alma dela como se fosse uma placenta.”
“Eu não sei se diria que…”, começo a dizer, toda vermelha.
“Como se fosse a porra de uma placenta”, repete Ava, sem olhar para
mim.
Max olha para mim, depois para ela, e então assobia.
“Uau”, diz antes de enfiar um naco de coelho na boca. Mastiga devagar,
perdido em pensamentos. Depois balança a cabeça. “Elas parecem
péssimas.”
“E são mesmo”, concordamos Ava e eu baixinho.
“O tipo de gente que merece ser destruída bem devagarinho.”
“E merecem mesmo”, sussurro sem nem pensar duas vezes.
Ava olha para nós dois, perplexa.
“Destruir? Por que se dar o trabalho? Elas que se fodam.”
“Exatamente”, dizemos Max e eu ao mesmo tempo. “Elas que se
fodam.”
Quando o vejo lamber a faca com sua língua comprida, também sinto o
medo lamber a parte interna da minha coxa. Das duas coxas.
“O que você está fazendo na minha faculdade?”
Ele olha para mim com uma surpresa fingida, mas dá para ver que
minha pergunta o diverte, como se eu tivesse apontado uma arminha de
brinquedo na sua direção.
“Ah, eu não gosto de falar sobre meu trabalho, Samantha. Perde a
graça, acaba com a grande revelação. Mas você com certeza deve
entender.”
“Samantha é igualzinha em relação aos textos dela”, comenta Ava,
dando um tapinha no meu braço.
Ele para de roer o que parece ser uma orelha e sorri para ela.
“Sério?”
“Nossa, você não faz ideia. Ela fica toda de segredinho”, continua Ava.
“Eu não fico de segredinho”, murmuro.
“Você precisa ver. Enquanto escreve, ela cobre a página do caderninho
com a mão como se fosse uma prova da escola.” Então sorri para mim. “É
meio fofo, para falar a verdade.”
Max abre um sorriso do outro lado da mesa.
“Ela só faz isso porque está escrevendo sobre você”, declara.
Meu peito arde em chamas. Minha pele é tomada por uma
vermelhidão repentina que, mesmo neste cômodo escuro, vai me trair.
Sinto o olhar de Ava em mim. É verdade, Samantha? Mas não consigo
encará-la.
Mantenho os olhos fixos em Max. Observo seu rosto assustadoramente
lindo, mas com um sorriso que transborda inocência. Tento me comunicar
por telepatia. Um aviso. Traidor. Mas ou ele não percebe, ou não dá a
mínima. Está na cara que não consigo controlá-lo do mesmo jeito que as
Bunnies faziam com seus Híbridos, seus Queridinhos, até mesmo seus
Rascunhos. Quieto! Senta! Pega iogurte pra mim! Deita aqui do meu lado,
meu Queridinho.
“Se eu fosse escritor”, continua ele, dirigindo-se a Ava, “eu também
escreveria sobre você.”
“Pfff, fala sério”, rebate ela baixinho, mas parece emocionada.
Emocionada de verdade.
“Juro. Você é a coisa mais incrível e maravilhosa que já me aconteceu.”
Ele diz isso de um jeito tão sincero. Como se fosse algo tirado de seu
próprio cérebro, e não da terceira página do meu caderno secreto, que está
escondido debaixo do meu colchão.
Ava manda Max calar a boca, mas sei que não é para valer. É o jeito
dela de dizer: “Por favor, continue”. Para meu horror e fascínio, é
exatamente isso que ele faz.
Primeiro chega mais perto e segura a mão dela. Exceto por sua sombra
monstruosa na parede, é o retrato perfeito da alma ousada, mas romântica.
Sid Vicious quando Nancy era seu sol.
“Estar com você”, declara ele para Ava, “é como viver nas páginas de
um livro. Não sei o que me aguarda no próximo capítulo. Mas o
entusiasmo é tão grande. Sinto que minha vida pode mudar. Já não sou
mais uma pessoa sozinha no mundo.”
Morro por dentro ao ouvi-lo dizer essas palavras, que escrevi em outro
caderno ainda mais antigo. Rabisquei-as em êxtase no gramado vazio do
campus, de ressaca depois de umas das nossas primeiras aventuras que
varavam dia e noite. Depois que ela agarrou minha mão às onze da manhã,
assim que nos conhecemos, e só a soltou quando o sol voltou a raiar no dia
seguinte. “Eu fiz uma amiga”, acho que cheguei a sussurrar para a estátua
da lebre voadora, enquanto as folhas se entranhavam no meu cabelo jamais
trançado. E ouvir minhas palavras vertendo dos lábios dele agora… A
vergonha. O melodrama. A carência solitária, desesperada, esperançosa.
Torço para que o chão se abra e me engula por inteiro. Olho para baixo e
rezo por isso. As tábuas do piso estão cobertas de poeira porque Ava nunca
passa o aspirador, nem eu, e pelo jeito ele também não.
O que ela responderia? Cala a boca? Vai se foder? Fala sério?
“Que lindo”, ouço-a dizer.
Olho para ela. Está com o rosto voltado para o prato, vazio a não ser
por um punhado de ossos roídos. Ava quase não come. Geralmente acende
um cigarro sobre os pratos intocados e depois os deixa para mim, com as
cinzas salpicadas sobre a comida como uma pitada de sal. Mas o de agora
está limpo, como se o tivesse lambido até não sobrar nem uma migalha.
Percebo que está toda corada. Até o pescoço.
“É a verdade”, responde Max quase de imediato.
A intensidade se desprende dele como um perfume, aquele aroma de
floresta que o acompanha por onde quer que vá. Como uma sombra, uma
rajada de vento.
“Não é, Samantha?”
Ele estica o braço e apanha a última fatia de pão, que fiquei tentada a
pegar, e entorna o vinho direto do gargalo. Depois o oferece para Ava, que
também bebe antes de entregá-lo para mim. Mas, quando viro a garrafa
sobre meus lábios, vejo que só sobrou uma gota.

Depois que terminamos a última garrafa, ele volta a falar sobre tango, seu
gênero de dança preferido. Espere aí, é o preferido dela também? De vocês
duas? Caramba. Que loucura. Mas que coincidência, hein, Samantha?
Ava sugere que a gente enrole o tapete para abrir espaço na sala.
“Ora, vamos lá, Smackie. Posso ser o Diego desta vez.”
E ele pergunta:
“Diego? Quem é Diego?”
“Ah, um cara clichê que Smackie e eu inventamos para ser nosso
parceiro de dança. Mas a verdade é que estávamos dançando uma com a
outra, não é?”
“É, sim.”
Ele sorri.
“Que fofo. Quero ver.”
Quando Ava e eu dançávamos juntas, para onde a gente olhava? Uma para
a outra? Não lembro. Só sei que agora mantemos nosso olhar fixo em outro
lugar. Tento sorrir para aquele espaço vazio, como se ela estivesse bem ali,
mas é Max quem vejo ao longe. Encostado no batente da porta com seu ar
sexy, assustador, assomando como uma árvore linda e maligna. Segurando
um cigarro e um copo cheio de uísque âmbar. Exalando aromas sedutores,
sombras estranhas. Tudo enquanto nos observa atentamente. Não. Apenas
Ava. Na verdade ele só tem olhos para Ava.
“Já estou bem cansada”, aviso, enquanto me desvencilho dela. “Acho
melhor eu ir dormir.”
Mas não vou dormir. Fico sentada ali e os vejo rodopiar sem parar
diante da lareira cujas chamas nunca se apagam. Levo seu cigarro ainda
aceso aos lábios. Tomo um gole do uísque e sinto o gosto de uma fogueira
no mar do Norte. Vejo suas almas emaranhadas como os tentáculos de
uma lula. Estou horrorizada. Fascinada. Envergonhada em níveis que nem
sei explicar. E cada vez mais embriagada, mas não consigo parar de olhar.
O jeito como ele olha para Ava. O jeito como Ava olha para ele. Tomo outro
gole da fogueira que ele despeja no meu copo. Ignoro as vibrações
incessantes do meu celular.
Bunny, isso não tem a menor graça. Você sumiu do mapa.
Bunny, vc morreu?? Aquele apartamento nojento q vc mora te matou???
Se vc ainda estiver viva, me manda uma msg pfvr!
porra! kd vc??
S, não tenho visto você no campus ultimamente. Isso me preocupa. Por
que não nos encontramos? O quanto antes.
O mundo parece se suavizar enquanto ele rodopia Ava pelo cômodo.
Mesmo quando a música para, os dois continuam girando. Então a ficha
cai, embora eu já soubesse.
Eles estão trepando. É claro que estão.
32

“É claro que sim”, diz Ava no dia seguinte. “Quantos anos você tem?
Doze?”
Estamos sentadas no telhado, o céu paira sobre nós como uma chapa
cinzenta de ardósia. Ela olha para mim como se quisesse saber, como se
quisesse mesmo saber, se tenho doze anos. Porque só alguém dessa idade
chegaria para uma mulher adulta e perguntaria, aos cochichos: “Então,
vocês já… sabe…?”.
“Transaram?”, concluiu ela por mim.
E pelo jeito meu rosto se contorceu em dor.
“Nossa, por que essa cara de espanto?”, pergunta ela. E eu respondo
que não fiz cara nenhuma, e ela diz: “Bom, você deveria se olhar no
espelho.” Pois fique sabendo que ela consegue ver meu rosto muito bem
graças ao penteado das bonobos. Minha franja de puta ainda não retomou
a antiga forma, então ela pode olhar bem no fundo dos meus olhos. Pode
ver o tremor nos meus lábios enquanto tento fingir que estou calma,
tranquila, descontraída. Nem um pouco chocada, satisfeita ou horrorizada
ao descobrir que Max, ao contrário dos garotos-coelhos eunucos, consegue
transar. Com a minha melhor amiga.
“Dormiu bem, Samantha?”, perguntou ele esta manhã, e nem esperou
uma resposta antes de beijar a pontinha do meu nariz e depois beijar Ava
na boca, no pescoço, na orelha, no ombro, na boca de novo, na outra
orelha, no pescoço outra vez. E aí ele foi embora. Sabe-se lá para onde.
Para onde ele vai, afinal?
“Sei lá. Para sua faculdade, talvez? Para trabalhar no projeto. Ele diz
que é site-specific, mas não faço ideia do que isso quer dizer.”
“Não vejo a hora de mostrar a você, Samantha”, sussurrou ele para mim
enquanto saía pela porta. “Quando estiver pronto, claro.”
“Mas em que lugar da minha faculdade, exatamente?”, perguntei a Ava.
“Ué, e como vou saber? Eu não fico vigiando cada passo que ele dá, ok?
Aqui não é a Bonobolândia!”
Vejo a grama começar a aparecer entre as camadas de neve que
revestem o chão. As árvores úmidas e gotejantes cheias de brotos. Porque,
de alguma forma, já é primavera. O ar tem um aroma doce e florido, como
o de plantas se reproduzindo. Meu cérebro fica emaranhado feito algodão
enquanto Ava me conta sobre como o conheceu. Quando ainda acreditava
que eu estava morta ou tinha virado ração de bonobo. E ela estava
arrasada, sozinha pra cacete, mas ainda assim tentava me esquecer, pois eu
não passava de um fantasma do que tinha sido. Até que um dia ele
simplesmente tocou a campainha e perguntou sobre o quarto vago, embora
ela não o tivesse anunciado em lugar nenhum. Simplesmente brotou do
nada. Um anarquista com gosto musical impecável. E um artista muito
dedicado. Não que ela saiba muita coisa sobre o projeto, já que ele é todo
misterioso em relação a isso. E dedicado também. Parece até alguém que
ela conhece… Enfim. Ela tem certeza de que vai ser um espetáculo. E,
como se não bastasse, ele ainda é um cozinheiro de mão-cheia. Mas isso
eu pude comprovar por conta própria ontem à noite, não é?
“É, sim”, concordo enquanto aceno com a cabeça.
Acenar com a cabeça é uma coisa tão estranha se parar pra pensar. A
cabeça fica ali, balançando para cima e para baixo sobre o pescoço.
“O que deu em você, Smackie?”
“Quê? Como assim?”
“Você está meio, sei lá, esquisita.”
“Esquisita? Não estou, não.” Nego com a cabeça. Esquisita, eu?
Imagine. “Só estou… preocupada, sabe?”
Nem consigo olhar para ela enquanto digo isso, então me ponho a
observar os padres guaxinins que claramente querem que eu abra o bico.
“Você precisa contar tudo a ela, Samantha”, aconselham eles. “Porque
está na cara que ele não é quem diz ser, não é? Então ela tem o direito de
saber.” Mas será que Ava acreditaria em mim? Será que alguém acreditaria
em mim?
“Preocupada”, repete ela, como se fosse uma palavra muito suspeita.
E é mesmo. Mas sigo em frente mesmo assim.
“É só que ele parece meio… intenso.”
Ela escancara um sorriso, como se ele tivesse acabado de se
materializar no telhado.
“Mas eu gosto disso”, confessa. “Ele é…”
“O quê?”, pergunto, tentando não parecer muito ansiosa.
Ava olha em volta como se o ar estivesse cheio de um brilho que só eu
não consigo ver. Um brilho que nunca vou conseguir ver, porque meus
olhos não foram feitos para isso. Mas está lá.
“O quê?”, insisto.
“Sexy”, responde ela por fim, soprando uma nuvem disforme de
fumaça.
Eu observo a fumaça subir pelos ares até desaparecer entre a copa das
árvores.
“Ava, preciso contar uma coisa.”
“Pode contar.”
Não conte a ela. Você vai perdê-la para sempre se contar.
Ava me olha por um bom tempo. Depois, dá um beijo na minha testa.
“Não precisa se preocupar, Smackie. Eu ainda amo você mais do que
tudo no mundo.”

Pelo jeito ele está morando mesmo no quarto do segundo andar. Quando
entro pela porta, tento me convencer de que não estou bisbilhotando. Este
era o meu quarto, afinal. E ele deixou a porta aberta. Ou quase isso. Mas
pelo menos não estava trancada. Então era praticamente um convite.
Varro o quarto com os olhos em busca de… nem sei de quê. Está
quase idêntico a como o deixei. Um punhado de coisas novas. Caixinhas
de comida chinesa empilhadas, todas vazias. Uma caixa de som barata com
luzes que giram e mudam de cor enquanto toca “Bring On the Dancing
Horses”, de Echo & the Bunnymen. Tirando isso, não tem o menor indício
de que outra pessoa morou aqui além de mim. Nenhum indício de que
qualquer pessoa tenha morado aqui. A cama parece intocada. Os livros que
deixei para trás ainda se empilham contra as paredes, intactos. Vou até a
escrivaninha preta e gasta junto à janela, um presente de Ava. “Um teto
todo seu etc.” Ela até entalhou um S no tampo com sua faca, para que a
mesa soubesse que era minha. Mas a verdade é que quase todo dia
acabávamos trabalhando frente a frente na mesa da cozinha. Ava
trabalhava, pelo menos. Eu estava coçando minhas feridas, rodeando o
caderninho preto como um tubarão à espreita, só esperando uma deixa
para dar o bote. Um caderno idêntico a este, aliás. Igualzinho ao que vejo
agora, jogado bem no meio da escrivaninha.
Como se quisesse ser encontrado. Como se quisesse ser lido.
Sinto um aperto no peito quando vejo minha própria letra. Algumas
páginas de anotações fervilhantes e rabiscos tristes. Um punhado de
citações aleatórias e insignificantes. Listas. Muitas listas. A frase “Eu não
sei” rodeada de vinhas emaranhadas e olhos escancarados. Odeio minha
letra. A caligrafia febril, quase ilegível, tão inclinada que parece capaz de
tombar a qualquer instante, só para em seguida escapulir da linha e se
atirar nas margens como pequenas suicidas. Tantas palavras riscadas.
Parágrafos inteiros rasurados. Até mesmo as listas parecem atormentadas
pela incerteza. Mas, ao folhear o caderninho agora, percebo que há algo
novo na primeira página. Logo abaixo de uma citação sensível sobre a
solidão que devo ter copiado de algum lugar no passado, mas que agora já
não significa mais nada para mim: um texto em tinta preta brilhante. Uma
lista. Escrita com uma caligrafia diferente, que ao mesmo tempo parece e
não parece minha letra. É mais retinha. Mais confiante. Como se nunca se
perguntasse: “Isso está certo? Será que eu errei?”.
Dou uma olhada na lista.

Samantha_Mackey@warren.edu louvadosejaxenu
Caroline_Anderson@warren.edu Euamocorgies
Kira_Stone@warren.edu Unicorniospfvr
Victoria_Fielding@warren.edu leitedesangueprogogol
Eleanor_Brown@warren.edu ledaeocisne
Ursula_Radcliffe@warren.edu 7BruXadoMAr7
Alan_Reid@warren.edu fleshmarketclose

Um arrepio quente sobe pelo meu pescoço. Solto o caderno como se


ele tivesse me mordido. Puta que pariu. Fico sem ar. Olho para o S
entalhado no tampo de madeira, o coração martelando nos ouvidos. Tento
abrir a gaveta da escrivaninha. Trancada. Trancada? Já estava assim antes?
Um zumbido me faz pular de susto.
Em cima da cama há um celular que eu ainda não tinha visto. Pego,
olho para a tela e vejo inúmeras mensagens não lidas de vários números
diferentes.

Icarus, você me incendeia.

Opa, Byron! Aquele emoji de patinho era pra outra pessoa.


Mandei errado.
Espero não estar atrapalhando
É que não te vejo há um bom tempo, então…
Me manda uma mensagem quando puder
Sinto saudade dos nossos tête-à-têtes
muita saudade
Ah, as cicatrizes estão tão lindas agora! Quero muito te mostrar.
Bjs (é a Caroline, aliás )

Tristan! Não sei se vc tá recebendo minhas msgs???


Meu celular tá mt esquisito esses dias
Pfvr me ajuda tô perdida em uma floresta e
(in)felizmente não tenho medo de lobos!

Hud. vc me deixa com tesão. vemk

Esta última vem acompanhada da foto de um torso feminino nu,


estirado sobre um tapete de pele de urso. Seu corpo branco-azulado está
cortado bem na altura do pescoço, como…
“Como no arquétipo da heroína perseguida. Mas dá para imaginar
direitinho o sorriso esboçado, o rosto ligeiramente franzido, não?”
Deixo escapar um grito. Ele está parado bem ali, na minha frente. Tão
perto que posso sentir o cheiro animalesco, florestal. Encostado na parede
como se não fosse nada, encurralando-me como se não fosse nada.
“Você achou meu celular”, diz.
Olhar enfumaçado impassível. Sorriso inescrutável.
“Ora, não sei se eu diria que é inescrutável, Samantha”, continua, e
arranca o celular da minha mão com tanta facilidade, quase como se eu
tivesse entregado a ele.
Sinto uma eletricidade sombria quando seus dedos roçam minha pele.
Minhas costelas se expandindo como acontece, percebo agora, sempre que
ele me toca. Mas não me permitirei ser manipulada, distraída, controlada.
Por isso, levanto a cabeça e olho no fundo dos olhos dele, me afogando na
miríade de cores ondulantes (Sou eu que estou afogando você, Samantha, ou
foi você quem entrou aqui por vontade própria, cheia de pedras nos bolsos?), e
pergunto:
“Que porra é essa?”
Um franzir em suas sobrancelhas adoráveis. Uma expressão de
surpresa inocente no seu olhar de fumaça.
“Quê?”
“Essas mensagens!”
“O que tem elas?”
“O que tem elas? O que tem elas”, retruco, como se nem soubesse por
onde começar.
Mas logo percebo que realmente não sei por onde começar. Não
encontro as palavras certas para perguntar tudo o que quero saber. E são
tantas, tantas coisas.
Ele sorri como se me achasse fofa. Como se o fato de eu estar ali,
espumando pela boca, prestes a acusá-lo, o fizesse gostar de mim de um
jeito que não entendo.
“Samantha”, começa a dizer, enquanto despenteia minha nuvem de
cabelo com ternura.
Depois envolve meu rosto ardente com suas palmas frescas de floresta.
A sensação é tão boa que um suspiro escapa dos meus lábios contra minha
vontade. Mas ainda quero respostas.
Em vez disso, é ele que me pergunta:
“Você não deveria estar na faculdade?”
“Quê? Do que você tá falando?”
Ele solta meu rosto. Enfia a mão no bolso. Eu me preparo para ver uma
faca, um porrete ou algo do tipo. Mas é só meu celular. A tela quebrada, a
capinha roxa barata.
“Devo ter pegado o seu por engano.” Uma mentira deslavada. “Aqui.”
Eu fico parada ali, encarando o celular.
“Pode pegar”, insiste ele, balançando-o na mão como fez com o cantil
naquela noite no ônibus.
Olho para a tela e vejo que está aberta na minha caixa de e-mails da
faculdade.

Prezadas,

Por favor, estejam na Caverna às cinco da tarde de hoje para um

Seminário Emergencial Obrigatório, conforme discutimos. Por favor,

sejam pontuais. Por favor, venham de ouvidos e olhos abertos. Por

favor, estejam preparadas para Cutucar a Ferida.

Saudações,

Ursula

“Nossa”, comenta ele, lendo por cima do meu ombro, com uma
surpresa fingida. “Parece importante. Acho que é melhor você ir logo.”
Ele despenteia meu cabelo outra vez, e a franja de puta se solta,
fazendo com que eu volte a enxergar o mundo com um olho só.
“Sabe como é, Samantha. A Ferida não vai se Cutucar sozinha.”
33

Não faço ideia. Não faço a menor ideia do que vou encontrar na Caverna.
Prendo a respiração ao entrar no auditório, me preparando para vê-las
depois de tanto tempo. Repasso suas mensagens na minha cabeça, mas
nem me atrevo a adivinhar seu significado, a tentar descobrir o que raios
está acontecendo. Abro a porta, tentando me preparar para todos os
cenários possíveis e imagináveis, para dar de cara com…
As carteiras dispostas no quadrado de sempre, vazias por enquanto.
Fosco sorrindo para mim com sua bata iridescente. Nenhum cachecol fora
do lugar.
“Samantha”, chama ela da escuridão da Caverna, e parece
genuinamente feliz em me ver. “Não precisa ter pressa. Relaxe. Respire.
Você chegou na hora certa. Na verdade, está até um pouquinho adiantada.”
“Para variar”, diz seu sorriso.
Ela segura minha mão. E, mesmo que estejamos sozinhas, diz em um
sussurro:
“Adorei seu e-mail, aliás.”
“Meu e-mail?”
Lembro-me da senha dela, rabiscada ao lado do e-mail na caligrafia
confiante de Max.
“Samantha, nunca se envergonhe de ser sincera. De pedir ajuda.
Outros professores até poderiam ver isso como uma demonstração de…
hum… fraqueza, imagino. Mas eu achei muito honesto. Corajoso. E suas
colegas maravilhosas concordam comigo e estão ansiosas para ajudar. Um
grupo tão maravilhoso que sempre se apoia tanto.”
Ela aperta minha mão com força.
“Achamos que estamos sempre sozinhos. Que somos especiais. Mas
estamos redondamente enganados. Graças ao seu e-mail, eu sei que você
não tem nenhum texto para compartilhar com a gente hoje. Mas não se
preocupe. Não é motivo para se envergonhar. Hoje você está aqui para
ouvir. Para observar e talvez tecer alguns comentários. Se você sentir
vontade, claro. O que acha?”
Ela está me olhando com um ar tão triunfal que fico tentada a
desmascarar a mentira dele, a contar a Fosco que desta vez tenho, sim,
muitos textos para compartilhar. Em vez disso, porém, apenas concordo
com um aceno.
“Legal. Obrigada por… entender.”
“Você tem certeza de que está bem, Samantha? Está tremendo.”
Abro a boca para inventar uma desculpa sobre ter pegado um resfriado
no caminho, mas de repente escuto um barulho atrás de nós. Passos leves
se aproximando. Prendo a respiração. Por força do hábito, me preparo para
a explosão de perfume relvado, de vozes estridentes e açucaradas, de
demonstrações tão intensas de carinho físico e verbal, que beiram a
violência. Mas não sinto cheiro nenhum. Não ouço nada além de passos
discretos.
E de repente vejo Caroline emergir da escuridão. Sozinha. Com um
sorriso no rosto.
“Oi, Ursula. Oi, Samantha.”
Está com um vestido lilás. Um cardigã branco. As duas mãos ocupadas
em segurar uma caixinha branca. Semelhante a uma embalagem de
comida chinesa. Igualzinha às que vi no quarto dele.
Meu coração começa a martelar forte nos meus ouvidos quando ela se
acomoda na carteira à minha frente. Os olhos enevoados fixos em mim. A
expressão suave e sonhadora de uma protagonista de filme em preto e
branco, as lentes da câmera lambuzadas de vaselina.
“Samantha, que bom ver você”, diz.
Sua voz parece distante. Como se ela sonhasse estar bem longe dali.
Flutuando entre nuvens sorridentes. Reparo nos botões de seu cardigã
branco, pequenos cupcakes antropomórficos. Por acaso eu já a tinha visto
com essa roupa antes? Ela nunca fez tanto jus ao apelido quanto agora,
usando o cardigã e o vestido lilás, o cabelo recém-cortado tingido do que,
no escuro, me parece ser um loiro quase platinado. Parece mesmo um
cupcake. Ou uma das crianças de A colheita maldita.
“Gostei do seu cabelo”, comento.
Ela o toca com ar sonhador, como se não tivesse certeza de que ainda
está lá. Depois abre um sorriso que me dá calafrios.
“Obrigada. Ainda estou me acostumando.”
“Um efeito colateral do Processo”, observa Fosco.
Em seguida ela nos explica que tais transformações são comuns no
último semestre da dissertação. Quando deixamos o abraço maternal da
Caverna e nos recolhemos em nossos próprios recônditos escuros — para
pegar a dor, o medo e a vergonha que vivem ali e transformar tudo em
tesouros literários. Os órgãos genitais são empalados com alfinetes. Os
cabelos são cortados com serrote, às vezes arrancados pela raiz. Os gêneros
se tornam fluidos, as orientações mudam, os brancos de repente
descobrem outras raças na sua linhagem. E algumas pessoas vão longe
demais, claro. Teve aquele pobre rapaz que cortou a orelha fora. Foi
lamentável, sem dúvida, mas também revelador. Um sinal da
Transformação mais profunda exigida pela Obra. Há sempre um Preço a
pagar pela Obra.
Caroline fica sentada ali, cantarolando baixinho uma versão deturpada
de “Summertime” enquanto ignora o cachorro de Fosco, que não para de
pular em suas canelas. Por fim, ele desiste e se afasta com o rabinho entre
as pernas. Agora consigo ver que o cabelo dela está tingido de um tom bem
claro de roxo.
“Estou surpresa em ver você aqui sozinha”, diz Fosco a Caroline.
“Vocês sempre vinham juntas.”
Caroline abre um sorriso educado, mas não diz nada. Baixa o olhar e
balança a cabeça como se a caixinha branca em suas mãos estivesse lhe
contando um segredo. Depois se empertiga e olha para mim.
“Samantha, ouvi você falando que está resfriada.”
Será que eu disse isso em voz alta?
“Quer meu cardigã emprestado?”, ela oferece e já faz menção de tirá-lo.
E então eu vejo as palavras me coma entalhadas com uma navalha em
seu peito e seus braços. As cicatrizes parecem frescas, o sangue mal
coagulado ao redor das letras. E, ainda assim, ela está com um sorriso no
rosto enquanto estende o cardigã branco de cupcakes para mim. Será que
não quero mesmo? Certeza? Bom, então tá. Se eu mudar de ideia, é só
avisar. Ela o pendura nas costas da cadeira, depois olha para mim,
satisfeita. A expressão no meu rosto é toda a recompensa de que ela
precisa.
“Gostou?”, pergunta, como se estivesse se referindo a um bolinho que
assou, a um cachecol que tricotou. “Faz parte de uma obra performática
em que estou trabalhando. Uma arte colaborativa. Resolvi envolver o
Corpo de um jeito mais visceral.”
“Encantador”, comenta Fosco, impassível, como se elogiasse o gatinho
ou o arco-íris que uma criança desenhou. “Não é encantador, Samantha?”
“Sim, encantador.”
“Eu sabia que você ia gostar, Samantha.”
Caroline abre um sorriso nebuloso que faz minha alma sair do corpo.
Depois ela volta a olhar para a caixinha branca, segurando-a com tanta
força que parece que vai se desfazer em suas mãos, e por fim torna a olhar
para mim. De um jeito ainda mais nebuloso.
“Samantha, mandei umas mensagens para você…”
Bunny, isso não tem a menor graça.
“Mandou?”
Você sumiu do mapa.
“Mandei várias.”
“Ah, desculpe. Meu celular está meio…”
“Entendi.”
Mas ela sabe que estou mentindo. Dá para ver.
“Enfim, que bom que você está bem. Eu fiquei preocupada.”
A névoa fica mais espessa, as nuvens em sua voz ficam mais escuras.
As cicatrizes vermelhas reluzem em sua pele branca.
“Talvez a gente possa sair para tomar um café ou algo do tipo”,
continua. “Para botar o papo em dia…”
Seus lábios se curvam em um sorrisinho passageiro. E só então
percebo que ela está de batom, um rosinha bem claro em vez do hidratante
labial incolor de costume. Batom é coisa de puta, Bunny.
“Claro”, minto.
Ela sorri de novo, parecendo tão aliviada que quase fico com pena.
“Quando?”, quer saber. “Que dia você…”
Mas os passos ecoam outra vez, e ela se cala. Os olhos estão fixos na
caixa, fingindo não ver os saltos que caminham em nossa direção com um
anúncio estridente a cada passo. Não um clique diminuto, mas um claque
retumbante. E de repente ela está aqui. Kira. Também sozinha. Kira, que
nunca está sozinha. Kira, que está sempre agarrada no braço de alguém
como se estivesse perdida em uma floresta de contos de fadas. Kira, que
está com um vestidinho de veludo vermelho com um capuz vermelho
combinando. Kira, que também segura uma caixinha branca. Kira, que não
solta um gritinho de alegria ao ver sua grande amiga, Caroline, que olha
para as pernas expostas e esculturais de Kira naquelas meias-calças
aracnídeas como se fossem cobras. Kira, que não puxa sua amiga Caroline
para um abraço esmagador. Que nem ao menos se senta ao lado dela. Que,
em vez disso, olha para as cicatrizes no torso de Caroline e revira os olhos
antes de se acomodar ao meu lado.
“Sam”, cumprimenta ela com uma voz que não é infantil nem
estridente nem sussurrante. É profunda. De uma profundidade insondável.
Sua voz verdadeira. Em seguida, coloca a mão sobre a minha e sorri com
seus lábios preto-azulados.
“Quanto tempo”, continua.
E ignora Caroline completamente. E Caroline a ignora completamente.
E as duas ignoram completamente o cachorro de Fosco, que está
espumando no meio da sala, rodopiando em círculos desesperados
enquanto tenta chamar a atenção delas.
“Então, Sam, me conte”, retoma Kira, acariciando minha mão. A voz
ainda mais profunda, um abismo sem fundo. “Como você está?”
Ela está ótima, aliás, faz questão de dizer. A Obra (sorrisinho secreto)
está caminhando muito bem.
Tem mais alguma coisa diferente nela. Nem sinal das orelhinhas de
gato. Seus cabelos longos e ruivos caem soltos como os de uma princesa
bruxa vagando pelas brumas de Avalon.
Lanço um olhar para Caroline, que me observa com uma expressão
que só posso descrever como desespero contido. Mas que merda
aconteceu com vocês duas? Por que não estão abraçadas? Por que não
arrulham em uníssono só de pensar em um gato?
“Samantha”, chama Kira, perfurando meu crânio com seus olhos de
tigre.
E então pergunta onde foi que eu me meti. E diz que mandou dezenas
de mensagens.
Bunny, vc morreu?
Abro a boca para responder, mas de repente algo me tira o fôlego. E
tira o delas também. Porque lá vem Victoria pisando forte, o cabelo mais
parecendo um ninho de rato, o batom vermelho borrado em uma diagonal
no rosto. Ela veste uma regata manchada e uma saia de crinolina imunda,
como uma bailarina de caixinha de música que ganhou vida e saiu dos
trilhos. Exala um fedor azedo de chorume que nos faz ofegar enquanto se
deixa cair ruidosamente em uma carteira. Em seu colo imundo eu vejo,
claro, uma caixinha branca cheia de manchas de dedo. Com exceção de
um breve cumprimento para Fosco e um sorriso simpático para mim, não
dirige a palavra a ninguém. Apenas cantarola baixinho enquanto o cachorro
choraminga a seus pés. Acaricia a caixa de um jeito provocante, os dedos
sujos de terra como se tivesse passado a manhã inteira cavoucando a lama.
O rosto todo contorcido em um sorrisinho zombeteiro, um grande foda-se
dirigido a ninguém em particular.
“Victoria, você parece estar de bom humor hoje”, comenta Ursula.
“Ah, estou mesmo. Um humor muito bom.”
Ela está olhando para mim. Todas elas estão. Ainda sorrindo. Ainda
ignorando umas às outras. Sentadas a uma carteira de distância. Segurando
três caixinhas brancas que tiquetaqueiam como bombas-relógio.
Ursula apenas observa a cena como se tudo estivesse dentro do
esperado para o último semestre, a esta altura do Processo. Por falar nisso,
talvez seja melhor começarmos, já que…
Então ouço o som que eu mais temia. Os passos leves de botas feitas
de camurça macia, cara e enrugada como a pelagem de um shar-pei. Seu
rosto enluarado desponta da escuridão com uma expressão…
…envergonhada, arrependida. E frágil. Pálida, tão pálida. É o tom da
pele ou o contraste com as roupas pretas? Um cafetã comprido e abotoado
até o pescoço como o hábito de uma freira. O cabelo todo puxado para
trás, como se alguém estivesse dependurado na outra ponta.
“Eleanor, você está atrasada.”
Vejo o semblante dela se contorcer em confusão, pânico. Algo inédito.
Uma alegria doentia irradia pelo meu corpo enquanto ela pede desculpas
(outra coisa inédita) e, então, argumenta baixinho:
“Mas… no e-mail dizia que só começaria às cinco e onze.”
“Eu avisei que começaria às cinco. Por que alguém marcaria uma
reunião para cinco e onze?”
Eleanor se retrai, parecendo ainda mais confusa. Imagino os dedos
humanos de Max batucando as teclas do notebook enquanto escrevia um
e-mail suplicante para Fosco em meu nome, depois outro de Fosco para
Eleanor, tudo enquanto cantarolava baixinho.
“Mas…”
“Podemos continuar a discussão depois da aula, Eleanor. Por ora, por
que não se senta para que a gente possa começar?”
Ela abre a boca, depois olha para mim e torna a fechá-la. Melhor não
irritar MuiMui, a única professora da faculdade que tem algo gentil a dizer
sobre os proêmios de diamante. Em seguida ela se afunda devagar na
carteira, justo na que fica no canto mais afastado, o que não é de seu feitio.
A pontinha de uma caixa branca escapa de sua bolsa escura. Quando
percebe que estou olhando, trata de guardar a bolsa debaixo da carteira.
“Pois bem, se não estou enganada, todas vocês têm algo para me
mostrar hoje. Menos Samantha, claro.”
Nem me dou o trabalho de corrigir.
“Isso mesmo”, concordam elas, quase em uníssono.
Ainda sem trocar olhares entre si. Ainda sorrindo sozinhas. De um jeito
sonhador. Presunçoso. Ou, no caso de Eleanor, preocupado. Como se
guardassem um segredo ao mesmo tempo fantástico e perigoso. Sinto o
medo se aproximando. Um medo tremeluzente, cintilante.
“Enfim. Quem quer ir primeiro?”
“Eu começo”, oferecem todas elas ao mesmo tempo.
Fosco parece satisfeita. Quanta motivação!
“Certo… Bom, para facilitar as coisas, por que não seguimos a ordem
de chegada? Caroline, você começa.”
Ela se levanta, as cicatrizes irregulares reluzindo sob os holofotes.
“Este aqui se chama ‘Descascada’”, diz baixinho. “Para ser sincera,
ainda não sei muito bem como classificar. Uma espécie de poema, acho…
Quase nunca escrevo poemas, mas…” Ela contém seu sorriso lilás. “Eu
estava inspirada.”
As mãos tremem um pouco enquanto segura a página.
“Enfim”, continua. “acho mesmo que isso pode ser o começo de algo
maior.”
Um muxoxo audível de Victoria. Sinto Kira me lançar um olhar de
soslaio, mas não tiro os olhos de Caroline, que observa a página trêmula
com uma expressão apaixonada, como se fosse o rosto dele em suas mãos.
Em seguida, começa a ler como se estivesse enfeitiçada.
Um homem aparece na sua sala de estar, munido de uma navalha.
É um invasor ou ela mesma o deixou entrar?, pondera a heroína sem
nome de “Descascada”, e está na cara de que se trata da própria Caroline.
E assim começa sua obsessão psicossexual e possessiva por um devasso
demoníaco chamado Byron. O chá é misturado de um jeito sugestivo. O
tilintar da colher na xícara induz ao transe.
E aí…
E aí eu me lembro da expressão no rosto de Caroline ao raspar a canela
em pau no Salon Sacana. A cabeça jogada para trás em um êxtase contido.
As pálpebras tremelicando como se ela estivesse possuída. Será que foi ele
quem entalhou as palavras em sua pele aveludada ou foi ela mesma,
enquanto ele via e incentivava do sofá, vigiando tudo com seus olhos de
alcatrão esfumaçado enquanto perguntava, aos sussurros, de que adiantava
permanecer incólume, qual o propósito da ferida sem o prazer da cicatriz?

O cômodo mergulha em silêncio quando ela abaixa a folha. Ninguém


aplaude. Ninguém diz: “Tão maravilhoso, Bunny”. Ninguém a abraça.
Fosco solta um pigarro. Penso ouvir a palavra vagabunda escapar dos lábios
crispados de Eleanor.
Quando volta para a carteira, Caroline parece satisfeita e purificada.
Abre a caixinha branca, onde vejo um cupcake enorme decorado com um
glacê roxo do mesmo tom de seu cabelo. Consigo imaginar a expressão
dele ao entregar o agrado para ela, o cavalheiro galante que sabia
exatamente qual bolinho escolher. Ela começa a devorar o cupcake como
se estivesse faminta, levando grandes nacos à boca com suas mãozinhas
repletas de cicatrizes.
“Alguém quer comentar alguma coisa sobre o texto de Caroline?”
Silêncio absoluto, entrecortado apenas pelo riso abafado de Victoria. O
raspar da caneta de Kira ao escrever: “Vadia”. O olhar fulminante que
Eleanor dirige ao chão.
“Interessante”, murmura Ursula enquanto varre a sala com os olhos.
Em seguida, observa que às vezes o silêncio diz tudo.
“Verdade’, concorda Caroline, a voz ainda pairando entre nuvens
sorridentes. Mas que seja. Ela já esperava isso mesmo. Nós todas podemos
muito bem ir à merda. E então enfia mais um pedaço de cupcake na boca.
Os lábios cor-de-rosa lambuzados de glacê. As cicatrizes transpirando sob
as luzes.
Enquanto isso, Fosco oferece alguns comentários recheados de clichês.
“Que mudança.” Silêncio profundo. “Que baita mudança no seu estilo,
Caroline. Este… romance sombrio que você nos apresentou.” Outro
silêncio profundo. Sorriso condescendente.
Fosco costuma adorar os textos de Caroline, sempre histórias
fragmentadas sobre jovens ansiosas que claramente nunca trabalharam um
dia na vida, e em vez disso passam as tardes ocupadas em meditar,
cozinhar e ter pensamentos peculiares, tudo com um toque de melancolia.
“Mas não tem problema nenhum em mudar os ares, Caroline. Às vezes
se perder faz parte.”
“Como assim, se perder? Mas…”
“Porque é por isso que estamos aqui, não? O Processo pode ser
complicado, ardiloso.”
Os olhos de Caroline se enchem de lágrimas.
“Eu acho que é o começo de algo maior”, sussurra, o rosto deplorável
voltado para Ursula.
Mas Ursula já seguiu em frente.
“Quem vai agora?”
Ninguém ergue a mão. Mantenho o olhar fixo no tampo da mesa,
ocupada em observar as nódoas na madeira enquanto tento esconder o que
só pode ser meu próprio horror, enquanto tento conter o sorriso
espasmódico que contra a minha vontade curva meus lábios em histeria.
Para onde quer que eu olhe, as três caixinhas brancas ainda reluzem
pavorosas na minha visão periférica. Um pavor que não para de me
chamar. Insistente. “Psiu. Não está curiosa, Samantha?”, a voz de Max
sussurra na minha cabeça. “Nem um pouquinho curiosa para saber o que
tem lá dentro?”
“Eu vou”, oferece Kira, que segura o maço de folhas como se fosse uma
lista de condenados. Como se mal pudesse esperar para mandá-los à forca.
“Kira? Ah, perfeito.”
Então ela abre a caixinha branca. Uma boneca. Com um vestido de
veludo. Olhos de tigre vidrados em mim. Um sorriso na boca vermelho-
cereja. Está se divertindo, Samantha?
“O título é A garota e o lobo”, anuncia Kira. “É uma espécie de conto de
fadas, mas com outra roupagem. Acho que é o começo de algo maior.”
Uma fungada audível de Caroline. Um som de peido dos lábios de
Victoria. Os olhos de Eleanor cerrados como punhos.
“Vagabunda”, vocifera Cupcake antes mesmo de Kira terminar de ler.
É a história de uma adorável ruiva muda que teve seu espírito delicado
sufocado por irmãs malvadas até enfim ser resgatada de sua prisão
silenciosa por um estranho lupino com o dom da fala. E então ele começa
a sussurrar sobre as profundezas de sua coragem, a enumerar todas as
coisas que a tornam mágica enquanto ela conta as inúmeras cores dos
olhos dele. Ágata. Jade. Lilás. Magenta. E de repente Caroline sai correndo
porta afora, aos prantos. Silêncio. Ninguém se mexe. Não sei se rio, choro
ou grito. Então me contento em observar a boneca, cujos olhos continuam
vidrados em mim. Um sorriso inescrutável nos lábios. Kira faz menção de
continuar, mas Fosco a interrompe com maestria. Outra coisa inédita.
“Muito obrigada, Kira. Acho que já captamos a essência do texto.”
O silêncio que se segue é tão profundo que parece chegar ao centro da
Terra, voltar à superfície e, então, mergulhar no abismo outra vez.
“Você já nos deu mais do que suficiente para discutir, creio eu.”
E em seguida Fosco nos observa com aquele olhar perscrutador e
intensamente ginecológico. E aí?
“Bem, eu odiei”, declara Caroline, que acaba de emergir da escuridão,
os lábios ainda cobertos do glacê do mesmo tom de seu cabelo. “Nada
original.”
“Nada original? Ora, Caroline, isso é muito…”
“É um roubo! Um plágio descarado dos contos de fadas! E isso é tão
errado, tão típico dela…”
“Oi? É apropriação literária que chama, viu?”, retruca Kira, acariciando
os cabelos vermelho-sangue da boneca.
Caroline solta um muxoxo.
“É plágio. Plágio narrativo.”
“Fale mais sobre isso”, pede Fosco.
Caroline nega com a cabeça.
“Não posso”, diz com os olhos marejados enquanto come mais um
pedaço de cupcake.
“Mais alguém? Ah, Victoria, pode falar.”
“Eu não odiei”, declara Victoria, com os braços cruzados em
descontração. “Só achei patético, ridículo e sem graça.”
Fosco franze o cenho, preocupada. Nenhuma crueldade é permitida no
Ventre, a menos que venha dela mesma, a Mãe.
“Será que você poderia ser mais específica?”
“Não”, sibila Victoria, olhando Kira de cima a baixo. “Foi só a impressão
que tive.”
“Samantha? Eleanor?”
Vejo o julgamento estampado nos olhos vidrados da boneca.
Julgamento? Ou compreensão?
Desvio o olhar.
“Ainda estou digerindo a história.”
“Estamos em sintonia hoje, Samantha, devo dizer. Também estou
digerindo.”
E então junta as mãos como se estivesse rezando por nós todas.
“Bom, qual de vocês quer…”
“Eu vou”, interrompe Victoria. Ela fica de pé e esvazia o conteúdo da
caixinha, que se espalha pelo tampo da mesa e pelo chão.
São palavras. Um. O. Esse. Porque.
Megalomaníaco. Pênis. Pomba.
Poesia magnética. Fecho os olhos. Consigo até imaginar Max
entregando o saquinho de palavras com toda a seriedade.
Victoria pega uma folha amassada e diz:
“Escrevi uma vinheta.”
“Nossa, que novidade”, sussurra Kira para mim.
“Como é que é?”, retruca Victoria. “O que você falou aí, hein, caralho?
Vai ficar de segredinho igual a uma vagabunda?”
“Ué, mas eu nem falei nada. Falei, Samantha?”
Kira se vira para mim em busca de apoio, com seu olhar inocente e
surpreso.

Um pornógrafo experimental/lixeiro chamado Hud. Uma bailarina


existencialista. O que acontece entre os dois na lixeira é uma obliteração
da carne expressada por uma poesia sonora em grunhidos, pontuada aqui e
ali por alguma palavra magnética. Coxa. Gosma. Gênese.
Assim que termina, Victoria se esparrama na cadeira como uma
marionete cujas cordas escaparam da mão do titereiro. Parece até que
vomitou sopa na nossa cara e está nos desafiando a dizer que gostamos ou
odiamos. Mas a verdade é que está pouco se lixando. Começa a enfileirar
as palavras com a ponta dos dedos com muita, muita delicadeza. O riso-
grito-choro entalado na minha garganta ameaça vir à tona, então trato de
afundar o rosto nas mãos.
“Alguém tem algum comentário?”
“Mentirosa”, vocifera Caroline. “Você é uma mentirosa. E uma
escritora de merda. Relógio de sangue? Lua mental? Foi mal, mas que raios
significa isso?”
“Caroline!”, repreende Fosco.
“Ué, eu não tenho culpa se você não entendeu, Caroline.”
“Tem, sim!”
“Eu posso falar uma coisa?”, pergunta Kira, e chega até a levantar a
mão.
“Claro.”
“Sempre que leio uma das vinhetas da Victoria, fico me sentindo burra
porque não entendo quase nada. E aí fico achando que a culpa é minha.
Eu penso: Kira, isso deve ser inteligente demais para você. Com certeza você
deve ter deixado passar alguma coisa. Só que a verdade é que uma vozinha
dentro de mim sempre dizia: Mas que porra é essa, hein? Não faz o menor
sentido. É esquivo e obscuro de propósito e ninguém além de Victoria vai
entender. Na verdade, eu teria que morar na cabecinha mimada,
fragmentada, preguiçosa e pretensiosa da Victoria para conseguir entender
qualquer coisa. E quem além de nós, além de mim, vai estar disposto a
fazer isso? Quem vai passar a noite em claro usando um decodificador de
Victoria? Quem se daria o trabalho? E aí me dá vontade de gritar: “fala
logo. fala de uma vez o que aconteceu. me fala que porra isso
significa e o que foi que você fez com ele”.
Um silêncio tão intenso que se torna ruidoso. Domina o ambiente. E,
bem lá no fundo, escuto uma risada. A risada dele. Coberta por uma mão
humana cujas unhas estão pintadas com todas as cores do arco-íris.
“Acho que o que eu quero dizer”, continua Kira, mais calma, “é que
agora eu entendo. Eu deveria ter confiado na minha visão como leitora.
Meus instintos de leitora são muito, muito valiosos. E sou muito grata à
Victoria por me ajudar a ver isso. Por me mostrar quem eu sou como
leitora. Muito obrigada, Victoria.”
Victoria escancara um sorriso, depois abre as pernas por baixo da mesa,
revelando as coxas cheias de hematomas.
“Não tem de quê, Kira.”
Kira chega a arfar do meu lado, mas tenta esconder.
“Eu te odeio”, sussurra Caroline, os olhos fechados como se estivesse
com dor, mas não sei a quem o insulto é dirigido.
“Concordo”, murmura Kira, o olhar vidrado nos hematomas de Victoria
como se estivesse em choque.
“E você, Samantha? O que acha disso tudo?”
De repente todas elas estão olhando para mim, quase suplicantes.
Penso em Max. Assomando sobre cada uma delas com sua silhueta
gigantesca. Bancando o sádico, o deus dissimulado, o lixeiro. Sentado em
suas salas de estar, em seus quartos, sorrindo para cada uma delas como se
fosse o pretendente em The Bachelor. Estendendo-lhes a rosa vermelha
que segura entre as unhas afiadas. Depois lhes dando a mão. Entregando
uma caixinha branca para cada uma. “Isto representa você.” E então sinto
que meus dedos enveredaram pela calcinha de todas elas, que estou
profundamente, insuportavelmente familiarizada com as cores e formatos,
com a textura, que conheço todas as músicas de suas playlists de sexo no
Spotify. Que foi minha a mão que cortou a pele aveludada de Caroline com
a navalha, que foram meus os dentes que se afundaram nas coxas de
Victoria. Que chutei seus pôneis de pelúcia para fora da cama, fiz os livros
tombarem na mesinha de cabeceira e os frascos de melatonina e ansiolítico
despencarem no chão. Que por minha causa seus vibradores cor de jujuba
rolaram de um lado para o outro na gaveta, até enfim começarem a
acumular poeira. E, ao final de tudo, era minha a mão que apagava o
abajur em formato de unicórnio. A brisa soprava de suas janelas
escancaradas e refrescava minha pele enquanto eu repassava todas as
humilhações a que elas se submetiam, com um sorriso triunfante nos
meus lábios intactos.
Fico enojada. Com vontade de vomitar.
“Ora, isso foi ótimo”, diz Fosco, preenchendo o silêncio deixado por
mim. “É importante ter essas conversas difíceis. Tão esclarecedoras, tão
valiosas. Ah, como elas expandem nossos horizontes. A Ferida é cutucada
até sangrar. Mas devo dizer que estou um pouquinho preocupada com o
teor androcêntrico das histórias de hoje. Você também percebeu,
Samantha?”
“Percebi, sim.”
“Como escritoras, principalmente neste nível, nesta instituição,
precisamos estar atentas a esse tipo de coisa. Será que queremos mesmo
reforçar a narrativa de que fomos ‘salvas’ por um rapaz? Edificadas por um
rapaz? Arrebatadas por um rapaz? E ainda por cima o mesmo rapaz, ao que
parece? Que diz as mesmas coisas para nos salvar, arrebatar e edificar?
Queremos mesmo que essa seja a Obra? O fruto do tempo que passamos
aqui na Warren? Ora, seria de esperar que a Obra fosse mais do que meras
fofocas dignas de uma festinha do pijama. Você não concorda, Samantha?”
Todas elas olham para mim. Kira acaricia a boneca, Caroline flutua
entre nuvens agora carrancudas, Victoria abre um sorriso enquanto tenta
parecer entediada, mas está claramente furiosa. E aí, Samantha?
Viro-me para Eleanor, que permaneceu em silêncio até agora, a
caixinha ainda fechada nas mãos, protegendo-a como um homem das
cavernas protegeria sua fogueira do inimigo. O proêmio de diamante em
seu colo foi entalhado com sabe-se lá o quê.
“Primeiro preciso ouvir todas as histórias”, ouço-me dizer.
Quando Eleanor olha para mim, sinto sua alma sibilar.
“Veja bem, Eleanor, espero que sua história também não seja sobre um
rapaz”, comenta Fosco.
Eleanor abre um sorriso.
“Claro que não, Ursula. Eu nunca seria idiota a esse ponto. Mas
acontece que me confundi e acabei trazendo a história errada”, alega, com
os olhos fixos em mim. “Erro meu.”
“Isso não é do seu feitio, Eleanor.”
“Sei disso. Desculpe. Mas prometo que não vai se repetir.”
34

Quando chego em casa, dou de cara com ele no quintal. Está encostado
na cerca, com um cigarro entre os lábios, usando as orelhinhas de gato de
Kira. Os olhos estão fixos no cantinho irregular do gramado onde, segundo
disse, pretende plantar alguma coisa. Sabe-se lá o quê. Quando me vê,
sorri e ergue o copo de uísque. Ah, tão descontraído com sua postura de
cara descolado. Até me faz lembrar de um ex-namorado, um baterista de
black metal que sempre vinha falar comigo depois dos shows, com o colete
cheio de manchas de sangue falso, a maquiagem pesada escorrendo nos
olhos, doido para saber o que eu achava, mas descolado demais para
perguntar.
“E aí, Samantha? Como foi o seminário?”
Observo aquela boca que proferiu tantas mentiras. Aquelas mãos que
devem ter tocado sabe-se lá quais partes daqueles corpos pálidos e rosados.
“Edificante”, respondo.
“Edificante”, murmura ele, enquanto dá uma tragada pensativa no
cigarro.
Hum. Não era exatamente o adjetivo que ele estava esperando, mas…
“O que você fez com elas?”, deixo escapar.
Ele olha para mim. Confuso. Decepcionado. Sinceramente, até um
pouquinho irritado.
A fumaça escapa devagar por entre seus lábios, soprada bem na minha
cara.
“Você precisa me contar.”
Ele torna a olhar para mim, para minha tentativa de soar autoritária, o
apelo desesperado oculto por trás disso, e então abafa uma risada e desvia
o olhar. Meneia a cabeça. Dá outra tragada, desta vez desafiadora.
“Não posso simplesmente entregar as coisas de bandeja, Samantha.
Minha intenção era deixar tudo aberto à interpretação.”
Ele esboça um sorriso com a palavra interpretação, como se trouxesse à
tona lampejos de sua própria genialidade.
“Você precisa me contar tudo o que fez. Tim-tim por tim-tim.”
“Preciso, é?”
Dá para ver que está irritado. “E bastante ofendido, Samantha.” Eu sou
o único público que ele tem, será que não percebo? Ele se dedicou tanto a
isso, se esforçou tanto. E esperava, tem que admitir, que eu ficasse
impressionada. Mas cá estou eu, querendo saber os detalhezinhos idiotas,
e pior: exigindo explicações.
“Ora, por que me dei o trabalho se é para entregar o jogo assim? Cadê a
diversão? Se é para ser assim, qual é o propósito da arte? De criar?”
“Mas eu nunca lhe pedi para criar nad…”, começo a dizer, mas me
interrompo.
Ele chega mais perto, as sobrancelhas arqueadas. “O que você falou
aí?”
Mordo os lábios, sentindo o rosto corar.
Então ele ri e joga a cabeça para trás, o pescoço iluminado pelo luar.
Quando olho, a tatuagem de machado está toda exposta, desde o cabo até
a lâmina. Então ele para de rir e me observa com ternura. Com algo que se
assemelha a amor. Ah, Samantha.
Passo a fitar meus sapatos, a lama que os rodeia.
“Você sabe que elas estão apaixonadas por você, né?”, pergunto
baixinho, em um tom acusador.
Mas a acusação é dirigida à lama.
Enfim ergo o olhar, mas ele se esquiva.
“Bom para elas”, murmura.
Isso não tem a menor importância para ele, essa notícia. Só danos
colaterais do Processo, da Obra. Não se faz omelete sem quebrar os ovos
etc.
“Mas elas estão agindo como se estivessem… possuídas.”
Ele abre um sorriso sonhador.
“Mas estão livres agora… umas das outras, pelo menos.”
“Elas são perigosas, sabia?”, aviso, recordando suas feições distorcidas
de raiva no seminário de hoje. E nos seminários que fazíamos no sótão.
Com o machado.
“Estou morrendo de medo”, ironiza ele baixinho. “Juro.”
“Eu estou falando sério.”
“Eu também. Olhe para mim. Viu como estou assustado?”
“Você dormiu com elas?”
Ele faz uma careta.
“Eca.”
“Você as cortejou?”
“Se eu as cortejei?”, repete. Argh. “Juro que não cortejei ninguém.”
“Você as machucou?”
Céus, essa pergunta é um porre. Qual é, Samantha? Você viu as
cicatrizes com seus próprios olhos. Os hematomas, as mordidas, o cabelo, a voz
profunda como um abismo… esqueceu?
Mas ele entra no jogo.
“O que você acha que eu sou, Samantha? Um monstro?”
Isso mesmo. E eu soltei você no mundo.
Faço menção de afastar seu cabelo do rosto, porque está me dando
agonia não poder olhar nos seus olhos. É o que Caroline fazia comigo.
Trançava minha franja de puta para longe do rosto, depois a prendia no
topo da cabeça como uma coroa. “Assim está melhor, Bunny.” Mas,
quando estico a mão para afastar a mecha e revelar o olho sempre
escondido, ele afasta minha mão com um tapa. Sibila para mim como um
gato. Quando percebe que estou assustada, sorri para mim.
Envolve meu rosto com as mãos sem luvas. Não vou me deixar levar
pelo toque de seus dedos humanos. Consigo sentir até as linhas que
correm pelas palmas. Por instinto, fecho os olhos ao sentir seu calor. Sua
maciez.
“Samantha”, começa a dizer. “Você gostou ou não?”
Se gostei de vê-las se humilhar? E humilhar umas às outras? Gritar
entre si? Abraçar nada além de seus próprios corpinhos pálidos e rosados,
cheios de açúcar, cicatrizes e machucados? Ler textos horríveis que devem
ter sido escritos durante algum tipo de transe amoroso? Uma obra e um
amor que zombavam delas? Se gostei de vê-las levar bronca de Fosco?
Ele move minha cabeça fazendo que sim com ela com delicadeza
enquanto respondo: “Não. Não gostei nem um pouquinho”.
“E Ava?”, pergunto.
Ele solta meu rosto. Vira o sr. Sinceridade Pura. Christian Slater com
uma bomba escondida no bolso do sobretudo. Christian Slater com o
coração de babuíno.
“O que tem Ava?”, pergunta.
“Ela não ficaria chateada se descobrisse?”
“Se descobrisse o que exatamente, Samantha?”
E mantém o olhar fixo em mim até meu rosto corar.
“O que vocês tanto cochicham aí embaixo?”, grita Ava. Está no telhado
com seus padres guaxinins, já no fim de seu cantil beba-me.
Ele olha para Ava como se ela fosse o próprio sol. Tudo o que lhe falta
é um buquê de gravetos. Um filtro suave. O céu se abrindo para derramar
uma chuva cinematográfica, as gotas escorrendo de seu cabelo até os
cílios, descendo em filetes por suas maçãs do rosto afiladas. Aquilo são
lágrimas ou gotas de chuva? Jamais saberemos. Seja como for, a canção de
amor começa a ganhar forma à nossa volta.

Eu o observo do outro lado da mesa de jantar — Max, Tristan, Byron, Hud,


Icarus, qualquer que seja seu maldito nome — enquanto serve o guisado
de carne que vou devorar, mesmo que no fundo não queira. Depois o vejo
despejar o vinho escuro na minha taça. Talvez este seja o único filho que
terei. Meu, mas ao mesmo tempo, não. Um homem com suas próprias
vontades, todas inescrutáveis. “Mas será que são mesmo tão inescrutáveis
assim, Samantha?”, seu perfil parece me dizer, com o rosto voltado para
Ava, sempre para Ava. “Por acaso ela sabe como é linda?”, ele lhe pergunta
pela milionésima vez.
“Para, até parece”, eu a ouço dizer, mas sei que significa: “Não pare
nunca. Continue, por favor”. E ele lhe diz todas as coisas que nunca pensei
em dizer. Ouço as minhas próprias palavras rabiscadas verterem dos lábios
dele. Confissões que sussurrei para a estátua de lebre, para as árvores,
enquanto voltava para casa de manhã depois de passar a noite fora. O
começo de tantas histórias. Coisas idiotas demais para serem ditas em voz
alta. Mas ele as declama com uma voz que sei que já ouvi antes. Baixa.
Confiante. Acompanhada de um sorriso oculto. Nunca dá para saber se é
sério ou não.
“Estou falando sério.”
Ela se derrete. Desabrocha para ele como uma flor ao amanhecer.
Esconde o rosto já velado atrás de suas luvas pretas de renda. Minha
amiga. Minha melhor amiga. Alertá-la. Eu tenho que alertá-la. Tomo mais
alguns goles do vinho escuro e sinto as pálpebras pesadas enquanto a
sombra dele nos consome. Quero fazer tantas perguntas. O que você quer?
Comigo? Com minha amiga? Com minhas inimigas? Você veio mesmo
daquela criaturinha horrenda que eu vi se afastar aos pulos na sala de estar
da Duquesa e que depois deixou pegadas enormes na neve, grandes
demais para terem vindo de um coelho? Ou por acaso nasceu de outro
animal? Um monstro que eu mesma criei? Mas permaneço calada. Tomo
mais um pouco de vinho. Depois os sigo até a sala. E os vejo dançar.
Bebo o Campari de Ava. Fumo o cigarro dele, já pela metade. Quando
olha para ela, seu rosto se ilumina de um jeito que faz minha alma se
cobrir de vergonha. É uma paixão tão escancarada. A de Ava é assim
também? Não, a dela se assemelha mais a um punho cerrado que pode
afrouxar aos poucos. Ou não. Só nos resta esperar para ver.
Vejo seus corpos se unirem e depois se afastarem ao sabor da música.
Vejo os beijos. Os lábios abertos para receber um ao outro. Algo dentro de
mim também se abre, escancara-se de tal modo que tenho a impressão de
que tudo vai escapar dali voando. Sou tomada por um misto de medo e
euforia.
Por uma fresta entre os corpos colados dos dois, vejo meu próprio rosto
refletido na janela. A pele corada por causa do coquetel de Ava. Tão
sonhadora, tão alegre. Um sorriso de pura felicidade nos lábios. A mesma
aparência de Jonah quando está imerso em sua nuvem poética, onde nada
pode alcançá-lo.
Mas de repente vejo um outro rosto na vidraça. Do lado de fora,
espiando o interior da casa. Como se estivesse ali o tempo todo, mas só
agora percebi. A Duquesa, me observando enquanto observo Ava e Max.
Também com um sorriso nos lábios. Mas é um sorriso diferente.
Enfurecido. Empanturrado de conhecimento. Pronto para a vingança.
Dou um berro.
“Samantha?! Está tudo bem?”, pergunta Ava, que corre para perto de
mim.
Aponto para a janela, e Max vai até lá para averiguar. Mas ela já
desapareceu em meio ao breu.
Não resta mais nada ali além de escuridão. Só o luar, brilhando com
uma intensidade que nunca aparece onde moro. É porque a lua odeia
aquele lugar, esqueceu?
Mas ela estava mesmo ali. Tenho certeza.
“Era ela.”
“Quem? Quem estava ali?”, quer saber Ava.
“Nada. Ninguém. Foi só um devaneio. Acho. Ou uma alucinação. Tive
um dia muito longo. Acho que é melhor eu ir dormir.”
“É”, concorda Max. “Acho melhor você ir mesmo.”
Você é doente, diz a mensagem que recebo logo depois.

Estamos no telhado, Ava e eu, observando-o no jardim lá embaixo,


agachado junto a um trecho de grama úmida de que não tira os olhos.
Agora já está calor o suficiente para começar, declarou esta manhã
enquanto olhava pela janela. De um jeito um tanto nefasto, ao que me
parecia.
“Começar o quê?”, perguntei, já imaginando o pior.
“A plantar”, veio a resposta.
“Plantar o quê?”
“Sementes”.
Tenho vislumbres dele salpicando a terra de arsênico. Ateando fogo a
toda a grama e ervas daninhas. Enfeitiçando o gramado para que cresça até
nos sufocar. Para ser sincera, não faço ideia de quais são as intenções dele
em relação ao jardim — ou a qualquer outra coisa.
“Quais são minhas intenções?”, repetiu ele quando lhe perguntei —
quando o confrontei! — no ápice da bebedeira certa noite, enquanto o
cômodo girava ao nosso redor. Não é o cômodo que está girando, Samantha.
É você. Estávamos dançando juntos, coisa que nunca fazemos. Porque é
um desastre. Porque massacramos os pés um do outro. Porque, quando ele
vai para a esquerda, eu também vou. E, quando eu vou para a direita, ele
faz o mesmo. “Um puta desastre”, comentou Ava do sofá. “Vocês dois
podiam até ganhar dinheiro com isso. A galera da minha antiga faculdade
iria amar.”
Pelo jeito ele achou graça da minha escolha de palavras, pois soltou
uma gargalhada estridente. Minhas intenções. minhas intenções.
“E aí? Não vai responder?”, perguntei. Não achei a menor graça. Eu
precisava descobrir. Estava desesperada para saber. Olhei no fundo dos
seus olhos e desejei que ao menos por um maldito segundo eles parassem
de mudar de cor.
Mas ele parecia achar graça até mesmo do meu desespero.
“Não sei, Samantha”, respondeu-me por fim. “Quais serão?”

Os últimos dias foram estranhamente silenciosos. Nenhuma mensagem


das Bunnies. Nenhuma tulipa. Nenhum troll. Nenhum machado.
Nenhum fantasma de braços abertos. Nenhuma ligação. Só um e-mail do
Leão, com Fosco na cópia. Assunto: “Conferindo o andamento”. Seguido
por reticências. Uma mensagem sucinta. “Acho que está na hora de termos
uma conversa. Às sete da noite na Caverna, por favor.” Sem assinatura.
Nem mesmo um “atenciosamente” cheio de frieza. Mas o espacinho em
branco ao final do e-mail já deixa claro o que ele deve estar pensando. Que
sou eu quem deveria entrar em contato para discutir o andamento da
minha dissertação. Afinal, esse é o meu papel, não o dele.
“Deixa isso pra lá”, aconselha Ava, acendendo um cigarro enquanto me
passa o cantil.
“Não posso.”
“Bom, então diga a ele que mandei um ‘foda-se’ bem grande. Pode
avisar que ele vai se arrepender por ter mexido com quem eu amo.”
“Você me ama?”
“Mas que pergunta, hein? Claro que sim. Ninguém te ama tanto
quanto eu.”
Ela, então, sorri para mim. Está falando sério. Do fundo da sua alma.
Não como um punho cerrado, e sim como uma mão estendida, a palma
voltada para cima.
Ava, eu te amo.
“Ava, Max não é real.”
Enquanto as palavras escapam dos meus lábios, mantenho o olhar fixo
nas árvores gotejantes logo à frente.
“Como assim ele não é real?”
Respiro fundo.
“Eu o criei.”
Ela dá risada.
“Estou falando sério”, sussurro.
“Você o criou”, repete ela.
Concordo com a cabeça.
“Isso. A partir de um coelho.”
Fecho os olhos. É horrível demais.
“Você o criou a partir de um coelho.”
Outro aceno de cabeça.
“Não me odeie”, imploro. “Por favor, não me odeie.”
“Samantha, olhe para mim. Mas de que caralhos você tá falando?”
Então eu conto tudo a ela. Tudinho. Conto sobre as Bunnies. Sobre os
garotos. O “seminário”. O que aconteceu depois que ela foi embora. Como
criei esse cara, mas nem desconfiei a princípio porque ele não parecia um
garoto-coelho. De jeito nenhum. Não tinha nada a ver com os outros. Na
verdade, ele parecia tão real que só fui descobrir que era um coelho mais
tarde. Tarde demais, pois a essa altura ele já estava com ela. E, então,
explico que ele a ama porque eu também a amo. E em seguida conto que
ele está metido com as Bunnies. Para se vingar delas. Não porque as ama
ou algo do tipo. Na verdade ele as odeia. Porque eu também as odeio. O
que até faz sentido. Enfim, mas acho que ele já parou com isso agora. Não
está mais metido com elas. Mas não tenho certeza. Acho que elas ainda
estão apaixonadas por ele. E acho que estão putas da vida. Ah, com certeza
estão. Devem até estar tramando alguma coisa. Olhe só, é tudo muito
confuso. E tem a questão das intenções. E de saber o que cada um deles
quer, e onde tudo isso vai dar. Só sei que todos nós podemos estar
correndo perigo. E é tudo culpa minha.
Conto tudo isso a ela sem tirar os olhos das árvores, os galhos
carregados de brotos verde-claros. Não me atrevo a olhar para Max, que
ainda está cavoucando a terra no jardim lá embaixo. Posso ouvir o raspar de
sua pá contra o solo.
Ava não diz nada. Será que morreu? Será que eu a matei com minhas
palavras? Não, ouço-a sussurrar baixinho ao meu lado, ainda com o cigarro
nos lábios, seu aroma de chuva florescendo a cada pulsação. Mas não
tenho coragem de olhar para ela.
“Bem”, começo a dizer depois de outro silêncio excruciante, os olhos
ainda fixos nas árvores gotejantes , “você não vai falar nada?”
“Sobre o quê?”, pergunta ela, em tom neutro. Tão monótono que chega
a assustar.
“Sobre o que eu acabei de contar?”
Ela olha para Max, seu corpo largo como um tronco de árvore, ainda
concentrado em remexer a terra, os músculos dos braços retesados
enquanto segura a pá. Até mesmo o suor dele deve ter cheiro de floresta.
“Eu acho que você é uma artista formidável”, diz Ava. “E admiro seu
trabalho.”
Quando ela olha para mim, vejo que seu semblante sério esconde uma
risada.
“Quê? Ava, não. Tudo o que eu falei é verdade. Juro. Ok, sei que
parece loucura, mas…”
E então me detenho, porque estou mesmo soando como uma pessoa
insana. Quando me viro para olhar para ela, percebo que seu rosto está
voltado para Max. Ele já não está mais agachado no jardim. Está de pé,
com os olhos fixos nela. Depois acena para nós. Para Ava.
E ficamos ali observando enquanto ele acena. O cabelo escuro caído
sobre um dos olhos. Uma expressão séria no rosto. A mão acenando sem
parar, o braço estendido bem acima da cabeça.
Ava olha para ele, depois para mim. E me encara por tanto tempo, com
tanta intensidade, que fico tentada a desviar o olhar, mas me contenho. De
repente algo muda em sua expressão. O ar leve e risonho desaparece. E
algo terrível desponta em seu olhar.
“Samantha…”
“Desculpe”, apresso-me a dizer, interrompendo-a. “Nem sei de onde
tirei essa história. Que loucura. Acho que ainda estou meio confusa.”
Balanço a cabeça, depois olho para ela.
A expressão continua igual. Nem sinal da leveza de antes. Está me
encarando de um jeito que não consigo aguentar, então me viro para o
outro lado, deixando a franja de puta cair sobre os olhos.
“Acho melhor você ir logo para sua reunião”, aconselha ela.
Desta vez, não diz que eu deveria deixar para lá. Começo a descer a
escada, um pouco atrapalhada sob seu olhar, e de repente uma sensação
terrível me invade. Então me viro de súbito e escorrego e quase despenco
lá de cima, o que seria o meu fim.
Ava continua sentada ali, mas seus olhos não estão mais fixos em mim.
Estão fixos nele.
“Ava.”
“Que foi?”
“Nada”, respondo.
Mas não me mexo. Não consigo deixá-la aqui, mesmo que as telhas
estejam estalando sob meus pés e eu sinta que estou prestes a escorregar.
“Você ainda vai estar aqui?”, pergunto. “Quando eu voltar?”
Ela sorri.
“Claro que vou. Onde mais eu estaria?”
35

“Oi, tem alguém aí?”, pergunto para o interior da Caverna. Mas só escuto
minha própria voz reverberando pelas paredes gotejantes. Está mais escura
que o normal. Nem um pingo do calor uterino de costume. Ele não disse
que seria às sete? Mas não tem relógios na Caverna. Nem luzes. Até a
porta pela qual entrei já foi devorada pela penumbra.
“Oi, tem alguém aí?”, pergunto outra vez.
Nada.
“Alan?”
Nenhuma resposta, apenas o eco repetindo o nome dele sem parar.
Deve estar tirando uma com a sua cara. Ele gosta de tirar uma com a sua
cara, esqueceu?
Enquanto espero por ele, procurando sua silhueta no escuro, sinto meu
coração bater cada vez mais rápido. O silêncio e a escuridão trazem à tona
seu julgamento silencioso. A estratégia pedagógica e psicossexual que
adotava. Trazem à tona sua figura esguia, que apareceu no beco naquela
noite, durante a festa de primavera. Naquela noite em que nada
aconteceu, nadinha mesmo. Naquela noite em que ele emergiu da
escuridão como um sonho quando eu estava tão bêbada que o céu e a terra
tinham se tornado uma coisa só. “Rameiras!”, gritei para Jonah antes de
enveredar pelo beco rumo à noite inclinada. E lá estava ele, parado onde o
beco desemboca na rua, apoiado na parede de tijolinhos como se eu tivesse
escrito a cena, com a camiseta de um monstro devorando uma garota, os
galhos pretos enrodilhados em seus braços. Absolutamente imóvel
enquanto o beco balançava como um navio.
“Samantha”, chama agora uma voz aveludada, masculina, melodiosa,
como cardo e urze soprando à brisa de um penhasco.
Ouvir aquela voz no escuro me faz estremecer, mesmo sabendo que
deveria estar aliviada.
“Alan”, respondo, instilando o alívio na minha voz, mas o eco revela o
tremor. “Você está aqui.”
Olho em volta, mas não há nada além da escuridão.
“Estou aqui, Samantha.” Eterna paciência. “Cadê você?”
Lembro-me de sair do beco com ele. Sentar-me no banco do passageiro
de seu carro. Observá-lo nos levar para algum lugar. Para onde estamos
indo? Nem pensei em perguntar. Então, em um sinal vermelho que ele
quase ultrapassou tamanha a embriaguez, eu avistei as Bunnies pela janela.
Elas tinham decidido continuar o festival de abraços bêbados no terraço de
um bistrô perto do campus que vende champanhe em taça. Apesar dos
meus olhos grudados no para-brisa, observando a interminável luz
vermelha do sinal, percebi que elas me viram dentro do carro dele. Que
elas nos viram. Mantive minha cabeça erguida, meu olhar reto. Podem
pensar o que quiserem, podem imaginar o pior, quero só ver. Arrisquei uma
olhada para ele. Também estava voltado para a frente, os olhos fixos além
do para-brisa, tão reto quanto possível. E então eu soube que ele também
as tinha visto. Que percebeu que elas tinham nos visto ali. E aí, em um
piscar de olhos, tudo aquilo parecia errado. Eu no carro dele. Nós dois
juntos. As meias-calças furadas de renda que cobriam minhas pernas
cruzadas, os saltos altos pendurados nos meus calcanhares, minha mente
cambaleante, a junção estranha de céu e terra, o terrível vislumbre do meu
reflexo no espelho do retrovisor. Tudo errado. E ele. Sentado ao meu lado
no banco do motorista. Tentando esconder a embriaguez enquanto
esperava o sinal abrir. Ele também parecia errado.
“Samantha”, chama a voz outra vez. Aveludada. Mais perto agora. Mas
ainda não vejo nada além da escuridão.
“Cadê você?”, pergunto.
Mal me lembro do trajeto até o apartamento dele naquela noite. Tenho
uma vaga lembrança de ter subido aos tropeços uma escada em caracol
escura que parecia se estender eternamente. De me sentar diante dele em
uma sala que não parava de rodar. Nossa conversa arrastada saltou de um
livro para outro, de um assunto para outro, como se avançássemos aos
solavancos. Tentei me convencer de que não era diferente de todas as
outras vezes, e que deveria estar feliz por, enfim, termos voltado a
conversar. Mas, dessa vez, só eu falava. Dessa vez, eu falava alto, como se
quisesse ser ouvida por alguém do lado de fora. Tentei pronunciar cada
palavra com muita precisão. Recusando-me a ver que o nome de coisas e
pessoas e livros vertiam dos meus lábios e se derramavam no chão dele
como vinho. Recusando-me a ver que tudo aquilo era errado. E ele me
observava em silêncio. Como se eu fosse uma peça de teatro que ele já
conhecia muito bem, que já tinha visto encenada tantas vezes, e que a essa
altura já lhe parecia um pouco maçante, mas ainda poderia ter uma ou
outra parte boa, quem sabe. Só dependia da montagem. E então eu disse
que estava feliz por termos voltado a conversar, embora só se ouvisse a
minha voz. Minha voz em meio a um silêncio tão alto que parecia ter vida
própria. Que parecia crescer cada vez mais, até ganhar forma e sombra,
mesmo que eu continuasse falando sozinha como se tudo estivesse bem.
Até que todas as minhas palavras estivessem esparramadas no chão. E
eu ali, bêbada demais para recolhê-las. Então deixe-as lá.
Lembro-me de olhar para o piso encerado, com a cabeça cheia de
sangue, o coração martelando nos ouvidos, o silêncio de repente
ensurdecedor ao meu redor.
E aí, para minha grande vergonha, comecei a chorar. Contei tudo a ele.
Coisas constrangedoras. Coisas humilhantes. Eu estava disposta a
qualquer coisa para acabar com aquele silêncio, com aquele tipo de
silêncio. Contei o quanto eu odiava as Bunnies. O quanto elas me
odiavam. A solidão que enfrentei no inverno. A preocupação por tê-lo
decepcionado. Contei sobre meu bloqueio criativo. Sobre minha vida
itinerante e solitária antes de vir para cá, meu pai foragido, até mesmo
sobre minha mãe. Chorei feito um bebê, mas na verdade era uma mulher
adulta despejando essas palavras nas próprias coxas rendadas. A qualquer
momento, esperava que ele quebrasse o silêncio, que a sala parasse de
girar, que se iluminasse, se endireitasse. Esperava uma mão estendida,
uma voz gentil oferecendo palavras de conforto. Mas ele só bebeu, só
observou. Sem palavras, sem toques. Não senti um braço ao redor do meu
ombro. Nem uma mão no meu joelho. Nenhum pau contra minha coxa.
Nenhuma boca no meu pescoço, nenhum hálito quente no meu ouvido. A
ausência de sua voz, de seu toque, era tão palpável que chegava a me pesar
os ombros.
Observo os arredores da Caverna outra vez em busca de sua silhueta.
Ainda nada além da escuridão, uma escuridão vazia.
“Aqui, Samantha. Estou bem aqui.”
Seu sotaque escocês de novo, cada vez mais impaciente.
“Desculpe, eu… não estou enxergando nada…”
Nas histórias que tentei escrever sobre aquela noite, algo acontece
durante o silêncio. Não termina com nós dois nos levantando para cruzar o
corredor escuro, ele dando as costas para subir as escadas enquanto eu
cambaleio em direção à rua. Em vez disso, preencho o silêncio com
alguma coisa. Sexo, quem sabe. Uma insinuação de violência. Um avanço.
Uma linha cruzada. Alguma coisa em vez de nada. Definitivamente alguma
coisa, não nada. Porque essa é a única maneira de explicar por que os dois
passaram o resto do ano sem conseguir olhar para a cara um do outro. Para
explicar a vergonha e a mágoa que irrompiam no meu peito sempre que ele
fingia que não me via, ou, pior ainda, quando apenas me cumprimentava
com um breve aceno de cabeça. Por que nunca mais ficamos juntos em
uma sala fechada depois disso? Por que saí naquele estado da casa dele
naquela noite? Tentando entender que raios tinha acontecido. Sabendo
que, mesmo que nada tivesse acontecido, tudo havia mudado. E como me
senti vazia e esvaziada ao ir embora, com todas as minhas palavras ainda
esparramadas no chão de sua sala. Queria voltar para buscá-las. Levar
todas de volta. Acabar com a noite, com minhas lágrimas idiotas, com as
palavras que jorraram em uma confusão interminável. Eu nunca quis dar
isso a você. Como estava sozinha. Tão, tão sozinha, enquanto abria
caminho pela escuridão, o chão parecendo ceder sob meus pés, a
escuridão da rua e a do céu unidas em uma coisa só. Tão perdida que de
alguma forma fui parar no lago em vez de voltar para casa. “Onde você me
conheceu”, Ava me lembra. “Viu só, Smackie? Às vezes se perder pode ser
maravilhoso.”
“Você está perdida, Samantha?”, pergunta Alan, bem baixinho. “Nós
estamos bem aqui.”
“Nós?”
“Sim, Samantha”, diz outra voz.
Feminina. Também familiar.
“Bem aqui.”
Fosco.
“Ursula? Não imaginei que…”
“Samantha, siga o som da nossa boca, por favor”, instrui Fosco.
Som da nossa boca?
“Isso mesmo”, concorda Alan. “Ou então, hum, continue falando e nós
iremos até você.”
Corra, diz uma voz na minha cabeça. Agora. Corra o mais rápido que
você…
E de repente uma mão cobre minha boca na escuridão. Luva. Couro.
Um aroma doce de bolo queimado me sufoca, como um projeto culinário
que terminou em desastre. Tento gritar, mas a mão me impede. Um braço
se enrosca no meu peito como uma cobra e outra mão segura minha nuca.
Dou um berro por trás da mão enluvada. Mordo os dedos com força.
Escuto um gritinho estridente atrás de mim, como o de uma garota. A
outra mão aperta minha nuca com força, e de repente tudo mergulha em
uma escuridão sem fim.

Uma silhueta diante de mim. Duas. A luz ou a escuridão é tão forte que
não consigo distinguir seus rostos, seus corpos. Só vejo suas formas.
Grandes. Um contorno atarracado, a outra silhueta, esguia. Atarracado e
Esguia. “Quem são vocês?”, quero perguntar, mas pelo jeito minha boca
não funciona mais. Foco. Focofocofocofocofoco. Mas é tão difícil manter
os olhos abertos, e por que será? Por causa das drogas. A compreensão
percorre meu corpo como um xarope doce e espesso. Uma gota. Outra.
As silhuetas estão sentadas. Talvez estejam até sorrindo, acho. Para
mim. Que bom. Vai ver são pessoas legais. E, ao que tudo indica, estão
esperando alguma coisa. Tão pacientes. Mas esperando o quê, hein? E de
repente o medo me invade. Ops, tô com medinho, diz meu cérebro. É
melhor eu dar no pé. Tchauzinho. Estou prestes a acenar para as figuras e
dizer “tchauzinho, foi um prazer conhecer vocês, figuras”, mas descubro
que não consigo erguer os braços, não consigo me mexer. Também estou
sentada. Amarrada a uma cadeira dura. Presa. Presa, presa, presa. Por mais
que esteja apavorada, o pensamento é agradável, como um balão vermelho
flutuando pelo céu azul. Eu o vejo voar pelo ar como em um sonho,
nenhuma nuvem à vista, e penso: Já estive aqui antes, observando esse balão
vermelho em devaneio. De repente escuto gritos. Vindos de mim. Uma
vozinha bem lá no fundo que diz: Corre logo, porra.
“O que você disse, Samantha? Desculpe, não entendi”, diz uma das
silhuetas.
Atarracado. O cabelo brotando de sua cabeça feito uma juba. Uma voz
que diz: “Confie em mim”.
Quem é você?, quero perguntar, mas não consigo mover os lábios.
Quando abro a boca, só sai um som gorgolejante.
“Samantha, isso é inaceitável. Você vai ter que falar com mais clareza.”
Isso vem de Esguia, e agora vejo que tem longos cabelos pretos e
prateados como aquela mulher assustadora dos contos de fadas, como ela
se chama mesmo? A bruxa. Eu conheço essa voz. A outra também. Mas de
onde? De onde conheço essas vozes?
“Afinal, esta é a reunião do seu comitê, Samantha, e temos muita coisa
para discutir.”
“Tanta coisa para discutir, Samantha.”
Reunião do comitê? Discutir? Sou inundada de alívio. Alan e Ursula. Dá
até vontade de chorar.
Faço menção de abraçar os dois, mas minhas mãos estão atadas. Ao ver
meus gestos, os dois se inclinam para me desamarrar, imagino, e aceitar
meu abraço. Mas não é isso. Eles só chegam mais perto para que eu
consiga enxergar suas feições sob a fraca luz vermelha. Vejo seus traços
distorcidos. A pele de zumbi. Os lábios torcidos e rasgados de um lado só.
O par de orelhas compridas, cinzentas e trêmulas que começam a
despontar de suas cabeças.
Tento gritar, mas não sai nada. Minha boca morta não faz nenhum
som.
Eles me observam com curiosidade com seus olhos da cor errada, e
sinto o olhar animalesco e sombrio da Duquesa sobre mim. Oi, Samantha.
“Está pronta para discutir ou não, Samantha? Será que podemos
começar, por favor?” pergunta Coelho-Leão com seus lábios retorcidos. As
mãos estão cobertas pelas luvas pretas de couro tão familiares, “porque
fazer as mãos é difícil, Bunny”. O corpo irregular revestido por um terno
azul-escuro feito sob medida para esconder todas as deformidades e
imperfeições. “Porque fazer os corpos também é difícil.” Ele parece ter sido
criado em cinco minutos.
Mais gritos silenciosos escapam dos meus lábios. Estou mergulhada no
torpor das drogas das Bunnies que conheço tão bem.
“Samantha, que tal você nos ajudar a começar, hein?”
Isso vem de Bunny-Fosco, a cabeça aninhada em seus cachecóis
sibilantes. Seus olhos são abismos roxos onde vejo o olhar de anime de
Caroline, que parece ávida por me devorar, mas ah, que pena, ainda não
estou no ponto de que ela gosta. Ela segura um machado nas mãos, tão
frouxamente como se fosse um feixe de sálvia que trouxe para purificar o
ambiente.
“Não? Ora, então eu mesma vou começar, mesmo que esta seja sua
reunião, Samantha. Você está pronta?”
Eu a vejo abrir um livro de capa preta onde se lê História de uma garota
triste, de Samantha Mackey.
Debaixo do título tem uma bonequinha de palito de braços cruzados e
beicinho armado.
“Estive analisando seu trabalho, Samantha. E devo dizer, Samantha,
que estou muito decepcionada.”
“Eu também. Tão decepcionado. Tão decepcionado”, concorda Coelho-
Leão. “Quer dizer, a princípio eu estava meio ‘intrigado’.”
Ele faz aspas com as mãos enluvadas.
“Ah, a princípio todos nós ficamos ‘intrigados’. Talvez até
deslumbrados. Encantados com aquele aspecto brutal, com aquele charme
sombrio.”
“Claro, claro, tudo isso”, concorda Coelho-Leão. “Mas agora?” Ele
encolhe os ombros deformados. “Eca. É isso que eu acho.”
E então olha para Bunny-Fosco, que assente em concordância.
Ambos viram suas cabeças horripilantes para mim. Depois me
examinam com seus rostos cinzentos e pensativos.
“Samantha, não estamos sentindo a entrega do seu texto. Parece até
que ele é… esquivo”, dispara ela.
“De propósito”, acrescenta Coelho-Leão. “Deliberadamente
inacessível. Infiel à sua premissa.”
“E era uma premissa e tanto. Quem poderia discordar?”
“Eu é que não.”
Ambos me lançam um olhar faminto. Penso em Rob Valencia olhando
avidamente para o ramalhete de flores. Lembro-me de sua boca cheia de
orquídeas. Os dois olham para mim como se meu próprio rosto fosse uma
orquídea.
Então chegam mais perto, lambendo os beiços.
“Samantha, devo admitir que estou muito preocupada com sua
heroína”, comenta Bunny-Fosco.
“Tão preocupados. Tão preocupados”, acrescenta Coelho-Leão.
“Mas eu nem sei se dá para chamar aquilo de heroína, não é? O que
acha, Samantha? É possível considerá-la uma heroína?”
Suas orelhinhas de coelho, ainda meros cotos no topo da cabeça,
estremecem feito antenas.
“Ela é muito passiva, Samantha, você não acha?”, continua, curvando
sua cabeça feia e cinzenta.
Tento protestar, mas sinto algo macio preenchendo minha boca. A
mesma maciez em torno dos meus punhos. Uma mordaça. Isso sempre
esteve aqui?
“As coisas simplesmente acontecem com ela, não é verdade,
Samantha?”
Um som gorgolejante escapa através da mordaça macia, que parece
cada vez maior em contato com a minha língua. Tenho a impressão de que
esse material macio que enche minha boca e ata meus punhos está vivo.
Parece algo animalesco. O aroma pútrido de bicho morto paira no ar ao
meu redor, mesclado a um cheiro adocicado que mal camufla a podridão.
Sinto seus oito olhos em mim enquanto a droga se espalha por minhas
veias. Algo aveludado parece envolver meu cérebro e minhas funções
motoras, enquanto um xarope espesso percorre meus braços e pernas. Por
que não consigo traçar um plano de fuga? Mas a verdade é que meu
cérebro foi invadido por pôneis cor-de-rosa com os dentes arreganhados.
“Quando ela vai se tornar empoderada, hein, Samantha? Me diz?
Quando vai tomar as próprias decisões? Quando vai assumir a
responsabilidade por toda a merda que fez?”
“Quando”, rosna ele, “vai dar um basta naquele trisal pervertido em
que ela nem consegue trepar com ninguém, hein? É isso que eu quero
saber.”
Bunny-Fosco assente com tristeza, como quem diz: “Ah, verdade, ainda
tem mais essa”.
“Aquela ‘amiga’ dela, né? Ada ou algo do tipo. Tanto faz.”
“Tanto faz”, concorda Coelho-Leão, revirando os olhos.
Fosco se aproxima ainda mais, com o rosto distorcido tão perto do meu
que consigo sentir seu hálito podre.
“Ainda assim”, continua aos murmúrios, “acho que é meio triste. O que
acontece com ela no fim.”
O que acontece? O que acontece com ela no fim?
Ela chega ainda mais perto, examinando meu rosto com um misto de
ternura e fome. Eu a sinto girar o machado de Kira em suas mãos
enluvadas enquanto a coisa viva e macia parece inchar por trás dos meus
lábios, empurrando o céu da boca, pressionando a língua.
“Samantha, você sabe o que um livro sempre deve ser? O que todo
grande livro deve ser? Inclusive uma dissertação de mestrado da Warren?”
E então aponta o machado para minha garganta. Desliza a lâmina
suavemente pelo meu pescoço suado, e a sensação me lembra o arranhar
de um gatinho.
“E aí, Samantha?”
“Me solta. Para. Por favor”, gorgolejo enquanto babo.
“Isso mesmo, Samantha. Um machado. O livro deve ser como um
machado.”
“Para romper o mar congelado dentro de nós”, conclui Coelho-Leão.
Ela afunda um pouco mais a lâmina no meu pescoço. Não, suspiro
através do veludo que me entorpece. Tento me livrar das amarras, mas não
consigo encontrar minhas mãos. Elas sumiram. “As mãos são difíceis,
Bunny.”
Os dois ficam olhando enquanto eu me debato em vão. Depois soltam
um suspiro de tristeza fingida.
“Samantha, depois de ler isso, estamos começando a achar que você
não é boa o bastante para a Warren.”
“E disso a gente entende, Samantha. Afinal, damos aula aqui.”
“Nunca deveríamos ter deixado você entrar, Samantha. Você não estava
preparada.”
“Tão despreparada.”
“Mas, mesmo que você seja uma idiota”, continua Bunny-Fosco,
“queremos ajudar. Queremos mesmo. Então vamos lhe oferecer um
presente, Samantha. Porque somos muito, muito legais. Algo para observar
e refletir e considerar.”
“Uma coisa simbólica. Um prompt de escrita. Uma surpresa”,
acrescenta Coelho-Leão. “Vai estar à sua espera quando chegar em casa.”
“Isso se ela voltar para casa. Será que a gente… deveria deixá-la ir
embora?”
Eles parecem refletir por um instante. Hum.
Eles vão me matar. Puta que pariu, eles vão me matar.
Não. Eu nego e nego e nego com a cabeça, mas ela apenas se move
para cima e para baixo.
Bunny-Fosco se levanta da cadeira, e Coelho-Leão faz o mesmo. Em
seguida, ela ergue o machado enquanto ele estica a mão enluvada e roça a
lateral do meu rosto. Com tanta, tanta delicadeza. Depois envolve minha
nuca. Ele vai me beijar. Ele vai me matar. Em vez disso, apenas pressiona
um pontinho da minha nuca e o mundo todo mergulha em escuridão outra
vez.
36

“Ei.”
Abro os olhos e sou cegada pelas luzes fortes no teto. Estou estirada no
chão da Caverna, ainda amordaçada e presa à cadeira que tombou. A
mente livre de pôneis saltitantes, o cérebro liberto do invólucro risonho.
Um zelador está parado na minha frente, com uma vassoura gigante na
mão, parecendo entediado. Ele mal pisca quando vê minhas mãos atadas,
como se já tivesse visto esse tipo de coisa antes.
“Muito bem, mocinha. Hora de ir embora.”
E então cutuca minhas costelas com o cabo da vassoura.
“Por favor, me solta”, tento gritar através da mordaça.
Penas brancas jorram da minha boca como flocos de neve.
Ele as observa cair no chão, imperturbável.
“O que foi que disse?”
“Você pode me soltar, por favor?”, reformulo.
Ele encolhe os ombros. Estica os braços e desamarra as fitas que
prendem meus punhos e tornozelos, que “soltam com muita facilidade,
viu, mocinha?”.
“Obrigada”, agradeço, sem fôlego, cuspindo mais penas brancas. “Você
me salvou. Estavam tentando me matar.”
O zelador balança a cabeça.
“Ai, ai. Vou te contar, viu? Vocês, jovens, com sua arte conceitual…”
“Não, não é isso. Realmente tentaram me…”
Uma última pena escapa dos meus lábios, e, entediado, ele a observa
flutuar entre nós dois até pousar no chão ao lado das outras plumas, ao
lado da pilha de fitas, que agora ele terá que varrer.
Ele solta um suspiro.
“O mundo real está lá fora, mocinha. Sabia disso? E cedo ou tarde você
vai ter que encará-lo.”
Uma lua vermelha ilumina o caminho enquanto corro para longe da
Warren. Mais e mais rápido conforme as drogas das Bunnies deixam meu
corpo. O tempo todo achando que estou sendo seguida. Avançando por
ruas laterais para tentar despistar meus perseguidores invisíveis, mas
inevitáveis. Com uma sensação horrível por dentro, como se um
animalzinho se debatesse em pânico nas minhas entranhas.
“Então vamos lhe oferecer um presente, Samantha. Porque somos
muito, muito legais.”
“Vai estar à sua espera quando chegar em casa.”
Quando me aproximo da casa de Ava, percebo que a janela da frente
está aberta. Nada fora do comum, já que ela gosta de sentir a brisa. “A
brisa é minha amante, Smackie”, Ava me diz o tempo todo. “Conheça
minha amante, a brisa. Ela fala comigo com sotaque escocês. Refresca
meus pés, minhas pernas.” Uma luz rosada vindo de dentro, uma música
tocando baixinho. Sinto o cheiro de Ava, o aroma de folhas molhadas e
chá-verde pairando no ar doce da primavera.
Sou inundada de alívio. Ela ainda está aqui. Claro que está.
Onde mais eu estaria?
“Ava”, chamo assim que passo pela porta.
Lá dentro, todos os abajures estão acesos, assim como as velas e os
pisca-piscas de Natal. “La Vie en Rose” ressoa do toca-discos. Os mil
incensos queimados deixam seu aroma no ar, e há um novo aceso em
algum canto. Os pássaros caolhos me observam da tapeçaria pendurada
sobre a cama.
Chamo o nome dela enquanto vasculho os cômodos, enquanto subo as
escadas.
“Max? Ava? Max?”
Chego ao último degrau, e o que vejo me deixa paralisada.

Sempre achei que era besteira quando os livros diziam que “o tempo
parou”. Mas acontece. Às vezes o tempo pode ficar tão parado quanto eu
estou agora, imóvel ao lado da porta que foi arrancada das dobradiças. Tão
parado quanto as paredes salpicadas de sangue e a vidraça quebrada. Tão
parado quanto o cisne que jaz morto no meio do quarto, com um machado
cravado nas costas, as asas brancas estendidas como se em pleno voo, uma
poça de sangue escuro vertendo de sua enorme silhueta. Pode ficar tão
parado quanto Max, sentado como está ao lado da poça de sangue que se
espalha pelo piso. Tão parado quanto meus próprios lábios, que não gritam
mesmo quando meu corpo se enche de algo escuro, fluido e ardente.
Fico olhando para o pescoço comprido e sem vida. A lâmina brilhante
cravada nas penas brancas. É um sonho, tento me convencer enquanto o
chão afunda sob meus pés, fazendo-me flutuar na água vermelho-escura.
“Max”, digo e ouço minha voz falhar ao chamar seu nome. “O que é
isso? O que aconteceu?”
Mas ele não responde. Está debruçado sobre o cisne, alheio a qualquer
coisa. A cabeça pendida para frente. O cabelo caído nos olhos.
Absolutamente imóvel.
Volto a observar o cisne branco, o sangue se empoçando aos meus pés.
Caio de joelhos e sinto o sangue escuro e quente ao redor das minhas
pernas.
“Max.”
Estico o braço e o sacudo pelos ombros. Ele sempre foi assim tão
frágil? Sempre teve ombros tão magros, tão franzinos?
“O que aconteceu? O que você fez?”, pergunto, e a falha na minha voz
se expande como a rachadura em um espelho.
Ele ainda está com a cabeça baixa, o pescoço estirado para a frente.
Isso só pode ser um sonho. Só um sonho, nada mais. Ava vai me
acordar a qualquer minuto. Mas, de alguma forma, eu sei que ela não está
aqui.
“Max.”
“Ela me mandou embora.”
“Quê?”
“Depois que você saiu. Ela me mandou embora. Falou que queria ficar
sozinha.”
“Do que você está falando?”
“Ela nunca tinha me mandado embora. Não entendi o que eu fiz de
errado, o que eu falei. Mas ela simplesmente disse vá. Então eu fui. Saí de
casa, dei um espaço a ela. Mas de repente tive um pressentimento. Uma
sensação horrível, horrível mesmo. E aí voltei correndo para cá.”
Ele ainda não tirou os olhos do cisne, cujo corpo branco domina minha
visão. Tão, tão imóvel.
“Max, por favor. Ainda não entendi o que aconteceu. Por favor, me
explique o que aconteceu.”
Eu o puxo pelos ombros e o viro de frente para mim, mas é como
tentar controlar um brinquedo, uma bonequinha barata que se recusa a
seguir seus comandos. Eu o chacoalho e chacoalho e chacoalho enquanto
chamo seu nome, e ainda assim a cabeça continua caída para a frente.
Minha mãe costumava me chacoalhar assim. Quantas vezes não me
sacudiu pelos ombros quando eu era criança, quando era adolescente.
“Samantha. Por favor, me escuta. Pare já com isso, entendeu? Chega. Você
precisa parar de fingir.”
Uma sensação horrível. Uma sensação horrível, horrível mesmo.
Estendo as mãos e levanto sua cabeça para olhar para mim.
“Max.”
Seu rosto é tão macio, tão leve e delicado. Sinto minhas palmas
formigarem.
“Por favor, fale comigo. Cadê a Ava?”
Mas já sei a resposta. A resposta é o calafrio sombrio que percorre meu
corpo. A resposta está estampada no rosto dele, que olha para o cisne com
tanto amor. Como se ela fosse as flores de cerejeira que se soltam dos
galhos. A luz do luar. Os raios de sol entre as folhas das árvores. A resposta
é a voz da minha mãe inundando meus ouvidos de repente, cansada,
preocupada, irritada enquanto chama meu nome, “Samantha”. A resposta é
o aroma de chá-verde e folhas molhadas que ainda persiste no ar, fraco,
leve, desprendendo-se do corpo como um desejo. A resposta são as penas
brancas ainda sopradas com tanta, tanta delicadeza pela brisa que entra
pela janela. Soprando com delicadeza nos seus cabelos emplumados
sempre que refletiam a luz. “A brisa é minha amante, Smackie. Conheça
minha amante, a brisa.” Soprando com delicadeza nos seus cabelos
emplumados, soprando no rosto dela na última vez que me sorriu com
amor, sempre com amor.
A resposta é meu próprio coração, que está desmoronando.

Um banco à beira do lago. Uma manhã de primavera no ano passado.


Estou sentada observando um cisne traçar círculos na água lamacenta.
Acabei de sair da casa do Leão. Não pretendia vir para cá. Mas sabe como
às vezes nossas pernas parecem ter vida própria? Roupas pretas coladas no
corpo. Mãos vazias espalmadas sobre o banco. Vazias e esvaziadas.
Sozinha, sozinha, sozinha. Observando o cisne, também solitário, deslizar
pela água escura como se fosse um sonho, as penas brancas refletindo a
luz da manhã. Eu queria que tudo não passasse de um sonho. Queria
poder apagar aquela noite. Preenchê-la com outra coisa. Com outro
alguém.
Alguém sentado ao meu lado no banco. Como se tivesse se
materializado ali.
Uma mulher. Bem ao meu lado. Sorrindo como se já fôssemos velhas
amigas.
“Ei, você tem um isqueiro?”
Vestido preto de seda, luvas pretas de renda. Um olho de cada cor, um
castanho e o outro azul, me observando através de um véu arrastão.
Cabelos platinados como penas brancas quando refletem a luz.
Quando lhe entrego o isqueiro, ela sorri, agradece.
Eu a observo acender o cigarro e fumar. Eu poderia passar o resto da
vida vendo essa mulher fumar.
“Samantha”, chama uma voz muito, muito distante. Ei, me deixe em
paz. Dê o fora, quem quer que seja. Quero conversar com essa mulher que
fuma ao meu lado, que sorri para mim, que inclina a cabeça em direção à
luz.
“Você parece familiar”, digo a ela. “Será que já nos vimos antes?”
Ela se vira para mim. Seu sorriso é como um raio de sol. Raios de sol
entre as folhas das árvores.
“Pode ser que sim.”
Algo em sua voz. Certa melodia. Tão específica. Tão familiar. Sabe do
que estou falando? Como se não fosse apenas um som, mas um lugar.
Onde acho que já estive antes. Onde eu poderia viver para sempre. Tem
luz, tem ar. Janelas, portas. Fica lá dentro, mas também lá fora. É uma
mão. Macia. Forte. Estendida. Será que eu já a segurei antes?
Olho para o lago. Vazio. Apenas nenúfares flutuando na superfície
imóvel.
“Samantha!”
Agora estamos dançando no telhado, eu e ela. Um tango suave para
abafar a música mexicana da casa ao lado. Entre a hora do cachorro e a do
lobo. Bebemos tanto que já deve ter virado veneno, mas que se foda, é um
belo jeito de partir. Balançando nos braços uma da outra. Entre nós, um
homem lindo que conjuramos do ar. E estamos rindo, porque somos um
desastre completo nessa história de conduzir. Mas isso que se foda
também. Porque estou tão, tão feliz. Aqui. Com você. Nem quero fechar os
olhos, com medo de que…
“Samantha!”
Minha mãe. Parada no jardim lá embaixo. Olhando para mim, aqui no
alto do telhado. Braços cruzados. Cabeça balançando. O que ela está
fazendo aqui?
“Samantha, me escute, por favor. Você precisa parar com isso. Precisa
parar de deixar sua imaginação correr solta.” Dane-se. Ela já me falou isso
antes. A vida inteira.
E eu sempre concordei: “Tá bom. Pode deixar. Já ouvi. Já parei”. Mas
eu não tinha ouvido, não tinha parado. Porque já estávamos correndo soltas
outra vez, minha imaginação e eu. Estávamos de mãos dadas na beira de
um penhasco no mar do Norte, estávamos bem lá em cima, no galho mais
alto de uma sequoia, estávamos em um trem para Paris, estávamos com os
lábios azulados de frio enquanto tentávamos nadar até a Índia. Ou
estávamos só correndo soltas mesmo. Descendo uma colina íngreme
interminável, eu e ela, de mãos dadas. Ela era uma floresta em forma de
menina. Era algo em chamas. A mão dela era fumaça e folha e neve e
carne, tudo de uma vez só. Estávamos correndo soltas por uma estradinha
sinuosa de terra, através de uma campina repleta de grama, ao lado de um
rio caudaloso e lamacento, em direção a uma floresta ainda maior, ou será
que só estávamos correndo sem rumo? Não sabia. Nem queria saber. Mas
o entusiasmo era tão grande. Eu sentia que minha vida podia mudar. Já
não era mais uma pessoa sozinha no mundo.
E agora? Agora estamos dançando no telhado.
Ela estende a mão enluvada e afasta meu cabelo do rosto.
“Conte a história de como nos conhecemos, Smackie”, pede ela outra
vez.
Sinto seu toque frio como água na minha pele. Fecho os olhos, chego
mais perto enquanto dançamos.
“Acho que era de manhã bem cedinho.”
Por mais que meus olhos estejam fechados, consigo senti-la concordar
com a cabeça. Isso.
“Acho que eu estava sentada perto do lago. Sozinha no banco.”
Isso.
“Fui até lá para observar o cisne na água…”
“Mas não tinha cisnes no lago naquela manhã, esqueceu?”, acrescenta
ela.
Abro os olhos. Seu sorriso ainda é como um raio de sol. Cabelo como
penas brancas.
“Samantha”, chama minha mãe agora, a voz triste, enquanto balança e
balança a cabeça. Olhando bem, bem, bem lá para cima, onde estou
dançando tango à luz do crepúsculo com uma mulher que conjurei a partir
de um cisne. Como se eu fosse um gato que mais uma vez escalou uma
árvore da qual se recusa a descer. Mas desta vez é diferente. A expressão
dela diz que é diferente. Nunca escalei tão alto. Nunca me afastei tanto do
chão. Nunca me enveredei tão fundo nas folhas verde-douradas que ela
sabe que tanto amo. E ela meneia a cabeça para mim lá do chão, sem tirar
os olhos do galho bem, bem lá no alto onde me equilibro. Do telhado
instável onde danço. Olho para a mulher nos meus braços. Um pouco mais
alta que eu. Que parece tão real quanto a própria terra. Não é algo que
conjurei da solidão e de uma ave deslizando na superfície de um lago.
Porque eu teria percebido, não teria?
“Você é real”, digo a essa mulher. “Não é?”
Ela me olha como se estivesse ponderando sobre o assunto. Depois
sorri. Estende uma mão de carne e fogo e neve e ar. Acaricia meu cabelo.
Smackie. Fecho os olhos.
E então ela se vai.
O telhado e o crepúsculo também se vão.
E estou em uma poça de sangue observando um cisne com um
machado nas costas. O quarto escuro e vazio. Sem cama. Sem cadeira.
Sem tapete. Sem cortinas. Sem música. Sem lâmpadas. Apenas o chão de
uma casa abandonada e a lua vermelha se infiltrando pelo vidro quebrado
da janela. Apenas Max e eu no piso de concreto coberto de sangue escuro.
Mais sangue do que um cisne poderia ter.
Contemplo o pescoço do cisne, comprido feito uma cobra. Olhinhos
escuros e bem arregalados. Mal se sente o aroma de chá-verde e folhas
molhadas. Observo as paredes nuas, a mala solitária no chão, minhas
roupas escuras escapando das bordas como um segredo, meu saco de
dormir mofado no canto, o caderninho aberto sobre ele, com as páginas
viradas para baixo. Vejo o abajur em formato de mulher que encontrei na
lixeira do dormitório, a caneca que roubei do saguão do departamento de
Letras, onde se lê: “Um teto todo seu”.
“Ava.”
Minha voz ecoa pelo quarto inacabado. Ricocheteia nas paredes de
madeira com isolamento barato. Nada além de vigas e fios e canos
enferrujados no teto.
Olho para Max ao meu lado, parecendo minúsculo em seu sobretudo
anárquico. Admiro seu rosto. As feições afiladas e lupinas escorreram feito
maquiagem. Os traços já não mudam mais, já não trazem à tona momentos
sublimes ou ex-amantes. Seu rosto é o meu. Enfim livre de disfarces.
Familiar como a lama. Contorcido de tristeza. De raiva. Sinto uma vontade
repentina de matá-lo. Essa coisa que criei a partir de ódio, amor, ar e um
maldito animal. Tem um machado bem ali. O cabo ligeiramente curvo,
vermelho-cereja. E de repente sei que não foi ele. Posso ver agora, a mão
pálida e rosada que o empunhou. Pequena e delicada, com dedos de
pianista. Calejada pelo violino. As unhas pintadas com cor de veneno.
Consigo até imaginar. Seus braços esguios de garça erguidos acima da
coroa prateada que lhe adorna a cabeça. A Duquesa, cada vez mais alta.
Crescendo até se transformar na coisa monstruosa que esconde sob as
roupas de fada, o machado apontado para as costas viradas de Ava.
As costas de Ava.
Ava.
Antes mesmo que eu consiga me mexer, antes mesmo que eu consiga
pensar, Max estica o braço, arranca o machado das costas dela e sai
apressado do quarto.
37

Eu o sigo pela escuridão que precede o amanhecer. Um homem com um


machado ensanguentado na mão, andando pelas ruas com um único
propósito em mente, a caminho de uma porta laqueada que conheço muito
bem. Sua intenção está no meu sangue. Seu destino está no meu coração.
Era de esperar que alguém fosse aparecer para detê-lo. Que alguém
fosse aparecer para me impedir de ir atrás de um homem empunhando um
machado. Mas ninguém aparece. Podemos muito bem estar invisíveis
enquanto passamos da zona oeste para a leste, ele sempre à frente
enquanto eu corro atrás. Duas pessoas ensanguentadas atravessando uma
cidade que, pela primeira vez, fico feliz por não ter tantos postes de luz. Eu
o chamo aos berros, mas ele não responde. Nem deve me ouvir em meio à
raiva e à tristeza que dominam seu coração. Ou talvez só não tenha tempo
a perder. Sem tempo nem disposição para nada além do seu objetivo. E
qual é o objetivo? Você sabe.
Eu ainda não tinha percebido como ele era alto, como era forte. Não
mesmo.
Não tinha percebido como sua sombra era gigantesca, monstruosa.
Não mesmo.
Até que o vejo diante do portão adornado que desemboca na trilha
rodeada de tulipas que desemboca nos degraus de pedra que desembocam
na porta da Duquesa.
Olhando para sua casa com todo o ódio que tenho no coração.
Olhando para sua casa com toda a mágoa que tenho no coração.
Olhando para sua casa ridícula com toda a raiva e a tristeza que
inundam nosso sangue, um sentimento descomunal, grande demais para
passar pela porta.
Só tem uma coisa a fazer, só uma.
Só tem uma coisa a ser feita, só uma.
Justiça. Vingança. Simples assim. Fácil. Já as vimos fazer isso tantas
vezes, não vimos? Basta um golpe — só um! — para arrancar-lhes as…
“Max.”
Ele se vira como se eu o tivesse despertado de um sonho. Como se ele
tivesse esquecido quem sou, o que faço ali.
Olho para a casa sem graça, o gramado insosso repleto de arbustos
recém-podados. O carro estúpido iluminado pelo luar que banha a
garagem.
“Não podemos fazer isso.”
Você sabe disso. Sabe que não.
Fico esperando que ele concorde com a cabeça. Claro que não
podemos. Mas ele apenas olha para mim como se não entendesse, ou nem
se importasse. Foda-se. Ele avança pelo portão com o machado em riste.
“Max! Chega! Por favor! É tudo culpa minha.”
Ele se vira.
“Quê?”
“Ava.”
Basta dizer o nome dela para que algo desmorone na minha voz, dentro
de nós dois. Para que as lágrimas inundem nossos olhos e turvem nossa
visão um do outro.
“Eu contei a ela sobre você.”
“Contou sobre mim?”
“Antes de eu sair de casa. Foi por isso que ela mandou você embora. É
tudo culpa minha.”
“O que você contou sobre mim?”
Ouço a voz dele desmoronar, assim como a minha desmoronou.
Recordo a expressão dela no telhado ontem à tarde, olhando para mim,
depois para Max, depois para mim outra vez. O ar risonho abandonando
seu rosto.
“Contei tudo. Quem você é.”
“Quem eu sou”, repete ele baixinho.
Quase consigo ouvir o sorriso em suas palavras, afogado em tristeza.
“Por quê? Por que você contou isso para ela, Samantha?”
Agora sua voz vacila como a minha, seu corpo cambaleia como o meu,
como se estivéssemos prestes a dançar. Fecho os olhos.
Você sabe por quê.
Diga logo.
“Porque eu a amava. Eu também a amava.”
Amava. Quando abro os olhos, ele me encara como se tivesse levado
um soco. Abaixa o machado. Cai de joelhos em um canteiro apinhado de
flores da Duquesa.
“Max.”
Mas ele nem se mexe. Continua ajoelhado ali, os olhos fixos na grama
aparada.
Um tango baixinho escapa por uma janela aberta e flutua como um
perfume no ar, estendendo seus dedos na nossa direção.
“Max, vamos sair daqui, por favor.”
Eu me abaixo para cutucar seu ombro. Mas não adianta nada. Ele está
imóvel como uma estátua.
Uma luz se acende na sala de estar. Consigo ver todas elas lá dentro
através da vidraça. As cabeças e os pescoços banhados por uma luz
dourada, fazendo com que todos os cabelos tenham o mesmo tom
reluzente. Vejo um véu arrastão em Cupcake. Um véu arrastão na Boneca
Sinistra. Elas devem ter rasgado ao meio para dividir, Bunny. Luvas
rendadas nas mãos de Vinheta, que cobre a boca que parece gargalhar. E
penas. Uma presilha cheia de penas brancas adornando as tranças da
Duquesa. Que está usando um vestido preto de seda que já vi antes.
Ontem mesmo. No telhado. Quando ela me olhou pela última vez com
seus olhos de cores diferentes e sorriu.
Claro que ainda vou estar aqui. Onde mais eu estaria?
E, simples assim, eu pego o machado. Escondo-o dentro do casaco,
como vi Boneca Sinistra fazer centenas de vezes. Como se fosse uma
carteira, um gloss, um molho de chaves. “Tanto faz, amiga.” E, com a graça
e a precisão de uma pantera, caminho até a porta da frente. Que elas
deixaram destrancada. Para ele. Claro.

Ao ouvir meus passos pesados no corredor, elas começam a chamá-lo pelos


nomes. “Tristan? Icarus? Byron? Hud?”
Elas se calam quando entro na sala de estar, com o machado ainda
escondido no casaco. Parecem surpresas, muito surpresas, em me ver.
Assustadas, quem sabe? É difícil ler suas expressões através dos véus. Os
véus de Ava. Continuam sentadas em semicírculo no sofá de camurça,
como se estivessem fazendo um coquetel em plena madrugada. Taças de
champanhe espalhadas por toda parte.
“Ora, Samantha. Estamos surpresas em ver você aqui.”
“Tão surpresas.”
“Mas que merda você veio fazer aqui?”, vocifera Cupcake. “Cadê o
Byron?”
Vinheta apenas me encara, impassível. Ajeita as luvas no punho. Está
toda vestida de preto. As outras também. Vestidinhos retrôs bem colados
ao corpo. Quase idênticos ao vestido preto de seda que a Duquesa está
usando, aquele que conheço tão bem. Fico sem ar ao vê-lo assim tão perto.
Consigo sentir o cheiro de chuva e chá-verde. Meus joelhos começam a
ceder. Algo parece cauterizar minha visão. Tudo pode acabar em um
instante. Em um piscar de olhos. Um único golpe e…
“Samantha, temos a impressão de que você está muito… chateada?
Com alguma coisa? Não temos como adivinhar exatamente o que
aconteceu, claro, já que nossa imaginação tem limites, mas, vamos lá,
conte para nós. Somos todas ouvidos.”
A Duquesa olha para mim. E aí? O equivalente da Warren da mulher
que me fuzilou com os olhos no metrô de Paris. O ódio desabrochando em
seu sorriso sobre o mar de seda preta. Retribuo o olhar do outro lado do
trem barulhento, a mão no cabo do machado.
Só tem uma coisa a fazer, só uma.
Só tem uma coisa a ser feita, só uma.
“Por quê? Por que fizeram isso?”
Minhas palavras pairam no ar impecável da sala dourada.
“Do que você está falando, Samantha?”
“Ora, Samantha, infelizmente não fazemos ideia do que você está
falando.”
Elas vão me obrigar a dizer em voz alta.
“Vocês a mataram. Eu sei que mataram.”
Elas olham para mim, e desta vez não desvio o olhar. Eu as encaro de
volta até as lágrimas inundarem meus olhos, até o suor fazer meus dedos
escorregarem no cabo do machado. Mas não me atrevo a piscar. Por um
instante, tenho a impressão de que vão desviar o olhar, envergonhadas.
Que vão despertar do pesadelo que se tornaram. Voltar a ser as estudantes,
as criaturas sensatas que devem ter sido um dia. Em vez disso, trocam
olhares de soslaio através dos véus improvisados, depois tomam golinhos
demorados de champanhe.
“Samantha”, começa a Duquesa, meneando a cabeça enquanto contrai
suas feições em um origami de empatia fingida. “Isso é tão triste que chega
a ser constrangedor.”
“Tão constrangedor”, concorda Boneca Sinistra.
“Para você”, esclarece Cupcake. “Aliás, Byron está com você?”
Vinheta me lança um olhar vidrado. Em um misto de tédio e tesão,
como ela costuma dizer. Onde foi que Hud se meteu, porra?
“Humilhante de um jeito trágico, sério”, continua a Duquesa, adotando
os silêncios profundos de Fosco. “Você não acha?”
O vestido de seda roubado cintila sob a luz dourada, nem um pouco
ajustado ao seu corpo.
“Como se atreveram?”, pergunto, mas minha voz não soa ameaçadora.
Parece desfeita, dilacerada. Abatida. “Como vocês se atreveram a fazer isso
com ela?”
A Duquesa abre um sorriso triste. Vinheta boceja. Cupcake e Boneca
Sinistra me fulminam com os olhos através dos véus.
“Nós?”
“E o que você fez, hein, Samantha?”
“Correndo de nós para sua… amiga, e vice-versa, de lá para cá como a
porra de uma garotinha indecisa.”
“Isso que é traição.”
“Para ambos os lados.”
“Não é de admirar que sua ‘amiga’ tenha voado ou morrido ou sido
assassinada ou algo do tipo. Nem podemos fingir que sabemos o que você
faz no seu quartinho miserável, Samantha. Sabe como é, o nosso fingimento
vai só até certo ponto.”
Sorrisos que me veem dançando tango no telhado, já não mais sozinha.
E me apaixonando por algo que eu não sabia ser minha própria invenção.
O cômodo desaparece e volta a aparecer antes de sumir outra vez. O
tapete é tão grosso e macio que nem consigo sentir o chão sob meus pés.
Não tire os olhos da vadia que roubou o vestido, você não pode…
“Nós queríamos contar para você. Sobre sua amiga ave ou sei lá o quê.
Quase chegamos a contar algumas vezes. Mas você estava tão delirante.
Achamos até que você poderia ter um colapso nervoso se descobrisse, ou
então que mijaria nas calças ou coisa do tipo. A gente realmente não sabia
o que poderia acontecer. Tipo, você estava tão empenhada em ser legal
demais para todo mundo, em não se misturar com a gente nem com os
poetas nem com ninguém, sabe.”
O machado começa a escorregar na minha mão. Meu olhar ainda está
apontado para ela como uma arma.
“Você a matou. Eu sei que você a matou, porra.”
A Duquesa me olha como se estivesse morrendo de pena de mim,
sério. Sério mesmo. Mas na verdade não. Nem um pouquinho mesmo.
“Honestamente, Samantha. Vai ver você mesma a matou.”
“E vai ver você nem se lembra disso porque é tão maluca, tão perdida.”
A escuridão do sótão abandonado invade minha mente. A lua vermelha
se infiltrando pelo buraco da vidraça. Max e eu sentados em uma poça de
sangue.
“Samantha, não vamos fingir que sabemos os detalhes do draminha
que o seu trisal falso sofreu para ocupar aquela casa abandonada na zona
oeste. Mas podemos dizer uma coisa. O que aconteceu no final, seja o que
for, temos certeza de que foi melhor assim. Pode acreditar. Quem sabe essa
experiência não ajude você a… sei lá… evoluir.”
“Afinal, é necessário matar seus Queridinhos, esqueceu?”
“É, Samantha. Esqueceu que eles nem são reais? Ah, verdade.
Samantha sempre esquece.”
“Conjura pássaros para serem seus amigos…”
“Talvez mais que amigos…”
“Brinca com todos eles sozinha e nem percebe. Tão, tão constrangedor
para você.”
“E triste. Muito triste. E até meio insano, de um jeito assustador?”
“Não que a gente não goste disso, tá? Essa energia insana-assustadora-
triste dá um charme a mais. Igualzinho àquela vez no primeiro ano, você
não estava lá, obviamente, quando sem querer acrescentamos uma pitada
de um tempero exótico em um bolo, lembram? Qual era o nome mesmo?
Já esqueci. E aí a gente ficou, tipo, ‘aimeudeus, que incrível, vamos botar
mais?’. Mas tentamos colocar mais uma pitadinha e foi, tipo: ‘Não, de jeito
nenhum’. Está explicado por que esse tempero só é vendido em um
punhado de lojas especializadas. No fim das contas, só dá para usar tipo
um oitavo de colher de chá dessa merda. De vez em nunca. E é isso.”
O ódio desabrocha em seu sorriso, um buquê de vai-se-foder. Ela sabe
muito bem que o machado está escondido no meu casaco. Ela não é burra,
esqueceu? Foi ela quem inventou esse maldito jogo. Ela conhece todos os
meus pensamentos assassinos, que sobem e descem na minha mente
como penas brancas sopradas pela brisa. Mas que seja. Ela beberica seu
champanhe sem pressa, saboreando-o sob a mira hesitante do meu olhar
assassino. Porque eu não vou seguir em frente com isso. Vai, Samantha?
Matar a gente? Pessoas reais? Aí já seria um pouquinho demais, né? Mesmo
para você?
“Samantha, nós amamos quando você testa os limites.”
“Mas uma coisa é testar os limites. Outra coisa é ultrapassá-los, não é?”
“Chegar a um ponto em que nem seus ‘amigos’ conseguem trazê-la de
volta?”
“Ou, sabe, pessoas reais.”
“Olha, Samantha, se você não consegue entender a diferença entre
realidade e ilusão, não temos como ajudar.”
“Não mesmo, amiga.”
“Um artista de verdade entende a diferença. Se não me engano, é isso
que distingue um artista de uma pessoa maluca, sabe? Aprendemos isso no
ensino médio. Pelo menos na minha escola a gente aprendeu.”
“Samantha, posso falar a verdade?”, retoma a Duquesa. “Se você olhar
bem lá no fundo, acho que finalmente vai entender. Você vai entender que,
no fim das contas, foi melhor assim.”
“Com certeza foi melhor assim, amiga.”
“Tipo, a gente sempre pensava ‘faça o que seu coração mandar’, mas
mesmo assim. Uma hora ou outra isso ia ter que acabar, né? Tipo, você
está prestes a encarar o mundo real, não está, Samantha? Não dá para ir
para lá se ainda tiver esse tipo de… apego.”
De repente percebo que não tem nenhum garoto-coelho rondando a
sala de estar. O cômodo está impecável, sem poeira acumulada nos cantos.
Sem indícios de nada. Sem copinhos descartáveis na mesa de centro, nem
balas, nem pétalas de frésia mastigadas no chão. Sem os guinchos que
escapavam pelas frestas do assoalho, vindos do porão, e que a princípio me
enchiam de pesadelos, me faziam ter vontade de ir até lá — Não, Bunny,
não vá. Deixe eles lá. — e que, enfim, aprendi a ignorar, como se não
passasse de som ambiente. Não tem nada disso. Só elas. E eu. Na sala de
estar de uma garota rica comum. Bege pra cacete. E logo um amanhecer
comum começa a banhar o cômodo. Um raiozinho rosado por vez.
Não posso matá-las.
Não posso mesmo.
O sorriso da Duquesa se transforma de repente. Uma expressão
vitoriosa ao adivinhar meus pensamentos. Não, espere. Não vitoriosa,
sonhadora. De repente, ela parece estar diante de um sonho. As outras
também. Uma leveza reveste seus semblantes cobertos de véu. Como se
um arco-íris tivesse acabado de despontar sobre meus ombros.
Olho para trás. Max. A silhueta visível do outro lado da janela,
acendendo um cigarro. A chama iluminando seu lindo rosto afilado. E
então a escuridão volta a tomar conta. Só se vê o vermelho-cereja de seu
cigarro. Cada vez mais distante.
“Tristan!”
“Byron!”
“Hud!”
“Icarus!”
Elas se levantam como uma onda escura. Passam apressadas por mim e
correm porta afora como se estivessem em chamas.

Eu as encontro lá fora, amontoadas em círculo nos degraus de pedra da


Duquesa. Completamente imóveis. De mãos dadas, como amigas fariam,
mas na verdade só querem impedir que as outras avancem. Estão
paralisadas. Hipnotizadas. Os lábios entreabertos, os olhos vidrados em
Max, que está parado no meio do jardim enevoado, ainda fumando, ainda
envolto em sombras. Ele poderia estar olhando para todas elas, para apenas
uma, para nenhuma.
Não dá para saber.
É difícil afirmar qualquer coisa nesta luz enevoada.
Tudo uma questão de perspectiva.
Um suspiro coletivo escapa de seus lábios como uma brisa de
primavera. Com um ar sonhador, faminto, elas se põem a observar o
homem com o cigarro frouxo, mas firme, entre os dedos. Como se ele
segurasse um buquê de flores silvestres, uma navalha, uma orquídea azul,
um aparelho de som tocando sua música favorita debaixo de chuva.
Para você.
Só para você.
Ele leva o cigarro aos lábios sorridentes, incólumes.
E então elas o atacam. Uma corrida desenfreada pelos degraus até
chegar a ele. Acotovelando-se. Puxando-se pelos cabelos, pelo pescoço.
Tropeçando nas sandálias pretas de salto. Um único monstro de pele
rosada e seda preta cujos tentáculos se voltaram uns contra os outros.
Cupcake o alcança primeiro e joga os braços ao redor de seu peito, os
olhos fechados enquanto começa a berrar. Vinheta o agarra pela perna
enquanto Boneca Sinistra o agarra pelo braço oposto. “Nem se atreva,
vadia”, elas rosnam em perfeita sincronia. E de repente a Duquesa solta
um grunhido de coelho e salta para agarrar o pescoço dele como se
quisesse arrancar-lhe a cabeça.
Por um segundo, não consigo me mexer. Paralisada como elas estavam
momentos antes. Hipnotizada enquanto assisto. Elas puxam seus braços e
pernas e soltam gritos estridentes cheios de desejo, terríveis de ouvir. “Ele
é meu, não, é meu, já falei que ele é meu, caralho, sai fora, vadia, larga ele,
a gente já conversou sobre isso! Ele é meu, meu, meu, meu.” Até a
Duquesa guincha feito um porco. Se eu não estivesse vendo com meus
próprios olhos, jamais conseguiria acreditar. As bocas espumando. Os
dentes brancos arreganhados. Os gritos sibilantes. Os grunhidos
animalescos escapando de seus lábios meticulosamente pintados. Lábios
que antes citavam inúmeros filósofos e críticos em anfiteatros majestosos.
Elas o puxam com uma fúria que sem dúvida estava presente em suas
inscrições para a faculdade. Uma fúria arrogante e interminável que as
levará até as coisas mais lindas deste mundo, e que não vai sossegar até
que elas as reivindiquem uma a uma.
Max, por sua vez, continua imperturbável. Ele se deixa levar, permite
que seu corpo de sequoia seja puxado em quatro direções diferentes por
bonecas raivosas que ganharam vida, o cigarro ainda frouxo entre os lábios.
Apesar da selvageria, elas não parecem ter causado muitos estragos. Quase
nada, na verdade. Ele fica parado ali, como um pai paciente enquanto os
filhos o escalam como uma árvore.
Está sorrindo? Talvez.
Não dá para saber.
É difícil afirmar qualquer coisa nesta luz inconstante, à sombra das
árvores floridas do jardim.
Mas ele está olhando para mim, disso eu sei. Posso sentir o
formigamento nas laterais do rosto. Na nuca. As costelas se expandindo.
“Esteja pronta.”
“Para quê?”
Mas a consciência me invade como uma luz de alerta. Basta uma faísca
para o fogo se alastrar.
“Não”, eu digo a ele.
Ele cai de joelhos de repente, como se estivesse ferido.
“não!”, grito.
Elas congelam no lugar. Os olhos voltados para mim.
Não para mim, e sim para o machado que agora empunho. Trêmulo
como as minhas mãos. Escorregadio como os meus dedos.
As quatro continuam imóveis, mas não o largam.
Eu me viro para Max, cujo olhar está fixo em mim, envolvendo meu
rosto com suas mãos de floresta, escancarando meu coração. “Vá em
frente.”
Ele joga a cabeça para trás, o pescoço exposto refletindo a luz ardente
do céu, e vejo a tatuagem de machado cintilar em preto como naquela
primeira vez, na luz azulada do ônibus, e como em todas as vezes desde
então.
“Não.”
“Sim, Samantha.”
“Não, por favor. Eu não consigo.”
“Vá em frente.”
Contemplo todos os meus sonhos e pesadelos condensados em uma
única forma humana. Todo o amor e o ódio do meu coração e um maldito
coelho. O sol começa a despontar no horizonte, fazendo sua sombra
chifruda assomar sobre o jardim. Por acaso coelhos têm chifres nas
sombras?
Ergo o machado acima da minha cabeça. As quatro se agarram a ele,
implorando que eu pare, por favor, pare!
Ele sorri. “Confie em mim.”
Miro e desfiro o golpe. Machado contra machado. A lâmina acerta uma
superfície terrivelmente macia. Ouço um estalo horrível que faz todo o
meu corpo tremer. Elas começam a gritar. Abro os olhos. O cara pelo qual
estavam brigando já não está mais ali. Onde antes havia um casaco preto e
pele humana agora há cascos e uma pelagem castanha, chifres pontudos
crescendo no que antes costumava ser uma cabeça humana. Olhos
grandes e escuros como fumaça. Um cervo. Escoiceando-as com suas
patas lindas e poderosas. Derrubando-as com um movimento de sua
galhada.
É uma visão esplêndida vê-lo agitar suas patas furiosas e balançar a
cabeça elegante — não, não, não, não — até que todas estejam caídas,
estiradas na terra úmida com seus vestidos de seda rasgados,
choramingando baixinho como os garotos-coelhos que elas mantinham
trancados no porão.
E então, só então, o bicho se detém. Eleva-se a toda sua altura
majestosa. Parado exatamente no mesmo lugar do inverno passado, quando
o avistei pela primeira vez, quando cruzou o jardim coberto de neve como
se fosse um sonho.
Ele me observa com seus olhos de fumaça. Depois salta em direção às
árvores. Eu o vejo desaparecer entre as folhas e a névoa, engolfado pelas
sombras.
Sinto algo pesado na minha mão. O cabo de um machado.
Então o solto.
38

A festa de formatura da Warren, como você deve saber, é lendária.


Uma coisa espetacular, fora de série. Taças transbordando de champanhe.
Crustáceos variados em suas caminhas de gelo. Nuvens de tule
esvoaçante. Tendas brancas aglomeradas no gramado florescente. E cada
uma delas abriga uma série de imbecis de beca prestes a serem soltos no
mundo, todos com um sorrisinho no rosto.
Sedoso nos chama ao palco um a um. Anuncia os prêmios que
ganhamos. Aperta nossa mão direita enquanto finge nos entregar um
diploma falso que fingimos pegar com a esquerda. Quando meu nome é
chamado, caminho até o palco tentando me lembrar de toda essa
encenação. Mas, quando Sedoso me estende o diploma, esqueço que é
falso, que faz parte da cerimônia, e tento arrancá-lo da mão dele, que o
segura com firmeza e diz entre dentes: “Esqueceu, esqueceu do e-mail?”.
Esqueci mesmo, então só penso: Tá. Pode ficar.
Enquanto estou ali, em cima do palco, olho para a plateia em busca de
Ava. Um reflexo que me pego repetindo o tempo todo. Não consigo evitar.
Nenhum vestido preto de seda. Nenhum cigarro beligerante entre lábios
vermelho-azulados. Nenhum par de olhos de cores distintas me
observando através de um véu arrastão. Tento sair do palco, mas Sedoso
agarra minha mão com força, o rosto ainda congelado em um sorriso para
câmeras invisíveis. Não tem nenhuma câmera aqui, quero dizer a ele.
Ninguém veio registrar este momento importante para mim. Mas não digo
nada, apesar da vontade avassaladora de puxá-lo pela gravata e sibilar isso
no ouvido dele. Apenas volto para a rigidez da minha cadeira branca. Faço
de tudo para não olhar para a esquerda, para a outra extremidade da tenda,
onde elas estão. Foram colocadas na primeira fileira por causa das lesões.
Estão sentadas em linha reta, as cadeiras tão afastadas quanto possível.
Somando as quatro, são três pernas quebradas, dois braços fraturados, seis
costelas partidas e dois tornozelos torcidos. A Duquesa está usando um
colar cervical.
“Um acidente durante a prensagem do livro”, escutei-as contar para
todo mundo. Problemas na prensa. Tão triste. “Um bando de meninas
inocentes tentando criar algo lindo na calada da noite. E quase morremos.
Escapamos por pouco, não foi?”

Quando a cerimônia acaba, fico parada entre os tules esvoaçantes que


adornam os pilares da tenda, observando as pessoas sorrirem com
educação aos brindes e desejos efusivos de parabéns, parabéns. O corpo
docente posa de foto em foto para cada acólito de iPhone, sempre com o
mesmo sorriso perfeito. Alimentos arquitetônicos passam flutuando nas
bandejinhas, seguidos de taças de champanhe que eu opa, aceito toda vez.
Admiro a luz perfeita que ela tanto odiava. As árvores majestosas que ela
tanto detestava. Escuto as conversas sobre os grandes planos para o verão,
para os quais ela sempre revirava os olhos. Se eu fechar os olhos, quase
posso sentir seu ombro de seda resvalando no meu. Quase posso ouvir seus
sussurros. “Será que a gente pode dar o fora daqui? Você sabe que só vim
por sua causa.”
“Ah, Samantha! Aí está você.”
Sob a tenda branca, com a luz fraca do entardecer em seu rosto, ele
não parece nem um pouco assustador. Só um homem. Não muito mais
velho nem mais alto do que eu. Desajeitado igual a mim. Uma expressão
bem-intencionada por baixo daquela juba indomável. Ele me viu ali
sozinha. Então só quis vir me dar um “oi”, desejar parabéns.
“Vai ficar de fora da folia? Não vai tirar umas fotos?”, pergunta ele.
Sua voz é convidativa, familiar, quase gentil, trazendo à tona a luz e as
folhas daquele primeiro outono. Quando ele era tudo de que eu mais
precisava — um rosto amigável, alguém com quem conversar, alguém que
acreditasse em mim.
Sinto meus olhos se encherem de lágrimas estúpidas, inexplicáveis, e
me ponho a contemplar meus sapatos, a grama molhada ao redor. Em
seguida olho para ele. Se percebeu que chorei, não demonstra.
“Quem sabe mais tarde?”, respondo.
Ele assente, sorri como se entendesse. Pausa constrangedora. Muito
constrangedora.
“Aliás, eu gostei da sua dissertação”, diz de repente, como quem
oferece uma bênção.
“Gostou?”
“Muito. Achei bem…”
Ele se detém, buscando a palavra certa.
No ano passado, eu estaria desesperada por essa palavra como um
cachorro faminto à espera de um osso. Cabeça inclinada. Salivando pelos
adjetivos que ele me ofereceria como um petisco. Ávida pelas palavras que
tinham o potencial de me deixar nas nuvens ou no fundo do poço.
Nesta tarde, porém, só fico esperando.
“Diferente. Do que eu imaginava. Com base no que você tinha
mostrado antes. Enfim, eu gostei.”
“Obrigada.”
“Eu acho mesmo que você ainda vai longe com a sua escrita,
Samantha. Acho que ela vai lhe proporcionar um monte de coisas boas.
Sempre achei.”
Ele volta a sorrir. O silêncio se instala outra vez, mas não faço nada
para preenchê-lo. Não o preencho com absolutamente nada enquanto
damos as costas e nos permitimos ser absorvidos por outros grupinhos de
pessoas.
Ou não exatamente absorvida no meu caso, e sim gentilmente
capturada. Por um braço envolto em seda. Ursula, feliz da vida e
ligeiramente embriagada em sua iridescência primaveril, rodeada por um
grupinho de garotas quebradas. Quatro corpos pálidos e rosados, todos
feridos. Quatro rostos dopados que se contorcem quando tentam esboçar
um sorriso falso. Para mim.
Oi, Samantha.
Não retribuo o sorriso.
Depois que elas foram derrubadas, depois que o cervo saltou em
direção às árvores, eu fui embora, deixando o machado jogado na grama
úmida e as quatro estiradas em meio à névoa do amanhecer. Assim que
cheguei ao apartamento, fiquei esperando a ligação da polícia. Do reitor.
Esperei a ligação de seus advogados me dizendo que a gente iria resolver
isso no tribunal, esteja avisada. Mas ninguém ligou. Eu estava livre para
olhar pela janela, as mãos vazias espalmadas ao lado do corpo, às vezes
contemplando meu próprio reflexo, às vezes observando os tijolinhos e uma
fatia do céu, às vezes as duas coisas, pelo tempo que quisesse. Para
sempre, quem sabe.
Mas não foi isso que fiz. Passado um tempo, voltei para aquela casa. A
casa dela. Nossa casa. Minha casa. Recolhi os cadernos no chão do sótão.
Subi no telhado onde dançávamos. Concluí a história. Lancei um ou outro
olhar para a árvore que ele deve ter plantado no cantinho do jardim. Onde
eu a enterrei.
“Eu estava prestes a parabenizar minhas meninas”, começa Ursula,
“minhas pioneiras, mas aí me dei conta: não podemos brindar sem a
Samantha, não é?”
De jeito nenhum, murmuram elas por educação. As vozes reduzidas a
meros sussurros, as taças de champanhe frouxas entre os dedos enfaixados.
“Parabéns”, chegam a dizer para mim bem, bem baixinho. Como se
elas não tivessem matado minha alma gêmea. Como se eu não tivesse
conjurado um homem-animal demoníaco para destruir a alma de cada
uma. Como se fôssemos apenas cinco jovens formandas. A primeira turma
só de mulheres da Warren. Somos tão precursoras, não somos?
Não parabenizo ninguém. Não me junto ao brinde falso. Em vez disso,
apenas observo enquanto elas bebericam o champanhe como se a garganta
doesse a cada gole.
“Então, o que aconteceu com vocês mesmo?”, pergunto.
“Um acidente durante a prensagem do livro”, sussurra Caroline. Seu
cardigã clarinho não consegue esconder as cicatrizes de me coma
desbotadas no peito. Ela tingiu o cabelo de loiro outra vez, mas também
não é o suficiente para esconder aquele tom pálido e doentio de roxo que
ainda aparece a depender da luz.
“Um acidente durante a prensagem do livro”, repito. “Quem diria que
uma prensa poderia causar tanto estrago.”
Elas me fuzilam com o olhar. Ou tentam, pelo menos. É difícil para
elas. Muito difícil com todos os Tic Tacs que estão tomando para aliviar a
dor. Deixando-as suspensas enquanto flutuam, talvez para sempre, pela
névoa do céu de arco-íris.
“Eu disse a mesmíssima coisa, Samantha”, comenta Ursula. “Não que
não tenha acontecido um ou outro acidente ao longo dos anos, claro.
Tivemos alguns. Mas desse nível…”
E então meneia a cabeça.
“Acho que às vezes as pessoas passam dos limites”, ofereço, como uma
pérola de sabedoria. “E, sabe como é, às vezes chega a um ponto em que
nem os amigos conseguem trazer a pessoa de volta.”
“Afinal, como era esse projeto em que vocês estavam trabalhando,
hein, meninas?”, pergunta Ursula. Ela olha para as quatro, pensativa,
paciente. As sobrancelhas arqueadas em preocupação maternal.
Elas entram em pânico. Começam a respirar pela boca. Mal
conseguem trocar olhares. Talvez tenham tentado se comunicar por
telepatia através da névoa rosada de sua mente coletiva. Por um momento,
chegam até a olhar para mim em busca de ajuda.
De repente, Eleanor derruba a muleta, que cai aos meus pés, a alça
voltada para mim como um apelo.
Eu a observo ali, estirada na grama.
Depois viro o resto do meu champanhe e dou as costas, deixando-as
sozinhas no gramado. Jogo a taça vazia por cima do ombro, sem olhar para
trás. Afasto-me da tenda sob a luz ofuscante do entardecer, passando uma
última vez pelo tule esvoaçante que acaricia meu ombro como uma lufada
de seda preta.

Há um cisne no lago hoje. Tirando isso, nada mudou desde a última vez
em que estive aqui. O banco está vazio e bambeia de um jeito perigoso
quando me sento. Fumo um cigarro, o primeiro de cinco milhões, imagino.
Ouço os barulhos da festa ao longe. As toalhas brancas ondulando ao
sabor da brisa. O gramado florido apinhado de lixo de gente rica. As mães
que não param de tirar fotos. Os pais com as mãos enfiadas nos bolsos,
parecendo um pouco perdidos, mesmo que não estejam. Os irmãos mal-
encarados. Os formandos de beca e capelo, posando para as fotos diante
dos portões, diante dos prédios onde ela só pisou uma vez, por minha
causa.
“Você sabe que eu só venho aqui por sua causa.”
Tudo isso se foi. Deixando-me para trás. Como as palavras que
derramei no chão da sala do Leão. Então deixe-as lá. Observo o cisne
deslizar pela superfície da água. O que eu achei? Que ela fosse estar aqui?
“Samantha! Ei!”
Jonah se aproxima de beca e capelo, acenando para mim. Deve ter sido
o único da nossa turma que participou da cerimônia formal da formatura.
Ele sorri enquanto caminha na minha direção, deixando um rastro de
fumaça de cigarro, e segura o que parece ser um copo d’água.
Retribuo o sorriso. Aceno.
“Procurei você por toda parte, Samantha! Fiquei com medo de você já
ter ido embora.”
“Não, ainda estou aqui. Você realmente foi com tudo na beca e no
capelo.”
Ele sorri.
“Pois é.”
“Foi divertido?”
“Para falar a verdade, a gente meio que só ficou parado. Ah, aliás, eu
tirei algumas fotos suas recebendo o diploma.”
“Sério?”
“Ué, claro que sim. Você é minha amiga. Ei, o que foi?”
Olho para o chão para que ele não veja meu rosto.
“Nada.”
“Tem certeza?”
“Tenho. Só estou feliz. Feliz que você seja… meu amigo.”
“Quer ver as fotos?”
“Pode ser.”
Ele pega o celular e começa a me mostrar.
“Ah, esta aqui é boa. Você está segurando o diploma falso com tanta
força. Chega a ser engraçado, olha.”
“Pois é.”
“Não esquenta, eu também quase esqueci que era falso. Mas aí o Eric
me refrescou a memória bem a tempo.”
Ele acena para Eric e os outros poetas que ainda estão aglomerados
perto da tenda. Quatro homens de preto com barbas de tamanhos variados
que parecem fazer tudo, até piscar, em perfeita sincronia. Seus olhares de
puro desprezo chegam a ser palpáveis. Mas Jonah continua acenando
como se não fosse nada. Completamente alheio. Ou talvez não esteja tão
alheio assim. Talvez perceba e só não dê a mínima. Deve ser bom.
Ele sorri para mim. Seus olhos não mudam de tom. Os dois de uma cor
só.
“Então, para onde você vai agora?”, pergunta.
“Sinceramente, eu não faço ideia. Bem, o futuro é incerto, né? Talvez
eu passe mais um tempinho aqui, mas depois… Não sei.”
Seu sorriso muda e ele cutuca a lateral do meu corpo.
“Eu estava falando de hoje à noite. Para onde você vai hoje à noite?”
“Ah, acho que vou só ficar em casa mesmo.” Nossa casa. “Subir no
telhado e comemorar com os padres guaxinins.”
Esperar o cachorro dar lugar ao lobo. Sentir o vento acariciar meu rosto
como as mãos de floresta dele. Admirar aquele cantinho do jardim onde
uma árvore começou a nascer.
“Padres guaxinins, é? Parece legal.”
O cisne chega mais perto, contornando a beira do lago. Penso naquela
manhã de primavera, pouco antes do amanhecer. Como ela apareceu ao
meu lado no banco. Como de repente me senti tão cheia de possibilidades.
Nela enxerguei um mundo maravilhoso, uma mão estendida, uma pessoa
que eu sabia que iria amar. E eu não fazia ideia. E não saber era tão
maravilhoso e terrível ao mesmo tempo. Olho para o cisne deslizando junto
à margem. Talvez eu consiga fazer outra vez. Imaginá-la de volta. Viver para
sempre nos telhados e nas árvores da minha mente com outra versão dela
ao meu lado. Agarrar sua mão enluvada e, desta vez, não soltar nunca mais.
E em seguida vejo o cisne se afastar sob a sombra trêmula.
“Você pode ir comigo”, digo a Jonah. “Se quiser.”
Baixo meu olhar para a lama no chão.
“Claro, Samantha”, responde a lama. “Eu vou adorar.”
Agradecimentos

Sou extremamente grata a Ken Calhoun, Alexandra Dimou, Rex Baker,


Chris Boucher, Lynn Crosbie, Emily Culliton, Kate Culliton, Theresa
Carmody, McCormick Templeman, Jennifer Long-Pratt, Ian Nichols e
Mairead Case por sua amizade, leituras esclarecedoras e apoio; à equipe
maravilhosa da Viking — Lindsey Schwoeri, Andrea Schulz e Gretchen
Schmid — e à incrível Nicole Winstanley da Penguin Canadá por sua
dedicação e seu empenho; à minha brilhante turma de ficção da
Universidade de Denver — Vincent Carafano, Mark Mayer, Thirii Myint,
Natalie Rogers, Rowland Saifi e Dennis Sweeney —, por terem lido os
primeiros rascunhos no seminário; e ao corpo docente da universidade —
Laird Hunt, Brian Kiteley, Bin Ramke, Adam Rovner e Selah Saterstrom
—, por seus comentários generosos e atenciosos.
Serei eternamente grata a Bill Clegg por ter acreditado neste livro e o
deixado melhor.
Também sou grata aos meus pais, James Awad e Nina Milosevic, pelo
amor e pelo apoio incansável.
Um agradecimento muito especial a Jess Riley, por ser uma das
primeiras defensoras deste livro e uma das amigas mais incríveis e
parceiras que tenho.
Por fim, agradeço a Ken Calhoun, mais uma vez, por tudo.
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Copyright © 2024 by Editora Globo S.A. para a presente edição
BUNNY © Mona Awad, 2019

Publicado originalmente por Viking, um selo da Penguin Random House LLC. Direitos de tradução
adquiridos por intermédio de MB Agencia Literaria SL. e The Clegg Agency, Inc., USA.

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em
qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada
ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº
54, de 1995)

Título original: Bunny

Editora responsável: Amanda Orlando


Assistente editorial: Isis Batista
Preparação: Theo Cavalcanti
Revisão: Mariana Donner, Carolina Rodrigues e Clarissa Luz
Diagramação e adaptação de capa: Carolinne de Oliveira
Imagem de capa: Kolesnikov Vladimir/Shutterstock
Lettering: Grace Han
Editora de livros digitais: Ludmila Gomes
Produção do e-book: Ranna Studio

1ª edição, 2024

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ

A974b
Awad, Mona
Bunny / Mona Awad ; tradução Gabriela Peres Gomes. — 1ª ed. — Rio de Janeiro: Globo
Livros, 2024.
336 p.; 23 cm.

Tradução de: Bunny


ISBN impresso: 978-65-5987-169-8
ISBN digital: 978-65-5987-166-7

1. Ficção canadense. I. Gomes, Gabriela Peres. II. Título.

24-88048 cdd: 819.13


cdu: 82-3(71)
Meri Gleice Rodrigues de Souza — Bibliotecária — crb-7/6439

Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por Editora
Globo S.A.
Rua Marquês de Pombal, 25 — 20230-240 — Rio de Janeiro — RJ
www.globolivros.com.br

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