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ensaios 122

Benedito Nunes
Escritor e Professor Universitário (UFPa)

PASSAGEM
PARA 0 POÉTICO
(Filosofia e poesia em Heidegger)
Coordenação editorial
Maria Carolina de Araújo
Capa
Ary Almeida Normanha
Edição de arte (miolo)
Antônio do Amaral Rocha
Produção gráfica
Elaine Regina de Oliveira
Preparação dos originais
Sueli Campopiano

Conselho editorial
Alfredo Bosl, da Universidade do Paulo
Azls SinMio. da Universidade de Sío Pauto
Flávio Vespaslano Di Giorgl, de PwiMçhi ttofversWado Csftíffce
Haqulra Osakat», do Universidade do Campinas
Rodolfo llari. da Universidade da Campinos
Ruy Galvflo de Andrada Coelho, da Universidade do Sio Paulo

ISBN 85 08 01571 2

1986
Todos os direitos reservados
Editora Atica S.A. — Rua Barão de Iguape, 110
Tel.: (PABX) 278-9322 — Caixa Postal 8656
End. Telegráfico "Bomlivro" — São Paulo
SUMÁRIO

Nota prévia ............................................................................. ,7


Introdução — A trajetória de Heidegger............................... 9

Primeira Parte
A caminho de Ser e tempo
1. O contexto biográfico-histórico .................... .................. 18
Excurso — Intermezzo político ................... 29
II. O problema e a questão do ser ....................... .................... 34
III. O que é fenomenologia?...................... ... 46
IV. O Dasein ....................................... 63

Segunda Parte
Do ser ao tempo
V. Analítica do Dasein ...................................... 78
VI. A lida cotidiana ............................................. 88
1. O mundo circundante e os entes .................... 88
2. Aproximação proustiana................................ • . 95
3. A gente (das Man) .................... 97
4. As dimensões da abertura................................... 98
5. A queda na linguagem................................... 102
VII. Angústia e liberdade ................... 106
1. Dos sentimentos............................. 106
2. Conceito de angústia ......... 108
3. Poder-ser e cuidado.............................. -- UI
4. Liberdade e Nada ................ 113
VIII. Do cuidado à temporalidade ..................................... 117
1. O ser para a morte........................... . . . ... 117
2. A pré-meditação da morte ................................................. 121
3. A voz da consciência e a culpa.......................................... 124
4. O poder-ser próprio ............. 126
5. Maiêutica ao revés................................................................ 130
IX. Temporalidade e historicidade................... 132
1. Temporalidade e cuidado......................... , , , 132
2. Tempo e temporalidade ......................... 134
3. O tempo originário finito........................ 138
4. A temporalidade e o Eu........................................................... 141
5. Existência e historicidade ........................................ 143

Terceira Parte
Do tempo ao ser
X. A Ontologia fundamental ................................................. 152
1. A finitude do Dasein............................................................ 152
2. A revolução heideggeriana de Kant.............................. 157

XI. A idéia de fundamento .......................................... 166


1. A proposição e a verdade.......................................... 166
2. A interpretação e o discurso ............................................ 170
3. Epistéme, alétheia .................................... .................... 176
4. A essência do fundamento ...................................................... 182
5. O radicalismo ontológico e a viragem............................. 185
Excurso — Reflexão sobre a linguagem ................................ 193
XII.A essência da verdade ......................................... 201
1. O § 44 de Ser e tempo ....................................... 201
2. Verdade e liberdade ....................................................... 207
3. A essência da verdade e a errância........................ ...... 209

XIII.A viragem: verdade da essência .................................. 214


1. Os pré-socráticos e a Filosofia.......................................... 214
2. O esquecimento da diferença ............................................. 222
3. Pensamento do ser ..................................................... 225
XIV. Réquiem alemão para a Filosofia.................... 230
1, A vontade de potência............................... 230
2. A arte no tempo do niilismo........................................ 235
3. O fim da Filosofia .................................... .. ......... 239
XV. Da arte como poesia ......................................... ............... 249
1. A Estética moderna ............... 249
2. A “destruição” da Estética ................ .................. ...... 255
3. Poesia e linguagem................................................... • . 259
XVI. A residência poética .......................... 264
1. Os temas de Hõlderlin ...................................... -- 264
2. Poesia e pensamento ............................................ ....... 275
Epílogo — O novo começo ....................................................... 279
Referências bibliográficas ................... ■ ■ 295
1. De Heidegger ......................................................... 295
2. Sobre Heidegger ..................................... 299
Coletâneas e entrevistas ....................................... 299
Livros e outras publicações .............................. 299
Dedicado à Maria Sylvia, que deu mão forte aos
trabalhos deste livro;
— também a Maria José Silva e Franz Lohn,
que me ajudaram a escrevê-lo;
— ■ a Silviano Santiago, que insistiu na
realização desta obra;
— e ainda a Flávio Andrade, seu primeiro leitor,
antes que ela existisse.
NOTA PRÉVIA

Traduzimos Existencial por íxlr/ew/fvo, cm vez de c.râtCHcffll,


palavra que em nossa língua tem comurncntc emprego adjetivo, mais
compatível com o uso de ExtsíertzfcJI, correspondente a cxisteacielle,
em francês.
Preferimos empregar o termo Dasein sem traduzi-lo.
As traduções de tantos outros termos essenciais e dos trechos
de Heidegger citados acompanham a nossa leitura da obra do
filósofo, em confronto, principalmente, com as versões disponíveis
para o português da autoria dc Errpldo Stcin, Emmanuel Carneiro
Leão, José Henrique Santos e Maria do Carmo Tavares dc Miranda.
Abreviações das obras de Heidegger citadas

ED — Aus der Erfahrung des Denkens


EHD — Erlãuterungen zu Hõlderlins Dichtung
EM — Einführung in die Metaphysik
FS — Frühe Schrijten
GL — Gelassenheit
HW — Holzwege
ID — Identitat und Differenz
KPM — Kant und das Problem der Metaphysik
N — Nietzsche
PLW — Platons Lehre von der Wahrheit
SB — Die Selbstbehauptung der deutschen Universitat
SG — Der Satz von Grund
SZ — Sein und Zeit
UH — Über den Humanismus
us — Unterwegs zu Sprache
VA — Vortrãge und Aufsdtze
WG — Von Wesen des Grundes
WHD — Was heisst Denken?
WIM — Was ist Metaphysik?
WM — Wegmarken
WW — Von Wesen der Wahrheit
ZSD — Zur Sache des Denkens
INTRODUÇÃO — A TRAJETÓRIA
DE HEIDEGGER

A publicação de Ser e rcmpo (Scin und Xcit), em 1927, nos


Anais de investigação fenomett&lógica (Jahrbuch fíir Phãnpmeno-
logischc Forschung), marcou o início da longa e penetrante influên­
cia do pensamento de Martin Heidegger cm nossa época. Pelo seu
tema — a questão do sentido do ser — e pelo veículo que o divul­
gou — os Anais, editados por Max Niemeyer, sob a tutela de
Edmund Husscrl, o fundador da Fenomenologia —, esse livro, que
se propunha a investigar o mais antigo dos problemas filosóficos,
parecia compartilhar da tendência para 0 retorno à especulação
metafísica que empolgou outros pensadores na década de 20, a
exemplo de Max Scheler e Nicolai Hartmann, que passaram, como
Heidegger, pela escola fenomenológiçn.
Ser e tempo era, porém, um estranho tratado, como dele diria
o próprio autor. Previsto em duas partes, saiu incompleto, con­
tendo apenas duas das três seções programadas da primeira parte,
em desacordo com o plano delineado em sua introdução. E incom­
pleto permaneceu, scin que a segunda parte da obra c muito menos
a terceira seção da primeira, com o título inverso de Tempo e ser,
tivessem vindo a lume, Contudo o mais estranho foi que, voltando
ao problema-mor da tradição filosófica, rejeitado ou neutralizado
pelas correntes modernas, esse fragmento de uma obra segmentada
revolveu a especulação metafísica a que aparentava retornar.
Mais destrutivo do que restaurador, esse retorno singular de­
corria da questão do sentido do ser, forma original em que se
cristalizou a reflexão de Heidegger, ao longo de dez anos, sobre o
clássico problema ontológico. O inacaba mento do texto, em seu
caráter de fragmento, era o sinal exterior da incompletude da in­
vestigação a que se endereçava. A parte editada de Ser e tempo
representava só uma etapa preliminar, preparatória e limitada, a
caminho da questão que a obra toda tinha por fim elucidar.
10

De fato, as duas seções publicadas (Analítica do Dasein e


Dasein e temporalidade) compõem o perfil de uma Ontologia fun­
damental, que tem por objeto imediato o homem, considerado do
ponto de vista de seu ser. A Analítica descreve fenomenologica-
mente a existência desse ente que nós mesmos somos e que Hei-
degger denominou Dasein para descomprometer-se de toda con­
cepção prévia acerca da “natureza humana”. O fenômeno primor­
dial da temporalidade, em que a Analítica desemboca na segunda
seção, serve de limite à função preparatória que deveria desem­
penhar. Constituída por esses dois contrafortes descritivos, a On­
tologia fundamental conduziría, a partir daí, à verdadeira meta em
direção à qual a investigação se lança: a questão do sentido do
ser em geral.
Primeiro momento de uma trajetória dirigida para esse alvo,
quando ainda não completamente definido, mas que atuou como
um pólo de tensão, delineando, ainda antes de Ser e tempo, o
âmbito em que o pensamento de Heidegger moveu-se desde os
escritos da fase juvenil, a Ontologia fundamental, assente na pers­
pectiva antropológica da Analítica, foi também um ponto de fuga,
onde a mesma investigação se interrompeu e se desligou da conti­
nuação que teria recebido na parte inédita da obra. Retomada a
investigação nesse ponto de fuga, num segundo momento que a
completou, inverteu-se a direção até ali seguida que continuaria
na terceira seção da primeira parte, cuja publicação foi sustada.
Tal descontinuidade, que se refletiu no estilo e no gênero dos escri­
tos posteriores, mais implosivos do que explosivos, em geral ensaís-
ticos e de acentuado cunho poético, separou em dois ciclos a
vigência histórica do pensamento de Heidegger.
O primeiro ciclo é preenchido pela influência da Ontologia
fundamental, recebida como expressão de uma Filosofia que cen­
tralizava as várias tendências existenciais até então dispersas, rati­
ficando a transformação da Metafísica numa Antropologia filosó­
fica, preconizada antes de Ser e tempo por Max Scheler. Deve-se
a boa e justificada sorte dessa atitude receptiva ao conteúdo antro­
pológico da Analítica, que se irradiou, independentemente do cará­
ter preparatório que o autor lhe atribuira dentro do processo de
uma investigação interrompida e incompleta, ao domínio das ciên­
cias humanas, e que atingiu, também, a Poética e a Teologia.
As estruturas interpretativas elaboradas pela Ontologia funda­
mental, que se resumem na idéia de que o homem, como Dasein,
é um ser-no-mundo, e, como ser-no-mundo, temporal e histórico,
p.enetraram a Psicanálise com os trabalhos de Binswanger e a Poética
com os de Emil Staiger. A tendência de desmitologização na Teo­
logia firmou-se com a Hermenêutica de R. Bultmann, inspirada
11

pela historieidadc da existência. Nas mesmas estruturas Sartre ba­


seou o arcabouço especulativo de O Ser e o Nada (L’Être et le
Neant). Traduzido por realidade humana (realité humaine), o
conceito de Dasein se associaria, nesse tratado, ao ser da consciên­
cia — ao Pour-soi — no quadro de uma Orítologia fenomenoló-
gica, que combina a linha distintiva da Mctjtflhlca moderna, de
origem earlesiana, com a dialética da consciência em Hegel. Ale­
xandre Kojêvc apoiar-sc-id na Analítica para interpretar a dialética
hegeliana como Antropologia filosófica. E foi da mesma fonte que
Herbert Marcuse extraiu as motivações filosóficas de sua tentativa
de reformulação antropológica do marxismo. Nela também Mau-
rice Merleau-Ponty respaldou sua Fenomenologia da percepção
(Phenomenologie de la perception), que chega a uma interpretação
global do pensamento husserliano, estudado por Sartre na Alemanha
entre 1933 e 1934, quando Heidegger já havia publicado mais
quatro ensaios — Kant e o problema da Metafísica, Que é Meta­
física?, Da essência do fundamento e Da essência da verdade —,
o último dos quais divergia frontalmente do rumo da Ontologia
fundamental de Ser e tempo.
Fonte principal da Filosofia de Sartre, que se autodenominou
existencialismo, e da Filosofia de Merleau-Ponty, que buscou rea-
proximar-se de Husserl, particulanpentc dos derradeiros trabalhos
do criador da Fenomenologia, sensibilizados pelas teses de Ser e
tempo, a investigação de Heidegger, que tomou nova direção na
década de 30, ingressava, no entanto, passado o período da Segunda
Guerra, no panorama das Filosofias da existência, ao lado das
concepções dc pensadores como Karl Jaspers c Gabriel Marcei,
que não participaram da corrente íeiiomcnológica. Separado, sob
o aspecto ético-religioso, dc Karl Jasptrs, de quem, contudo, se
aproxima pela filiação comum a Kicrkegaard, e distante de Gabriel
Marcei, que descende filosoficamente da Teologia cristã da encar­
nação, Heidegger torna-se o êmulo de Sartre do ponto de vista do
ateísmo, elevado, em ambos, ao nível da problemática existencial
que os une. Tal foi o paralelo que se converteu num lugar-comum
da Filosofia contemporânea.
O segundo ciclo de vigência histórica do pensamento hei-
deggeriano começa depois que o próprio filósofo alemão contestou
esse paralelo, num escrito epistolar de 1946 — Sobre o humanismo,
endereçado a Jean Beaufret —, provocado pela então recente con­
ferência de Sartre, O existencialismo é um humanismo (L’existen-
cialisme est un humanisme). Entretanto não era a primeira vez
que o fazia. Conquanto existência e Kierkegaard estejam presentes
em Ser e tempo, dissera ele, em 1937, à Sociedade Francesa de
Filosofia, as posições firmadas nesse livro “não poderíam classifi­
12

car-se como Existenzphilosophie (Filosofia da existência). Mas


esse Ciro dc interpretação será provavelmente difícil de afastar por
enquanto”. E acrescentava ainda, “a questão que tnc preocupa niio
é a existência do homem e sim a questão du ser cm seu conjunto
e enquanto tal” Nem Nielzsrhc nem Kierkcgaard, c muito menos
Jaspers, trataram de uma tal questão.
Como se tivesse soado a hora dc corrigir o erro dc interpre­
tação, a carta Sobre o /tummfomo, alem de repelir a vinculaçào
existencialista, expõe a mudança de perspectiva na propositura da
questão do ser que caracteriza o segundo momento da trajetória
dc Heidegger, c cuja possibilidade se poderia antever nas conside­
rações finais do último parágrafo dc Ser e Irmpo. A descrição do
Dasein seria apertas um caminho para a única meta, que é o “desen­
volvimento completo da questão do ser em geral (...) A presente
investigação acha-se a caminho de semelhante meta. Mas onde sc
encontra no momento?” (SZ, p. 437). Encontrava-se diante do
tempo como temporalidade, do tempo originário, que constitui a
estrutura fundamental do Dasein. Haveria, porém, algum caminho
que levasse “do tempo originário até o sentido do ser? Revela-se o
tempo também horizonte do serl” (SZ, p. 437). Essa conclusão
interrogativa, que suspendia concomitantemente o resultado inte­
lectual da pesquisa e o acabamento da obra, c que implica uma só
pergunta acerca da viabilidade da passagem à questão rfo ser em
geral através do caminho trilhado até aquele ponto, atesta a ocor­
rência dc um penoso processo de interpretação entre o texto edi­
tado c o texto inédito, prccisamentc a terceira seção, não publi­
cada, da primeira parte, Tempo c ser, c que se inílctiu crilicamente
sobre Ser e tempo, sujeitando a um outro ângulo de incidência
aquela questão primordial, antes elaborada segundo a perspectiva
antropológica da Analítica, dada como provisória.
"É nesse ponto”, diría Heidegger, referindo-se a Tempo c ser,
“que tudo sc inverte. Esta seção não foi publicada porque o pen­
samento não conseguiu exprimir, de maneira suficiente, uma tal
viragem no idioma da Metafísica" (UH, p, 17), No estado da
questão, tal como ela fora formulada em Tempo c ser, interferia
o idioma da Metafísica, mesmo depois de abalada a especulação
tradicional. E a inversão de que Heidegger falava íoi a viragem
da perspectiva antropológica, arraigada na Metafísica. Seria pre­
ciso, conforme expressou em Da essência da verdade, escrito em
1930, abandonar, dali por diante, “toda subjetividade do homem
enquanto sujeito. . .” (WW, p. 27), ainda mantida nos textos de

1 Appendice. In: Wahl, Jean. Existence humaine et transcendence. Neu-


châtel, 1944. p. 134-5.
13

1929 antes mencionados, Kant e o problema da Metafísica, Que é


Metafísica? e Da essência do fundamento.
A partir de então Heidegger passaria a considerar o sentido
do ser, que chamou de verdade do ser (Wahrheit des Seins), já
determinante como acontecimento histórico e inseparável do tempo,
a perspectiva de toda invesligaçaü. Questão de fundo, interesse,
encargo ou destino dt> pensamento — seu assunto e s«u lema
únicos —, o ser torna-se, como matéria exclusiva da indagação
heideggeriana, menos um centro de especulação teórica do que o
alvo de uma prática meditante, dedicada a perquiri-lo desde o plano
da linguagem, caminho preferencial, ao plano histórico, quer na
época da cultura grega, em que despontou a Metafísica enquanto
forma dominante de concepção do Ocidente europeu, quanto na
época atual, caracterizada pela expansão planetária da técnica, em
que se prenuncia a superação da mesma Metafísica.
“Pensar é o engajamento para e pelo ser”, afirma Heidegger
na famosa missiva que traz a versão resumida da posição filosófica
que retificava e completava a investigação lançada em 1927. Essa
mudança, que se consolidou nos escritos posteriores a 1930 —
alguns dos quais só tardiamente publicados em Caminhos do bosque
(Holzweg) —, ao longo da década tenebrosa da Alemanha durante
a qual escassa ficou a audiência do «filósofo no país, e reduzida no
estrangeiro a receptividade à sua obra — até pela implacável
nemesis política que lhe pediria contas de suas curtas e equívocas
relações com o nazismo —, surpreendeu os leitores de Ser e tempo,
mormente os intérpretes de língua francesa, que, havendo fixado
e difundido a imagem do Heidegger existencial, entenderam que
um outro, um segundo Heidegger surgira, dificilmente classificá­
vel, entre poeta e místico, a quem não mais colaria o nome de
filósofo e para quem a própria Filosofia, identificada à Metafísica,
tornara-se suspeita. Qualquer que seja, porém, o alcance da nova
direção, o certo é que entre os dois a diferença está no modo de
conduzir o mesmo problema fundamental que os enlaça. Se é
somente através do primeiro que se pode chegar ao segundo, não é
menos verdadeiro, como Heidegger afirmou a Richardson, que o
primeiro só se tornou possível em função do último 2.
Pode-se afirmar também que o conceito que permanece, ligan­
do esses dois momentos de uma trajetória filosófica única, compa­
tibilizando as duas perspectivas, é o objeto da própria Analítica,
ou seja, o Dasein — ser aí, na tradução mais aceita —, em que se

2 Cf. Heidegger, M. Preface/Vorwort. In: Richardson, William I., S. J.


Heidegger — through Phenomenology to thought. 3. ed. The Hague, Mar-
tinus Nijhoff, 1974. p. XXII. Edição bilíngüe.
14

reconfigurou, sob a nova e original forma da questão do sentido ou


da verdade do ser, o antigo problema ontológico. Heidegger recon-
ceptualizou, servindo-se da significação literal de seus elementos
componentes, da (aí) e Sein (ser), uma palavra corrente da língua
alemã, Dasein, cujo significado comum de existência determinada
Kant e Hegel relacionaram, de maneiras diferentes, à categoria de
Realidade (Wirklichkeit). Nesse conceito de Dasein, que é a chave
principal de Ser e tempo, veio a fixar-se todo um processo crítico
de confrontação com as várias tendências e correntes que confluí-
ram, a partir do início do século, no meio universitário germânico.
Interpretando a Fenomenologia de Husserl e a Hermenêutica
de Dilthey, o pensamento de Heidegger, que estampa a convergên­
cia de Kierkegaard, de Hegel e de Nietzsche, sai da mesma “extra­
ordinária encruzilhada” 3 de que se originou a Filosofia existencial
na França e na Alemanha. Heidegger estabeleceu com esses pen­
sadores, sobretudo com Nietzsche e Hegel, e com o poeta Hõlderlin,
influência decisiva no segundo momento, um novo relacionamento,
por força da questão de fundo, que se apoiou, desde o começo,
numa retomada dialogai dos pensadores gregos, principalmente os
pré-socráticos retraduzidos.
A reapropriação do idioma grego, considerado língua original
e originária da Filosofia, que autorizou Heidegger a traduzir Aris­
tóteles e os pré-socráticos, segundo o entendimento de certas pala­
vras fundamentais, em desacordo com a orientação filológica con­
sagrada, exerceu um papel de primeira ordem na questão do sentido
do ser, que pôs em causa a Teoria do Conhecimento. Distinta do
problema ontológico, essa questão abrange e transgride, ao mesmo
tempo, o campo da Metafísica, com o qual entretém relações sin­
gulares através do retorno aos gregos — réplica de Heidegger ao
“retorno às coisas” da Fenomenologia husserliana, em nome da
experiência “histórica” inaugural do pensamento, entrevista nos
pré-socráticos e que subjaz oculta na própria Filosofia. Assim a
tradução, principal procedimento hermenêutico da segunda fase,
que visa trazer à superfície dos textos filosóficos, antigos e moder­
nos, aquela experiência, sujeita a uma série de transformações, será,
para Heidegger, como meio de recuperar e depurar uma primeira
tradição de que os pré-socráticos foram os detentores, a forma por
excelência de relacionamento dialogai com os filósofos, independen­
temente dos sistemas doutrinários que a História da Filosofia nos
apresenta. As palavras dos pensadores gregos, de Anaximandro,

3 Ricoeur, P. Quelques figures contemporaines; Martin Heidegger. In:


Bréhier, E. Histoire de la Philosophie allemande. 3. ed. Paris, J. Vrin,
1954. p. 239. Appendice.
15

de Heráclito e de Parmênides, mas também de Platão e de Aristó­


teles, obtêm a primazia nessa relação dialogai, presidindo e regu­
lando a matéria da interpretação e a visada hermencuiica.
Vale dizer, porem, que a subsidiada pela Etimologia,
não adquiriría uma tal relevância hermenêutica no chamado segundo
Heidegger, sem o vínculo cnlrc linguagem c pensamento — entre
palavra c ser — constituído it margem da teoria, já determinante
da perspectiva antropológica da Analítica, c que a prática mcdilanlc
hcidcggeriana tematiza, como a corroborar o dito de Hegel dc que
as “formas do pensamento estão antes expostas e consignadas na
linguagem do homem” 4.
O sistema de Hegel foi o pólo de permanente conlrastação a
que se expôs a investigação dc Heidegger desde a fase anterior a
Ser e tempo, e que continuaria na História do ser, dentro da qual
a prática medítante da segunda fase, modo de pensar arrimado à
linguagem e feito experiência da linguagem, absorveu a Ontologia
fundamental. Conduzida por um empenho dc “genealogia crítica
de nossa aventura ocidental”0, a História do ser, também História
da Metafísica, devassada em seus princípios, interroga a sociedade
atual na totalidade de suas determinações, questionando-lhe o regi­
me de saber e de poder e os seus ideais religiosos, éticos e estéticos,
Numa singular trajetória, que parte do mais inatual — a questão
do ser —, Heidegger alcança o mais atual.
investigação extremada, que tenia falar daquilo mesmo que o
discurso filosófico especulativo condenou ao esquecimento — o ser,
o tempo c a linguagem — c que por isso não se detém nos limites
onde o pensamento deveria silenciar, a prática mediante heidcggc-
riana, já excedentária à Filosofia e laborando na sua negação,
alcançaria, enfim, por um dizer poético, a inversão de Ser e tempo
para Tempo e ser como virada do idioma metafísico. Expressão
tateante e sondagem antecipadora de um pensamento por vir, essa
virada deteria a possibilidade de uma mudança histórica profunda
nas próprias relações do homem com o ser. A revolução da lin­
guagem, consumada no dizer poético, tornar-sc-ia, com a obra
inteira do filósofo, o prólogo interrogativo e perplexo dessa mu­
dança possível, entreaberta na cena revolta do mundo atual, onde
se joga, num lance decisivo, o ser e o destino do homem, postos
em questão.

1 Preffidp da 2. ed. In: —. Ciência de la Lógica. [Wisscnwhatt der Lo£ik].


Traducción dc Augusta y Rodülíü Moadolfo. Prólogo de Rodolfo Mandolío.
Buenos Aires, Hachctte, 1956, p, 41-2. Original alcmiio.
1 POUotT, P M. Heidegger oü te retour d ta vont siltncieuse. Lalksannc.
L’Age d’Homme, 1975. p. 29,
Primeira Parte
A CAMINHO DE
SER E TEMPO
I

O CONTEXTO BIOGRÁFICO-HISTÓRICO

A formação universitária de Heidegger processou-se dentro


do período de intensa agitação intelectual que precedeu na Ale­
manha à Guerra de 1914. Foi quando, paralelamente ao reaviva-
mento de Hegel, à difusão de Kierkegaard e à penetração da obra
de Husserl, o expressionismo artístico elevou ao domínio da arte
uma visão patética e não-realística das coisas. A reação iniciada
nessa fase, ainda nos fins do século passado, contra a difusa men­
talidade positivista, em que se escudou o neokantismo consolidado
na Alemanha desde 1870, condensou-se na crítica da racionalidade
científica, absorvida pelas ciências da Natureza. Era, sobretudo,
a crítica defensiva da experiência vital e psíquica do ser humano,
que caracterizou a posição típica, amplamente diversificada, da
Filosofia da vida (Lebensphilosophie).
Muito menos uma escola filosófica do que um fenômeno com­
plexo e singular da cultura germânica, remontando, através do
imediato influxo de Nietzsche, então em pleno crescimento, à antiga
oposição, aberta já no Sturm und Drang, entre a rigidez do enten­
dimento abstrato e a fluência das forças anímicas, e que Schlegel
renovara no romantismo x, a Filosofia da vida se associaria à ten­
dência historicista em Wilhelm Dilthey — cujo livro Introdução
às ciências do espírito (Einleitung in die Geisteswissenschaften),
publicado em 1863, é uma réplica da Crítica da razão pura, de
Kant, do ponto de vista da razão histórica de Hegel — apelando,
sob diferentes formas, para o primado da experiência vital, como

1 Cf. Bollnow, O. F. Die Lebensphilosophie. Berlin/Gõttingen/Heidelberg,


Springer Verlag, 1958, p. 5-12.
19

via extra-racional de conhecimento da realidade, o que a visão


emotiva do expressionismo, configurada particularmente na pintura,
impunha às artes em geral. De novo se revigorou a correlação,
essencial ao romantismo, entre arte ou poesia ç pensamento filosó­
fico, silenciada durante a segunda metade do século XIX, e que,
diversa e diferentemente expressada por Novalis e Hõlderlin durante
a primeira metade desse? mesmo século, constituiu uma das tônicas
do voluntarismo de Nietzsche.
Essa correlação foi um dos nexos mais significativos da for­
mação (Bildung) de Heidegger. Contraída nos anos de aprendi­
zagem, prolongou-se nos de experiência, como um elemento per­
manente do horizonte intelectual do filósofo, em concorrência com
o fundo teológico de sua preparação escolástica inicial. Antes de
completar no seminário católico de Friburgo (Freiburg in Breisgau),
sob a direção dos jesuítas, o ginásio iniciado em Constança, Hei­
degger, que lera, em 1905, o Bildungroman do escritor austríaco
Adalbert Stifter, A pedra multicolor (Das Buntesteine), fez dois
achados que o marcariam profundamente: a descoberta, naquele
mesmo ano, do problema do ser na dissertação de Brentano Das
múltiplas significações do ente em Aristóteles (Von der mannig-
fachen Bedeutung des Seienden nach Aristóteles, 1862), seu pri­
meiro vínculo com a Metafísica d» Estagirita, por onde penetrou
no pensamento grego, e que lhe serviu de pista material para chegar
à obra de Husserl; e a descoberta da palavra poética nos versos
de Hõlderlin, em 1907, seu primeiro vínculo com o domínio da
linguagem, não estranho à própria Teologia. A essas fontes pre­
liminares, das mais constantes lembranças de um pensador-escritor,
poeta de sua língua, em cuja vida as datas biográficas e os aconte­
cimentos bibliográficos se tocam, acrescentar-se-ia o conhecimento
das Investigações lógicas de Husserl, que descobriu depois de ter
ingressado no curso de Teologia da Universidade de Friburgo, em
1909, quando se desencadeava, na Alemanha, o Movimento da
Juventude (Jugendbewegung), atitude de rebeldia individual pre­
cursora do expressionismo.
A Universidade de Friburgo pertencia, com mais três outras
universidades — Heidelberg, Basiléia e Estrasburgo — à província
cultural do Alto Reno.2 Destacada pela sua atmosfera liberal, o
cultivo dos estudos históricos aí centralizou a reação contra o posi­
tivismo, que notabilizou a chamada “Filosofia do sudoeste ger­
mânico” 3, a que se ligaram, além do sociólogo Max Weber, os

2 Cf. Hughes, Stuart. Consciousness and society; the reorientation of Euro-


pean social thought — 1890/1930. New York, Alfred Knopf, 1961. p. 46.
3 Id„ ibid., p. 47.
20

filósofos Wilhelm Windelband e Heinrich Rickert, e os historia­


dores Trãltsch e Meineke.
Interrompendo em 1911 o curso de Teologia, a que se desti­
nara, e fixando-se no de Filosofia, pelo qual veio a doutorar-se e
do qual tornou-se professor, o ex-seminarista Heidegger teve em
Rickert um de seus principais mestres, o que significa dizer que ele
saiu da disciplina do pensamento escolástico para a órbita da
filosofia transcendental de Kant, graças à mediação de um ilustre
representante da Escola de Baden, ala mais nova do neokantismo,
voltada para as ciências históricas e dissentindo do primeiro com­
promisso da “volta a Kant” com o positivismo, consolidado por
Hermann Cohen, de Marburgo, que interpretou a Crítica da razão
pura em sua Teoria kantiana da experiência (Kants Theorie der
Erfahrung, 1871) como um retorno aos fundamentos matemáticos
da ciência newtoniana da Natureza.
Para Rickert, tanto as ciências da Natureza quanto as ciências
históricas ou da cultura estariam subordinadas a valores, como ins­
tâncias a priori, auto-subsistentes, que se fundamentam na atividade
do sujeito transcendental concebido nos moldes do idealismo de
Fichte, e que tendem a realizar-se na vida do espírito. A despeito
dessa derivação para uma Filosofia dos valores, a Escola de Baden
permaneceu, tanto quanto a de Marburgo, nos limites da Teoria do
Conhecimento, numa ofensiva comum, que caracterizou a dominân-
cia acadêmica do neokantismo, dirigida ao mesmo tempo contra a
Metafísica e as formas de pensamento dialético. Paralelamente ao
trato com os dois problemas parciais da Teoria do Conhecimento,
o do juízo e o das categorias, de que se ocupou em suas teses —
A doutrina do juízo no psicologismo (Die Lehre vom Urteil im
Psychologismus), com que se doutorou, e a Doutrina das categorias
e da significação em Duns Scoto (Die Kategorien und Bedeutungs-
lehre des Duns Scotus), com a qual obteve a venia docendi —
e que o colocaram perante a necessidade de conciliar a Filosofia
transcendental moderna com o ponto de vista aristotélico-tomista,
Heidegger continuou os estudos teológicos, freqüentando as aulas
de Dogmática de Carl Braig, um dos últimos descendentes da tradi­
ção de Tübingen, que lhe falou “da importância de Schelling e de
Hegel para a Teologia especulativa em oposição à doutrina esco-
lástica”4. Levando-o às raízes do idealismo do século XIX, a
Teologia especulativa deu, por um lado, ao jovem pensador, a pos­
sibilidade de distanciar-se da Escolástica, entranhada em sua for­

4 Heidegger, M. Mein Weg in die Phãnomenologie [Meu caminho na Feno-


menologia], ZSD, p. 82
21

mação, e assegurou-lhe, por outro, o ângulo particular da Herme­


nêutica, através do qual se ligaria ao historicismo de Dilthey.
A noção de Hermenêutica — confessou Heidegger — era-me fami­
liar desde os tempos dos meus estudos de Teologia. Nessa época,
intrigou-me o problema do relacionamento entre a letra das Escri­
turas e o pensnmpnto especulativo da Teologia (...) Mais tarde
encontrei a denominação de Hwinenêutica em Dilthey, a partir
da mesma fonte, quer dizer, a partir dos seus estudos de Teologia
e em particular do seu trabalho sobre Schleiermacher.5

Dilthey transportou a Hermenêutica, convertida por Schlei­


ermacher numa Kunstlehre, numa técnica geral da interpretação
dos discursos escritos, que deveria complementar a crítica dos tex­
tos, ao plano metodológico das ciências do espírito. A réplica à
Crítica da razão pura na Introdução às ciências do espírito con­
sistiu em estabelecer as condições da possibilidade das ciências
culturais ou históricas, separadas epistemologicamente das ciências
da Natureza, na própria experiência histórica, concebida como
experiência da vida, ou seja, como experiência de uma realidade
que engloba sujeito e objeto, e cujos fenômenos, inseparáveis das
vivências (Erlebnis) e irredutíveis a conexões causais, concate-
nam-se pelo nexo de sentido que * implicam e que constitui a sua
própria ratio. Embora transindividuais, os fenômenos da realidade
histórica, de que as ciências do espírito formariam os conteúdos
parciais, têm origem, segundo Dilthey, na estrutura psíquica do
indivíduo, e seu conhecimento é uma compreensão da experiência
em que os produzem. Desse modo, o sistema das ciências do espí­
rito está condicionado pelas estruturas significativas das criações
espontâneas componentes do mundo histórico, que se destinam a
compreender em sua unidade consciente e reflexiva. O conheci­
mento de qualquer parcela do mundo histórico é também histórico
e reabre o processo de autognose — o conhecimento do homem
por si mesmo, compreendendo-se nas suas produções exteriores,
que são, ao mesmo tempo, formas expressivas. Ao exteriorizar-se,
a vida se objetifica e se expressa. Sua própria estrutura é herme­
nêutica. Em última análise, a possibilidade das ciências do espírito
deriva do caráter hermenêutico da experiência humana, que se
estrutura historicamente.
Esse aspecto da autocompreensividade da experiência humana
e de sua estrutura histórica, que colocava o historicismo numa nova
dimensão, foi tão importante para Heidegger quanto a intuição das8

8 Aus einem Gesprãch von der Sprache — zwischen einem Japaner und einem
Fragenden [De uma conversação da linguagem — entre um japonês e um
argüidor], US, p. 96.
22

essências na Fenomenologia, com que deparou estudando, por conta


própria, as Investigações lógicas, publicadas entre 1900 e 1902, e
de que se aproximou, em seguimento à leitura de Das múltiplas
significações do ente em Aristóteles, ao vir a saber, mediante infor­
mações colhidas em revistas filosóficas, “que o modo de pensar de
Husserl era determinado por Franz Brentano” 8.
Os começos bem modestos da Fenomenologia, que superou a
influência do neokantismo, com o qual veio a concorrer na am-
biência universitária alemã, ainda nas primeiras décadas do século
XX, encontram-se na contestação que Edmund Husserl — pro­
fessor de Gõttingen em 1901, que em 1916 passou a lecionar em
Friburgo — opôs ao psicologismo, propugnando por uma Lógica
pura. Convencido, após publicar em 1881 uma Filosofia da Arit­
mética, do caráter formal e não-quantitativo das matemáticas,
Husserl viu-se diante do problema mais geral da essência racional
da ciência dedutiva. Em contraste com a doutrina acreditada, que
ele até então adotara, do serviço insubstituível da Psicologia para
a elucidação filosófica da Lógica, percebeu a distância conceptual
existente entre o processo psicológico e a unidade lógica do pensa­
mento, ou, mais precisamente, entre o curso do pensamento como
fato natural, regido por leis empiricamente determináveis, e o plano
da validade lógica. Desta sorte, viu-se compelido a “reflexões crí­
ticas de ordem geral sobre a essência da lógica e principalmente
sobre as relações entre a subjetividade do conhecimento e a obje­
tividade do conteúdo do conhecimento” 6 7.
Nos Prolegômenos de 1900, que formam o primeiro tomo das
Investigações lógicas, o fundador da Fenomenologia distinguiu as
leis ideais, que regem o nexo de premissa à conclusão, das leis
reais, como o mecanismo associativo para o raciocínio e o assenti­
mento para o juízo, que não alcançam o grau da evidência teórica
de verdadeiros princípios. As leis ideais a priori dos conceitos, das
proposições e das categorias, que são exigências da teoria, consti­
tuem, pelo sentido que lhes é inerente, o campo da Lógica pura,
em vez do mecanismo operatório do raciocínio. Porém, mais do
que uma teoria determinada, a Lógica pura estabelece os funda­
mentos de toda teoria, e encerra, por conseguinte, as condições que
possibilitam o conhecimento em geral. Desse modo, os Prolegô­
menos à Lógica pura, título e objeto do primeiro volume das In­
vestigações lógicas, são os novos prolegômenos à ciência em geral
como teoria das teorias, que abarca, critica e corrige a concepção

6 Id., Mein Weg..., ZSD, p. 81.


7 Husserl, E. Préface de la l'ere édition. In: —. Recherches logiques; pro-
legomenes à la Logique pure. Paris, Presses Universitaires de France, 1969.
t. 1, p. IX.
23

neokantiana do conhecimento. Em uma tal dimensão, o sentido,


que incrc às leis ideais, não pode ser firmado senão através da
evidência. Mas não há evidencia sem intuição nem tampouco intui­
ção sem vivência daquilo que sc intui. Em consequência, o estabe­
lecimento da Lógica pura, com a latitude de uma Teoria do Conhe­
cimento, prolongar-sc-in no labor do filósofo, que substitui a gênese
psicológica empírica c explicativa pela origem isto
6, por uma evidência da essência (Einsich! in das Wcsscn) dos
conceitos lógicos, tal como se apresentam cm nossas vivências,
Nessa captação intuitiva, não explicativa mas descritiva, do con­
teúdo de nossas vivências, consiste a JFwctu-íA<»h, a visão ou intui­
ção fcnomenológica da essência. Depois dos retornos a Aristóteles,
a Kant, a Hegel c a Tomás de Aqui no, com que a Filosofia entào
acenava, era chegada a vez de retornar às próprias coisas (zu dem
Sachen selbst zurük). Começando pela análise das expressões e
terminando por uma elucidação do conhecimento, as seis Investi­
gações do segundo tomo da grande obra de Husserl mostram que
a Fenomenologia abrira seu caminho de volta às coisas através
da linguagem. A intuição da essência não podia separar-se das
vivências de significação que emergem da linguagem.
Já era essa questão do sentido que Hiedegger propunha, em
paralelo com a noção de valor, relativamente ao juízo, ao examinar
as teorias psicologistas, no quadro ainda neokantiano de sua tese
de doutorado antes mencionada. Mas somente no período de con­
vivência com Husserl, quando já professor trabalhou a seu lado, na
Universidade de Friburgo, num regime de mútua colaboração, pôde
ele obter das Investigações lógicas “a estimulação decisiva para o
entendimento das questões levantadas pela dissertação de Bren-
tano” 89.
Heidegger travou conhecimento com a obra de Kierkegaard
nos anos de fervura e de incitamento intelectual (erregenden Jahre)
de seu período de aprendizagem universitária, entre 1910 e 1914,
que também lhe trouxeram os poemas de Rilke, a poesia de Georg
*
Trakl e os romances de Dostoicvski. Em Kierkegaard, mais pró­
ximo de sua “proveniência teológica”, o jovem filósofo encontra
não uma Filosofia da existência, mas essa relação do homem con­
sigo mesmo, que constitui o núcleo da existência humana como
realidade singular c como interesse prioritário daquele que existe,
c da qual trata especialmente o Post scriptum às Migalhas filosó-
ficas, que é o menos teológico dos escritos kierkegaardianos.

8 Heidegger, M., Mein Weg..., p. 82.


9 Cf. id., Vorwort [Prefácio], FS, p. X.
24

Entretanto Heidegger terá aprendido muito mais acerca da


condição problemática do sujeito existente da lição teológica de
Kicrkeganrd em torno dos aspectos conflitivos da espiritualidade
religiosa: a dialética dos estágios da personalidade, a paixão da /é,
o jMffftos do pecmfo e da queda, o temor e o tremor diante do Deus
revelado, a paragem do tempo concentrado no instante indivisível
da escolha, em que o alo de conversão religiosa se consuma, a
expectativa do futuro como /Mwnísrfl a cumprir-se, a possibilidade
da repetição ou da recuperação do passado no presente pela força
repara dora do perdão c do arrependimento. Colhidos sobretudo
nos escritos dc edificação c no Concdto dc do teólogo
dinamarquês, esses aspectos representaram, para Heidegger, a expe­
riência criftã da vida, comensurâda pela fé, enquanto acontecimento
histórico sobre o qual a Teologia se apóia, e que o método feno-
menológico lhe permitiría aprofundar.

II

Na “extraordinária encruzilhada1" onde Heidegger te situou, em


confronto com Hegel, Schelling, Husserl, Nietzsche c Kierkcgaard,
quer no período de aprendizagem, até o término dos seus estudos
universitários, em 1915, quer no dc experiência, durante os dez
primeiros anos dc sua atividade de professor — iniciada logo cm
19Ió, na categoria dc livre-docente —, que precederam o apareci­
mento de Ser e tempo e durante os quais quase nada publicou,
convergiram também os frutos do movimento fcnomcnológico na
Ética e na Metafísica, e os reflexos na Teologia das correntes exis­
tenciais inspiradas em Kierkegaard.
Em 1913, os Xfltré da investigação f&iomenoiógicti publica­
ram o ensaio A essênda e a? formuaj Ju simpatia und
Formen der Sympathic), dc Max Schelcr, que aplica a intuição das
essências ao domínio dos sentimentos. Nesse domínio, o mesmo
pensador fundamenta a sua ética material dos valores, contendo os
lineamentos de uma Antropologia filosófica, ou seja, de uma Meta­
física do sujeito humano, como ser espiritual, c que não chegou a
sistematizar. O método fenomenológtco descritivo serviu ainda dc
base a Nicolai Hartmann, que converteu a correlação sujeito—obje­
to — eixo da Teoria do Conhecimento — numa relação ontológica,
em seus Princípios de uma Metafísica do conhecimento (Grundzüge
einer Metaphysik der Erkenntnis, 1925). A esses dois perfis de
uma nova Metafísica, ambos embaraçados com o problema do
ser ideal dos valores em face do ser real, juntou-se a fisionomia
restaurada do realismo arístotélico-tomista, do qual Heidegger par­
25

ticipou inicialmente, e com o qual a nova Ontologia de Nicolai


Hartmann tinha afinidades.
Na sua tese sobre Duns Scotus, Heidegger vislumbrou uma
reordcnação metafísica do problema das categorias com fundamen­
tos fcnomcnulógicos. A Filosofia, afirmava ele,, não, pode dispen­
sar depois de um certo tempo a sua óptica própria, que é meta­
física.10 • ,..
De alguns anos para cá — dizia, ainda, na aula do concurso para
a docência — despertou na Filosofia das ciências um certo impulso
metafísico- Permanecer na simples Teoria do Conhccimenlo não
mais satisfaz, A inércia, que surgiu du problema cln conhecimento
teórico, dc uma autorizada c enérgica consciãncia do valor da
crítica, não deixa que a meta e o fim da pergunta da Filosofia
cheguem à flM significação imanente. Daí a tendência, ora enco­
berta, ora manifesta, para a Metafísica. Devemos entender isso
como sendo uma apreensão mais profunda da Filosofia s de seus
problemas, e ver aí a tflrjjWe de perder da Filosofia, mas não cer-
tamente no sentido da dominação inieíectual das chamadas “con­
cepções científicas da Natureza”.1112

Esse impulso tornou-se, porém, suspicaz para Heidegger. Parado-


xalmente, a questão do ser, formulada em Ser e tempo, manteve-sc
dentro da Metafísica, mas sem a ela aderir.
Também se pode dizer que a Analítica do Dasein, desenvol­
vida nessa mesma obra, guarda estreita relação com o fundo teo­
lógico da formação de seu autor, sem que, no entanto, represente
uma linha propriamente teológica de pensamento. A Analílíca
absorverá no seu objeto e no seu tema o conteúdo fcnomenológico
dos dogmas da queda c do pecado, bem como dos sentimentos que,
abrangidos pela meditação de Santo Agostinho, de Luiero c de
Pascal, entraram “no círculo visual da Teologia cristã" ”, TraU-sc
de uma transposição metodológica da Teologia ao plano ontológico
da existência, que leva em conta os fenômenos da experiência reli­
giosa do cristianismo, mas isenta do empenho doutrinário iiUer-
pretativo da Revelação, que caracteriza, por exemplo, a Teologia
dialética de Karl Barth, influenciada por Dosioievski c Kierkcgaard,
já em vias de definição por volta dc 1916, que, também chamada
de Teologia da crise, ligou-se às onrreniçs fenomcnológica c exis­
tencial.

!• Cf. id.. Dic Katego<ri*rt und Bedeulimgí.1ehre des Duns Sfiotus [A doutrina
das eâttftOTÍM e da fignificação cm Duns Scotus], FS, p. Mã-
111d,, Der Zeitbegriff in der OtsehldiiswisMiiKhaft [O conceito de tempo nas
clcikIÍb históricas]- ES, p. Í47,
12 Id, SZ, p. 190, nota 1.
26

Enquanto ao longo de sua atividade professoral Heidegger


reelabora o problema ontológico, que foi o motivo catalisador de
seu pensamento e o agente de decantação crítica das correntes e
tendências da época, na forma original da questão do sentido do
ser, o neokantismo experimenta um prolongamento renovador na
importantíssima Filosofia das formas simbólicas (Philosophie der
symbolischen Formen, 1923) de Ernst Cassirer, que pretendeu,
interpretando o conceito kantiano de experiência, à luz do mito e
da linguagem, e ampliando a problemática do conhecimento a que
o mesmo pensador dedicou uma obra monumental (Das Erkenntnis-
problem, 1906-20), resolver a pendência entre as ciências da Na­
tureza e as ciências históricas ou culturais.
A posição de Heidegger não dependería menos de uma rein-
terpretação da Crítica da razão pura, que deslocou a Filosofia
transcendental da órbita da Teoria do Conhecimento. Para esse
fim, muito contribuíram os trabalhos de Emil Lask, discípulo de
Rickert, morto ainda jovem durante a Guerra de 1914, A lógica
da Filosofia, A doutrina das categorias (Die Logik der Philosophie,
Die Kategorienlehre, 1911) e A doutrina do juízo (Die Lehre vom
Urteil, 1912), marcados pela influência da Fenomenologia, os quais
prestarão respaldo à conclusão da tese sobre Duns Scotus.
Segundo essa conclusão, o restabelecimento da óptica meta­
física, como escopo de uma Filosofia, demandaria antes
a tomada de uma posição perante os princípios do mais poderoso
sistema de concepção histórica do mundo, tanto em plenitude
como em profundidade, na riqueza da vivência como na elabora­
ção conceptual — perante Hegel, que sob tal aspecto reassumiu,
em seu pensamento, todos os motivos fundamentais da problemá­
tica filosófica surgidos antes dele 13.

Por aí se vê que a atitude perante Hegel terá sido tão significativa


para a determinação do caminho de Heidegger quanto a que firmou
em relação a Kant, embora se concretizasse, ao contrário da vizi­
nhança que estabeleceu com o filósofo da Crítica da razão pura,
por um afastamento decidido do sistema hegeliano do Saber abso­
luto, que se tornou, entretanto, um referencial constante do pen­
sador.
Ambíguo para com a Metafísica, de que se apropriou critica­
mente, levantando-lhe a estrutura interna, Ser e tempo separa-se
das formas do pensar dialético. Nenhuma referência há nessa obra
ao marxismo, conquanto tal corrente, que permaneceu fora do
eúsino universitário da Filosofia — em seguimento à exclusão da

13 Id., Die Kategorien. . ., FS, p. 353


27

esquerda hcgeliana das universidades alemãs a partir de 1845 —,


tivesse alcançado, no ano mesmo da publicação de Ser e íewipo,
um surto renovador em Classe e consciência de classe (Kla&s und
Klassbewnstsein, 1027), de Georg Lukács, descendente intelectual
da Escola de Baden e ligado, como o pensador marxista Ernst
Bloch, a Emil Lask., .■ •’
Não se pode omitir a mudança revitalizadora no ensino da
Filosofia, que celebrizou o desempenho de Heidegger como pro­
fessor, e que dele fez um mestre do pensamento no meio universi­
tário germânico, antes da consagradora repercussão de Ser e tempo.
Conforme o depoimento prestado por Hannah Arendt, da geração
que o teve como maitre à penser — a geração de Herbert Marcuse
e de Karl Lowith —, o que atraía os estudantes para os cursos e
conferências de Heidegger, em Friburgo e Marburgo, para onde
ele se transferira em 1923, que versavam sobre Parmênides, Platão,
Aristóteles, Descartes, Kant ou Fichte,
era a notícia de que podiam contar com alguém que realizava o
retorno às coisas prometido por Husserl, e que sabia não ser isso
um negócio acadêmico — alguém que conseguia descobrir nova­
mente o passado, porque sabia que o fio da tradição fora rom­
pido 14.
*
Ao ingressarem no círculo mágico das interpretações heideggeria-
nas, pela solícita atitude de respeito aos textos, os filósofos do
passado entravam na cena histórica do presente. Ninguém, con­
forme ainda depõe Hannah Arendt, fizera isso antes dele. O sim­
ples procedimento de inquirir as fontes filosóficas, de estabelecer
com os filósofos uma relação dialogai, independentemente da eru­
dição histórica, abandonando as trilhas comuns da História da
Filosofia, e sem um prévio enquadramento sistemático das idéias,
implicava, como que reavivando o antigo thaumázein, em romper
com o decoro acadêmico no ensino da Filosofia, que a dependência
estrita do neokantismo à ciência e aos problemas lógicos e meto­
dológicos havia esterilizado. A questão do sentido do ser foi o
prolongamento desse radicalismo filosófico que Heidegger empres­
tou ao ensino e que antecipou a “vontade de destruição e de sub­
versão” que Karl Lowith surpreendeu no tratado de 1927 15.
Dedicado a Husserl, “com amizade e veneração”, Ser e tempo,
longamente elaborado, foi escrito a partir de 1923. Arrematado o

14 Arendt, Hannah. Martin Heidegger zum 80 Geburtstag [Por ocasião do


SÓ,4' aniversário de Martin Heidefgcrj. Merkur, :894, Okt., 1969.
1 5 LÒWiUi, Karl. HeidtgKcr, pensador de um tiempo indigente. Madrid,
Rinlp, 1956. p. 50.
28

texto em 1926, por circunstâncias da carreira universitária do autor,


sua redação correu |Wraleiamente ao processo de secessão política
do professarado das universidades atem ás em coriseqüência das
lulas ideológicas que se travaram na instável República de Weimar,
nascida, sob os escombros do Império guilhcrmino, de uma coa'
lisão conservadora, da qual os socialistas participaram, após o es-
magamento do levante comunista da Liga Spartacus, em 1919.
Tendo iniciado a sua carreira de professor durante a Guerra
de 1914, Heidegger trouxera do clima de tolerância e liberdade do
ducado de Baden, uma ilha de liberalismo à época do Império, o
ideário de conciliação do nacionalismo com o socialismo, dentro
de uma democracia política, que atraíra Max Weber, pregado por
Friedrich Naumann, fundador de uma Escola de Altos Estudos
Políticos e do Partido Democrata em 1919. Em 1933 ele assumiu
a reitoria da Universidade de Friburgo, envolvido pela onda turva
do nacional-socialismo em que a combalida República de Weimar
submergiu. A atividade do filósofo, cuja vida pública se limitara
até ali ao exercício do magistério, conhecería o triste interregno
pplítico-parlidário — dc maio dc 1933 a fevereiro de 1934 — do
qual nos ocuparemos adiante. Esse interregno recorta-sc com o
princípio da segunda fase do pensamento de Heidegger, que se
desenvolveu já no período de sua HiaxgmaliMçS
* pelo nacional-
-socialismo, a que aderira.
EXCURSO — INTERMEZZO POLÍTICO

Em maio de 1933, já quando Hitler, feito ministro pelas mãos


de Hindenburg e pela pressão das tropas de choque do Partido
Nacional-Socialista Operário Alemão (National Sozialisten Deutsche
Arbeit Partei — NSDAP), detinha plenos poderes, Martin Hei­
degger foi empossado no cargo de reitor da Universidade de Fri­
burgo, vago desde abril com a demissão do Professor Von Mõllen-
dorf, da Faculdade de Medicina.
Os antecedentes desse episódio, hoje suficientemente conheci­
dos, eram já uma decorrência da maquinaria ideológica do Estado
totalitário nazista. Von Mõllendorf»fora demitido do cargo de reitor
pelo ministro do Culto de Baden, duas semanas após o ato de sua
posse. Reconhecidamente socialista, e ainda por cima judeu, come­
tera a grave falta de proibir que os estudantes nazistas colocassem
cartazes anti-semitas no recinto da universidade. Diante do perigo
de que um estranho ao corpo docente viesse a ocupar a reitoria,
Heidegger, instado pelo próprio reitor demitido, como porta-voz
de seus colegas, concordou, depois de hesitar até o dia das elei­
ções, que o seu nome fosse sufragado por unanimidade pela assem­
bléia universitária.
O motivo real que o teria obrigado a aceitar o posto estaria
expresso no ideário de seu discurso de posse — A auto-afirmação
da Universidade alemã (Die Selbst Behauptung der Deutsche Uni-
versitãt) —, com o qual começam a gestão administrativa e a
atividade política de Heidegger, ambas seladas pela adesão que
desse momento em diante prestou ao nazismo, e ambas, núpcias
de curto fôlego do filósofo com o poder, terminando em fevereiro
de 1934, ao cabo de dez meses, pela sua renúncia ao cargo e pelo
seu afastamento do partido ao qual se filiara. Datam desse inter-
regno de dez meses os escritos circunstanciais e de valor desigual
(artigos e proclamações) de Heidegger, publicados no jornal estu­
dantil de Friburgo (Die Freiburger Studenten Zeitung), que do­
30

cumentam a sua atividade política e mostram, quando não bastasse


o teor do discurso de posse, que a adesão passageira do filósofo
ao nacional-socialismo não atendeu a razões subalternas de conve­
niência pessoal ou de acomodação ideológica.
“Estamos nós”, perguntava Heidegger, no estilo lapidar desse
discurso ao mesmo tempo contraditório e sibilino, misturando refle­
xão e exortação, “estamos nós, estudantes e professores de uma
escola superior, enraizados na essência da Universidade alemã?”
(SB, p. 5). Para que se enraizassem nessa essência seria preciso
ver claramente qual o destino espiritual do povo e pautar por ele
a missão de todos, que autenticasse o verdadeiro desempenho de
uma escola superior. Esse destino, que a necessidade de superação
da penúria exterior do país impunha, era a vontade de ciência,
assumida pelos estudantes e professores. Educar e disciplinar os
condutores e os guardas (die Führer und Hüte) do destino do povo
seria o papel afirmativo da Universidade no momento.
“Tocava-me como professor”, explicaria Heidegger mais tarde,
“a questão sobre o sentido das ciências e, com isso, a determina­
ção da tarefa da Universidade.” 1 A possibilidade de encontrar
para o trabalho científico, fracionado numa “multiplicidade dissi­
pada de disciplinas”, um lugar firme, no espaço universitário, para
além das motivações práticas imediatistas, estaria, porém, subordi­
nada ao destino político do povo, que por sua vez dependia da
tarefa histórica da Alemanha enquanto entidade nacional. “Só o
mundo espiritual responde pela grandeza de um povo”, frisava ele
no discurso de posse. O mundo espiritual se manifestaria na von­
tade de ciência “como vontade para a missão histórica do povo
alemão, que se compreende como um povo dentro do Estado (in
seinem Staat)” (SB, p. 7). Mas quem seriam os condutores e
guardas que a Universidade, autogerida pelos seus professores e
estudantes, deveria submeter a um ideal filosófico, senão aqueles
que governavam e detinham o poder? À escola superior incumbia
gerar o.mundo espiritual e sujeitar a ele os propósitos do partido
dominante. Entretanto Heidegger afirmava que a autogestão uni­
versitária far-se-ia sob a égide do novo direito estudantil (das neue
Studentenrecht), condicionado aos três serviços que o partido pre­
gava: o do Trabalho (Arbeitsdienst), o da Defesa (Wehrdienst)
e o do Saber (Wissensdienst). Mas ficariam de lado os mitos de
prepotência étnica e política — o anti-semitismo, a superioridade

1 Nur noch ein Gott kann uns reten. Spiegel-Gesprãch mit Martin Hei­
degger am 23 September 1966 [Somente um deus ainda pode salvar-nos.
Entrevista com Martin Heidegger em 23 de setembro de 1966], Der Spiegel,
(23), 31 Mai 1976.
31

ariana e a supremacia da ciência alemã. Introduzindo no discurso


de posse unia temática nacionalista, que sc inspirava cip motivos
de sua própria obra filosófica, Heidegger marcou a distância dou­
trinária que o separou do nazismo, a cujo partido, no entanto, se
filiou. A nada do que, durante o interregno, traduziu por palavras
ou atos — sua confiança no Führer, seus artigos concitando os
estudantes a participarem do Serviço -de Trabalho, seu apelo de
novembro de 1933 conclamando o povo alemão a referendar o
rompimento de Hitler com a Liga das Nações —, a nada disso
faltou a sinceridade e a firmeza de um convicto.
Ninguém é politicamente neutro, mesmo quando declare sê-lo.
E a neutralidade ainda mais enganosa pode tornar-se quando o
que está em jogo é a livre destinação ao saber das universidades.
Distanciado do poder até o momento de sua ascensão como reitor,
o filósofo não era um incipiente dos assuntos políticos. A respeito
deles, ao que tudo indica, já tinha atitude firmada ao sair do
solitário retiro de Todtnauberg, onde, em gozo de férias, passara
quase todo o semestre de inverno durante o qual ocorrera a eleição
de Von Mõllendorf, com quem trocou idéias sobre os aconteci­
mentos.
No semestre de inverno de 1932/1933, falamos muitas vezes da
situação — recapitula Heidegger na única explicação pública que
deu, já nos últimos anos de sua vida, em entrevista concedida ao
Der Spiegel sobre a sua participação política —, e não só da situa­
ção política mas sobretudo das universidades e da situação, em
parte sem nenhuma saída, dos estudantes. Defendia a seguinte
posição: na minha maneira de julgar as coisas, só restava uma
única possibilidade: com as forças construtivas, ainda realmente
vivas, tentar assumir o desenvolvimento por vir.23

Aderiu, pois, ao regime, integrou-se à nova ordem, porque


não via nenhuma outra alternativa. Na confusão geral das posi­
ções e tendências políticas dos vinte e dois partidos, tratava-se de
se encontrar uma atitude nacional e sobretudo social, mais ou
menos no sentido da tentativa de Friedrich Naumann8.

Heidegger acreditou que o nacional-socialismo contivesse as


“forças ainda realmente vivas” que permitissem à Universidade
interferir num sonhado processo de salvação pública da Alemanha.
Convencido, já em 1935, de que ocorria exatamente o inverso,
exprobou publicamente, num de seus cursos, a filosofia do partido,

2Ibid.
3 Ibid.
32

e, como se a verdade ideal tivesse sido desnaturada e aviltada na


prática doutrinária real, separou-a da “verdade interior” e da gran­
deza do nacional-socialismo. O ato final da administração de Hei­
degger, que o levaria à renúncia — a nomeação de pessoas não-
-gratas ao regime, para decanos das faculdades —, e a firmeza
com que se opôs às manifestações anti-semitas no recinto da uni­
versidade evidenciam o relacionamento conflitivo do filósofo com
o NSDAP, que passou a vigiá-lo a hostilizá-lo depois que desse
partido separou-se. Suspeito ao regime, alvo de ataques verbais
por parte dos ideólogos oficiais do nazismo, como Emst Krtcck
e Alfred Beumler, proibidas algumas de suas obras, inclusive o
discurso de posse como reitor, boicotada a venda de outras, o filó­
sofo viu-se impedido de sair para o estrangeiro.4 Talvez só então
tenha percebido o que estava por trás das “forças vivas” e visto
sobre que alicerces espúrios se erguem, como na imagem forte de
seu amigo Jiingcr, em As falésias de mármore,
os orgulhosos castelos da tirania e se realizam barulhentas festas:
félidíij cavernas onde a escumalha do gênero humano se delicia
corn prazer mórbido em aviltar a liberdade e a dignidade do
homem 5.

Considerado, em 1944, entre os dispensáveis do magistério,


por um golpe irônico da sorte foi obrigado a prestar nos entrinchei-
ramentos do Reno, em companhia do Dr. Gerard Ritter, preso
nesse mesmo ano por envolvimento num complô contra Hitler, o
Arbeitsdienst, o Serviço de Trabalho, que havia apregoado. Em
1945, as autoridades aliadas da Ocupação proibiram-no de ensinar.
A proibição durou até 1951, quando, já com 60 anos de idade,
foi nomeado professor honorário da Universidade de Friburgo.
Desfeita a lenda de um Heidegger sinistro, pressuroso servidor
do nazismo, que teria renegado até mesmo a velha amizade que o
ligava a Husserl6, permanece a maldição que o fato de haver cola­
borado com o regime ainda hoje faz pairar sobre sua obra. Insistir
sobre esse vínculo, que tem imposto, a quem do pensamento de
Heidegger SC aproxima, uma atitude dc preliminar desconfiança,
é esquecer a História da Filosofia, desde Platão — comprometido
com Dionísio dc Siracusa — a Hegel — comprometido com o
Estado prussiano. É esquecer, afinal, que o valor de uma Filosofia

4 Cf. Palmier, Jean-Michel. Les écrits politiques de Heidegger. Paris, L’Herne,


196?. p. 88-100.
5 Junger, Ernst. As falésias de mármore. Lisboa, Estúdios Cor, 1973.
p. 101.
6 Cf. Palmier, J. M., op. cit., p. 60-3.
33

não depende dos eventos da vida pessoal do autor nem é o produto


reflexo da vida social e política que a condicionou.
O problema que se pode legitimamente colocar sob o foco
político, acerca da concepção heideggeriana, é análogo ao que se
deve propor em torno da coneepçáo de qualquer outro grande
filósofo, o de suas raízes ideológicas,mais profundas. Mas esse
problema só é formulávtl mediante o conhecimento interno de sua
Filosofia, dessa criação filosófica singular, concretizada numa obra
historicamente datada, a partir da questão fundamental do ser, que
a mobilizou.
II

O PROBLEMA E A QUESTÃO DO SER

Les 3/4 de la Métaphysique constituent un simple cha-


pitre de 1’histoire du verbe Être.
Valery. Cahiers, I.
Mas a palavra mais importante da língua tem uma única
letra: é. Ê.
Clarisse Lispector, Ãgua viva.

A dissertação de Rrcijtano, £>ris múltiplas significações do


ente em Aristóteles, cuja leitura trouxe a Heidegger o sobressalto
da indagação determinante dc seu pensamento, tem como epígrafe
n frase do Livro IV da Metafísica dc Aristóteles, tò dn Mgctaí
pofíaehos: “O ente c tomado em múltiplas acepções..." '‘Qual’1,
perguntou-se ele, diante dessa sentença que o transportou ao centro
da Metafísica de Aristóteles, c que viría riais tarde a traduzir dc
outro modo, "a determinação simples c unitária do ser (Sein)
que prevalece entre as múltiplas significações dc ente?1' ’ Aparen­
temente a pergunta heidcggcriana limita-se a retomar o vetusto
problema do ser, tentando recomeçar urna investigação já aplainada
pela tradição dc pensamento que derivou da Metafísica de Aris­
tóteles. Detenhamo-nos um pouco, antes de voltar à indagação de
Heidegger, que indica a transiçüo do problema clássico da Onto­
logia à questão do sentida do ser, no caminho dessa tradição, que
leva rio IZstagirita aos csccláslicos medievais, segundo o entendi­
mento histórico-filosófico corrente.

। Hejdeggu*, M. Preface/Vwwori. Ih: Ricjiardson, William J., S. J., Heide-


ftger — through Phcncmettúú>gy to fhmrght. 3'. ed. The Hague, Martinus
Nijboff, 1974. p. X-XI. Edição tHlingile.
35

No texto que recebeu a denominação tópica de Metafísica —


o tratado subseqüente aos livros dc Física (tà meta tà physiká) —,
Aristóteles enumerou quatro acepções do ente (o que é): 1- por
essência (katlfautó) c por acidente (katà symbebekós); 2- se­
gundo as (katcgoríai); 3- sob o aspécto do verdadeiro
(alcthés) e do falso (pseudós); 4- segundo a potência (d^namis)
e o ato (enérgeia), Embora íirmadas nd capitiiki VII do Livro V
da Metafísica, essas distinções nâo só acompanham a formulação
internada naquele texto de uma ritfrtcírt efos pnmejro.r pnncíprtw c
das primeiras causas, como também estão no seu ponto de partida.
"Há uma ciência que estuda o ente enquanto ente (lò óit hc ón)
e os atributos que lhe pertencem tssencialtncnic.”1
Diferente das outras disciplinas teóricas — a Física e a Mate­
mática, que tratam de partes do ente, estudando-lhes os atributos
particulares —, só uma tal disciplina poderia constituir-se em ciên­
cia dos princípios c ocupar o mais elevado posto do conhecimento
teórico (theoretiké epistéme), como sabedoria (sophía) que se
busca por si mesma. O caráter elevado d * sabedoria decorre da
universalidade dos princípios. Quanto mais abstratos são, quanto
mais acima da experiência sensível se situam as causas investigadas,
maior é a garantia de exatidão da ciência. Buscar as causas supe­
riores ou os primeiros princípios é .buscar a realidade a que per­
tencem, e que não é uma parte do ente, mas o ente enquanto ente,
considerado em si mesmo ou em sua totalidade.
“O ente é tomado em múltiplas acepções, mas sempre relati­
vamente a um termo único, a uma única natureza determinada.” 23
As múltiplas acepções do ente são, pois, distinguidas em relação a
essa natureza (physis) determinada, que um único termo designa.
Mas não se pode divisar uma tal natureza — a realidade a que
pertencem as primeiras causas e os primeiros princípios, e que é
o objeto da Metafísica — senão através das múltiplas acepções
do ente. Eis a íoima circular do desenvolvimento de uma inves­
tigação em busca de seu próprio objeto, e já antecipadamente
definida como a consecução do saber. Essa perplexidade da inte­
ligência, que envolve todo o trabalho de formulação da Metafísica,
concentra-se na embaraçosa distinção das categorias.
O ser por essência, concebido em si mesmo — por oposição
ao acidente —, “recebe todas as acepções indicadas pelos tipos de
categorias” 4 (do verbo kategórein-. afirmar ou atribuir, de onde a

2 Aristote. La Métaphysique. Introduction, index et notes par J. Tricot.


Paris, J. Vrin, 1974. t. 1, p. 171.
3 Id., ibid., p. 176.
4 Id., ibid., p. 270.
36

versão latina pretlicnmeiilum), que correspondem a tudo o que é


— às atribuições gerais de iodos os seres nu do ar: substancia
(ousía), quantidade (pnsón), qualidade (pqión), relação (prós
1iJ, lugar (poú), ffwjpfl (poli), situação (keíslhâi), estado (écheln),
ação (poicín), paixão (páschein), cuiiíorme a lista do O^jfflriíwi-
As L-flfejforto.í distinguem as atributos essenciais (einaí lí ti) do serh
e por sua vez se distinguem do ser absoluta ou simplesmente con­
siderado, na acepção de essência. De todas as categorias, somente
a ousía não é um predicamento. Enquanto as demais se predicam
da essência, esta, que é em si mesma, de coisa alguma se predica.
Na medida em que os predicamentos são gêneros, a ousía, como
essência, é o que subjaz à coisa, hypokeímenon, o suporte e o
fundamento — subjectum (sujeito), na versão latina que trasladou
a ação verbal indicada por hypokeisthai, de que hypokeímenon é
o particípio — para subiicere ou sub stare, de onde o substantivo
sub-stantia (substância), que adotaremos daqui por diante. Mas
o sujeito é sempre um ser singular (tò kanth’ékaston), e só ele
existe. A ele se referem as demais categorias, que encerram os
gêneros, e estes constituem universais (tà kathólou) predicáveis.
Porém o ser mesmo não é gênero; entre ele e as categorias há uma
unidade não-genérica. Cada categoria se refere ao ser como ao seu
princípio, independentemente do qual não podemos considerá-la.
Mas o ser tem nas categorias as suas diferentes determinações ou
os seus modos. Nenhuma é diferente do ser, nem o ser é idêntico
a nenhuma. Entre ele e cada qual a relação não é de sinonímia
ou de simples homonímia; a referência que os liga nem é comum
nem equívoca, mas a significação análoga de um termo único que
designa uma natureza determinada.
Sem essa natureza determinada e individual não se poderia
predicar a quantidade, a qualidade ou qualquer outro atributo.
Nesse sentido, a ousía corresponde ao ser primeiro, uma vez que
o que a coisa é essencialmente, em si mesma, independentemente
dos acidentes, não está contido em nenhum de seus modos.
É, pois, evidente — conclui Aristóteles — que í por meio dessa
categoria qtit Cada uma das outras categorias existe, Por COrtJC-
guinlc, o ser no sentido fundamental, não tal ou qual modo dc ser,
mas o mt ateotatamente falando, não podería ser senão a ousín-
*

O ser primeiro, a natureza real e determinada, torna-se a primeira


acepção do ente. Mas, ao assentar essa prioridade da ousía, Aris­
tóteles já considerava a significação duplicada que dera a esse
termo no Organon:*

6 Id., ibid., p. 341.


37

A ousía (substância), no sentido mais fundamental, primeiro e


principal do termo, é aquilo que não é nem afirmado de nem
Afirmado num sujeito: por exemplo, o homem individual ou o
cavalo individual. Mas chamam-se substâncias segundas as espé­
cies nas quais sulslânclus no senlido primeiro «stão contidas.
E As etptcics c preciso acrescentar cs gêneros. dessas espécies;
pnr exemplo, o homem individual entra numa espécie, que é o
homem, c o gíncro df-tsa espécie é animal, llesigita-ic. pois, com
o nome de segundas essas últimas substâncias, a saber, o homem
78.
e o animal 6

Havería, pois, que distinguir-se entre a substância primeira e a


substância segunda. Aquela coloca o individual e o universal numa
relação entre matéria e forma, o synolon — que torna inteligível
o movimento dos entes perecíveis do mundo sublunar, evitando
identificar a essência com a idéia de Platão.
O homem em geral, o cavalo em geral e os outros termos desse
gênero, que são afirmados de uma multiplicidade de indivíduos
a título de predicado universal, não são uma substância, mas um
composto determinado de uma certa forma e de uma certa matéria
tomada universalmente; mas no que concerne ao indivíduo, se­
gundo a matéria última particular, Sócrates existe, e do mesmo
modo para todos os outros casos.7

A essência dessas coisas não pode separar-se daquilo de que é


essência,8 e nada do que existe, existe independentémente da subs­
tância. Esta pertence à forma que determina a matéria, em que
reside o princípio da individuação, ou seja, o princípio da diferença
individual numérica.9 Por esse aspecto fundamental, o estudo da
substância liga-se ao da Física, à investigação da Natureza (physis).
“Dentre os seres, uns são por natureza, outros por outras
causas.” 1011Ao contrário dos objetos fabricados, os entes que exis­
tem por natureza possuem em si mesmos “um princípio de fixidade
e de movimento” n. Mas são também substâncias, posto que “su­
jeitos de mudança, e a natureza está sempre num sujeito” 12. Qua­
tro causas (material, instrumental, formal e final) explicam a gera­
ção e a corrupção, a mudança, o vir-a-ser, sob o pressuposto de

6 Id., Organon: Catégories. Traduction et notes par J. Tricot. Paris, J. Vrin,


1946. Livro I, cap. 5, p. 7.
7 Id., La Métaphysique, p. 406-7.
8 Cf. id., ibid., p. 445.
9 Cf. id., ibid., p. 389. Cf. também: id., Catégories, cap. 5, p. 10-5.
10 Id., Physique. Traduction par Henri Carteron. Paris, Les Belles Letres,
1926. t. 1, Livro II, cap. 1, 192b.
11 Id., ibid., 192b.
12 Id., ibid., 192b.
38

que o movimento "é a enteléchda do que está cm potência en­


quanto potência”
Conforme vimos, a potência recai sob a quarta c última das
acepções do ente, O ente expressa tanto a poténicrá quanto o ato,
o que é possível c o que é atual. Graças a essa distinção, cessa
a aporia do movimento, garantindo-se a inteligibilidade do vir-a-
-scr, A mudança, enquanto passagem, pela atuação das quatro
causas, da matéria ou potência ao ser em ato, a uma natureza
determinada (cntelccheia), não é contraditória. Segundo a noção
do Livro IX da Metafísica, o ato, anterior à potência tanto do
ponto de vista da essência quanto cm relação ao tempo, equivale
à causa formal (a natureza específica) e à causa final (o fim ou
o télos de cada coisa). Composto de matéria e forma, a ente-
lécheia é o que cada coisa é essencialmente em sua perfeição ou
ato, dentro do lugar que ocupa na ordem do mundo sublunar.
Todas as coisas estão ordenadas conjuntamcnte de uma certa ma­
* não do mesmo modo, peixes, aves e plantas; c as coisas
neira, ma
nSo estão distribuídas dc maneira tal que uma não lenha relação
*
com a outra, ma entretem reluçócs mútuas; pois todas se orde­
nam a um único fim.13 14

Nos entes perecíveis, a forma não existe sem a matéria, nem


a matéria sem a forma. Mas o que determina a identidade deles,
o que os identifica como entes, é a forma ou a qüididade (quidditas)
— como mais tarde diriam os escolásticos —, que determina o
individual enquanto espécie. Tanto a espécie quanto o gênero
constituem a substância segunda. De acordo com a doutrina das
Categorias, “a espécie é mais substância do que o gênero, pois está
mais próxima da substância primeira” 1516 .
Tal ou qual forma produzida nesses ossos e nesta carne,
exemplifica Aristóteles, eis aí Sócrates c Cálías.1,1 Porém a subs­
tância primeira, o que é cada indivíduo como espécie, cm sua
natureza determinada, está mais próximo da forma indivisível, im-
perecível, idêntica e imutável, sem ser, contudo, um gênero. A
ousía, que não reside no sujeito nem a ele se acrescenta (acidente),
é o sujeito mesmo para o qual nenhum contrário pode haver.17
“O que mais do que tudo parece constituir o caráter próprio da
substância é, como bem parece, que, permanecendo idêntica e

13 Id., ibid., 201a.


14 Id., La Métaphysique, p. 706-7.
15 Id., Catégorlfj, p. 9,
16 Cf. id., La Méfaphyjlque, p. 392.
17 Cf. id., Caf/sarifS, cap. 5, p. 15.
39

niimerleAments una, ssja apta a rcccbcr os contrárics."’5 Perma­


nente c imutável, ela i umA nfltwnew determinada cm razão da qual,
LOmando-sc o ente na acepção dc essência, sc pode afirmar dc uma
coisa o que ela é. Dizer-sc dc uma coisa o que cia é, em sua iden-
údade de ente, c afirmá-la verdadeira, c assim tomar o ser também
na tflttiru acepção.
Apreendendo-se o que reo que-não ého que enunciamos,
o verdadeiro c o falso rêpuustmi no tó^or, a qptfpÀanris (proposi­
ção), cm que a partícula verbal (erii, é) liga o termo sujeito ao
termo predicado quando a coisa c verdadeira (synthesis) e sepa-
ra-Os quando é falsa (diaíresis), O verdadeiro, define Aristóteles,
c upreender e enunciar o que se apreende,!í articulado na propo­
sição por meio da cúpula. A cúpula nada é por íi mesma e pode,
dessa forma, unir c separar o que se apreende. O que há, porém,
dc mais verdadeiro do que o scr como írnUírcxa dtwr/flwrjjfl? A
verdade í a ntuífl, dc que se pode afirmar que í cm si mesma
(kaih'autó). “Quanto mais uma coisa tem ser. mais tem a ver­
dade”2**, e, quanto menos mutável í uma coisa, mais ela tem ser.
O movimento depende do ruo; os enics perecíveis possuem uma
atualidade imperfeita, em virtude da c da potência que
enfeixam. Neles, as causas do movimento somente adquirem a
inteligibilidade se procedentes de uma causa primerrfl, de um ato
sem potência, que será lambem foTma sem matéria', ação de uma
entelécheia, substância separada e imóvel, que possui o ser em
grau superlativo. Conhecer a verdade é conhecer a causa, e
os princípios dos seres eternos são necessariamente os mais verda­
deiros de iodos, pois que da não são verdadeiros só num mo-
mento determinado, e não há causa dc seu sen JW ccnUrário, eles
c que a causa do scr das outras coisas. Assim quanto mais
uma coisa tem a scr, mais verdadeira éaí,

An ser divino sc aplica, com melhor razfio, o caráter dc mhjfiirtrm


priítrrrw — do ente na acepção de essência e dc fundamento, cor­
respondendo ao ffl/c enquanto ente. “Sabemos que há muitas acep­
ções do termo primeiro. Entretanto é a oitsía que é absolutamcnic
primeira, tanto logicamente na ordem do conhecimento, quanto na
ordem do tempo.” 18 22
21
20
19
À ciência das primeiras causas e dos primeiros princípios, pro-
tociência e ciência da verdade, à sabedoria buscada, meta-física,

18 Id., ibid, cap. 15, p. 17.


19 Cf. id., La Métaphysique, t. 2, p. 524.
20 Id., ibid., p. 109-10.
21 Id., ibid., p. 109-10.
22 Id., ibid., p. 348.
40

porque se eleva do sensível ao süpra-scnsivcth àquilo que é ente


por inteiro e que, pela sua própria «sen cia, como tun todo, possi­
bilita os entes particulares, S£ pode cnlào denominar de Teologia.
“Por conseguinte haverá três Filosofias teoréticas: a Matemática,
a Física e a Teologia (epistéme theologiké),11 “ Topo do conhe­
cimento teórico, a Teologia se identifica á filosofia primeira, ciên­
cia universal na medida em que se destina a conhecer a substância
imóvel ou separada. “E a ela”, conclui Aristóteles, “compete con­
siderar o ente enquanto ente, quer dizer, ao mesmo tempo sua
essência, e os atributos que lhe pertencem enquanto ente.” 23 24
Nesse ente de que pende a ordem do mundo, também repousa
a universal analogia. Nele a ciência encontra o objeto que buscava
— a natureza determinada —, que fecha o movimento circular
antes divisado através das múltiplas significações do ente e faz
cessar a investigação. Perguntar o que é o ente (tí tò ón), “objeto
de todas as pesquisas presentes e passadas, problema sempre a
resolver, equivale a indagar: o que é a ousía!” 25. Uma vez, porém,
que a ousía, a substância, é o ser primeiro, e que o ser primeiro
é o ente sob o aspecto da essência, simples e absolutamente con­
siderado, essa indagação, que reformula a anterior, resolve o pro­
blema ao transferi-lo para uma escala em que cessa a “polissemia
do ser” 26. Qualquer acepção do ente reverte à ousía, à substância,
ao ser primeiro, sujeito idêntico, que é em si, independente de
qualquer outro.
Perguntando sobre a determinação simples e unitária do ser
que predomina entre as significações ou acepções do ente em
Aristóteles, Heidegger reabre a “polissemia do ser”, e suspende a
resposta de Aristóteles, segundo a qual a ousía enfeixa uma tal
determinação. “Qual a determinação simples e unitária do ser
(Sein) que prevalece dentre as múltiplas significações do ente
(Seiende)?” O retorno à raiz das quatro acepções que a pergunta
heideggeriana implica, também muda o foco da indagação do Esta-
girita, incidindo aquém da substância, e revelando, ao mesmo tem­
po, o pressuposto da pergunta do filósofo grego. Aristóteles inda­
gou sobre o que determina o ente como ente (Tò ón he ón), e,
portanto, sobre o ser do ente, a ousía, relativamente à qual são
distinguidas as quatro acepções. “Em que medida o ser do ente
(das Sein des Seiende) se desdobra nos quatro modos que Aristó­
teles somente constatou, deixando indeterminada a sua proveniência

23 Id., ibid., p. 332-3.


24 Id., ibid., p. 334.
25 Id., ibid., p. 349.
28 Ricoeur, Paul. Métaphore et discours philosophique. La métaphore vive.
Paris, Seuil, 1975. p. 327.
41

comum?” 27 A indagação sobre o ente enquanto ente tem no ser


do ente a sua resposta, mas o ser que o determina como ente, e
que é a provcniíncia cumuiii das qualro açcpçõcs, que lhe corres­
pondem, pcnnaneccu intocado. Aristóteles não desceu ao ser tacb
tamente contido na pergunta — o pressuposto que possibilitou a
sua formulação e que a resposta absorveu.£ silenciou. Porém,
independentemente do ente," ò ser não é nada de determinado. A
perplexidade maior levanta-sc aqui: deparamos com o ente cm toda
parte, mas não encontramos o ser cm parte alguma. O que então
significa ser? Perguntar pclu comum provim iíncia das qualro acep­
ções, c perguntar o que significa “ser", Ora, 0 significado dc ''ser"
é deceptivo: compreendemos essa palavra ao usá-la, mas, se ten­
tamos apreender o que ela diz, não compreendemos senão algo
indeterminado, indefinível, cujo significado se esfuma ou se esvazia.
Passa-se com o ser experiência semelhante à que ocorre com o
tempo. “Se ninguém mo perguntar, eu sei; se eu quiser explicar
a quem me fizer esta pergunta, já não sei’’, assim exprimiu-se Santo
Agostinho, em suas Coníistòts, a respeito do tempo, descrevendo
a embaraçosa experiência daquilo que sabemos sem poder txpli-
cá-lo. Não é por certo casual que o mesmo embaraço sobrevenha
a propósito da linguagem. Sabemos o que é a linguagem quando
falamos, usando as palavras da líijgua, mas a linguagem se torna
enigmática quando tentamos compreendê-la, fora da compreensão
tácita que o seu emprego diuturno envolve. O que é, pois, o ser,
que sempre compreendemos, e a respeito do qual nada mais sei se
me pedem que o explique?
Essa compreensão indeterminada, que possibilitou a formula­
ção da pergunta aristotélica e o problema correlato do ser, é também
a proveniência comum das acepções que o Estagirita distinguiu, a
raiz do ente enquanto ente. A tradição do pensamento que se con­
solidou na Idade Média com o nome de Metafísica assimilou inte­
gralmente a lição de Aristóteles: dado que o ser é o mais universal
dos conceitos, mas que tal universalidade é analógica e não gené­
rica, transcendendo todos os gêneros, o conceito de ser, que não
se esgota no conceito de um ente, é também o mais compreensível
dos conceitos. Santo Tomás de Aquino afirmou: “Certa compre­
ensão do ser está em cada caso já incluída em toda apreensão de
um ente” (cf. SZ, p. 3). O problema do ser encerrou-se nesses
limites e fechou-se dentro deles, fora de toda perplexidade pelo
fato de que, não sendo um ente, o ser está compreendido de ma­
neira indeterminada na determinação do ente enquanto ente, como

27 Heidegger, M. Preface/Vorwort. In: Richardson, W. L, S. J., op. cit.,


p. X.
41!

a parle submersa na figura maciça de um rceínjrj? flutuante. A per­


gunta heideggerinnB retoma o problema do ser. pondo cm questão
essa estranha comprecnsibilidade indeterminada.
0 ser i o mais wmprecnsívc! dos conceitos, Em tedo conlic-
cer, cm todo enunciar, em toda ccndula relidivamente n um ente,
cm lodo coruhizir-se rc tal iva mente a si mesmo, lisa-sc o termo
"ser", c O termo c compreensível -.. Todo mundo compreende
isto; o céu é azul, eu sdu uma pestea dc bom humor ele, Mas
oisa compreensão “mediana" não faz mais do que revelar a incom-
precnsibilidade. Isso patenteia que em todo tonel uzir-sc c ser rciii-
tivamente a um ente há um enigma n priorí [SZ, p. 4}.
A rjrtejitfa rfo jeítrrtfo, pertinente ã compreensão indeterminada, é
o que $c omite no problema do ser. como o mais ábvip, a respeito
do que não há necessidade de indagar ou perguntar.
O fato dc que vivemos já em cada caso numa certa compreensão
do ser, e que ao mesmo lcm|
*o o sentido do rrr seja envolto na
obscuridade, prova a fundamentei ncccssidiide dc reiterar a ques­
tão sobre o sentido do termo (SZ, pP 4).
A questão do ser ou do sentido do ser, que retorna âú proble­
ma outológjco não para rccompõ-lo ou para reconstituí-lo doutri-
nariamente, mas para focalizar o pressuposto que possibilitou a sua
formulação, * a resposta que a ele se deu, é, pois, preliminannentc,
uma indagação sobre o que significa "ser”. Ela recua ao plano da
linguagem e pergunta o que entendemos por esse termo familiar e
trivial c pelo seu correlato erudito, "ente”. “Temos hoje uma res­
posta â questão acerca do que significa propriamente a palavra
ente? Dc modo nenhum. É, pois, justificável que se coloque de
novq a questão sobre o sentido do ser,”21 De uma certa maneira,
estamos diante de uma questão de palavras.
Convém lembrar que o termo ente (eus) 6 um substantivo
verbal (cm grego o parlicípio neutro, tò 6n, do verbo eiwir, infini­
tivo eótai, ser), tanto designando algo determinado nessa ou naquela
forma — um pedaço de giz, uma árvore, um triângulo — c, por­
tanto, o que <f, quanto significando, nessas coisas, isso que é ou
que possui 0 ser. Como o erw latino ou o tò Aí, ente (Scinde)
oscila entre a designação substantiva pluralizada, aplicando-se ao
giz, à árvore ou ao triângulo, que são entes (ciniu. tá ánta), e a
menção ao que ê expresso pela significação do verbo ser (einai,
esse), na terceira pessoa do singular (cf. fütf, p. 24); por sua vez,
essa significação assinala o núcleo da atribuição cm jogo nas cate-
gívfflj c na distinção entre o verdadeiro c o falso, que se exprime28

28 Id., SZ, p. 4, epígrafe.


43

no enunciado preposicional ou apofãníica. Que se passa então


com a palavra "ser”, cuja signiíicaçío vige no “4”, regendo o
entendimento das cflrcgonwJ c, por conseguinte, já carreada ])cia
própria pergunta sobre o ente e pressuposta pelas quatro acepções
em sua comum proveniência? A questão não é ípenas de palavras,
porque as palavras e a linguagem como um todo estão comprome­
tidas com essa significação, que as mobiliza num contexto de pen­
samento — a Metafísica, levando do Estagirita aos escolásticos,
c dos cscolásticos à Filosofia moderna, onde parece haver encon­
trado o seu limite crítico.
Não somente as categorias herdadas pelos escolíislicos, desde
o século XI, através do neoplatonismo, c para os quais a partir do
século XIII a Metafísica passou a significar a scíentia veriiatis; não
apenas a união do predicado com o sujeito nas proposições verda­
deiras, e sua separação nas falsas, mas também a potência e o nío,
o poder-nv e o ser, rctracm-sc â “proveniência comum” -— à
significação Htór”, correspondente ao ”é", jamais, entretanto, dire­
ta mente abordada. Reencontramo-la na recíproca implicação do
enj e do «se, manifestando-se nos aspectos descoincidcntes, mas
inseparáveis, da essência íqutd est, quidditas, o tjire <0 c da exrjc-
fírtcfu (quod est, quuddilas, que é, ou que existe). Entre os teó­
logos medievais, quer as posições njais platônicas, que advogaram a
prioridade da essência sobre a rrijréncm. quer as posições mais
aristotélicus, que defenderam a complemcntâção da primeira pela
segunda, como ato de ser (esse), realizando a essência num ente
determinado, giraram cm torno da concepção do ente enquanto
ente, e foi a admissão do ente cm grau supremo o que as con­
ciliou. A essência e a existência coincidem cm Deus, no swmniw/n
ens, que criou o universo, c dc que todas as coisas são criaturas,
a ele remontando como A causa necessária a partir da qual existem
(ex alio sistere). O duplo objeto da Filosofia primeira, o ente
enquanto ente e “a região suprema do ente * ’ (timôtaton génos),
de onde se determina o ente como um todo (katólou), reaparece
no quadro de uma ordem entitativa seccionada em dois planos —
o do Criador e o de suas criaturas, entre os quais a analogia se
transforma no princípio de conhecimento e dc participação no
próprio Ser Supremo, única e absoluta fonte da verdade.
Desta maneira, a totalidade dog entes, conforme a consciência
cristã do mundo e da existência, subdivlde-sc m Deus, Natureza
e Homem, regiões a que se destinam logo a Teologia, cujo objeto
é o summum ens, a Cosmología c a Psicologia, que juntas formam
a disciplina chamada Metapfiysica spccialit, Em troca, a Meta-
physiea gemtralls (Ontologia) tem por objeió o ente cm geral (ens
commune) (KPM. p. 24).
44

Trabalhada depois pela Escolástica no século XVI, mormente


com Suarez, a tradição metafísica chega ao século XVIII, depois
de haver passado pelas mãos de Christian Wolff e de Baumgarten,
etiábilizada na forma de uma ciência dedutiva, certa pelo caráter
abstraia de seu objeto — o ente em sua forma mais pura, despo­
jado de matéria — além de hegemônica pelo grau superior de suas
noções, cuja universalidade a priori lhe empresta um status de
conhecimento essencial da razão pura, independente da experiên­
cia, tal como Kant a reconheceu e criticou. Do problema do ser
retirava-se a perplexidade, que Platão ainda mantivera diante da
idéia e Aristóteles diante da ousía. Apurada e depurada num con­
junto de noções comuns que transportam a concepção do ente para
as diretivas do saber moderno — da ciência galileana da Natureza
ao princípio do Discurso do método de Descartes —, a Metafí­
sica foi o campo de omissão do ser, que se furtou à questão, nela
sempre silenciada, em proveito do ente. Ao propô-la, Heidegger
situa-se por certo na Metafísica, mas interpelando-a em sua omis­
são, e questionando a sua essência a partir desse olvido que ela
sedimentou. “A referida pergunta caiu hoje no esquecimento, se
bem que nossa época registre como um progresso reafirmar a Me­
tafísica” (SZ, p. 2).
Mas a questão do sentido do ser não é o tema capital do
pensamento de Heidegger apenas porque lhe forneça o ponto de
partida. Como pergunta, ela se efetiva inquisitivamente, mantendo
seu caráter de interrogação, e desenvolvendo-se como indagação
direcional, voltada para o seu próprio objeto, o que o teor da frase
alemã, der Frape nach dem Sinn vom Sein (a pergunta sobre o
sentido e dirigida para o sentido do ser), deixa perceber. Contínua
e persistente, há nessa pergunta uma singular solidariedade com o
objeto temático, que também a coloca sob o ângulo da inquisição
mobilizada por seu intermédio. Quer isso dizer que a questão
mesma, solidária ao objeto, é sustentada por aquilo a que o seu
perguntar se dirige, o ser e a pergunta que o tematiza formando os
fios inseparáveis, porém distintos, de uma única trama inquisitiva.
Estamos, portanto, diante e dentro de uma pergunta auto-reflexiva,
pela qual nós mesmos estamos compreendidos.
Por conseguinte essa indagação entramada não cessa depois
de haver-nos conduzido ao seu objeto. E, ao fazer-se, ela proble-
matiza o campo inteiro da Metafísica — a partir da Ontologia —
exibindo-lhe o fundamento sobre o fundo da compreensão pré-
-ontológica do ser que a ciência primeira omite e demite, como o
pressuposto latente em que repousa. Perguntamos afinal “pela pos­
sibilidade de compreendermos algo que todos nós, sendo homens,
entendemos constantemente e sempre temos entendido” (KPM,
45

p. 204). Finalmente, a questão do sentido do ser interroga sobre


o que possibilita essa compreensão, isto é, sobre aquilo em que ela
mesma se apóia.
Contínua, reflexiva e autoproblematizante, a questão em que
assentam os prolegômenos do pensamento dê Heidegger — e que,
uma vez delineada, propiciou ao filósofo uma leilura dc Aristóteles
à eontracorrcnte da trarfiçSo que na cfàieia primeira sc configurou,
puralctamc-ntc u uma leitura metafísica de Kant , essa questão a
reiterar é suscetível de elaboração. Longe da condição de objeto
temático, para o qual se encontrasse, ao fim e fora da pergunta, o
conceito adequado, só através dela se nos entrega o sentido do ser
em que se apóia a compreensão sobre que indaga e pela qual se
acha imantada desde o momento de formular-se. “Por isso, reite­
rar a questão do ser significa: elaborar de maneira suficiente a
própria pergunta” (SZ, p. 4).
Foi numa perspectiva hermenêutica, com o tempo por hori­
zonte delimitativo, que Heidegger enquadrou essa elaboração em
Ser e tempo, depois de apropriar-se do método de Husserl.
III

O QUE É FENOMENOLOGIA?

Seweisen lasst sich in diesen Bereich nichts, aber weisen


manches.
Heidegger, Identitãt und Differenz.1

Apropriando-se da Fenomenologia, Heidegger refez, de certo


modo, o ntclodo de Husscrl, dcsconsiruindo-lhe o arcabouço filo­
sófico erguido nas obras posteriores às Investigações lógicas, e reto­
mando pela base a direçío dc pensamento que despontou nesse
texto. “A expressão ‘Fenomenologia
* significa prcliminarmente a
conceito de um mílodo" (SZ, p. 27), Mas qual a direção meto­
dológica implicada no retorno às coisas, qüc Husscrl anunciou, e
como ela sc desenvolveu a servíço do estabelecimento da
pura, com a latitude de uma Teoria do Conhecimento, a partir
da captação intuitiva do conteúdo das nossas vivências?
Em termos muito precisos, em A Filosofia como ciência rigo­
rosa (Die Philosophie ais Strenge Wissenschaft), publicado na re­
vista Logos (1911), Husserl deu à descrição dos fenômenos, legiti­
mada como intuição das essências, sem o recurso a pressupostos,
a qual fixou o consenso geral sobre a identidade não-explicaliva
do método fenoincnoJógico, o cunho dc conhecimento fundamental,
na âccpçào de ciência filosófica estrita c rigorosa. Depois dos mo­
destos começas que a levaram, através da linguagem, da análise
da expressão à elucidação do conhecimento — caminho percorrido

1 “Nesse domínio, onde nada se pode demonstrar, muito pode ser mostrado.”
Heidegger, Identidade e diferença.
47

pelas Investigações lógicas —, a Fenomenologia transformou-se na


“ciência dos verdadeiros começos”, da ortgcm, das raízes de tudo
(rizómatha pdnton), O rciümo às coisas converteu-se, já sabiclo
que a descrição das coisas ultrapassava o plano dos fatos empíricos,
nmn ideal de clareza absoluta, de evidência plcnq. Esse radica­
lismo, que coroou a propensão logicizante do pensamento de Hus-
serl por uma Filosofia transcendental do senttdo, unindo um mé­
todo de natureza intuitivísta à investigação específica das vivências,
como matéria-prima de conhecimento inconcusso, origem dos prin­
cípios, e no qual estaria a raiz buscada há tanto tempo da Filosofia
enquanto verdadeira ciência, derivou da interpretação peculiar da
intencionalidade — a intentio dos escolásticos, ou seja, a existência
dos objetos na consciência (in-existentia) — reformulada por Franz
Brentano, que a utilizou em sua Psicologia do ponto de vista
empírico (Psychologie vom empirischen Standpunkte, 1874), para
caracterizar o traço diferencial dos fatos psíquicos por oposição
aos físicos.
Enquanto Brentano viu na intencionalidade tanto a relação a
um conteúdo quanto a direção para um objeto, o que impõe à
vivência o caráter de ato, ressaltada, porém, a objetividade ima-
nente dos fatos ou fenômenos reais dados à percepção interna,
Husserl abstraiu esse teor de conhecimento imediato da realidade
psíquica, c conservou o nexo descritivo pu relacionai das vivências,
que comporiam, quando nâo são imancnies, diferentes mudos de
visar alguma coisa. Para a Psicologia descritiva qnc Karl Slumpf
e Alois Meinong, também discípulos de Brentano, desenvolveram,
as sensações enquadram-se entre os fenômenos psíquicos; contudo,
do ponto de vista fenomenológico, o que conta é o ato intencional,
segundo um determinado modo — no caso, a percepção, em que
visamos um objeto propriamente dito, e de que os elementos sen-
soriais compõem o ingrediente material (hilético). Não temos
vivências de impressões cromáticas e sim de cores ou de algo colo­
rido. A escala dos fenômenos da Fenomenologia são as vivências
intencionais (Erlebnisgegebenheit) e o que nelas se dá numa visão
interna (Innenschau): a unidade da essência, através das variações
do individual sob a cobertura da evidência, que não é senão o
modo originário da intencionalidade. Todas as modalidades de
ato, como a percepção, a imaginação ou o juízo, incluem uma

2 Para o estudo da diferenciação entre a Psicologia descritiva e a Fenome­


nologia, leia-se Schérer, René. De la Psicologia descritiva à la Fenomenolo-
gía. In: —. La Fenomenologia de las Investigaciones lógicas de Husserl. Gre­
das. cap. 3, p. 75-100.
48

distinta forma de referência a objetos, de acordo com a qualidade


do alo (o perceber, o imaginar c o julgar) e a sua matéria (o que
é percebido, lembrado, julgado cic.).
Essa interpretação htisscrlíana do nexo intencional, que o é
também da essência da consciência, separou da Psicologia descri­
tiva, empírica, o domínio inteligível dos dados fenomenológicos —
as correlações ou conexões essenciais, válidas a priori, que se mos­
tram à reflexão —- tanto para os atos quanto para as objetualidades
neles visadas. A Fenomenologia se delineia então como uma
fenômew-tógica ou lógica doi fenômenos, cuja dificuldade inicial,
adveric-nos Husserl, estaria na inversão reflexiva do curso natural
do pensamento,® Incidindo diretamente sobre o fluxo do vivido,
a reflexão é também ato que retém outro ato, sob o seu foco, sem
alterá-lo, acompanhando o seu interno desdobramento, mantidos
sempre a pauta da intencionalidadc c o registro intuitivo do fenô­
meno. Entre h pencepfão. que faz parte do fluxo vivido, e a vivên­
cia intencional, focalizada réflcxivamentc, vai toda a distância entre
o fato psíquico real e o fenômeno descrilível. Percebemos flores
na curva de um jardim, uma figura geométrica traçada na areia ou
homens que caminham cm nossa direção. Cada uma dessas per­
cepções nos traz a presença, "cm pessoa”, de objetos apreendidos
sempre sob determinada perspectiva c nunca exaustivamente. E,
ainda que os objetos não existam,' revelando-se afinal produtos
de alucinação passageira, essa presença, cm cada caso, exemplifica
a essência da percepção, isto é, a unidade descritiva da vivência
intencional respectiva. Quando lembrado, o mesmo jardim com­
parece cm imagem; quando Mnugpmrffl, a figura geométrica se
apresenta em seu ser ideal, que rege os possíveis traçados represen­
tativos dela na areia ou no papel; quando objeto de juízo os homens
que se aproximam, sejam apenas objetos na lembrança ou imagi­
nárias formações visadas, tomam-se Uma dc um novo ato dc
caráter objetivante, que lhes confere propriedades ou que os colo­
ca cin relação com outros objetos. Assim a reflexão se detém
sobre o vivido, dele retendo o nexo intencional que lhe permeia as
variações c que se manifesta ou aparece à luz de cada espécie de
ato, segundo o seu próprio modo dc evidência. O registro intuitivo
do fenômeno, a evidência do que se mostra por si mesmo, mani­
festando-se ou aparecendo, toma um relevo semântico mais condi­
zente com o significado da palavra grega phainómenon, mas nem
por isso incompatível com o do vocábulo alemão Erscheinung,

1 Ou o "hábho antitiatural da reflexão" dc que (ala Husserl na Introdução


<1© tomo II da
* hwtitigüçüei tópicas (1913). Cf. Husserl. E. Kwftcrefccj
fosíevrí; recherches pour la Phínorrtcncilojíe et la Th-éoric dc la Ccnnaisuncc
Pruris, PUF, 1961. t. 2. 1. parte, p. 14.
49

esteja embora marcado pela concepção fenomenista da “simples


aparência” ou pela idéia kantiana de representação sintética dos
objetos, oposta à coisa cm si (númeoo),
O método descritivo combina, portanto, reflexão e intuição,
e alcança a unidade dos atos e dos objetos intencionados — uni­
dade ora simples, ora complexa, que se compre de distintos níveis
autônomos, mas que existem por dependência de outros nos quais
se fundam. Eis a estrutura da consciência, de que o próprio conhe­
cimento objetivo das ciências, fundado sobre as significações, é
apenas um dos modos e, sem dúvida, o mais eminente para Husserl.
Por meio das significações, a linguagem sé liga ao conhecimento,
e a experiência à razão.
As seis Investigações lógicas se desenvolvem respeitando a
coesão entre pensamento e linguagem. A elucidação do conheci­
mento na Sexta investigação arremata a análifee, iniciada na pri­
meira, das expressões, que são, como discurso ou partes do dis­
curso, signos significantes4. As expressões atestam aquela solida­
riedade de que as significações formam o ponto nodal. As palavras
despertam em nós o ato que anima dc sentido os signos verbais.
Sem intenção de significação esses signos formariam apenas a íace
física, o elemento sonoro, o complexo fônico perceptível; só me­
diante o significado a expressão sc.refere a uma realidade objetiva.
No conhecimento, a intenção de significação, que apenas visa ao
objeto, cumpre-se intuitivamente ã custa de novos atos, correspon­
dentes ao preenchimento intuitivo, dentro dos limites da significação
visada. Preenchida a significação, o objeto sc dá a conhecer; essa
vivência da identidade entre o dado c o lã.wdo constitui a evidên­
cia, que comporta diferentes graus de plenitude ou de adequação,
relativamente aos quais a verdade é o correlato objetivo.5 Assim
a Fenomenologia, que já apelava para a intentio antes de temati-
zá-la na Quinta investigação lógica, delimitou a significação como
esfera intermediária — entre a Gramática normativa e a Lógica
pura — das unidades ideais específicas, que têm a vigência aprio-
rística de categorias da linguagem, determinando a expressão e
sustentando a lógica conclusiva, inferencial.
Já havendo distinguido, em seu primeiro trabalho acadêmico,
a forma da existência lógica ou a validade dos juízos das vivências
de enunciação, Heidegger relacionou no segundo — a tese sobre
Duns Scotus — a esfera da significação aos modi significandi

4 Distinguindo-se dos signos indicativos. Cf. id., ibid., § 5, p. 37.


5 A evidência, no sentido estrito, é, por isso, o ato de uma síntese de reco-
brimento. Ato objetivante, ela tem por correlato o ser no sentido da verdade
ou a verdade. Cf. id., Sixième recherche, ibid., § 38.
so

(motins dc significar) da Escolãitica mcditvül, que legitimariam,


aproximando a GrtwwlWcn ejperrJarrva do Doútor Subtiiis à Gra­
mática universal proposia por Husserl, uma lógica interna dos
idiomas, que são “um conjunto orgânico de palavras animadas
de significação”6.
Foi o princípio da fatoicrônoftWe. rcalualizado pela Feno-
mcnoiogia, que permitiu a Duns Sootus alcançar, para além das
categorias dc significação c das pertinentes ao conhecimento (modi
cognoscendi), as únicas em que se detiveram os modernos a partir
de Kant, as categorias do ser (modus essendi), abordáveis segundo
as espécies diferentes dos atos ou camadas de atos intencionais a
que correspondem. Heidegger anteviu na Fenomenologia husser-
liana a possibilidade de completar a teoria categprial moderna por
uma teoria do juízo, a primeira dando conta das diversas correla­
ções objetuais, determináveis a priori, conforme a matéria inten­
cional, e a segunda restitutiva do sentido inerente a toda objetivi­
dade. Tratava-se, enfim, de volver ao nexo, que as acepções do
ente em Aristóteles pressupõem, entre a determinação das categorias
e a predicação no juízo (S é P), como síntese efetivada por meio
da cópula — do é, em que o jovem Heidegger viu o ponto de
emergência do sentido articulador da proposição. Não mais se
poderia manter a prioridade do problema do conhecimento que
depende do fenômeno primordial da significação, a não ser que
esse problema tivesse, com base numa teleologia da consciência,
que a intencionalidade tornava admissível, um tratamento metafí­
sico.7 O sujeito transcendental do conhecimento, que saíra do
“giro copernicano” da Crítica da razão pura e que é o fulcro das
categorias determinativas da experiência possível e dos seus objetos,
deixaria de ser apenas “a unidade universal da consciência de si” 8
para converter-se no sujeito poético, como espírito vivo e histó­
rico 9. Mas seria em torno do sujeito transcendental — eixo da
epistéme moderna e do problema da subjetividade a ela inerente,
ao qual a Fenomenologia retornou, de maneira bastante singular,

8 Heidegger, M. Die Kategorien und Bedeutungslehre des Duns Scotus, FS,


p. 246.
7 “A Filosofia não pode dispensar por muito tempo sua óptica própria, que
é metafísica. Para a teoria da verdade (Wahrheitstheorie), isso significa a
tarefa de uma última interpretação metafísico-teleológiça da consciência.”
Heidegger, M., FS, p. 348.
8Kant, E. Werke; Kritik der reinen Vernunft. Berlin, Georg Reimer, 1911.
Erste Abtheilung da Kant’s gesammelte Schriften herausgegeben von der
Kõniglich Preuzischen Akademie der Wissenschaften.
,9 “O espírito vivo (der lebendige Geist) é, como tal, essencialmente, um
espírito histórico (historischer Geist), no mais amplo sentido da palavra.”
Heidegger, M., FS, p. 349.
51

através do próprio nexo intencional — que se travaria o dissídio


de Heidegger com Husserl.
Tal como Husserl o concebeu, pode o nexo intencional ser
percorrido em duas dimensões: uma que vai tio objeto visado
(nácitia) à consciência, outra que vai do modo de visar (rióesis)
ao objeto visado.1* O que. é daçlo do objeto, sob a primeira di­
mensão, apresenta-se sob a segunda como, ato dc dar sentido
(Sinngcbmig), Ambas .üüo'propriedadis essenciais do scr intencio­
nal da consciência, dc que Husscrl faria o campo exclusivo das
suas investigações, programadas e sistematizadas em Idéias para
uma Fenomenologia pura e Filosofia fenomenológica (Ideen zu
einer reinen Phãnomenologie und phanomenologischen Philosophie,
1913), onde se completava a definitiva enxertia do método feno-
menológico no tronco do cartesianismo. A Fenomenologia é àí a
ciência da consciência pura e como tal uma ciência de caráter
eidético, para a qual se transfere o acalentado ideal husserliano da
teoria pura, do conhecimento filosófico rigoroso, com o vigor de
uma próte epistéme (ciência primeira). Esse rigor dependería da
conquista dos fundamentos inconcussos, da fixação dos verdadeiros
começos. Uma vez que a relação intencional, tomada descritiva-
mente, dispensa a existência empírica dos objetos, e que estes fazem
parte, juntamente com os próprios atos, de uma mesma corrente
de experiência 10
11 — corrente de experiência, acrescente-se, que já
é reflexiva —, uma nova espécie de imanência não-real, mas envol­
vida na evidência do sentido, inseparável do que se dá à reflexão
como fenômeno, passa a primeiro plano, autorizando a tratar as
vivências, enquadradas no gênero da percepção clara e distinta de
Descartes, só enquanto cogitationes, que contêm as suas cogitata.
Porém, entre a reconhecida legitimidade desse tratamento e a atitu­
de que se deveria assumir para guindá-lo ao posto de tarefa neces­
sária a ser executada pelo pensamento filosófico, vai toda a dis­
tância que há entre a idéia do primado da evidência intuitiva e a
decisão de suspender-se a vigência dos enunciados científicos, das
/alidades lógicas e matemáticas, dos próprios axiomas, e, logo, de
neutralizar quaisquer visos de realidade e de valor, a fim de, sem
nada propriamente negar, abstendo-se o fenomenólogo de atribuir
alcance efetivo ao que quer que transcenda as vivências, reduzir
todas as coisas a fenômenos, isto é, ao que se dá indubitavelmente

10 Cf. Muralt, André de. La solution husserlienne du débat entre le réa-


lisme et le idéalisme. Revue Philosophique de la France et de l’Êtranger,
(4):545-52, oct.-dec. 1959.
11 Husserl, E. Idées directrices pour une Phénoménologie. 9. ed. Paris, Galli-
mard. 1950. p. 122.
52

nas vivências sob uma visão reflexiva direta. Essa decisão de prin-
cípfo, com a taiitude dc um ato dc vontade, que, produto da
particular paixão do pensamento {Lcidenfichaft dc Dcnkens) dc
Husserl» pela lógica, ‘'depende de nossa inteira liberdade"«,
ítffngí rt tee da atitude natural dentro da qual vivemos, c consubs­
tancia, numa remodelada versão da dúvida metodológica de Des­
cartes, a íporAí /«ifflTwrotógrca, que desliga ou coloca entre parên­
teses a tácita e irrçflexiva admissão, correspondente àquela tese,
da realidade “do mundo em que me encontro e que ao mesmo
tempo me rodeia” 12 14.
13
Praticada a epoché, abre-se, sob o registro da redução, ins­
taurado o primado da atitude reflexiva sobre a atitude natural, o
domínio da consciência pura — o fluxo do vivido, “as vivências
da consciência com toda a plenitude concreta”15, e a Fennmcno-
logia toma-se, como Filosofia transcendental do sentido, a ciência
radical e primeira dos verdadeiros princípios. Mas, conquanto fosse
comprometida com esse radicalismo, e conseqüentemente com a
idéia de fundar a Filosofia científica, a redução, que faz sobressair
a descritividade do método, era a extrema conseqüência da inter­
pretação da intencionalidade por Husserl. A constituição do sen­
tido das diferentes espécies de objetos pela consciência comple­
taria a redução. Tarefa última da Fenomenologia, constituir signi­
fica remontar da cogitatio ao Cogito, das vivências intencionais à
origem das evidências nos atos da experiência reflexiva, resguardada
pela evidência originária do Eu. No Eu, fonte do sentido, encon-
trar-se-ia o fundamento, e o próprio mundo, reduzido a correlato
da consciência, constituir-se-ia por essa mesma evidência.
A Fenomenologia, cujo status disciplinar fora ambíguo, ora
aproximando-se da Psicologia, ora da Lógica, restava, no termo de
seu desenvolvimento, com a experiência transcendem al da Filosofia
moderna, que, concluía Heidegger, “pressupõe a atuação da subje­
tividade, do sujeito cognoscente agindo e instaurando valores” 16.
O seu propalado “retorno às coisas” terminava nesse reatamento
consciente e decidido, entregando-lhe, ao mesmo tempo, a explo­

12 A paixão fundadora dominante da Fenomenologia husserliana de que


trata Eugen Fink em seu Que quer a Fenomenologia de Edmund Husserl?
(A idéia fenomenológica de fundação). Cf. Fink, Eugen. De la Phénomé-
nologie; avec un avant-propos d’Edmund Husserl. Traduit par Didier Frank.
Paris, Minuit, 1974. p. 182 (Arguments).
13 Desse ato de liberdade resulta uma conversão do valor da tese que se
opõe “a todos as posições adotadas pelo pensamento”. Cf. Husserl, E.,
Idées. . § 31, p. 99.
14 Id., ibid., § 28, p. 91.
is Id., ibid., p. 111.
16 Heidegger, M. Mein Weg in die Phãnomenologie, ZS, p. 84.
53

ração dos atos vtvcnciados c dos objetos neles vividos. Mas —


deve-sc acrescentar —, ao abrir semelhante domínio por meio da
epocA^, a Fenomenologia suspende a tese do mundo natural espon-
lançanicntc vivenciado, adotando uma lese dc cunho ontológíco:
o jer absoluto da consciência, fundamento e raiz de‘tudo, à luz do
qual, sem que se aclarasse a noção mesma de ser, tudo se torna
objeto para o Eu, Na yerdade, a redução, confcssava-o Husserl,
invertia o sentido usual da expressão jer, que só à consciência se
aplicaria cabalmente.
Anunciando a volta às coisas e identificando, tal qual Des­
cartes o fizera, ser c sujeito, Husserl abandonava possibilidades
intrínsecas do método. Do ângulo do problema do ser, cm que
Heidegger se colocou, o método íenomcnológico sofrerá um desvio
dessas possibilidades, basicamente encerradas nas 7nv«rígtíçòes
lógicas c para as quais aponta a descrição dos atos intencionais com
a intuição das essências que 05 caracteriza. A restauração do ponto
de vista transcendental não esgotaria a direção do pensamento
fcnomcnológico nem o alcance da intcncionalidade. Uma vez
reconstituídas as potencialidades que certos tópicos desse pensa­
mento permitiam divisar — principalmente a intuição categorial,
de que trata a Scxla investigação, náo de lodo estranha a Aristó­
teles —, “o tentame do pensamento” chamado Fenomenologia ”
poderia realizar-se, realizando o retorno às coisas, na direção do ser.

II

Investigada por Husserl como um capítulo da Fenomenologia


do conhecimento 1718, com a finalidade de esclarecer um aspecto das
relações entre intenção ãe significação e efetuação intuitiva, a
intuição categorial seria a intuição da unidade das determinações
atributivas ou da predicação. Os passos dessa análise descritiva
pressupõem a nova teoria do juízo esboçada na Quinta investigação
— de que precisamos tratar agora, ainda que sucinta mente — e
cujo resultado, que serviu de pista a Heidegger, inscró-se no âmbito
da experiência ícnomciiológica qualificada pela evidência, que, já
o sabemos, é modo original de intencionalidade.
Se a cada ato da consciência intencional, seja a percepção,
seja o desejo, corresponde um modo de visar o objeto, ao juízo

17 Id., ibid., p. 83.


18 Cf. Husserl, E. Recherches logiques', éléments d’une élucidation phéno-
ménologique de la connaissance. t. III; seção 2 — Sensibilité et entendement,
cap. 6 — Intuitions sensibles et intuitions catégoriales.
54

não faltará um caráter essencial descritivo próprio, com o seu cor­


relato objetual específico- Enquanto na pereepção o correlato é
o abjeto que se apresenta L,em pessoa” OU cm si mesmo, no juíso,
considerado em sua forma mais estrita ou exemplar — o enunciado
prcdicatívo —•, o correlato é um estado dc coisas (Sachverhalt),
que niio se reduz ao dado empírico, por mais que esteja fundado
num pevpepfo. Estado dc coisas quer dizer; tal ou qual consti­
tuição, propriedade ou situação do objeto que o posiciona. Man­
tendo-se a diferença fcnomcnolrtgica entre o ato de julgar e o
objeto intencional, o que sc dá, portanto, sob múltiplas formas no
juízo (presuntiva, dubitaiiva, categórica etc,) é o objeto posicio­
nado, o fato de que ele seja isto ou aquilo. Em resumidas contas,
o fenômeno respectivo, tome ou não apoio na percepção, corres­
ponde a um modo de ser,
Com o desenvolvimento da Fenomenologia transcendental, a
descrição da evidência aprofundou-se na direção do ideal de com­
pleto preenchimento intuitivo, que só se realiza na percepção como
“dação originária”. Paratelamente, ao nível reflexivo das vivências
intencionais puras, opera-se a crítica do enunciado predicativo, que
Husserl tomou como parâmetro dc sua teoria do juízo. A evidência
do juízo, comensurada a experiência ícnomcnológica originária,
que equivale, como diria num texto publicado em 1929 (Lógica
formal e Lógica transcendental), à consciência dc estar perto das
coisas mesmas e de apreendê-las, recai sobre os objetos individuais
ou sobre os estados de coisas. São estes em última análise os temas
dos juízos. Quando julgamos, o pensamento alcança esses obje­
tos sob um certo aspecto ou modo que lhes impõe a síntese predi-
cativa e que se fundamenta, contudo, numa dação originária, numa
experiência antepredicativa.
Tal experiência não-perceptual, que implica posicionar a coisa,
visando o que ela é, como objetividade ou como ente, alargaria
a concepção do juíza, emprestando-lhe, concomitantemente, um
porte ontológico. Mas isso significa tambím. com a queda de velha
tese egressa do kantismo, que a síntese das representações não é
a condição transcendental do juízo; ao contrário, c a experiência
antepredicativa que condiciona a síntese, como moda de relacionar,
ligar ou unir, sob certa forma, o que antes sc apresenta ou se mani­
festa □ consciência, tornando dispensável a idéia de representação.
“É no fato de que uma coisa se apresenta por si mesma que se
funda a verdade do juízo.” 19 Mas, não sendo essa apresentação

19 Volkmann-Schluck, K. H. Husserls, Lehre von der Idealitãt der Bedeu-


tung ais metaphysisches Problem. In: —. Husserl et la pensée moderne.
[Husserl und das Denken der Neuzeit]. La Haye/Den Haag, Martinus
Nijhoff, 1959. p. 233-43,
perceptual ou sensível, o que então entra em jogo na forma judi-
cativa, para que tenha objetos ou estados de coisas como seus
correlatos?
Tal pergunta tstá implicitamente contida na primeira tese de
Heidegger — A doutrina do juízo no psicologismò —, que seguiu
as pegadas das lógicas. O resgate da Lógica ao
psiçologismo deveria começar pela reforma da teoria do juízo, onde
essa tendência era mais insinuante. As doutrinas empenhadas em
ressaltar a natureza peculiar desse núcleo do pensamento eram
p&icologistas.10 Deixavam dc lado, em proveito de fatos ou dc atos
psíquicos (ordenação, assentimento), o principal: a existência do
juízo, a sua identidade lógica, qitc Heidegger caracterizou então
como valer (Gelten). Ao mesmo tempo fator idêntico de exis­
21 na ordem das significações articuladas,
tência não-real e sentido,20
esse valer aponta para a cópula, parte essencial do juízo, conside­
rada erroneamente por Wundt como um elemento tardio dos atos
de julgar. O sentido nasce da articulação das significações por meio
da cópula. Qual então, pôde Heidegger perguntar-se — o que
equivalia a inquirir sobre a significação do “é” —, o sentido do
sentido (das Sinn des Sinnes)? (Cf. FS, p. 112.) Preludiando a
questão do ser, a intuição categorial, que é a intuição singular,
antepredicativa dessa significação,,na verdade impreenchível, e que
possibilita a predicação, trouxe-lhe a primeira resposta.
Para a significação nominal “este papel branco”, a intenção
significativa é preenchível com a percepção mesma do objeto que
a expressão significa. Mas, para a proposição “este papel é branco”,
há um excedente de significação não intuitivamente recoberto.
Vejo a cor, e não o que é branco. Percebemos o papel branco,
mas nada intuímos sensivelmente sob a significação da partícula
verbal é. Apesar disso, porém, o excedente de significação, que
escapa da intuição sensível, é também intuído. De outra forma
não compreenderiamos o que a proposição enuncia. A unidade da
determinação categorial, portanto, não é vazia. Sem que se con­
funda com o juízo propriamente dito — com a enunciação e com
o seu objeto intencional (aquilo a respeito do que se enuncia) —
o ser que possibilita a determinação atributiva, o tomar o objeto
como algo, e dizer dele o que é e como é, coloca-se debaixo de
nossa vista no juízo. O conceito de ser, dizia Husserl, só pode

20 Heidegger examina as doutrinas de Heinrich Maier, Franz Brentano, Anton


Marty e Theodor Lipps. “A problemática do juízo não assenta no psíquico”
(FS, p. 106).
21 Adotando a fórmula de Lotze, Heidegger escreve que “a forma de reali­
dade do fator idêntico descoberto só pode ser o valer" (FS, p. 111-2).
56

surgir quando temos um ser diante dos olhos. Fenomenologica-


mente, o ser é apreensível no juízo, de que, entretanto, não deriva
por via da função transcendental de síntese. O domínio fenome-
nológico dos dados completa-se pelo ser como dado originário dos
fenômenos. Por esse tour de force de Husserl, afirmou Heidegger,
“eu tinha enfim o solo: ‘ser’ não é um simples conceito, uma pura
abstração obtida graças a um trabalho dedutivo”91. Está cm jogo
na forma predicaliva — mais precisamente na insignificante par­
tícula “í”, Inmando possível a apresentação de objetos ou estados
de coisas. Essa pista abandonada por Husscrl, para quem a intui­
ção catcgori.il apenas ratificaria o privilégio ontológico do Eu, que
responde pela evidência dos dadas originárias, levou Heidegger ao
cento da questão, que a análise da percepção sensível já lhe pro­
punha.
Não se pode falar em constituição do objeto presente, “em
pessoa”, na percepção sensível, pela consciência. Um só e mesmo
objeto aqui aparece, porém, de maneira incompleta, por escorço e
sombreamento, e nunca efetivamente dado.*23 Inconfundível com
o dado sensorial — a matéria, o elemento hilético em que a imentio
se apóia —, o ser-objeto do percebido também se apresenta rclali-
vamente a cada uma das suas perspectivas como um excedente
análogo ao da intuição categorial. Na percepção estou perto da
coisa; não a tenho na consciência a modo de representação, mas
diante de mim. Percebê-la é relacionar-me com um determinado
ente. Essa relação, que excede às diversas e diferentes apreensões
do objeto, se estabelece, pois, sob o foco da relação intencional,
à lux de uma outra proximidade, anlcdada ou pré-descoberla —
a proximidade com o ser, antecipadamente compreendido naquilo
que só parcialmente apreendemos de maneira real ou sensível.
Nenhuma percepção se efetivaria sem essa compreensão irrecobrá-
vel, inconstituível por qualquer tipo de evidencia superior, e que
traz o mesmo dado originário da intuição categorial. Todo conhe­
cimento de coisas ou objetos, atesta-o a Wesenschau, a intuição
da essência, entra na órbita dessa compreensão do ser. As vivên­
cias intencionais, com os fenômenos que nelas aparecem, perten­
cem ao âmbito do pré-descoberto.

21 Sémin.tire de Zührifljen. In: —. ÍP. Parti, ç.-iüimnrd. p. 515.


23 Cf- Síxüem rcehcrchc, f ]4, b. Etcorço c ;otnbreainei3tc do objeto rm.
trsJirç&> btriíileir;.. (jiíc dcKMti i imagem <tt "sombra1' c “Eut" n:> uso da
palavra .dârrtriãunjj pur HiiswrJ. (Cf. Hussfju., Ednmnd.
/tijfjeoi; Sexta invMtig.içiio. Seleção e traduçlo por Zehjko Lúpar& e Andréa
Maria Aliing de Campos Loparsê, Sio Pauto. Abnl CutmruL 1975, p, 52,
(Os Pensadores, XU.j
57

Reconsiderada depois disso» a consciência perde a primazia


oniológica que Husserl lhe conferiu. Ao ser próprio (Eigensein)
da consciência, "cm Sita absoluta especificidade cidética”, in.ifetado
pela redução fcnomcnológica — ou seja, inatingido pela epaclté, de
que seria, portanto, o único resíduo, como “região do wr original
por princípio” ** —, opõe-se o scr pré-dcscobcrto, pressuposto de
todos os objetos, cont-ncnhptn se ideutificandó, c que se mostra em
todos os fenômenos. Desse ponto de vista, porém, a intencionali­
dade deixa de constituir uma propriedade da consciência. O vol­
tar-se desta para os objetos, a relação intencional que a desinterio-
riza enquanto consciência de algo, é a compreensão do ser, que
antecipadamente circunscreve toda reflexão acerca das coisas e de
nós mesmos e em cujo círculo a consciência se move.
Em vez de propriedade da consciência, da qual tudo recebe
sentido, a intencionalidade tem a sua raiz no ser compreendido, a
que se acha dirigida na sua orientação para o objeto. Não há um
ser intencional à parte do ser pré-descoberto, de que a consciência
é o ponto de abertura (Erschlossenheit). O círculo em que a cons­
ciência já se move é o domínio mais originário da existência huma­
na, de que ela é a região iluminada, em vez da luz natural — do
lumen naturale —, como diz Heidegger, revitalizando a velha ex­
pressão escolástica.
Sob o prisma decorrente dessa nova interpretação da inten­
cionalidade, a evidência do conhecimento objetivo fundar-se-á nesse
aclaramento ou nessa abertura, como dação originária que o possi­
bilita e de que depende a posição do sujeito transcendental na Filo­
sofia moderna. Por conseguinte, não se poderia abordar o sujeito
transcendental sem abordar o ser do sujeito, o seu “si mesmo”
(Selbstheit), a sua existência. Era o modo de ser do sujeito, ina-
bordado por Husserl, concluiu Heidegger, que possibilitava a redu­
ção e, conseqüentemente, a constituição das coisas na consciência
pura. O problema da experiência transcendental transfere-se para
o problema da existência, e a indagação sobre o existente humano
converte-se no aspecto primordial da questão do ser. A realidade
singular e imediata da “existência”, que Kierkegaard, em pleno
fastígio do idealismo germânico, opusera ao Espírito mediatizado
pela universalidade do conceito na dialética de Hegel, interceptava
o idealismo logicizante da Fenomenologia husserliana. Dando o
fio de ligação entre o ser e a existência, a intencionalidade, recupe­
rada contra o primado ontológico da consciência, afiançou, para

24 Subsistindo como “resíduo fenomenológico”, o ser próprio (Eigensein) da


consciência tem absoluta especificidade eidética. Cf. Husserl, E., Idées...,
§ 33. p. 108.
58

Heidegger,. a rttcmquista das possibilidade» virtuais da Fenomeno-


logia, permiiindo-lhe fundar s dcscritividadc da intuição das essén-
cins c retificar, numa iwrspcetiva histórica insuspeitada pelo seu
fundador, o alcance, como Filosofia, do método fciiomcnológico.

III

Foi, contudo, na permanente confrontação das descobertas


de Husserl com as matrizes metafísicas do problema do ser em
Aristóteles e nos pensadores gregos em geral, que Heidegger con­
solidou o seu entendimento da intencionalidade e da Fenomenolo­
gia e pôde estabelecer entre a Fenomenologia e o pensamento grego
um circuito dialético de elucidação recíproca que os aproxima
historicamente. A intuição categorial descerraria o núcleo do en­
tendimento aristotélico do ente — a acepção do ser nas categorias
— e do enunciado proposicional ou apofântico que com o ente
se relaciona.
Caracterizando a proposição (apóphansis) como gênero de
discurso (lógos), que difere dos gêneros estudados pela Retórica
e pela Poética, aos quais a distinção entre o verdadeiro e o falso
não sc aplica, o tratado Da órterpretflfão' (Perl Hcrmcntfa»), de
Aristóteles, remeteu o lógos ao plano da significação expressa ou
da palavra. O discurso é som vocal, que tem uma significação, c
a significação é, antes dc ludo, palavra falada, c, portanto, lingua­
gem. Fcnomenologicamcntc, a proposição releva, segundo vimos,
da experiência anleprcdicatíva; ela enuncia a respeito do já dado
ou manifesto. Nesse sentido, a é linguagem, phonè
metà phantasías, som ou vocábulo em que sempre se avista algo
como algo, e que por isso pode qualificar-se de verdadeira ou de
falsa. Lógos significaria primordialmente — e eis como Heidegger
traduziu esse termo intrigante — tornar patente ou manifesto
(offenbach machen) aquilo de que se fala no discurso (in der
Rede). É só porque mostra as coisas que o discurso pode ser
verdadeiro ou falso.
Esse reajuste do significado do lógos, que justifica a sobre­
carga dc traduções cumulativas — cohmíw, juíza, razão, verba
— recebida por um dos termos mais graves e mais historicamente
densos da Filosofia, liga a função apofânlica do enunciado à intui­
ção da essência, ao que se manifesta ou se mostra como origina-
riamente dado, e que é a órbita da Fenomenologia. Surpreenden­
temente, essa escavação semântica de “fenômeno”, que deriva de
phainómenon, e que permitiría entendê-lo, à maneira grega, como
aquilo que se mostra por si mesmo (zeigt sich) — em consonância
59

com o verbo phaínesthai — e assim recuperar-lhe o significado


de origem, aproxima-o de outro termo vetusto, alétheia, cujo sen­
tido de não-velamento ou de não-encobrimento (Unverborgenheit),
pelo qual os pensadores helímicos se referiram à verdade do lógos,
enfraquecido na palavra veritas, que o trasladou para o latim,
perdeu-se quase inteiramente no conceito de- verdade como ade­
quado rei et intelectus (adequação da inteligência à coisa).
Os significados de lógos, alétheia e phainómenon forneceram
a Heidegger as três intuições decisivas25 para a questão do ser
e o vínculo ontológico da Fenomenologia com o pensamento grego.
É que as significações interpenetrantes dessas palavras formam,
com a dimensão de um arcabouço ontológico da língua, prévio à
reflexão, o travejamento das acepções do ser distinguidas por Aris­
tóteles, sobre que se firmou o estatuto primordial da categoria
de substância, da ousía, na investigação metafísica do ente enquanto
ente. Os fenômenos (phainómena) incluem “a totalidade do que
está ou pode pôr-se à luz, o que os gregos identificaram às vezes
simplesmente como tà ónta (os entes)” (SZ, p. 28) — por outras
palavras, a totalidade do que se dá a ver, seja à inspeção ocular,
seja aos olhos do espírito. A forma preliminar de verdade ou de
evidência, e, portanto, de desocultamento (Entborgenheit) dos entes,
seria a aísthesis, a simples percepção.
Nessa forma depurada do lógos, o enunciado apofântico, do
qual Heidegger descarta a idéia de síntese das representações, que
contaminou a teoria moderna de extração kantiana, tem por base
o prévio desocultamento ou desvelamento do ser do ente: a pre­
sença (Anwesenheit) do que é. O ser verdadeiro — a terceira das
acepções do ente —, que corresponde à entelécheia, ao ser em ato,
requer a manifestação daquilo que é (tò ón), e a que, por isso,
caberia atribuir o ser em si da ousía.
As características da ousía fixadas na Metafísica — a perma­
nência e a consistência, que conciliam os dois sentidos em que
Aristóteles tomou a substância — o individual, de suporte de atri­
butos, e o universal de gênero (substância segunda) —, aplicáveis
tanto às coisas perecíveis quanto às imperecíveis e separadas da
matéria, resumem-se na presença que assinala o ser do ente:
Com a intuição da alétheia como não-velamento (Unverborgen­
heit), o que se deixava reconhecer era o traço fundamental
- (Grundzug) da ousía, do ser do ente (des Seins des Seienden):
a presença (die Anwesenheit)26.

25 Cf. a carta-prefácio a W. J. Richardson. Heidegger, M. Preface/Vorwort.


In: Richardson, William J., S. J. Heidegger through Phenomenology to
thwght, 3. ed. The Hague, Martinus Nijhoff, 1974. p. X-XI.
2* Id. ibid., p. XII-Xm.
60

A hegemonia da substância como ser em si, que subordina as


demais categorias pelo nexo analógico c rege as outras acepções
do ser — o verdadeiro enquanto identidade e o ato enquanto
enérgeia —, é o limite do aclaramento fenomenológico da con­
cepção grega do ser, marcando também, reversivamente, o limite
da Fenomenologia transcendental ontologicamente elucidada. A
Wesenschau, a intuição da essência, do que é dado numa evidência
pura, mostrando-se como fenômeno nas vivências intencionais,
reflexivamente descritível, mas não racionalmente demonstrável —
apreendido, mas não deduzido —, o conhecimento fenomenológico
de estruturas e correlações eidéticas a priori invariáveis, que se
apresentam na variabilidade empírica dos fatos, e cujo sentido se
constituiría, graças à intencionalidade, através das operações do
Eu, o movimento interno do método fenomenológico enfim pres­
supõe uma experiência de desvelamento ou de desocultação do ser:
O que para a Fenomenologia dos atos de consciência se cumpre
como o manifestar-se do fenômeno — diz Heidegger — é pensado,
ainda mais originariamente por Aristóteles e em todo o pensamento
grego, como alétheia, como desocultamento da presença, seu des­
velamento, seu mostrar-se. O que as pesquisas fenomenológicas
tinham descoberto, como alcance do pensamento, constitui a ati­
tude do pensar grego se não da própria Filosofia 27.

A revelação do ser (Offenbarkeit des Seins) possibilitaria a


Fenomenologia no estado de ciência eidética, que Husserl concre­
tizou. É, portanto, o ser a que ele teve acesso pela intuição cate­
gorial, e que deixou de questionar, o vínculo mais profundo, de
resto essencialmente histórico, conforme se verá depois em outra
parte deste ensaio, da Fenomenotogia com o pensamento grego.
E é no questionamento do ser que reside a possibilidade não-rea-
lizada do método. Não há para a Fenomenologia outro tema senão
o ontológico. A Fenomenologia é Ontologia, e como Ontologia
uma Hermenêutica fenomenológica, porquanto, em sua nova pos­
sibilidade, a descritividade do método terá o alcance de um tra­
balho de interpretação, de acesso ao sentido. Descrever o fenô­
meno, o ser dado nas vivências, consiste em explicitar o sentido
que nelas se encobre, assim como se explicita, por meio de uma
interpretação, o significado original de um texto, de uma obra de
arte ou de um produto histórico, em geral encoberto nas signifi­
cações, e que o esforço hermenêutico desembaraça ou restitui.
Retraduzida em grego, de acordo com a orientação do pensa­
mento ontológico que forma o seu veio histórico, a Fenomenologia

27Mein Weg..., ZSD, p. 87.


61

é um légein (apophainesthai) tà phainómena, um permitir ver o


que se mostra, tal como se mostra efetivamente por si mesmo.
Ao contrário das aparências indiciais, que anunciam alguma coisa,
e das “simples aparências” — as ilusões dos cépticos, que mani­
festam a realidade falseando-a —, o fenômeno, como aparição ou
manifestação (Erscheinung) — seja pela primeira vez descncoberto
ou apenas liberado das formas derivadas de que se reveste, c que
dc maneira acidental ou nteessária modificam-no ou desfigurnm-
-no —■, ê o que se mostra por si mesmo (SZ, p. 34). Na acepção
geral c formal, que corresponde a 1af acepção de fenômeno, a
Fenomenologia não é, pois, uma ciência que tenha objeto específico
e muito menos se confundirá com uma ciência descritiva das vivên­
cias intencionais. “A palavra (Fenomenologia) limita-se a indicar
como mostrar e tratar o que deve receber tratamento nessa ciên­
cia” (SZ, p. 34-5). Tudo o que pode ser mostrado (Aufweisung)
ou demonstrado (Auswcisung), de maneira direta, é objeto dessa
ciência, c só como tal recebe tratamento descritivo. O que, entre­
tanto, sc mostra por si mesmo, □□ descerrar-sc o encobrimento que
o envolve, é o ser do ente,
Porque fenômeno, no sentido fenomenológico, é só aquilo que é
ser, c o ser é sempre ser dc um ente, há nceeMjdade, quando se
visa liberar o ser (Frcilegung), de proceder antes a uma correta
apresentação do próprio ente (SZ, p. 37).

Eis o que o método fenomenológico permite ver e do que a Feno­


menologia deve tratar. Mas com isso ela retoma a questão do ser,
e o retorno às coisas por ela inicialmente anunciado é a volta da
Filosofia à questão mesma do pensamento (das Sache des Denkens).
Convertendo-se em Ontologia, a Fenomenologia torna-se sim­
plesmente Filosofia. Mas essa conversão efetua-se por obra do
alcance hermenêutico que a Fenomenologia toma ao ser reinter-
pretado o princípio da intendomtlidadc, Graças ao domínio origi­
nário da existência, a que a íntcncionalidade se acha ligada, e em
que se dá a abertura ao ser, poderá a Fenomenologia realizar a
sua possibilidade, realizando-se como trabalho de interpretação do
modo de ser do sujeito humano existente. Firmado nesse domínio,
que assegurou o passo de conversão da Fenomenologia em Onto­
logia hermenêutica, Heidegger praticará a epoché da própria cons­
ciência, “o que constituía para Husserl um puro escândalo” 28. O
tratamento fenomenológico, como Analítica do Dasein, da questão
do ser, numa longa pauta interpretativa, que dispensa a noção de

28 Heidegger, M. Séminaire..., op. cit., p. 317.


62

consciência, tem por respaldo essa segunda redução, que anula a


primeira feita por Husserl.
“Em lugar de consciência (Bewusstsein, ser consciente) lere­
mos Dasein (ser-aí).”29 A consciência, explicaria Heidegger, já
“se move na dimensão do ser, onde está aclarada pelo lumen
naturale”. A luz (Lichtung) faz ver e possibilita que me aproxime
pelo olhar daquilo que vejo. A visão da consciência, a sua direção
intencional, “funda-se sobre a possibilidade radical para o ser hu­
mano de atravessar uma abertura e chegar junto às coisas” 30. O
Dasein que nós mesmos somos, como ente que compreende o ser,
é o lugar (Ort) dessa travessia.

29 “g preciso que nos interroguemos sobre a significação de Bewusstsein. Em


Bewusstsein, há Wissen, o saber, referido a videre, no sentido em que saber
é haver visto. A consciência move-se na dimensão do ver, em que é acla­
rada pelo lumen naturale.” Id., ibid., p 317.
30 “Este ser-numa-abertura, eis o que Ser e tempo (Heidegger acrescenta
mesmo “canhestramente e como pude”) denomina: Dasein.” Id., ibid.,
p. 317.
IV
O DASEIN

Mas que coisa é o homem,


que há sob o nome:
uma geografia?
um ser metafísico?
uma fábula sem
signo que o desmonte?
Como pode o homem
sentir-se a si mesmo
quando o mundo some?
Carlos Drummond de Andrade, Especulações em torno
da palavra homem.

A epoché de Heidegger, invertendo a dc Husscrl, levar-nps-ia


ao domínio da existência, que Kierkcgaard concebeu como a rea­
lidade singular c única do indivíduo, o modo de ser indestituível
do homem, que o pensamento conceptual abstrai.
Para o teólogo dinamarquês, a dialética hegeliana, cm que a
consciência devêm espírito, que se realiza a si mesmo c por si
mesmo na forma do conceito puro c, tornando-se, ao íim, saber
absoluto, espelha, dc maneira exemplar, enquanto atitude anta­
gônica à religiosidade cristã, a tentativa de superar a dialética da
vida espiritual, que vai da universalidade dos conceitos ao reconhe­
cimento da realidade individual, capaz de mediar o salto qualitativo
da fé. A fé, o contato entre o humano c o divino, o tempo c a
eternidade, exige o reconhecimento do indivíduo num Outro infinito
que o transcende, e por isso exige também o abandono do enten­
dimento. O salto da fé tem, contudo, a violência intelectual de
um paradoxo, que se transforma na “mais alta paixão da subjetivi­
64

dade” J. Sem conflito e sem contradição, a subjetividade arrefece,


c o acicate evangélico da Salvação oferece apenas o consolo dc
uma outra vida, prumessa do cristianismo cômodo c mundano,
contra o qual se atirou o autor dc Temor e tremor. A edificação
kierkegaardiana é uma catequese interior visando converter o indi­
víduo a si mesmo. A verdade cristã começaria pela verdade exis­
tencial da subjetividade.
Assim, para Kierkegaard, seja como verdade subjetiva, seja
como empenho de realização pessoal apaixonada, e sempre como
interioridade viva, a existência é, sobretudo, a categoria da vida
religiosa, e n pensamento existencial o preâmbulo da fé. Em grande
parte, a Filosofia dc Karl Jaspers, que converteu a unidade kanttana
da razão numa idcia-limite, foi uma transposição desse preâmbulo,
assente no conflito antitético do entendimento e da existência, de
que se nutre a dialética da vida espiritual.
De semelhante conflito subjetivo, transformado numa contra­
dição sem síntese, procedem os três principais tópicos identificado­
res das filosofias existenciais, incluindo o pensamento de Karl
Jaspers e o “existencialismo” de extração sartriana: a distinção
mitológica do homem, de quem não se pode dizer que é no mesmo
sentido em que se diz que uma batata ou uma couve-flor existem,
c cujo modo de ser tem maior dignidade que o das coisas2; a
distinção gnuteológica, que confere à existência o estatuto de rea­
lidade singular, com a qual o homem está dirciamcnte relacionado,
numa forma de experiência prioritária c participante, que antecede
e condiciona o conhecimento objetivo; e, finalmente, o conteúdo
concreto, extrateórico da relação do sujeito humano com a sua
realidade, que não é um dado exterior, mas objeto ético de escolha,
num processo de contínua e inacabada apropriação de si mesmo.
Assim a existência como realidade também comporta a possibili­
dade. Incluindo ser e poder-ser, ela se manifesta no interesse pelo
próprio Eu.
O Eti dc que fala Kierkegaard no Tratado do desespero “é
uma relação que nau se estabelece com qualquer coisa dc alheio,
mas consigo próprio. Mais c melhor do que a relação propria­
mente dita, ele consiste no orientar-se dessa relação para a própria
interioridade” 3. Mas sendo o homem, conforme atesta a experiên­
cia religiosa, uma unidade concreta do finito e do infinito, do tem­
poral e do eterno, o Eu não existe sem o anlagonismo da relação,
que se expressa no reconhecimento da dependência da interioridade

1 Wahl, Jean. Êtudes kierkegaardiennes. Paris, Aubier, s.d. p. 313.


2 Cf. Sartre, J. P. L’existencialisme est un humanisme. Paris, Nagel, 1959,
p. 22-3.
3 Porto, Tavares Martins, 1947. Livro I, cap. 1, p. 33.

—' IHIU—i
65

ao Outro, aparentemente alheio, que a estabeleceu. As formas de


desespero — a vontade de desembaraçar-nos do que somos, “e a
vontade desesperada de sermos nós próprios” 456— provêm desse
antagonismo constitutivo do Eu, diante da potência infinita que o
criou. O Eu é uma relação inacabada, que encontra.sua identidade
em Deus, para quem se volta ao voltar-se para si próprio, “que­
rendo ser ele próprio” E ... •'
Na agudeza dessa Psicologia do desespero, que atendeu a fins
edificantes, revela-se a particularidade da existência, como misto
de real e de possível, posta diante da vida eterna de Deus. “O
existente é sempre o particular”, o abstrato não existe.8 O parti­
cular subjetivo converte-se em realidade. E a realidade alcançada
pelo pensamento afirma-se como abstração ou idéia, que é pura
possibilidade, anulando o particular c o subjetivo numa forma de
exteriorização. Na relação do homem consigo próprio se configura
o interesse ético, que faz da existência a primeira realidade. “A
realidade é o que interessa, porque se existe dentro dela.” 7 Na
abstração da idéia reflete-se o desinteresse pela existência, exte-
riorizando e objetificando o que é interior e subjetivo. Havería
assim no Cogito, ergo sum, de Descartes, uma disjunção entre o
sujeito pensante c o sujeito existente. Unir o pensamento abstrato
à existência concreta é, para Kierkegaard, uma impossibilidade.
“A abstração", dizia ele, “é desinteressada, mas a existência é o
supremo interesse daquele que existe.”8 Que havería de mais
abstrato, do ponto de vista da dialética existencial, do que a idéia
de ser? “O homem pensa e existe, e a existência separa o pensa­
mento e o ser, mantendo-os distantes um do outro na sucessão.” 9
Essa separação do existencial e do ontológico assinala a limi­
tação de Kierkegaard, ainda “sob o império de Hegel e da Filosofia
antiga tal como vista por esse último” (SZ, p. 235), não obstante
ter sido o teólogo dinamarquês quem, no século XIX, levantou
expressamente o problema da existência. A proeza de Heidegger
consistirá em desenvolver ontologicamente esse problema, unindo,
na existência, o pensamento e o ser.
O império de Hegel sobre Kierkegaard, que se estendeu, inclu­
sive, ao entendimento da Filosofia antiga, externou-se na própria
cisão, que sustenta o conflito insuperável da dialética da fé, entre

4 Id., ibid., p. 34.


5 Id., ibid., p. 35.
6 Id. Post-scriptum aux miettes philosophiques. 9. ed. Paris, Gallimard, 1949.
p. 221.
7 Id., ibid., p. 229.
8 Id., ibid., p. 209.
9 Id., ibid., p. 222.
66

o subjetivo e o objetivo. A subjetividade, a consciência de si, está


fora do saber, como um momento que a generalidade do conceito
ultrapassa no desenvolvimento da racionalidade. Kierkegaard acei­
tou a exclusão hegeliana, rejeitando o ullrapassamcnto, mas acei­
tando também que o ser fosse o conceito de maior universalidade,
a idéia abstrata por excelência para o sujeito humano finito, que
se completa em Deus. A existência separaria o pensamento e o
ser na sucessão, quer dizer, no tempo. “Deus não pensa, ele cria,
Deus não existe, ele é eterno.” 10 Para o homem como ens creatum,
pensar e ser jamais coincidem enquanto existe; e, enquanto existe,
quem ele é em si mesmo só se revela pelo movimento da fé, no
instante paradoxal que interrompe a sucessão, gerando o contacto
incompreensível entre o humano e o divino, entre o temporal e o
eterno. No pensamento, que a existência separa do ser, o ser é
a pura determinação do conceito, a realidade como possibilidade
abstrata. O “jogo de sombras fantásticas do pensamento puro”
envolve o “único em si”, que o conceito ultrapassa abstraindo-o,
isto é, sacrificando o particular ao geral. A realidade, para a Filo­
sofia hegeliana, alvo polêmico de Kierkegaard, é sempre o geral
porque já produto do espírito — do espírito que é sujeito: a iden­
tidade reflexiva do Eu, formando as categorias, através das quais
se desenrola o real até à cor cretude da idéia, em que o subjetivo
e o objetivo se identificam no Saber absoluto.
Heidegger incorporou o problema kierkegaardiano da existên­
cia confrontando-se a Hegel. A vizinhança estabelecida com Kant
ajudou-o a quebrar o sortilégio do espírito absoluto da Ciência da
Lógica, que é razão pura teológica. A Crítica da razão pura esta­
belece expressa correlação entre existência (Dasein) e realidade
(Wirklichkeit). É real (wirklich) aquilo que está de acordo com
as condições da experiência. Partindo-se desse postulado, ampa­
rado pela categoria de modalidade, correspondente à existência,
que não determina o objeto, mas o seu alcance como predicado no
juízo empírico, pode-se firmar o princípio de que o conhecimento
do objeto segue-se à percepção sensível, dentro da ordem concep-
tual da experiência que o possibilita. Não é a existência o que
conhecemos nos objetos que nos são dados; dizer de algo que existe
ou é real, é afirmar que podemos conhecê-ló empiricamente como
objeto. Até onde a percepção se estende, diz Kant, estende-se o
nosso conhecimento da existência das coisas (unsere Erkenntnia
von Dasein der Dinge).11 A categoria de existência, mediante a

10 Id., ibid., p. 222.


11 Cf. Systhematisch Vorstellung aller synthetischen Gundsãtze des reinen
Verstandes. In: —. Werke-, Kritik der reinen Vernunft. 2. Aufl. Berlin,
Georg Reimer, 1911. cap. 3, seção 2, Livro II, 1. parte.
67

qual sc postula o conhecimcnio da realidade, como de algo deter­


minado na série de fenômenos, também delimita o alcance empírico
do conhecimento e a extensão da realidade,
Com a significação de “ser determinado”, que recebe da lin­
guagem corrente, Dasein, na Ciência da Lógica de Hegel, é a cate­
goria do finito enquanto momento da deterihinação do ser no
devir: determinação negada c recuperada no momento seguinte, na
forma da infinitude t/urjlifariva. A categoria da existência, para
Hegel, convém assinalá-lo, depende fundamentalmente da nega­
ção, porque, dialeticamente, toda determinação do real é um mo­
mento negativo superado no devir.’2 Mas, no seu terceiro momento,
esta negatividade concerne, ainda que no plano abstrato da Lógica,
ao que existe, vive c pensa, ou seja, ao próprio sujeito. Ao con­
trário do sentido que tomou cm Kant, o Dasein, como scr deter­
minado, é o passo necessário ao conhecimento da realidade pelo
sujeito, substrato das categorias, e que, tornando-se espírito, trans­
forma a consciência de si, a subjetividade, no saber objetivo.
Na medida em que Heidegger acolhe a existência da concep­
ção kierkegaardiana, com a qual preenche a significação dc Dasein
— diferente de realidade (Wirklichkcit) c de ser determinado, que
é também negação —, acolhe igualmente, num senüdo positivo,
a tese de Kant, enunciada a propósito da impossibilidade da prova
ontológica da existência dc Deus, ^egundo a qual o ser não é um
predicado real: “Ser não é cvidcnlcmcntc um predicado real, quer
dizer, o conceito de alguma coisa que possa se acrescentar ao
conceito de outra. Ê simplesmente a posição de uma coisa ou de
certas determinações de si” 1S. Kant se referia justamente à deter­
minação categorial do juízo, ou, para empregarmos a sua termino­
logia, ao uso lógico do ser. Quando ao conceito de uma coisa se
acrescenta o dc outra e com isso atingimos o que é real na ordem
dos fenômenos, de acordo com as condições do conhecimento
do objeto, que igualmente constituem as condições da experiência
possível, o ser é simplesmente a posição de uma coisa (die Position
einem Dinge). O ser significado pelo “é” não corresponde ao
conceito, escapando, portanto, à abstração do pensamento puro
e à realidade determinada pelas categorias. Essa interpretação se
harmonizava com a análise fénomenológica da intuição categorial,
que desalojou o ser da estrutura da intencionalidade. Como o par­
ticular refoge à generalidade do conceito, e consequentemente tam­
bém ao real empírico, a existência, de que Heidegger conservará12 13

12 Cf. Hegel, F. Ciência da Lógica. Livro 1, cap. 2.


13 Kant, E. Von der Unmõglichkeit eines ontologisches Beweises von Dasein
Gottes. In: —. Werke: Kritik,.., cap. 4, seção 3, Livro II, 2. parte.
68

a tópica kicrkcgaardiana cm seus grandes traços —- mormente a


interesse c a exigência da apropriação de si mesmo —, aproxima-se
do ser nela compreendido antes dc toda determinação conccptlial,
isto é, pré-ontologicamentc. Dasein é o ente que compreende o
ser, não dc maneira abstrata, como objeto dc conhecimento ou dc
saber ccmctptual, mas na sua existência, com que está concernido
enquanto possibilidade sua, dc ser ou de não ser ele próprio, c
a partir da qual sc compreende.
"Chamamos dc existência (Existem:) o ser relativamcnte ao
qual o Dasein pode conduzir-se desta ou daquela maneira c sempre
sc conduz de alguma maneira’’ (SZ, p. 12), O interesse ético pela
realidade interior c subjetiva converte-se cm compreensão do ser,
do mesmo modo que o concernimento com a existência é compre­
endido como a relação do homem com o ser que é de fato seu —
com o qual s* avem e em que pode tornar-se apropriando-se de
si mesmo. “O Dasein sempre sc compreende a si mesmo partindo
de sua existência, de uma possibilidade dc ser ou dc não ser si
mesmo" (SZ, p. 12), Daí por que a existência, no quadro concep-
itial heidcggcriano, inantem o nexo interior subjetivo c reflexivo
do Eu H, mas como um nexo dc fato que me pertence, sem que o
tenha constituído. Nesse sentido, a existência, a partir da qual me
compreendo, compreendendo o ser a que estou concernido, c que
sc antecipa a qualquer relação entretida com as coisas, é uma pos­
sibilidade minha (Jemein). "O Dasein é, cm cada caso, a sua
possibilidade (scin MÔglichkeit),. (SZ, p. 42). Essa possibi­
lidade, a existência, abrindo ao Dasein a compreensão do ser com
que se avem, concerne ao seu próprio ser. Tal compreensão, que
lhe é inerente, c que o subtrai cm suas formas dc agir, em seus
modos ou qualidades, às categorias entitativas, aos atributos do eme
enquanto ente, distingue o Dasein dos outros seres com que se
relaciona.
A distinção ontológiea do sujeito humano em Kierkcgaard
configurou a relevância òntica do Dasein. Nada há neste ente que
não seja ao mesmo tempo ser. Esse duplo caráter ôntico-ontológico
do homem èc expressa no conhecido torneio de frase de Ser e
tempo-, "O Dasein é um ente que não apenas sc apresenta entre
outros entes. Ele c antes dc tudo um ente onticamente distinto,
fw<y«c cm seu ser imporia esse mesmo ser (in scinem Scin um
dieses Scin selbst gcht)’’ (SZ, p. 12), Desta sorte, a subjetividade
c inerente a relevância ôntica do Dasein, à sua constituição como*

M A ipseidade, relação da consciência consigo mesma, em que Sartre baseou


a sua Ontologia fenomenológica.
69

ente que compreende o ser. “A relevância ôntica do Dasein con­


siste em que este é ontológico” (SZ, p. 12).
A relação interior-reflexiva do pensamento, que Kant chamou
de a percepçOo transcendental e considero» o. íundameniei úliimo
das categorias do conhecimento, pertencerá então ao caráter õmico-
-oniolófiico desse entç, qiic recobre a excentricidade do sujeito
ícjiomcnologicamenle considerado. Assim a experiência transcen­
dental é indesligável da compreensão do ser que se abre na exis­
tência. Como diria Heidegger, Dasein não é só uma palavra em
lugar da palavra consciência, e muito menos “substitui aquilo que
se representa sob o nome de consciência” (WIM, p. 14).

n
Com base no anteriormente exposto, podemos avaliar o al­
cance da redução heideggeriana e estabelecer a posição do conceito
de Dasein, que ocupa um nível filosófico distinto dos conceitos
vizinhos de “consciência” e “homem”.
Considerando que a Fenomenologia era o método da crítica
do conhecimento, Husserl ainda indagava sobre a possibilidade de
que o conhecimento saísse de si mesmo para alcançar “um ser que
não se pode encontrar no quadro da consciência” 1B. Ora, a inten­
cionalidade não justifica semelhante formulação. O sujeito é excên­
trico e sai permanentemente fora de si mesmo. Mas é o Dasein
que circunscreve, pela compreensão do ser, a relação do sujeito
com os objetos concretizada no conhecimento. Desse ponto de
vista, a redução heideggeriana atinge o Eu transcendental, como
unidade monádica que existiría em contínua evidência para si mes­
mo, no qual Husserl, que bem próximo ficou de Kant, e mais ainda
de Descartes, reinvestiu, tomando por modelo o Cogito cartesiano,
o sujeito transcendental da Filosofia moderna. Colocando entre
parênteses o Eu assim concebido, a epoché de Heidegger suspende
a certeza do Cogito em que se baseou a Fenomenologia enquanto
ciência filosófica rigorosa.
Descartes conquistou a certeza do Cogito frente à incerteza
do mundo. A obstinação da dúvida, que nos furta às insídias do
Gênio Maligno — dessa ficção do logro permanente a que nos
expõem o testemunho dos sentidos e a consciência vigilante —, só
cessa diante da existência reflexiva do pensamento: a percepção
clara e distinta de mim mesmo, que já possuo ao duvidar. Sei16

16 L'idée de la Phénoménologie', cinq leçons. Paris, PUF, 1970. p. 103-7.


70

que sou e que existo, enquanto penso ser alguma coisa, e “por
todo o tempo em que penso” 18; tal evidência primeira de que sou,
obriga-me a reconhecer o que sou: “uma coisa que pensa (res
cogitans), isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão. . ,”16
1718
*
A segunda redução — a epoché heideggeriana — levanta ou
suspende a certeza do Cogito, em proveito da imediata e obstinada
incerteza do mundo, ã que o sujeito se encontra aderido antes de
descobri-la reflexivamente. Colocado o Eu entre parênteses, é a
adesão pré-reflexiva ao mundo, anteposta ao Cogito, e posposta
à sua evidência, o qqe o Dasein expressa. Nesse sentido, Dasein
significa, preliminarmente, a existência como ser-no-mundo (in-
-der-Welt sein).
Dentro desse contexto, o conceito de Dasein atende à pro­
blemática da experiência transcendental, de que é a reformulação,
numa perspectiva ontológica ausente da Filosofia crítica moderna.
E, como réplica à posição de Husserl, restabelece a tese da atitude
natural que serve de fundo à redução fenomenológica. Conse-
qüentemente, a relação com o mundo “a que se reporta o feixe das
atividades espontâneas da consciência com suas múltiplas varia­
ções . . . ” 18, e a que Husserl sobrepôs, praticando a epoché, a
atitude reflexiva pura, passa a vigorar fora dos parênteses. Pode-se
compreender mais claramente, a propósito dessa questão, a sepa­
ração entre a Fenomenologia transcendental e a Fenomenologia
hermenêutica. Enquanto a primeira procurou ultrapassar a ativi­
dade espontânea da consciência pela reflexão pura, a segunda se
deteve nessa atividade espontânea e pré-reflexiva, que o autor das
Idéias ligou ao Cogito.
Enquanto estou engajado na vida natural, minha vida toma sem
cessar essa forma fundamental de toda vida “atual”, mesmo se
não posso enunciar o Cogito nessa ocasião, e mesmo se não posso
me dirigir “reflexivamente” para o “Eu” e o “Cogitare”.10

Por esse engajamento pré-reflexivo da vida natural, o mundo


é o que está aí adiante: não apenas as coisas e os objetos em torno
de mim, mas também o campo potencial de percepções deslocan-

16 Descartes, R. Méditations touchant la première philosophie; seconde


méditation. In: —. Discours de la méthode suivi de Méditations méta-
physiques. Paris, Flammarion, 1927. p. 75.
17 Id., ibid.
18 Husserl, E. Idées directrices pour une Phénoménologie. 9. ed. Paris,
Gallimard, 1950. § 28, p. 91.
18 Id., ibid., § 28, p. 91.
71

dose de objeto a objeto, dc coisa a coisa, como “o horizonte


obscuramente consciente dc realidade indeterminada”w que os
rodeia, c com o qual, antes dc começar o irabathr
* do pensamento
reflexivo, mc acho dc antemão relacionado, O mundo í ainda o
que mc circunda c com o que entrcteiiho imediato intercâmbio:
as outras pessoas, as coisas usuais, os animais, os valores. Para a
"consciência vigilante", atual, há sempre um único e mesmo mundo
presente para mim, “ao qual mc encontro incorporado", e que,
tíspraiado no espaço, desenrola-se na série intérmina dc suas pre-
scntiíicações sucessivas. Essa descrição do mundo natural vivido,
de que o tempo é o úHimo desdobramento, antecipou a compene­
tração da coisa e do sujeito, que Husserl considerou, tardianicnlc,
talvez sób o apelo da obra capital de Heidegger, na fase da Filo­
sofia do Lebenswelt (mundo-da-vida).
Todos nós, diz Husserl em A crise da ciência européia, sejamos
filósofos ou cientistas, existimos no mundo-da-vida circundante e
cotidiano, domínio pré-científico a que pertencem as teorias en­
quanto “fatos culturais”2021, e de cuja subjetividade emergente as
çjcncias se desligam por abstração dos dados da experiência ime­
diata, graças aos quais se constituem c subsistem. Mundo-da-vida
quer dizer o recíproco c original envolvimento do Eu empírico c
do mundo “sempre dado e preexistente", Não sc podería conceber
o primeiro como uma realidade autônoma sem exterioridade, nem
o segundo sem a emergência interior do sentido ou da significação.
Com isso, sem abdicar da Fenomenologia pura, Husserl ampliou,
estimulado pelo problema da crise conceptual da ciência, a expe­
riência transcendental, até o limite dos conteúdos fácticos da vida
sensível.
O conceito de Dasein não é, porém, o simples resultado dessa
ampliação, e muito menos uma versão antropológica do sujeito
transcendental, à semelhança do espírito, na última Filosofia de
Max Scheler, do qual se poderia desavisadamente aproximá-lo.
Max Scheler reelaborou, sob a influência da Fenomenologia,
a noção dc espírito no sentido dc pexrcvi, que não c coisa, mas
um plexo de atos. Sem cxcluir-se da natureza, o espírito caracte­
rizaria a eondurs Je transcendência que separa o homem do animal,
transformando o meio ambiente em mundo, onde se situa conhe­
cendo objetos, percebendo valores e agindo livremente motivado
por eles. Essa conduta de transcendência acompanha, no processo
de separação entre a humanidade e a animalidade, a conversão dos

20 Id., ibid., § 27, p. 89.


21 Id. Die Krisis der Europãischen Wissenschaften und die Transzendentale
Phanomenologie. Den Haag, Martinus Nijhoff, 1954. § 28, p. 106-7.
72

impulsos vitais correlativamente à aquisição da consciência de si.


O homem é um ser natural que transcende a natureza.2223
A Antropologia filosófica scheleriana tentou vencer o dua­
lismo dít Metafísica moderna, dc inspiração cartcsiana, que recortou
o ser nos domínios substanciais irredutíveis da res cogitaas c da
rej ejríeHSír — pensamento c matéria, espírito c natureza — por
uma concepção pluralista da realidade, constituída dc níveis onto-
logicamcntc distintos. Nisso Max Scheler seguia a indicação hus-
serliana das "Ontologias regionais", da qual também derivou o
realismo ontológico de Nicolai Hmtmann, que assentou na diver­
sidade e na correlação das categorias distintivas entre o ser real
e o ser ideal. O espírito tomaria o seu lugar numa realidade estra-
tificada, como a “região” superior frágil, suportada pelo físico,
pelo orgânico e pelo psíquico, mas sobredcicrminada pela liberdade,
e a que pertence o sujeito consciente, dotado de um Eu, centro de
atividade livre, de conhecimento e de valoração. ” Em seu esta­
tuto de pessoa, o homem é sujeito espiritual, que transcende o
mundo, no qual se situa como uma realidade sui generis. Em
Scheler, esse posto singular reflete o conceito hcbraico-cristão do
homem enquanto criatura, feita à imagem e semelhança de Deus,
no universo criado ex nihilo, e ao qual remonta a noção dc pejsoa.
Tendo no Eu a sua instância a quo, a conduta de transcen­
dência, baseada na noçào de n que falta aclaramento anto­
lógico, é uma conduta dc ultrapassam ento do mundo, na direção
do scr divino, a que o homem está destinado c a cujo seio deverá
retornar. Nessa perspectiva teológica que os encerra, os conceitos
afins de “Eu espiritual1* e dc “pessoa” colocam o ser humanp no
conjunto dos entes que descendem do sHfltwrm ens.
A radicalidade da concepção hcideggcriaiia, que corta as amar­
ras teológicas da Antropologia filosófica — expressão de uma
Metafísica do sujeito —, está em fazer da existência o termo cr quo
e do mundo o termo ad quem da transcendência. O Dasein é
ser-no-mundo, e o ser-no-mundo é transcendência. A transcendên­
cia designa “algo que pertence propriamente ao Dasein, não como
uma conduta possível entre outras, uma atitude realizável espora­
dicamente, mas como constituição fundamental deste ente, anterior
a toda conduta” (1FÍJ, p. 18). Dessa maneira, a relação com o
mundo, que descortinamos sob a forma de engajamento pré-refle-

22 Cf. Scheler, Max. El puesto dei ftombrr en el Cosmos. [Der Stellung


der Mensch in der Kosmos], Tradução dc José Gaos. Buenos Aires, Losada,
1938.
23 Cf. Kartmann, Nicolai. Ontologia I; fundamentos. [Zur Grundlegung
der OniuJpjitl. México/Buenos Aires, Fondo ;tc Cultura Econômica, 1954.
73

xivo, nada tem de unt liamc natural, com» 0 que liga uma coisa
a outra coisa; ela é diferente do nexo construído pelo sujeito, que
sc acrescentaria á sua "naturcKa" uu à sua “essência”» pospondo-sc
ao comercio que entretem com os objetos. Trata-se, sc quisermos,
dc um liamc mais primitivo ç fundamental dó que a relação entre
sujeito e objeto a que se limitou a teoria nçokaii liana do eonhe-
ciinailo.
Podendo significar tanto a totalidade dos entes naturais quanto
uma região ontológica, o tnrmdo nunca é, porém, uma realidade
dada. Representa antes, conforme já o entendera Kant ao capi­
tulá-lo entre as idéias da razão, uma totalidade inexaurivel pela
experiência, ou seja, uma fütalidadc transcendental, para além da
síntese das representações mima experiência possível. A atitude
“natural’’, com 0 registro do viver espontâneo, por oposição à
atitude reflexiva, dc que Husserl sc ocupou, é, para Heidegger, a
atitude dc um ser que sc conduz antes de tudo cm relaç&o a entes.
“B óbvio”, diz Heidegger, ”quc nós homens nos conduzimos
cm relação ao ente (zu Sciendem vcrhaltcn)” (KPM, p. 204).
Sc nos conduzimos cm relação ao ente c porque já 0 compreende­
mos primariamente cm seu ser, o que também importa cm afirmar
que a conduta humana sc configura num ultrapassamcnto dos entes
cm sua totalidade, na direção dojnundo, O mundo que aí está,
diante de nós, não é ente ou receptáculo dc objetos. A própria
noção dc objeto, com que lida a Teoria do Conhecimento, pres­
supõe 0 inundo como termo da transcendência do Dasein.
“Objeto" vem dc ob-jectum, aquilo que é posto diante do
sujeito, e com que ele sc defronta. Mas, para que haja esse con­
fronto, de tal modo que o objeto do conhecimento se oponha ao
sujeito que o apreende, será preciso que as coisas nos sejam dadas,
c que os entes, de qualquer forma, se nos tomem acessíveis num
“horizonte dc realidade indeterminada1' já abrangido pelo Dasein.
O conhecimento, enquanto correlação irreversível do sujeito e do
objeto — do sujeito que apreende o objeto c do objeto que deter­
mina as representações do sujeito H , só é possível mediante 3
transcendência da conduta, que se espraia no mundo sem estar
dentro dele.
Sc podemos figurar 0 mundo como horizonte transcendental,
é no sentido da totalidade cm que se apresentam os entes que não
o Dasein, aos quais Heidegger chama dc àí/ramwic£cwto,r. “Ser-no-
-mundo" é, pois, a condição transcendental de um ente que se

24 Cf. Id. Rasgos fundamentales de una Metafísica dei conocimiento. [Grund-


züge einer Melaphyiik der Erkenntnis]. Tradução de J. Rovira Armengol.
Buenos Aires, LÔsóda, 1957. t. 1, 2.
74

compreende a si mesmo compreendendo o mundo, em confronto


com os entes intramundanos.
Ao Dasein é inerente essencialmente: ser num mundo. À com­
preensão do ser, que é inerente ao Dasein, concerne, com igual
originariedade, o compreender o que se chama “mundo” e o com­
preender o ser dos entes que se tornam acessíveis dentro do
mundo (SZ, p. 13).

Essa compreensão é transcendência, e, como transcendência, o


ser-no-mundo constitui “a estrutura fundamental da subjetividade”.
A essência do homem, o que ele é em si mesmo, depende dessa
estrutura fundamental.
Enquanto a noção scheleriana de espírito nos proporciona um
conceito da realidade humana, de sua essência, sem discutir previa­
mente a “realidade”, “o mundo” e o modo de ser do “homem”,
o Dasein, o ser-no-mundo, ao nível da Analítica, é antes de tudo
um conceito temático, ou seja, um conceito enformado pelo tema
da questão do ser.
A forma do problema diretivo de uma Filosofia condiciona o
alcance de seus métodos e de seus conceitos.25 Noção precípua
do pensamento de Heidegger, o Dasein, em que a questão de fundo
se tematiza, confirma tal princípio da criação filosófica. A tema-
tização consiste, por fim, em suspender a essência do homem à
questão mesma do ser.
Podemos, a essa altura, repetir a ponderada indagação de
Descartes depois do Cogito-.
Sem dificuldade, pensei que era um homem. Mas que é um ho­
mem? Direi que é um animal racional? Certamente não: pois
seria necessário em seguida pesquisar o que é animal e o que é
racional, e assim, de uma só questão, cairiamos insensivelmente
numa infinidade de outras mais difíceis e embaraçosas (,..)26.

Descartes pergunta-se o que é o homem, com o que indaga


acerca da essência ou qüididade desse ente. Entretanto a natureza
humana se problematiza a partir da existência. “Quem é o homem”,
dirá Heidegger, “não está escrito no céu para os filósofos” (EM,
p. 107). A questão do ser põe o homem em questão. Não pode­
mos conceber o que é o homem, a sua essência, independentemente

25 “On ne saurait comprendre le problème directeur d’une philosophie à


partir de ses méthodes; c’est au contraire le problème qui determine le sens
des méthodes.” Fink, Eugen. Le problème de la Phénoménologie d’Edmund
Husserl. In: —. De la Phénoménologie; avec un avant-propos d’Edmund
Husserl. Traduit par Didier Frank. Paris, Minuit, 1974. p. 200. (Arguments.)
26Seconde méditation. In: —, op. cit., p. 74.
75

da essência do Dasein. “A essência (Wesen) do Dasein consiste


em sua existência (liegt in seiner Existenz)” (SZ, p. 42), e a sua
existência é o ser relativamente ao qual o Dasein se compreende
como si-mesmo.
Consuma-se, enfim, na existência, que não tem a significação
de realidade determinada (cxistcntia), a radical idade do ser-110-
-mimdo. A relação de-ser, a.transcendência do Dasein, como estru-
lura da subjetividade, mostra-nos que o sí-rumni? repele o sujeito
de inerência.
Toda idéia de um sujeito — salvo o caso de que esteja depurada
por uma prévia e fundamental definição ontológka — força a
assentar, ontologicamente, o subjectum (hypokéimcnon), por mais
que miticamente se evitem a “alma substancial” ou “a coisificaçao
da consciência” (Verdinglichung des Bewusstseins) (SZ, p. 45).

Paralelamente ao desvencilhamento da amarra teológica, o Dasein,


enquanto conceito de um ente que se compreende em sua existên­
cia, pela possibilidade de ser si mesmo, desalrela-se também do
primado da substância (ousía). Na possibilidade de tornar-se quem
é, de apropriar-se dc si mesmo, está em questão o homem em seu
próprio Eu. “A referência ao Dasein tem que ajustar-se ao caráter
de ‘ser em cada casa meu" (Jemcinigkeil), peculiar a esse ente,
significando ou subentendendo sempre o pronome pessoal: ‘eu sou’,
‘tu és’ ” (SZ, p. 42).
Sei que sou, mas quem sou em mim mesmo não é coisa que
pensa (res cogitans). Porém essa resposta anticartesiana não su­
prime o Eu.
A segunda redução, que suspende o Cogito, a identidade do
sujeito como res cogitans, desencobre a existência, o ser do swn,
que dc imediato autoriza a conferir ao Dasein — palavra escolhida
porque expressa puramente o ser, neutralizando a interferência de
toda idéia prévia dc natureza humana — uma identidade ôntico-
-ontológica. Reduzido em seu caráter dc sujeito, o ego permanece
não apenas como o que está em joga na existência, mas também
enquanto instância dc questionamento. A referência a si, ao Eu,
rio homem, está sustentada pela pergunta ou pela questão do ser,
ei isto radicalmcnte o que dele faz um Dasein: “Este ente que
nós mesmos somos, e que tem, por seu ser, entre outras coisas, a
possibilidade de colocar questões (die Seinsmõglichkeit des Fra-
gens), será designado pelo nome de Dasein” (SZ, p. 7).
Entretanto a possibilidade de questionamento nasce da própria
questão — da pergunta do sentido do ser, que se deve fazer, e
que tacitamente o Dasein já faz, visto que “nos movemos sempre
numa certa compreensão do ser” (SZ, p. 5). Na verdade ingressa­
76

mos aqui numa relação circular entre o questionante e a coisa


questionada, que vai do Ínírío ao ontolàgico — do ente que se
interroga. dado que essa compreensão concerne ;j sua existência,
an ser relativamente ao qual sç conduz, e a que antecipadamente
dirige a sua interrogação, A questão mesma é modo dc ser do
questionante: a pergunta que rctím a relação intencional tfíre-tfe
em arco no ífàjíiáno origt/írirfí» da existência, ligando os extremos
ântico e oniolAgko da compreensão prévia de nós mesmos. A esse
arco da iiitencionaiidade, que chamaremos dc hcrmeniulico, deve-sc
o estado de interpretação cm que o homem se mantém enquanto
existe. Qualquer que seja o modo de existência do homem, o arco
hermenêutico atravessa-o dc um a outro extremo, jo ôntico de
uma situação particular e determinada ao ontulrigico a cia implícito
e latente. Eis, íinahncnte, a condição do Dasein humano que o
determina ronto ente: a cfç intcrpreíantc do ser, transcendendo-se
cm direção ao mundo, Se a intencionalidjidc, que se funda na
transcendência, permitiu ler Dasein (ser-aí) em lugar de Btwusst-
sein (ser consciente), Dasein é o ente que permite ler o sentido
do ser compreendido em sua existência.
A Analítica (az essa leitura reiterando a questão do sentido
do ser dentro do arco hermenêutico de um círculo ontológico: o
aí (da) do Dasein como ser-no-mundo. Relterá-la é elaborar a
pergunta contínua, auto-reflexiva e problcmatizante, dc modo a
explicitar a compreensão pré-ontológica que nos constitui, para que
o ser desse ente que somos se mostre em si mesmo c por si mesmo
(an ihn scíhst von ihm seibst). "Elaborar a questão do ser (Scins-
Frage) significa fazer ver através de um ente — aquele que per­
gunta — sob o ponto de vista dc seu ser’* (52, p. 7).
Segunda Parte
DO SER AO TEMPO
ANALÍTICA DO DASEIN

Há entre quem sou e estou


Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.
Álvaro de Campos, Ficções de interlúdio.

Condicionada à epoché da consciência, e já resguardada pela


elucidação fenomenofõgica da Ontologia grega, que problematizou
a Metafísica, cm face da omissão do sentido do ser, a Analítica,
que preenche a primeira seção de Ser e tempo, pôde desenvolver-se
gradualmente, como modo de elaborar a questão do ser, tomando
por base a conduta de questionamento do Dasein.
Da compreensão do ser em que sempre nos movemos, provém
a possibilidade de colocar questões. Em cada pergunta, em cada
indagação sobre qualquer coisa, a questão do ser está subentendida.
O Dasein é inquisitivo em razão da possibilidade de perguntar —
possibilidade não-abstrata, comprometida com o seu modo de ser.
A curiosidade intelectual nasce de tal comprometimento originário
do inquiridor, interrogado e interrogante, que pode questionar sobre
qualquer coisa porque se põe em questão, e que se põe em questão
porque a pergunta sobre o ser, transversal a todas as perguntas,
determina-o em sua conduta. “A pergunta pelo ser nada mais é do
que a radicalização de uma tendência de ser — a compreensão
pré-ontológica do ser (Seinsverstandnis) essencialmente inerente ao
Dasein” (SZ, p. 15).
O objetivo ou a meta da pergunta auto-reflexiva, contínua e
persistente, a questão do sentido do ser, que traça o âmbito da
79

conduta do Dasçin, acha-se dc "certo modo à nossa disposição” e,


implicitamente compreendida por quenj a propõe, pode explitar-se
quando elaborada, isto i, quando conseguimos reiterá-la desenre­
dando a compreensão desse ente que ela determina. “Já o indi­
camos: movemo-nos sempre numa certa compreensão do ser. Dela
brota a pergunta que interroga expressamente pelo sentido do ser
e a tendência a conceituá-lo" (SZ, p--5), Ê'assim a compreensão
indeterminada, de caráter pré-ontológicu, recalcada pela Metafísica
e pobre o lundu da qual a Metafísica se constitui, que devemos
forçar ao adaramento, mediante um trabalho “arqueológico" in­
verso dc interpretação, que permita retomar verdadcirâmcnle a
questão c retirá-la do olvido, contornando a tradição tle pensa­
mento depositada no curso histórico da Ontologia, dos gregos até
nós. Mas, sob pena de incidirmos no mesmo deslocamento histó­
rico que encobriu a pergunta e condcnou-a ao esquecimento, não
poderá essa compreensão scr trabalhada fora de seu lugar herme­
nêutico — a conduta do Dasein, em que se enraiza c tematiza.
A direção inquisitiva da pergunta fundamental implica uma
busca na qual o Dasein se encontra empenhado, como ente cuja
essência reside na existência e em que está em jogo a possibilidade
de ser ou de não ser si-mesmo. É o ser que, conforme já dissemos,
importa em seu próprio ser, a esse ente ôntica e ontologicamente
distinto. Nesse plano do que impbrta, fixa-se a direção inquisitiva
da pergunta, que é antes a direção de uma busca existencial do
que a meta de uma investigação teórica. Nenhuma Ontologia
nasce atendendo ao mero reclamo de curiosidade intelectual, nem
pode desenvolver-se sem retornar ao lugar hermenêutico de onde
a pergunta se desenrola como busca e onde a busca se torna inves­
tigação.
Todo perguntar é um buscar. A direção prévia de todo bus­
car vem do que sc busca. Perguntar é procurar conhecer do ente
o que c c como é (Divr und SosCin). A procura (Snchtu) dcwc
conhecer pode tornar-se uma "invcstijiaçíío" (Gnlersuchung), um
determinar I iberatório daquilo a respeito do que se pergunta ($Z.
p. 3).

Concomitantemente ao aclaramento da compreensão indeterminada


do ser — compreensão mediana, vaga, que sustenta a busca e que
constitui afinal o primeiro e único apoio fáctico do trabalho herme­
nêutico — a investigação ontológica requer a elaboração da per­
gunta em termos conceptuais. Mas só se pode aclarar essa com­
preensão indeterminada do ser, de que depende a elaboração da
pergunta, atravessando-se o Dasein — isto é, passando-se antes
pelo desencobrimento fenomenológico do ser desse ente.
80

Para que se elabore a questão, para que o seu interrogar


expressamente feito deixe ver a prévia direção que o determina e
seja transparente (durçhskhlig) ao ser, ao que nela é perguntado
(Gefragte) e buscado (Gesuchte), será necessário então recuar ao
ente inquisitivo e ver primeiramente através dele a pergunta que
o determina em sua conduta. Trata-se, pois, de fazer do Dasein
uma via dc acesso à questão do ser. Daí corresponder a Analítica
a um empreendimento fenomenológico preliminar, a um primeiro
desideratarn a cumprir-se no interesse do potserior desenvolvi­
mento da investigação ontológica. “Elaborar a questão do ser
significa fazer ver através de um ente — aquele que pergunta, do
ponto de vista de seu ser” (SZ, p. 7).
Mas, visando ao Dasein em sua existência, investigando o ente,
que pode “escolher-se a si mesmo, ganhar-se e também perder-se,
ou não ganhar-se nunca ou só aparentemente ganhar-se” (SZ, p.
42), a Analítica põe-no no plano da importância existencial. Dado
que para a Fenomenologia não há outro tema senão ü ontológico,
e nenhuma outra linha senão a interpretai iva, a investigação feno-
menológica cumpre-se como um Wjfejrt tà pltaimSmrna — um per­
mitir ver o que sc mostra, tal como efetivamente sc mostra por
si mesmo: a existência, o ser do Dasein, desse ente que somos nós
mesmos.

n
Dois pontos metodológicos, desprezados no capítulo anterior,
c que identificam o porte hermenêutico da Fenomenologia trans­
formada cm Ontologia, precisam, agora, de especificação: o cará­
ter expresso do mostrar-se fenomenológico c a prcpúraçáo ow abor­
dagem do ente para esse fim.
Como Ontologia hermenêutica, a Fenomenologia radicaliza a
idéia husscriiana dc IFcscnrcltnw. Entretanto a intuição originária
a que ela chega não é nem uma apreensão imediata nem o conhe­
cimento dc coincidência, “sem símbolos”, das coisas. O originário,
que a intuição capta, tanto dista da realidade pela primeira vez
adentrada por simpatia — o absoluto da intuição bergsoniana —
quanto da idéia evidente, a título de fundamento inconensso garan­
tindo ao conhecimento filosófico um verdadeiro começa. O que
w mostra por si mesmo tal como efetivamente se mostra, dá-se a
ver numa experiência pré-lcórica envolvente, que tem a simplici­
dade impositiva das situações fádicas incontomáveis. Assim o
mundo natural vivido — o Lcbensweft — e pré-teórico, no sentido
81

de que vivemos espontaneamente as estruturas nele implícitas, A


distância reflexiva que possibilita o aprendê-las deverá estender-se
apenas o suficiente para que se evidenciem tais nexos ou estruturas
__ para que apareçam ou sc mostrem na conduta mesma do Dasein
ç sejam vistas, sem que a abslraçío característica do‘conhecimento
objetivo lhes prejudique a íneréncia.
Uma coisa vista — disse Husserl — não pode ser demonstrada; o
cego que quer encontrá-la jamais o conseguirá por demonstrações
científicas; as teorias físicas e fisiológicas das cores não fornecem
nenhuma clareza intuitiva sobre o sentido dn cor tal como tem
aquele que a vê.1

Tal como a cor, que só sc revela ao órgão visual excitável, o sen­


tido do mundo vivido, enquanto fenômeno, revela-se em sua origi­
nalidade muna experiência pró-teórica, a partir da qual podemos
torná-lo manifesto.
Portanto o que se intui originariamente não é nada de extraor­
dinário. Pertence ao domínio da manifestação, do que se mosirs e
se legitima sempre através de uma determinada instância fenomê-
nica. Aqui, longe de constituir uma realidade última, única e inex­
primível, fora de qualquer ponto de vista, como um original puro,
possuido sem tradução, a origem é o fundo ontológico implícito
à própria situação manifestante, o sentido ou o fundamento que
deverá traduzir-se no fenômeno. Uma coisa se manifesta quando
ela própria surge (cf. VA, v. 2, p. R). A despeito do apreço feno-
menológico à visão direta, esse surgir não c uma simples aparição
espontânea.
O conceito fenomenológico de fenômeno se entende como o mos­
trar-se do ser dos entes, seu sentido, suas modificações c Seus
derivados. E o mostrar-se náo é nunca um mosirar-sc qualquer,
nem algo como um aparecer (crscheincn). Tampouco o ser dos
entes é aquilo "atrás” do qual está algo que "'não aparece1'. Nada
há esMndalmcnte “por irás" dos fenômenos da Fenomenologia, a
náo ser o que deva tomar-se fenômeno por estar oculto. E c por­
que os fenômenos não estão dados imediata e regularmente que se
necessita da Fenomenologia. Encobrimento (Verdecktheit) é o
conceito contrário de “fenômeno" (SZ, p. 36).

Dessa maneira. a tendência a ser, inerente ao Dasein, tem sua


contraparte no encobrimento do fundo pré-ontológico implícito à
sua conduta. Paradoxalmenlc, porém, esse fundo também sc ma­
nifesta naquilo mesmo cm que lendc a ocultar-se. O Dasein não

1 de Ja Phénoménologie', cinq leçons. Paris, PUF, 1970. p. 107.


82

é transparente a si mesmo. Dir-se-á não apenas que a sua essência


— a existência como poder-ser — permanece fora da experiência
imediata e das tentativas de conhecimento direto, como também
que ela refoge ao conhecimento, quanto mais parece manifestar-se
nas formas de mais próximo contato e de mais instante familiari­
dade do Dasein consigo mesmo.
O que 4 por essência tema necessário de um mostrar-se expressa-
mente? Evidcntcmentc aquilo que não sc mostra imediata e fre­
quentemente, aquilo que, ao contrário do que se mostra imediata
# írcqücntementc, está oculto, mas que ao mesmo tempo c algo
quo pertence por essência ao que se mostra imediata c frequente­
mente, de tal modo que constitui seu sentido e fundamento (SZ,
P 35).

Por outro lado, o mostrar fcnomenológico, que somente pode


ocorrer por si mesmo como “o liberar de um fundo que mostra
tsse fundo" (5’Z, p. 8), nunca é estranho ao Dasein. Não há
mostração sem que "este ente possa mostrar-se1' (SZ, p. 16) em
seu ser, através do que permite vê-lo; o lógos do trabalho interpre­
tai ivo, da explicitação fenomenotôgica, dirigido expressa mente à
desocultaçào, ao desencobri mento das estruturas ontológicas, que
se traduzem nos fenômenos por meio de conceitos pertinentes.
Assim trabalhando dc encontro a múltiplas espécies de apfircncia,
que estão para o autêntico mostrar-se como as máscaras e os dis­
farces estão para o rosto que encobrem e desfiguram, a Analítica,
jamais confiante na imediatez da consciência de si, que falseia o
sujeito, e muito menos no valor cognoscitivo da experiência refle­
xiva do Eu, põe sob reserva o que é imediatamente dado.
Como Nietzsche, Heidegger sabe (ou aprendeu com Nietz-
sche?) que “o homem é difícil de descobrir” e que “o espírito
mente muitas vezes a respeito da alma”.2 Entretanto — outro
paradoxo da Analítica — apenas quando este ente se dá, e apenas
o que dele sc dá dc maneira justa, pode proporcionar a base da
análise — o seu ponto dc partida (Ausgang), o seu acesso ao fenô­
meno (Zugang), e o seu correto desenvolvimento metodológico,
isto é, a sua passagem (Dttrchgang) através dos encobrimentos,
disfarces e desfiguração dominantes, até o pleno aelaramtmto. Mas
— terceiro paradoxo — o trabalho interpretativo deve não só

- “0 homem é difkil de descobrir, sobretudo qanndo se trata de descobrir


* si mesmo. O espirito mente muitas veres a respeito da alma.” Nri.rzscHt,
F, Von <5risi der Schwere [Ds> espírito dç pesadume], In: —. IFerJcç also
jjwneh Zaratliustra. Heriuisgcgebcii voo Karl Schlwhtn. Miínchen, Cart
Hanser, 1S54, y. 2, 3. parte, cap. 2, p. 441,
83

dirigir-se ao que por ser tão frequente e imediatamente dado passa


despercebido — a compreensão indeterminada do ser na mediania
(wwial e indifeteaciada da existência cotidiana (durclisclinitrlich.cn
Alltãglichkeit) — como arrancar-lhe o fundnmcnto ocullo, na for­
ma dc expressão mais apta a exibi-lo, c que, txibindo-o, ligue o
/Mítico próximo ao ontológico distante.
Sem dúvida o Daseinró onticamente não só algo próximo, e inclu­
sive o mais próximo, pois que somos nós mesmos em cada caso
ele. Apesar disso, e justamente por isso, é ontologicamente o mais
distante (SZ, p. 15).

A interpretação deverá vencer a distância das deformações e en­


cobrimentos para chegar ao distante, mas necessita aderir ao que
está próximo para assegurar o seu ponto de partida, numa aborda­
gem correta que lhe permita a passagem ao fenômeno — a tran­
sição entre o que é dado (numa escala fenomcnica determinada)
e o que é mostrado nos conceitos que o trabalho interpretativõ
elabora.
Porque, sendo fenômeno na acepção fenomenológica só aquilo
que é ser, e sendo ser o ser de um ente, há necessidade, quando
se pretende liberír o ser, de se conseguir antes uma correta apre­
sentação do próprio ente (SZ, p. 37).

Como na genealogia nietzschiana, o esforço trabalhoso de


extração hermenêutica requer o rebatimento da aparência, que
encobre ou deforma, com a constância de um recalque, o fundo
original do Dasein que nele se mostra liberado. Esse fundo — a
compreensão pré-ontológica, pela qual o Dasein existe interpretan­
do-se perante o mundo e os outros entes — está implícito à cons­
tituição de seu ser. “Onticamente o mais próximo, ontologicamente
o mais distante, o Dasein é, contudo, pré-ontologicamente não-
-estranho” (SZ, p. 16). A interpretação analítica desce a essa
interpretação pré-ontológica em que permanecemos na mediania
banal e indiferenciada do cotidiano, para extrair-lhe o fenômeno
— o seu sentido implícito e encoberto, o que vale dizer, para dela
liberar a interpretação mais original do Dasein, em que este se
mostre por si mesmo, revelando, no que o constitui enquanto ente,
no seu próprio ser, o fundamento expresso do imediato e do
aparente.
A forma de acesso e de interpretação tem que ser escolhida antes,
de tal modo que esse ente possa mostrar-se em si mesmo e por
si mesmo. Na verdade, essa forma deve mostrar o ente tal como
84

é imediata e freqüentemente (zunãchst und zumeist) em sua banal


cotidianidade (SZ, p. 16).

Uma forma diferenciada e característica de existência, com a


sua ordem prévia de conceitos, munida, portanto, dc pressupostos
ontológicos não-aclarados, vedaria o caminho à plena most ração
fenomenológica. Daí a necessidade dc recorrer-se à eotrrffawdÃíe,
como perspectiva da Analítica. Mas essa perspectiva indiícrenciada
não é neutra; ao contrário, ela é duplamcnte reveladora — cm
primeiro lugar do veso do Dasein para também cúmprecnder-sç
por espelhamento nos outros entes que □ circundam, c, em segundo
lugar, da própria atividade interpreta tiva. “A indifereiiL-iução da
cotidianidade do Dasein não é insignificante, mas á rnn caráter
íecumênico positivo desse ente" (5Z, p, 43), Em sua mediania
banal e indiferendada, a existência cotidiana é a interpretação
comum c frcqüentc cio Dasein numa forma estabilizada. A exigên­
cia fenomenológica dc sua escolha atém-sc a csw caráter fenümê-
nico positivo, como modo de scr do homem tanto numa sociedade
primitiva quanto “numa cultura altamente desenvolvida e dife­
renciada” (SZ, p. 50-1).3
Sc o Dasein existe interpretando-se, reside na existência desse
ente, que compreende o ser, a raiz ontológica dc toda interpretação.
Mutaiis matondts, a investigação fenomenológica, que conjuga duas
dimensões interprcíativas — a prí-oatolá^ica de que parte, ç a
a que chega —, alcançaria a raiz interpretais va de toda
a Ontologia. Em vez dc paradoxo, temos aqui um dialelo, um
círculo lógico, dentro do qual a investigação antológica sc desen­
rola, desde o momento em que sc focaliza o Dasein como o ente
a quem o scr importa ent seu próprio ser. Da importância existen­
cial surge o impulso- para a indagação ontológica, que é a medida
essencial da interrogação filosófica.
Desse modo, a investigação teórica assume o Dasein em sua
possibilidade de ganiiar-sc ou dc perder-se, de ser ou de não ser
si-mesmn. Re tomando a busnt que a possibilita, ela também acom­
panhará as duas alternativas, a dc pertfa e a de apropriação do
Dasein por si ç para si mesmo, que a levam a passar das expressões
autênticas às expressões inautfimícas da existência, mas à procura
dos caracteres de ser ou das estruturas que constituem o scr-no-
-mundo.5

5 "A coiiijuriidadí (AIHIí(lichkert) siüo se apresenta e<»mo pritniiívidHde.


A cotidianidade í antes um modo dc »r do J>.*«-inr ijitnbém c prccisameriie
quando o Dasein se move numi culiurn. nltanienic desciiwjlvid^ e diferen-
eiadü. J*oj outra Indo, nitjnto tendo o- Dasein jwimitivc suai pomitiíl idades
de str afo*coíidlanM, ele possui sua uútidiaiüdmlc especifica" (SZ, p. 5D-1).
85

Assim, se a trilha da investigação é, para usarmos as expres-


(Jft Kitrkegsfiítl, o íflletWW daquele que existe, o seu objetivo,
embora comprometido com moiivações existenciais, não é nem
íiLCü nfiíH espiritual- Posta dt Lado a questão da existência, que
"só pôde resoLvcr-sc por nitio <L1 própria existência'’ (SZ, p. 12),
3 Analítica icm por fim mostrar o complexo de estruturas que
constituem u Dflscm- 'íjjtirsndo o fio condutor da pergunta que
ligiL a investigação à buscah a Analítica aproveita o desdobramento
da compíscnsão tlu ser em dois planos: o existencial, pré-teórico,
de que parte, e que toma por base, e o existentivo, a que chega
nos conceitos interpretativamente elaborados/ e nos quais, liberados
de sua aparência ou encobrimento, os fenômenos respectivos po­
dem mostrar-se.
Nessas condições, a elaboração da pergunta, que Ser e tempo
persegue, como prospecto provisório e preparatório de uma inves-
tigjição a realizar, recai num patente círculo lógico:
Ter que determinar antes de tudo um ente em seu ser e querer
fazer logo sobre essa base a pergunta que interroga pelo ser, que
é senão mover-se em círculo? Não se pressupõe já, para elaborar
a pergunta, aquilo que a resposta a essa pergunta deveria trazer?
(SZ, p. 7).
*
Mas a própria análise incumbir-se-á de mostrar que o circulus in
probando compõe a estrutura circular da investigação, e que essa
estrutura é constitutiva do Dasein investigado. Longe está a com­
preensão do ser em que nos movemos, pressuposto de toda inves­
tigação ontológica, de uma hipótese puramente teórica. O ser é o
pressuposto, mas não como conceito disponível, ou como funda­
mento posto pela consideração fenomenológica inicial que nele
atenta, “do qual se infere dedutivamente uma proposição” (SZ,
p. 8). Só as estruturas existentivas que ele tem por fundo permi­
tirão explicitar-lhe o sentido. Dessas estruturas, que respondem
pela compreensão do ser, distinguem-se os entes que não têm a
forma do Dasein, e aos quais Heidegger aplica a denominação de
categorias. Traduz-se nessa alteração de nomenclatura a reversão
categorial com que a Analítica opera desde o começo. As catego­
rias tradicionais (as determinações do ente, em Aristóteles, e as
condições a priori do conhecimento, na Filosofia transcendental
kantiana) não se aplicam ao Dasein, fundando-se nos existentivos.
Duas espécies de ser preenchem as categorias heideggerianas:
o ser-à-mão (Zuhanden), dos entes acessíveis na práxis, e o ser-
-à-vista (Vorhanden), dos entes que se apresentam diante de nós,
como objetos substantes ou coisas, desligados da práxis. Os pri­
86

meiros formam o socalco da experiência antepredicativa, que nos


liga ao mundo circundante, e é por eles que principiará a investi­
gação analítica.

III

As démarches paradoxais e o andamento circular da Analítica


convergem numa Ontologia fundamental. Levando em conta a
separação entre o Dasein como ser-no-mundo e os outros entes
que se situam dentro do mundo, essa Ontologia desenvolve-se ao
nível da reversão categorial que o conceito da banalidade cotidiana
subentende, e que somente o resultado final da investigação poderá
elucidar.
A expressão “ser-no-mundo”, que não significa uma relação
de encaixe do Dasein no mundo natural, nern exprime um nexo
dc contigüidade entre o Dasein c os outros entes, conota prclimi-
narmenlc morar, ftabitar, ser familiar a, significados expressos pelu
locução alemã sein beí, que Heidegger aproxima do verbo latino
Tais significados seriam preenctiíveis, em nossa língua, pelo
sentido do verbo estar, que falta ao idioma alemão: encontrar-se
num lugar ou permanecer num certo estado. Do ponto de vista
ontológico, a diferença de sentido entre os dois verbos, ser e estar,
correspondería à distância que separa o autêntico do inautêntico,
0 origjjjdrio do derivado. JSer e estar-no-mundo assinalam a pola­
ridade anlitclica da existência cotidiana.
Finalmente, podemos dividir a Analítica em três etapas, que
são escalas hermenêuticas de um mesmo processo interpretativo,
levando da descrição do mundo circundante da cotidianidade à
interpretação do tempo como temporalidade.
A busca fenomenológica do mundo e de sua estrutura mais
geral — a mundanidade — do Eu cotidiano e dos existentivos
fundamentais, que desembocam no cuidado (Sorge) — demarca
a primeira etapa. Nessa, como nas duas seguintes — do cuidado
ao ser total e próprio do Dasein, e deste à temporalidade, que de­
vemos percorrer nos próximos capítulos —, a investigação sempre
oscila entre os dois planos, o existencial e o existentivo, mediante
atos interpretativos, que formam, em conjunto, uma cadeia herme­
nêutica. Em cada nova etapa, as aquisições no plano existentivo
— os caracteres de ser ou estruturas ontológicas — incorporam-se
à cadeia hermenêutica, condicionando-lhe o passo seguinte. Assim,
apoiando-se no adquirido, ós atos interpretativos acompanham o
desdobramento dos próprios fenômenos de uma a outra etapa.
87

Como partes inseparáveis de um processo de elaboração e de vali­


dação simultâneas dc conceitos, cada qual está implícita na ante­
cedente que a suscitou c que a elucida por retro-referência. Desen­
volvendo-se gradualmcnte, até exaurir a compreensão toda que o
Dasein tem dc si mesmo c do mundo, o método ícnomenológico-
-hermenêutico, que não avança por sínteses sucessivas, como o pro­
cesso dialético com o,qual se assemelha, tem. mais precisamente,
cm sua configuração paradoxal, desafiadora dos padrões de exati­
dão lógica, a feição, decorrente de seu próprio alcance hermenêu­
tico, dc uma decijraçáo da existência.
VI

A LIDA COTIDIANA

Vn couchant des Cosnwgonies!


Ah! que la Vie est quotidieitnc. . .
Laforgue, Complainte sur certains ennuis.
■ .. não poderiamos saber o que é uma coisa sem termos
diante de nós “o trabalho de nossas mãos".
Hannah Arendt, A condição humana.

1. O mundo circundante e os entes

Depois que os pró-socráticos investigaram o princípio (arché)


da p/iysis, a Ontologia grega conccntrou-se no ser como essência
(eídos) c como substância — o que cada ente é em si, a sua iden­
tidade e a sua permanência —, apreendido por um ato dc visão
intelectual do espírito (mous). No ser-à-vi$ta (Vorhandcn), des­
coberto pela razão, assentou, desde a Filosofia platônica, a con­
cepção da realidade, A razão alcança o inteligível (nócton), que
se apresenta aos olhos do espírito, c constitui objeto da ciência
(epistéme), do conhecimento fundamentado. Quanto mais verda­
deiro esse conhecimento, tanto mais são independentes dos senti­
dos as noções que o exprimem, visando, além dos gêneros das
coisas nas definições c as categorias, o supremo inteligível, isento
dc mudança, “fonte primitiva do conhecimento e da verdade” \
Esse foi o modelo da rcoría preservado e consolidado pela ciência
primeira de Aristóteles, que especula sobre os princípios e as cau­
sas; abaixo dela, estudando, por uma maior ou menor abstração

1 Platão. A república. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém, Univer­


sidade Federal do Pará, 1976. Livro VI, 509a, v. VI-VII.
89

do sensível, os gêneros do ser, as demais ciências teóricas distin-


guein-se, como saber de certeza, que tent no conhecimento o seu
próprio fim, das outras espécies de ciências, que tratam das coisas
suscetíveis dc mudança, seja as poéticas, cujo objeto é o produzir
Cpoiefn), seja as práticas, cujo objeto é o agir- (prátltin).
E^uma confirmação do significado da fwfa enquanto visão
do inteligível, a superioridade do teórico, cm Correspondência com
o primado do ser-à-vista;'estendeu-se, na Filosofia grega do periodo
clássico, à auto-suficiéncia da vida contemplativa, cm contrapo­
sição à wdfl dedicada aos negócios humanos (ántropon prág-
imita), por meio da ação (práxls) e da palavra (léxls). Õs gregos,
observa Heidegger, tinham d termo adequado dc pragtnata para
as coisas de que se ocupavam (práxij), mas esquóceram-st desse
caráter "pragmático”. Diante da relevância que os filósofos dos
séculos V e VI emprestaram à vírfn ccmfcmp/aríw, vinculada por
Aristóteles à atividade do pensamento, desejável por si mesmo, o
esquecimento é justificável. Fonte das virtudes dianoélieas, essa
atividade deveria proporcionar a base da emtaímrvjúz — da virfa
feliz, auto-suficiente c perfeita, relaiivamente à qual mesmo a ação
equilibrada, ética c política, sob o respaldo das virtudes morais dos
cidadãos, iguais e livres como membros da pólis, constituiría a
conduta mediana louvável, entretanto inferior ao exercício contínuo
do pensamento, capaz por si só de assemelhar os homens às divin­
dades c dc awegiirar-lhcs a imortalidade. As ciências teóricas
nasceram onde “reinava o ócio,L}, dentro da pólis-, o bios theorefikós
era a vida do homem emancipado da premència das necessidades
primárias, a puia atividade tio pensamento garantida pela abstençáo
das ocupações servis, do labor da subsistência e da trabalho ma­
nual, c garantindo o caráter “desinteressado" dc toda a teoria,
expresso no altaneiro desprezo socrático dos negócios píbltcos e
da ação.
Hegel inscrevería na Fí?tofflenotógrfl 4o espírito o momento
da condição servil c o momento do trabalho produtivo, em que as
consciências se reconhecem atra ves das obras livremente produzi­
das, ambas como etapas do desenvolvimento da consciência a ca­
minho do racional- Max encontraria depois, na idéia de trabailio,
elaborada pela Economia política, a mola principal de sua crítica
ao processo dc realização histórica do espirito, síntese do idealismo
hegel iano. O espírito ninverte-sc na atividade produtiva do homem
como ser social, c a História da espécie na produção dc seus meios

2 Aristote. La Métaphysique. Introduction, index et notes par J. Tricot.


Paris, J. Vrin, 1974. t. 2, p. 8-9.
90

de vida. O homo laborans substitui o homo sapiens', “o labor e


não a razão distinguiria o homem dos outros animais”8.
Assim, pois, ao retornar A ação pela primeira vez depois da
Antiguidade, a Filosofia, urgindo a transformação do mundo, inter­
pretou-se como um prolongamento consequente da pnfjrrs, identi­
ficada ã atividade produtiva, por sua vez forma da vida real, e que
consiste cm transformar a Natureza, O homem simplesmente hu­
mano, a que Marx se refere em seus Manuscritos, é o trabalhador
alienado do seu trabalho;1*45* não se pode postular o real, diria cie
nas Teses sobre Feuerbach, "sob a forma de objeto ou de intuição”,
mas enquanto "atividade humana sensível" (sjnnlichmenschlichc
Tãtigkeil)3, enquanto práxis geradora do pensamento teórico.
Herdeiro da exigência fcnomcnológica dc volta às coisas, Hei­
degger retomaria à práxis, numa escala interpretativa anterior à
oposição moderna entre o teórico c o prático configurada pelo
marxismo, tentando recuperar, cm função do problema do ser, a
intuição dos práftmala abandonada, a favor do scr-à-vista, pela
Ontologia grega, Essa escala não exatamente neutra ou desinte­
ressada foi a da atividade espontânea, que Husserl chamou dc
vida atual nas Idéias e de mundo-da-vida (Lebenswelt) na Krisis.
Nesse último grande trabalho de Husserl, o mundo-da-vida, que
Heidegger antecipou ao converter a «rórerde natural na conduta do
Dasein como scr-no-mundo, encerra o domínio prí-teóríco, “a cer­
teza da experiência direta antes de qualquer construção científica”*.
A intuição sensível c a corporeidade — a ccncsiesia e a consciên­
cia do corpo próprio (Leib) constituem o solo anônimo c atemá-
tico da direção dos nossos atos para os objetos. ‘'Enquanto nos
ocupamos com os objetos, os próprios atos em torno deles não são
temáticos.” 7
Assoma nessa passagem da Krisis o registro fenomênico da
conduta de trato, sustentada por múltiplas formas de preocupação

1 Arendt. HannaJi. The Jtuman condíiio>v, sdriy of iht central dilenimw


faccd modem man. New York, DouNcday. Anthor Boo, 1959- p- 76.
< "Então o trabalho alienado converte a vida do hontrm como membro da
espécie, e também corno propriedade mental da espécie dele, em uma entidade
e-rtron/ia c em um wreío para sua exirtência individual.1' M&RX, Kart. Manus­
critos econômicos e filosóficos. Tradução para o inglês por T. B. Bottomorc.
Apud Fxomm, Erich. Cmccúo wnrrúta do homem. Rio dc Janeiro. Zahar,
1962. p. 101.
5 Id. Thesen über Feuerbach [Teses sobre Feuerbach]. In: Karl Marx, 1818/
/1968. Bad. Godeabcrg, liUcr Naliones. I9íi8.
’« Ktwrrr, Edmund. Die Krisis der Furo-piUschen Wlimuchaften irnd die
TfíUiKendentaie Fhanwne»olagic. Deu Jlaag, Mnrtitivs Nijhofí, 1954. p. 107.
7 "Díe Aktc selbst sind In ditser Henhiifiigunj; mit den Objektcn unftiana-
tisch”. Id., ibid., p. 111.
91

(Bcsorgen), que estabelecem a nossa imediata relação com os


entes; por se inicia a Analítica. A preocupação designa o laço
de compenetração participante dessa conduta, que caracteriza a
envolvenda da lida cotidiana. Antes de qualquer visão teórica que
os tematiza, os entes se nos apresentam numa experiência ante-
predicativa dc trato, dc comércio {Umgang},. que já nos liga a
eles. Heidegger denominou de u/ertffZwi (Zeugen), em correspon­
dência com praffmcrtit, os entes acessíveis pela lida cotidiana no
mundo circundante, e fez da conduta de trato o motivo central c
introdutório da Analítica do Dasein. “Chamamos dc utensílio o
ente confrontado na preocupação. No trato deparamos com uten­
sílios para escrever, para coser (agulha), para caminhar (veículo),
*
'
ou para medir (instrumento) (52, p. 68). Veículo ou meio, Ins­
trumento ou ferramenta, o utensílio é uma certa forma de uso,
de serventia.
Usando a caneta, descobrimos o que ela é: descoberta que
difere de um "conhecimento” a respeito do objeto, dc sua natu­
reza, dc suas propriedades. O escrever revela a jervcritia, o jer
à mão, do utensílio. Por omro lado, a serventia não é
apenas 0 manejo físico da caneta; o simples uso dela cslendc-sc ao
emprego adequado de outras mcsüs e instrumentos, que não exis­
tem isoladamente: a tinia e o papeira mesa c a cadeira encadeadas
no serviço que prestam, cada qual como termo de uma práxis
remetendo aos outros, c todos, em conjunto, formando um com­
plexo referencial, O escrever como que levanta essa rede de refe­
rencias que configuram o ser do utensílio, c que a sua disponibi­
lidade, a sua serventia, o seu uso pressupõem. Jfr-d-mJo (Zuhan-
den) significa, portanto, mais do que o episódico oferecer-se dc
algo prestativo, tornado pontp dc aplicação da práxis; a rfjjpow-
Midade é como o a príori da práxis.
Tudo quanto sc apresenta dc imediato no lidar da conduta
cotidiana preocupada é descoberto como utensílio. Essa descoberta
não tem a reflexividade da visão teórica; o ser do utensílio desco­
berto não é o mesmo ser das coisas. De maneira inversa, podemos
dizer que as coisas com que lidamos, a que aderimos pela preo­
cupação na conduta envolvente do trato (Umgang), são utensi-
liarcs, c sc nos descobrem em sua instrumental idade, como objetos
dc uso aluai ou potencial. A preocupação sc dirige ao utensílio
no uso que dele se faz ou pode fazer-se, na serventia a que sc
presta Daí alcançá-lo como obra (Work), e constituir a obra a
forma primária do ser-à-mão.
A serventia corresponde ao para-quê (Wozu) do utensílio —
o fim a que o trabalho destinou-o, e que concerne conjuntamente
à matéria, àquilo com que o produziu. Na serventia é co-dcscoberta
92

a Natureza. A Natureza mesma revela-se “à luz dos produtos da


Natureza" (SZ, p, 70), c as coisas que nos circundam são mani­
puláveis, solícitas c prtslaiivas, “O bosque á parque floresta], a
montanha uma pedreira, o rio Força hidráulica, o vento sopro nas
velas" (SZ, p. 70). No irato cotidiano, a Naitutza 6 aittes prati­
cada do que conhecida, e conhecemo-la como uma c&pécic de
manancial de forças, de agenciamentos, de influxos favoráveis ou
desfavoráveis, que reduplicam a imagem de nossa ação. Mas a
descrição heideggeriana, aprofundada depois quando se estende à
experiência de espaço, cinge-se, nesse nível, aos traços da instru-
mentalidade, deixando de lado a fisiognomonia das coisas e os
componentes mágicos da conduta de trato. A Natureza praticada
apresenta-se-nos, nesse nível, menos como um manancial de força
do que como uma imensa oficina artesanal.
Quando a instrumentalidade cessa, a serventia se perde e o
uso se interrompe, descobre-se então, no produto inerte, sem fun­
ção ou imprestável, o ente natural indispensável, em seu ser-à-vista,
desligado da práxis, estranho e infenso a toda manipulação. Mas
não há separação estanque entre as duas categorias. O ser uten-
siliar, que não se mostra comumente, ressalta de encontro ao ser-
-à-vista, ao quebrar-se o elo da preocupação.
O principal alvo dessas descrições, que assumem o parti pris
do trato, é assentar a prioridade da estrutura geral do mundo,
como estrutura subjacente à preocupação que nos liga ao mundo
circundante, e que é mostrável a partir do complexo referencial
que o ser-à-mão dos utensílios implica. A direção participante do
comércio com os entes passa como por trás da consciência refle­
xiva, e o mundo se descobre na visão própria do trato — visão
circunspectiva (Umsicht), abrangente, que se desata da referencia-
lidade.
Suspensa ou neutralizada a preocupação, o utensílio destaca-se
da conexão que o liga a outros instrumentos, ao mesmo tempo
que o complexo referencial (Verweisungsmannigfaltigkeit), que lhe
condiciona a identidade, permite aceder ao fenômeno da munda-
nidade (Weltlichkeit). Passemos a palavra a Heidegger:
A estrutura do ser-à-mão como instrumento (Zeug) está determi­
nada pelas referências (Verweisungen). O em-si próprio e auto-
compreensível das “coisas” imediatas defronta-nos na preocupa­
ção, não expressamente atenta, que as utiliza e que pode tropeçar
com o inutilizável (Unbrauchbares). Não ser o instrumento utili­
zável consiste em que a referência de algo a um “fim” (des-Um-
-zu auf ein Dazu) está perturbada. As referências mesmas não
são consideradas, estando, porém, aí, na preocupação que a elas
se submete. Numa perturbação da referência — na inempregabili-
93

dade para —, a referência torna-se expressa. Mas na verdade não


como estrutura onfolAfiica e sim onticamcnte pára a “visão cir-
cunspectiva” (Umsicht), que depara com a daniftcaçãc do instru­
mento. Com esse despertar da visão circunjptttívn nii referência,
salta à vista o “fim” respectivo, e, conjuntamejíte, o “complexo
de obras” (Werkzusammenhang) e a inteira "ofiehui”, como aquilo
(ir que a sempre sc detém. O complexo ifist ramcnlal
não transparece urfT todo nunca visto, mus avistado ji pre-
viamcnlc dc maneira constante na visão cincunspccüva. Porém
com esse todo é o mundo que se anuncia (SZ, p. 74-5).

Essa longa citação tem a vantagem de poder mostrar-nos que:


1) o aparecimento da referencialidade (Verweisung) acompanha
a neutralização do trato envolvente; 2) o comércio, pelo qual se
estabelece a relação de familiaridade com o mundo circundante e
que nele nos absorve, é suspenso pela visão circunspectiva — o
olhar em torno, que já se distingue do trato e que ainda não é a
visão teórica', 3) o mundo que se anuncia, pressuposto do com­
plexo referencial, está, dc mudo utcmáiico, na serventia das obras,
que liga entre si produtores, usuários c consumidores, conferindo
ao ser-à-mão um caráter público c encobrindo a niundanidade, no
circuito familiar das várias formas de preocupação.
O acesso final ao mundo e à sua estrutura geral, a mundani-
dade, nos é dado pelo conteúdo de signo (Zeichen) da referencia­
lidade, que completa o perfil ontológico do ser-à-mão. Nos signos-
-sinais, a referência é uma relação formal entre dois termos. A
seta vermelha dos automóveis, que indica, “conforme a sua posição
em cada caso, num cruzamento, por exemplo, o caminho que o
veículo tomará” (SZ, p. 78), funciona reorientando a posição dos
outros veículos, isto é, a posição de cada qual em relação aos
demais. A seta assinala a posição do veículo, destacando-se de
um complexo referencial e indicando-o para os usuários. Conclui-se
daí não somente que o signo é instrumental, como utensílio adstrito
à serventia de assinalamento (o stat aliquid pro aliquo da função
de signo está condicionado ao âmbito da conexão referencial), mas
também que, por esta serventia, fica levantada, ao mesmo tempo,
a forma do mundo (mundiformidade). “Em todo ser-à-mão o
mundo já está sempre aí” (SZ, p. 83). Mas está sempre aí de
modo atemático. Através do signo, a relação com o mundo se
tematiza, tornando-se o tema expresso de uma descoberta. Se o
ser-à-mão traz implícita a forma de um mundo, como totalidade
dos entes, o mundo é a forma, a estrutura, “a partir da qual o
ser-à-mão é disponível” (SZ, p. 83). O aprofundamento fenome-
nológico da referencialidade, consideradas as duas modalidades do
caráter utensiliar da obra — o seu para-quê, a sua destinação, e a
94

empregabilidade (Verwendbarkeit) de sua matéria —, leva a essa


espécie de correlação dialética.
Um martelo é antes de tudo o uso a que o destinou “o trabalho
das nossas mãos” empregando os materiais adequados. A fabri­
cação apropria-se do uso prefigurado nesses materiais. E é a ser­
ventia da obra, o martelar do martelo (das hãmmern des Hammers),
que o identifica como utensílio. O desempenho do utensílio precede
e condiciona a avaliação dos caracteres físicos de seu aspecto, que
dele também podem fazer um ser-à-vista quando deixar de funcio­
nar. Dir-se-á então que a ferramenta assinala o seu próprio uso;
o seu ser-à-mão é a serventia (Dienlichkeit-zu), de que ela é
signo. Temos novamente a referência, mas já agora como uma
relação de ajustamento (Bewandtnis)8 a uma série de operações
e de empregos em cadeia, de fins previamente delineados. Porém
a disponibilidade mesma do ser-à-mão, o seu ajustamento não é
mais um fim, um para-quê, mas sim o porquê (Worumwillen) da
disponibilidade: esta zona de confronto com os entes utensiliares
— o Dasein, que torna possível o descobri-los ou liberá-los
(freigeben). Trata-se de uma relação apriorística, que compreende
a destinação dos utensílios, uma vez que o Dasein se compreende
a partir do mundo, daquilo a que está referido, em que se dá a
totalidade das conexões referenciais, até onde se estende a visão
circunspectiva. Nesse mesmo nível da tematização do mundo, tam­
bém emerge o fenômeno correlato da significação (Bedeutung).
A referencialidade do Dasein corresponde à relação de cons­
tante familiaridade com o mundo expresso pela locução sein bei
(junto a). Estando no mundo — junto e não dentro dele — e
sendo, portanto, capaz de apreender os entes que se incluem no
mundo somente sob determinada perspectiva, o Dasein compreende
previamente os nexos referenciais, ou seja, abrange uma multipli­
cidade de relações. A esse todo relacionai, em que se mantém o
Dasein, Heidegger chama de significatividade (Bedeutsamkeit),
condição ontológica das “significações”. O mundo circundante do
cotidiano, inseparável das significações que o entretêm, é o âmbito
das conexões referenciais que já recaem sob o alcance da visão
circunspectiva. Por meio dessa chega-se ao fenômeno da espacia-
lidade (Rãumlichkeit), desatado da conduta de trato, e que com­
pleta a descrição fenomenológica do ser-à-mão.
O isqueiro de que necessito, por acaso fora do campo de
minha visão atual, acha-se em algum lugar (o bolso do casaco,

8 Traduzimos Bewandtnis (cf. também Bewandtnisganzheif) por ajustamento


a uma destinação, de conformidade com Richardson. (Heidegger — through
Phenomenology to tought. 3 ed. The Hague, Martinus Nijhoff, 1974. p. 54-5.)
95

uaveu da mcsâ çtc,), não-Iocalizável num espaço métrico. Quan­


do rclanccio a vista em torno, à procura do mesmo utensílio, mo-
vimcnto-mc numa só pwrflsrfft, de que fazem parte a mesa de
trabalho, o casaco, o aposento com seus cantos e recantos, com
* 15 acolhedores ou neutros, num dos quais o objeto pro­
seus sít
curado se localiza, O aposento é uma paragem (Gcgend), que
absorve cm suas janelas dc cor peculiar, cm suas-paredes dc variá­
vel luminosidade, de que,-pendem quadros c a que sc arrimam
estames c prateleiras, em seu soalho dc irregular desenho, as dire­
ções métricas da altura, do cumprimento e da largura. Assim tam­
bém a trajetória do Sol, antes dc ser um percurso astronômico, c
a ocupação de diferentes jftfos, o do nascente, o do meio-dia c o
do ocaso, numa só paragem celeste, que orientou, nas sociedades
primitivas c nas culturas do mundo antigo, a localização das cida­
des, das casas c dos templos. Do caráter familiar predominante
dessa topografia provém a maior originariedade da paragem rela-
tívamcnle ao próprio ser-à-mão, O mundo que sc mostra na ser­
ventia das “coisas” desponta nas paragens, c são as coisas instru­
mentais que compõem a “natureza" do mundo circundante. A
instrumental idade sc sobrepõe à phyxis, e a paragem ao espaço
cósmico. Mas, como espaço do ser-à-mão, a paragem deriva do
scr-no-mundeq o Dasein, que c espacial, constitui o ponto de ori­
gem do espaço relacionai, geométrico e cósmico, como veremos
a seguir.

2. Aproximação proustiana

A vizinhança dos sítios que mc rodeiam c uma aproximação


que tem como horizonte o meu distanciamento em relação a outros
lugares. O qnc é próxima e o que í distante interdepeudem num
jogo de diferenças. Mais vizinho me sinto do rio dc cor estanhada,
ao longo do qual penso caminhar amanhã, e de que me separam
quilômetros dc estrada, do que do isqueiro que agora tenho ao
alcance da mão. Essa distanciaçào que aproxima, essa aproxima­
ção que distancia, tornam possível a mcnsurabilidadc com que
estimamos o espaço que separa os entes, onde os localizamos me­
diante pontos traçados sobre um eixo de coordenadas. Só pudemos
localizar c medir distâncias porque os entes já se nos descobrem
num distanciamento que aproxima. “O Dasein é essencial mente
dtWíiFrdffdor (ent-íernend)” (SZ, p. 105). Ele distancia na medida
cm que possui a inclinação ou a tendência para aproximar (tendenz
auf Nãlte) (SZ, p. 105). Demarcada pelos sítios dc uma paragem.
96

a sua posição envolve um contínuo exit: o seu aqui coloca-o num


ali, junto ao qual também se acha.
No dtrigir-sc do Dasein às coisas dc que sc aproxima, apare­
cem as direções fixas, "direita"1 e "esquerda", que delimitam a
espacial idade do corpo, mas que do corpo não saem como flexas
direcionais que dele sc desprendessem. O longe e o perto, o dentro
e o fora também são aplainados no distanciamento aproximador.
Posso estar perto de paragens fisicamente distantes dc mim c longe
das próximas. Uma viagem curta parece-me longa c vice-verso.
Seria, porém, tio irrisório transpor essa proximidade à escala do
que c cspacialmentc tnedido quanto ignorar o mundo descoberto
cm tal fenômeno. Em razão do mesmo descobrimento, 6 "verda­
deira" a sobreposição dc lugares afastados numa só paragem. O
espaço de cada lugar funde-sc no dc outro, e ambos constituem
uma significação total, dc que participam objetos c utensílios. A
significação é que d A espaço (Raum-gcbcn) ou que espaccia
(einráumt), liberando as coisas (cf. SZ, p. 111) — isto é, permi­
tindo trasladar, separar c colocar objetos distribuídos numa certa
ordem, por vizinhanças e afastamentos, de que o espaço homogê­
neo e geométrico é o esquema abstrato.
Ao espaço puro c homogêneo, mas derivado, cm que os
sítios sc transformam "numa multiplicidade dc lugares ocupados
por uma coisa qualquer" (SZ, p. 112), e as paragens, em dimett-
jõe$, emprestou Descartes caráter dc extensa, nele firmando a
realidade enigmática do mundo exterior, do qual o erpíríro, como
rt-j cogím?rr, recebería, através do corpo, sujeito às leis do movi­
mento, 0 influxo dos sentimentos e das paixões, estranho à ação
interior c pensante da alma.
"Nem o espaço está no sujeito, nem o mundo está no espaço"
(SZ, p. 111). O Dasein habita o recuado espaço Originário, irre­
dutível a uma localização simples c não encerrado num sujeito.
A cspaciação (Einrüumen), que acompanha toda "busca do tempo
perdido", c pela qual sc anuncia o fenômeno decisivo c ainda mais
primitivo da temporalidade (Zeitlchkeit), é, ontologicamente, o
rasgo de abertura do Dasein como ser-no-mundo.
Pela vivência de certas línguas, conforme Humboldt ensinou
a Heidegger, os pronomes pessoais — eu, /« e ele — equivalem
a Heidegger, os pronomes pessoais — eu, rw e ele — equivalem
a proximidade c o afastamento do scr-no-mundo cm sua cspacia-
lidade e.Ujren/rvn (existenzialcn Rüumhchkcit) (cf. SZ, p. 120).
O scr-no-mundo espacial izanie é também scr-aí com os outros
(Mitdasein).
91

3. A gente (das Man)

Não há, propriamente, entre mim e os ouflw uma relação de


alltiidade, poslcriormeote convertida, por cmpstia, no conheci­
mento de um Eu alheio. O ser-no-mundo, compartilhado, é igual-
mente ser-em-comum (Mitscin). Porém, alcançado dentro do trato
e da visão circunspecliva do cotidiano; o outro s* nos revela me­
diante uma Forma diferente de intercâmbio que se entre cruza à
preoctípflfÃo: a roüdtiuá> (Fürsorgen), a que se deve dar o peso
semântico de no sentido dc um contínuo cuidar dc
outrem, que inclui tanto o intercurso indiferente quanto as formas
negativas (hostilidade, aversão) e positivas (dedicação, amor) de
relacionamento. Entretanto a solicitude se dá no círculo do ser-
-à-mão. Não confrontamos os outros como utensílios ou como
objetos, mas “topamos com eles ‘no trabalho’ (treffen sie ‘bei der
Arbeit’), o que significa afirmar que os confrontamos em seu
ser-no-mundo” (SZ, p. 120). O trabalho dispensa o circunlóquio
da busca de uma experiência do Eu alheio — o conhecimento
intersubjetivo, em que se fundaria o nexo entre sujeitos isolados e
separados, por natureza, em sua realidade solipsista 9.
Como poder-ser, a existência traz, em sua mesma compreen­
são, o ser um com o outro (Mitsçin andersein) que a determina.
Seja pela consideração, seja pela condescendência, a solicitude nos
acompanha alé na solidão. No mundo compartilhado (Mitwelt)
do cotidiano, deparo com os outros em mim mesmo e deparo
comigo nos outros. Esse recíproco relacionamento, que se entre-
cruza à preocupação, possibilita outra via de acesso ao mundo.
A significatividade, inerente ao trato, e que a relação referencial
do Dasein alcança, depende de um tal relacionamento. O ser-em-
-comum constitui o aí de nossa situação, em que converge. Nessa
convergência, anunciada pelo trabalho, estabiliza-se o ser-em-
-comum, mantido na órbita do ser-à-mão de caráter público
(õffentlich).
Negativa como hostilidade, positiva como abnegação ou apenas
indiferente como retraimento, a solicitude realça a permanente dife­
rença insuprimível de um em relação aos outros, a distância que
os separa aumentando quanto mais se empenham em eliminá-la.
Por força desse empenho, os outros nos englobam, subtraindo-nos
de nós mesmos. O poder-ser próprio de cada qual se transfere
aos outros, e, retornando a todos como potência estranha e anô­

9 Cf. Scheler, Max. De el Yo ajeno. In: —. Esencia y formas de la sim­


patia. [Wesen und Formen der Sympathie], Buenos Aires, Losada, 1943.
Parte C.
98

nima que os domina, coloca o Dasein “sob o senhorio (Bot-


massigkeit) dos outros” (SZ, p. 126). O ser-cm-comum esta­
biliza-se nesse poder anônimo e erradio. impessoal c indefinido,
através do qual sc exerce o domínio sub-reptício dos ouiros, absor­
vendo o Dasein e determinando çne/tt é em si mesmo: nem esic
nem aqueje, nem alguém nem alguns — ou a soma de todos —■
mas a geníc (das Man) — entidade invasora c neutra, o sí-meswt<j
do mundo circundante do cotidiano, que o pronome “Eu" recobre
ou mascara,
Ein sua preocupação com a mediania, opondo-se a toda exce­
ção c originalidade, a gente, que exerce uma regulação niveladora
(Eíncbnung), é 0 modo dc scr público (üífendichkcit), a identidade
cotidiana em que o Dasein sc mantém, mdependentemente da cultura
e do momento histórico. Nào sendo mnguíWí como gente, 6 a
esse ninguém (das Nicmand), com a aparência dc um ente-à-vista,
que o Dasein sc entrega no reciproco relacionamento com os outros
(Untcrcinenderscm). Em sua existência diária, a ipseidade do
homem, o seu quem, assume a aparência objctiíicada dc um ew
MWÍísriffrwm que paira acima de todos, detendo o poder-ser de cada
qual. Sem que desapareça, o poder-ser de cada qual subsiste numa
forma imprópria (uneigentlich}, contra a qual o si-mesmo próprio
é sempre capaz de recuperar-se.
Assim o scr-cm-comum sc estabiliza num estado de pcrdurávcl
e não acidental retraimcnlo do Dasein, que encobre a sua funda­
mental possibilidade como existente. Uma vez que a essência do
Dasein consiste cm sua existência, e que por existência se cnlcnde
o poder-ser a partir do qual ele se compreende, tanto a preocupação
quanto a solicitude suo modos de ser e dc compreender o mundo-
Dessa maneira, a conduta niveladora do cotidiano não é menos
uma possibilidade, embora inauténtita, do que o si-mesmo autên­
tico da existência, encoberto na aparência objeiiticada, exterior e
pública da geme, O eircainíFre/j/o (Vcrdeckct)) é a contraparfe da
atertura (Erscíilosscnheil).
i- i-H; Vii: • h’| ,7> •! i í >»i (2-.ÍTÍÍ: ?

4. As dimensões da abertura

Das três dimensões igualmcntc originárias da abertura, a dis­


posição (Bcíindliclikcit), o compreender (Verstehen) e o discurso
(Rede), é a primeira que condensa u seu aspecto primário genuíno,
peto qual sc pode mais facilmente apreender o alcance desse
conceito.
Db latim apertara (relacionado com apçrire, descobrir, mani­
festar), o substantivo abertura, que conjuga a ação incoativa do
99

verbo abrir c ° fieu «SUllado. —r o que se abre, o aberto —,


liea duas ordens de conotações inseparáveis, que o vocábulo alemão
correspondente, Erschlossenheit, rtúne: a de abrimento (fresta, pas-
ssccm) c a de luminosidade (iluminação,, espaço iluminado, cla-
jciía). Heidegger resume nesse termo, que na segunda fase de seu
nífisameiito substitui por Uifenhàt (abrimento, abertura), e final-
niCÉitc por Líc/tfwrg (çJarçíra), ludo p que invçstc o Dasein como
j-çr-no-mundo ou que está por ele investido. O primeiro aspecto,
de investimento pelo mundo, leva-nos à órbita, embaraçosa para a
Fenomenologia, da wííü «ftíán, até onde Max Scheler estendeu
it noção dc intcncionalidadc.
Mttx Scheler, como já fizera Brentsno, ressaltou a disposição
específica do amor e do àdio, sentimentos fundamentais, cuja
íntflFrffO', sobrelevando a tcndüni-ia natural correlativa, líaz de cada
um desses estados de ânimo uma forma dc relacionamento com os
miiros. que capta, ao mesmo tempo, intuitivamenlc, o valor uu 0
dcsvalòr inerente às pessoas. 111 Pura Heidegger, independente mente
do teor claro ou obscuro da intuição que corresponde aos senti­
mentos cm particular, o fato relevante á n da rfomvrfncta da
afetividade- Seja que nos envolva a "equanimidade" ou a yelada
melancolia (cf. SZ, p. 134), seja que oscilemos de uma a outra,
bem-humorados hoje e matdispwtoí amanhã, sempre vivemos numa
determinada tonalidade afetivo (Sttmmung). numa disposição de
H?rijflrp (Sefútdiichkeit)*11. Esse sentimenro dos sentimentos a que
estamos entregues, sem Justificativa c sem porque revela-nos a
existência como uma carga que nos pesa; rcvda-nos enfim o nosso
irredutível <ií, onde sempre já nos encontramos laliçádbs. O ser-
-lançado (Geworíenheit), sobre que á disposição se abre, expressa
a facticidade do Dasein —■ a entrega a si mesmo, à existência, a
que está concernido, pela qual responde, c da qual também èc
esquiva,
Tão originária quanto essa dimensão í o compreender (Vcrs-
telicn)- Mas este, enquanto estrutura do poder-ser inerente ao
Dasein, que integra o conceito de existência, é o projeto (Entwurf),
oposto, como modo fundamental (Crun.dmodos) ao ser-lançado,
que investe o mundo. Ao Dasein, que não recai sob a primeira das

llJCÍ. Senfli.RH. Xtíix. fitica. [Der Formalismus in der Fthik. ürid dié Mate-
rinlc Wertwhik]. fluenoí Aires, Revista de OcckJente, 194?- t. I, Adota, a
ntesiua üfitntafjio, Nk-olsi í lartdiíirin (Erftffs [Hilnk|. i-ündün/New York,
Üeôt[P Allcn & tJnwin./Tbc M&erruÉIan, k950. J *,). ,, ,
11 Fira a Iràihlçio do 1émw fíefi/\rlliçhkril c rfc seu CQnrcspòiiJtntc JirfflíHWHÍ,
acompanhamos a versão de WaJter Bicmet iLc eonétpt dc ni<t»dc chez //ri-
tfrfíer, LcuvainZPHri*, F_ NaUwílnertiíJ. Vrin, 1950). sambém seguida
por Richardsou na obra anieriorniciHe cítnda.
100

categorias aristotélicas — a substância —, não posso aplicar o


entendimento correspondente à existência (existentia) de uma coisa
empiricamente determinada, de que se dirá que é real na acepção
kantiana de algo efetivo ou atual (wirklich). Mas também muito
menos caberá enfeixá-lo na simples categoria de possibilidade. O
poder-ser (Seinkõnnen) é inseparável da compreensão que acom­
panha o Dasein e que constitui a sua existência. Nem possibilidade
formal, coma potência para determinar-se, nem possibilidade real,
ctunq cessação da contingência — n passagem ao efetivo na acep­
ção hegeliana —, esse poder-ser antecipa qualquer espécie dc
determinação causai, levando à frente de si a compreensão que o
manifesta. O poder-ser é possibilidade que se determina compreen­
sivamente, abrangendo a conduta do Dasein. Estamos, portanto,
diante de uma estrutura projetiva. Por outro lado, o compreender
difere da intentio, enquanto ato da mente ou do intelecto, e o
termo conduta, obviamente desvestido de conotação psicológico-
-empírica, ressalta, ao mesmo tempo, o caráter pré-teórico e ante-
cipatório dessa compreensão, de seu lançar-se para diante (ent-
werfen), que a palavra projeto (Pro-jecto) conota.
A esse elemento antecipatório excedente, que “constitui o ser-
-no-mundo, do ponto de vista da abertura de seu aí como aí de
um poder-ser (ais Da eines Seinkõnnens)” (SZ, p. 145), remonta
o porquê (worumwillen) da reícrcncialidade. No projeto se aprtia
o liberar-se dos nexos de significação, juntamente com o ser-à-mão
e o ser-à-vista.
Com tal amplitude, o projeto parece absorver o significado da
transcendência. O poder-ser compreensor, de que a estrutura é
ser-no-mundo, corresponde à claridade do Dasein, ao domínio “ilu­
minado” de sua existência. As condutas anteriores da visão circuns­
pectiva (Umsicht), da preocupação (Besorgen) e da solicitude
(Fürsorgen) são possibilidades em que ele se projeta. Aqui usada
no plural, a palavra possibilidade está mais próxima da acepção de
potência. Seria a potência já determinada pela existência, antes de
concretizar-se numa dada instância empírica. Quer isso dizer que
qualquer espécie de “comportamento” ou de “atividade” do homem
é um modo de sua existência, e como tal uma possibilidade do
Dasein. Cada modo de existência traz a compreensão de nós
mesmos e do mundo. Projetar-nos em nossas possibilidades também
significa o liberá-las, porém sempre a partir da possibilidade pre­
liminar constitutiva da situação fáctica desencoberta na disposição
— o que igualmente esclarece não só que a idéia de projeto contrasta
com o molde fichtiano da atividade (Tathandlung), como também
que o liberar que implica difere do espírito concebido por Hegel,
enquanto sujeito ou consciência de si elevada ao grau de saber
101

absoluto. A disposição impregna o compreender, que se realiza


afetivamente.
Sob tal perspectiva, o Dasein também constitui uma posslbili-
lançada (gcworfen Mòglichkehen), Mas do scrlançado nos
esquivamos por uma renegação evasiva (auswcidxcnd Abkchr),
nue nos dirige para o mundo c não pura o interior psíquico. O
mundo nos peneira: o sentimento üàfl 6 uma simples vibração, mas
um acorde- A tonalidade afetiva acorda-nos com o mundo, dis-
pondo-nos a que sejamos afetados pelas coisas. E í isso que dá
ao siiuar-se, em sua densidade fáctfca, o akancc preliminar da
abertura, tevcljmdq-nos por meio do ente que nos investe. A des­
coberta dos entes só é possível porque já nos encontramos abertos
ao ente em sua totalidade (im Ganzen).
Terceira dimensão da abertura, tão originária quanto a dispo­
sição e o compreender, o discurso (die Rede)12 é o fundamento
existentivo da linguagem (die Sprache), que tão eminente papel
desempenha no pensamento de Heidegger, a começar pelo nível
que ocupa em Ser e tempo, como um prolongamento da interpre­
tado (Auskgung).
A interpretação é o desenvolvimento do compreender apro-
priando-se das possibilidades em que se projeta o poder-str. No
modo da visão cirtunspectíva, o ser disponível especiíica-se como
isto ou como aquilo: o seu sentido
se
* explicita antes de qualquer
enunciado (Aussage) expresso, articulando significativamente, mas
em nível antepredicativo, o que se projetou na situação em que nos
encontramos. O desenvolvimento da compreensão parte de um
referencial que se tem (Vorhabe), e explicita-se em conceitos
prévios (Vorgriff). O referencial é o pressuposto, graças ao qual
se pode ver antecipadamente o ^compreendido numa certa perspec­
tiva (Vorsicht). “A interpretação não é jamais apreensão de algo
sem pressuposto” (SZ, p. 150). Ela se move em círculo dentro da
compreensão em que se apóia e nos limites da qual se desenvolve.
Esse movimento circular, um circulus viciosus do ponto de vista
lógico, é, ontologicamente, um fenômeno de índole geral: o círculo
(Zirkel) hermenêutico da constituição do Dasein, de que se vale
o próprio desenvolvimento da Analítica. “O ente a que como ser-
-no-mundo importa o próprio ser, tem uma estrutura ontológica
circular (ontologische Zirkelstruktur)” (SZ, p. 153). Nessa estru­
tura da compreensão do Dasein repousa a noção-limite de sentido

12 “It is with Rede that Heidegger translates the Greek lógos.” Richardson,
W. J., op. cit., p. 66. Discurso parece-nos trasladar a totalidade das co­
nexões referenciais que implica o fenômeno da significação (Bedeutung).
Referentemente ao todo relacionai em que se mantém o Dasein, o discurso
é o constituinte ontológico (cf. id., ibid., p, 66).
102

(Sinn). O enunciado preposicional retoma e-modifica o sentido


que a interpretação detém preliminarmente. Como forma derivada
da interpretação, a proposição rcarticul a verbal mente, mima estru­
tura lingüística determinada, a expericncitf já articulada, "' l1
É essa primeira articulação do compreender, desenvolvido na
interpretação e modificado na proposição, que constitui o dwctrrsfi,
em cujo âmbito as significações parciais se apresenlâm formando
um todo significativo (Bedeutungsganze), dc que a linguagem ê a
forma essencialmente “mundana”: as palavras crcscerii da signifi­
cação, com a qual não se confundem. Mas ò discurso também' é
linguagem mdstenliva. Sujeita à dispersão cm palavras substanles.
que podem adquirir o caráter de coisas, a linguagem está mais
próxima do rórtiu inlramundano do utensílio. Come usura nderã
abertura, o discurso comensura a linguagem às suas possibilidades,
que são o ouvir (Hõren) e o silenciar (Schweigen),
Assim muda de foco a questão da essência cia linguagem. Seja
a função que tivermos em conta simbólica, comunicativa ou'ex­
pressiva, nenhuma delas explica, por si mesma, a natureza da lin­
guagem, porque todas w determinam regressivamente pela dispo­
sição c pelo compreender, que o discurso articula, bslcndendo-sc
essa articulação ao ser-com-os-outros do Dasein, cin que residem
as suas possibilidades, o ouvir t o silentíttr.
É porque ouço que posso escutar o quç me dizem, mtsino
numa língua estrangeira que desconheço, nâü como mero ruído,
mas compreendendo-o como algo significativo: e é 1 porque me
movimento na órbita do recíproco relacionamento corri 'Os outros,
como ser-em-comum, que compreendo ouvindo. O scr-em-comum
precede e condiciona o fenômeno empírico da comunicação. A
linguagem falada insere-se nesse circuito, ao mesmo tempo expres­
sivo e comunicativo — origem das formas simbólicas e da expres­
sividade —, em que o ouvir se encadeia no dizer, com que. ti
permutável na medida do silenciar que potência o discurso: “So­
mente no discurso autêntico (echten Reden) í possível o genuíno
silêncio. Para poder silenciar, necessita o Daieih ler algo a dizer,
isto é, dispor de uma rica e autêntica abertura dc $i mesmo4
(SZ, p. 165).
। ■. । ।।,í r.bqiju; ■ r.

5. A queda na linguagem

Terceira dimensão da abertura, o díscurSo é 'constitutivo do


ser-no-mundo. Isso equivale a afirmar que o Dasein i falante,16

13 Ver, adiante, o excurso Reflexão sobre a linguagem. v;' •”> i !;


103

A linguagem na° é u,na capacidade específica que sc agrega à sua


existência. Ele a possui como modo de ser. "O Dasein tem
linguagem (hat Sprache)"
* diz Heidegger. "O homem se mostra
como o ente que fala. Isto não significa que lhe seja peculiar a
possibilidade dc fonação, mas que este ente .existe no modo da
descoberta do mundo e do próprio Dasein" (SZ,‘p. 165), Mas
pode-se também asseverar, inversamente, que a linguagem possui o
Dasein. E que da forma dc compreensão e dc interpretação se­
gundo a perspectiva do ser-em-eomum, estabilizada na mediania do
cotidiano, sob o domínio anônimo da gente, a comunicação trans­
mite o que se tornou constante c regular: o estado público, que
limita as possibilidades do discurso à reprodução do já compreen­
dido c interpretado, O discurso decai numa atividade repetitiva e
reflexa.14 Por cspclhamento da interpretação dominante dc todos,
o discurso (die Rede) se transforma, de redundância em redun­
dância, no falatório ou na parolagcm (Gerede), como linguagem
instrumentalizada. Tornando-se instrumento, a linguagem ganha a
segurança de um meio estabilizado de comunicação, em que as
significações, combinadas pelo valor comum das palavras que a
gente usa, convertem-se na "moeda corrente da fala”. Nesse estado
público da linguagem, que prescreve até a maneira verbal de sentir,
dc pensar c dc agir, a possibilidade originária de abertura do
discurso cede lugar ã possibilidade inversa de encobrimento do
ser-no-mundo.
A primazia do ver na vida cotidiana — a concupiscéncia da
vista, dc que tratou Santo Agostinho, cspccialmcEitc no Livro X
das Cortftaíw prolonga-se na curiosidade ávida (Neugler), que
salta de novidade cm novidade, c que, cm nada se demorando,
dissipa-se inal consegue alcançar o seu objeto. Não somente o
mundo, mas o ser-em-eomum e a relação do Dasein consigo mesmo
resultam ambíguos; cunfuitdem-se o real e o possível, o que é c
o que pode ser. A parolagcm toma conta da fala, a novidade
substitui-se ao acontecimento, c a solicitude torna-se uma cons­
tante pugna.
Fenômenos interligados, a (Gerada), a ftjriastdfide
ávida (Neugier) c a ambiguidade (Zweidéutigkeit) desembocam no
absorver-se do Dasein dentro do mundo, junto aos entes dc que sc
ocupa c com que. se preocupa, perdido de si mesmo c tornando-se
para si, sob o domínio público da gext/e que o envolve, a imagem
do outro —■ do $cr-cm-comuni no qual sc espelha. Esse fenômeno,
como modo de ser do cotidiano, equivalente a um estado — a

14 Heidegger falará do estado de objetificação (Vergegenstandlichung) da


linguagem, a serviço dos meios de troca. Cf. UH, p. 36.
104

imediata forma estabilizada da existência diária em que o Dasein


permanece regularmente, ligado pela preocupação ao trato com os
utensílios, que sela a sua familiaridade com o mundo —, é a
queda (Verfallenheit), explicitando a inautenticidade: o não-ser-
-si-mesmo ou o si-mesmo impróprio já mencionado.
“O termo (queda), que não expressa nenhuma valoração
negativa, pretende significar que o Dasein está imediata e freqiien-
temente (zunãchst und zumeist) junto ao mundo com que se
preocupa” (SZ, p. 175). Corroborando a conduta de envolvência,
estruturada sobre a preocupação e a solicitude, que a constituem,
e incluindo os fenômenos anteriores da parolagem, da curiosidade
e da ambigüidade, a queda significa o movimento do Dasein em
seu fáctico ser-no-mundo. Trata-se de uma possibilidade essencial
que os mitos de origem captaram pré-ontologicamente — seja
como descensão da alma ou do espírito, no neoplatonismo,
seja como rompimento transgressivo de uma condição originária,
na forma de um movimento ou de um drama.
As parolagens não são exteriores ou circunstanciais ao ser-
-em-comum, mas formam o domínio público da gente, a que nos
entregamos como ao círculo mágico das possibilidades que se
oferecem a todos e que a todos prometem a plenitude da realização
pessoal definitiva. O existentivo segue aqui de muito perto o exis­
tencial. Da queda emerge a categoria religiosa de tentação, que ex­
prime exemplarmente o movimento incessante da falência humana,
que vai da sedução do mundo à busca de quietude, combinando as
múltiplas formas da inquietação ou da distração pascaliana: “On
croit chercher vraiment le repos; et l’on ne cherche affectivement
que l’agitation”1S. Abstraído o patético da condição humana
infeliz da visão jansenista, esse pensamento de Pascal traduz a
quietude tentadora (versucherische Beruhigung) do ser-no-mundo,
vórtice da queda enredando o Dasein em suas possibilidades, quan­
to mais ostenta, sob o rótulo do modo de ser público do cotidiano,
a posse de si mesmo. Da “desenfreada azáfama” (hemmungs-
losigkeit des Betriebs) em que se distrai à cessação aparente da
inquietude na posse de um modo de ser considerado satisfatório,
correto e definitivo, há o lance de um só movimento alienante.
“O ser-no-mundo cadente é, ao mesmo tempo que tentador e
apaziguador, alienante (entfremdend)” (SZ, p. 178).16

16 “On cherche le repos en combattant quelques obstacles; et si .on les a


surmontés, le repos devient insupportable.” Pascal, B. Pensées sur l’homme.
In: —. Pensées. Paris, Flammarion, 1670. p. 218-9.
16 Veja-se, ao final, no Epílogo, o nexo que aqui há com o conceito marxista
de alienação.
105

Alienando-se no mundo que o absorve, o Dasein cai de si


mesmo continuamente e continuamciite desmorona. Esse desmo-
Tonamento (Absturz), que é possibilidade, como póla da existência
inaulêntica, engloba a figura do fracasso existencial, com a qual
não se confunde,1T do mesmo modo que a exigência imprópria,
jnauiênlica, confirma o ser lançado em sua facticidade'(Faktiziiat).
A alienação, cm que o Dasein sc perde dc si m&smo, estranhando
o seu poder-ser próprio, oâo e um fato consumado, nem o efeito
de uma eausa incontrolávcl e exterior. Será preciso desvincular a
^rrCífíT da idéia platônica de descensão, como estada completo de
desapossamento em relação a uma origem superior de que se
decaiu. Sem tampouco equivaler a uma situação passageira, “que
sepoderia corrigir numa fase cuhuralnicidc avançada11 (SZ, p. 176),
a queda, estrutura sobre a qual a concepção religiosa sc apóia para
conferir ao homem uma natureza originária íntegra ou corrompida,
í H'o conceito ontológico dc um movimento11 (SZ, p. ISO), que
configura a facticídade do Dasein e tambím confirma a sua exis-
lenciaiidadp (Existenzialitãi). A queda nada mais significa do que
o poder-ser no modo da impropriedade (im Modus der Uneigcn-
tlichkcit). 'O Dasein somente pode cair porque o ser-nn-mundo
a cie concerne como compreensão e como disposição” (SZ, p. 178),
Surgindo assim do mesmo lance que encobre ao Dasein o seu
ser-no-mundo íáctico, a queda não *4 o finai dc um ciclo, mas
uma possibilidade mesma do Dasein a que a existência, cm seu
poder-ser, dá guarida.
Tanto requali ficando a exisiendalldade da compreensão quanto
a facticídade da disposição, a queda, que é por esses caracteres
«qualificada, c que completa a explicitação do modo dc ser coti­
diano, mas não a existência, permite descrever — c dc certa forma
rerraduzir —- o termo Dasein numa só expressão complexa, na
qual se unem os três existentivos, como "ser-ito-fnuttdo aberto-
cadente-projetante-lançado'< (verfallend-crschlosMnc-gcworfen-enl-
werfende In-der-Wçlt-scin). Nessa expressão contrastante, que
sintetiza o modo dc ser do Dasein na mediania indiícrenciada c
banal do cotidiano, cada um dos três exislcnlivos — a exístenda-
<idade, a facticídade c a queda — 6 uma estrutura aclarando o
ser-no-mundo dc que se desdobra, A todos está implícito, em
conjunto, o fenômeno do cuidado, que os elucida e os constitui
em sua unidade.*

17 Referimo-nos à situação-limite do fracasso na Filosofia existencial de


Karl Jaspers.
vn
ANGÚSTIA E LIBERDADE

La angustia n«t mtifttra que la existência tití vwffl,


que la viJa es muerte, que et cicio es un dcsieriot í;i <prte-
tvú dc ta religión.
Ocrzvro Paz, Loj bifas dei Nmó,
rEspair,
l'aincu, plèirre. et i‘Ang<dsse atroce, dcrpcnique,
ÍHr !HC»t e/Atí íwfjní pfôinrc- jwj drtljwrtW nmr.
HaUDEUIRE. Spteen,
,’fini íitu uh huiil o ú riín o ,d'Ji)on) obiiiJiJi <»n-'iv
mo .kí-jJiú teixo u mju n .'HMjCf <jL omxqni obtt.bclpnfâMMI flffli'

1. Dos r sentimentos
■■..:■ I. • I> 'j;;<í>y>4ií.', ■■■■.......... i . . i. ■. I!1F. H p .> - Jjljfll

A interpretação fcnonicnòlógica deve dar ao próprio Dasein


a possibilidade dó abrir originário c deixar, da mesma maneira,
que se interprete, por assim dizer, a si mesmo. Ela intervém hèsse
abrir só para elevar existenlivamento a conceito o conteúdo feno-
meitoiógico do aberto (SZ, p. HO),
tft!r-n>lnH.-Z- -•>!«•■ -I'1-P I , I i J. i, .Ht.-.L ■' AlV.vj >VV 'Vii
É o sentimento de tmgttorâ que efelua esse abrir originário, ex­
pondo, na unidade que liga entre si os cxistcnlivos fundamentais
— a eAÊr/crt<7cr/id<ií/e, a facíicidade e a queda —, o fenômeno
do currfffdo, cm que o ser do Dasein sc desencobre. Dai a excep­
cional posição da angústia na Ontologia fenontenológicrt, cm com­
paração com outros sentimentos, comct o tédio, a alegria e a espe­
rança, abordados por llcideggcr em mais dc uma passagem de sua
obra.
O que chiummos dc ,L$entimcntos" não é nem um epífenô-
meno fugidio dc nom conduta pensante c voluntária, nem algo
j’> jhprovocado por uma simples impulsão ou um estado dc fato, com
o qual nos acomodamos desta ou daquela maneira <B7M, p. 31).
1W

De modo geral, como disposição afetiva, eles nos situam no mundo,


reveladores que silo do ente em sua totalidade, sem que isso Im­
plique afirmar que os sentimentos nos oferecem uma via especial
intuitiva para a apreensão ou o conhecimento do todo.
$c ii certo — esclarece Heidegger — que jamais apreendemos
abSplutomente em' sj c cnlc em sua totalidade, não 6 menos certo
qúc nos encontramos. situUclos no melo desse ente que nos é des­
velado cm seu conjunto, dc tuna ou dc outra maneira (FP7M,
p- 30.)

O conhecimento teórico do todo marca uma impossibilidade de


princípio, enquanto o sentirmo-nos situados no meio do ente em
sua totalidade é um "acontecimento contínuo” dc nossa íacticidadc,
acusado pela disposição dc Animo, que encerra a dimensão preli­
minar da abertura. Cada sentimento desvelaria, ao mesmo tempo
que a facticidade do Dasein, o todo relaiivaitieiitc ao qual nos
projetamos. Assim o r£/ío e a dfcgrúi nãü sào apenas estados inte­
riores a refletir uma afecção da representação ou da vontade por
um certo estado de coisas, conforme entendeu a tradição clássica,
apoiada cm Descartes c cm Spinoza, Ambos os sentimentos mani­
festariam, de modo peculiar, o scr-no-mundo. Ao nos entediarmew
ou alegrarmos, estamos abertos ao inundo, e já dispostos, de deter­
minada maneira, para com o ente‘cni seu todo. Numa passagem
dc O que é a Metafísica? em que sc refere à alegria, Heidegger
diz que o tédio funde todas as coisas numa “espantosa indiferen-
ciação" (mcrkwürdig Gleichgiiltigheit).
Foi essa "espantosa indiferenciaçAo”, nivelando as coisas c
destítuindo-as de significação, que o verso baudetairiano captou:
L/ettnui, fruit de la morne incurípsitél-

A metáfora do sombrio, do nevoento, do chuvoso, acompanha a


expressão do tedio cm sua “pálida indiferença" afetiva, que a nada
sc apega c a tudo se abandona, O mundo se apresenta global-
menie como realidade dissipada, liquefeita e cnsombreccdora, que
sc derrama em nós:
11 naus verse un jour noir plus triste que ler huíís *

Na metáfora dc Heidegger, o iedium virar? ó um "nevoeiro silen­


cioso". Inversamente, a alegria, proporcionada pela presença de

1 RAtiMt-AiRE, C. Qenvreu les flctir» <iu mal. Tcxte établi et nnnoiê par
Y.-G. dc t-c Danlec. P-iris, Gallimnrd, 1954. Splten. l.XXVI. Hibliotèquc
dc la Fleiade.)
aId.. ibid., Spleen, I.XXV1JI.
108

uma pessoa amada, dispensa a tudo uma gritante diferenciação,


cada coisa se tornando tão importante quanto qualquer outra, como
um bem disponível que se extrai furtivamente de um mundo pleno
de sentido. Por um momento apenas, a alegria, que Heidegger
não analisa, suspende o jugo do ser-em-comum à presença de um
outro Dasein. Como um existentivo, a alegria é o estar à vontade
no meio do ente, dissipado o que há nele de ameaçador. Tão raro
quanto a angústia, o verdadeiro sentimento de alegria interrompe a
tônica do medo ou do temor que domina o cotidiano.
Capitulado por Descartes entre as paixões secundárias, como
representação inibidora do desejo, o temor sobrevêm tanto da
presença de um outro Dasein quanto da Natureza e dos utensílios.
O que se teme é sempre algo intramundano, um perigo a que
se está exposto, surdindo de determinada paragem, em sítios tor­
nados infamiliares, em relação aos quais nunca se está à vontade.
Só um ente em que o ser está em jogo é capaz de atemorizar-se.
A facticidade o expõe ao desabrigo de seu ser-no-mundo, de seu aí,
e nisso reside o perigo que o torna essencialmente vulnerável. O
porquê do temor — o perigo temível — é o próprio Dasein, entregue
a si mesmo. Não somos temerosos por nos sentirmos ameaçados,
mas nos sentimos ameaçados por-sermos temerosos. Abrindo uma
possibilidade do ser humano, o temor revela a sua essencial vul­
nerabilidade, de que a angústia é o fenômeno fundamental.

2. Conceito de angústia

Fenomenicamente, a angústia seria uma outra denominação do


temor; pelo menos, a vida cotidiana não diferencia esses dois sen­
timentos, cuja distinção parece constituir mera questão de palavras.
Além disso, ambos possuem um caráter reativo comum pela des­
carga emocional que os aproxima, e que falta na dor e na tristeza,
conforme Freud mostrou em Inibição, sintoma e angústia, escrito
em 1925.
Foi nesse mesmo trabalho que Freud, retificando a sua primi­
tiva idéia de que a angústia era uma derivação direta da libido,
e como tal o seu refluxo no Eu, conseqüente ao simples processo
de repressão, passou a entendê-la em função do sistema defensivo
do ego, enquanto reação antecipadora de um trauma de impotência,
que o reproduz de forma mitigada. Nessas condições, o que é
smtàçador se configura por uma situação futura, de que se espera
ü Híuvivamento do trauma, situação referida à impotência, reco­
nhecida mas não presente ou atual, e que é o perigo de que o
109

Eu se defende arvorando o sinal de socorro da angústia, propício


a neutralizá-lo. O resultado psicanalítico desautorizava assim a
indistinção empírica da angústia e do medo, que a experiência
cotidiana consagra, confundindo ou empregando um pelo outro
termos designativos de fenômenos diferentes-, embora ligados por
estreito parentesco. A angústia é inseparável da expectativa diante
de algo que não é determinado: a situação• traumática subjacente.
O perigo contra o qual' a vítima de uma fobia reage angustiando-se
não é real ou iminente. Pode-se então afirmar da angústia, em
abono do seu caráter reativo, como descarga impulsiva condicio­
nada à economia do aparelho psíquico, que a imprecisão e a
carência do objeto lhe são inerentes. O uso comum da linguagem
o reconhece, observa Freud, quando emprega a palavra medo, em
lugar de angústia, no caso de reação a um objeto determinado. 3
Considerada sob o ângulo formal dessa diferença, a caracte­
rização heideggeriana daquilo que é temido na angústia — a ameaça
ou o perigo ante os quais nos angustiamos — coincide notavelmente
com a de Freud. Ao contrário do medo, que se manifesta sempre
por via de um ente determinado, intramundano, de que a ameaça
provém, o perigo, que se declara na angústia, e que não nos expõe
a prejuízo real ou a efeito nocivo imediato, carece de objeto. O
que nos ameaça não “está em parte alguma. A angústia não sabe
o que é aquilo ante que se angustia” (SZ, p. 186). Mas a essa
carência de objeto Heidegger empresta o sentido positivo de uma
relação com algo que não é nada, mediante a qual Kierkegaard
expressou, dialeticamente, a ambigiiidade psicológica que distingue
a angústia do medo. O § 40 de Ser e tempo incorporou essa
distinção, retomando um fenômeno aprofundado pelo teólogo dina­
marquês em seu Conceito de angústia, “dentro do conjunto teo­
lógico de uma exposição ‘psicológica’ do problema do pecado ori­
ginal” (SZ, p. 190).
Não estando a ameaça em parte alguma, o não-saber da an­
gústia é relação com algo que não é intramundano. O que nela
é temido se desloca para o mundo. A nenhum objeto podemos
apegar-nos, porque o intramundano torna-se insignificante, e o
perigo, que nos espreita em toda parte, sem que de nós se apro­
xime numa paragem determinada, é o mundo como mundo, origi­
nária e diretamente (unsprünglich und direkt) aberto para o
Dasein, que, reduzido a si mesmo, à singularidade de sua existência
fáctica e de seu ser possível (Mõglichsein), resvala da envolvência

3 Freud, S. Obras completas-, inibición, sintoma e angustia. Traducción di­


recta dei alemán por Luis Lopez-Bailesteros y de Torres. Madrid, Biblioteca
Nueva, 1968. v. 2, p. 68.
110

familiar dos entes para a incômoda e desabrigada condição dc


ser-no-mundo.
Enquanto o tédio apenas ensombrece a "realidade", c o w<fo
nos absorve nos entes que nos ameaçam, e entre os qusiis pro­
curamos abrigo, da “fria noite da angústia”, que pode baixar a
qualquer momento sobre o cotidiano, interrompendo a preocupação
t a solicitude, sai a extraordinária lucidez que revela, no Dasein,
O ser para o poder-ser mais próprio, isto ó, o scr livre para a
liberdade de tócolhtr-se e apreender-se a si mesmo. A angústia
trai ó Ôa-Kin diante do sir livre para... (propenso ih...) a
propriedade do seu ser como possibilidade que dc já é desde
sempre, Este scr é ac mesmo tempo iqtielc a que está o Dasein
entregue como scj-fio-mundo (£t, p, IAS).

O temível é então o ser-no-mundo aberto, c a que nos abrimos


cm nosso próprio ser; 0 incômodo du desabrigo, que a angústia
revela, 4 a possibilidade ticrica a que ela nos cntrepa como sofur
ípse. Nesse sentido, a originariedade dc tal sentimento está, frisa-o
Heidegger, na identidade entre o seu ímre-quj e o seu ou
para expressá-lo cm termos tradicionais., entre a sua motivação c a
sua causa. É o Dasein que nos angustia e nos angustiamos ante
o Da$cin, porque a angústia, que nó-lo revela, abre-nos a ele já
desabrigados da proteção do cotidiano, como str-nomundo, de
que o próprio angustiar-se é uma ''forma fündanwnlal (cinc Grund-
art des In-dcr-Wch-scm)H, enquanto no incômodo de sua ameaça
sem objeto, na indetcrminabilidade de seu perigo difuso, llbera-se
o que mais propriamente somos. A partir da existência fáctica,
e na totalidade do ente em que nos situamos, revela-se, com o
ser-no-mundo que sc desencobre, o poder-ser livre, a possibilidade
■da escolha, Mio havería, portanto, diferença, nessa disposição
afetiva, entre o abrir-se (Erschl iesxcn) c o aberto (ErscbÈosscné)
da tonalidade que ela franqueia, ou seja, a fáctica possibilidade
como' cssfincia do perigo: o desapossaniento da familiaridade, o
ser desabrigado no mundo c o não estar junto a cie (scin bei).
Dcsprenden do-nos dos utensílios, abolindo a conduta de trato
que os torna disponíveis, a angústia situa-nos no mundá. que se
torna infantil ia r e inóspito (unheimllch). Angúsliar-sc t não mais
nos sentirmos cm casa (Un-zuhâus), quando, diante dc nós mesmos,
eis que a angústia, que "traz o Dasein justíimentt num sentido
extremo diante do mundo como mundo, c com isso colnta-o dianíe
dc si mesmo (vor sich selbst) como ser-no-mundo” (SZ, p. IBS),
alcança a cstnituràlida subjetividade em sua raiz — o fundo c o
fundamento do sum do Coyíto. < y
111

Como fenômeno relevante que a .nigústln revela no plano


existencial e confirma no plano existentivó, ontológico, esse fundo
ou fundamento a ser extraído da interpretação pré-ontológica do
Dasein é, ao mesmo tempo, aquilo que a banal mediania do coti­
diano encobre, e contra o que nos protege a cnvolvéncta dos entes
pa queda. Assim também se confirma que á queda, anterioimente
descrita cnmo mcuJo déier ílq .cotidiano,,c, a fertiori, do si-mesmo
impróprio e jn autêntico, perpetra a fuga ao poder-ser autentico —
fuga ctMJtíhua na direção dos entes inlramundanos, "junto aos quais
pode deter-se a preocupação perdendo-se na gente, com aquietada
familiaridade (bcruhigte Vertrautlicit)1’ ($Z, p. 1&9), que intercepta
o desabrigo da angústia. Fugimos conlinuamenie tia angústia, c a
angústia de que fugimos, condição de possibilidade do temor, en­
quanto essencial vulnerabilidade do Dasein, fundamenta a queda.
O fundo ameaçador da angústia — a essência do perigo —
não é, portanto, uma possibilidade qualquer, mas o poder-ser si-
-mesmo da existência. A essa mesma possibilidade extrema remoma
a Triebangft (angústia impulsiva), como reação sintomática ç trau­
mática, que constitui o mecanismo defensivo do ego. Teria
Heidegger pensado em Fteud, ao escrever, sob a inspiração de
Kierkcgaard, que “a provocação fisiológica da angústia só é pos­
sível porque o Dasein se angustia no fundo de seu ser?” (SZ, p. 190).

3. Poder-ser e cuidado , f ,

, - r Para Kjerkegaard, a relação com algo que não é nada -r- o


: perigo ameaçador da angústia — surge do espírito coma síntese dó
psíquico c do corpóreo, do finito c do infinito, do temporal e do
eterno. Terceiro elemento que sintetiza os dois outros na relação
consigo mesmo, o espírito permanece como relação c, sem jamais
passar ao estágio positivo dc realidade substancial, ésíntesc incom­
pleta, A inquieta possibilidade de scr identifica a natureza espiri­
tual i do homem', como । criatura; livre, quesó em i Deus encontra
acabamento e perfeição. O que verdadeiramente angustia é a pos­
sibilidade de ser que constitui a liberdade humana. “O espírito
tem angústia de; si mesmo." .-mui-J m Jjrs-omasiLfi- i.f
Em Heidegger, a angústia alcança esse mesmo fundo da exis­
tência como poder-ser, como possibilidade permanente da liberdadc-

4 Kiekkegaard, S. El concepto de la Angustia; una sencilla investigación


psicológica orientada hacia el problema dogmático dei pecado original. Buenos
Aires, Espasa-Calpei’Argentina, 1940. p. 47,.; ,;A . <£.’■
112

Sobre esse fundo abismai é que se alça, na justificação psicológico-


-dialética kierkegaardiana do mito adâmico da Queda, à vista da­
quele que se angustia:
Aquele Cujòs olhos São levados a olhar cm uma profundidade que
abre seus precipícios scnlc vertigem. Mas onde eslá a causa
disso? Tanto nos seus olhos quinto no abismo, pois que lhe bas.
taria não fixar a vista nesse abismo. Assim a angústia c a verti­
gem da liberdade, Ela surge quando, ao querer o erpfrifo pôr
a síntese, a liberdade fixa a vista no abismo dc sua própria pos­
sibilidade, e lança mão da finitude para suslentár-seD.

Para Kierkegaard, a vertigem da liberdade prefigura a Queda —


salto qualitativo do estado de inocência ao estado de pecado — e
resolve-se, na dialética do espírito que o mito adâmico representa,
pelo sako qualitativo da fé, capaz de arrancar o homem, força,
do "olhar mortal da angústia”. Sozinho, apoiado cm sua finitude,
o espirito não pode efetuar a síntese, que se consumará cm Deus.
O homem não poderá ser si-mesmo, sem que “o eu mergulhe,
através de sua própria transparência, até o poder que o criou" 5 6.
A angústia hcidcggpriana é ver ligem da liberdade, porfim mer­
gulhando na finitude do Dasein. Seu abrir originário, que dá a
essa disposição um alcance fcnonicnológico privilegiado, incide no
poder-ser livre, desencobrindo o fulcro da polaridade da existência,
a pari ir da qual ela pode tanto apropriar-sc dc si mesma quanto
pcrdcr-sc na mediania do cotidiano. Em resumo, esse desencobri-
mento mostra que o Dasein, conduzindo-se rel&livamenic ao poder-
-ser que ele mesmo é, existe para além de si (über sich hinaus),
sem encerrar-se num sujeito de inerência. Ele se situa no mundo
junto aos entes na direção dos quais foge, e sempre em relação
ao seu poder-ser, existindo na compreensão antecipada de si mesmo
e do mundo que constitui o seu projeto. Já sendo lançado no
mundo (schon-sein-in-liner-Welt), ele é aí cadente, em seu estar
junto aos entes (Sein-bei), mas como projeto, adiante de si mesmo
(Sich-vorweg-sein), enquanto poder-ser.
Antes divisada na unidade da forma do cotidiano, a partir da
Queda, a identidade do Dasein, entrevista agora pela dimensão da
existencialidade, não é senão a de um ser-já-no-mundo-adiante-de-
-si-mesmo-estando-junto-a (Sich-vorweg-schon-sein-in- (der-Welt) -
ais Sein-bei). Nessa nova expressão complexa, em que se ligam,
numa só unidade de sentido, a facticidade, a existencialidade e a
queda, desencobre-se o fenômeno do cuidado, como o ser do Dasein.

5 Id„ ibid., p. 65.


6 Id., O desespero humano. Porto, Tavares Martins, 1947. p. 35,
113

Pela primeira vez cm que expressameme determina o ser elo Dasein,


3 Analítica aponta uma estrutura, um todo estrutural, rctraduzindo,
per sua vez, o sentido das estruturas componentes que as torna
compreensíveis, e em que das desembocam uu sc desencobrem,
Como todo estrutural, o cuidado é a unidade de'sentido em que sc
libera a autotompreensío pré-rmtológica nativa, do homem por si
mesmo. Mas o todo cstruiural que o bonstilui, articulando irês
componentes, c lambem o fenômeno cm que sc desvela a coni'
pnscnsão do ser.
A angústia alcança o “ser adiante de siri, que envolve a projeção
do comprender, modo fundamental da abertura a que o Dasein
acede c para a qual ele é livre. E, como instância dc confirmação
do fundamento originário do Dasein — fundamento de sua existên­
cia, com que sc relaciona e com que se avém —, a angústia í
ainda, no desenvolvimento da Analítica, pelo fundo vertiginoso da
liberdade sobre que abre, o elo entre a questão do ser c a liberdade,
em que Insistem os principais escritos posteriores a Ser e rem/w,
como O que i a Metafísica?, Da essência da fundamento c Afoní
e o problema da Metafísica. O que se entende por liberdade, no
contexto formado por esses escritos?

4. Liberdade e Nada

A liberdade é o poder-ser livre. Sc a essência do homem


consiste na existência, a sua conduta, seja autêntica ou inautentica,
faça-se ou não dc acordo com 0 que tem de mais próprio, implica
sempre uma escolha d* si. O poder-ser não é o poder excedcntário
da vontade, como livre arbítrio ou causa ™, espontânea c incon-
dicionada, interrompendo a série da causalidade natural, mas o
poder-ser que somos, a determinação de um ente que se conduz
cm relação a si mesmo e em cuja conduta o ser está sempre em jogo.
Conduzir-nos implica termos já decidido o que somos, e termos
decidido significa aqui hnvermo-nos escolhido, seja a escolha uma
perda, uma demissão no modo público do cotidiano ou o recupe-
rador recolhimento a si mesmo.
Nesse sentido, a liberdade, para invocarmos a terminologia
aristotélica, é a potência que se atualiza por si, a cada passo,
sem depender lógico-ontologicamente da precedência dc um ato que
lhe empreste a identidade de substância (ousía) e o fim (tetos) de
uma perfeição transcendente. A disposição angustiante revela essa
liberdade determinante e radical que Kierkegaard associou, em seu
Conceito de angústia, à “possibilidade antes da possibilidade”, isto
114

é, à possibilidade mesma da escolha antes que seja real, antes de


transformar-se num ato determinado e de ingressar no ciclo da
causalidade natural. Heidegger transfere o ponto vertiginoso em
que possibilidade e liberdade se identificam, e que assinalava, para
Kierkegaard, o momento de transição do estado de inocência para
o de pecado, à constituição ontológica do homem, que “é angústia
no fundo de seu ser”. Esse fundo, também fundamento, que o
fenômeno do cuidado mostra, é a transcendência do Dasein, que
investe o ente e é pelo ente investido. Como estrutura da sub­
jetividade, ultrapassando sujeito e objeto, a transcendência do ser-
-no-mundo importa, conforme lembra Heidegger num escrito tardio,
numa relação que parte do ente e sobe até o ser (WM, p. 225).
Ente que compreende o ser, o Dasein é transcendência na medida
em que se encontra “no meio do ente” (inmitten von Seienden),
ultrapassando, na direção do ser, aquilo mesmo que o investe.
Desse ultrapassar-se, que reclama a liberdade, o poder-ser livre,
inseparável da escolha, como raiz de toda resolução e de todo
ato de vontade, a angústia detém a chave daquilo mesmo que nela
se abre: o Nada.
Em Ser e tempo destaca-se, numa espécie de dialética velada,
que, na angústia, o intramundano cede lugar ao mundo enquanto
tal, sobre que refoge o objeto ameaçador, em nenhuma parte loca-
lizável e em nada se concretizando. O recuo dos entes, esbatidos
em sua significação, diante da emergência do mundo, denuncia, em
Ser e tempo, o afloramento do Nada, tematizado, em O que é a
Metafísica?, na experiência fundamental da angústia.
A angústia revela o Nada (Nichts). Nela “pairamos suspen­
sos”. Mais claramente, a angústia deixa-nos suspensos porque ela
faz deslizar o ente em sua totalidade. E isso ocorre porque nós
mesmos — esses homens que existem — refugiamo-nos no meio
do ente (inmitten des Seienden). Eis a razão pela qual, no fundo,
não é nem “a mim” nem “a ti” que a angústia ameaça, mas
à gente. Somente o puro Dasein, sem ter em que agarrar-se,
está aí no abalo dessa suspensão. A angústia nos corta a palavra.
Pela razão de que o ente desliza em seu todo (im Ganzen), e
assim o Nada nos acua, todo dizer “é” silêncio em face dela.
Se é verdade que sob o incômodo do desabrigo da angústia
procuramos, muitas vezes, quebrar o vazio do silêncio com pala­
vras quaisquer, ainda isto constitui um testemunho da presença
do Nada (die Gegenwart des Nichts) (WIM, p. 32-3).

A angústia revela o Nada, ao mesmo tempo que o recuo do


ente em sua totalidade. Não se dá que o ente seja suprimido e o
Nada apreendido, separadamente, por um ato de negação das coisas
que permitisse alcançá-lo. Da plena positividade do ente só se
115

nude atingir a negação dc algo positivo, c assim, conforme concl iía


pergson, o Nada seria a idéia absurda, inconcebível, da supres ;’u>
da çxistcncia. Podemos rcpresentar-fios a supressão de uma p rtc
dc um todo, “mas a idéia da abolição de tudo apresentaria 1a rez
os iíiesbUK caracteres que a idéia dc um círculo quadrado; tería nos
uma Simples pala via c não mai$ uma idéia’*’.
Mas do Nada revelado pela angústia-, prescindindo da on em
das represem ações e aniccídendo o ato dc negação, é concomita-ite
o recuo do ente em sua totalidade, O Nada sobrevim como tm
jjtfijílw/fflcrrfo ao próprio Dasein, na rejeição do ente, que, mm
suprimido, nem negado, assedia o Dasein refugindo. Esse refu^ r
alcança O ente cm sua totalidade — também revetandu-o como ent ■
__ na mesma nejeiçío com que o atinge. Sobrevindo na angústia
e sem dar-se a conhecer contemplativamente a um Dasein absorto
num ato de negação, o Nada acontece em tal refugir, que Heidegger
chama de nadificação (Nichtung):
Na clara noite da angústia surge a originária abertura do ente
como tal: o fato de que há ente ■— e não Nada. Esse “e não
Nada” (und nicht Nichts), que acrescentamos, não é uma expli­
cação complementar, mas a condição prévia que torna possível
a abertura do ente em geral. A essência desse Nada originaria-
mente nadificante (nichtende Nichts) consiste em trazer, antes
de tudo, o Da-sein diante do ente como tal (WIM, p. 34-5).

Desse modo, o cuidado, como raiz do poder-ser, para onde


retrocede a noção heideggeriana de liberdade, vem da nadificação
revelada pela angústia. Sem a abertura originária do Nada, não
haveria nem si-mesmo nem liberdade. Num comentário ao seu
próprio ensaio, O que é a Metafísica?, Heidegger escrevería que,
diíctjndo de uma indagação vaga. o Nada visa ao Outro, distinto
do ente, alcançando a abertura pela qual algo assim como ser possa
ocorrer.
Esse Nada que não é o ente, e que, entretanto, lhe dá lugar, não
é um nonada (Nichtiges). É uma forma de presença. Um se
inclina para o outro num parentesco cuja essência plena apenas
suspeitamos (WM, p. 247).

A questão do ser não é independente da questão do Nada.


Entretanto a Metafísica tentou erradicar essa última, com a tese
equívoca de que ex nihilo nihil fit. Seria preciso então que a Ciência
da Lógica, de Hegel,' viesse a ensinar-nos que “o puro ser e o

7 Bergson, H. L’évolution créatrice. Paris, Félix Alcan, 1930. p. 304.


puro Nada” são o mesmo? 8 Atenhamo-nos, por ora, à finitude do
Dasein como a extrema revelação da angústia.
A angústia acusa a nadificação pela qual o Dasein se encontra
lançado em meio ao ente que transcende. Movimento do ente ao
ser aberto pelo Nada, a transcendência corresponde à estrutura da
subjetividade, aderida à compreensão prévia do ser. Tanto quanto
o acesso ao Nada pela angústia que a complementa, essa com­
preensão marca a nossa finitude. Esquivando-nos da disposição
angustiante, que permanece em dormência, o envolvimento do coti­
diano em que caímos, ainda reitera essa finitude, que se mostra
no cuidado, como fenômeno que articula, numa só unidade, a
existencialidade, a facticidade e a queda.
Em Kant e o problema da Metafísica, que assinala o limite
da Analítica, porquanto é nessa obra que a finitude do Dasein no
homem reverte à questão do ser em geral sob o aspecto de funda­
mentação da Metafísica, a proeminência revelatória da angústia se
confirma. Considerando-a, mais uma vez, “a disposição funda­
mental” que nos coloca em face do Nada, Heidegger diz aí que
o ser do ente só é inteligível — e nisso reside a mais profunda
finitude da transcendência — se o Dasein no fundo de sua essên­
cia mantém-se (hineinhalt) no Nada. Esse manter-se no Nada
não é uma tentativa arbitrária e eventual de “pensar” o Nada,
mas um acontecer (ein Geschehen), que serve de base a todo
encontrar-se no meio do ente, e que deve ser esclarecido em sua
possibilidade interna numa Analítica ontológico-fundamental do
Dasein. Entendida desse modo, isto é, ontológico-fundamentalmen-
te, a “angústia” retira do “cuidado” o caráter inofensivo de uma
estrutura categorial. Confere-lhe a necessária agudeza própria a um
existentivo fundamental e determina assim a finitude ho Dasein
(Endlichkeit im Dasein) não como a propriedade de um ser-à-
-vista, mas como um tremor contínuo, embora o mais das vezes
secreto, de todo existente (KPM, p. 214-5).

O cuidado é, pois, transcendental, e nesse sentido “a priori


a qualquer posição e conduta fáctica” (SZ, p. 193). Nele fun­
dam-se a vontade, o desejo, a inclinação e o impulso. No entanto,
abrangendo componentes que se interligam — a existencialidade, a
íacticidadc e a queda —, a sua unidade dem anda um fenômeno
ainda mais originário, até onde, no encaminhamento retrocessivo
que Heidegger lhe imprime, deverá chegar a Fenomenologia herme­
nêutica.

8 “Das reine Sein und das reine Nichts ist also dasselbe” (IVIM, p. 40)-
Vni

DO CUIDADO À TEMPORALIDADE

Fraqueza da humana sôrte:


que quanto da vida passa
está recitando a morte.
Camões, Babel e Sião.
Un peu profond ruisseau calomnié la mort.
Mallarmé, Tombeau.

1. O ser para a morte

fora que n interpretação do ser do Dasein chegue a ttt ori­


ginária, como fundamento dá elaboração da pergunta ontológieu
fundamental, deverá aclarar, antes, existentivamente, o ser do
Dasein em sua possível propriedade (Eigendichkeit) c totalidade
(Ganzheit) {SZ, p. 233).

Mas como alcançar esses limites conjugados, se na instância do


cuidado, cmdc a Analítica nos deixou, só sc fez confirmar que, cm
qualquer momento de seu curso dc vida, entre nascimento e morte,
o Dasein í sempre poder-ser c não algo determinado? “Enquanto
o Dasein é, falta-lhe aquilo que ainda pode ser e será" (SZ, p. 233),
Cessando somente quando, ao morrer, chega ao fim, c deixa dc
ser o que é, a mesma incomplciude, que lhe vem do cuidado,
contradiz a idéia da fatalidade desse ente, a menos que taí idéia
se revele inadequada à luz do conceito da morte.
A caracterização do /rrn e da totalidade preenche a segunda
etapa da Analítica, que lenta, indagando acerca da significação da
múrtc, conquistar, depois da angústia, sobre os dois planos, o
ejcisttnclal e o cjtislentivo cm que se desenrola, uma nova escala
ou situação hermenêutica. E é o cuidado, como manifestação da
118

finitude, que permite a Heidegger identificar a morte com o chegar


do Dasein ao fim (zu-Ende-kommen des Daseins), e ver nesse ente
em sua totalidade, o ser para a morte (das Sein zum Tode). No
dobre a finados que então faz ressoar diante do seu mais agudo
contraste, a Analítica parece haver reencontrado o exercitamento à
morte (meléte thánatou), espécie de maiêutica ao revés, comple­
mentar ao parto das idéias (maiêutica), com a qual Platão definiu,
no diálogo Fédon, pela voz de Sócrates morituro, a vocação da
Filosofia. Mas também aqui Heidegger diverge da tradição sem
contorná-la, mediante o recuo interpretativo característico da Onto­
logia fenomenológica.
O exercitamento à morte estende-se, segundo dois rumos dife­
rentes, do pensamento platônico à Filosofia helenística. No Fédon,
o filósofo que se exercita para a morte, aprendendo a enfrentá-la
sem temor, adestra-se, em dissídio com o corpo, a purificar a sua
alma a fim de libertá-la do físico e do sensível. A seus olhos,
a alma deve aspirar à dissolução corporal, que a devolveria à
primitiva condição divina e imortal de que compartilhou algum dia.
O Sócrates que Platão nos apresenta nesse Diálogo é aspirante à
imortalidade, já no termo final de seu aprendizado, fortalecido pela
ascese dos sentidos, que lhe ensinou a “imensa esperança de uma
outra vida”, da verdadeira realidade, para além do mundo ilusório.
Essa esperança na imortalidade condiciona a dialética dos contrários
exposta no Fédon-, a morte, que surge da vida, e a vida, que surge
da morte, produzem-se mutuamente, dentro da cadeia de renasci­
mentos sucessivos com que acena o mito da peregrinação das almas.
Assim, no rumo da concepção platônica, o meléte thánatou
corresponde a uma prática positiva de superação do vir-a-ser pelo
conhecimento da essência imutável, que está em relação com a
teoria das idéias. Culminando no discernimento noético das essên­
cias, e conduzindo à posse espiritual da verdade e do ser, o racio-
nalismo filosófico postula a imortalidade individual. Aprender a
morrer é afirmar a morte como um momento privilegiado da vida,
em que se opera o trânsito do mundo sensível ao supra-sensível.
Mais próximos da visão trágica dos pré-socráticos, os estóicos
e os epicuristas, na fase helenística, emprestaram ao meléte thánatou,
numa direção inversa à do pensamento platônico, o sentido de uma
prática negativa, que consiste em naturalizar a idéia da morte,
considerada, no processo de surgimento e de dissolução dos seres,
um momento essencial da physis. Uma agregando os elementos e
a outra desagregando-os, vida e morte se produzem mutuamente,
como as duas fases de um mesmo processo de mudança, que supera
os indivíduos. Simples operação da Natureza (Marco Aurélio),
a morte não nos concerne (Epicuro), e temê-la, como fonte de
119

s(Jfriniciilo, ou aspirar por cia, como acesso a uma outra vida, é


stcniar conira a razào, Aprender a morrer será negar a importância
da morte para o indivíduo, cm abono da crença na imortalidade
da Natureza, que respalda a única sabedoria legítima da vida.
Nas duas práticas, a platônica e a csióioepicurista, temos
posições existenciais típicas, que sc complementam dènlrô da Filo
Jiofia antiga, a primeira, resguardada pclç» postulado ítico-religíoso
da imortalidade individual, inerente ao espiritualismo, c a segunda,
pelo postulado da imortalidade da Natureza, inerente ao natura­
lismo, Deslocando-as para o âmbito das interpretações pré-onto-
lógicas do homem, ambas com um sentido latente a decifrar, dc
ambas se. afasta a concepção heideggeriana, que por um lado pessoa-
liza a morte c, por outro, desvincula-a dc qualquer preocupação
com uma outra vida.
No mais amplo sentido, a morte í um fenômeno da vida ...
Tambím O Dasein é observável como puro fenômeno da vida.
Do ponto dc vista biológieo-psiquico, da entra no domínio do
que chamamos o mundo dos animais e dos vegetais (SZ, p. 246),

domínio eminentemente ambíguo, posto que a vidtí é "uma forma


dc ser peculiar", ncin ser-à-visla, nem Dasein. O chegar ao fim
da vida constituiría um simples "finalizar”, o termo de um processo
vital, qut declina ou cessa por efeito dc circunstâncias fortuitas.
Mas, para o Dasein, o fim não é uin arremate, um termo a
que cie chega ou um acidente dc carreira que o abale, suprimin­
do-lhe a presença no mundo. Faltaria, por conseguinte, ao conceito
biológico da morte um pleno aclaramento, que só u Ontologia
fundamental, “anterior a uma Ontologia da vída'\ será capaz de
trazer. tissa anterioridade da Ontologia fundamental está garantida
pela própria estrutura do scr humano, que existe projetando-se,
compreendendo-sc antecipadamente a partir de suas possibilidades.
Consequentemente, o pcrccimento orgânico i "codeterminado” pela
"forma original" do Dasein, que Mnào finaliza simplesmente’*, uma
vez que o fim cm direção ao qual se totaliza, e que lhe faltaria
para complctar-se, constitui uma possibilidade sua — um poder-ser
rclativamente ao qual sc conduz cm cada momento dc sua existência.
O Dasein chega, pois. □ um fim. mas que o determina desde o
princípio, como possibilidade do que virá a scr. morte não ó
para etc, portanto, o puro aniquilamento, representável conforme
a experiência da caducidade, que nivela, como um fato objetivo,
impessoal c necessário, na serie das causas naturais, todo trespasse
dos entes ;t supressão ou ao desaparecimento peculiares ao ser-à-
-vista. Oniologicamcnte falando, o homem deixa dc viver porque
morre, e morre porque lhe é inerente o morrer, enquanto poder-ser
120

de cada qual. O “infausto acontecimento” torna-se possibilidade


da existência, ingressando, intransferível e irrepresentável, na relação
com o ser a que a existência está concernida.
Enquanto possibilidade de cada qual, a morte se pessoaliza no
morrer. O decesso é apenas a ocorrência externa e pública, que
ratifica a situação in extremis em que a existência sempre se en­
contra. A qualquer momento o existir se implanta no morrer, e no
morrer o Dasein alcança, ao mesmo tempo, a sua singularidade e
a sua totalidade.
O finar da morte não significa ter o Dasein chegado ao seu fim,
mas significa o ser relativamente ao fim (Sein zum Ende) .desse
ente. A morte é o modo de ser que o Dasein assume desde o
momento em que existe (SZ, p. 245).

Heidegger diz que ninguém “pode tomar a outrem o seu morrer”


(SZ, p. 240). Intransferível na medida em que singufariza o homem,
irrepresentável porque iminente, çssa possibilidade sem ultrapassa-
gem levanta o podcr-scr mais próprio do Dasein, que o abre inlcira-
mente para si mesmo. Mas, paradoxalmcntc, esse poder-ser 6 uma
impossibilidade. “A morte é a possibilidade da absoluta impossibili­
dade do Dasein (schlechthinningen Daseinsunmogl iehkeit) ” (SZ,
p. 250). A iminência do fim que o completa e totaliza encerra,
portanto, a iminência de uma negação — mas de uma negação
como possibilidade da existência em seu fundamento. “O não-ser
que domina total e originariamente o Dasein se revela em seu ser
relativamente à morte” (SZ, p. 306).
Finalmente, podemos dizer que o conceito existentivo da morte,
buscado cm conjunto com a apropriação da existência toda, enfeixa
o paradoxo, que sc expressou no cuidado, e pelo qual se iniciou
esse momento agudo da Analítica: o que (alta ao existente, c que
de será, em razão do poder-ser cm que sua essência consiste, pende
do não-ser que ele é cm si mesmo. O ser para a morte (das Sein
zum Todc) rctraduziria, dessa forma, cm novos termos, o fenômeno
do cuidado, e acrescentaria à cadeia de tradutibilidade do Dasein o
do hermenêutico que consolida, selando irrcmissivelmcntc a nossa
finitude, o ângulo de contraste da Ontologia fundamental com a
tradição. Por aí também se vê que, ao alcançar a possibilidade da
impossibilidade, que limita por dentro c ao mesmo tempo garante,
pela negalividade do podcr-scr que somos, a totalização da exis­
tência, o recuo interpretativo atinge a própria abertura. Não nos
totalizamos atingindo a plenitude de nossas possibilidades, como
organismo que começa a declinar c a fenecer, depois de alcançada
á perfeição dc sua forma. O todo que a morte prenuncia, contrai,
num único momento certo e indeterminado, o fundo negativo sobre
121

0 qual sc projeta aquilo cm que podemos tornar-nos. Somente a


p0!;Sibili(iade de não-scr garante a apropriação dc si mesmo por
|ftc do Dasein, que existe em sua liberdade, na situação fáctica
que se encontra, iransccndendo-se para o mundo.
A jacticidade, A exisiencialidade c a qtardo são os suportes da
ij-anscendência, que o cuidado une na expressão de um todo estru­
tural ontológico dc caráter finito: “O Dasein não tein uni fim aonde
chega c simplesmente cessa, más existe finiramente" (SZ, p, 329).
O fim mortal, que representou para a Filosofia platônica a devo­
lução da infinitude, c, portanto, a transcendência da alma humana,
rclativamentc ao mundo, do qual a dialética ascendente constitui
a antecipada superação, sob a forma dc conhecimento superior,
para além do sensível, é. do ponto dc vista da Ontologia funda­
mental, a definitiva confirmação da finitude, Não há separação
entre a íacticidadc da existência e a compreensão do mundo em
que nos situamos transcendendo os entes, fi como ser-no-mtutdo
que o homem existe, c é como ser-no-mundo que chega a ser o
que é, no limite insuperável dc sua finitude. Entretanto a conquista
dc si mesmo, pela qual supera a envolvencia do cotidiano, é produto
de um rweWre tMnatou, de um excreitamento para o mnrrcr, espé­
cie dc livre e oblíqua pré-meditação que, antecipando a morte, c
oompreendendo-a enquanto verdade genuína e originária do Dasein,
contraria a esquivança protetora c tranquilizante da queda, e tem
implicações de ordem ética,

2. A pré-meditação da morte

Do movimento em torvelinho, pelo qual Heidegger caracteriza


a queda, deriva a conduta da fuga diante da possibilidade da morte,
cuja compreensão sc estabiliza num certo saber ostensivo acerca
dc nossa condição mortal, objeto dc pnrolagem, respaldado na
autoridade exterior c impessoal da gente: saber abstrato c geral,
cx[triori?ando-sc em pronunciamentos incontestáveis e triviais (to­
dos morrerão algum dia, nossa vez há dc chegar etc.), á maneira
dc consolo, csconjuro ou defesa contra um acidente dc que ninguém
escapa e que ê inddinidamentc prorrogável para cada qual. Quem
morre é o sujeito difuso e indefinido, « gente, que inclui todos os
outros c de que rios excluímos.
Tão real acontecimento é a morte que podemos furtar-nos à
sua ameaça deixando dc pensar nela ou aceitando intelectual mente
a sua necessidade, Mas até esse saber evasivo c ambíguo do coti­
diano, que a transfere para o plano das ocorrências gerais, evita.
122

na aceitação ou na indiferença com que pretende enfrentá-la,


tomá-la como possibilidade. Entre a certeza silogística da Condição
mortal (lodo homem é mortal, Sócrates é homem, logo Sócrates
é morta]) e a experiência pessoal angustiante dessa possibilidade
que solitariza o indivíduo, desligando-o de seu papel social, há uni
violento salto qualitativo — para dentro do abismo sem fundo, onde
sentiu-se cair o Ivan Ilicht da novela de Tolstoi\ A força inferen-
cial do silogismo não me concerne direta ou indiretamente; inume­
ráveis Sócrates substituem, em meu lugar, o sujeito da conclusão.
Esquivo-me da morte no anonimato da gente, que a tem por destino
certo, e de que faço parte como representante do gênero humano.
Valho-me do refúgio de uma procrastinação indefinida, que hoje
me deixa incólume e que continuará poupando-me amanhã, “em
cada caso de defunção dos outros, ocorrido diariamente, assegu­
rando-nos a rigor, com maior evidência, que a gente mesmo ainda
vive” (SZ, p. 292).
Nessa conduta de fuga, a Analítica obtém a confirmação da
possibilidade que a mediania do cotidiano tenta ocultar, pela indi­
ferença ou pela tranquilidade, no saber da morte como dc um fato
inevitável, apresentado com o caráter de certeza extra-empírica.
Mas aqui a evidência teórica aparente é um estratagema da razão,
cm luta contra o indeterminado, tentando cscqnjurar o fantasma
de algo possível que se tornou certo, e que, sendo certo, é capaz
de realizar-se a cada instante sem que saibamos quando.
É do avesso dessa sabedoria retorcida que se extrai o conceito
existentivo de morte enquanto possibilidade própria (eigenste),
não-relacional (umbezügliche), insuperável (unüberholbar) e inde­
terminada (unbestimmt) do Dasein. Contrariando a esquivança
da queda, que alimenta a atitude dc fuga, nesse conceito inlerpre-
tativo, cercando a verdade originária do ser humano — de onde
vem a certeza da morte, incomcnsurada a qualquer fato de ordem
empírica, e onde o Dasein já está antes de iniciar qualquer tenta­
tiva de construção teórica, pela antecipada projeção que o caracte­
riza onlologicamente —, também se projeta o ente interpretado,
com o delineansento da atitude inversa à do cotidiano, e pela qual
a morte pode scr compreendida e assumida ao mesmo tempo como
possibilidade num discurso autêntico, Se comprecndc-la c assumi-la
decorre assim da necessidade de um esgotamento fenomenológico
de seu sentido — exigência do método —, a compreensão assu­
mida, porém, transgride os limites do pensar teórico c tem o cunho
de exereitamento do Dasein, confrontado à mais exirema c radical
possibilidade de si mesmo.

1A morte de Ivan Ilicht, referida em SZ, p. 254, nota 1.


123

O excrcitamcnto í uma pré-meditação, que se adianta ã morte


ou que sc lhe antecipa. Prê-medilá-la significa um correr à frente
dela (Vorlaufen), “o compreendê-la como existência assumida".
O sentimento dç angústia autentiíicaria essa compreensão, assina­
lando o rompimento do estado de pública indiferença do Dasein,
ppr fim singularizado diante do poder-ser dos outfos. A seme­
lhança dc um foco que p iluminasse em sua trajetória, adarando-a
como um todo, do início.ao término, essa antecipação liberaria o
Dasein para o poder-ser próprio, autêntico, da existência.
Por ora considerado no plano ontológico-cxistcnlivo, esse
poder-ser próprio, antes contraposto à existência imuiléniica, dc
que c o pólo contrário, será confirmado por uma atestação tomada
ao plano ôntico-exisicncial. A situação hermenêutica que s» con­
figurar no último deverá ratificar agora, pela propneJnde, a tota­
lidade finita do Dasein como ser par» a morte. com que já depa­
ramos no primeiro.
A im propriedade tem por base uma possível propriedade,
A impropriedade representa uma forma dc ser em que o Dasein
pode colocar-se c sempre sc coloca ordinariamente, mas não
forçosa c cOnStantcmcntc (52, p. 259).

Entre esses dois modos, não há gradação ontológica como do infe­


rior para o superior, mas uma oposição que polariza a existência
enquanto possibilidade, e que releva da essência do Dasein.
E í por scr O Dasein em Cada caso csscncialmentc sua possibi­
lidade, que pode este ente em seu scr “cscolher-sc" a si mesmo,
ganhar-se e também perder-se ou não ganhnr-se nunca c apenás
“aparentar” que sc ganhou. Ter-se perdido c ainda não haver-se
ganho somente pode Íaíê-to enquanto é por essência possivel­
mente apropriável (.môgliches cigéntliches), quer dizer, apropriá-
vcl por si mesmo (Á'Z, p. 42).

A alternativa de ganhar-se ou de pcrdcr-se, a possibilidade de


ser ou de não ser si-mesmo, está, portanto, em jogo naquilo que
o Dasein é. Determinando-o em sua conduta, tal alternativa, que
lhe é intrínseca, pende dc uma escolha que sempre pode fazer,
Tanto a perda, no modo inautêntico em que se demite, quanto a
conquista de si, que o retiraria, ainda que por uni momento, da
niveladora envolvência da genre, do mudo de ser do cotidiano,
pressupõem um poder-ser próprio, isto é. um poder-ser que seja
apropriado por si mesmo. Se o Dasein é o que pode ser, e sc o
que pnde scr se determina pelo que ele faz, o silencioso chama­
mento —■ “tomá-lo aquele que ís" (SZ, p. 145} —, que o põe cm
questão, apela para a iminência de uma sempre possível apropriação
124

pela compreensão de si mesmo, que mobiliza as suas possibilidades


originárias numa escolha que seja ao mesmo tempo abertura. Con­
siderando isso, a Analítica desce ao pivô da existência, que tanto
possibilita a queda quanto a autêntica saída do cotidiano em que o
Dasein permanece frequentemente.
A compreensão respectiva seria apropriadora, liberando o
poder-ser próprio por ela alcançado na decisão (Entsçhlosscnheit).
Pelos componentes que envolve, a decisão é uma escolha, dentro
da alternativa existencial do Dasein, que sc libera para a compreen­
são do seu poder-ser próprio, como determinação de liberdade —
a única forma ontológica possível, a priori, de tornar-se o homem
aquilo que é.
A situação hermenêutica a que se recorre para atestar essa
possibilidade é a manifestação fenomênica tradicionalmente conhe­
cida com o nome de “consciência moral”, da qual se extrairá o
fenômeno encoberto que dá fundamento à decisão.

3. A voz da consciência e a culpa

Aplicada ao tema central da Ética, a Analítica desliga-se de


todas as concepções morais, concentrando-se no caráter fenomê-
nico dessa manifestação que sobressai da auto-interpretação do
Dasein: a voz da consciência.
No intuito de penetrarmos, com uma certa clareza, o labirinto
das descrições heideggerianas — talvez as mais tortuosas de Ser
e tempo, as quais encerram a delicada passagem ao fenômeno da
temporal idude —, recorreremos a dois pensadores que sc destaca­
ram cm épocas diferentes pelo interesse quase missionário devotado
à realização das possibilidades humanas: Sócrates, no século V a.C-,
e Jean-Jacque$ Rousscau, no século XVIII.
Sócrates justificou a sua fidelidade ao bem e o seu apreço à
virtude, perante os juizes atenienses que o condenaram, pela inti­
mação de um daímon, que lhe falaria interiormente, convocando-o
à missão de inquietar os homens, a fim de torná-los justos e equi­
librados:
O começa disso remonta á minha infância; é uma voz que sc
faz ouvir por mim c que, quando isso acontece, dcsvia-ine daquilo
que eventual inente eu metendo fazer sem nunca me impulsionar
a agir, Eil o que se opõe a que eu participe da política 2,

2 Platão. Apologia de Sócrates. In: —. Diálogos. Tradução por Carlos


Alberto Nunes. Belém, Universidade Federal do Pará, 1980. v. 1, 31d.
125

Hssa voz desviaria Sócrates da ação, c foi por ouvi-la que o pcn-
*
$ador abstcve-s dos negócios públicos. Como um efeito que sc
confundisse com a causa, sua atitude dc abstenção denunciava a
existência dessa voz e traduzia-lhe a intimação. A voz intimava-o
a um certo procedimento que ele adotaria ao ouvi-la, atendendo a
um chamamento — a uma vocação que dela vinha e que, ao im­
pedi-lo de exercer cargos políticos, muito embdra nada expressasse
mediante palavras, e se ‘fizesse ouvir em silêncio e como silêncio,
convocava-o para outra espécie de tarefa. Sócrates julgou-se in­
cumbido de um mandado divino e parecia agir sob as ordens de
um Deus. No silêncio da voz, era o seu daímon que lhe falava.
Ele a compreendia ouvindo-a em silêncio, como voz estranha que
traduzisse a vocação de um outro diferente de si mesmo. Eis o
dado mais embaraçoso: a voz (das Ruf) convocava-o para uma
tarefa da qual ele apenas sabia que não era política, e que, de
imedito, se concretizou pelo seu isolamento no meio dos outros.
Essa vocação que se fazia ouvir, retirando-o do círculo da gente,
e que o condenou ao sacrifício, entregava-o, impotente, ao nume
que falava por ele e em lugar dele, Quando ouvido, o silencioso
apelo (Anruf), que "não enuncia nada, não dá notícia alguma de
acontecimento do mundo" (SZ, p. 273), nada conta e nada expres­
samente ordena, já apagou a linguagem mundana e ambígua, e é
o nume que, numa interferência imprevista, parece falar de algo,
“sem que o esperemos e até contra a própria vontade” (SZ, p.
275). Quanto mais pronta e completamente nos entregamos à voz,
e quanto mais constantemente ela de nós se estranha, estranhando-
-nos dos outros, mais perfeitamente sabemos a que tarefa nos
convoca. O chamamento também cobra-nos uma dívida, e leva­
mos, como a Sócrates, à barra de um tribunal que já prejulga a
culpa dos réus. Sabia-o, depois de Sócrates, o Vigário Saboiardo
de Rousseau, que identificou a voz da consciência, em sua Pro-
fession de foi, endereçada a Emílio, a um instinto divino — a uma
voz “celeste e imortal” 3.
Rousseau converteu o nume socrático no juízo infalível do
bem e do mal. Não é mais a voz, como em Sócrates, que absorve
a consciência, e sim a consciência que absorve a voz:
Há, pois, no fundo das almas um principio inato de justiça e de
virtude, baseado no qual, a despeito de nossas próprias máximas,
julgamos nossas ações e as dos outros como boas ou más, e é
a esse princípio que eu dou o nome de consciência 4.

3 Rousseau, J. J. Profession de foi du Vicaire Savoyard. Paris Jean-Jacques


Pauvert, 1964. p. 116.
4 Id., ibid., p. 112.
126

A consciência como princípio adquire a identidade de uma instância


judicativa, aplicando normas universais. Estamos a um passo da
lei moral kantiana, do imperativo categórico, como obrigação incon-
dicionada a que terá que conformar-se a máxima de conduta do
indivíduo em todas as suas ações por respeito ao dever.
Na invocação da culpa (Schuld), pela vocação de uma dívida
a resgatar, temos o último dado (cnoniênico da voz r/n cortJdÍHeui,
Foi por clc que Nictzsçhc começou a intentar o processo da "genea­
logia" da consciência moral. A origem do sen li mento do dever,
que remonta ‘'às mais primitivas relações entre indivíduos, as rela­
ções entre comprador e devedor, entre credor c devedor” d, c chega
atí à culpa formada do homem perante a divindade, confunde-se,
porém, com a origem da má consciência.

4. O poder-ser próprio

Introduzindo esses tópicos que a análise ícnomcnnlógica dc


Heidegger não aborda, procuramos levantar o lençol da experiência
subjacente à auto-intcrprctaçâo do Dasein, sobre o qual incide a
"genealogia" hcidcggtriana, dc que derivam os fundamentos das
concepções morais. Se acompanharmos pacicntcmcntc essa "genea­
logia" cm íe?r e tempo, constataremos que í a partir da conside­
ração da culpa que 05 dados ante rio rmente configurados no exem­
plo de Sócrates — o estranhamento da vocújímj, do ponto dc vista
dc quem articula ú sua silenciosa rnwtttffâo c daquilo a que nos
convoco — se esclarecem num só fenômeno; o podn-ier próprio,
que a voz da consciência atesta.
Heidegger tomou da mesma fonte — do dMftto dc obrigação,
que corresponde ao conteúdo da compreensão cotidiana, e a que
Nietzsche recorreu cm sua Genealogia da mora! ■ - o conceito de
jifvtáfl, no sentido dc uma conta exigível a saldar, dc que o resgate
constitui a reparação dc um dano, de um prejuízo ou de uma
ofensa atual ou iminente a outrem. A culpa é a figura da causa
desse prejuízo; ser culpado ó ser fundamento dc uma deficiência
em relação a outrem, o que significa, em relação ao ser-em-eomum
do Dasein. Essa deficiência, que sempre comporta uma existência,
a rigor não nos afeta, como se da culpa decorresse uma falta, um
estado negativo passageiro que se viesse posteriormente a suprir.

B Nietzsche, F. Werke\ zur Genealogie der Moral. Herausgegeben von Karl


Schlechta. München, Carl Hanser, 1954. Segunda dissertação, 8. parte, t. 2,
p. 811.
127

O déficit é intrínseco à nossa condição. O que nos falta é o que


ela tem de não-ser.
Posto que o Dasein está lançado no mundo, existindo adiante
de $i mesmo, o podcr-scr que o constitui, e que o projeta numa
possibilidade, implica, ao mesmo tempo, letraimenle a qutras pos­
sibilidades. O Dasein á. a cada momento, por aquilo que ainda
pode ser e ainda não é, o-iião-SjCr dc si mesmo. Em vez de um
estada negativo passageiro, a1'deficiência, enquanto culpa, í a con­
dição dc um ser que tem por íuiidumciUü o não-ser pelo qual res­
ponde. Só o animal, como diz Hegel nas /.ffõe.t sobre História
universal. é verdarieiramente inocente (unschuídíg).
* 1
Esse fundo ou fundamento negativo, que anteriormente desta­
camos, acusa a transcendência, como raiz do poder-ser — da liber­
dade determinante c radica! que o cuidado revela, ç que, como
lambem já sc mostrou, depende de possibilidade ainda mais origi­
nária do Nada, franqueada pela sngúslia, como ponte temática entre
a existência e a questão do ser em geral.
Mantida nessa perspectiva, a “genealogia” da consciência mo­
fa) ê uma reconversão do cuidado à dJ.cpiorífõo, à pra/c^ãó e ao
discurso. As dimensões da abertura são agora as condições anto­
lógicas da consciência moral, A voz do cftUfflrJN, que fala a Stk-ra-
ics, de fora ou do alto, pronunciando-se cm silencio, sem dizer
expressamente nada, para convocá-lo a uma tarefa que nào c polí­
tica, c que se traduz como exigência, assumida ã maneira dc um,
mandato ou dc uma dívida a resgatar, é-lhe estranha porque não
procede da gente e porque, ao chamá-lo, lhe dá a compreensão do
que é e do que pode ser em si mesmo e para si mesmo.
“O daímon do homem é o seu êthos", registra o fragmento
119 de Heráclito. No sentido da existência desabrigada, lançada
no mundo, em seu poder-ser próprio que a angústia revela, o éthos
é o mais estranho para o homem. A vocação, que “vem de mim
e sobre mim” (SZ, p. 275), convoca-me a esse poder-ser em que
nos projetamos ao ouvi-la na disposição angustiante reveladora da
facticidade da existência, e que, rompendo com a linguagem do
cotidiano, se articula, como discurso silencioso. Não é a vocação,
por conseguinte, uma potência estranha ao Dasein. Ela invoca o
cuidado, que responde pela culpa, enquanto limite ontológico de
um ser finito. Para Heidegger, o homem não se faz culpado por
“obra de erros e omissões”; basta a finitude do Dasein, enquanto
a priori de erros e omissões, para que seja humanamente culpado.

8 Hegel, F. Philosophie der Geschhichte. Stuttgart, Philipp Reclam, 1961


p. 80.
128

Mas, compreendendo-se culpada, ouvindo a voz que o chama para


cs$È limite, que é a verJrtifr orijújiírirt da aistírteia, também q
homem — compreendendo-se livre, ouve a intimação dc seu poder-
-ser próprio, que o If&erfl para esse mesmo poder-ser alcançado ou
apropriado no momento em que o compreende e se deixa por clç
determinar.
Se a vocação não é o chamado de uma potÊncia estranha,
tampouco avoca a consciência ctunp princípio, ao mesmo tempo
poder de julgar e instância normativa interna pela qual somos
julgados, que a concepção kantiana sintetizou, reelaborando a dou­
trina de Rousseau. A vocação convoca-nos (aufruft) à nossa liber­
dade, ao poder-ser próprio sobre o qual nos volvemos, escolhendo-o
e determinando-nos por ele. Daí dizer Heidegger que não escolhe­
mos a consciência. A ''consciência moral”, compreensão apropria-
dora, é um querer-ter-consciéncia (Gewissen-haben-wollen). O dado
fcnnmênico da voz, que u manifesta, é uma atestsção (Bczcugcn)
do mesmo poder-ser próprio ao qual â escolha nos flbre, e que £
a efedrfo (Eníschlosstnhcit) como fenômeno, cm que se desenco­
bre a condição da possibilidade da “consciência moral”.
Por obra dessa escolha, que é ao mesmo tempo abertura exaus­
tiva, e como tal a liberação para a existência autêntica sempre
possível de nós mesmos, de que nunca se obtém o definitivo título
de posse, tornam-se possíveis os imperativos morais. A esse fun­
damento intranqüilo, remetem-se os arrestos da consciência judi-
cante transformados em instância censora, que a decisão novamente
problematiza e ultrapassa, abrindo a certeza tranqüila do bem, em
que se escuda o farísaísmo, e a certeza flagelante do mal, da culpa­
bilidade irredenta em que se refugia o puritanismo. Tais extremos
recaem na compreensão estabilizada do cotidiano, que se esquiva
ao cuidado e à angústia pelo trato do mundo — pela vita actuosa
et negotiosa a que se referiu Santo Agostinho, que nos ocupa e
com que nos preocupamos, interpretando-nos como ser-à-mão, e
assim como instrumento para realizar fins de que temos a gestão,
calculando nossas virtudes ou predisposições.
A auto-interpretação comum e cotidiana da “consciência mo­
ral” labora numa compreensão mercantil e administrativa do mundo
e da existência, tomando o homem como um ser útil, objeto de
previsão, de cálculo, que se administra encadeando meios e fins:
“A vida é um negócio que cobre ou não os seus custos” (SZ, p.
289). Para o cálculo em que a vida se torna, os menores custos
são os benefícios da consciência tranqüila e os maiores e menos
lucrativos os prejuízos do remorso. “A interpretação cotidiana man-
tém-se na dimensão do cálculo e da compensação, preocupando-se
129

com o ‘deve’ e o ‘haver’ ” (SZ, p. 292). Nesse nível, a voz se torna


uma precavida contabilização do mérito e do demérito, uma forma
inautêntica do mesmo apelo, que, ouvido e compreendido até os
limites indicados pela sua “genealogia”, alcançou “a propriedade
da existência do Dasein aberta nela mesmo” (SZ, p. 295). Mas a
vocação ouvida e compreendida dessa forma nada prescreve de
positivo; nenhuma indicação, segura provém desse apelo que so­
mente avoca (aufruft) (/Dasein para o seu mais próprio poder-ser
si mesmo (zum eignesten Selbstseinkõnnen). A compreensão é
projeção da possibilidade fáctica mais estranha, ao desabrigo da
existíncla singularizada pela angústia, no silêncio que "resgata” o
si-mesmo das parolagens altissonantes da gente''' (SZ, p. 296).
As dimensões do aberto radicalizam-se na “decisão”, em que
se desnuda a estrutura da “consciência moral”. Recuando do do­
mínio estabilizado das normas à determinação da liberdade, o
abrimento, que não depende do prévio acesso a valores, faz-se
em cada caso — isto é, desencobrindo o que é facticamente possí­
vel numa situação (Lage) em que já nos encontramos. “A situação
não é uma moldura subsistente diante da qual o Dasein se põe ou
dentro da qual se coloca” (SZ, p. 299). A situação é o aí (Da)
desse ente, como ser-no-mundo, o ponto por onde, de conformi­
dade com as circunstâncias e a possibilidade que o chamamento
invoca, a sua existência se abre. Ela se configura na e pela decisão,
esgotando-se no compreender apropriativo desta. Assim a decisão
abrange a “estrutura existentiva do poder-ser próprio atestado pela
consciência moral” (SZ, p. 300), e, alcança a verdade originária da
existência como determinação da liberdade e forma germinal da
ação: “Enquanto decidido (ais entschlossenes), o Dasein já atua”
{SZ, p. 300).
Tenha-se, porém, a cautela de tomar o agir, de que trata Hei­
degger, em conjunto com a idéia de situação, no sentido ontoló-
gico-existentivo do cuidado, e não de uma conduta especial da
faculdade prática por oposição ao conhecimento gerado ptjr uma
faculdade teórica, No entanto, sendo rcconvcrsívd ao cuidado que
a possibilita, c que exprime a finitude do Dasein - da humanidade
do homem —, poder-se-á dizer da decisão, em boa linguagem kan-
tiana, que ela é o componente de toda “razão prática”. Ao fim
e ao cabo, ela nos levaria de volta, por um caminho que vai do
ôntico ao ontológico, às mesmas estruturas anteriormente desemba­
raçadas na investigação da totalidade, que seguiu caminho inverso,
do ontológico ao ónífeo — do ser para a morte ao decesso natural
do homem.
130

5. Maiêutica ao revés

No ser para a morte, que é essencial mente angústia, desvela-se,


como possibilidade da impossibilidade do Dasein, a verdade da
existência a que remete o poder-ser próprio aberto na decisão c
nda apropriado. Enquanto esta é facticamcntc existencial, con­
fiada à liberdade cm cada situação, o ser para a morte configura
a possibilidade última, a iminência do fim que nos totaliza, porque
inerente ao fundamento do Dasein enquanto não-ser, que desabro­
cha do Nada. “O Nada, perante o qual a angústia nos coloca,
desvela o não-ser, que determina o Dasein em seu fundamento, que
não é ele mesmo mas o ser lançado na morte” (SZ, p. 308). O
não-ser corresponde à condição de um ente cuja essência reside na
existência. A idéia de não-ser, com que agora deparamos, decorre
da prévia idéia dc existência come poder-ser da qual Heidegger
partiu. Se, feitomenologicamcnte, a existência é o fundamento, o
Dasein “é o não-wr dc si mesmo”. Por via de consequência, a
morle, o fim iminente, encena a possibilidade contida no princípio,
O cuidado, 4'perpassado de não-ser em sua própria essência”, 6
ser para a morte. Sô se pnde tê-lo, cm sua pureza, como fenômeno
que designa a totalidade do Dasein, a salvo das formas derivadas
c inamêiiticas • a preocupação (Besorgen) e a solicitude (Fur-
sorgtn) a que dá origem — se o compreendemos erirrado, por
assim dizer, rfrt Hnftfl da correr ò frente (Vçrlauf), que caracteriza
a pré-mcd ilação da morte. O meléte tdnathoü, como autentico
pensar na morte, ratifica o cuidado, que é a totalidade original do
Dasein c, enquanto tal, a condição exístentiva príorí de sua
transcendência como ser-no-mundo.
Do fundo cuidoso da existência — o não-ser que a pré-medi-
uçãü da morte catalisa — deriva a angústia, que confirma o não-
-ser da existência, mas já como experiência do Nada. Do mesmo
modo, Heidegger confere ao exercitamento para a morte o papel
dc autenticar a determinação indeterminada da liberdade, no mo­
mento cm que, liberando-nos pura as possibilidades fácticas, no
agir conformado a uma situação, o apelo ouvido, sob a exigência
transformada cm divida, desvela o ser do cuidado. Mas, pelo fato
dc que alcança o poder-ser total que nada supera, e que constitui
o limite dc encontro ao qual sc concretiza o querer ter consciência
na decisão, esse pré-meditar a morte, que se projeta para o fim,
mantendo-o como possibilidade cena, iminente c inuitrapttssãved,
c o parto da consciência moral. O ter para a marte autêntico rea­
liza então uma maiêutica ao revés. Na medida em que libera o
fundo dc um não-ser, o fundamento do Dasein — a parturição do
fim possibilitada desde o começo —, ultima a possibilidade da
131

nSC^ncia moral- E só quando reflete, em cada situação, a situa-


Lí -pül ’c:na. pi lueiliuiridu a morte, é a decisão compreen­
são apropriado™. O poder-ser próprio e total, requalificando o
cuidado, mostra-se, pois, como o fenômeno completo em que
desemboca a compreensão do Dasein por si mesmo.
Atingida a lolalidade e a propriedade do Dasein, 'duas conclu-
sõcs podem ser firmadas,, preparando a última etapa da Analítica:
I) que o poder-ser próprio e total, como propriedade do
pjsejn, é a existência que se entremostra no cuidado, enquanto
fundamento de um nâo-ser;
2) que o ser para a morte e o poder-ser livre, existentivos
concorremes que se iraspassam na decisão antecipadora, implicam,
cada qual, a projeção do Dasein para além ou para fora de si
mesmo, com o que a existência toma a configuração de um êxtase
(ék-stasis) — dc uni movimento extático, de que depende o abrir
peculiar a esses cxislcnlivos.
Se, portanto, esgotamos fenomenologicamente a existência
como compreensão de um poder-ser, e a esse título a sua totalidade
e propriedade, reveladas no cuidado autentico, não esgotamos, com
isso, o próprio fenômeno do cuidado — o seu sentido — de que
se explicitou a compreensão no processo retrocessivo da análise.
Metodologicamente, o todo estrutural do cuidado, ligando a exis-
tencialidade, a facticídade e a quíífd, sustenta-se nesse ék-stasis,
último elo da cadeia hermenêutica, onde se fecha em círculo, sobre
a transcendência do ser-no-mundo, o processo retrocessivo da Ana­
lítica.
TEMPORALIDADE E HISTORICIDADE

Time present and time past


Are both perhaps present in time future,
And time future contained in time past.
T. S. Eliot, Burnt Norten.
Como pudú no sentir que la itfrnidad, anhelada con
amor por tantos poetas, es un «rtiftelo esplendido que
nos libra, jiqprrrt) da manera fuçai, dc la ínioterable
opresión de lo sucesivo?
Borges, Historia de la eternidad, Prólogo.

1. Temporalidade e cuidado

Estrutura ontológica de um ente, cuja essência reside na exis­


tência, como poder-ser, em contínuo ultrapassamento relativamente
a si mesmo e ao mundo circundante, o cuidado contraria a idéia
de imanência substancial do Eu, e põe em causa, mais uma vez, a
certeza do Cogito. O si-mesmo (die Selbstheit), o quem do Dasein,
“só é legível existentivamente no poder-ser si-mesmo próprio
(eigentlichen Selbstseinkõnnen)” (SZ, p. 322), e só podemos alcan-
çá-lo na situação extrema da angústia, fora da cápsula protetora
do Eu cotidiano, já excedido pelo caráter antecipador do seu pro­
jeto e pelo caráter fáctico do seu ser-lançado no mundo.
Vimos que o pronome “eu” mascara o si-mesmo inautêntico,
impróprio, o impessoal e anônimo outro, que nos furta a nós mes­
mos, e que é, para dizê-lo numa terminologia antropológico-socio-
lógica, compatível com o alcance da Analítica, a pseudonatureza
coletiva do Dasein, a sua máscara como ente social, ator subordi­
nado a um papel coercivo que o identifica. “Pode ocorrer que o
133

aueni do Dítscin cotidiano não seja eu mesmo em cada caso”


(p. 115)- A questão do Ew, concomitante à questão do ser,
sd obtém resposta da essência do Dasein — de sua existência, do
cuidado, como poder-ser próprio, diante do qual o Eu fugidio do
sc ll:iii;i:cú:i:I:: CÍ c.lidado encerra o “si-mesmo” na
unidade da uma estrutura, que tanto possibilita a conquista do
Dasein ao ganhar-se, quanto a sua perda, envolvido pelos entes
intramundanos entre os quais se encontra. “O ser si-mesmo pró-
pjjp em seu modo silente não diz justamente Eu-Eu (Ich-Ich),
mas é na silenctosidadc do ente lançado (des geworfen Seiende)
que pode ser propriamente” (SZ, p. 322-3). O si-mesmo, que a
existência decidida desencobre, é, pois, o solo fenomenológico ori­
ginário da subjetividade reflexiva, Eis o ponto agudo da Analítica,
que confirma o Eu como instância de questionamento, condicionado
pela transcendência, ou seja, possibilitado pela abertura em que os
çxistentivos convergem, cada qual com o seu modo de abrir e de
compreender.
O poder ser si-mesmo próprio ocorre por um ato de apropria­
ção do Dasein, numa decisão extrema, que coloca a sua existência,
projetando-o em direção ào íim, sob a possibilidade da morte, que
o totaliza. Mas essa projeção, que ratifica o cuidado, também
entreabre o que torna possível a unidade de trimembre de um ente
que existe para além ou adiante de st, lançado e cadente.
Coisa semelhante só é possível se o Dasein em geral, em sua mais
própria possibilidade, pode advir a si (auf sich zukommen), e
nisso mantendo a possibilidade como possibilidade, isto é, exis­
tindo (SZ, p. 325).

Na verdade, porém, essa possibilidade é tríplice, pois que o Dasein


só advém retrovindo a si mesmo — ao fáctico ser-lançado que já
foi e continua sendo, sem jamais totalizar-se na identidade de uma
natureza determinada, em estado de pretérito perfeito. A retrove-
niência (zurückkommen) não é uma volta ao passado, sendo o
Dasein, a cada momento, o haver sido (gewesen sein) de um porvir
(Zukunft) no sentido literal da palavra. “Como adveniente, o
Dasein é retroveniente no sentido próprio” (SZ, p. 326). E é
advindo a si, na medida em que retrovém, que ele está presente
para si mesmo, confrontando os entes que se apresentam no mundo
em torno. “O retrovir surge do advir, de tal modo que o advir
sido (ou melhor, sendo sido) (besser gewesende) emite de si o
presente” (SZ, p. 326).
Essa unidade movente da estrutura do cuidado (literalmente,
o advir apresentante sendo sido — gewesende gegenwãrtigen
Zukunft), exigido pela decisão antecipadora, e imbricado, portanto,
134

no poder-ser próprio e total do Dasein, é tim rfe-jízrfffaSn: o fom


de si em si e purd jí mesmo da existência^ que se chama dc r<?mpy.
ralidade (Zeillíchkcit), Mas cada um dos componentes da tem-
poralidade, o adveniente (futuro), o retrovewetrie (passado) e o
flpre.re/tfmiíe (presente), é também tmi éA-s/arc (êxtase) que im­
plica os demais, o último saindo do segundo, □ segundo <lo primeiro
e o primeiro remissivo ao último, os írte distintos pela mútua
exeluiflo que os mantém interligados. Cada êxtase funda um mem­
bro da estrutura do cuidado: o arfvir ao adiante de si mesmo do
poder-ser ou da existenciüüdade (Existenzialitãt), o retrovir ao
scr-lançado da facticidade (Faktiídtãt), e o apresentar ao estar junto
aos entes (Verfallenheit).

2. Tempo e temporalidade

Os êxtases da temporalidade — o adveniente, o retroveniente


e o apresentante — não correspondem ao futuro, ao passado e ao
presente da compreensão vulgar ou comum do tempo, que tem no
presente a sua fase privilegiada, a partir da qual se dispócm os
momentos pretéritos, que ficam para trás, c os pprvindauros, que
ainda vão suceder. A retroveniência é um passado-presente “que
o Dasein ainda é” (SZ, p. 328), sem tê-lo à sua retaguarda como
uma espécie de depósito inercial, para onde os momentos presentes
passariam e seriam esquecidos, se a memória não os recuperasse
sob a forma de lembrança. Da mesma maneira, o presente, o
agora, em que o anterior e o posterior se cruzam, difere do apre­
sentar emitido por esse futuro adveniente retrovindo.
Na concepção vulgar, o passado se liga imediatamente ao pre­
sente numa relação recíproca; na temporalidade, há relação recí­
proca imediata entre o passada que perdura e a futuro. Vsando-sç
cn mesmos termos aspeados daqui por diante, para indicar a mu­
dança dc sentido que os afeta, poder-sc-á dizer que, ressalvando-se
o privilégio do "futuro”, o " 'presente' está incluído no 'futuro1 e
nu 'passado', cuja reciprocidade constitui a unidade extática da
temporalidade" ’. Mas a rigor não liã três tempos, valendo repetir
as palavras de Santo Agostinho, à guisa de tscólio:
O que nguni transparece c que nem há coisas futuras e preté­
ritas.,. não sc diz com propriedade que os tempos são tris,, •
Pelo que, parecc-mc que t> tempo não É outra Coisa MnBo uma
rfírwrrdó (dislcnsio). mas de que COÍU o seja, ignoro-o. Seria
purn admirar que não fosse a do próprio espírito.

1 Richardson, W. J. Heidegger — through Phenomenology to thought. 3. ed.


The Hague, Martinus Nijhoff, 1974. p. 88.
135

A estupenda análise qüe Santo Agostinho fez do tempo, numa


crítica à concepção aristotélica exposta na Fwicw — <1 medida dó
movimento segundo o anterior c o posterior —, aproxima-se da
[çniporaliJadc» aü mostrar que u futuro depende da expectativa
tanto quanto o passado depende da recordação.23 Corrigindo a
divisão do tempo cm três momentos, o anterior dtf “passado", o
posterior do "futuro”, e o ayonr do "presente",.o Santo Doutor ve
o "passado” como lembrança; inteligível’mediante a visão das coi­
tas presentes que a expectativa antecipa ou relança ao "futuro".
A distensão é o próprio movimento da alma, que vê, lembra c
espera. E por isso os tempos são Ires, mas no prolongamento dc
uni u outro, mensurado pela alma recolhida cm si mesma, pene­
trando nos "vastos palácios da memória", e, por sua vez, medida,
em seu núcleo mais interior, pelo nwrrc jfrwu da existência divina,
do Verbo Eterno dc Deus. Daí permanecer a alma, enquanto sc
movimenta, num tríplice "presente" — o das coisas passadas, o
das presentes c o das futuras —, que a faz durar sem que mude
em sua essência dc criatura, imune ;í caducidade da Natureza exte­
rior, A e/íírcrtjío é o tempo interior, subjetivo, a duração da cria­
tura, feita à imagem e semelhança do Verbo Divino, da qual só
os estados, mudando qualitativamente, acumulam, enquanto pere­
grina na Terra, a experiência da vida que a identificará perante o
Criador, Sob esse aspecto, c sem Jcvár-sc em conta a particular
experiência temporal evangélica do cristianismo, Santo Agostinho
é muito mais o prcdccessor de Bergscm do que dc Heidegger.
A crítica de Bergson à concepção comum do tempo, assimi­
lado à idéia dc Aristóteles anterjonnente referida, não conseguiu
senão inverter, pela imagem do fluxo entre os estados dc consciên­
cia que se sucedem c mudam qualitativa mente, num movimento dc
interpenetração, o tempo físico, objetivo, homogêneo, sempre espa-
cializado, que se divide cm momentos iguais. A duração (duréc)
é sucessão pura, "quando 0 nosso Eu sc deixa viver, quando sc
abstém de estabelecer uma separação entre o estado presente e os
estados anteriores” s. Bergson transformava o fluxo interior, psico­
lógico, numa “corrente temporal”: o progresso do passado ao pre­
sente e do presente ao futuro, que toma a direção progressiva,

2 Ver SAi-.ro Agostinho. Confissões. 3. ed. Tradução do orig. latino por


1. Oliveira Santos, S. J. e Ambrósio de Pina, S. I. Porto, Liv. Apostolado
de Imprensa, 1948. Livro 11, cap. 28, p. 364.
— “Oiço dizer que os corpos só se podem mover no tempo. . . Mas
não oiço dizer que o tempo é esse movimento dos corpos: não, não o dizeis.”
Id., ibid., Livro 11, cap. 24, p. 358.
3 Bergson, H. Les données immédiates de la conscience. Paris, PUF, 1958,
p. 74-5.
136

criadora da vida, inerente à “Filosofia evolucionista” que defendeu.


A consciência seria a ponta de lança desse progresso evolutivo, que
se confunde, como “invenção, criação de formas, elaboração con­
tínua do absolutamente novo”45*, com o tempo cósmico, com o
absoluto, onde nos moveriamos.
O fluxo com que a temporalidade em Heidegger tem a ver é
o das vivências intencionais. De certo modo ela é a intencionali­
dade remetida à existência e, como tal, à condição da relevância
ôntico-ontológica do Dasein, que assegura o definitivo título de
validade da epoché do ser da consciência, e, a jortiori, da conversão
da Fenomenologia em Ontologia hermenêutica.
Nas Idéias de Husserl, a temporalidade, colocada juntamente
com a intencionalidade e o Eu entre os conceitos principais da
Fenomenologia pura, que assinalam os limites da descrição ima-
nente, aplica-se ao fluxo do vivido como forma das vivências. Cada
vivência tem uma duração, que se ordena relativamente às outras.
Fenomenologicamente, a forma é o fluxo tornado experiência refle­
xiva, enquanto campo total que o Eu pode percorrer a partir de
cada uma de suas vivências. Do ser temporal das vivências ao
do fluxo, a diferença seria intencional, dependendo da intenciona­
lidade, ora dirigida a determinada vivência, ora deslocando-se. de
uma a outras; esse deslocamento já constitui o fluxo ordenado como
um continuum de momentos. Assim haveria na corrente da cons­
ciência — o que o Psicologismo não permitiu a Bergson distinguir
— uma dupla direção temporal: vertical, relativamente a cada
vivência, e horizontal, relativamente ao campo de que elas são os
momentos constitutivos preordenados.
Essa distinção, com a dupla intencionalidade que implica,
resulta das análises que Husserl dedicou à consciência do tempo
imanenteB, distinto do tempo cosmológico, com que termina se
identificando a durée bergsoniana, pela via psicológica dos estados
de consciência qualitativamente diferenciados. Que as vivências em
particular tenham uma duração, isso significa, para Husserl, quanto
ao ser temporal, que cada uma é o modo pelo qual algo aparece:
o tempo de aparição do que nelas se dá. Em vez de simples mo­
mento, de um agora ou de uma sucessão de agoras, de momentos
vazios, a vivência do som, por exemplo, que o ato perceptivo cir­
cunscreve, comportando uma série de aparições, encadeia-se de
tal forma que o fenômeno total, o ouvir o som, é uma maneira de
se dar; retido pela atenção, cada momento, ainda presente, conti­

4 Id. L’évolution créatrice. Paris, Félix Alcan, 1930. p. 11.


5 Cf. Fenomenologia de la conciencia dei tiempo imanente. [Vorlesungen zur
Phànomenologie des inneren Zeitbewusstseins], Buenos Aires, Nueva, 1959.
137

nua cm outro, como um ponto que sc deslocasse sempre idêntico


sobre a linha que ele mesmo forma. O primeiro compasso dc uma
melodia, que gera a expectativa do seguinte, não c-ai no passado.
Permanecendo relido, como um ponto em relação a outro, é um
agora atual, emergente, deslocado por outros ngora-r. A todos inter­
liga, no presente distendido, a mesma intencionalidade ‘de reteflpéfo.
Reter significa presentifiçar ou manter presente,. Entretanto esse
presentificar, gerador da contiiVuidade vertical dos momentos que
se encadeiam na unidade da duração, í retencional, na medida em
que O agora atual, cm sua emergência, está profenrfwfo na direção
dc um outro ogora, que o deslocará, sem que a sucessão deles
estabeleça a distância temporal qualificada dc “passado1’.
Sc conservarmos em mente a insubstituível figuração exempli-
ficativa anterior dc caráter gráfico, veremos que o som recordado,
já como lembrança, estará a maior distância do som percebido
(quando se rememora um trecho dc música sob o efeito da audição
de outro). O deslocamento de um pelo outro, sem interrupção da
continuidade entre eles, não se produzirá sob a mesma linha verti­
cal. O aumento da distância como que impõe um “fundo” ao
objeto, deslocando-sc horizontalmente numa perspectiva rebatida
naquela linha. A recordação é, por isso, uma apresentação no
modo transcursivo, participando dc uma “continuidade dc mudan­
ças permanentes" ", O “presente” c o-“passado" ocupariam dimen­
sões distintas de um mesmo plano, separados pela distância, c
ligados pelo rebatimento de um no outro. Podemos deter a vivên­
cia passada, também reflexivamente desdobrável na linha vertical
dos agorat (ao recordarmos uma “recordação”), com as suas re­
tenções e protçnsõe.r, de onde os momentos atuais, retidos e pre­
tendidos, dc recordação em segundo grau, passam para a linha
horizontal do transcurso.
Nâo há três tempos, como diz Santo Agostinho — de que
Husscrl se aproxima tanto quanto se afasta de Bcrgson. O fluxo
é um continuam, de que cada fase, como um ponto, a maior ou
menor distância dc nós, constitui um modo dc consciência, ora
atual, ora reccm-presente, ora transcorrido, ora a transcorrer. Os
trts tempos da compreensão comum e vulgar se resolvem no fenô­
meno da temporal idade: o ccvrrmuum, descrito por Husserl cm
termos de experiência preliminar imanente, que traspassa as vivên­
cias e sem o qual elas não poderíam dar-se. Para a Fenomenologia
pura, a temporalidade c constitutiva do “tempo objetivo c cosmo-
lógico”. Mas na ordem dc seus momentos, que Heidegger chamará
de êJtrarar, a temporalidade não pode ser recuperada pela evidência

8 Id., ibid., § 10, p. 74.


138

constituinte reflexiva do Eu. Essa ordem, a forma das vivências


intencionais em seu fluxo, é uma síntese passiva que à consciência
se impõe. O Eu pode percorrê-la reflexjvamcntc, como o campo
total dc que participa, sem constituí-la, O momento presente é o
dado imediato de uma experiência primordial já articulada e sobre
a qual a evidência intuitiva vem colar-se. Ora, essa articulação
da intencionalidade, como unidade dos existentivos constituintes do
cuidado, e que o cuidado mesmo revela, é o fenômeno original e
radical da temporalidade em Ser e tempo.

3. O tempo originário finito

Voltemos, pois, aos êxtases — o “futuro” (advir), o “passa­


do” (retrovir) e o “presente” (apresentar), em que se fundam,
respectivamente, os membros da estrutura do cuidado, a existen­
cialidade, a facticidade e a queda. Assim como esses componentes
do cuidado, os êxtases não estão justapostos nem ocorrem em
função de algo diferente que os determine. Cada um deles é um
modo da temporalidade, e não podemos descrevê-los senão no seu
enlace recíproco.
A temporalidade não é um decalque interno do tempo externo.
Se ela st recusa a uma descrição em termos de fluxo, tal uma
torrente em que estivéssemos mergulhados e de que os êxtases
formariam os momentos, muito menos cabe falar dela como de um
ente. Da temporalidade, que tampouco ó subjetiva ou objetiva,
só se pode dizer que sc temporalizü (zcitigl sich) cm cada um dos
seus êxtases, E lemporalizar significará então tomar possível, a
partir dc cada êxtase, as modalidades dc existência do Dasein.
A temporalização (Zeitigung) envolve sempre os três êxtases, que
não vêm um depois do tniintq ela se produz em cada um deles e
na relação recíproca de cada um com os outros. Qualquer que
seja o êxtase, opere-se a temporalização pelo “futuro”, como na
existencialidade, pelo “passado”, como na facticidade, pelo “pre­
sente”, como na queda, cada um dos outros também se tempora-
liza, guardando a relação recíproca com os demais, respeitada, po­
rém, a primazia do “futuro”, que garante a estrutura do cuidado.
É o “futuro”, o êxtase do compreender, que possibilita o ser
projetanle do Dasein. Por outras palavras, a temporalização do
podcr-Ser, inerente à existência, tem por base o "futuro”, mas é
determinada “com igual originalidade (glcichursprütigLich)'’ pelo
passado-presente (Gewesen-heit) e pelo “presente" (Gegcnwart).
Já a temporalização da disposição se faz, primariamente, através
139

do ‘■'passado”, que pôc ü Dasein em seu scr-lançado, modificando


os dois outros êxtases. O êxtase que sc temporaliza na vwcdii é
o ‘"presente", cuja modificação nus demais imporia para a carade-
rização da temporalidade como fecho da Analítica,
Acompanhando a lição de Husserl nesse particular, Heidegger
desloca o acento do “presente" para o apresentar (Gcgcnwarlig)d
isto é, para o que se toma presente, O^intcdudo de caráter anto­
lógico, n!l captação pcrcéptiva, exige que o Dasein transcenda os
entes no meio dos quais se encontra e permanece. Em função da
iratiscendincia, que acompanha a projeção, sempre correlativa ao
estar fáciito, é que dirigimos a vista ao mundo em tornp, lidando
com os utensílios c defrontando-nos com objetos ou coisas naturais,
que o saber teórico rematiza. Assim o momento presente não é
um agora desprendido do que sc apresenta cm torno e diante dc
nós, ao alcance de nossa mão, c esse apresentar só í possível pelo
modo de ser fáctico c projetante do Dasein. compreensível atravós
do advir quç vai sendo desse "futuro1' que possibilita o “passado”
e sc torna “presente”. A temporalização do "presente”, que funda
a queda. também temporaliza a envülVencia pelos entes cm que
nos perdemos no mundo circundante, t responde pela sobreposição
da preocupação ao cuidado, no modo publico da conformidade aos
utensílios que o ser-cm-comum assume com a dispersão da existên­
cia e a dissipação do discurso. sob’o dominio da parolagcm e dá
busca do novo.
Dificilmente se poderá manter entre a queda e o “presente”
um laço dc estrita fundação fcnomcnológica. £ o envolvimento
da queda, inseparável do fáctico existir, que permite a compreensão
do “presente” modificado na presença imperativa dos entes, nw-
vendo-se no desfile incessante dos agoras, que marcam o tempo
e absorvem a temporalidade. Entre o êxtase do “presente” e a
queda há mais uma conexão dialética do que fenomenológica.
Modificando o cuidado, o “presente”, que se torna um simples
agora, constitui a temporalidade imprópria. Correlativamente, o
“futuro” muda-se em expectativa fGcwartigcn), e o “passado”, na
carga do pretérito, no que já passou c que se produz como eiquc-
cimeirto (Vergessenhcit), O apresentar c então uma prolongada
soberania do “presente”, indissociável da quedo. Outrossím, essa
mesma temporalidade imprópria seria a tradução global do coti­
diano c do Encobrimento da abertura que o caracteriza ontotogica-
mente. Mas também a temporalidade imprópria, que fixa os mo­
dos inautênticos da existência, encobrindo o ser para a morte e a
decisão, pelos quais □ Dasein volta a si mesmo, recobrando-se em
seu poder-ser, é um uivei de temporalização da temporalidade pró­
pria, em que sc explicita a estrutura do cuidado, Na medida em
140

que esta é a totalidade originária do Dasein, à temporalidade, que


articula a unidade de sua estrutura, é inerente a primazia do “fu­
turo”, graças ao qual ela constitui o fewrjw originário.
Na linha do tempo originário, cm que o "futuro”, que advétn,
c kiri] corrcr-à-frente, o ''passado", por onde a facticidade se tem-
poraliza, dá-se como wrrwmdtf (Wiederiiohlung) de possibilidades,
e o apresentar, por onde se temporaliza a quedo, dá-se conto
pur/o/tre (Augenblick) da decisão. O que separa a temporalidade
própria da imprópria é a fuga absorvente no cotidiano, que ratifica
a íimtudc dç que o Dasein se esquiva, fcchando-sc a si mesmo em
sua M7rdí/ír<fc.
O tempo originário, a temporalidade própria, que abre o
Dasçjn, é finito, c, porque finito, dele surgindo e a ele ultrapas­
sando, assegura a gênese do ser desse ente, c das formas de tempo
que constituem a existência cotidiana. Tanto ern seu aspecto obje­
tivo quanto em seu aspecto subjetivo, o conceito comum dc tempo
depende diretamente das formas temporais geradas pela tempora­
lidade imprópria, que tende á infinitude. Estcndcndo-sc aos entes
intramutidanos, como se deles partisse, através do “presente", a
temporal idade imprópria é denominada intratemporai (innerzcitlich).
È justamente no tempo intratcmporal, datávcl, extensível c
significativo, regido pela preocupação do mundo circundante, que
reaparecem, com a dominância do “presente”, os traços da com­
preensão mediana do Dasein. Extensível como multiplicidade dos
írgoras, que passam sem deter-sc, na dança infindável dos momen­
tos, datávcl pela referencialidade reguladora e comum de um ente-
-à-jnão (o SoE nas comunidades rurais c primitivas, o relógio na
civilização urbana tccnocapitalista) com que nos preocupamos, o
tempo, nesse nível, é descoberto como objeto de preocupação- Preo-
cupamo-nos com o tempo, que serve para anunciar os sucessos, e
que, tornando-se regulador, divide a existência cotidiana em fases
sucessivas, alternadas ou cíclicas. Dessa forma de temporalidade,
que dita e regula a vida, suportando as figurações do nascimento
e da morte, Cronos criador e destruidor, sai também a entificação
dos momentos “alinhados uns em relação aos outros”, nivelados
no conceito de tempo inscrito na Física de Aristóteles, e concomi­
tante à predominância da ousía, como “presente” (Anwesend),
na acepção do ente enquanto natureza única e determinada.
Não somente a temporalidade imanente da consciência pura
em Husscrl, na sucessão infinita de seus flfow, mas também a
durée bergsomann, cntificando o devir na imagem da corrente de
consciência, são derivações da temporalidade própria, do tempo
originário finito, que possibilita igufllinente a conversão do tem­
poral na medida do movimento. Metafisicamente, esse tempo çnti-
141

ficado, que nada delimita, posto que qualquer um dos seus mo­
mentos é pensável como momento de uma sequência sem princí­
pio nem fim — e ao qual, por conseguinte, inere a infinitude —,
terá o seu correspondente substancialista no mundo superior das
idéias: a eternidade, de que é a “imagem movente”., Para a Ana­
lítica, porém, a eternidade e o seu reflexo nas coisas descendem do
fundamento sem fundei do Dasein, que se revela na angústia e
gera a proteção encobridora da facticidade, pela fuga à existência
própria c à morte. A infinitude seria um “artifício da eternidade”,
qvs aliena o Dasein de si mesmo, dc sua cxistcncia própria c finita.

4. A temporalidade e o Eu

O ponto agudo da Analítica, a que antes nos referimos — o


Eu questionado, que se torna instância da questão do ser —, é,
afinal, o ponto crítico de toda Filosofia reflexiva; a temporalidade,
que ratifica a epoché da consciência, revela-se o fenômeno possi-
bilitador do Cwgrto, o seu fundamento oculto, que o próprio Cogito
encobre.
A evidência cartesiana desdobra-se em dois momentos: aquele
em que penso, tomando como evidente o meu pensamento em sua
identidade, e aquele em que essa evidência me identifica. A identi­
dade do pensamento consigo mesmo transforma-se no que eu sou
em mim mesmo como sujeito. Na verdade, o Cogito não é um
puro “eu penso”, mas um “me cogfftrre” 7. Penso, logo sou! Sob a
relação de conseqUíncia, do pensar ao ser, traduz-se uma relação
extensiva do pensamento à existência. Poróm o que permite reali­
zar semelhante passagem, de que resulta a concepção da unidade
substancial do Eu, é, afinal, o tempo.
“Eu sou ou existo, isto é certo, mas por quanto tempo?",
indaga Descartes no curso de sua Segunda meditação. E responde:
“A saber, por lodo o tempo em que penso”.8 Ê o tempo pontual
da evidencia, conquistada a todo instante, que assegura o imediato
conhecimento dc que UNí. Mas o que sou coníorma-s
* a essa pre­
sença (Anwcsenhcil), que permanece c dura enquanto penso, como
ser-à-vista sem matéria, diante da intuição intelectual, O Cegrto,
cm sua identidade com a existência, como res cogitans, temporali-
za-se no “presente”. A verdade desse princípio é inconcussa ou

7 Sobre o me cogitare (pensar-me), ver, adiante, capítulo 14, tópico 14.1,


A vontade de potência.
■' Descmtas, Seconde méditation. In: —. Discours de la méthode suivi de
Méditations métaphysiques. Paris, Flammarion, 1927. p. 75.
142

inabalável, enquanto me penso, e por todo o tempo em que o fizer


o instante da evidencia intelectual exprime a presença dc mim
mim no pensamento. A pergunta dc Descartes sobre o homem,
sobre a sua essência ou flüírftrfúde, encontra resposta, com apoio
nesse fundo temporal em que se realiza o transporte do pensar ao
ser, no sujeito substancial. O que sou é espírito, entendimento ou
razão, “ou, mais precisamente, uma coisa que pensa (res cogitans)”9.
É a temporalização que resguarda a evidência sui generis do
Eu, como origem da constituição ativa do sentido na Fenomeno­
logia husserliana. “O presente é assim a dimensão em que se afir­
ma a constituição do Eu transcendental.” 1011Da temporalização
também descende, pela via cartesiana, a identidade do Eu e do
conceito, como substância viva ou espírito, na Filosofia hegeliana.
Mas a via cartesiana para Hegel passou por Kant. Muito embora
tivesse sido este o primeiro a divisar o Eu, considerado a consciên­
cia que acompanha os conceitos, como entidade paralogística da
razão pura, em que assenta a idéia de alma, objeto da Psicologia
racional, enquanto capítulo da Metafísica especial, não pôde o filó­
sofo da Crítica da razão pura escapar da categoria de substância.
Sendo o Cogito a forma da apercepção transcendental, bastaria
“a unidade universal da consciência de si” para estabelecer, no
fulcro das categorias, a constância de algo permanente. Mais enig­
mático ainda se torna esse “desvio”, quando é certo que Kant
tendia a firmar sobre o tempo, como “afecção pura de si mesmo” u,
através da imaginação transcendental, o vínculo da experiência ao
conhecimento. Trata-se, diria Heidegger, de uma linha perdida da
concepção de Kant, que nos levaria à estrutura essencial da subje­
tividade. Semelhante suposição nada tem de gratuito, quando nos
lembramos do conteúdo extra-empírico do mundo na Crítica da
razão pura, como idéia racional da síntese das condições dos fenô­
menos, que corresponde ao campo da Cosmologia, onde se declara
o “estranho conflito” antinômico da razão consigo mesma. Vere­
mos, num outro capítulo, de que maneira o pensamento heidegge-
riano aproveita as vertentes estancadas da Filosofia crítica, depois
de haver encontrado o fundamento da apercepção transcendental
no nexo do si-mesmo com a temporalidade, através do cuidado.
A relação interior reflexiva (apercepção transcendental), de
que derivam as categorias kantianas, derivaria da temporalidade.
“A temporalidade extática é o que ilumina o aí originariamente”

9 Id., ibid., p. 75.


10 Van Peursen, M. La notion du temps et de l’ego trancendental chez
Husserl. In: Husserl. Paris, Minuit, 1959. p. 204. (Cahiers de Royaumont.)
11 Cf. KPM, § 34. Die Zeit ais reine Selbstaffektion und der Zeitcharakter
des Selbst, p. 172.
143

p. 351)- A luz desse fenômeno çriginário, cm que a Analítica


encontra o seu limite, esgotada a compreensão do Dasein, os exís-
[entivos podem ser repensados c reformuladoi. Como unidade
cx(álica horizontal, que possibilita a estrutura da subjetividade o
ier-no-inundo e a transcendência do Dasein —, o tempo originário
permite refazer ou repetir, em outro nível, 3 Hermenêutica da exis­
tência cotidiana. Mais pma vez. retornaipos aos êrfflJW, que com-
portam esquemas horizontais diversos — o "adiante-dc-si" da
j^dveniêndia, o "eslar-diunle” (wovor) da retroveniência, corres­
pondente ao ser-lançado, e o “em torno” do apresentar, que cons­
tituem “aquilo onde e em que o ente fáctico está essencialmente
aberto” (SZ, p. 365): o seu aí, cuja unidade referencial é o mundo.
Dizer que o Dasein é temporal significa que a estrutura da
subjetividade, do jr-mrjnio, que não exclui o mundo, “horizonte
de realidade indeterminada”, na expressão de Husserl, está fundada
no movimento extático do qual depende o caráter intencional da
consciência, a sua direção para os objetos. No tempo como tem-
poralidadc ultima-se o fenômeno do sentido, co-implicado em todas
as estruturas fenomenológicas explicitadas na Analítica — desde a
significatividade à mundanidade, desde as dimensões da abertura
ao cuidado — que aparecem na órbita da compreensão do ser.
Sentido “é aquilo em que se apóia a compreensibilidade de
algo” (SZ, p. 151). A compreensão do ser, inerente ao Dasein,
desemboca no tempo, e o tempo, como sentido do Dasein, final­
mente explicitando as estruturas existentivas todas, é a possibili­
dade da possibilidade, a condição da existência como poder-ser.12
Dessa forma o tempo originário e a compreensão do ser se reco­
brem. E assim a última etapa da investigação prévia e provisória
completaria o caminho para que se inicie a indagação sobre o ser
em geral, uma vez que o objeto eminente dessa indagação pertence
ao compreender do Dasein existente (cf. SZ, p. 437).

5. Existência e historicidade

Ratificando a epoché da consciência, a temporalidade, limite


extremo da segunda redução, que confirma a idéia de existência,

11 "Le tetnpa, tn effct, iTcM pas sculcment cc quoi (das Worinneii) iom
lei phdqQrnírçeí w prateiseni, te mllieu de louiei fcs ch<wcs ci dc lau * le
*
évêrxntcitu, il eu lusii ct cTaboril cc pnr qvcã (das Wodurch) lout ce qui
eu pcu Étre cl iwus app.araítrc duns son Blre. Ert ec sens, 1c temps «1 Io
possibililí COiilmc Icltç: le poisibic — das Moflfiche — dont parle la Leilfc
íllf LJnijnniiism# à prepo
* de Pcirc. Le leiiipí eal 1c nn>ycn donnc i Icwjt
« qui e*l, d êiíú uíin dc n êirc plvs.” Ruuuct, Henri, fMlrgw cr 1‘wcpd-
ríencf d? paris, Galliraiard, 197S. p. 536.
144

suspende o cerco cnlitativo da substância — a ousía, primeira das


categorias, tanto na ordem do conhecimento quanto na ordem do
tempo, para Aristóteles,
A substância do homem é a existência (cL SZ, p, 112).
Termo de porte negativo, vedando o emprego do homônimo esco-
lástico existentia, pertinente ao scr-à-vista (Vorftandcn), a existên­
cia, rcJati va mente à qual o Dasein se conduz, forma o círculo mais
originário, onde a consciência sc move, e que a temporalidade
extática ilumina. O fora de si em si c para, si mesmo da existência
— a sua abertura — radicaliza, na recíproca implicação dos trés
êxtases que a constituem, a essência do Dasein.
Essa radicalização exprime a temporalidade corretamente in­
terpretada, Pois, se temporal é o Dasein, o tempo finito nâo adere
à sua "natureza", como um acidente a uma determinação essencial.
Em vez dc passar por nós como corrente vivida em que nos banha­
mos, o tempo originário, verbo e não substantivo, é o que nós
mesmos somos. O Dasein existe temporalizando-sc. Sem a tem­
poralização, nenhum Dasein seria, e, sem o Dasein, “o mundo tam­
pouco citaria aí” (SZ, p. 3<55)_ Do tempo e do mundo, que não
são entes, só podemos falar utilizando formas de ação verbal, Do
primeiro dissemos que sc temporaliza; do segundo cabería dizer que
"jamais é, mas acontece como mundo (Weltet)" (B'G, p. 44),
Com essas expressões tautológicas intransitivas, Heidegger rejeita a
atribuição predicativa, para mostrar que ambos, tempo c mundo,
excedem o domínio enlitativo.
Temporalizando-se em relação ao fim, entre nascimento e
morte, sem deixar para trás de si, como uma esteira de momentos
fugazes, sccrctamentc revividos na memória, aquilo que foi, o Dasein
não preenche as fases dc um trajeto, mas prolonga-se a si mesmo
(strekt sieh sclbst), Esse movimento de sua existência, enquanto
contínuo prolongar-se, impõe-lhe a estrutura do otwi/mr (Gcschc-
hen), de que deriva a histariddade (Geschichtlichkeit),
Temporal no fundo de seu ser, o Dasein é histórico. E isso
devemos entender no sentido de que a sua constituição temporal
possibilita tanto a idéia dos fatos históricos, o curso dos sucessos
que fazem a história (Geschichte), quanto o conhecimento do pas­
sado pela historiografia (Historie).13 Assim a historicidade do
Dasein “se apresenta no fundo somente como uma elaboração mais
concreta da temporalidade” (SZ, p. 382). Trata-se de aproveitar o

,13 É a primeira ambigiiidade do termo “História”, que significa tanto a


“realidade histórica” (Geschichte) quanto a possível ciência dessa realidade
(HbtOric). Cf. SZ, p. 378.
145

resultado anterior da investigação, esttndendo-o ao que costumamos


chamar de "realidade histórica” e à ciência que dela se ocupa.
Em geral concebemos a “realidade histórica” sob a perspectiva
do tempo vulgar, à semelhança de um processo gue corre do passado
para o presente c do presente para o futuro e de què somos agentes
c pacientes, O amanhã é o ponto de chegada, o ontem, o de
p&rttda» e o hoje, a trài^içâd alongávcl’ aonde coiifluem os aconte­
cimentos pretéritos e as causas produtoras dos fatos novos, os quais
serão históricos quando ingressarem na dimensão do passado. As
causas produtoras ou procedem de atos individuais, que geram
conseqüências de alcance coletivo, ou derivam dos fatos da vida
coletiva, que determinam os atos individuais. Em ambos os casos,
impõe-se a imagem de uma exteriorização episódica da ação hu­
mana, ora segundo fins voluntariamente concebidos, ora segundo
condições estranhas à nossa vontade. Do homem, como sujeito
desse processo, tanto se podería dizer que é ele quem faz a história
quanto que é a história quem o faz. A noção de Dasein, já sufi­
cientemente elaborada, permitiría reformular essa idéia de “realidade
histórica”, do ponto de vista da dimensão do passado que a carac­
teriza.
Os fatos históricos, que não estão diante mas atrás de nós,
pertenceríam ao passado, de onde «provêm. Decisões políticas ou
econômicas, posicionamentos religiosos, movimentos no seio de
uma classe social, declarações de guerra, fundação ou destruição de
cidades, ingressam na categoria de fatos históricos, com as circuns­
tâncias que os acompanharam, as particularidades de lugar e de
tempo, a gesta de seus protagonistas, sustentada por atos singulares
e individuais ou coletivos, quando reconhecidos como acontecimen­
tos significativos pela mesma provetii&ncia do passado que os tomou
inefetivos. O que foi oulrors vivo, talvez lancinante, enquanto pos­
sibilidade, no empenho conflituoso dc uma decisão, assume, depois,
o definido aspecto dc fato consumado, com os seus antecedentes
em outros acontecimentos significativos, com os quais forma a
continuidade de um episódio e de uma série causai. Reconhecer o
passado como dimensão histórica implica o reconhecimento de uma
significação dos sucessos apreendida no momento em que os recom­
pomos, a qual se entrelaça ao presente numa determinada situação
fáctica do Dasein, pela compreensão que tem de si mesmo e do
mundo, O compreender do Dasein, no modo dc um projeto,
antecipatório de “dados" e “fatos”, como poder-ser que transcende
as coisas cm direção ao mundo, corresponde, já o sabemos, ao
advir, primeiro dos três êxtases da temporalidade. Nesta, o "pas­
sado", sempre pretérito imperfeito, passado-presente da rcírove-
rtfftidn, que surge do futuro emitindo dc si o presente, funda a
146

facticidade. Na medida em que o Dasein se projeta, transcendendo


os entes, também põe-se em seu ser-lançado fáctico. Sob esse arco
extático, o que sucede c passa é antes uma possibilidade, continuada
no prolongar-sc da existência.
Assim os acontecimentos, com a significação que lhes empresta
relevância histórica, não são fatos exteriores a nós. Se o fossem
como poderíam os filósofos da História insistir na idéia da ptrdm
ração de um sentido ou de uma razão, tentando reconstruir o
traçado da humana aventura, cm suas etapas, propensões, linhas dc
força ou eixos diretivos? Se o fossem, como podería o historió-
grafo encontrar uma nova senda para o "passado”, atravís dos
acontecimentos dc sua própria época, diante dos quais toma posição
e interpreta o que já ocorreu? “O que é somente passado, não
tem ‘História’14, mesmo antes de haver passado. O que não cessou
de ser, ao contrário, é histórico”, dirá Heidegger em escrito da
segunda fase.
A historicidade, elaborada pela obra de 1927, é apenas a idéia
da essência radicalmente temporal do Dasein. O tempo não nos
atravessa como o rio da imagem tradicionalizada do fragmento de
Heráclito. Somos nós mesmos esse movimento extático da tem­
poralização. E por isso não estamos dentro da História. O conce­
bê-la como um processo que nos faz tanto quanto a concepção
inversa de que a fazemos, deriva da temporalidade imprópria, em
que prepondera o êxtase do "presente” ou do apresentar. Nessa
escala do encadea mento cronológico dos sucessos no mundo cir­
cundante, que se produzem regulando o curso fugaz e extensível
da existência cotidiana, o histórico é o intratemporal, que adquire
a exterioridade e a consistência das coisas reais. Quando, porém,
Heidegger diz que o Dasein é histórico por ser temporal no fundo
de si mesmo, ele desqualifica a história como realidade dentro do
mundo, para qualificá-la, mais radicaimentc ainda, enquanto exis­
tência, no plano do wr-no-inundo e dc seu poder-ser. Desse ponto
de vista, cm que a continuidade do “passado" no “presente" deixa
de constituir um enigma, aclarada pela situação fáctica que nos
expõe a algo assim como acontecimentos e que vincula o scr-no-
-mundo, que é também ser-em-comum, a tradições e a ciclos gera-
cionais, a historicidade, fundada na abertura extática, recobra o
permanente devir da existência. Com o mundo em que se projeta,
a existência é, a cada momento, aquilo em que pôde tornar-se.
O propriamente histórico não coincide, pois, com o acontecido,
e sim com a possibilidade do acontecer, remetendo-nos, de cada vez,

14 As nspat são nossas. Heidegger escreve Geschick em vez de Geschlchte,


e íercMcÀifch cm vez de geschichtlich.
147

■t existência cm seu surto projetivo c, consequentemente, à linha mais


èxirttft® ^0 cuidado: a decisão resoluta do que nós assumimos, no
.j^mdono dc nós mesmos, como ser-no-muttdo, O processo da '‘His­
tória mundial”, que encadeia acontecimentos, exsurge ao longo dessa
linha, que articula o sentido, a significação de todo .suceder. Deci­
dindo como scr-nomundo, c, portanto, numa situação determinada
__ “na e com a sua geração.” (SZ, p. 384-5) o Dasein rompe
o envolvimento do cotidiano e transcende o pontua! agora no üij-
tante (Augenblick) concentrado da decisão, aberta para o futuro,
que retoma possibilidades do passado (Wiederhohlung). Quando
isso acontece, acontece também o histórico (geschichtlich), enquan­
to potência que entrega o homem à sua destinação (Geschick).15
A história, como processo de mudança, está condicionada por um
acontecer histórico, que nada mais é do que a temporalidade na
forma própria ou autêntica.16
Já se pode vislumbrar na temporalidade ou historicidade au­
têntica, como sentido do ser humano, o corte ontológico que
Heidegger efetua na história. Se o que está em jogo na conduta
do Dasein é o ser, a historicidade autêntica remonta a essa mesma
fonte, que irriga a História mundial e detém o manancial subterrâneo
da destinação do homem. 17 Mas pode-se igualmente antever que
essa destinação, na perspectiva do *tempo originário finito, jamais
constitui uma totalização, um processo cerrado em torno de si
mesmo. Por isso Ser e tempo conclui, significativamente, o exame
da temporalidade por uma contrastação com a idéia de tempo em
Hegel, que é parte culminante do confronto de Heidegger com o

15 Em sua finitude, como ser para a morte, o Dasein é destino individual


(Schicksal). “Como ser-em-comum, existindo com os outros, o seu acontecer
é um acontecer em comum (Mitgeschehen) e constituído como destinação
(Geschick). Com esse termo designamos o acontecer da comunidade (Ge-
meinschaft), do povo” (SZ, p. 384). Traduzimos Geschick por destinação,
antecipando o entendimento da segunda fase, segundo o qual o ser é o ele­
mento histórico resolutivo. Nesse sentido o histórico (geschichtlich) é desti-
nativo (geschicklich.) Atente-se para a dança de palavras — paronomástica
—, irreproduzível em nossa língua.
18 O destino (Schicksal), de que depende o constituir-se de uma tradição,
seria ontologicamente prioritário relativamente à destinação (Geschick). “Com
a tradição funda-se a destinação, pela qual compreendemos o acontecer do
Dasein (Geschehen des Daseins) no ser-em-comum com os outros” (SZ,
p. 386).
17 Como histórico (geschichtlich) não se confunde com o factual, marcar-se-á
a distinção da historicidade autêntica, depois assimilada à História do ser —
esse manancial subterrâneo da “realidade histórica” e da Historiografia —,
empregando-se os substantivos hh‘orinlidade e historiai (reserva dos “possí­
veis” históricos), a partir do capítulo 12.
148

filósofo da Fenomenologia do espírito, que pensou a história cotno


processo de totalixação da consciência e do saber.
O sistema hcgcliano tem a sua grande cúpula de acabamento
na concordância de dois grandes processos, o da História da Filo­
sofia c o da Filosofia da História, o primeiro realizando-se na
universalidade substancial do pensamento, e o segundo realizando
essa universalidade na ação exterior dos indivíduos, por meio de
seus interesses c do espírito dos povos. Na História da Filosofia, o
espírito se desenvolve em seu próprio elemento, que é o conceito;
na Filosofia da História, desenvolve-se à custa do elemento exterior
c estranho ao etpbito, que a “astúcia da razão” ultrapassa sob as
formas da universalidade concreta, através das quais progride a
consciência da liberdade. O que separaria uma e outra. História
da Filosofia c Filosofia da História, afinal unidas na plenitude do
sistema, com forma dc saber total e totalizado, é o tempo mesmo,
que liga a generalidade do conceito ao universal concreto da cons­
ciência cm seu progresso. Hegel afirma que o espírito cai no tempo.
"O tempo é o fator negativo no sensível", escreve em sua História
da Filosofia, Dessa negação do espírito infinito, que se aliena, e
de que o tempo c o mediador, resultaria a História universal como
processo dialético. "O 'espírito’ não cai primeiramente no tempo”,
retruca Heidegger, “mas exísfe como temporalização originária da
temporalidade" (SZ, p. 436).
A Hermenêutica dc Dillbey não repensou o tempo, permane­
cendo na dtcotonúa causalista entre a compreensão nas ciências
históricas e a explicação nas ciências da Natureza. Dai haver
incorrido num historicismo singular, que apela dc um lado para
os fatores causais e dc outro para a empatia do indivíduo, que é
sujeito do conhecimento histórico, capaz dc adcntrar-sc nas conexões
culturais de outras épocas, como matéria de vivências psíquicas,
porque compreende a vida. Ora, essa compreensão, que já c
histórica, está inoculada na Historiografia, cujo estatuto científico
depende da historicidade.
As tentativas de fundamentação da Historiografia — da ciência
da História — sempre pressupõem, com base num limiar interpreta-
livo (político, econômico etc.), de que decorre uma prática dc in­
vestigação (pesquisa de documentos, inclusive a crítica das fontes),
o nexo entre o "presente" c o “passado”, um abrindo-se para o
outro, e em cuja interseção assenta a perspectiva de quem investiga.
Ê por esse motivo que a conecituação da Historiografia não pode
dispensar cxprcssòes que consignam a existência dc um elemento
aprioristico ordenador ou sintético: o reconhecimento do "passado”
antes do conhecimento dos fatos, e que um neokantiano, Ernst
Cassirer, transpõe à forma da experiência do sujeito voltado para
149

. mesmo. ”A História Dão ê um conhecimento de fatos ou de


contccimcntos externos, mas uma forma dc auioconhecimento.” * 18
Uma nova compreensão do passado, afirma ainda Cassincr, "pro­
pcuciona so mesmo tempo uma nova prospctção do futuro, que,
norsuav tz, converte-se num impulso da vida intelectual e moral”. 18
Mas de onde vem a nova compreensão do passado? E não
tiuscrá diferentes formas dc compreendê-lo e dê relacionarmo-nos
CL)rii ele, dc tal maneira que a Historiografia, sempre rciiítcável,
como uma sobreposição fie perspectivas; ao longo do wntnruuM
cxiítieo temporal-esptcial do Dasein, c, antes dc iudo, Afctdvrói,
cü|tquistando 05 seus objetos à custa da projeção do scr-no-mundo,
que os torna acessíveis à medida que se tempo laliza? A todos os
objetos precede “a possibilidade do que foi facticamcnlc existente”
(ÍZ, P' 395) e a que o historiador se retrai quando consegue repe­
li-la. Ptla sua historteidadç, a Historiografia nunca é neutra como
saber teórico, e somente pode ser a "ciência do passado” porque
afeta ao futuro, através da 'Silenciosa força do possível” (SZ,
p. 394) que urge sobre o presente.

•• Oxsiuer, Ernst. Antropologia filosófica [A study on man]. Traducción de


tujenio Imaz. México, Fondo de Cultura Econômica. 1956. p. 265.
18 Id., ibid., p. 248.
Terceira Parte
DO TEMPO AO SER
X

A ONTOLOGIA FUNDAMENTAL

De Nfll i preciso ntporlar a txtensào do caminho,


pois cada momento / rtflptMííris, de outro ? preciso parar
em Cadil momento t demorár-te nctc. pois cada tjiral é
em si mesmo uma figura, umtr totalidade individual, . .
Hegel. Fenomenologia do espírito. Prefácio.

1. A finitude do Dasein

O extenso caminho da Analítica, em três etapas — do mundo


circundante ao cuidado, do cuidado ao ser total e próprio e deste
à temporalidade (cada uma das quais, recebendo confirmação re­
gressiva da que a sucede, abrange um momento do processo intcr-
prclativo) —, é, como método, homólogo ao movimento de libe­
ração cio ser do Dasein, que se cumpre por seu intermédio, N'o
curso de sucessivas tematizações, contra a tendência do Dasein ao
encobrimento, a Analítica explicita, de fenômeno a fenômeno, atra­
vés de instâncias ônticas adequadas, as estruturas constitutivas do
scr-no-mutido, dc que extrai, finalmente, o elemento onlológico la­
tente, a temporalidade, divisada, a princípio, apenas como hori­
zonte de toda compreensão do scr. Assim, por um lado, a in­
vestigação ontológica está desde o começo “toda iluminada, ainda
que crepuscularmente, pela idéia de existência”, que a impulsiona,
c, par outro, recebe da temporalidade, que a possibilita, c onde sc
esgota o mostrar-se do Dasein por si mesmo, o seu definitivo título
de validade metodológica. A direção toializanlc c o graduai de­
senvolvimento que a caracteriza, assemelham-na às passadas pro-
gressivo-regressivas da dialética hegeliana, que avança, conforme
153

propõe a Ciência da Làgica„ retrocedendo ao fundamento, ao ori­


ginário c ao verdadeiro.1
,lA constituição ontológico-existentiva da totalidade do Dasein
icin o sen fundamento na temporalidade" (SZf p. 437). Da exis­
tência à temporalidade c da temporalidade ú existência, eis o giro
em círculo da análise, que regressa ao princípio. Mas, ao contrá­
rio da dialética hegelianu, esse giro não se produz como progresso
do conceito no pcnsanfettfo. *A temporalidade não é o fundamento
conceituai mente pasto pela reflexão, an cabo de mediações suces­
siva» cm que a razão se totaliza; çla é o "fundo" da compreensão
prévia do Dasein, pressuposto no começo e liberado no final da
interpretação, completando a figura do circulo hermenêutico den­
tro do qual o método opera. O ctrcufw.t m probandurn ent que
esse caminho incorre, do ponto dc vista lógico, é absorvido no
círculo ontológico que o circunscreve e que impõe à investigação,
de acordo com a compreensão do ser, um percurso circular.
O tempo originário, como fundamento, torna possível a com­
preensão do ser. É nele que assenta o princípio “genealógico" do
cmiheelmcnEO historicamente constituído das Ontologias. Por isso,
completada com a temporalidade, em que as estruturas existentivas
são abrangidas num novo e definitivo nível de interpretação, a
Analítica do Dasein converte-se numa Ontologia fundamental, isto
é, numa Ontologia que recorre ao fundamento — o tempo originá­
rio, princípio das Ontologias. Ora. o tempo originário nos devolve
à existência, que é a essência dc um ente que se conduz relativa­
mente ao ser, compreendendo-o sempre de certa maneira. Daí o
caráter ôntico-ontológico do Dasein: a compreensão do ser deter­
mina-o como ente. E daí também o caráter derivado das Ontologias,
porquanto na compreensão pré-ontológica que constitui o ser desse
ente, e que a Analítica explicita, está a gênese do conhecimento
ontológico, ou seja, de todo conhecimento ostentado pela “ciência
do ser”, pela Metaphysica generalis.
A Ontologia fundamental se destinaria a operar a redução de
todo conhecimento ontológico — da Ontologia dos gregos à Meta­
física moderna, passando pela Filosofia escolástica, e, inclusive,
da investigação “dos entes que não têm a forma do Dasein” (SZ,
p. 37) — à condição temporal ou histórica de sua possibilidade.
Além disso, realizando-se como Fenomenologia hermenêutica, que
interpreta o Dasein, a Ontologia fundamental firma na temporali-

1 Cf. Hegel, F. Ciência de la Lógica', la doctrina dei ser. Traducción de


Augusta y Rodolfo Mondolfo. Prólogo de Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires,
Hachette, 1956. Livro I. Original alemão.
154

dade, como fundamento ou princípio do ser, o nexo hermenêutico


originário de toda possível interpretação.
Uma vez mais nos defrontamos com a palavra originário —
na acepção fenomenológica daquilo que sc manifesta ou se mostra
numa experiência pré-lcóríca, de que um certo conhecimento teórico
deriva. Será preciso, daqui por diante, conjugar essa acepção com
a de provenitnda, dc irrupção temporal, de surto do que trans­
corre como inderivado, rctroagindn a uma origem persistente ou
perdurávcl nas formas derivadas, reclamada pela historicidade. E
será preciso ainda, sob a ressalva das inevitáveis oscilações dc
um termo ambíguo, no entanto dc grande peso no pensamento
hcidcggeriano da segunda fase, assinalar que a origem, também
phiralizada pelo filósofo — as origens como nascentes, remetendo
a um espaço cultural determinado, o mundo grego, com o seu
referencial cronológico —, não indica um começo absoluto, uma
espécie de momento primaveril na borda mítica do tempo, sus­
penso, antes dc sé turbar no processo da História mundial, à pura
atualidade instantânea dc sua dominância.
Não há origem senão através de traços remanescentes, perdurá-
veis como tradição ou pela tradição carreados c encobertos, mas
reiteráveis no presente, enquanto guardam a fecunda possibilidade
do que foi, c que, ao produzircm-sc oulrora, na existência trans-
corrente do Dasein, já continham uma destinação futura. Assim a
interpretação originária do scr, de que a temporalidade é o funda­
mento, só pode sobrevir ao pensamento arrancada à tradição em
que sc depositou e de que forma o sccrcto c latejante veio onto­
lógico, capaz de rcabrir-sc, por obra dc pergunta inquisitiva, na
transeorréncia histórica do Dasein, como uma origem que nele re-
desponta, memória dc sua proveniíncia, resgatada ao esquecimento,
c lembrada pela destinação mesma que cumulou c que possibilita □
indagação atual c presente. A pergunta sobre i> ser — a questão
cm pós do ser — é ela mesma uma pergunta histórica c que se faz
história. O circulo ontológico é também um círculo histórico; a
compreensão prévia do Dasein, uma vez liberada, tgualmcilte libera
o fundo da história, B, sc bem que na fase da Ontologia funda­
mental o pensamento hcidcggeriano ainda não avance sobre o plano
da História mundial — apesar do dclineamenlo dos suportes on-
tológicos da gesta humana, de sua historicidade própria, por opo­
sição ao universalismo historicista —■, já então se pode, cm nome
desse fundo liberado, suspender a vigência da História da Filosofia,
não só para colocá-la em causa enquanto Historiografia, sujeita ao
limiar itucrprctativo de cada época, c, portanto, condicionada à
temporalização que ela abstrai, como também para argiiir a tra­
dição que a gerou, nela transportada c encoberta: a citada doj
155

primeiros princípios e das primeiras causas, abrangendo o estudo


das categorias, e em que se fixou, sob o primado do ente enquanto
ente, fechando a polissemia do ser, a concepção aristotélica.
Essa concepção que se detém no ser do ente — a ousía, natu-
rtza dclcrminada — na medida cm que salta a compreensão inde-
icrminadu do ser que a possibilitou, atendo-sc A primeira das quatro
acepções do ente — é,nada mais, nada,menos-do que uma intçrpre-
tctção histórica do fundamento ou do princípio. que historicamente
je c»nwJK>ii. Do ponto dc vista da Ontologia fundamental, ela
reverte, contudo, ao mesmo fundamento temporal ou histórico — à
mesma origem da compreensão do ser no Dasein, onde se pode
buscar as condições de possibilidade do conhecimento ontológico.
Da Antiguidade à Escolástica e da Escolástica a Descartes, a
interpretação do ser como substância, a oujfa ou porouifa —
presença ou o que é presente (Anwesenheit), como significação
preliminar do ser do ente, êxtase do tempo — assinala, ao cabo
da análise do Dasein, a interferência da temporalidade, c autoriza,
“sem que se queira sepultar o passado no nada”, a suspender a
tradição cristalizada, a “destruir” a História da Ontologia “em
busca das experiências originais em que foram alcançadas as pri­
meiras determinações do ser, posteriormente diretivas” (SZ, p. 22).
Não há Ontologia fora da historicidade, mas não há histori­
cidade sem a transcendência do Dasein. “Como ser-no-mundo, o
Dasein transcende-ultrapassa o ente na direção do ser.” O Nada,
cuja pedra de toque é a angústia, sobrevêm com o recuo do ente
em sua totalidade, nesse ultrapassamento, como um acontecimento
que desnuda a liberdade — o poder-ser livre que se exprime no
cuidado. O acontecimento da nadificação ensinou-nos, de ime­
diato, a finitude do Dasein (capítulo VII, tópico 4, deste livro),
cujos limites, as dimensões da abertura, convergem na compreensão
prévia do ser, que a temporalidade confirma.
O compreender tem a estrutura projetiva de um lançar-se
(entwerfen) para diante; o poder-ser compreensor projeta-se sobre
possibilidades a partir de um encontrar-se lançado (Geworfenheit)
— do abandono do Dasein em si mesmo em meio ao ente onde
está situado, e que o investe sempre numa tonalidade afetiva que
o dispõe com relação ao mundo. A projeção de possibilidades não
poderia ocorrer independentemente da possibilidade preliminar da
situação fáctica. O projeto, dirá Heidegger, não é a performance
do homem. E muito menos pode considerar-se a disposição um
estado passageiro decorrente da eventual afecção das coisas sobre
nós. Ao contrário, somente porque nos encontramos no meio do
ente, e por ele investidos, ora nesta, ora naquela disposição, podem
as coisas afetar-nos, segundo a capacidade receptiva que carac-
156

tcriza a sensibilidade. As variações da sensibilidade individual, por


estímulos interiores ou locais, estão preordenadas a determinadas
tonalidades afetivas, a sentimentos dominantes (Stimmungcn.), a
mwds, que já traduzem globahnente a experiência do mundo.
Assim o compreender, como estrutura projetiva, que investe
o ente, e a disposição., como investimento da situação fáctica, cm
meio à totalidade do ente, constituem ambos a possibilidade lan­
çada (gcworíen mõglichkeil) do ser-no-mundo que a angústia revela,
em meio ao ente que refugimos, caídos no circuito protetor e
familiar da lida cotidiana, absorvidos nas ações do dia-n-dia, que
instrumentalizam o Dasein em função das coisas com que se preo­
cupa c do ser-cm-cornum no qual se espelha. Essas três dimensões
da abertura — a facticídade, a existencial idade c a queda — só
se esgotam, como modos de temporalização, enquanto movimento
extático que abre, iluminação do aí, pelo quai o Dasein é "st-
-mesmo1', nos êxtases que o dirigem ao mundo desde que existe.
“O mundo há dc estar aberto já extaticamente, para que sc possam
confrontar entes a partir dele” (SZ, p. 366). Õ confronto com os
entes demanda a prévia relação com o mundo que estrutura a
sttbjciividade, cm vez dc scr por ela estruturado. Ê nessa prévia
relação estruturante que consiste a transcendência do Dasein.
A temporalização, que possibilita a estrutura da subjetividade,
e consequentemente a transcendência do Dasein, c o tempo originá­
rio finito, que elucida fenomenologicamente o fundamento da exis­
tência desse ente, cuja essência provém da compreensão do ser.
Incontornávcl, essa compreensão, que nos coloca no circuito onto-
lógico que vai do ente ao ser — também movimento circular dc
temporalidade extática finita —, ó a essência íntima dc nossa
finitude que sc exprime no cuidado. A finitude, que descarta o
aõjcdufó e □ lotalizaçào superadora do fim por meio do intelecto
— a imortalidade spinozista do conhecimento e a infinitude da
verdade rcincorporada pela razão hegcliana —, também descarta
o poder dc principiar c de começar absoluta mente, que o idealismo
atribuiu ao sujeito humano. Quanto o homem conhece e faz, tem
sempre como prelúdio a compreensão do scr inerente ao seu Dasein
cuidadoso, que recebe do tempo a possibilidade dc fazer e dc
conhecer.
Afirmar que o Dasein é finito significa qnc cte “não c no
fundo dono dc st mesmo” (im Grundc nicht mãchtig), c afirmar
que o homem se determina pelo seu Dasein, significa que somente
a compreensão do scr, raiz da sua finitude, precedendo qualquer
posição antropológica, mostra quem somos. “Mais originário do
que o homem, é a finitude do Dasein nele”, diz Heidegger em
JÇflnf e o problema da Metafísica-
157

2. A revolução heideggeriana de Kant

A tempfiralidado encampa, afinal, os existeutivos todos, ofe­


receu do-nos, como resultado da Analítica, numa Ontologia funda-
tníntul, a última escala hermenêutica para a propositura da ques-
vi'j do scr cm geral, já suficientcmcntc elaborada, quando então
PLideriamos reiterá-la e rctirí-lado esquecimento. "Mais do que um
conceito paralelo à temporalidade, â finitude é a perspectiva da
Analítica, para onde convergem as linhas temáticas elaboradas du-
ranle o curso da investigação. Como o lema resolutivo que se
impõe no úllimo movimento de uma sonata, rearticulando, após
sucessivas aparições incompletas, os temas anteriores que o pre-
nararam. a finitude, conceito-limite cm que as três Unhas de aná­
lise do scr-no-nnmdo (a da mundatildade, do Eu cotidiano c dos
çxistentivos fundamentais) sc resolvem na questão do ser, religa a
essência do homem à essência do Dasein — o que vale dizer que
esse mesmo couccito-limile desprende a essência do homem da
órbita do sujeito, que gira cm torno das noções estritas da consciên­
cia c do Eu. ‘"Mais originário do que o homem é a finitude do
Dasein nele"; finitude do ente que nós mesmos somos, porquanto
as representações c os sentimentos participam do scr-na-mundo que
a consciência não esgota. O Eu, identidade pessoal elaborada entre
o princípio c o fim da existência transcbrnmte, não cria o swnesmo
que ele ainda não t c cm que deve tornar-se. Dasein í o homem,
c é também, por força da compreensão prévia c indeterminada do
$er cm que sc move e que o constitui, mais do que o homem
concebido como sujeito, seja na acepção antiga dc cjpJrjío [naus),
seja na acepçào moderna de sujeito transcendental, a quç se vin­
cula. Segundo afirmamos antes, o Dasein também probleinaliza
esse mesmo sujeito transcendental do conhecimento, que resume a
revolução copemicana da Critica cía ratifo pura. Podemos ver
agora onde essa problematização termina.
Ser-no-mundo, o sujeito transcendental c inseparável da tem-
poralização do tempo originário finito, que possibilita tanto a estru­
tura da subjetividade quanto a compreensão do scr inerente ao
Dasein, implicada na correlação dó sujeito e do objeto, conforma­
dora da Teoria do Conhecimento. Eme o sujeito c ente o objeto,
ambos, como termos da relação cognoscitivíi, têm na noção inde­
terminada e in aclarada do scr o seu pressuposto. Por conseguinte,
a relação com o ente em sua totalidade antcclpa-se a qualquer
espécie de posição ou de conduta, inclusive a do conhecimento
teórico propriamente dito, Ser precede a conhecer, c a Teoria da
Conhecimento, que açambarcou a herança crítica kantiana, recai
no círculo ôntico-ontológico do Dasein.
158

Entretanto a ousadia intelectual de Heidegger vai além de uma


simples recuperação, para a Ontologia clássica, enquanto ciência do
ser, do caráter gnoseológico do sujeito transcendental da Filosofia
moderna. Sem incidir num contramovimcnto à '‘revolução coper-
nicana". longe do jogo refutatório antitético de doutrina contra
doutrina, dc que se alimenta a História da Filosofia, Heidegger
descobre, socavando os alicerces da Crítica da razão pura, ao sinal
dos afloramentos da íinitude na superfície do terreno antropológico
devassado por Kant, os estratos profundos sobre os quais o filó­
sofo de Konigsberg construiu, guiado pelo problema do alcance
cognoscitivo dos juízos sintéticos « prrorr, o edifício ostensivo das
categorias. Primeiro afloramento: o limiar receptivo du sensibilidade
(só há intuição do objeto que nos í dado c pela maneira como nos
é dado). Segundo afloramento; a espontaneidade do ítjfcrirfímertfo
na produção dc conceitos, por meio dos quais pensamos os objetos,
determinando-os dc certo modo sempre pelo que são em geral.
Enquanto a sensibilidade é imediata, o entendimento procede por
rodeios. Sem os conceitos, as intuições são cegas, e sem a intuição
os conceitos são vazios. - O conhecimento equivale a uma intuição
pensante ou a um pensamento intuitivo. Mas dos dois afloramentos,
seja pelo lado da intuição, seja peto dos conceitos, provém o
caráter rcprcscntacional do conhecimento, que se concretiza no
juízo, "representação (conceito) dc uma representação (intui’
ção)”’.
Embora Kant tenha assinalado o teor primariamenle intuitivo
do ato de conhecer, o traço de limitação congênita deste, também
estampado no rodeio discursivo dos conceitos, decorre da mútua
ligação entre a sensibilidade c o entendimento, dislingiúdos por suas
posições irreversíveis, em face da idéia de um conhecimento divino
infinito. Em termos humanos, o conhecimento se tornaria infinito
sc o entendimento pudesse intuir e os sentidos fossem aptos a
pensar. Criar c conhecer seriam aspectos indiscemíveis do mesmo
alo, a intuição produzindo o ente captado “em sua totalidade, com
um» transparência absoluta" (Â'P.W, p. 31). A intuição (Anschau-
ung) não-criadora é, porém, o traço da limitação congênita do
conhecimento humano, que distingue a sua essência finita como
um representar (Vorstellen), dependente da afccção da sensibili­
dade c da elaboração conceptua) espontânea do entendimento. Uma
e outro condizem com a nossa situação cm meio ao ente. O

2 Cf. Kant, E. Werke; Kritik der reinen Vernunft. Berlin, Georg Reimer,
1911. v. 4, p. 48.
8 "O juíw é. pois, o conhecimento imediato de um objeto (Gegenstand),
portanto, a rcprcwnlação de uma representação (die Vontcltung einer Vors-
tctlun$) desse objeto."' Id., íbid-, p. 58.
159

dar-sc do objeto pressupõe que o ente se anuncia, c que a nós


se propõe, como tal ou qual, idêntico para todos, Conhecer dc
forma rcprescntacional significa que nos defrontamos com entes, e
que estes sc deixam determinar pelo pensamento à medida que
aparecem ou sc apresentam a nós. Representação e fenômeno são
indesligáveis. O fenômeno c o ente que sc aprcScnt» como objeto
conhecido, nas condições da existência finita.
Mas, se captamos ò.entc em meio ào qual estamos, determi-
nando-o como objeto pelo tanto quanto ele a nós
se oferece afetando a sensibilidade, fazemo-lo porque o transpas-
samos ou transcendemos, dc antemão, pela compreensão do ser
que nos constitui.
Um ser finito capar, de conhecer não pode conduzir-se com rela­
ção a um ente que não é de mesmo, e que não criou, senão
quando esse mesmo ente-á-vista (Vortandcn Seicndc) já pode vir
por si ao *cu encontre (von sich aia bcgegcn kam) (KHAtf,
p, Ó9-7O}.

A esse oferecer-se do ente que se nos antepõe — que sc põe ã


nossa frente já nos investindo, e que sempre nos dispõe numa
tonalidade afetiva — corresponde, de nossa parle, um direcionar-se
para ele, um projetar-se antecipalórip confrontando-o, que possibi­
lita representá-lo e assim conhecê-lo .como objeto.
Os çxislcntivos — a dírpzzriçõez, acordando-nos com o mundo,
dispondo-nos a que sejamos afetados pelos objetos, e o compreender,
que tem o caráter de projeto — afloram aqui, respectivamente, na
sensibilidade c no entendimento. providos de princípios n priori,
transcendentais, independentes da experiência no sentido estrito, e
que a ela, entretanto, se aplicam condicioiiando-lhc a possibilidade.
Porém, desse ângulo, o que Kant denominou de conhecimento puro,
transcendental, ligando o "diverso da intuição”, oriundo do tempo
e do espaço — as condições a priori da receptividade do nosso
espirito —, à função dc síntese das categorias, é conhecimento
ontológico. Consequentemente, a possibilidade de representação, ou
seja, a possibilidade dc conhecimento do fenômeno implica a prívia
compreensão do ser (ontológico), que permite dirigir-nos ao ente
(ôniico). ”Sc o conhecimento finito í possível, tem que fundar-se
num conhecer do ser do ente, anterior à atitude receptiva” (KPM,
p. 42). Nas categorias, criadas ou produzidas pelo enfMí/íffHMtro,
deiineia-se "prccisamentc o ser conhecido do ente"; a síntese do
divirja da intuição c da unidade do conceito que cias operam ó
determinativa dos objetos, “quer dizer, do ente enquanto se encon­
tra com um ser finito” (KPM, p. 83).
160

Ouíindo Kant atribui espontaneidade ao entendimento, ele o


faz cm virtude de que a esse poder dc conhecimento não sensível
se deve a determinação, por meio das categorias, do que é ofcjeto
ewi jera/. Antes do aporte dos conteúdos empíricos da intuição, a
que cias tem de aplicar-se, as categorias traçam o domínio da
objetividade, permitindo conhecer algo como algo, a priori, inde-
pendentemciitc de ioda experiência.
Chamo transcendental a tod** conhecimento que cm geral ocupa-se
menos dos objetos do que dos nossos conceito
* d priori dos objetos.
A um sistema dc conceitos desse gênero chamaria de Filosofia
transcendental.4

Conhecer algo como algo é julgar. E para a Filosofia transcendental,


o conhecimento se traduz essencialmente no juízo.
Kant levantou a tábua das categorias bascando-sc na forma
dos juízos. Uma vez que o erireriAfftenfc? como poder dc pensar
— poder dc conhecimento não-scnsívcJ por meio dc conceitos —
é, expressamente, poder dc julgar, eis que "nenhuma representação,
salvo unicamente a intuitiva, nunca se reporta imediatameníc a um
objeto" *, os conceitos só sc relacionam a objetos mediante outras
representações, Nessas condições, os conceitos são predicados dc
juízos possíveis, c os juízos, função da “unidade de nossas repre­
sentações" d. O problema da Lógica transcendental seria assim
remontar à função dc síntese do entendimento articulada nas cate­
gorias, que as habilita a se aplicarem, a priori, independentemente
das ocorrências empíricas, à determinação dos objetos numa expe­
riência possível.
As categorias — diz Kuni — não nos fornecem então, por meio
da intuição, nenhum conhecimento das coiws, mas a aplicação
possível que têm à intuição empírica, ou por outras palavras, elas
não servem senão à possibilidade do conhecimento empírico.7

Na interpretação dc Heidegger, as categorias alicerçam o domínio


da objetividade que o entendimento institui, permanecendo “servo
da intuição pura" (KPM, p. 74).
O conhecimento empírico dos fenômenos se torna possível e
assim também o alcance objetivo dos juízos sintéticos a priori,
graças à garantia dada pela Lógica transcendental, que se su-
perimpóe à Lógica formal, do acordo entre a intuição empírica,

4 W, Einleitung- ln: —> op. cit., parte VII, v. 3. Cf. 2. ed.


6 Id,, ibid., v, 4, p, JB.
* Id., ibid., v, 4, p. 59,
’Jd„ ibid., í 22. Cf. 2. ed., v. 3, p. 117.
161

que trai a matéria da experiência real, e as condições formais do


conbecimeato, que são sempre as condições a priori de uma expe­
riência possível. "'As condições a priori dc uma experiência pos­
sível em geral são, ao mesmo tempo, as condições de possibilidade
dos objetos da experiência.”8 . ,
O conhecimento empírico — conhecimento do fenômeno, como
o que do ente se mostra à .sensibilidade receptiva, através do
pensamento que julga —‘‘ tem, portanto, a sua possibilidade no
DOnhecimento ontológico. 0 íí priori “deve oferecer algo sobre o
ente que a experiência não pode extrair dele" (KPM, p. 24). Dessa
forma, entra o a priori na conduta de transcendência do Dasein.
O conhecimento transcendental, remetido à transcendência do ser-
-no-mundo, dependería, cm última análise, da compreensão do ser,
raiz da finitude do homem, que é o seu Dasein temporal e his­
tórico. Estamos diante do estrato ontológico da Filosofia trans­
cendental critica. Por essa dimensão “arqueológica” em que as­
senta, o problema da possibilidade dos juízos sintéticos a priori —
que Kant formulou, c dc que a resposta foi <i Crírictt der razão pura
— passa a ser □ problema da pMriMfdade interna da Onrntogfn —
da possibilidade da .WeMp/jy.wca gírtenrfjj cm face da ambição da
Metaphysica specialis, enquanto ciência racional pura da época
moderna, que visa, sob o foco das três disciplinas tradicionais
(Cosmologia, Psicologia e Teologia iTatural), estabilizadas já den­
tro da concepção cristã do mundo, ao supra-sensível: o ser do ente,
na forma do absoluto ou do incondicionado. A Crítica da razão
pura é, pois — e nisso consiste a revolução heideggeriana da
leitura dessa obra —, a primeira tentativa global de fundamentação
da Metafísica. “A fundamentação da Metafísica como revelação
da essência da Ontologia é uma Crítica da razão pura” (KPM, p. 23).
Desse ângulo de leitura, Estética e Lógica transcendentais
fornecem, nos limites da finitude, as condições que possibilitam o
conhecimento do ser do ente, e que, a um tempo, invalidam as
pretensões da razão pura — mantidas e desenvolvidas pelo idea­
lismo germânico subseqüente — de obter dos quadros a priori da
sensibilidade e do entendimento, como se infinita ela fosse, in­
correndo numa pseudotranscendência, ilusória e dialética, paralo-
gística e antinômica, o conhecimento puro do ente (ôntico) — a
coisa em si — independentemente de seu ser (ontológico).
Ao levantar o problema da transcendência — conclui Heidegger —
não se substitui a Metafísica por uma “Teoria do Conhecimento”,
mas interroga-se acerca da possibilidade interna da Ontologia
(KPM, p. 26).

8 Id., ibid., v. 4, p. 84.


162

Entretanto fundar, dessa forma, a Metafísica tradicional, que “so­


freria o primeiro e mais profundo abalo”, significa expor-lhe o
fundo — a comprensão prévia do Dasein — c estabelecer, a partir
daí, refazendo os estratos abissais do pensamento kantiano, a gê­
nese da riéncia primeira como Ontologia fundamental,
A regressão ao ser na Crítica da razão pura, que permite
detectar nesta, ]>or uma espécie de leitura estratigráfica de seu
texto, o delincamcnto dc uma Ontologia fundamental, reveladora
da subjetividade do sujeito, (cr-sc-ia operado através da dedução
transcendental das categorias. Tomando duas vias distintas, e sendo
mais uma justificação de direito do que uma inferência, essa dedu­
ção equivoca, que pretende levar-nos, em seu movimento retroativo,
Ss condições que possibilitam toda experiência e os objetos numa
experiência possível — os sentidos, a õnn^rrMfão c a percepção8
— termina alcançando o ftvre espaço de jogo (Spielraum) da trans­
cendência, onde o ente se apresenta no confronto objetificador,
“próprio a toda conduta finita para com o ente” (KPM, p, 70).
A ímutfibtrfão coníirma-o t» capitulo sobre o esquemstismo
da Critica da razão pura 9 10, é o '‘centro dc coerência” da dedução
transcendental, porquanto, unindo a sensibilidade ao entendimento,
ela ratifica o maior alcance do tempo como intuição pura, à custa
do qual a transcendência ganha o seu horizonte. Por essa linha
interrompida da elaboração kantiana, que o filósofo não desenvol­
veu, mas de que deixou o traçado latente, com a “força de uma
idéia aclaradora” — traçado restituível hermeneuticamente, con­
jugando-se as martas do pensamento expresso na escrita filosófica
que o condensou —, a que “forma pne viamente o
aspecto do horizonte dc objetividade como tal, antes da experiên­
cia do ente”, é projetiva, Nela se detém a “regressão fundadora''
da síntese, chave do entendimento puro, como um “poder espon­
tâneo”, dc que dependo a “unidade universal da consciência de si”
na qpcrceppffà transcendental.
A rmflíújoçefo transcendental, também “origem da intuição
sensível pura" (KPM, p. 157), o tempo originário, que ê a “raiz
desconhecida para nós", diante da qual Kant se deteve, e o “Eu
puro” (apercepçao transcendental) não podem scparar-sc na fini-
ludc do sujeito, na essência finila da subjetividade.
V -rt teria recuado diante dessa “raiz desconhecida”, que
Uúuegger cxlrai do subsolo eonccptual da Crítica da razão pura,
adotando, para a leitura dos textos filosóficos, o mesmo procedi­
mento da Fenomenologia hermenêutica: a explicação do qtie não c

9 Id., ibid. (a dedução dos conceitos puros do entendimento), p. 86.


10 Capítulo 1, Livro II.
163

jptçiranicnte ptnsada, mus subinscrilo no discurso filosófico c dele


tíLsífUfaiihado como o pleno fenômeno de seu semido. Aqui, tam-
bíni, confianlc na "seerda paixão que animou uma obra” (KPM,
p 183). a Hermenêutica excrcc a violência interpretai iva com que
J.r g empregou na extração das estruturas do Dasein, cuja legibi­
lidade ontotõgica a Analítica estabeleceu.
Mas, nos termos do sua efetividade 'histórica, o resultado da
fundamentação kantiana dfi Metafísica, lastreada pela história sub-
acente, ql
*c deixou o sulco profunde da dedução transcendental,
vent à superfície mesma do discurso filosófico, de maneira inver­
tida, ]ã espelhada na segunda parte da Critiea da razão pura, quando
Kant expõe as três indagações — que posso saber?, que devo fazer?,
que me é permitido esperar? — que circunscrevem o interesse espe-
cvluiivo e pratico da razão. Essas perguntas descerram os objetivos
das três disciplinas — Cosmologia, Psicologia e 7‘ccdoyia, integran­
tes da Metaphysiea speâahs — e nada mais são do que uma tópica
da finitude (poder do conhecimento teórico, ddcrm inabilidade do
dever ft expectativa dc imortalidade). Em conjunto, desembocam,
problemutizando a razão humana, com o despontar do seu con­
flito interno, numa quarta pergunta: o que é o homem? As três
se incluem, conjuntamente, no âmbito da Antropologia, ou seja,
no âmbito de uma Filosofia de “intenção cosmopolita”. Quer isso
dizer que a possibilidade interna dâ Ontologia estaria fundada
antropologicamente na subjetividade do sujeito humano.
A Metafísica, disse o próprio Kant em seus Prolegômenos, é
uma “disposição natural do homem”.11 É no homem, no sujeito
humano, que se alicerça o conhecimento. Mas, com isso, o efeito
histórico-filosófico da idéia latente da Crítica da razão pura apa­
recerá truncado, realizando-se, na perspectiva do humanismo, como
fundamentação antropológica da Metafísica, em que se concretizou
a Filosofia moderna, bifurcada nas duas direções dominantes e
complementares da Teoria do Conhecimento e da Antropologia
filosófica. A interpretação heideggeriana lê, porém, a direção me­
tafísica da pergunta antropológica de Kant — o que é o homem?
— à luz da transcendência do Dasein — dentro, portanto, do cír­
culo ontológico-histórico em que se espraia o tema resolutivo da
finitude. Assim, o recuo kantiano diante do fundamento da sub­
jetividade do sujeito denuncia a compreensão do ser como o que é
recalcado no espaço de jogo das faculdades, em que se trava o
processo de justificação das categorias pela fundamentação antro­
pológica da Metafísica. Pode-se descer a esse estrato profundo da

11 Id., Werke', Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, §§ 57 e


60, v. 4.
164

fmiludc, que do homem faz um Dasein, e de que emerge, restituindo


a qucsiào do ser. a Ontologia fundamental.
Restituir a questão do ser í reiterar e rememorar o que a
Metafísica olvidou ao consolidar-se, desde a .Antiguidade, sob a
indagação do ente enquanto ente, na forma da pratc philosophía.
Na pergunta acerca do que é o ente como tal, indaga-se por aquilo
que determina o ente como ente em geral. ChnntaniM a isso o ser
do ente (Sein des Scienden) e, à pergunta a seu respeito, pergunta
pelo ser (Scinsfrage). Esta investiga c que determina o ente como
tal. Esse determinante tem que ser conhecido na maneira <io seu
determinar, e interpretado ou compreendido enquanto tal ou qual.
Mas, para que se possa compreender a essencial determinabilidade
do ente pelo ser, será preciso que o determinante seja sufieiente-
mcnlc apreendido, que o ser como tal e não o ente seja previa-
mente concebido. Assim jnz na pergunta li lò <ói (O que é o ente?)
a mais originária: o que significa o ser antecipadamente compreen­
dido naquela questão? (KPM, p. 201).

A indagação de Heidegger dirige-se à resposta de Aristóteles —


a ousía, o ser do ente —, questionando nela — ou nela pondo em
questão — o cerne da Metafísica.
De modo que í preciso remontar, para além da pergunta da Filo­
sofia primeira acerca do que é o ente como tal, c da pergunta
acerta do ser como lai, à questie mais originária: a partir dc que
é possível compreender, na riqueza dc suas articulações e relações,
o ser em geral? {KPAÍ, p. 203).

Como a pressão do quebra-noz, que libera a amêndoa de sua casca,


o questionamento da resposta aristotélka rompe o envoltório da
tradição metafísica c, atingindo-a por dentro, libera a compreensão
do ser constitutiva do Dasein que a terá possibilitado. "Se essa
compreensão não se realizasse, o homem jamais seria o que é...”
(KPJW, p. 205). Não tematizada cm Ser e tempo. a Metafísica,
que agora se problematiza na Crítica da razão pura, fundamentan­
do-se na finilude, convertc-sc na Metafísica do Dasein, para a qual
convergem os existentivos da Ontologia fundamental, obtidos através
da Analítica.
Seis importantes teses ressaltam da Ontologia fundamental,
como Metafísica do Dasein. A primeira é a insuficifincia da Antro­
pologia filosófica, fadada a desempenhar ou o papel dc uma "Onto­
logia regional" — sem chegar à questão do ser —• ou dc um
derivativo da Metafísica — sem chegar à íinitude da essência hu­
mana. A segunda é a ligação entre a finitude, expressão da trans­
cendência do Dasein, e o enfrentamento do Nada, que está na base
165

dfl situação fáctica da existência e da determinação do ser do ente.


A terceira, a finitude, como proto facium metafísico, possibilitando
essa determinação c conduzindo à questão do ser em geral.
As ires teses seguintes caracterizam a posição singular da
Metafísica, nem restaurada nem rejeitada, mas '“destruída” cm sua
configuração dc ciência dos primeiros princípios e das primeiras
causas. Atingindo a dupia base da arquitetônica da razão — a
rado essendi c a raf/o cogflorcéndr —, sobre a qual se ergueu a
dência da verdade, a destruição revela na Metafísica, que só
existe “‘enquanto possibilidade do Dasein”, a essência íntima da
Filosofia. Nesse sentido, a Ontologia fundamental suspende, desde
logo, a despeito de utilizar o mesmo adjetivo, “fundamental”, com
que tradiaonalmente se qualificou o superior relevo do conheci­
mento filosófico, o alcance efelivo da razão, como remissivo ao
ao princípio ou fundamento (Grund) instaurador. Ela é
'‘fundamentar' como momento da existência em geral, e a Metafí­
sica só versa sobre o Dasein na medida cm que nele se realiza c
dele recebe sua gênese. O trabalho hermenêutico que a extrai das
estruturas existentivas, bordejadas pela questão do ser, é, final-
menle, um ato de rememoração da finitude — de encontro ao ser
do ente, que se confundo com a dominância do pensamento meta­
físico, no qual sc consumou o esquecimento do ser.
Finalmente, esse esquecimento, qhe “não é acidental e passa­
geiro”, omite a diferença entre ser c ente, encobrindo, desde a
Ontologia tradicional, e, conforme veremos, antes mesmo que essa
Ontologia sc precisasse cin Aristóteles, com a interpretação do
ente como ousía, extensiva ao Eu pensante da Filosofia moderna,
a temporalização da temporalidade.
A IDÉIA DE FUNDAMENTO

Algo não pode tornar-se nada e eu sou alguma coisa. Eis


o que atormenta. A criação tanto se alastrou que nada
ficou vazio. Tudo enxameia.
George Büchner, A morte de Danton.

1. A proposição e a verdade

A questão do ser, que guia a Ontologia fundamental, expri­


me-se, de maneira extrema, na translação da idéia de fundamento
à transcendência do Dasein. À semelhança do que ocorreu com o
sentido da Filosofia transcendental crítica, deslocada, por um ato
intcrpretativo, da Teoria do Conhecimento pura a íuiidamcntnção
da Metafísica, essa translação se opera por uma punçAo do estrato
ontológico do princípio de razão, na dupla forma que lhe deu
Leibniz, antes de Schopcnhaueri ''nada existe sem razão" (nthil est
sino ratfone) ou "todo ente tem uma razão1’ (omnc ens habet
rationem). Ambas as expressões afirmam que o ente em sua tota­
lidade está sujeito à razão como princípio.
Para Leibniz, há razão quando se pode estabelecer uma relação
de identidade. Assim deve-se buscar a razão dos enunciados sin­
téticos, que versam sobre fatos, nos enunciados analíticos corres­
pondentes. Contendo o predicado no sujeito, de maneira essencial,
redutíveis a verdades cada vez mais simples, a princípios primitivos,
como axiomas e postulados x, os enunciados analíticos já são ver­
dadeiros. “A verdade”, comenta Heidegger, “contém, por conse­
guinte, uma referência essencial a algo semelhante como funda­

1 Leibniz, G. W. Monadologie. Stuttgart, Philipp Reclam, 1954. § 35,


p. 19.
167

mento” p. 27), Além di»o, a verdade como fundamento,


que é dor raiÃo — principiam reddettdae ralionri —, reside na
proposição. Por outras palavras, a verdade, que legítima o ente,
enquanto lhe dá fundamento racional, estabelecendo o seu acordo
ou sub concordância com o que ê idêntico, tem caráter pnipnsiciomiL
O problema do fundamento leva-nos, pois, ao da verdade, do qual
não podemos separá-lo, c ambos Icvanr-nos à- propoòrfÃo.
O caráter proposicional de verdade apresctilou-se-nos. primei-
ramente, no quadro das quatro acepções do ser, em conexão com
o entendimento cruzado da proposição como apóphansis, e do
verdadeiro como o que é apreendido e se enuncia, articuladamente,
unindo, por meio da cópula, um predicado a um sujeito (synthesis).
Mostramos, em seguida, que a retificação desse entendimento acom­
panhou o processo de recíproca elucidação a que Heidegger subme­
teu, graças à intuição categorial, o pensamento aristotélico sobre o
ente, e a concepção fenomenológica da intencionalidade, e do qual
resultou o reajuste do significado de lógos.
A nova versão de lógos que apontamos — tornar patente ou
manifesto aquilo de que se fala no discurso —, equivalente, por­
tanto, ao sentido da apóphansis no § 7 de Ser e tempo, já nos
oferece o balanço final de todo um trabalho interpretativo dos
suportes não aclarados do significado dessa palavra nos textos
aristotélicos. No arcabouço ontofógico da língua grega, a que
também remonta a significação primeira de fenômeno, estariam
esses suportes, que serviram de pressuposto tácito ao conceito de
verdade como adequatio rei et intellectus. A tal arcabouço onto­
lógico da linguagem, que, anterior à reflexão, respaldou o uso do
idioma, dando o travejamento das acepções do ser, pertence, con­
juntamente a lógos e a phainómenon (o que se mostra a si mesmo),
o significado de alétheia'. não-encobrimento e desocultamento, a
verdade do lógos para os pensadores gregos, recalcada e esquecida
na idéia de veritas como adequação ou concordância.
Na escavação semântica dessas palavras, a pesquisa lingüís-
tica do étimo desempenha papel de primeira ordem, mas não é o
fator etimológico que valida essas traduções de Heidegger. Ao
contrário, é a tradução, utilizada como procedimento hermenêutico
para explicitar o impensado subsistente no uso da língua, que auto­
riza e incorpora a pesquisa do étimo. A escavação semântica, de
teor hermenêutico, atinge o arcabouço ontológico da língua ao nível
do discurso (die Rede), terceira dimensão da abertura, em que se
articula, numa interpretação, o fenômeno projetivo do compreender.
Permitindo o desenvolvimento da compreensão, articulando as pos­
sibilidades em que se projeta o poder-ser, no modo da visão cir­
cunspectiva, pelo qual o Dasein interpreta a si mesmo e aos entes
168

acessíveis com que se defronta no mundo circundante, a partir da


conduta preliminar de trato, o t/úcHrro é a medida extslentiva da
linguagem que condiciona a organização do universo dos signos
linguísticos, A interpretação do mundo latente nas palavras dc
uma língua autoriza o movimento reciproco dc interpretação íenome-
nológica, redobrado pela tradução, efetuando a sondagem do estrato
profundo da compreensão do scr nelas depositada por obra do
discurso, e dc que o é li mo constitui o traço remanescente originário.
Por conseguinte, o apoio da tradução etimológica dc lógos c
dc alétheia, ao encontro do que seria a experiência originária do
pensamento grego, é, em Ser c tempo, o círculo hermenêutico da
constituição do Dasein — a sua estrutura circular —, o que vale
dizer, a experiência anteprcdicativa que nos liga antecipadamente
ao mundo, e dc que a proposição é uma forma derivada e modifi-
cada, segundo a doutrina do § 33, ainda não considerado por nós,
A discussão do conceito tradicional dc verdade, e a sua consc-
qiiente reformulação interpretativa, que retoma o significado pri­
mordial dc alétheia, subjacente ao de adequação ou concordância,
dc que sc torna o suporte iuaclarado, já pouco visível em Aristó­
teles c esquecido no sistema cscolástieo, trava-se no § 44 de Ser
e tempo, que até agora também deixamos de considerar. Podemos
aclarar o estrato ontológico do princípio de raipo — a essência do
fundamento, abordado no ensaio de 1929 com título homônimo —,
sob os focos convergentes desses dois importantes parágrafos, que
ligam a proposição ã experiência anlcpredicativa c deslocam a ver­
dade dc sua inserção preposicional exclusiva, Além de proporcio­
narem a superação da teoria do juízo, com que Heidegger sc preo­
cupou em seus trabalhos dc juventude, ambos permitem reformular
a idéia dc conhecimento teórico e preparam, peta conexão do
discurso com o lógos que deles decorre, a hegemonia do tema da
linguagem no segundo Heidegger.
Husserl mostrara que o enunciado predicativo, como forma
estrita ou exemplar do juízo, mesmo fundado em perceptos, tem
seu correlato no objeto posicionado, de que se diz que é isto
ou aquilo. Mas a atribuição do predicado ao sujeito, que equivale
a esse posicionamento, não c determinante da coisa. A predicação
posiciona na medida cm que o indivíduo alcança objetos individuais
e efltw/or de coisas que preenchem a evidência fcnomcirológica dc
seu correlato. Dessa maneira, a síntese predicativa fundamenta-se
numa dação originária, e é em função da experiência antepredica-
tiva que se opera a atribuição do predicado ao sujeito.
Continuação conseqüente da teoria husserliana do juízo, tal
como a resumimos acima, o § 33 de Ser e tempo vê na predicação
169

o segundo dos três componentes estruturais da proposição. O


primeiro é a ratapin (Aufuigung), que transpõe a experiência
gííiepredicativíi para o registro dc ídgtxr coma apóphansis, c, pur-
Iflilto, para o domínio do manifestado. O segundo c a comunicação
(Mittcilung), mediante a qual a proposição, como enunciado, per­
tence ao domínio do que se expressa — da linguagem propria­
mente dita, possibilitada pelo 4rrcnrjo,,sçm com este confundir-sc,
A predicação (Prãdikation) é determinante, mas tomando
sempre por base algo previamente indicado pelo sujeito, sob que
recai o predicado. Assim, no enunciado “o martelo é demasiada­
mente pesado”, o termo sujeito articula “a descoberta de um ente
adi seu modo dc ser-à-mão” (SZ, p. 154); indica esse ente dc que
se “enuncia um predicado” c que o determina nos limites do que
fpi descoberto, fazendo com que seja visto sob certo aspecto. Mas
o determinar, assim entendido, é o modo da indicação. Sujeita c
predicado são posições de um mostrar apoíântico. Dessa forma, a
proposição não une ou relaciona representações; nem pode o sen­
tido do tf, da cópula, esgotar-se numa função dc síntese. Dispen­
sando a noção equívoca dc wfar, com que I.otze caracterizou, cm
lugar dos atos psíquicos dc assentimento c ordenação, a identidade
lógica do enunciado, a indicação, que subordina o enunciado predi-
cativo, e que confere à função dc síntese um alcance apofântico,
também recupera a proposição enquanto comunicação, isto é, en­
quanto “o ente indicado em sua determinação se expressa e dá a
ver a outrem o que nela se enuncia” (SZ, p. 155). A predicação
se intercala, portanto, entre a referência aos entes da indicação,
que remete ao “sentido primitivo do lógos como apóphansis” (SZ,
p. 154), e o expressado da comunicação, como algo que, compre­
endido e transmissível de interlocutor a interlocutor, remete à fala
e à linguagem. Assim, porque permite e faz ver os entes por si
mesmos de uma certa maneira, a proposição já depende do aberto
do compreender, articulado numa primeira interpretação, do qual
deriva.
Voltemos à assertiva do exemplo curial de Heidegger (“o
martelo é demasiadamente pesado”), não por acaso acerca de um
utensílio. Parte de um complexo referencial, o martelo, com o seu
peso, é compreendido, na conduta dc trato, como um ser dispo­
nível, Antes dc tornar-se objeto dc uma proposição categórica, a
sua significação imediata é a sua instrumentalidade, □ seu uso numa
prática determinada. Prãxis no sentido mais amplo da palavra, a
conduta dc trato comporta a compreensão prévia do instrumento
como instrumento; o seu ser-à-mão é descoberto no uso, na mani­
pulação que o torna disponível. Consideremos novamente essa
170

conduta de trato, regida pela preocupação, a fim de avaliarmos a


precedência da interpretação (Auslegung), em que o compreender
já se explicita ao nível articulatório do discurso.

2. A interpretação e o discurso

A palavra conduta perde, na terminologia heideggeriana, a


sua conotação empírica e pragmáliea de comportamento num meio
determinado, condicionado por estímulos e interesses. Se bem que
tenha afinidade com o primado do agir sobre o conhecer no prag­
matismo, como também com a tese da Filosofia da vida (Lebens-
philosophic) de que o conhecimento teórico é um broto tardio da
atividade humana, estruturada por conexões significativas intrínse­
cas, a conduta dc trato, também concebível como condula global,
que dispõe das coisas, ooassumindo, em cada uma de suas práticas,
o mundo em que está imersa, é sempre comportamento cm relação
a entes, c sempre coi responde a um modo dc compreendê-los, Mas
esse compreender é modo dc scr, como “total estrutura fundamental
do ser-no-mundo’* (SZ. p. 144), pelo qual abre-se o Dasein em
seu aí: a relação imediata do homem consigo mesmo e com o
mundo, O compreender c um ver, que nem se confunde com a
intuição empírica ou com a intuição intelectual — ligada à idéia
clássica do homo sapiens (natureza racional) — nem com a per­
cepção instrumental — ligada à idéia moderna do fionto faber (es­
pécie inteligente, fabricadora de utensílios).
Dessa embaraçosa oscilação conccptual, de resto característica
do pensamento heideggeriano, que subverte as doutrinas tradicio­
nais extremas com as quais parece confundir-se, minando a termi­
nologia filosófica consagrada, de que retira o apoio das concepções
doutrinárias correntes, pode-se extrair o enunciado de que o ver,
irredutível ao conhecimento teórico, c incluído em ioda atividade
prática, mais próximo da percepção no sentido lato, c que, desa­
tado na visão drcunspectiva, acompanha a preocupação e a solici­
tude, assinala o imediato acesso aos entes com que nos defronta­
mos. O ser-à-mão, acessível na conduta de trato — o ser dos prag-
mata —, é, contudo, o eixo de toda compreensão, porque do ver
compreensor imediato, sempre efetivo, da preocupação que abre □
ser-à-mão na forma do cuidar, usar c manipular coisas, jamais
firmados indepcndentcmeiUc das atitudes do intercurso cotidiano
que a solicitude reclama, projeta-se, por meio da visão eircuns-
peciiva, que sc engrena a essa elementar experiência antcprcdicaiiva
e através da qual a compreensão se desenvolve numa ntferprcfflçdo.
a rede das relações de referência que constituem a sijinificalívidade.
171

Projeção do compreender, a significatividade é, ao mesmo


icmpo, o fundo “sobre o qual é aberto o mundo enquanto tal"
(SZ, p. M3) c as significações emergem, As significações nem se
depositam nas coisas nem nascem dc um alo dc concepção do
espírito. Onde há ser-no-mundo, também há significações. Daí a
cxjttcretudc das significações em função dos referenciais, no âmbito
de um ver compreensor, e o seu não-isolamento. Nada do que
confrontamos, nem mesmo “algumas ilhas coralíferas australianas
de recente formação” 2, é uma natureza neutral. A significatividade
indicaria justamente o caráter de totalidade das relações referen­
ciais, como estrutura geral do mundo, e como possibilidade do des­
cobrimento do ser-à-mão, a partir do trato interrompido ao enca­
dear-se à visão circunspectiva. Esta já alcança o ser-à-vista, toman­
do-o como isto ou como aquilo, identificando expressamente o que
foi compreendido na simples conduta de trato.
Desenvolvimento das “possibilidades projetivas do compreen­
der” (SZ, p. 148), sem ser conhecimento propriamente dito, a
interpretação, que se articula discursivamente, responde pela estru­
tura do como. “Todo simples ver antepredicativo o ser-à-mão já
é em si mesmo interpretativo-compreensor” (SZ, p. 149). Reenqua-
drando o ser-à-mão, permitirá vê-lo como mesa, porta, carro, ponte
etc. O como está implícito enquanto “estrutura apriorística do
compreender” (SZ, p. 151). DisSo se extrai, por um lado, a deci­
siva lição heideggeriana acerca do próprio “negócio da interpreta­
ção em geral”, e, por outro, a incerta, mas extremamente fecunda,
doutrina de Ser e tempo sobre o discurso como fundamento exis-
tentivo da linguagem.
“Toda interpretação tem que haver compreendido o que inter­
preta” (SZ, p. 152). Essa prévia compreensão, sem a qual não se
teria acesso ao interpretado, já fixada, no confronto preliminar com
os utensílios, pelo que temos em torno de nós (Vorhabe), através
de uma perspectiva (Vorsicht) e mediante determinada precon-
cepção (Vorgriffen), reconduz-nos ao círculo hermenêutico onto-
lógico-histórico, que circunscreve, por força da finitude que faz do
homem um Dasein, todo trabalho de interpretação, desde a exegese
dos textos ao esforço interpretativo da Ontologia fundamental.
Como princípio de exegese textual, o reconhecimento das precon-
cepções em que o intérprete labora, e que devem ser por ele elabo­
radas — a sua pertença a um sentido antecipado, que abre o ato
mesmo da leitura, a perspectiva temporal que de sua historicidade
decorre, a tácita adesão a preconceitos que a tradição lhe impõe —,

2 Marx, K. & Engels, F. La ideologia alemana. Montevideo, Pueblos Uni­


dos, 1958. p. 46-7.
172

o reconhecimento dessas pressuposições, que delineiam a com­


preensão prévia, conto mola da interpretação, toca de perto ao
problema mais geral do jrw/w/o. O tripé do ter, do ver e do erm-
ceber prévios (Vorhabe, Vorsidit e Vnrgriífen) forma o arcabouço
projetivo do compreender,, que nos abre os entes ao sabor dós
nexos dc referencia na conduta de trato, através dos quais se esten­
de a rede da íJffnifreítdwífflrfe, É nessa conduta, c, portanto, na
experiência aniepredicalíva, como a práxis maciça do mundo-da-
-vida em seu imediato c frec|iien te transcorrer cotidiano, que Hei­
degger coloca a nascente do sentido.
O corte com o conhecimento axiológlco, que abrangería a
realidade jwj generâ dos vtj/orer, c cm que tal colocação importa,
exprime, de maneira lào simples quanto abrupta, a índole radical
do pensamento heideggcriano. Elo do espírito com a Natureza,
nova forma da noção de finalidade, os ratarei que a homem ins­
taura, ou que por ele são intuídos eniocionalmcnte quando age, e
que- a sua liberdade transforma em fins, representariam, como deri­
vativo da qucsiàú do ser, adrede resolvida ou escamoteada num
círcunlóquio essetiei alista r metafísico da Filosofia moderna, a
emergência do sentido realizado temporalmcntc pela atividade hu­
mana, mas auto-áubsistente como essência intemporal c absoluta.
Nictzschc foi o primeiro a surpreender essa essenciaiização do
sentido na noção moderna de valor:
Nossos valores — dizia ele — estão colocados nas coisas em virtude
de nossa interpretação. Existe acaso um sentido em si? Não i v
sentido necessário precisamente um Sentido relacionai e pcrspcclí-
vístico? 3

Já pda historicidade do Dasein, o pensamento dc Heidegger


conílui com esw perspcctivismo dc Nictzschc. Não só recusa o
absoluto dos valores c a extensão onlotógiià que a noção respectiva
tomou, como também, o que singulariza o radicalismo heidcgge-
riano, recusa o problema filosófico de um sentido ent si- Insolúvel
porque informulúvel, e assim um pseudoprublctna, a idéia de uni
sentido cm si pospõe-sc, como algo a conhecer, ao scr-no-mundo.
Quando uma coisa tem sentido, isto quet dizer: ela já é comp-
preensívd uu aberta para nós numa relação dc pertença que a torna
interpretada. Dai scr um coiura-scnso falar-se do sentido global
das coisas ou do mundo, que já se configura cm todo compreender
c interpretar. Só há scnlido dentro da compreensão prévia que sc
antepõe ao conhecimento teórico, e na qua! sc abrem os entes a que

3 Werke; Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre. München, Carl Hanser, 1954.
v. 3, p. 503.
173

temos acesso juntamente com o mundo, que é o referencial dos


referenciais. A rigor, adverte-nos Heidegger, não compreendemos
o sentido, mas os entes ou o ser que, acrescentamos nós, se mani­
festa na compreensão prívia, O sentido é aquilo em que "se apóiu
a camprccnsibilidadc dc algo” (SZ, p. 151 f, c qtie preenche o tripé
do arcabouço projetivo. Conccptuítlmcillç, trata-se da armação
formal do que articula a-eompreensflo e qúe possibilita, com o seu
(kçseuvdvimcnto interpretai! vo, a estrutura apriorística do rowo
antes apontado. Ora. é o c/torío que articula a comprccnsibili-
dade, o todo das significações, possibilitando a interpretação; logo,
ç para o discurso que se traslada a prtbtís de que nasce o sentido.
Os embaraços conccptuaís da doutrina do discurso expostos
nos 34 c 35 de Ser e tempo, que assinalam essa transição do
pensamento hcitleggçriano — cm sua segunda fase, nucleado em
tqmo da linguagem —, estampam-ae na própria equivocidade do
termo designaiivo, díc que significa, além dc dücurro, ccm-
vcrsfifão e prrwiwwJtfffitWo. Conotando 0 fdgos grego retraduzido,
o discurso que nos daria a plena abertura do Davein em seu aí,
induitido, portanto, a disposição de ânimo, é, como modo eminente
da temporalização, a que não cabe o predomínio de um êxtase
determinado, o existentivo da linguagem, o seu fundamento onto­
lógico. O discurso seria o fenôippno de que a linguagem é a instân­
cia ôntico-empírica.4
Dado que o fundamento ontológico não possui existência à
parte daquilo que funda, o discurso, que é a condição transcen­
dental da linguagem, relevando-se da abertura do Dasein, de seu
ser-no-mundo, também é “linguagem existentiva” (SZ, p. 161).
Inversamente, a linguagem, como “totalidade de palavras” (Wort-

4 A liujjuagem É n cxprcsslio eonerrtu. Como '‘mundana”. ela exisic cm c*dn


uma dc suns formai tiíxtdriras, as línguas. Sob esse aspecto, ■ disiinção
hLidcKgerian.j jiwnnpajiJis a dw linguistas, uma vez que desse ponto dc visi-n
íô existe linguagem como lingirn. isto é. como sistema de sígiw (Languc),
mas para lapi afastar-se deles nu medida em que o discurso retorna a Mtçscin-
pcutiQ verbal lirijjüistKO fnuis apropriadamente. ShfgMfcirú, cw»o
proporí Gadamcr), e, portanto, a linguagem eiiqaanto paroJe (discurso),
Curtosamenic ainda, o discurso (ditr Rede), línR.uaRtm íundnmcfiltiI. enqtia-
dra-se tmnnu outra perspectiva da ciência Èiaij;üisLicar sugerida ikm Heirvenivle
t elaborada por Paul Ricoctir do ponta de vista feitaMnenoJôsico. "É ito
discurso atualizado em frases”, diz BcnvtnlMe, “que a lingiui ac íormn c se
configura* (Níveaux de l>nalyse linguhtique. In: —. Pr-uMêmes ffngiríf-
flót/raír, Paris, Gallimard. 1966. v. I. p. 131). Heidtpjter atím-ie.
pMIantn, 3 uíii conceito-limito da lin£ütslica. "Pensar li lingnflgcm, seria
pensnr a unidade daquilo mcsino que Saussurc dístocicHi. a unidade da línpia
e da fala", (Ricoeua. Paul. A csuutora, a palavra, o aconteeintcrtio. Ini —
conflito dar fnferpreirtcõw: ensaios de Hermenéulica, Rio dc Jjineiito,
Imago, E978. p. 74),
174

ganzhcit) dc uma língua, é o discurso pronunciado. De onde sc


conclui que a primeira é a forma estabilizada do segundo, na pers­
pectiva do scr-<m-comum da existência cotidiana, que lhe impõe
a condição de ente intramundano, como utensílio. As palavras,
que podem espedaçar-se c coisificar-se, seriam o veículo dessa con­
dição instrumen al. No entanto as palavras brotam das significações
articuladas; a articulação discursiva só sc realiza expressando-se,
ou seja, acedendo à palavra (kommt zu Wort). E que é aceder à
palavra senão falar, e que é falar senão usar a linguagem? São,
pois, equivalentes as duas afirmações dc Heidegger — que o scr-
-no-mundo é falante c que ele tem linguagem (hat Sprachc). A
posse da linguagem não é propriedade natural, e a fala muito menos
uma simples produção dos órgãos fonadores. Ambas concernem
a um só fenômeno captado no conceito aristotélien rir» homem
como scr capaz, dc falar — zóon lógon échon —, complemento à
tese do zóon poliiikón (animal político) —, que revela a interlo-
cução, o "falar uns com os outros", cm que o cotidiano grego estava
politicamente enraizado.
De tudo isso se conclui que a fala e a linguagem já sc acham
implicadas no discurso. As possibilidades c a estrutura deste são
as condições a priori de uma c dc outra. "O discurso c a articula­
ção significacional (bcdeulungsmãssig) da comprecnsibilidadc do
ser-no-mundo :m sua disposição” (SZ, p. 162). Mas as possibili­
dades do discurso, o ouvir (hõren) c o silenciar (schwcigcn), não
são exatament: as da intcrlocução. Por que é o ouvir, c não o
falar, que com?õc, com o silenciar, o intercurso dialogai, que seria,
para Hcidcggc-, uma expressão da finitude do homem, segundo os
versos de Hõderlin, que lhe forneceram um dos leitmotive da
famosa conferência dc 1936 dedicada ao poeta:
Do momento cm que somos um diálogo
E que podemos ouvir-nos uns aos outros
(Sei: cin Gesprãch wir sind
Und hõren kõnnen voncinandcr)?
Tanto quanto o silenciar, o ouvir é modo dc compreender. Ouvin­
do, compreendemos o que o interlocutor diz.
* E o dizer nos coloca,
dc imediato, com o interlocutor, junto ao ente (bei dem Seindem),
a respeito do qual o discurso sc pronuncia. O genuíno silencio é
também modo de ouvir c dc dizer calando.

• “Ê por isso q»e a primeira determinação do dizer não é o falar, mas o par
escutar-calar-se. Ainda aqui. Heidegger toma a contrapartida da maneira
ordinária e. mamo. linguística de situar no primeiro plano a operação de
falar (locução, intcrlocução)." Rtcovnt, Paul. A tarefa da Hermenêutica.
In: —. Interpr-taçào t ideologias. São Paulo. Francisco Alves. 1977. p. 35.
175

Essa precmincacia do dizer sc reflete nos componentes do


discurso, que sc estruturam a partir daquilo que acede à palavra,
do ente que ela torna manifesto. Dizer algo, dc certa maneira,
para alguém, numa tonalidade ou disposição dc ânimo, nisso con­
siste o fenômeno do discurso cm sua complctq estrutura comuni-
cativo-expressiva.
Vimos que a pioposição, como enunciado prcdicativo, depende
do aberto do compreender — da descoberta de um ente que o
sujeito proposicional indica c que o predicado faz ver sob certo
aspecto — c do prolongamento comunicativo do compreendido, cm
que o ente descoberto sc dá a ver para outrem. O indicado c o
que a proposição mostra na forma do enunciado (Ausgcsagte),
como expressão verbal que ingressa no mundo público do scr-cm-
-comum Condicionando reversivamente o primeiro aspecto, que
tem “o sentido primitivo dc lógos", a comunicação, fala c lingua­
gem, dá conta da cnunciação (Heraussage) — do ato dc asseverar,
atributivo dc um predicado a um sujeito. Assim a proposição sc
recorta duas vezes no discurso, o qual, articulando a experiência
antcpredicativa da interpretação, é o domínio do cnunciávcl, dc que
3 primeira deriva, mediante a modificação do ver interpretativo-
-coinprccnsor. A virão circunspectiva alcançaria o ente-à-vista, mas
a partir da compreensão na conduta dc trato, tomando como isso
ou aquilo o ente-à-mão, utensiliar,»instrumental, a que sc sobre­
põe. A conduta dc trato é neutralizada; a visão circunspectiva sc
desapega da instruircntalidadc e se detém no ente-à-vista. Em vez
dc algo com que (womit) tratamos, o ente c aquilo sobre que
(worübcr) sc enuncia: o indicado da proposição, cm que o mesmo
ente sc mostra sob o aspecto determinativo cm que a prcdicação o
faz ver, como no exemplo “O martelo é pesado", ao qual volta­
mos agora.
Ao como hermenêutico da visão circunspectiva, articulando,
cm palavras-frascs '"pesado", “este não serve!”) ou em locuções
dc ordem ("tragam-me um martelo leve"), dc pedido ("deem-me
um leve"), dc interrogação (“não há um menos pesado?"), dc
advertência ("pesa demasiado”), a compreensão prévia do martelo,
franqueada pelo uso, dentro de um complexo referencial, substi­
tui-se o como apofântico, expresso numa proposição categórica
(“o martelo é dcmjsiadamcntc pesado"), visando propriedades de
um ente-à-vista.
A estrutura lógica da proposição categórica pressupõe a es­
trutura comunicativ>cxprcssiva do discurso, que torna manifesto
o ente, articulando nas palavras proferidas - - no dizer interpreta-
tivo-comprccnsor, cm que sc projeta o Dasein como ser-no-mundo
— o sentido a partir do qual a proposição pode scr verdadeira ou
176

falsa. Dado que o sentido é armação formal da compreensibilidadc


de algo que o discurso articula, toda proposição tem por base
uma interpretação subjacente. O enunciado predicaiivo 4, pois.,
uma forma derivada da interpretação. Oulra consequência impor­
tante é que o enunciado prcdicativo, neutralizando o ser-à-mão,
interpretando todo enie como coisa ou ente-à-vista, assinala o nível
do conhecimento teórico, igualmente forma dc conduta e modo
de ser em que se projetam, fundadas na abertura originária reve­
lada pelo cuidado, determinadas possibilidades do Dasein.

3. Epistéme, alétheia

Na História da Filosofia, conhecimento, verdade e ser apare­


cem numa rektçuo de interdependência e de mútuo recobrimento.
O amor da verdade e do conhecimento é o apanágio do filósofo,
retratado na República de Platão como "o indivíduo nobre c belo
por natureza'4 (490, a), que “se esforça naluralmcnte por atingir
o ser”. Nesse diálogo, a verdade e o ser são comparados à clari­
dade diurna, em que se banham Iodas as coisas, permitindo ao
filósofa distinguir o transitório do eterno, a ciência, cujo objeto c
o imutável, da opinião, cujo objeto é o devir (534, a), A mais
alta ciência alcança a realidade superior c suprcmanienle verdadeira
das essências, acima da qual esplende o bem (agathós), “que
comunica a verdade aos objetos conhecidos c ao sujeito cognos-
cente a faculdade de conhecer” (508, e), à semelhança da luz do
sol, de que mana a claridade do dia. Os escolásticos do Medievo
chamaram de transcendentais ao bem e ao verdadeiro (bonus,
verus), conversíveis ou equivalentes ao ente, que sc aplica a tudo
de que se pode dizer /juc é alguma coisa, de acordo com a analogia
entre os modos ou acepções do ser, dc que tratou Aristóteles na
Metafísica.
Em sua tese sobre Duns Scoto, onde tentou ligar a tradição
escolástico-metafísica à linha gnoseológica do pensamento moderno
— a Filosofia como Teoria do Conhecimento, firmada no idealismo
transcendental de Kant —, Heidegger escrevia que o ente se apre­
senta em todo objeto, inas que só bo objeto de conhecimento cabe
qualificar dc verdadeiro. "Ê na medida cm que o objeto 4 objeto
dc conhecimento que ele pode ser considerado objeto verdadeiro.
é preciso ver nele o fundíunenium veritatis" (FSt p. 208). Dc
Descartes a Hegel, o pensamento moderno manteve a idéia dc ver­
dade enquanto conformidade ou concordância entre a inteligência
e a coisa — fldacqtftnfa et intellectus — firmada na Escolástica
177

do século XIII, denunciando o pressuposto indiscutido do vínculo


entre a verdade e a proposição.
Só um encadeamento de palavras — diria Heidegger num trabalho
tardia • pode «r verdadeiro ou falso: a t jfd /eíAadfr, o yíz
r fvímco. Um tal encadea mento dc palavras ft chama simples
enunciado. O enunciado í ou verdadeiro ou falso. O enunciado
é cnlão o lugar c-o sltiq da verdade. Eis por que nos dizem lio
simplesmente: tal Oü qual enunciado é uma verdade. Verdades e
não-verdades são enunciados.<!

O enunciado seria verdadeiro em razão da conformidade entre


o que nele se enuncia e a coisa. O que nele se enuncia é a deter­
minação predicativa. E “coisa” designa aqui o objeto da enuncia-
ção, de que se predica no enunciado proposicional verdadeiro. Ao
nível do encadeamento da palavra, onde se concretiza, a adaequatio
rei et iniellectus sc traduz numa relação de conformidade, de con­
cordância, também dita <fe eonvenientia entre aquilo a respeito do
qual se enuncia (o conteúdo do juízo) e a determinação predicativa
do enunciado (a forma do juízo). Os termos componcnlcs dessa
relação, que é uma relação cognoscitiva, devem concordar, harmo­
nizar-se ou convir em torno de algo. Que sinais manifestariam esse
acordo?
Uma vez que só ao objeto de tonhecimento podemos conside­
rar verdadeiro, quaisquer critérios admissíveis para estabelecer o
acordo tomam por base a própria adequatio que se trata de elucidar.
Importando em reconhecer o conhecimento efetivado, o critério de
verdade redunda então numa aporia, que a Fenomenologia husser-
liana enfrentou, apelando para o caráter do conhecimento como
ato, que tem, a despeito do teor não-verbal da Wesenschau, a lin­
guagem por base. Só através da significação, descolada de uma
expressão verbal, o objeto é visado. Conhecê-lo equivale a um ato
de efetuação intuitiva das significações, à vivência da identidade
ciilre ó dado c o visado. Para Husserl, a evidência não se distingue
dessa vivência, dc que a verdade é o correlato objetual, cm graus
variáveis de plenitude ou adequação. Concebida como o correlato
de um ato identificame a verdade se desatrela do juízo, deslo­
cando-se para a “dação originária” do objeto na percepção, en­
quanto caso exemplar de um perfeito c definitivo preenchimento
intuitivo. O intelleetus, afirmava Husserl, é a intenção de signifi­
cação, e a adaequatio, a intuição, que dá a objetividade tal como

d ÇwVtf-cr c/iwr? (Die Traje nach dem Ding], Traduit par Jean
Rcbüul et Jicqucj Taminiaux, Paris, Gallimard, 1971. p. 46
1 Cf. Hrrsfljmr., E Sixiéme rcíherche, In: —. Recherches logiques. Paris,
PUF, 1961. í 39.
178

significado, isto é, tal como a pensamos e nomeamos.8 Consequen­


temente, a percepção invocada í a presença mesma do objeto na
significação c não um critério.
A crítica heideggeriana da noção clássica da verdade encadeia
essa posição de Husserl à idéia de propojíçõo como discurso pro­
ferido, que deriva da ój/erpremjdo. J;i vimos que o dizer interpre-
talivo-comprecnsor, correspondente à estrutura comunicativo-expres-
siva do discurso, que torna manifesto o ente, é o pressuposto da
proposição. Chamar dc verdadeira uma proposição significa afir­
mar que nela sc concretiza um certo conhecimento. A verdade
acompanha o conhecimento como o fenômeno expresso de sua
autocomprovaçào (Selbslausweisung).
É no sentido lato que devemos tomar o significado de “com­
provação”. Mediante todo c qualquer sistema de prova, o teste
factual de uma asserção consiste em vcrificá-la pelo recurso à expe­
riência. Se verdadeira, a assertiva não se refere a uma representa­
ção mental, achada conforme com certa ocorrência exterior, e sim
a objelos ou a e-j/urfox de coisas que a proposição mostra. A expe­
riência não é, afinal, um mero expediente dc comprovação, mas
a proximidade com as coisas "cm pessoa", como dizia Husscrl, que
a íuíCrtíJo perccpüva proporciona, estabelecendo relação imediata
com determinado ente. Não havería comprovação factual, no tra­
balho de investigação científica, se conhecer não se referisse "uni­
camente ao próprio ente” (SZ, p. 218), descoberto na proposição,
tal qual é e tal como sc apresenta em nossa experiência. Nessa
evidência primeira, fenomcnológica, que Heidegger concebe segun­
do o modo perceptual, recai o processo de verificação.
O que se comprova — o conhecimento verdadeiro — í o
ente que sc mostra na proposição ou que nela c descoberto. “Ser
uma proposição verdadeira significa que clu descobre o ente cm si
mesmo. Ela mostra, faz ver o ente em seu estado dc descoberto
(Entdeckthcit)" (5Z, p. 218). Tal descobrimento, porém, só é
possível graças ao compreender, c, consequentemente, gràças à
abertura do Dasein como ser-no-mundo, noção remissiva à de
verdade originária, que a Analítica nos apresentou no fenômeno do
cuidado.
Anteriormente, usamos a expressão verdade originária a pro­
pósito do ser para a morte, compreendido como a iminência do fim,
e também da decisão, cm que o Dasein se apropria de si mesmo,
de seu poder próprio, num correr à frente, numa pré-meditsção
daquela extrema possibilidade —■ possibilidade do não-ser que o
totaliza. Ambas esgotam a compreensão do homem por si mesmo

8 Cf. id., ibid., cap. 5, § 37.


179

c jcqualificando o cuidado, confirmam a finitude do Dasein, Fenô-


itíeno completo da compreensão pré-onlolõgica explicitada, o cui­
dado autentico, cin sua constituição trimembre, aponta pura a
icmporalidadc extática que o fundamenta, limite do fenômeno do
setifido, e cm que desemboca a compreensão do scr inerente ao
Dasein. Tanto vale dizer verdade originária' quanto ventade da
^jtevtrjd. As duas expressões remetem à abertura, ít iluminação
Jo Dasein cm seu aí,’de que o discurso é urna das dimensões. À
temporalidade extática/que ilumina originariamente o aí, cabe o
título dc verdade originária, c é à abertura do Dasein que $e deve
a possibilidade de que a proposição seja descobridora. Assim a
verdade preposicional se desloca para o domínio do iluminado ou
do manifesto, que vincula o descobrir (Entdecken) do enunciado
verdadeiro — o como apofântico — ao caráter descobridor (Ent-
deckend) do Dasein. O jundamentum veritatis é removido para a
abertura (Erschlossenheit), razão de todo descobrir, “como modo
de ser do ser-no-mundo (Seinsweise des in-der-Weltseins)” (SZ,
p. 220), que passa a responder pelo fenômeno mais originário
(ursprunglivhsic) da verdade, Desse rccuamcnto, que podemos
predivisar nos recuos anteriores — da morte natural ao ter para
a morte, da consciência moral ;i decisão antcdpadora — c que
encerram o movimento regressivo característico da Ontologia fun­
damental, resultam inversões radicais.
Em vez de localizar a verdade, a proposição se localiza na
verdade originária, no domínio do manifesto ou do iluminado que,
conforme nos antecipou a experiência da intuição categorial — o
excedente da significação em torno do “é” —, a revelação (Offen-
barkeit) do ser, previamente aberto e manifestado, torna possível.
A terceira pessoa do singular do verbo “ser” pertence, com o enun­
ciado prcdicativo, à estrutura da linguagem, ao expresso do dis­
curso num sistema lingüístico, e sua preeminência, entre as formas
verbais, Heidegger assinalaria constantemente. Por ela passa o eixo
das acepções do ser, e nela assoma a significação indeterminada
dessa palavra.
Por outro lado, o resultado dessa inversão fenomenológica vai
ao encontro da exegese da palavra grega alétheia (não-oculta-
mento), o que confirma o desalojamento da verdade de seu lugar
preposicional, ao mesmo tempo que acusa a diluição desse fenô­
meno no termo latino veritas, à custa do qual se fixaria a noção
de adequado rei et intellectus e o acerto da recuperação do lógos
apofântico, em consonância com a estrutura existente do discurso,
na acepção de articulação do sentido, do dizer interpretativo-com-
preensor, que permite ver um ente, tornando-o patente ou mani­
festo nas palavras. A verdade, como desocultação, dá-se no lógos
180

como apóphansis. "Assim, pois, é inerente ao lógos o não-oculto


(Unverborgenheil), atérheta” (SZ, p. 219).
A terceira consequência decorre do entendimento da própria
jusiiíicávcl pela tendência do Dasein a interpretar-se
segundo o envolvimento a que o sujeita a queda, refletindo os entes
intramundanos que descobre cm torno de si e junto aos quais se
encontra. Ha perspectiva do scr-no-mundo da existência cotidiana,
o discurso pronunciado reverte à forma estabilizada da linguagem;
a proposição sc objctifica, tornada instrumento, como algo dispo­
nível que também dispõe dos significados, transmitindo-os e con-
servandoos, c que se relaciona a coisas — o ente-à-vista; o nexo
descobridor da indicação, a referência, coisiíica-sc iguaímente, de
maneira que a verdade preposicional pode ser concebida a modo
de uma coincidência entre duas espécies de scr-à-vista — a inte­
ligência, a mens, o espírito, e a corsa rcprtywifmfc, ambos presenti-
ficados um diante do outro, Depara-se-nos, dc novo, neste passo,
entrelaçada ã existência da verdade, a mesma dominância da inter­
pretação entitativa do ser, estampada na ousía, ou parousfa dos
gregos —■ cm combinação com a significação preliminar do ente —,
o que é ou o que está presente (Anwesenheit), modo de Icinpora-
lização da temporalidade interferente na gênese do conhecimento
ontológico, que é O êxtase preponderante que a linguagem impõe
ao discurso, muito embora seja este temporal em si mesmo (cf.
SZ, p. 349).
A quarta consequência, também subentendida no ponto de
partida da Analítica — a conduta de trato — e no desenvolvimento
conceptuj] da Hermenêutica do Dasein, sempre ao longo da expe­
riência do Lebenswelt reduzida u óptica do cotidiano, c a transfe­
rência da significação de "realidade" aos entes intramundanos,
absorvidos pela categoria do scr-à-vista em que recai o Dasein, por
via da fuga a si mesmo, encobridora da existência fâclica e de sua
finitude — do desabrigo do ser-no-mundo, de que a angústia é o
fenômeno revelador. O que se chama de “realidade” pressupõe o
mundo, e, portanto, a estrutura do Dasein, o que também significa
já sc contar antecipadamente com a armação das categorias tradi­
cionais e podermos referir-nos ao que é ou ao que existe (a exis­
tência na acepção estabilizada dc eirsícMíta), laborando na com­
preensão prévia c indeterminada do ser. Do ser dessa compreensão
nào podemos dizer que é isso ou aquilo; ao contrário, é por via
dc tal compreensão que podemos dizer das coisas o que são c
como são, O “é” significa o ser, mas o ser não significa nenhum
dos modos de afirmação categorial, nem uma coisa nem um ente,
"Por certo, só enquanto o Dasein é, quer dizer, u possibilidade
181

ôntica da compreensão do ser, ‘dá-se’ ser (gibt es Sein)” (SZ,


p. 212).
Atente-se para o conteúdo dessa sentença, “dá-se ser” (gibt
es Sein), que transfere o sentido do "é" à compreensão do ser
inerciitc ao Dasein, e que se refere ao ser dessa compreensão pela
significação corrente da expressão coloquial ei fiibt — dá-se, ocorre,
manifesla-se. Dá-se ser, < a "realidade” é o que sc descortina, já
no âmbito da existência, através da conduta pertinente ao conhe­
cimento. Quando dizemos de uma coisa que é conhecida, afian­
çando-lhe a realidade, no modo do ver teórico, o ser já se mani­
festou de antemão.
Fundado na estrutura do Dasein — eis a quinta e última con-
«qüência dc nossa .lista —, o conhecimento teórico é uma modi­
ficação da experiência antepredicativa, endereçada ao descobri­
mento dos entes, visando-os como universo dc coisas subslantes.
Esse visar, como um saber a respeito delas, desvinculado da práxis,
e que desde Aristóteles identifica o “desinteresse” da teoria, está
na dependência de uma projeção de possibilidades do Dasein, atra­
vés das quais a totalidade do ente se tematiza, isto é, organiza-se
em função de um domínio descoberto do ente, que se apresenta
como objeto, e que assegura a objetividade do conhecimento. O
apresenlar-se conto objeto demanda a prescntificação do ente, re­
querendo, portanto, aquele modo de femporalização da temporali-
dade, que parte do prenttue c que nele se detém. O ente vem ao
nosso encontro e, objeto para um sujeito, coloca-se diante de nós,
enquadrado numa perspectiva formadora, à luz da qual se desco­
brem propriedades, relações, constâncias ou uma ordem de fatos
empiricamente comprováveis.
Tal seria a gênese existentiva da atitude teórica prolongada
na ciência, afeta a um domínio entitativo descoberto, a um positum,
que a ciência não funda, e que possibilita, no entanto, o processo
de investigação e de descoberta científica, de que deriva um deter­
minado corpo de enunciados proposicionais. Em Ser e tempo,
Heidegger diz, expressamente, que a “ciência pode definir-se como
um conjunto de proposições verdadeiras coordenadas e fundamen­
tadas (Begrundungszusamennhang)”, e que ela é, enquanto con­
duta do homem, “a forma de ser desse ente” (SZ, p. 11). A ver­
dade dos enunciados científicos — a verdade da epistéme — é
sempre derivada: radica numa verdade mais originária, na revela­
ção antepredicativa do ente, que podemos chamar de verdade
ôntica (cf. WG, p. 12). Mas essa verdade ôntica encontra sua
possibilidade no desvelamento do ser — a verdade ontológica —,
sem o qual não haveria descobrimento do ente.
182

4. A essência do fundamento

O dcsvclamcnto nos leva de volta ao livre espaço de jogo da


transcendência, cm que Kant divisou o segredo das categorias tra­
dicionais, “a raiz desconhecida": □ tempo originário, fundo abismai
da Metafísica c sentido do Dasein, da finitude da existência. ”A
existência como forma de ser é cm si finitude c como tal é possível
unicamente com fundamento (auf dem Grunde) da compreensão
do ser” (KPM, p. 206).
A compreensão do ser, acrescenta Heidegger,
não tem a universalidade inocente dc uma propriedade humana
que aparece comumenlc entre muitas outras; mas sua "universali­
*'
dade ií a originalidade de fundamento (Orund) mais intimo d»
finitude do Dasein (XPóf, p. 206).

O tempo originário rcvclou-se-nos, por nele explicitar-se o fundo


da compreensão prévia do ser, o fundamento da finitude — do
ser-no-ntundo. dc que deriva a assinalada transcendência do Dasein.
O Dasein c transcendência na medida em que sc encontra em meio
ao ente c conduz-se sempre relafivamcntc ao ente cm sua totali­
dade, ullrapassando-o na direção do mundo. Segundo vimos então,
o conceito heideggcriano de liberdade, como poder-ser livre, aponta
para esse ultrapassamento.
Foi dessa forma que se configurou para nós, já ao proceder­
mos à análise introdutória do conceito dc Dasein, a rdação entre
ser-no-mundo e transcendência, dando-nos, depois, a angu! ação do
sujeito transcendental cm Kant c a perspectiva ontológica cm que
se rcenquadrou o problema do conhecimento. A transcendência,
lemos em Da csjéncwr rfo fundamento, "não sc deixa determinar
como relação sujeito-objeto” (HA7, p. 19).
O Dasein, que se mostra cm meio ao ente ultrapassando-o,
vem, nessa mesma ultrapassagcrn em que permanece, ao encontro
“daquele ente que ele e como dc si mesmo” (IVG, p. 19). A trans­
cendência constitui a ipseidade, o sí-mesmo. Nisso está a origem
do conceito dc mundo, que Kant qualificou dc idéia transcendental
da razão. enquanto totalidade incondicionada. Sempre compreen­
dida por nós, o que não quer dizer conhecida — antccipadora c
abarcadorn (vorgrcifende-umgreífcnde) —, a totalidade c aquilo
"a partir do qual o Dasein sc dá a entender a que eme pode diri­
gir-se sua conduta c como pode conduzir-se em relação a ele’1
(HXz, p. 37). Mas. nesse conduzir-se, nesse ultrapassamento para
o mundo, o Dasein sc “lemporaliza como um si-mesmo, isto é,
como um ente entregue a si mesmo para ser. No ser desse ente
183

se trata dc seu podcr-ser” (IW, p. 37). Tal podcr-ser é a libcr-


dadc. que nSo deve confundir-sc com uin ato dc vontade, mas que
í movimento de transcendência — o projctar-sc dc possibilidades,
implicado na conduta do Dasein, e dc que sc forma todo querer.
Ora, na formulação do racionalismo clássico, o problema do
fundamento era solucionado como pwicípro dc razao (nada existe
sem razão, lado ente jeni uma razão)„ que uniría a ratio csstndi
(razão de ser) à ratto cogríoscendi (razão de conhecer). Mas o
que é, afinal, esse princípio como principia, como archf! “Prin­
cípio é aquilo que contêm cm si a razão dc uma outra coisa1"
(St?, p. 31)- Para Lcibniz, trata-se da causalidade, que se firma
na existência dc uma primeira causa, interpretada como ser neces­
sário, princípio c fim de tudo o que existe, também razão do con­
junto das coisas, 0 pwtptê da ordem espiritual c natural. Do ponto
de vista da Ontologia fundamental, que reduz o conhecimento onto­
lógico à condição temporal de sua possibilidade, a essência do fun­
damento rcvcla-se nesse porquê, possibilitado pela transcendência,
que deixa o Dasein livre para instaurar a raffo — para dar razio,
ration&n reddere, para fundamentar (bcgriindcn) —, na medida
cm que, como projetame. já sc encontra cm meio à totalidade
do ente.
“O Dasein funda (stiftet) o mundo somente enquanto se funda
no meio do ente" (UG, p. 46). * O dar razdo, o fundamentar
(begriindcn), que deve legitimar a verdade Ônlica, procede de um
prévio desvela mento (cnthülhing) do ser (verdade ontológica), que
dá acesso a essa verdade ôntica, tornando possível 0 wu modo de
descobrir ou revelar (Entdcckcn, Erscliliessung). Com as idéias
conexas dc fundo (Grund), fundar (griindcn) c /wndojticnrar
(begründen), entre as quais sc estabelece um jogo verbal para-
nomástico, que distingue o estilo expositivo do pensador desde Ser
c fewjpo, Heidegger reexpõe, dc um novo ângulo, a driposífão c a
pro/eçío, aspectos da constituição existentiva do Dasein, já de
nosso conhecimento, correspondentes ã conexão com o mundo, ao
significado do “ser-em” (sein in) da expressão “ser-no-mundo”.
Transferido para o âmbito da transcendência, o fundamento
comportaria ires modos distintos; o erfgir (stiítcn), no sentido da
pro/epío, do investimento do ente nas possibilidades do Dasein; o
e?fz<u»rr-se (Boden-nchmcn), no sentido de estar já situado no
ente, por ele investido; c o fundamentar (bcgründen), em que,
por força dc sua transcendência, o Dasein “assume a possibilitaçào
(Ermogliçhung) da revelação do ente cm si mesmo, a possibilidade
da verdade õnlíca" (IfG, p. 48). Aos dois primeiros modos con­
siderados conjuntamente, que correspondem ao que chamamos de
“fundo”, para diferençar do “fundamento’*, na acepção do terceiro.
184

acrescentasse agora, em proveito do tema da liberdade, a dialética


do excesso (Übcrschwung) e da privação (Enlzug). O que
diz respeito ao poder-ser compressor projetante sobre possibilida­
des^ contém sempre possibilidades excedentárias, que escapam ao
Dasein, a cie subtraídas pelo seu ser-no-mundo, a partir da situação
fáctica, onde se enraiza — "em meio ao ente onde se encontra
*'-
lançado A “harmonia transcendental” (transzendentalen Eins-
piden) de excesso c privação esclarece a unidade do erigir e do
ijwrarzflr-jí?, por sua vez recsclareccdora da igual originariedade da
estrutura projetiva do compreender e do caráter fáctico da dispo­
sição. É nessa unidade que vem a fiux a origem da intençionali-
dade, como "elemento constituinte privilegiado da existência".
Esses dois modos de fundar, que são componentes da tcmporaliza-
ção, da constituição “ek-stático horizontal do tempo", em cuja
essência radica a transcendência, possibilitam, no sentido mesmo
da temporalização, o porquê do fundamento, isto é, do rationem
reddere. O porgrrt? brota (enispringt) das possibilidades que se
retraem na projeção; brota daquilo que é possível pela privação de
outros possíveis.
Parece que as imagens de conteúdo orgânico (como brotar,
ed&dir, florescer) são também uma necessidade corrente do pensa­
mento; elas tem curso forçada quando a Hermenêutica, que expli­
cita o que já se compreendeu de certa forma, tenta exprimir dife­
renças conceptuais irredutíveis aos próprios fenômenos conceptua-
lizados, e consegue descrevê-los como totalidades, de que os com­
ponentes também são todos e não apenas partes. As palavras
"brotam” do discurso; o "norquê” do fundamentar brota dy "fun­
do” constitutivo da existência. Tudo que existe lem porquê. Para
empregarmos □ mesma imagem, diriamos que esse porquê causai
ou explicativo “brota" de um porquê interrogativo, cm que se afirma
a transcendência do Dasein. A possibilidade da razão, do porquê,
nasce da possibilidade do perguntar, comprometida com o cuidado:
"por que assim c não dc outra maneira?
** (JfG, p. 48). A natureza
inquisitiva do Dasein. interrogante c interrogado, que indaga sobre
as coisas e sobre si mesmo, porque se põe em questão, remonta
à questão do ser. Uma mesma origem transcendental vige para
a interrogação c para a razão: a compreensão do ser, que dá “como
resposta que a tudo precede, simplesmente, a primeira e última
fundamentação" (IfG, p. 48). Inerente à constituição do Dasein,
ao seu ser-no-mundo, essa mesma compreensão, que o entrega à
sua finitude e à sua liberdade finita, possibilita o fundamentar
(begründen).
Os três modos antes caracterizados da transcendência confi­
guram a liberdade como liberdade para o fundamento, o que
185

significa que a verdade ontológica possibilita a verdade ôntica.


Mas o fundamento, que tem na liberdade ou transcendência a sua
raiõo, é abisma — literal menle, o sem fundo (Grundlos, Abgrund):
a cadeia ontológica se compleia, e o jogo ’ verbal chega ao limite.
O abismo da liberdade, outro nome da finitude, que confirma o
destino do Dasein, é a escolha necessária, porém fihita, de possi­
bilidades. Enquanto poder-ser, a liberdade, de. que fala Heidegger,
é despotenciada: \
ainda que situado no meio do ente e por ele investido pela dispo­
sição, o Dasein, como poder-ser livre, está lançado entre os entes.
O fato de que seja um si-mesmo em potência, e de que o seja em
correspondência fáctica com a sua liberdade; que a transcendência
se temporalize como proto-acontecimento, não está no poder dessa
mesma liberdade (WG, p. 54).

Ao contrário do ato instaurador da ratio, do poder do espírito


afirmando-se no conceito pela reflexividade do Eu, o dar razão do
fundamento não é posto. A temporalização é o fundo da compre­
ensão do ser, e a transcendência, “como o fundar situado que
projeta o mundo”, é o aí em que se dá o ser. Finito, o Dasein
“não é no fundo dono de si mesmo”; radicado no ser, que é o
transcendente, e não no ente que transcende, esse desapossamento,
sem o qual ele não poderia tornar-se aquilo que deve ser, e que,
paradMalmcnte, abre-lhe o caminho da apropriação de si mesmo
por si mesmo, não tem, contudo, a sua contraparte no senhorio de
um ser supremo. O radicalismo ontológico de Heidegger recusa-se
a um enraizamento teológico.

5. O radicalismo ontológico e a viragem

Transferindo para a transcendência o princípio de razão ou


de fundamento, Heidegger completava a preparação à propositura
da questão do ser em geral, suspendendo a vigência histórica da
Ontologia tradicional à verdade originária do desvelamento do ser-
-noção-limite do radicalismo ontológico assumido. Formulado em
Ser e tempo, e desenvolvido nos três escritos subseqüentes,
Kant e o problema da Metafísica, O que é a Metafísica? e Da
essência do fundamento, esse radicalismo ontológico, que produziu
a reinterpretação de Kant, como prólogo de uma Metafísica do

8 A propósito do emprego que vimos fazendo do termo “jogo” e de seu


alcance em Heidegger, ver Epílogo, IV.
186

Dasein, que apreciamos no capítulo anterior» subvertería a Meta­


física como Filosofia primeira, ao cspor-llie a estrutura existentiva
interna, emprestando-lhe uma validação fenomenológica circular
pelo desdobramento do círculo hermenêutico, também, segundo
vimos, círculo da história c da linguagem. De tal subversão resul­
taram Ires deslocamentos encadeados, que precedem e prenunciam
a viragem licídeggeriana: doj prúicíprí» lógicos e dos cânones me­
todológicos, da positMdtide das ciências c da espeerdação filosófica.
A transferência do princípio de razão à essência do funda­
mento estende-se aos princípios de identidade e não-contradição,
fulcro lógico-ontológico da tradição metafísica, e que
não são também apenas transcendentais, mas apontam para trás,
para algo mais originário, que não possui caráter preposicional,
e que, antes, faz parle do acontecer da transcendência como tal
(temporalidade) (B'G, p. 52).

Do mesmo modo que a “forma sancionada dc princípio” informou


o problema da transcendência, na interpretação moderna das con­
dições transcendentais do conhecimento, a fixação da verdade como
adequação absorveu o caráter apoflnlico do lógos na estrutura
estabilizada do enunciado preposicional, que passará a significar a
íorma do pensamento, sujeita a um regime lógico-íormal, dc que
os princípios de identidade c de não-contradição seriam os esteios
inabaláveis.
Os cânones metodológicos da época moderna regulariam o
preenchimento da forma lógica pelas fatos, segunda a evidência do
pensamento, que existe cm si e por si mesmo. A essa evidência,
a Ontologia fundamental antepòe aquilo que de mais originário
desponta na transcendência — a compreensão do ser inerente ao
Dasein, c que, tendo servido dc fio condutor à Analítica, faz desta
unu contestação do cartesiano. O "ser-no-mundo” í a
glosa do Cogito que o inverte; à fórmula “penso, lago sou” — a
possibilidade do pensamento, ínelusiva do ser c da verdade —
substitui-se a experiência retroativa do “sou (no mundo), logo
penso” — o pensamento como possibilidade dc um ente que se
conduz relativamentc ao ser.
Também suspensas à verdade originária, as ciências, que não
constituem uma “instância fundadora” (fVG, p, 15), deslocam-sc,
como possibilidade da conduta do Dasein, ao fundamento que a
liberdade instaura, c podem confirmar, sejam elas ciências do
espírito ou da Natureza, pelo próprio domínio crditativo do ente
nelas descoberto, que lhes confere a positividade, o ponto factum
metafísico da finitude. Esse deslocamento não é, porém, uma
remoção do eixo diretivo, lógico-metodológico, do conhecimento
187

científico paia o nívd dc um conhecimento metafísico suposta­


mente dc ordem superior, tal como praticada pela Nco-EsedástiL-u
ainda no primeiro quarto do século. Muito menos ainda representa
a posição de Heidegger unia expressão daquele ‘'rfréwveu dc la
jcienre' pela Filosofia a que sc referiu Mcrlcau-Çonty 1(>, talvez
pensando mais no iniuitivismo dc Bergson do que na Fenomcnolo-
gia heideggeriana. Ao xxint riprio, trata-se de extrair da postlividadc
mesma, do reconhecimento da verdade ôntica cm que 05 conceitos
fundamentais das ciências assentam, da conduta positiva para com
o ente que a objetividade própria a cada domínio científico revela,
o perfil da questão do scr, O que sc desloca, ao qualificar-sc a
liberdade de “fonte do princípio dc fundamento”, não c a validade
intrínseca das ciências, mas 0 seu sentido, enquanto possibilidade
humana. O sentido do conhecimento cientifico, que, como teoria,
nasce da experiência antcprcdicatíva modificada, é exlracientífico.
Em primeiro lugar, os conceitos fundamentais dc uma ciência, que
cnkixam a compreensão prévia do domínio entitativo por ela des­
coberto, não são deslindáveis nem instaurados pela própria cicncia.
As descobertas da investigação incidem sobre o já aberto do ser
dos entes, no modo de compreender afeto à projeção (cf. SZ, §
69, 6)11, que predelineia, tematicamcntc, a experiência constitu­
tiva do respectivo domínio, ou, para empregarmos a linguagem de
Kant, que articula as condições « priori pelas quais os objetos são
pensados, c a experiência se torna possível. Em segundo lugar,
uma vez que a projeção, que lematíza a experiência antepredica-
tiva, c uma possibilidade do Dasein, de seu podcr-scr livre, a mo­
dalidade de abrimento correspondente é um acontecer histórico.
Assim, por exemplo, a projeção matemática da Natureza está na
gênese da Física moderna. Dentro da perspectiva articuladora do­
minante que aí lematiza o ente como mensurável — e que foi, por
sinal, levantada por Husserl na Krisrs, sob a forma de experiência
absiraliva. que fixou um tipo de racionalidade — podem determi­
nar-se “fatos” e planejar-se “experimentos”.
A historicidade das ciências expressa-se, portanto, nos con­
ceitos fundamentais em que elas assentam e que traçam o horizonte
compreensivo de uma projeção.
O nível de uma ciência — lemos no § 3 de Ser e tempo —; deter -
mina-se por sua capacidade de experimentar uma crise de seus con­
ceitos fundamentais. Nessa crise imanente das ciências, vacila a

10 Avant-propos. In: —. Phénoménologie de la perception. Paris, Galli-


tünrd. I94.J,, 2, parte.
" Efc. mesma linha de pcnwnicnto acerca da gênese (ou da genealogia)
da. ciência, moderna, desenvolvida em Ser e tempo, continua em A época
da imagem do mundo (Die Zeit des Weltbildes) em Holzwege.
188

relação mesma da investigação positiva com as coisas a respeito


das quais indaga. Por todos os lados despontam hoje, nas distintas
discipliiüts, tendências a firmar a investigação sobre novos funda,
mentos (SZ, p. 9).

As crises imanentes, como movimento de ruptura de uma perspec­


tiva dominante, assinalariam períodos de revolução científica, à
semelhança do que foi cociànco à elaboração de Ser e tempo,
durante os quais sc opera uma revisflo de conceitos. Dessa forma,
riovendo-se sobre uma linha descontínua, a história autêntica das
nínetas dependente de possibilidades projetivas, e recaindo na
lialética do excesso e da privação própria à liberdade, remonta a
nomentos de decisão e, sujeita à temporalidade extática, obedece
10 mandato (Geschick) da “silenciosa força do possível” (SZ, p.
194). O processo de substituição das perspectivas — a que também
poderiamos chamar de paradigmas12 — que por muito tempo do­
minam, com a vigência penetrante das visões do mundo, as teorias
de uma época, a que servem de base tácita, porquanto regulando
as expectativas do conhecimento, não decorre, como admite o
positivismo, da economia interna das ciências, da produtividade
expansiva dos métodos, do aumento afirmativo do saber pela única
necessidade lógica dc coerência e de aufo-adaramento. Assim, a
irrupção da crise, que põe em causa, num momento, a rotina das
práticas estabilizadas e institucionalizadas, é, antes, o sobressalto
da liberdade para fundamentar, temporalizando, sobre “o abismo
(sem fundo) do Dasein”, de sua transcendência, a verdade origi­
nária que desvela o ente desocultando o ser, fundamento de toda
verdade ôntica. O pontear dessa abertura desloca para a transcen­
dência, e, por conseguinte, para fora do universo científico insti­
tucionalizado, que é parte do mundo circundante público do coti­
diano, e que se tornará, na época moderna, uma força organizadora
da existência, o sentido da prática teórica da ciência enquanto
possibilidade, entre outras, da conduta do Dasein.13 Daí a emer­
gência do proto jactum metafísico da finitude, ligado ao enfren-
tamento do Nada, no conhecimento científico problematizado
enquanto modalidade de existência.* IS

lâNa acepção de modelo ou de padrão de óonhecíftirttro visente empresada


por ThúnlaS S. Kuhn. Vçr (Jo auior zl ttírutunt rtvolufòes cientificei
[The stmeture of scicniifio revolutions), São Paulo, Perspectiva. 1975. Prinei-
paimente o cap. 2 — A nn.iurc.ta da ciência normal.
IS Sobre » ciência, como força organizadora da exiiténcia, vero que concerne
no ertlrccnizamealo da racional idade CÍentlÍKH com a duniniíincia da técnica
no capítulo 13, A viragem: verdade da essência, tópico 13.3, Pensamento
do ser.
189

Em todas as ciências, que direta ou indiretamente se referem


ao mundo, fundadas num comportamento da existência humana
livremente escolhido, “o ente se manifesta por aquilo que é e tal
como é” (WIM, p. 26). A inquietude do “porquê” cessa na afir-
matividade das proposições científicas verdadeiras. O cientista
assegura-se um domínio entitativo pleno, a partir de üm positum 14*
,
inclusive o teólogo, que o recebe no modo da. fé, como aconteci­
mento histórico projetivo,, quê' abre o ente, e que o tematiza na
experiência cristã da vida.
Mas o estranho — acrescenta Heidegger a esse elogio hiperbólico
da ciência — é que, precisamente, no modo como o cientista asse­
gura o que lhe é mais próprio, ele fala de outra coisa. Pesquisado
deve ser apenas o ente, e nada mais; somente o ente, e, além dele,
nada; unicamente o ente, e, além disso, nada (WIM, p. 26).

Como modalidade de conduta do Dasein, a ciência fala tacitamente


do Nada, que a sua relação afirmativa com o ente rejeita.
Esse elogio hiperbólico da positividade da ciência, com que
começa a pequena conferência intitulada O que é a Metajísica?,
é duplamente irônico: propõe a questão do Nada à custa da ciência
e depois propõe, nessa indagação, sob nova forma, que converte
a Metafísica num acontecimento essencial da existência, deslocando
o eixo tradicional da especulação filosófica, a mesma questão do
ser, a resgatar-se por um ato de rememoração do olvido em que a
encerrou a tradição filosoficamente hegemônica do pensamento
metafísico.
No capítulo VII, tópico 4, já expusemos o essencial dessa
nova forma da questão: a experiência do Nada, que acontece no
refugir com que assedia o Dasein, transido de angústia, e alcan­
çando o outro que não é o ente. A nadificação desse refugir é a
origem da negação. O fundamento do porquê é o mesmo do
“não”.15 O Nada não é um conceito oposto ao ente, mas pertence,
de modo originário, à mesma essência do ser (cf. WIM, p. 35).
Heidegger falou-nos antes da finitude do tempo originário,
de onde provém a essência finita do Dasein, como ente que com­
preende o ser. Agora nos diz que o ser mesmo é finito “em sua
manifestação no ente”, e que “só se manifesta na transcendência

14 “À ciência de um ente preexistente, de um positum, chamamos ciência


positin. Nesse sentido, a ciência positiva é ôntica.” Cf. Heidegger, M.
Ph<W>menologie und Theologie [Fenomenologia e Teologia], Frankfurt am
M:iín, Vitlorio Kiculcrmnnn. 1970. p. 14.
11 A posição dc Saruê, cm L'£ue el Ir Néant, é uma variante dessa, com a
inniKirtaisie diferença que provim do cariewnnismo sartriano: o ser da cons-
citucij, omio PcMir-íor, í o fundamento da negação.
190

do Dasein suspenso no Nada” (fP/M, p, 40). Por conseguinte a


questão do Nada é a mesma questão do scr. Sob uma forma aguda
e contundente, a questão do ser golpeia o império da Lógica na
Metafísica, transformando a superioridade da ciência cm ridículo,
c a Metafísica num "acontecimento essencial no âmbito do Dasein"
(W/M, p, 41), é nesse acontecimento essencial que reside o mo­
tivo da Filosofia, "que jamais pode scr medida pelo padrão da
idéia de ciência" (IF/M, p. 41). Pelo fato dc existirmos, já sempre
eslamos colocados dentro da Metafísica — dentro da questão que
questiona a tradição metafísica, o seu posto dc ciência primeira, c
também a posição da Filosofia como puro saber teórico. O acon­
tecer determinante da existência metafísica do Dasein t o ser do
ente que o Nada desvela. Eis a verdade originária da Filosofia
que sc abre na existência.
Quando, portanto, a especulação filosófica começa, ela já
c um recomeço, mobilizada, dc cada vez, pela questão do scr, c
encobrindo essa mesma questão sempre que recomeça. Encadeada
à compreensão do cotidiano, por onde a Analítica principia, a
Ontologia fundamental, que enceta a gênese, a genealogia inlcrpre-
tativa dos conceitos antológicos preponderantes, reitera aquela
questão, rememorando o ser esquecido —- a provertrénarr ccnhujw
das acepções arislotéljcas do ente (capitulo II deste volume), pas­
sada cm silencio pela Metafísica: silencio que acompanhou o
desenvolvimento dc sua história, c que com essa história sc con­
funde. Na tensão extrema de seu trabalho interpretalivo, a Onto­
logia fundamental quebra o silencio, tentando desencobrir, no recuo
a uma origem que ela não funda conceptualmcntc, c que a deter­
mina, o que ocorre dc maneira obscura c distorcida no pensamento
filosófico. O scr é o trirujcendenr que cia descobre na transcendên­
cia do Dasein. A Ontologia fundamental c a Filosofia realizada
como
Ontologia universal c fenomcnológica que parte da Hcrmenêutifti
do Dasein, que, por sua vez, como Analítica da existência, liga o
ponto do fio condutor dc Ioda a questão filosófica àquilo de que
surge e para onde retorna (SZ, p. 38),

Ao rcalim-se, a Filosofia desvendasse como serva dc uma mesma


questão, remontando à verdade originária na qual toda verdade
ôntica está fundada. ‘'Verdade ôntica e verdade onfológica sempre
se referem, de maneira diferente, ao ente em seu ser e ao ser
do ente” (WG, p. 15).
Mas, perfazendo-se como Analítica da existência, que trans-
cendens descobre, finalmente, a Hermenêutica do Dasein, senão o
191

tempo originário? A diferença do ente ao ser,16 surgida na órbita


da transcendência do Dasein, e que é o acontecimento metafísico
determinante do próprio Dasein e da Filosofia, corresponde ao
transcendens descoberto. Assim, em seu extremo limite, a Onto­
logia fundamental detém-se diante dn tff/crpqffl epc aproxima o
lempo do scr c que distancia do ser o ser do ente. No momento
em que, exaurida a compreensão do Dasein cm si mesmo c por si
mesmo, a investigação sc tdfnou livre para alcançar a sua verda­
deira meta — o sentido do ser —, ela também alcançava, deso-
cultando a verdade secreta da Filosofia, o seu ponto de fuga, onde
tudo podería inverter-se dentro do âmbito circular em que até ali
se movera. O sentido do ser em geral, a que se ligaria a ponta do
fio condutor — a pergunta empós o ser — depois de desenrolado
através do ente que o compreende de modo prévio, em sua exis­
tência, excede e determina essa mesma compreensão.
“Pode a pergunta encontrar sua resposta, retrocedendo à cons­
tituição originária do ser do Dasein que compreende o ser?” (SZ,
p. 437). Essa constituição originária, que faz do Dasein um ser-
-no-mundo, é a estrutura da subjetividade. Foi, afinal, a compreen­
são do ser que autorizou Heidegger a praticar a epoché da cons­
ciência (capítulo III, tópico 3). O ser da consciência, de que se
fala no § 83 de Ser e tempo, em vez dc região ontológica privile­
giada, é a relação de pertença (Zugchõrigkcit) do homem ao ser,
possibilitando o conhecimento de si — a ipseidade e a transcen­
dência. Por isso não é o homem Daseiende, mas Dasein:17 a
abertura, o aí da existência fáctica, vai tanto do homem para o
ser quanto do ser para o homem. Seria cabível, então, diante disso,
continuar um caminho que, apenas sustentado pela segunda redu­
ção, mantinha o foco da subjetividade do qual partira? Não se
precisaria inverter o passo da investigação, e, em vez de perseguir
o ser em geral, tomando a temporalidade por base, redimensionar
a busca sob o foco do ser já desvelado, e que possibilitara o pro­
jeto de uma Ontologia fundamental?
O tratamento que a idéia de verdade recebeu em Ser e tempo
deixava prever, até pela extrema dificuldade de suas conclusões
ambíguas, a inversão de rumo que separou o primeiro Heidegger

16 Apenas indicada aqui, a diferença entre ser e ente centralizará a questão


heideggeriana do ser, conforme se verá nos capítulos 13 e 14, principalmente.
17 “L’exccllence de 1’existence humaine parmi les objets qui nous entourent
tient au fait que 1’homme existe ontologiquement. Son essence, Ce qu’il est,
sa quiddité, consiste à exister. Aussi Heidegger 1’appelle Dasein et non pas
Daseiendes.” Levinas, Emmanuel. En découvrant 1’existence avec Husserl et
Heidegger. Paris, I. Vrin, 1949. p. 81.
192

do segundo Heidegger. A virada de Ser e tempo cm Tempo e ser,


iniciada no ensaio Da essência da verdade, c que foi uma mudança
de foco, exigiría não apenas refazer ao contrário o caminho percor­
rido, mas revirá-lo para dentro do círculo em torno do qual havia
se desenrolado. À perspectiva do ser, através da Hermenêutica
do Dasein, sucedería a Hermenêutica do ser — a questão do pen­
samento, antecipada na linguagem e realizando-se como história
— enquanto perspectiva do Dasein.
EXCURSO — REFLEXÃO
SOBRE A LINGUAGEM

1) Norteada pela concepção grega do homem como zóon


lógon éckon, como ser falante, capaz de palavra, a Analítica toma
o Dasein já dentro da linguagem, no intercâmbio do discurso que
o constitui e que o revela a si mesmo. A mediania banal e indife-
renciada da existência cotidiana é o nível discursivo da experiência,
que corresponde à forma estabilizada da auto-interpretação comum
do ser-no-mundo. Assim o campo da Hermcnêüdca, em Ser e
tempo, confunde-se com o da linguagem ordinária. A linguagem
ordinária impossibilita a total redução fenomcnoláglca c responde
pelo caráter residual do ser da consciência na Fenomenologia trans­
cendental dc Husserl. É na linguagem ordinária que o sujeito se
encontra aderido ao mundo, e é nela que o mundo se antepõe ao
Cogito. O nexo com o mundo já está efetuado nesse elemento,
meio e campo da experiência hermenêutica, que integra os seus
momentos interrogativos e a matéria da interpretação, a começar
pelo preliminar levantamento do Dasein.
O indicador da existência do Dasein é o pronome pessoal em
sua forma geminada “eu-tu”. “A menção do Dasein tem que ajus­
tar-se ao caráter do que é em cada caso meu (Jemeinigkeit) já
subentendido pelo pronome pessoal: eu sou, tu és” (SZ, p. 42).
Ao léu da solicitude, o Eu cotidiano, instância individual de emis­
são e recepção do discurso, pode não ser “eu mesmo em caso
algum”, assinalando o lugar de um outro que não é o tu, mas o
estado público, impessoal e indefinido da existência exteriorizada e
objetificada: o lugar do ser coletivo, marcado pela locução a gente.
Incorporando-o, a linguagem, eminentemente mundana, também se
objetifica e regula a interpretação comum do Dasein. A queda é
um ir à deriva da linguagem, concebida a modo de potência ambí­
gua que possui o Dasein e que o aliena, desapossando-o de si
mesmo numa atividade verbal repetitiva e reflexa.
194

A liberação da existência, do poder-ser, exprime-se na libera-


ção das possibilidades extremas do discurso — o ouvir e o silenciar,
que são as condições existentivas do diálogo e da apropriação do
si-mesmo autentico. A angústia nos tolhe a palavra. A parolagem
protege-nos da angústia,, de que fugimos, A pre-meditação da
morte e a decisão coincidem pelo silêncio. O apropriar-se de si
mesmo, duplamcntc silencioso, aceita a angústia, que emudece ç
retrai-se à menção do Eu. Num tom dc paródia a Wittgenslcin,
certamente justificável, pode-se afirmar, então, que os limites da
linguagem são os limites do ser-no-mundo c das condições íácticas
de sua abertura.
O método hermenêutico move-se entre esses limites, que tam­
bém o possibilitam. A relação entre o plano existencial e o plano
existentivo concretiza-se numa relação entre linguagem e discurso
— entre palavras proferidas c tógoj, enquanto dizer compreensivo
que ouve c silencia.
2} O discurso, como linguagem existentiva, e a linguagem,
como discurso pronunciado, sào o verso e o reverso do lógos, no
qual os gregos enfeixaram a essência do homem. O lógos é esse
elemento linguageiro (spracldíclt) da experiência — o falar uns
com os outros sobre algo, a que Platão se referiu no Crátilo. Pois
"do momento em que somos um diálogo”, podendo compreender
de imediato as palavras de outrem, morando na compreensão do
que significam, é no circuito da fala que as palavras brotam das
significações articuladas. Mas essa floração verbal pertence ao
domínio das línguas. Heidegger já as considerava, em seu trabalho
juvenil sobre Duns Scotus, como “um conjunto orgânico dc pala­
vras cunhadas pela significação”, e que visam “à completa comu­
nicação do sentido do discurso” (FS, p. 246-7).
O discurso não é, porém, a unidade interna das idéias prepa­
radas no pensamento e transferidas à linguagem. Evento da atua­
lização das significações de uma língua no ato da fala, c pelo
discurso que a linguagem começa. fijrgoH e enérgeia, a linguagem
existe no conjunto de signos que formam o “sistema virtual” 1 dc
um idioma e em cada ato do discurso. Diante disso, a concepção
heideggeriana tenderá a absorver o lógos nas línguas e a linguagem
na fala das palavras que nomeiam.

IO sistema c tsimpJoirieiUe virtual1* (c atemporal}. ao contrário do discurso,


que tem. “por nuxlo dc presença uni jwsniindo h naUiKza dc i>ni
acwueeinieirfá. “Falir é um ncomreimento atual, um ato transitório, desva *
nreimento." Ricuf.UR, Paul. A «tnitiira, a palavra, o acontecimento. In: —■-
O conflito lias ííticrprftuçiSrí; crnaicM de Hermenêutica. Rio dc Janeiro, Jmaso.
1978. p. 75.
195

Quando, na segunda fase, Heidegger volta-se para a essência


da lingiLagem, sua intenção é surpreender, alijando a concepção
instrumental em que incorrería a Lingiiística, o que as palavras
dizem por Si mesmas — seu poder dc apelo c dc silencio, o signi­
ficar latente que cias guardam e o significado atual que dispen­
sam —» intenção que se resume no propósito expresso dc fazer
com que a linguagem, como linguagem, chegue à palavra (zum
Wort kommt) (cf. US, p.,. 161), ao-mesmo tempo experiência
hermenêutica e modo de pensamento.
O trabalho de interpretação do Dasein, em Ser e tempo, já
custeia esse caminho. Sem a tradução de lógos, com base no signi­
ficado de légdn (estender, deitar, recolher), como o que torna
patente ou manifeito, convalidando o emprego da Mo-dírcurjo
(díc Rede) cm seu caráter existentivo e, concomitantcmcntc, afian­
çando o sentido dc fd <f« (o que sc manifesta, aparece ou faz-sc
presente), sem essa tradução não havería Hermenêutica do Dasein,
enquanto Analítica da existência, Ddronlamo-nos, de novo, com
a estrutura circular do método hcideggcriano, mas discernindo,
agora, o centro dc onde o círculo é traçada: a intcrsccção da lin­
guagem com o pensamento, da palavra com o ser, na latência das
significações atualizadas no discurso. Eis o que justificará o papel
preeminente desempenhado no segundo Heidegger pelas línguas,
em cujo âmbito concerta-se a inconsciente aliança entre o pensa­
mento e a linguagem. Mas é a linguagem, pelo Lastro de suas
significações virtuais, que propõe os termos do acordo, nos limites
de uma cultura e com a força irradiante de um acontecimento
gerador de história. Assim, quando Aristóteles pautou as categorias
do pensamento pelas categorias da língua grega, essa aparente trai­
ção da linguagem ratificava uma tradição da qual a Metafísica
derivou, enraizada nas mesmas palavras do idioma — a constelação
lingiiística do verbo einai (ser) — manifestantes da experiência
originária do ser.
A língua não orientou evidentemente — diz Emile Benveniste —
a definição metafísica do ser. Cada pensador grego teve a sua
própria, mas ela permitiu fazer do ser uma noção objetivável que
a reflexão filosófica podia manejar, analisar e situar como qualquer
outro conceito.2

Essa conclusão de Emile Benveniste não é de modo algum


estranha ao pensamento de Heidegger, salvo quanto ao alcance do
trabalho da linguagem. O notável lingüista capta esse trabalho em

2 Catégories de pensée et catégories de langue. In: —. Problémes de Lin-


guistique générale. Paris, Gallimard, 1966. v. 1, p. 71.
196

função do sistema da língua, que permitiu fazer do ser uma noção


objetivável. Heidegger parte do trabalho da linguagem, indiscer-
nível da experiência do ser, que a noção conceptual respectiva não
esgota, para o sistema da língua. O conceito de ser detém a estra­
nha propriedade de objetivar-se para a reflexão como os outros
conceitos, e de, ao mesmo tempo, imiscuído em todos, traçar o
domínio do que é objetivável.
Sem dúvida foi a língua grega que proporcionou as condições
para essa estranha propriedade de objetificação, que se verifica na
alternância entre os distintos regimes ou funções da palavra “ser”,
como verbo (função lógica, copulativa) e como substantivo (fun­
ção nominal pelo emprego do artigo quando no particípio presente).
Mas, empenhada tanto na fusão das diferentes raízes de que se
originou o único verbo (einai) quanto no desaparecimento mor-
fológico de modos diversos do infinitivo, em proveito de uma só
forma substantivada (cf. EM, p. 52-3), uma tal objetificação, que
tornou a palavra um nome para algo indeterminado, permitindo,
por isso, os empregos singulares do verbo “ser” a que se refere
Benveniste — verbo que recebeu uma extensão maior que a de
qualquer outro da língua, seja como cópula, seja como noção nomi­
nal, num regime de oscilações contínuas, que dele fizeram um
vocábulo vazio, de significação flutuante, capaz de apresentar-se
em todos os predicados, sem esgotar-se numa significação determi­
nada —, uma tal objetificação, expressa na conveniência do vocá­
bulo “ser” a qualquer ente, já se produziría na trilha de uma expe­
riência originária, articuladora do sistema mesmo do idioma,
porquanto implicada na nomeação e na atribuição. Condicionada
às peculiaridades da língua grega e através dela retomável, essa
experiência, que ultrapassaria os seus quadros morfológicos e etimo-
lógicos pela significação indeterminada da palavra “ser”, no en­
tanto entendida de maneira sempre determinada no circuito da fala,
teria, por sua vez, condicionado as próprias estruturas do idioma. ..
O ser “não consiste apenas na palavra e no seu significado” {EM,
p. 67), e a experiência correspondente, não privativa da língua
grega, mas nela historializada com o pensamento filosófico de que
foi o berço, confunde-se com a inteligibilidade das significações
em diferentes contextos linguísticos, à custa de outras constelações
de palavras.3 Significação latente a todas as significações, que per­
mite reconhecer ou identificar as oscilações do vocábulo, no movi­
mento conversor do verbo em substantivo e do substantivo em

3 Cf. Derrida, Jacques. Le supplément de copule. In: —. Marges de la


Philosophie. Paris, Minuit, 1972. p. 240.
verbo, o ser entreabre-se no “é”, a terceira pessoa do singular do
indicativo presente.
Em torno desse ponto-fulcro, concerta-se a aliança entre pen­
samento e linguagem, entre ser c dizer i recíproco envolví mento
numa significação contraditória, indeterminada c determinada ao
niesmo tempo. Não seria essa contradição radical, que nos con­
cerne, e de que brota a floração das palavras no conjunto orgânico
das línguas, a raiz de todas as contradições?
Admitamos — argumenta Heidegger, cm Introdução à Metafirlca
— que não haja essa significação indeterminada e que nfio enten­
damos sempre o que “ser” significa. O que ocorrería nesse caso?
Apenas um nome e um verbo de menos cm nossa linguagem? De
forma alguma. Já não ha verto rlmplcimerue litjgimgem alguma.
Não aconteceria que o ente sc nos abrisse, dc modo • poder itr
chamado c dito. Já não havería nem quem nem o que se pudesse
(alar e dizer. Pois dizer o ente como tal implica compreender de
antemão o ente, corno ente, isto é, o seu ser. Suposto que simples­
mente não compreendéssemos o ser, suposto que ft patavra “scr"
não tivesse nem mesmo aquela significação flutuante, então já não
havería absolutamente nenhuma palavra. Nós mesmos nunca po­
deriamos ser aqueles que falam. Já não poderiamos ser O que
somos. Pois ser homem significa ser um dizente (EM, p, 62).

3) A indagação da essência da linguagem, nova forma da


questão do ser na segunda fase do pensamento de Heidegger, pola­
riza o campo de experiência hermenêutica, antes coextensivo à
linguagem ordinária, cm torno do discurso “poético”, apenas inci-
dcnlalmente referido, uma só vez, em Ser e tempo-. “A comunica­
ção das possibilidades existentivas do encontrar-se (disposição),
isto é, o abrir a existência, pode tornar-se o próprio fim do discurso
poético (‘díchtcnden
* Rede)" (ÍZ, p. 162), Enquanto a linguagem
ordinária, à deriva do poder anônimo que a instrumenta, tende a
encobrir essas possibilidades, a linguagem poética, como forma de
uso nào-insirumental das palavras, que suspende a função comuni­
cativa corrente do falar na lida cotidiana, revela, antes dc tudo,
através de um mood, de um sentimento, dc uma tonalidade afetiva,
o ser-no-mundo. No que quer que transmite, cia projeta a proximi­
dade do mundo, e por meio de “palavras sabidas, triviais", por
meio das mesmas palavras usadas, como que postas em desuso,
recupera as possibilidades do ouvir e do dizer, sobrepondo ao
comércio das significações comuns, à troca na intcrlocução coti­
diana, o intercurso dialogai, forma autêntica da solicitude, do ser-
-em-comum. Em vez de instrumento da queda, as palavras abrem
e mantêm o aberto. Ao mesmo tempo a linguagem se tematiza
como objeto de uma lida singular, que não é preocupante.
198

A tematização da linguagem confunde-se com o fato — tam­


bém fado — da lírica moderna: a linguagem tornada tema, como
o limiar da consciência, ora triunfante, ora padecente, misto de
adesão esperançosa e de empenho perplexo, do poder das palavras,
e que marca o advento histórico de nossa modernidade poética, da
qual o movimento expressionista, que redescobriu Hõlderlin, foi
uma das vertentes. “A poesia cria as suas obras no quadro da
linguagem e ela as cria da matéria da linguagem”, afirma Heidegger
na conferência sobre Hõlderlin, em que o considerou o poeta da
poesia.4
A lida nãó-preocupante é a atividade agonal com as palavras,
“a mais inocente das ocupações1', exercida “sob a forma discreta
de jogo" (FHD, P- 35). Mas esse jogo, de que a sensibilidade e
o entendimento participam, através da imaginação, como na idéia
schilleriana da formação lúdica (ou poética) do homem 5* , é tão
inofensivo e ineficaz quanto arriscado, posto que a linguagem, pos­
suída pelo homem, c que toca à sua essência de animal capaz dc
falar, também consiste, segundo Hõlderlin, no "mais perigoso dos
bens”. O jogo verbal da poesia desinstrumentaliza as palavras;
numa conduta que não é a de trato, cuida da linguagem sem dela
dispor, e, a ela nos tornando disponíveis, cria, numa obra, o
domínio do revelado — da exposição do homem a si mesmo e
ao ser.
O interesse da Hermenêutica transfere-se à correlação entre
arte e pensamento filosófico, delineada no primeiro momento do
romantismo pela crítica de Friedrich Schlegel. Como Nietzsche,
Heidegger verá, nessa correlação, um nexo mais antigo, que, cons­
titutivo da Filosofia, ascende à época trágica dos chamados pré-
-socráticos pelo mesmo veio de experiência originária do ser histo-
rializada no subsolo do idioma. Não haveria experiência do ser
fora da linguagem, e toda linguagem, articulando um dizer “pri­
mitivo” que a perpassa e nos põe em diálogo com o mundo, é
poesia.

* Hõlderlin und das Wesen der Dichtung [Hõlderlin e a essência da poesia],


EHD, p. 35.
5 O imjiuíso lúdico, reconhecido por Friedrich Schlller em suas. cartu Sobre
a edutafito estética da humanidade, remonta ao jogo (Spiel) das faculdades
de conhecimento — a sensibilidade e o entendimento - cm que Kant
asscniou h fundamentação dos juiros reflexivos de Caráter estêiíco. O í 35
da Critica do juiio estético fala-no# num freie Spi-ct dn faculdade de conhe­
cer, fundado no acordo entre as intuições da imaginação (EinhildutisrArafl}
e os conceitos do entendimento. Cf. Kant, E. IFerAr, Kritilt der Urteilsiraft-
Berlin, Georg Reimer, 1911. § 35, p. 286-7.
199

Hõlderlin será então o poeta da poesia; ao rememorar a terra,


os deuses c os heróis gregos, o seu camo, longe de expressar a mera
nD$talgía romântica, evoca, sob o apelo do retorno ao “país natal”,
c sem aderir ã síntese superadora dc Hegel, companheiro do autor
dc Jiiólima no seminário de Tiihingen, o dil.aceramento histórico
do Ocidente. Temática da linguagem, temática dò ser e temática
da história aehar-sc-ãp interligadas para a Hormenêiilica heidegge-
riana, entretida na dccifraçáo dos textos dc Hõlderlin, dc Rilke, dc
Trakl e de Stcfan George, com o mesmo ardor empregado na
sondagem dos pré-socráticos. Transferido a uns e a ouíros, o
“negócio da interpretação”, antes levado ao Dasein, é um jsirt
Azjjwn — um deixar que a linguagem se converta em discursa,
dizendo o que é e mostrando o que diz.
Dizia Mallarmé que a poesia se faz com palavras, e que é
poeta quem lhes cede a iniciativa, deixando que das falem por si
mesmas. Não ó despropositado rckmbrá-to. Mais do que sonda­
gem de um sentido, a Hcrmcncutica heideggeriana tornar-se-á, na
segunda fase, um empreendimento de auscullação da linguagem,
que sc pretende liberar como linguagem, cm sua pura essência
dizente. Por essa auseullaçào, a Filosofia se avizinhará da poesia
tanto quanto a poesia da Filosofia. E ambas falarão sempre do
ser; os textos dos poetas c dos filósofos rememoram, reiterada c
veladamente, mas de maneira diferente, essa mesma experiência
congênita à própria linguagem e à humanidade do homem.8
Não se atribua, porém, a Heidegger, a ilusão romântica de
uma redução da Filosofia à Literatura e à arte. Fugindo ao enleio
da modernidade, o pensador vai enquadrar □ caráter conflituoso
da consciência poética dc nossa época num outro drama maior,
relacionado com o dilaceramento do Ocidente, expresso por Hol-
dcrlín, de que clu terá sido o necessário desvio. Tão ampla quanto
a “poesia universal” de Schlegel, c tão universal quanto o princípio
sintético das artes em Hegel, a poesia, para Heidegger, abrange e
excede o domínio da Literatura. Poesia é poíesis, e a Filosofia, da
qual dirá Hetdcgger que está mais próxima da poesia do que da
ciência (cf. EM, p. 20), é um modo privilegiado da linguagem que
participa da poíesis. Tal como foi para Shelley, a linguagem cons­
tituiría a poesia “primitiva”.
A correspondência entre poesia e linguagem, da essência de
uma em relação à outra, dar-se-ia no elemento mais recuado da
poíesis, a linguagem originária (Ursprache) comum, de que procede,

8 Da diferença entre a poesia no sentido estrito de forma literária (Poesie)


e a poesia no sentido lato de criação verbal (Dichtung), tratarão os capí­
tulos 15 e 16 deste trabalho.
ao mesmo (empo, o lugar da aíéihetfl — da verdade em sua origem
ou da origem da verdade. Tudo sc torna dúbio e rcsvalante nessa
Hermenêutica do sentido do scr retirado da órbita do Dasein:
língua, discurso, poesia, parecem sofrer a irresistível atração do
mito da fala paradisíaca, da linguagem adàmica, também história
originária — a l/rg«c?trcArtf, semente do acontecer histórico, Mas
nessa imagem da semente voltamos ao lógos, como verbo poélico,
em que se inverte o conceito tradicional da razJo (ratio), que foi,
da Antiguidade à época moderna, de Platão a Hegel, a precária
carta de identidade do saber filosófico.
* XII

A ESSÊNCIA DA VERDADE

A história da verdade — do poder próprio aos discursos


aceitos como verdadeiros — está totalmente por ser feita.
Michel Foucault, Microfísica do poder.

1. O § 44 de Ser e tempo

A experiência do Nada confirmotfa transcendência do Dasein,


a sua liberdade como poder-ser. Rcvelou-nos também que a finitude
do Dasein acusa a finitude do próprio ser “em sua manifestação
no ente”. Encampando na diferença entre ser e ente q traço
descritivo mais eminente que a Analítica atribui ao Dasein — o
caráter ôntico-ontológico —, essas finitudes cruzadas traçam, com
a carga fáctica da humana condição, o domínio do iluminado ou
do manifesto, a que se refere o sentido da palavra grega alétheia
(não-velamçnto), de que trata o § 44 de Ser e tempo, quando a
Analítica, apenas tendo chegado a determinar a estrutura do cui­
dado, ainda se encontra a meio caminho de sua meta provisória.
Deslocada de sua tradicional residência na proposição, a ver­
dade se localizaria no Dasein. Mas, como a abertura é o domínio
do manifesto, do iluminado, também se poderá dizer que o Dasein
está localizado na verdade. “Enquanto o Dasein é essencialmente a
sua abertura, abrindo e descobrindo como aberto, é essencialmente
*.
'verdadeiro O Dasein eítfí 'na verdade' (ist in der Wahrheit’)* 1
(SZ, p. 221), Essas duas sentenças se contradizem. A verdade sc
localiza no Dasein; o Dasein se localiza na verdade. Peta primeira,
ela é relativa ao Dasein, pois que nele encerrada ou dele recebendo
a sua medida; pela segunda, ao contrário, é a verdade que parece
encerrá-lo, como um u&jo/jttó que o mede. Teríamos, de um lado,
202

a exacerbação do rclativismo e, de outro» o absoluto restaurado,


se a significação comum das palavras “verdade" e “verdadeiro", aí
empregadas entre aspas, não estivesse cm suspenso, à espera de
novo preenchimento,
De caráter exploratório, buscando o fenômeno mais origina]
dc que o conceito tradicional dc “verdade" deriva, a análise in­
tentada no § 44 incide, tal como ocorreu com a propositura do
problema do ser (capítulo H, deste volume), no piano verbal da
significação. Do mesmo modo que se começou indagando o que
“ser" e “ente" significam, agora indaga-se o que significam "ver­
dadeiro" e “verdade", qual a procedência dessas noções, que Aris­
tóteles incluiu na quarta c última das acepções do ente, Ainda
de«c ângulo, interessa o porque do caráter distintivo, reconhecido
por Aristóteles em seu Da interpretação, das proposições cm que
reside o “verdadeiro" e o “falso"; interessa determinar o extensivo
império da verdade, de que Platão fez., como apanágio da Filosofia,
o móvel do ertw filosófico c o termo da ascensão intelectual na
dialética do conhecimento.
O deslocamento da verdade de seu lugar preposicional à estru­
tura do Dasein, cm Ser c tempo, precede c prepara os três deslo­
camentos que assinalam o radicalismo ontológico de Heidegger: o
dos princípios lógicos e metodológicos, da positividade das ciências
c da especulação filosófica. “Entendida no sentido mais original, a
verdade pertence à constituição fundamental do Dasein. O termo
significa um íxirrenrivo1' (52, p. 226). E é como existentivo que
sc pode interpretar o império da verdade, o mesmo domínio da
razão em que se enraiza o fundamento. A exigência de validade
dos princípios c a imposição da evidencia empírica são acobertadas
pelo prirtòfpiwn reddcndae rationis. A verdade exige, constrange,
c dá razão dc si mesma; ela tem a força dc um pressuposto.
Mas o que significa prcssupô-la? "Por press«por Aa ver-
dade?" (SZ, p. 227).
Quando Kant transpôs ao elemento prático da vontade, ins-
tauradora do dever, o <1 priori da racionalidade teórica, a Filosofia
moderna reconheceu, como imperativo racional, essa pressuposição,
que solidariza o dogmático e o cético, irmãos siameses adversos da
tradição filosófica, Unidos entre si, costa a costa, pela prévia posi­
ção de ambos como Dasein — ser-no-mundo e ser-cm-comnm —,
simétricas são a tese de um, admitindo a verdade, c a antítese do
outro, negando-a. Cada qual compreende a suposição do adver­
sário, porque ambos sc compreendem no ser-cm-comum de que
compartilham. O “verdadeiro" está numa relação fundamental com
203

o Dasein. Isso nos autorizou a falar, antecipadamente, com base


no fenômeno do cuidado, na verdade da existência. Invocar a
verdade da existência é retroceder à posição prévia da abertura, de
que a temporalidade extática, possibilitando a estrutura trimembre
do cuidado, é a condição-Iimite insuperável,' em' que todas as
estruturas existentívas se explicitam. Essa posição prévia, como
pressuposto da verdade^(vtriias), de tpic a verJarfe proposícional
recebe a sua origem, é ò lugar da aléthcia, do nâo-ocultamcnto ou
não-velamento.
Assim as dimensões da abertura, como antes chamamos ao
compreender, à disposição e ao discurso, também dimensionam a
verdade. Projetante, lançado e cadente, ou, por outras palavras,
adiante de si mesmo em meio aos entes junto aos quais está, o
Dasein, que tem no cuidado a sua totalidade estrutural originária,
é verdadeiro. A verdade se desloca da proposição para o Dasein;
mas não se localiza neste como medida que o sujeito pensante impõe
às coisas. Verdadeiro é o Dasein por força da “constituição exis-
tentiva do aí e de seu modo cotidiano” (SZ, p. 221), e, conse-
qüentemente, por força da abertura ou do compreender, o que
significa afirmar que o verdadeiro lhe pertence na medida da com­
preensão do ser que o comensura. Da mesma maneira pela qual
só mediante essa compreensão se pode dizer das coisas o que são
e o que não são, e, assim, só enquanto há Dasein há ser (gibt es
Sein), também só há verdade mediante a abertura. “O Dasein traz
consigo o seu aí; dele carecendo, não apenas deixaria de ser fáctico,
como também não seria o ente dessa essência. O Dasein é a sua
abertura” (SZ, p. 133). Nesse sentido da abertura que ele é,
não imposta ou criada pelo sujeito, e que constitui o factum de
sua situação como ser-no-mundo, poder-se-á, igualmente, dizer, na
mesma acepção em que se o considerou verdadeiro, que o Dasein
está na verdade, sem admitir-se a sua comensuração por um abso­
luto a ele imanente ou transcendente.
“O Dasein está na verdade”. Esse “estar na verdade” é uma
expressão totalizadora da estrutura do Dasein, que se explicitou no
cuidado, e que leva em conta tanto a apropriação de seu poder-ser
próprio, como abrimento a uma situação determinada, pela decisão
in articulo mortis, sob o ferrete da angústia — a verdade da
existência —, quanto o envolvimento alienante da queda, como
poder-ser impróprio, que fecha o Dasein em meio aos entes com
que se preocupa e dos outros que o solicitam, no si-mesmo nivelador
da existência cotidiana. O encobrimento (Verschlossenheit) é,
conforme vimos, a contraparte da abertura. Dessa maneira, sendo
ambos, encobrimento e abertura, igualados como possibilidades
existentivas, o Dasein fáctico, projetante e cadente, é, ao mesmo
204

leinpú, descobridor c encobridor. Primariamente verdadeiro, ele


também é primariamenic não-verdadeiro (Unwalir): o seu estar na
verdade inclui a inversa possibilidade de estar na falsidade. “O
pleno sentido ontológico existentivo da frase ‘o Dasein está na
verdade’ equivale, com igual originariedade, a ‘o Dasein está na
não-verdade (Unwahrheit)’” (SZ, p. 222).
Chegamos, nesse ponto, ao limite do percurso inverso ao que
fizemos na terceira parte do capítulo anterior, quando, partindo
da noção clássica de verdade, e analisando as implicações dos enun­
ciados verdadeiras, do ponto de vista da estrutura comunicativo-
-expressiva do discurso, assentamos o caráter derivado da proposição,
relativamente ao lógos que ela pressupõe e modifica, Na proposição,
que- ií verdadeira, o enunciado mostra, em sua própria forma, sob
certo aspecto, um ente descoberto que acedeu à palavra, pela
articulação da experiência significativa do ser-no-mundo, A pro­
posição depende do discurso, de seu modo inlerprclativo-compreen-
sor, e este do aberto do compreender na conduta do Dasein, já
relacionada a entes e compreendendo-os sempre de certa maneira, e
que, possibilitando todo descobrimento, é a origem da dupla possi­
bilidade de abertura e de encobrimento. A distinção entre o ver­
dadeiro e o falso, na ordem dos juízos e das proposições, contro­
lada pela coerência ou pela evidencia empírica, deriva, portanto,
dc uma partilha que sc efetua na órbita da conduta dc um ente
temporal e histórico, que é livre para fundamentar — para dar
razão, na medida em que, projctando-se sobre o ente em meio
do qual se encontra, desencobre-o de suas aparências. O não-
-velamento, a alétheia, o aberto do Dasein, comporta um processo
de des-velamento: o ente descoberto, que se mostra na proposição,
é arrancado de suas coberturas.
Podemos dizer, então, que o pressuposto da verdade, antes
considerado, encerra uma exigência feita ao ente — demanda prá­
tica da razão, que Nietzsche interpretaria como vontade de verdade
— para que se revele, para que se mostre autenticamente tal como
é em si mesmo. O desvelamento, que extrai o ente com a violência
de um roubo, arrancando-o das aparências encobridoras, ocorre,
porém, em função do aberto. Não há desvelamento sem não-vela­
mento; descobrc-sc o ente “verdadeiro” à luz da abertura do Dasein,
que seria, assim, o ponto de emergência da verdade originária.
Ora, a verdade originária conteria a possibilidade oposta do
não-verdadeiro. Como interpretar, quanto à origem, pela Herme­
nêutica de Ser e tempo, a partilha extraproposicional, na órbita
da conduta humana, entre verdade e não-verdade, de que procede a
distinção entre o verdadeiro e o falso, senão a partir do Dasein?
20S

Esse ângulo intcrprctafivo, que fixou a tarefa da Ontologia funda


*
mental, expoe a noção mesma de abertura, c consequentemente a
idíia-bitttcc da verdade originária, ao risco de uma interpretação
antropológica, a uni esvaziamento na direção de uma Filosofia do
sujeito ou da consciência, que sc coaduna com o teor vuluntarista
de certos existentivos, a exemplo da decisão, ao qual presta reforço
a tese da correlação entre a verdade c,o Dasein, tal como exposta
no § 44 dc Ser e tempp. ‘
A decisão, que abre o Dasein no seu podcr-scr mais próprio,
é um ato de escolha, que o concentra cm si mesmo, c, portanto,
o agir espontâneo da liberdade, entendida como livre arbítrio do
sujeito, que seria a origem do encobrimento c do descobrimento
do verdadeiro e do falso. Uma vez que Heidegger afirma que só
há verdade até onde c enquanto o Dasein existe — do mesmo
modo que só há ser havendo Dasein —■, pode-sc interpretar essa
correlação no sentido de que o homem, como sujeito, cria e constitui
o verdadeiro,
“Toda verdade, no que diz respeito à sua forma essencial de
ser, é relativa ao ser do Dasein” (SZ, p. 227). A despeito de
que Heidegger não vinculasse a verdade ao sujeito, ao ser da cons­
ciência, mas à sua estrutura como ser-no-mundo, o conceito de
Dasein traía sempre, pcio seu vínculo com a experiência transcen­
dental na Filosofia moderna, répliba que foi da redução husser-
liana, o lastro recorrente da subjetividade. A persistência do sujeito
transcendental no Dasein, depois que se esvaziou criticamentc essa
idéia de seus suportes couceptuais, atestaria a impossibilidade dc
ultrapassar o Cogito. O final da Analítica contcría o risco de dç-
volver-nos ao sujeito, dando razão a Hegel e ao idealismo. Contra
a “intenção ontológica” que o guiou, o caminho da pergunta con-
dutora, acerca do sentido do ser, propendia, como se não houvesse
passagem direta do tempo ao ser, a retornar à subjetividade.
A conclusão ambígua do julgamento do idealismo e do realismo
em Ser e tempo, a propósito do problema clássico da existência do
mundo exterior, escândalo filosófico que beira o não-senso, serve
como indício de semelhante propensão. O realismo atém-se ao
ser-à-vista, na posição de exterioríetade, e o idealismo ao ser da
consciência, de estatuto indeterminado. Ambos estão condicionados
pelo pressuposto ontológico elidido no problema da realidade do
mundo exterior. Porém, na medida em que se pode interpretar a
indeterminação do ser da consciência, segundo aquele pressuposto,
como a irredutibilidade do ser em geral a qualquer espécie de ente,
“reside no idealismo a única e correta possibilidade de desenvolver
os problemas filosóficos” (SZ, p. 208).
206

Mas o indício junior da persistente presença da subjetividade


na Ontologia fundamental resulta do vultoso papel que a negai i-
vidade exerceu na reformulação do conceito de transcendência,
identificado ao de liberdade.
Como ente que tent por essência a existência, c na existência,
enquanto sua, um poder-ser, o Dasein, que a cada momento se
determina pelo /im morta/ que o totaliza, é o “não-ser dc si mesmo",
O cuidado absorve essa essência negativa exieriorizada na angústia
e na experiência do Nada. Não sc pode deixar dc pensar, diante
disso, nu Fenomenologia do espírito. Hegel mostra-nos aí que a
gênese da consciência dc si, concomitante ã liberdade, é inseparável
da Mejfaçrto. Náo há negação sem alo nem ato sem que o sujeito
sc ponha a si mesmo como Eu.
Transferida à projeção, a liberdade conservaria, a despeito das
elucidações cm contrário, o sulco do negativo, que favoreceu a
leitura antropológica dc Ser e fentpo. Em vão se recorrería à expe­
riência do Nada, descrita em O que é Metafísica?, para suspender
o cerco da negatividade, Em vão tentou Heidegger problcmalizá-lo,
trazendo o homem para o centro dc suas considerações sobre a
transcendência.
Que perigos encerraria afinal — perguntava ele — um “ponto de
vista antropocêntrico'1, cujo esforço consiste justa c unicamente em
mostrar que a essência do Dasein, que está aí, "no centro", é
extática, quer dizer, excêntrica,, .? (IFG, p, 42).

Seria perigoso o respaldo que isso prestasse a uma Antropologia


filosófica.
À "intenção ontológica” de Ser e tempo contrapunha-se, por
conseguinte, em que pesasse a reformulação dos conceitos dc trans­
cendência e dc liberdade em Do essênoa do fundamento, a pro­
pensão subjf ti vista do caminho adotado pela Analítica. Esse ca­
minho, sobre o qual paira a sombra inarredávcl da subjetividade,
dcsciivolvera-w dentro do círculo ontológico-histórico cm que re­
caem os conceitos fundamentais da Filosofia moderna. Transcen­
dência, liberdade e negação prolongam o esquecimento, o olvido
do scr na tradição da pensamento metafísico que sc «tende à
Filosofia moderna, c de cujo resgate se incumbira a Ontologia
fundamental. Submetida ao mesmo regime dc encobrimento c desen-
cobrtmcnto por ela tematizado, a Ontologia íujidamenta! apenas
evocava um olvido dc que se tornara prisioneira. Dcparou-se a
Heidegger o envolvimento de Ser e tempo na Metafísica que havia
problemalizado.
O abandono de “toda espécie de Antropologia e de toda
concepção do homem como subjetividade” se produziría a partir
207

daí, com o ímpeto de um salto, a que a Analítica do Dasein serviu


de trampolim, para o processo de desvelameuto do ser. Tal foi o
começo da viragem no ensaio de 1930, Da essência da verdade, que
principia discutindo, sob novo aspecto, o critério de adequação.
»

2. Verdade e liberdade

Desfeita a aporia do critério de verdade, quando Heidegger


fez ver que uma proposição verdadeira descobre o ente em si
mesmo, mostrando-o em seu estado de descoberto, permanece,
entretanto, o sentido da conformidade entre o que se enuncia na
proposição, que ê o objeto do conhecimento, c a coisa. Bumou-sc,
prcliminarmcntc, esw sentido, que justificaria a dominância da
noção clássica dc verdade, na lendênaa do Dasein para interpre­
tar-se por reflexão nos entes inlramundanos. O nexo descobridor
da rJidictffâo (Aufzcignng) passa despercebido, na medida cm que
a proposição, tornada instrumento, adquire a consistência de um
ser-à-vista, conenrdaule ou não com o objeto que nela se presenti-
fica. A dominância do critério, firmada em sua expressão verbal,
adaequatio rei et intellectus, pela Escolástica do século XIII, com
aí variantes adotadas por Tomás de Aquirto, traduzindo üdacquatio
por concordando c convenienlia, estèrtdeu-se, ao longo da Filosofia
moderna, interpretado, de maneira diferente, o significado de res
e intellectus.
Para os escolásticos, a adequação entre a inteligência e a
coisa é bem uma conformidade do conhecimento e do objeto, na
base da concordância de ambos com a ^‘idéia previamente conce­
bida pelo intellectus divinus, isto é, pelo espírito de Deus,,.
**
(WW, p. 8). Os enunciados verdadeiros refletem a “concordância
das criaturas com o criador”. Assim a essência dâ verdade (ven­
tas), enquanto adequação, exprime a “harmonia (Stimmen) deter­
minada pela ordem da criação” (WW, p. 8).
Já a dominância do mesmo critério na Filosofia moderna
apóia-se numa diferente interpretação: o intellectus é res cogitans,
uma coisa que pensa, “verdadeira e verdadeiramente existente”, e,
como tal, entendimento, espírito e razão. A adequação funda-se
nessa primeira concordância do espírito consigo mesmo, isto é, com
as coisas que concebe clara e distintamente, que compõem a ordem
de suas idéias. A conexio rerum, diria Spinoza, segue a conexio
idearum. São as idéias previamente concebidas pelo entendimento,
que ordenam o conhecimento e asseguram a sua verdade. A
harmonia da criação converte-se na harmonia do espírito humano,
208

de que decorre “a ordem e a regularidade das leis da Natureza”


sob o império das categorias kantianas.
Tanto a interpretação ititxlievjiL quanto a moderna — que vige
de Descartes a Hegel — fundam-sc num mesmo pressuposto. Em­
bora emprestando diferentes significados a intellectus, como reali­
zador do conhecimento, e a coisa, como objctó de conhecimento,
lançam mão do mesmo princípio de conformidade. Em ambas as
tradições, n csprcssão adaeqriíttjo rei et intellectus i desdobrável;
pode ser compreendida na direção que vai do conhecimçnio à coisa
— adaequatio intellectus ad rem — e na direção inversa — adae­
quatio rei ad intellectum —, que vai da coisa ao conhecimento.
“Essas duas concepções da essência da veritas significam um con­
formar-se com. . . e pensam assim a verdade como conformidade
(Richtigkeit)” (WW, p. 7). O pressuposto de cada interpretação é
o próprio ente; e de cada vez, seja na forma do summum ens dos
teólogos, seja na de sujeito pensante dos modernos, o que se in­
terpreta é o ser do ente. Eis em que se funda a possibilidade
intrínseca do critério de verdade e de sua dominância histórica.
Encontramo-nos, de novo, na órbita da conduta do Dasein,
uma vez que a interpretação requer a compreensão projetiva, da
qual depende a descoberta do ente que a proposição verdadeira
mostra. Também retomamos a uma das teses liminares de Heidegger
desenvolvida no § 44 de Ser e tempo, de que a proposição é uma
estrutura derivada do ver interpretativo-compreensor que se articula
no discurso.
O ensaio Da essência da verdade repete, de certo modo, a
mesma análise que conduz da verdade derivada da proposição à
verdade originária, localizada no Dasein. Pratica um retrocesso ao
pressuposto da verdade, à posição prévia da abertura, que possi­
bilita o enunciado predicativo, mas com uma importante diferença:
o retrocesso continuará até o desvelamento do ente, a que se atribui
a possibilidade intrínseca da posição prévia do Dasein. Este des­
cobre os entes na medida em que o ser se desencobre em sua
conduta. Dessa forma, a conduta do Dasein em relação aos entes
é possibilitada pelo ser que nele se desvela. A abertura constituirá
o âmbito de desvelamento, que tem no Dasein o seu aí.
Esse âmbito ou espaço, em que recai o mostrar-se do ente no
estado de descoberto, está apenas esboçado nos dois primeiros ele­
mentos do enunciado predicativo: a indicação (Aufzeigung) e a
predicação (Prãdication). Para que a proposição enuncie algo,
sob certo aspecto, a respeito de alguma coisa, é preciso que isto
“se deixe surgir diante de nós como objeto” (WW, p. 11).
Usando da idéia de representação (Vor-stellung) para miná-la,
Heidegger volta à relação sujeito/objeto, enquadrando-a no âmbito
209

da abertura que a ultrapassa. O ríprere^rícrr depende de que a coisa


çsteja diante, que cia surja ou se confronte a nós (enigegen), objeti-
fjcanrfn-sc ou fazcndo-sc objeto, Esse “csiar-díaitite”, esse espaço
de confronto, é dimensionado pela coisa que a nós se propõe.
A representação, de que se acentua a estrutura de confronto, com o
suporte da morfologia do vocábulo (vor-stellen), não cria o objeto,
mas apresenta-o “no seio de,uma abertura”, o'que significa dizer,
diante do que se manifestâ aí “como o desencadear de uma conduta”
(WW, p. 11).
Assim, o enunciado predicativo, enquanto mostra algo como é,
rege-se por aquilo que se manifesta na conduta. “A conduta está
aberta sobre o ente. Toda relação de abertura é conduta” (WW,
p. 11). A conduta é a base,da conformidade, e o ente, sobre o
qual pode abrir-se de antemão, é o pressuposto do critério de
adequação. Mas o que encçrra o sentido da verdade originária ou
da essência da verdade, é o abandono, a entrega do Dasein ao
aberto, sem o qual o ente não se tornaria manifesto: abandono ou
entrega (Sicheinlassen) que abre o ente e deixa-o ser (Sein-lassen)
o que é. Mas nesse abrir-se, que precondiciona a conformidade, des­
velando o ser no ente, consiste a liberdade, finalmente resgatada da
órbita do sujeito transcendental. “A essência da verdade (Wesen der
Wahrheit) é a liberdade” (WW, p. 12). E a essência da liberdade,
“a ex-posição (Aus-setzung) ao 'ente em seu desvelamento”
(WW, p. 15).

3. A essência da verdade e a errância

Preservado o radicalismo com que desponta na obra de 1927,


o conceito de liberdade assume, daqui por diante, o papel de noção
coesiva, que reencaminha, numa démarche retrocessiva, inversa à
de Ser e tempo, aos existentivos e ao Dasein.
A liberdade, em sua essência, conecta o poder-ser da exis­
tência ao movimento extático da temporalidade. “A existência (Ek-
-sistenz)1, enraizada na verdade como liberdade, é a ex-posição ao
desvelamento do ente como tal” (WW, p. 15). Nessa ex-posição,
como verdade originária da existência, o poder-ser, aberto na decisão
extrema, atualiza-se como o único acontecer (geschehen): o acon­
tecimento dos acontecimentos, de que depende a História ocidental:
“O desvelamento inicial (anfãngliche Entbergung) do ente em sua

1 HtiiJífjer passa a grafar a palavra existência com o destaque do mesmo


radical dc èk-statikón.
210

totalidade, a pergunta em torno do ente como tal e o começo da


História ocidental são uma e mesma coisa. . .” (WW, p. 16).
Fundamento oculto do qual o homem recebe a sua proveniência
originária, esse acontcciméilio ponlual, ocorrcntc no instante de uma
decisão, quando “o primeiro pensador, tocado pelo desvclamcnio
do ente, pergunta-se o que é o ente1’ (fFIV, p. 16), dá-se, portanto,
no domínio circunscrito de uma cultura, entre os gregos e em língua
grega. Uma experiência precoce do ente, como presença, inscrita
nas palavras da língua, intercalar-se-ia, pois, entre o sobressalto
do desvelamento e a interrogação feita por esse primeiro pensador
(erste Denker) conspícuo, em que se sobrepõem, fundidos numa
só imagem, os vultos indecisos dos que começaram a filosofar.
É de encontro a esse horizonte temporal, circunscrevendo o
espaço histórico de um povo — horizonte textual, descerrável nos
escritos filosóficos da Antiguidade helênica pelo trabalho interpre-
tativo, e que privilegia, sem dúvida, a cultura grega, com os in­
convenientes de uma interpretação redutora de suas condições de
existência social e política, mas que, em contrapartida, alivia a
História do jugo da idéia racional abstrata —, é de encontro a
esse horizonte que Heidegger, finalmente, atravessa a concepção
antropológica em que se enredara, ligando a historicidade da exis­
tência ao ser, ao fundamento como origem não superada do Dasein,
retida em sua temporalidade retroveniente, que o projeta para
diante. O poder-ser próprio do Dasein, delineado, em Ser e tempo,
na decisão extrema, é agora, por via da equivalência entre a es­
sência da verdade e a essência da liberdade, o abandono ao ser.
E, desde a aurora da cultura grega, é o ser que possibilita a história,
o historiai enquanto proveniência e destinação do homem 2.
Esse novo desenho ontológico da historicidade — a histo-
rialidade — sustentado por toda uma fraseologia vivaz, e que
constitui a viragem, não apaga, porém, o traçado nocional de
Ser e tempo, objeto de uma reinterpretação interna que aproveita,
corretivamente, sentenças já formuladas nessa obra e que modifica
os existentivos sem revogá-los. Ao caráter descobridor do Dasein,
antes afirmado, pode-se acrescentar, agora, a precedência da dis­
ponibilidade ao ente que o torna descobridor. A conferência de
1930, Da essência da verdade, não revoga a sentença do tratado de
1927, segundo a qual a condição de possibilidade da existência
histórica é a própria abertura do Dasein (SZ, p. 397), mas permite
complementá-la com o enunciado de que é o ente aberto no Dasein

2 Sobre a razão do emprego de historiai em lugar de histórico, veja-se a


nota 17 do capítulo 9, Temporalidade e historicidade.
211

o que possibilita a história. Do mesmo modo, a noção de rthrtvura


é complementada pela dc dervetamentó, c a dc ftmpardJràzçto,
cotnc feftflmono subjacente ao cuidado, pelo có? ser,
fundamento oculto do homem, em que a história é fundada.
Reinterpretada dessa forma, a questão do sentido do ser em
geral, já colocada na interrogação historiai sobre' o ente cm sua
totalidade, é a questão mesma do pensamento- ent que sc enquadra
qualquer perspectiva dq.coiriprccnsào do “real", seja ontológica seja
histórica. Não histórica c sim historiai, pois que dela emerge a
possibilidade dc haver história e dc concehcr-se o “real”, a questão
do pensamento coincide com a questão da linguagem, discurso antes
de tudo. Para aproveitarmos a imagem visual anteriormente em­
pregada (capítulo XI deste volume), diremos que, na temática do
segundo Heidegger, o círculo hermenêutico, a que são concêntricos
os dois outros, o histórico e o ontológico, coincide com o da lin­
guagem, quer em virtude da pergunta mesma, que é discurso (lógos),
quer em virtude das palavras. Sem linguagem não ha ve ria desve-
lamcnto nem retroveniência à origem: origem não absoluta — o
ente enquanto presente, esse êxtase do tempo que despontou uma
vez na língua grega, o idioma da Filosofia. 3
Temporalizada na linguagem, essa experiência do ser condensa
“as possibilidades essenciais da humanidade historiai” (WW, p. 17).
Heidegger também nos diz que essas possibilidades se atualizaram
pela primeira vez quando a Filosofia nasceu interrogando-se sobre o
ser do ente. O ser do ente é, no entanto, o proto factum metafísico
e o começo do olvido do ser. Assim a história das possibilidades
essenciais da História do ocidente lavrou-se sobre um esquecimento
que, não-acidental, não-atribuível à falência do intelecto e da von­
tade, atesta a finitude da condição humana. A abertura do Dasein
ao ser, a clareira (Lichtung) — o domínio do iluminado ou do
manifesto —, é reticulada, com zonas de sombra ou de ocultação,

3 Em Hegel und die Griechen (Hegel e os gregos), diz Heidegger que, sendo
o homem, determinado pelo lógos, aquele que diz, o dizente (der Sagende),
a essência da linguagem repousa na alétheia (Cf. WM, p. 271). Lê-se em
Einführung in die Metaphysik (Introdução à Metafísica) que “o ser do ho­
mem é, segundo a sua essencialização historiai (Geschichte erõffnendem
Wesen), lógos, coligência e percepção do ser do ente: o acontecer daquilo
que é o mais estranho e em que, pela força do embate, o vigor predomi­
nante (überwãltigend) aparece e é trazido à consistência. Mas ouvimos do
canto do Coro da Antigona de Sófocles: com a irrupção do ser, acontece
a linguagem, o encoillrar-se na palavra (Sich-finden in das Wort)” (EM,
p. 131). A irrupção do homem no ser — o seu Dasein — e a linguagem
são simultâneas, constituindo um acontecimento único. “A linguagem guar­
da, como o pronunciado o dito e como aquilo que é dizível, o ente respecti­
vamente aberto” (EM, p. 141).
212

e o desvelamento, fatum da liberdade que possui o homem, é


também, “em si mesmo, simultaneamente, uma dissimulação” (WW,
p. 19). A essência da verdade inclui, por isso, a não-verdade, “a
dissimulação do ente como tal, que está velado em sua totalidade,
isto é, o mistério” (WW, p. 19). Somente aqui se completa a
doutrina esboçada no § 44 de Ser e tempo, segundo a qual o Dasein
está na verdade e na não-verdade. Porque desencobre, desoculta
ou desvela, a verdade, em sua essência, acontece (ereignet sich),
dissimulando ou encobrindo na linguagem.
O historiai, em que o destino do indivíduo prolonga-se no do
ser-em-comum, realiza-se como errância (Irre), numa insistente
oscilação, entre velamento e desvelamento, que tem na queda, na
fuga do Dasein à temporalidade, a sua pauta existentiva. “O
homem apega-se à realidade corrente suscetível de ser dominada,
ainda quando se trata do que é fundamental” (WW, p. 20). Na
medida em que se atém à realidade corrente, pela preocupação e
pela linguagem objetifiçada, o seu Dasein já incide na possibilidade
de encobrimento — a não-verdade da errância — em virtude do
estado de queda que o constitui. A errância é o dimensionamento
temporal-historial da queda. “O homem erra”, esclarece Heidegger.
“O homem não cai na errância num momento dado. Ele não se
move senão na errância, porque insiste existindo, e por isso já se
encontra sempre nela” (WW, p. 22).
A insólita associação entre verdade e errância, nesse contexto,
justifica-se pelas duas transposições ocorridas na primeira fase do
pensamento de Heidegger: da proposição para o ente descoberto, e
do ente descoberto para o Dasein, como existência, e à luz das
quais a verdade não se identifica com o ente. Manifestando-se no
espaço de abertura, entre velamento e não-velamento, a alétheia
acontece, e nesse acontecer consiste a essência da verdade (Wesen
der Wahrheit). Mas a questão da essência da verdade, adverte-nos
a observação final da conferência de 1930, “encontra sua resposta
na proposição: a essência da verdade é a verdade da essência
(. . . das Wesen der Wahrheit ist die Wahrheit des Wesens)” (WW,
p. 26). Esse jogo de palavras trocadas figuraria o historiai como
a essencialização do ser, em momentos sucessivos de velamento
e desvelamento. “Porque ao ser pertence o velar iluminador
(lichtendes Bergen), aparece originariamente à luz da retração
(Entzug) que dissimula. O nome dessa clareira é alétheia” 4 (WW,

4 Para este trecho servimo-nos da tradução de Emildo Stein (Martin Hei­


degger, conferências e escritos filosóficos. Tradução, introduções e notas de
Ernildo Stein. São Paulo, Abril Cultural, 1979. p. 145. Os pensadores).
213

p 26). Duas metáforas, pois, veiar itamròadar c retração, dão


conta da verdade da essência, Mas, como isso não ê uma ocorrência
c sim uni acontecimento histofial, será preciso que o filósofo force
urna ve? mais oS vocábulos1 de sua língua para dizer-nos que o
scr, verbo e não substantivo, se esscncializa (west). A existência
(Ek-sistenz), em tomo da qual girou a Analítica do Dasein, é o
nome do espaço dc abertura, do âmbito do’desvelamento, onde,
pela articulação compréensiva do que se manifesta, o scr se essen-
daliza linguagem e se faz história.
Entramos, por fim, no tema da questão do ser que indica o
movimento da viragem, na segunda fase do pensamento de Hei­
degger: a linguagem, direEamente interpelada, em vez do Dasein,
porquanto ela é o aí fdá), o lugar desse ente. Essa conversão da
Filosofia ao questionamento da linguagem — conversão que
podemos chamar de poética — constitui o sentido da viragem,
considerada do ponto de vista da inversão por que passou a
perspectiva inicial da pergunta condutora, não mais colocada a
partir do Dasein, mas da História do ser, sedimentada nos textos
filosóficos, e de que o primeiro momento, contendo a ^força do
principio” (Macht der Anfang), da origem, é a physis dos pré-
-socráticos.

4 “As viülfcwiw da liirsuagem nio iíú nibiuArias nesse campo de invtstl-


«açSo, mas uma ncccutidaUe, com fundamento nas coisas" (SZ, p. 327).
Para contornar o confinaiucuto nvetnfiiico itn, linguac ocidcntnís. n que se
refere cspeeialnaeme cm /rfnmtJW Difíerent (Identidade e diferença,
p. (Ki), flcidejjjçr passará a (rafar Jewt com y(Scyn), ou rnsurndn fSeirí),
como cm Zur Seinsfrage (A respeito da questão do ser); “Essa rasitm em
trai repele o hábito qtme meacirpávd de representar o scr como alto com
que nw defrontamos (GcfiendbeiJ, e que depois se apresentaria ao homem
alíunm veies1’ (IFM, p. 239).
XIII

A VIRAGEM: VERDADE DA ESSÊNCIA

A aurora sigilosa e na aurora


o soçobrar do grego.
Que trama é esta
do será, do é e do foi?
Borges, Heráclito.

1. Os pré-socráticos e a Filosofia

Meio de desobstruir a tradição, para reconquistar as fontes


originárias que ela encobre ou disfarça, a “destruição” da História
da Ontologia, proposta em Ser e tempo, completa-se, no segundo
Heidegger, pelo retorno ao pensamento dos pré-socráticos. Esse
retorno seria uma volta à compreensão preliminar do ser como
physis, já implícita à tradução das palavras fundamentais, lógos e
alétheia, que Heidegger aprofundou interpretando fragmentos de
Anaximandro, Heráclito e Parmênides.
O prólogo do poema de Parmênides é invocado na obra de
1927 para corroborar o fenômeno originário da verdade como
alétheia. Os dois únicos caminhos da investigação que a Deusa
aponta ao poeta — alétheia e dóxa 1 — são o do descobrimento
e o da ocultação, da verdade e da não-verdade, em que o Dasein
sempre se encontra. No mesmo contexto, ocorre o exemplo do

1 “Eis o que eu digo: presta toda a consideração à palavra, que ouves sobre
/ Quais caminhos se há de ter em mira, como os únicos próprios de uma
investigação. / O primeiro: como é (o que o Ser é) e também quão impos­
sível, o Não-ser. / A senda de uma confiança fundada é seguir a re-velação
(Unverborgenheit). / O segundo: Como não é e também, quão necessário (é)
o não ser. Heidegger, Martin. Introdução à Metafísica. Tradução de Em-
manuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969. p. 137.
215

fraBflWPfo l dc Htráditft
* p a prtpwto des ln&ptiienle^ que nSo
L-omprcentíc111 o Idgçj, para lembrar qm mm termo capital do
rjcíiçàmcnlo grego é inerçnic à alétheia (cf, SZ. p. 219). A ínter-
çunEXão dtsses significados alerta para a concordância das duas
Ltuiccpíões Qoc LÍm representado o caso dc,aposição típica da
Filosofia antiga: a doutrina tio ser em Pannénidts è a do vir-a-wr
em Heráclito.
Diz Parmênides que o ser “possui, com efeito, uma estrutura
inteira inabalável e sem mcis; jamais foi nem será, pois é, no
irtscanie presente, todo inteira, una e contínuo"
.
* No caminho da
verdade o pneta aprende c enuncia a sentença.
O pensar e o ser, porém, são o mesmo
(tò gar aúto nóein te kai eínai)
Heráclito fala-nos do vir-a-ser, do fluxo das coisas (“Descemos e
não descemos os mesmos rios: somos e não somos”2 345); mas pro­
clama também que “todas as coisas são um” B. O lógos, comum a
todos, e conforme ao qual tudo acontece, revela-se na unidade dos
contrastes que os inexperientes não percebem, porque “a Natureza
ama esconder-se” 6. Segundo a interpretação de Heidegger, a uni­
dade heraclitiana, que une os contrastes, expressa o significado do
lógos, que deriva de légein, como estender, deitar, recolher: o que
se desvela, surgindo e durando em seu não-velamento.
O lógos põe diante na presença e subpõe, quer dizer, estende o
que é presente na presença. Ser presente quer dizer então: durar
surgindo no não-oculto (Unverborgen). Na medida em que o
lógos deixa como repousado o que se estende, desoculta o presente
em presença. O desvelamento é, porém, alétheia. Esta e o lógos
são a mesma coisa (VA, v. 3, p. 16).

Heráclito e Parmênides falaram, por diferentes modos, da presença


surgente, que constitui a physis. A physis é “o vigor imperante que
surge. Em oposição ao vir-a-ser, mostra-se como a consistência, a
presença constante. Em oposição à aparência, se afirma como o
aparecer, como a presença manifesta” (EM, p. 150). É o mais

2 “Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o


compreenderam. Ainda que tudo aconteça conforme este Logos, parece não
terem experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as
exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa.” Os filósofos
pré-socráticos. 2. ed. Introdução, tradução e notas de Gerd A. Bornheim.
São Paulo, Cultrix, 1972. p. 36 (Clássicos Cultrix).
3 Ibid., fragmento 8.
4 Ibid., fragmento 49a.
5 Ibid., fragmento 50.
6 Ibid., fragmento 123.
216

recuado da origem, o mais originário da physis, o que nos revelaria


a sentença do fragmento 8 de Parmênides,
O pensar e o ser, porém, são o mesmo,
em que a interpretação racionalista viu o reconhecimento da iden­
tidade entre o pensar racional e o ser (Hegel diria que o racional
é o real, e o real é o racional).
A leitura heideggeriana postula a reciprocidade em lugar da
identidade. O verso parmtnídico não apenas afirma o enlace recí­
proco de um e de outro — do pensar e do ser — a partir do
mesmo. Mas alcança-o no dizer que concretiza esse enlace. Deno­
minada ser do ente, a physis, que abrange tal reciprocidade ou
correspondência, retrocede 1 à dobra (Zwiefalt) do presente e da
presença, do manifestante e do manifestado, que o lógos e o des­
velamento implicam. O ser, que não é o ente, desvela-o ao ma­
nifestar-se, e essa manifestação mal se distingue do tempo.
O tempo lampeja na presença surgente, que foi a descoberta
poética dos primeiros pensadores, retomada por Heidegger dos
fragmentos onde se depositou. Podemos considerá-la poética por­
que essa descoberta se configurou nas palavras essenciais que a
preservaram na forma escrita, como um depósito de pensamento,
atualizfrel pela leitura hermenêutica.
Reevocando o dizer da physis, que silenciou na Filosofia, de­
pois dc fulgurar iia expressão híbrida de Parmênides, entre o poético
e o divinatório, quando a palavra alttheia sc impunha cem o vigor
de sua ambiguidade mágico-religiosa \ Heidegger pôde identificar
o veio remanente da origem na tradição cristalizada, A “destruição'1
da História da Ontologia, que suspende a vigência da tradição cris­
talizada, encontra nesse veio a fonte da hislorialidadc autentica, dc
que emerge, em contraposição ao curso histórico-filosófico das
doutrinas c sistemas, o momento inicial, príncipiativo, dc uma
História jíf. Foi acobertado por essa história destinadora que
Heidegger rctraduziu, com o mesmo espírito empregado na tradução
dos pné-socráticús, u passagem do Livro IV da Metafísica dc Aris­
tóteles — tó óm /éjfetítí pollachos (“O ente sc torna manifesto

TMiun xíKicnu, dc reprcscntaçSw nllfiotais tm «pre a palavra eWdjcAr, ceir


troHÍ-Fi na meritória c articulada no esquecimento (Ictltó), cerca-w de Irts
oulras “poiéiícisu verbiia” — £>i£é. ffjrir e FziWid (jwnlça, crença e jmt-
sUBífiQ} —, «tiae afudam a eircumcrcvê-h. Cf. DÍTTENst. ManOçl. f.rs muttrfi
de ta vfriti dam la QriKC Arthaiqüt. Parts, FrafttDfl Mavpero, 1973. DÍZ-
■nw ainda DétieniK que nráe quadro a/Mrfu aparece como desdobramento
da palavra májrcor^^icaa, Não há atérkeia sem uma parle de íertrf (esque-
cimcnlo). Cf. id., ibid., p. 5D-79,
217

(relativamente ao seu ser) de muitas maneiras” 8) —, texto em


que a Filosofia se consolidou, no recesso da concepção da physis.
A Filosofia teve o seu ato dc nascimento» que a ligaria para
sempre à cultura c à língua gregas, quando se perguntou pela
primeira vez o que é o ente ftí tò 6n). “O pensamento do qual
nasceu origina riamente tal interrogação”, observa Heidggcr, "sc
oonhccc desde Platão como 'Filosofia' ereccbcú, mais tarde, o nome
de ‘Metafísica’" (IFIF/p. 23). Os chamados pré-socráticos, an­
teriores à fase de sccularizaçào da cultura hclènica, que data do
século V a.C., que se detiveram tia investigação do princípio (ardié)
das coisas, foram tocados pelo desvelamento do ente, sem haverem
formulado a mesma espécie dc interrogação. É que a pergunta dc
Platão, que sc antecipou à dc Aristóteles, já participa de uma
mudança na essência da verdade como alétheia, que a distanciava,
quer pelo modo, quer pela forma expressa de pensamento, da
concepção inaugural c principiativa, O ato dc nascimento da Filo­
sofia como Metafísica, firmada nos diálogos platônicos, e conso­
lidada nos tratados aristotélicos, assinala o início de uma descon-
linuidade em relação à physis, que permeará toda a História do
ser até nossos dias.
Onde Heidegger vai detectar essa descontinuidade? Num texto
de Platão, famoso entre todos: o Livro VII de A república, em
que o mito tia caverna t narrado.
Conhecemos bem os elementos desse mito: a caverna, os pri­
sioneiros acorrentados, a fogueira acesa do lado exterior, a liber­
tação de um deles, a sua estonteada passagem da obscuridade para
a luz — das sombras às próprias coisas — com que Platão figura
a transição asecnsional, dialética, do conhecimento sensível ao
inteligível, da dôxa à epistime, da aparência ã essência. Nessa
passagem da dóxa à eprsréme, das imagens das coisas às idéias,
resguardada pelo símile do Sol com o bem, este tornando visível
aos olhos do espíri/o as essências imutáveis — assim como o astro
luminoso desencobre, para os olhos do corpo, a aparência sensível
das coisas —, teríamos a metáfora da paidefa, da formação
(Bildung) da atma humana. Mas essas correspondências não esgo­
tam a riqueza do mito.
Enquanto a interpretação corrente se apega aos termos inicial
e final da caminhada do prisioneiro, Heidegger dá importância,
primeiramente, ao esforço que acompanha a passagem efetuada,

""Daí Sciendc wird (nSmlkh liinsiehtlich seintí Seins) in vielfacher Wcüc


otfcnUindig." Híudeggeb, M. Prcf«c / Vorwort. In: RicruiEnsoH, WjHism
J., S. I. fíeiJegetr — rhrangti Phenomenplafy 10 thought. 3. ed. The Hajiuc,
Mariíinis Nijhoft, 1974. Edifiü bitlnaUc.
218

tanto na transição do meio obscuro ao luminoso, quanto, invcrsa-


mente, na transição do meio luminoso ao obscuro, quando o prisio­
neiro, que já sc habituara à claridade exterior, ganha, dc novo,
o interior da caverna, para contar aos outros o que viu lá fora.
Numa direção ou noutra, seja a do prisioneiro que sc liberta, seja a
do liberto que retorna à prisão, a fim de tentar converter 05 seus
companheiros dc infortúnio, há sempre um acendrado esforço, ou
paia suportar a luz ou para de novo habituar-sc à sombra, e sempre,
quer num caso quer rioulro, 0 esforço c dirigido no sentido de
ajustar as imagens distinguidas, dentro e fora, às idéias com as
quais devem concordar.
Considerando isso tudo, 0 subtexto, que a interpretação hei­
deggeriana lê nas entrelinhas do mito da caverna, encerra os dois
acontecimentos interligados qtte motivaram a doutrina platônica,
dc que esse mito é a ilustração exemplar: um. relativo A «ulncfa
ftwAítafl, concebida segundo um ideal dc formação (paidcía), que
liga g homem ao mundo superior das idéias, na medida em que
estas se imprimem na sua alma c a modelam (bildcu); outro,
relativo à essência da verdade, circunscrita pela visibilidade, isto é,
pelo modo como as coisas sc evidenciam, segundo um foco que
as mostra sob determinada forma (idea, cidos). O primeiro é o
precedente germinal da tradição humaiLÉstica, O segundo é o ad­
vento de uma transmutação do edérAdír, da verdade como dcsvcla-
mento à verdade como concordância (omoíosis).
Platão parte, sem dúvida, da alétheia, pois que, para os gregos,
“na origem, a ocullaçào, 0 fato de velar-sc, domina inteiramente a
essência do ser. . .” (PLW', p. 32). Confirma-o a própria caverna,
fechada apenas por um dos seus lados, dando passagem, pelo outro,
à luz velada de uma fogueira, acesa no exterior, Mas a função da
luz, primeiro como fogo, c depois como sol. sc torna preponderante.
A idéa é o que tem 0 poder dc brilhar. A essência dn idéia con­
siste na brilhante?- c na visibilidade, é isso que realiza n presença,
quer dizer, a presença daquilo que um ente é. F- na qüididade
(quid est) do ente que este é '"presente1’ (AnweMnd), I>c um
modo geral, a presença (Anwcsend) í a essência da scr. Por isso,
para Platão, o scr tem a sua plena essência na qiiidrdatle (PLW,
p. 34-5).

O objeto do mito da caverna não é a alétheia, e sim o


pçorirecúnenfo, que ele não menciona, da dominância da idéa
sobre a nJífftaífl (.,,} Assim orientada, a percepção sc conforma
ao que deve ser visto. £ isso a ew'dí?rcia (Ausschcn) daquilo que
d. Essa adaptação da percepção, da Wern à idfa acarreta uma
ofti&iojir, um acordo do conhecimento e da própria coisa, Da
219

pTtcrniívêficíi> conferida ,'i jJXüi e à ídeia sobre a alítheia resulta


unW mudança na essência da verdade. A verdade se torna orthó-
íhtr, ti exatidão da percepção e da ejrrytcíspõb (PLU', p. 40-2).

O bem (agulhós), como supremo inteligível. "qju- comunica


a verdade aos übjclas conhecidos c ao sujeito cognascentc a facul­
dade de conhecer”*, esplende .acima das .idéias, "que constituem o
mais rea!- O prisioneiro liberto, que adquire, pelo adestramento
dialético, u capacidade dc clcvar-se à intuição do supra-sensívçl, í
o amigo das idéias, Nas idéias reside o objeto do verdadeiro co­
nhecimento, da teoria enquanto contemplação do mais real, que
confere art sujeito cogno&tente a posse da sabedoria. Quem ama
as idéias, cultivando as ciências teóricas que conduzem o espírito,
pradwaiinentc, do sensível ao inteligível, para além da pftjíjw —
ftfí/Á fw physiká — ó o filósofo,
Com Platão — conclui Heidegger — o pensamento tocante ao ser
do ente, que é uni olhar dirigido para as idéias, tomw
*e "Filo­
sofia"'. Mas a "FiJcBOfía”, que assim começa com Platão, tem,
desde esse momento, 0 carifter que se chamará mais tarde de
Metafísica. O próprio Platão nos apresenta, em suas grandes
linha», a figura dn Metafísica nessa história que constitui o "mito
da caverna” (PLW, p. 48).
I-
Essa figura recobriría o domínio todo do supra-sensível. tendo como
limite o bem, ao qual se estende, e que é a causa universal,
primeira c suprema, "chamada de fu iheion, o divino, por Platão
c em seguida por Aristóteles" (PLIP, p. 48). Com a sobreposição
da transcendência do deus lieVraico-urifiiüo ao agathós, fjrma-sc,
nesse limite teológico, a continuidade da tradição platônico-aristo-
télica no pensamento ocidental.
No encadeamento dessas imagens e desses conceitos centrais
do platonismo, pode-sc decifrar o começo simultâneo da Mgfff/lstira
e do Jiuníítflrj/uo, de tal modo que o Livro VII dc A república
forma o primeiro capítulo da História do ser, reistivamcnic à qual
a physis w tomaria o começo principiativa, a camada ''arqueoló-
gica” profunda latente c recalcada das doutrinas filosóficas. Como
História da Metafísica, a História do scr desenvolver-se-ia, aié à
fase moderna, culminando na Lógica de Hegel, através de um eixo
ofitotcológico, que está traçado na cióricm primeira de Aristóteles
— ciência da verdade conto ort/tdies — em que o Estagirita res­
ponde à pergunta ti tò ón.
Já sabemos qual a resposta que ele deu: a ousía, que pres­
supõe a compreensão indeterminada do ser, implícita às quatro

9 Platão. A república, 500 e.


220

diferentes acepções sob as quais recai o ente. Segundo vimos, a


temperai idade, como temporalização autentica do tempo finito, é
o fenômeno dc /rmrfo, inaelarado, da Ontologia, que sc incultou
na oujfff, interpretação histórica do principio ou fundamento. Como
“natureza determinada”, idêntica e constante, a ousía recalca o
presente, um dos êxtases da temporalidade, no perfil do ser do
ente. Mas não há interpretação sem uma pré-comprccnsão do que
se interpreta. De onde viria o recalcado, senão de um significado
preliminar da língua, que ofereceu ã Aristóteles o limiar hermenêu­
tico à pergunta lí tò ón — significado latente em alétheia c Íógoí,
as palavras fundamentais que os pré-socráticos usaram, e com as
quais Aristóteles lavrou, depois da mudança da essência da verdade,
a acepção do ente relativa ao verdadeiro e ao falso?
Não por acaso foi Aristóteles o primeiro a expor e a discutir,
no Livro I da Metafísica, as concepções dos pré-soeráticos acerca
do arché das coisas, situando-as já como tentativas, pertencentes
ao passado, dos precursores da Filosofia, cujos erros e acertos pre­
pararam o acesso à ciência primeira. A distância no tempo, que
separava o intérprete da matéria interpretada, im punha-lhe um
distanciamento em relação à cultura da época dos pensadores-
-poetas, que só lhe era acessível sob a perspectiva da experiência
histórica escudada numa tradição. Cada forma de cultura, adverte-
-nos Nietzschc, começa pelo disfarce que impõe a uma série de
coisas. 10 A tradição cultural da sociedade cm que viveu Aristóteles,
discípulo de Platão, c que o vinculou a esses pensadores, ainda
muito próximos dos profetas e videntes dos séculos VII e VI, enco­
bria, sob o véu de outras idéias, as concepções deles na forma
sedimentar de uma história conclusa.
Em busca da “proveniencia comum" das distintas acepções do
ser que o F.slagirita se esqueceu dc interrogar, Heidegger retraduaiu
a ousía como pr&nvrfn e consírtífleia, no sentido dc algo deter­
minado ou acabado (enérgeia), que se apresenta sob certo aspecto
ou modo (érgon), e surpreendeu, pela trilha da ambiguidade se­
mântica entre a significação substantiva (o que uma coisa é, o seu
í/u/J) e a significação verbal (que uma coisa 6 ou existe, o seu
r/«rwf), o desdobramento do etríe ewqwn/rfo ente, no confronto esco-
lástico da essência e da existência, do enr c do <?jse, Esse desdo­
bramento continua dentro da mesma tradição, embasada nos livros
de Aristóteles, quando chegamos à esfera do divino, à primeira causa

«•» "Cada espécie dc cultura começa com o vclamento dc uma quantidade


dc coisas. Ó progresso do homem depende desse vehmento..Nii:tzschl.
F. Le livre ítu phitasopJte; iludes tMoriliques / Das Philotophrnbuch-, theo-
rccischc Sludttn. Triductian, introductíon et noies par Aujèle K. Muicltú
í. Aiibicr/Flammaríün, 1969. p. 64-7, Ed. bilingile.
221

do movimento, que 6 ato puro e forma sem matéria, substância


imóvel c separada. Concebido como substância primeira pelos cseo-
lástieos, Deus, em que a essência c a existência coincidem, é q
írite por excelência, dc quem sc dirá, contudo, que É simplesmente
aquele que é. Dew est suunt eine (Deus é o sett próprio ser). ”
Esse incessante desdobramento permeia a’Metafísica, que Heidegger
transferiu para o plano dá historiai idade, em sua dupla condição dc
Onroteoíogia.
A Metafísica sc desenvolve por uma série dc transformações do
mesmo princípio, isto í, do presente como presença sargento, da
origem não inteira mente pensada pelos gregos, c que aparece, dc
cada vez, sob distintas formas dc concepção. Tais formas dc con­
cepção constituem, na verdade, as variações interpretativas do ser
do ente, dc que se compõem as "épocas * 1 da História da Metafísica,
As duas primeiras variações — a fí/éo c a enirgeia sc correspondem
daitro de uma só "época”, a da cultura hclênica. Enquanto a
fdéfl, que reprime a concepção inaugural do ser, desempenha, cm
seu caráter de essência (quirlditas), o papel de princípio ontológico
normativo, a ettfrgeia, que dela deriva ç se diferencia, suscitará,
colocada em conexão com as causas do movimento, uma distinta
perspectiva do ente, concebido como.algo que sc produz por obra
de uma ação eficaz, remontando ao ato puro. Na passagem da
cultura grega ã romana, pari passa com a tradução para o latim dc
toda uma tradição de pensa mento, a etrérgeia aristorílica conver­
tesse na ffCíwofítaj dos cscolãsticos, "traço fundamental de que
pôde apoderar-sc a crença bíblica e cristã da criação para assegurar
a sua justificação metafísica'1 (A *, v, 2, p. 414).
Essa conversão assinala a segunda "época" da História, que
não é outra senão a Idade Média, em que o ente sc desvela como
obra da divindade, por ela criado ex niMo. A terceira "épocfl”,
que corresponde à Metafísica dos tempos modernos, tem as suas
possibilidades históricas condicionadas à certeza dc si, aberta no
Cetfrto cartesiano. O scr do ente transforma-se, então, no sujeito
pensante, como fundamento absoluto e. inconeusto da verdade.
O real é objeto de representação para o sujeito, que o concebe
mediante a clareza e a distinção das idéias no pensamento. Em sua
presença afirmativa, existindo enquanto pensa, em si mesmo e para
si mesmo, o Eu reflete a consistência da antiga ousía, transposta à
pera-jflwíntífl c à irfertr/rfaJe da substância. Concomiiantemcnte, o
sujeito sc torna a realidade do real, sua medida, sua ratio, livre
para determinar-se e determinar as coisas que o cercam. 'Iodo

11 Saint Thomas. La somme thêotoglque. Paris, Librairie Ecclésiastique et


Classique d’Eugène Belin, 1853. Ari. IV, Questão III, 1. parte, t. 1, p. 60-1.
222

conhecimento passa a fundamentar-se no homem. O fundamento


antropológico da epistfrne moderna acusa o posto central do homem
em meio ao ente cm sua totalidade, dc que o homem dispõe
segundo a sua potência. Do ego cogirp derivará o ego vofo; a
vontade, absorvida no fenômeno do valor, será a derradeira pers­
pectiva do ser do ente.

2. O esquecimento da diferença

Essas diferentes interpretações do ente seriam menos o pro­


duto das necessidades internas da especulação filosófica do que do
desencadear da verdade como “acontecimento historiar', isto é, do
desvelamento do ser.
Interpretado seja dc que maneira for, como espírito no sentido do
CSpirilualhinci. como matéria e /cw-çn no sentido do materialismo,
como vir~a-ser e nída, como representação, como .rtrhftânCKr, como
vontade, como sujeito, como efiêrjjeju, como Eterno Retomo do
mesmo, sempre o ente enquanto ente aparece A luz do ser (Lichie
des Seines) (W1M, p. 7).12

Cada uma dessas manifestações historiais é uma configuração es­


sencial do ser, a essência em que se desencobre veladamente, tal
um foco de luz que não é visto quando deixa ver as coisas, pelo
efeito contrastante da sombra que o circunda e a que se retrai,
ocultando-se. Mas essa retração (Enlzug), que expressa a verdade
do ser, nunca realizada numa única c pura manifestação, c sempre
perfazendo-sc nas várias figuras temporais c historiais, cm cujos li­
mites sc torna possível a compreensão do que é, não constitui uma
essência no sentido que a tradição metafísica consagra. Se o fosse,
seria algo determinado, de que se podería dizer que c isto ou aquilo,
como se diz do ente. Sõ o espaço de abertura, dimensionando,
enquanto diferença (Diffcrcitz), uma mesma presença apresentante,
permite dizer *‘é", segundo as diversas perspectivas historiais es­
senciais.
A Metafísica oscila entre o ser e o ente. Ela se desenvolve
como que fundada na diferença irredutível que os separa sem
jamais confundi-los. A permanente recorrência dc um c de outro,
ao longo do seu eixo ontotcológico, reitera a diferença, que se
reflete no desdobramento do ms e do ase, da essência c da exis-

12 Os grifos são nossos.


223

têiieis, íinl4!rjoríncntc mencionado, Esse desdobramento interno,


insistente, parece oferecer um desmentido ao esquecimento do sçr
no qual a Metafísica teria incidido. Em que consiste. então, o
olcido, eniranhado ã Metafísica, que a discussão acerca da essência
da verdade, no capítulo anterior, parece repelir?'
A liberdade, que dçixa ser o ente. í a raiada «w/ürmirfírrfe,
nos diversos domínios õnlicos ou eniitativos descobertos, desde o
“das coisas materiais” ao do Dasein que nos concerne. Mais ori­
ginária que a verdade proposidonal. a verdade ôntica da expe­
riência anteprcdlcativa demanda, per sua vez, o desvela mento do
ser, "que primeiramente possibilita a revelação (Oífcnbarkcit) do
cnie" p. 13). Assim o desvelamento deste, a que se acha
entregue o Dasein, por força dc sua origem historiai, já está prefi-
gurado naquele.
Verdade ôntica e verdade Ontoldgica sempre se referem, de maneira
diferente, aç ente cm seu ser c uc ser do ente, Elas fazem «acn-
çiidmenle parte uma da outra -cm razão de suo reiaçío com a
diferença de scr e ente (diferença oniológka) (JfG. p, 15).

A essência da verdade carrega, portanto, um balanceamento recí­


proco do ôntico e do ontológico desbordado pela diferença que
os separa. *
A íff/erértftf, na qual o scr é como o outro dc todo cnlc, que
desvela ao desçobrir-se nele, é mais um diferir11 do que uma
distinção: separados c, entretanto. trazidos um no outro, o scr c o
ente diferem a partir do mesmo fundo que o jogo mútuo de ambos
faz aparecer, O deixar-scr, em que o homem sc expõe ao des­
velamento do ente — a essência da verdade —, só c possível graças
ao aclaramento do scr — a verdade da essência, iluminando o
ente e vclando-se ao iluminá-lo, através dc cada uma dc suas ma­
nifestações historiais. A drftwífti subjacente aús conceitos onto-
lójicos, de que provêm a direção polarizada do eixo antolcnlógico
da Metafísica, é, precisamente, o que a Metafísica esquece. ”0
olvido do scr é o esquecimento da diferença do cnlc relativamentc
ao scr" p. 330). A Metafísica tião sc descorou de um on
de outro, do ser c do eme. Mas ela "‘não pensa a diferença do ser
c do ente" (U/Ir p. 65). que determinou a sua gênese. Por outras
palavras, a Metafísica nào colora a questão do ser ou da verdade
do ser. A sua gênese sc confunde com o esquecimento que cia

1 ’ Aproveitamos a exprwssãí de Dcrridn, jfWiVcJnre, para a diferença ôntico-


■oniútéjicn, Ver Dhuri»*. Jacqnçs. La difíírcrtee. In: —. k'ecrí:ure et la
díjfdrr-ncr. Paris, Senil. 1965. p. dS-65.
224

instaura e que determina o destino histórico do Ocidente. A ver­


dade do ser nela permanece impensada.
A distinção do ente c do scr rcvcla-sc como esse míunn (selbst),
dc onde surge Ioda a Melai bica, rmis do qual ela escapa dei­
xando-o para trás dc si, fora dc seu dominio, enquanto aquilo
acerca do qual rio medita e não tem necessidade dc meditar
(N, v. 2, p. 206).

O esquecimento deixa para trás o mais recuado — a dobra


(Zwiefalt), a correspondência entre ser e pensar, que é o continente
soterrado do poema de Parmênides, apenas vislumbrado pelos gre­
gos, que mesmo entre os pré-socráticos não foi direta e inteiramente
pensado, em sua verdade. A verdade do ser, de que os pensadores-
-poetas se aproximaram, concebendo a physis, eis o que a Metafí­
sica esquece em sua omissão da diferença.
A verdade do ser, expressão que Heidegger adotaria, de pre­
ferência à locução “sentido do ser”, empregada na primeira fase,
traduz-se melhor pelo torneio de frase “o que há (es gibt)” em
lugar de “o que é”. Nosso verbo haver está, contudo, distante da
significação do verbo alemão geben relativo a dar e a doar. “O
dá (gibt)”, explica Heidegger, “designa, entretanto, a essência do
ser, essência que doa, e concede a sua verdade” (UH, p. 82). Daí
a afirmativa central de que o ser não é, mas se dá, se doa ou se
dispensa; sua dispensação é retração, o desdobrar-se de si mesmo,
pelo qual se essencializa. A retração é como a epoché do ser,
da qual provém a sua destinação, fundando uma época da História.
“Toda época da História mundial é uma época da errância (der
Irre)” (HW, p. 311).
A idéia de retração integra a História do ser como último
depuramento ontológico, excludente do sujeito na Filosofia mo­
derna, e que decidiu o confronto de Heidegger com o sistema de
Hegel, diante do espírito — da consciência de si, reflexiva, que
produz o conceito e a sua autocontradição. Não é a negatividade
da consciência que produz o desdobramento, mas é a verdade do
ser que se desdobra, fundando a negação e a dialética, à medida
que se temporaliza. O tempo está inserto na própria diferença
inerente ao desvelamento. Pode-se expressar isso enunciando que
o movimento extático da temporalidade é o que diferencia, possi­
bilitando a compreensão do Dasein. Sobre esse fundo, onde mais
se adensa a verbalização do pensamento de Heidegger, como ver­
dadeira logomaquia — jogo de conceitos e de palavras, oscilando
entre imagem e idéia —, podemos compreender a afirmativa de
que o ser se essencializa na existência, ou seja, na abertura do
Dasein, em seu aí, onde acontece historialmente.
225

3. Pensamento do ser

A verdade, como alétheia, é um “evento” historiai, c o Dasein


constitui para o homem, como diz Heidegger cm Da exrônda da
verdade, o fundamento não fundado, que lhe permite èxístir, expon-
jo-o ao caráter desvelado do ente como tal. -
Segundo a famosa -carta Sobre o humanismo, que tornou
pública a reviravolta da concepção dc Heidegger, denominada de
vfrrrgeffr (Kehrc), a realização do homem c correlativa à cssencia-
lização do scr. O homem sc realiza dc tal sorte que ele é o aí
(das 0a)’ 9ucr dizer, a clareira do ser. “O ser sc selara para o
homem no projeto extático, mas esse projeto não cria por si só
o ser" {UH. p. 84). Uma vez que a existência é temporal, que o
sentido do cuidado esgota-se na temporalizaçâo, e que o Dasein
sempre sc conduz iclaiivamente ao ente cm sua totalidade, situa-
mo-nos na distinção entre o ente e o ser. O poder-ser, a possibili­
dade constitutiva da existência, advêm não do homem, mas do ser,
que é o possível como destinação do pensamento, E o ser destina
o pensamento porque o homem ”í lançado pelo próprio ser na
verdade do scr, dc sorte que, existindo (Ek-sistierend) nesta forma,
ele projeta a verdade do ser, para que, nessa luz do scr, o ente
apareça como o ente que ele é” (UH, p. 75).
Como bem demonstra esse trecho, a viragem se declara, antes
de tudo, por uma reinterpretação dos existentivos — o compreen­
der e a disposição. Enquanto o tratado de 1927 diz que o Dasein
sc projeta no mundo, e que, segundo e o problema da Meta­
física,, “o projetar, sobretudo no compreender ontológico, deve ser
necessariamente construção” (KFAf, p. 2J0), deixando-se em sus­
penso o nexo de compreensão do Dasein com o scr compreendido,
agora se afirma que o Dasein compreende o scr, porque este mesmo
lança-o no mundo c cm sua verdade, O Dasein "essencíaliza-se
como lançado. Ele sc essencializa no ato de lançar-se do ser, que
é destmador" (UH, p. 71), O scr mesmo sc torna faium, a origem
da faclieidadc. “O que lança no projetar não ó o homem, mas o
próprio ser que destina o homem à existência (Ex-sistcnz) do
Dasein (Da-seins), como sua essência” (UH, p. 84). O cuidado
leva o homem à clareira, onde acolhe a intimação do ser no aban­
dono da liberdade.
Seria este o engajamento heideggeriano: abandonar-se ao ser,
torná-lo pensável. “Pensar é o engajamento pelo scr para o ser
(engajament par 1'étrc pour Têtre — sic)” (UH, p. 54). Nào
estamos, porém, diante dc um especial compromisso supra-ético,
uma vez que í o scr que possibilita o pensamento. Pensá-lo seria
atender ao seu apelo, põr-sc à sua escuta. Na escuta desse apelo,
o pensamento w identificaria como pensamento, e o homem como
humano. "Numa palavra, 0 pensamento é pensamento do scr"
(IW, p. 56-7).
Um e outro, o homem e o ser, essencializam-sc mutuamente.
Ao fim c ao cabo, a essejicializaçtio netessim da reciprocidade dc
que nos fala o fragmento 8 de Parmênides. Pensar significa reco­
nhecermos essa reciprocidade, como a essência mesma do humano.
De extração metafísica, o /mmirn/jnro, qnc nâo pensa a essência
do homem, é o fermento prático da errância. Do ângulo da vfro-
gewi, os ideais éticos, a jwrdeía, são momentos independentes, sem
autonomia filosófica, do acometer historiai da verdade.
A vfnaycnr, como momento cruciai desse acontecer, correspon-
deria uma revolução do pensamento engajado com o seu princípio,
como experiência do ser c dc sua csscncíaljzaçiio, praticada num
estilo de meditação, dc sondagem interpretativa, qnc adere à Meta­
física tentando superá-la. Dois aspectos distintivos possui essa me­
ditação -- modo de pensar e prática do pensamento — substitutiva
da Ontologia fundamental: um propriamente ftwmcnêwfico, que
leva a cabo uma leitura iiiterprctatíva dos signw da essenciãlizaçao
em nossa época, c outro. /wwpecfrvo, antevendo c preparando a
possibilidade de mudança nu dc transformação dn homem, pela
retomada da reciprocidade. Ambos caracterizam o que Heidegger
chama de psnMr ou simplesmente de pensamento, c que denomi­
namos dc prdricd nwdilanfe.
Conforme vimos, a História do ser abrange as transformações
do mesmo princípio esquecido, as diferentes perspectivas sob as
quais foi interpretado, c que são os modos dc essenUtilização da
verdade. O esquecimento do começo principiaiivo ê, ao mesmo
tempo, o sulco por onde correm a História do ser c a Hermenêutica
da História. O significado completo da viragem é tentar a direção
contrária a esse olvido, tanto no sentido do futuro quanto no do
passado. As transformações futuras do homem dependeríam da
possibilidade de ultrapassar o esquecimento da dífererffd — dc
ultrapassar, portanto, □ Metafísica, pela recuperação interpretativa
do que não foi inteiramente pensado e do que ainda pode ser
pensado, Semelhante recuperação tfeluar-so-ia como um recuo à
origem, ao primeiro começo, ã rápida aurora da experiência do
pensamento grego, à verdade do ser discernida na palavra dos
primeiros pensadores, que sustentou, até nossa época, o desdobra­
mento historiai da Metafísica dentro dc uma só História. Sc o
homem c Dasein, sc tem sua existência plantada na dj/ercoça e na
verdade como "evento1", há entre ele c o ser uma proximidade na
distância, uma relação dc mútua correspondência, esquecidas por­
que impensados ficaram o tempo c a linguagem como ltígast mas
227

feitcrávcis enquanto proveniêncta originária, enquanto possibilidade


de cada instante, na época em que do mais profundo olvido pode
nromper a lembrança sufocada,
Mas, como é a História do ser que “suporta c determina toda
condição e situação humana1’ (UH, p. 54), a superação do esque­
cimento c da Metafísica só poderá ocorrer comp um advento, não
sabido c apenas pressentido, fiá escuta interpretatíva, sob o apelo
do próprio ser a dcsvclar-sc. Ein nossa época, os signos desse
desvelamento — da essencialização cm sua forma atual, captados
pela Hermenêutica heidegger iana, são os da práxis social e cultural,
reduzidos a uma só expressão totalizadora: a racionalidade tec­
nológica.
Ê a racionalidade tecnológica que Heidegger nos apresenta ao
fazer da técnica moderna, cuidadosamente distinguida da rédtne
dos gregos — objeto dc conhecimento poético para Aristóteles -
c não-rclacionada diretamente com o produzir — um modo dc
essencialiMção: o tfmiroíwtejrtoi (Gestell), que consiste cm pro­
vocar o homem "a desvelar o real como reserva (Bestand), na
modalidade de cometimento” (VA, v. 1, p. 20).
A técnica não é uma questão técnica c sim uma destinação
historiai, que reúne a Natureza e o homem, sob um mesmo apelo
provocador, a primeira experimentada como reservatório dc ener­
gia a ser liberada, acumulada c transformada, c o segundo identi­
ficado ao elemento transformador, na medida cm que é englobada
na mesma perspectiva, dentro da qual é parte integrante dc reservas,
produtor c material humano dc produção. '‘A provocação ocorre
quando a energia oculta na Natureza é libertada, quando o que é
libertado c transformado, o transformado acumulado, o acumulado,
por sua vez, repartido, e o repartido, de novo, comutado'’ (lôí,
v. 1, p. 16). Estaria o homem, para usarmos a expressão dc
Orlega y Gassct, diante dc sua ‘"principal ilimitação
*" ”, que não é,
porém, decorrência dc um “ato puramente humano” (K4, v. I,
p. 18). A atividade, humana abre espaço ao desvelamento; o scr
estaria cm jogo na essência da técnica. No entanto os sinais do
desvelamento congregam, numa única cadeia, o implacável meca­
nismo du produção c do consumo na sociedade industrial — a
racionalidade tecnológica do sistema capitalista.
O que Heidegger descreve, digamo-lo, na terminologia de
Ser e tempo, é o mundo transformado num complexo referencial
dc utensílios, de objetos fabricados, dc meios de produção e de
planifieação para o consumo, em que tudo, mesmo a Natureza, se

14 Meditação da técnica. Rio de Janeiro, Livro Ibero Americano, 1963.


p. 84.
228

torna um ser-à-mão, disponível. Em vez de oficina, de atelier,


como na visão artesanal de Ser e tempo, o mundo circundante se
converte num empreendimento financeiro rentável, objeto de cálculo
das fontes lucrativas que encerra e das potencialidades da força de
trabalho que os homens podem oferecer em qualquer ponto do globo.
O expansivo domínio da técnica — a sua planetarização —
constitui a dominação mundial da “razão calculadora”, que or­
dena e planeja sem trégua, mas como organização da penúria,
criando artigos de substituição, consumindo matérias-primas e pro­
duzindo o vazio uniforme da economia de mercado estendido à
Terra inteira.
A racionalidade científica entrecruza-se com o arrazoamento,
do ponto de vista do conhecimento matemático 15 e da experimen­
tação que caracterizam a ciência moderna. A organização do
saber, que se edifica sobre os seus próprios resultados, acumulan­
do-os e transmitindo-os, a realização e o rendimento das investi­
gações, a pesquisa das condições de pesquisa, o acerto dos planos,
a uniformização e a planificação — tudo isso não é exterior à
estrutura do conhecimento científico e constitui a consolidação da
objetividade alcançada pela investigação metodológica. A inter­
pretação que subjaz ao caráter da ciência como pesquisa, e que
assinala o fundo metafísico dos tempos modernos, é a interpretação
do ente, que se fixa para o homem como algo que ele representa
e produz. Essa mesma interpretação assegura o domínio da téc­
nica, que é, como transformação autônoma da prática, comple­
mentar ao da ciência físico-matemática da Natureza.16
Em suma, o domínio da técnica, que não é só técnico, porque
se estende ao político e ao econômico, traduzir-se-ia na mais
completa entificação — o que quer dizer, no total primado do ente,
e, portanto, no esquecimento do ser, da diferença, esquecimento
“que nos mascara o brilho e a potência da verdade” (VA, v. 1,
p. 27), e nos coloca diante do mais grave risco, do maior perigo.
Esquecemos o próprio desvelamento como tal. Mas, conforme dizem
os versos de Hõlderlin,
Onde o perigo existe, cresce
também aquilo que salva.
(Wo aber Gefahr ist wãchst
Das Rettende auch.)

1 e Ver n respeito Heidegger, M. Qu’est-ce qu’une chosel [Die Frage nach


dem Ding], Traduit par Jean Reboul et Jacques Taminiaux. Paris, Galli-
mard, 1971.
18 Ver capítulo-6, A lida cotidiana, tópico 6.1, O mundo circundante e os
entes, para o conceito heideggeriano de prática.
229

0 perigo pode reverter em salvação, Na essência mesma do


perigo “abriga-se a possibilidade de uma viragem cm que o esque­
cimento da essência do ser tome uma tal inclinação que com essa
viragem a verdade da essência do ser reingresse (einkchrt) no
ente” ,T. Esse reingresso possível corresponder!t« a»' momento da
conversão do homem a si mesmo —• ao seu, Dasein —, c do
pensamento ã verdade dó sert dentro de urtl só processo dc superação
du Metafísica. Do mesmo arrazoame/ttp surgiría o seu inverso:
a xJcftne, no sentida dc poíesis, que produz c "faz aparecer a coisa
presente" (VA, v. 1, p. 27). Estaríamos retomando à pJtfsis, na
passagem do filosófico para o poético, que a prtfaca meditante dc
Heidegger tentará abrir,
A essência da técnica é o fenômeno mais avançado dessa pas­
sagem, dc que a manifestação precursora, anunciando o fim da
Filosofia, terá sido, no fecho da História do ser, a concepção
nitzschiana do ente como vontade dc potência, O esquecimento
do scr, que identifica o domínio hcideggcriano da Metafísica, al­
cançaria o seu ponto culminante com o niilismo, de que Nietzsche
foi o porta-voz.

17 Heidegger, M. Die Kehre. In: —. Die Technik und die Kehre. Pfullin-
gen, Günther Neske, 1962. p. 40.
XIV

RÉQUIEM ALEMÃO PARA A FILOSOFIA

Herr, lehre doch mich


dass ein Ende mit mir haben muss. . .
Brahms, Ein Deutsches Requiem. 1

1. A vontade de potência

Dentre as exegeses hcicicggcrianas, nenhuma parece afastar-se


tanto do espírito da. obra interpretada, nenhuma parece tào con­
trária às intenções expressas dc sen autor quanto a leitura dos textos
dc Nietzsche, de que resultou o juízo singular do mestre de Friburgú
acerca da doutrina da vontade de potência, como fecho da cadeia
dc transformações que constituem a História do scr, O crítico dc
Platão, que a sl incsmo chamou dc psicólogo pelo olhar penetrante
com que devassou os móveis inconscientes da Filosofia, o icono­
clasta dos ideais cristãos e do idealismo filosófico, que reanimou a
concepção dc Heráclito, denunciando a ilusão da Identidade, o
adversário dos sistemas e o mais exaltado demolirinr do abrofrífo,
foi, a despeito de tudo isso, c ponr eause, o último herdeiro da
Metafísica, Seguindo o Itopismo ontológico a que Heidegger sub *
mete os lídimos pensadores, mesmo quando refratários ao ser,
Nietzsche ter-se-ia inclinado, de modo transverso, com a sua dou­
trina da vontade dc potência, para essa questão de fundo da
Filosofia. Os dois outros tópicos da apaixonada reflexão meto *
chiana, o Eterno Retorno do (cwigcm Wicdcrktinfi der
Gteichcs) c a transvalorização dos valores (Uitrwertung), interli-

1 “Senhor, ensina-me pois


qtie deverei ter um fim..
RüaHMS, Um réquiem alemão.
231

*5C
jram à vontade dc potência c formam, juntos, os elos de uma
concepção metafísica, correspondente à terceira época da História
do scr, na fase do domínio planetário da técnica. Para adentrar
nessa interpretação, precisamos reconsiderar o acontecimento his­
toriai, referido no capítulo anterior, e com o qual se inaugura a
fase moderna: a passagem do cu pensante à posição' de elemento
substancial, que sc tornou, mantendo a consistência da owrrfl, o
paradigma da Metafísica modtrna.
O Cogito em que o homem se põe como sujeito implica um
me cogitare, um pensar-me: o Eu não é apenas o acompanhamento
das representações, mas "a medida da coisa representada, assegu­
rando o que se representa (vor-stellen)” (N, v. 2, p. 155), como
princípio capaz de comensurar o ente à certeza indubitável da cons­
ciência de si. “Para u alo de representar, o si do homem é essen-
cialmcntc o que constitui o fundamento. O si (das Selbst) é sub-
-itftüwi (sujeito)" (A, v. 2, p. 155). Portanto a Metafísica mo­
derna está inteiramenic contida na “casca de noz” do Cogito, em
cujo âmago a afirmação do sujeito pensante, que delineia a razão
dos novos tempos — a racionalidade da máthesis, do saber mate-
mático —, guarda a semente do voluntarismo. A vontade livre,
autônoma, é o que determina, em última análise, conforme per­
cebeu Kant, os fins do homem como ser racional. Confirmou-o
Fichtc, cm sua Teoria da ciência, desdobrando o eu penso num
e.çí> volo (eu quero), desdobramento já implícito à Ética de Spinoza
e à dc I-cibniz. A evidência da dJfrío originária
(Tathandlung), que põe o mundo como o seu contrário — o
não-Eu — anteriormente à experiência empírica, funda-se num
querer. Schelling identificaria a vontade ao saber, e Hegel o saber
ao querer.
Nietzsche rebateu a subordinação idealista da vontade à idéia
ou às representações, que ainda aparecia em Schopcnhauer. O
querer, potência afirmativa, 4 soberano, mas como um instinto dc
domínio, que cresce dc suas próprias forças, nào lendo a vontade
outro fim além dc sua expansão indefinida, determinante da volição
e do conhecimento. Nessas condições, porím, o que a vontade
quer senão o seu querer? “Seu querer", explica Heidegger, “é o
querido por ela. A vontade sc quer a si mesma” p. 216)-
Certos fragmentos póstumos dc Nietzsche justificam o alcance me­
tafísico que Heidegger atribui à doutrina da vontade de potência
concebida nesses termos.
O filósofo de A origem da tragédia escreveu num desses
fragmentos, com a sua atenção dirigida para a arte, que o sentido
do real é “tal qual a vontade plasmadora, dc que provém o amor
ao belo, o meio dc que dispomos para conquistar o poder, visando
232

a plasmar as coisas a nosso talante” 2. E acrescentou numa frase


final: “Somente podemos conceber (begreifen) um mundo que
tenha sido feito por nós”. Não há concepção sem potência des­
carregada expansivamente sobre o mundo, a que necessitamos apli­
car nossa força. Força é já o primeiro nome naturalista da vontade
plasmadora (vida seria o segundo), que precede a idéia e comanda
as representações, determinando a conduta e o conhecimento.
Em outro fragmento, a vida, vontade de potência enquanto
criadora ou plasmadora, é reputada a única representação do ser:
“Nenhuma outra representação temos para o ser senão ‘vida’. Como
a morte poderia ser algo?” 3 Cotejemos essa sentença, bem favo­
rável a uma interpretação biologista do pensamento de Nietzsche,
reforçável sem dúvida por outras passagens nas quais os filoso-
femas de ressonância darwinista combinam-se ao vir-a-ser hera-
clitiano, às imagens da perene mudança e do conflito permanente,
com aquelas relativas ao conhecimento.
Longe de atividade puramente conceptual, desligada dos in­
teresses humanos, o conhecimento, sempre aquém da natureza das
coisas, e que está condicionado às exigências da vida, é um fator
potente na economia dos meios de adaptação dos organismos ao
ambiente natural. Porém, de forma semelhante ao esforço de
criação artística, de que nascem obras diferentes das coisas, e que
se aplica às coisas como se fossem obras — umas e outras incon­
cebíveis fora da perspectiva do artista, de seu modo de ver e de
sentir —, o processo adaptativo, solicitado pela vontade de potência,
é uma espécie de ação. Tal qual a obra, o objeto criado, que existe
relativamente ao criador e ao fruidor, pela significação inerente à
perspectiva incorporada, também as coisas só são reais porque, de
imediato, significam algo para nós. “Resumidamente: a essência
de uma coisa”, afirma Nietzsche, “é também somente uma signi­
ficação sobre a ‘coisa’. Ou, antes, o seu valer (es gilt) é propria­
mente o seu ser, o único ‘que é’ (das ist) algo.” 4 O valer ante-
cipa-se ao trabalho intelectual e o conduz, introduzindo, na elabo­
ração dos conceitos mais abstratos, como a noção de ser, a que
serve de esquema, um sentido prévio articulador dos fatos que a
ciência crê existirem por si mesmos, independentemente das condi­
ções de desenvolvimento da vida. Tampouco existiría a “coisa em
si”, essa elucubração do nosso intelecto propenso a reagir contra
a vida, a romper a teia das valorações que o envolvem e solicitam,
com a ilusão do ser imutável e do conhecimento absoluto que ele

2 Nietzsche, F. Werkc, Aus dem Nachlass der Achtzigerjahre. Heransge-


geben von Karl Schlechta. München, Cart Hanser, 1954. v. 3, p. 424
2 Id., ibid., p. 483.
4 Id., ibid., p. 487.
233

próprio cria. Será preciso, então, regressar do fato ao sentido c do


sentido ao valor — sentido c valor depositados nas coisas em
virtude das interpretações que lhes damos. Não há, então, conclui
Niçlzschc, um sentido cm si. “Não é o sentido necessário preci-
santente um sentido relacionai e pcrspcciivístico? Todo sentido é
vontade dc potência (todo sentido relacionai deixa-sc nela resol­
ver).”**
Assim a projeção da subjétividade moderna que chamamos dç
víi/or, nâo-identificável a coisas e irredutível à consciência, encontra
a sua íonte na vontade dc potência, da qual deriva o conhecí-
mento através da ação. Após essa descoberta, o único problema de
ülcance real, que pode interessar ao pensamento, é o problema dos
valores. "A questão dos valores ê mais importante que a questão
da certeza.”* A certeza da consciência dc si exterioriza-sc em seu
poder, c o seu poder, coincidente com a sua força, avalia e inter­
preta antes de tudo. 0 homem já não pnde scr mais do que um
animal avaliador, capaz de prometer c dc fazer cumprir o que
promete.T As transformações da vontade de potência, que é, afinal,
o valor dos valores, explicam, pelos fenômenos reativos a ela
contrapostos, a gênese da consciência moral tanto quanto a da cul­
tura do Ocidente — de seus saudáveis eomeços gregos it decadência
da civilização cristã.
O ser esfuma-se na noção de valor, que ofereceu ao pensador
solitário a perspectiva do real, o modo dc conceber o ente como
vontade de potência. “Todo ser é, para Nietzsche, vir-a-scr”,
escreve Heidegger. “Entretanto, esse vir-a-ser tem o caráter de
ação e dc atividade do querer. Mas, em sua essência, a vontade é
'vontade de poder’ ” (N, v. 2, p. 265), Ora, essa vontade que
não quer senão a si mesma, c que por isso é vontade de vontade
(cf, N, v. I, p. 46), plasma sempre inumeráveis formas dc vida,
insubstanciais, aparentes, a que o intelecto, “esse mestre da dissi­
mulação” 8, opõe o contraforte da essência e da coisa em si.

5 Id., ibid., p. 503.


«Id.. ibid., P. m.
i "Disciplinar uin animal capiit de fazer promessa* — não A «te o deside-
rato que h NnWreia sc propôs a respeito do homem? e não «tá nisso o
verdadeiro problema do homem?" Id. "Sclmld" Sch1eehi« Gcwisscn tmd
Vtrwandtes. Tn; —. Iferite; zur Geneakigic der Moral. Z*ei!e Abbaudlung.
Hcrauxgcgcbcn von Karl Scblecbta. München. Car! Hnnser, 19Í4, v. 2. p, 79*?.
* “O intelecto. esse mestre da dõsimutaçào, cslA livre e descarregado de seu
trabalhe de escravo, tão logo possa enganar sem dano, festejando nisso m
Jüãs satumais." Id. Le livre dit philtnophf, iludes lliéciréliques/ Das Fhito-
sophenbucfe; IhcOrCtische SWdicn, Traduction, introduetibn et notes pír
Angèle K. MarieitL s. I.. Aubier/Flammarion. 1969. 2. pwtc. p- 196-7.
Ed. bilíngüe.
234

"Vale â pena viver na «erra: um único dia, uma sú fesla em


companhia de Zaralustrs mc ensinaram a amar a terra. — Era
isto . vida? direi à Morte. Pois bem: uma vez mais!”* Uma
vez mais a vida: a recorrência do que está diante de nós, pre-
sentificado, o Eterno Retorno do mesmo — a repetição de todos
os momentos, de todas as formas individuais, do jogo das aparên­
cias, como “a mais alta afirmação do que pode ser alcançado” e
também “a carga mais pesada”, eis a aceitação trágica, o amor fati
que a vontade impôs à sabedoria de Nietzsche. Nesse supremo
querer, objeto de uma experiência de pensamento 9 10, revela-se a
essência da vontade de vontade, que instaura o domínio do ente a
que se dirige e do qual se apropria.
Estreitamente solidárias, a doutrina da vontade de potência
e a doutrina do Eterno Retorno compõem o cenário historiai da
época, onde aparece, trazido por Zaratustra, esse homem diferente,
o Übermensch (super-homem) 11, que já estendeu o seu poder
sobre a terra inteira, e para quem, impronunciado porque se dis­
sipou, o ser converte-se num “erro, numa fumaça, numa ilusão” 12
O aparecimento do super-homem prenunciaria a necessidade de
criarem-se as novas tábuas, os novos códigos da cultura ocidental,
corroída por incurável decadência, que desvalorizou, depois de
falseá-los, os seus “mais altos valores”. A causa desse falseamento
vem de longe e do alto; vem da destituição, que encerra o sentido
do platonismo, da vida pela verdade, do sensível pelo transcen­
dente metafísico. O jatum histórico de nossa época, que Nietzsche
chamou de niilismo, é o desabamento do mundo platônico das

9 Id. Das trunkne Lied [O canto da embriagues]. In: —. Werke; also


sprach Zarathustra. Herausgegeben von Karl Schlechta. München, Carl
Hanser, 1954. 4. parte.
10 A noção de eterno retorno não é mais uma idéia, no sentido kantiano de
idéia reguladora da especulação, nem tampouco uma teoria. “It is indeed
a mere ihosight or rather, a thought-expcrimcnl, and its poignancy resides
in the intimate conection that binds the thought of Being and the thought of
nothingness together.” Arendt, Hannah. The life of the mind; thinking.
New York/London, Harcourt Brace, 1977-8. v. 1, p. 149.
11 Nietzsche não entende por super-homem uma espécie dislínta do gênero
humano ou o gênero humano agigantado em suas capacidades, como um
produtor da Filosofia nietzschiana. ‘Super-homem designa a essência da
humanidade moderna, que começa a entrar na realização da essência de sua
época” (HW, p. 232).
12 Rcírrc se Hcidejjger à pasínsem de A na Filóso/Ia (Die Vernunft
in der Philosnphie) do Gõtzen-DSmmtrwtg (Crepúsculo doe ídolos) de
Nictaebt: "... nada teve até o preieitte uma torça de persuasão mais
ingênua que o erro do ser como foi, por exemplo, formulado pelas eleatas...”
NtE.T3tscnE, F. Werke. Herausgegeben von Karl Schlcthta. München, Carl
Hanzer, 1954. v. 2, p. 960.
235

jj^ias — o upér ourános tópos, onde a Teologia abrigou a natureza


transcendente do Deus bíblico, transformada cm Junimum enr.
"O que significa o niilismo? Significa”, responde Nietzsche,
"que sc desvalorizam os mais altos valores. Falta a meta; falta a
re5pcrsta ao porque?" 1314A Lransvalorização (Umwcrtung) dos va­
lores seguir-sc-ia à sua desvalorização, urna vez diagnosticado c
esgotado o niilismo. '

2. A arte no tempo do niilismo

“Nós não possuímos a verdade. Todos os homens de outrora


possuíam a verdade, mesmo os céticos” registra um fragmento
de Nietzsche, Essa consciência negativa da verdade coloca-nos
diante do dcsapossaniento do Absoluto, da perda de vigência dos
“mais altos valores”, do mundo das idéias verdadeiras com que
Platão coroou o seu magistério da Academia, menos em decorrência
da necessidade lógica de garantir a distância entre ciência e opinião,
que assegura a função da dialética, fundada no reconhecimento da
racionalidade da alma, do que por força do acontecimento historiai:
a dominância da idéia sobre a alétheia — a verdade se tornando
orthótes, o pensamento Filosofia e a "Filosofia Metafísica. Nietzsche
declarou que a sua Filosofia cra “um platonismo invertido”, ou
seja, uma Filosofia empenhada em subverter a hierarquização pia *
tônica da verdade cm dois mundos separados, o inundo das idéias,
superior, essencial c verdadeiro, c o mundo aparente, ilusório c
inferior, que existe como reflexo do primeiro. “As razões que
fizeram com que ‘este’ mundo fosse chamado de mundo da apa­
rência provam antes a sua realidade — uma outra espécie de
realidade é absolutamente indemonstrável.” 15
Muito mais problemática do que pode parecer, a inversão do
platonismo não se operaria por uma simples troca das posições
entre a aparência tornada verdadeira e a essência cornada aparente,
O que nos resta, perguntou Nietzsche, sc abolirmos o mundo ver­
dadeiro? “O mundo das aparências, talvez? Mas não, com o mundo
verdadeiro também abolimos o das aparências.” 16 Mesmo quando

13 Id., ibid., v. 3, p. 557.


14 Apud Heidegger, M. Oberwindung der Metaphysik [Ultrapassamento da
Metafísica], VA, v. 1, § XIII, p. 75.
15 Nietzsche, F. Die Vernunft in der Philosophie. In: —. Werke-, Gõtzen-
-Dãmmerung.. ., p. 960.
leWie die “wahre Welt” endlich zur Fabel wurde (Como finalmente o
“mundo verdadeiro” tornou-se fábula). Id., ibid., p. 962.
236

já perdeu a sua força coesiva, mesmo quando, inútil e supérfluo,


deixou dc obrigar, transformado que foi numa fábula, a verdade
absoluta ainda continua pairando no alto como um balão cativo.
A consciência negativa da época, a desvalorização dos valores, nSp
basta para desprender-lhe as amarras. Será preciso que o filósofo,
praticando o niilisnto ativo, golpeie, por um lado, o anteparo pro­
tetor dos valores dc decadência, dirigindo o martelo dc sua análisç
*ao desbaste da máscara “verdade" (que recobre a vonfade
crítica 1718
19
de verdade}, e que, por outro, assuma também o papel dc criador
dos novos valores, de urna nova oídem hierárquica entre o inferior
e o superior, entre o sensível e o inteligível.
Desprovido da crença na verdade, “sentindo que o terreno da
Metafísica lhe foi retirado”, e que “não pode, entretanto, satisfazer-
-sc com o turbilhão colorido das ciências” o filósofo, já intér­
prete do conhecimento trágico imposto peto amor fali, trabalhará,
na fase do niilismo, para restituir o direito da criação artística.
Esforçando-se para edtficar uma vida nova, “cie restitui à arte os
seus direitos” in.
È muito significativo que Nietzsche fale de uma restituição do
direito da arte, colocada a serviço da liberação da vontade dc
potência contra a hegemonia do saber teórico, e que a criação
artística parecesse a ele o único meio terapêutico do níilismo.
“Agora nós dirigimos a arte contra o saber: retorno ã vidal Domí­
nio do instinto dc conhecimento! Rcforçamento dos instintos morais
c estéticos!" w Nada pode tâo sinceramente quanto a criação artís­
tica, transbordamenlo dc embriaguês dionisíaca c contida visão so­
nhadora apolínca, opor-se, de forma enérgica, à regência da verdade
imutável, porque somente a arte “trata da aparência como aparência.
Ela não quer enganar, mas i verdadeira” 21. Mentira vital a que
falta a dissimulação do saber intelectual, afirmativa da aparência
como aparência, c por isso verdadeira, sem cair no logro da von­
tade dc verdade, o direito da arte dc concorrer com o conhecimento
foi tolhido pela Filosofia, por força do mesmo processo cm que a
Filosofia constituiu-$e cm dialética c instituiu-se em ciência sobe­
rana. Constituição de uma e instituição de outra acompanhariam a

17 Como se filosofa a golpes de martelo (Wie man mit den Hammer philo-
sophiert) é subtítulo de Gõtzen-Dammerung. O fecho desse livro traz como
Discurso do martelo (Der Hammer Redet) a passagem II de Also sprach
Zarathustra (op. cit., p. 460).
18 Nietzsche, F. Le livre.../ Das Philosophenbuch..., p. 52-3.
19 "Etc trabalha pnra a edificação de uma vida nova: restituiu seus direitos
à arte," ld„ ibid., p. 52-3 e 54-5.
'2° Id,. ibid., p. 58-9.
21 Id., ibid., p. 212-3.
237

mudança do sentido da verdade, que Heidegger leu nas entrelinhas


do mito da caverna, no Livro VII de A república.
Entretanto o que Heidegger não diz, no seu ensaio sobre
Platão, é que com a ciência filosófica, congenitamente metafísica,
também nasciam, nesse mesmo escrito, que documentou o recalque
da alétheia, a sua oclusão pela idéia, a discriminação do poeta
irágico, a quem se atribui a,.autoria de
* discursos mentirosas, sem
guarida na república, c b assentamenió, para a arte cm geral, do
estatuto interior de atividade imiiativa, reflexo esmaecido do ver­
dadeiro ser. 22 Essa discriminação ratificava a autoridade do filó­
sofo, do “amigo das idéias”, a quem a preparação dialética, degrau
superior da paideía e cuja direção ascensional o mito da caverna
exprime, consagrou na condição de novo mestre da verdade, habi­
litado a exercer, pelo poder do conhecimento teórico, o governo
da cidade justa.23

22 Essa discriminação, em que assentam as bases educacionais da república


platônica, decorre da distinção entre o verdadeiro (aléthes) e o falso
(pscúdos) na ordem do diseurio. Cf. Platão, A república, Livro II, 376e.
23 a alta consideração em que deve ser tida a verdade (cf. A república,
Livro III, 389b) autoriza a revisão da matéria dos mitos e a severa vigilância
sobre os criadores de fábulas (ibid., Livro II, 377c). A continuidade do
Estado, que depende do regime educativo adequado, exige o controle da
mímesis pelos filósofos, “pois em parte alguma as leis da música são alteradas
sem que concomitantemente se modifiquem as leis fundamentais da comu­
nidade...” (ibid., Livro IV, 424c). A música torna-se uma questão polí­
tica, que, novo mestre da verdade, ou novo pharmakeús, o filósofo decide
com a sua autoridade de “amigo das idéias”, que lhe conferiu o conhecimento
do verdadeiro ente pelo adestramento superior da dialética. O resultado da
discriminação é a doutrina do Livro X de A república, contendo o juízo
definido acerca do alcance inferior da mímesis exercida pelo artista (téch-
nites). O poeta e o artista, este representado pelos pintores, estariam, como
aqueles que produzem uma espécie diferente de ilusão — o simulacro —
três graus abaixo do rei e da verdade — do bem e da alétheia (ibid., 596e).
A mímesis é o ato de produzir (poieín), mas circunscrito pelo eídos,
Esse produzir é um fabricar algo que mostra ou dá a ver a idéia como
eídos, em seu aspecto. O artista ou poeta é um demiourgós; suas criações,
entretanto, não mostram o aspecto da idéia, mas a sua aparência fenomênica.
“A distância relativamente ao ser e à sua visibilidade pura constitui a
medida própria para determinar a essência da mimetés. Segundo o conceito
greco-platônico de mímesis, de imitação (Nachahmung), o decisivo não é
o reproduzir... A imitação é aqui um produzir subordinado. O mimetés
(o imitador) determina-se em sua essência pelo posto que ocupa na hierar­
quia dos modos de reprodução escalonada de acordo com o puro aspecto do
ser” (N, v. 1, 215). “A mímesis é, porém, a essência de toda arte.
Pertence à arte, portanto, esse distanciamento relativamente ao ser, no que
toca ao aspecto imediato e não-dissimulado, quer dizer, à idéa” (N, v. 1,
p. 216). Para o significado da palavra alétheia, veja-se Détienne, Marcei.
Les maitres de la vérité dans la Grèce archaique. Paris, François Maspero,
1973. Ver, também, sobre a função central da arte como questão política na
238

“A Metafísica é platonismo” (ZSD, p. 63), escreve Heidegger,


incorporando ao seu pensamento, que caminha na esteira das in­
terpretações, a lição do interpretado, até mesmo, num certo sentido
a idéia nietzschiana de que o resultado final da inversão do plato­
nismo liberaria a potencialidade do mito e da poesia, ainda unidos
nos fragmentos dos pré-socráticos, antes que a aliança socrático-
-platônica da virtude e da razão 24 consolidasse a autoridade do
filósofo, porta-voz do mundo supra-sensível.
Identificando-se, pois, com o platonismo, a Metafísica, admi­
tiu-o Nietzsche, sacrificou os valores vitais da arte, ao subordiná-la
ao bem (agathós) por intermédio do belo. Esse sacrifício das forças
expansivas da vida, que ainda em Platão chega até o desprezo do
corpo, exacerbando-se na humildade cristã (o ressentimento da
fraqueza, recobrado pela compensação da imortalidade individual),
é o começo do longo processo de decadência, que culmina, em sua
etapa final — precisamente o niilismo —, com a “morte de Deus”,
perpetrada no seio da civilização cristã. “Será possível? esse santo
ancião não ouviu, em sua floresta, que Deus morreu?”, exclama
Zaratustra, para si mesmo, depois do encontro com o anacoreta,
que marca o início de sua missão entre os homens.
No § 125 de A gaia ciência (Die Frõhliche Wissenschaft), o
desenfreado pergunta aos que o rodeiam: “Para onde foi Deus?
nós o matamos, eu e vós. Todos nós somos seus assassinos. . .
Deus está morto. Deus permanece morto”. Mas, comenta Hei­
degger, o que permanece morto, à época do niilismo, é o mundo
supra-sensível — o mundo verdadeiro das idéias, iluminadas pelo
bem (agathós), e não apenas o Deus hebraico-cristão. Indepen-
dentemente da vontade do filósofo, o pensamento de Platão en-
feixou, por obra da mudança intervinda na essência da verdade,
as possibilidades de toda a Metafísica. O pensamento de Nietzsche
conseguiu inverter o platonismo ao revelar o extremo limite da
Metafísica — o niilismo, já nele contido, de que a dominância do
ente, firmada na idéia de vontade de poder como valor, apagando
a lembrança do ser e tornando-o uma ilusão, é a concretização
historiai efetiva. Crescendo das metamorfoses do cristianismo (cf.

república de PJ^tão, Lacoue-Labarthe, Ph., Typografie. In: —. Mimesis


des articulations. Paris, Aubier/Flammarion, 1975. p. 227.
Finalmente, sobre o pharmakeús, como novo mestre da verdade, consulte-se
Derrida, Jacques. La pharmacie de Platon. In: —. La dissémination. Paris,
Seuil, 1972. p. 71 et seq.
24 “Vernunft - Tugend - Glück (razão - virtude - felicidade).” Nietzsche,
F. Das Problem des Sócrates [O problema de Sócrates], In: —. Werke;
Gõtzen-Dãmmerung. . ., p. 955. Nessa aliança da virtude e da razão, em
que ambas se igualam na felicidade, firma-se a tirania da razão.
239

5' v. 2, p. 144) (ca cristianismo foi. segundo Nietzsche, Hpla«o-


nismo paia OS pobres1’) — da má consciência ud ressentimento,
efeitos do ideal ascético, como da "manifestação histórica, secular
c política da Igreja, c de seu apetite dc poder” :J aos derivativos
do reino dc Deus sobre a terra —, o niilismo traz á superfície da
história revolta de nosso tempo o íenómeno do vãlor, a que se
reduzirá o ente desvelado na essência da técniçn,
A identificação do scr ao vaiar c do valor à potência resumiu,
numa só idéia, a História da Metafísica; continuando a linha mais
importante da Filosofia alemã, que vai dc Leibniz a Hegel, depois
de passar por Kant, Fíchte e Schopcnliaucr, Nietzsche também re­
tornou, por meio dessa identificação, inexpressa na interpretação
do scr como p/iysis, ao começo da Filosofia. ‘*O ser é determinado
enquanto valor e por esse motivo explicado a partir do ente,
enquanto condição colocada pela vontade dc potência, pelo ente
como ente. O scr não é reconhecido enquanto ser” (Ar, vP 2, p. 338).
Para quem pensa em termos dc valor, o scr nada mais é do
que ilusão. "O fato dc pensar valores c daqui por diante erigido
em princípio. O ser mesmo não é admitido enquanto ser. Nada
há quanto ao ser nessa Metafísica segundo o seu próprio princípio”
(A, v. 2, p. 340), Forma extrema dc seu olvido, essa nulificação
do ser, já virtual ao primado do sujeito com que sc abriu a
Filosofia moderna é, conforme se podería dizer no idioma filosó­
fico dc Hegel, a verdade oculta da Metafísica. A soberania do
sujeito humano csscncializa-se como vontade dc domínio, inaugu­
rando a dominãncia do ente, sab a qual a verdade do ser declina
ou se dissipa.

3. O fim da Filosofia

Heidegger converteu a grande metáfora nietzschiana da deca­


dência dos valores e da cultura numa outra metáfora: o ocaso
(Untergang), o declínio do ser, que assinala a ascensão da vontade
de potência, e, portanto, do senhorio do homem sobre a terra
inteira. Nesse senhorio, como relação fecunda a estabelecer-se entre
o homem e o mundo pela ação eficaz, baseada no conhecimento
experimental da Natureza, que Bacon anteviu em sua Instauratio

aJ “Nesse sentido. a cristnndade (Chrtstenium) e a vida cristã (Chriiihchketl)


não sío a mesma coisa. Tanto uma vida alo-cristã pode aderir no cristia­
nismo e servir-se dele como fator de poder, quanto, ao «wirária, uma vida
pode wr Cristã *cm necessariamente precisar do cristianismo"' (W, p. 203).
240

magna, e que foi uma das metas pedagógicas do humanismo renas­


centista — nesse mando racional seguro c prcvisor, tanto sobre os
elementos naturais quanto sobre a atividade humana, o qual alcan­
çaria o trabalho, a vida em comum, a utilização dos bens c a criação
artística, graças à onímoda providencia do governo sábio c justo,
com que sonharam as utopias de Morris e dc Campancla —, nessa
instauraiio magna de forças produtivas jamais vistas, por fim domi-
náveis. c controláveis, mediante o cálculo político da ação dirigida
à libertação do homem, que o MtrntVcjfo comunista de Marx
estatuiu2628, projeta-se a desmedida vontade dc potência, como prin­
27
cípio genealógico de nossa época, impressa na prática social c na
cultura, sob a forma de continuada carência, avesso de uma rea­
lidade pletórica, reproduzindo na história o declínio que lhe pos­
sibilitou a ascensão.
Sem tentar prencher os claros que Heidegger deixou na genea­
logia historiai do presente — genealog;a desenvolvida, de maneira
difusa c fragmentária em diversos escritos posteriores a Da essência
da verdade —, procuraremos reunir, de maneira coerente, os íastos
do expansivo domínio da técnica, da razão calculadora, que deter­
minariam, provocando o mais extremo perigo para o Dasein, o
objtwecímen/o do mundo (Verdüstcrung der Wdt): a devastação
da terra, a massificação, o exilio ou o apatridismo do homem
moderno c a fuga dos deuses.
O primeiro risco, a deviumpão da terra, vem da ameaça que
representa a perspectiva de total exploração da Natureza, objeto dc
domínio enquanto fundo de reserva e instrumento dc produção e de
consumo. "A Terra c a sua atmosfera convcrtem-sc cm matérias-
-primas, O próprio homem se torna material humano atrelado a
determinados fins” (HW, p. 267). O esquadrinhamento das re­
servas utensiliares no solo e no subsolo estende-se às paragens,
englobadas no imenso aparato necessário para assegurar o ciclo da
produção e do consumo, do que Heidegger nos apresenta em
A questão da técnica uma imagem exemplar:
A central elétrica é instalada no Reno. Ela demanda (stellt) o
rio a liberar tua pressão hidráulica, que por sua vez demanda o
funcionamento das turbinas. Este movimento faz girar a máquina,

26 “a burguesia, durante o seu domínio dc classe, apenas secular, criou for-


ças produtivas mais numerosas e mais colossais que todas as geracócs pas­
sadas em conjunto.'* Makx, Karl, Manifesto do Partido Comunista. In: Marx,
K. & ENCktjs, F. Obras esçoJhMas. Rio de faneíro, Vitória, 1961.
27 “Die wesenlirclKn üeschehniwc derwlben sindt die Flucht der Gõtter, die
Zerstorung der Erde, die Vermassung des MciBctiert. .(EM, p. J4).
Hcidcfmer relaciona o obscurecimento do mundo a uma despotenciaçrto do
espírito (Entmachtung des Geistes).
241

cujo mecanismo produz a corrente elétrica pela qual o centro


itgioníil c a sua rede são destinados aos fins dc transmissão. No
domínio dessas conscqliéneias, que sc encadeiam a partir da produ­
ção de energia elétrica, o Reno aparece como algo cometido a
certo fim (ais etwas Bestelltes). A central não é construída na
corrente do rio como a velha ponte de madeira que durante
séculos une uma margem à outra. É antes o rjo que é emparedado
na central (VA, v. l,^p. 1«5).

A paragem correspondente, cm torno do rio, torna-se um conjunlo


paisagístico, incluída no patrimônio local, e administrada, para
consumo da vista c do lazer, no circuito da reprodutibilidadc inde­
finida dos bens lucrativos.
Pela reação em cadeia da técnica, a destruição da terra ganha
as proporções dc inconirolãvel saqueio da Natureza, que não poupa
nem a vida44, sobre a qual já interfere a Engenharia biológica, nem
“as culturas nacionais que se desenvolveram através de um povo
com sua paisagem típica” 28 29. Mas o saqueio de paragens e de pai­
sagens, proeza do animal de presa nietzschiano, que não pode ser
medido apenas em termos ecológicos, atinge a habitação nativa —
a Terra, no sentido de lugar das coisas, ou seja, dos entes próximos
ou distantes, a nós oferecidos na gratuidade de sua presença, no
mundo circundante. “Tudo funciona. Não mais existe Terra (Es
funktioniert alies. Das ist kein Erde mehr).”
A abstração científica afastou-nos das coisas, desprendeu-nos
da Terra30 nos vôos interplanetários. Aliviando o corpo humano
de seu peso e o espaço de suas dimensões corporais, esses vôos
riscam, uma após outra, sobre o vazio, etapas de um percurso
exploratório sem caminhos nem horizontes. Enquanto, por meio
do controle logístico dos computadores, os astronaulas, treinados
em estações de condicionamento da conduta, transferem ao etéreo,
com o recordismo de suas viagens empresadas, o imperativo do
progresso (der Progressionszwang) indefinido, à procura de novas
fontes de reserva para investimentos a longuíssimo prazo, o homem
se torna um agente da produção e do consumo, uma parcela do
ser-em-comum, indiferenciado e onipresente, que recebe agora o

28 Prepara-se, tom isso, “ynu agressão contra a cssíncia do homem, compa­


rada com a qual a explosão dc unw bomba de hidrogênio pouco significa**
(GL, p. 20). Também n respeito do dirigfsúbo ttn matéria dc fecundação,
possibilitado pela Engenharia biológica, ver VA, v. 1, p. 87.
29 Carta a Kojima — “O fim da Filosofia e a questão do pensamento” (Das
Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkens, ZSD).
30 “O homem já começa a distanciar-se da Terra, penetrando no espaço
cósmico” (GL, p. 18).
242

nome de “massa”. O homem massificado, anteriormente uma forma


da existência imprópria do Dasein, aparece, nessa reflexão de
Heidegger, como o homem metafísico, última versão, ainda custo­
diada pela Iradiçáo humanísiiça, do animal racional, que, impotente,
assiste á sua transformação cm animal de carga3132ou de labor,
trabalhando para viver e vivendo para trabalhar. A mediania do
cotidiano, descrita na Analítica do Dasein, é, agora, a inteligência
instrumental média — a aurea mediocritas da aprendizagem obtida
pela transmissão, nos estabelecimentos dc ensino nu por meio dns
veículos de comunicação dc massn, das informações que unifor­
mizam. A esses veículos lransferc-se o poderio anônimo da gente.
O ideal da paidefa, da formação (Bildung) pedagógica, que
extirpa o individual em cada homem, substituída por um ou por
vários tipos dc padrão comporta mental suscetíveis de controle,
decai para a “mediocridade mansa e mesquinha”, a que sc referiu
Nietadteís,
Saber fazer já não significa a capacidade e a generosidade advindas
de uma elevada superabundáncia c do domínio das forças, mas do
cxcrcfcta de uma rotina, suscetível de ser aprendida por todos, com
iitgum Suor c grande dispêndio dc meios (Ê,\f, p. 35).

Se aqui o tom expressivo de Heidegger mimetiza o idioma


filosófico de Nietzsche, a rotina apontada, que conjuga a banalidade
do cotidiano ao desempenho estatístico dos grandes números, con­
dicionado a planos, planificações e cálculos, por sua vez requeridos
pelo aparato da produção e do consumo, antecipa, como agrava­
mento da errância, a unidimensionalidade do homem 33. De medida
das coisas, de mensurador do ser, segundo a velha sentença de
Protágoras, o homem passou a ser medido pelo trabalho produtivo,
sob a regência das leis do mercado, que estabelecem a necessidade
do consumo geral de tudo, habilitando cada homem a ingressar na
categoria de trabalhador em potencial. Os povos são “exércitos
de reserva da produção”, mobilizáveis por empresários, gerentes e
trustes. “A vida originária do homem atual é a auto-imposição
comum no mercado sem abrigo da compra e venda” (HW, p. 290).
Dir-se-ia que Heidegger transfere para uma pauta ontológica
os mecanismos da economia de mercado. Assim ele nos diz que

31 O homem da Metafísica, o animal rationale, é estabelecido como animal


de carga. Cf. Heidegger, M. Oberwindung der Metaphysik [Ultrapassamento
da Metafísica], VA, v. 1, § III.
32 Werke. . ., v. III, p. 600.
33 Cf. Marcuse, Herbert. L’homme unidimensionnel [The one-dimensional
man]. Paris, Minuit, 1968.
243

o guarda-florestal, que mede 3 madeira abatida. pftrcCCndo seguir,


come os seus avós, os matnos caminhos, está hoje, saiba-o oi<
nio, intimado pet# indústria madeireira- Ele i comei ido à obten-
çio da celulose, c cs» oblençfio c. por seu turno, provocada pela
necessidade do papel, que é demandado jhêkis, jornais c rcvislus
ilustradas. Estes últimos, por sua vez, provocam a opinião pública
fl absorver a$ coisas impressas, para que eia assfin possa scr come­
tida à preparação dã opinião de que'recebe a ckmandn (>^^4.,
v. 1, P- 17-8).

Essa potência soberana, a economia dc mercado, a que sc estende


a perspectiva do arraHMmcnto (Gcstcll), “não somente coloca todo
ente como produto no processo dc produção (Prozess der Produk-
tiort)” P- 270), não apenas faz dc todo enie um objeto
suscetível dc produzir c de reproduzir-se, mas sc objetifica como
valor mercantil em todos os entes.
Eis, porím, que, “passando ii imartêneia da consciência" (HW,
p. 281), a objetificação (VergegenstãndLichung) também deter­
minaria a concentração do poder político nos chefes carismáticos,
destinados a gerir os povos como mão-de-obra e as nações como
empresas, de acordo com o que demanda o alto crescimento da
razão calculadora, que aumenta sempre na proporção de sua usura,
isto é, na proporção da premente oarência que a produtividade
secreta de sua própria abundância.34 Não haveria pletora senão
a do poder necessário para manter a carência. O Estado totalitá­
rio nasceria da usura, em que a racionalidade do homem moderno
se estiolou.
Os condutores (Führer) e os chefes apresentam-se, nesse qua­
dro, como figuras de declínio, encarnações abastardadas do super-
-homem. “Os chefes são os obreiros do aparato (Rüstungsarbeiter)
que têm o poder de decisão e que supervisionam todos os setores
em que a usura (Vernutzung) do ente é resguardada...” (VA,
n. 1, p. 86). Não seria a usura do capital, mas a usura do ente o
que responde pela carência. Porém, descrevendo a usura em sua
dimensão ontológica, Heidegger descreve o mundo obscurecido
como sistema da economia capitalista.
Apesar do seu caráter esquemático e difuso, a genealogia hei-
dcggçriana da época, que prolonga a inierpretaçáo do pensamento
nietzschiano, vale por uma genealogia critica radical d;i cultura do
Ocidente, cm que avulta o ícnòmcno do poder, seja do pomo de

34 A finalidade do uso (tanto dos equipamentos quanto dos produtos de


consumo) é destituída de fim. O uso (Nutzung) torna-se usura (Vernutzung).
Ver VA, v. 1, p. 84.
244

vista da natureza da ciência moderna, seja do ponto de vista


propriamente político.
Certo é que Heidegger verteu nessa análise, sensível ao apa­
recimento do Estado totalitária, além da sua experiência deccptiva
com o nazismo, os seus compromissos ideológicos marcadamcntc
nacionalistas, que o levaram a perfilhar a idéia de Ernst Jünger
da interdependência do totalitarismo e do poder econômico.35*
Mas, por outro lado, a amplitude que conferiu ao poder econômico,
indistinto do caráter planetário da técnica, na fase de declínio do
ser, seja como exploração, seja como domínio, ao qual se transmite
o empenho da razão calculadora, indica uma aproximação à dou­
trina dc Marx, também objeto, como a Filosofia de Hegel, embora
numa escala bem menor, de uma apropriação interpretativa no
contexto brumosa da História do ser.
A relação da genealogia heideggeriana com a Filosofia de
Marx parece evidente na medida em que o desenraizamento do
homem, privado da terra, do solo natal (o tema da pátria em
Hõlderlin), por oposição ao “deserto das regiões industriais” (õde
der Industriebezirk)” (GL, p. 15), equipara-se, num paralelo do
próprio Heidegger, ao conceito marxista de alienação (Entfrend-
ung), com o qual já corresponde a objetificação da existência no
envolvimento da queda 3G. “Assim, o que Marx, partindo de Hegel,
reconheceu num sentido essencial e de grande importância, como
sendo alienação do homem, mergulha suas raízes na ausência de
pátria do homem moderno” (UH, p. 98-9). Fazendo a experiência
da alienação, acrescenta Heidegger, a concepção marxista “atinge
uma dimensão essencial da História” {UH, p, 98-9).
Entretanto essa concordância do filósofo do ser com o filósofo
da práxis social estabelece-se obliquamente, através das linhas si­
nuosas da História da Metafísica, da qual tanto Hegel quanto Marx
escreveram, antes de Nietzsche, os capítulos mais relevantes, que

livro de Ernst Jüngcr O trabalhador (der Arbeiter), 1932. foi tido e


contentado por Heidegger para "um pequeno círculo dc professores uníver-
sitiricu..." 11.....KOI-n M. Zw Seittsfmgei jSólirç qiies-1 ão do ser],
p. 218. Precedido, em 1931, pelo ensaio A nwbilizaç&o lotai (Die total
Mobihriiichung), O trabalhador pertencería, segundo Heidegger, à fase do
niUimo ativo.
30 Essa objetificação, do ângulo da queda, afirma-se tanto na tendência do
Dasein para çnmprccndcr-sc -como scr-À-visia (Yorhnndcn), quanto na envol­
vente e anênima presença do scr-cui-wxnutn como qgenre (Man). Ambos
correspondem Fos conceitos centrais de História c consrtfwclrt de daste,
dc G. Lukács — & reíficaçüo ç a falsa consciência. Ver, a respeito, GoijíMaM,
Lucícn. íjrJtdçj ft fieideggcr, pour une tiouvclle Philowpbic. Paris, DéitoêlZ
Gonthicr, 1972. p. 72, príncipalmcnte.
245

□ conduziram à sua fase epilogul na época do niilismo, o primeiro


desenvolvendo o eixo que vai da certeza da consciência dc si ao
Saber absoluto, e o segundo a representação teórica do homem
inerente á Filosofia hegeliana.
Para Marx — comenta Heidegger — o ser é processo de produ-
çjtk. Tal é a idéia que ele recebe da Metafísica, a partir da inter­
pretação hegeliana da 'vida oomo processo. A' noção prática de
produção não pode ler existência senão a partir de uma concepção
do ser oriunda da Metafísica. 37

Assim, depois de aproximar-se de Marx pela idéia de aliena­


ção, Heidegger o envolve na trama do ser, uma vez que, como
processo dc produção, o ente é um derivado da vontade de potência,
dependente da espécie de desvelamento que acontece ou que sc
esscticializa na técnica, A consciência dc si, ou melhor, a certeza
da consciência de si, princípio do saber incondicionado cm Hegel,
seria a figura precursora e preparatória da absolutização do sujeito,
e, por consequência, do esquecimento declinante do ser. Em Hegel,
porém, a vontade “ainda não aparecera como a vontade dc vontade,
segundo a realidade que ela própria preparou'1 (v. 1, p, 68),
Só quando isso se dá, na doutrina de Nietzsche, é que a Metafísica
alcança sua extrema possibilidade, játvirtual ao início fundador
em Platão, pois se o primeiro nome da Metafísica é platonismo, o
último é niilismo, o momento em que o apatridismo, a alienação,
de que a errância constitui sinônimo, alastra-se, à sombra da maior
retração, ao planeta como um todo, de onde os deuses desertaram 38.
Por mais duvidosa que possa ser, consideradas as diferenças
de concepção que os separam, a influência de Marx sobre Heidegger,
o relacionamento entre eles se estreita numa completa e singular
adesão daquele ao seu parceiro dialogai, através da perspectiva de
redução da Filosofia à Metafísica e da Metafísica ao cerne do pen­
samento ocidental. Podemos constatar a procedência da observação
no caso da dialética de Hegel que Marx reformulou.

37 Séminaire du Thor, 1969. In: —. Questions IV. Traduit par Jean Beaufret
et alia, Puris, Gallímard, 1976. p. 2B4L Oríg. alemão.
” A dfterfão d&i dtustf, em Heidegger, i o equivalente da "morte dc
UeuC aielzschiann. wmo perecimtnto histórico. sem implicar, dc modo
algum, uma posição atelsla. Ao contrário da Ontologia fenomenolójrica dc
Sarirc, a Hermenêutica hctdegferiana não fu do ateísmo um princípio onto-
Lógico, “Não é senão a partir dn verdade do ser que sc pode pensar a
essência do sflgzmfo. Não í senão a partir da essência do Mgrado qit-c é
preciso penfair ■ essência da divindade- Não c senão à luz da essência da
divindade que se pode pensar c dizer o que deve designar a palavra ‘Dcush"
(UH, p. 130-1).
246

Heidegger não admite o caráter teórico da dialética; aceita-a,


contudo, como verdade da essenctalização do ser. O Saber absoluto
gerado pelo espírito como querer, como vontade, é tãü historica­
mente verdadeiro quanto a Metafísica, “que pela primeira vez, cm
Hegel, fez aceder à linguagem, no sistema, sua essência pensada
absolutamentc” (LW, p. 86-7). Essa essência é o processo dialético,
quç Heidegger náo rcfula, cofocando-o à luz da csscnciaiizaçào
historiai, no âmbito da verdade do ser, e situando-o, por conse­
gui ide, em confronto com a diferença.
Por outro lado, a dialética é, para Hegel, simplesmente, o
método, a especulação, ou seja, “o movimento mais íntimo da
subjetividade, a alma do ser, o processo de produção” (WM, p. 260),
c, nesse sentido, determinada pela certeza de si do sujeito, que
st volve itífr/wr™, pimsando-se ou conhecendo-sc incondicional-
mente como presente, como ens cru. Essa certeza impõe a
vontade do absoluto (Wíltc des Absoluten) — o trabalho de total
realização do conceito c de explicitação do saber, que c, ao mesmo
tempo, a parousía. a realidade se manifestando ou sc preseniifi-
cando na consciência, desdobrada reflexivamente entre a consciência
do objeto e o “seu saber dessa verdade" (//IF, p, 114). Os
diversos momentos do reinado total da verdade do ejpfrífc?, com
as determinações particulares que os caracterizam e que estabelecem
a mediação da consciência consigo mesma, constituem os fenômenos
ou aparências através dos quais □ consciência faz a experiência dc
si, ate atingir a essência que lhe c própria, “a natureza do Saber
absoluto” (//IE, p. 181-3). Tal processo reflexivo da consciência
em devir é o movimento dialético.
Para a leitura hcideggeriana do prefácio da Fenomenologia do
espírito, o fundamento da dialética está no "caítter dialogai da
consciência ôniico-ontológica, que deixa expor-se o (ético de seu
representar. , ,“ (HW, p. 169). O (raspasse da tese c da antítese
funda-se no que aparece no entç dc que u consciência (Bcwusst-
-sein) é o saber manifestante (erschcinendc Wissen), cm seu pro­
cesso de produção. “A dialética”, acrescenta Heidegger cm Hegel
c os gregos (Hegel und die Griechcn), "c o processo de produção
da subjetividade do sujeito absoluto, e como tal a sua ‘ação neces­
sária'" (WM, p. 258).
Essa "ação necessária” é, acresccntc-sc, reclamada pela trans­
formação do ser na época moderna. A dialética ingressa no pro­
cesso real c o perfaz, trazendo a Filosofia, tornada História mundial,
para as vésperas de seu acabamento (Vercndung),
A interpretação heideggerian.i de Hegel, portanto, faz passar a
dialética ao plano da necessidade histórica, parte que ela é da
247

História da verdade do ser, dc que Nietzsche escrevería o último


capítulo — último porque, ao scr escrito, já se iniciara a época dc
acabamento da Metafísica. E sc a Metafísica é Filosofia, o acaba­
mento da e/íffcro primeira, cujos signos são os do niilismo, do
obscurecimento do mundo, é também o fim ’do saber filosófico.
Entretanto esse acabamento é igiiahnenie uma realização (Vollend-
ung), na acepção hcgcljnna' do termo,'posto que a Filosofia está
efetivada na totalidade do mundo histórico ao chegar ao seu fim.
Honrando o tema terminal do idealismo germânico — o fim
da Filosofia — com que o sistema de Hegel celebrou o seu triunfo
sobre a realidade, enfim absorvida na razão feita história, e na
História universal convertida na vida do espírito — celebração que
preludiavú, entretanto, o vibrante réquiem alemão para a Filosofia
que Marx entoou ao oficiar as solenes exéquias do Saber absoluto
—, Heidegger uniu-se, ao mesmo tempo, a esses dois pensadores.
“Não se pode realizar a Filosofia senão superando-a, e só se
pode superá-la rcalizando-a”, disse Marx em sua Crítica à Filosofia
do Direito de Hegel.w Heidegger acrescentou uma coda ao tema
resolutivo da sinfonia hegeliana reorquestrada por Marx. “O fim
da Filosofia significa: o começo da civilização mundial baseada
sobre o pensamento ocidental europeu” (ZSD, p. 65). Mas a civi­
lização mundial, acrescentaríamos, significa o domínio planetário
da técnica — e, com esse domínio, a Filosofia consuma-se, reali­
zada nas ciências empíricas, nos projetos interdisciplinares, na
Logística, na Psicologia, na Psicanálise, na Sociologia e na Ciberné­
tica, que floresceram do e sobre o fenecido tronco do saber filosófico
em sua derradeira primavera.
“O fim da Filosofia é o lugar, é aquilo em que se reúne o
todo de sua história, em sua extrema possibilidade. Fim como
acabamento quer dizer esta reunião” (ZSD, p. 63). Mas que
lugar seria esse senão o sistema do mundo atual? Entretanto, como
o sistema do mundo apenas ensombrece a clareira onde o Dasein
se encontra, sempre a derradeira primavera da Filosofia pode
anunciar o verão de um novo modo de pensar, de um novo começo
do pensamento, na expectativa do qual se empenha a prática
meditante de Heidegger, no intervalo da viragem — de um modo
de pensar que seja, ao mesmo tempo, uma transformação (Wandl-
ung) do pensamento e da relação do homem com o ser.

39 Marx, K. Para la crítica de la Filosofia de lo Derecho de Hegel. In:


Marx, Carlos & Engels, Frederico. La sagrada família e otros escritos.
México, Juan Grijalbo, 1959. p. 8-9.
248

É à busca dessa dupla transformação que a Hermenêutica


heideggeriana, a qual não quer ou não pode mais chamar-se de
reflexão filosófica, e que se autodenomina topologia do ser, apro­
xima-se dos poetas e dos artistas tanto quanto dos pré-socráticos.
As obras de arte em geral serão os lugares (tópoi) privilegiados
da essencialização da verdade. 40

40 Cinco são os modos de essencialização da verdade: o primeiro é a


verdade enquanto obra, o segundo é o que decorre da ação fundadora de
úma cidade — e ainda a experiência de proximidade do ente, o sacrifício
essencial (wesentliche Opfer) e a pergunta do pensamento como questão do
ser (cf. Heidegger, M. Der Ursprung des Kunstwerkes, HW, p. 50).
xv
DA ARTE COMO POESIA

díe Htt* M^fíAe uvjd Hort, worin das


WirMKhr stinen lúslanx vtrlforgtticn Glani. jedetmat
im den\ Mtnaíhen vtfsçheni;!. (iftmit er in sotekcr
Hfllr reine ichítuf rtnd ktarrr hSre, was s(ch íflnem
Wesen zuspricht.
Heidegger, Wissenschaft und Besinnung.1

1. A Estética moderna

Ao admitir que a obra dc arte tem origem ns verdade como


ofétfteia, Heidegger separa-se tanto da tradição humaiiistics quanto
da Estítira moderna. De íato, pata aquela tradição, que firmou
uina exegese instrumentalista da Poéritu e da Jteírfrfcfl dc Aristó­
teles, a arte, hábito de produzir de acordo com a reta raiãu
(recta ratio facíendi), que sc consuma na obra produzida, ongina-sc
da determinação da matéria por uma forma ou idéia nascida na
mente do artista.3 As artes “que representam o mais alto grau
de conerciude das obras, são as f&Vinof poietikai, as artes poéticas

1"... a nrte í um, çoiuíjirBçSo e um abrigo, por onde o real díjpensa ac


homem O SOI bralho aVê enfio escondido. ppra que. fllirrjn. tal claridnde,
possn ver, dc mancita mais pura, e ouvir, mais disilniamenie, o que fala ã
sua cMÍtieia." Hiuüeímhb, Clírte/a c msdíwpSo,
* 0 híbito acompanhado de razão verdadeira o a »r!í se confundem A
coisa produaida ou criada pertemee il emejoria dos possíveis, c seu principio
reside na pessoa que cxeeuia (cf. A«rsTÓnji.tS. ÍHi» fl /VícAmm», Lim> VI,
cap. 5). Nn AriwótelM coloca cm paralelo arre ((échn<r) e
.Vufrrrc±íi (physh): "'Das coisas que entesem, simus nascem por Natureza
(ph^sci), outra» por arte (léelu») e outras por cuuaJHfute" (Livro VII,
cap. 7).
250

ou criadoras”3. Dissociada, porém, tln alcance ontolftgicu que


Aristóteles ainda lhe emprestou, a tédtnc significa, rtesse contexto,
apenas um conjunto de meios adequados à realização da pofej/j,
idêntica à mímesis, e que, traduzida por imiiatio (imitação), pas­
saria a responder pela atividade individual criadora, çnquailtü prin­
cípio originativo da arte.
Subordinando aq belu ã obra produzida, a Estílica moderna,
sem tocar no ijistrumcntalismo da tradição humanístiea, transportou
essa origem para a subjetividade. A concepção heideggcriuna, em
muitos pontos dc acordo com certas proposições de Hegel e de
Nietzsche, conforme se verá neste capítulo, denuncia o conteúdo
metafísico do subjetivismo estético, fundamentado pela crítica do
juízo de Kant numa experiência sw £i7ierfc de caráter contempla­
tivo; a experiência llãoconccptual, também denominada fsrér/ca,
correspondente a juízos twílexlvus, c que, em vez dc conhecimento,
proporciona-nos, com base no balanço das faculdades dc conhecer,
a sensibilidade e o entendimento, uma satisfação universal c desin­
teressada 4.
Na medida em que a consideração widtica — pondci.i Heidegger
— ddcrinirwi a obra de arte do ponto de visrii do belo que produz
íi arte, a obra é representada como aquilo que traz e que suscita
o belo rtlalivnmcnlc ao estado afetivo. A obra de arte ê colocada
cruitu "objulo" para um "Sujeito”. Essa consideração baseia-se na
relação sujeito — objeto, fundamentalmente a relação sensível. A
obra torna-se objeto sob o aspecto da experiência vivida (Erleben)
de quem a contempla (N, v. 1, p. 93).

Condicionada por essa relação, em que a conduta afetiva fica


em primeiro plano, a Estética luma-se complementar à Metafísica
moderna. Entretanto a indagação pertinente vinculou-se à aísihetis
(sensibilidade) desde a Antigüidade.5 E, muito embora só a partir

3 As fZcíiaar poltífiai (ane* in effeciu postrae) são inmbfm artes miméikM.


«<> objeta dessa satisfação iinivcibat, desinteressada e ainda necessária,
reconhecido seni conceito, pcw um nexo da representação como sentirneato,
c o belo. A fundíimenlaçáo do juiio reflexivo, e ccinscqiicruciiitnte da
experiência cstítka, decorre do livre jo^o das fuculdoda. Cf. Kxnt. F..
Ifúrir; Krilik. der UrlcitílrDÍI, IScrlirt, Gcarç Rctnwr, 1913. v. 5, J JJ,
* "O termo ‘estática' e fnnnndo em correlação com ‘lógica* e "ética". Temos
iCinpre que acrcsccniar-llic’. epfaíduer, ciência Lógica: epi.tfemr:
ciíncJs do isto è, doulrina da enilncinçBo do fuíio enquanlo Forma
fundamental do pensamento. Lógica: ciência do pensamento. das formas e
<1» regras do pchSaintnto, íújça; Cf Mee rpirlémc: ciência do eWreXt, da
atitude anterior do homens c da maneira eomo deterntiiiwi mi comduia, í. .1
Dç maneira análoga torinuu-sc o termo 'estéiÍLa'; nürJAzVfJlrr cjijrr^ti<-. eienein
do comportamento sensivd c afetivo do honrem e do qtte o deicrmina"
(At. v, i, p. 9Í>.
251

do século XVJI1, quantia já sc configurara histericamente 0 domí­


nio das Belas-Arics, o termo “estética" tenha vindo 3 ter curso
consagrado, para qualificar essa nova disciplina de estatuto ambí­
guo, no conjunto do saber moderno — que, ora reflexiva,, ora
normativa, ou adicta à Psicologia, à Sociologia c à História, oscilará
entre :t Filosofia c as ciências Imrnanas —, *‘foã ]á CtHiio Estética
que a Filosofia começou a refletir sohre □ cssêQcia da arte e do
belo” ÍIV, v. L, p, 93’4},,. Md5, sc a Filosofia, nativa da Grécia,
adere, desde 0 começo, ao ser do ente, essa reflexão, que ocupou,
depois de Sócrates um lugar proeminente na doutrina platônica,
participará, cm larga escala, da História da Metafísica. Tampouco
estranha ã formação do saber filosófico, a consideração estéticH
interfere, de modo variável, na História da arte.
Os seis fatos específicos arrolados 11 um dos estudos de
Heidegger sobre Nietzsche Der Wille znr Nfaeht ais Kmut [A
vontade dc potência como arte) —■, que acompanharemos a seguir,
mostram-nos que essa interferência, reve I adora da essência da Eisté-
tica, "de sen papel no pensamento ocidental1' OV, v, ], p. 94).
constitui o indicio da situação histórica da arte nas diversas épocas.
Testemunhando tanto quanto o segundo a particular visão
heidcggeriana da cultura grega, que bastante deve a Nietzsche, o
primeiro falo arrolado diz respeito ã ausência de reflexão estética
na fase da grande aríe hclênica. Lcvc-
*>c cm conta o recurso adjetivo
à “grandeza”, também utilizado alhures para designar a íecundidade
do começo da Filosofia — desse começo principiativo que, tal
como a vida duradoura dc uma semente, guardada ao longo dos
séculos, germina de novo, em cada volta da história. GrartefáMo,
para Heidegger, é o esplendor da arte helênica, e o seu esplendor,
a força germinativa que exerceu sobre o todo da vida e da cultura
gregas, dc que foi o acontecimento historiai, Um pensamento
precoce, ainda não propriamente filosófico, o “saber claro” dos
gregos, que prescindiam da Estética, ccrtamcntc alusivo à posição
dos pré-socráticos, acompanhou, concordante, a grande arte em sua
f;tsc dc esplendor. Somente quando, cessado 0 esplendor da arfe
grega, ela sc torna problemática, e já então apenas provedora de
vivências, é que a rcítcNíio estética paralela começa.
Ntssfl época, que foi a de Platão c dc Arhlótdes — e eis o
segundo falo —, elabora ram-se. cm função do dcsenvolvimeulo
da Filosofia, os conceitos fundamentais, que delimitarão, no futuro,
.1 esfera dc toda interrogação contcrnenlc á arte (N. v. I, p- 95).

Dentre esses conceitos, o par matéria-forma, derivado do eídos


platônico, desde então aplicado aos entes naturais, estende-se tam­
252

bém, por intermédio da idéia do belo, àqueles que o esforço da


arte produz.
O terceiro fato consigna o ajustamento da Estética à direção
do saber moderno, segundo a perspectiva da “consciência de si”.-
Levantado o problema da realidade exterior, que pressupõe a natural
precedência dos estados interiores em relação ao mundo, essa
perspectiva justificaria a apreciação das coisas dc acordo com a
maneira pela qual nos afetam, condicionando a admissão de uma
faculdade de gosto estético. Cumulando as funções de ciência teó­
rica do belo e dc ciência prática do &os1o artístico, a Estética é,
daí por diante, no “plano da sensibilidade c do sentimento, o mesmo
que a Lógica no plano du pensamento.. ■” (W, v. 1, p. 99), Mas
a sua preponderância, desde os fins do século XVIII, não deixa
dc estar relacionada com o declínio dc outra grande arte. Esse
declínio situa-se entre « primeiro romantismo, que Nietzsche inter­
pretou como hipírbole de uma grande paixão consumida"", c a
Filosofia hegdinna da arte, que foi n maior e “derradeira Estética
do Ocidente” (N, v. 1, p. 100).
Cíibcria a Hegel anunciar, cm suas Lrpõcs de Ev/érictz, que a
arte é para nós, quanto ã sua suprema destinação, uma real idade
passada. Perdido o seu vigor, esgotada como potência da vida do
cjpínro, convertida, conforme diría Nietzsche, num luxo6 7, a obra
dc arte passa à categoria dc objeto estético, perdurando o seu
cultivo “dentro da esfera do gosto artístico dc algumas camadas
sociais” (^/, v. I, p. 101).
A quarta ocorrência, registrada por Heidegger, é a recepção
do projeto da obra artística integral: o drama wagneriano. A possi­
bilidade dessa tentativa recaiu na órbita da Estética de Hegel. A
obra dc ;nlc integral é uma defesa do ideal contra o avanço do
mundo prosaico da sociedade burguesa, uma proteção contra o
envolvimento da alma na “noite imensa do sentimento”, que o
romantismo revolveu. Uai por diante, a Estética e a História da
arte oferecerão mais para o cultivo do espírito do que o próprio
exercício da arte, concorrendo, na qualidade de produções da
cultura, com a criação artística, que sc torna cada ve* maia cons­
ciente c reflexiva, Surgiría então o homem ejjérico, “que sç crê
abrigado e justificado no seio dc uma cultura” (X, v, I, p. 108),
Em sexto c último lugar, Heidegger aponta a significativa
convergíucia da "morte da arte”, proclamada por Hegel, com o

6 Werke. München, Cart Hanser, 1954. v. 3, p. 492.


7 “Na economia espiritual dos nossos homens cultos, a arte tornou-se uma
necessidade inteiramente mentirosa, desprezível, aviltante...” Id. Richard
Wagner in Bayreuth. In: — Werke; Untzeitgemãsse Betrachtungen. München,
Carl Hanser, 1954. v. 1, p. 392.
253

niilismo da época — a "desvalorização dos mais altos valores”,


iíicliiiivc estéticos, reconhecida pela crítica dc Nietzsche. Enquanto
para Hegel a atividade artística, perdendo a sua efetiva força
histórica, é superada, dialetieamcntc, na religião c na 1'ilosofi»,
formas superiores do espirito absoluto, para Nietzsche, a mesma
atividade, rçligada à vontade dc potência, enquanto fora do con­
trole da experiência, desinteressada e contemplativa, constitui o
único meio capaz de curst a enfermidade da cultura ocidental.
''A civilização”, afirmou Nietzsche, "não pode provir senão do
significado dc uma arte ou de uma grande obra de arte.”* Esse
ensinamento do pensador dt A origem da tragédia, tanto quanto a
lição hegellana sobre o caráter histórico do cjpfrito, foram, a nosso
ver, decisivos para a compreensão heideggeriana, quer acerca da
relevância do artístico na cultura grega, quer s respeito da natureza
e do destino da arte. O '"subér claro", correlato ao tempo dt
esplendor da arte helenica, ê o pensamento “artístico” dos pré-
-socráticos — a Filosofia da époça trágica, durante a qual, segundo
o primeiro famoso escrito dc Nietzsche, cs gregos sustentaram um
permanente embate metafísico com a aparência das coisas Esse
mesmo embate, que sc exprimindo na tragédia ajudou a criá-la c a
preservá-la, lería presidido o desvelamento do scr na perspectiva
da pftysíj. Os gregos, escreve Heidegger, tiveram, sempre dc nove,
“que arrancar o scr da aparência c prolegê-lo contra cia” (EM,
p. 80).
Nenhuma obra em particular concretiza tanto o recontro com
a aparência, travado no espaço da pdfíj, que modelou a vida
helênica — espaço ctMifliiívo da existência política, onde deuses e
homens coabiuram —-, do que o remp/o, e nenhuma outra exprime
melhor a concepção do todo, o pensamento artístico que prescindiu
da Estética, do que a tragédia. “Para os primeiros pensadores

K Í.C ífvre lír# fJÍnlnjfl-jiJir; éiudcs IfitureliqucsX Das PWraophtnbuch-. thtü-


rciiicht Studicn- Traduclian, iiuroduction et notes par Angèta K. Morêtti.
5, 1., Atiljief/FlarnniHTHMi, 1969. v, J, p. l<íí-9. Ed. toilínpie.
® Esse cmbiic principia COO1 O MirginicntiJ dos deuses olímpicos, (Ara da
cultura npotinca. "Para poderem viver, cs grcgoci, levados pela mtris pro­
funda daa. necessidades, criaram esses dcilícs...“ (id.. tf evite; üie licburl
der Tragcdie- München, Orl Hanser, 1954, v, 1. p. 30). “Apoio aparece-nos
cwno n diviníEflçSo do princípio dc individuaçío, pelo qual sc csiinpr-tni ps
eternos dcafenitH do Uno primordial, sua libertação. pela 1uz. pela njáiíuciti,
pela visão" (id,, ibid., p. 33), O elemento dc força ou dc violcfwia dctSe
embale sotwttsal na ejtprçssiü wdfJerttJe Aufftrirev para a phrsi.t. Aeomps.-
nhamfti a tradução dc ms/twrfr d.id:i por Laimanacl Carneiro l.eão, como
rí.ççir cfombidrafe (HiiOWGBH. Martin, inirpdufão â AfctafUicrr. ! fllroduçãc»,
trádirçío o notis pur Emmamuc] Carneiro Leão. Kin -dc J*neiro. Tempo
Brasileiro, 1969. p. 78).
254

gregos, a unidade c <J conflito do scr e da aparência foram origi-


naríamente poderosos, Todavia í na tragédia que tudo isso vai
íctcber a sua mais pura representação" (ZÍW, p. 81). Na tragédia,
em i|uc a tensão dionisíaca é discipliniida pela contenção ápolinea,
a unidade e o conflito dos homens e do destino alcançam o equilí­
brio polemico da harmonia dos contrários, pensada por Hcráclito,
no qual, Lransíundido pela po/íc n ímpeto do jovem deus d.a Tftícia,
o ser do ente manifesiou-se romn Pado, pela palavra encarnando jj
ação. “O ser de todo ente é o que mais aparece (das Scheinendste),
isto é, o mais belo (das Schõnste), o que é em si mesmo consis­
tente” {EM, p. 100).
Entre a noção grega do belo, que correspondería ao ente
manifesto na forma concreta, e o conceito hegellano (“aparição
sensível da idéia"), está toda a distância historiai entre a alétheia
e a verdade como certeza para o pensamento. Fazendo aparecer
o ser como ente, a téchne põe a verdade (alétheia) em obra.
A obra de arte não é obra por ser, em primeiro lugar, confeccio­
nada ou feita, mas porque realiza o ser num ente. Realizar
(er-wirken) significa aqui pôr em obra, na qual o vigor imperante
que surge, a physis, chega a aparecer no que aparece (EM, p. 122).

Nesse sentido, a origem da obra é a arte, enquanto acontecimento


da verdade, c □ criação artística o âmbito de um desvelamento, dc
um rfirmtr-jt!?-, “O artista é um léíTtrtfl® não porque também seja
um artesão, mas ele o é pelo fato de que fazer obra c produzir
utensílios é uma ruptura (Attfbnich) da homem no meio da p/rjutj
e sob o funda desta" (Ar, v. I, p. 97).
Portanto nem a noção de coisa, enquanto matéria sujeita à
forma ou como suporte de propriedades, nem a noção de produto,
“acrescido de um valor estético”, podem aplicar-se à obra de arte.
Não se enquadrando na categoria do ente-à-vista, e muito menos na
do ente-à-mio, ela é antes um fulcro da abertura pensada sob o
enfoque da csseudalização do scr, Desse ponto dc vista, o que a
arte ensina, a sua mensagem, que absorve a sua aparência dç coisa
ou dc produto, só podemos captá-lo volíando-nos para u domínio
(Bereich), "que é aberto através dela mesma" (HfF, p. 30).
Sem abertura não há Hermenêutica. Dependente da essência
da verdade, o princípio de toda interpretação é a essência do ser,
que sempre acontece (West) no velamento, no claro-escuro de suas
manifestações. Esw jogo originário atribuído à arte, c graças ao
qual a obra é obra, í o mesmo de que a interpretação heideggeriana
participa. Sirva-nos isso para assinalar a continuidade do círculo
hermenêutico, que mantém sempre um centro ontológico. Dentro
desse circula incidem as descrições feiiomcnotógicas das obras de
255

arte» que Heidegger nos apresenta, e que pressupõem a prévia


neutralização du experiência estética, a historiai idade da arte, a
sua correlação com o mundo c □ $eu protluzir-sc não-instrumcnial,
num processo dc conversão do relacionamento cotidiano entre nós
c os utensílios- Pressupõem, mais ainda, além da. admissão do
papel privilegiado da experiência grega do ser na historíaljdadà em
geral e na criação artística em particular,' o resgate da arte como
modo dc pensamento original, cerno lugar (tópos), a partir do
qual se efetua uma nova leitura das coisas e do mundo.
Tudo isso considerado, vê-se que a Hermenêutica distancia-se
de uma Filosofia da arte. O que ela nos traz, é, a bem dizer, a
interpretação da arte como Filosofia e da Filosofia como arte,
ambas poéticas pela raiz comum de que se originam, e ambas, tal
como puderam ter sido antes da ascensão da Metafísica, e tal como
poderão ser após a sua superação. Para mostrá-lo, acompanharemos
o traçado expositivo do ensaio A origem da obra de arte (Der
Ursprung des Kunstwerkes), que tem seu complemento em
Hòlderlin e a essência da poesia (Hõlderlin und das Wesen der
Dichtung).

2. A “destruição” da Estétioa

Em A origem da obra de arte, um dos famosos quadros de


Van Gogh, da série inspirada no motivo do par de sapatos rústicos,
e o templo grego de Paestum são objeto de duas primorosas descri­
ções fenomenológicas, que focalizam distintos âmbitos de desvela­
mento.
O que podemos perceber nesse espaço vago, de cores empas-
tadas, do quadro de Van Gogh, como que se desprendendo da
escura e sombria intimidade do calçado, é o peso do couro, a fadiga
de longas caminhadas, a impregnação da terra, a solidão do campo,
a lida com a semeadura e a silenciosa expectativa na sucessão dos
dias. “Esse utensílio (Zeug) pertence à terra e está abrigado no
mundo da camponesa. No seio deste pertencer abrigado, o uten­
sílio permanece repousando em si mesmo” (HW, p. 23). A cam­
ponesa simplesmente usa o sapato, convivçndo com ele. O mudo
saber dum gesto de cansaço ou de resignação da usuária talvez
pudesse resumir tudo isso que o quadro revela. Somente a obra
cria para nós, o espaço de abertura onde o ser do utensílio — a
sua serventia, o seu caráter de produto — aparece ou se manifesta,
congregando a mifltiplicidade de relações do mundo de que foi
extraído e do qual nos aproxima. “A tela de Van Gogh é a aber-
256

tura do que é, em verdade, o utensílio, o par de sapatos camponês”


{HW, p. 25).
Assim também o templo grego, erguido no vale rochoso, e que
encerrou a estátua de um deus, congregou em torno dessa presença
o espaço do sagrado: habitação da divindade circunscrita pela
dureza da pedra, pelo variável brilho do mármore, pelo rígido
assentamento do edifício na rocha. Recinto do deus, “lugar de
reunião dos homens”, o templo faz aparecer, contrastando a sua
presença com a da terra que toma por base e que nele se retrai,
as coisas circundantes com as quais se delimita, articulando, em
torno de si, as potencialidades da lida humana, os fastos, a figura
de um destino.
Nesse ponto, a descrição se aproxima da Fenomenologia do
utensílio e do espaço familiar do cotidiano em Ser e tempo, desta­
cados, porém, os traços de aproximação e distanciação, que formam
uma paragem. Entretanto a paragem do templo não mais procede
do caráter utensiliar das coisas. Como sítio, o templo “dá às coisas
a sua fisionomia e aos homens a visão de si mesmo” {HW, p. 32).
Em torno dele se articulam as paragens, e o mundo que elas for­
mam, em vez do complexo referencial dos utensílios, é o mundo
historiai de um povo, “esse círculo continuamente mutável de
decisão e de empreendimento, de ação e de responsabilidade, e
também de arbitrário e de tumultuoso, de falência e de desnortea-
mento” {EHD, p. 38).
No quadro de Van Gogh, a permanência repousada (Insich-
ruhen) dos sapatos revela-nos “o que é em verdade o produto”
{HW, p. 24), para além de sua serventia; no templo grego, o que
a presença (Dastahend), a construção do edifício, produz, é o
advento do deus instalado em sua verdade. É nessa instalação que
a obra consiste a partir de sua origem. Só quando o mundo aparece
numa forma tangível, que dá à obra o seu caráter de obra, existe
criação artística, como atividade individual mediadora.
Desde a sua técnica nascente no trabalho artesanal, que ela­
bora materiais diversos, tratados de certa maneira, a obra surge ao
mesmo tempo que a verdade operante nela instaurada. Exercido
sobre materiais não propriamente usados como meios nem consu­
midos para um fim, a arte produz e mantém, na obscura materia­
lidade que também os liga à terra, as cores como cores, os sons
como sons, a pedra como pedra e a palavra como palavra. Daí
dizer Heidegger que a arte produz e mantém “a própria terra no
aberto de um mundo” {HW, p. 35). O quadro de Van Gogh e o
templo de Paestum são descritos, em sua verdade, como o embate
(Streit) entre mundo e terra, que tem o caráter de velamento
iluminador, segundo o jogo de luz e sombra. Em ambos, a verdade
257

se essencializa somente como a luta entre clareira e ocultamento,


na oposição do mundo e da terra. A verdade quer instaurar-se na
obra enquanto embate do mundo e da terra (Gegenwendigkeit
von Welt und Erde) (HW, p. 51).

Ela se instaura na “intimidade (Innigkeit) ou na recíproca pertença


dos contendorcs” (W»1, p. 50). Artista í aqucEc.que desce ao foco
dcsst múluo cnfrEtttamcfttph à1 unidade dh diferença, que reúne os
contenderes no traçado (Grundriss) tenso da matéria.
Todas essas figurações, todos esses tópoi, para não chamá-los
de conceitos, aí empregados numa função hermenêutica amplifi-
cadora, também já são “destrutivos” da Estética. O desvelamento
funda a criação individual, e a categoria reflexiva do belo, a con­
templação desinteressada, cede lugar ao jogo conflitivo do aberto.
Interrompendo o envolvimento do cotidiano, forçando-nos a
ver o mundo através do que ela abre, a obra não é ohjçto de
contemplação desinteressada. Há entre nós e a arte um inter-esse
como relação de ser. A experiência estética é só um efeito derivado
da verdade da obra de que participamos. Heidegger diz que nós
temos o resguardo dessa verdade. Podemos fruí-la esteticamente
enquanto subsistir a sua tranqüila revelação de que temos a juarJa
{Bewahrunp). De época para época, essa revelação sc atualiza
pela "comunidade dos criadores c dos guardiões". O perdurar da
verdade c também a perduração da obra como obra. Assim como
o aberto assinala a criação, é a pertinência à verdade que constitui
a sua salvaguarda — a reserva de vida latente, o poder de apelo,
que ela mesma “cria e indica antecipadamente” (HW, p. 53).
Tanto a criação quanto a salvaguarda repousariam no desve­
lamento, que, origem da obra, como essencialização do ser, e con-
seqüentemente como modo do Dasein humano, faz da arte uma
origem historiai. Diante disso, forçoso é concluir que a História da
arte só logra a “transmissão escrupulosa das obras através dos
séculos”, sem alcançar o essencial, já decidido por força da História
do ser, que forma o seu profundo lençol subjacente. Entretanto
essa transmissão atende, ainda que remotamente, à lembrança da
origem, que subsiste como elo entre criadores e guardiões.
Tal como a “destruição” da Ontologia, a destruição da Esté­
tica, que a acompanha, é a suspensão da vigência das categorias
estéticas, pela explicitação dos seus fundamentos. O juízo estético,
reflexivo, que elas enquadram, sempre condicionado por uma dis­
posição de ânimo, é o signo exterior de uma coparticipação efeti­
vada por essa “comunidade dos criadores e dos guardiões” que a
obra torna possível. Mas o que, por sua vez, possibilita a obra é
o acontecimento historiai, “que se projeta para os que irão guar-
258

dá-la no futuro, quer dizer, para uma humanidade historiai1’ (WJF,


p. 62). Essa projeção do ser, que marca a historialidatte autentica,
traz consigo a diferença cm que nos situamos c que podemos dis­
cernir no embate entre a terra e o mundo. É a diferença, resguar­
dada na obra, com a verdade que nela acontece, o que nos permite
captá-la, em cada época, através de uma interpretação com base
em diferentes situações culturais. “A salvaguarda acontece em
graus diferentes de saber, tendo, de cada vez, um alcance, uma
constância e uma diversa iluminação” (HW, p. 56).
Esses graus diferentes de saber correspondem ao que foi cria­
do; e a criação se denuncia pelo traço que o ser revelado, cm sua
diferença, deixa no “renitente peso da pedra, na dureza da madeira,
no brilho sombrio das cores” (HW, p. 35). Uma outra interpreta­
ção da forma artística deriva daí.
Heidegger entende que a forma assinala o afloramento da
terra no embale que a opõe ao mundo, sendo a terra o demento
irredutível, o mistério velado que sobressai da matéria, cm que
também se retrai — dessa mesma matéria que, elaborada, mas não
propriamente usada, transparece no ente produzido. Essa aparên­
cia significativa é a verdade aberta, e o produto, indistinto da coisa
criada, tem a imposiliva presença de um ente configurado numa
forma sensível. A obra como obra de afie assinalaria, pois, a sua
própria existência em função da presença que nela se produz. Mas
nenhuma instância externa decide de seu direito a existir; ela con­
quista sua efetividade somente através do que pode abrir. Longe
de firmar-se nas vivências isoladas de um sujeito receptor, tal efeti­
vidade é o que também a ela nos abre, pela disponibilidade do
estado de Animo, da disposição da conduta que nos coloca em seu
âmbito. Mais uma vez se contesta, desse ponto de vista, a primazia
dos juízos estéticos.
Somente quando nos conduzimos nesse âmbito, são possíveis
os juízos estéticos, relevando daquela universalidade "sem a inter­
venção dos conceitos”, e como objeto de uma satisfação necessária,
apontada por Kant. Empregando a terminologia tradicional, diria­
mos que essa satisfação retira a sua necessidade da contingência
dos eventos ou siluações propriamente Atadricor. Estamos de novo
próximos de Hegel,
Em última análise, para Heidegger, a essência da arte depende
da essencialização do ser, que constitui o historiai; para Hegel, a
arte não possui nenhuma natureza indcpcndentcmcnte do movi­
mento de exteriorização ou dc concreção do espírito, historicamente
realizado nas concepções de cada período, cm cada arte particular.
Em ambos, o gozo estético é a vivência tardia do apelo ou da reve­
lação que a arte encerra — apelo, para ambos, como o que pane
259

de uma totalidade viva, com a força de “um olhar que nos olha”.
A visão exterior de quem contempla cede à visão interna do espírito
encarnado que nos olha na obra. “Nós diremos da arte”, afirma
Hegel, “que ela tem por fim fazer com que, em todos os pontos
de sua superfície, o fenomênico se torne olhar,, sede da alma que
torna visível o espírito.” 10 Tornar visível o espírito' é fazê-lo apa­
recer, iluminando-o. Do conceito hegeliano do-belo — o aparecer
(erscheinen) sensível da .idéia — ressalta esse elemento de lumino­
sidade, ínsito à palavra clareira, como forma da existência do
Dasein e da arte grega em seu embate com a aparência. “Ser
implica: apresentar-se, surgir, aparecendo, propor-se, expor alguma
coisa. Não ser, ao invés, significa: afastar-se da aparição, da pre­
sença (Anwesenheit)” {EM, p. 129). Surgimento e aparição de­
signam o processo mediante o qual as coisas que permaneciam na
sombra são postas ou trazidas à luz. Fazer poesia significa “pôr à
luz” {EM, p. 130), diz Heidegger, traduzindo um verso de Píndaro.
Criada ao mesmo tempo que se dá o velamento iluminador
numa projeção, a obra é algo que se produz; mas a instrumenta-
lidade técnica do produzir só chega a criar quando abrigada na
origem da obra, o acontecer historiai da verdade. Como produção,
o fazer artístico é um producere (Herkunft), um fazer emergir
algo que não se mostraria senão através da obra e que constitui
a essência poética (dichtend) da arte. “A verdade como clareira
e ocultamento do ente acontece na medida em que é poética
(gedichtet wird)” {HW, p. 59).

3. Poesia e linguagem

Transportada para o plano da história, a afetividade da arte,


que “nada tem de um efeito causai”, é também transportada para
o plano poético, que se identifica ao da linguagem. Èm torno do
poético, a relação de Heidegger com a Estética de Hegel, para a
qual a poesia, como “verdadeira arte do espírito” (wahrhaft Kunst
der Geist), realiza uma arte geral e o princípio geral da arte, marca
também o ponto de máxima proximidade no maior afastamento
entre os dois pensadores.
Em Hegel podemos encontrar, por um lado, a forma de con­
cepção poética oposta à consciência prosaica, como o princípio
geral da arte, e, por outro, a poesia, em que aquela se realiza, como

10 Werke; Vorlesungen über die Asthetik; Theorie Werkausgabe. Frankfurt


am Main, Suhrkamp, 1970. v. 1, p. 203.
260

arte geral, sintetizando o modo de representação das outras artes.


Depois da pintura e da música, nos diz Hegel, vem a arte da palavra
(Kunst der Rede), a poesia em geral, a verdadeira arte absoluta
do espírito manifestando-se enquanto espírito.11 Ela reproduz, em
sua esfera própria, o modo de representação das demais artes, por­
que elabora todo e qualquer conteúdo na forma da imaginação,
que é comum a todas; contém o essencial da idealidade artística,
e assim também a oposição forma/conteúdo, que nela culmina.
Nesse limite da representação (Darstellung), começa a efetuar-se a
superação da própria arte.
A passagem da arte da palavra ao pensamento racional, à
Filosofia, por meio da religião, está predelineada na forma da
poesia — na palavra mesma, que suspende o que de sensível existe
na criação artística. Antes de tudo obra do pensamento, é a lin­
guagem que faz passar à generalidade tudo quanto pode ser dito.12
Nessa obra interna do pensamento, “o espírito se objetifica por si
mesmo, em seu próprio terreno, e apenas serve-se do elemento
verbal como de um meio, seja de comunicação, seja de exteriori­
zação direta” 13. O conteúdo já se acha formado internamente, e
“os discursos, as palavras e as combinações artísticas dessas últi­
mas” 14 apenas objetificam-no numa forma externa. Se o caráter
poético da arte ainda acompanha, em Heidegger, a idéia de que
a poesia é a realização geral da arte, a preeminência que ele em­
presta à palavra afasta a admissão desse caráter poético, que per­
tence à verdade, de toda concepção da poesia como arte geral do
pensamento, firmada em conteúdos expressivos particulares.
Considerar que, pela sua origem, toda arte é poética não signi­
fica que a música, a pintura e a escultura estejam ordenadas à
poesia ou que se reduzam à poesia no sistema constituído das artes.
Deve-se o lugar eminente que a poesia stricto sensu ocupa no con­
junto das formas ao alcance da poíesis na linguagem e a partir da
linguagem, como limiar de toda experiência artística, principalmente
na arte da palavra propriamente dita, que está condicionada à
instituição cultural dos gêneros e às convenções literárias, à litera­
tura na acepção de estilo ou modalidade de expressão da vida
civilizada.15

11 “Die Poesie, die Kunst der Rede.. . die allgemeine Kunst.” Id., ibid., v. 3,
p. 16.
12 id., ibid., v. 3, p. 231.
13 Id., ibid., v. 2, p. 221-62.
11 Id., ibid., v. 3, p. 229.
is,Sob esse aspecto, a concepção hcidc£fl.c-riana de Literatura tem notável
parentesco com o ponto de vista de CruCc acerca do cjiàttr “não-literário”
da poesia.
261

O valor da Literatura — diz Heidegger — é apreciado à medida


da “atualidade do momento”. Por seu lado, a atualidade é feita e
dirigida pelos órgãos que formam a opinião pública civilizada. O
movimento literário é um de seus, agentes, e por agente é preciso
entender aqueles que impulsionam os outros e são também impul­
sionados. Assim a poesia não pode aparecer’senão como Litera­
tura. Pelo fato de ser considerada meio de cultura (Bildung) e
de um modo científico, ela..é objeto de história literária. A poesia
do Ocidente tem curso sob a denominação geral de “literatura
européia” (VA, v. 2, p. 61-2).

Do ponto de vista heideggeriano, porém, a poesia do Ocidente


está dentro e fora da Literatura, e a sua posição eminente no con­
junto das artes vem de que antecede à cultura do espírito, à paideía.
Mais diretamente do que qualquer outra arte, a poesia participa,
pela palavra, que constitui a sua matéria, do trabalho preliminar e
mais primitivo do pensamento, como obra da linguagem. A poesia
é o limiar da experiência artística em geral por ser, antes de tudo,
o limiar da experiência pensante: um poieín, como um producere,
ponto de irrupção do ser na linguagem, que acede à palavra, e,
portanto, também de interseção da linguagem com o pensamento.
É desse ângulo que Heidegger afirma a precedência da poesia
sobre qualquer outra arte. A despeito de que todas sejam origina-
riamente poéticas, arquitetura, escultura, música e pintura só se
produzem quando já se produziu a clareira pela “poesia primordial”
(Urpoesie) da linguagem. Os poemas autênticos extrapolam a
Literatura, porque estão em correspondência com a poesia primeva
que as línguas articulam. Em muitas passagens dos escritos da
segunda fase, Heidegger enuncia a idéia, aspecto essencial de sua
topologia, de que a língua “é poesia (Dichtung) no sentido essen­
cial” (HW, p. 61), o peso do adjetivo essencial recaindo sobre o
acontecimento gerador de história. “A língua é a poesia originária
em que um povo poetiza (dichten) o ser. Inversamente vale: a
grande poesia pela qual um povo entra na história inicia a confi­
guração de sua língua” (EM, p. 193). Ou então, como registra
Hõlderlin e a essência da poesia, a poesia é a língua primitiva de
um povo historiai (EHD, p. 43). Como doação do ser, arrancado
da experiência originária, que o ser mesmo funda, a obra, em que
a verdade opera, ou na qual se põe em obra, é a projeção de um
destino aberto para os que terão a sua guarda. O originário e o
inaugural coincidem na imediatidade do acontecimento, isto é, no
caráter não-mediatizável da diferença, que torna o homem sujeito
da história.
Podemos compreender, nesse limite, a afirmativa de Heidegger
segundo a qual a arte assinala um advento ou um ressalto da histó­
262

ria, cada vez que um novo começo se produz, isto é, em cada


época, em cada momento de retração desvelante do ser — entre
os gregos, na Idade Média e na Idade Moderna. “Cada vez abriu-se
um mundo novo com a sua própria essência, cada vez a abertura
do ente demandou a sua instauração pela constituição da verdade
na forma (Gestalt), no próprio ente” (HW, p. 64). Essa instau­
ração daria a medida, preliminarmente poética, da história, em
virtude da precedência da linguagem como poesia originária.
Do mesmo modo que nos fala da grande arte, pela função
instauradora que desempenha, Heidegger falará sempre da poesia
como da grandeza do inaugural, do começo irruptivo. Assim a
poesia é sempre rara, e os seus momentos verdadeiros não se mani­
festam em todas as épocas.
Mais a obra de um poeta é poética, mais seu dizer é livre; mais
aberto ao imprevisto, mais pronto a aceitá-lo. E, mais puramente
também libera o que diz à atenção sempre mais assídua em es-
cutá-lo, maior é a distância entre o que é dito (Gesagte) e a sim­
ples enunciaçao (Aussage). . . (VA, v. 2, p. 64).

Das mesmas palavras, que são a matéria da criação poética,


procede essa distância irrecobrível entre o dito e a enunciação.
Na obra poética a linguagem é liberada como linguagem, que fala
por si mesma, propondo à escuta dos que sabem ouvi-la, no espaço
de abertura franqueado pela obra, o diálogo com o ser, em que o
pensamento se encontra desde sempre engajado. Seriam verdadei­
ros poetas aqueles que, como Hõlderlin, Trakl, Stephan George e
Rilke, conduziram os diferentes temas literários ao tema único da
essência da poesia. Verdadeiros poetas, porque poetas da poesia,
experimentaram esse diálogo na atividade agonal com as palavras
— “a mais inocente” (e inconseqüente) das ocupações, a mais
inócua e ineficaz, e a mais arriscada, porquanto exposta, na sua
lida não-preocupante, em seu discreto exercício lúdico, ao outro
jogo perigoso do dizer da linguagem. O poético extrai a sua capa­
cidade reveladora inesgotável do ser que solicita o pensamento,
apelando para o dizer da linguagem.
Como Nietzsche, Heidegger reconhece essa fonte comum que
aproxima poesia e pensamento. De certa maneira, ambos, poesia
e pensamento, dizem o mesmo. Um só pensamento poético (dichten
Denken) constituiría a única instância do dizer essencial.
O pensamento do ser é o modo original do dizer poético. Nele a
linguagem acontece como linguagem em sua própria essência. O
pensamento diz o ditado (Diktat) da verdade do ser. O pensa­
mento é o dictare original. O pensamento é a poesia original
263

(Urdichtung), que precede toda a poesia (na acepção estrita16)


e assim o poético da arte, na medida em que esta se torna obra
no círculo da linguagem (HW, p. 303).

Os pdetaa da poesia c.icjn, çntão. pàra uuuwh a mesma


fiXpíWSãú de Fl íi deggcr, 00jisçrv3nda-lhe O íibilulO, QUÓ ê uma
constante de sua segunda fase, sob o drírwlo, que submete os peir-
sndores — sobretudo os prétsocrálicos ao'jogo das palavras
Essenciais. Mus o que sigáiíica então 0 que parece distinguir
o pensador do poeta? E por que os poetas da poesia oferecem à
Hermenêutica o relevo específico de uma topologia que se ombreia
com a que pode ser encontrada nos pensadores essenciais? Por
que, enfim, u ubra dc lioJdciiirt, poeta da poesia por çxcçlcncia,
foi, para Heidegger, a principal trilha da viragem -— de um novo
começo do pensamento —, o retorno à origem e o início de uma
transformação da humanidade, que cumpriría preparar no recolhi­
mento da meditação?

18 A observação é nossa.
XVI

A RESIDÊNCIA POÉTICA

As cofaw tistim a gente mesmo não pega nem abarca.


Cabem i no brilho da noite. Aragem do sagrado. Abso­
lutas fwelat.
Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas.

1. Os temas de Hõlderlin

No çxcurso Reflexões sobre a linguagem, tocamos cm três


dos cinco temas dc fftHderiin e a essência poesia — a ocupação
inocente do poela, o risco de sua atividade inofensiva e o caráter
dialogai do Dasein —, que funcionam como leitmotive, como moti­
vos condutores do pensamento no citado ensaio. O terceiro tema
apareceu ao tratarmos do discurso, das relações entre a fala (das
Sprachen) e a linguagem (der Sprache) nos versos de Hõlderlin

Do momento em que somos um diálogo


e que podemos ouvir-nos uns aos outros
(Seit ein Gesprach wir sind
Und hõren kõnnen voneinander).
A partir da idéia dc obra dc arte analisada no capítulo ante­
rior, acompanharemos, seguindo a ordem do texto dc Heidegger,
os dois últimos temas com o® quais sc relacionam os versos:
Mas o que permanece fundam-no os poetas.
(Was bleibet aber, stiften die Dichter.)
Rico em méritos, é no entanto poeticamente que o homem
habita esta terra.
(Voll Verdienst, doch dichterisch wohnet
Der Mensch auf dieser Erde.) (EHD, p. 32.)
265

Verdade operante em que o ser se essencializa, projetando um


dcáiino historiai numa forma tangível, configurada, em que perdura
o traçado tenso da matéria, a obra de arte é instauradora, e, por­
tanto, poética. A que assinala a verdade por ela aberta c
instaurada como obra, irredutível a qualquer espécie de ente conhe­
cido, tem a gratuidade de um dom. O projeto “verdadeiramente
poético é a abertura (£roffnuiig) daquilo em- que o Dasein, en­
quanto histórico, já se encontra lançado” (HW, p. 62).
Como o Dasein se encontra lançado no mundo, em meio ao
ente em sua totalidade, não há projeto senão relativamente ao
ser-lançado, à situação fáctica desencoberta na ex-posição. Mas
projeto e disposição constituem a liberdade, que é uma possibili­
dade lançada (gcwürfen Mõglichkeiten), enquanto poder-ser. Uma
vez que o Dasein “funda o mundo somente enquanto se funda em
meio ao ente”, a liberdade é a essência do fundamento. Abandono
ao desvelamento do ente na existência — ao aberto e ao desve­
lado —, a verdade é abertura e fundamento. Abertura só há como
clareira do que ilumina em sua retração; o não-velamento do aberto
tem por fundo o que se vela, e que por si mesmo se desvela na
criação, no abandono do Dasein ao próprio ente. Desse modo, o
projeto verdadeiramente poético, que, deixando transparecer a terra
no embate que a opõe ao mundo, instaura e erige o mundo na
obra, dispensa um dom, apoiado naquilo mesmo de que se lança,
e que é a fonte da dispensação. O erigir da arte se dá no recuo
da obra a um fundo, onde ela se fundamenta.
Nessa nova ordem de considerações, Heidegger emprega, de
maneira modificada, a terminologia de Da cwiji i:.1 jj.-utiw.rito.
O frtJfflWretr da obra, no sentido de piojeto, corresponde à dúperj-
jíipãfl, relativa As possibilidades de um mundo, * 0 enraizar-se, ao
fundo em relação ao qual o mundo histórico aparece como advento
da verdade. Esse fundo, que a obra tem por fundamento, e do qual
brota, no âmbito do desvelamento, é a terra em que o Dasein
histórico sc encontra lançado.
“A arte é o pôr-se em obra da verdade” (HW, p. 64) — a
verdade quando se instaura, quando se funda poeticamente. Reci­
procamente, a verdade instaurada funda o que se chama de arte,
como forma do Dasein, de sua existência historjal enquanto povo.
Heidegger reíere-sc exprcssamentc à origem da arte como origem
do Dasein historiai dc um povo, entendendo por povo a comuni­
dade dos criadores c dos guardiões tias obras. "Isto sc verifica
porque, em sua essência, a arte c uma origem, um modo extraordi­
nário da verdade chegar a scr c tornar-se histórica (geschiehtlich
wird)” (HW, p. 65). Mas nada pode chegar a ser e tornar-se
histórico independçntemciitc da poít\sis. A historialidade da arte
266

deriva da linguagem, em que a verdade 6t produz onginariamçniç,


pela irrupção do ser na palavra e enquanto palavra. Desse pmtlo
de vista, a essência do fundamento, anteriormenlc divisada como
abismo, à luz da liberdade do Dasein, é poética, e a poesia é o
modo essencial de instauração da verdade e do seu acontecimento
historiai na linguagem e com a matéria da linguagem.
Jamais encontramos o fundamento (Grund) no abismo (Abgrund).
O ser nunca é o ente. E, porque o ser e a essência das coisas
jamais podem derivar do já existente, é preciso que elas sejam
livremente criadas, postas e doadas. Essa livre doação é fundação
(Stiftung) (EHD, p. 41).

A livre criação, já o sabemos, não tem o sentido demiúrgico


moderno. A posição do ser é criada, mas como doação, na entrega
e no abandono ao desvelamento, de que a existência constitui a
abertura ek-stática, pondo-se livremente por força do mesmo jogo
que faz do homem um .ter falante — uni rdon lógon édton, capaz
de palavra. Scr-no-mutido é estar junto às coisas, antecipadamente
aberto à totalidade do ente, porque jii situado na linguagem, numa
distância tão próxima quanto a que nos liga ao ente e separa-nos
do ser, ou numa proximidade tão distante quanto a da diferença
que a nossa oonduta revela. Como entender o espaço de abertura
da manifestação, do revelado, antecipando-se a todo conhecimento,
e fundando a enunciação, sem que o preencha a linguagem? Onde
se faria a essencialização do ser — e consequentemente a viragem
— senão na linguagem, em seu caráter de discurso, de lógos, que
articula a compreensão na palavra, e que é o lugar, o aí da exis-
icncta fáctica, □ pcmEo de irrupção do scr? A idéia heideggeriana
de abertura exige a idéia correlata, extraída do significado dc
de “unidade de reunião” (Sammlung) (EM, p. 98), de posição
coligente (lesende Lege), que espaceia e conserva a presença, tor­
nando patente ou manifesto o que se apresenta. Não haveria hiato
entre essa apresentação e a articulação do discurso. A linguagem
é lógos, discurso pronunciado, e o seu dizer (Sagen), a palavra
em ato, consumada pela criação poética e produzindo o aconteci­
mento historiai da verdade. Mas “o que é a palavra (Wort) para
ser capaz disso?”, pergunta o próprio Heidegger.1
“A palavra é o que leva uma coisa a ser coisa” (US, p. 232).
Nem som vocal ou imagem acústica, nem significante preenchível
por algo não-sensível, o significado, a palavra também não se iden­

1 Das Wort [A palavra], US. Em continuação à pergunta “O que é a palavra


para ser capaz disso?”, indaga-se também nesse texto: “O que é a coisa
(Ding) para que precise da palavra para ser?” (US, p. 221).
267

tifica ao simples vocábulo, considerado meio de expressão ou ins­


trumento de comunicação.
As palavras não são simples vocábulos (Wõrter), assim como
baldes e barris dos quais extraímos um conteúdo existente. Elas
são antes mananciais que o dizer (Sagen) perfura, mananciais que
têm que ser encontrados e perfurados de novo, fáceis de obturar,
mas que, de repente, .brotam de onde menos «e espera. Sem o
retorno sempre renovado aos mananciais, permanecem vazios os
baldes e os barris, ou têm, no mínimo, seu conteúdo estancado
(WHD, p. 89).

A poesia efetua esse retorno sempre renovado. F o poeta c


aquele que perfura os mananciais, tomando os vocábulos como
palavras dízentes. Seu caminho não vai além das palavras; ele
caminha entre das, dc uma a omra, escutando-as e fazendo-»
falar. O retorno se opera no intervalo do silêncio, que vai dc
palavra a palavra, quando o poeta nomeia no discurso dizente.
É a Hàntfqpifc) que leva uma coisa a scr coisa. Palavras e coisas
nascem juntas. Para retomarmos a trilha de Hfflderiín e a esíència
efa pcMsfa, í nomeando tpic â poesia funda, “pela palavra c nu
palavra”, o que permanece (cf, EH D, p. 41). Ora, o que perma­
nece, e que é dado ao poeta fundar, não é o real propriamente dito
ou uma determinada espécie dc ente. wO poeta renuncia “à posse
da palavra enquanto nome que exibe um ente estabilizado” {US,
p. 228). Essa renúncia decorre da mais alta liberdade — da
livre ao mais arriscado — ao infamiliar, ao in&spito, ao
inseguro, que colocam o Dasein diante de si mesmo como ser-no-
-mundo, e para o qual apontou o fenômeno da angústia, com que
deparamos na Analítica: o fundo mesmo da existência, sem funda­
mento, que se vela no mistério e se desencobre na linguagem.
“Nenhuma coisa existe onde a palavra falta” (Kein Ding sei
wo das Wort gebricht), diz um verso de Stefan George comentado
por Heidegger2. Onde a palavra (alta, não há desvelamento, Mas
o poeta, que renuncia ao ente estabilizado, também não sc engolfa
no mistério. Só o dizer manifesta o que se desvela, o que chega
a ser na unidade coligente da nominação. “É preciso que o ser
seja desencoberto para que o ente apareça” {EHD, p. 52). Dessa
necessidade, dessa precisão a que o poeta se torna fiel, da qual
provém o apelo da linguagem, partindo da mesma fonte que mobi­
liza o pensamento, nasce a palavra poética fundadora. “A poesia
é fundação do ser pela palavra e na palavra. O que permanece

2 Das Wesen des Sprache [A essência da linguagem] e Das Wort [A pa­


lavra], US.
268

jamais é criado do efêmero. O simples nâo se deixa extrair do


complicado. A medida não se encontra no imenso” (EHD, p. 41).
Não devemos perder de vista que a fundação (Stiftung), assim
concebida, corresponde ao pôr-se em obra da verdade, ao aconte­
cimento instaurador. A medida que a nomeação impõe, e de que
dispõe livremente, tem a sua contraparte naquilo que se doa,
segundo a disposição efetiva pela qual o Dasein já se encontra
lançado no mundo e ex-posto ao ente. Mais extremada no poeta,
que responde ao simples, ao imenso, com a medida da palavra que
nomeia, essa ex-posição é mediação, que resguarda o imediato,
mantendo a diferença como diferença, na unidade coligente do
lógos — o livre espaço da abertura.
A partir do impacto direto do vigor predominante, a palavra, ou
seja, o nomear repõe o ente que se abre e manifesta em seu ser,
retendo-o e conservando-o nessa abertura, delimitação e consis­
tência (EM, p. 131).

Na função mediadora do poeta, apenas se revela o espaço de


abertura onde o homem se encontra. O que de excepcional tem
a lida não-preocupante daquele é manter-se no círculo semi-ilumi-
nado da clareira, sem ceder, no torvelinho da queda cotidiana, à
decadência da linguagem, ainda que ocupado pelo tráfego da gente.
Inconseqüente, o ofício do poeta, ociosa lida, “sob a forma discreta
do jogo”, suspende a segurança do familiar, e, sem domínio sobre
coisa alguma, é exercido na fímbria do incontornável — fora do
ordinário e também da ordem (Ausserordenlich), no abandono do
Dasein em sua ex-posição ao ente, atento à existência “como o
lugar do ser”, onde sucede “o próprio acontecer do estranho
(Umheimlich)” (EM, p. 123).
Ao fundar aquilo que permanece, a poesia revela a essência
humana — a concreta finitude do homem como ser-no-mundo.
Nela o homem “recolhe-se no fundo de seu Dasein” (EHD, p. 45).
Nesse recolhimento, que o sujeita ao risco do estranho, e que des-
cerra o âmbito do desvelamento, tal como a maré vazante descerra
a praia, a palavra poética dimensiona o mundo e o próprio homem.
A poesia é a comensuração entendida em seu sentido rigoroso,
pela qual o homem recebe a medida que convém à extensão do
seu ser. O homem essencializa-se enquanto mortal. Ele é assim
chamado porque pode morrer. Poder morrer significa: ser capaz
de morte enquanto morte. Só o homem morre. Ele morre conti­
nuamente em sua estada na terra, durante o tempo em que nela
v reside (VA, v. 2, p. 70).

Como escreveu Hõlderlin,


269

Rico em méritos, é no entanto poeticamente


que o homem habita esta terra.
Num outro de seus poemas, Como num dia de festa, Hõlderlin
conclama os poetas a enfrentarem as “tempestades do Deus” —
o fogo do céu — para oferecerem ao povo
o dom celeste envolvido no Hino
(. . . und dem „Volk ins Lied ’
Gehüllt die himmlische Gaabe. ..).
O papel mediador que lhes cabe, c que dá um duplo alcance ao
dimensiona mento da poesia pela nomeação, a partir do recuo ao
fundo imensurável de onde se espraia d clareira, é ligar o céu e a
terra, os deuses e os mortais. E, se podem fazê-lo, é porque ocupam
o lugar de entrelace das duas regiões, que formam os bordos extre­
mos da clareira:
. . .Dificilmente deixa seu lugar
Aquele que habita próximo da origem.
(. . . Schwer verlãsst
Was nahe dem Ursprung wohnet, den Ort.)
dizem os versos de A viagem (Die Wanderung) de Hõlderlin, que
Heidegger interpreta.
Hõlderlin também invocou os ‘deuses da Grécia em Pão e
vinho, aí evocando o desaparecimento dos imortais que regeram o
destino de todo um povo — o que quer dizer, o desaparecimento
dos signos, das formas visíveis de uma teofania — e que tiveram
penetrante e durável dominância ética, política e religiosa:
Mas onde estão os tronos, os templos, onde estão
[as copas
De néctar e os cantos com que os deuses se
[embriagavam?
Onde, preciosos e fulminantes, os oráculos?
Delfos dorme, e onde agora ecoa o grande destino
[(Geschick)?
(Aber die Thronen, wo? die Tempel, und wo die
[Gefãsse,
Wo mit Néctar gefüllt, Gõttern zu Lust der Gesang?
Wo, wo leuchten sie denn, die fernhintreffenden
[Sprüche?
Delphi schlummert und wo tõnet das grosse Geschick?)
Nesse mesmo poema, dirigindo-se aos seus companheiros poetas,
Hõlderlin compara-os a sacerdotes de Dioniso, errantes na noite
sagrada:
270

Mas, ó amigo, chegamos muito tarde! Os deuses vivem


[de verdade,
Mas acima das nossas cabeças, num outro mundo.
(Aber Freund! wir kommen zu spat. Zwar leben die
[Gõtter,
Aber über dem Haupt droben in anderer Welt.)
Errantes, e, no entanto, no mesmo lugar, os poetas da época, des­
tinatários destes versos, chegam sempre tarde — para as divin­
dades gregas que já se foram, e para o Deus cristão, já sem domi-
nância no mundo secularizado, cuja morte Nietzsche anunciaria
quase um século depois. Como retardatários, e, no entanto, tem­
pestivos núncios da “fuga dos deuses”, os poetas ganham a condi­
ção dilacerada de intérpretes do sagrado, de que as divindades são
os signos históricos transitórios. O lugar que ocupam esses canto­
res da desaparição, e de onde invocam as potências estranhas do
sagrado, por elas solicitados a dizerem o que interessa aos mortais
— sem que necessariamente lhes prestem a reverencia religiosa dos
crentes —, é o e/ftre-dojs (Zwischcn), entrelace das duas regiões,
□ céu c a terra, que delimita a fímbria da clareira.
Assim celebrando a Natureza, “mais antiga que os tempos”,
e “acima dos deuses do poente e do oriente”, Hõlderlin fala do
sagrado em Como num dia de festa. “O que é antes de toda coisa
o primeiro, e após toda coisa o último, e o que vem antes de tudo
e mantém tudo nele: o inaugural (das Anfãnglich), e, como tal, o
que permanece” {EHD, p. 73). O sagrado é, pois, abertura no
sentido primordial. “O poeta habita perto da origem quando ele
mostra o longínquo que aproxima na vinda do sagrado” {EHD,
p. 148).
A fundação do ser, na palavra poética que nomeia, tem por
fundo essa abertura primordial que, digamo-lo assim, atravessa
diametralmente a clareira, mantendo o entrelace das duas regiões
— a dos homens e a dos deuses, a dos mortais e a dos imortais.
A poesia dimensiona esse espaço de confronto, dimensionando o
homem e o mundo em que reside. “O homem enquanto homem
já se relaciona desde sempre a algo de celeste, comensurando-se
a ele” (VA, v. 2, p. 69). Medida do homem que lhe abre o
sagrado, a poesia funda o ser, fundando a dimensão do Dasein: a
morada, a residência dos mortais na terra.
A residência como funrtaçio, perto da origem, é a residência
,f original onde o poético eslá preliminarmente fundado, c sobre
cujo fundamento os fillnjs da terra devem habitar, se eles rrsidem
poeticamente nesta terra (EHD, p. 149).
271

Reveladora do homem a si mesmo, a poesia lembra, rememora a


origem, e mantém o aberto como o lugar do humano — a terra,
como espaço de encontro e de confronto entre os mortais e os
imortais. Por isso, o poeta, que recua ao entre-dois, no dizer da
palavra, “nomeia os deuses e todas as coisas naquilo em que são”
{EHD, p. 41). A nomeação funda, porque o Dasein está enraizado
à totalidade do ente pelos filamentos poéticos''da linguagem. Na
linguagem vem parar o poder-ser originário, o cuidado autêntico,
e é na linguagem que se dá a relação de pertença do homem ao
ser. “Habitar poeticamente quer dizer: estar diante da presença
dos deuses e ser atingido pela presença essencial das coisas”
{EHD, p. 42).
Como produzir originário, a poesia leva a poíesis à extensão
diametral da clareira, que traça a residência dos mortais entre o
céu e a terra. Nesse traçado, que antecede e sucede a Literatura,
ao mesmo tempo dentro e fora dela, está a obra final da poesia
como força de cultivo (trato), mais primitivo que a cultura na
acepção greco-romana, unindo, em sua significação, o colere — o
amanho da terra e o trato do solo — e o icdificare — o edificar
e o construir (bauen) — latinos. A instauração poética pela pala­
vra é um construir no sentido do trato da terra como terra, que
erige a habitação humana sobre a quádrupla raiz da unidade ori­
ginária, graças à qual a palavra alcança o seu poder nominativo.
Toda palavra que nomeia chama à colação a terra e o céu, os
mortais e os imortais: invocação e evocação da unidade diferenciada
desses quatro (Viertel) elementos, e que é o Quadripartite
(Geviert) apresentado nos mitos. Quando o poeta diz “na terra”,
também diz “sob o céu”.3 Já a sua fala, o seu discurso, mostra
aquilo sobre o que se pronuncia. É um dizer desvelante (Sage),
lógos e mythos. A poesia dimensiona o Dasein, preservando a
potência mítica do ser-no-mundo e colocando, sob a sua guarda,
a unidade do Quadripartite 4.
“A habitação como cultivo preserva o Quadripartite junto
àquilo em que os mortais residem: as coisas” {VA, p. 25). Árvore
e ponte, cântaro e nuvens, Lua e Sol, casa e montanha, bosques,
veredas e caminhos, não são objetos representados nem entes-à-
-vista, mas coisas como lugares que espaceiam, aproximando e
distanciando de todas as outras: pontos de reunião, de ajunta­

3 Os quatro, terra e céu, deuses e mortais, desdobram-se da unidade originá­


ria (ursprünglichen Einheit) a que pertencem. Cf. VA, v. 2, p. 23.
4 Unidade na diferença, de que o Quadripartite é a expressão.
272

mento, na unidade coligente do Quadripartilt.56 A coisa, que apro­


xima distanciando e que distancia aproximando, “é a dimensão
propriamente dita, a dimensão única do jogo de espelho do mundo”
(VA, v. 2, p. 54) 8. Para falar do que o poeta fala, daquilo
que não é apenas singular mas simples, e que a prática meditante
discerne, Heidegger escreve poeticamente, trilhando o caminho em
que o poeta e o pensador se encontram em torno do Único e
do Mesmo, que fundam o ser do homem na linguagem e a lingua­
gem no diálogo:
Muito tem o homem experimentado.
Aos celestes deu muitos nomes
Desde que somos um diálogo
E que podemos ouvir-nos uns aos outros.
(Viel hat erfahren der Mensch.
Der Himmlischen viele genannt
Seit ein Gesprãch wir sind
Und hõren kõnnen voneinander.)
É no diálogo que a dimensão do simples aproxima, e que a
poesia, como linguagem, acontece histturiaÈmçnte. Mas não é a
linguagem, como acontecer que se produz originariamente, a essen-
cialização do ser — a poíesis na história — para a expressão da
qual usa Heidegger a palavra Ereignis, querendo indicar a juntura
do ser e do tempo? 7 E o que é essa juntura na linguagem — o

5 Heidegger aproxima-se da coisidade, ou seja, do ser das coisas, descrevendo


uma ànfdra túmü ser-à-mío cm D^s Dipg (A corsa) (VA, V. 2, pr 4J):
"A ènfora í uma coita, mas tifo no sentido de r« na Mcpçfc romana,
nem na itiedtewi! dc em. c ainda incnos nçr sentido de objeto rcprescntndo.
da íjwca mcdçnra. A fuifora í coisa na medida cm que ela reftnc (dingO”
(VA. v. 2. p. SÚ). Lítcralmentc. díngí significaria coireía.
6 No Quadripartite, o jogo dos quatro (der Vier) se dá mediante reflexos
mútuos. “Cada um dos quatro reflete à sua maneira o ser dos outros"
{v. 2, p. 52). O reflexo mútuo c tun espelhar-se (Spiegeln) como
ajjíüpriaçSo (Ereignh) ewcncialíintile do ser dc uns no doi oinros; o fojo
de erpelho de Qtutdrrpartlfe (Spiegel-SpicL). “CfiamamrM o jogo dc espelho
irtinjfeatár.Le da limple* entre a terra e o céu, os deuses c os mortais, de
nwndo (die WcitJ" (1^4, v. 2, p. 52). Do mundo colocado sob essa pers­
pectiva <tn et>íru — e sciii uni iwvn proliferação de palavra* com que o
fildwfo força o diicr — só sc pode afirmar, lautologjcimenie, que acontece
como mundo ou que sc jmmrfificíj (Wch west in dem j:c wcltçt) P Ewn
expressíú taulológica é análoga à empregada cm relação ao tempo, do qual
se diz qnc k JemparxrJíwr (zciiigt), Vcjn-sc, a respeito, o capítulo 9 deite
livro, Temporalidade c liiiiloricidadc, tópico 95. Existência e historicidade.
7 Na linguagem desdobra-se a diferença, como tempo originário. Cf. De
VisscJtER, Luce Fomaàne. La pensée du langage chez Heidegger. Revue
Philvwphique de 64 (82) : 224-62, mai, 1966.
273

Ereignis — senão o acesso ao scnlido, como transporte da sig­


nificação, em que consiste toda metáfora como semelhança na
diferença? Ecoa, nesse ponto, a voz de Nietzsche, quando reduz
o pensamento à linguagem, e o trabalho da linguagem ao meta­
fórico: “Todo conceito nasce da identificação do’não-idêntico” 8.
Assim, sustentada pela palavra essencial (wesentlichen Wort),
a poesia rccondua-nos à'pertença do pensamento e do ser, que
possibilita ouvir-nos uns aos outros, e sem a qual não existiría o
diálogo que “suporta o nosso Dasein” (EHD, p. 39), abrigado na
linguagem. Toda proximidade é proximidade ao ser, e a linguagem
como acontecimento (Ereignis) essencial, a juntura que aproxima
e distancia, espaceia e temporaliza, abrindo e mantendo a diferença.
Só nesse contexto verbal são traduzíveis duas das principais metá­
foras heideggerianas, que se encontram na carta Sobre o humanismo:
a linguagem é a casa, e o homem o pastor do ser.
A casa (Haus) indica ao mesmo tempo o lugar — a lingua­
gem, que abriga, mantém e preserva o ser ao qual pertence, e o
mínimo espaço que a separa diferenciando-a do ser. As coisas
nomeadas tornam-se coisas por força dessa diferença que o Quadri-
partite realça. Porém, desse ponto de vista, não haveria separação
entre palavra e coisa.
O ser mede — diz Heidegger no ensaio sobre Rilke, Por que poe­
tas? (Wozu Dichter?) — na proporção em que ele mesmo, seu
recinto (tempus), essencializa-se na palavra (templum), quer dizer,
a morada do ser. A essência da linguagem não se esgota na signi­
ficação; ela não se limita ao signo. Porque a linguagem é a casa
do ser, não acedemos ao ente senão passando constantemente por
essa morada. Quando vamos à fonte, quando atravessamos a flo­
resta, já atravessamos o nome “fonte”, o nome “floresta”, mesmo
se não enunciamos essas palavras, mesmo se não pensamos na
linguagem (HW, p. 286).

Na sua correspondência ao ser, o Dasein habita essa casa, da


qual o homem é o trânsfuga, pela sorte de falimento que o leva
a esquecer a sua condição mortal e a disfarçar o secreto anelo de
imortalidade na soberana vontade de domínio, que trouxe a ação
para o centro da época moderna. O servo de Deus, de um único
Senhor, a ovelha de um só Pastor nas palavras do Salmo 22, passa
a exercer o senhorio sobre todas as criaturas. Segundo a pers­

8 Le livre du philosophe: études théorétiques/Das Philosophenbuch: theore-


tische Studien. Traduction, introduction et notes par Angèle K. Marietti.
s. 1., Aubier/Flammarion, 1969. p. 181.
pectiva da viragem (Kehre), na carta Sobre o humanismo, em que
nos adverte que “o ser não é nem Deus nem um fundamento do
mundo” {UH, p. 72-3), e que o pensar meditante não se pro­
nuncia no sentido teológico-metafísico, nada decidindo sobre a
existência de Deus, Heidegger dirá, como numa réplica ao Salmo,
que o homem não é o senhor do ente, mas o pastor do ser.
“Nesse menos o homem ganha em vez de perder, porque chega à
verdade do ser. Ele ganha a essencial pobreza do pastor, cuja
dignidade repousa nisto: ser chamado pelo próprio ser à salvaguarda
de sua verdade” {UH, p. 104-5). Salvaguarda e vizinhança na lin­
guagem, em que o homem habita. Nesse habitar, que é a raiz poética
de sua existência, temos a súmula do cultivo, que será preciso
sobrepor à tradição humanística esgotada. Essa raiz, conforme
vimos, é fundamento, mas erigido sobre a retração do ser que
funda essencialmente.
Ao repensar a essência do fundamento, na perspectiva da
viragem, é o acontecimento apropriador (Ereignis), que Heidegger
coloca em lugar da ratio — como jogo (Spiel) do e no tempo,
jogo do mundo por espelhamento no Quadripartite e, por conse­
guinte, da linguagem e na linguagem. Nesse jogo estamos nós.,
mortais, engajados, habitando perto da morte,
a qual, porque é a possibilidade suprema da existência, pode pro­
jetar a claridade mais alta sobre o ser e sua verdade. A morte é
o dom ainda impensado da medida do imenso, quer dizer, do jogo
supremo ao qual o homem é conduzido em seu caminho terrestre
e no qual ele próprio é colocado em jogo {SG, p. 186-7).

Em sua atividade mediadora, o poeta, que funda o ser na


palavra, faz este jn$o repetindo ncceMarjamcntc o jogo da lin­
guagem, no qual estamos envolvidos, c que dá à poesia, como
parceiros, o tempo e a morte. Não somos nós que jogamos com
as palavras, “mas é a essência da linguagem que joga conosco,
sempre e em todos os tempos” {WHD, p. 83). Toda grande poesia
é um fragmento solto dessa essência, do elemento mais recuado
da poíesis — a linguagem originária (Ursprache) e origem da
história — que o pensamento do ser abrange. “O pensamento do
ser é o modo originário do dizer poético” {HW, p. 303).
Será então o que os poetas dizem idêntico ao que os pensadores
enunciam, uns e outros expressando sempre a cadeia de transfor­
mações do Uno e do Mesmo sob diferentes recobrimentos? Se o
pensamento é poema, será todo poema nada mais que pensamento
do ser?
275

2. Poesia e pensamento

Palavra nomeadora, fundando o ser como revelação do


sagrado. no jogo da linguagem que cria a proximidade das coisas
e a apropriação pelo homem de sua inteira finitude, ite seu Dasein
historiai, tal poderia ser a expressão resumida dos traços distintivos
da poesia, anieriormcifte. expostos, As palavras essenciais que
Heidegger destaca cm Hòlderlin —. como, entre outras, MpZureza,
ftfrrtr, deurcr c fogo do efu, que sâu partes de uma tópica do
rrçjrttrfo, articulada cm torno dos lemas principais do exílio c do
retorno ao pais naíai (os poetas, prenunciando □ que há de vir,
erram entre os deuses ausentes, em busca de uma Pátria} —
emprestam aos hinos e às odes do cantor dc Hypetion o caráter
de comemoração.
A poesia celebra e comemora- Celebração do sagrado, que
atende ao seu apelo, e comemoração das divindades ausentes, a
poesia manifesta o pdihos do sofrimento, mas também da alegria ç
da esperança — que abre através da palavra nome adora. A palavra
que funda, celebrando c recordando, è o cmrfo no jogo da lingua­
gem, que separa o pensamento, como pensamento do ser, da poesia
como nomeação das coisas.
A poesia, diz Heidegger, nasce do “fervor pensante da recor­
dação” (VA, v. 2, p. 11). Sendo Mnemosyne, a memória, a mãe
das Musas, a palavra poética retrocede ao manancial, escavando nos
vocábulos o que precisa scr lembrado. A lembrança cria a proxi­
midade com as coisas, chamando-as à presença, desvelando-as na
linguagem. O canto se toma então um apresentar, e, como tal,
uma temporalização da temporalidade autêntica, que, ao dirigir-se
às coisas, mostra-as, de cada vez, no instante único do intercurso
dialogai em ato por ele mesmo suscitado.
Já advertia-nos a Analítica de que o fim do discurso poético
(dichtende Rede) é a “comunicação das possibilidades” do encon-
trar-se lançado no mundo (SZ, p. 162). Poder-se-ia também, de
acordo com a Analítica, muito embora isso não ficasse expresso
em Ser e tempo, entrever, no discurso poético, a vertente oposta à
inclinação encobridora da linguagem ordinária. Porque suspende
a função comunicativa corrente, a poesia é diferenciação da lin­
guagem ordinária, fazendo-a passar do estado público, da perspec­
tiva do ser-em-comum, ao diálogo. Ela devolve a fala no falatório
e a palavra na parolagem por um páthos, por uma disposição de
ânimo, que abre o ser-no-mundo. A disposição de ânimo é inse­
parável da experiência da palavra como preliminar concordância
com o aberto, que rèmonta à proveniência da linguagem, e que, por
276

isso, também liberto as palavras da “ordem gramatical em vista dç


uma articulação mais original de seus elementos. . ." (UJ7, p. 26-7).
Celebração e comemoração colocam a “fala dos mortais" cm rela­
ção com a “fala da linguagem” (Sprcchen der Sprache). Nisso
consistiria o canto.
"Laudes", observa Jleideggcr a propósito de /I canção (Das
Licd), de Stefan Gcorge, l,é o nome latino para os cantos. Dizer
cantos significa cantor (Singcn). O cantochão (Der Gesang) é o
recolhimento do dizer no canto" (CS, p. 229). Esse recolhimento
se faz mediante o ritmo, “que não quer dizer corrente ou fluxo
c sim juntura" (US, p, 230). O ritmo é uma paragem, uma
posição coligente: o chamado das coisas à palavra fervorosa que
as mostra, que as faz ver, c que conserva a visão delas. "Somente
a forma conserva a visão. Mas a forma é obra de poeta" (ED,
p. 13). Existe canto a partir do ritmo, que é forma como obra,
como poema,
Por essa menção à forma, pode-se ver logo que o procedimento
inierpretativo dc Heidegger distancia-sc completamentc da ínter-
pretação linguística da poesia, com fundamento no caráter da
linguagem como signo. Já vimos que, para o filósofo, a relação
linguístico-normativa entre significante c significado constitui-se
sobre a relação mais originária que a palavra comporta enquanto
nomeação: o seu apelo, o seu chamado (Rufl), como dizer da
linguagem.
"A linguagem fala (Spricht). Mas o que sc passa com esse
falar? Onde encontrá-lo? Antes dc tudo, no que é falado
(Gcsprochenen)" (US, p. 16), O que 4 falado se dissipa no inter-
cuno cotidiano, salvo se o recolhe o canto, a forma da linguagem
como obra, o poema. Heidegger não leva em conta a especificidade
da forma escrita, em que o ritmo é uma paragem recolhcdora do
falado, permitindo que o poema seja o sítio de mostração das coisas,
O intérprete volta-se para o poema como experiência privilegiada,
que pode nos dar o falado cm estado puro, através de sua escrita
particular: a enunciaçãp (os versos, o cncadeamento das estrofes)
c os enunciados (expressão, visão do mundo). A escrita desapare­
cería por trás do falado, Assim, por exemplo, interpretando Tralcl
e Stefan Gcorgc, a leitura heidcggeriana se processa como uma
escuta do que não está dito, coino um ouvir o que não está expresso
e sim latente na enunciação.
Nos versos de Uma tarde de inverno (Ein Winterabend), de
Trakl, como
Quando a neve cai diante da janela,
E longamente ressoa o sino da tarde,
Para muitos a mesa está posta
277

E a casa bem governada.


(Wenn der Schnee ans Fenster fãllt,
Lang die Abendglocke lãutet,
Vielen ist der Tisch bereitet
Und das Haus ist wohl bestellt.),
as palavras nomeiam, chamam pelo nome e trazem à presença a
neve, a hora vespertina no inverno, a mesa poíla c o recinto acon­
chegante da casa, Essas 'coisas são chamadas, retinidas num só sítio
(Orl), com 0 mundo aonde advim. O mundo e as coisas, irredu­
tíveis cnlrc si, formariam o enirè-dois, perdurando em sua dr/írejtfa.
“A partir de si mesma, a diferença (Unter-Schied) mantém o meio
para o qual e através do qual o mundo e as coisas se pertencem
rtdprocamente" (US, p. 25}. O mundo se torna mundo c as coisas
sc tornam coisas na íorma aprescnlante do canto, que libera no
instante (Augenblick) da leitura o dizer da linguagem. Mas essa
liberação do dizer, que não se faz com nenhum vocábulo em par­
ticular, alcança o ponto em que se transforma num modo de ver,
numa visão mostrativa, na paragem do significante e do significado
pela suspensão do que é dito ao não-dito, pela neutralização do
enunciado na enunciação — o limite silencioso do mostrar em que,
finalmente, a palavra se realiza como palavra nomeadora. “A pala­
vra fala como recolhimento do silêncio” (US, p. 30). Dessa ma­
neira, pois, o fervor da recordação rib presente do poema é a memó­
ria da diferença ocultada pela Filosofia, que Heidegger identifica à
Metafísica.
Entendida no sentido de sua proveniência, de sua origem
grega, a Filosofia é o corresponder ao ser do ente. A Filosofia
fala na medida dessa correspondência posto que previamente dis­
posta a ela pelo páthos da admiração (thaumázein), a que se
referiram Platão e Aristóteles. Nessa admiração, o ser do ente,
aberto para os filósofos gregos, foi guardado nas palavras funda­
mentais, em cujo nomear, quando filosofamos verdadeiramente,
entrando em relação dialogai com eles, ouvimos o apelo do ser do
ente que nos fala. A Filosofia seria também um modo privilegiado
do dizer. Os primeiros pensadores, como Heráclito e Parmênides,
ainda eram poetas. Enquanto vislumbraram o ser como lógos e
alétheia, em sua união coligente com o tempo, o seu pensar foi um
dichtende Denken, um pensamento poético, que a Filosofia ab­
sorveu. Ora, essa proximidade do ser já uma vez pensada e ainda a
pensar — a “grandeza da origem” e a possibilidade de seu reco­
meço — é a região de retomo para onde a viragem aponta e de
onde ela desponta. Eis por que o pensamento é também, segundo
Heidegger, comemoração (Andenken) (ED, p. 19), ameaçado por
278

dois perigos: um, salutar, “a vizinhança do poeta que canta”,


outro, ameaçador, a produção filosófica (das Philosophieren) (ED,
p. 15). O pensamento que se arrisca a superar a Filosofia, que
recua da Filosofia à possibilidade de uma nova origem, é poema
(Gedichte), obra de poeta. “Cantar e pensar são os dois troncos
vizinhos do ato poético” (ED, p. 25). Mas esses troncos vizinhos
são árvores da mesma floresta da linguagem — da linguagem que
se essencializa como dizer e que, dizendo, mostra. “O que se
essencializa na linguagem é o dizer como mostrar” (Das Wesende
der Sprache ist die Sage ais die Zeige) (US, p. 254). Tudo começa
e termina na linguagem, o tópos por excelência do ser, em que
se abastecem os poetas e os pensadores, e em torno do qual eles
convergem no caminho de retorno ao país natal, à residência poé­
tica do homem.
.EPÍLOGO

O NOVO COMEÇO

Für das Kind im Menschen bleibt die Nacht die Niiherin


der Sterne.
Heidegger, Gelassenheit.*1
Gr Mie Verlefenheif. ob die Phíiosophie eíne Kltnst odrr
eine Witsensehafi iít. Es út eine Kurjr in ihrcn Zwecken
and in ihrer Froduktion. Aber daí Mirre!, die Darsielluni
in Begrífjen, bat fie mit der Wlmnsellúft geinein. Es
ist eine Form der Dichtkunst.
Nietzsche, Das Philosophenbuch. 2

Tomando por base a realização da Filosofia e a essência poé­


tica da linguagem, que centralizam os vários temas da Hermenêutica
hcidcggcrianii tardia, podemos tentar, ao encerrar este ensaio, uma
rápida avaliação do pensar meditativo, que chamamos de prática
mádiiante, c ao qual o Heidegger da segunda fase delega uma
fu lição preparatória relativamente ao novo pensamento por vir.
Enquanto realização da Filosofia, o acabamento da Metafísica,
que M efetua como absorção do saber filosófico pelas ciências,
também se concretizaria como parrogCTn para a poético pelo pen­
samento liberado no dizer essencial da linguagem: a palavra dos
poetas da poesia e dos pensadores-poetas, que releva da mesma

1 "Para a criança que tiá nu homem a rwite coniinue sendo a eesEüreira


<ias estrelas." Hwo«®ari*, SewiMwfc.
J "Grande embaraço h.i para decidir se a Fil*»ütra 4 uma arte ou nnm
ciêncíH. Ela í ama arte em seus fins e na sih FruiiisçSo Mw o meio.
« representação em coiwcikw, é o que elo tem <ie comum cam a ciiiwi», Ela
i uma forma de poesia? Nihtz$ciih< O livro do fílóso/o.
280

ordem originária de que provém a questão do sentido do ser, desde


a sua forma inicial interrogativa, de pergunta contínua, reflexiva e
autoproblematizante, na Analítica do Dasein.
Entretanto os poetas e os pensadores, próximos entre si na
medida em que atendem ao mesmo apelo do ser na linguagem,
estariam a grande distância uns dos outros por força do dizer que
os avizinha. “Cantar e pensar são os troncos vizinhos do poético”
(£7), p. 25). Como abrimento, como irrupção no meio do ente,
a poíesis é o princípio de todo o pensamento, e, nesse sentido, todo
pensamento é “de caráter poético” (ED, p. 23). Mas o cantar e
o pensar, cujas ramagens distintas se entrançam na fronde da
palavra, são troncos diferentes da árvore da linguagem. Esses
troncos gêmeos “nascem do ser (Seyn) e elevam-se até à sua
verdade” (ED, p. 25). Poesia e pensamento apenas se aproximam,
apesar de que a essencialização da verdade instaurada, a origem
da arte, autorizasse a conceber a coincidência entre o poetizar e
o pensar. Um profundo abismo, em contraste com o induvidoso
parentesco que os liga no seio materno da linguagem, separa poesia
e pensamento.3 “O pensamento diz o ser. O poeta nomeia o
sagrado.”
Os poetas da poesia escrevem nos tempos de carência, quando
o exílio, “marcado por uma dupla falta e por uma dupla negação”

s O poetar e o pensar se necessitam mutuamente (Dichten und Denken


brauchen einander) (cf. US, p. 173). Essa necessidade decorre da estreita
vizinhança, em que se encontram, um próximo do outro. Só podemos falar
da mútua relação do poetar e do pensar num discurso metafórico (cf. US,
p. 187). “O poetar e o pensar são modos do dizer (weisen des Sagens).
Mas à proximidade, ao que estabelece a vizinhança entre os dois, chamamos
de dito (die Sage)” (US, p. 200). Estaria nisso a essência da linguagem.
Die Sage é o dito que faz aparecer (erscheinen-lassen) ou que desvela um
mundo: uma forma de dispensação, que o apresenta ou mostra. Entretanto
o que se diz poetando nunca é igual ao que se diz pensando; algumas vezes
são o mesmo (das Selbe), quando se declara o abismo que existe entre o
poetar e o pensar (cf. WHD, p. 8). A afinidade é-lhes tão essencial quanto
a diferença que os separa. A vinculação de ambos ao literário empana o
reconhecimento do parentesco que os une. Contrastando com a ciência, o
pensar parece poesia malograda (cf. WHD, p. 155). E, se aquele ignora a
sua proximidade com esta, afirma-se como uma superciência (Überwissens-
chaft). Mas o domínio da objetividade científica não se confunde com o do
pensamento, sempre vizinho da poesia. Vizinhança e não identidade. “O
que se diz na poesia e o que se diz no pensamento não são nunca o
mesmo. Porém tanto uma quanto o outro podem dizer o mesmo de diferentes
maneiras. Isso não se verifica senão quando o abismo que os separa perma­
nece aberto, na medida em que o poetar é alto e o pensar profundo” (VA,
v. 2, p. 12). Contornando a Metafísica para deter-se nessa relação, a
meditação heideggeriana pretende reconduzir a poesia e o pensamento ao
“lugar onde sempre estiveram...” (WM, p. 251).
281

(EHD, p. 47), impõe à palavra a necessidade de nomear o sagrado.


Mas é justamente a carência manifesta na voz dos poetas e que os
faz surgir, o que também justifica, no momento da maior retração
e do maior perigo, que o filósofo passe da especulação ao pensar,
e distinga, como pensador, a sua vizinhança em relação aos poetas.
Essa proximidade w exierioriza m> diálogo com a poesia, dc que o
pensamento lonia a iniciativa, ao contrair, rejeitando □ especulação
filosófica, a identidade de utna prática medi/ante, voltada í expe­
riência da linguagem. Só esse diálogo com a poesia, dirigido pelo
pensamento, é um pensar poético (dichtend Denken), por trazer-lhe
a palavra do canto o despertar da lembrança do ser recalcada pela
investigação especulativa no limbo do inconsciente filosófico, onde
foi esquecida, e em que permanecem, como num depósito reati-
vável, os traços da experiência originária, antes da mudança da
verdade — de alétheia para omoíosis — por via da qual formou-se
o curso histórico da Filosofia.
Assim é à custa do diálogo que entretém com a poesia, sobre­
tudo nos versos de Hõlderlin, que a Hermenêutica heideggeriana
consigna a conversão, que se operou ao longo da História do ser,
da poíesis em expressividade criadora, do lógos em Lógica, da
physis em princípio da Natureza, da téchne em simples fazer artís­
tico, e da mímesis em imitação dos modelos. Mas esse diálogo,
que também proporciona a redescoberta do sagrado e o entendi­
mento do lógos como dizer manifestante (Sage), com o que se
restabelece o seu parentesco com o mito, tolhido pela Filosofia,
desenvolve-se unilateralmente, mais dirigindo a poesia no interesse
do pensar, do que sendo por ela dirigido 4. Em contrapartida, o
pensar encontra sua identidade própria ao interpretar os textos
poéticos. Esse confronto possibilita a principal circunscrição da
topologia (Ortschaft) do ser, que parece situá-lo fora da Filosofia.
A poesia que pensa, diz Heidegger, “é na verdade a topologia do
ser” (ED, p. 37).

4 Heidegger distingue a conversação entre poetas, conto um diálogo genuíno,


da conversação do pensar com a poesia (mit dem Dichten), como um
diálogo possível e às vezes necessário. Este último, o do pensador com o
poema, nfo é sem perigo para a pocsifi, chamada a servir os interesses
do pen&rúcãEtt (cf. Bimult, Henri. Thinking and poetizin# in Hcideggdr.
In: KoCXEkM*NS, Jcwph J.( ed. and t/ans. Ofi HtldtgRtf and languagc.
livnnslon, Norihweslem Unív. Preti, 1072, p. J47.6S). ]hói cHJIHJ indo, «W
diálogo, qilc nãc t o da incerpretafla literária, fsa dn poewt um dos catni-
nhoi d* pciuameitio para a experiência da linguagem ou palavra. A
wpcriínHa da palavra é sempre uma experiência pcnaánio (skitkend Erfnhr-
utag) (tf. Das Wcscn der Sprachc [A sidncla da linguagem], US. p. IStt).
282

Topologia; conjunta de localizações do ser, de sítios, dc para­


gens que vem ao nosso encontro, principal mente na fala da lin­
guagem. : Em estado puro, essa fala é o "dizer dc um poema"
(ò'JSr p. I Sj, que de diversos mudos abre ac jogo confliüvo do
aberto, mostrando a$ coisas no silencio bntcrvfl1.Hr entre a enuncia-
ção das sentenças e o dizível do discurso.
O que mostra a experiência poética com a palavra, quando o
pensamento a segue? Fila mostra na dircçio desse ruemoríáve/
(Dtiikwiirdige), daquilo que desafia o pensamento desde a Anti­
guidade, ainda que dc maneira velada. Ela mostra alguma coisa
que há e que, entretanto, não “á" (tAÍ, p, 193),

Lugar da lembrança, como “palavra que fala na origem de todo


falar humano”, a poesia assegura, finalmente, a recordação, contra
o olvido do que é preciso pensar. Ela entrega ao homem o dom
de que tem a guarda, e com o que já corresponde pela memória.
Enquanto recolhimento da recordação (Andenken), “voltada para
o que é preciso pensar, a memória (Gedãchtnis), é a fonte da
poesia” (VA, v. 2, p. 11). Essa precisão do pensamento constitui
o fundo exigente que a memória resguarda. O homem mora no
espaço resguardado de tal lembrança, que ele propriamente não
engendra, e de que está sempre muito próximo. Se o exílio, que
a experiência poética de Hõlderlin tematiza, é o esquecimento da
errância, a figura do retorno ao país natal, extraída da mesma fonte,
significaria a instância poética da recordação que comemora, re­
traindo-se ao impensado e projetando-se para diante. “Comemorar
o que foi é progredir no impensado que é preciso pensar” (SG,
p. 159) — o apelo silente da dispensação, a terra natal de que
nos afastamos no começo, e que de novo os poetas escutam no
exílio, quando, como sacerdotes sem divindade, “erram de lugar
em lugar”, premidos pelo vazio de uma ausência. Esse apelo nos
traz uma outra segurança, que não a do domínio objetificado do
ente em torno de nós: a segurança arriscada de que “o obscure-

5 Para evitar que “verdade do ser” — locução que substitui “sentido do ser”
— seja interpretada como adequação, Heidegger especifica tratar-se de
localidade — Ortschaft des Sein (Séminaire du Thor. In: —. Questions IV.
Traduit par Jean Beaufret et alia. Paris, GaDilturd, 1976. p. 269. Orig.
alemão. A Filosofia torna-se uma topologia do w, à qual correspondem
descrições "lopogrifícas", de disiintos domínios da verdade (cf, P&oani.EB,
Ollo. Hcidcgjtrs HipoJügy of bejng. In: KjQCKEJ.MXKS, J. cd. and
Lrans!.. op. cil., p. 126). "A lopolofia ítldsuja çonw lima pintura de Paul
Klec, utn ptKffll de Trnkl. u que í Observado num cjfptt itUcnlO físico, o
produto da ifcnicn, uma lei, pertencem ao lodo do rvowo mundo” (id., ibid.,
p. 123-4).
283

cimento do mundo jamais atinge a luz do ser” (ED, p. 7). No


meio do maior perigo, é da palavra poética que vem a salvação
da esperança.8

II

O reconhecimento de uma tensão extrema entre o cantar e


o pensar, esses troncos vizinhos da linguagem, no entanto separados
por uma distância abismai, trazida à superfície da História do ser,
tem na especulação filosófica, contraída numa só questão, à época
de acabamento da Metafísica, não apenas um repoussoir, mas o
horizonte histórico permanente do pensamento.
Não teria sido possível à prática mediante de Heidegger, que
continua na órbita da Metafísica — embora neutralizando-a como
ciência primeira e tentando abandoná-la —, destocar a physis sem
a oposta significação da ousía, nem teria sido possível que che­
gasse à gênese da Ontologia sem recompor os passos da especulação
filosófica nos próprios conceitos e categorias, que se consolidaram
ocultando a temporalização da temporalidade que os possibilitou.
Pensar e filosofar não se equivalem, afirma Heidegger (cf. WHD,
p. 5). Quanto mais, porém, o primçiro procura afirmar sua iden­
tidade própria recusando o segundo — até com o risco da abdicação
do espírito crítico —, mais vem a necessitar da Filosofia. Nem um
passo poderia fazer o pensar, se não dependesse da História da
Filosofia, e se a exegese dos conceitos filosóficos não acompanhasse
o rastro da especulação metafísica.
É certo que não mais podemos, como diz Heidegger, construir
novos sistemas ou esperar “o desdobramento de novas filosofias do
estilo até agora vigente” (ZSD, p. 63). Aceitando-se a afirmativa
heideggeriana de que a especulação filosófica autêntica “já fez
passar à linguagem a realidade do real” (HW, p. 237), é admissí­
vel que a Filosofia possa desaperecer e que esteja em fase de
perecimento. O filosofar possível tornou-se uma crítica da Filosofia.
Transformaram-se os filósofos em exegetas do saber filosófico.
Na exegese heideggeriana, que desce à raiz dos problemas e
das disciplinas filosóficas, como genealogia dos conceitos funda­

8 “A carência enquanto carência contém o vestígio da salvação (das Heile).


A salvação apela para o sagrado (Heilige). O sagrado religa o divino. O
divino aproKirrwi Deus” (HW, p. 294). Pudcnsí» compreender, do ms»
modo, o ujrprtcridente título da entrevista de Heidegger à revista Der Spirgelt
“Somente um Deus ainda pode salvar-nos (Nur noch ein Gott kann uns
retten)”.
284

mentais, inseparáveis das palavras-fontes da Filosofia grega, de


que procede o que é pensado pelos pensadores, a crítica radicaliza-se
na meditação, cuja prática, exercício contrário aos hábitos do
pensamento conceptual e sistemático, mantendo nos seus procedi­
mentos interpretativos a atitude geral de recusa às abstrações filosó­
ficas, é um processo negativo de desconstrução dos conceitos ou de
campos disciplinares (Metafísica, Lógica, Estética, Poética). Essa
prática se põe à prova tentando deixar de pensar a linguagem
como meio — para sair da poética — deixando de pensar a obra
de arte como expressão de vivências ou como expressão simbólica
— para sair da Estética, ou deixando de considerar o pensamento
como ato que se dá numa enunciação — para sair da Lógica.
Mesmo assim, a exegese crítica do saber filosófico, firmada no
discernimento das possibilidades do que foi pensado, exige o com­
prometimento do intérprete — e de toda posição atinente à ciência
e à natureza humana — com a tradição filosófica, tal como se
condensou no espaço cultural de nossa época. Os pensadores
ocupam hoje, nesse espaço em que “o todo da História da Filosofia
se descerra”, um lugar intelectualmente incômodo, instados pelo
dilema de ou continuarem a especulação filosófica, aderindo então
à vontade de potência que a instrumentalizou na época moderna,
ou tornarem-se exegetas dos sistemas, continuando a praticar, inde­
finidamente, a destruição histórica da Ontologia. Em que consiste,
precisamente, essa destruição?
Exposta na parte introdutória de Ser e tempo, a destruição da
Ontologia suspendería a tradição cristalizada, liberando “as primei­
ras determinações do ser”. Mas essa operação fenomenõlógica, que
também alcança a vigência efetiva da História da Filosofia, possi­
bilitando a posterior assimilação desta numa História do ser, é
autenticada pela temporalidade. É a temporalidade, elucidada ape­
nas ao término da Analítica, que legitima o desencobrimento da
experiência originária e que justifica ainda o acesso às fontes his­
tóricas que terão provocado a necessidade de reiterar a pergunta
fundamental, a questão do sentido do ser, que levara o intérprete à
Analítica do Dasein. Ora, a direção reiterativa da pergunta funda-
menta-se na retroveniência da temporalidade. Consequentemente,
deve-se o reativamento dos textos filosóficos, onde essas fontes
se encontram, ao movimento de temporalização, que condicionou
a sua leitura, dentro do círculo hermenêutico da conduta do Dasein.
O círculo hermenêutico impõe ao ato interpretativo a forma con­
creta de tradução. Como numa súmula recapitulativa da Analítica,
a tradução permite recompor os existentivos a partir do discurso.
É o caráter dialogai do discurso — o poder ouvir-nos uns aos
outros — que possibilita a tradução. Sem abolir a distância histórica
28S

entre os textos antigos e o intérprete situado no presente, o diálogo


aproxima-os na rede das significações articuladas que predeterminam
a intcrlMução das línguas, O espaço de abertura, dimensionado
pela disposição e pela compreensão, transfere-se aos textos, em que
se inscreve, nas palavras de outra língua, um.sentido emergente,
ouvido para além da barreira lingüística a transpor, e que é a
condição a priori da tradutibilidade. O [ffldulOT é um intérprete, e
não há intérprete que Hão participe pneviamcnte do sentido do
texto a decifrar.7 Assim, a experiência do ser, subjacente à tradição,
só pela tradução pode de novo reatualizar-se. Esposando a incli­
nação das forças geradoras constitutivas da tradição, que a História
da Filosofia canalizou, externadas em sucessivas versões de língua
a língua e de texto a texto, desde a Antigüidade, a Hermenêutica
heideggeriana, concretizada como destruição, desenvolve-se de
maneira inversa e oposta ao curso dessa história, retrocessivamente,
na direção do fundamento originário. “Destruição”, acrescentaria
Heidegger num escrito de 1955, quase trinta anos depois da ex­
planação de Ser e tempo, “significa: aguçar o nosso ouvido, liber­
tar-nos para o que na tradição nos fala como o ser do ente.” 8
O ser do ente foi sempre o pólo metafísico da Filosofia, e a
Filosofia, “uma das raras possibilidades autônomas e criadoras,
senão uma necessidade do Dasein histórico do homem” {EM, p. 7),
que se formou e desenvolveu pensando “o ente como tal, ontoteolo-
gicamente” (ZSD, p. 76), condiciona, portanto, a interpretação.
Só a expensas da especulação filosófica poderá o intérprete desen­
cobrir o fundamento e aí surpreender o que não foi pensado. O
acesso hermenêutico ao fundamento (Grund), que o revela sem

7 Cf. Gadamer, Hans Georg. Sprache ais médium der hermeneutischen


Erfahrung. Wahrheit und Methode. In: —. 3. Aufl. Tübingen, J. C. B. Mohr
(Paul Siebeck), 1972. cap. 3, tóp. 1, p. 364-5.
8 Heidegger, Martin. Que é isto, a Filosofia?. Tradução, introdução e
notas por José Henrique Santos. Belo Horizonte, s. ed., 1962. p. 53.
(Estante Universitária, Série Filosofia, 1). É o discurso filosófico que se
problematiza com o ouvir do ser do ente em que culmina a “destruição” da
Ontologia praticada como tradução: por um lado, tradução das palavras
gregas essenciais, com apoio etimológico (alétheia, lógos, physis, tò ón,
ousía etc.), ao longo da História do ser, condicionando o processo das
sucessivas metamorfoses do ente; por outro, retradução dos idiomas filo­
sóficos modernos a essa pauta do pensamento grego. A Analítica é uma
leitura interpretativa e de certo modo uma tradução interna, a começar
pela significação de “Dasein”, que corresponde, sucessivamente a “ser-no-
-mundo” e ao “aí do ser”. A elaboração da questão do ser faz-se com um
processo polissêmico de suplência verbal entre termos sinônimos: “Dasein”
significa “abertura”, que significa “clareira”, que significa “desvelamento
iluminador”, que significa “essencialização”, e que significa, finalmente,
“acontecer” (Geshehen/Ereignis).
2M

fundo (Grundlos), por trás do esforço racionai cm qne sc afirma


o querer da vontade, também desencobre, nas palavras essenciais
dos pensadores, seja no scr (chiai) de Parmcnidcs, seja no tágat
de Heráclito, a falha, a ruptura do esquecimento entre o ser do
ente e o desvelamento do scr — a "clareira da presença" (Ltcblung
von Amvcscnheit), enquanto ekstaiikón do tempo. O fim da Filo­
sofia já s* antecipa no seu começo; insuprimida na meditação do
Heidegger da fase da viragem, que procura distinguir o que sc
perdeu no começo ■— a drfmvtpa, não pensada desde u princípio,
c cuja omissão perpetuou-sc na especulação filnsófk-ii —,4a
Filosofia, descncoberla em sua gciicse, que ainda pürmilc divisar a
recuperação do esquecido e fazer dessa recuperação “uma tarefa
possível para o pensamento (müglichen Anfgabc dcs.Dcnkens)”
(ZSD. p. 76).
A coruja dc Minerva, aturdida, já voava antes do crepúsculo
nesse começo principiativo, nessa origem oscilante, até onde sc
reprojeta a prática meditativa dc Heidegger. Pois que a origem
mesma se bifurca "na oscilação do ente, na secreta ambiguidade
do dn9*11, a favor do qual l'o começo da Metafísica coincide com o
começo do pensamento ocidental", se não quisermos transferi-lo a*
momento de separação do supra-sensível e do sensível cm Sócrates
c Platão, que "fixam uma interpretação especial me-nie orientada”
(WH/, p, 147) dessa ambrgiiidade, não pensada quanto ã diferença
que h suporia.

III

Filosofia e não-Filosofia, o pensar abre caminho entre palavras


e faz das palavras o seu próprio caminho, mim discurso reta-
jwrtikír e prospttlivo ao mesmo tempo, cm que o impensado da
origem é o que ainda falta pensar c o que deve scr pensado. Entre­
gue A linguagem, renunciando ao querer c A vontade dc verdade,
,
pontlo-se à margem da ação
* a prática meditativa de Heidegger,
expressão desse pensar, define-se como a preparação expectante de
um pensamento futuro na confiança da serenidade (Gclasscnheit/
Heiterkeit).

9 A ação exercería sobre o pensamento a mesma sorte de sedução traiçoeira


que Wittgenstein atribuiu à linguagem. De Platão a Hegel, ora disfarçada,
ora ostensivamente, a Filosofia caiu sob essa sedução, que distrai o pensa­
mento da verdade do ser. O pensar atento a essa verdade é considerado
“mais alto que toda ação e produção, não pelas dimensões do que con­
cretiza ou pelas consequências de seu influxo, mas pela insignificância de
287

Mas como se conciliam a çxptctação fi a serenidade? O que


espera esse pensar ascético, que tenta dcspojar-sc do querer, c que,
resguardado dos derivativos da Teologia, divorciou-se da propensão
ao agir da Filosofia moderna, interiorizada nas Críticas kantianas
— propensão que Hegel exteriorizou, com o substrato, religioso do
cristianismo, na forma da reflexivldadc auto-reproduliva do «pinto?
“Nada devemos faztr^ somente espeíar” (Z?L, p. 35), pois
que o pensamento nada pode intentar antes que o ser nele se
pronuncie. Nem o esquecimento, "consubstanciai ao ser” (l/Af,
p. 243) desde o não-velamcnto da altlheia, o mais originário acon­
tecimento da história, devc-sc à iniciativa do homem. "O próprio
ser retrai-se a si mesmo” (IV, v, 2, p. 355). Nessa retração, dc
abre o âmbito do desvelamento para o ente c a errânda paru a
história: “Sem errância não havería relação dc destino a destino,
não haveria história” (HW, p. 311).
Retraindo-se o ser sob diferentes formas em cada época, e em
cada época retido na diferença que o separa do ente, a sua his­
tória encurva-se do começo principiativo entre os gregos até nós,
para fechar-se no círculo hermenêutico, dentro do qual se dispensa
ou se doa ao pensamento na essência da técnica. O pensar que
se volta para o que já foi pensado fica, graças a essa doação,
“ao serviço daquilo que ainda nos» resta pensar” (ID, p, 30).
Anunciado no início, isso que ainda falta pensar, como destino

wi realização, qt*e t sem resultado” (UH, p. lít>). A caria a Beaufrct,


Sobre o humanismo, é, em grande parte, uma tentativa para reformular n
noção de prática, (mnsteri ndo a "essêitcia" do agir para a realização. Ora,
nenhum raultado {no sentido heRelumo do termo) vem do pensar. O que
sc realiza propriamente já está produzido (na acepção dc pro-duerrr).
O pensamento apenas "realiza a relação do ser com a essência do homem,
Ele não constitui nem produz por si mesmo essa relação” (UH. p. 2$).
Pretendendo não scr teórico ou prático (cf. UH, p. 161), o dcspoiameiito
a qt
*c ele se submete é, pela mesma ordem dc considerações, uma exigência
essencial do scr em sua simplicidade. Simples o pensar, até à monotonia, a
prática meditanie que o expressa, dada já como essencial (wcsemltebe
Denken), por oposição à ciência e ,:i Filosofia — formas dc pemrrjtiertxo
cnfcírWov frechncílde Dtnke) —. arltccipa-se aO |Wf»ar porvindouro que
devçrA preparar, *'0 pcninmenio desce A pobrezn da sua essência prévia.
Ele conjuga a linguagem num dizer simples. A linguagem será ossim a
linguagem do ser. como as nuvens sio as nuvens do céu. O pensar cavará
na linguagem, com o seu dizer, sulcos inaparentes. Sulcos mais innpurcnlcs
do que aqueles que o camponês abre, a passos lentos, através do campo”
[UH, p. Ifrfi'7). Nessa descida, cm que a direção única para □ ser lhe
impõe o amor ao silêncio, em vw do amor no saber, a meditação, a
prática mcditante de Heidegger não se recusa a uma aproximação com □
múticisn» (a essência deste, como a da ação, estaria por aclarar). O
pensar, que não é um meio para o conhecimento (cf. US, p, 173), recusa-se
ao saber.
288

que nos chama, agora, mas despontado em nossa proveniência,


pode advir no futuro, rctrovindo da Aurora grega, e ícaccndcndu-sc
num instante (Augcnblick) imprevisível, como um novo começo,
que seria o retorno após o exílio, na manhã da Hcspéria, o
Ocidente de Hõlderlin. Nesse sentido, a prática da meditação —
prática não-pragmática, porquanto não prediz o futuro, e que vis­
lumbra esse novo começo, relanceando o pensamento que virá na
compreensão do que já foi pensado — comporta uma perspectiva
escalológica. “O ser mesmo, enquanto destinador, é em si mesmo
cscatológico
*' (HW, p. 302). E, se é «catplógico, por que não
seria também soteriológico, uma vez que somente o apelo do ser,
ouvido na linguagem, pode salvar? Apesar de todas as cautelas cm
contrário, Heidegger reintroduz no /rigor, tal <i o poder que empresta
à linguagem, ao fim sacrallzada, o Verbo encarnado da Teologia
cristá, E que é o retorno ao país natal senão o mito da voha após
um longo exílio, substrato dc uma expectativa esperançosa, mas já
privada do aceno da promessa religiosa, em que sc neutraliza o
além-mundo do cristianismo?
Tentando levantar a diferença, apontando o entre-dois, indi-
candú a copertença entre o homem c o ser, o pensamento prepa­
ratório vagueia em meio aus signos errantes do pensamento por
vir, no qual, reiterada a origem, resgatado ° esquecimento subja­
cente á Metafísica, a viragem, essência da própria história, se
produziria como o advento de uma transformação do homem, des­
tinado a habitar poeticamente a terra. À topologia do ser, escato-
lógica em $cu horizonte, essa destinação poética acrescenta o
espírito da utopia, desembaraçado da vontade de potência, da vis
moderna de assenhorcamcnto do real. A serenidade nada espera,
mas a utopia é o alvo da expectativa serena.
Vista sob esse ângulo, a poesia no sentido estrito da palavra,
o cantar, corresponde ao discurso da serenidade. E, muito embora
seja o poeta, na visão do líaratustra de Nietzsche, “o mais vaidoso
dos pavões”, ele real mente euntí só quanlo sc liberta da vontade
de vontade, só quando, entregue à fala da linguagem, pode dizer,
renunciando à parolagem (Gerede), a livre amplidão (freie Weite)
das coisas e do mundo, em que se anula a distinção entre o ver­
dadeiro e o falso. Quem alcança a serenidade, já antes alcançou
aquela entrega da liberdade, o deixar-ser de que Heidegger trata em
Da essência da verdade. A serenidade tem, nesse abandono, o seu
primeiro momento (cf. GL, p. 49). O segundo momento, espécie
de não-saber, afim à docta ignorantia de Nicolau de Cusa, conten-
ta-se com a simplicidade do Mesmo, com a pobreza de um pensa­
mento que se limita a apontar o ser em tudo e que faz de tudo
289

uma indicação do ser. Mas já então o cantar recobre o pensar,


desaparecendo o abismo que os separa. É que, ao entrar em
diálogo com a poesia, o pensamento dc Heidegger sc íaz poético.
Como alcançar a fala da linguagem, sem também poetizar, c sem
que o caminho do poeta e o do pensador sc torneqi indiscernivcis?

IV

Ainda que a meditação de Heidegger mantenha-se reflexiva­


mente distante do dizer poético — mas não de modo a despren­
der-se dele no abrigo de uma metalinguagem —, o empenho da
topologia do ser, colocando a coisa em lugar da Natureza, o Dasein
em lugar do homem, a errância historiai em lugar do histórico, a
linguagem como discurso c a terra como mundo, leva o pensamento
aos limites do dizível c do pensável. Nesses limites, que o conceito
não contorna, e diante dos quais cessam o conhecimento objetivo e
a especulação filosófica, a Hermenêutica heideggeriana expande-se
no espraiamento metafórico da palavra, de que depende o dizer
essencial.
Heidegger refere-se à metáfora, numa passagem dc rara am­
biguidade, em O princípio do fundamento (Der Satz vom Grund),
ao explanar a natureza do pensamento como escuta c visão, que
incidem numa transposição figurativa do ouvir c do ver sensíveis:
HA noção de "transposição’ e dc metáfora repousa na distinção ou
mesmo na separação do sensível c do não-scnsívcl como dois
domínios auto-subsistentes” (SG, p. 88-9). E conclui afirmando
que L1o metafórico só existe no interior da Metafísica” (56, p. 89).
Como Heidegger experimenta pensar o scr fora da dominància do
ente, ratificada pela distinção platônica do sensível c do supra-
sensível, deveria também desvencilhar-sc da metáfora, restitutiva de
tal dominância. Contudo essa aparente objeção não alcança a
metáfora em si, mas a interferência da distinção entre sentido
próprio e sentido figurado, que, remontando a Aristóteles, tem ser­
vido dc base para a apreciação das obras literárias, c mesmo para
a concepção da linguagem. Tal como a preservou a interpretação
corrente da Poética c da Retórica, a metáfora c a transferência de
significação, que transgride um primeiro sentido correspondente à
verdade do juízo ou da proposição. Porém o dizer essencial não
se recorta em blocos verbais separados, em estruturas diferentes e
opostas de linguagem. A metáfora está no foco de articulação dos
significados, como princípio de todo discurso.
290

Podemos relacionar a metáfora com o ato próprio da lingua­


gem — o seu trabalho, ou, para empregarmos a expressão de
Humboldt, a sua enérgeia — e conceber esse ato na modalidade
do jogo.
'"Joga" u um dos vocábulos frtqiicmw no idioma de Heidegger,
a que lí vemos dc recorrer muiias vezes no curso deste ensaio. A
conotação desse termo acha-se implícita, quando não aparece cx-
plicilamcnte, nos momenios cruciais da Analítica c do pensar medi­
tativo, Encontramo-la, de modo particular, na descrição da verdade
como obra de arte, bem como na descrição do Quadripartite. E
deparou-se-nos igualmente na meditação sobre o fundamento, ini­
ciada no opúsculo de 1929, Da essência do fundamento, e concluída
no curso do semestre de inverno, entre 1955 e 1956, O princípio
do fundamento. Como abismo (sem fundo), que tem na liberdade
ou na transcendência a sua razão, o fundamento obrigaria o pen­
samento a saltar num aparente vazio total, que, entretanto, lhe
proporciona “a correspondência com o ser como ser (Entsprechung
zum Sein ais Sein), isto é, a verdade do ser” (SG, p. 185). Me­
diante esse salto, ingressaríamos no jogo do ser em sua verdade 10,
antecipado pela nadificação. O ser, que não é um ente, inclina-se
para o Nada, que nos foi apresentado, em sua presença ausente,
como um acontecimento sobrevindo ao próprio Dasein, também
desencadeando-se no jogo de seu refugir revelado na angústia. A
produção recíproca dos êxtases no continuam da temporalidade,
que a consciência não põe, e que lhe condiciona a direção inten­
cional, cabe igualmente na conotação de processo livre, autônomo
e gratuito da palavra “jogo”, sempre implícita, mesmo quando não
usado o vocábulo correspondente, aos conceitos-limite funda­
mentais.

3’O mesmo jogo da liníUBgem que HeídcggFT tcnln .abordar sçirt mediações.
A niedílaçJo, como sallo. não retoeihece mais a distinção enlre o trrj.rf/fco
e o operd/óv-rtr. qUc ainda sc manteve, X dunu penas, na l-cnúnlcrtòlôstiã I1US-
MriÍMia (ver Fisiie. Etigen- Lea coiscepB opéraloircs dam la Phéno-ménotogic
de Husserl. In: Husserl. Paris, Minuit, 1959. p. 214. Cahiers de Rayau-
mont.), e que se torna quase insustentável na dimensão hermenêuiica que as
interpretações de Heidegger ocupam. Interpretar Hõlderlin, por exemplo, é
perseguir o diie-r do poctn nas palavras nunicudntas, conto JViwtrens, oam,
terrtr, fogo crlrste CIO., que por sua vez s5o onlrns tanlis manritaj de
nojnrjr o- srrg^mío. Mns, por outro lado, rtse dizer que re busca tnmbfm
confirmaria u pfmeípio da interpretaç-io, Mgundo o qual o diálogo com a
poesia é auHeitlado pclp auscultar, pelo ouvir da palavra a nós dirUãdíi.
Onde surpreendê-la? Nem nos poemas (Djçhtungen) ísoliidos de um autor,
nem no conjunto que des formam, porque cada um pode dizer indo e nada.
"Fnlretanio.” segundo afirma Heidegger. “cada qual fala a pariir do todo
de um poema que sempre diz" (t/S, p, J7-8), Entrando cm diálogo com
291

Da mesma forma, a diferença entre ser e ente, que sobrevêm


ao pensamento, através da linguagem, tanto quanto nesta tende a
ocultar-se, é um Spiel — um jogo, captado, à medida que se produz,
no deslocamento das significações verbais, na polissemia das pala­
vras. A metáfora dá o lance desse jogo; ela^é a.poíesis verbal,
que projeta o discurso nas línguas, a fala na linguagem, culminando
na atividade agonal, no exercício lúdico-ârrisca'do com as palavras,
que se chama poesia. *'
Mobilizando o poder da imaginação (Einbildungskraft) que os
filósofos românticos foram buscar em Kant, a meditação heideg­
geriana, em seu inacabamento ensaístico, e que não pode identifi­
car-se senão metaforicamente como um simples “caminho” (Weg),
é uma devolução do continente metafórico da poesia soterrado na
Filosofia, em seus elementos míticos, escatológicos e utópicos:
Questionar é elaborar um caminho, construí-lo. O caminho é um
caminho do pensamento. Todos os caminhos do pensamento con­
duzem, de uma maneira mais ou menos perceptível e por passa­
gens inabituais, através da linguagem (VA, v. 1, p. 5).

Caminho de palavras feito à imagem e semelhança das trilhas


(Wegmarken) e das veredas (Holzweg) da terra nativa do filósofo
— logomaquia do pensamento, tal *
como foi a grande construção
hegeliana, mas com a consciência, que faltou a Hegel, do prévio
trabalho de linguagem no desenvolvimento do conceito —, o pensar,
ao contrário da especulação filosófica, e em consonância com a
genealogia crítica de Nietzsche, não oculta o metaforismo em que
reside o essencial desse trabalho. Referto de paronomásias e tauto-
logias u, o idioma de Heidegger é um conjunto de “metáforas vivas”.

esse dizer, o pensar se exercitaria em evocar a essência da linguagem (Wesen


der Sprache) — o que significa dar-lhe a palavra (die Sprache ais die
Sprache zur Sprache bringen). “Nós falamos e falamos da linguagem.
Isso de que falamos já está sempre adiante de nós” (US, p. 179). Mas
como discorrer rente à linguagem senão por um outro dizer? A interpretação
deixa de operar para transformar-se num modo equivalente da fala que
se quer extrair dos textos onde se manifesta o falado (Gesprochen) dos
poetas e dos pensadores. “Die Sprache ist ein Labyrinth von Wegen” (A
linguagem é um labirinto de caminhos), adverte Wittgenstein em suas Inves­
tigações filosóficas ([Philosophiesche Untersuchungen]. New York, Macmillan,
1953. 1. parte, § 203). A meditação heideggeriana ingressa nesse labirinto,
do qual não há saída.
11 Como exemplificamos em diversas passagens deste trabalho. A suprema
tautologia do próprio ser, que não é ente. “Sein kann nicht sein” (o ser não
pode ser). Parmênides disse ésti gár einai. Einai significando o mesmo
que alétheia, o desvelamento falaria do presente, do deixar-ser presente
(Anwesenlassen). “É uma tautologia que fala aqui? Certamente. Mas é
292

Clareira, velamento iluminador, abertura, dispensação, dom, retra­


ção, sítio, paragem, Quadripartite, exílio e retorno à terra natal
são apenas os tropos mais eminentes, que esteiam o desenvolvimento
da obra heideggeriana nos dois momentos capitais de sua elaboração.
Diz Heidegger, a propósito da diferença, que não podemos
encontrar nenhum exemplo (Beispiel) para a essência do ser,
“porque a essência do ser é o próprio jogo (Spiel)” (ID, p. 58).12
Aproximamo-nos da essencialização concebendo-a enquanto espa-
ço-de-jogo-do-tempo (Zeit-Spiel-Raum) . Nem se pode, independen­
temente do tempo, expressar o ser, que não é o ente, na forma
do enunciado predicativo, nem expressar o tempo, em que se
desoculta o ser,13 afirmando dele que é isto ou aquilo. Há ser e
há tempo (Es gibt Sein. . . es gibt Zeit), um no outro, doação
mútua de ambos, o espaço-de-jogo-do-tempo.
O espaço-de-jogo-do-tempo abre-se na linguagem poética, en­
volvendo o pensamento, uma vez que é a essência da linguagem da
qual o pensamento depende, “que joga conosco” (WHD, p. 83).14
Acontecendo sem o caráter de ocorrência empírica ou de estrutura
factual, no acontecimento apropriativo assinalado na palavra
Ereignis — não por acaso relacionada pelo próprio Heidegger com
o Tao15, vocábulo tão intraduzível quanto o outro —, a verdade
da essência é, como dispensação do ser, jogo mútuo do ser e da

uma tautologia no sentido mais elevado, que não diz nada e diz tudo: o
que dá a sua medida ao pensamento inicial e ao pensamento futuro.” Kants
These über das Sein [Tese de Kant sobre o ser], WM, p. 306-7. A respeito
de tautologias, neologismos e paronomásias, ver Schõfer, Erasmus. Hei-
degger’s language: metalogical forms of thought and grammatical specialities.
In: Kockelmans, Joseph J., ed. and transi. On Heidegger and language.
Evanston, Northwestern Univ. Press, 1972. p. 281.
12 Anteriormente, no capítulo 16, encontramos o jogo de espelho do mundo.
13 “Sein (ser) em Sein und Zeit não é senão o ‘tempo’ na medida em que
‘tempo’ ê designado como prenome (Vorname) da verdade do ser, verdade
em que o ser se essencializa e é, assim, o próprio ser” (IFA/, p. 205).
14 “...Não jogamos com as palavras, mas é a essência da linguagem que
joga conosco, não somente no presente caso, não apenas hoje, mas desde há
muito e sempre” (WHD, p. 83).
15 Ereignis — a mútua apropriação do homem e do ser. Heidegger liga
paronomasticamente os significados de eignen (prestar-se a) e de zueignen
(apropriar-se). “Como tal, é tão intraduzível quanto o lógos grego ou o
tao chinês” (Der Satz des Identitãt [O princípio de identidade], ID, p. 24-6).
Ereignis também mostra a apropriação do ser e do tempo. “No destinar
da destinação (Geschickes) do ser, no .alcançar do tempo, mostra-se um
apropriar-se, um transapropriar-se do ser como presença (Anwesenheit) e do
rtempo como âmbito do aberto (Offenen), no que lhes é próprio. O que
determina a ambos, tempo e ser, no que lhes é próprio, denominamos o
Ereignisis" (Zeit und Sein [Tempo e ser], ZSD, p. 20).
293

linguagem. Não serão essas, por certo, as últimas palavras de


Heidegger ao ensaiar a sua despedida da Filosofia, a que o pren­
dem os laços irrompidos da Metafísica, que o mestre de Friburgo
transformou, ao declarar-lhe o acabamento, na força onipresente
da história. Mas o que quer que possam vir a. revelar-nos, dora­
vante, os numerosíssimos escritos de Heidegger, ainda em fase
de publicação, aquelas, palavras — Zeit-Spiel-’Raum (espaço-de-
-jogo-do-tempo) —são palavras de poeta.
A topologia do ser, que se completa na utopia do retorno à
terra natal, é uma metafórica. Confirma-o o pensamento de outro
poeta da poesia, Paul Celan, vítima do nazismo, que levou ao
canto, à lírica moderna em língua alemã, após a década de 50, e
com quem Heidegger parece não ter dialogado, a dilaceração do
tempo de maior carência, quando proclamou que todo poema é
um lugar, e como lugar, por aquilo que nele se passa, o tópos
utópico de uma busca: “A procura do lugar? Certamente. Mas à
luz do que se busca: a luz da U-topia. E o homem? e a criatura?
nessa mesma luz” 18. Nos tropos e metáforas anuncia-se a procura
de um lugar para os humanos — da morada terrestre habitável, isto
é, construída na correspondência entre o homem e o ser, predeli-
neada na existência, e que está sempre em jogo na finitude do
Dasein.
Regressamos, assim, ao início da investigação fenomenológica,
através do mesmo vocábulo — o Dasein, que demarcou o penoso
caminho circular da Analítica, do mundo circundante da cotidiani-
dade ao tempo como temporalidade. Quase impronunciado depois
da viragem, é esse conceito-chave, ao qual talvez conviesse chamar
de idéia, na acepção hegeliana do termo, tal a multiplicidade de
relações que ele enfeixa — conceito vazado pela imagem de luz,
antes de receber o nome de clareira —, que permite rebater o
pensar meditativo sobre a Ontologia fundamental e entender o
primeiro Heidegger por intermédio do segundo. Antecipando-se na
compreensão do ser inerente ao Dasein da qual partiu o primeiro,
a diferença, a verdade do ser, que se essencializa na linguagem, onde
se dá a juntura do ser e do tempo como Ereignis, ao qual chegou
o segundo, já predispunha a Ontologia fundamental a tornar-se um
pensar poético (dichtend Denken), capaz de escutar o apelo utó­
pico que do canto se desprende quando, na poesia, “é alto e régio
o pensamento...” 16 17.

16 Celan, Paul. Der Meridian. In: —. Ausgewãhlte Gedichte. Frankfurt am


Main, Suhrkamp, 1979, p. 145.
17 Reis, Ricardo, pseud. [Pessoa, Fernando], Ficções do interlúdio. In:
Pessoa, Fernando. Obra poética. Rio de laneiro, Aguilar, p. 242.
294

A procura do sentido ou da verdade do ser torna-se ao final,


a expectativa da transformação recíproca do homem e do mundo,
projetada no mito da nova residência humana, ao mesmo tempo
originária, autêntica e completa (ursprünglich, echt und heil)18 —
último sucedâneo da necessidade de ação na Filosofia moderna à
época do niilismo.

Belém, janeiro de 1978


Austin, novembro/dezembro de 1980

18 Marx, Werner. The world in another beginning: poetic dwelling and


the role of the poet. In: Kockelmans, J. J., ed. and. transi., op. cit., p. 235.
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27-5-1933). Wilh. Gottl. Korn/Breslau.

1 Cronologicamente, pela ordem de publicação; entre parênteses, a data de


composição. Registram-se as traduções para o francês e para o português.
* O asterisco indica coletânea.
296

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Arulenkcn; Hõlderlin Eirdc und Htmmcl; EkíiS Gcdicltl.)
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297

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Verba
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66 A Voz do Intervalo
Lutí 0. L- Ortanri
68 0 Podtr HunM na Fitvln
rWç<si Tol er Ocvn«
69 Música Popular — Do
Gramofone ao Rádio é TV
José Ramos Tinhorão
70 Editoração Cientifica
190 Ivani Kotãit
73 <A Escrita Neo-Realista
Benjarhin Abdala Junior
74 Murilo Rubião: A Poética
'do Uroboro
Jorge Schwartz
75 Leitura, Ortografia e Fonologia
Myrian Barbosa da Silva
77 Leitura/Ensino: Uma
Problemática
Maria Thereza Fraga Rocco
79 Temas de Teoria da Literatura
Judith Grossmann
82 Literatura Infantil: Autoritarismo
e Emancipação
Regina Zilberman e Ligia C
Magalhães
84 A Personagem Negra no Teatro
Brasileiro
Míriam Garcia Mendes
66 Na Madrugada das Formas
PoéliCBS
UNIVERSIDADE oe £ Segismundo Spina
88 Tampo* Eufóricos ç '
ESCOLA DE COMUNtCAf Aeilcr»o L'imas
etBLlOTEC 90 Guimarães Rosa: Signo e
Sentimento
<Suzi Frankl Sperber
92 Escritura e Linhas Fantasmáticas
KJO Philippe Wilíemart
93 Confissão. Poesia e Inquisição
^P Luiz Hofarno Alves
Itsies, fSenc.ii.t0 Joae 95 Do Penumbrismo ao Modernismo
Norma Seltzer Goldstein
ffcssadrcn fiara 0 96 A Ponta do Novelo
Lúcia Helena Carvalho
98 A Raca^lo Crftiça
. Afrnnfa Cara /
99 O* H««*kl*d* d* um*
tJremátiço psdrS.j da l>gua
Pntuguau
Amini Boainain Hauy
102 Paixão de Raiz
Carmen Lydià de SouzJ Dias
103 A Comédia Nacional no Teatro
de José de Alencar
Flávio Aguiar
105 Literatura em Revista
Raúl Antelo
106 Análise Sintática
Míriam Lemle
108 João Caetano e a Arte do Ator
Décio de Almeida Prado
DEDALUS - Acerv

■■■UI
110 Canudos na Literatura de Cordel
José Calasans Brandão da Silva
111 A Tipografia Imperial e Nacional
da Bahia
Renato Berbert de Castro
114 Oswald de Andrade: A-
201000051 Vanguarda Anhvpofágka
Maria Eugênia Borncntui.i
121 O Capital da Notícia
, Ciro Marcondes Filho
1 No Calor da Hora
Walnice Nogueira Gaívão
2 Guerra Sem Testemunhas
Osman Lins
5 O Dialeto Caipira na Região de
Piracicaba
Ada Natal Rodrigues
6 A Semântica Gerativa e o Artigo
Definido
Mary Aizawa Kato
8 A Tradição do Impasse
João Alexandre Barbosa
11 Sintaxe Transformacional do
Modo Verbal
Leila Barbara
12 Byron no Brasil
Onédia Célia de Carvalho Barbosa
13 Níveis de Significação no
Romance
Yara Frateschi Vieira
15 Crônica do Cinema Paulistano
Mana Rita Eiiezer Gaívão
20 Liçna Barreto e o Espaço
Romanesco
Osman Lins
22 A Tradição Sempre Nova
Roberto de Oliveira Brandão
26 O Intervalo Semântico
Carlos Vogt
32 Augusto dos Anjos: Poesia e
Prosa
Zer'.ir Campos Reis
36 Os Estados Subjetivos: Uma
Tentativa de Classificação de
seus Relatos Verbais
Amo Engeimann
37 Mitológica Rosiana
VVainice Nogueira Gaívão
41 Dependência, Cultura e
Literatura
Jose Hiidebrando Dacana:
43 Drummond: Uma Poética do
Risco
lumrg viaria Simon
45 Texto, Crítica, Escritura
LeOa Perrone-Moises
46 Benjamin & Adorno: Confrontos
Fia- ic René Kothe
47 O Narrador Ensimesmado
(O Foco Narrativo em Vergílio
Ferreira)
ar a LJC!a Dai Far^a
48 A Construção do Romance em
Guimarães Rosa
Vvencel Santos
49 O Insólito em Guimarães Rosa e
Borges
i_er .ra V Covizz;
50 Gil Vicente e Camões
Ceiso Lafer
52 Regionalismo e Modernismo
(O "Caso" Gaúcho)

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