Você está na página 1de 126

R o b ert Soko low ski

Este livro apresenta o essencial da doutrina filosófica da


fenomenologia de um modo claro, em estilo vigoroso e
com abundância de exemplos. O livro examina fenô­
menos tais como percepção, figuras, imaginação, me­
mória, linguagem e mostra como o pensamento hu­
mano nasce da experiência. Estuda ainda a identidade
pessoal estabelecida ao longo do tempo e debate a na­
tureza da filosofia. Além de fornecer uma nova inter­
pretação da teoria da verdade como correspondência,
o autor também explicita como a fenomenologia difere I N TR OD U Ç Ã O À
das formas do pensar moderno e pós-moderno.

Robert Sokolowski é professor de Filosofia da


Catholic University of America.

Edições L oyo la
visite nosso site:
w w w .loy ota .c om .b r 188

ISBN 85-í 5-02901-4


n ■í
PO

T3
'O
U
Introdução
à fenom enologia
R obert Sokolow ski

Introdução à
fenom enologia

T ra d uçã o :
A lfre d o de O live ira M oraes

Edições Loyola
Título original:
Introduction to Phenomenology
© Robert Sokolowski 2000
Cambridge University Press, Cambridge
ISBN 052166792-5 SUMÁRIO

A gradecim entos..................................................................................... 7

P reparação: Carlos Alberto Bárbaro In tro d u çã o .............................................................................................. 9


D i a g r a m a ç ã o : Miriam de Melo Francisco

R e v i s ã o : Maurício Balthazar Leal


i. O que é intencionalidade, e por que é im p o rtan te ? ......................... 17
ii. Percepção de um cubo como um paradigma de uma
experiência consciente.......................................................................... 25

ui. As três estruturas formais na fenom enologia................................... 31

IV. Uma declaração inicial do que é a fenom enologia........................... 51


v. Percepção, memória e im aginação...................................................... 75

vi. Palavras, retratos e símbolos ............................................................... 87


Edições Loyola v ii. Intenções e objetos categoriais............................................................ 99
Rua 1822 nB347 - Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP viu. A fenomenologia do si (self)................................................................. 123
Caixa Postal 42.335 - 04218-970 - São Paulo, SP ix. Tem poralidade....................................................................................... 141
¿ :(1 1 ) 6914-1922
^ :(1 1 ) 6163-4275 x. O mundo-da-vida e a intersubjetividade............................................ 157
Home page e vendas: www.loyola.com.br
xi. Razão, verdade e evidência................................................................... 167
Editorial: loyola@loyola.com.br
Vendas: vendas@loyola.com.br xii. Intuição eidètica..................................................................................... 189
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra xiii. A fenomenologia circunscrita............................................................... 197
pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma
elou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo xiv. A fenomenologia no contexto histórico presente ............................ 211
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema
ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. a p ê n d ic e : A fenomenologia nos últim os cem anos.............................. 223
ISBN: 85-15-02901-4 Bibliografia seleta.................................................................................... 239
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
Indice remissivo....................................................................................... 243
AGRADECIMENTOS

Tenho um a dívida com o falecido Gian-Carlo Rota, por sugerir o tópico


deste livro para mim, e por seu incentivo e sua ajuda à medida que o trabalho
avançava. Na introdução descrevo como o conceito do livro surgiu de um a
conversa entre nós. O fato de que eu não possa compartilhar o trabalho com­
pleto com ele é só um a das muitas dores causadas por seu recente e súbito
falecimento.
Muitos amigos e colegas comentaram os esboços iniciais do manuscri­
to, e em diversos lugares eu usei não apenas suas idéias, mas também suas
formulações. Sou muito grato a John Brough, Richard Cobb-Stevens, John
Drummond, James Hart, Richard Hassing, Piet Hut, John Smolko, Robert
Tragesser e Kevin White. John McCarthy foi particularmente generoso em
suas observações. Usei um a versão preliminar deste trabalho como a base de
um curso na The Catholic University o f America, e agradeço pelo retorno e
pelas sugestões dos estudantes que dele participaram. Algumas frases de Amy
Singer foram especialmente úteis. Finalmente, meu m uito obrigado a Fran-
cis Slade por pensamentos e formulações que usei em todas as partes do
livro, especialmente por suas idéias sobre modernidade, das quais me vali
para o material do capítulo final.
Este livro é dedicado ao irmão Owen J. Sadlier, O. S. F., cuja generosida­
de e cujo discernimento filosófico têm sido tão significativos para aqueles
que são afortunados por ser seus amigos.
INTRODUÇÃO

Origem e propósito do livro

O projeto de escrever este livro começou num a conversa que tive com
Gian-Carlo Rota na primavera de 1996. Na ocasião ele lecionava como profes­
sor visitante de Matemática e Filosofia na The Catholic University o f America.
Rota chamava freqüentemente a atenção para a diferença entre mate­
máticos e filósofos. Matemáticos, dizia ele, tendem a absorver os escritos de
seus predecessores diretamente em seus trabalhos. Eles não fazem comentá­
rios sobre os escritos de matemáticos anteriores, mesmo quando muito in­
fluenciados por eles. Simplesmente fazem uso do material que encontraram
em autores que leram. Quando avanços são feitos na matemática, pensado­
res posteriores condensam o que foi encontrado e seguem adiante. Poucos
matemáticos estudam trabalhos de séculos passados; comparados com a ma­
temática contemporânea, tais escritos antigos parecem a eles quase como
que trabalhos de crianças.
Em filosofia, por contraste, trabalhos clássicos freqüentemente são mais
valorizados como objetos de exegese que como recursos a ser explorados.
Filósofos, observava Rota, tendem a não perguntar: “Para onde iremos da­
qui?”. Ao contrário, eles nos informam sobre as doutrinas dos maiores pen­
sadores. São mais propensos a com entar os trabalhos antigos do que a
parafraseá-los. Rota reconhecia o valor dos comentários, mas pensava que os
filósofos poderiam fazer mais. Além de oferecer exposição, eles deveriam
abreviar escritos antigos e abordar os assuntos diretamente, falando a partir
de si mesmos e incorporando em seus próprios trabalhos o que seus prede-
cessores fizeram. Os filósofos deveriam extrair os conhecimentos tão bem Haverá um a cronologia da fenomenologia como apêndice deste livro.
quanto os anotam. No momento, recordemos simplesmente que Edm und Husserl (1859-1938)
Foi contra esse pano de fundo que Rota me disse, após um a de nossas foi o fundador da fenomenologia, e que seu trabalho Investigações lógicas pode,
aulas, enquanto tomávamos um café na cafetería da Escola de Direito da com justiça, ser considerado o ponto inicial do movimento. O livro apareceu
Universidade de Columbus: “Você deveria escrever um a introdução à feno­ em duas partes, em 1900 e 1901, assim a fenomenologia começou com o
menología. Apenas escreva-a. Não diga o que Husserl ou Heidegger pensa­ amanhecer do novo século. Portanto, do agora em que nos encontramos
ram, apenas diga às pessoas o que é a fenomenología. Sem título pomposo; temos mais de um a centena de anos da história do movimento. Martin Hei­
chame-a de um a introdução à fenomenología”. degger (1889-1976), discípulo, colega e mais tarde rival de Husserl, foi outra
Isso me pareceu um conselho m uito bom. Há muitos livros e artigos das grandes figuras na fenomenologia alemã. O movimento também flores­
que comentam Husserl; por que não tentar imitar alguma introdução que ceu na França, onde foi representado por autores tais como Emmanuel Lévi-
ele mesmo teria escrito? Pareceu a coisa certa a fazer, porque a fenomenología nas (1906-1995), Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1907-
pode continuar a oferecer um a importante contribuição para a filosofia atual. 1960) e Paul Ricoeur (1913-). Houve significativos desenvolvimentos na Rússia
Seu capital intelectual está longe de ter sido esgotado, e sua energia filosófi­ pré-revolucionária e na Bélgica, na Espanha, na Itália, na Polônia, na Ingla­
ca permanece largamente inexplorada. terra e nos Estados Unidos. A fenomenologia influenciou muitos outros mo­
A fenomenología é o estudo da experiência hum ana e dos modos como vimentos filosóficos e culturais, tais como: hermenêutica, estruturalismo,
as coisas se apresentam elas mesmas para nós em e por meio dessa experiên­ formalismo literário e desconstrutivismo. Durante todo o século XX foi o
cia. Tenta restabelecer o sentido da filosofia encontrado em Platão. É, além maior componente daquilo que se denom inou “filosofia continental”, em
disso, não só um a revivificação de antiquário, mas algo que confronta as oposição à tradição “analítica” que tipificou a filosofia na Inglaterra e nos
questões levantadas pelo pensamento moderno. Vai além dos antigos e m o­ Estados Unidos.
dernos, e se esforça por reativar a vida filosófica em nossas circunstâncias
presentes. Este livro está escrito, sobretudo, não apenas para informar aos
leitores sobre um movimento filosófico específico, mas para oferecer a pos­ A fenomenologia e a questão dos aparecimentos
sibilidade do pensamento filosófico em um a época em que tal pensar é seria­
mente contestado ou largamente ignorado. A fenomenologia é um movimento filosófico significativo porque lida
Por ser este livro uma introdução à fenomenología, utilizou-se nele o m uito bem com o problema dos aparecimentos. A questão dos aparecimen­
vocabulário filosófico desenvolvido por aquela tradição. Empregaram-se tos tem sido parte dos problemas humanos desde a origem da filosofia. Os
palavras como “intencionalidade”, “evidência”, “constituição”, “intuição ca- sofistas manipularam os aparecimentos através da magia das palavras e Pla­
tegorial”, o “mundo-da-vida” e “intuição eidética”. Contudo, não faço co­ tão respondeu ao que eles disseram. Desde então, os aparecimentos têm sido
mentários sobre esses termos como estranhos a nosso próprio pensamento. multiplicados e aumentados enormemente. Nós os geramos não só por pala­
Apenas os utilizo. Julgo que nomeiam fenômenos importantes e os quero vras faladas ou escritas de um a pessoa a outra, mas por microfones, telefones,
tornar acessíveis aos leitores deste livro. Não apresento, neste livro, o modo filmes e televisão, bem como por computadores e pela Internet, pela propa­
como esses e outros termos se originaram nos escritos de Husserl e nos tra­ ganda e pela publicidade. Os modos de apresentação e representação prolife­
balhos de Heidegger, Merleau-Ponty e outros fenomenólogos; uso as pala­ ram e questões fascinantes afloram: Como diferenciar um a mensagem de e-
vras diretamente porque elas ainda têm vida nelas. É legítimo, por exemplo, mail, de um a chamada telefônica e de uma carta? Quem se dirige a nós quando
falar sobre evidência enquanto tal, e não apenas sobre o que Husserl disse lémos um a página da web? De que modo são modificados os falantes, os ou­
sobre evidência. Esses termos não necessitam ser explicados somente pela vintes e a conversação pela maneira como nos comunicamos agora?
demonstração de como outras pessoas deles se utilizaram. Nós não temos de Um dos perigos com o qual nos deparamos é que com a expansão tec­
pregá-los na parede para poder tirar proveito deles. nológica de imagens e palavras tudo parece se reduzir a meras aparências.
INTRO DU ÇÃO

nologia proporciona, para dar ao leitor um a amostra de seu estilo de pensa­


Nós podemos formular este problema em termos de três temas: de partes e
mento. O capítulo III examina três principais temas da fenomenología: par­
todos, identidade em multiplicidades e presença e ausência: parece que esta­
tes e todos, identidade em multiplicidades e presença e ausência. Estas três
mos agora inundados por fragmentos sem quaisquer totalidades, por m ul­
estruturas formais pervadem a fenomenología, e se estamos alertados de sua
tiplicidades carentes de identidades, e por múltiplas ausências sem nenhu­
presença, o ponto de muitas questões pode ser mais facilmente captado. Po­
m a presença duradoura real. Nós temos bricolage e nada mais, e pensamos
deríamos também reivindicar que enquanto os temas de partes e todos e
que podemos até inventar a nós mesmos ao acaso juntando convenientes e
identidade em multiplicidades (um em muitos) são encontrados em quase
agradáveis, mas passageiras, identidades a partir dos bits e pedaços que en­
todas as escolas filosóficas, o estudo explícito e sustentado de presença e
contramos ao nosso redor. Nós recolhemos fragmentos para nos susten­
ausência é original na fenomenología.
tar contra nossa ruína.
Neste ponto do livro, após havermos apresentado um núm ero de aná­
Em contraste com esta compreensão pós-moderna de aparência, a feno­
lises fenomenológicas, torna-se possível voltar atrás e explicar o que é a
menología, em sua forma clássica, insiste em que as partes são somente com­
fenomenología como um a filosofia e m ostrar como sua forma de pensar
preendidas contra o fundo dos todos apropriados, que multiplicidades de
difere da experiência pré-filosófica. Esta definição inicial de fenomenolo­
aparências aportam identidades, e que ausências não fazem sentido exceto
gía é dada no capítulo IV, no qual “a atitude fenomenológica” é distinguida
como jogadas contra as presenças que podem ser alcançadas por meio delas.
da “atitude natural”.
A fenomenología insiste que a identidade e a inteligibilidade estão disponí­
Os próximos três capítulos desenvolvem investigações fenomenológi­
veis nas coisas, e que nós mesmos somos definidos como aqueles para os
cas concretas em diferentes áreas da experiência humana. O capítulo V exa­
quais estas identidades e inteligibilidades são dadas. Nós podemos tornar
mina a percepção e suas duas variantes, memória e imaginação. Examina o
evidente o modo como as coisas são; quando fazemos assim descobrimos
que chamaríamos de transformação “interna” de nossas percepções; além de
objetos, mas também descobrimos a nós mesmos, precisamente como dativos
ver e ouvir coisas, nós também nos recordamos, antecipamos e fantasiamos,
de revelação, como aqueles para os quais as coisas aparecem. Não somente
e assim fazendo vivemos um a vida consciente particular, e até secreta. O ca­
podemos pensar as coisas dadas para nós na experiência, mas podemos com­
preender também a nós mesmos enquanto as pensamos. A fenomenología é pítulo VI passa a um a transformação mais pública de nossas percepções para
palavras, imagens e símbolos. Aqui estamos conscientes das coisas externas
precisamente este tipo de compreensão: a fenomenología é a autodescoberta da
que não são meramente percebidas, mas interpretadas como imagens ou
razão na presença de objetos inteligíveis. As análises neste livro são apresentadas
palavras ou outros tipos de representações. Finalmente, o capítulo VII intro­
para o leitor como um a clarificação do que significa para nós deixar as coisas
duz o tema do pensamento categorial, no qual não apenas percebemos coi­
aparecerem e ser dativos para seu aparecimento. Muitos filósofos reivindica­
sas, mas as enunciamos, manifestando não apenas objetos simples, mas ar­
ram que nós podemos aprender a viver sem “verdade” e “racionalidade”, mas
ranjos e estados de coisas. No pensamento categorial nos movemos da expe­
este livro tenta mostrar que podemos e devemos exercitar a responsabilidade
e a veracidade se almejamos ser humanos. riência de objetos simples para a apresentação de objetos inteligíveis. Este
capítulo também contém um tratam ento im portante de significados, senti­
dos e proposições. Esforça-se para responder por “conceitos” e “pensamen­
tos” como sendo mais públicos do que eles freqüentemente são tomados.
Esboço do livro
Tenta mostrar que os sentidos e proposições não são entidades psicológicas,
mentais ou conceituais. Compreender proposições e sentidos no modo cor­
Este Introdução à fenomenología geralmente usa a terminologia formula­
reto é de um a importância crucial na discussão da natureza da verdade, espe­
da por Husserl, que se tornou padrão no movimento. O capítulo I discute a
cialmente no clima filosófico gerado pela filosofia moderna. Do capítulo V
intencionalidade, o tema central na fenomenología, e explica por que é um
ao VII, então, oferecemos um a descrição fenomenológica de três domínios
im portante tópico em nossa filosofia e em nossa situação cultural atual. O
da experiência: O campo “interno” da memória e imaginação, o campo “exter-
capítulo II desenvolve um exemplo simples do tipo de análise que a fenome-
no” de objetos percebidos, palavras, imagens e símbolos, e o campo “intelec­ Finalmente, no capítulo XIV, tentamos descrever a fenomenología por
tual” de objetos categoriais. contraste com a modernidade e a pós-modernidade, e acrescentamos uma
O capítulo VIII examina o si ou o ego como a identidade estabelecida breve nota sobre como pode ser distinta da filosofia tomista. Definimos a
dentro de todas as intencionalidades previamente descritas. O si é descrito fenomenología localizando-a na nossa situação histórica presente. A filoso­
como o agente responsável pela verdade. Ele é identificado dentro das me­ fia moderna tem dois elementos principais, filosofia política e epistemolo­
mórias e antecipações bem como na experiência intersubjetiva, e executa os gía, e a fenomenología está explicitamente endereçada somente ao último.
atos cognitivos pelos quais os objetos intelectuais mais elevados, tais como Contudo, porque concebe a razão hum ana como orientada para a evidência
estados de coisas e grupos, são apresentados. O si é quem tom a a responsa­ e para a verdade, a fenomenología pode também se reportar, de um modo
bilidade pelos reclamos que faz. A questão do si direciona logicamente, no indireto, às questões modernas da teoria política. Se os seres humanos estão
capítulo IX, ao tópico do tempo e ao tempo interno da consciência, o qual especificados pela habilidade de poderem ser verdadeiros, então a política e
subjaz à identidade do si. A temporalidade é a condição para percepções, a cidadania tom am um sentido distinto.
memórias, antecipações e para o si que viva nelas. Finalmente, o capítulo X Considerando a razão como teleologicamente orientada em direção à
examina o m undo habitado pelo si, o “mundo-da-vida”, dentro do qual ex- verdade, a fenomenología se assemelha à filosofia tomista, a qual representa
perienciamos imediatamente as coisas ã nossa volta. Este m undo é a funda­ a compreensão pré~moderna do ser e do espírito, mas difere do tomismo por
ção sobre a qual estão baseadas as ciências naturais modernas. As ciências não abordar a filosofia a partir da revelação bíblica. Ambos, a fenomenología
não provêem um a alternativa para o m undo no qual vivemos, mas surgem e e o tomismo, são alternativas para o projeto moderno, mas em modos dife­
devem ser integradas dentro dele. Este capítulo também discute, muito bre­ rentes, e contrastando um a com o outro adicionamos clareza à fenomenología
como um a forma de filosofia.
vemente, o tema da intersubjetividade.
Este livro introduz o leitor à terminologia e às idéias de um dos princi­
O capítulo XI volta-se para aquilo que poderíamos chamar de fenome­
pais desenvolvimentos em filosofia no século XX. Este desenvolvimento, a
nología da razão. Examina não só as várias intencionalidades que exercemos,
fenomenología, não pertence somente ao passado. Ele pode ajudar-nos a lem­
mas especificamente aquela que se dirige para a verdade das coisas, aquilo a
brar a nós mesmos, no começo de um novo século e um novo milênio, de
que se poderia chamar “evidências”. É especialmente neste capítulo que vere­
coisas das quais nunca podemos nos esquecer inteiramente. Este livro come­
mos como a fenomenología considera a mente hum ana e a razão hum ana
çou a partir de um a conversa entre a matemática e a filosofia — possa isto
como constituídas para a verdade. O capítulo XII discute a intuição eidética,
ajudar-nos a cultivar a vida da razão expressa nessas duas aventuras humanas.
o tipo de intencionalidade que descobre características essenciais das coisas,
características sem as quais as coisas não poderiam ser. A evidência eidética
alcança não apenas a verdade factual, mas a verdade essencial. Este capítulo
é um desenvolvimento adicional da fenomenología da razão.
Os dois capítulos finais do livro retornam à questão do que é a fenome­
nología. Inicialmente descrita no capítulo IV, pode-se agora dar um a descri­
ção mais completa dela. O capítulo XIII destaca a natureza do pensamento
filosófico pelo estabelecimento da distinção entre a reflexão fenomenológi-
ca e aquilo a que chamamos reflexão proposicional (um dos temas do capí­
tulo VII). Aqui demonstro que a filosofía ou a fenomenología não é apenas
um esclarecimento do sentido, mas algo que vai mais fundo. As distinções
estudadas neste capítulo destacam mais claramente ambos: que é filosofia e
que são conceitos, sentidos e proposições.
O QUE É INTENCIONALIDADE,
E POR QUE É IMPORTANTE?

O termo mais proximamente associado com fenomenología é “intencio­


nalidade”. A doutrina nuclear em fenomenología é o ensinamento de que
cada ato de consciência que nós realizamos, cada experiência que nós temos,
é intencional: é essencialmente “consciência de” ou um a “experiência de” algo
ou de outrem. Toda nossa consciência está direcionada a objetos. Se nós ve­
mos, vemos algum objeto visual, tal como um a árvore ou um lago; se nós
imaginamos, nossa imaginação apresenta-nos um objeto imaginário, tal como
um carro que visualizamos descendo a estrada; se nós estamos envolvidos
em um a recordação, recordamos um objeto passado; se nós tomamos parte
num julgamento, projetamos um a situação ou um fato. Cada ato de cons­
ciência, cada experiência é correlata com um objeto. Cada intenção tem seu
objeto intencionado.
Podemos notar que este sentido de “intencionar” ou “intenção” não pode
ser confundido com “intenção” como o propósito que temos em mente quan­
do agimos (“ele comprou madeira com a intenção de fazer um abrigo”; “Ela
tinha a intenção de terminar a faculdade de direito um ano mais tarde”). O
conceito fenomenológico de intencionalidade aplica-se primariamente à teo­
ria do conhecimento, não à teoria da ação humana. O uso fenomenológico da
palavra é um pouco desajeitado porque vai contra o uso comum, o qual tende
a usar “intenção” no sentido prático; o uso fenomenológico quase sempre
colocará em discussão o sentido da intenção prática como um a implicação.
Contudo, “intencionalidade” e seus cognatos se tornaram termos técnicos em
fenomenología, e não há meio de evitá-los num debate dessa tradição filosó-
fica. Nós temos que fazer o ajuste e entender a palavra para significar princi­ cognitivo deve acontecer “dentro da cabeça”, e que tudo o que seria possível
palmente intenções mentais ou cognitivas, e não práticas. Na fenomenología, contatar diretamente são nossos próprios estados cerebrais. Uma vez ouvi­
“intenção” significa a relação de consciência que nós temos com um objeto. mos um famoso cientista especialista em cérebro dizer num a aula, quase em
pranto, que após tantos anos de estudo do cérebro ele ainda não poderia
explicar como “aquele órgão abacate-colorido dentro de nossos crânios” podia
O predicamento egocêntrico chegar além de si mesmo e alcançar o mundo. Poderíamos nos aventurar a
dizer que quase todos os que freqüentaram o colégio e tiveram aulas de fisio­
A doutrina da intencionalidade, então, estatui que cada ato de consci­ logia, neurologia ou psicologia teriam a mesma dificuldade.
ência está direcionado de algum modo a um objeto de algum tipo. A cons­ Esses entendimentos filosófico e científico da consciência tornaram-se
ciência é essencialmente consciência “de” algo ou de outrem. Agora, quando bastante difundidos em nossa cultura, e o predicamento egocêntrico força-
somos apresentados a esse ensinamento, e quando dizemos que essa doutri­ nos para dentro deles e causa-nos grande desconforto. Sabemos instintiva­
na é o núcleo da fenomenología, podemos bem reagir com um sentimento mente que não estamos presos em nossa própria subjetividade, estamos cer­
de desapontamento. O que é tão importante nessa idéia? Por que a fenomeno­ tos de que vamos além de nossos estados cerebrais e mentais internos, mas
logía faria tal rebuliço com a intencionalidade? Não é completamente óbvio não sabemos como justificar essa convicção. Não sabemos como mostrar
a qualquer um que a consciência é consciência de algo, que a experiência é que nosso contato com o “m undo real” não é um a ilusão, não é um a mera
experiência de um objeto de alguma classificação? Necessitam tais trivialida­ projeção subjetiva. A maioria de nós não tem idéia de como conseguimos
des ser estabelecidas? sair de nós mesmos, e provavelmente tratamos esse assunto simplesmente
Elas precisam ser afirmadas, porque na filosofia das três ou quatro úl­ ignorando-o e esperando que ninguém nos pergunte sobre ele. Quando tenta­
timas centenas de anos passados a consciência e a experiência humanas fo­ mos pensar sobre a consciência humana, começamos com a premissa de que
ram compreendidas de um modo muito diferente. Nas tradições cartesiana, estamos inteiramente “dentro”, e ficamos enormemente surpresos de como
hobbesiana e lockiana, que dominaram nossa cultura, nos foi ensinado que podemos sempre alcançar o “fora”.
quando estamos conscientes estamos principalmente conscientes de nós Se estamos privados da intencionalidade, se não temos um m undo em
próprios ou de nossas próprias idéias. A consciência é tom ada por ser como comum, então não entramos na vida da razão, da evidência e da verdade.
um a ilusão ou um gabinete fechado; a mente vem em um a caixa. Impressões Cada um de nós volta-se para seu próprio m undo privado, e na ordem prá­
e conceitos ocorrem nesse espaço fechado, nesse círculo de idéias e experiên­ tica fazemos nossas próprias coisas: a verdade não nos faz nenhum a deman­
cias, e nossa consciência é direcionada a eles, não direcionada diretamente às da. Novamente, sabemos que esse relativismo não pode ser a história final.
coisas “fora”. Nós tentamos alcançar o “fora” fazendo inferências: podemos Nós argüimos com outrem sobre o que poderia ser feito e sobre o que são os
raciocinar que nossas idéias devem ter sido causadas por algo fora de nós, e fatos, mas filosófica e culturalmente encontramos dificuldade para ratificar
podemos construir hipóteses ou modelos do que e como as coisas devem ser, nossa aceitação ingênua de um m undo comum e de nossa habilidade para
mas não temos nenhum contato direto com elas. Alcançamos as coisas so­ descobrir e comunicar o que ele é. A negação da intencionalidade tem como
mente raciocinando a partir de nossas impressões mentais, não porque as sua correlata a negação da orientação da mente para a verdade.
temos presentes para nós. Nossa consciência, primeiramente, e acima de tudo, Uma expressão vívida do predicamento egocêntrico pode ser encontra­
não é “de” qualquer coisa mesmo. Ao contrário, estamos tratando do que da no romance Murphy, de Samuel Beckett1. Passado um terço do livro, no
tem sido chamado um “predicamento egocêntrico”; tudo de que podemos capítulo 6, Beckett interrompe sua narrativa para providenciar “um a justifi­
estar realmente certos de início é da existência de nossa própria consciência cação para a expressão: ‘a mente de M urphy’”. Ele diz que não tentará descre­
e dos estados dessa consciência. ver “esse aparato como ele realmente era”, mas só “o que sentia e imaginava
Essa compreensão da consciência hum ana é reforçada pelo que sabe­
mos do cérebro e do sistema nervoso. Parece inquestionável que tudo que é 1. New York, Grove Weidenfeld, 1957. Reproduzido com permissão da editora.
ser em si mesmo”. A imagem que ele apresenta é aquela que julgamos ser co­ consciência é “consciência de” objetos; ao contrário, essa declaração vai con­
m um também a todos: “a mente de Murphy é imaginada em si mesma como tra muitas crenças comuns. Uma das grandes contribuições da fenomenolo­
um a grande esfera oca, hermeticamente fechada ao universo exterior”. Aqui a gía foi ter rompido com o predicamento egocêntrico, ter dado um xeque-
mente, com seu “m undo intramental”, lá o fora, o “mundo extramental”, um mate na doutrina cartesiana. A fenomenología m ostra que a mente é uma
isolado do outro. Entretanto, a mente não é empobrecida por ser tão confina­ coisa pública, que age e manifesta a si mesma publicamente, não apenas
da; mais exatamente, tudo no universo exterior pode ser representado no inte­ dentro de seus próprios limites. Tudo é externo. As noções mesmas de um
rior, e as representações são, de acordo com Beckett, cada um a “virtual, ou real, “m undo intramental” e um “m undo extramental” são incoerentes; elas são
ou virtual nascendo do real, ou real caindo no virtual”. Essas partes da mente exemplos do que Ezra Pound chamou de “coágulos-de-idéia” (idea-clots). A
são diferenciadas umas das outras: “a mente sente sua parte real acima e bri­ mente e o m undo são correlatos entre si. Coisas aparecem para nós, coisas
lhante, sua parte virtual abaixo e desvanecendo na escuridão”. verdadeiramente descobertas, e nós, de nossa parte, revelamos, para nós mes­
A mente não está somente colocada acima de e contra o universo ou o mos e para os outros, o modo como as coisas são. Dada a configuração cul­
m undo real; está também colocada acima de e contra o corpo que é outra tural na qual a fenomenología nasceu, e na qual continuamos a viver, um
parte de Murphy: “Assim, M urphy percebe-se dividido em dois, um corpo e foco na intencionalidade não é desprovido de grande valor filosófico. Discu­
um a mente”. De um a maneira ou de outra, o corpo e a mente interagem: tindo a intencionalidade, a fenomenología ajuda-nos a reivindicar um senti­
“eles têm intercurso, aparentemente, caso contrário ele não teria sabido que do público do pensamento, do raciocínio e da percepção. Ajuda-nos a reas­
eles tinham algo em comum. Mas ele sente sua mente ser um a substância- sumir nossa condição hum ana como agentes da verdade.
fechada e não compreende por meio de que canal o intercurso era efetuado Além de chamar nossa atenção para a intencionalidade da consciência,
nem como as duas experiências vieram a se sobrepor”. O isolamento da mente a fenomenología também descobre e descreve várias estruturas diferentes na
do corpo vincula um isolamento da mente do m undo: “Ele estava dividido, intencionalidade. Quando a mente é tomada no modo cartesiano ou lockiano,
um a parte dele nunca deixa essa câmera mental, que imagina a si própria
como um a esfera fechada com seu círculo de idéias, o termo “consciência” é
como um a esfera cheia de luz tendendo à escuridão, porque não há saída”.
usualmente considerado ser simplesmente unívoco. Não h á estruturas dife­
Como o corpo poderia influenciar a mente, ou a mente o corpo, permanecia
rentes dentro da consciência; há apenas consciência, pura e simples. N ota­
um mistério absoluto para Murphy: “O desenvolvimento do que viu como
mos quaisquer impressões nascidas em nós, e então as arranjamos dentro de
conspiração entre esses estranhos absolutos permanecia para Murphy tão
juízos ou proposições que tentam nomear o que está “lá fora”. Mas para a
ininteligível como a telecinese ou o Jarro de Leyden, e de pouco interesse”.
fenomenología a intencionalidade é altamente diferenciada. Há tipos dife­
O predicamento cartesiano que Beckett descreve, com a mente tomada
rentes de intencionalidades, correlacionados com tipos diferentes de obje­
como essa grande esfera oca, cheia-de-luz, mas matizando-se rumo à escuri­
tos. Por exemplo, nós executamos intencionalidades perceptuais quando
dão, fechada para ambos, o corpo e o mundo, é a situação desafortunada na
vemos um objeto material ordinário, mas devemos intencionar pictoríalmente
qual a filosofia encontra a si mesma em nosso tempo. É a situação cultural,
quando vemos um a fotografia ou um a pintura. Devemos m udar nossa in­
a autocompreensão humana, na qual a filosofia deve começar. Muitos de
nós não sabemos como evitar que a nossa própria compreensão da mente tencionalidade; tom ar algo como um a fotografia é diferente de tom ar algo
seja do modo como o Murphy de Beckett compreende a dele. Esse dilema como um simples objeto. Fotografias são correlatas com intencionalidade
epistemológico é o alvo da doutrina da intencionalidade. pictorial, objetos perceptuais são correlatos com intencionalidade perceptual.
Ainda outro tipo de intencionalidade está agindo quando tomamos algo por
ser um a palavra, outro quando recordamos algo, e outros novamente quan­
A publicidade da mente do fazemos juízos ou classificamos coisas em grupos. Esses e muitos outros
tipos de intencionalidade necessitam ser descritos e diferenciados uns dos
Não é de todo ocioso, contudo, trazer a intencionalidade ao primeiro outros. Além disso, as formas de intencionalidade podem ser entrelaçadas:
plano e fazer dela o centro da reflexão filosófica. Não é trivial dizer que a ver algo como um a fotografía envolve, como um fundamento, que também
a tenhamos como uma coisa percebida. A consciencia pictorial está assenta­ A fenomenologia reconhece a realidade e a verdade dos fenômenos, as
da sobre a perceptual, como a fotografía que vemos assentada sobre um te­ coisas que aparecem. Não é o caso, como a tradição cartesiana nos teria feito
cido ou um pedaço de papel, que poderia também ser visto simplesmente crer, que “ser um retrato” ou “ser um objeto percebido" ou “ser um símbolo”
como um a coisa colorida. está só na mente. Eles são modos nos quais as coisas podem ser. O modo
Outras intencionalidades ainda podem ser distinguidas, tais como os como as coisas aparecem é parte do ser das coisas; as coisas aparecem como
tipos que ocorrem quando pensamos sobre o passado. Que classe de intencio­ elas são, e elas são como elas aparecem. As coisas não apenas existem; elas
nalidade é exercida quando, digamos, arqueólogos encontram potes, cinzas também manifestam a si mesmas como o que elas são. Os animais têm um
e trapos de roupas e começam a falar sobre pessoas que viveram num dado modo de se manifestar diferente do das plantas, porque animais são diferen­
lugar sete séculos atrás? Como esses objetos, esses potes e essas cinzas apre­ tes de plantas em seu ser. Os retratos têm um modo de se manifestar dife­
sentam para nós os seres humanos? Como devemos “tomá-los”, de forma rente do dos objetos lembrados, porque seu modo de ser é diferente. Um
que eles se enquadrarão naquele modo? Que classes de intenções são corre­ retrato está lá fora na tela ou no painel de madeira; um saudar está nos bra­
latas com descobrir e interpretar algo como um fóssil? Que classes de inten­ ços se agitando lá fora entre a pessoa que saúda e a pessoa saudada. Um fato
ções operam quando falamos sobre prótons, nêutrons e quarks? Elas não são é onde os ingredientes do fato estão localizados: o fato de que a grama está
do tipo que operam quando vemos retratos ou bandeiras, nem do tipo de molhada existe na grama molhada, não em m inha mente quando digo as
quando vemos algo como um a planta ou um animal; alguns dos dilemas palavras. M inha mente em ação é o apresentar, para nós mesmos e para ou­
associados à física de partículas surgem porque nós assumimos que inten­ tros, da grama como estando molhada. Q uando fazemos juízos nós enuncia­
cionamos entidades subatômicas da mesma forma que intencionamos bolas mos a apresentação de partes do mundo; nós não organizamos simplesmen­
de bilhar. Separar e diferenciar todas essas intencionalidades, como também te idéias ou conceitos em nossas mentes.
os tipos específicos de objetos correlatos com elas, é o que é feito pelo que a Alguém poderia objetar: “O que dizer de alucinações e enganos? As ve­
filosofia chamou fenomenología. Descrições como estas ajudam-nos a en­ zes as coisas não são como elas parecem. Podemos achar que vemos um ho­
tender o conhecimento hum ano em todas as suas formas, e também nos mem, mas damos a volta e é só um arbusto; podemos achar que vemos um
ajudam a entender os muitos modos em que nós podemos estar relaciona­ punhal, mas nada está lá. Obviamente, o homem e o punhal estão apenas em
dos ao m undo em que vivemos. nossa mente; não é isto que mostra que tudo está na mente?” De modo al­
O term o “fenom enología” é u m a com binação das palavras gregas gum; o ponto é simplesmente que aquelas coisas podem parecer com outras
phainomenon e logos. Significa a atividade de dar conta, fornecendo um logos, coisas, e às vezes pode parecer que estamos percebendo quando realmente
de vários fenômenos, dos vários modos em que as coisas podem aparecer. não estamos. Uma noite, alguns anos atrás, no inverno, eu dirigia em direção
Por fenômenos (phenomena) nós queremos dizer, por exemplo, retratos em à minha garagem e vi uns poucos “pedaços de vidro” na calçada. Julguei que
vez de simples objetos, eventos lembrados em vez de antecipados, objetos alguém deveria ter quebrado um a garrafa lá. Estacionei meu carro perto na
imaginados em vez de percebidos, objetos matemáticos como triângulos e estrada, pretendendo voltar na m anhã seguinte para limpar a calçada. Q uan­
formas em vez de seres vivos, palavras em vez de fósseis, outras pessoas em do retornei no dia seguinte, achei só algumas poças da água e pedaços peque­
vez de animais não-hum anos, realidade política em vez da econômica. To­ nos de gelo; o que eu havia visto como vidro era de fato só gelo. Nessa expe­
dos esses fenômenos podem ser explorados quando percebemos que aque­ riência, m inha visão inicial e m inha correção posterior não foram elaboradas
la consciência é consciência “de” algo, que não está bloqueada dentro de dentro do gabinete de m inha mente; não era o caso de que meramente em­
seu próprio gabinete. Em contraste com a prisão espasmódica do cartesia­ baralhei minhas impressões e conceitos, ou que compus um a nova hipótese
nismo, do hobbesianismo e da filosofia do conhecimento lockiana, a feno­ para explicar as idéias que tive. Ao contrário, eu me relacionava ao mundo
menología liberta. Ela nos leva para fora e restaura o m undo que estava em modos diferentes, e essas relações eram baseadas no fato de que, sob al­
perdido pelas filosofias que nos aprisionavam dentro de nosso predicamen­ gumas circunstâncias, gelo pode parecer com vidro. Tudo, inclusive o “vi­
to egocêntrico. dro” e o gelo, é público. Os enganos são algo público, e assim também o são
o encobrimento e a camuflagem; todos esses são tipos de fenómenos nos
quais um a coisa é tom ada por outra. Enganos, encobrimento e camuflagem
são reais em seu próprio modo; eles são possibilidades do ser, e eles. pedem
sua própria análise. Até alucinações têm um tanto de realidade nelas mes­
mas. O que ocorre quando acontecem é que nós pensamos que estamos per­
cebendo, quando realmente estamos imaginando, e essa desordem pode to ­
mar lugar apenas como parasita em percepções e imaginações reais. Para que
possamos ser capazes de alucinar, devemos ter entrado no jogo de intencionar PERCEPÇÃO DE UM CUBO COMO UM
ou mirar coisas. Nós não poderíamos alucinar se não estivéssemos cientes da
PARADIGMA DE UMA EXPERIÊNCIA CONSCIENTE
diferença entre percebermos e sonharmos.
O que a fenomenología faz por meio de sua doutrina da intencionalida­
de da consciência é superar o desvio cartesiano e lockiano contra a publici­
dade da mente, que também é um desvio contra a realidade da manifestação
das coisas. Para a fenomenología, não existe nenhum a “mera” aparência, e
nada é “só” um aparecimento. Os aparecimentos são reais; eles pertencem ao
ser. As coisas aparecem. A fenomenología nos permite reconhecer e restaurar Usaremos um exemplo simples para ilustrar o tipo de análise descritiva
o m undo que pareceu ter sido perdido quando estávamos bloqueados em de consciência que a fenomenología nos oferece. Este exemplo nos dará um a
nosso próprio m undo interno por confusões filosóficas. As coisas que ti­ idéia do tipo de explanação filosófica que a fenomenología proporciona.
nham sido declaradas ser meramente psicológicas são agora declaradas on­ Servirá como um modelo para análises mais complicadas que empreendere­
tológicas, parte do ser das coisas. Retratos, palavras, símbolos, objetos vistos, mos mais tarde.
estados de coisas, outras mentes, leis e convenções sociais são todos reconhe­
cidos como verdadeiramente aí, como compartilhando em ser e como capa­
zes de aparecer de acordo com seus próprios modos de ser. Lados, aspectos e perfis
Mas a fenomenología faz mais do que restaurar o que estava perdido.
Aquela parte de seu trabalho é um pouco negativa e contenciosa, dependente Considere o m odo pelo qual percebemos um objeto material, tal como
de um erro para seu próprio valor. Em acréscimo a esse trabalho de refuta­ um cubo. Vemos o cubo desde um ângulo, desde um a perspectiva. Não po­
ção, a fenomenología oferece o prazer de filosofar para aqueles que o dese­ demos ver o cubo de todos os lados de um a vez. É essencial para a experiên­
jam apreciar. Há m uito a pensar sobre o modo como as coisas se manifestam cia de um cubo que a percepção seja parcial, com apenas um a parte do ob­
a si mesmas, e em nossa habilidade de sermos verdadeiros, nossa habilidade jeto sendo diretamente dada a cada momento. Contudo, não é o caso de que
de deixar as coisas aparecerem. As presentificações e ausências estão perfei­ somente experienciamos os lados que são visíveis desde nosso ponto de vis­
tamente entrelaçadas, e a fenomenología nos ajuda a pensar sobre elas. Ela ta presente. Como vemos aqueles lados, também intencionamos, co-inten-
não apenas remove impedimentos céticos; também dispõe a possibilidade de cionamos, os lados que estão escondidos. Vemos mais do que o olho alcan­
diferenças de compreensão, identidades e formas como os filósofos classica­ ça. Os lados presentemente visíveis estão envolvidos por um halo de lados
mente as entenderam. Ela é contemplativa e teórica. Ela valida a vida filosó­ potencialmente visíveis, mas realmente ausentes. Estes outros lados são
fica como um acontecimento hum ano culminante. A fenomenología não só dados, mas dados precisamente como ausentes. Eles também são parte do
cura nossa angústia intelectual; também abre a porta para a exploração filo­ que experienciamos.
sófica àqueles que desejam praticá-la. Vamos formular esta estrutura com respeito a suas dimensões objetiva
e subjetiva. Objetivamente, o que nos é dado quando vemos um cubo é uma
m istura composta dos lados que estão presentes e dos lados que estão ausen­ trazidas imediatamente à presença. Todas elas envolvem o cubo até quando
tes, mas co-intencionados. A coisa sendo vista envolve um a m istura do pre­ ele é simplesmente dado a nossa visão. É interessante notar, contudo, que só
sente e do ausente. Subjetivamente, nossa percepção, nossa visualização, é a visão e o tato presentam o objeto como um cubo; o ouvir, o degustar e o
um a m istura composta de intenções cheias e vazias. Nossa atividade de per­ cheirar presentam o material de que o cubo é feito, não seu caráter de ser
ceber, então, também é um a mistura; partes intencionam o que está presen­ formado como um cubo.
te, e outras partes intencionam o que está ausente, os “outros lados” do cubo. Vamos dizer um pouquinho mais precisamente da experiência visual do
Naturalmente, “todo m undo sabe” que a percepção envolve tais m istu­ cubo. Distinguimos três camadas em que ela é presentada para nós. (1) Pri­
ras, mas nem todo m undo está a par de seu impacto ou de seu alcance filo­ meiro, há os lados do cubo, seis deles. Cada lado pode ser dado sob diferentes
sófico. Toda experiência envolve um a m istura de presença e ausência, e em perspectivas. Se seguram os um lado diretam ente diante de nós, ele é
alguns casos chamar nossa atenção para esta mistura pode ser filosofica­ presentado como um quadro, mas se inclinamos o cubo ligeiramente para
longe de nós o lado vem a ser dado como um ângulo que se assemelha mais
mente iluminador. Q uando ouvimos um a sentença sendo enunciada por um
a um trapézio. Os cantos mais distantes parecem mais juntos um do outro
falante, por exemplo, nossa audição envolve a presença de um a parte da sen­
do que os mais próximos. Se inclinamos o cubo para um pouco mais longe,
tença, flanqueada pela ausência das partes que já foram pronunciadas e aque­
o lado torna-se quase um a linha, e então, finalmente, se o inclinamos apenas
las que estão por vir. A sentença mesma, como um todo, distingue-se em
um pouco mais, o lado desaparece da visão. Em outras palavras, um lado
oposição ao silêncio, ao ruído e às outras sentenças que a precedem, a se­
pode ser dado de modos diferentes, assim como o cubo pode ser dado de
guem ou a acompanham. A mistura de presença e ausência em nossa experiên­
diferentes lados. (2) Vamos chamar cada um dos modos nos quais o lado é
cia de um a sentença é diferente daquela envolvida na percepção de um cubo,
dado de aspectos. Um lado tem o aspecto de um quadro quando o encaramos
mas em ambos os casos há um a m istura de presença e ausência, de intenções
diretamente, mas tem o aspecto de um trapézio quando o giramos em um
cheias e vazias. Outros tipos de objetos teriam ainda outros tipos de m istu­
ângulo para nós. Como um cubo aparece para nós em muitos lados, assim
ras, mas todos seriam misturas de presença e ausência. cada lado pode aparecer para nós de muitos aspectos, e esses aspectos, tran­
Vamos retornar à experiência do cubo. N um dado momento, apenas sitivamente, são também aspectos do cubo. Porém, podemos dar um passo
certos lados do cubo estão presentes para nós e os outros estão ausentes. além. (3) Podemos visualizar um aspecto particular num dado momento;
Mas sabemos que a qualquer mom ento podemos caminhar ao redor do cubo podemos fechar nossos olhos por um minuto, então abri-los novamente. Se
ou virar o cubo e os lados ausentes entrarão no campo de visão, enquanto os não tivermos nos movido, teremos o mesmo aspecto dado para nós nova­
lados presentes sairão. Nossa percepção é dinâmica, não estática; até se só mente. O mesmo aspecto pode ser dado para nós como um a identidade por
olharmos um lado do cubo, o movimento rápido de nossos olhos introduz meio de um a sucessão de aparecimentos temporariamente diferentes. Va­
um tipo de mobilidade de busca da qual não estamos conscientes. Quando mos chamar cada um a dessas visões momentâneas de um perfil do aspecto.
viramos o cubo ou caminhamos em volta dele, a potencialidade percebida E, transitivamente, também um perfil do lado e um perfil do cubo. Um perfil
torna-se realmente percebida, e o realmente percebido desliza para dentro da é um a presentação temporariamente individualizada de um objeto. A pala­
ausência; torna-se aquilo que foi visto, aquilo que é novamente só potencial­ vra inglesa profile é a translação da alemã Abscbattung, a qual pode significar
mente visto. No lado subjetivo, as intenções vazias tornam-se cheias e as cheias profile (perfil) ou sketch (esboço). Em últim a instância, então, o cubo é dado
tornam-se vazias. para nós em um dos muitos modos de perfis.
Além disso, outras modalidades de percepção também entram em jogo. Vamos m udar nosso exemplo da percepção de um cubo para a percep­
Podemos não só ver o cubo, mas também tocá-lo, podemos bater nele para ção de um edifício. Olhamos para o lado da frente do edifício. Olhamos para
ver que tipo de ruído ele faz, podemos degustá-lo (para as crianças, a boca é esse lado de um ponto de vista um pouco à esquerda do centro: nesse mo­
o órgão tátil primordial), e podemos até cheirá-lo para ver de que é feito. mento, vemos um aspecto particular da frente do edifício. Suponhamos que
Todas essas são presentações potenciais que podem ocorrer com qualquer se diga a você: “esta vista do edifício é m uito atrativa; venha e olhe daqui”.
presentação que tenhamos do cubo, potenciais que podem ser ativadas e Quando quem lhe fez este convite m udar de lugar e você se posicionar onde
essa pessoa estava, você verá o mesmo aspecto que ela viu, mas estará expe- do objeto se tornará im portante quando examinarmos a transição da per­
rienciando perfis diferentes daqueles que ela experienciou, porque os perfis cepção para a intelecção, quando um objeto percebido torna-se parte de um
são presentações momentâneas, não o olhar ou o visualizar ou o aspecto que estado de coisas ou de um fato, mas é im portante até como um constituinte
pode ser visto por muitos observadores. Um aspecto, um lado, e naturalm en­ da percepção. Quando percebemos um objeto, não temos apenas um fluxo
te o edifício mesmo são todos intersubjetivos, mas um perfil é privado e sub­ de perfis, um a série de impressões; em e por meio deles todos temos um e o
jetivo. O perfil pode até depender de nossa disposição no tempo e da condição mesmo objeto dado para nós, e a identidade do objeto é intencionada e é
de nossos órgãos sensoriais; se estamos doentes ou atordoados, o perfil pode dada. Todos os perfis e todos os aspectos, todos os aparecimentos, são apre­
ser vacilante ou cinzento em vez de ser fixo ou azul. O caráter relativo e subje­ ciados como sendo de um a e da mesma coisa. A identidade pertence ao que
tivo do perfil não significa que os aspectos ou os lados ou as coisas dadas por é dado na experiência e o reconhecimento da identidade pertence à estrutura
meio dele são relativos e subjetivos no mesmo modo. intencional da experiência. Vamos notar também de passagem que essa iden­
tidade mesma pode ser intencionada na ausência tanto quanto na presença,
e podemos estar enganados sobre ela.
Identidade do próprio objeto Essa análise de lados, de aspectos e de perfis ajuda a confirmar o realis­
mo da fenomenología em contraste com as filosofias do conhecimento de
Descartes e de Locke. De acordo com elas, todos estamos imediatamente
A percepção, então, envolve camadas de sínteses, camadas de múltiplas
conscientes de que são impressões que atingem nossa sensibilidade; estamos
presentações, que são de dois tipos, atual e potencial. Agora, contudo, uma
enclausurados no círculo de nossas idéias. Mas, um a vez que admitamos que
im portante nova dimensão deve entrar no jogo. Quando vemos os lados di­
existem coisas tais como perfis distintos de aspectos, e aspectos distintos de
ferentes de um cubo, quando experienciamos vários aspectos de vários ângu­
lados, percebemos que é inteiramente impossível dar a razão de tais estrutu­
los e por meio de vários perfis, é essencial para nossa experiência que perce­
ras em termos de simples impressões e idéias dentro da mente. Se tudo fosse
bamos toda essa multiplicidade como pertencendo a um e ao mesmo cubo.
simplesmente interno para nós, tudo que seria dado para nós seriam perfis:
Os lados, aspectos e perfis são presentados para nós, mas neles todos um e
flashes de cor e pedaços de som, fora dos quais os objetos teriam de ser cons­
o mesmo cubo está sendo presentado. As diferentes camadas que experien­
truídos. Nunca poderíamos fazer a distinção entre um perfil e um aspecto e
ciamos são postas contra um a identidade que é dada continuamente em e
um lado. Em contraste, as distinções entre lados, aspectos e perfis tornam-se
por meio delas. mais obviamente claras do que as aparências exteriores e os aspectos das coisas
Seria errado, contudo, dizermos que o cubo é apenas a soma de todos os que estão “lá fora” para percebermos; elas não são apenas fabricadas fora das
seus perfis. A identidade do cubo pertence a um a dimensão diferente daque­ impressões que atingem nossa sensibilidade. O lado ou aspecto que pode ser
la dos lados, aspectos e perfis. A identidade é outra para a manifestação que visto como o mesmo em diferentes ocasiões pela mesma pessoa, ou por vá­
se oferece. A identidade nunca se mostra como um lado, um aspecto ou um rias pessoas diferentes, não pode ser meramente um a impressão afetando
perfil, mas é ainda presentada para nós precisamente como a identidade em privativamente cada subjetividade. Além do mais, “atrás” e “dentro” dos la­
todos eles. Podemos intencionar o cubo em sua mesmidade, não apenas dos, aspectos e perfis há também a unicidade do objeto mesmo, a identidade
em seus lados, aspectos e perfis. Quando nos movemos em volta do cubo ou que é dada para nós. A identidade é pública e disponível para todos; não é
o giramos em nossas mãos, o fluxo contínuo de perfis é unificado por ser apenas algo que projetamos nos aparecimentos.
“de” um único cubo. Quando dizemos que “o cubo” é presentado para nós, Utilizamo-nos da percepção de um objeto material, um cubo, como um
entendemos que sua identidade nos é dada. paradigma inicial para a análise fenomenológica da intencionalidade. Ou­
Neste ponto, vemos um a dimensão mais profunda da intencionalidade tros tipos de objetos envolvem outras formas complexas de presentação. Antes
da consciência do que aquela que examinamos no capítulo I. A consciência de partir para a análise de tais objetos e suas correspondentes intencio­
é “de” algo no sentido que intenciona a identidade de objetos, não apenas do nalidades, vamos considerar um a estrutura formal que desempenha um papel
fluxo de aparecimentos que são presentados para ela. A questão da identidade im portante na fenomenología.
Hl

AS TRÊS ESTRUTURAS FORMAIS


NA FENOMENOLOGIA

Há três formas estruturais que aparecem constantemente nas análises


feitas na fenomenología. Se estivermos conscientes dessas formas, será mais
fácil entender o que ocorre num a passagem particular ou no desenvolvimen­
to de um tema particular. As três formas são (a) a estrutura de partes e todos,
(b) a estrutura de identidade numa multiplicidade, e (c) a estrutura de presença e
ausência. As três estão inter-relacionadas, mas não podem ser reduzidas um a
à outra. As duas primeiras dessas estruturas são temas que foram desenvol­
vidos por muitos filósofos antigos; Aristóteles tem m uito a dizer sobre par­
tes e todos na Metafísica, por exemplo, e Platão e os pensadores neoplatôni-
cos, bem como os escolásticos, exploraram a idéia da identidade dentro de
diferenças, do uno em muitos.
Porém, o tema da presença e ausência não foi descoberto, de um modo
explícito e sistemático, pelos filósofos antigos. Esse tema é original em Hus-
serl e na fenomenología. Presenças e ausências podem ser misturadas de
modos notáveis, e a exploração de tais misturas pode servir como um valioso
tema em filosofia. Acreditamos que a fenomenología descobriu essa nova
dimensão filosófica precisamente porque estava tentando combater o pro­
blema epistemológico do pensamento moderno, o predicamento egocêntrico
iniciado por Descartes. A fenomenología fez um avanço positivo para res­
ponder a um a confusão filosófica, tanto quanto Platão descobriu sua com­
preensão de unidade e forma em resposta ao desafio do ceticismo sofista.
Iremos considerar cada um a das três formas estruturais como elas são
desenvolvidas na fenomenología.
in t r o d u ç ã o à f e n o m e n o l o g ía AS TRÊS ESTRUTURAS FORMAIS NA FENO MENO LO G IA

Partes e todos e força (watts). Todas essas dimensões são interdependentes: não pode haver
mom entum sem massa e velocidade, ou aceleração sem massa e força, ou
Totalidades podem ser analisadas em dois tipos diferentes de partes: corrente sem voltagem.
pedaços e momentos. Pedaços são partes que podem subsistir e ser presentadas Um item particular pode ser um pedaço em um a relação enquanto é um
até separadas do todo; eles podem ser destacados de seus todos. Pedaços momento num a outra. Por exemplo, um a bolota pode ser separada de sua
também podem ser chamados partes independentes. árvore, mas como um objeto de percepção não pode ser separada de um pano
Exemplos de pedaços são folhas e bolotas, as quais podem ser separa­ de fundo; para ser percebida, a bolota tem de ser vista contra um pano de
das de sua árvore e ainda presentar a si mesmas como entidades indepen­ fundo de um a espécie ou outra.
dentes. Até um ramo de um a árvore é um a parte independente, porque ele Há um a certa necessidade no modo como os m om entos são misturados
pode ser separado da árvore; quando assim separado ele não funciona mais juntos dentro de seus todos. Alguns momentos são fundados a partir de
como um ramo vivo e torna-se um pedaço de madeira, mas ainda pode exis­ outros, e um a distinção nasce entre as partes fundadas e a-fundação. O tom
tir e ser percebido como um a coisa independente. Assim também as partes está fundado na cor, enquanto, reciprocamente, a cor funda ou é o substrato
de um a máquina, um membro de um a companhia de atores, um soldado em do tom. A visão está fundada no olho, e o olho funda ou sustenta a visão.
um pelotão são pedaços dentro de seus respectivos todos. Tais coisas perten­ Além do mais, pode haver algumas camadas de fundamentos: a sombra está
cem, de fato, cada um a ao seu todo maior (a máquina, a companhia, o pelo­ fundada no tom, que por sua vez está fundado na cor. Nesse caso, a sombra
tão), mas elas também podem ser elas mesmas e presentar a si mesmas sepa­ é só mediatamente fundada na cor (via tom), enquanto o tom é imediata­
radas daquele todo. Assim, quando separados, os pedaços tornam-se todos mente fundando na cor. Tom musical e timbre, contudo, são ambos imedia­
em si mesmos e não são mais partes. Os pedaços, então, são partes que po­ tamente fundados no som.
dem vir a ser todos. Vamos acrescentar uma outra precisão terminológica: um todo pode
Momentos são partes que não podem subsistir ou ser presentados sepa­ ser chamado um concretum, algo que pode existir, presentar a si mesmo e ser
rados do todo ao qual pertencem, eles não podem ser destacados. Os mo­ experienciado como um indivíduo concreto. Um pedaço, um a parte inde­
mentos são partes não-independentes. pendente, é um a parte que pode vir a ser um concretum. Momentos, contudo,
Exemplos de momentos são: a cor vermelha (ou qualquer outra cor), não podem vir a ser um concretum. Sempre que eles existem e são experiencia-
que não pode ocorrer separada de alguma superfície ou expansão espacial; o dos, arrastam junto com eles seus outros momentos; eles existem somente
tom musical, que não pode existir exceto quando m isturado com um som, e misturados com suas partes complementares.
também a visão, que não pode ocorrer exceto como dependente do olho. Tais Porém, é possível para nós pensar e falar de momentos por si mesmos:
partes são não-independentes e não podem existir ou ser presentadas por si podemos falar de tons musicais sem mencionar som; podemos nos referir a
mesmas. Um ramo pode ser cortado da árvore, mas o tom não pode ser iso­ tom sem mencionar cor; podemos falar de visão sem mencionar o olho.
lado de um som e um a visão não pode desprender-se do olho. Os momentos Quando consideramos momentos simplesmente por eles mesmos, eles são
não podem ser, exceto quando misturados com outros momentos. Os m o­ abstracta, estão sendo pensados abstratamente. A possibilidade de falar de
mentos são o tipo de parte que não pode tornar-se um todo. tais partes abstratas, a possibilidade de falar abstratamente, surge porque
Bons exemplos de momentos ou partes não-independentes podem ser podemos usar a linguagem; é a linguagem que nos permite tratar com um
encontrados nas dimensões que são distintas na física. Na mecânica, um corpo momento separado de seu complemento necessário de outros momentos e
em movimento possui os momentos de massa, velocidade, m om entum e de seu todo. Contudo, um perigo surge com esta habilidade: porque pode­
aceleração; massa e aceleração, por sua vez, estão associadas essencialmente mos nos referir ao momento por si mesmo, sem mencionar seus momentos
com força. Na teoria eletromagnética, um a corrente elétrica possui a dimen­ associados, podemos começar a pensar que esse m omento pode existir por si
são de carga por unidade de tempo, que é medida em ampere, e esta dimensão mesmo, que ele pode vir a ser um concretum. Podemos começar a pensar so­
está associada por seu turno com potência elétrica (volts), resistência (ohms) bre a visão, por exemplo, como se ela pudesse ser, separada do olho.
A distinção entre pedaços e momentos é muito importante na análise Há sempre o perigo de que separemos o inseparável, de que façamos do
filosófica. O que freqüentemente acontece em filosofia é que algo que é um abstractum um concretum, porque em nosso discurso podemos falar de um
mom ento seja tomado por ser um pedaço, tomado por ser separável de seu momento sem mencionar aquilo em que está fundado. Podemos falar “do
todo mais amplo e de outras partes; então, um “problema” filosófico artifi­ triângulo”, por exemplo, e depois de algum tempo começarmos a pensar que
cial surge, a respeito de como o todo original pode ser reconstituído. A solu­ existe um triângulo apartado dos triângulos encarnados. Quando permiti­
ção verdadeira de tal problema não é adaptar algum novo modo de construir mos que isto aconteça, fazemos de um momento um pedaço, de um abstractum
o todo falsamente segmentado de tais partes, mas simplesmente mostrar que um concretum, e começamos a perguntar como seria possível encontrarmos
a parte em questão era um momento, não um pedaço, e que nunca poderia esse pedaço de fato, como poderia ele se presentar para nós. Deixamos a
ter sido separada do todo em primeiro lugar. Muitos argumentos filosóficos abstratividade de nosso discurso nos enganar pensando que as coisas de que
são simplesmente complicadas tentativas de mostrar que algo é um a parte falamos poderiam se presentar concretamente para nós. Introduzimos uma
dependente, não um a parte independente, um momento e não um pedaço. separação onde deveríamos simplesmente fazer uma distinção.
Este tipo de problema artificial surge com respeito à mente e seus obje­ O contraste entre pedaços e momentos é de grande ajuda em nossa
tos, por exemplo. Como vimos no capítulo I, as pessoas freqüentemente to­ introdução à fenomenología. Muitas questões que parecem muito complica­
mam a mente por ser um a esfera fechada em si mesma, isto é, um pedaço que
das tornam-se simples quando formuladas em termos do tipo de partes que
pode ser separado do contexto m undano ao qual ela naturalm ente e essen­
funcionam dentro delas. Uma análise filosófica usualmente consiste em al­
cialmente pertence. Assim, elas perguntam como a mente pode até sair de si
cançar os vários momentos que vão formar um todo dado. A análise filosó­
mesma e alcançar o que se passa no mundo. Mas a mente não pode ser sepa­
fica da visão, por exemplo, mostrará como a visão está fundada no olho e
rada do exterior desse modo; a mente é um momento para o m undo e para
também na mobilidade corporal (no movimento rápido do olho, na habili­
as coisas nele; a mente é essencialmente correlata com seus objetos. A mente
dade da cabeça ser virada, na habilidade do corpo todo ir de um lugar para
é essencialmente intencional. Não há “problema de conhecimento” ou “pro­
outro, de um ponto de vista para outro), como tanto a visão quanto o que
blema do m undo externo”, não há problema de como alcançar a realidade
está sendo visto são momentos dentro de um todo, e como a visão está con­
“extramental”, porque a mente, de princípio, nunca poderia ser separada da
dicionada por outras modalidades sensoriais, tais como o tato, a audição e a
realidade. A mente e o ser são momentos um para o outro; não são pedaços
sinestesia. Uma análise filosófica nos ajudará a evitar a tentação de trocar
que podem ser segmentados fora do todo ao qual pertencem. Igualmente, a
mente hum ana é freqüentemente separada do cérebro e do corpo como se momentos por pedaços, como podemos fazer, por exemplo, quando tenta­
mos separar a visão da mobilidade.
fosse um pedaço e não um mom ento fundado neles; o problema “mente-
cérebro” também pode ser tratado como um a instância de confusão a respei­ Até a questão da alma humana, ou da alma de qualquer coisa viva, pode
to de partes e todos. ser clarificada apelando a partes e todos. A alma é um momento; ela mantém
Um outro exemplo da lógica de partes e todos pode ser encontrado em uma relação essencial com o corpo e está fundada no corpo que estimula e
nossa análise da percepção de um cubo. Os perfis, os aspectos e os lados, determina e no qual se expressa. Os seres humanos são corpos animados,
bem como a identidade do cubo mesmo, são todos momentos uns para os não espíritos materializados. Mas a alma é freqüentemente caricaturada ao
outros na apresentação do objeto. Não poderíamos ter a presentação dos la­ ser tornada um pedaço dentro de um a força vital, ou um a coisa que poderia
dos senão através dos aspectos, os quais por sua vez somente são presentados existir e ser presentada e entendida separada de sua base orgânica, até como
através dos perfis. O cubo mesmo, como um a identidade, não pode ser algo que pode preexistir a seu corpo. Naturalmente, a maneira na qual a alma
presentado perceptivamente senão através da multiplicidade de lados, aspec­ é um momento do corpo vivo é diferente do modo como o tom é um mo­
tos e perfis. Seria um caso de extravio de concretude, de procurar pelo peda­ mento da cor, mas o primeiro passo para esclarecer a natureza da alma é
ço no lugar do momento, querer ter o cubo apenas em si mesmo, não como mostrar que ela não é um a coisa separável que pode ser compreendida sepa­
fundado em suas múltiplas presentações. rada de seu envolvimento com o corpo.
Há um a necessidade no modo como os momentos, partes não-indepen- Q uando desejamos expressar algo, podem os sempre distinguir a expres­
dentes, são arranjados dentro de um todo. Certos momentos servem de são do que é expressado, o experienciado. Se dizemos “a neve cobriu a rua”,
mediação para outros, os quais se juntam num todo só através do preceden­ “a rua está coberta de neve”, e “Die Strasse ist verschneit”, nós proferimos
te: na percepção do cubo, aspectos mediados entre perfis e lados, e lados três diferentes expressões, mas podemos considerar que todas as três expres­
mediados entre aspectos e o cubo mesmo (perfis não presentam o cubo saram um e o mesmo sentido ou o experienciado, um e o mesmo fato ou um
mesmo, só seus aspectos e lados e deste modo mediatamente o cubo). Mos­ pouco de informação. As três expressões são como três aspectos de um e do
trar tais arranjos de momentos proporciona um a compreensão do todo em mesmo objeto, exceto que neste caso o objeto é complicado e seu status de ser
questão. O que freqüentemente acontece, contudo, é que enunciamos algu­ é diferente daquele do cubo. Poderíamos ainda ampliar a multiplicidade
mas das partes em um todo, mas negligenciamos outras; ou tentamos seg­ adicionando a entonação da sentença em modos diferentes: gritando a sen­
m entar os momentos, tom ando como pedaços os momentos que temos tença um a vez, sussurrando-a em outra, dizendo-a em voz estridente e assim
destacado; ou tomamos um momento como sendo equivalente a outro, isto por diante. Todas essas seriam maneiras de apresentação de um a e da mes­
é, falhamos em sustentar um a distinção. Podemos confundir o político com ma sentença, e ainda todas as expressões vocais e todas as sentenças (bem
o econômico, por exemplo, dentro do todo dos relacionamentos humanos, como muitas outras possíveis) presentarían! um e o mesmo sentido, e um e
ou podemos pensar que o econômico, que é realmente só um momento, é o o mesmo fato.
todo. Marx, por exemplo, elevou o econômico ao todo das relações sociais, e O ponto é que o fato idêntico pode ser expresso num a multiplicidade
Hobbes elevou as relações contratuais, que são só um a parte do todo social, de modos e o fato é outro para um a e todas as suas expressões. Assim como
o cubo pertence a um a dimensão diferente daquela dos lados, aspectos e perfis,
à condição de todo. A descoberta de partes e todos é central para o entendi­
também o sentido ou o fato pertence a um a dimensão diferente daquela do
mento hum ano e filosófico.
sentido das expressões e elocuções através das quais é dado. Por esta razão,
Sempre que pensamos sobre algo, enunciamos partes e todos dentro
seria enganoso procurar por um sentido ou um fato como algum tipo de
dele. As partes e os todos constituem o conteúdo do que pensamos quando
sentença mental, um tipo de análogo fantasmagórico das expressões que
vamos além da simples sensibilidade e da um pouco m uda percepção. O es­
publicamente proferimos; fazer assim seria o erro comum filosófico de extra­
pecificar das partes é a essência do pensamento, e é im portante ver a diferen­
vio da concretude, de tom ar um momento como um pedaço. O sentido é só
ça entre pedaços e momentos quando tentamos, filosoficamente, entender o
a identidade que está dentro e ainda por trás de todas as suas expressões.
que é o entendimento. Poderíamos também notar que o sentido idêntico é capaz de ser presentado
por meio de muitas outras sentenças ou expressões (em ainda outras línguas,
em linguagem de sinais, por meio de gestos e outros símbolos) que não fo­
Id e n tid a d e em m ultiplicidades
ram e, na maior parte das vezes, não serão declaradas, da mesma maneira que
o cubo é um a identidade que seria percebida por meio de perfis que ainda
Já abordamos o tema da identidade em multiplicidades quando consi­
não ativamos. O horizonte do potencial e o do ausente cercam a real presen­
deramos a percepção de um cubo: o cubo como um a identidade mostrou ser ça das coisas. A coisa sempre pode ser presentada em mais modos do que os
distinto de seus lados, aspectos e perfis, e ainda era presentado por meio que já conhecemos; a coisa sempre guarda mais manifestações em reserva.
deles todos. O que podemos fazer agora é mostrar quão extensiva é esta for­ Como um outro exemplo de um a identidade num a multiplicidade,
ma de presentação e destacar algumas de suas implicações filosóficas. A es­ consideremos um evento histórico im portante, tal como a invasão da
trutura opera na percepção de todos os objetos materiais, como temos visto, Normandia na Segunda Guerra Mundial. Esse evento foi experienciado de
mas também opera em qualquer tipo de coisa que possa ser presentada para um modo por aqueles que dele participaram, de outro modo por essas mes­
nós. Para começar, vamos examinar como funciona na presentação de senti­ mas pessoas quando o recordaram, de um outro modo por aqueles que le­
do por meio da linguagem. ram sobre ele como relatado nos jornais, de um outro m odo por aqueles que
escreveram e aqueles que leram livros sobre ele mais tarde, de um outro modo blico, bem como as diferenças entre a visão de um espectador cultivado e a de
por aqueles que se juntaram num a celebração comemorativa nas praias da um mero apreciador. A pintura espera por seus espectadores a fim de ser
Normandia, de um outro m odo por aqueles que assistiram a documentários completada como trabalho de arte, mas o faz de um modo diferente de como
com imagens reais sobre o evento, de outro modo ainda por aqueles que uma sinfonia espera por suas performances a fim de existir como tal. A iden­
viram documentários e programas feitos na televisão sobre o ocorrido. O tidade e a multiplicidade são diferentes em cada caso.
mesmo evento foi também antecipado por aqueles que o planejaram, e por Passando para eventos religiosos como exemplos adicionais, o Êxodo
aqueles que, do outro lado, planejaram resistir a ele. Há, indubitavelmente, foi presentado ao povo judeu que o vivia então, mas o mesmo evento é
ainda outros modos nos quais um e o mesmo evento pode ser intencionado presentado àqueles que leram sobre ele nas Escrituras e aqueles que celebram
e feito presente, e a identidade do evento é sustentada por meio de todos eles. a Páscoa. Para os cristãos, o evento da morte e ressurreição de Cristo foi expe-
Vamos voltar para objetos estéticos. Um e o mesmo drama, digamos, /1 rienciado pelos discípulos e é mais ulteriormente presentado, de diferentes
duquesa de Malft, é presentado em todos os palcos e em todas as leituras, com modos, pela leitura das Escrituras, pelo testemunho dos mártires e fiéis, por
' odas as suas várias interpretações, nas quais a peça é dada e, também, foi intermédio dos sacramentos e especialmente da eucaristia. Na realidade, para
presentada por John Webster quando ele escreveu a peça. Uma e a mesma os cristãos a celebração da eucaristia não é só um a presentação da morte e
sinfonia, tal como a Sinfonia Hafner de Mozart, é dada em todas as suas ressurreição de Cristo, mas também um a manifestação mediada da Páscoa e
execuções. A interpretação ciada por Bruno Walter é diferente daquela dada do Êxodo. Assim, até o sagrado é um a identidade dentro de um a multiplici­
por Klaus Tennstedt, e, na verdade, o modo geral de interpretá-la no início dade de manifestações.
do século XX era diferente daquele comum em fins do mesmo período, mas A identidade que é dada por meio de suas múltiplas manifestações per­
todas as interpretações são de um a e da mesma sinfonia. E interessante no­ tence a um a dimensão diferente daquela da multiplicidade. A identidade não
tar que a gravação de um a peça musical é diferente da performance ao vivo, é um membro da multiplicidade: o cubo não é um dos aspectos ou perfis, a
porque a gravação captura apenas um a das performances, enquanto cada proposição não é um a das sentenças articuladas, a peça não é simplesmente
performance ao vivo é diferente de todas as outras. Se fôssemos ouvir duas uma de suas performances. A identidade transcende suas múltiplas manifes­
vezes a mesma gravação, ouviríamos a mesma performance em ambas as vezes, tações, vai além delas. A identidade não é meramente a multiplicidade de
não apenas a mesma sinfonia, e ainda assim nossa audição dela seria diferen­ suas manifestações; vê-la só como sua soma reduziria a um horizonte as duas
te cada vez: algumas dimensões e não outras viriam à tona, nosso hum or dimensões que devem ser distinguidas aqui. Tornaria tudo apenas um a série
poderia estar diferente, o dia mesmo poderia estar mais brilhante ou som­ de manifestações, tudo em um a dimensão, em vez de reconhecer a identi­
brio. Quando um a gravação captura apenas um a performance, é como se um dade como além da dimensão de manifestações, como algo presentado por
filme capturasse só um aspecto de um cubo e só nos deixasse ver aquela meio de todas elas, e também por meio de outras possíveis manifestações.
manifestação particular do cubo mesmo. O ser desta identidade é bastante enganoso. Pensamos conhecer bas­
Se passarmos das artes que requerem performances para aquelas que tante claramente o que é um a manifestação — um aspecto que vemos, uma
não as requerem, encon traremos totais diferenças na estrutura de identidade sentença que proferimos, um a performance que ouvimos —, mas a identida­
em multiplicidades. Uma pintura não é executada por nada análogo a uma de parece não ser algo que possamos pôr em nossas mãos ou pôr diante de
performance de orquestra; é presentada diretamente quando é vista, não nossos olhos. Parece iludir nossa compreensão. E ainda sabemos que a iden­
quando alguém a apresenta. Não deve haver artista entre os espectadores e a tidade nunca é redutível a um a de suas manifestações; sabemos que a identi­
obra, como os músicos devem vir entre os ouvintes e a obra. Contudo, uma dade deve ser distinguida disto e de cada manifestação que dela apreciamos.
e a mesma pintura pode ser vista num momento e recordada em outro, aná­ A identidade presenta-se agora de um modo, também guarda um a reserva de
lises escritas da pintura podem ser dadas, cópias dela podem ser pintadas, e outros modos de ser dada e de reaparecer como a mesma coisa novamente,
impressas, “reproduções” da pintura podem ser feitas. Há também um a di­ para nós mesmos e para outros; em ambos ela sempre revela e esconde a si
ferença entre como a pintura apareceu ao artista e como ela aparece ao pú­ mesma. A coisa sempre pode ser dada novamente, talvez de modo que nós
mesmos não podemos antecipar. O que tentamos fazer em nossa análise fi­ outros observadores por meio de multiplicidades que são diferentes daque­
losófica é assegurar a realidade de tais identidades, demonstrar o fato de que las diante das quais nos encontram os, e vemos o objeto precisamente como
elas são diferentes de suas múltiplas manifestações e mostrar que a despeito sendo visto por outros por meio de pontos de vista que não com partilha­
de seu escorregadio status elas verdadeiramente são um componente do que mos. Percebemos que há facetas manifestas para outros que não estão sendo
nós experienciamos. manifestas para nós, e conseqüentem ente essas outras facetas estão co-
Finalmente, talvez a resposta mais fácil que alguém poderia dar à ques­ intencionadas por nós, precisamente não como as nossas mesmas. A identi­
tão “O que é um a análise fenomenológica?” fosse dizer que ela descreve a dade da coisa não existe só para nós, mas tam bém para os outros, e, p o rta n ­
multiplicidade que é adequada para um dado objeto. Uma fenomenología to ela é u m a identidade mais p ro fu n d a e mais rica para nós. Há mais “aí” lá;
do sentido diria a multiplicidade através da qual os sentidos são dados; uma o ser e a identidade da coisa estão exaltados pela introdução de perspectivas
fenomenología da arte descreveria as várias multiplicidades pelas quais os intersubjetivas. As m uitas dimensões do ser aí para os outros e para nós acres­
objetos de arte manifestam a si mesmos e são identificados; um a fenomeno­ centa-se ao ser e identidade da coisa.
logía da imaginação descreveria as multiplicidades de manifestações através O mesmo incremento de riqueza ocorre com respeito a outras identida­
das quais os objetos imaginários são dados; um a fenomenología da religião des, tais como as do sentido de um texto, as de objetos artísticos e culturais,
discutiria as múltiplas manifestações adequadas às coisas religiosas. Cada de eventos humanos, de situações morais e de identidades religiosas. Uma
multiplicidade é diferente, cada um a é adequada à sua identidade, e as iden­ das possibilidades que se abre, por exemplo, é a capacidade de perceber que
tidades são diferentes em qualidade. “Multiplicidade de manifestação” e um objeto, digamos um texto, pode ser bem melhor compreendido por um
“identidade” são termos análogos; a identidade de um objeto de arte é dife­ outro do que j r nós. Podemos perceber que a identidade e a multiplicidade
rente da identidade de um evento político, e ainda ambos são identidades e dadas para nós são muito obscuras e confusas comparadas àquelas que são
ambos têm seus adequados modos de ser dados. Por dizer cuidadosamente compreendidas por nosso colega, que extrai do texto coisas que nós nunca
as diversas multiplicidades e identidades, a fenomenología ajuda-nos a pre­ seriamos capazes de descobrir por nós mesmos. Novamente, podemos estar
servar a realidade e distinção de cada. Ajuda-nos a evitar o reducíonismo por completamente confusos por urna particular troca humana, enquanto uma
dem onstrar o que é adequado a cada tipo de ser, não só em sua existência outra pessoa imediatamente capta e expressa o que está acontecendo; como
independente, mas também em sua força de presentação. Uma ação moral, então percebemos esse evento, nós o temos dado para nós como sendo me­
por exemplo, será mais vividamente distinguida de um a conduta compulsi­ lhor percebido e melhor compreendido por outrem do que por nós, e mesmo
va se estivermos aptos a formular a multiplicidade de manifestações ade­ assim compreendemos o evento. Em sua obscuridade, e precisamente como
quada a cada uma. obscuro, o evento é dado para nós.
A maioria dos exemplos de identidades em multiplicidades que consi­ Como um exemplo final da estrutura de identidade em multiplicida­
deramos foram relacionados a um único observador ou um único conhece­ des, vamos mencionar as muitas consciências que temos de nós mesmos.
dor. Quando introduzimos a presença de outras pessoas, quando incluímos Nossa auto-identidade é algo que se presenta por meio de um especial con­
a dimensão da intersubjetividade, um a müito mais rica estrutura de m ulti­ figurar de manifestações. Enquanto identificamos cubos, proposições, fatos,
plicidade entra em jogo. Por exemplo, a multiplicidade de lados, aspectos e sinfonias, pinturas, mudanças de valores morais e coisas religiosas, nós tam ­
perfis presentes em um objeto corpóreo para nós, e a multiplicidade de bém, sempre, estamos estabelecendo nossas próprias identidades como aque­
mudanças em resposta aos nossos movimentos no espaço. Porém, quando les para os quais todas essas coisas são dadas. Estabelecemos a nós mesmos
outros observadores são introduzidos num retrato, a mesma identidade toma como dativos de manifestação. Um importante constituinte de nossa identi­
um a mais profunda objetividade, um a mais rica transcendência; vemos que dade pessoal está fundado nas interações de memórias, imaginações, percep­
não só a coisa seria vista diferentemente se nos movêssemos desse ou daque­ ções e no fluxo de nossas consciências do tempo interior. Examinaremos
le modo, mas também que exatamente a mesma coisa está sendo vista, nesse essa estrutura em detalhe mais tarde. Nossa própria identidade não é obvia­
instante, de um a outra perspectiva por outra pessoa. O objeto é dado para mente a mesma da de alguns dos objetos que nos são dados, mas é do mesmo
tipo da de outros si, da de outras pessoas. Contudo, até nesse contexto, até é simplesmente ter um a coisa presente para nós em oposição ao tê-la inten­
na experiência intersubjetiva, permanecemos como o centro de nossa pró­ cionada em sua ausência. Quando o evento acaba, saímos do estádio e con­
pria consciência. Até entre nossa própria espécie temos um a preeminência versamos e recordamos o jogo, um a vez mais por meio de intenções vazias e
especial inelutável; estamos no nosso centro de um modo que não podemos na ausência do jogo, mas num tipo diferente de ausência, o tipo que é
sequer escapar. Nós nunca nos tornamos um outro ou qualquer outra coisa; presentado pela memória, não o tipo presentado por antecipação. São au­
não podemos deixar a nós mesmos para trás. sências diferentes. As ausências que se dão para nós depois de um a presença
Teremos ocasião de aplicar a estrutura de identidade em multiplicida­ são diferentes daquelas que se dão antes de um a presença.
des quando examinarmos outros temas na fenomenología. Vamos, por en­ Como um outro exemplo, imagine que você vai visitar Washington,
quanto, deixar esse tópico e mover-nos para a terceira das estruturas que capital dos Estados Unidos, e dizemos a você para ir ver a Ginevra de’Benci de
começamos a investigar, a de presença e ausência. Leonardo da Vinci na National Galery o f Art. No caminho para a galeria
falaremos a você sobre a pintura: tudo isto é feito em intenções vazias, ainda
que suas intenções vazias sejam diferentes das nossas. Você nunca viu a pin­
Presença e ausencia e a identidade entre elas tura, enquanto nós a vimos, entretanto estamos todos na ausência daquilo
sobre o que falamos. Então, caminhamos até a pintura e continuamos deba­
já observamos que o tema filosófico de presença e ausência, ou de in­ tendo sobre ela, com nossas intenções agora cheias. A pintura está presente
tenções cheias e vazias, é completamente original na fenomenología. Por al­ para nós; nós a intuímos. Ao deixarmos a pintura, ela estará ausente nova­
guma razão, os filósofos clássicos não focalizaram na distinção entre presen­ mente e estaremos de volta às intenções vazias.
ça e ausência. Sugerimos que foi o recente ceticismo cartesiano sobre a rea­ Ainda outro exemplo é o seguinte: as “experiências internas” de uma
lidade do m undo o que provocou o exame desse tema na fenomenología. outra pessoa são sempre irredutivelmente ausentes para nós; não im porta o
Presença e ausencia são os correlatos objetivos para intenções cheias e vazias. quanto você possa conhecer o outro, seu fluxo de sentimentos e experiên­
Uma intenção vazia é um a intenção que tem como alvo algo que não está aí, cias internas nunca poderá vir a ser verdadeiramente m isturado com o dele
algo ausente, algo não presente para quem o intenciona. Uma intenção cheia num modo que permitiria, por exemplo, que as memórias ou fantasias de­
é a que tem como alvo algo que está aí, em sua presença física, ante quem o le de repente começassem a emergir dentro de sua consciência. Por outro
intenciona. Vejamos alguns exemplos para demonstrar essas estruturas. lado, um certo tipo de simpatia pode existir entre pessoas que conhecem
Suponhamos que desejamos ir a um jogo de basquete no Camden Yards bem um a à outra, e há um a diferença, digamos, entre meramente falar sobre
em Baltimore. A idéia de ir ao jogo nasceu de um a conversa com amigos. a raiva de alguém a um a outra pessoa em sua ausência e observar diretamen­
Decidimos que John compraria os ingressos. Ele o fez. Falamos sobre o jogo te a pessoa enfurecida. Como outro exemplo, quando nos referimos às pri­
e sobre quem poderia vencer. Dirigimos-nos até o jogo, ainda falando sobre meiras duas linhas ditas por Hippolyta em A Midsummer Nighfs Dream [So­
ele. Entramos no estádio. Até agora, o jogo esteve ausente para nós, e ainda nho de um a noite de verão], nos referimos a elas em sua ausência, mas,
o estamos intencionando, mas só vagamente. Temos conversado sobre o jogo quando recitamos o texto “Four days will quickly steep themselves in night;
em sua ausência, imaginamos como será o jogo, antecipamos o jogo enquan­ Four nights will quickly dream away the time” [Quatro dias cederão depres­
to caminhamos em direção aos nossos assentos. Tudo isso tem sido inten­ sa a outras tantas noites; quatro noites verão voar o tempo como um so­
ções vazias. Agora, quando o jogo tem início e começamos a assisti-lo, exer­ nho.], oferecemos as duas linhas em sua presença atual. Quando nos referi­
citamos intenções cheias; o jogo é gradualmente manifestado para nós. As mos a um a certa prova de matemática pelo nome, nós a expressamos va­
intenções vazias, aquilo que dissemos e imaginamos sobre o jogo, tornaram- gamente em sua ausência, mas quando cuidadosamente efetuamos a prova,
se cheias pela presença real do jogo, a qual leva algum tempo para se desdo­ nós a tornamos presente. O jogo de presença e ausência pode funcionar para
brar. Nossa visão do jogo é nossa intuição do jogo. Isto é tudo o que a intuição diferentes tipos de coisas, e em cada caso os tipos de presenças e ausências
é no vocabulário fenomenológico. A intuição não é algo místico ou mágico; são específicos para a coisa em questão. Notamos antes que a análise filosó­
fica ou fenomenológica consiste em atingir a multiplicidade que é própria a cão na presença e na ausência, que nos referimos quando usamos palavras
um tipo particular de objeto; é também verdade que a fenomenología tenta para nomear um a coisa.
dem onstrar a m istura de presenças e ausências, de intenções cheias e vazias, Nessa interação de presença e ausência, atenção especial deve ser dada,
que pertencem ao objeto em questão. filosoficamente, ao papel da ausência, da intencionalidade vazia. A presença
O conceito de intuição é filosoficamente controverso; é geralmente to­ tem sido sempre um tema na filosofia, mas à ausência não tem sido dada a
mado por ser algo privado, algo inexplicável, algo quase irracional, um tipo atenção devida. De fato, a ausência é geralmente negligenciada e evitada: ten­
de visão que anula argumentos e não pode ser comunicada. Mas a intuição demos a pensar que tudo aquilo de que temos consciência deve estar atual­
não precisa ser compreendida nesse modo misterioso. A fenomenología pode mente presente para nós; parece que somos incapazes de pensar que pode­
dar um a explanação bastante clara e persuasiva do conceito: a intuição é sim­ mos verdadeiramente intencionar o que está ausente. Nós nos esquivamos
plesmente ter o objeto realmente presente para nós, em contraste com tê-lo da ausência até quando ela está toda em nossa volta e nos preocupa todo o
intencionado em sua ausência. A cuidadosa experiência de um jogo de baseball, tempo. Assim, quando queremos explicar como podemos falar de objetos
a visão de um cubo real, encontrar os óculos que procurávamos, são todas que não estão presentes, preferimos dizer que estamos tratando com uma
intuições, porque elas trazem um a coisa à presença. Tal manifestação é pra­ imagem ou um conceito do objeto, o qual está presente, e por meio dessa
ticadas contra as intenções vazias direcionadas às coisas em sua ausência. imagem ou conceito alcançamos a coisa ausente. Mas esta postulação de uma
Paradoxalmente, é em razão da fenomenología tom ar a ausência das coisas presença para substituir a ausência é altamente inadequada. Por uma razão:
tão seriamente que ela pode esclarecer o significado da intuição; a intuição, como poderíamos sempre saber que o que é dado para nós é somente um
com a presença que adquire, é feita para ser muito mais compreensível sendo conceito ou um a imagem se não tivéssemos um sentido da ausência da coisa
contrastada com intenções vazias e suas ausências. real, se já não tivéssemos intencionado a coisa em sua ausência? Por alguma
Há um a dimensão de presença e ausência, de intenções cheias e vazias, razão, os filósofos têm tendido a negligenciar o papel radical da ausência na
que ainda não examinamos. É o fato de que ambas, intenções cheias e vazias, consciência humana, e têm tentado esconder esse papel apelando a formas
estão dirigidas para um e o mesmo objeto. Uma e a mesma coisa está a um sub-reptícias de presença, pela inserção de estranhas presenças, tais como
tempo ausente e em outro presente. Em outras palavras, há um a identidade conceitos ou idéias, que substituirão a ausência.
“atrás” e “na” presença e ausência. A presença e a ausência são “de” uma e da Porém, nós intencionamos a ausência, é fenomenologicamente falso ne­
mesma coisa. Quando antecipamos o jogo de baseball falando sobre ele, nós gar isso. Podemos necessitar do suporte das palavras ou das imagens men­
intencionamos de modo vazio o mesmo jogo a que assistiremos. Não inten­ tais para nos ajudar a intencionar a ausência, mas essas presenças não nos
cionamos um a imagem daquele jogo ou algum jogo substituto que temos impedem de, verdadeiramente, intencionar o que não está aí diante de nós.
em foco agora antes de o jogo real mostrar-se. Intencionamos o jogo que não A ausência é dada para nós como ausência; a ausência é um fenômeno, e a ela
está aí, que ainda não existe. Se falarmos sobre um a pintura de Leonardo da deve ser dado o que lhe é devido. De fato, há muitas disposições ou emoções
Vinci, teremos em nossa intencionalidade um a e a mesma pintura, a mesma humanas que não podem ser compreendidas exceto como resposta a uma
que veremos diretamente quando nos dirigirmos para a sala onde a pintura ausência dada. Esperança e desespero, por exemplo, pressupõem que pode­
está presente. A presença é a presença da pintura, a ausência é a ausência da mos intencionar algo bom que ainda não se obteve e se tem confiança ou
mesma pintura, e a pintura é um a e a mesma, na presença e na ausência. A dúvidas em o conseguir. O arrependimento só faz sentido porque estamos
pintura é identificada nas duas. A pintura pertence a uma dimensão diferen­ conscientes do passado, e como poderíamos compreender a saudade a não
te da presença e da ausência, mas não poderia ser exceto como capaz de pre­ ser pelo reconhecimento da ausência? Quando procuramos por alguma coi­
sença e ausência de si mesma. A presença e a ausência pertencem ao ser da sa e não a encontramos, a ausência da coisa está também toda presente para
coisa identificada nelas. As coisas são dadas num a mistura de presenças e nós. Vivemos constantemente no futuro e no passado, no distante e no trans­
ausências, da mesma forma como são dadas num a multiplicidade de manifes­ cendente, no desconhecido e no imaginado; não vivemos apenas no mundo
tações. Também poderíamos notar que é a essa identidade, a essa não-varia- que nos circunda como nos é dado aos cinco sentidos.
As ausências que circundam a condição hum ana são de diferentes tipos. ser preenchidas quando conseguimos intencionar o objeto em sua presença
Umas coisas são ausentes porque são futuras, outras porque são contempo­ real. As intenções vazias são correlatas com a ausência do objeto, as inten­
râneas, porém distantes, outras porque são esquecidas, outras porque são ções cheias são correlatas com sua presença. Contudo, em acréscimo às in­
escondidas ou secretas, e ainda outras porque estão além de nossa compreen­ tenções cheias e vazias, há também um ato de recognição, um ato de identifica­
são e ainda são dadas para nós enquanto tais: sabemos que isso é algo que ção, que é correlato com a identidade do objeto mesmo. Esse terceiro ato
não compreendemos. As ausências chegam em muitas cores e sabores, e é transcende as intenções cheias e vazias, assim como a identidade do objeto
um a grande tarefa filosófica diferenciá-las e descrevê-las. Um dos insights mais transcende suas presenças e ausências.
originais de Husserl foi chamar nossa atenção para as intenções vazias, nos­ Nós assinalamos o fato de que há muitos tipos diferentes de ausências.
so modo de intencionar a ausência, e destacar sua importância na explora­ É também verdade que há tipos diferentes de presenças e presentares, cada
ção filosófica do ser, da mente e da condição humana. qual apropriada ao tipo de coisa em questão. O futuro vem à presença dei­
As presenças parecem ser mais familiares para nós; parece mais fácil xando o tempo passar; algo distante é trazido à presença superando a distân­
para nós pensá-las. Pensamos que elas são de longe menos problemáticas: cia; o outro lado do cubo é feito presente girando o cubo; um a difícil prova
pensamos saber o que significa para um a coisa ser dada para nós na carne, matemática torna-se presente pensando por meio de suas etapas; o sentido
por assim dizer. E ainda as presenças tam bém tom am um sentido mais pro­ de um texto estrangeiro é feito presente providenciando um a tradução ou
fundo quando são vistas, filosoficamente, quando são feitas contra a au­ aprendendo a língua; um perigo pode ser encarado só por tomá-lo como um
sência. Q uando apreciamos a presença de um a coisa, a apreciamos precisa­ risco. Em cada caso, a coisa em questão prescreve a m istura de ausências e
mente como não-ausente: o horizonte de seu ser possivelmente ausente deve presenças que lhe são próprias.
estar aí se estamos conscientes da presença. A presença é dada como cance­ Algumas vezes não mudamos diretamente de um a intenção vazia para
lando um a ausência. Às vezes o objeto presente é algo que procurávamos. uma cheia; algumas vezes se requer um a série de passos, ou ao menos se
Sua ausência era vividamente dada para nós enquanto o buscávamos por torna possível, para ir de um a cheia intermediária a outra, até que por fim o
meio de nossas intenções vazias (“Onde estão os óculos? Onde os deixei?”). objeto mesmo possa ser alcançado. Uma vez fui assistir a um torneio de golfe
Então, quando encontramos o objeto, sua presença vem à luz precisamente e queria ver Jack Nicklaus jogar. Havia lido sobre ele nas páginas esportivas.
como amortecida por essa ausência ainda-reverberada, O objeto vem à luz Tinha visto sua foto no jornal e um a entrevista com ele na televisão. Depois
precisamente como aquilo que foi procurado. Em outros mom entos o ob­ de ter ido ao torneio, caminhei pelo campo de golfe tentando achar sua tría­
jeto pode não ter sido encontrado ou aguardado, mas aparece subitamente de. Finalmente, vi a placa de líder (a placa identificando os jogadores e dan­
sem expectativa; ele nos surpreende. Ainda assim, ele aparece como cance­ do seus escores) com o nome dele; vendo o seu nome lá, mas ainda não o
lando um a ausência. vendo, eu o intencionava significativamente ou de maneira vazia, mas agora
Em nenhum caso, contudo, devemos enfatizar que a identidade do objeto estava mais perto de um a intenção cheia, porque não estava mais vendo seu
é dada só através da diferença de presença e ausência. A identidade não é dada nome apenas nos papéis ou nas revistas esportivas, mas em sua placa, a qual
só na presença. Até quando o objeto está ausente, nós intencionamos o ob­ era algo como um signo de indicação ou um sinal da presença dele. Então, vi
jeto mesmo, nós o intencionamos em sua identidade. Quando está presente, o rapaz que carregava seus tacos, a quem reconheci de outras fotos (e assim
nós intencionamos a identidade novamente, dessa vez em seu modo presen­ tinha um a indicação adicional de sua presença). Finalmente, vi Jack Nicklaus
te e precisamente como não-ausente. em pessoa. Nesse ponto entrei em percepção e deixei as intenções vazias, as
Quando falamos filosoficamente da presença e ausência, focalizamos intenções significativas, as intenções pictoriais, a associação delas e de todos
no lado objetivo da correlação entre o sujeito consciente e o objeto. O objeto os outros tipos intermediários. Uma vez que entramos em percepção, não
e sua identidade são dados através da presença e da ausência. Se nos voltás­ mudamos para nenhum outro tipo de melhor intenção cheia, mas podemos
semos para o lado subjetivo, diríamos que exercemos intenções vazias, que continuar a ter mais e mais percepções (e assim o fiz, seguindo Nicklaus,
intencionamos o objeto de modo vazio, e que essas intenções vazias podem enquanto ele jogava os próximos vários buracos). As percepções ulteriores
foram, contudo, não ainda uma mudança dentro de um outro tipo de inten­ explorar as diferenças entre intenções vazias e cheias. Podemos ficar tenta­
cionalidade, mas simplesmente mais da mesma. A cadeia de intenções cheias dos a pensar que a intencionalidade é equivalente às intenções vazias, para
alcançou seu apogeu. nossa consciência da ausência. Isto não seria correto; até quando um a coisa
Podemos distinguir, então, dois tipos de preenchimentos das inten­ é dada para nós em sua presença, ainda a intencionamos. A intencionalidade
ções cheias. (1) um que segue por meio de muitos intermediários, de tipos como um termo genérico cobre ambas, intenções vazias e cheias, bem como
diferentes, e finalmente alcança a intuição. Podemos, por exemplo, ir de um os atos re-cognitivos que intencionam a identidade do objeto.
nome de alguma pessoa ao esboço de seu rosto, a um retrato de tamanho Poderíamos notar tam bém que o conceito de intencionalidade foi gradu­
natural, a um a estátua, a um a imagem televisada, à pessoa mesma. Cada um almente enriquecido pelos temas desenvolvidos neste capítulo. A intenciona­
desses estágios é qualitativamente diferente dos outros, e cada um preenche lidade pareceu trivial e óbvia quando foi introduzida no capítulo I, mas vemos
e completa o anterior, continua a remeter ao próximo. O final, porém, a agora que não só contraria o predicamento egocêntrico do pensam ento m o­
intuição, não remete a nada mais. É o terminus, a evidência final. Vamos derno, mas tam bém responde por nossa habilidade para reconhecer identida­
chamar a esse tipo de cadeia de enchimento gradual ou cumulativo. Nova­ des nas multiplicidades da experiência, tratar com coisas que estão ausentes e
mente, o preenchimento final, a intuição, nada tem de mágico ou de abso­ registrar as identidades dadas por meio de presença e ausência.
luto em si; simplesmente não aponta para nenhum outro tipo de intenção. Agora completamos nosso exame inicial das três estruturas que estão
Nisso difere dos estágios intermediários, que apontam para adiante. Pode­ presentes na fenomenologia. Sempre que desejarmos explorar um problema
ríamos notar também que a intuição final do objeto coleta o sentido de fenomenológico, deveremos perguntar o que são as partes e os todos, as iden­
todos os estágios intermediários através dos quais foi antecipada: ela é, pre­ tidades nas multiplicidades e as misturas de ausências e presenças que estão
cisamente, não esses estágios — mas a completude deles. Ver Nicklaus não é em funcionamento no assunto em questão. Objetos emocionais têm um pa­
ver seu nome ou sua fotografia ou seu carregador, mas é aquilo que todas drão, objetos estéticos outro, objetos matemáticos, objetos políticos, coisas
essas coisas apontavam. econômicas, objetos materiais simples, linguagem, memória e intersubjetivi-
(2) O outro tipo de cadeia de preenchimento não leva a um clímax. É dade, cada um tem padrões que lhe são próprios. As três estruturas virão à
simplesmente aditiva, fornecendo mais e mais perfis sobre a coisa em ques­ tona freqüentemente conforme procedermos com nossas próprias análises
tão. À medida que continuamos a observar Nicklaus jogar, vemos mais e no resto deste livro.
mais de sua pessoa e cie sua habilidade no golfe. À medida que a percepção A maioria, mas não a totalidade, de nossas notas foram até agora cen­
aumentava havia mais, mas era “mais” num modo diferente do aumento qua­ tradas mais propriamente sobre formas simples de experiência, em coisas
litativo na proximidade alcançada num preenchimento gradual. Um outro como a percepção de um objeto material, tal como um cubo. Seria lógico
exemplo de um preenchimento meramente aditivo seria fornecer mais e mais mudar de tal percepção para formas mais complicadas de consciência, tais
definições do número 15: três vezes cinco, 16 menos 1, 12 mais 3, a raiz como a memória e a imaginação, e para a intelecção, para o tipo de experiên­
quadrada de 225 e tantas outras. Então, quando alcançamos um a intuição cia que temos quando entramos na linguagem e nas estruturas sintáticas,
cíe algum alvo particular, nossa indagação não está terminada. Podemos ter quando começamos a registrar fatos e comunicar sentidos a outra pessoa.
passado por muitas manifestações intermediárias que nos guiaram até nossa Contudo, antes de m udar para esses tópicos, vamos interromper nosso pro­
intuição, mas o alvo, mesmo agora, permanece por ser revelado. Podemos gresso por um momento a fim de esclarecer, de um a maneira inicial, o que
descobrir mais da coisa mesma, mas tal exploração não é um outro novo entendemos por análise filosófica. Poderíamos considerar, ao menos em es­
estágio no preenchimento gradual. É um aprofundam ento de nossa compre­ boço (por agora), a natureza das análises que temos levado a efeito e o ponto
ensão do que trouxemos paro a presença intuitiva. de vista do qual temos trabalhado. Agora temos amostras de análise filosó­
Permitam-nos concluir esse tratam ento de presença e ausência assina­ fica suficientes para nos permitir conduzir um a idéia inicial de como a filo­
lando um ponto sobre a terminologia. No começo deste livro falamos sobre sofia, tal como compreendida na fenomenologia, difere da experiência pré-
a intencionalidade como o tema principal da fenomenologia. Acabamos de filosófica e da fala.
UMA DECLARAÇÃO INICIAL
DO QUE É A FENOMENOLOGIA

A fim de compreender o que é a fenomenología, devemos fazer um a


distinção entre duas atitudes ou perspectivas que podemos adotar. Devemos
distinguir a atitude natural da atitude fenomenológica. A atitude natural é o
foco que temos quando estamos imersos em nossa postura original, orienta­
da para o mundo, quando intencionamos coisas, situações, fatos e quaisquer
outros tipos de objetos. A atitude natural é, podemos dizer, a perspectiva
padrão, aquela da qual partimos, aquela em que estamos originalmente. Não
viemos para ela de nenhum a coisa mais básica. A atitude fenomenológica, por
outro lado, é o foco que temos quando refletimos sobre a atitude natural e
todas as intencionalidades que ocorrem dentro dela. É dentro da atitude feno­
menológica que levamos a cabo as análises filosóficas. A atitude fenomenoló­
gica é também algumas vezes chamada de atitude transcendental. Vamos exami­
nar ambas as atitudes, ou focos, a natural e a fenomenológica. Podemos com­
preender cada um a precisamente em seu contraste com a outra.

A atitude natural

Em nossa vida ordinária, somos diretamente alcançados por várias coi­


sas no mundo. Enquanto sentamos para conversar com outras pessoas à mesa
de jantar, enquanto caminhamos para o trabalho, ou enquanto preenche­
mos um a petição para um passaporte ou para um a carteira de motorista,
temos objetos materiais manifestos para nós, e os identificamos por inter-
médio dos lados, aspectos e perfis pelos quais eles são dados, falamos deles fera flutuando no espaço, nem é um a coleção de objetos moventes. O m un­
e os articulamos, temos respostas emocionais para coisas que são atraen tes do é mais como um contexto, um a configuração, um segundo plano, ou um
ou repulsivas, achamos algumas coisas prazerosas de olhar ou ouvir e outras horizonte para todas as coisas que existem, todas as coisas que podem ser
desagradáveis e destrutivas, e assim por diante. Algumas coisas estão presen­ intencionadas e dadas para nós; o m undo não é um a outra coisa competindo
tes para nós e outras coisas estão ausentes, superamos algumas das ausên­ com aquelas. Ele é o todo para todas elas, não a soma delas todas, e é dado
cias e trazemos as coisas para a presença, mas também deixamos outras coi­ para nós como um tipo especial de identidade. Nunca poderemos ter o mundo
sas mudarem de presenças para ausências. Identificamos e reconhecemos uma dado para nós como um item entre muitos, nem mesmo como um item sin­
coisa após outra: as cadeiras e pinturas em nossa sala, os pássaros cantando gular: ele é dado somente como abrangendo todos os itens. Contém tudo,
lá fora, o carro descendo pela rua, o vento soprando por entre as árvores. mas não como um recipiente global. O termo “m undo” é um singulare tan-
Além disso, em acréscimo a tais coisas substanciais, o m undo também con­ tum\ só poderia haver um deles. Pode haver muitas galáxias, pode haver muitos
tém entidades matemáticas, tais como triângulos e quadrados, conjuntos planetas habitados por seres conscientes (embora exista só um para nós),
fechados e abertos, números racionais e irracionais. Tais coisas matemáticas mas só há um mundo. “O m undo” não é um conceito astronômico; é um
requerem um tipo especial de intencionalidade, mas ainda manifestam-se conceito relacionado com nossa experiência imediata. O m undo é a configu­
como aninhadas dentro do mundo, embora existam de um a maneira dife­ ração última para nós mesmos e para todas as coisas que experienciamos. O
rente das árvores e dos caminhões. Há também constituições políticas, leis, mundo é o concreto e o todo atual de nossa experiência.
contratos, acordos internacionais, eleições, atos de generosidade e coragem, Uma outra singularidade im portante em nossa experiência espontânea
bem como atos de ódio e covardia. Todas essas coisas podem ser identifica­ é o si mesmo, o ego, o eu. Se o m undo é o mais amplo todo e o contexto mais
das dentro do m undo no qual vivemos; todas essas coisas em suas identida­ abrangente, o eu é o centro em volta do qual esse todo mais amplo, com
des são correlatas com nossas intencionalidades. todas as coisas nele, é organizado. Paradoxalmente, o eu é um a coisa no
Além do mais, nosso m undo não contém somente as coisas que temos mundo, mas é um a coisa como nenhum a outra: é um a coisa no m undo que
experienciado diretamente. Também intencionamos, de modo vazio, muitas também cognitivamente tem o mundo, a coisa para a qual o m undo como
coisas que tom amos por reais embora nunca as tenhamos experienciado. um todo, com todas as coisas nele, manifesta a si mesmo. O eu é o dativo da
Podemos nunca ter ido à China, mas de vez em quando intencionamos a manifestação. E a entidade para a qual o m undo e todas as coisas nele podem
China, suas m ontanhas e seus rios, sua política externa e doméstica, sua con­ ser dados, aquele que recebe o m undo em conhecimento. Naturalmente, há
dição econômica. O mesmo é verdade para a Antártida e a Groelândia. Se muitos eus, muitos egos, muitos si mesmos, mas até entre todos eles um
formos visitar a Antártida poderemos preencher muitas de nossas intenções permanece de fora como o centro preeminente, nomeadamente eu (isto é,
vazias, algumas surpreendentes e outras de maneiras previsíveis. O mundo você, enquanto lê essas palavras e pensa nelas por si mesmo). Esses fatos
em que vivemos se expande para além de nossa experiência imediata e para estranhos sobre o si mesmo ou o ego não são apenas truques de linguagem,
além de nossa experiência possível: também percebemos um domínio nos não são apenas peculiaridades da primeira e segunda pessoa do singular; eles
céus que nunca alcançaremos fisicamente. Podemos chegar até a lua ou a pertencem ao tipo de ser que é um a criatura racional^ um a criatura que pode
alguns dos planetas, mas é impossível para nós alcançarmos as partes mais pensar, que pode dizer “eu”, e que pode ter o m undo mesmo enquanto sendo
longínquas do universo. M uito podemos aprender sobre esses lugares, mas uma parte do mundo. A alma racional, como disse Aristóteles, é de alguma
muito deles sempre permanecerá alvo de intenções vazias em lugar de inten­ maneira todas as coisas. O m undo como um todo e o eu como o centro são
ções cheias ou percepções. as duas singularidades entre as quais todas as outras coisas podem ser colo­
Assim, há muitas coisas no mundo, todas dadas em diferentes maneiras cadas. O m undo e o eu são correlatos um com o outro de um modo diferente
de presentação. Há também o próprio mundo, o qual é dado ainda de um daquele no qual um a intencionalidade particular é correlata com as coisas
modo diferente. O m undo não é um a grande “coisa”, nem é a soma das coi­ que intenciona. O m undo e o ego provêem um duo fundam enta^ um con­
sas que foram ou podem ser experienciadas. O m undo não é como um a es­ texto elíptico para tudo.
Todos esses elementos estruturais pertencem à atitude natural na qual temente ao experiencíarmos ou ficarmos sabendo da coisa em questão, quan­
encontramos a nós mesmos desde o início e sempre. Há ainda mais um item do chegamos a conhecer sua identidade na multiplicidade em que é dada
na atitude natural que devemos examinar antes de passarmos ao debate da para nós, seja em presença ou em ausência. Porém, nunca aprendemos ou
atitude fenomenológica. Devemos examinar o tipo de convicção que penetra adquirimos nossa crença no mundo. O que seria nosso estado antes de
a atitude natural. aprendê-la? Teríamos de ter estado num solipsismo mudo e encapsulado,
A maneira pela qual aceitamos as coisas no m undo e o m undo mesmo uma consciência absoluta que não era consciência de coisa alguma. Tal esta­
é um modo de crença. Quando experienciamos outras pessoas, árvores, edifí­ do é inconcebível; isso requereria que o ego pensasse a si mesmo como am­
cios, gatos, pedras, o sol e as estrelas, nós as experienciamos como sendo aí, bos — o centro das coisas e a soma das coisas, um círculo sem um raio. E
como verdadeiros, como reais. O caráter básico, o modo padrão de nossa ainda que concedêssemos essa possibilidade, o que na terra (ou mesmo fora
aceitação do m undo e das coisas nele é de um a crença ou, para usar um ter­ da terra) poderia nos expelir para fora de um tal estado? Como poderia a
mo grego, dóxa. Nossa crença é correlata ao ser das coisas, o qual primeiro e idéia mesma de algo “exterior” surgir se não estivéssemos lá desde o início?
antes de tudo é aceito enquanto tal. Com o passar do tempo e à medida que Não podemos partir do predicamento egocêntrico; nossa crença no
nos tornamos mais velhos e mais inteligentes, introduzimos modalidades mundo está lá desde o começo, até antes de nascermos, num passado remo­
dentro de nossa crença; depois de descobrir que fomos enganados em algu­ to. Até nosso sentido mais rudim entar de si-mesmo não poderia nascer exce­
mas instâncias, gradualmente introduzimos as dimensões de ilusão, erro, to sobre a base da crença no mundo. Similarmente, ainda que descubramos
decepção ou “mera” aparência. Gradualmente descobrimos que as coisas não que fomos enganados sobre muitíssimas coisas, nossa crença no m undo per­
são sempre como elas parecem; uma distinção entre ser e parecer entra em manece intocada e o m undo ainda está lá, não im porta de que maneira irre­
jogo, mas esta distinção é exercida só episodicamente, e exige grande sofisti­ gular e esfarrapada, a não ser se perdermos nosso sentido do si-mesmo intei­
cação produzi-la. Podemos achar que esse “gato” é só um brinquedo, ou que ramente e desabarmos num tipo de isolamento autista; mas até aí algum
o discurso da pessoa foi enganoso, ou que aquele “homem” era só um a som­ sentido do que há certamente permaneceria, se existir consciência afinal. O
bra, ou que o “vidro” que aparentemente vimos era realmente gelo; tais erros sofrimento que deve existir no autismo está lá precisamente porque a crença
ocasionais, entretanto, não nos levam a suspeitar de tudo o que experiencia­ no mundo ainda está funcionando; se não estivesse, não estaria consciente
mos ou de tudo o que é dito. A condição padrão permanece a de um a crença. de tudo e não teria o sentido de si-mesmo.
Contudo, esta crença, como fundamental, é agora contrastada com um con­ Desde que vivemos na condição paradoxal de ter o m undo e ainda ser
junto total de alternativas possíveis: suspeição, dúvida, rejeição, probabilida­ parte dele, sabemos que quando falecermos o m undo ainda continuará,
de, possibilidade, negação, refutação, todas as modalidades dóxicas possíveis desde que somos apenas parte do mundo, mas em outro sentido o m undo
que nossa intencionalidade pode assumir. que é aí para nós, por todas as coisas que sabemos, se extinguirá quando
Proeminente entre todas as nossas crenças é a crença que temos no não fizermos mais parte dele. Tal extinção é parte da perda que sofremos
m undo como um todo. Esta crença, a qual não poderíamos chamar de ape­ quando falece um amigo próximo; não é só que ele não está mais aí, mas o
nas um a dóxa, mas de um a ur-dóxa (se podemos combinar um termo alemão modo que o m undo era para ele também foi perdido para nós. O m undo
com um termo grego), não é apenas um a crença, mas a crença básica, é a base perdeu um modo de ser dado, um m odo que foi construído ao longo de
de todas as crenças específicas que temos. A crença no mundo não está sujeita toda um a vida.
a correção ou refutação no modo como está alguma crença particular. Se Ambos, o m undo e o si-mesmo, invocam a idéia de um todo. O parado­
estivermos vivos de fato, como seres conscientes, a crença no m undo estará xo da teoria dos conjuntos, o problema de se o últim o conjunto inclui a si
lá revestindo internamente qualquer convicção particular que possamos exer­ mesmo ou não, é menos difícil do que os problemas da lógica do m undo e do
cer. Nunca aprendemos ou adquirimos nossa crença no m undo do jeito que si-mesmo: Como essas totalidades, o m undo e o si-mesmo, incluem ou ex­
adquirimos nossa crença, por assim dizer, no edifício Empire State ou no rio cluem um ao outro, e como estão relacionadas suas totalidades à soma das
San Juan em Utah. Todas essas crenças particulares nascem concomitan- coisas que existem? Pode ser o caso de que os paradoxos da teoria dos con­
juntos sejam apenas versões formalizadas dos problemas de como o mundo ponto de vista fenomenológico, olhamos e descrevemos, analiticamente, to­
contém tudo, incluindo o si-mesmo, e como o si-mesmo pode intencionar das as intencionalidades particulares e seus correlatos, bem como a crença
todas as coisas, incluindo o m undo e também a si mesmo. no mundo, com o m undo como seu correlato.
Em conclusão, então, nas atitudes espontânea e natural somos dirigi­ Se vamos oferecer um a análise descritiva de qualquer um a e de todas as
dos para todos os tipos de coisas, mas somos também dirigidos para o m un­ intencionalidades na atitude natural, não podemos compartilhar qualquer
do como o horizonte ou contexto para todas as coisas que podem ser dadas, uma delas. Devemos tom ar distância, refletir sobre, e tornar temática qual­
e correlativo ao m undo está o si-mesmo ou ego, o agente da atitude natural, quer um a e todas elas. Isto significa que enquanto estamos na atitude feno-
aquele para quem o m undo e suas coisas são dadas, que, simultaneamente, menológicasuspendemos todas as intencionalidades que estamos examinan­
é parte do m undo e ainda está na posse intencional do mundo. do. Nós as neutralizamos. Esta mudança de foco mais enfática não significa,
entretanto, que começamos a duvidar dessas intencionalidades e dos objetos
que elas têm; não os mudamos da, digamos, asseveração dóxica para a dúvi­
A atitude fenomenológica da. Não mudamos nossas intencionalidades, guardamo-las como elas são,
mas as contemplamos. Se as contemplamos, não as exercemos naquele m o­
O leitor deve ter notado que tudo o que foi dito aqui sobre a atitude mento. Contudo, não estaríamos aptos a contemplá-las como elas são se fôs­
natural não poderia ter sido estabelecido a partir da atitude natural. Isto é, semos mudá-las de um a modalidade para outra; se nossa m udança na refle­
sem termos ressaltado isso, temos considerado todos esses assuntos, o tem­ xão filosófica significasse que mudamos, digamos, nossa convicção em dúvi­
po todo, da perspectiva fenomenológica; vimos fazendo assim por várias da, ou nossa certeza em suspeição, então não poderíamos contemplar a con­
páginas passadas e, na verdade, praticamente ao longo deste livro inteiro, vicção ou a certeza. Mudanças de um a modalidade para outra ocorrem na
com exceção da introdução, que foi escrita desde a perspectiva da atitude atitude natural. Elas têm de ser motivadas. Temos de ter razões para m udar
natural. Quando consideramos a intencionalidade no capítulo I e a percep­ da convicção para a dúvida, da certeza para a suspeição; sem tais razões, a
ção de um cubo no capítulo II, consideramos esses assuntos do ponto de mudança em nossa modalidade seria irracional e arbitrária.
vista fenomenológico. Quando nos movemos na atitude fenomenológica, nos tom am os algo
Há muitos diferentes pontos de vista e atitudes mesmo a partir da pers­ como observadores imparciais da cena que passa ou como espectadores de
pectiva da atitude natural. Há o ponto de vista da vida cotidiana, há o ponto um jogo. Nós nos tornamos espectadores. Contemplamos os envolvimentos
de vista do matemático, do especialista em medicina, do físico, do político e que temos com o m undo e com as coisas nele, e contemplamos o m undo em
assim por diante, e há até vários tipos especiais de atitudes reflexivas, como seu envolvimento humano. Não somos mais simplesmente participantes no
veremos em breve. Porém, a atitude fenomenológica não é como nenhum a mundo; contemplamos o que é ser um participante no m undo e nas mani­
dessas. É mais radical e abrangente. Todas as outras mudanças de ponto de festações. Mas as intencionalidades que contemplamos — as convicções,
vista e foco permanecem assentadas pela nossa subjacente crença no mundo, dúvidas, suspeições, certezas e percepções que examinamos e descrevemos —
que sempre permanece em vigor, e todas as mudanças definem a si mesmas ainda são nossas intenções. Não as perdemos; somente as contemplamos.
como mudanças de um ponto de vista para outro, entre os muitos que são Elas permanecem exatamente como eram, e seus objetos permanecem exata­
abertos para nós. A mudança na atitude fenomenológica, contudo, é um mente como estavam, com as mesmas correlações entre intenções e objetos
movimento do tipo “tudo ou nada” que se desprende completamente da ainda em vigor. N um modo curioso, as mantemos todas apenas como são,
atitude natural e se concentra, de um modo reflexivo, em tudo da atitude nós as “congelamos” no lugar. E aqueles de nós que também se tornaram
natural, incluindo a subjacente crença no mundo. No tocante à atitude feno­ filosóficos são também os mesmos si-mesmos que exercem as intencionali­
menológica conseguimos “alcançar o andar superior” de um modo que é dades naturais. Um tipo de otimização do si-mesmo ocorre, no qual o mes­
único. Passar para a atitude fenomenológica não é tornar-se um especialista mo si-mesmo que viveu na atitude natural começa a viver explicitamente na
em um a forma de conhecimento ou outro, mas tornar-se um filósofo. Do atitude fenomenológica e começa a exercer a vida filosófica.
Todos os seres humanos, todos os si-mesmos, fazem esse tipo de análise é um objeto meramente possível, ou um objeto verificado, nós o considera­
filosófica reflexiva de vez em quando, mas a maioria das pessoas, quando mos como o objeto de um a intencionalidade que intenciona algo somente
entra nesse tipo de vida, geralmente fica confusa quanto ao que está fazendo. possível, ou um a intencionalidade que intenciona algo verificado. Pôr em
As pessoas pensam que estão tendo apenas vislumbres de algum tipo de ver­ colchetes retém exatamente a modalidade e o modo de manifestação que o
dade universal, algum tipo de leis da natureza. Tendem a tom ar o movimen­ objeto tem para o sujeito na atitude natural.
to na filosofia como mais um ajustamento na atitude natural; não vêem como Assim, quando entramos na reflexão fenomenológica, não restringimos
isso é diferente. O ponto de nossa discussão sobre a atitude fenomenológica nosso foco apenas ao lado subjetivo da consciência; não focalizamos somen­
é ajudar-nos a fazer a mudança na filosofia explícita e claramente, com uma te nas intencionalidades. Também focalizamos nos objetos que são dados
apreciação mais completa da diferença entre a atitude natural e a filosófica. para nós, mas os focalizamos como aparecem para nós em nossa atitude
Fazemos um a distinção definitiva ali onde a maioria das pessoas fica, como natural. Na atitude natural nos dirigimos diretamente para o objeto; vamos
se diz, em cima do muro. direto para as manifestações do objeto, para o objeto mesmo. Da instância
A volta à atitude fenomenológica é chamada redução fenomenológica, um filosoficamente reflexiva, nós criamos temáticas manifestações. Nós olha­
termo que significa a “retirada” dos alvos naturais de nosso interesse, “em mos para o que normalmente olhamos por intermédio. Focalizamos, por exem­
direção” ao que parece ser mais um ponto de vista restritivo, simplesmente plo, nos lados, aspectos e perfis pelos quais o cubo apresenta-se como uma
um daqueles alvos das intencionalidades mesmas. Redução, com a raiz latina identidade. Focalizamos na multiplicidade de manifestações pelas quais o
re-ducere, é um conduzir de volta, um a retenção ou um retraimento. Quando objeto é dado para nós. Quando agimos assim, contudo, não tornamos a
entramos nesse novo ponto de vista, suspendemos as intencionalidades que identidade do objeto em um a de suas “meras” manifestações; muito pelo
agora contemplamos. Esta suspensão, esta neutralização de nossas modali­ contrário, estamos mais bem habilitados a distinguir o objeto de suas manifes­
dades dóxicas, é também chamada epoché, um termo tomado do ceticismo tações, estamos mais bem habilitados para preservar a realidade da coisa mes­
grego, em que significa a retenção que o cético dizia que deveríamos ter com ma. Estamos também mais habilitados a prover um a descrição apropriada
respeito a nossos juízos sobre as coisas; eles diziam que deveríamos reter o da natureza do “m undo”. Se fôssemos tentar falar do m undo da perspecti­
juízo até que a evidência fosse clara. Embora a fenomenología tome esse ter­ va da atitude natural, tenderíamos a tomá-lo como um a grande entidade ou
mo do ceticismo grego, a implicação cética do termo não é preservada. A como a soma de todas as entidades. Somente a partir da perspectiva fenome­
epoché na fenomenología é simplesmente a neutralização das intenções natu­ nológica podemos obter a terminologia correta para falar do mundo como
rais que deve ocorrer quando contemplamos essas intenções. o contexto para a manifestação das coisas.
Finalmente, para completar esse breve tratam ento de terminologia, va­ Para usar um a metáfora espacial bruta, quando entramos na atitude
mos falar do termo pôr entre colchetes. Quando entramos na atitude fenomeno­ fenomenológica, nós rastejamos para fora da atitude natural, elevamos-nos
lógica, suspendemos nossas crenças, e pomos entre colchetes o m undo e todas sobre ela, nós a teorizamos, distinguimos e descrevemos a ambos os correla­
as coisas no mundo. Pomos o m undo e as coisas nele “entre colchetes” ou tos, subjetivos e objetivos, que a compõem. A partir de nosso poleiro filosó­
“entre parênteses”. Assim, quando colocamos entre colchetes o m undo ou fico, descrevemos as várias intencionalidades e seus vários objetos, assim como
algum objeto particular, não o votamos a mera aparência, um a ilusão, mera o sí-mesmo e o mundo. Distinguimos um a coisa de suas manifestações, uma
idéia ou qualquer outro tipo de impressão meramente subjetiva. Mais pro­ distinção que foi chamada por Fleidegger a “diferença ontológica”, a diferen­
priamente, agora o consideramos precisamente como ele é intencionado por ça entre um a coisa e a presentificação (ou ausentificação) da coisa. Esta dis­
um a intencionalidade na atitude natural. Nós o consideramos como correlato tinção pode ser propriamente feita somente da perspectiva fenomenológica.
com qualquer intencionalidade que o tem como alvo. Se ele é um objeto Se tentarmos fazer a distinção entre a coisa e a manifestação da perspectiva
percebido, nós o examinamos como percebido; se ele é um objeto recordado, do ponto de vista natural, qualquer um tenderá a substancializar as manifes­
agora nós o examinamos como recordado; se ele é um a entidade matem áti­ tações, porque nesse ponto de vista tendemos a tom ar tudo o que focaliza­
ca, nós o consideramos como correlato com um a intenção matemática; se ele mos como urna coisa substancial, ou tendemos a reduzir a coisa apenas a
suas manifestações, a ser a soma de suas manifestações. Estaremos de um categorias que pertencem à atitude natural. Nós mitologizamos, psicologi-
modo qualquer pressupondo as manifestações como barreiras entre nós e as zamos, fenomenalizamos ou substancializamos todas elas; fazemos do m un­
coisas, ou fazendo das coisas meras idéias. Não atingiremos a atitude feno- do um a coisa, as manifestações tornam-se barreiras, o si-mesmo é substan-
menológica correta, e não compreenderemos adequadamente qualquer ati­ cializado, as intenções são psicologizadas. Não possuímos os termos e as
tude natural. distinções corretos. Os modos de redução não tentam abrir um a dimensão
absolutamente nova e não-antecipada; mais propriamente, tentam clarificar
uma distinção que já possuímos, entre o natural e o filosófico, e tentam
Há argumentos que podem guiar-nos na atitude fenomenológica? explicar a transição entre as duas atitudes. Ajudam-nos a obter a instância
filosófica correta dem onstrando a mudança de perspectiva que ocorre quan­
Agora que temos um sentido da diferença entre as atitudes natural e do nos movemos na filosofia, e a mudança de direção nos significados de
fenomenológica podemos suscitar a questão de se há algum modo de expli­ nossos termos que deve seguir-se. Consideremos dois modos de redução, o
car e justificar, para outras pessoas, a mudança entre a primeira e a segunda. ontológico e o cartesiano. Essas são duas abordagens que foram desenvolvi­
Esta questão equivale a perguntar se há algum tipo de argumento que possa das por Husserl.
persuadir alguém a vir a ser filosófico, ou provar para esse alguém que ele O modo ontológico de redução é o menos assustador dos dois. (O cartesia­
poderia tornar-se assim. A questão não é trivial; ela questiona se a filosofia no parece nos mergulhar no fenomenalismo e na dúvida mais radical). O
pode introduzir a sí mesma, explicar o que é e legitimar-se ante aqueles que modo ontológico apela ao desejo hum ano para ser verdadeiro e plenamente
não são filósofos. Também questiona se a filosofia pode justificar-se para si científico. Indica que quando exploramos cientificamente um domínio do
mesma, se pode esclarecer sua própria origem e assim tentar ser um a ciência ser adquirimos um tesouro de conhecimento, um sistema de juízos sobre as
sem pressuposições. coisas em questão. Digamos que alcançamos um conhecimento bastante
O problema do começo da filosofia é suscitado na fenomenología sob completo de um campo tal como a biologia molecular ou a física do estado
a rubrica dos vários modos de redução. São dados vários “modos” ou argumen­ sólido. Não im porta quão completo possa ser o nosso conhecimento das
tos para ajudar-nos a atingir a “redução” fenomenológica. Como vimos, a coisas em questão, ainda não teremos explorado os correlatos subjetivos das
redução fenomenológica é a mudança da atitude natural para a fenomeno­ verdades que foram alcançadas. O lado objetivo pode ser total e completa­
lógica; é a restrição de nossa intencionalidade de sua atitude natural expan­ mente conhecido, mas as efetividades subjetivas que são correlatas com as
siva, a qual tem como alvo um a e todas as coisas no mundo, para a aparen­ objetivas terão sido negligenciadas: os tipos de intenções que apresentam as
temente mais confinada atitude fenomenológica, a qual tem como alvo nos­ coisas sendo estudadas, a maneira de verificação adequada aos objetos, os
sa própria vida intencional, com seu m undo e seus objetos correlatos. métodos seguidos, as formas de correção e confirmação intersubjetivas, e
Devemos ser cuidadosos para não tornar nossa tarefa mais difícil do assim por diante.
que ela precisa ser. Podemos ser tentados a pensar que a atitude natural é Assim que um a ciência se torna meramente objetiva ela se perde na
puram ente natural, puramente não-filosófica, sem um fragmento de filoso­ positividade. Temos a verdade das coisas, mas não temos a verdade de nossa
fia nela, e que a volta para a fenomenología é um a m udança em algo total­ posse dessas coisas. Esquecemos de nós mesmos e perdemos a nós mesmos
mente inaudito no foco natural. Se fosse este o caso, pareceria quase impos­ até quando estamos fascinados pelas coisas que sabemos. As verdades cien­
sível para nós comunicarmos um a idéia do que é a filosofia para aqueles que tíficas são deixadas flutuando e despossuídas. Elas parecem não ser a verda­
ainda não entraram nela. Mas, de fato, há antecipações da atitude filosófica de para ninguém. Para completar a ciência, para ser totalm ente científico,
na atitude natural. Existem pseudópodes em direção à filosofia na atitude precisaríamos investigar as atividades estruturais subjetivas que operam na
natural. Simplesmente, como seres racionais, já temos um sentido do todo, ciência, e agir assim não é simplesmente continuar fazendo biologia molecu­
um sentido do si-mesmo, um sentido de intencionalidade e manifestação. lar ou física do estado sólido. E sair de tais ciências e entrar num a nova ins­
Contudo, a dificuldade é que tentamos manusear todas essas coisas com tância reflexiva, a fenomenológica, a qual faz justiça às intencionalidades
U M A DECLARAÇÃO INICIA L D O Q UE É A FENOMENOLOGIA

abstratas das outras ciências, as dimensões de intencionalidade e manifestação.


que exercemos, mas não tematizamos, em nossos esforços científicos ante­
Ela mostra como a ciência mesma é um tipo de manifestação, e conseqüente­
riores. Assim que fizermos essa volta para a biologia molecular e a física do
mente mostra a ingenuidade do objetivismo, a crença de que o ser é indiferente
estado sólido, compreenderemos que não podemos fazer fenomenología
à manifestação. A redução, entretanto, não é realmente um confinamento, não
apenas para essas duas disciplinas; temos de expandir nosso esforço para
é um “conduzir” desde nada. Ela preserva a atitude natural e tudo nela, até quando
cobrir a intencionalidade como tal e até o m undo como tal (como o correlato
nos distancia da atitude natural. Ela amplia e não priva.
objetivo da intencionalidade), porque as intencionalidades em qualquer ciên­
Temos um a impressão diferente do modo de redução cartesiano. Esta abor­
cia particular não podem ser compreendidas exceto como complementadas
dagem da fenomenología é modelada na tentativa de Descartes de iniciar a
por aspectos m a is amplos de intencionalidade. Não poderíamos falar de re­
filosofia tom ando a decisão de “para toda a vida” duvidar de todos os juízos
conhecimento de identidades na biologia molecular sem falar de reconheci­
que ele abraçou como verdadeiros. Descartes introduz essa dúvida metódica,
mento de identidade como tal.
porque pensa que os juízos que absorveu de outros estão contaminados por
Por um a expansão gradual, entretanto, o modo ontológico de redução
preconceitos. Após adotar essa dúvida universal, ele seguirá aceitando como
ajuda-nos a complementar as ciências particulares. Nós nos movemos para
verdadeiros somente os juízos que ele mesmo pode justificar, conformes ao
um contexto mais e mais amplo, até chegar ao tipo de contexto o mais amplo
método que ele desenvolveu.
provido pela atitude fenomenológica. A motivação para nossa expansão é o
O problema com a tentativa de Descartes de começar a filosofia é que
desejo de ser plenamente científicos, evitar o descarte de um a dimensão que
muda todas as nossas modalidades dóxicas naturais em modalidades duvi­
é relevante à inquirição em questão. Pode haver um tipo de completude par­
dosas. Ele m uda de várias modalidades naturais — certeza, suspeição, acei­
cial na ciência positiva, na biologia molecular ou na física do estado sólido,
tação verificada, possibilidade, probabilidade — para outra modalidade na­
mas qualquer ciência que quiser ser compreensiva terá, por fim, de inquirir
tural: a dúvida. Sua dúvida pode ser somente metódica, mas ainda é dúvida.
nas muitas realizações da ciência, nas intencionalidades que se estabelece­
Descartes tentou alçar a si mesmo na filosofia, mas conseguiu somente pas­
ram. Enquanto essas continuarem desconsideradas, a ciência é deixada osci­
sar para um a outra das atitudes naturais, e um a que é radicalmente cética.
lante e incompleta, carente de seu contexto próprio. O modo ontológico de
Ele tentou colocar a filosofia no caminho de ser um a ciência rigorosa, mas
redução recorda-nos das notas de Aristóteles na Metafísica IV, 1 sobre a neces­
não deu certo. Ele deu um a guinada para o lado, com conseqüências desas­
sidade de ir além das ciências parciais para a ciência do todo, a ciência do ser
trosas para a filosofia e a ciência.
como ser (e não o ser simplesmente como a matéria, ou como o quantifica­
O modo de redução cartesiano na fenomenología é um a tentativa de
do, ou como o vivo, ou como o econômico).
assumir o que Descartes estava tentando realizar e fazê-lo adequadamente.
Deveria ficar claro a partir dessas notas sobre o modo ontológico de
Não propõe que iniciemos um a dúvida universal. Ao contrário, sugere que
redução que a fenomenología como um a ciência, como um rigoroso e explí­
adotemos a atitude de tentar duvidar de nossas várias intenções. Isto pode ser
cito empreendimento de autoconsciência, é de fato um a ciência mais concre­
visto como um a pequena diferença, mas é crucial. Tentar duvidar é muito
ta do que qualquer das investigações parciais. Podemos pensar que a física
diferente de duvidar. O que acontece quando tentamos duvidar de um a de
ou a biologia são as mais concretas de todas as ciências porque estudam di­
nossas crenças é que adotamos um a instância neutra em relação a essa con­
retamente as coisas materiais que estão diante de nós, mas enquanto essas
vicção; ainda não duvidamos dela, apenas suspendemos nossa crença. Para­
ciências não olharem para a atividade pela qual elas são realizadas elas serão
mos para ver se devemos duvidar. Esse tentar, esse parar, contudo, não é
realmente abstratas. Elas deixam de fora um a parte essencial não somente
dúvida, mas é algo como a neutralização que ganhamos quando entramos
do mundo, mas de si mesmas. A ciência da fenomenología complementa e
na filosofia. Esta instância neutra, então, serve como um tipo de buraco de
completa essas ciências particulares, enquanto retém a elas e à sua validade,
fechadura através do qual podemos alcançar um sentido do que é a atitude
de modo que, bastante paradoxalmente, a fenomenología é a mais concreta
fenomenológica, a atitude na qual neutralizamos e contemplamos todas as
das ciências. Ela recupera o mais amplo todo, o maior contexto. Ela supera
nossas intencionalidades.
o auto-esquecimento das ciências particulares. Ela considera as dimensões
U M A DECLARAÇÃO INICIA L D O QUE É A FENO M ENO LO G IA

O utra característica im portante da tentativa de duvidar é a seguinte. tidades que reconhecemos. Ele introduz o hábito do ceticismo que nos faz
Não podemos verdadeiramente duvidar de alguma coisa a menos que tenha­ tender a não acreditar em nada até que seja provado para nós. Porém esse
mos razões para duvidar. Suponhamos que sabemos que a porta para esta desejo por um a prova para tudo é irracional. A prova só é possível sobre o
sala é branca, e suponhamos que vemos um gato caminhando para a sala. fundamento de que algumas verdades não são demonstráveis, verdades que
Não podemos seguir dizendo que duvidamos que a porta é branca ou que o têm sua evidência em si mesmas e não precisam de provas. Não podemos
gato está caminhando pela soleira da porta a menos que tenhamos razões provar tudo; conhecemos muitas coisas que não precisam ser provadas. A
para duvidar se essas coisas evidentes são verdadeiras: podemos inesperada­ fenomenología restaura a validade das convicções que temos na atitude na­
mente perceber que é a luz que faz a porta mais brilhante do que o normal, tural. Reconhece o que as nossas intenções fazem, em seus vários modos,
e que pode ser um a sombra de cor cinza; podemos repentinamente perceber alcança as coisas nelas mesmas. Distingue e descreve como as várias inten­
que há um espelho próximo à porta, e que podemos realmente estar vendo ções são preenchidas e confirmadas. Também percebe que freqüentemente
somente um reflexo do gato caminhando em outra sala. De modo que como vamos além da evidência, que freqüentemente somos vagos no que intencio­
um a das modalidades da atitude natural, a dúvida precisa ser motivada por namos, e que erros são comuns; mas a presença do erro não desacredita tudo.
razões. Não podemos apenas dizer que duvidamos das coisas. Somente mostra que devemos ser cuidadosos. Por esclarecer as várias inten­
A tentativa de duvidar, contudo, está sujeita a nossa livre escolha. Pode­ cionalidades e distingui-las umas das outras, a fenomenología ajuda-nos a
mos tentar duvidar de alguma coisa, até do mais óbvio dos fatos diante de ser cuidadosos.
nós ou da opinião mais estabelecida. De um modo similar, estamos livres Finalmente, devemos perceber a diferença entre os modos de redução
para iniciar a neutralização que ocorre quando nos voltamos para a perspec­ ontológico e cartesiano. O m odo ontológico procede por incrementação.
tiva fenomenológica, a suspensão ou “o pôr fora de ação” de nossas inten­ Começa com efetividades científicas e acrescenta as dimensões a elas passo a
cionalidades, o pôr entre colchetes as coisas e o mundo; essas coisas estão passo, atingindo-nos a todos ao longo do caminho, até chegar na atitude
em nosso poder e sujeitas a nossa livre escolha. Podemos decidir que quere­ fenomenológica. O modo cartesiano tenta fazer tudo às pressas, em um pas­
mos efetuar esse tipo de vida. Não precisamos ser forçados a isso por razões so. Suspende todas as intencionalidades de um a só vez. Realça um pouco
como aquelas que nos forçam a duvidar ou suspeitar. Assim, embora a dú­ melhor do que o modo ontológico o novo tipo de modalidade, a neutraliza­
vida não seja um bom modelo a usar para nos ajudar no giro fenomenológí- ção, que entra em jogo na filosofia, mas como qualquer coisa feita às pressas
co, a tentativa de duvidar o é. A tentativa de duvidar nos dá um bom vislum­ ele pode nos enganar seriamente. Pode nos fazer pensar a fenomenología
bre do que é a neutralização fenomenológica e de como são nossas inten­ como cética e fenomenalista, e como nos despossuindo do m undo real e das
ções. Dessa maneira, o modo de redução cartesiano tenta nos “jogar” na coisas nele. Até parece guiar-nos ao solipsismo. O modo ontológico é lento,
atitude filosófica. mas seguro; o modo cartesiano é rápido, mas arriscado. A melhor aborda­
Descartes introduziu um ceticismo radical na vida intelectual que con­ gem é usar a ambos, corrigindo a fraqueza de cada um pelo que o outro tem
tinua a contam inar o pensamento que ele inspira. Contudo, é útil adotar o de vigoroso. Em ambas as abordagens, contudo, a chave é ter sensibilidade
tema cartesiano e modificá-lo a serviço da fenomenología, como temos feito, para a diferença entre a atitude natural e a fenomenológica, entre nossos
porque o giro da atitude natural para a atitude fenomenológica é visto erro­ envolvimentos naturais e o afastamento filosófico.
neamente por muitos como um a recaída no cartesianismo. Até mesmo al­
guns proeminentes intérpretes da fenomenología não compreendem bem
isso. E im portante para nós, por conseguinte, fazer a distinção entre o que Alguns termos especiais relativos à atitude fenomenológica
faz Descartes e o que a fenomenología efetiva.
Um dos efeitos seriamente perniciosos do erro de Descartes é que ele H á vários outros assuntos que podem nos ajudar a definir mais precisa­
desacredita as intencionalidades da atitude natural. Ele enfraquece nossa mente a atitude fenomenológica. O tratamento deles será essencialmente uma
natural e válida crença na realidade das coisas que experienciamos, as iden­ explanação de vários termos do vocabulário fenomenològico.
Nossa experiência e análise da perspectiva do ponto de vista fenomeno- tado é que as afirmações fenomenológicas podem ser consideradas necessá­
lógico produz asserções que são, em princípio, apodícticas. Afirmações apo­ rias (podemos ver que elas não podem ser de outra maneira), mas elas tam ­
dícticas expressam coisas que não poderiam ser de outra maneira; elas ex­ bém podem requerer mais esclarecimentos. E perfeitamente possível saber,
pressam verdades necessárias. Além disso, delas se espera a expressão de tais por exemplo, que o presente necessariamente envolve o passado e o futuro,
verdades necessárias. Vemos que o que elas dizem não poderia ser de outra mas não ser tão claro o significado mesmo do que sejam presente, passado e
maneira. Há necessidade filosófica nas evidências apresentadas à atitude fe~ futuro. Podemos saber apodicticamente que um objeto é identificado num a
nomenológica. Consideremos, por exemplo, a afirmação de que um mate- mistura d.e presença e ausência, mas ainda podemos ser vagos sobre a signi­
rial, um objeto espacial como um cubo, somente pode ser dado num a m ul­ ficação plena do que é estar presente e do que é estar ausente.
tiplicidade de perfis, aspectos e lados, e que o cubo é a identidade dada em A redução fenomenológica e a atitude fenomenológica são com freqüên­
tais manifestações. Consideremos também a afirmação de que um a identi­ cia denominadas transcendentais. Falamos da redução transcendental e da ati­
dade é dada para nós num a m istura de presenças e ausências, ou a asserção tude transcendental. Podemos até mesmo nos deparar com frases bastante
de que só podemos ter um tempo presente posto contra o pano de fundo de desajeitadas: “a redução transcendental-fenomenológica” e “o ponto de vista
um passado ou de um futuro. Essas afirmações são apodícticas. Vemos que um transcendental-fenomenológico”. O que significa o termo “transcendental”?
cubo não poderia ser dado de nenhum outro modo, e que o presente nunca A palavra significa “ir além”, baseada na sua raiz latina, transcendere,
é ilusório, mas sempre envolve o passado e o futuro. elevar-se sobre ou ir além, de trans e scando. A consciência, mesmo na atitude
Alguém pode objetar que tais afirmações são apodícticas porque são natural, é transcendental porque ela vai além de si mesma, até as identidades
m uito óbvias, muito triviais, quase muito gratuitas; mas esse é exatamente o e coisas que lhe são dadas. O ego pode ser chamado transcendental à medida
ponto. As afirmações fenomenológicas, como em geral as afirmações filosó­ que é envolvido, em cognição, no alcance das coisas. O ego transcendental é
ficas, afirmam o óbvio e o necessário. Elas dizem-nos o que já sabemos. Elas o ego ou o si-mesmo como o agente da verdade. A redução transcendental
não são informações novas, mas mesmo se não nos dizem nada de novo elas é o giro em direção ao ego como o agente da verdade, e a atitude transcen­
ainda podem ser im portantes e iluminadoras, porque com freqüência esta­ dental é a instância que assumimos quando exercemos esse ego e suas in­
mos confusos justamente sobre trivialidades e necessidades. Quando pensa­ tencionalidades temáticas.
mos sobre o que a maioria das pessoas entende por memória (que seria um a Q uando entramos n a atitude fenomenológica ou transcendental temos
visão de retratos internos), ou sobre quão pobremente muitos filósofos têm de fazer modificações apropriadas nas palavras que usamos. O novo contex­
descrito a percepção (como por exemplo, o influxo de impressões em algum to, um a vez que é tão único, requer ajustamentos em nossa linguagem natu­
tipo de tela interna no cérebro), então a importância de exprimir o óbvio ral. Vamos chamar a nova linguagem que resulta dessas mudanças de trans­
torna-se óbvia por si mesma. As asserções fenomenológicas reivindicam ser cendentalês, e vamos chamar a linguagem que falamos na atitude natural de
apodícticas porque são m uito básicas, m uito inevitáveis, e m uito inelutáveis. mundanês. As duas atitudes são constituídas pelos tipos de intencionalidades
Sua apodicticidade não se origina do fato de que as pessoas que as atingem adequadas a cada uma, e as linguagens faladas em. cada um a refletem as di­
desfrutem de alguma revelação especial de verdades exóticas de que outras ferenças de perspectiva. O estudo das interações entre as duas linguagens,
pessoas nunca ouviram falar. transcendentalês e mundanês, é um bom modo de provocar as diferenças
Além disso, o fato de que as afirmações e evidências fenomenológicas entre a experiência natural e a filosófica.
são apodícticas não significa que nunca podemos melhorá-las ou aprofun­ Algumas das palavras em transcendentalês são sacadas do mundanês,
dar nossa compreensão delas. Uma afirmação filosófica pode ser apodíctica palavras tais como “identidade”, “manifestação”, “presença e ausência” e “ego”,
e ainda ser insuficiente em adequação. Adequação significa que todas as incer­ mas precisamos lembrar que os termos contraem um a sutil m udança no sig­
tezas foram expurgadas da afirmação. Todas as dimensões da coisa foram nificado quando são absorvidos pela nova linguagem, filosófica. A palavra
postas em cena, todas as implicações foram delineadas. Praticamente nada “ciência”, por exemplo, adquire um sentido diferente daquele do da física e
pode ser apresentado tão plenamente para nós, mesmo na filosofia. O resul­ da biologia quando é dito que a filosofia é um a ciência rigorosa. Um novo
U M A DECLARAÇÃO INICIA L D O Q UE É A FENO MENO LO G IA

desde a atitude fenomenológica, considerado apenas como experienciado.


tipo de exatidão é introduzido. A fenomenología é, de certo modo, um a ciên­ Não é um a cópia de um objeto, nem um substituto para um objeto, nem um
cia diferente das ciências da atitude natural, e todo argumento associado sentido que nos relaciona ao objeto; é o objeto mesmo, mas considerado desde
com a redução transcendental é suposto que exista para nos ajudar a ver o o ponto de vista filosófico.
que é o novo sentido. O termo “noesis” é menos enganoso, porém também assume que entra­
Há também algumas palavras que são cunhadas especialmente para o
mos na fenomenologia. “Noesis” se relaciona aos atos intencionais por meio
transcendentalês, palavras que não têm base na atitude natural ou no mun- dos quais intencionamos as coisas: as percepções, os atos significantes, as
danês. Duas dessas são noema e seu correlato, noesis. O termo “noema” se intenções vazias, as intenções cheias, os juízos, as recordações. Mas se refere
refere aos correlatos objetivos das intencionalidades; refere-se a tudo o que é a eles precisamente como vistos do ponto de vista fenomenológico. Assume
intencionado pelas intenções de nossa atitude natural: um objeto material, que efetuamos a redução transcendental. Considera esses atos de consciên­
um retrato, um a palavra, um a entidade matemática, outra pessoa. Porém, cia após terem sido suspensos ou postos fora de ação pela epoché fenomeno­
mais especificamente, refere-se a tais correlatos objetivos precisamente como lógica. A noésis é menos controversa do que o noema porque não somos
sendo vistos desde a atitude transcendental. Refere-se a eles como tendo sido tentados pelo termo a pressupor a sombra de um outro ato paralelo ao ato
postos entre colchetes pela redução transcendental-fenomenológica. Algu­ original, como somos tentados pelo termo “noema” a pressupor um a som­
mas vezes o termo pode ser usado adjetivamente e adverbialmente: podemos bra do “objeto” ou um “sentido” paralelo ao objeto real. A razão por que
dizê-los para prover um a análise noemática, podemos estudar a estrutura somos menos tentados a pressupor “um a noésis” entre nós próprios e nos­
noemática de alguma coisa, podemos considerar os objetos noematicamente. sos atos psicológicos é que, vivendo na tradição cartesiana, nos tornamos
Algumas frases nas quais são usadas essas palavras são proferidas em trans­ habituados a aceitar nossas introspecções como realistas, como nos colocan­
cendentalês. São frases filosóficas. Elas presumem que a neutralidade pró­ do em contato direto com nossa própria vida mental. Essa mesma tradição
pria da filosofia tenha sido introduzida. O uso do termo “noema” é sinal de nos torna inclinados a negar que temos um a revelação direta das coisas no
que estamos na fenomenología, no discurso filosófico, e de que as coisas que
mundo; faz-nos um a demanda de um intermediário, de um a representação
estão sendo ditas estão sendo debatidas a partir de um ponto de vista filosó­ (o “noema”), para conectar-nos às coisas exteriores.
fico, não de um ponto de vista da atitude natural. Podemos também mencionar o fato de que “noesis” e “noema” foram
Esses pontos precisam ser enfatizados porque o noema pode facilmente
ambos cunhados na fenomenologia, e que têm a mesma raiz grega, o verbo
ser mal compreendido. O noem a é freqüentemente tomado por ser um a en­ noein, que significa “pensar”, “considerar”, “perceber”. O termo grego noésis
tidade de algum tipo, algo como um conceito ou um distinto “sentido” dos significa um ato de pensamento e o termo noema significa aquilo que é pen­
objetos da consciência, algo que serve como o veículo pelo qual a consciência sado. Em grego o sufixo -m a acrescentado a um verbo significa reter o resul­
vem a ser relacionada a um a coisa particular. O noema é concebido como tado ou o efeito da ação expressa no verbo. Assim, fantasma significa o objeto
sendo aquilo através do qual a intencionalidade é outorgada consciência, da fantasia, politeuma significa o efeito de politizar (a entidade política), rhéma
como se a consciência fosse autofechada se o noem a não fosse adicionado a
significa o efeito de falar (a palavra), horama compreende o objeto da visão (a
ela. O noema é também concebido como sendo a entidade através da qual a
vista, como um “panoram a”), e migma compreende o efeito de misturar (mis­
consciência tem como alvo este ou aquele objeto particular, aquilo pelo qual
tura). O termo noéma então compreende a coisa sendo pensada ou a coisa de
nossa consciência é relacionada a algum item específico no m undo exterior: que estamos conscientes.
o noema é tom ado como um tipo de mira de bombardeio pela intencionali­
A adaptação do termo grego à fenomenologia é adequada. O noema é
dade. Esta compreensão do noema como um a entidade que faz a mediação qualquer objeto do pensamento, mas considerado precisamente como tal,
é, segundo cremos, incorreta. Mais tarde, no capítulo XIII, veremos em maio­ como sendo pensado ou intencionado, como o correlato de um a intenciona­
res detalhes por que isso é problemático e enganoso. Por hora, é suficiente lidade. O ponto de vista do qual o vemos nesse modo é a atitude fenomeno­
introduzir o termo e dar um a explanação inicial do que ele significa. O noema
lógica. A palavra “noema” é, por essa razão, proferida somente desde essa
é um objeto de intencionalidade, um correlato objetivo, mas considerado
atitude. O que acontece, infelizmente, é que as pessoas freqüentemente to­ sidera novas dimensões tais como a presença da ciência moderna. A fenome­
mam “noema” num sentido psicológico, epistemológico ou semântico. Elas nología provê um dos melhores exemplos de como um a tradição pode ser rea-
perdem de foco a diferença entre a atitude transcendental e a natural, e to­ propriada e trazida de volta à vida num novo contexto.
mam o noema naturalísticamente, epistemológicamente ou semanticamen­ A doutrina da redução transcendental é especialmente im portante por­
te. Elas pressupõem o noema como um intermediário entre o si-mesmo e as que dá um a nova definição de como a filosofia pode estar relacionada à vida
coisas no mundo, quando deveriam estar vendo como as coisas no mundo e à experiência pré-filosóficas. Um dos perigos para a filosofia é que ela pode
são vistas desde um a perspectiva fenomenológica. Em vez de a verem como se pensar capaz de substituir a vida pré-filosófica. E verdade que a filosofia
um “m om ento” (uma parte abstrata) na manifestação das coisas, elas a m a­ alcança o ponto mais alto da razão. Ela engloba outros exercícios da razão,
terializam e fazem-na servir como um elo entre a mente e as coisas. tais como aqueles encontrados nas ciências particulares e na vida prática.
As observações nesta seção sobre vários termos relacionados à redução Estuda como todos esses exercícios parciais estão relacionados uns com os
fenomenológica não são um assunto de mera convenção verbal. Elas expõem outros e como eles se amoldam num contexto final. Porque a filosofia com­
aspectos importantes da nova atitude que define a fenomenología. Além disso, plementa a razão pré-filosófica, pode ser tentada a se pensar como um subs­
a definição dos termos tornará mais fácil expressar certas doutrinas da feno­ tituto para tais exercícios de razão. Pode começar a pensar que pode fazer
menología. O domínio de um vocabulário apropriado não é um assunto in­ melhor do que os mais especializados tipos de pensamentos efetivos. A filo­
cidental num domínio do conhecimento; as coisas em questão não podem sofia pode começar a pensar que pode exercer a vida política melhor do que
ser adequadamente trazidas à luz sem as palavras que as nomeiam. os homens de estado, m elhor do que aqueles que estão envolvidos no debate
perpétuo de como nossa vida em comunidade devia ser conduzida. Pode
começar a pensar que pode fazer um trabalho melhor do que as pessoas re­
Por que a redução transcendental é importante? ligiosas fazem explicando nos mínimos detalhes o que são o sagrado e o su­
premo. Pode começar a pensar que pode substituir as ciências particulares
A primeira vista, somos tentados a pensar que a fenomenología é essen­ como a química ou a biologia ou a lingüística porque nenhum a delas tem o
cialmente um exercício de teoria do conhecimento, um estudo de epistemolo­ sentido do todo. Se a filosofia tenta substituir o pensamento pré-filosófico,
gía, mas ela está muito distante disso. Não tenta apenas lidar com “o problema o resultado é um racionalismo, o tipo de racionalismo introduzido na filoso­
do conhecimento”, com a tentativa de estabelecer se há ou não um a verdade, fia m oderna por Maquiavel com respeito à vida moral e política, e por Des­
e se podemos ou não alcançar “o mundo real” ou o mundo “extramental”. A cartes com respeito aos assuntos teóricos.
fenomenología nasceu no período histórico durante o qual a epistemología A mais im portante contribuição que a fenomenología fez para a cultura
era a principal referência filosófica — e alguns de seus argumentos e vocabu­ e para a vida intelectual foi validar a verdade, a experiência, a vida e o pensa­
lário soaram muito epistemológicos —, mas teve sucesso em romper esse con­ mento pré-filosóficos. Ela insiste que os exercícios da razão exercidos na ati­
texto restritivo. Ela superou suas origens. Aproxima-se dos termos da filosofia tude natural são válidos e verdadeiros. A verdade é efetivada antes de a filo­
moderna e aprende dela, mas também supera algumas das suas limitações e sofia chegar em cena. As intencionalidades naturais alcançam satisfação e
restabelece um elo com o pensamento antigo. A maioria dos mal-entendidos evidência, e a filosofia nunca pode substituí-las no que fazem. A fenome­
da fenomenología vem das interpretações que ainda são muito criticadas nos nología é parasita da atitude natural e de todas as efetividades dela. A feno­
problemas e posições do pensamento moderno, ainda muito presas à tradição menología não tem acesso às coisas e manifestações do m undo exceto atra­
cartesiana e lockiana, que falham em alcançar o que é novo na fenomenología. vés da atitude natural e suas intencionalidades. A fenomenología chega so­
A fenomenología requer um maior ajustamento no entendimento do que é mente mais tarde. Tem de ser modesta; ela deve reconhecer a verdade e vali­
filosofia, e muitas pessoas não podem realizar essa mudança porque não po­ dade das efetividades da atitude natural, nos seus exercícios prático e teórico.
dem libertar a si mesmas de seu background e de seu contexto cultural. A fe­ Então, contempla essas efetividades e suas atividades subjetivas correlatas,
nomenología restaura a possibilidade da filosofia antiga, mesmo quando con­ mas se as efetividades não estivessem lá não haveria nada para a filosofia
pensar. Deve haver opinião verdadeira, deve haver dóxa prévia, se há de ser entrar no pensamento filosófico. Essas doutrinas associadas com a redução
filosofia. A fenomenología pode ajudar as intencionalidades naturais a es­ não são enigmas de desvio-mental que tentam nos tornar obsessivamente
clarecer o que elas buscam, mas nunca substituí-las. introspectivos, ou quebra-cabeças sobre se podemos sair de nós mesmos no
Quando a fenomenología “neutraliza” as intencionalidades que ope­ mundo “extramental”; são esclarecimentos da natureza da filosofia. São úteis
ram na atitude natural, não as dilui, destrói, recalca ou ridiculariza. Ela para mostrar como o discurso filosófico, transcendentalês, difere do discur­
meramente adota um a estância contemplativa em direção a elas, uma instân­ so da prática hum ana e das artes e das ciências, mundanês, a linguagem da
cia da qual pode teorizá-las. A fenomenología complementa a atitude n atu ­ atitude natural. Quando adequadamente compreendidos podem iluminar a
ral; a filosofia complementa a opinião verdadeira e a ciência. A fenomenología ambas, a vida pré-filosófica e a vida filosófica.
pode também indicar as limitações da verdade e das evidências efetivadas na Finalmente, a redução transcendental não deveria ser vista como um a
atitude natural, mas as várias artes e ciências já têm consciência do fato de fuga da questão do ser ou do estudo do ser enquanto ser, antes o contrário.
que elas são todas parciais e limitadas, embora não sejam hábeis para formu­ Quando mudamos da atitude natural para a fenomenológica, suscitamos a
lar suas limitações muito exatamente. E algumas vezes as artes e ciências questão do ser, porque começamos a olhar as coisas precisamente como elas
particulares talvez queiram se tornar imperialistas elas mesmas e dominar são dadas para nós, precisamente como elas são manifestas, precisamente
sobre todas as outras: físicos podem tentar dizer que explicam o todo e tudo como elas são determinadas pela “forma”, que é o princípio de descobrimen­
nele, ou lingüistas podem tentar fazer o mesmo, ou a psicologia, ou a histó­ to das coisas. Começamos a olhar as coisas em sua verdade e evidência. Isso
ria. Quando essas artes e ciências parciais tentam ser mestre do todo e das é olhá-las em seu ser. Também começamos a olhar o si-mesmo como o dativo
outras artes e ciências, elas se tornam pseudofilosofias, mas a filosofia tam ­ do qual os seres são descobertos: olhamos para o si-mesmo como o dativo da
bém pode falsear a si mesma quando tenta ser o senhor sobre as formas pré- manifestação. Isso é olhá-lo em seu ser, porque o coração de seu ser é inquirir
filosóficas de conhecimento, quando tenta substituí-las. no ser das coisas. “Ser” não é apenas “como-coisa”; o ser envolve manifesta­
A fenomenología provê um a maior restauração cultural por reconhecer ção ou verdade, e a fenomenologia olha para o ser primariamente sob sua
a validade das artes e das ciências na atitude natural, e também a validade do rubrica de ser verdadeiro. Olha para o ser “hum ano” como o lugar em que a
senso comum, da prudência na ordem prática. Há um a tendência racionalis­ verdade ocorre. Terminadas todas as suas investigações-cartesianas anotadas
ta no pensamento moderno que quer fazer da filosofia o substituto perfeito sobre os modos de redução, a fenomenologia está apta a recuperar a antiga
para todas as formas pré-filosóficas da razão, e a fenomenología contraria questão do ser, que é sempre nova.
essa tendência. A vertente racionalista moderna, em anos recentes, desaguou
no pós-modernismo, o qual reverte ao outro extremo e nega algum centro de
razão sob qualquer condição. A fenomenología evita esse extremo negativo
também, porque em primeiro lugar nunca adotou a posição racionalista.
O pensamento grego clássico e medieval compreendeu que a razão pré-
filosófica chega à verdade e à evidência, e que a reflexão filosófica chega poste­
riormente e não perturba o que veio antes. Aristóteles não mexeu com a vida
política ou com a matemática; ele só tentou compreender o que eram e talvez
esclarecê-las para elas mesmas. A fenomenología se junta a essa compreen­
são clássica, mas o que pode acrescentar é a discussão explícita da mudança
de foco que é requerida para entrar na vida filosófica. A doutrina da epoché,
a distinção entre atitude natural e fenomenológica, a idéia de neutraliza­
ção das intenções da atitude natural, o papel do m undo e a crença no m un­
do, todas são clarificações do que significa adotar o afastamento filosófico e
PERCEPÇÃO, M E M Ó R IA E IM A G IN A Ç Ã O

Agora já temos um a idéia do que é a análise fenomenológica e por que


é filosófica. Também tivemos um exemplo dessa análise em nosso exame da
percepção de um cubo. Consideramos o papel desempenhado na experiência
hum ana pelas estruturas de partes e todos, identidade em multiplicidades,
presença e ausência. Podemos agora começar a ampliar todos esses temas
desenvolvendo ainda mais descrições fenomenológicas. O que fizemos até
agora foram apenas esboços preliminares. Agora voltaremos à percepção e ao
exame em maior detalhe de como ela presenta os objetos para nós, e de como
ela se opõe a formas derivativas de intencionalidade tais como recordação,
imaginação e projeção no futuro.

Recordação

A percepção presenta um objeto diretamente para nós, e esse objeto é


sempre dado num a mistura de presenças e ausências. Quando um lado está
dado, outros estão ausentes. Algumas partes do objeto ocultam outras partes:
a da frente esconde a de trás, a superfície esconde o interior. Se o objeto é algo
que ouvimos, então ouvir em um lugar exclui aspectos do som que estariam
disponíveis em outro. Podemos superar essas ausências, mas só a custo de perder
presenças que temos, que se tornam ausentes. Por entre essa dinâmica mistura
de presença e ausência, por entre essa multiplicidade de manifestações, um e o
mesmo objeto continua a manifestar a si mesmo para nós. A identidade é dada
numa dimensão diferente daquela dos lados, aspectos e perfis; a identidade
nunca se mostra como um dos lados, aspectos ou perfis.
Porém, a identidade também pode ser dada quando o objeto é recorda­ ou ouvido mental? Nossa resposta a essas questões pode ser posta do se­
do. A recordação provê um outro lugar de manifestações, um a outra m ulti­ guinte modo: o que guardamos como memórias não são imagens das coisas
plicidade por intermédio da qual um e o mesmo objeto é dado para nós. A que um a vez percebemos. Mais propriamente, nós guardamos as próprias
memória envolve um tipo muito mais radical de ausência do que provê o co- percepções antigas. Então, quando recordamos de fato não evocamos ima­
intencionar de lados ausentes durante a percepção, mas ainda manifesta o gens; antes, evocamos aquelas percepções antigas. Quando essas percepções
mesmo objeto. Manifesta o mesmo objeto, mas com um a nova camada noe- são evocadas e restabelecidas, trazem com elas seus objetos, seus correlatos
mática: como recordado, como passado. objetivos. O que acontece na recordação é que nós revivemos percepções
Poderíamos ser tentados a pensar a memória do seguinte modo: quan­ antigas, e recordamos os objetos como foram dados naquele tempo. Captu­
do recordamos algo, invocamos uma imagem mental da coisa e reconhece­ ramos a parte antiga de nossa vida intencional. Trazemo-la de volta à vida.
mos esse retrato como manifestando a mesma coisa que um a vez vimos. Nessa É por isso que as memórias podem ser tão nostálgicas. Elas não são apenas
visão, a recordação não seria de todo muito diferente da que temos quando lembranças, são a atividade de reviver. O passado vem à vida novamente,
olhamos para um a fotografia de alguém e reconhecemos quem é a pessoa e junto com as coisas nele, mas vem à vida com um tipo especial de ausência,
o cenário no qual a fotografia foi tirada. A única diferença seria que a foto­ um a que não podemos superar indo para nenhum lugar, como podemos
grafia está no m undo “extramental”, enquanto a imagem da memória está superar as ausências dos outros lados da mesa movendo-nos para outra parte
no m undo “intram ental”. da sala e olhando desde lá.
Essa interpretação da recordação está muito equivocada. Confunde a re­ Uma nova m istura de presenças e ausências nasce por intermédio da
cordação com um outro tipo de intencionalidade, a de formar imagens. Não é memória, um a nova multiplicidade de manifestações por meio das quais um
surpresa que tendemos a confundir esses dois tipos; parece que temos imagens e o mesmo objeto pode ser dado em sua identidade. Na memória não reati­
interiores no olho mental, e um a vez que aprendemos sobre o cérebro parece vamos apenas um objeto, mas um objeto como se manifestando lá e naquele
inevitável que postulemos algum tipo de projeção de algum tipo de imagem tem|5o, e ainda manifestando-se novamente aqui e agora, mas somente como
sobre um tipo de tela cerebral. Mas a incoerência dessa interpretação torna-se passado. Essa é a forma noemática que os objetos recordados assumem, uma
óbvia quando consideramos o tipo de identidade que ocorre na recordação. forma diferente daquela de objetos percebidos, a qual é somente aqui e ago­
Em formando imagens, olhamos para um objeto que outrem pintou. ra, não lá e naquele tempo. Poderíamos estabelecer a diferença entre formar
Olhamos para esse pedaço de tela colorida ou para aquele pedaço de papel, imagens e recordar d.o seguinte, embora bastante complicado, modo: quan­
e nele vemos algo mais: um a mulher, um a cena rústica. Na recordação, não do vemos um retrato, vemos algo que parece ser algo outro; mas na recordação
olhamos para um objeto que remete a outro. Simplesmente “vemos” ou vi­ parecemos estar vendo algo outro. Essa formulação obscura capta a diferença
sualizamos o objeto diretamente. A recordação é mais como a percepção do entre as duas formas de intencionalidade.
que como formar a imagem de algo. Na memória não vemos algo que se Alguém pode objetar: “Esse tipo de coisa é sem sentido. Como poderia
assemelha com algo que recordamos; recordamos o objeto mesmo, como em reviver um a percepção passada? Como poderia a mesmíssima coisa, lá e na­
um outro tempo. Se formos importunados por um a memória que não nos quele tempo, ser dada para m im aqui e agora? Isso é impossível; deve haver
deixa, não deveríamos, estritamente falando, dizer: “não consigo que essa um retrato dela que eu vejo”. Porém, essa revivificação de um a experiência é
imagem saia de m inha mente!”. Antes, deveríamos exclamar: “não posso pa­ justamente o que é a recordação. E um tanto quanto maravilhoso, mas dessa
rar de visualizar essa coisa!” forma é que estamos ligados. Podemos reviver um a parte antiga de nossa
Suponhamos que estamos dispostos a dizer que não vemos quadros vida consciente, podemos reativar um a intencionalidade. Claramente, deve
internos quando recordamos; que outra coisa estamos supondo dizer? Como haver algum tipo de base neurológica para isso. A atividade neural envolvida
podemos expressar, desde o ponto de vista transcendental, o que acontece na percepção é de alguma maneira reativada, a percepção consciente é resta­
na recordação? Se não vemos quadros internos, por que parece que vemos, e belecida, e manifesta o mesmíssimo objeto que tinha em sua jurisdição ori­
como podemos considerar o que parece mostrar-se em nosso olho mental ginal. Se formos ser fiéis ao fenômeno, teremos de descrevê-lo como ele é e
PERCEPÇÃO, M E M Ó R IA E IM AG IN AÇ ÃO

não projetar nossos desejos nele. Não atingimos o passado por meio da me­ Quando recordo algo passado, também desloco a mim mesmo no passa­
mória; trazemos de volta um m undo expirado e um a situação nele. Nós do. Uma distinção nasce entre mim aqui e agora, sentado num a cadeira num a
podemos viver no passado tanto como no presente. De fato, a menos que sala e percebendo paredes, janelas e sons a minha volta, e eu então, presenci­
tenhamos um sentido geral do passado que chega para nós pela memória, ando um acidente ocorrer na esquina da avenida Wisconsin com a rua Macomb
como poderíamos interpretar um “quadro mental” como um a imagem de ontem, ou envolto em um a despedida dolorosa na semana passada. O recor­
algo visto no passado? Como poderia o sentido de preteridade nascer sempre dar de minhas percepções antigas envolve um reviver de m im mesmo como
para nós? As muitas dimensões ou horizontes do passado são dadas para nós percebendo naquele tempo. Assim como o objeto do passado é trazido à luz
através da recordação, como a temos descrito fenomenologicamente. novamente, também meu si-mesmo do passado enquanto agente daquela
Na memória, o objeto que um a vez foi percebido é dado como passado, experiência é trazido à luz novamente. Através da memória um a distinção é
como recordado. Além disso, é dado como então foi percebido; se vimos um introduzida entre o si-mesmo recordando e o si-mesmo recordado.
acidente automobilístico, nós o recordamos do mesmo ângulo, com os mes­ Poderíamos ser tentados a dizer que nosso “si-mesmo real” é o do aqui
mo lados, aspectos e perfis desde os quais o vimos. Um e o mesmo aciden­ e agora, o que está recordando. O si-mesmo reativado é só um a imagem de
te é dado para nós novamente, e se temos de testemunhar sobre o acidente algum tipo. Mas isso seria inexato. Seria mais apropriado dizer que nosso
podemos ter de reprisar o evento algumas vezes para tentar trazer de volta os si-mesmo é a identidade constituída entre o si-mesmo agora recordando e
detalhes à mente. (“Tente recordar: o pedestre atravessou a rua antes ou de­ o si-mesmo então recordado. Nosso si-mesmo, o si-mesmo, é estabelecido
pois que o sinal de trânsito mudou?”). Quando fazemos a reprise do evento, precisamente n a interação que ocorre entre percepção e memória. Esse des­
não inspecionamos um quadro interior; tentamos exercer novamente a per­ locamento do si-mesmo no passado introduz um a dimensão toda nova na
cepção que tivemos então, e trazer de volta a coisa que vimos, e agimos desse nossa vida mental ou interior. Não estamos confinados ao aqui e agora; não
modo quando recordamos as coisas. Naturalmente, os erros se insinuam; só podemos nos referir ao passado (e ao futuro, como podemos ver), mas
com freqüência projetamos na recordação coisas que queríamos ver ou coi­ podemos também viver nele por meio da memória.
sas que pensamos que deveríamos ter visto. Oscilamos entre a memória e a Algumas vezes essa vida no passado pode ser incômoda. Se tivermos
imaginação. As memórias são notoriamente elusivas; elas não m anipulam feito coisas das quais estamos profundamente envergonhados, ou sido víti­
provas, mas essas são as limitações da memória. Por serem freqüentemen­ mas de acidentes traumáticos, poderemos ser incapazes de nos libertar da
te enganosas não significa que as memórias não existem, ou que são sempre experiência em questão. Elas ajudam a constituir nosso si-mesmo, e não
enganosas. Somente porque existem é que as memórias podem ser algumas podemos nos separar delas; não im porta o quão longe possamos andar, car­
vezes enganosas. Além disso, seu modo genuíno de ser e seu modo enganoso regaremos elas conosco. Estamos colados nelas. O alpinista Peter Hillary,
de ser são diferentes dos modos genuínos e enganosos de ser da percepção. falando das lutas com a morte que ele experienciou no Himalaia, disse: “So­
Uma nova multiplicidade e um a nova possibilidade de identidade são intro­ breviver é às vezes o mais doloroso papel a representar nessa vida. Você...
duzidas pela memória, e novas possibilidades de erros nascem daí. E a tarefa reinterpreta em sua mente aquelas cenas finais novamente, de novo e de novo”
da fenomenologia pôr em cena as estruturas em questão e distingui-las da­ (“Everest is mighty, we are fragile” [O Everest é poderoso, nós somos frágeis],
quelas que operam na percepção e em outros tipos de intencionalidade. New York Times, 25 de maio de 1996, A-19).Um homem envolvido no assassi­
Até agora, neste tratam ento da recordação, nosso foco esteve dirigido nato de prisioneiros disse: “Tenho passado minhas noites dormindo nas pra­
ao lado noemático, ao objeto recordado. Mencionamos o lado noético quan­ ças de Buenos Aires com um a garrafa de vinho, tentando esquecer. Arruinei
do dissemos que a recordação não é a percepção de um a imagem, mas um minha vida. Tenho de ter o rádio ou a televisão ligados todo o tempo ou algo
reviver de um a percepção. Porém, devemos caminhar um pouco mais na para me distrair. As vezes tenho medo de estar só com meus pensamentos”
subjetividade e falar sobre o si-mesmo que é o agente da recordação. Novas (“Argentine tells o f dumping ‘dirty war’ captives” [Argentina admite ter se li­
dimensões do objeto nascem através da memória, mas novas dimensões do vrado de prisioneiros da “guerra suja”], New York Times, 13 de março de 1995,
si-mesmo nascem também. A-l). Um homem que teve um acidente de automóvel é citado dizendo: “Por
meses, eu revivi a colisão em câmera lenta”. Nós somos algo como espectado­ o m undo real a nossa volta permanece como o acreditado (aceito como certo
res quando restabelecemos coisas na memória, mas não somos apenas espec­ e verdadeiro), o contexto padrão dentro do qual imaginamos, do qual esta­
tadores, e não somos como alguém que assiste a um a cena separada. Esta­ mos deslocados. Todas as coisas que imaginamos são penetradas por um
mos engajados no que então aconteceu. Somos os mesmos que estiveram sentido de irrealidade; eventos imaginados não nos prendem ao verdadeiro
envolvidos na ação; a memória nos traz de volta como atuando e experien- pesar ou terror que eventos horríveis de nosso passado podem infligir-nos.
ciando lá e naquele tempo. Sem a memória e o deslocamento que ela traz não Pode ser o caso de que um a imaginação demasiadamente ativa possa distorcer
seríamos completamente atualizados como si-mesmos e como seres hum a­ nossas memórias e nos fazer pensar que algumas coisas aconteceram sem
nos, para bem ou para mal. A síntese da identidade ocorre em ambos os la­ qtie tenham acontecido, mas tal ruptura de limite entre a memória e a ima­
dos da memória — no noético e no noemático. ginação é possível somente se a imaginação e a memória são realmente dois
tipos diferentes de intencionalidades.
Contudo, mesmo quando imaginamos, a síntese de identidade que é
Imaginação e antecipação própria a toda intencionalidade permanece em vigor. Um objeto imaginário
permanece um e o mesmo por meio de muitas imaginações dele. Há um a
A memória e a imaginação são estruturalm ente m uito similares, e uma multiplicidade com um a identidade inalterável em sua essência, mesmo na
facilmente se imiscui na outra. O mesmo tipo de deslocamento do ego ou imaginação. Podemos tom ar coisas que temos percebido de fato e inscrevê-
do si-mesmo que encontramos na memória também ocorre n a imaginação. las em cenários imaginários, e as coisas permanecem as mesmas; ou pode­
Em ambas as formas de intencionalidade, nós aqui e agora podemos m en­ mos fabricar coisas puramente imaginárias e pô-las num a rotina imaginária,
talmente viver em outro tempo e lugar: na memória o lá e então é específi­ e elas também permanecem as mesmas do começo ao fim. Obviamente, ob­
co e passado, mas na imaginação é um tipo de nenhum lugar e “nenhum jetos imaginários não possuem a densa solidez dos objetos percebidos, dado
quando”, mas até na imaginação é diferente do aqui e agora em que real­ que podemos fantasiá-los em todo tipo de situações improváveis, mas não
mente habitamos. Estamos deslocados num m undo imaginário, mesmo somos totalmente livres mesmo em nossas imaginações; as coisas que imagi­
que vivamos em um m undo real. Além do mais, um objeto na imaginação, namos põem algumas restrições sobre o que podemos fantasiar sobre elas.
um objeto imaginário, tanto pode ser tom ado da nossa percepção real como Se a coisa deve permanecer ela mesma, certas coisas não podem ser imagi­
das nossas memórias, mas é agora projetado em situações e transações que nadas sobre ela; se pudessem, a coisa se tornaria algo outro. Podemos ima­
não ocorreram. ginar um gato voando no ar (embora não possamos lembrar de um gato
A principal diferença entre a memória e a imaginação repousa na moda­ fazendo isso), mas não podemos realmente imaginar um gato sendo lido
lidade dóxica própria a cada uma. A memória opera com a crença. As memó­ como um poema, ou um gato sorrindo e falando conosco. Um gato não é o
rias que evocamos, ou que se intrometem em nós, são o que verdadeiramente tipo de coisa que pode ser lida em voz alta, e um gato que sorrisse e falasse
aconteceu e o que experienciamos e fizemos. Não é o caso de que primeira­ não seria mais apenas um gato. Não faz sentido misturar as “idéias” ou mesmo
mente temos as memórias e então acrescentamos a elas a crença; antes, elas as imagens desse modo.
originalmente chegam com a crença (de como era), assim como nossas per­ A imaginação opera então num a modalidade dóxica diferente daquela
cepções chegam com a crença (de como é). Temos de fazer um esforço para da percepção e da memória; ela é irreal, somente “como se”. Contudo, há
apagar a crença na memória, ou para deslocá-la para outra modalidade, tais uma forma de imaginação que tem de se tom ar realística, que tem de recuar
como a dúvida ou a negação. para o modo da crença. É o tipo de imaginação em que nos engajamos quan­
A imaginação, por outro lado, é penetrada por um tipo de suspensão da do estamos planejando algo, quando imaginamos a nós mesmos em alguma
crença, um giro no modo de "como se”. Essa m udança modal é um tipo de condição futura que provocamos pelas escolhas que fazemos. Essa é um a
neutralização, mas diferente do tipo que entra em jogo na redução transcen­ forma antecipada de imaginação e nos traz de volta à terra, por assim dizer,
dental. Na imaginação deslocamos o si-mesmo num m undo imaginário, mas dos vôos da pura fantasia. Suponha que desejamos comprar um a casa. Olha-
mos várias casas, restringimos as opções possíveis a duas ou três, e então Alguém pode objetar que a deliberação de um a ação futura é mais inte­
deliberamos sobre qual comprar. Parte de nossa deliberação envolve imagi­ lectual do que isso. Quando deliberamos, anotamos nossas metas, redigimos
narmos a nós mesmos vivendo em cada um a das casas, usando as salas, ca­ listas de vantagens e desvantagens, e figuramos os meios pelos quais pode­
minhando do lado de fora, e assim por diante. Essas projeções voltam a um mos alcançar o que queremos. Pesamos os prós e contras e tomamos nossa
modo dóxico análogo ao da memória; voltamos ao modo da crença, correlato decisão. Tal cálculo racional é certamente parte da deliberação, mas o sentido
com um sentido de realidade no qual imaginamos. Se somos sinceros sobre total do ser da deliberação sobre o futuro é dado para nós antes de tudo por
comprar a casa, não nos imaginamos flutuando sobre ela como um balão ou nossa projeção imaginativa. A lista de prós e contras só se aplica se nos damos
rastejando pelas paredes como um cupim. Esse tipo de projeção imaginária conta de que essa informação tem relações com o modo que seremos no fu­
é totalm ente correto para sonhos e fantasias, mas não é útil quando se está turo, e é a nossa projeção imaginativa que abre essa dimensão para nós. En­
comprando um a casa. (E interessante notar como os comerciais de televisão saiamos por antecipação nosso próprio futuro. Imaginamos certas satisfa­
tiram proveito da diferença entre fantasia e projeções sérias. Elas apresentam ções desejadas. Podemos em alguns casos achar que nossa antecipação foi
toda sorte de situações atrativas, mas totalmente irreais — um carro rodea­ totalmente equivocada; algumas coisas podem não decorrer como imagina­
do de gente bonita, um caminhão voando sobre o Grand Canyon, um encon­ mos que seriam; mas tais erros são possíveis, em primeiro lugar, somente
tro romântico facilitado por um a pasta de dente —, com a intenção de fisgar porque estamos lidando com o futuro. Essa nova dimensão, de um futuro
o telespectador para imaginar realisticamente a si mesmo num futuro no que tem um conjunto de possibilidades que podem ser determinadas na rea­
qual ele compra o produto.) lidade pelas escolhas que fazemos, é aberta para nós não por listas racionais,
A experiência antecipada de nós mesmos num a nova situação é um des­ mas pelas projeções imaginativas. Só porque podemos imaginar podemos viver
locamento do si-mesmo, mas é o reverso da memória. Em vez de reviver uma no futuro. E as projeções imaginativas também entram nas motivações que
experiência antiga, antecipamos um a futura. Uma vez que o futuro ainda não nos empurram nessa ou naquela escolha; sentimos-nos mais “confortáveis”,
foi determinado, podemos realisticamente antecipar a nós mesmos em vários como se costuma dizer, com um determinado futuro perfeito que com ou­
possíveis futuros e não só em um; imaginamos como teria sido se a escolha tros, e assim estamos inclinados a fazer as escolhas que conduzem àquele. As
tivesse sido feita, e podemos nesse ponto ainda imaginar a nós mesmos em listas intelectuais definem-se no confronto com a antecipação imaginativa.
várias circunstâncias diferentes. Projetamos a nós mesmos no futuro perfeito
em diferentes modos. No empreendimento de compra de uma casa, projeta­
mos a nós mesmos vivendo em três ou quatro casas diferentes; aferimos-lhes Deslocamento do si-mesmo
as medidas. Podemos agir assim enquanto realmente visitamos as casas ou
outras posteriormente, quando sonhamos acordados sobre o que seria. A estrutura formal do deslocamento, no qual podemos aqui e agora
Podemos tom ar tais projeções do si-mesmo por garantidas e assumir imaginar a nós mesmos ou recordar a nós mesmos ou antecipar a nós mes­
que qualquer pessoa pode facilmente realizá-las, mas em algumas situações mos num a situação em qualquer outro lugar e em algum outro tempo, nos
se exige considerável força do ego para se ser capaz de executá-las efetivamen­ permite assim viver no futuro e no passado, bem como na terra de ninguém
te. Para algumas pessoas em algumas ocasiões o peso de imaginar a si mes­ da livre imaginação. Essas formas deslocadas de consciência são derivadas da
mas realisticamente em novas circunstâncias é grande demais; elas colapsam percepção, a qual fornece a matéria-prima e o conteúdo delas. Não é o caso,
emocionalmente e ficam confusas, e seus si-mesmos não têm mais flexibili­ além disso, de que vivemos, antes de tudo, na percepção, então em alguns
dade na identidade para projetar a si mesmas em circunstâncias que ainda momentos decidimos irrom per em deslocamentos; mais precisamente, a
não viveram. Elas podem entrar em pânico diante do pensamento de mudar percepção e o deslocamento mesmo são sempre feitos em contraste um com
para um novo lugar ou m udar de trabalho ou deixar um a certa pessoa. Parte o outro. Mesmo a percepção não pode ser o que é sem ser contrastada
do terror da morte repousa no fato de que nossa imaginação entra em bran­ com a imaginação, a memória e a antecipação. Todas essas formas se diferen­
co em face dela. ciam de um a inicial condição indiferenciada de consciência. Também requer
alguma sofisticação introduzir as diferenças na modalidade dóxica associa­ rem para nós. Vemos que não há necessidade de pressupor um quadro como
da com cada forma. Saber que algumas experiências são verdadeiramente um tipo de substituto para o objeto do passado, e que, de fato, é impossível
passado, saber que algumas são apenas fantasia, não está ao alcance de todo agir assim. Essas imagens da memória, como agora podem os ver, são
mundo. Muitas pessoas pensam que sonhos e quimeras são percepções ver­ incoerências.
dadeiras de tipos íncomuns de coisas. Podemos observar também que a dimensão do passado na memória
Sempre que vivemos no tipo de deslocamento interior que acabamos de irradia luz sobre a experiência do presente que temos na percepção. Porque
descrever, vivemos, por assim dizer, em caminhos paralelos. Vivemos na íme- somos conscientes de que as coisas podem estar no passado, podemos cha­
diatez de nosso m undo circundante, que é perceptivelmente dado para nós, mar a atenção para sua presença quando são dadas para nós: elas agora são
mas vivemos também no m undo do si-mesmo deslocado, o m undo recorda­ dadas como ainda não tendo expirado na ausência temporal. Elas não só
do ou imaginado ou antecipado. As vezes podemos vaguear mais e mais em estão presentes para nós; sua presença mesma vem a ser presente para nós.
um ou noutro deles: podemos estar tão absortos com o que está imediata­ Nós nos tornamos aptos a distinguir um a coisa da presença de um a coisa.
mente a nossa volta que perdemos todo distanciamento imaginativo dele, ou Uma vez mais, contudo, se tentarm os manusear essa presença a partir da
podemos vaguear mais e mais no devaneio e na quimera, tornando-nos pra­ perspectiva da atitude natural, nós a transformaremos em outra coisa (um
ticamente, mas nunca inteiramente, desconectados do m undo circundante. dado sensorio, um a imagem no cérebro), porque a atitude natural tende a
Além do mais, as intenções imaginativas que acumulamos dentro de nós ser­ substancializá-la se se ocupa dela. A presença (assim como a ausência) das
vem para se misturar com e modificar as percepções que temos. Vemos faces coisas é tão sutil e frágil, tão próxima ao nada, que só a atitude fenomeno­
de um certo modo, vemos edifícios e paisagens de um certo modo, porque o lógica, com o seu sentido da delicadeza da presenciação, pode encontrar o
que vimos antes volta à vida quando vemos algo novo e colocamos um ponto termo adequado e a gramática para expressá-la. A atitude natural, norm al­
de vista sobre o que nos é dado. O deslocamento permite que isso aconteça. mente desajeitada nesses assuntos, sempre procura por um a coisa substitu­
Tanto o si-mesmo como o objeto, os pólos subjetivo e objetivo da expe­ ta para mediar entre nós como dativos e as coisas que estão presentes e au­
riência, adquirem um a reserva muito maior de multiplicidades de manifes­ sentes para nós.
tação quando a memória, a imaginação e a antecipação são diferenciadas da
percepção. Todas essas estruturas e ampliações operam na atitude natural,
mas podem ser reconhecidas e descritas a partir da atitude transcenden­
tal, fenomenológica.
Pode ser útil, ao final deste capítulo, m ostrar como as atitudes natural
e fenomenológica, que foram distinguidas no capítulo IV, abordam a memó­
ria cada um a de um modo diferente. Para a atitude natural, o passado está
m orto e acabado; definitivamente não está lá e em outro tempo. A atitude
natural é absorvida pelo presente. Nessa atitude resistimos em atribuir algu­
ma presença ao passado, e além do mais quando tentamos explicar a memó­
ria somos inclinados a pressupor algo (uma imagem, um a idéia da memória)
como um substituto presente para o passado. Procuramos por algo para
substituir o evento que recordamos. Assim, tentar manusear o fenômeno da
memória desde a atitude natural nos leva a um a distorção filosófica de nossa
experiência do passado. Desde a perspectiva transcendental, contudo, com
sua mais refinada e diferenciada compreensão de presença e ausência, esta­
mos aptos a reconhecer o tipo especial de presença que o passado ausente
PALAVRAS, RETRATOS E SÍMBOLOS

Temos considerado a percepção e suas variantes, mas todas as variantes


que examinamos pertencem ã nossa vida “interna”: memória, imaginação e
antecipação. Esse restabelecimento interno de nossas experiências não é o
único domínio no qual as mudanças de intencionalidade ocorrem. A percep­
ção coloca-nos em contato com as coisas no mundo, e as variações podem
tomar lugar em como interpretamos diretamente os objetos que o mundo
nos oferece.
As vezes apenas aceitamos o objeto que é dado para nós (uma árvore,
um gato). Estamos assim engajados num a percepção simples. Porém, às ve­
zes modificamos o modo no qual captamos as coisas que estão sendo pre­
sentadas: temos alguns sons ou sinais dados para nós, mas os captamos não
apenas como sons ou sinais, mas como palavras; temos um painel de madei­
ra que é dado para nós, e o captamos como um a pintura; temos um a pilha
pequena de pedras dadas para nós, e a captamos como um a marca de trilha.
Nesses casos acrescentamos e conseqüentemente modificamos a percepção
que permanece como a base para essas intencionalidades. Introduzimos novas
intencionalidades baseadas nas percepções. Continuamos a perceber as mar­
cas, a madeira e as pedras, mas além de somente percebê-las nós as intencio­
namos de um novo modo. Essas intencionalidades mais elevadas, natural­
mente, são bastante diferentes das que operam na memória, na imaginação
e na antecipação, as quais são restabelecimentos internos da percepção, não
intenções construídas sobre ela.
Os novos tipos de intencionalidade que serão estudados neste capítulo
nos concederão ainda mais multiplicidades por meio das quais podemos
identificar os objetos que encontramos, e ainda mais multiplicidades a par­ car em nossa mente a imagem de John Smith, o proprietário do hotel. A
tir das quais estabelecemos nossa própria identidade como pessoas humanas. “seta” da intenção significativa vai direto através da palavra percebida para o
Burritt Hotel real, não para um a imagem. O Burrit Hotel poderia estar a
cinco milhas de onde estamos; poderia até ter sido demolido para dar lugar
A presença das palavras a um a auto-estrada, e ainda o intencionamos através das palavras que apare­
cem para nós. O Burritt Hotel pode estar ausente, mas ainda estamos dire­
Suponha que estamos olhando um a folha de papel que tem decorações cionados para ele através das palavras. Somos capazes dessas intenções va­
inscritas nela: rabiscos entrelaçados cobrem sua superfície. Nós percebemos zias; somos formados desse modo, e essa habilidade para intencionar o au­
e admiramos o intricado e elegante das linhas. Então, subitamente, algumas sente é o elemento principal no estabelecimento da condição humana.
das linhas se configuram em palavras, “The Burritt Hotel”. As palavras sal­ Por alguma razão, parecemos resistir à idéia de que verdadeiramente
tam para fora do motivo decorativo. Inspecionamos mais de perto e acha­ intencionamos o ausente. Queremos pressupor algo presente com o sentido
mos um a sentença completa oculta nas linhas decorativas: “O Burritt Hotel das palavras: um a imagem, um conceito, um a impressão do sentido, a pala­
tem o melhor preço”. O papel ornam entado é realmente uma propaganda vra mesma. Enquanto tentarmos reduzir a intenção vazia à outra forma de
escondida do hotel local. intencionalidade, enquanto negarmos que podemos intencionar o ausente,
O que nos interessa como filósofos não são os preços baixos do Burritt enquanto tentarmos encontrar presenças substitutas para as ausências, es­
Hotel, mas a m udança de intencionalidade que tom a lugar quando as pala­ taremos bloqueados para um a compreensão adequada do que somos e do
vras subitamente se fazem notar. Antes da mudança, simplesmente percebe­ que é a estrutura da consciência. Não podemos sequer compreender a per­
mos algo que estava lá diante de nós. A percepção foi um processo contínuo cepção a menos que saibamos o que é o seu contrário, a intenção significa­
que envolveu mudanças de foco e movimentos da atenção de um a parte a tiva. Devemos obter um sentido mais preciso da ausência e de seu papel na
outra do papel. Mas, quando as palavras distinguiram-se, nós não mais in­ consciência humana.
tencionamos apenas o que estava diante de nós. Um novo tipo de intenção Além do mais, a intenção significativa é também diferente do tipo de
entrou em cena, um tipo que torna essas marcas percebidas em palavras e ao intenção vazia que acompanha a percepção. Quando vemos a frente de um
mesmo tempo nos faz intencionar não apenas as marcas que estão presentes, edifício, co-intencionamos os lados ausentes, o de trás, o interior, mas esse
mas o Burrit Hotel, o qual está ausente. O novo tipo de intenção é chamado tipo de intenção vazia é diferente do tipo que opera no uso das palavras. As
um a intenção significativa, porque dá sentido às marcas. E obviamente uma intenções vazias que pervadem a percepção são contínuas e sempre mudam.
intenção vazia. É um a intencionalidade encontrada, um a parte não-indepen- Elas são como um a almofada ou um halo que desliza ao redor se algo é dado
dente de um todo maior, porque repousa sobre a base perceptual que apre­ centralmente. Elas cedem gradualmente à presença. A intenção significativa
senta as marcas que se tornaram palavras. verbal, de outro lado, é discreta e não contínua. Abarca seu alvo todo e de
Essa intenção significativa é extremamente im portante filosoficamen­ uma vez e como um todo. Especifica seu alvo mais exatamente e mais expli­
te, devemos defini-la mais exatamente fazendo algumas comparações. citamente do que fazem as intenções vazias na percepção. As intenções signi­
A intenção significativa não é o mesmo que imaginação. Podemos ser ficativas não são regulares e graduais, mas fazem movimentos rápidos, mais
tentados a dizer que quando as palavras se distinguem para nós subitamente identificáveis como um todo: em virtude das palavras “Burrit Hotel”, nós
temos um a imagem visual do Burritt Hotel, e que essa imagem é o que serve significamos apenas o Burritt Hotel por si mesmo, nada mais. As intenções
como o sentido das palavras. Essa explicação seria falsa, as imagens internas significativas, além disso, estabelecem sentidos discretos que podem ser lo­
não são o sentido das palavras. Podemos bem ter essa imagem visual, mas calizados na sintaxe e tornados em afirmações. As intenções significativas
então novamente não poderemos e não poderíamos ter o mesmo sentido. A são a entrada na razão, enquanto as intenções vazias que pervadem a percep­
imagem que vem à mente quando ouvimos um a palavra pode estar somente ção permanecem na sensibilidade. Uma vez que se evidencia para nós que
acidentalmente relacionada com a palavra: o nom e “Burritt Hotel” pode evo- certos sons ou marcas são nomes, e um a vez que constatamos que todas as
coisas podem ser nomeadas, entramos num m undo diferente do da percep­ sempre de um a maneira verbal; as palavras não são apenas eventos esporádi­
ção animal, chamando, e sinalizando; entramos no raciocínio lingüístico. cos ou ocasionais. Estamos sempre já em um modo lingüístico. Estamos
Vamos voltar a pensar na mudança do perceber as marcas no papel para sempre reconhecendo palavras em nossa volta no tagarelar e no discursar de
o intencionar o ausente Burritt Hotel por intermédio das palavras que se outros, em sinais (“Saída”, “Não entre”), e em nossa vida imaginária interna.
distinguiram das linhas. Nós experienciamos essa mudança, e a maioria de As palavras sempre abundam, e as intenções significativas que as estabele­
nós teve alguma experiência desse tipo um a vez ou outra; contudo, a expe­ cem como palavras abundam também. Até nossas percepções são modifica­
riência que temos disso não é necessariamente emocional ou palpável. Nós das pelas palavras que são chamadas à mente quando elas ocorrem; quando
não sentimos a mudança em nosso tórax ou na boca do nosso estômago ou vemos, pela primeira vez, um lugar de que ouvimos e lemos a respeito, tal
atrás de nossos olhos. A mudança é simplesmente um a mudança de inten­ como um campo de batalha ou a casa de um a pessoa famosa, todos os tipos
cionalidade. É um a mudança puramente racional de um tipo de intenção de nomes e asserções vagas surgem dentro de nós, como um rebanho de melros
para outro. Como nos tornamos conscientes de tais intenções? Nós as “ve­ subitamente surgindo de um a árvore após um tiro ter sido disparado. A in­
mos” por introspecção? São elas coisas mentais que de alguma maneira ve­ tuição perceptual se enche de muitas intenções significativas vazias e esti­
mos ou sentimos? Não; e ainda sabemos quando um a ou outra está operan­ mula muitas mais.
do dentro de nós, sabemos se estamos percebendo ou significando. Sabemos A presença de intenções significativas torna possível para nós perceber­
a diferença entre elas e as outras intencionalidades, tais como formar ima­ mos coisas de um modo especificamente humano. A intenção significativa é
gens ou recordar. Não sentimos necessariamente nada quando subitamente comandada pelas coisas em sua ausência, mas essa intenção pode também
tomamos um a superfície como um a pintura, mas o novo modo de tom ar a encontrar preenchimento num a percepção, num a intuição. Já observamos a
superfície é diferente do velho, no qual simplesmente a percebemos. interação de intenções vazias e cheias, de ausência e presença, no estabeleci­
Essas diferenças na intencionalidade tornam-se o foco de nossa atenção mento da racionalidade humana. Entre todos os tipos de intenções vazias e
direta quando adotamos a atitude transcendental. São diferenças que reco­ cheias, aquelas associadas com atos significativos estão entre os mais propria­
nhecemos mesmo antes de entrar na filosofia; antes de fazermos o giro trans­ mente humanos tipos de intencionalidade. Porque podemos nomear e arti­
cendental já sabemos que enxergar um motivo decorativo não é o mesmo cular algo em sua ausência, podemos também ir à coisa mesma e ver se po­
que enxergar um a palavra, e sabemos que a visão de um a superfície é diferen­ demos nomear e articular este algo em sua presença, em sua própria evidên­
te da visão de um a pintura. A filosofia tom a essas diferenças como já dadas, cia, do mesmo modo que ouvimos falar dela em sua ausência. Indagamos se
e sistematicamente as investiga. Volta-se explicitamente para elas. as articulações significativas podem ser transform adas em articulações
Os críticos da fenomenología freqüentemente dizem que ela se assenta perceptuais. Podemos receber mensagens de outros sobre como as coisas são
na introspecção e na intuição das coisas subjetivas, das coisas mentais. Po­ e então ir às coisas mesmas e comprovar por nós mesmos se elas são do modo
rém, as coisas que a fenomenología investiga são aquelas que já foram reco­ que foi dito serem. É especialmente na interação entre presença e ausência
nhecidas por alguém que pensa e fala, coisas como percepções, intenções lingüística que um a forma salientada da identidade das coisas pode ser atin­
significativas e intenções pictoriais. A fenomenología examina essas inten­ gida. Podemos nomear e articular em palavras com m uito maior exatidão do
ções, essas atividades noéticas, e também examina seus correlatos objetivos, que podemos meramente imaginar ou antecipar.
seus noemas, os tipos de objetos que são estabelecidos ou almejados por elas: Há mais um ponto a ser considerado antes de encerramos este trata­
o objeto perceptual, a pintura, a palavra, o sentido verbal, o referente verbal. mento das intenções significativas. Assinalamos que quando subitamente
Temos usado como paradigma introdutório o exemplo do que acontece vemos as palavras “Burritt Hotel” no motivo decorativo na página, intencio­
quando subitamente descobrimos um nome dentro das linhas de um m oti­ namos não mais somente o papel decorativo, mas o Burritt Hotel mesmo, em
vo decorativo. Esse tipo de descoberta, que acontece conosco de tempos em sua ausência. A intenção significativa é direcionada para o hotel. Em segundo
tempos e que pode ser facilmente entendido, é útil como exemplo, mas não lugar, a mesma intenção estabelece algumas das marcas como um a palavra.
é típico de como usamos as palavras. De fato, como seres humanos, vivemos E, em terceiro lugar, a mesma intenção estabelece um sentido como parte da
palavra, A introdução da intenção significativa apresenta assim três elemen­ intenções pictoriais puxam a coisa para perto. A direção da intenção é dife­
tos: um a referência, um a palavra e um a compreensão ou sentido. As duas rente. Na imagem intencionamos Francis Bacon aqui e agora, não lá e então.
primeiras, a referência e a palavra, parecem sem controvérsias, mas o que di­ Francis Bacon como ele era lá e então torna-se presente aqui e agora.
zer da terceira? Como o sentido se encaixa em tudo isso? O sentido não é Uma outra diferença entre a intenção significativa e a pictorial é que a
apenas as marcas que se tornaram um a palavra, nem é simplesmente o hotel. significativa intenciona o objeto de um lance, todo de um a vez, como um
O sentido parece ser um a entidade intermediária estranha entre a palavra e o todo (significamos apenas o Burritt Hotel puro e simples quando pronun­
objeto, um a entidade que parece formar-se de repente no ser em resposta ao ciamos seu nome, não o significamos sob nenhum ângulo especial) enquan­
ato significativo. Parece ser algum tipo de um ser mental, um a “intenção”, to a pictorial apresenta o objeto sob uma certa perspectiva, num a certa luz,
como foi chamado. Em que consiste a intenção, e que tipo de coisa é? Está na com um a certa pose, num certo momento, com certas feições realçadas. A
mente ou na palavra? Existe de qualquer modo? O status do sentido verbal é pictorial é mais concreta, a significativa é mais abstrata.
um a perplexidade filosófica. Notamos esse problema agora, mas não o explo­ Além do mais, a intenção pictorial é mais como um a percepção do que é
raremos aqui; deixemo-lo para um tratam ento mais extenso no capítulo VII. a intenção significativa. A intenção pictorial é muito mais como a visão ou a
audição da coisa: realmente não vemos ou ouvimos a coisa, naturalmente,
porque o que é dado é somente uma imagem e não a coisa mesma, mas o
Imagens modo no qual a pintura é dada tem analogia com o modo no qual a coisa
mesma seria dada. Como a percepção, a intenção pictorial é contínua, pode­
Se as palavras podem às vezes surpreender-nos e saltar fora de um a mos focalizar em uma ou outra parte da imagem, a imagem pode ser clara ou
página, assim o podem as imagens. Suponha que estamos olhando para a desvanecida, suas partes podem ser mais ou menos vividamente articuladas.
mesma folha de papel decorada de que falamos anteriormente; subitamente, Existem diferenças, contudo, entre percepção ordinária e pictorial: não há, por
além das palavras “Burritt Hotel” a face de Harry Trum an aparece na rede exemplo, “outro lado do cubo” para objetos que são representados; há somen­
das linhas. Talvez os proprietários do Burritt Hotel gostassem de sugerir que te o outro lado do painel de madeira no qual a imagem existe. Os únicos lados,
o presidente Trum an hospedou-se lá um a vez. Agora temos não apenas uma aspectos e perfis do objeto retratado são aqueles que são representados.
palavra, mas também um a imagem afirmando-se diante de nós, e correspon­ Significação e formação de imagens são dois tipos de intencionalida­
dentemente não entramos num a intenção significativa, mas num a intencio­ des, mas podem interagir. Podemos usar palavras para falar sobre um a ima­
nalidad e pictorial ou de visualização. A percepção permanece como um a base gem, e quando agimos assim podemos falar sobre um ou outro, o material
para ambas as intencionalidades, mas as duas, a de significação e a de forma­ físico ou o conteúdo da imagem. A formação de imagens envolve a percepção
ção de imagens, são diferentes um a da outra. Tomar algo como um a palavra de um substrato ou um veículo (o painel de madeira, o papel colorido) e um a
é diferente de tomá-lo como um a imagem. Uma vez mais, a intencionalidade intenção do objeto pintado (Francis Bacon, Wyvenhoe Park). Podemos diri­
pictorial não é rara ou surpreendente, mas muito comum em nossa vida gir nossa intenção verbal a um ou outro, ao substrato ou ao tema: podemos
consciente; as imagens nos rodeiam. Vemos a fotografia aqui, a paisagem ali, descrever Bacon na imagem como modesto, como desdenhoso, como mais
o retrato de Francis Bacon na parede acima de nossa estante de livros. envelhecido, e podemos descrever a casa no Wyvenhoe Parle como oculta pelas
Há diferenças entre intenções significativas e pictoriais. Na significação árvores, e o gado como pastando no prado. Porém, podemos também dizer
a “seta” de intencionalidade passa da palavra para um objeto ausente. Está que a pintura está rachada, e que essas manchas azuis contrastam lindamen­
rumo ao exterior. Parte de nós e de nossa situação aqui para algo em qual­ te com essas brancas. Um dos prazeres de olhar para um a pintura vem da
quer outro lugar. Na formação de imagens, contudo, a direção da seta é reversa. mudança entre um foco no tema e um foco no substrato: podemos caminhar
O objeto intencionado é trazido para nós, para nossa própria proximidade; para mais perto da pintura, ou podemos estreitar o alcance de nossa visão,
a presença do objeto é corporificada diante de nós no painel de madeira ou com a finalidade de concentrar no substrato material, apreciar as pinceladas
num pedaço de papel. As intenções significativas apontam para a coisa, as e as cores nesses lugares particulares; então voltamos para um a vista do todo
mais amplo, retendo o todo enquanto nossa posse recente da materialidade ficam muito claramente como devemos intencionar o objeto. Eles somente
da coisa. A interação entre o substrato e a forma realça a presença da obra de chamam o objeto indicado à mente. Em contraste, as palavras geralmente
arte, e tal interação é possível por causa das várias intenções significativas expressam o objeto para nós; elas nomeiam o objeto e então dizem algo sobre
que criamos sobre a coisa que estamos olhando. ele. Quando nomeamos algo, usualmente o fazemos logo por predicação, e
A interação das intenções significativa e pictorial ocorre também quan­ até um a simples palavra usualmente apresenta o objeto sob um certo aspecto
do identificamos sobre o que é a imagem. Se segurarmos um a imagem da (as palavras “cão” e “vira-lata” designam ambas o mesmo animal, mas com
ponte do Brooklyn e indagarmos, “o que é isto?”, as pessoas normalmente u m sentido diferente). Um símbolo, contudo, apenas nos relaciona ao objeto
responderão, “a ponte do Brooklyn”, mas estritamente falando essa é apenas e pára aí. Apenas sinaliza o objeto e o traz à mente sem qualificação.
um a das possíveis respostas. Alguém poderia apenas dizer também, “um a Uma diferença im portante entre sinais de indicação e palavras é que os
imagem” ou “um pedaço de papel”. Alguém a identificaria geralmente como primeiros não entram em sintaxe enquanto as últimas são essencialmente
a ponte do Brooklyn, porque assume que deveria entrar na intencionalidade sintáticas. Símbolos não entram na gramática. É verdade que um a indicação
pictorial que parece estar pressuposta pela questão. A engenhosa ambigüida­ pode bem conduzir a um a outra (a pilha de pedras faz-nos procurar o próxi­
de da presença da imagem mostra-nos como muitas intencionalidades estão mo marcador da trilha, o tiro de partida faz a chamada para a bandeira que
sempre operando na nossa experiência ordinária. sinaliza o fim da corrida), mas isso é concatenação e não sintaxe. Não há
Vamos observar, finalmente, que a formação de imagens está baseada em diferentes modos nos quais as séries de símbolos poderiam ser compostas;
mais do que similaridade. Uma imagem pode se assemelhar ao que ela repre­ eles são colocados meramente em seqüência, como no início e no fim de uma
senta, mas não é feita para ser um a imagem pela virtude da semelhança; uma corrida. A sintaxe, na linguagem, permite um a grande flexibilidade; pode­
irmã gêmea assemelha-se a outra, mas ela não é um a imagem da outra. Ser mos intencionar um a coisa de muitos modos diferentes porque podemos
um a imagem não é apenas ser como algo outro, é ser a presentificação do que expressá-la através da gramática de nossa linguagem, mas os símbolos não
é pintado. Se observamos uma imagem de Harry Truman, vemos Truman pin­ nos deixam livres para configurar a presença das coisas desse modo. Eles
tado, em sua individualidade; não vemos apenas algo que se parece com ele. meramente trazem a coisa à mente.

Indicações, símbolos ou sinais Enriquecimento de multiplicidades, otimização de identidade

Se estivermos cam inhando ao longo de um a trilha e enxergarmos uma No capítulo III consideramos as identidades que são dadas para nós nas
pilha de pedras de aproximadamente dezoito polegadas de altura, tomá-la- multiplicidades de manifestação. Um simples cubo é dado para nós por meio
emos como um sinal de que ainda estamos na trilha. Olharemos adiante e de um arranjo de lados, aspectos e perfis. Agora que examinamos as modifi­
tentarem os ver um a outra pilha ou um a marca num a árvore, para confir­ cações que a percepção pode assumir, vemos que as multiplicidades de lados,
mar a continuação da trilha. A pilha de pedras não é um a palavra, nem é aspectos e perfis são somente algumas das multiplicidades por meio das quais
um a imagem; é um outro tipo de sinal. Na fenomenología, tais sinais têm as coisas são presentadas para nós. Todas as intencionalidades que conside­
sido chamados de indicações, mas tam bém poderíamos chamá-los símbolos ramos neste capítulo e no capítulo V expandem as multiplicidades de mani­
ou sinais. Eles trazem à luz um outro tipo de intencionalidade, a simbólica festações. Vamos sumarizar as formas que examinamos. Em nossa vida inter­
ou indicacional. na, a experiência pode ser modificada nos seguintes modos:
Sinais de indicação são como palavras, naquilo que as palavras têm de 1. Percepção
próprio no remeter-nos para um objeto ausente (uma mecha de cabelo recor­ 2. Recordação
da-nos alguém, um emblema com quatro estrelas representa um general de 3. Imaginação
exército), mas eles são diferentes das palavras na medida em que não especi­ 4. Antecipação
Um e o mesmo cubo pode ser não somente percebido por meio de muitas no após terem manifestado a si mesmos por meio de acontecimentos da vida
perspectivas, mas também imaginado, recordado e antecipado, e é um e o do que havia antes. A atualidade envolvida na verdade não aperfeiçoa somente
mesmo cubo em todas essas experiências. àquele que percebe, mas também a entidade que é manifestada.
Contudo, tais modificações “internas” de percepção pertencem mais As várias intencionalidades que investigamos são efetivadas enquanto
propriamente ao nível da sensibilidade. Tão importantes quanto são no es­ estamos na atitude natural. Percebemos, imaginamos, recordamos e anteci­
tabelecimento da condição humana, também são encontradas, em formas pamos, e também significamos, visualizamos e simbolizamos, enquanto man­
simples, em animais superiores: cães sonham e gatos vêem algum sentido em temos a crença no m undo e o foco mundo-dirigido que caracteriza a atitude
esperar a chegada de um rato. Os outros âmbitos de intencionalidades que natural. Todas as identidades que consideramos aqui são dadas para nós
estudamos neste capítulo são construídos sobre a percepção e são mais pro­ enquanto permanecemos na atitude natural: os marcadores de trilha, Fran-
priamente intenções racionais e humanas: cis Bacon e seu retrato, o parque Wyvenhoe e a pintura que o retrata, o Burritt
Hotel e seu nome são todos reconhecidos através das camadas de manifesta­
1. Percepção ções que ocorrem para nós na atitude natural. Contudo, as descrições refle­
2. Significação
xivas de todas essas atividades, multiplicidades e identidades são executadas
3. Formação de imagens
nas atitudes transcendental e filosófica. Nós, como filósofos, tomamos uma
4. Indicação
distância de todas essas intencionalidades e de seus objetos; nós os contem­
Em cada grupo, todas as variantes são interdependentes. Não podería­ plamos, os distinguimos e os descrevemos de um ponto de vista diferente
mos ter memória sem imaginação e antecipação; não poderíamos ter o poder daquele no qual nós os efetivamos. Suspendemos nossas intencionalidades
para visualizar sem também ter o poder para levar a cabo intenções signifi­ naturais, colocamos entre parênteses as identidades correlatas com elas, e
cativas e o poder para estabelecer e reconhecer sinais de indicação. Nosso desvendamos as complexidades que compõem nossa condição como seres
intercurso perceptual com o m undo espalha-se em variações em nossa vida humanos racionais que têm um m undo e nele experienciam coisas. Prove­
interna, nas quais deslocamos nós mesmos em situações recordadas, imagi­ mos um a análise noética e um a análise noemática e assim lançamos luz so­
nadas e antecipadas, e em variações em nosso modo de apreender as coisas bre o que é sermos no m undo como dativos de manifestação, e clarificamos
no mundo: significar coisas particulares e estados de coisas, formar imagens o que é para os seres ser e ser manifesto.
de coisas que não estão presentes para nós, e simbolizar o que não pode ser
pintado ou posto em palavras.
Um e o mesmo objeto ou evento pode ser agora simbolizado, agora vi­
sualizado, agora intencionado verbalmente e agora percebido; pode também
ser imaginado, recordado e antecipado. Por meio de todas essas permutações
permanece a mesma coisa. Não vemos muitas manifestações diferentes que
apenas relacionamos a um a e à mesma coisa, mas mais propriamente um a e
a mesma coisa é ela mesma dada em novos e variados modos. Nesse fluxo de
manifestações, a mesma coisa é reconhecida inúmeras vezes. Sua própria
identidade é incrementada e intensificada. Até poderíamos dizer que seu ser
é otimizado através do enriquecimento de suas multiplicidades de manifes­
tação, desde que o ser de um a coisa não é desconectado de sua verdade, e
certamente a coisa desfruta mais verdade à medida que suas manifestações são
ampliadas. Há mais de Sonho de uma noite de verão após centenas de interpreta­
ções e execuções do que havia antes. Há mais de um animal e de um. ser huma­
INTENÇÕES E OBJETOS CATEGORIAIS

Os tipos de intencionalidades que exploramos nos capítulos V e VI eram


bastante coloridos e concretos. Examinamos a imaginação, a formação de
imagens, a memória e outros elementos familiares em nossa experiência. Neste
capítulo passaremos a um tipo de intencionalidade mais austera e mais pu­
ramente racional. Examinaremos o que a fenomenología chama de intencio­
nalidade categorial. Este é o tipo de intenção que enuncia estados de coisas e
proposições, o tipo que funciona quando predicamos, relacionamos, coleta­
mos e introduzimos operações lógicas naquilo que experienciamos. Exami­
naremos a diferença, por exemplo, entre um a simples intenção de um objeto
e a elaboração de um juízo sobre esse objeto.
Relembramos que a palavra “categorial” está relacionada ao termo gre­
go katêgoreõ, o qual originalmente significa o ato de denunciar ou acusar
alguém, de publicamente declarar que alguma característica pertence a ele,
que ele é um assassino ou um ladrão. Na filosofia, o termo veio a significar
o ato de dizer algo sobre algo. O termo fenomenológico “categorial” aproxi­
ma-se dessa etimologia. Refere-se ao tipo de intenção que enuncia um obje­
to, o tipo que introduz sintaxe no que experienciamos. Uma casa é um objeto
simples, mas o fato de que a casa é branca é um objeto categorial. O signifi­
cado do termo “Fido” ou “cão” é um significado simples, mas o sentido de
“Fido está fam into” ou “cães são domesticados” é categorial. Quando passa­
mos ao domínio categorial, passamos das simples intenções “unirradiais”
para as complexas intenções “multirradiais”. Como passamos do simples para
o categorial? Como infundimos as coisas que experienciamos na sintaxe?
Como mudamos da percepção para a intelecção?
INTENÇÕES E OBJETOS CATEGORIAIS

O tema que iremos abordar é um desenvolvimento das intenções signifi­ que a precedeu; esse destaque é qualitativamente diferente do que vinha sen­
cativas introduzidas no capítulo VI. As intenções significativas, aquelas asso­ do feito continuamente antes. Contudo, não é ainda o estabelecimento de
ciadas com as palavras, praticamente sempre nos colocam na sintaxe e na for­ um objeto categorial. Até agora, estamos num ponto intermediário: conti­
ma categorial. Quase nunca dizemos apenas uma única palavra, e quando o nuamos a experienciar as manifestações do carro, e continuamos a reconhe­
fazemos a palavra normalmente serve mais como uma exclamação ou expletivo cer um e o mesmo carro em todas as manifestações, mas agora dirigimos
(“Harry!”, “Encrenca!” “Rápido!”) do que como um a unidade lingüística ope­ nossa atenção para um a das manifestações e a trouxemos para o centro do
rativa completa. Exercemos nossa humanidade mais completamente, agimos palco; ela distingue-se de todo o resto. Uma parte vem em primeiro plano
como animais racionais mais intensamente quando usamos palavras, e nossa contra o segundo plano geral do todo.
realização da verdade e do pensamento está implicada em nosso uso da lin­ (3) Mais um passo é necessário para estabelecer um objeto categorial.
guagem; a discussão sobre a intencionalidade categorial é, além disso, de grande Interrompemos o fluxo contínuo da percepção; voltamos para o todo (o car­
importância na fenomenología, em nosso estudo do que é o ser hum ano e do ro), e agora o tomamos precisamente como sendo o todo, e simultaneamen­
que é ser um dativo de manifestação. Além do mais, é especialmente no seu te tomamos a parte que destacamos (a abrasão) como sendo um a parte nesse
tratam ento da intenção categorial que a fenomenología provê recursos para todo. Agora registramos o todo como contendo a parte. Uma relação entre o
escapar do predicamento egocêntrico da filosofia moderna. Algumas das mais todo e a parte é enunciada e registrada. Nesse ponto podemos declarar, “esse
originais e valiosas contribuições da fenomenología para a filosofia são en­ carro está avariado”. Este acontecimento é um a intuição categorial, porque o
contradas na sua doutrina sobre intenções categoriais. objeto categorial, a coisa em sua enunciação, torna-se realmente presente
para nós. Não temos apenas o carro presente para nós; mais precisamente, o
ser do carro avariado é feito presente.
A gênese dos juízos a partir da experiência O que acontece nesse terceiro estágio é que o todo (o carro) é apresen­
tado especificamente como o todo, e a parte (a avaria) é apresentada especi­
Antes de examinarmos a importância das intenções categoriais, vamos ficamente como um a parte. O todo e sua parte são explicitamente distingui­
tentar obter um a idéia mais completa do que elas são. Como as intenções dos. Uma relação entre eles é distintamente registrada. Uma articulação é
categoriais nascem da experiência de objetos simples? Para expor o processo, efetivada. Um estado de coisas se organiza. Movemos-nos da sensibilidade
devemos distinguir três estágios. para a intelecção, da mera experienciação para um a compreensão inicial. Mo­
Suponha que estamos percebendo um objeto: suponha que estamos vemos-nos da intencionalidade unirradial da percepção para a intencionali­
olhando para um carro: dade m ultirradial'do'juízo. Entramos no pensamento categorial.
(1) Primeiramente, apenas olhamos de um modo bastante passivo. Nosso No primeiro e no segundo estágios, o todo e as partes foram experien-
olhar se move de um a parte a outra, examinamos a multiplicidade de lados, ciados ou vividos sem interrupção, mas não foram tornados temáticos. Es­
aspectos e perfis, examinamos a cor, a maciez, o brilho da superfície, seu tritam ente falando, não foram ainda enunciados. Mesmo no segundo está­
toque de dureza ou suavidade. Tudo isso é um a percepção contínua, tudo se gio, quando a parte foi trazida à frente, ela foi destacada, mas não foi ainda
executa num único nível. N enhum pensamento particular é engajado en­ reconhecida explicitamente como um a parte. A parte foi trazida à frente, mas
quanto continuamos a perceber. Além do mais, enquanto examinamos as seu ser um a parte não foi trazido à frente. Nesse segundo estágio a parte está
várias multiplicidades de manifestação, um e o mesmo carro é continuam en­ sendo predisposta, por assim dizer, para tornar-se conhecida como um atri­
te dado para nós como a identidade na multiplicidade. buto, mas não foi ainda identificada como tal. No terceiro estágio o todo e
(2) Agora, suponha que algumas abrasões na superfície do carro cha­ as partes são articulados de modo explícito.
mam nossa atenção. Nós concentramos a atenção nelas. Destacamos essa Deveríamos notar, contudo, que o terceiro estágio não seria alcançado
parte do carro; não apenas essa parte espacial, mas esse aspecto, essa abrasi- sem a preparação propiciada no segundo, sem o primeiro relance da estrútura,
vidade, n a parte espacial. Esse foco não é apenas mais da percepção dispersa a concentração sobre um aspecto, que vai além da simples percepção contí-
nua. O primeiro estágio não é diferenciado o suficiente para conceder direta­ foi dada na percepção. É um a unicidade salientada. É mais discreta e identi­
mente um a estrutura categorial. O foco especial que ocorre no segundo está­ ficável. A percepção contínua apenas avançava e mais e mais perfis eram dados,
gio é necessário. Temos de começar a experienciar um a parte dentro do todo num processo que teria continuado indefinidamente. Agora, contudo, te­
(a abrasão) antes de podermos enunciá-lo como tal (“o carro está avariado”). mos um único estado de coisas (“o carro está avariado”) que pode ser pego e
M uito material filosófico está contido no que acabamos de descrever. carregado ao redor, por assim dizer; pode ser destacado da imediatez da per­
Descrevemos um a mudança de intencionalidade que ocorre quando vamos cepção e de nossa situação presente. Pode ser transm itido por alguém num a
da percepção simples para a intenção categorial, para o pensamento. A rea­ comunicação. (Em contraste, não podemos realmente transferir nossa per­
lização intencional que descrevemos é a base reflexiva para a linguagem e a cepção ou nossa memória para outrem.) Pode ser logicamente relacionado a
fala humana. A linguagem não flutua por si mesma no topo de nossa sensi­ outros estados de coisas que registramos. O tema da identidade, que foi tão
bilidade; a razão pela qual podemos usar a linguagem é que somos capazes im portante mesmo na percepção, na qual um a identidade é dada através da
do tipo de intenção que constitui objetos categoriais. A sintaxe que define a multiplicidade, adquire um novo sentido e um novo nível de intensidade.
linguagem é fundada na enunciação de todos e partes que têm lugar na in­ Agora temos identidade na consciência categorial, o tipo de identidade que
tenção categorial. A sintaxe na linguagem expressa simplesmente as relações é apresentado, preservado e transportado através da fala.
de parte e todo que são postas em cena na consciência categorial. A razão Terceiro, a identidade do objeto categorial é manifesta toda de um a vez.
pela qual podemos comunicar, a razão pela qual podemos dizer a alguém: Na percepção temos um processo no qual perfis seguem-se uns aos outros
“aquele carro está avariado”, é porque temos o poder de ir da percepção ao seqüencialmente, mas no registro categorial o todo e a parte são dados si­
pensamento categorial. Não é o caso de que podemos pensar porque temos multaneamente. Não é o caso de que primeiro temos o todo por si mesmo
a linguagem; ao contrário, temos a linguagem porque podemos pensar, por­ (“o carro”) e em seguida, como um a realização separada, a parte ou o predi­
que temos a habilidade para efetivar intenções categoriais. O poder de cons­ cado (“avariado”), e então um a relação delineada entre os dois (“é”). Mais
ciência racional subjaz à capacidade para a linguagem. E verdade que a lin­ propriamente, mesmo enquanto registramos o carro como o todo, devemos
guagem que herdamos pressiona nossas atividades categoriais nessa ou na­ já ter a parte em mente. O todo-com-parte vem em bloco, sincrónicamente.
quela direção, nessas ou naquelas formas categoriais, mas a habilidade mes­ Quando temos um todo enunciado dado para nós, não temos o todo primei­
ma da linguagem está baseada nos tipos de intencionalidade que desfruta­ ro e em seguida a enunciação. O todo como tal é manifesto somente como
mos no domínio categorial. enunciado. Essa simultaneidade do objeto categorial é um aspecto adicional
Consumiremos algum tempo desembrulhando as implicações dessa de sua discrição, o qual deve ser contrastado com o caráter contínuo da ex­
transição da experiência ao juízo. Antes de tudo, notemos que o movimento periência perceptual.
no domínio categorial é obviamente descontínuo à expefienciação que o Na terminologia fenomenológica, o estabelecimento de objetos catego­
precedeu. O deslocamento pelo categorial não é apenas de mais percepção; riais é chamado de sua constituição. O termo “constituição” não deve ser to­
não é apenas um adicional desenrolar-se das multiplicidades que são dadas mado para significar algo como um a criação ou um a imposição de formas
na percepção. No terceiro estágio observado anteriormente, quando volta­ subjetivas sobre a realidade. Na fenomenología, “constituir” um objeto cate­
mos para o todo e o registramos precisamente como o todo contendo a parte gorial significa trazê-lo à luz, enunciá-lo, trazê-lo para o primeiro plano, rea­
em questão, interrompemos a continuidade da percepção. Começamos de lizar a sua verdade. Não podemos manifestar um a coisa de algum modo que
novo num novo nível; voltamos sobre o que tinha sido experienciado e ini­ nos seja agradável; não podemos fazer um objeto significar algo que deseja­
ciamos um novo nível de identidade. Esse novo começo instala um novo tipo mos. Podemos trazer um a coisa à luz somente se a coisa oferece a si mesma
de consciência e um novo tipo de objeto, o estado de coisas, como o correlato num a certa luz. A coisa tem de mostrar-se com certos aspectos que podemos
objetivo daquela consciência. destacar se estamos aptos a declarar que ela tem certas características. Se não
Segundo, o estado de coisas que é registrado, o ser do carro avariado, é experienciarmos algo como as abrasões no carro, não estaremos aptos a cons­
um a “unidade”, um a unicidade de modo que é diferente da identidade que tituir o carro como avariado. Naturalmente, podemos ser enganados por falsas
aparências, nas quais o carro meramente parece estar quebrado, e podemos e muitos outros aspectos gramaticais, todos que expressam os vários modos
erroneamente declarar que ele está avariado quando não está, mas então re­ que permitem a coisa ser enunciada. O âmbito do categorial é m uito amplo,
mediamos essa situação simplesmente por outra e mais próxima experiência tão extensivo quanto a gramática da linguagem humana.
do carro, ou por ouvir o que outra pessoa tem a dizer sobre ele, ou avaliando Todo esse domínio da enunciação categorial, em todas as suas varieda­
o que deve realmente ser o caso; então, chegaremos a ver que estávamos en­ des e nuanças, baseia-se, junto com a formação de imagens e simbolização,
ganados. Temos de nos submeter ao modo que as coisas manifestam a si nas intencionalidades “mais baixas” da percepção, da imaginação, da recor­
mesmas. Submeter-nos desse modo não é colocar limitações à nossa liberda­ dação e da'antecipação. A intencionalidade lingüística categorial humaniza
de, mas levar a cabo a perfeição de nossa inteligência, a qual está ajustada por nossas percepção, imaginação, recordação e antecipação; ela as eleva a um
sua natureza a abrir-se ao modo como as coisas são. Submeter-se desse modo nível mais racional do que elas alcançam no reino animal. A intenção catego­
é ser levado ao triunfo da objetividade, que é o que nossas mentes estão predis­ rial introduz novas multiplicidades que suplementam e penetram as multi­
postas a fazer. “Constituir” um estado de coisas é exercer nossa compreensão plicidades encontradas na experiência pré-predicativa.
e deixar um a coisa manifestar-se a si mesma para nós. A intencionalidade categorial é ela mesma um novo tipo de identifica­
Algumas notas adicionais sobre a terminologia: o desenvolvimento de ção, um novo tipo de síntese de identidade, que também suplementa e pene­
objetos categoriais a partir da experiência é chamado constituição genética, tra aquelas alcançadas na experiência pré-predicativa. Quando intenciona­
devido aos estágios por meio dos quais objetividades mais elevadas chegam mos categorialmente o cubo, não temos apenas a identidade de um cubo que
a ser desde as mais inferiores. Objetos e intenções categoriais são obviamente é percebida por meio de um a multiplicidade de lados, aspectos e perfis, e
fundados em objetos e intenções simples. São partes não-independentes. A ativi­ através da multiplicidade de memória, imaginação e antecipação; temos tam ­
dade intelectual hum ana é baseada no sensível. Finalmente, a intencionali­ bém a identidade alcançada através das declarações que podemos fazer sobre
dade predicativa, na qual predicamos um a característica de um objeto e decla­ ele, as declarações que podemos ouvir dos outros a respeito dele, feitas desde
ramos que “S é p”, é a forma proeminente de atividade categorial; o termo seus pontos de vista, e os preenchimentos que podemos alcançar quando
pré-predicativo, em contraste, é usado para designar o tipo de experiência e ouvimos o que os outros dizem e então tentar confirmar suas opiniões indo
intencionalidade que precede a categorial. Um dos principais tópicos na fe­ e olhando e enunciando diretamente por nós mesmos. Uma totalidade nova
nomenología é o da experiência pré-predicativa, o tipo de experienciação que no âm bito da manifestação e da verdade é aberta no domínio categorial.
precede mas também conduz à realização categorial. Mesmo nossas imaginações, memórias e antecipações assumem um a com­
plexidade categorial: podemos antecipar não só “água”, mas “a água fria da
primavera na m ontanha”. Na consciência humana, a percepção, a imagina­
Novos níveis de identidade, novas multiplicidades ção, a recordação e a antecipação, todas mostram o efeito de ser determina­
das para a sua conclusão no pensamento racional. O modo no qual exerce­
Temos permanecido com a predicação em nossa análise da intencio­ mos essas formas de intenção é formado por seu envolvimento na intencio­
nalidade categorial, mas há muitos outros tipos de enunciação que podem nalidade categorial.
acontecer à medida que nos movemos para o nível-superior dessa forma de O que acontece nas intenções categoriais é que as coisas que percebe­
consciência. Além de dizer “o carro está avariado”, podemos enunciar outras mos tornam-se elevadas no espaço das razões, o domínio da lógica, do argu­
características internas do carro: “o carro é grande”, “é velho”, “é um Ford”. mento e do pensamento racional. A experiência categorial é o ponto de tran­
Podemos enunciar suas relações externas: “está na área de estacionamento”, sição que leva da percepção à inteligência, em que a linguagem e a sintaxe
“está próximo ao Flonda”, “é menor do que meu caminhão”. Podemos in­ entram em cena. Por meio da enunciação categorial, as coisas que percebe­
cluí-lo num a coleção: “há cinco carros”, “três dos carros parecem estar avaria­ mos tornam-se registradas e admitidas no campo do raciocínio e da conver­
dos”. Podemos introduzir orações independentes e subordinadas, conjun­ sação. A percepção simples é mais um processo fisiológico e psicológico,
ções, preposições, pronomes relativos e orações relativas, advérbios, adjetivos enquanto o registro categorial é o primeiro movimento no lógico.
Quando falamos, no capítulo III, sobre o objeto como uma identidade em identificação contínua de um e o mesmo objeto por meio de muitos perfis,
um a multiplicidade de manifestação, insistimos que a identidade mesma nun­ dá lugar a um registro do estado de coisas: “Isso não é apenas um a pedra; é
ca se mostra como um dos lados, aspectos e perfis por meio dos quais ela é dada. um fóssil no chão!”
A identidade dele pertence a um a outra dimensão. É essa identidade, contudo, Os exemplos que examinamos — o carro avariado, o comportamento
ã qual nos referimos quando nomeamos o objeto e o trazemos ã enunciação enganador, o fóssil e não a pedra — são enunciações de coisas que estão
categorial. Portanto, o cubo que é perceptualmente dado em e por meio de uma diante de nós. Não são entidades mentais, não são apenas significados na
multiplicidade de lados, aspectos e perfis é a identidade a que nos referimos mente; são modificações no modo como as coisas estão sendo manifestadas
quando pronunciamos as palavras “o cubo” e começamos a predicar caracterís­ para nós. Essas modificações, essas mudanças no modo de presentificação,
ticas dele. A identidade do cubo é a ponte entre a percepção e o pensamento. são “no m undo”, mas obviamente não são no mundo no modo no qual uma
árvore ou um a mesa é no mundo. Mais precisamente, elas são objetos de nível-
mais-elevado. São “lá fora” como modos mais complexos de manifestação,
Objetos categoriais modos mais intricados de ser manifestados. Os estados de coisas expressos
pelas palavras que usamos (“o carro está avariado”, “eles estão me enganan­
Por meio de nossas intenções categoriais, estabelecemos objetos catego­ do”) são verdadeiramente partes do mundo. São como certos segmentos do
riais. Constituímos estados de coisas, tais como o fato de que o carro está m undo — esse carro, esse comportamento — podem ser enunciados.
avariado. Esses objetos categoriais são objetos de fato; eles não são apenas Os estados de coisas nesses exemplos estão aí diretamente diante de
arranjos de conceitos ou idéias. Eles não são objetos “intramentais”; eles são nós. Nós os intuímos. Na maioria das vezes que falamos, contudo, os estados
cristalizações inteligidas que tom am lugar nas coisas que encontramos. Na de coisas que expressamos estão ausentes de nós. Falamos do que não está
atividade categorial enunciamos o modo como as coisas são manifestadas presente: o jogo de futebol de ontem, como nosso congressista está votando,
para nós; expomos as relações que existem nas coisas no mundo. Temos esse o que aconteceu na batalha de Sharpsburg. A posse hum ana da linguagem
foco mundo-dirigido, quer intencionemos as coisas que estão presentes para nos dá um enorme alcance; podemos falar de coisas de há muito tempo e
nós ou as coisas que estão ausentes. Devemos enfatizar o fato de que os objetos de m uito longe, até de galáxias que estão incrivelmente distantes de nós e de
categoriais são modos nos quais as coisas apresentam-se; eles não são “coisas períodos de tempo de bilhões de anos atrás. A maioria de nossas falas não
na mente” subjetivas, psicológicas. alcança exatamente essa distância; a maioria delas é m uito mais local (“o que
Para apresentar a objetividade dos objetos categoriais, vamos examinar ela fez depois que você bateu à porta?” “O dentista era cuidadoso?”), mas
alguns outros exemplos. Já falamos sobre o estado de coisas expresso pela afir­ ainda alcançam largamente o que está ausente.
mação “esse carro está avariado”. Como outro exemplo, suponha que estamos Um ponto extremamente im portante é o fato de que quando falamos
envolvidos num a discussão com duas outras pessoas. A discussão progride, do ausente ainda estamos enunciando um a parte do mundo. Não estamos
mas então algo duvidoso começa a vir à tona; algo não cheira bem no que elas aproveitando-nos de nossas idéias ou conceitos como presenças substitutas
estão dizendo e no modo como o estão dizendo. Esse estágio intermediário é para as coisas que estão ausentes. Estamos constituídos de tal modo que
como o estágio, em nosso exemplo anterior, quando as abrasões no carro co­ podemos intencionar as coisas em suas ausências tão bem quanto em suas
meçaram a atrair nossa atenção. Então, subitamente, registramos a situação: presenças. A intencionalidade da consciência é tal que alcança o m undo ex­
“elas estão querendo fazer a nossa cabeça!” O estado de coisas ficou com­ terior todo o tempo, até quando tem por alvo coisas que não estão diante
preensível de repente na situação, um a intuição categorial é alcançada, os to­ dela. Se nós proferimos um discurso sobre a batalha de Antietam, nós e nossa
dos e as partes são enunciados, a sintaxe é instalada no que experienciamos. audiência intencionamos aquela batalha, ainda que ela tenha acontecido mais
Novamente, suponha que estamos caminhando ao longo de um a trilha, de 130 anos atrás. Se nós aqui em Washington-DC falamos sobre o Empire
olhando as pedras que se estendem ao lado. Subitamente, percebemos que as State Building, é do edifício que estamos falando, não de algum significado
coisas ali não são pedras, mas fósseis. O antes passivo nível de percepção, a ou imagem que pode vir à mente durante nossa conversa.
Nosso discurso sobre o ausente, contudo, é entremeado por episódios e proposições pode ser encontrada em alguns pensadores medievais, em Des­
nos quais falamos sobre o que está presente. Às vezes podemos apenas ter cartes, nos empiristas ingleses, em Kant, na ciência cognitiva contemporânea
algo a dizer sobre os objetos que estão à mão, objetos que podemos perceber. e em muitos filósofos da linguagem.
Outras vezes, nossa fala sobre coisas ausentes pode exigir que tenhamos de Além do mais, a questão da verdade parece requerer algum tipo de sig­
ir e constatar se o que dissemos é verdadeiro ou não. Podemos ser questiona­ nificado ou conceito ou juízo entre nós e a coisa: quando reivindicamos ter
dos sobre o que dissemos, e por fim, em alguns casos, podemos resolver a dito a verdade, nós inferimos — ou não? — que o que dissemos, os signifi­
questão indo ver qual é o caso, isto é, indo a algum lugar e registrando catego- cados que temos correspondem ao que está lá fora. Se não há significados ou
rialmente a situação em sua presença (“Viu só? Nós dissemos a você que uma proposições separadas das coisas que conhecemos, como podemos dizer que
coruja está se aninhando nesse celeiro”). Quando não podemos fazer isso, nossos juízos são conformes às coisas como eles são? O que há ali que pode­
podemos recorrer ao testemunho de outros, por documentos, por relíquias e ria ser conforme aos fatos? Como poderíamos explicar o que é a verdade se
outras formas de confirmação indiretas, mas muitas dessas voltam a ser basea­ não pressupuséssemos significados e juízos como algum tipo de coisas men­
das em registros categoriais diretos que foram executados por alguém. tais? O senso comum parece demandar que pressuponhamos significados
Assim, embora a nossa fala seja na maioria das vezes dirigida para as como algum tipo de entidade na mente.
coisas que estão ausentes, pode se voltar para as coisas que estão presentes E ainda, embora pareçamos forçados a pressupor significados e juízos
para confirmar ou não o que dissemos sobre as ausentes. Uma síntese de como coisas mentais ou conceituais, tais coisas tornam-se filosoficamente
identidades tom a lugar entre o estado de coisas que intencionamos em sua envolventes e desconcertantes. Nunca as experienciamos diretamente. Elas
ausência e o mesmo estado de coisas que agora intencionamos em sua pre­ são postuladas como algo sem o qual não podemos agir, mas também que
sença confirmativa. Identificamos a situação dada agora com aquela mesma ninguém nunca viu. São constructos teóricos menos do que entidades fami­
que intencionamos quando apenas falávamos sobre ela. liares. São postuladas, não dadas, e são postuladas porque pensamos que
não podemos explicar o conhecimento e a verdade sem elas. Como existem?
Que tipos de entidades são? São na mente ou em algum tipo de terceiro
A eliminação dos significados como coisas mentais ou conceituais domínio entre a mente e o mundo? Como fazem seu trabalho de nos repor­
tar aos objetos? Quantas delas temos? Entram elas na existência real e então
N a discussão da transição das ações categoriais que se ocupam com o saem dela, movendo-se do virtual ao atual e voltando ao virtual novamente,
ausente para aquelas que se ocupam com o presente, introduzimos a questão como as evocamos? Parecem ser duplicatas das coisas e estados de coisas fora
da verdade. Notamos que em nossa experiência m undana tentamos ver se as de nós; porque precisamos pressupô-las? Mas como podemos evitar agir as­
afirmações feitas na ausência dos objetos são verdadeiras ou não. Mas parece sim? Proposições e significados como entidades mentais ou representacio-
estar faltando algo em nossa análise até agora. nais parecem ser au pis aller, um beco sem saída, um a aporia. Estamos encai­
Onde existem “os significados” de nossas palavras? Onde estão os juí­ xotados nelas pelas confusões filosóficas.
zos que efetuamos? Tradicionalmente, o significado de nossas palavras, os Acreditamos que um a das mais sofisticadas e mais valiosas contribui­
juízos ou as proposições que fazemos, as idéias que possuímos, todos têm ções da fenomenología para a filosofia repousa em seu tratam ento de juízos
sido tomados como algum tipo de coisa mental ou conceituai, algo mais e significados. A fenomenología está apta a mostrar que não precisamos
próximo de nós, algum tipo de coisas que nunca estarão ausentes. Por que pressupor juízos e sentidos como entidades mentais ou como intermediá­
tais coisas sempre foram pensadas como estando diretamente presentes para rios entre a mente e as coisas. Não precisamos introduzi-los como filosofica­
nossa mente, elas pareceram aptas a servir como um a ponte entre nós e o que mente desconcertantes, seres estranhos que têm o poder mágico de relacio­
intencionam os, especialm ente quando intencionam os algo que estava nar nossa consciência ao m undo exterior. A fenomenología provê um a nova
ausente. Essas coisas explicariam como poderíamos estar direcionados para interpretação do status dos juízos, das proposições e dos conceitos, interpre­
aquelas que não estavam próximas de nós. Essa compreensão de significados tação simples, elegante e verdadeira para a vida. E faz isso do seguinte modo.
Suponhamos que alguém nos diga que os talheres que está nos mos­ dos como misteriosas entidades mentais ou conceituais. Preserva a diretivi-
trando são de prata de lei. Primeiramente, simplesmente concordamos com dade ao m undo de toda intencionalidade; mesmo quando nos referimos a
o que a pessoa nos diz e os vemos como prata. Seguindo sua orientação, um juízo, estamos nos referindo ao mundo, mas ao m undo precisamente
registramos o estado de coisas, “esses talheres são de prata”. Então, começa­ como tendo sido proposto por outrem.
mos a ter dúvidas. A coisa toda nada acrescenta; como poderia ter tantos Essa análise fenomenológica do juízo também nos permite esclarecer a
utensílios de prata? Além disso, não se aparenta ou se assemelha a prata; é verdade como teoria da correspondência. Normalmente, o maior problema
brilhante demais, contém estanho demais. discutido na verdade na teoria da correspondência é como explicar é a “ade­
O que acontece nesse ponto é que mudamos nossa atitude em relação quação” entre a proposição e o estado de coisas. Porém, de fato, um proble­
ao estado de coisas que tínhamos constituído. Originalmente, intenciona­ ma mais profundo é, em primeiro lugar, a questão do que são as proposições;
mos os talheres como sendo simplesmente de prata; nós os intencionamos como elas vêm a ser? Qual o modo de existência delas? Antes de dizer como
ingenuamente e sem rodeios. Agora, começamos a hesitar. Entramos em um a elas podem corresponder às coisas, temos de dizer o que e como elas são.
nova atitude, reflexiva. Ainda intencionamos os talheres como de prata, mas Em vez de postular juízos, proposições e sentidos como entidades me­
agora acrescentamos o qualificativo, “como proposto por esse alguém”. Já diadoras, a fenomenología os vê como correlatos de u m a atitude proposicio­
não mais sim plesm ente acreditamos; suspendemos a crença., mas ainda in­ nal e um a reflexão proposicional. Eles surgem em resposta à nossa apreen­
tencionamos a mesma coisa-e-feição. M udamos o estado de coisas, “esses são de um estado de coisas como sendo meramente proposto por alguém.
talheres são de prata”, no mero juízo ou significado, “esses talheres são de Nessa análise, não somente um estado de coisa é “no m undo”; mesmo uma
prata”. Não é mais um simples estado de coisas para nós; é agora, para nós, proposição é “no m undo”, mas no m undo somente como sendo projetada
um estado de coisas como sendo manifestado por outrem·', esse qualificativo suce­ por alguém. É como o m undo sendo projetado como sendo, por meio do que
de apenas no juízo desse alguém, não no fato simples. alguém está dizendo.
A m udança de ser um estado de coisas para ser um juízo ocorre em Alcançamos o seguinte ponto em nossa análise fenomenológica: move­
resposta a um a nova atitude que adotamos. Vamos chamar nossa nova atitu­ mos-nos da intenção ingênua de um estado de coisas para tom ar reflexiva­
de de “atitude proposicional’, e chamar a reflexão que a estabelece de “refle­ mente um estado de coisas “como estabelecido ou proposto por outrem ”. Os
xão proposicional (ou judicamental)”. Também pode ser chamada de refle­ talheres “são” de prata, mas só como algo estabelecido ou apresentado por
xão apofântica, porque se estabelece e se volta para o juízo, o qual é chamado outrem; nós não mais os intencionamos pura e simplesmente como tais. O
apophansis em grego. O juízo, a proposição, o significado, o sentido nascem que acontece em seguida? Neste ponto temos um estado de coisas como
em resposta a essa nova atitude. O juízo, a proposição ou o conceito não intencionado por outrem. Não temos ainda a verdade da questão resolvida.
estão lá à frente do tempo como um tipo de entidade mediadora antes da­ O que acontece em seguida é que voltamos aos talheres e os inspeciona­
quilo sobre o qual se refletiu. Não estão lá de antemão fazendo seu trabalho mos mais de perto, olhamos a sua nota de compra, procuramos por inscri­
epistemológico de relacionar-nos ao m undo real. Não estão lá já, esperando ções neles, talvez perguntemos a opinião de outras pessoas e assim por dian­
por nós para voltar a eles ou para inferir sua presença. Mais propriamente, te. Então, após nossa própria e suficiente inspeção, podemos concluir, “sim,
são um a dimensão da manifestação, um a m udança no modo de manifesta­ afinal são de prata”. Se esse é o resultado de nossa pesquisa, então acharemos
ção, que nasce quando entramos na atitude proposicional por meio de um a que o juízo do outro corresponde ao modo como as coisas são. Nós já não
reflexão proposicional. Nasce quando mudamos nosso foco. A proposição tomamos o estado de coisas como apenas sendo proposto por outrem. Vol­
não é um a entidade subsistente; é parte do m undo sendo enunciada, mas tamos a intenção diretamente para o “ser prata” dos talheres, mas nosso re­
sendo tom ada apenas como manifestação de outrem: nesse caso, está sendo torno não é como a intenção ingênua original. Agora temos o estado de coi­
tomado como manifestação desse outrem. É o juízo de alguém. sas como confirmado, como passado pelo ácido teste da reflexão proposicio­
O benefício dessa nova explicação de como proposições e significados nal e confirmação. O estado de coisas é o mesmíssimo que originalmente
vêm a ser é que evita a necessidade de pressupor proposições e significa­ intencionamos, e o mesmo que tomamos como apenas proposto por ou­
trem; mas agora tom ado como um a nova camada de sentido, um a nova di­ esse lado; também temos, digamos, as assertivas feitas por pessoas séculos
mensão noemática: agora é um fato confirmado e não apenas um estado de atrás, confirmadas ou não confirmadas pelas pessoas de agora, ou asserti­
coisas ingenuamente intencionado. vas feitas por pessoas m uito diferentes de nós, vivendo em diferentes épo­
Essa explicação da correspondência entre o juízo e o fato pode ser cha­ cas e lugares, ainda compreendidas e, em certo sentido, verificadas ou falsi­
m ada um a teoria “de-cítacional” da verdade, porque envolve o passo de pri­ ficadas por nossa própria experiência reflexiva. Também temos as afirma­
meiro meramente “citar” o estado de coisas (durante a análise crítica, quan­ ções feitas por nós que serão confirmadas ou não confirmadas por outras
do tomamos o estado de coisas como meramente proposto por outrem) e pessoas em outros lugares e épocas. A fala permite trocas intersubjetivas
então, removendo as aspas, anular a reflexão proposicional, deixando a ati­ que se estendem mais amplamente do que fazem as trocas baseadas nas
tude proposicional e voltando à aceitação direta. Contudo, é um a teoria “de- percepções comuns simples.
citacional” que trata de algo mais do que do mero fenômeno lingüístico de Os passos na intencionalidade que temos considerado — da ingênua
introduzir e remover aspas; a teoria provê mais do que um a explicação lin­ intenção categorial, da crítica reflexão proposicional, e do retorno à confir­
güística, porque descreve as mudanças na intencionalidade que subjaz à ci­ mação ou não-confirmação — são todos exercidos na atitude natural. A te­
tação e à de-citação. Começamos com o estado coisas simplesmente, então oria da verdade e do sentido fenomenológica analisa esses passos e seus ele­
nos movemos para o estado de coisas como algo proposto, e em seguida mentos da perspectiva privilegiada da atitude transcendental fenomenológi­
m udamos para o estado de coisas como confirmado. ca. Dessa posição elevada, ela reflete sobre as intencionalidades verdadeiras
Naturalmente, nossa investigação bem pode resultar na conclusão de e falsas que são exercidas em nosso engajamento pré-filosófíco e esclarece o
que os talheres não são de prata afinal; então, o “estado de coisas como algo que neles acontece.
proposto” continua permanentemente. Não de-citamos, não anulamos a re­
flexão proposicional; os talheres nunca foram de prata, foram somente pro­
postos para nós como tais. Por conseguinte, esse particular “estado de coi­ Notas adicionais sobre atos e objetos categoriais
sas” era e é somente um a proposição de outrem, somente um juízo de ou­
trem, somente o significado de outrem, nunca o modo como as coisas são. O Obviamente, estamos mais ativos quando entramos nas intenções cate­
estado de coisas veio a ser permanentemente desqualificado de ser verdadei­ goriais do que quando simplesmente percebemos, imaginamos, recordamos
ramente o caso; permanecerá sempre a opinião de outrem, e um a opinião e antecipamos coisas. H á algo como um novo “produto” na intencionalidade
que é falsa. É interessante notar, incidentalmente, que um a opinião ou um categorial, o objeto categorial, seja esse objeto tom ado como um estado de
juízo é usualmente vinculado a alguém de quem a proposição é, enquanto coisas ou um juízo (o qual é um estado de coisas tom ado como proposto). O
um fato não é a posse de ninguém em particular; está aí para todos. novo produto, o objeto categorial, pode ser destacado de seu contexto ime­
Essa fenomenológica teoria da verdade, em vez de se mover entre enti­ diato e relacionado a algum outro pelo uso da linguagem. Falando podemos
dades mentais ou semánticas e entidades reais, opera inteiramente no domí­ “dar” a outrem o mesmo objeto categorial que vemos e enunciamos agora.
nio da manifestação. Distingue as variedades nos tipos de manifestação (a Essa outra pessoa pode enunciar esse objeto mesmo em sua ausência. Esse
simples, a categorial, a proposicional, a confirmatoria) e fala sobre as identi­ tipo de distanciamento é muito mais radical do que o que ocorre nos deslo­
dades que são efetivadas dentro da nova multiplicidade que essas variedades camentos da recordação ou da imaginação, nos quais podemos presentificar
introduzem. O objeto perceptual, dado por meio de perfis, é agora mais iden­ coisas para nós mesmo na ausência delas. Recordar e imaginar nos propicia
tificado através da articulação categorial e elevado ainda mais como um objeto um sentido original da ausência, mas não permite o tipo de comunicação da
dentro das mudanças da reflexão crítica e da identificação confirmativa. ausência, e o tipo de controle que podemos ter sobre ela, que ocorre na fala.
A dimensão da verificação categorial lingüística também introduz gran­ A intencionalidade categorial eleva-nos a um a forma propriam ente
de riqueza e variedade. Porque envolve um a dimensão intersubjetiva. Não hum ana de verdade, a verdade que envolve a fala e o raciocínio. Mas, se ela
temos somente o outro lado do cubo que alguém pode ver enquanto vemos permite essa forma de verdade, também permite um abuso da verdade pro­
priamente humano; torna possível erros e falsidades num a escala que torna objetos e estados de coisas é cham ada de ontologiaformal, enquanto a ciência
pequenos os erros de percepção, as falhas de memória e os equívocos de das estruturas formais dos significados e das proposições é cham ada apo-
imaginação das intenções reduzidas. Se podemos “dar” ao outro um estado fantica formal.
de coisas que ele não experienciou, podemos também “dar” a ele um a versão Façamos mais um comentário sobre a doutrina que tom a conceitos,
falsa desse estado de coisas em nossa fala, ou podemos “dar” ao outro um juízos, significados ou sentidos como entidades mentais ou conceituais, a
estado de coisas que afinal nunca aconteceu. Mais ainda, podemos até con­ doutrina que temos tentado refutar. Pensar que tais entidades são necessá­
tradizer, isto é, falar contra, nosso próprio si. Podemos ter um a convicção e rias para explicar o conhecimento denuncia um a falha para reconhecer a
então ter um a outra que anula a primeira. Podemos defender como verdadei­ intencionalidade da consciência. E tom ar a consciência como simples, pura
ro o estado de coisas de que essa pessoa é boa companhia, e também defen­ consciência, consciente somente de si mesma, e assumir que a intenciona­
der como verdadeiro o estado de coisas de que essa pessoa é um a companhia lidade deve ser acrescida a ela pela inserção de algum tipo de representação:
detestável. Podemos acreditar que “S é p ” e também defender, em última um conceito, um a palavra, um a proposição, um a imagem mental, um sím­
instância, por implicação, que “S não é p”. Freqüentemente, tais contradi­ bolo, um sentido, ou um “noem a”. Nessa visão não é a consciência que é
ções são causadas por envolvimentos emocionais, nos quais desejamos duas essencialmente intencional, mas a representação. É o inserir que faz a cons­
coisas que não podemos possuir juntas e não desejamos enfrentar o fato de ciência intencional e especifica o que a consciência intenciona e como ela o
que não podemos ter ambas; também podem ser causadas por confusão, intenciona: o inserir estabelece um a intenção, um a referência e um sentido.
desatenção e inabilidade para controlar o material intelectual das coisas à A representação nos relaciona aos objetos “exteriores” e lhes dá um certo
mão. Examinaremos essa origem intelectual da.contradição quando chegar- significado. Porém, como poderia tal aditivo colocar intencionalidade na nos­
mos ao tópico da vaguidade. sa consciência? Como poderíamos saber que o que é dado para nós é um a
Entrar no domínio categorial também permite a introdução da lógica. palavra ou imagem ou um conceito, e que representa algo “além” de si mes­
A lógica não pertence ao reduzido nível da percepção e suas variantes, mas mo? Como poderiam as muitas dimensões de um “exterior” surgir para nós
entra em cena no nível categorial. Uma vez tendo constituído objetos catego- se não estivessem aí desde o começo? Se a consciência não se pusesse em
riais, podemos formalizar esses objetos e prestar atenção à consistência ou marcha sendo intencional, nunca poderia figurar como ser assim.
inconsistência das formas que disso resultam. Em vez de lidar com o objeto
categorial, “o carro está avariado”, podemos lidar com a forma pura, “S é p”,
em que o conteúdo do objeto é representado indiferente e a sintaxe é manti­ O fenômeno da vaguidade (incerteza)
da no lugar. Em vez de lidar com “carro”, lidamos com “todo e qualquer objeto”
e, em vez de com “avariado”, lidamos com “todo e qualquer atributo”. Então, Vimos considerando as intenções categoriais e seus objetos correlatos,
podemos examinar as relações entre várias formas e ver, por exemplo, que a bem como a verdade, o significado, os juízos, os estados de coisas, a verifica­
forma “S não é p” não é consistente com a forma “Sp ê q”. Se fôssemos afirmar ção e a lógica. A fenomenologia também trata de um outro tópico que joga
a últim a e em seguida afirmar a primeira (“essa casa vermelha é cara; essa casa um papel estratégico nessa rede de phenomena, tópico que é só rara e margi­
não é vermelha”) estaríamos contradizendo a nós mesmos. A consistência nalmente tratado pela maioria dos filósofos. E o fenômeno da vaguidade. A
lógica é um a condição necessária para a verdade das afirmações; se as afirma­ vaguidade é im portante não só com respeito às questões mais científicas da
ções se contradizem em virtude de sua forma lógica, então a priori elas não lógica, do significado e da verificação, mas tam bém com respeito ao uso or­
podem ser verificadas pela nossa experiência das coisas mesmas. dinário da linguagem e ao estabelecimento de um falante responsável.
Uma distinção é introduzida na fenomenologia entre dois tipos de sis­ Quando dizemos ou lemos algo, é usualmente assumido que pensamos
temas formais, uns pertencendo aos objetos e estados de coisas e ao lado o que dizemos ou lemos. Freqüentemente esse não é o caso. As palavras são
“ontológico” das coisas, e outros pertencendo aos juízos ou proposições e freqüentemente usadas sem pensamento. Podemos estar superficialmente
à região do sentido e do entendimento. A ciência das estruturas formais de lendo algo, ou podemos ouvir alguém falar, mas falhar em prestar atenção
ao que ele diz, podemos até dizer coisas a nós mesmos sem estar propria­ Nossa opinião não poderia se manter se fôssemos às coisas sobre as quais
mente conscientes do significado do que dizemos, ou podemos estar recitan­ estamos falando e tentássemos prová-las e registrá-las tais como estabelece­
do algo mecanicamente. As vezes a matéria de que estamos falando está além mos que seriam. Nossas proposições seriam não-confirmadas. Em tal erro
de nós; realmente não compreendemos o que estamos dizendo. M uito do nós realizamos um pensamento distinto, e enunciamos um objeto catego­
que as pessoas dizem sobre política, por exemplo, se enquadra nisso. Muito rial, mas o pensamento e o objeto são falsos. Devemos ter superado a va­
do que dizem é vago: os slogans são repetidos, as idéias favoritas são alardea­ guidade e alcançado a distinção se estamos a ponto de incorrer em erro.
das, asserções feitas por outros são mencionadas verbalmente, mas sem com­ A vaguidade fica entre a ignorância e o erro. E pensamento incipiente.
preensão. A maioria das sondagens de opinião pública mensura um pensa­ É um a tentativa de pensar que não chega lá exatamente, mas usa as palavras
mento vago. O poder hum ano da fala, o nobre poder que nos dá nossa digni­ que geralmente indicam pensamento, e por essa razão dissimula, embora
dade como seres humanos, também torna possível para nós parecer estar involuntariamente. As palavras são ostentadas e dão a impressão de pensa­
pensando quando realmente não estamos. Isso é um modo especificamente mento, mas há pensamento insuficiente por trás delas.
hum ano de falhar em ser o que se poderia ser, e é muito im portante nas Em alguns casos, é possível para o orador que começa com vaguidade
ocupações humanas. pensar por meio das coisas de que ele está falando e enunciar os estados de
O que ocorre na fala sem pensamento é que a atividade categorial que coisas e juízos que ele deseja enunciar. Neste caso, o orador m udou da vagui­
deveria acompanhar a fala não é adequadamente exercida. Há uma atividade dade para a distinguibilidade. Ele alcança com êxito os objetos categoriais que
categorial, mas não à altura do ser do problema discutido ou asseverado. Há estava esforçando-se por constituir. Ele agora pensa claramente. Ele agora
um a sucessão de idéias, mas não um pensamento. Se falamos vagamente, al­ manifesta o estado de coisas ou o juízo que estava anteriormente tentando
guém que nos ouve e que é mais atento do que nós normalmente irá achar, presentar.
enquanto o tempo avança, que o que estamos dizendo não faz sentido. Está Quando o orador vai da vaguidade para a distinguibilidade, pode achar
deturpado. Irá nos pedir para esclarecer o que estamos querendo dizer, para que o juízo que finalmente alcançou é finalmente o mesmo que ele tinha
dar sentido à confusão que estamos apresentando. Se ele tentar argumentar vagamente afirmado; o juízo é o mesmo nos dois m odos de manifestação, o
conosco ficará continuamente frustrado; argumentar com alguém que fala vago e o preciso. Mas pode também achar que o juízo preciso não é o mesmo
vagamente é como tentar usar granadas de mão para dispersar um nevoeiro. que o vago; mais precisamente, ele pode achar que o juízo vago abrigava
Um ouvinte que não for mais atento do que nós, contudo, não perceberá que contradições dentro de si mesmo, e agora que a distinguibilidade foi alcan­
estamos falando vagamente. Em sua própria vaguidade, ele sentirá, se gosta da çada as contradições ficaram conhecidas; elas tinham sido ocultas, precisa­
posição que parecemos tomar, que estamos enunciando com êxito um a crença mente por causa da vaguidade. Portanto, a possibilidade de contradições
comum: “un fou trouve toujours un plus fou qui 1’admire”. Se o ouvinte não lógicas ou consistência dem anda que nós tenhamos trazido o juízo para a
simpatiza com o que parecemos estar lhe dizendo, ele ficará frustrado conosco distinguibilidade, que o tenhamos distintamente enunciado. Até que um
e expressará o que parece ser um outro ponto de vista. Mas, em tudo isso, nem juízo seja trazido à distinguibilidade, não podemos dizer realmente se ele é
sua mente nem a nossa estão verdadeiramente ativas; estamos expressando verdadeiro ou falso, ou mesmo se é consistente ou inconsistente consigo
algo como atitudes emocionais melhor do que opiniões distintas. Não há ar­ mesmo ou com outros juízos, porque ainda não sabemos o que realmente o
gumento real, somente um a colisão de pensamentos meio-formados. juízo é. Ainda não existe como um significado distinto, significado que po­
A vaguidade seria distinta de duas outras falhas com respei to à verdade deria ser verdadeiro ou falso, consistente ou inconsistente. Temos de saber o
e aos objetos categoriais: a ignorância e o erro. Na ignorância nós simples­ que alguém está dizendo antes de podermos determinar se o que ele diz é
mente não tentamos enunciar os objetos categoriais em questão; apenas si­ verdadeiro ou falso.
lenciamos sobre o problema. Não fingimos pensar sobre ele, e não parece­ A vaguidade pode abrigar inconsistência, mas pode tam bém abrigar
mos estar pensando. Quando incorremos em erro, formulamos um a opinião incoerência. Inconsistência significa que um a parte do que dizemos contradiz
sobre algo, e assim fazemos explicitamente, mas ela m ostra ser incorreta. um a outra parte com respeito à estrutura lógica formal: dizemos ambos, “S
é p” e “S não é p”. Incoerência, de outra parte, significa que o conteúdo, como dessa conduta, seja em negócios pessoais, institucionais ou políticos, provo­
oposto à forma, de nossos juízos não está adequadamente reunido. Significa cará ou piedade ou pesar no observador, dependendo de como ele será afeta­
que estamos usando palavras-conteúdo que não fazem sentido quando pos­ do pela ação em questão.
tas juntas: podemos, por exemplo, dizer que, literalmente, a nação é uma
grande família, ou que a constituição política assegura um trabalho para
cada um, ou que o cérebro conhece quem está entrando pela porta (é a pes­ Objetos categoriais e inteligência humana
soa que conhece as coisas, não o cérebro). A contradição lida com a forma
dos juízos, a incoerência lida com seu conteúdo, e ambos podem ocorrer na Em vez de fechar este capítulo com o tema da vaguidade, que é um a
névoa da vaguidade. As palavras significam coisas, mas é possível pôr as pa­ deficiência no pensamento humano, vamos terminar num a nota mais posi­
lavras juntas de m odo a que o todo não signifique coisa nenhuma. Algumas tiva e considerar algumas das excelências do domínio de objetos categoriais.
partes do todo “falam contra” outras partes, ou algumas partes não são mis­ A linguagem hum ana difere dos sons animais porque contém a sintaxe.
turadas adequadamente com outras partes (características que pertencem à A linguagem hum ana contém som, mas seu som é estruturado por padrões
família são misturadas com as da nação, características do todo da pessoa fonêmicos e por partículas gramaticais, inflexões e arranjos. É o ordenamen­
são misturadas com as de um a parte orgânica da pessoa). to gramatical da linguagem que torna o sistema de sinal lingüístico acessível
Alguém sempre é vago em alguma ocasião, e não há nada de lastimável ao controle hum ano, que o torna um sistema de extraordinária complexida­
nisso. Temos de começar com a vaguidade quando entramos em um novo de e refinamento, e que o deixa tornar-se o veículo do exercício da verdade. A
domínio do pensamento. As idéias que vêm à mente são, de início, quase sem­ sintaxe eleva sons animais em discurso humano. Na fenomenología, os ele­
pre vagas e necessitam ser trazidas à distinguibilidade, quando as inconsistên­ mentos sintáticos da linguagem têm sido chamados de partes sincategore-
cias e as incoerências na idéia serão removidas. O estudante iniciante em ma­ máticas da linguagem, porque elas “vêm com” as expressões que meramente
temática é normalmente completamente vago sobre os objetos categoriais que nomeiam objetos e características, as partes categoremáticas da fala.
está enunciando. Se ele é um bom estudante, m uda para a distinguibilidade. As partes sintáticas da linguagem obviamente servem para ligar as pala­
Algumas pessoas podem alcançar a distinguibilidade mais facilmente e mais vras. Elas são a gramática de um a linguagem. Esse trabalho lingüístico, con­
rapidamente do que outras. Algumas pessoas podem nunca sair da vaguidade tudo, não é tudo o que elas fazem. Elas também funcionam na intenciona­
em certos domínios. Enquanto outras dificilmente sairão da vaguidade em lidade: a sintaxe da linguagem está relacionada ao m odo como as coisas po­
qualquer domínio. Elas apenas não pensam claramente e distintamente, em­ dem manifestar a si mesmas para nós, o modo como podemos intencioná-
bora utilizem um a linguagem, o que pode aparentar para os outros que estão las e enunciá-las. As partes sintáticas d a linguagem servem para expressar as
pensando adequadamente. Um tagarela é um exemplo vivo de vaguidade. A combinatórias da manifestação, o modo como as coisas podem ser manifes­
opinião pública está inundada de vaguidade, demanda coisas contraditórias tadas para nós em várias relações de parte-todo. A fenomenología não con­
das figuras públicas. O que “eles” dizem, o que “a gente disse”, o que “o ho­ sidera apenas o papel lingüístico da gramática, como estrutura lingüística;
mem disse”, tudo isso é notoriamente vago, mas é ainda o ponto de partida também relaciona a sintaxe à atividade de ser verdadeiro, para evidenciar.
para um pensamento autêntico. Nossos pensamentos, os objetos categoriais Os elementos não-sintáticos da linguagem (termos como “árvore” e
que constituímos, não chegam prontos e acabados desde o início. “verde”) simplesmente nomeiam as coisas e características, mas os elementos
Concluindo, nosso tratam ento da vaguidade lidou com seu aparecimen­ sintáticos expressam o modo no qual as coisas e características são mostra­
to n a fala e no pensamento, mas a vaguidade também ocorre na ação. De das. As partes sintáticas das expressões têm correlatos objetivos. Na senten­
alguém que cronicamente fala sem pensar é suposto que aja do mesmo modo, ça, “a árvore é verde”, os termos “árvore” e “verde” obviamente nomeiam as
saltando de um movimento incompleto para outro e fazendo um a enorme coisas e características que podem ser dadas para a percepção, mas a cópula
confusão das coisas. Nesse caso, a deliberação e a escolha é que são penetra­ “é” também tem referência objetiva, porque a sentença não apenas apresenta
das pela inconsistência e pela incoerência que a vaguidade traz. O espetáculo a árvore e a cor verde: apresenta o ser verde da árvore, ou o estado de coisas
de que a árvore é verde. O “ser característico” da árvore corresponde á cópula precisão e a distinguibilidade no pensamento não atomizam as coisas, mas
“é”. A cópula “é” não apenas liga as palavras “árvore” e “verde”, mas também permitem um a mais profunda apreciação da descrição do todo, possibilitan-
permite que o ser verde da árvore seja intencionado por nós, mesmo em sua do-nos apreender a floresta precisamente porque apreendemos as árvores.
ausência. Para tom ar outro exemplo, se fôssemos unir dois termos, tais como As partes sintáticas da fala expressam formas categoriais, e assim fazen­
“pim enta e sal”, a partícula gramatical “e” poderia corresponder ao “ser jun­ do ajudam-nos a expressar o modo em que o m undo manifesta-se a si mes­
tos” dos dois itens: os dois estão não apenas individualmente manifestados, mo para nós, mas elas também servem para um a outra função. Elas também
mas manifestados como sendo juntos, tomados como um. servem para indicar ou sinalizar que o falante está exercendo os atos de pen­
Por conseguinte, o modo como as coisas podem ser enunciadas por nós, samento que constituem os objetos categoriais. Elas sinalizam que o falante
o modo como elas podem ser intencionadas ou na presença ou na ausência, o está falando e exprimindo um a opinião, e não apenas gemendo ou arrotando.
modo como elas “aparecem em pedaços” ou “aparecerá nos todos” para nós, Quando ouvimos alguém falar, ouvimos mais que os sons; também ouvimos
tornam-se possíveis através da sintaxe da linguagem, e o gênio gramatical de a ordenação gramatical dos sons. Em virtude dessa codificação temos o m un­
cada linguagem provê um estilo de manifestação que é distintivo da cada lin­ do e as coisas nele expressas para nós, e também temos a presença dada, para
guagem. A fenomenología relaciona a sintaxe aos modos de manifestação. nós, de um falante que tom a a responsabilidade pelo seu ser expresso nesse
Quando registramos um objeto categorial, nós movemos da continui­ modo. A linguagem e a sintaxe são usadas para revelar um mundo e as coisas
dade da percepção para um a mais abrupta presença descontínua de objetos nele, mas elas também, num modo diferente, revelam o falante que está usan­
intelectivos, com todos e partes sendo explicitamente reconhecidos. Apre­ do a linguagem e a sintaxe no momento. Elas revelam um ego transcendental,
sentamos o nivel-elevado, objetos categoriais, e tais objetos vêm em pacotes um agente responsável pela intencionalidade e pela evidência.
descontínuos. Há muitos deles, expressos nas muitas sentenças que fazemos,
Neste capítulo consideramos a intencionalidade categorial, a forma de
e são todos inter-relacionados. Os objetos dados à intelecção formam uma
intenção que sobrevêm da forma mais básica de percepção e suas variantes.
rede. Documentamos cada objeto categorial quando os expressamos; coloca­
A intenção categorial é o domínio da razão ou do logos. Estabelece objetos
mos a nós mesmos na gravação, estabelecemos precisamente isso ou aquilo.
categoriais, objetos que são penetrados pela sintaxe, com partes e todos ex­
Dizemos um a coisa, então outra, então ainda outra, mas enquanto nos
plicitamente registrados. Os objetos categoriais são encontrados no lado
movemos de um a sentença a outra fazemos a anterior permanecer em vigor,
ontológico das coisas (estados de coisas, coisas, atributos) e também no la­
e o que dissemos subseqüentemente tem de ser consistente com o que disse­
do apofântico (juízos, proposições, sentidos, sujeitos, predicados). A verifica­
mos antes. As conexões entre todos esses objetos categoriais são lógicas e não
ção move-se entre esses dois lados, entre o ontológico e o apofântico. Os
apenas associativas. Podemos perguntar se esse objeto categorial ou sentido
estados de coisas e os juízos têm de ser trazidos à distinguibilidade antes de
é consistente com aquele; podemos instigar o falante a evitar a contradição
poderem ser confirmados ou não confirmados, e até antes de poderem ser
(isto é, evitar dizer algo “contra” o que disse antes). Podemos também insti­
compreendidos (na verdade, trazê-los à distinguibilidade é precisamente
gar o falante a explicar o que ele enunciou, a dar razões e esclarecimentos
compreendê-los). Eles são trazidos à distinguibilidade fora da matriz de va-
sobre o que disse. O domínio categorial é o espaço das razões, e a fenomeno­
guidade, a qual é um tipo de alicerce e fonte de categorialidade.
logía explora as intencionalidades intricadas que o constituem.
Nossa atenção foi dirigida aos objetos categoriais, mas, como assinala­
Quando somos bem-sucedidos em alçar os objetos que experienciamos
mos, o domínio do categorial também envolve a emergência de um falante
na precisão de objetos categoriais, não os fragmentamos em pedaços desco­
responsável. Requer um si elevado além do si constituído na percepção, na
nectados uns dos outros. Mais precisamente, tornamos disponível um a mais
memória e na imaginação. Objetos categoriais envolvem atividade catego­
profunda continuidade entre as coisas. Em vez de um fluxo perceptual são
rial, a qual por sua vez requer um agente da verdade que a realiza. É para esse
dados estados de coisas inter-relacionados e, atrás deles, o sentido de um
si, o ego transcendental, que agora iremos nos voltar.
m undo ou de um cosmos. O domínio categorial traz um novo sentido enun­
ciado do todo; não é o caso de que somente o pré-categorial é holístico. A
VIM

A F E N O M E N O L O G IA D O SI (SELF)

As coisas que experienciamos presentara a si mesmas como identidades


dentro da multiplicidade de manifestações. Nosso próprio si, nosso “ego”,
também estabelece e presenta a si mesmo para nós como um a identidade
num a multiplicidade de manifestações, mas a multiplicidade na qual nos
presentamos para nós mesmos é diferente daquela na qual as coisas são
presentadas. Nunca nos presentamos para nós mesmos no m undo como
apenas um a coisa a mais; permanecemos, cada um de nós, como centro, co­
mo os agentes de nossa vida intencional, como aqueles que têm o m undo e
as coisas neste dadas a eles. Nosso poder de manifestação, nosso ser dativo
de manifestação para as coisas que aparecem, introduz-nos na vida da razão
e no modo hum ano de ser.

O ego empírico e o transcendental

Há um a admirável ambigüidade em relação ao ego: de um lado, ele é


um a parte comum do m undo, um a das muitas coisas que nele habitam. Ele
ocupa espaço, dura através do tempo, tem características físicas e psíquicas,
interage casualmente com outras coisas no mundo: se ele cai, cai como qual­
quer outro corpo; se é empurrado, tom ba como qualquer outra coisa; se é
tratado com química, reage como qualquer organismo vivo; se raios de luz
aquecem seus órgãos visuais, reage eletronicamente, químicamente e psico­
logicamente. O “eu” é um a coisa material, orgânica e psicológica. Se fôsse­
mos tom ar o si simplesmente como um a das coisas no mundo, estaríamos
tratando-o como o que pode ser chamado de ego empírico.
De outro lado, esse mesmíssimo si pode também ser posto contra o Um outro tipo de reducionismo, um tipo mais sofisticado, é o psicoló­
mundo: ele é o centro de manifestação para quem o m undo e tudo nele gico; é chamado psicologismo. Desde seus primórdios no começo do século
manifesta a si mesmo. É o agente da verdade, o único responsável por juízos XX, a fenomenologia atacou a interpretação psicologista da verdade, da ra­
e verificações, o “dono” perceptual e cognitivo do mundo. Quando conside­ zão e do ego; o psicologismo foi a frustração contra a qual a fenomenologia
rado dessa maneira, ele não é mais simplesmente um a parte do mundo; ele originalmente definiu a si mesma. Não obstante, m uito paradoxalmente,
é o que é chamado de ego transcendental. m uita gente erradamente considera a fenomenologia mesma um a forma de
Os egos empírico e transcendental não são duas entidades; eles são um psicologismo.
e o mesmo ser, mas considerado de dois modos. Além do mais, não é apenas O que se entende por “psicologismo”? O psicologismo é a reivindicação
nossa maneira de considerar o ego que introduz a distinção entre o empírico de que coisas como lógica, verdade, verificação, evidência e raciocínio são
e o transcendental; não é apenas nossa adoção de uma instância empírica e simplesmente atividades empíricas de nossa psique. No psicologismo, a ra­
um a transcendental que estabelece a dualidade no si. Mais propriamente, o zão e a verdade são naturalizadas. As leis da verdade e da lógica são tomadas
ego existe nesse duplo modo. Podemos considerá-lo nesse modo dual só por ser leis empíricas de alto nível, que descrevem como nossa mente fun­
porque ele possui o tipo de ser que lhe permite ser assim considerado. Não ciona; elas não são vistas como constituintes dos muitos significados da ver­
poderíamos atribuir um ego transcendental a um a árvore ou a um gato. dade e da razão. Por exemplo, no psicologismo, o princípio de não-contradi-
A ambigüidade do ego consiste no fato de que algo que é um a parte do ção poderia ser tomado simplesmente como um a enunciação de como nossa
m undo possa ficar contra o mundo, e até “possuir” ou ser correlato com mente opera; ele estabeleceria como acontecem os arranjos de nossas idéias;
o mundo. O ego parece ser ambos, um a parte e também um a não-parte do ele não seria visto como a diretiva de como as coisas têm de se revelar a si
mesmas. Diria-nos sobre os hábitos, não im portando se inatos ou adquiri­
mundo. Isso não quer dizer que o ego poderia ser destacado do mundo, que
dos, de nossa mente, não sobre como as coisas têm de ser e como têm de
se poderia descobri-lo ou mesmo imaginá-lo existindo sem um mundo. Mes­
desvelar a si mesmas. Mais, o fato de que a linguagem hum ana requer a sin­
mo como transcendental, o caráter intencional do ego requer que ele tenha
taxe seria apresentado como simplesmente um fato histórico sobre os seres
coisas e um m undo correlato consigo mesmo. O ego e o m undo são mom en­
humanos e seu desenvolvimento psicológico. O psicologismo, junto com o
tos um para o outro. Contudo, quando o ego é considerado como tendo um
biologismo, trata o significado e a verdade como um assunto de fato empí­
mundo, ele não é mais apenas um a parte dele. Ele é correlato com o m undo
rico, não como um a dimensão que subjaz e conseqüentemente transcende o
como o dativo para o qual o m undo é “dado”.
empírico, não como um a dimensão que pertence ao ser das coisas.
Há um a forte tendência para reduzir o ego transcendental ao empírico.
O psicologismo é a mais comum e a mais insidiosa forma de reducio­
Q uando lidamos com a cognição humana, tendemos a querer tratá-la como
nismo. O biologismo o segue de perto. Uma vez que reduzimos as leis do
meramente um item a mais nas trocas causais que acontecem no mundo, a
significado, da verdade e lógicas a leis psicológicas, estaremos inclinados a
par com coisas simplesmente engajadas em causações mecânicas, químicas e reduzi-las num passo seguinte às estruturas biológicas que subjazem a nossa
biológicas. Assim, a geração do conhecimento na mente é freqüentemente psicologia. Assim, no biologismo, o fato de que a linguagem hum ana essen­
tom ada por ser apenas como a geração de mudanças químicas no corpo. cialmente envolve a sintaxe seria tom ado como causado simplesmente pelo
Pensamos que podemos dar um a explicação suficiente do que é o conheci­ modo pelo qual o cérebro é conectado e o modo como ele tem evoluído. Não
mento dando conta do que acontece, por assim dizer, no cérebro e no siste­ seria baseado no fato de que as coisas devem ser enunciadas quando elas são
ma nervoso quando chegamos a conhecer as coisas. Muitos escritores do descobertas. A explicação completa para a sintaxe seria baseada no cérebro,
campo da ciência cognitiva, por exemplo, tentam reduzir o conhecimento e sem atentar ao modo como as coisas existem e manifestam-se a si mesmas.
outros acontecimentos racionais meramente a estados físico-cerebrais. Ten­ A abordagem fenomenológica, de outro lado, poderia obviamente con­
tar manusear o conhecimento desse modo poderia ser chamado de biologismo sentir que a conexão do cérebro é um a das causas da sintaxe na linguagem,
ou reducionismo biológico. bem como da percepção, das intenções categoriais, e do conhecimento da
ciência, mas poderia então reivindicar que alguém deve também prover um a mo; os juízos ou as proposições que fazemos se tornam no final das contas
explicação de um outro tipo baseada nas coisas que aparecem. Além de olhar apenas respostas orgânicas ou psíquicas, tudo isso realmente não diferindo
para a conexão no cérebro, devemos também olhar para o fato de que as da batida do coração, da digestão no estômago, ou de um estado de euforia
coisas podem ser distinguidas em todos e partes, que elas podem ser perce­ ou depressão. Conforme o psicologismo, mesmo nas ciências nós não desco­
bidas e visualizadas, que essências e acidentes podem ser distinguidos nelas brimos o que é; apenas reagimos.
quando elas manifestam a si mesmas para nós. Esse segundo tipo de explica­ Em contraste, a fenomenologia insistiria que ainda que sejamos criatu­
ção é diferente, obviamente, do tipo de explicação que estuda a conexão no ras biológicas e psicológicas, ainda que nossas percepções e juízos requeiram
cérebro e nossas disposições psíquicas; pode ser difícil obter clareza sobre um cérebro e um sistema nervoso e reações subjetivas, quando estamos nas
que tipo de explicação é esse segundo tipo, mas não se pode descartá-la. atividades de julgar, verificar e raciocinar, formulamos significados e reali­
A fenomenologia tem travado um a luta heróica contra o psicologismo zamos presentações que podem ser distinguidas do nosso modo de ser bio­
desde o início. Tenta mostrar que a atividade de alcançar o significado, a lógico e psicológico. Elas podem ser comunicadas aos outros, que podem ter
verdade e o raciocínio lógico não é apenas um a característica de nossa cons­ sentimentos subjetivos que são m uito diferentes dos nossos; elas podem
tituição psicológica ou biológica, mas que entra num novo domínio, um ser gravadas, ser usadas como premissas em argumentos, e ser confirmadas
domínio de racionalidade, um domínio que vai além do psicológico. Não é ou não confirmadas. Elas possuem um tipo de subsistência. Elas podem ser
de fato fácil fazer essa distinção. O ego é, de fato, ao mesmo tempo empíri­ apontadas como verdadeiras ou falsas em si mesmas, completamente sepa­
co e transcendental, e alguém pode limitar-se a um a consideração do la­ radas de nossa subjetividade. São os significados neles mesmos que são con­
do empírico das coisas. O significado e a verdade também têm suas dimen­ sistentes ou contraditórios; são os juízos neles mesmos que são verdadeiros
sões empíricas, mas são mais do que apenas coisas empíricas. Tratá-los como ou falsos. Os significados e os juízos pertencem ao que pode ser chamado o
simplesmente psicológicos é deixar de fora algo importante. Contudo, não é “espaço” das razões, e entramos nesse espaço quando exercemos atividades
fácil mostrar o que é esse algo extra. categoriais. Assim, além de sermos seres biológicos, psicológicos e subjeti­
vos, também entramos como agentes no espaço das razões, entramos no
domínio do racional, e quando agimos assim “vamos além de”, transcende­
O que é o ego transcendental? mos nossa subjetividade, agimos como egos transcendentais.
Consideremos também a virtude da justiça. Quando um a criança de­
Precisamos agora considerar a natureza do domínio racional e como ele senvolve-se num a pessoa madura, torna-se um ser racional. Ela alcança um
difere do biológico e do psicológico, como o domínio transcendental difere estágio no qual pode compreender um argumento e agir de acordo com suas
do empírico. Podemos proceder assim examinando o conhecimento hum a­ conclusões. Pode trabalhar com idéias e não apenas com inclinações e sen­
no e a virtude humana, que ocorrem ambos no domínio transcendental. O timentos. Nos estágios iniciais da vida, a criança é basicamente um monte de
ponto essencial a ser considerado é que quando exercemos nossa racionali­ tendências e impulsos, com apenas um a racionalidade incipiente. Com o pas­
dade, quando atuamos como agentes da verdade e do significado, nos torna­ sar do tempo, a criança começa a perceber que tem de ver a si mesma apenas
mos envolvidos em atividades que não podem ser adequadamente tratadas como um a entre muitas, que não pode simplesmente preferir suas próprias
de um ponto de vista meramente empírico. satisfações todo o tempo. Ela tem de ver que as outras estão aí, e que ela tem
Consideremos as ciências naturais. O psicologismo reivindicaria que o de lhes dar o que lhes é de direito. Nesse modo, um sentido de justiça nasce na
raciocínio, o argumento, o conhecimento e a ciência são meramente uma criança. Estágios iniciais deste sentido estão presentes mesmo entre crianças
questão de nossa configuração psicológica. As ciências físicas, a biologia e as pequenas, que rapidamente julgam que essa ou aquela ação “não é justa”.
matemáticas, por exemplo, são ditas modos nos quais nosso organismo se Duas coisas são necessárias para o desenvolvimento do sentido de justi­
adapta ao seu meio ambiente; não são vistas como dizendo-nos a verdade ça. A pessoa em questão deve, por meio de atividade orientada e repetida,
sobre algo. A idéia mesma de verdade torna-se problemática no psicologis- tornar-se moralmente virtuosa, mas em acréscimo, e como um a condição de
possibilidade mais profunda, a pessoa deve também ter se tornado um agen­ suas ausências, as intencionalidades pelas quais introduzim os a sintaxe e as
te racional. Ela deve ter entrado no espaço de razões e se tornado apta ao composições parte-todo por meio das quais experienciamos, os modos es­
exercício de atividades categoriais. A emergência de um sentido de justiça pecificamente hum anos de recordar, imaginar e antecipar, e as formas de
requer a presença da razão na pessoa jovem. E através do poder da razão que evidência e verificação que podemos exercer. Também envolve as intencio­
podemos tom ar um a visão objetiva de um a situação e julgar o que é verdadei­ nalidades pelas quais nos estabelecemos como agentes de responsabilidade
ramente devido a cada pessoa envolvida nela, incluindo a nós mesmos. A vir­ moral. Todas essas e muitas outras formas de intencionalidade são tão es­
tude da justiça é o exercício da razão por excelência em assuntos práticos. senciais para nós como agentes racionais assim como são, igualmente, o
Outras virtudes também envolvem o desenvolvimento da razão, mas a justiça poder de abstrair universais e o poder de raciocinar silogísticamente. Todas
o exige num mais alto grau, porque requer a habilidade para determinar equi­ as estruturas descritas neste livro são constituintes do que se entende ser
dades, dizer o que é adequadamente “o mesmo” para nós e para os outros. um ego transcendental, um agente responsável de verdade e verificação. A
Toda nossa vida moral e emocional como seres humanos torna-se pos­ fenomenología provê um a descrição m uito mais ampla do que somos como
sível pelo fato de que exercemos a racionalidade. Uma pessoa m adura é al­ dativos de manifestação.
guém que poder ouvir argumentos sobre coisas práticas, avaliá-los e agir de De fato, um dos constituintes da racionalidade é a habilidade para dizer
acordo. Algumas pessoas não fazem isto. Elas se desmancham em emoções “eu”, o poder de usar um certo sinal designado num a linguagem particular
ou impulsos; ninguém pode argumentar com elas. Quando isso ocorre, seja para nos referirmos a nós próprios especificamente como usando a lingua­
um estado permanente ou intermitente, os egos transcendentais dessas pes­ gem e apelando para a verdade no mom ento em que usamos a palavra. Se
soas estão diluídos pela vaguidade (incerteza). O pensamento categorial que dizemos algo como, “eu creio que a porta está aberta”, nosso uso do termo
deveria entrar em suas condutas não pode prevalecer. “eu” opera três coisas: primeiro, ele simplesmente refere a mim, distíngue­
Tanto em assuntos teóricos como práticos, contudo, nosso ego trans­ me como o ser que fala; segundo, ele representa-me como o agente de verda­
cendental é essa parte de nós que é o agente de razão e verdade. O ego transcen­ de dessa sentença; mas, terceiro, representa-me como o agente de verdade
dental é cada um de nós tomado como agente de verdade, como alguém que para a declaração particular que se segue. Com o termo eu, sinalizamos a nós
pode responsavelmente declarar o que o caso é. Além de ser organismos bio­ mesmos como responsáveis pela enunciação categorial, e pela verdade recla­
lógicos e psicológicos, somos seres racionais que pertencem ao que Kant mada nela, expressa pela sentença. Somente um ego transcendental pode dizer
chamou de “reino dos fins”; quando reconhecemos a nós próprios como tais, “eu” desse modo. Pode usar um a linguagem para dizer que está asseverando
tratamos a nós mesmos como egos transcendentais. A fenomenología esfor­ algo nessa linguagem.
ça-se por descrever que formas estruturais participam no ser de um ego trans­ Para ajudar-nos a compreender a distinção entre o ego empírico e o ego
cendental. A fenomenología é a exploração do ego transcendental em todas transcendental, vamos desenvolver um a analogia entre o ego e um a peça de
as suas formas intencionais, junto com os correlatos noemáticos que são xadrez. Vamos considerar um a peça de xadrez tanto dentro como fora do
encontrados como os alvos dessas intencionalidades. Uma vez que é a nossa jogo de xadrez. N um sentido, um a peça de xadrez é um a coisa meramente
racionalidade o que nos torna humanos, a fenomenología é a exploração de empírica. Se fôssemos jogar um a torre sobre a mesa, estaríamos tratando-a
nós mesmos em nossa humanidade. como um a simples coisa no mundo, um a “torre empírica”. Mesmo se fôsse­
Os filósofos têm tido freqüentemente um a compreensão demasiado mos movê-la de um quadrado a outro do tabuleiro de xadrez, poderíamos
limitada do que nos faz racionais. Eles têm tomado nossa racionalidade como ainda estar tratando-a como um objeto ordinário: poderíamos estar toman-
primariamente o poder de abstrair conceitos universais de experiências par­ do-a apenas como um a peça colorida de madeira que está sendo movida dez
ticulares, o poder de executar um raciocínio silogístico, e o poder de ter dis­ polegadas para longe de mim. Contudo, se fôssemos tom ar a peça como en­
cernimento em verdades auto-evidentes. Contudo, nossa racionalidade con­ volvida no jogo de xadrez, como, por assim dizer, pondo em xeque-mate,
siste em mais do que essas habilidades; ela envolve também as intencionali­ estaríamos tratando-a como um a “torre transcendental”, não meramente
dades pelas quais identificamos as coisas tanto nas suas presenças como nas como um a torre empírica. Estaríamos tratando-a, e ela estaria atuando, como
um jogador no jogo de xadrez. Analogamente, nosso organismo corporal A vida pública da razão é vivida pelo ego transcendental, que é tam ­
está ativo como um ego transcendental quando joga de acordo com as regras bém um a entidade pública. Q uando falamos sobre o ego transcendental,
da razão e está engajado no jogo da verdade. A analogia seria mais conve­ podemos ser tentados a imaginá-lo como um tipo de coisa insignificante
niente, naturalmente, se a torre de algum modo movesse a si mesma no jogo alojada dentro de nós, um a partícula localizada em algum lugar no meio de
de xadrez (em vez de ser movida por nós), e se ela pudesse declarar a si mesma nosso córtex, vivendo um a vida secreta. Essa interpretação seria incorreta,
como movente. O ego transcendental pode fazer todas essas coisas: não só e para contestá-la gostaríamos de prover um retrato mais concreto de que
age por sua própria iniciativa no jogo da verdade (que é o jogo da vida), mas é o ego transcendental.
também expressa a si mesmo como agindo assim. Enquanto essas páginas são escritas, estamos no mês de novembro, e
Os animais têm consciência, mas não têm egos transcendentais. Eles as pessoas estão recordando o armistício, o fim da Primeira Guerra M un­
podem se aproximar de algo como linguagem e verdade, mas não entram dial, que ocorreu na 11a hora do 11° dia do 11° mês do ano de 1918. Histó­
completamente no espaço de razões. Se o cão faz algo “errado” (ele morde rias sobre a guerra estão sendo apresentadas na televisão. Em um a delas,
alguém ou suja o carpete), podemos fazer algo a ele ali e então, mas não faria foram mostradas fotografias de três jovens britânicos que foram para a guerra
sentido chegar a ele um mês depois e tentar nos referir a essa “ação” ou a e não retornaram. Consideremos um a dessas fotos, um a imagem de um
um a “opinião” emitida anteriormente por ele. Porém, faz sentido para nós homem de 21 anos. Ele um a vez esteve vivo, foi fotografado de uniforme, e
lamentarmos-nos sobre algo que dissemos no ano passado ou que fizemos foi assassinado na guerra. Um sentido de tristeza envolve a fotografia, do
no mês passado, porque falamos e agimos dentro do espaço de razões; reali­ tipo que projetamos sobre imagens daqueles que sabemos que morreram
zamos um movimento no jogo da verdade, e o que dissemos ou fizemos está em combate, durante essa guerra ou outras; os olhos na fotografia parecem
docum entado e subsiste tal como um movimento mesmo além da situação prontos a ser fechados.
na qual ocorreu. Podemos agir como um ego transcendental, mas um ani­ O que foi perdido quando aquele jovem morreu? Não apenas um a vida
biológica, mas a vida da razão que teria tom ado lugar nele e no seu ambien­
mal não-hum ano não pode.
te ele teria chegado aos setenta anos. Essa vida da razão teria sido não só as
expressões verdadeira e falsa que poderia ter realizado durante aqueles anos,
Publicidade do ego transcendental
mas também as deliberações, as escolhas e as transferências hum anas que
ele poderia ter exercido. O que ele poderia ter feito como um agente respon­
sável de verdade desapareceu com a extinção de sua vida orgânica. O modo
A vida da razão é um a coisa pública. Não está enclausurada na solidão
como o m undo teria parecido àqueles olhos e ouvidos nunca chegou a acon­
ou privacidade de um a “esfera da consciência”. Ela é expressa na conduta
tecer. Sua morte não foi apenas o rearranjo de elementos químicos, ou o
manifesta e nos acontecimentos, nos seres humanos que estão passeando,
término de um organismo vivo, mas a conclusão de um a vida humana, um a
conversando, examinando instrumentos científicos, focalizando um raio de
vida na qual a razão ilumina as coisas em volta e permite intervenções m o­
laser num alvo, cavando um a vala num sítio arqueológico, escrevendo uma
rais. O si que identificou a si mesmo atrás da face na fotografia, o alguém
carta a um amigo, tentando persuadir alguém a votar num a certa proposta.
que acum ulou memórias e antecipações e experienciou a si mesmo nelas,
Está presente em palavras, pinturas e bandeiras. A vida da razão é tão pública
cessou de ser um dativo para o modo como as coisas aparecem no todo que
quanto um gol num jogo de futebol ou um nocaute técnico num a luta de
chamamos o mundo. O que foi amado por aqueles a quem am ou não foi
boxe. Uma escavação arqueológica ou um argumento político não podem
apenas um companheiro agradável, não apenas um a versão complicada de
ser explicados sem envolver termos como “ferramentas”, “palavras”, “senten­ um animal, mas alguém que poderia entrar num tipo de vida que um mero
ça”, “razões” e “verdade”, e tais termos se referem a comportamento público animal jamais poderia: alguém responsável pela verdade do que dizia e fazia,
e não a episódios privados internos. É o animal racional, não a consciência alguém que poderia amar em reciprocidade porque poderia apreciar outro
solitária, não a extensa, oca esfera da consciência, que entra na vida racional. como digno de ser amado.
um a saudação do que como um a dor de estômago; também é um movimen­
O ego naquele jovem, seu ego transcendental, não foi um a entidade
to inicial no jogo da verdade, dispondo-nos a fazer um a reivindicação, a de­
distinta dele; era aquele homem como um jogador no jogo da verdade, al­
sacreditar do que alguém tenha dito, ou a tom ar um outro passo na conversa
guém que poderia reclamar e confirmar, citar e inferir, enganar e revelar,
humana. Os atos do ego transcendental são tão públicos quanto o corpo que
deliberar e decidir. O ego não é um a coisa separada, mas o homem como
está envolvido em realizá-los. São intervenções reais ou potenciais, não ape­
capaz de viver u m tipo de vida racional. E a entidade que pode dizer “eu” e
nas pensamentos privados.
assumir a responsabilidade pelo que é dito. Além do mais, o ego transcen­
Trazer à luz a publicidade do ego transcendental é útil para recordar que
dental não é apenas o agente da ciência; não é apenas “intelecto” fazendo
há também um “tu transcendental”. Isto é, o ego transcendental pode ser
inferência e construindo hipóteses; não é meramente um a m áquina calcu­
reconhecido não só por si mesmo, mas tam bém por outros, e quando ele é
ladora. Além de ser o agente da ciência, o ego transcendental é tam bém o
assim reconhecido é chamado um “tu ”. Contudo, por alguma razão, o termo
agente da verdade na conduta humana, em que as ações são livres e respon­
latino tu, como um a contraparte para ego, não soa adequado aqui.
sáveis porque são a conseqüência de um a avaliação inteligente. O “eu” que
pode dizer “Eu acho isso ou aquilo” é o mesmo que pode dizer “Eu inten­
ciono fazer isso ou aquilo” e o mesmo de quem os outros podem pedir
O ego na atitude fenomenológica
explicações pelo que “você” fez. A habilidade para dizer “eu” e para intervir
no m undo por meio de um ato responsável depende da vida orgânica que
Assinalamos que todas as atividades do ego transcendental que vimos
forma a base do pensamento, a vida orgânica na qual a vida do pensamento
considerando são efetivadas na atitude natural. São exercícios na efetivida­
está corporificada, mas não é apenas essa vida orgânica: entra na esfera das
de da verdade, operações responsáveis da razão. O ego que é o agente de
razões e no reino dos fins. todas essas atividades é o ego que tem um m undo e contínua a sustentar
E se a fotografia de alguém que morreu antes de seu tempo pode, pela
sua subjacente crença no m undo. Q uando entram os na atitude fenomeno­
total ausência de um futuro, dar-nos um a impressão do que o ego responsá­
lógica, desprendemos-nos da atitude natural e contemplamos e descreve­
vel é, a fotografia de alguém ainda não nascido, de alguém que é quase todo
mos o ego transcendental e todas as suas realizações, todas as suas inten­
futuro, com até um nome ainda por receber, pode servir ao mesmo propósi­
cionalidades, e tam bém contem plam os as multiplicidades especiais pelas
to. Temos visto fotografias de estágios iniciais da vida, durante o desenvolvi­
quais ele é constituído como ego transcendental. Descrevemos como o ego
mento fetal, quando os olhos assemelham-se a manchas e a boca é incapaz
estabelece e apresenta a si mesmo, para si mesmo e para os outros, como
de falar e está imersa no fluido amniótico. A boca que abre e fecha silencio­
um agente de manifestação.
samente nesse tempo é a mesma que será usada mais tarde para dizer “eu”,
Esse movimento para a reflexão fenomenológica “distende” o ego para
e o sentido do si que está sendo estabelecido na sinestesia do toque e da
mais longe do que suas atividades na atitude natural. Quando entramos na
audição e do movimento corporal é o mesmo que terá memórias e ações
reflexão fenomenológica, tornamos-nos agentes da verdade em um novo
projetadas nos anos após o nascimento do bebê. O ego transcendental, o
modo filosófico. Fazemos afirmações verdadeiras a partir de u m a nova pers­
dativo de manifestação, já está lá, estabelecendo a base para sua futura ativi­
pectiva, radicalmente diferente de todas as perspectivas que funcionam den­
dade categorial e suas intervenções morais. O si anterior já é algo do jogador
tro da atitude natural. Podemos dizer “eu” desde um novo ângulo, com um
no jogo da verdade. novo sentido. E ainda, o si filosófico que examina o ego natural não é outra
Assim, tanto a mente como o ego transcendental são públicos, e a vida
entidade, nem outrem; é o mesmo “eu”, mas agora distendido num a nova
que eles vivem é pública. Um ato do agente da verdade, tal como um juízo, é
forma de reflexão.
em princípio um ato público. Pode ser comparado a um a saudação, que só
Não é o caso, além do mais, de que o ego transcendental entre no jogo
pode ocorrer entre duas ou mais pessoas. Um juízo é um movimento no jogo
somente dentro da atitude fenomenológica. Não é o caso de que somente o
da verdade, e envolve, em princípio, um agente, receptores e espectadores.
ego filosoficamente reflexivo seja o ego transcendental. O ego transcenden­
Não ocorre meramente dentro de nós. Mesmo um a percepção é mais como
tal já é ativo na atitude natural. Cada conquista da verdade, cada exercício de si num novo modo; adquire um a responsabilidade como um agente da ver­
racionalidade é a operação do ego transcendental. Todas as intenções cate- dade que é diferente das responsabilidades que tinha no segundo estágio.
goriais que brotam da questão da verdade são a operação do ego transcen­ Examinaremos o caráter especial da verdade fenomenológica, e a res­
dental. O ego transcendental realiza a verdade na atitude natural, mas essa ponsabilidade associada a ela, no capítulo XIII. No momento, é suficiente
efetivação inocente da verdade clama por um a completude na filosofia, que notar como o sentido do ego ou do si desenvolve-se nesses vários estágios.
teoriza a verdade. A verdade efetivada na atitude natural é incompleta por­
que não contempla a si mesma. A filosofia, exercida na atitude fenomenoló-
gica, traz um novo nível às manifestações efetivadas na vida pré-filosófica. O ego e a corporalidade
Na atitude natural temos um m undo, exercemos a racionalidade, identifica­
mos por meio de presença e ausência, confirmamos ou desconfirmamos, e Até mesmo como transcendental, como um agente da verdade, o ego
também mentimos, enganamos e cometemos erros; mas na atitude fenome- existe corporalmente. O modo como o ego experiencia seu próprio corpo é
nológica clarificamos o que é fazer todas essas coisas. diferente do modo como experiencia as outras coisas no mundo; ademais, o
Seria útil delinear três estágios na identificação do ego. corpo é também um a coisa no m undo e é presentado como tal. Experiencia-
(1) No primeiro estágio, um a identidade é efetivada pelo agente dos atos mos nossos próprios corpos tanto do interior como do exterior. Além do
intencionais de percepção e suas variantes: um a identidade do ego ocorre mais, possuímos o controle dos nossos próprios corpos de um a maneira
entre, digamos, o ego que vive num a situação aqui e agora e o ego deslocado radicalmente diferente do controle que temos sobre as outras coisas no
na recordação, na imaginação e na antecipação. Por exemplo, a recordação e mundo. Quais são algumas das características da corporalidade do ego?
o ego recordado, como vimos no capítulo V, são um e o mesmo. As peculiaridades de como experienciamos nossos próprios corpos são
(2) No segundo estágio, um a identidade elevada é efetivada pelo agente mostradas especialmente no sentido do tato. (1) Quando tocamos um a par­
da atividade categorial. A pessoa que sintaticamente enuncia que percebe te de nosso próprio corpo com um a outra (tocamos nosso cotovelo esquerdo
ou recorda faz mais do que apenas perceber ou recordar; ela traz os objetos com a mão direita), a parte que está sendo tocada está sendo tratada como
categoriais com todas as dimensões de responsabilidade e verificação que qualquer objeto que posso tocar no mundo. A mão que toca é a parte em que
eles implicam. O ego que atualiza a si mesmo neste estágio está apto a se nosso ego transcendental, em sua percepção e enunciação categorial, está
referir a si mesmo quando explicitamente tom a um a posição sobre algum ativo no momento, e sua atenção é dirigida para um a outra parte de nós
assunto da verdade ou manifestação e diz coisas como, “eu sei que p” ou “eu mesmos, o cotovelo (“meu cotovelo parece estar inchado”). (2) Mesmo nesse
suspeito q uep ”. O ego que emerge aqui é obviamente o mesmo que emergiu estágio, contudo, a parte tocada, o cotovelo, sente a pressão da mão, de modo
na memória, na imaginação e na antecipação, mas agora emerge com maior que estamos também percebendo, um pouco passivamente, também daque­
responsabilidade e vigor epistêmico. Agora tom a posições e tem opiniões la direção, do mesmo modo que percebemos como é sentir ter o cotovelo
pelas quais pode se responsabilizar. Obviamente, não poderia ter chegado a roçado. (3) Mas então a parte tocada pode tornar-se a que toca ativamente:
ser um ego neste nível se não tivesse primeiro consolidado sua identidade mesmo quando nossa mão toca o cotovelo, podemos “reverter a direção” e
no primeiro nível, e rupturas psicológicas no nível mais baixo podem impe­ começar a notar como a mão é sentida pelo cotovelo. Embora implausível, o
dir atividades no mais elevado. Distúrbios emocionais podem solapar o cotovelo pode tornar-se o órgão ativamente percipiente. Então, tocamos a
pensam ento racional. mão por intermédio do cotovelo e começamos a mover o cotovelo como a
(3) No terceiro estágio, um a identidade é freqüentemente efetivada parte que toca. Assim, os papéis de tocada e tocante podem ser revertidos; o
quando o ego não desenvolve apenas mais e mais opiniões ou verdades cien­ ego transcendental pode operar em ambas as direções.
tíficas, mas reflete sobre o que é ter opiniões e perseguir e verificar requisi­ Somente em nosso próprio corpo, e somente em respeito ao sentido do
ções científicas. Agora o ego “suspende” todas as intencionalidades do pri­ tato, o qual é o mais básico de todos os sentidos, essa reversão é possível. Um
meiro e do segundo estágios e as analisa. Também tom a posse de seu próprio abraço de um a outra pessoa pode ser um análogo disso, e pode também ser
um a tentativa de aproximar a unidade que temos com nós próprios (pode­ paço objetivo são estabelecidos por nós somente quando somos aptos a nos
mos dizer metaforicamente que nos tornamos um único corpo com aquele mover no espaço; se fôssemos imóveis, poderíamos visualmente experiencíar
que abraçamos), mas nunca poderia realmente ser o mesmo. Shakespeare algumas superfícies como obliterando outras, mas não poderíamos obter o
recorda-nos essa ambigüidade do toque quando, em Troilus and Cressida (IV-3) sentido de um ponto fixo em volta do qual as coisas podem circular.
ele faz Cressida perguntar: “No beijo, você dá ou recebe?”. Assim, há muitas partes e todos, muitos momentos, na sensibilidade
A curiosa reversibilidade encontrada no sentido do tato mostra que humana, e eles servem como um a base à enunciação de partes e todos que
mesmo como egos transcendentais, mesmo como agentes da verdade, esta­ ocorre na ação categorial. Os vários sentidos efetivam identidades através da
mos particionados dentro de um corpo. Além do mais, há outros modos de sinestesia, do reconhecimento de um único objeto dado pelos vários senti­
experiencíar o corpo, todos relacionados ao sentido do tato, que ajudam a dos distribuídos em toda parte de nosso próprio corpo. Essas variedades de
estabelecer nossa corporalidade: o sentido que temos de nossa posição no es­ partes sensíveis, noéticas e noemáticas, servem como um a m ultiplicida­
paço, a experiência da disposição de nossos membros, nosso sentido de equi­ de através da qual objetos vêm a ser identificados de mais e mais perspecti­
líbrio e a resistência que sentimos ã atração da gravidade, e a pressão que vas: a árvore é vista, ouvida (no vento), tocada, cheirada; caminhamos em
sentimos da cadeira ou do chão. Nosso sentido de corporalidade institui um volta e subimos nela; podamos seus ramos e rompemos pedaços de casca
lugar dentro do qual o ego transcendental exerce todas as suas intencionali­ morta; e em tudo isso um a e a mesma árvore é registrada em sua identidade
dades, desde a percepção e suas variantes às enunciações categoriais e à refle­ e suas muitas características.
xão fenomenológica. Toda nossa visão, audição e paladar tom am lugar den­ Esse registro da árvore, entretanto, é realizado pelo ego transcendental
tro do espaço do corpo, e nossas memórias são armazenadas lá também. que percebe e enuncia a árvore, e enquanto identifica árvores e outras coisas
Todas as atividades intencionais, sejam perceptuais ou categoriais, ocorrem no m undo, o ego, tam bém continuam ente, identifica seu próprio cor­
dentro do espaço assinalado pelo topo da cabeça à sola dos pés, nossas frente po como o objeto privilegiado “no” qual ele vive sua vida, o objeto que pro­
e costas, nossos lados direito e esquerdo e nossos braços. vê o inelutável “aqui” corporal que o ego nunca pode eludir. O modo como
A espacialidade do corpo não é só tátil, mas também móbil. Exercemos o corpo é “aqui” para nós é diferente do modo como qualquer lugar m u n­
o controle sobre as partes do nosso corpo e podemos movê-las diretamente; danam ente pode ser “aqui”, mesmo o mais familiar e o mais amado de to­
se desejarmos mover outras coisas, podemos fazer somente se primeiro mo­ dos os domicílios. Além do mais, à medida que o ego identifica as coisas no
vermos partes do nosso corpo (levantamos algo somente se levantamos nos­ m undo e seu próprio corpo, tam bém continuam ente identifica a si mesmo.
sas mãos e nossos braços, mas não temos de mover qualquer outra coisa a E o mesmo ego que recorda a si mesmo subindo naquela árvore há 25 anos,
fim de erguer nossas mãos e nossos braços). As partes do corpo movem-se que antecipa a visão da mesma árvore sob neve no próximo inverno, e que
umas em relação às outras, e o corpo mesmo move-se através do espaço do imagina que aspecto a árvore teria se certas outras árvores fossem planta­
mundo. Porém, não fazemos movimentos somente para introduzir movi­ das próximas dela.
mentos em outros objetos; mesmo nossas percepções e, conseqüentemente, Uma das mais interessantes facetas de nossa corporalidade é o modo
nosso pensamento envolvem movimentos de um tipo ou outro; mover-nos como nossas memórias são armazenadas em nosso corpo. Nossa identidade,
em volta para ver o outro lado do cubo, pegar um lugar melhor para ouvir o como um ego transcendental, é estabelecida pelos deslocamentos e identifi­
violino, sentir melhor o aroma do que se está cozinhando; mover nossos de­ cações feitas na recordação: somos aqui e agora os mesmos que recordamos
dos sobre a lixa para ver qual é o seu grau, e passar a língua na comida para sendo lá e então na memória que vem à mente. Mas as partes recordadas de
apreciar seu gosto. Nossa visão requer movimento: mesmo um único olho nossa vida não estão sempre ativas; a maioria delas permanece latente e ar­
pode ajustar seu foco para perto ou longe; dois olhos juntos, com sua fraca mazenada em nosso sistema neural, no corpo que diferencia a si mesmo de
convergência, podem dar perspectiva e visão estereoscópica; a cabeça pode seu entorno. Tudo que vivemos está de algum modo lá, e partes disso vêm à
ser movida de lado a lado; e o movimento do corpo todo permite aos olhos luz agora e então. Enquanto permanece armazenado é puramente químico e
variar todos os lados do objeto que está sendo visto. De fato, pontos no es­ orgânico, mas quando é ativado vem a ser de novo parte de nossa vida trans­
cendental. A ambigüidade entre o ego transcendental e o ego empírico é par­ ca. Imaginativamente desloca a si mesmo num futuro perfeito, estimando
ticularmente proeminente com respeito à latência das memórias. como será se ele realizar essa ou aquela ação. Em assuntos mais teóricos, o
Uma das tarefas da fenomenología é mostrar em detalhe, desde a atitu­ si m antém opiniões sobre o m odo como as coisas são, e sustenta essas opi­
de transcendental, como nossos vários sentidos e mobilidades operam para niões contra pontos de vista de outros sis que pensam de outra maneira.
estabelecer nossa própria corporalidade. Temos esboçado somente um pou­ Ouve argumentos e pode conceder que estava errado, e quando age assim
co das descrições que poderiam ser feitas. Poderia ser mencionado que a es­ diferencia a si mesmo de como é agora e dele mesmo quando m antinha suas
tru tu ra de manifestação que apresenta nossos corpos para nós mesmos são crenças anteriores.
parte da mesma vida cognitiva que alcança as coisas como pensamento cate- Uma das mais impressivas multiplicidades pela qual o si é estabelecido
gorial, ciência exata, lógica formal e matemática. Aquele que é dativo de se encontra no fenômeno da citação, quando o ego usa sua própria voz para
manifestação opera em todos esses níveis de intencionalidade. expressar a mente de outrem, para constituir objetos categoriais não como
seus próprios, mas como pertencendo a outrem: nós aqui e agora, com o
m undo presentando para nós mesmos do modo que faz, podemos manifes­
O si não-puntiforme tar por meio de nossas próprias palavras um a parte do m undo como tendo
presentado a si mesmo para outrem. Um tipo de duplicação da mente ocor­
Uma das queixas concernentes à fenomenología algumas vezes feitas é re, e junto com ela um a duplicação de alguém que diz “eu”. O si que vem à
de que ela parece substancializar o si, que faz do ego um tipo de ponto fixo luz em todas essas diferenças e atividades não é um a coisa puntiforme, não
que escapa de sua própria história, um “ego pólo” que é autocontido, sem é sempre uma identidade completa, mas um a identidade que é aí só dentro
ambigüidades e não afetado pelo que sofre e faz. O si, é dito, é muito mais de um a rica multiplicidade de presentações e condutas. Há um a identidade
elusivo, flexível e engajado do que isso. Mas a fenomenología não pontualiza do si, mas é alcançada precisamente por meio da descentralização.
o si: ela reconhece a identidade especial do si descrevendo as multiplicidades Mais, o si se compreende puntiforme em certos momentos: se estamos
que são próprias a ele. O si reconhecido na fenomenología não é um ponto no meio de um grupo de pessoas que tom am posições fortemente diferentes
que fica atrás ou fora de suas percepções, memórias, imaginações, escolhas das nossas, permanecemos como “os únicos” que insistem que isso ou aquilo
e atos cognitivos; mais propriamente, ele é constituído como um a identida­ é certamente o caso. Necessitamos ter um ego muito forte para afirmarmos
de por meio de tais conquistas. É realizado por meio de demoras e diferen­ com rapidez. Se um a situação séria apresenta-se a nossa volta, e torna-se
ças. Ele é, por exemplo, um e o mesmo como aquele que recorda e o que é evidente que ninguém agirá se nós não o fizermos, então somos puntiformes
recordado. Vem “entre” e não “atrás” de suas percepções presentes e de seus pela demanda prática. Todas as linhas convergem para nós, em nós e em
deslocamentos. Mais, o si é disperso pelo corpo vivo e é ativo em todas as nenhum outro. Somos enaltecidos deste modo precisamente porque somos
suas partes, não estacionado atrás dele. É identificável em sua inconsciência os proeminentes agentes da atividade categorial, os agentes da evidência e os
e até em sua vida corporal. O ego que envelhece identifica a si mesmo psíqui­ proprietários de um a reivindicação da verdade, seja na ordem prática ou teó­
ca e corporalmente como o que foi um a vez um a criança e um a vez um jo­ rica. Somos tais agentes não porque somos um a entidade física ou psicoló­
vem (uma fotografia de alguém quando bebê tem estranhamente algo dele). gica, mas porque somos alguém que pode dizer, individualmente, “eu”. Mes­
O si é constituído num modo distinto até quando vendo seu próprio reflexo mo essas identificações fortes do si, contudo, não são absolutas: mesmo
corporal no espelho, quando tem um a visão de si mesmo do modo como é enquanto nosso si está em destaque, ainda somos os mesmos que podem
visto por outros. recordar e antecipar outras situações, aqueles que exercem o controle dentro
O mesmo si que percebe, imagina e recorda, e que está latente nas me­ do corpo que é no momento o centro das coisas, aqueles cujas emoções po­
mórias armazenadas no seu corpo, é também o que diz “eu” e executa ações dem brotar e superar a decisão que estamos tentando tomar.
categoriais. Esse si, esse ego, também enuncia situações (por sua delibera­ As multiplicidades que são próprias do si não são realizadas nas pedras,
ção) e conseqüentemente dispõe da possibilidade de conduta moral e práti­ nas árvores ou em animais não-humanos. Elas são específicas do dativo de
manifestação, cujo si é ao mesmo tempo flexível e ainda continuamente o
mesmo por toda a sua vida consciente. A fenomenologia reconhece a com­
plexidade e o mistério do agente cuja voz não só fala sobre o modo como as
coisas são, mas registra a si mesmo, quando diz “eu”, precisamente enquanto
fala delas.

TEMPORALIDADE

A fenomenologia desenvolveu um a altamente articulada teoria do tem­


po e da experiência temporal. A temporalidade que ela descreve desempenha
um im portante papel no estabelecimento da identidade pessoal. Além do
mais, é no domínio da temporalidade que a fenomenologia aborda o que
seria chamado de primeiros princípios das coisas que ela examina. O tempo
penetra todas as coisas, tanto noemáticas como noéticas, que são debatidas
na fenomenologia, e a descrição da “origem” fenomenológica do tempo con­
quista um a espécie de centro filosófico.

Níveis de temporalidade

Três níveis de estrutura temporal podem ser distinguidos:


1. O primeiro é o tempo do mundo, o tempo dos relógios e dos calendá­
rios. Pode também ser chamado de tempo transcendente ou objetivo. Esse
é o tempo que pertence aos processos e eventos mundanos. Quando
dizemos que um jantar durou duas horas, ou que Mary retornou dois
dias antes de Dóris, ou que a abertura precedeu a ópera, ordenamos
tais coisas e eventos no tempo do mundo. Tal tempo pode ser com­
parado à espacialidade do mundo, à extensão geométrica que as coi­
sas possuem e às ligações locais que elas têm umas com as outras.
Como tal lugar, o tempo objetivo é público e verificável; podemos
usar um relógio para medir exatamente quanto dura um processo, e
todos concordaremos com a medição. O tempo sendo medido é loca­
lizado no mundo, no espaço comum em que nós habitamos.
2. O segundo nível é o tempo interno. Pode também ser chamado tempo menos, se realiza. Não aponta para nada mais básico para além de si mesmo.
imanente ou subjetivo. Esse tipo de tempo pertence à duração e às se­ É o contexto último, o horizonte final, a linha de fundo. Ele provê o cenário
qüências de atos e experiências mentais, aos eventos da vida da cons­ para todas as outras coisas mais particulares e os eventos que são analisados
ciência. Atos e experiências intencionais seguem uns aos outros, e na fenomenologia, e não pressupõe, por sua vez, mais nenhum último con­
podemos também chamar de volta certas experiências mais impor­ texto. Ele funda todos os outros, mas não é fundado por nenhum. O domí­
tantes através da memória. Se recordamos o jogo que vimos a noite nio da consciência do tempo interno é, na fenomenologia, a origem das dis­
passada, agora restabelecemos a percepção que dele tivemos. O modo tinções e identidades mais profundas, aquelas que são pressupostas por to­
pelo qual nossas intenções e sentimentos são ordenados, ambos em dos os outros que ocorrem em nossa experiência. É também, obviamente,
respeito um ao outro e em respeito a nossa experiência presente, toma um domínio sobre o qual é m uito difícil falar, porque requer um a transfor­
lugar no tempo interno. Tal temporalidade imanente pode ser com­ mação do vocabulário, que é voltado primeiramente para os objetos m unda­
parada à espacialidade corporal que experienciamos “de dentro”. Há nos. Contudo, se fizermos uso das formas de partes e todos, identidade e
seqüências no tempo interno, desde que um a atividade ou experiên­ multiplicidade, e presença e ausência, poderemos nos habilitar a expressar
cia pode ser antes, depois ou concomitante com outras, mas tais se­ mais claramente as questões que nascem nesse domínio.
qüências e durações não são medidas pelo tempo do mundo, não Antes de abordar as inquietantes questões da consciência do tempo
mais do que as “distâncias” sentidas internamente entre o cotovelo e interno, no entanto, permitam-nos dizer um a palavra sobre a interação entre
o pulso, ou entre o peito e o estômago, podem ser medidas por um tempo transcendente e imanente, entre o primeiro e o segundo níveis de tem­
padrão de medida. Nós experienciamos um evento de consciência poralidade que distinguimos no começo desse capítulo. Podemos pensar que
como seguindo ou precedendo a outro, mas não poderíamos “crono­ o tempo objetivo é o mais básico, porque o m undo continua, mesmo que nós
metrar” a seqüência do mesmo modo que cronometramos alguém com nossa subjetividade, cessemos de existir. Como um fenômeno, contudo,
correndo um a corrida. O tempo interno não é público, mas privado. o tempo objetivo é dependente do tempo imanente: o nível 1 é dependente
3. Alguém poderia pensar que os dois níveis do tempo que distingui­ do nível 2. As coisas do m undo podem ser medidas por relógios e calendá­
mos poderiam exaurir as possíveis formas do tempo. Alguém poderia rios, e podem ser experienciadas como duradouras, só porque experiencia­
pensar que é suficiente distinguir tempo objetivo de tempo subjetivo. mos um a sucessão de atividades mentais em nossa vida subjetiva. Se não
Contudo, um terceiro nível deve ser adicionado a esses dois, o da. cons­ antecipássemos e recordássemos não poderíamos organizar o processo que
ciência do tempo interno. Esse é um passo além do segundo nível. O ocorre no m undo dentro de padrões temporais. Quando tentamos fornecer
segundo nível é a temporalidade interior, mas esse terceiro nível é o um a análise fenomenológica do tempo do mundo, devemos mencionar a
estar consciente de ou a consciência de tal temporalidade interna. Em estrutura do tempo imanente como um a condição para tal tempo. A mani­
outras palavras, o segundo nível sozinho não é suficiente para res­ festação do tempo objetivo ocorre para nós só porque possuímos os tempos
ponder por sua própria consciência-de-si; devemos introduzir um subjetivo e imanente. A estrutura noemática do tempo do mundo, desse modo,
terceiro nível para responder pelo que nós experienciamos no segun­ depende da estrutura noética do tempo interno. Ao avaliarmos a intenciona­
do. Esse terceiro nível desfruta de um tipo especial de “fluidez”, um lidade a partir de nossa posição elevada na atitude fenomenológica, portan­
tipo diferente daquele do tempo transcendente e do tempo interno. to, vemos o tempo do m undo como correlato com o tempo interno. O tem­
Esse terceiro nível, contudo, não requer a introdução de ainda um po transcendente é fundado, como um fenômeno, no tempo imanente.
outro nível além de si mesmo. Naturalmente, como organismos vivos, estamos presos no tempo obje­
O terceiro nível alcança assim um tipo de acabamento e completude. tivo. Você torna-se bronzeado após permanecer três horas ao sol; não pode­
Não é preciso que outros níveis necessitem ser pressupostos além dele. Na ríamos pensar claramente após permanecer toda a tarde num a sala abafada;
fenomenologia, esse terceiro nível, com a fluidez especial que ocorre nele, é ela está atrasada para um encontro. Como todos os objetos, estamos sujeitos
um absoluto. É o domínio no qual o primeiro começo das coisas, como fenô- aos efeitos casuais que operam no mundo. Mas não somos apenas coisas no
mundo; somos também dativos de manifestação ou egos transcendentais, e rem em nossa vida consciente, tal como as percepções, as imaginações, as
como tais ficamos contra o m undo e o temos apresentando-se para nós, e o recordações e as experiências sensíveis que temos: ela permite assim que
fluxo temporal de nossas experiências conscientes é um a condição para o objetos internos apareçam como estendidos temporalmente e ordenados.
aparecer do mundo e das coisas nele. A relação paradoxal do si como ambos, Contudo, essas intenções em si mesmas são apenas a presentificação das coisas
um a parte do m undo e o alguém que tem um mundo, vem à tona novamente que elas miram: elas são as percepções, imaginações e intenções categoriais
em respeito à temporalidade: o fluxo interno de consciência está aninhado dos objetos e processos no mundo.
dentro do processo que continua no mundo, mas também fica contra o m un­ Conseqüentemente, o efeito da consciência do tempo interno se esten­
do e provê a estrutura noética que permite ao m undo aparecer. Encontramos de por tais objetos transcendentais e para seu tempo transcendente também.
a nós mesmos vivendo em ambos os tempos, o objetivo e o subjetivo. O dativo A consciência do tempo interno constitui não apenas a temporalidade inter­
de manifestação, o ego transcendental, não é um simples e estático ponto; na de nossa vida consciente, mas a temporalidade objetiva dos eventos m un­
ele envolve um processo que continua no tempo, mas em sua própria tempora­ danos. A consciência do tempo interno é o coração da temporalidade de todas
lidade interna, não na temporalidade objetiva do relógio e do calendário. as outras formas de constituição intencional.
Agora, se o tempo interno é um a condição para o aparecimento do tem­ Todas essas reivindicações podem parecer um tanto bombásticas. Po­
po objetivo, o terceiro nível de temporalidade, a consciência do tempo inter­ dem bem parecer algo improvável e inventado. Parecem implicar que a cons­
no, é por sua vez um a condição para o aparecimento do tempo interno. ciência do tempo interno é como um a fonte neoplatônica do ser da qual
ambas, a experiência subjetiva e as coisas do mundo, emanam. À consciência
do tempo interno parece ser dado um tipo de prioridade metafísica sobre
O problema da consciência do tempo interno tudo o mais. Não é talvez especulativo e extravagante dotá-la com tais pode­
res? Como pode essa seção oculta do mundo, algo tão minúsculo e tão inter­
Vamos explorar a questão da consciência do tempo interno. A tempora­ no que é até mais imanente do que nossos atos intencionais, ter tamanho
lidade interna que é posta em cena contra o tempo do mundo é, como temos poder sobre o ser das coisas? A fenomenologia parece sucumbir em constru­
dito, não o tipo de tempo final; não é o contexto final. Nós não fomos dei­ ções artificiais quando entra nesse domínio; não parece descrever fielmente
xados com apenas o fluir objetivo do tempo e o fluir subjetivo correlato com o que aparece para nós.
ele. Antes, o fluir do tempo imanente requer algo mais básico sobre o qual A descrição fenomenológica da consciência interna do tempo é, na rea­
está fundado. Esse algo mais básico é o domínio da consciência do tempo lidade, um a doutrina incomum. Algo de sua terminologia parece ser excessi­
interno. Os três níveis podem ser esquematizados como mostra a Figura 1. vamente interno; parece dizer que no coração de nosso ser estamos fechados
A consciência do tempo interno é, por assim dizer, “mais imanente” do num tipo de confinamento solitário que é até mais privado do que a subje­
que o tempo imanente. Constitui a temporalidade das atividades que ocor- tividade alcançada por meio da redução transcendental. A retórica e o voca­
bulário dessa questão da temporalidade parecem perturbadores inicialmen­
te. Contudo, antes de rejeitar a doutrina, deveríamos examinar o que ela tem
TEMPO TEMPO a dizer sobre nossa experiência do tempo. Há mais aqui do que vislumbra­
IM A N E N T E T R A N S C E N D E N TE mos num olhar de relance casual.
C O N S C IÊ N C IA envolve percepções Envolve árvores,
DO TEMPO percebe experiências, casas, raças,
IN T E R N O recordações, ja n ta re s,
im aginações avalanches
A estrutura do presente vivo
etc. etc.
Quando tentamos explicar como experienciamos os objetos temporais,
F ig u ra 1 somos norm alm ente tentados a dizer que temos um a série de “agoras”
presentados para nós, um após o outro. Tendemos a dizer que a experiência futuro bem como no passado. Nossa percepção teria de ser acom panhada
temporal é muito semelhante a um filme sendo rodado, com um a exposição por atos de memória im ediata e atos de antecipação imediata. Porém, um a
(uma presença) rapidamente seguida de outra. Um estado do objeto nos vez mais, como poderíamos ser sensíveis às antecipações como direcionan-
impacta após o outro. Mas nossa experiência de duração temporal não seria do-nos para o futuro se o sentido do futuro não tivesse sido dado desde o
assim; se fosse, nunca alcançaríamos o sentido de um a duração, de um pro­ início? Como poderíamos saber se os fotogramas antecipados são futuros
cesso temporal contínuo, porque tudo o que teríamos num dado momento e não apenas mais do presente? Nem o futuro nem o passado seriam dife­
seria o fotograma do filme que é dado naquele momento. Além do mais, não rentes do presente.
só o filme sendo mostrado, mas nossa experiência da seqüência seria discreta É necessário, por conseguinte, dizer que em nossa experiência imediata
e em notas separadas também; nós próprios estaríamos pulando de uma não temos apenas fotogramas da presença que nos é dada; exatamente em
experiência para a próxima, e nunca teríamos um sentido de que estamos nossa mais elementar experiência, temos um sentido de passado e futuro
vendo algo que vai além do fotograma que está sendo dado no instante. diretamente dado. Para usar a frase de William James, nossa experiência do
Também não teríamos um sentido de nossa experiência ou até mesmo de presente não é o fio de um a faca, mas um telhado de duas águas. Tudo o que
nós próprios como permanecendo ao longo do tempo. O sentido de um flu­ é dado para nós na percepção é dado como sumindo e também como che­
xo contínuo nunca surgiria para nós. Assim, nem o objeto, nem nossa expe­ gando na presença. Se nossa experiência do presente não fosse assim, nunca
riência e nem nós próprios teríamos qualquer continuidade temporal. Nós e poderíamos adquirir um sentido do passado e do futuro. Tentar inserir tais
o que experienciamos seríamos nada mais que flashes momentâneos, presen­ sentidos em nossa experiência “mais tarde”, após nossa experiência inicial,
ças momentâneas e imagens momentâneas. seria tarde demais. Um sentido primário de passado e futuro tem de ser dado
Poderíamos tentar introduzir a continuidade e a seqüência na nossa exatamente desde o início.
descrição de nossa experiência dizendo o seguinte: é verdade que temos ape­ Além do mais, pretender que temos tal sentido rudim entar de passado
nas um fotograma dado a cada momento, mas enquanto temos esse dado e futuro não é apenas um a postulação a que somos induzidos por argumen­
recordamos alguns dos fotogramas que o precederam; nós os relacionamos tos; não é um a hipótese ou um a inferência. Mais precisamente, é apropriado
como fotogramas anteriores do que está sendo dado agora. Recordaríamos ao modo como experienciamos as coisas: tudo o que experienciamos, se coi­
por fim os poucos fotogramas que apenas precederam o presente. Réplicas sas e processos no m undo ou atos subjetivos e sentimentos, nós experiencia­
de fotogramas anteriores surgiriam para nós. Seria por meio de tal memória, mos como “atividades” tão efêmeras quanto existem. Só porque elas somem
a qual acompanha nossa percepção, que um sentido de continuidade surgiria. agora podemos recordá-las mais tarde e reconhecê-las como passado, e só
Essa explicação, contudo, não vai a fundo o bastante. Se dissermos que porque elas entram na visão agora podemos antecipá-las com maior distân­
recordamos um fotograma anterior, pressupomos o fato de que já temos um cia. Quando refletimos sobre nossa experiência, encontramo-la como uma
sentido do passado; mas como poderia um tal sentido do passado ter come­ imagem no passado e no futuro imediatos. A ausência inicial de sucessão
çado a surgir para nós? Se temos apenas um fotograma, e então um outro e (pastness) e futuridade (futurity) estão presentes em toda nossa experiência.
mais outro, tudo o que teríamos experienciado seriam fotogramas presentes, Há alguns termos técnicos que foram introduzidos na fenomenología
e mesmo se invocássemos um fotograma anterior seria dado para nós como para nos ajudar a descrever a experiência imediata do tempo. O termo o pre­
ainda um outro fotograma presente. Tudo o que teríamos seria a presença sente vivo significa a completa experiência imediata de temporalidade que
absoluta. N enhum sentido de sucessão teria sido aberto para nós, mesmo temos em algum instante. O presente vivo é o todo temporal em algum ins­
nas réplicas de fotogramas anteriores. A própria dimensão de ser passado tante. O presente vivo, como o todo, é composto de três momentos: impressão
nunca poderia ter se diferenciado a si mesma do presente. primordial,retenção eprotensão. Essas três partes abstratas, esses três momen­
Poderíamos tam bém acrescentar que, além de ter de pressupor recor­ tos, são inseparáveis. Nunca poderíamos ter um a retenção apenas por si
dações dos fotogramas passados, teríamos tam bém de pressupor antecipa­ mesma, nem poderíamos ter um a impressão primordial ou um a protensão
ções dos fotogramas vindouros, porque nossa experiência se estende no apenas por si mesma. O presente vivo é um todo constituído dessas três partes
î A protensão e a retenção, junto com a impressão primordial, são a aber­
Protensão In te rn o M undano tura original de nossa experiência no futuro e no passado. O modo como
Im pressão P rim o rd ia l ■ T em p o ra ! T e m p o ra l irrompemos do presente imediato no futuro e no passado foi chamado por
Retenção O b je to O b je to Heidegger, um tanto dramaticamente, o caráter ex-estático de nossa experiên­
4 cia, e as três formas de abertura chamadas de ex-estases do tempo. Os termos
F is u ra 2 são sacados da preposição grega efe, “fora” “exterior”, e do substantivo stasis,
que vem do verbo bistêmi, “continuar” “permanecer”, implicando que em nossa
mais básica experiência de temporalidade não estamos fechados num a pre­
como momentos. A estrutura do presente vivo pode ser diagramada como sença solitária, mas permanecemos no futuro e no passado.
mostra a Figura 2. Essa explicação da estrutura da experiência imediata do tempo, com seu
A retenção, como a palavra sugere, aponta para o passado, “retém” algo. apelo à impressão primária, à retenção e à protensão, tem quase um gosto
O que ela retém? Retém o presente vivo que passou. Esse ponto é ao mesmo matemático. É algo como um a tentativa de gerar um a linha contínua para
tempo sutil e importante. A retenção não retém imediatamente um a fase descrever pontos de tal modo que qualquer ponto implica seus pontos vizi­
anterior ou fotogramas do objeto temporal que está sendo experienciado, nhos imediatos (à direita e à esquerda), os quais por sua vez implicam seus
como, por exemplo, a melodia ou o sentimento de angústia. Retém o presen­ próximos vizinhos e assim por diante. Qualquer ponto estaria relacionado
te vivo decorrido, a experiência de temporalidade decorrida. aos seus mais distantes vizinhos só através da mediação de seus vizinhos mais
Agora, esse presente vivo decorrido era ele mesmo constituído de uma próximos. Nessa compreensão, um ponto não seria um a unidade discreta,
impressão primordial, um a protensão e um a retenção. Assim, ao reter o pre­ mas seria ponto em, por assim dizer, para o ponto próximo, e por meio dele
sente vivo decorrido, tal presente também retém a retenção que tinha decor­ para todos os outros pontos na linha. Levando a analogia um pouco mais
rido dentro dele. Essa retenção por sua vez retém o presente vivo que a pre­ longe, seria como se cada ponto na linha pudesse ser um ponto, e pudesse ser
cedeu, então temos um a série total de presentes vivos que são retidos através exposto exteriormente “para o m undo” somente enquanto também impli­
da mediação dos presentes vivos antecedentes, por meio da mediação das cando seus vizinhos imediatos e, por meio deles, seus vizinhos mais distantes.
retenções antecedentes. No presente vivo temos um a retenção de retenções Se os matemáticos poderiam querer redefinir um ponto dessa maneira
de retenções. N unca temos um presente vivo atomizado, todo por si mesmo; não é decisão nossa, mas na experiência que temos do tempo, a últim a das
porque do m om ento retencional do presente vivo, o presente vivo sempre unidades, o presente vivo (o “ponto”), deve ser descrita de tal modo a incluir,
tem um rabo de cometa de presentes vivos decorridos, com suas retenções, de algum modo, um a referência a e um a retenção do presente vivo antece­
que o acompanham. dente e sucessor. Se lidamos com o tempo, não podemos definir o ponto
Poderíamos enfatizar o fato de que a retenção incluída no presente vivo momentâneo como simplesmente atômico, simplesmente presente sem qual­
não é um ato ordinário de recordação; é m uito mais elementar do que a quer envolvimento do tipo especial de ausência que é o passado rudim entar
memória. A retenção funciona dentro do estabelecimento inicial da duração e o futuro rudimentar.
temporal. Ela precede a recordação. O que retém não caiu ainda na ausência Até aqui consideramos simplesmente a estrutura do presente vivo, a
de esquecimento, e assim a memória no sentido familiar não pode ainda presença da temporalidade. Esse presente vivo não apenas flutua livre; é in­
entrar em cena. Outrossim, a protensão, a contraparte do futuro-dirigido da tencional, e intenciona ou manifesta objetos temporais, por exemplo, uma
retenção, não é o mesmo que um a escala-completa de antecipação ou proje­ melodia ou um sentimento de dor. Em nossa análise fenomenológica, deve­
ção, na qual nos imaginemos num a nova situação. A protensão é mais básica mos também descrever os aspectos temporais de tais objetos, os quais ficam
e mais imediata; ela nos dá o sentido primeiro e original de “algo chegando” diante do presente vivo.
diretamente sobre o que temos agora. A protensão abre a exata dimensão do O aspecto do objeto correlato com um atual presente vivo é sua fa­
futuro e assim torna totalmente pronta a possível antecipação. se agora. O aspecto do objeto correlato com um decorrido mas retido pre­
sente vivo é um a anterior fase agora. Para colocar isso esquematicamente, poderem ser recordados. A recordação é assim um tipo de novo começo discre­
cada presente vivo retido tem um a fase agora do objeto correlato com ele: to, voltando novamente a algo que escapou da consciência.
De fato, todos os deslocamentos de consciência que examinamos no
Presente vivo0 Fase agorà0
capítulo V são um tipo de interrupção do fluxo temporal presente da cons­
Presente vivo Fase agora
ciência e a introdução de um novo, segundo fluxo dentro dele: o fluxo de nós
Presente vivo _2 Fase agora mesmos como recordados, imaginados ou antecipados. O fluxo de nossa
Presente vivo _3 Fase agora^j
experiência vigente pode ter um fluxo paralelo aninhado nele. O exercício
Etc. Etc.
deliberado de tais deslocamentos é análogo à introdução da atividade cate-
gorial na percepção. Os deslocamentos na memória, na imaginação e na
O presente vivo em vigor retém o decorrido, o qual por sua vez retém projeção permitem um sentido mais elevado de identidade-de-si, bem como
o antecedente, e assim por diante, e no lado objetivo (o lado “noemático”) um sentido mais elevado da identidade dos objetos, que vai além da mais
as fases temporais do objeto são mantidas no lugar e na ordem em que se primitiva porém mais básica identidade que ocorre no nível do presente vivo.
sucederam umas às outras. Assim, as fases de um a melodia (ou de um sen­
timento) são tem poralm ente ordenadas tão logo originalmente registra­
das. São estampadas com um lugar no tempo e internam ente ordenadas Detalhes e perplexidades na consciência do tempo interno
em sua sucessão. Quando a melodia é recordada, a mesma ordenação re­
torna, porque a memória reativa o fluxo temporal nos lados subjetivo e ob­ O domínio da consciência do tempo interno é a base de ambos — do
jetivo simultaneamente. fluxo subjetivo do tempo interno e do fluxo objetivo do tempo do mundo,
O presente vivo, todo segmento da vida mais profunda da consciência, o tempo transcendente. Permite que ambos os fluxos manifestem a si mes­
tem um a dupla intencionalidade. De um lado, retém seus próprios presentes mos, e é fenomenologicamente mais básico do que eles são. Contudo, esse
vivos precedentes e assim constrói um tipo de incipiente identifícação-de-si. domínio não existiria por si mesmo. Todo o seu sentido é manifestar os
De outro lado, por meio dessas mesmas retenções, constrói a continuidade objetos temporais nos dois fluxos do tempo, o subjetivo e o objetivo. Não
do objeto experienciado com o objeto desdobrado no tempo. A consciência do poderíamos isolar a consciência do tempo interno e “tê-la” sozinha para si
tempo interno exerce assim o que poderíamos chamar de uma intencionalida­ mesma. Tentar fazer assim seria o erro filosófico típico de tom ar um mo­
de vertical, construindo sua própria identidade contínua, e um a intenciona­ mento num pedaço, um a parte abstrata num todo. A consciência do tempo
lidade transversa, fazendo seus objetos se darem no passar do tempo. interno adere ao tempo interno e seus objetos e, por meio deles, ao tempo
O alcance retencional de um presente vivo vai apenas até o anterior, não m undano e seus objetos. Embora ela seja mais fundam ental do que eles são,
obstante; não se estende ininterruptamente ao mais originário de nossa vida é um mom ento para eles.
consciente. Em algum ponto as retenções se desvanecem, e a correspondente Além do mais, a análise da consciência do tempo somente proporciona
fase agora cai no esquecimento. Essa é a obscuridade temporal que envolve as estruturas formais do tempo. A regulação do tempo não é tudo; é só uma
todos os nossos momentos de consciência. A luz da consciência volta umas forma para o que é temporal. Para proporcionar um a análise da “origem” do
poucas fases, mas então o objeto e nossa experiência dele cessam de ser regis­ tempo, não explicamos a origem de árvores, gatos, burocracias, bandeiras,
trados. Entram num a ausência mais definitiva. Contudo, podemos recuperá- melodias, sistemas solares, sentimentos de dor, percepções e atividades cate-
los pela memória, na qual revivemos os fluxos temporais mais antigos, tanto goriais. Proporcionamos apenas um esclarecimento dos níveis do tempo den­
imanentes como transcendentes, do modo como foram originalmente preser­ tro dos quais as coisas existem e manifestam a si mesmas. As estruturas for­
vados. Nós os trazemos de volta à vida, como representados. Não poderíamos mais do tempo precisam ser preenchidas com objetos e atividades de vários
recordar algo que estivesse ainda no alcance retencional de um presente vivo; tipos, os quais requerem seu próprio tipo específico de análise, um a vez que
a experiência e seu objeto têm de cair num estágio de esquecimento antes de todos eles têm formas de presentação distintas daqueles da temporalidade.
Contudo, porque o tempo é universal, as estruturas temporais aplicam-se a origem ela é pré-pessoal. Ela funciona anonimamente. Não poderíamos fa­
todas as coisas, tanto subjetivas como objetivas. zer nada para mudá-la ou fazê-la mais lenta ou acelerada. Não está em nosso
A consciência do tempo interno é paradoxal quando medida pelos pa­ poder. Não controlamos nossas origens. Ela apenas se mantém no alvoroço
drões que aplicamos aos objetos e processos ordinários. Como vimos na Fi­ de seus próprios termos. E ainda somos identificáveis com ela; ela é “nossa”,
gura 1, o domínio dessa consciência está além ou é mais imanente do que como nossa origem e base.
mesmo os nossos processos temporais subjetivos; é mais profundo até do Vamos olhar por um mom ento para algumas das sínteses de identidade
que o fluxo de sentimentos e atos intencionais. Porque é tão profundo, cria microscópica ou “subatômica” que têm lugar dentro do presente vivo. Quando
um problema para o uso dos termos “interno” ou “imanente” para descrevê- um presente vivo real expira e torna-se retido como um presente vivo^, ele
lo. Ele move-se além do interior e do exterior. Vamos ver que não é realmente ausenta-se a si mesmo, mas não cai no esquecimento; torna-se presentado
localizável no espaço. Ele se evade do espaço como também do tempo em como tendo ido; sua ausência imediata é por essa razão dada para nós. Aqui
seus sentidos ordinários, até mais radicalmente do que faz nossa atividade temos algo paradoxal, a dadidade de um a ausência, a presença original de
intencional normal. um “passado”. A modificação do presente vivo introduz um a ausência (em
A consciência do tempo interno é feita do presente vivo enquanto este contraste com a atualidade desfrutada antes de ele expirar), mas a ausência
sucede a si mesmo. Essa sucessão é um processo? Flui ao longo do caminho é presentada: o presente vivo^ é dado como o mesmo que apenas expirou da
que os sentimentos e os atos intencionais realizam? Não; seu modo de m u­ centralidade, e assim é identificável como tal, porém tal identificabilidade
dança tem de ser diferente daquele dos sentimentos e atos, das melodias e do depende da inexorável passagem para a ausência. Um afastamento original
curso da vida. E ainda, a consciência do tempo interno tem de “m udar”; ele tom a lugar dentro da retenção, mas esse afastamento é dado ou presentado.
tem de ter seu próprio tipo de fluxo. Cada presente vivo sucede a outro. Nessa simples transição de um presente vivo para um estado retido, temos
Mais, o termo “sucessão” quando usado aqui não pode significar o mesmo ausência complementando presença, temos partes vindo a ser dentro do todo
de quando é usado em respeito a um a melodia ou a um sentimento que do presente vivo, temos um a multiplicidade sendo gerada como a cauda do
aum enta e diminui. Tudo o que podemos fazer é mostrar as peculiaridades cometa das retenções é construída, e em todas essas coisas temos sínteses de
de tal sucessão, as quais são expressas pelo modo da função de retenção e identidades de presenças vivas bem como das fases temporais de seus “obje­
protensão nele. O presente vivo_2 “precedeu” o presente vivo_j, e ambos estão tos” intencionados (as fases do sentimento ou da melodia).
retidos no presente vivo0, o qual é o único que conta no momento, porquan­ Temos nos concentrado no aspecto retencional da consciência do tem­
to é o único que é real. po interno, mas não poderíamos negligenciar o lado protensional. A proten­
A forma do presente vivo assim move-se ruidosa, automática e constan­ são é a abertura para o que está vindo. E a espera original de algo por chegar.
temente, nem mais rápida nem mais lenta, sempre a par da realidade da ex­ É formal, espera somente “algo” sem nenhum conteúdo específico, ainda
periência temporal. Ela é o pequeno m otor no coração da temporalidade. que um a experiência particular sempre tenha um conteúdo de algum tipo e
Porque é a origem do tempo, é de algum modo fora do tempo (como tam ­ seja por isto especificada (mais do sentimento de tristeza, algo do entorno
bém do espaço), e ainda experimenta diferenciação e sucessão, de um tipo do canto, mais salada, mais conversa). Desse modo, quando um a fase de um
próprio a si mesma. E simultaneamente permanente e fluente, o stehendstrò- processo registra a si mesma num a impressão primária, já foi protensio-
mende Gegenwart, como Husserl a denomina. Ela alterna e ajunta, flui e pren­ nalmente “antecipada”, ao menos com respeito a sua forma temporal, e por
de, abre e fecha, como o fogo e a rosa que são um (T.S. Eliot, Little Gidding, ad isso é dada como tendo sido esperada. Uma síntese de identidade microscó­
finem). Ela é o lugar das mais básicas partes e todos, presenças e ausências, pica ou subatômica ocorre não só em relação à retenção, mas também em
identidades em multiplicidades, aquelas que são pressupostas por todas as relação à protensão.
formas mais complexas constituídas em nível mais elevado na experiência.
Esse presente vivo está também na origem de nossa própria identidade-de-si
como agentes de consciência de verdade e ação, mas porque está na nossa
Notas finais sobre a aporia do tempo quando experienciamos nossas próprias sensações, percepções, memórias e
atividades intelectuais, estamos sempre tam bém irrefletidamente revelan­
As coisas que foram ditas sobre a consciência do tempo interno podem do a nós mesmos como a fonte identificável e receptora de tais aconteci­
parecer excessivamente especulativas e quase fantásticas. Elas podem parecer mentos, sem haver nenhum a necessidade de outro dativo que seja respon­
ir além das descrições mais acessíveis que oferecemos de outras formas de sável por essa manifestação.
intencionalidade. Por exemplo, as análises que a fenomenologia provê para a Husserl aborda essa fonte em sua doutrina sobre a consciência do tem­
percepção e para a imaginação, ou para a atividade categorial e as imagens, po interno, enquanto Heidegger a focaliza com suas obscuras notas sobre
parecem mais realistas; parecem ter um pé firme naquilo que realmente ex- Licbtung e Ereignis, que se referem ao “dizimar-se” de um espaço em que as
perienciamos. Distinções tais como aquelas entre memória e percepção pare­ coisas podem ser dadas e nós podemos vir a ser seus dativos. A filosofia clássica
cem ser do tipo que o leitor pode checar da veracidade ou da falseabilidade toca nesses assuntos em suas notas sobre a emanação das diferenças do Uno
pensando sobre sua vida consciente. Porém, as especulações sobre a cons­ (Plotino), na interação do Uno e da díade Indeterminada (Platão), e talvez até
ciência do tempo interno parecem ser completamente estranhas à experiên­ no papel do Movente Imóvel (Aristóteles). Se estamos discutindo a presentação
cia ordinária. Parecem flutuar no místico e no hermético. Ainda fazem parte e o desaparecimento das coisas, um tipo de origem para esse empurrar e puxar
da fenomenologia? São descrições ou são construções artificiais? de presença e ausência é requerido, e não pode ser um tipo das coisas que se
Alguém pode formular essa objeção do seguinte modo: admitamos que mostram no mundo ou em nosso fluxo de experiências subjetivas.
a experiência temporal não é atômica, não é o fio de um a faca, mas um telha­ Uma pessoa que se sente mais confortável lidando com neurônios e
do de duas águas; admitamos que há algo como protensão e retenção junto processos computacionais pode rejeitar tais afirmações com horror e repul­
com sua impressão imediata. A inclusão de um passado e de um futuro sa. Pode dizer que se a fenomenologia leva para tal mistificação não quer
imediatos no presente parece bastante razoável. Contudo, por que não loca­ tom ar parte nela. Em vez disso, explicará a consciência, o conhecimento e a
lizar essa estrutura diretamente dentro do fluxo de nossos sentimentos e experiência do tempo por medição de atividade neuronal e localizando os
atos intencionais, no segundo nível de temporalidade? Por que não a deixar pontos no córtex cerebral onde as percepções, as memórias e outros eventos
como algo psicológico? Por que a pressupor como algo mais profundo e mais mentais ocorrem. Essas são coisas nas quais podemos pôr as mãos, e tal tra­
imanente do que o subjetivo fluxo da consciência? Por que a projetar no balho científico, acredita, m ostrará o que realmente são as atividades de
domínio do presente vivo e seu curioso modo de expiração? Por que sumir consciência. Mas o preço de tal cautela dessa pessoa será o fato de que ela
na “preciosa” linguagem de alternar e juntar como um evento primai? É a nunca será apta a considerar termos como “presentação”, “representação”,
postulação do terceiro nível de temporalidade, um mais profundo e “abaixo” “recordação” e até “computação”, termos que ela deve usar, mas não pode
do fluxo da experiência subjetiva, o que parece ser filosoficamente excessivo. justificar. Será inapta a tratar do sentido de passado, futuridade e identida­
Em resposta a essa objeção, alguém pode dizer que a análise da inten­ de. Descreverá processos orgânicos e mecânicos, mas não será capaz de falar
cionalidade e da presentação não pode repousar apenas no domínio do tem­ legitimamente sobre a consciência em suas muitas formas e nunca alcançará
po m undano e no domínio do tempo subjetivo. O vaivém da presença e da a questão do que é o tempo.
ausência que ocorre nesses dois níveis tem de ser apoiado por um tipo de O vocabulário e a gramática usados na fala sobre a consciência do tem­
abertura e justificação, um a fonte de distinção, que não é apenas um pro­ po interno têm sua própria exatidão e seu próprio rigor. Devem usar metáfo­
cesso m undano ou um evento psicológico. O fato de que as coisas e as ex­ ras e outros tropos, mas isso não é surpreendente, um a vez que a linguagem
periências se desenrolam e persistem no tempo não é apenas um fato mecâ­ não poderia ter, originalmente, se desenvolvido para falar desse domínio; de­
nico, orgânico ou psicológico; Origina-se de um nível mais profundo. Esse vemos ajustar os termos que são normalmente usados para nomear as coisas
nível é o emergir para todas as estruturas formais, tais como as encontradas e os processos no mundo. Os termos mundanos precisam ser modificados
na lógica, na matemática, na sintaxe e nos vários modos de presentação. para atender ao que forma a base da presentação das coisas e de suas muitas
Além do mais, quando identificamos e conhecemos coisas mundanas, e habilidades a ser nomeadas. “Ser agora” e “ser aqui” (ou ali), ser um dativo de
manifestação e um a justificação para as coisas que aparecem, deve ser dife­
renciado de fatos físicos e psicológicos sobre nós mesmos, da mesma forma
como lógica e evidência têm de ser diferenciados dos processos físicos e psi­
cológicos. Os tópicos da consciência do tempo interno são a base das ques­
tões da verdade e da manifestação, e estão relacionados ao estudo clássico do
ser enquanto ser, à inquirição de como as coisas manifestam a si mesmas.

O M U N D O - D A -V ID A E A
INTERSUBJETIVIDADE

Após os temas extremamente formais discutidos no Capítulo IX, passa­


remos agora a tópicos mais concretos. Nesse capítulo iremos considerar o
Lebenswelt, o mundo-da-vida, o mundo no qual vivemos, e iremos considerar
também a intersubjetividade, o tipo de intencionalidade que age em nossa
experiência de outras pessoas. O caráter familiar do m undo vivido e o caráter
público da intersubjetividade irão trazer um bem-vindo descanso da análise
austera do capítulo precedente.

O mundo-da-vida como um problema

O mundo-da-vida surge como um a questão filosófica em contraste com


a ciência moderna. A forma altamente m atem ática de ciência introduzi­
da por Galileu, Descartes e Newton levou as pessoas a pensar que o mundo no
qual vivemos, o m undo de cores, sons, árvores, rios e pedras, o m undo
do que veio a ser chamado “qualidades secundárias”, não era o m undo real;
em vez disso, o m undo descrito pelas ciências exatas era dito ser o único
verdadeiro, e era completamente diferente do m undo que experienciamos
diretamente. O que aparenta ser um a mesa é na verdade um conglomerado
de átomos, campos de força e espaços vazios. Átomos e moléculas, as forças,
os campos e as leis descritas pela ciência são considerados a verdadeira rea­
lidade das coisas. O m undo em que vivemos e em que diretamente percebe­
mos é só um constructo feito por nossas mentes respondendo aos insumos
de nossos sentidos, e os sentidos reagem biologicamente aos estímulos físi­ Além disso, a fenomenología não apenas assevera que as ciências exatas
cos que são transmitidos dos objetos. O m undo em que vivemos é, finalmen­ são fundadas no mundo vivido; ela também tenta descrever os tipos especiais
te, irreal como o experienciamos, mas o m undo alcançado pela ciência mate­ de intencionalidades que constituem essas ciências. Tenta mostrar precisamente
mática, o m undo que causa esse m undo meramente aparente, é real. como o mundo-da-vida é transformado no mundo da geometria e das realida­
A ciência tem grande autoridade em nossa cultura porque as pessoas des atômicas. Assim, a fenomenología reivindica que as ciências exatas devem
pensam que ela nos diz a verdade das coisas. Mesmo coisas humanas como tomar seu lugar dentro do mundo-da-vida. Elas são um a das instituições esta­
consciência, linguagem e raciocínio serão, é o que se diz, finalmente explica­ belecidas neste mundo, mas nunca substituem o mundo-da-vida por um ou­
dos em termos das ciências do cérebro, as quais por sua vez serão reduzidas, tro. Não poderíamos viver no mundo projetado pela ciência; somente pode­
em princípio se não de fato, às ciências físicas da física e da química. Temos mos viver no mundo-da-vida, e esse mundo básico tem suas formas próprias
dois mundos, então, o m undo no qual vivemos e o m undo descrito nas ciên­ de verdade e verificação que não são deslocadas, mas apenas complementadas
cias matemáticas, e é geralmente pensado que o mundo-da-vida é um mero pela verdade e pela verificação introduzidas pela ciência moderna.
fenômeno, totalm ente subjetivo, enquanto o m undo da ciência matemática A mudança feita pela fenomenología, então, é mostrar que as ciências
é o m undo verdadeiramente objetivo. exatas são derivadas do m undo vivido e das coisas nele. A fenomenología
A questão do mundo-da-vida não surgiu antes do advento da ciência reconhece o valor e a distinção da ciência matemática moderna, mas não a
moderna; antes disso, as pessoas simplesmente pensavam que o m undo em supervaloriza; recorda-nos que tal ciência é construída sobre coisas que são
que vivemos era o único mundo que havia. A ciência pré-moderna apenas dadas para nós no modo pré-científico, e também recorda-nos que até a ciên­
enunciou nosso m undo familiar. Não teve a pretensão de encontrar um subs­ cia é “pertencente” ou realizada por alguém. A ciência tem de ser asseverada
tituto para ele. A ciência pré-moderna tentou simplesmente desenvolver ter­ por cientistas, por seres hum anos que exercem o tipo especial de pensamento
mos exatos, definições e descrições das coisas que encontramos diretamente, e a adequada intenção para ele. A ciência envolve vários tipos de intenciona­
coisas como organismos vivos, emoções, argumentos retóricos e sociedades lidade, vários tipos de presença e ausência e síntese de identidade. Pressupõe
políticas. O problema de como poderíamos interpretar o m undo no qual algumas formas de intencionalidade que tem em comum com outros empe-
vivemos — se poderíamos tomá-lo como válido e fidedigno, ou puramente nhos intelectuais, e também desenvolve algumas formas próprias, mas não
subjetivo e não-científíco — vem à tona em resposta à ciência moderna. flutua livre das pessoas, dos egos transcendentais, que realizam a ciência.
Como a fenomenología lida com o problema da diferença entre o obje­
tivo, o m undo científico, e o subjetivo, o m undo vivido? Ela tenta mostrar
que as ciências matemáticas, exatas têm suas origens no m undo vivido. Elas Como as ciências matemáticas são constituídas
são fundadas no mundo-da-vida. As ciências exatas são um a transformação
da experiência que temos diretamente das coisas no mundo; elas empurram As ciências modernas lidam com coisas idealizadas: com superfícies sem
essa experiência ao nível mais alto de identificação, e correlativamente trans­ atrito, raios de luz, gases ideais, fluídos incompressíveis, cordas perfeitamen­
formam os objetos que experienciamos em idealizados, objetos matem áti­ te flexíveis, máquinas idealmente eficientes, fontes de voltagem ideais e teste
cos. Pode parecer que as ciências exatas estão descobrindo um novo e dife­ de partículas que não têm nenhum efeito no campo no qual elas se movem.
rente mundo, mas o que elas estão realmente fazendo, conforme a fenome­ Contudo, essas formas ideais não são fabricadas fora do ar rarefeito. Mais
nología, é submeter o m undo ordinário a um novo método. Por meio desse propriamente, elas são projeções que têm suas raízes nas coisas que experien­
método, as ciências exatas meramente ampliam o conhecimento que temos ciamos diretamente.
do m undo no qual vivemos; elas provêem um a maior precisão em nosso tra­ Por exemplo, consideremos como chegamos à idéia de um a superfície
to com as coisas, mas nunca abandonam ou descartam o m undo que é sua geométrica. Começamos com um a superfície comum, tal como um tampo
base. Essas ciências estão aninhadas no mundo-da-vida; elas não entram em de mesa. Nós lixamos e polimos a superfície e a tornamos mais e mais lisa. A
competição com ele. certo ponto, contudo, podemos m udar do lixamento e do polimento reais
para um a projeção imaginativa. Nós nos imaginamos lixando e polindo a que é resultado de um método como sendo um a descoberta de um novo tipo
superfície até que ela não possa mais ser polida de nenhum modo; nós de realidade. Os cientistas especialistas, os mestres nesse novo domínio, são
a imaginamos como tendo alcançado o limite de polimento. Na verdade, não considerados detentores de um a compreensão (posse) muito mais perfeita
podemos polir um a superfície a esse ponto, mas podemos “partir” dos pas­ da natureza das coisas do que o resto de nós, já que lidamos “meramente”
sos físicos de refiná-la e simplesmente imaginá-la alcançando esse limite in­ com o m undo não-científico, enquanto eles lidam com o m undo como ele
superável. Esse limite é a superfície geométrica pura, e é alcançado de uma “verdadeiramente” é em sua perfeita exatidão. Essas idealizações, além do
base na experiência atual. E um a transformação da superfície que experien- mais, foram projetadas não somente na geometria e na física, mas também
ciamos de fato. nas ciências sociais: em economia, política e psicologia. Modelos de teoria
Um outro exemplo pode ser encontrado na ótica. Iniciamos com um dos jogos, por exemplo, têm sido usados para calcular estratégias em perío­
feixe de luz vindo de um holofote. Então cobrimos parte da fonte de luz e dos de guerra e política externa.
cortamos o feixe, por assim dizer, no meio. Então cobrimos metade da parte
restante. Fazemos isso algumas vezes, mas então mudamos os mecanismos;
mudamos realmente de bloquear de fato a luz para imaginar que a bloquea­ Outros aspectos dos objetos científicos
mos, e continuamos, passando a imaginar que cortamos a luz até um feixe
m uito fino, tão fino que não poderíamos interromper nenhum a parte dele Examinemos em maiores detalhes o procedimento pelo qual os objetos
sem extinguir o feixe inteiramente. Esse mais fino feixe, esse feixe intacto ou idealizados são alcançados. No objeto com o qual começamos podemos iden­
atômico, vem a ser um “raio” de luz, como foi definido por Newton em sua tificar um a característica na qual flutuações são possíveis, tais como a lisura
Optics. Nunca poderíamos chegar, na realidade factual, a tal raio de luz, mas da superfície ou o tam anho do feixe de luz. Podem existir variações nessas
podemos imaginar ou pensar sobre ele como um limite. duas características: ambas podem ser realizadas em maior ou menor grau,
Tanto a superfície perfeitamente lisa como o raio de luz são objetos idea­ em mais ou menos. As variações são então tornadas pequenas e menores, e a
lizados. Tais objetos jamais seriam experienciados em nosso mundo-da-vida; idéia surge de um a condição na qual nenhum a outra variação é pensável: elas
nós os estabelecemos ou constituímos por um tipo especial de intencio­ são reduzidas a zero. A superfície torna-se perfeitamente sem relevo, o raio
nalidade, um tipo que m istura ambos — percepção e imaginação. Essa torna-se praticamente um a linha. Nós “geometrizamos” um objeto que foi
intencionalidade começa com algo do mundo-da-vida, mas gera algo que um a vez um a coisa percebida no mundo.
não parece pertencer mais a esse mundo. Uma vez que temos esses objetos É im portante notar que quando alcançamos essa condição ideal rete­
idealizados, contudo, podemos começar a relacioná-los aos objetos concre­ mos algo do conteúdo ou da qualidade da coisa com a qual começamos. Não
tos que experienciamos. Os objetos idealizados tornam-se versões perfei­ transformamos tudo em matemática pura. A superfície ideal é ainda um a
tas do que experienciamos; eles parecem ser “mais reais” do que as coisas que coisa espacial e o raio é ainda um raio de luz. A superfície é diferente do raio
percebemos porque são mais exatos. As coisas que percebemos parecem ser de luz, e ambos são diferentes, por assim dizer, da corda perfeitamente flexí­
só cópias imprecisas do padrão perfeito. vel ou da fonte de voltagem ideal, as quais por sua vez são idealizações que
Então, se convocamos muitos desses objetos, podemos pensar que des­ partem de outros objetos mundanos.
cobrimos todo um m undo de coisas que são de longe melhores e mais exatas É a identidade dolorosamente exata dos objetos idealizados que os tor­
do que o mundo de nossa percepção. Isso é o que acontece quando o tipo de na tão satisfatórios intelectualmente. Eles são perfeitos: são exatamente os
ciência introduzida por Galileu, Descartes e Newton torna-se dominante em mesmos onde quer que sejam encontrados, em contraste com as superfícies
nossa cultura. As pessoas esquecem que as coisas ideais referidas na e pela variáveis e os feixes de luz que encontramos na realidade. Em capítulos ante­
ciência foram trazidas por um modo de pensar; elas acreditam que essas coisas riores deste livro, consideramos o tema da identidade em outros contextos;
são mais reais do que aquelas que diretamente experienciamos, e assim con­ um a coisa percebida (o cubo) foi descrita como um a identidade em um fluxo
cedem às ciências que as conhecem uma grande autoridade. Elas tom am o de lados, aspectos e perfis; um ato mental foi dito ser um a identidade dada
nas várias recordações que temos dele; e até o si foi apresentado como uma mesmo com eles, ainda permanece em desacordo com o m undo de nossa
identidade por trás de nossas várias conquistas mentais. Contudo, todas es­ experiência espontânea. As versões mais novas da ciência podem tolerar im­
sas identidades encerram muitas variabilidades; elas são o que se pode cha­ precisão, mas o que elas descrevem é ainda diferente do m undo no qual vi­
mar coisas morfológicas ou essências. Em contraste, as coisas ideais que a vemos, e o problema de integrá-las nesse m undo não foi desfeito. Uma im­
ciência matemática alcança, as essências exatas, não toleram nenhum a ambi­ portante contribuição para sua resolução poderia encontrar-se na análise
güidade ou variação. Elas positivamente as excluem. mais cuidadosa dos tipos de intencionalidades que operam no estabeleci­
Nem todas as coisas podem ser projetadas para um limite e constituí­ mento do conhecimento científico.
das como essências exatas; um a percepção ou um a memória, por exemplo,
sempre retêm alguma vaguidade e variabilidade. Não faria sentido tentar
projetar coisas como essas para um limite ideal; elas permanecem “morfo­ Intersubjetividade: um mundo considerado em comum
lógicas” e não tipos de coisas exatas. Conseqüentemente, tais coisas parecem,
para algumas pessoas, ser vagas e subjetivas, e tentativas são feitas para in­ Muito do vocabulário e do argumento da fenomenología pode dar a
troduzir um a ciência exata, um tipo de psicologia matemática ou ciência impressão de que ela é um a forma de filosofia que se volta para o solipsismo.
cognitiva, que substituirá esses conceitos por outros mais exatos. A tentativa Com sua fala sobre o ego transcendental, o fluxo de consciência temporal e
de explicar a cognição hum ana como um a forma de computação neuronal é a redução, a fenomenología pode parecer negligenciar a existência e a presen­
um exemplo. ça de outras pessoas e comunidades. Alguns críticos da fenomenología quei­
A fenomenología reivindica que as ciências matemática exatas da natu­ xam-se de que ela reduz outras pessoas a meros fenômenos e faz do ego so­
reza não podem afirmar sua própria existência. Elas não têm os termos e litário a única realidade. Tais acusações são infundadas. A fenomenología
conceitos para manusear coisas como percepção, recordação, a experiência tem m uito a dizer sobre a comunidade hum ana e prover um a descrição ex­
de outras mentes, e outras que tais. A fenomenología reivindica que pode tensiva de nossa experiência de outras mentes.
prover os conceitos e as análises que esclarecem como as ciências exatas Há duas abordagens para a descrição de nossa experiência dos outros.
mesmas surgem de origens pré-científicas. A fenomenología apresenta a si Primeiro, podemos simplesmente descrever como experienciamos diretamen­
mesma como um a ciência por mérito próprio; ela não se comporta como as te outras pessoas, como reconhecemos outros corpos como a corporificação
ciências matemáticas da natureza, mas tem sua forma própria de precisão, a de mentes e si mesmos como o nosso próprio. Segundo, nós podemos to­
qual é distinta da precisão matemática idealizada da ciência natural. É, entre mar um a rota mais indireta e descrever como experienciamos o m undo e as
outras coisas, um a ciência sobre a própria ciência. Ela é também um a ciência coisas nele como sendo também experienciadas por outras mentes e outros
do mundo-da-vida, e tenta mostrar como o mundo-da-vida serve como um si mesmos. Nessa segunda abordagem, não visamos à relação direta entre
fundam ento e um contexto para as ciências matemáticas. nós mesmos e os outros, mas à relação que ambos ou todos temos para com
Desenvolvimentos na física e na matemática no século XX levantaram o m undo e as coisas que possuímos em comum. Vamos começar com a se­
questões sobre a exatidão das ciências naturais. Descobertas como a da in- gunda abordagem.
determinação de medição e a relação do observador na teoria quântica, da Quando experienciamos um objeto corporal, tal como um cubo, nós o
teoria da relatividade, do teorema da incompletude em matemática, dos sis­ reconhecemos como um a identidade num a multiplicidade de lados, aspec­
temas não-lineares, da teoria do caos e da lógica difusa (fuzzy logic) têm lan­ tos e perfis. A multiplicidade é dinâmica; qualquer que seja a perspectiva que
çado dúvidas sobre a compreensão mais elevada do m undo que foi apresen­ tenhamos do cubo em algum momento, podemos mover a nós mesmos ou
tada na física newtoniana, na ciência e na matemática que prevaleceram ao cubo, e gerar um novo fluxo de lados, aspectos e perfis. O que era visto
durante os primeiros anos da fenomenología. Contudo, esses desenvolvi­ torna-se não-visto, o que era não-visto torna-se visto, e o cubo permanece ele
mentos não afetam o problema do mundo-da-vida e da ciência. Todos esses mesmo do começo ao fim. A qualquer mom ento antecipamos e evocamos
desenvolvimentos ocorreram dentro da visão científica do mundo, a qual, nossas visões futura e passada das coisas. Essas outras visões são cunhadas
enquanto desfrutamos da visão que é dada para nós agora. Nossa experiên­ Intersubjetividade: conhecendo o outro
cia é um a m istura do real e do potencial: sempre que certos lados ou aspectos
são dados, co-intencionamos aqueles que não são, mas que poderiam ser Até aqui, nossa discussão da intersubjetividade focalizou-se nos objetos
dados se mudássemos nossa posição, nossa perspectiva, nossa habilidade para que vemos como sendo experienciados por outros tanto como por nós pró­
perceber e assemelhados. prios. Vamos agora fazer alguns comentários sobre nossa experiência direta de
A m istura de real e de potencial é elevada quando outros perceptores outros como outras mentes, outras corporificações da consciência. Não só
entram em cena. Se outros estão presentes, então constatamos que quando apreciamos o mundo como dado a outros; também podemos nos voltar para
vemos o objeto desse lado os outros atualmente vêem-no de algum outro esses outros e experienciá-los como nós próprios, como dativos de manifesta­
ângulo, um ângulo que poderíamos possuir se nos movêssemos para onde ção, que podem retribuir nosso reconhecimento e nos ver como eles próprios.
eles estão. O que é potencial para nós é real para eles. O objeto por essa razão A experiência de um outro si é baseada na experiência de um outro corpo
assume um a maior transcendência para nós: ele não é somente o que vemos com o nosso próprio. Não conhecemos apenas a mente do outro; primeiro
e poderíamos ver, mas também o que eles vêem nesse momento. Além do nós temos o corpo dado, mas o corpo é dado como um lugar no qual a cons­
mais, apreciamos o objeto tal como transcendendo nosso próprio ponto ciência do outro exerce poder. Assim como podemos mover e experienciar o
de vista: vemo-lo precisamente como sendo visto por outros e não apenas nosso próprio corpo, assim também o outro, a quem reconhecemos como
por nós. Esse nível de sua identidade é dado para nós. O objeto é ou pode ser sendo igual a nós, move e experiencia o seu. Esse corpo, além do mais, não
dado intersubjetivamente, e é presentado para nós como tal. apenas provê um lugar para outra consciência e um a situação para outro
A habilidade do objeto de ser dado perceptualmente para muitos obser­ ponto de vista — também expressa a mente de outro. A língua falada, os
vadores, ouvintes, provadores, degustadores e experimentadores tom a lugar gestos intencionais e a linguagem corporal imponderável são todos mais do
num nível sensorio, mas o objeto pode também ser categorialmente enun­ que apenas movimentos corporais; sinalizam atos intencionais, e também
ciado por muitas pessoas e não apenas por nós. Pode ser compreendido e expressam um conteúdo de pensamento. Expressam para nós como o m un­
pensado sob muitos modos. Podemos conhecer o senhor Jones como o bal­ do e as coisas nele parecem ser para alguém que está naquele corpo. Se a
conista da agência postal, mas a senhora Jones o conhece como seu marido, outra pessoa emitir certos sons ou fizer certas caretas, podemos dizer que “lá
e sabemos que o balconista da agência postal é também conhecido por ou­ vêm problemas” ou “não nos abandone agora”.
tras pessoas sob outras formas de descrição e conhecimento. Não somos aptos Assim, certos corpos permanecem no m undo como expressivos de sen­
a formular todos os modos pelos quais um objeto pode ser conhecido: qual­ tidos (um movimento de um braço não é apenas um processo mecânico, mas
quer conhecimento que temos é determinado por ser limitado. Mais, conhe­ um a saudação, um aceno da mão é um a despedida e não apenas um movi­
cemos o objeto como conhecível mesmo em formas que não podemos co­ mento). Esses corpos são também capazes de nos transm itir como o m undo
nhecer. Reconhecemos esse nível de sua transcendência para nós, esse nível é: provêem outros pontos de vista sobre o modo como as coisas são. Eles
da ausência que tem para nós. Tanto o nível perceptual e o intelectual como corporificam outros egos transcendentais. Nós os percebemos como corpos
o m undo e as coisas nele são dados para muitos si mesmos, muitos dativos de si-mesmos como nosso si-mesmo, mas agindo assim nós os percebemos
de manifestação, ainda que desejemos sempre nos apresentar a nós mesmos precisamente como encerrando e expressando um a vida consciente que dese­
como o único proeminente, o único ao centro e o único que é um a questão ja permanecer sempre ausente para nós, um fluxo de consciência de tempo­
para nós num modo que nenhum outro ou outros podem ser, por mais que ralidade irredutivelmente diferente da nossa própria. A ausência distintiva
eles possam ser queridos e próximos. Nossa proeminência para nós mesmos de outros si é presentada para nós. E um tipo de ausência diferente das au­
é um a necessidade da lógica transcendental, não um assunto de moral sências dos outros lados do cubo ou do sentido de um texto que ainda não
autocentrada. Algumas pessoas podem ser pessoalmente mais próximas a podemos decifrar.
nós e outras mais distantes, mas as muitas dimensões de proximidade não Um dos ensinamentos mais controversos na fenomenologia é o de que
surgem pelo modo que somos dados a nós mesmos. é possível para nós, em princípio, “pensar além” da dimensão intersubjetiva
e descer a um nível em nossa própria experiência que precede ou forma a
base da intersubjetividade. Esse é a assim chamada esfera da si-mestnidade. A
redução a essa esfera não é o mesmo que imaginar um a solidão factual; não
é como imaginar que estamos sós em qualquer lugar ou até que todos os
outros seres hum anos tenham desaparecido da terra e nós fomos deixados
sós. Tais cenários imaginários poderiam ainda reter a dimensão de outras
pessoas; poderiam apenas eliminar os outros, na verdade. A redução à esfera
da si-mesmidade tenta eliminar as m uitas dimensões das outras pessoas. Ela RAZÃO, VERDADE E EVIDÊNCIA
tenta alcançar um nível de experienciação no qual os muitos contrastes entre
nós e os outros não afloram.
Os comentadores têm quase sempre criticado Husserl por introduzir o
conceito da esfera da si-mesmidade; eles sustentam que esse domínio é im­
pensável, porque qualquer experiência que temos deve, em princípio, ter uma
publicidade rudimentar. Contudo, não deveríamos ser apressados demais em
O ego transcendental é o agente da verdade. Ele exerce essa atividade em
rejeitar essa doutrina. Certamente, quase todas as nossas experiências envol­
muitos contextos: no discurso, na formação de imagens, na reminiscência, na
vem um a dimensão de outras mentes, um sentido que seria compartilhado
conduta prática, na retórica política, na ilusão inteligente e na manobra estra­
com outros e que é definido por estar em contraste com outros. Porém, não
tégica. Um modo especial de exercer o poder de ser verdadeiro ocorre na ciên­
deveríamos excluir a noção de que algum aspecto de nossa consciência tem
cia, seja a ciência empírica ou teórica, e esteja focada num a região do ser ou em
um tipo de extrema privacidade no qual o sentido mesmo dos outros não
outra. Na ciência, desejamos simplesmente encontrar a verdade das coisas; o
entra em cena. Pode haver um nível de experienciação que é, em princípio,
empreendimento científico é só um a tentativa de mostrar o modo como as
incapaz de ser expresso para ou compartilhado com os outros, um domínio
coisas são, à parte de como elas podem ser usadas ou de como podemos dese­
no qual o sentido mesmo dos outros não se introduz. Claramente, tal inten­
jar que elas sejam. O sucesso na ciência não significa a vitória sobre as outras
sa privacidade não poderia ser o todo de nossa experiência, nem poderia ser
um a parte principal dela, mas poderia ser um leve toque de desprezo do se­ pessoas ou a gratificação de nossos vários desejos; significa pura e simples­
gredo final da nossa consciência. Por que deveria tal dimensão ser totalmen­ mente o triunfo da objetividade, a descoberta de como as coisas são.
te negada? E, se existir tal domínio, ele deveria ser objeto de um a exploração A filosofia é um esforço científico, mas é diferente da matemática e das
para mostrar que tipo de identidades e diferenças, presenças e ausências, e ciências sociais e da natureza; ela não é concernente a um a região particular
unidades em multiplicidade são possíveis nele. do ser, mas à veracidade enquanto tal: às relações humanas, à tentativa hu­
Deveríamos enfatizar, contudo, que essa redução à esfera da si-mesmi­ mana de descobrir o modo como as coisas são e à habilidade hum ana de agir
dade não é o mesmo que a redução transcendental, o movimento da atitude de acordo com a natureza das coisas; por fim, é concernente ao ser enquanto
natural para a reflexão fenomenológica. E um movimento dentro da atitu­ ele manifesta a si mesmo para nós. Na ciência e na filosofia buscamos a ver­
de filosófica, cobrindo vários níveis da experiência experimentada pelo ego dade por si mesma, independentemente de qualquer outro benefício que ela
transcendental. possa trazer. Em ambos empreendimentos nós tentamos alcançar o grau mais
elevado de exatidão apropriada ao assunto em pauta; não nos satisfazemos
em fazer apenas um trabalho particular bem feito.
Vimos examinando, neste livro, muitos ingredientes da veracidade. Te­
mos examinado a identidade em multiplicidade, a enunciação categorial e as
diferenças entre coisas como percebidas e recordadas. Temos explorado tan-
W .

f|
I RAZÃO , VERDADE E EVIDÊNCIA

to a veracidade do ser como a veracidade do agente de descoberta (junto com Os significados são presentados especialmente em palavras. Por meio
a possível falsidade e confusão que vem em sua seqüência). No presente ca­ da linguagem torna-se possível para nós expressar o modo como as coisas
pítulo, consolidaremos e completaremos essas explorações. Investigaremos a são e transm itir esse modo de presentação para outra pessoa e para nós
fenomenologia da razão, a análise do pensamento racional. mesmos em outros lugares e outros tempos. Por meio das palavras m uda­
mos a apreensão do modo como as coisas aparecem para nós, e se somos
competentes em nossas descobertas elas apreendem o modo como as coisas
A vida da razão e a identidade do significado são. Ao mesmo tempo, as palavras são temperadas pelo modo com o qual
temos descoberto as coisas em questão, assim elas indicam ao leitor ou ao
Quando passamos a raciocinar, elevamos-nos a nós mesmos além de ouvinte algo sobre nós mesmos também.
nossa vida biológica e psicológica. Vivemos a vida do pensamento. Isso sig­ Os físicos e os matemáticos não se preocupam com o fato de que a pro­
nifica que nós, esses seres particulares, esses animais que somos, tornamo- posição pode retornar repetidas vezes como identicamente a mesma, ainda
nos aptos a fazer asserções sobre a verdade das coisas. Podemos provar ou que a física e a matemática não fossem possíveis se essas recorrências não
falsear tais asserções, podemos m udar significados e podemos glorificar ou acontecessem. Os filósofos, contudo, não podem deixar essa identificação
condenar-nos uns aos outros por termos sido melhores ou piores agentes da ser jogada no passado deles; é o tipo de coisa sobre a qual eles pensam como
verdade. Quando falamos com alguém e buscamos a vida racional, nos tor­ um ingrediente em nossa habilidade para viver a vida da razão.
namos aptos a dominar a fundo ausências de muitos tipos e enunciar pre­
senças em modos extremamente complexos.
Um dos requisitos para esse tipo de vida é a identidade de um sentido Dois tipos de verdade
que trocamos entre nós mesmos e volta repetidamente em nossa própria vida
mental. Uma simples proposição retorna como identicamente a mesma re­ A identidade de significado torna a verdade possível. Há dois tipos de
petidas vezes: nós a dizemos para outra pessoa, a citamos como tendo sido verdade que ocorrem em nossa vida racional: a verdade da exatidão e a verda­
mencionada por alguém, a usamos como um a premissa, a confirmamos ou de da descoberta.
negamos em nossa experiência, a situamos dentro de urna exposição siste­ 1. Na verdade da exatidão, começamos com um a enunciação sendo feita
mática de um campo científico, ou a anotamos para que ela possa ser lida ou um a proposição sendo considerada. Partimos então para a verificação de
mesmo quando não estejamos lá para dizê-la. A identidade de um significa­ se a enunciação é verdadeira. Faremos qualquer tipo de experimentação que
do ocorre até através das diferentes interpretações que as pessoas possam dar seja necessária para a confirmação ou a negação da enunciação. Se alguém diz
ao significado, e através das diferenças em incerteza e precisão que a propo­ que o telhado da varanda vaza quando chove, nós esperamos até que chova e
sição possa experienciar em várias mentes. A menos que ela fosse um a e a então vemos se o telhado vaza ou não. Se alguém faz um a proposta de proce­
mesma afirmação, não poderíamos ver essas diferenças como sendo diferen­ dimento com um a certa reação química ou tratamento médico, defendemos
ças de fato; não poderíamos ter muitas interpretações se as proposições fos­ experimentos apropriados para confirmar ou negar a asserção. Se os resulta­
sem elas mesmas diferentes, e não poderíamos falar da posse vaga de um dos confirmam a asserção, podemos dizer que a afirmação é verdadeira porque
significado a menos que um núcleo de sentido permanecesse o mesmo entre expressa o m odo como as coisas são. É um a afirmação exata. O sentido
sua enunciação vaga e sua enunciação precisa. Às vezes, é verdade, um signi­ de falsidade que é correlato ao de verdade da exatidão é óbvio: é a falsidade de
ficado ou proposição pode fragmentar-se em dois ou mais sentidos quando asserções que correm em sentido oposto ao modo como as coisas são, asser­
o pensamos mais cuidadosamente, ou pode desintegrar-se em incoerências, ções que opõem resistência à manifestação das coisas.
em um nonsense em todo caso, mas essas desintegrações no domínio do sig­ 2. Há um a forma mais elementar de verdade que pode ocorrer até sepa­
nificado são possíveis somente em contraste com os significados que estão rada da confirmação de um a asserção. Esse segundo sentido da verdade, a
sustentados e conformados em sua identidade. verdade da descoberta, é simplesmente a exposição de um estado de coisas. E o
simples presentar para nós de um objeto inteligível, a manifestação do que é exposto. Devemos introduzir outro termo, a palavra evidência, para nomear
real ou verdadeiro. Tal presença poderia ocorrer imediatamente durante nossa as atividades subjetivas que realizam a verdade. A fenomenologia usa o ter­
experiência e nossa percepção normais: caminhamos para o carro e somos sur­ mo “evidência” para nomear a realização subjetiva, a posse subjetiva da ver­
preendidos ao ver que o pneu está vazio. Não precisamos ter antecipado o dade, se em correspondência ou descoberta. A evidência como noésis é cor­
pneu como vazio; nossa experiência dele como tal não é um a tentativa para relata da verdade como noema.
confirmar ou negar um a proposição que tivéssemos cogitado. Não estamos O uso da palavra “evidência” é incomum em inglês. (É menos estranho
lidando com a verdade de exatidão, mas com a verdade mais elementar da em alemão e francês.) Normalmente, “evidência” em inglês não significa uma
simples descoberta. Um objeto inteligível, um estado de coisas, é presentado realização subjetiva; significa, mais apropriadamente, um fato ou um dado
para nós, o objeto ou a situação simplesmente se mostra. Estamos surpresos que serve para provar um enunciado. A evidência pode ser um a pegada, uma
por um a nova relação matemática, percebemos de repente que John está men­ luva ensangüentada, um testem unho dado por um a testem unha ou um
tindo parajames, vemos porque Cézanne combinou as cores e linhas do modo documento, mas em cada caso é algo objetivo, um a coisa de algum tipo, que
que ele fez nessa pintura em particular. Tais presentações não são confirma­ é usada para provar algo outro. No uso normal em inglês, um a amostra.de
ções, mas exposições diretas A falsidade correlata com esse tipo de verdade é o evidência é como um a premissa que estabelece um a conclusão, não como
tipo que ocorre quando as aparências enganam, quando as coisas parecem ser um a intencionalidade que descobre um objeto. Quando o termo é usado
algo que não são: ouro de tolo, camuflagem, a simulação, a falsidade da inau- como um adjetivo, é quase sempre predicado do objeto que aparece, o qual
tenticidade, a falha em ser genuíno como oposta à falha em dizer a verdade. então é dito aparecer vividamente e claramente: um a vitória evidente, um
A verdade da exatidão depende da verdade da descoberta; a últim a pode esquema evidente, um a decepção evidente.
servir como inteligibilidade que confirma ou nega um a asserção. O que uma Na fenomenologia, contudo, “evidência” tom a o sentido da forma ver­
proposição verdadeira “une”, m istura com, ou é medida por, não é um a en­ bal, “evidenciar”. É a realização da verdade, o produzir de um a presença. É
tidade inerte, mas um a coisa sendo descoberta. A asserção proposicional é um a performance e um a realização. A evidência é a atividade de presentar
de-citada em favor de um a mostra direta, a qual é reconhecida como sendo um a identidade num a multiplicidade, a enunciação de um estado de coisas,
identificável com a asserção cuja verdade estava sendo investigada. Como ou a verificação de um a proposição. É a efetividade da verdade.
vimos no capítulo VII, nossa experiência começa com a exposição direta de Há alguns significados para “evidência” nos dicionários que chegam
estados de coisas, do inteligível, de objetos categoriais. Essa exposição envol­ perto do significado que a fenomenologia dá à palavra. O Oxford English
ve a verdade da descoberta. O domínio do proposicional entra em cena quando Dictionary diz que “evidência” pode ser usada como um substantivo com o
nos tornamos sofisticados o bastante para tom ar alguns estados de coisas sentido de um a “testem unha”: diversas pessoas poderiam ser ditas “evidên­
como sendo meramente propostos por alguém; eles se tornam “estados de cias” num caso, pessoas que podem esclarecer o que aconteceu. Podemos
coisas como propostos”, eles se tornam proposições, asserções ou juízos, eles dizer que alguém “tornou-se testem unha principal”, isto é, decidiu tornar-se
se tornam sentidos ou significados. São essas proposições, esses estados de testemunha de um evento. Há ainda um substantivo inglês obsoleto, evidencer
coisas como propostos, que se tornam candidatos para a verdade de exati­ o qual significa alguém que presta depoimento testemunhal: “Uma teste­
dão, e adquirem tal verdade quando são vistos misturados.com o que é dado, m unha oficial e legal”. Também, a palavra pode ser usada como um verbo
mais um a vez, na verdade da descoberta. A verdade da descoberta, portanto, transitivo, e então significa “tornar algo evidente ou claro, mostrar clara­
flanqueia a verdade da exatidão. Vem antes e depois. mente, manifestar algo”. Assim, poderíamos dizer, “ele evidenciou a futilida­
de do plano”, ou “suas palavras evidenciaram a situação em que eles esta­
vam”. Esses significados, ainda que antigos e raros, estão um pouco mais
Dois tipos de evidência próximos do sentido de “evidência” na fenomenologia, mas ainda não nos
dão um precedente óbvio para o uso filosófico. Teremos de tornar o signifi­
Nos dois tipos de verdade que distinguimos, o predicado “verdadeiro” cado claro usando a palavra nos modos que colocarão em cena o fenômeno
aplica-se tanto a um a proposição como a um a entidade ou estado de coisas que é suposto que nomeie.
A evidência é a presentação bem-sucedida de um objeto inteligível, a meros recipientes. Não somos somente dativos, mas também nominativos
presentação bem-sucedida de algo cuja verdade torna-se manifesta ao evi­ de revelação (ego, e não apenas mihi). Outras palavras como “intuir”, “perce­
denciar a si mesma. Tal presentação é um acontecimento notável na vida da ber” ou “registrar” parecem nos tornar passivos demais em aceitar o que
razão. É o mom ento no qual algo entra no espaço de razões, o m undo de aparece. “Evidenciar” torna mais claro que devemos agir como egos trans­
inteligibilidades. Tal evento não é apenas um a perfeição do sujeito que a cendentais se as coisas nos são dadas. Essa ação é mais óbvia no caso da
realiza; não faz perfeita somente a pessoa que entende ou enxerga o que está atividade categorial, mas é necessária mesmo na percepção, com seu estágio
se passando. É também um a perfeição no objeto; o objeto é manifestado e inicial de inteligibilidade, e é obviamente requerida na formação de imagens,
sabido, ele revela a si mesmo. Sua verdade é atualizada, evidenciada. Quando na reminiscência e na deliberação. O termo inglês insight é um bom equiva­
Heidegger usa um tropo poético mais adequado e chama o homem, ou Da- lente, ainda que não possa ser usado como verbo, mas parece limitado para
sein, o “pastor do ser”, ele entende que somos os únicos para os quais as coi­ presentação categorial; “evidenciar” parece cobrir um campo mais vasto. Não
sas podem ser descobertas em sua autenticidade, e que possuímos um lugar só conferencistas e cientistas, mas também pintores e dramaturgos e seus
privilegiado no plano das coisas porque somos dativos de manifestação. Nós públicos podem evidenciar o modo como as coisas são. Além do mais, insight
evidenciamos as coisas. Nós as deixamos aparecer. conota um a ação que é realizada de um a vez por todas, enquanto “eviden­
O poder que temos de fazer isso não é a realização de algum plano que ciar” tem o sentido de continuidade e consolidação de si mesmo para além
concebemos, ou o resultado de um projeto de governo-consolidado, ou um do mom ento inicial.
talento que podemos tentar desenvolver; ele vem daquilo que somos antes Evidenciamos, então, de dois modos: na verdade da exatidão e na verda­
mesmo de começarmos a fazer escolhas ou deliberar sobre o que deveríamos de da descoberta. Evidenciamos a exatidão de um a proposição pela observa­
fazer. Ele vem do nosso modo de ser. Ele permite-nos deliberar e escolher. ção de como as coisas são e pela separação da asserção que delimitamos para
Nossa fala não é apenas um tagarelar entre nós mesmos; é também, se esca­ verificar. Mais fundamentalmente, contudo, evidenciamos um objeto inteli­
pamos da névoa da vaguidade, a revelação das coisas, que vêm à luz naquilo gível por enunciá-lo em sua presença direta, quando realizamos a verdade da
que dizemos. Nós provemos um a luz na qual as coisas podem manifestar descoberta. Vemos que os quadrados de números pares são pares e que os
a si mesmas, um a clareira onde elas podem ser colhidas e recolhidas. Algo
dos ímpares são ímpares; vemos que inveja não é o mesmo que ciúme; vemos
de bom e im portante acontece em nossa vida da razão, mesmo se ocupar­
que há somente cinco sólidos regulares no espaço tridimensional. Todos esses
mos só um pequeno espaço e tempo no desenvolvimento das coisas, mes­
são fatos, objetos inteligíveis, e nós os registramos como verdadeiros: nós os
mo se o sol explodindo possa, algum dia no futuro remoto, consumir to­
expomos em sua inteligibilidade. Eles são compreendidos. Podemos que­
dos os planetas incluindo o nosso próprio. Essa atividade é nossa realiza­
rer explicá-los mais e procurar as razões por que são verdadeiros, mas a busca
ção como egos transcendentais, não simplesmente nosso com portam ento
por mais compreensão não desqualifica a compreensão inicial que é dada na
como animais ou nossa reação como corpos incrustados num a rede de
evidência original. A evidência inscreve as coisas no espaço de razões.
causas materiais. A luz da razão abre o espaço das razões, o reino dos fins.
Nós somos reais como dativos de manifestação, e o que fazemos como tal
é evidenciar a verdade das coisas.
Por que deveríamos nos esforçar por adaptar o termo “evidência” para Dois modos de tentar fugir da evidência
nomear essa realização (efetividade)? Por que não usar alguma outra pala­
vra? Uma razão é que o termo tem um sentido técnico na fenomenologia, Há dois modos pelos quais podemos tentar, na filosofia e na mentalida­
tanto em alemão como em francês, nos quais esse sentido é mais natural. de popular, negar a existência da evidência como exposição direta das coisas.
Além disso, a palavra faz a apreensão de um fenômeno: ela expressa o fato de No primeiro, reduzimos a evidência a algo meramente psicológico. No se­
que nós somos ativos quando as coisas presentam a si mesmas. Nós fazemos gundo, reivindicamos que nunca realmente temos evidência até podermos
algo quando objetos inteligíveis presentam a si mesmos para nós; não somos provar o que sabemos derivando-o de premissas ou axiomas.
1. Porque o evidenciar tem de ser feito por nós, podemos facilmente ensaiando para um a conversa hum ana e ainda não nos tornamos jogadores
passar a acreditar que é “apenas” um a ocorrência subjetiva, como um a dis­ habilitados nela. Qualquer ato de evidenciar, além do mais, pressupõe que o
posição de ânimo ou um a dor ou um sentimento de convicção. A evidência jogo completo da verdade, a conversa humana, já está em andamento; tem de
pode ser tom ada como um mero estado cognitivo, um a condição temporária estar lá para entrarmos nele. Somos elevados a essa vida não só pelo que
de nossa psique, a qual por sua vez pode ser reduzida a um a condição tem­ somos, mas também pela tradição racional na qual somos treinados, ambos:
porária do cérebro e do sistema nervoso. Nessa visão, as coisas são o que são, a tradição local na qual nascemos e a conversação hum ana como um todo.
elas são “lá fora”, e os estados cognitivos, incluindo o evidenciar, são em nós, Essa conversa e a vida intelectual podem ser “só” humanas, mas o ponto é
“aqui”. O estado cognitivo, digamos, de crença é um a condição na qual esta­ que ser hum ano é ser engajado na verdade, ser apto a descobrir o modo como
mos, condição em que poderíamos estar cônscios de nossa consciência-de-si, as coisas são e deixar a objetividade triunfar em nós. Somos mais nós mes­
mas ele nos diz somente sobre nós mesmos, não sobre alguma coisa lá fora mos como seres humanos quando somos apanhados nessa atividade.
no mundo. 2. O segundo modo de tentar se evadir da evidência é reivindicar que a
Em alemão, um dos significados filosóficos da palavra Evidenz é “cons­ presentação ela mesma não é suficiente para estabelecer a verdade. Podemos
ciência de estar convencido de algo” (Überzeugungsbewusstsein). Esse sentido pensar que um a presentação nos dá apenas um a aparência ou um a opinião.
também pode facilmente ser psicologizado. Podemos tomá-lo para signifi­ Poderíamos, então, ter de sair em busca da verdade do que foi presentado, e
car que estamos conscientes de firmemente acreditar em algo, mas então o só o faríamos apresentando razões para tal. Temos de explicá-lo; isto é, te­
algo de nossa consciência é apenas nosso estado subjetivo, o estado da firme mos de derivá-lo de outro, de premissas mais certas, até de axiomas, mostrar
convicção. E como a “crença” que David Hume e John Stuart Mill tomam porque ele tem de ser do jeito que é. Depois de tal prova, estaremos seguros
por ser o alvo de nossa percepção interior. do fenômeno. Nessa visão, não sabemos nada até termos provado; demanda­
Tal interpretação de evidência seria incorreta. Aquilo de que somos mos um a prova para tudo. O evidenciar somente, portanto, não presenta a
conscientes subjetivamente quando estamos conscientes do evidenciar não é verdade. Dito de outro modo, não há tal coisa como o evidenciar. A única
um estado mental ou psicológico, mas um a exposição. Estamos conscientes
fonte da verdade é a prova.
de um a realização intelectual, um êxito em manifestação, não de um dado
Essa objeção reflete a crença de que a verdade é alcançada por meio de
interior. Se estamos conscientes de um a exposição, também estamos, essen­
procedimentos metódicos. Nada é presentado diretamente para nós, mas nós
cialmente, conscientes do que é exposto: a exposição não é um a coisa interior
podemos alcançar a verdade raciocinando por meio de tais procedimentos.
contra a coisa exposta. O êxito na manifestação é alcançado em nossa vida
Descartes apelou para tal método no começo da modernidade, e pensou que
intelectual, não em nossa vida meramente psicológica. Pode haver aspectos
o método poderia substituir o discernimento (insigbt). Mesmo pessoas de
psicológicos em nossa realização (efetividade) intelectual, mas esses aspec­
moderada habilidade intelectual, disse ele, poderiam seguir cada simples passo
tos não são a substância da ação. O ato de evidência é um evento no espaço
de um a prova e assim chegar a um a posse segura da conclusão, com um a
de razões, não um mero episódio psicológico.
certeza tão grande quanto poderia ser alcançada pela pessoa mais inteligen­
Um ato de evidência é mais como um a mudança na lógica do que como
te. Mesmo a percepção requer prova, pensou ele, porque envolve um a infe­
um sentimento ou um a dor. Um ato de evidência é um movimento para
dentro da lógica transcendental. Ele ajusta a rede de nossas proposições e rência das idéias que temos para as causas putativas “exteriores” a nós que
nossos significados. Pode ser um episódio, mas isso não o torna psicológico; devem ter produzido essas idéias sobre. Essa confiança no método é parte do
é um episódio de descoberta e verdade, um deslocar-se para a vida da razão, racionalismo da modernidade. Ela repousa na confiança que temos em larga
um a realização do ego transcendental. De fato, é movimento original para a escala nos projetos de pesquisa que prometem descobrir as verdades de que
vida da razão. Ele nos inicia naquela vida: até as coisas terem sido reveladas precisamos para tornar a vida mais fácil e melhor. A autoridade do sábio ou
por evidência direta e até entrarmos na presença de objetos inteligíveis, não da pessoa inteligente é substituída pelo projeto de método-dirigido patroci­
tomamos ativamente um a posição no jogo da verdade. Até então, só estamos nado pelo governo, pela indústria ou pela academia.
Tal confiança no método e na prova é uma tentativa de assenhorear-se da Vivaldi por duas centenas de anos, ou de que não podemos realmente saber
verdade. E um a tentativa de trazer a descoberta sob controle e sujeitá-la aos quem foi Shakespeare, ou de que a escolástica sofreu um a superposição car­
nossos desejos. Se conseguirmos o método correto no lugar certo, e se nossos tesiana nos séculos XVIII e XIX não são necessariamente um a tragédia. Mes­
procedimentos metódicos puderem ser ajudados por computadores, estare­ mo quando pensamos que sabemos muito sobre alguma coisa, podemos estar
mos qualificados para resolver muitos problemas importantes. Ganharemos a perdendo algo central: um a abundância de dados históricos sobre um a pin­
chave-de-braço sobre a verdade das coisas, a anuência de coagir a nós mesmos tura ou um texto ou um acontecimento, um a massa de informação sobre
e aos outros. O princípio filosófico por trás de nossa confiança no método é a um a doença ou um fenômeno celestial não garantem que podemos desvelar
idéia de que conhecemos as coisas provando-as, não realizando a evidência. a verdade das coisas em questão. As coisas podem estar esperando pelo
Em contraste com o controle sobre a verdade que o método parece nos mom ento certo para ser compreendidas. Como a hermenêutica nos ensinou,
dar, a evidência parece ser imprevisível e incontrolável. Parece depender de­ Verbergung é também Bergung, ocultamento é também preservação.
mais da gente que tem a habilidade para realizá-la. Parece depender de apa­ O ocultamento pode ocorrer de duas formas, como ausência ou como
rências, de como as coisas acontecem se mostrar para nós. Confiar na evidên­ vaguidade, e é a última, a vaguidade, a mais importante. A vaguidade ocorre
cia como oposta aos procedimentos metódicos pode parecer passivo demais, primeiro como presença obscura de um objeto, a matriz fora da qual o obje­
não enérgico o bastante. O racionalista pode achar a contingência da evidên­ to pode distintamente vir à luz. Uma vez que um objeto tenha sido evidencia­
cia inquietante e pode lastimar o fato de que não podemos controlar a verda­ do, contudo, é possível, e até inevitável, para ele m udar de volta para a va­
de, mas esse é certamente o caso. Temos de esperar pela pessoa certa e pelo guidade novamente. Esse deslizamento ocorre porque temos de tom ar a evi­
mom ento certo para a verdade aparecer, e devemos depender da mente habi­ dência adquirida por adm itida quando nos movemos para um a ulterior
tuada mais do que do método. Nem todo m undo é igual quando chega a evidência que está baseada sobre ela. A evidência original torna-se sedimenta­
evidência; devemos estar preparados para ela, e devemos ter a habilidade da, como diz a metáfora fenomenológica. Torna-se um a pressuposição ocul­
natural bruta para realizá-la. Não somos iguais quando se trata de revelar a ta que permite a algo mais elevado vir à luz, mas quando focamos na mais
verdade das coisas. elevada, na evidência mais nova, a mais baixa e mais original desaparece na
obscuridade. Cessa de ser autenticamente enunciada. Por exemplo, a trans­
formação geométrica da natureza que tom ou lugar com Galileu e Newton
Obscuridade e verdade foi um evidenciar; trouxe à baila um a certa estrutura categorial. Com o pas­
sar do tempo, os homens simplesmente tomaram por admitido que o m un­
A evidência traz as coisas à luz, mas toda evidência emerge da ausência do era matemático na forma, e agora é necessário um esforço para reativar
e da vaguidade (incerteza), e o foco sobre um aspecto de um objeto geral­ ou reconstituir a evidência que está no centro da ciência moderna.
mente significa que outros aspectos passam para a obscuridade. A vida da Todas as nossas instituições culturais são assim. O sentido do que é o
razão não é um assunto de um a simples evidência, um a iluminação, seguin­ teatro também caiu num estado sedimentado; é dado por certo, mesmo que
do outra. Mais propriamente, a vida da razão é um empurra-e-puxa entre tenha sido originalmente gerado como um tipo específico de descrição e
presença e ausência, e entre claridade e obscuridade. enunciação categorial. O mesmo poderia ser dito da escrita ou mesmo da
Geralmente, consideramos que o presentar é bom, mas disso não se segue linguagem humana, com sua estrutura sintática. A própria atividade de con­
que o ausentar e o ocultar sejam maus. Pode ser necessário e bom que as tar e os números que são constituídos nessa atividade podem perder sua
coisas entrem num eclipse. A obscuridade não é apenas perda; ela também direção e seu sentido originais. Além do mais, esses originais ocultos, essas
pode ser preservação e proteção. As coisas precisam de seus momentos certos formas categoriais e culturais sedimentadas, podem estar latentes ou despre­
para ser vistas. Os fatos de que a pintura de Giorgione The Tempest foi guar­ zadas, mas elas são efetivas, e geram um campo de força cultural. São como
dada sem ser vista por muitas décadas, ou de que ainda não estamos seguros fortes magnetos enterrados no chão. Elas determinam o escopo do que faze­
do que as figuras nela significam, ou de que ninguém sabia muito sobre mos e servem como premissas desconhecidas para muitas de nossas ativida-
des humanas. Aqueles que confiam no método podem desejar se iludir de fenômeno da obscuridade é a condição de possibilidade da luz e também a
que a evidência verdadeira nunca cai na obscuridade, de que nada sai de foco condição de possibilidade da filosofia, a qual reflete sobre o que a luz e a obs­
quando algo novo entra em foco, porque os objetos estão sempre disponíveis curidade são. A obscuridade mesma vem à luz, tanto quanto pode, na filoso­
para um a nova aplicação do procedimento. Essa expectativa de mudança na fia, mas a filosofia deve ter o bom senso de deixar a obscuridade ser. Se fôsse­
presença, contudo, está condenada ao fracasso. A obscuridade e a perda são mos tentar eliminar a obscuridade, ela se tornaria um racionalismo, e poderia
tão reais qúando a clareza e a distinção. ser um a tentativa de substituir a atitude natural em vez de contemplá-la.
A filosofia busca recuperar o sentido original das coisas por meio de um
tipo de arqueologia, um a forma de pensamento que aceita as coisas culturais
e categoriais presentes em nosso m undo e tenta abrir caminho aos estratos Três níveis de estrutura de significado
de sua sedimentação categorial. Tenta seguir o passado das evidências que
foram postas em camadas umas sobre as outras na nossa história intelectual; Vamos retornar à verdade da exatidão, o tipo que ocorre quando come­
tenta voltar ao ponto quando as diferenciações primitivas tom aram lugar e çamos com assertivas e proposições e a tentativa de verificar se elas são ver­
estabeleceram o que agora nos é dado. Empenha-se em mover-se para trás dadeiras ou falsas. De acordo com essa verdade, é im portante distinguir três
para as constituições genéticas responsáveis pelas formações categoriais que níveis de estrutura que podem ser encontrados nas proposições. A discussão
herdamos. Compreender o essencial das coisas também significa compreen­ desses três níveis nos conduzirá de volta aos temas que examinamos no ca­
der o arcaico e o original. pítulo VII, sob o título de vaguidade.
Essa arqueologia filosófica, além disso, não é um a forma de história Antes de desenvolver esses três níveis, contudo, devemos diferenciar entre
empírica, e não encontra suas fontes primárias em textos antigos, mesmo a sintaxe e o conteúdo de um a proposição. A sintaxe é a gramática lógica da
quando tem de fazer uso da história e dos textos. Suas fontes primárias são proposição; é expressa em termos como “e”, “mas”, “com” e “é”. A sintaxe é
as coisas culturais e categoriais que diretamente encontramos, e o que tenta o tecido conectivo dos juízos. Ela serve para acrescentar conteúdo aos ter­
fazer é trabalhar com afinco nelas enquanto estão diante de nós, desemba­ mos das asserções e, como o “músculo” dos juízos, faz o trabalho pesado; ela
lando-as à vista de suas categorias elementares e até de suas antecipações empurra, puxa, aum enta e diminui as palavras que usamos para nomear as
pré-categoriais. Tenta “desconstruí-las”. Tomamos a linguagem, por exem­ coisas. As vezes a sintaxe é expressa em termos específicos, tais como essas
plo, e nos esforçamos em voltar às diferenciações para as quais a linguagem palavras que acabamos de mencionar, mas também pode ser expressa por in­
emerge de outros tipos de sinais; tomamos a geometria e nos esforçamos flexões (tais como os vários casos de substantivos) e pela posição de palavras
por voltar aos tipos de intencionalidades que estabelecem a geometria en­ na sentença: na sentença “John bateu o carro”, podemos dizer qual substanti­
quanto tal, como é diferenciada de outros fenômenos espaciais. Textos mais vo é o sujeito e qual é o objeto pela posição que ocupam na sentença; “o carro
antigos e formas primitivas são indispensáveis para compreender esses co­ acertou John” diz algo completamente diferente. Os termos sintáticos são tam­
meços, mas tais textos e formas não nos dão as explicações que procuramos bém chamados de partes sincategoremáticas dos juízos (a fenomenología apro­
em nossa investigação das origens das coisas, as diferenciações primitivas priou-se do termo tomando-o da lógica medieval). Essas partes são chamadas
que são mais um assunto de compreensão filosófica do que de compreensão de sincategoremáticas porque não aparecem por si mesmas como unidades de
histórica ou empírica. significado; elas devem ser anexadas a outras palavras, as palavras que elas
A filosofia depende, então, do fato de que alcancemos a verdade, mas não combinam; elas precisam ocorrer “com” outras palavras.
a verdade toda na atitude natural. Não haveria filosofia se não alcançássemos O conteúdo de um a afirmação, por contraste, serve não para ligar outras
alguma verdade, afinal. Se não tivéssemos um a opinião correta e ciência. A palavras, mas para expressar as coisas ou aspectos sobre os quais se está fa­
filosofia reflete sobré o que significa essa realização racional. Porém, também lando. Para alcançar a noção de conteúdo, vamos imaginar a sentença “John
não haveria filosofia, nem busca da sabedoria, se soubéssemos tudo, se não acertou o carro” como sendo drenada de toda estrutura sintática. Se remo­
houvesse nem obscuridade, nem vaguidade, nem erro e nem ignorância. O vêssemos toda a sintaxe, seriamos deixados com um resíduo de conteúdo
puro: “bateu, John, carro”. Teríamos de projetar isso para um extremo ideal 2. Uma vez tendo alcançado sintaticamente as proposições significati­
e até imaginar que as palavras “John” e “carro” não são mais substantivos e vas, contudo, um segundo nível surge; aquele que está relacionado à consistên­
a palavra “bateu” não é mais um verbo. Também teríamos de imaginar que cia das proposições. Duas asserções podem ser sintaticamente significativas
a posição relativa das palavras não tem qualquer significação. Se pudésse­ e ainda contradizer um a à outra: “ele chegou em casa às cinco horas; ele não
mos purificar a sentença desse modo, teríamos apenas os conteúdos sem estava em casa às cinco horas”. Até um a simples asserção, se é complexa o
qualquer estrutura. Teríamos apenas termos categoremdticos puros, palavras bastante, pode ser contraditória em si mesma ou inconsistente: “ele entrou
que simplesmente nomeiam as coisas, mas sem qualquer ordenamento ou no edifício branco que estava m arrom ”. Tais asserções são gramaticalmente
enunciação. Teríamos semânticos puros sem nenhum a sintaxe. aceitáveis, mas elas “falam contra”, elas contradizem a si mesmas. Numa con­
Tal projeção na sintaxe pura e na semântica pura como separadas total­ tradição asseveramos um a coisa e em seguida a “desasseveramos” ou afirma­
mente um a da outra é, naturalmente, puramente imaginária. De fato, toda mos sua negação. Nós temos de fato um a asserção significativa, aceitável
palavra que usamos tem um a sintaxe, e quase todas as palavras têm uma sintaticamente, porque se não fosse não poderíamos nem mesmo saber que
semântica vinculada a ela; as duas características são momentos de um a para um a contradição havia ocorrido; nossa fala satisfez o critério concernente à
a outra, não peças que podem ser separadas. Mais, é legítimo fazer a distin­ sintaxe. Contudo, ainda não temos dito “um a coisa”: temos dito duas coisas
ção entre a sintaxe e o conteúdo como duas dimensões de proposições e sob o modo de dizer um a e as duas são inconciliáveis. Não podemos asseve­
palavrás. A distinção, além do mais, é muito útil em nossa fenomenología da rar a ambas. Estamos dizendo algo, mas também o estamos desdizendo. Há
razão, e permite-nos analisar os três níveis de estrutura que apresentamos um significado, mas lampejos dele que se acendem e se apagam; já na sintaxe
para examinar no começo dessa seção. falsificada não há significado de nenhum modo; lá o “significado” desinte­
1. O primeiro nível trata dos tipos de combinações sintáticas que per­ gra-se. Uma afirmação inconsistente, ainda que significativa, não pode ser
mitem proposições significativas. Se fôssemos combinar um a seqüência de um a candidata à verdade da exatidão. Sabemos apriori que não há questão
termos tais como “portanto, é, e, X (o nome de algum objeto), com”, não difícil para a veracidade ou a falsidade de um a inconsistência.
teríamos um todo significativo. De outro lado, um a combinação como “por­ A inconsistência é um a falha diferente da falsidade sintática, mas ain­
tanto, X veio com Y” é significativa e poderia ser usada num a situação apro­ da está relacionada mais à sintaxe do que o conteúdo de nossas asserções;
priada. A primeira seqüência é um a miscelânea sem um sentido unitário, e a tem a ver com as combinatorias de proposições, com o como elas são pos­
deficiência repousa na sintaxe da seqüência. Essa seqüência de termos não tas juntas. A sintaxe lida com o modo pelo qual os termos se ju n tam para
seria apresentada como um todo de significado. Obviamente, tal seqüência formar um a proposição, e a consistência trata da maneira pela qual as pro­
não atingiria a verdade da exatidão, porque não é nem mesmo um candida­ posições podem ser compostas em proposições complexas ou totalidades
to a verdade ou a falsidade. E simplesmente sem sentido. Estritamente fa­ mais amplas.
lando, nada está sendo dito, mesmo se alguém está falando. Além do mais, 3. O terceiro nível de estrutura, contudo, trata do conteúdo do que di­
tal miscelânea sintática não é um constructo meramente filosófico; tal fal­ zemos. Trata da coerência das afirmações que fazemos. Podemos ter sucesso
sificação de seqüência de palavras ocorre às vezes quando as pessoas estão em fazer afirmações que sejam ao mesmo tempo sintaticamente corretas e
falando. Podem ocorrer quando os falantes estão sob tensão emocional, ou consistentes, mas falhar porque seus conteúdos não têm nada a ver um com
quando os falantes ou escritores estão extremamente confusos sobre o que o outro. Por exemplo, um a afirmação como “meus tios são ilegíveis” é inacei­
estão tentando discursar. As pessoas incorrem em balbucios. Tais falantes tável, não por causa da sintaxe ou da autocontradição, mas por causa da
não apresentam um a afirmação que seja um a candidata à verdade, e a ra­ incoerência: os termos “tios” e “ilegíveis” não se associam um com o outro.
zão pela qual falham se encontra na inadequação sintática do que estão Eles pertencem a categorias diferentes ou jogos de linguagem diferentes, re­
dizendo, e não na falsidade de seu discurso. O que eles dizem não é sequer giões diferentes do discurso e do ser. A afirmação é “absurda”, mas absurda
capaz de ser falso, poique falha em satisfazer a pré-condição da verdade e num modo diferente das afirmações que são deficientes na sintaxe. Não há
da falsidade. . nada errado com a sintaxe dessa proposição, mas seus conteúdos estão for­
çados juntos erradamente. Outros exemplos dessas afirmações incoerentes Detectar um a inconsistência é um modo de criticar um argumento, mas
são: “esse livro é alto”; “meu gato é um pirata”; “aquela árvore é monoglota” outro modo é detectar um a falha sintática, falha que mostra em primeiro
e “a décima emenda foi grelhada”. lugar que o falante falhou formalmente em agregar um a proposição. Uma
A todas essas afirmações, incidentalmente, poderia ser dado um signi­ elocução com sintaxe falsificada nem mesmo se qualifica a ser testada pela
ficado se elas fossem tomadas metaforicamente, mas estamos presumindo consistência. Porém, a incoerência também desqualifica um a afirmação de
que elas estão sendo estatuídas literalmente. Na verdade, a natureza da me­ ser testada pela consistência. Uma afirmação incoerente, tal como “meu gato
táfora é pôr juntos termos de diferentes regiões do discurso a fim de enun­ é um pirata”, transcende a contradição ou não-contradição. Dizer do gato
ciar novos aspectos nas coisas de que se fala. Uma metáfora ostenta sua in­ que é e não é um pirata não é dizer nada contraditório, porque não há signi­
coerência a fim de representar um ponto principal. ficado proposicional válido a ser contraditado. A incoerência do conteúdo,
Alguém poderia objetar que ninguém cometeria erros estúpidos como como a confusão na sintaxe, viola as precondições para a consistência.
esses; ninguém diria que seus tios são ilegíveis ou que um a árvore é mono­ Essas três deficiências no pensamento — sintaxe falha, contradição e
glota. E verdade que os exemplos dados foram escolhidos por causa da sim­ incoerência — podem atualmente ocorrer quando nosso pensamento é pe­
plicidade, são forçados, mas há muitas áreas na vida nas quais as pessoas netrado pela vaguidade, e a vaguidade, como vimos no capítulo VII, não é
falam incoerentemente. A incoerência na fala não é um fenômeno raro. Muitas rara no discurso humano. É o que todos nós somos em algum momento e
das afirmações sobre assuntos políticos, por exemplo, falham nesse quesito, alguns de nós na maior parte do tempo quando falamos. O pensamento
e igualmente muitas das coisas ditas sobre religião, arte, educação, moralida­ indistinto, a confusão, é a fonte para todas as três confusões, mas especial­
de, emoções hum anas e filosofia. Qualquer professor que se graduou em mente para a terceira, para a incoerência. É raro que sejamos sintaticamente
teoria política ou filosofia saberá que a maior dificuldade com composições negligentes; se cairmos assim tão baixo estaremos balbuciando antes que
fracas não é que as afirmações que se fazem nelas são falsas, mas que elas são falando. Porém, a incoerência é m uito comum, especialmente quando as
incoerentes: elas m isturam palavras que não são apropriadas juntas. É muito pessoas começam a falar sobre coisas que vão além dos simples e óbvios fatos
difícil com entar esses ensaios, porque não são proposições distintas que e entram mais nas questões reflexivas.
podem ser aperfeiçoadas ou corrigidas. Nada específico pode ser dito em
resposta. E mais geralmente, fora do domínio dos exames acadêmicos, é muito
difícil corrigir concepções errôneas que a pessoas têm a respeito de arte, po­ A experiência dos indivíduos como a evidência básica
lítica ou religião, não porque o que as pessoas dizem seja simplesmente errô­
neo, mas porque é incoerente. A coerência dos conteúdos das proposições, por conseguinte, é um a
Os três níveis de estrutura proposicional que distinguimos — a forma precondição para a consistência e a verdade das proposições. De onde vem
sintática, a consistência e a coerência — ajudam-nos a atingir diversos pon­ tal coerência? Como obter as regras que nos dizem que conteúdos podem ser
tos im portantes a respeito do raciocínio humano. Com essas distinções po­ misturados com os outros?
demos, por exemplo, mostrar como a lógica formal opera na busca da verda­ Não é o caso de que nós simplesmente divisamos regras de relevância
de. A lógica formal provê as regras para o segundo nível, o da consistência. que nos dizem que o termo “tios” mistura-se com “masculino, alto ou baixo,
Ela não nos assegura da verdade das proposições, mas explica nos mínimos barbudo ou não, generoso ou sovina” etc., e que o termo não se m istura com
detalhes as condições para sua validade, condições que as proposições devem “ilegível, astronômico, felino, molecular” etc. Não é o caso de que a coerência
preencher se são mesmo candidatas à verdade. A lógica formal m ostra como venha só de regras lingüísticas que governam nosso vocabulário. Antes, a
as proposições podem ser validamente combinadas em todos maiores, em coerência dos conteúdos das proposições vem de nossa experiência dos obje­
argumentos, sem colapsar em contradições. Se um conjunto de proposições tos, e especificamente de nossa experiência de objetos individuais. Vem do
é inconsistente, sabemos que não poderíamos confirmá-las evidenciando as fato de que em nosso encontro com as coisas particulares encontramos cer­
coisas que expressam; tal evidência é excluída a priori. tos conteúdos ou categorias que pertencem em conjunto; enunciamos as
coisas como tendo tais características. As características emergem quando mos que a maçã é vermelha e a casa é branca, mas também vemos instâncias
trazemos os objetos do evidenciar pré-predicativo ao predicativo. Todas as de decepção, generosidade, utensílios, esporte, e no enunciar essas instâncias
proposições que formulamos derivam no final das contas das nossas pró­ nós nos exercitamos fora das características que essas coisas têm. Não é ver­
prias experiências ou das que outras pessoas em nossa comunidade lingüís­ dade que os únicos indivíduos que experienciamos são simplesmente coisas
tica tiveram das coisas em questão. Para um a proposição como “meus tios materiais como pedras e árvores.
são calvos” ser verificável, a m istura de conteúdos “tios-calvos” deve ser pos­ Finalmente, a consistência e a coerência não são encontradas somente
sível, e sua possibilidade surge porque essa m istura particular pode, em prin­ em assuntos teóricos. O pensamento prático é também governado por elas.
cípio, ser enunciada da experiência pré-predicativa. Podemos encontrar esses Podemos criticar um programa público ou um projeto pessoal por ser incon­
dois conteúdos misturados juntos. sistente ou incoerente; seus significados podem contradizer um ao outro ou
Na verdade da exatidão, partimos com a proposição e retornamos a ela os propósitos que eles pretendem servir; várias metas incompatíveis podem
para a evidência da experiência pré-predicativa. A proposição originalmente ser buscadas ao mesmo tempo (estamos agindo em propósitos que não se
surgiu do evidenciar pré-predicativo individual, e agora retorna à mesma fonte entendem); muitos dos sentidos dos significados e dos fins podem ser com­
e é fundida efetivamente no experienciar pré-predicativo quando é confirma­ pletamente falsificados em nosso planejamento. As vezes um a inconsistên­
da. Se a proposição é falsificada, achamos que nosso evidenciar resiste à in­ cia na ação pode surgir por causa das pressões inevitáveis postas no projeto;
tenção que tentamos preencher nela. Não encontramos a verdade das propo­ sabemos que o programa tem problemas, mas algo tem de ser feito, isso é o
sições apenas por examinar as afirmações nelas mesmas; as afirmações são melhor que podemos fazer e tentamos alcançar o objetivo de qualquer jeito.
engrenadas teleologicamente para confirmação ou desconfirmação pelas Outras vezes, contudo, as inconsistências e incoerências simplesmente reve­
coisas mesmas, pelos objetos que encontramos em nossos vários modos de lam a incompetência do agente.
percepção. N a hierarquia de evidências, aquelas que são intrinsecamente
primeira e últim a são as da experiência direta das coisas. Todos os nossos
significados, com suas estruturas sintática e semântica, nascem da experiên­ A evidência e a beleza
cia e são engrenados para a experiência e os seres descobertos nela.
O discurso humano, portanto, está direcionado para as coisas em sua As coisas que evidenciamos não são apenas fontes de informação inútil.
inteligibilidade e a razão hum ana está determinada para a verdade como seu Nós não aprendemos apenas os fatos de que a árvore é alta e o sol é brilhante.
fim e perfeição. As estruturas formais não são fins em si mesmas, mas instru­ Antes, as coisas, além de ser verdadeiras, são também boas e admiráveis. As
mentos na descoberta das coisas. As estruturas lingüísticas podem formar coisas que conhecemos são preciosas. A razão por que continuamos a perce­
todos de complexidade extraordinária, e podemos, às vezes, estar tão encan­ ber as coisas, a razão por que giramos o cubo para ver seus outros aspectos
tados por elas que pensamos que nada há senão o jogo de significativo e ou caminhamos no edifício para ver partes que não podemos ver a partir do
sintaxe, que elas são suficientes em si mesmas. Tanto os estruturalistas como lado de fora é que há algo im portante para nós descobrirmos. As coisas so­
os desconstrucionistas acreditam nisso, pensando que não há “centro” além licitam nosso interesse e provocam nossa enunciação: elas agem assim
do jogo de significações. Mas a fenomenología vê os padrões formais da lin­ porque descobrir sobre elas satisfaz várias necessidades e diversos interesses
guagem como dotados de um a até maior dignidade e beleza: eles não apenas que temos (a maçã está m adura o bastante para comermos, a árvore pode ser
interagem um com o outro, mas servem para descobrir o modo como as escalada), mas também porque as coisas em si mesmas são belas e recompen­
coisas são e o modo como as coisas podem ser. A mente que constitui o sig­ sam nossa curiosidade. As coisas que conhecemos não são apenas um rol
nificado e sua estrutura formal age assim, no final das contas, para eviden­ insípido de informação indiferente, mas fontes de manifestações maravilho­
ciar a verdade das coisas. sas. Somos continuamente surpreendidos em ver o que um a coisa é e tam ­
As coisas que experienciamos, entretanto, não são apenas os objetos bém o que outra pode ser, o que “outros lados” podem nos oferecer. Não
materiais percebidos por meio de nossos cinco sentidos. É verdade que ve- im porta a quantos jogos de futebol um torcedor assistiu, ele ainda está curioso
para ver como este será e que face o jogo apresentará desta vez. Não im porta do. Todas essas manifestações pertencem à mesma coisa em questão. Qual­
quantas vezes tenhamos ouvido as Variações Goldberg, estamos ansiosos para quer verdade que se realiza está sempre circundada por ausência e obscurida­
ouvir esta interpretação e ver o que ainda mais a peça pode ser. Não im porta de, por mistério, desde que a coisa que conhecemos é sempre mais do que
quanto tempo dois amigos gastaram juntos, eles sempre procurarão um outro sabemos, a referência é sempre mais do que o sentido.
encontro para desfrutar as novas manifestações que virão à luz. Não nos A vida da razão caminha, assim, por meio de estruturas intricadas de ló­
cansamos de ouvir sobre a ação hum ana (heroísmo ou covardia, generosida­ gica formal, de sintaxe combinatória, da coesão dos conteúdos proposicio-
de ou avareza) em sempre-novas situações. Tudo — um jardim ou um a árvo­ nais, e da interação de presença, ausência e vaguidade. Ela abriga a ambos,
re, um a peça de joalheria ou um passeio favorito — tem seu kalon e é belo ou descoberta direta e exatidão. Move-se entre sedimentação e revivificação. É
admirável desde sua feição própria. um a vida guiada pelo ego transcendental e orientada para evidenciar o modo
Dizer que um a coisa é um a identidade em multiplicidade não é dizer como as coisas são.
que ela apenas produz mais e mais dados, como muitas cópias de um e do
mesmo jornal. Mais apropriadamente, a coisa é como um a fonte radioativa
que se m antém emitindo diferentes tipos de energia, mesmo enquanto per­
manecendo e sendo identificada como um e o mesmo objeto. A manifesta­
ção não nos dá apenas fatos; revela a beleza peculiar da coisa em questão. E
ainda que fôssemos rude e grosseiramente utilitaristas e nos tornássemos
cegos à elegância das coisas em si mesmas, se nosso interesse nas coisas fosse
motivado só pelo fato de que as coisas podem servir-nos de algum modo,
mesmo assim, em nosso pragmatismo filisteu, poderíamos ainda reconhecer
um tipo de bem na coisa, um bem de utilidade. Mesmo assim, a coisa não
seria meramente um a fonte de informação.
Todos os elementos radioativos têm um a meia-vida; eles tornam-se exau­
ridos com o passar do tempo, mesmo quando ainda podem continuar emi­
tindo energia por milhares de anos. Uma coisa como um a fonte de manifes­
tação, como um a identidade em multiplicidade, não tem um a meia-vida. Ela
gera novas manifestações, para um dativo que as apreciará, com maior e maior
intensidade, não com força decrescente. Ela é inexaurível, um a reserva sem
fim de descobertas surpreendentes. Nunca sabemos tudo o que pode ser dito
sobre um objeto. A coisa como um a identidade tem profundidade; por mais
que as manifestações possam ser presentadas para nós, há ainda outros seres
guardados na reserva, e todos eles pertencem a um a e à mesma coisa: como
parecerá o Empire State Building quando o virmos ao anoitecer da perspec­
tiva do passeio nos altos do Brooklyn? Como foi Eisenhower como presiden­
te? Como será o Hamlet na interpretação de Kenneth Branagh? Que realce
dará o açafrão a esse prato? Algumas das manifestações que já trouxemos à
tona, além do mais, podem voltar à obscuridade e ser vistas novamente só
num tempo posterior e em outras perspectivas, por falantes de outras lín­
guas, para um a comunidade que pode recordar coisas que tivermos esqueci­
INTUIÇÃO EIDÈTICA

Em nossa experiência, lidamos com mais do que indivíduos e grupos.


Também intuím os a essência das coisas. Por exemplo, podemos perceber não
só que todos os seres humanos que encontramos são capazes da fala, mas
que a habilidade para usar a linguagem é necessária e universalmente uma
parte de se ser humano. E parte da essência do homem; não seríamos hum a­
nos sem ela. Podemos ver não só que os objetos materiais interagem casual­
mente com seus entornos, mas que eles devem se portar assim; sem a possi­
bilidade de tal interação, um objeto material não seria o que é. Do mesmo
modo, um objeto percebido ser um a identidade num a multiplicidade de la­
dos, aspectos e perfis é universal e necessário, e podemos ver que é assim. As
essências são evidenciadas para nós.
A intuição de um a essência é chamado de intuição eidética, porque é a posse
de um eidos ou de um a forma. Podemos intuir, ou tornar presente para nós
mesmos, não só indivíduos com suas características, mas também as essências
que as coisas têm. A intuição eidética é um tipo especial de intencionalidade
com um a estrutura que lhe é própria. A fenomenología oferece um a análise
dessa intencionalidade; ela descreve como podemos intuir um a essência.

Análise da intuição eidética

Como todas as intencionalidades, a intuição eidética é um a síntese de


identidade. Por meio dela reconhecemos um a identidade dentro da multipli­
cidade de manifestação, mas a identidade e a multiplicidade são diferentes
daquele tipo que ocorre quando intuímos as coisas individuais. Para mostrar 3. Em nosso terceiro e final estágio, nós nos empenhamos em alcançar
como a intuição eidética torna as essências presentes para nós, devemos tra­ um a característica que seria inconcebível para a coisa ser sem ela. Tentamos
çar seu percurso por três níveis de desenvolvimento intencional. nos mover para além do empírico, para universais eidéticos, para necessidades
1. No primeiro nível, experienciamos um número de coisas e encontra­ e não apenas regularidades. A fim de agir assim, mudamos da percepção para
mos similaridades entre elas. Podemos descobrir, por exemplo, que esse pe­ o reino da imaginação. Vamos da experiência real para a “filosofia de poltro­
daço de madeira flutua, e que esse outro pedaço de madeira flutua e que esse na”. Se formos bem-sucedidos, teremos realizado um a intuição eidética.
terceiro também. Nesse estágio descobrimos o tipo muito frágil de identida­ Procedemos do seguinte modo. Focalizamos num universal que tiver­
de que é chamado tipicalidade. Esse nível poderia ser simbolizado pela seguin­ mos alcançado. Pressupomos um a instância do tipo universal. Então, tenta­
te série: A é p¡, B é p2, C é p3. Os predicados nessa série não são, estritamen­ mos imaginar mudanças no objeto, num processo chamado variação imagina­
te falando, o mesmo; eles são apenas similares um ao outro. Alcançamos tiva. Deixamos nossa imaginação correr livre, e vemos os elementos que po­
um a síntese de identidade baseada apenas na associação, como a presença deríamos remover da coisa antes de ela “estilhaçar-se” ou “destruir-se” como
de um a característica faz-nos muito passivamente presumir outras caracte­ o tipo de coisa que ela é. Tentamos dilatar as fronteiras, expandir o invólucro
rísticas associadas com ela para seguir em sua seqüência. Flutuar tem sido, da coisa em questão. Se podemos descartar algumas características e ainda
para nós, associado com madeira, ou morder tem sido associado com cães, preservar o objeto, sabemos que tais características não pertencem ao eidos
assim, presumimos que o próximo pedaço de madeira flutuará ou que o da coisa. Contudo, se encontramos características que não podemos remo­
próximo cão nos morderá, mas não temos feito um juízo explícito sobre ver sem destruir a coisa, constatamos que essas características são eidetica-
madeira flutuar ou cães morderem. Nossa experiência é estilizada ou tipifi­ mente necessárias para ela. Se, por exemplo, tentássemos imaginar um obje­
cada, mas não foi elevada ao pensamento distinto. to percebido que não fica maior quando nós chegamos mais perto e menor
2. No segundo nível, chegamos a perceber que dos três pedaços indivi­ quando nos distanciamos dele, poderíamos dizer que não estamos mais per­
duais de madeira pode ser dito terem não apenas predicados similares, mas cebendo um objeto material espacial: expansão e contração espaciais como
o mesmíssimo predicado. Esse nível poderia ser simbolizado pela seguinte funções da aproximação e do afastamento são características essenciais na
série: A ép, B ép, C ép. Um tipo de síntese de identidade ocorre agora no qual percepção de coisas espaciais. Se tentássemos imaginar as experiências do
reconhecemos não apenas similares, mas o mesmíssimo, um “um em m ui­ outro brotando de nossas memórias, veríamos que um a tal coisa não é pos­
tos”. Segue-se que o mero uso da palavra para o predicado, tal como a pala­ sível: somente nossa própria experiência pode ser recordada por nós. Se ten­
vra “flutua”, não logra por si mesmo indicar se a palavra está sendo usada tássemos imaginar o tempo sem sucessão, ou o discurso sem um aspecto
para nomear similares ou o mesmíssimo. O uso de um a palavra mascara retórico, veríamos que tais coisas não poderiam ser. Quando nos encontra­
dois diferentes tipos de intencionalidades, duas diferentes identificações. mos ante tais impossibilidades, ocorreu de alcançarmos um a intuição eidé­
Quando tomamos a palavra para significar a mesmíssima característica, al­ tica. Evidenciamos um a essência. Realizamos um a identificação que é “mais
cançamos um universal empírico, porque todas as instâncias nas quais temos necessária” do que o tipo efetivado nos universais empíricos. Sabemos que
encontrado o predicado são coisas que temos realmente experienciado de tais coisas “devem ser” de um modo mais forte do que coisas como os fatos
fato. Até aqui, todos os casos de madeira que temos encontrado flutuam, e de que madeira flutua e cisnes são brancos. Quando alcançamos um a intui­
expressamos empiricamente essa descoberta encontrando de um a maneira ção eidética, vemos que seria inconcebível para a coisa em questão ser de
universal como “madeira flutua”, mas nossa evidência só vai até onde nossa outra maneira. O movimento para a imaginação nos dá um a intuição mais
experiência foi. Nossa reivindicação é falsificável por ulteriores experiências; profunda do que a indução empírica.
é concebível que podemos encontrar pedaços de madeira que não flutuem. A intuição eidética não é fácil. Exige grande força de imaginação. Estar
A descoberta de cisnes negros foi capaz de falsear a reivindicação universal apto a tentar imaginar o impossível, e ver que é impossível e que, além do
“todos os cisnes são brancos”, porque a reivindicação estava baseada num mais, não pode ser pensado, dem anda que sejamos capazes de ir além das
universal empírico. coisas a que estamos acostumados, das coisas que temos regularmente ex-
perienciado. A maioria de nós vive em universais empíricos; tomamos como A variação imaginativa e a intuição eidética são usadas em toda parte na
certo que as coisas serão do modo que sempre as temos experienciado ser, filosofia. Porque envolvem a fantasia, dão a impressão de que a filosofia lida
mas não temos testado sua necessidade tentando imaginar seu ser de outra com situações irreais. O ponto principal da imaginação filosófica, contudo,
maneira. Estar apto a desentocar o eidético de dentro do costumeiro e do não é inventar cenários fantásticos, mas usar essas projeções para revelar a
empírico requer imaginação criativa. Por exemplo, a transformação do espa­ inexorável necessidade de certas coisas: para mostrar que, digamos, os seres
ço e do tempo que ocorreu quando Newton introduziu o espaço e o tempo hum anos encontram sua perfeição moral na vida cívica, ou que as coisas
absolutos como um tipo de contêiner eterno do universo e a ulterior trans­ materiais envolvem redes de causação, ou que espaço e tempo envolvem par­
formação do espaço e do tempo que ocorreu com a teoria da relatividade tes que são exteriores um a à outra, ou que há um a diferença entre a ação
foram tentativas de intuições eidéticas, baseadas nas variações imaginativas hum ana e as qualidades essenciais humanas, entre prdxis e poiésis. Essas ne­
que Newton e Einstein foram capazes de levar a cabo. Esses homens tiveram cessidades eidéticas são mais profundas e mais fortes do que as verdades
a imaginação de projetar essa nova possibilidade. Eles estenderam o espaço empíricas. De fato, são tão profundas e fortes que as pessoas geralmente
e o tempo para além do costumeiro e do reconhecido. Obviamente, nem todo tomam-nas por certas e não vêem razão para defendê-las. Quando tais verda­
m undo pode fazer esse tipo de coisa. des passam a ser formuladas pelos filósofos, elas podem provocar um a outra
As variações imaginativas ocorrem na ficção, na qual são imaginadas as acusação comum contra a filosofia, a de que ela lida com as trivialidades
circunstâncias que se afastam do ordinário, mas que servem para pôr em mais patentes. Porque essas coisas óbvias precisam ser estatuídas? Quem na
cena um a necessidade. Elas mostram como as coisas têm de ser. Não é o caso
terra ainda poderia questioná-las?
de que alguém apenas imagine cenários bizarros. A projeção puramente fan­
Elas precisam ser estatuídas por duas razões. Primeiro, porque, a des­
tástica é fácil demais, mas o que deve acontecer se verdadeiramente existe
peito de sua obviedade, algumas pessoas as negam. Há pessoas que dizem,
intuição é que, dentro das circunstâncias imaginativas, um a necessidade de­
por exemplo, que a realização hum ana é mais bem efetivada na vida econô­
verá ser trazida à luz. Para isso ocorrer, a variação imaginativa tem de ser
mica do que nas vidas moral e política, ou que não há percepções, ou que o
habilmente elaborada; devemos ter a capacidade de saber o que a presentação
tempo é ilusório, ou que não há tais coisas como verdade e evidência. Os
imaginativa irá arrumar. A imaginação dá-nos um vislumbre da necessidade.
Essa intuição, que os gregos chamaram nous, é a recompensa que obtemos sofistas fizeram algumas dessas reivindicações quando a filosofia estava
por nosso esforço imaginativo. apenas começando, e eles ou seus equivalentes estão sempre presentes na
Por conseguinte, duas coisas devem ser feitas: a projeção imaginativa vida humana. A filosofia sempre teve de evocar às coisas que são óbvias por­
além do que é possível, e a intuição de que o que temos projetado não pode que as pessoas ou passam por cima delas ou as negam. A filosofia tem de
ser. Uma necessidade vem à luz na impossibilidade do que tentamos imagi­ defender as opiniões verdadeiras da atitude natural.
nar. Essas exigências são encontradas mesmo na ficção científica. A maioria Mas, além dessa tarefa protetora, a filosofia expõe suas “trivialidades”
das circunstâncias bizarras é imaginada, mas dentro delas todas as permutas por um a segunda razão, mais positiva. É hum anam ente gratificante tornar-
hum anas básicas parecem ocorrer periodicamente: honestidade e fraude, se consciente de necessidades eidéticas. Dá-nos prazer contemplá-las. São
prudência e tolice, coragem e covardia. Tais ações parecem ser inevitáveis boas de conhecer. Se certos escritores podem usar suas imaginações para gerar
enquanto agentes racionais estão sendo representados, e suas necessidades insigbt no que tem de ser, eles nos ajudam a ver as coisas eternas. Nem todo
surgem quando se constata que persistem mesmo nos cenários exóticos do m undo quer ver essas coisas, mas muitos de nós o desejamos e o insight nas
futuro remoto ou do espaço cósmico. Podemos imaginar seres humanos vi­ necessidades eidéticas tem sua própria justificativa para aqueles que estão
vendo num a nave espacial em vez de na terra, mas não poderíamos imaginá- aptos a desfrutá-lo.
los sem a possibilidade de comunicação entre eles ou sem a habilidade de ser A filosofia é falsamente acusada, então, de lidar ou com o fantástico ou
corajosos, impulsivos ou covardes. O que é notável na ficção científica não é com o trivial. Essas reprovações são feitas porque a filosofia faz uso da intui­
como seus cenários e sua tecnologia são diferentes dos nossos, mas o quão ção eidética, a qual emprega a imaginação para trazer à luz o modo como as
iguais a nós são os seus protagonistas. coisas devem ser.
Comentários adicionais sobre a intuição eidética revelado algo necessário sobre a coisa em questão, mas podemos estar enga­
nados: podemos ter escorregado para a pura fantasia sem essências. Sócrates
Essa discussão deu um a idéia geral do que é a intuição eidética. Há imagina um a cidade na qual mulheres, crianças e propriedades sejam consi­
muitos outros detalhes que podem ser revelados concernentes a essa intui­ deradas em comum. Ele pensa que descobriu um a verdade sobre as famílias
ção e aos três estágios que a ela conduzem. Vamos gastar alguns momentos e posses humanas, mas Aristóteles o criticou por confundir pura fantasia
para passar um a vista d’olhos nessa forma de intencionalidade. com o que seria real (Política 2.6). A postulação de Nevvton do tempo e espaço
Nós distinguimos um primeiro estágio, no qual experienciamos mera­ absolutos pode ser criticada como um excesso, como um exagero do que
mente coisas similares, e um segundo, no qual experienciamos universais poderia ser possível. Hobbes imagina o homem num estado de pura nature­
empíricos. Somente no segundo nível o sentido completo de um indivíduo za e então imagina um contrato que estabelece um soberano que governa
surge para nós. Somente quando alcançamos o sentido de um universal ver­ sujeitos perfeitamente iguais; ele pensa que descobriu a verdadeira natureza
dadeiro tais como “vermelho” ou “flutua” ou “quadrado” como identica­ do homem e da sociedade, mas ele bem pode ter vagueado num a fantasia
mente o mesmo em muitas instâncias, somente então alcançamos o sentido sem intuição. A cidade de Sócrates, o soberano de Hobbes, as utopias marxis­
de contraste de um indivíduo ou um particular sob esse universal. No pri­ tas, a consciência cartesiana e a natureza matematicamente ideal sofrem todos
meiro nível experienciamos indivíduos, mas ainda não os vemos como indi­ de um excesso de imaginação. São intuições extraviadas, projetos de fantasia
víduos. Seu sentido de ser indivíduo ainda não foi constituído para nós, e não expressões do m undo no qual verdadeiramente vivemos.
porque precisamos do contraste do universal para isso acontecer. Quando erramos com respeito à eidética, quando tomamos como ne­
No primeiro nível, em que experienciamos só similares, podemos usar a cessariamente verdadeiro o que é só um a projeção fantástica, cometemos um
mesma palavra para m uitas instâncias, mas a palavra está sendo usada ana­ erro precisamente com respeito a um a necessidade eidética. Não erramos
logamente. Uma criança pode cham ar todos os hom ens de “papai” ou com respeito aos simples fatos ou aos universais empíricos. Cometemos um
“tio”, ou usar a palavra “vou” para toda sorte de situações, mas fazendo as­ erro “filosófico”, não um erro no juízo factual, num a m á percepção, ou num a
sim ela não usa o termo para expressar nada unívoco ou específico. Nesse falha de memória. Nem todas as variações imaginativas são bem-sucedidas,
estágio, a mente está inundada de singularidades, e a distinção entre univer­ e quando falham não se tornam um outro tipo de intencionalidade. Elas
sal e singular ainda não surgiu. Esse nível de intencionalidade está submerso permanecem um a tentativa de intuição eidética, mas tentativa que falhou.
Porque a intuição eidética opera com a imaginação, ela brinca com fogo: é
na associação e não alcança identificações exatas. O nível associativo, além
fácil deixar nossa imaginação escapar ao controle.
do mais, permanece conosco como um tipo de fundação para as nossas in­
Como corrigimos erros na intuição eidética? Falando com outros sobre
tencionalidades mais elevadas. Até em nosso pensamento maduro, às vezes
eles, imaginando contra-exemplos, e, mais do que tudo, vendo como nossas
voltamos a cair nesses estágios primitivos, quando decaímos na vaguidade
propostas eidéticas correspondem aos universais empíricos que temos iden­
ou quando procuramos por palavras certas ou metáforas certas para uma
tificado antes de alcançar o eidético. Os universais empíricos são constituí­
nova situação. A intuição eidética nos leva ao domínio das formas platôni­
dos no segundo dos três níveis que temos distinguido, e eles servem como
cas; ela nos conduz à seção mais elevada da Linha Dividida descrita no Livro um a fundamentação para os universais eidéticos. Os universais eidéticos vão
V da República; mas o nível associativo, o domínio de meras similaridades, além do empírico, mas repousam neles e não deveriam destruí-los. O que
coloca-nos na seção mais baixa dessa linha, em que vivemos entre imagens encontramos num a intuição eidética deveria confirmar a verdade empírica e
não-substanciais. Mas, não im porta o quanto possamos desfrutar a vida en­ não subvertê-la. Os universais empíricos servem como um controle em nos­
tre as formas, nunca abandonamos as manifestações nos níveis mais baixos, sas imaginações. Quando dizemos que nossa filosofia deveria corresponder
e só por meio delas podemos chegar às inteligibilidades mais elevadas. ao “senso com um”, o que estamos invocando é que são os universais empí­
Nem sempre temos êxito em nossas intuições eidéticas. Podemos pen­ ricos que são o fruto de nossa experiência padrão. Os universais empíricos
sar que temos um a quando não temos. Nossa tentativa pode não dar certo. nos dão um ponto de apoio no m undo real, e nossos universais eidéticos
Podemos passar do limite. Podemos imaginar algo novo e pensar que temos poderiam se despedaçar na irrealidade se os empíricos fossem descartados.
Um outro ponto a ser examinado concernente à intuição eidética diz
respeito ao papel da impossibilidade, da necessidade negativa. Não vemos
positivamente a ligação necessária entre a coisa e a característica que esta­
mos analisando para ela. Em vez disso, vemos a necessidade de um rechaço
da intuição negativa: vemos a impossibilidade do ser da coisa sem a caracte­
rística, assim sabemos que a característica é essencial; não imaginamos a coisa
sendo privada dela. A impossibilidade negativa revela a necessidade eidética.
O fato de que devemos fazer um a incursão na impossibilidade é o que nos
A FENOMENOLOGIA CIRCUNSCRITA
força a apelar à imaginação na intuição eidética; a imaginação poderia tentar
descrever o impossível e assim trazer à luz o necessário, mas como poderia a
percepção agir assim?
A variação imaginativa e a intuição eidética podem ser exercidas na ati­
tude natural. Essa redução eidética se concentra na forma essencial das coisas.
A redução eidética, contudo, é diferente da transcendental, a qual nos move Nosso exame da evidência no capítulo XI interpretou a razão como sen­
da atitude natural para a fenomenológica. A fenomenología mesma faz uso do determinada para a verdade das coisas. A razão é a descoberta e a confir­
de ambas as reduções, a transcendental e a eidética. Em virtude da redução mação do que as coisas são. Até na atitude natural, a mente encontra sua
transcendental, contempla a intencionalidade e seus correlatos objetivos, mas culminação na verdade. A fenomenologia opera a partir do ponto de vista
também revela as estruturas eidéticas de tais noésis e noemas, e por essa ra­ transcendental, é também um exercício da razão e compartilha a teleologia
zão requer a redução eidética. Ela não está preocupada com as experiências do pensamento. Também está ordenada para a manifestação, mas num modo
e os objetos que por acaso temos, mas com as estruturas eideticamente ne­ diferente dos da ciência e da experiência que ocorrem na atitude natural. A
cessárias dessas experiências e desses objetos, como poderiam ser considera­ linguagem que chamamos “mundanês” serve para revelar a verdade; o “trans-
das por um a consciência qualquer. A fenomenología visa descobrir como as cendentalês” também, mas de um modo diferente.
coisas e a mente têm de ser para a descoberta tom ar lugar. Em nossas realizações efetivas da evidência, em nossa experiência ordi­
nária e na ciência, deixamos as coisas aparecerem para nós mesmos e para a
comunidade dentro da qual convivemos. Deixamos as plantas e os animais,
as estrelas e os átomos, os heróis e os vilões se manifestarem a si mesmos. Na
reflexão fenomenológica, contudo, mudamos o nosso foco para essas desco­
bertas em si mesmas, para as evidências que temos consumado, e pensamos
sobre o que é ser dativos de manifestação e o que é para os seres ser manifestos.
A fenomenologia é a ciência que estuda a verdade. Ela se afasta do nosso envol­
vimento racional com as coisas e se admira do fato de que há descoberta, de
que as coisas aparecem, de que o mundo possa ser compreendido, e de que nós,
em nossa vida do pensamento, servimos de dativos para a manifestação das
coisas. A filosofia é a arte e a ciência de evidenciar a evidência.
A fenomenologia também examina as limitações da verdade: o inesca-
pável “outros lados” que mantém as coisas distantes de ser totalmente des­
cobertas, os erros e a vaguidade que acompanham a evidência, e a sedimen­
tação que torna necessário para nós recordarmos sempre de novo as coisas as diferenças entre as reflexões filosófica e proposicional, e essas distinções nos
que já sabemos. A fenomenología reconhece esses distúrbios da verdade, mas ajudarão a fixar mais claramente a natureza da investigação fenomenológica.
não se deixa levar por eles ao desespero. Ela os vê apenas como distúrbios e
não como a substância de nosso ser. Ela insiste que, juntam ente com tais
sombras, a verdade e a evidência são realizadas com êxito, e que a razão en­ Diferenças em alcance
contra sua perfeição em deixar as coisas virem à luz. A razão não se aperfei­
çoa a si mesma no erro, na confusão e no esquecimento. Vivemos no m undo e enunciamos coisas, seja em contextos teóricos ou
A filosofia começa quando assumimos um a nova instância dirigida a práticos. Suponha que estamos conversando sobre um a casa. Entre muitas
nossa atitude natural e a todos os seus envolvimentos. Quando nos engajamos outras assertivas, você diz que a casa tem cinqüenta anos. Estamos ouvindo
na filosofia, nos afastamos e contemplamos o que é ser verdadeiro e alcançar você e concordando irrefletidamente com tudo que você diz, mas imediata­
a evidência. Nós contemplamos a atitude natural, e por isso assumimos um mente essa asserção nos faz hesitar. Não parece completamente certa. Inter­
ponto de vista exterior a ela. Essa mudança do afastamento é feita por meio rompemos nossa aceitação ingênua de tudo o que você diz; mudamos para
da redução transcendental. Em vez de estarmos simplesmente ocupados com o m odo proposicional: tomamos a casa como tendo cinqüenta anos não sim­
os objetos e suas características, pensamos sobre a correlação entre as coisas plesmente pelo modo como as coisas são, mas somente enquanto você as
que estão sendo descobertas e o dativo para o qual elas estão manifestas. está presentando para nós. M udamos de modo; m udamos para um a refle­
Dentro da redução transcendental, também exercemos uma redução eidética xão proposicional. Colocamos o ser da casa de cinqüenta anos entre aspas.
e expressamos as estruturas que não consideramos apenas para nós mesmos, Tratamos este estado de coisas não como sendo um fato evidente, mas como
mas para toda subjetividade que está engajada no evidenciar e na verdade. sua proposição, sua compreensão, o sentido de suas palavras. Tratamos o
Examinamos o pensamento filosófico no capítulo IV, no qual explora­ estado de coisas como sendo meramente proposto, como sendo presentado
mos a redução transcendental minuciosamente. Podemos agora examinar a por você. O estado de coisas original tornou-se um a proposição.
natureza da filosofia de um ângulo levemente diferente: faremos uso de al­ Suponhamos que nossa experiência posterior nos leve a concordar que
guns pensamentos desenvolvidos no capítulo VII, no qual vimos que as pro­ a casa tem cinqüenta anos. Então, de-citamos o que havíamos posto entre
posições e os conceitos não precisam ser pressupostos como coisas mentais aspas. Abandonamos a reflexão proposicional. Constatamos que a proposi­
ou entidades conceituais mediadoras. Notamos naquele capítulo que uma ção está correta, que ela identifica-se com o que é o caso, com o que pode ser
proposição surge em resposta a um tipo especial de reflexão, que chamamos dado diretamente na evidência. A proposição (o estado de coisas tomado
de reflexão “preposicional” ou “apofântica”. Um estado de coisas é transfor­ como proposto) mistura-se com o fato e é visto como verdadeiro. Por outro
mado num a proposição ou num sentido quando tomamos esse estado de lado, suponhamos que nossas experiências e investigações posteriores levem-
coisas como sendo proposto por alguém. Nós mudamos seu status; não o nos a concluir que a casa não tem cinqüenta anos, mas vinte. Então pode­
tornamos apenas o modo como as coisas são, mas o modo como alguém o ríamos fixar o olhar nas aspas do ser da casa de cinqüenta anos; veríamos que
enunciou e o presentou para nós. Tais proposições, constituídas pela refle­ a proposição, sua proposição, é falsa, que não pode ser de-citada e constituí­
xão proposicional, tornam-se então candidatas à verdade da exatidão. Delas da em um simples fato novamente, que ela não pode desfrutar da verdade de
é dito serem juízos verdadeiros quanto podem ser de-citadas e misturadas exatidão. Está descartada como um candidato à verdade. E somente um a
com a evidência direta das coisas mesmas. proposição, só um estado de coisas como proposto, só sua opinião, e não
O que faremos no presente capítulo é descobrir mais precisamente o poderia ser nada mais. Não podemos mais mitigar nossa reflexão proposi­
que a reflexão filosófica é contrastando-a com a reflexão proposicional. As cional nessa instância e tom ar o que você diz como simplesmente o modo
duas formas de reflexão, a proposicional e a filosófica, são com freqüência como as coisas são.
confundidas com um a outra. Por causa dessa confusão, o caráter especial do Esse movimento para frente e para trás entre o estado de coisas e a pro­
pensamento filosófico é freqüentemente mal compreendido. Esclareceremos posição, entre o estado de coisas como simplesmente tomado e tomado como
meramente proposto, é um a realização hum ana altamen te sofisticada. É uma de contexto totalmente intocados. Sua qualidade dóxica fica intacta. Eles
parte essencial da razão humana. Não imaginaríamos um animal racional todos permanecem no lugar como um tipo de chão sobre o qual encontra­
que falhasse em ter esse poder; um a entidade privada dessa habilidade não mos o alavancar de que precisamos para refletir sobre o simples estado de
poderia possuir a razão. Animais não-humanos não podem proposicionalizar coisas que transformamos num a proposição.
um estado de coisas exceto talvez no modo mais rudimentar; eles não podem Por outro lado, quando nos engajamos na reflexão filosófica, quando
refletir proposicionalmente e ver um a situação como sendo meramente pre­ exercemos a redução fenomenológica, tomamos um a distância em direção a
sentada por alguém ou como confirmando o que alguém disse. Esse movi­ absolutamente tudo na atitude natural: não apenas o ser da casa de cinqüen­
mento de ziguezague entre o que é, o que parece, o que é dito, e o que con­ ta anos, mas a casa toda, as árvores, o gramado, você e nós como interlocu­
firma está inscrito na gramática da linguagem humana, em frases tais como tores, o tempo, a terra, o céu, as estrelas, o sol e a lua, e até o m undo que
“reivindico quep ”, “você diz que q”, “o que você disse é verdadeiro (ou falso)”, subjaz a todas essas coisas e a crença no m undo que é seu correlato. Essa é a
e em muitas outras dimensões da sintaxe. reflexão radical; é a reflexão total. Nada é deixado fora. Tomamos um a dis­
Nossa habilidade de m udar para a reflexão proposicional permite-nos tância em direção a tudo, até do m undo como tal e de nós mesmos como
tomar um a distância em relação a qualquer assunto em que estejamos envol­ tendo um mundo. Não nos aferramos a crenças várias como um alicerce que
vidos. Quando somos apanhados num a conversa sobre algo, e até quando nos impulsione; não retemos um chão para ficar sobre ele. Não deixamos
estamos pensando sobre um a questão por nós mesmos, podemos mudar para nenhum a das convicções intocada. Todas, até a mais básica, são suspensas e
o modo proposicional e tomar o que está sendo presentado como meramente refletidas. Essa toda-includente reflexão é filosófica; a reflexão mais restrita
presentado, como apenas uma proposição ou um sentido e não como o modo é proposicional.
como as coisas simplesmente são. A habilidade de m udar para o modo pro­ A diferença inicial entre a reflexão filosófica e a proposicional, então, é
posicional, e então confirmar ou desconfirmar o que está sendo dito, estatui- unicamente de alcance: a reflexão filosófica é universal, a reflexão prepo­
nos como falantes responsáveis que podem dizer “eu”, e identificar a nós sicional é limitada e se direciona para esse ou aquele estado de coisas.
mesmos como agentes dessa ou daquela reivindicação de verdade.
Contudo, essa habilidade de m udar para a reflexão proposicional e exer­
cer o tipo de verdade que ela torna possível, gloriosa como pode ser como um Diferenças em tipo
emblema de nossa natureza racional, não é o mesmo que a habilidade para
mover-se na reflexão filosófica. Devemos distinguir a reflexão proposicional “Está bem, quer dizer que”, você pode perguntar, “a diferença entre a
da reflexão filosófica. Se conseguirmos agir assim, obteremos um a compreen­ reflexão proposicional e a filosófica é apenas o fato de que a primeira é limi­
são muito melhor de ambos os domínios — o proposicional e o filosófico. tada e a últim a é compreensiva? A reflexão proposicional lida só com esse 011
Quando nos engajamos num a reflexão proposicional, quando tom a­ aquele estado de coisas, enquanto a reflexão filosófica lida com absoluta­
mos o ser da casa de cinqüenta anos como meramente sua proposição, refle­ mente tudo? A filosofia é apenas a reflexão proposicional ampliada para
timos somente sobre esse único estado de coisas: sobre o ser da casa de cin­ abranger qualquer um a e todas as convicções que temos? Ambas são o mes­
qüenta anos. Tudo o mais é deixado no lugar e não refletido: seu ser aí como mo tipo de reflexão, e diferem somente em seu alcance?”
nosso interlocutor, nosso ser aqui como o seu, os sons que emitimos, as ár­ A resposta a essa questão é negativa. A reflexão proposicional e a filosó­
vores, o gramado, o céu, o tempo, a casa ela mesma como branca, de madeira fica não diferem somente em sua extensão. São diferentes tipos de reflexão
e em estilo colonial. Também deixamos no lugar, inalterada e sem reflexão, e diferem do seguinte modo.
a crença no m undo em que repousam todas as nossas convicções mais par­ Uma reflexão proposicional é executada a fim de testar a verdade da pro­
ticulares. Quando proposicionalizamos, tomamos um a distância para salien­ posição que emerge dela. É executada assim que podemos verificar um a pro­
tar um particular estado de coisas, ou até para um grupo deles, mas nossa posta que veio a ser questionável. Há algo pragmático na reflexão proposicional.
crítica reflexiva deixa um arranjo ilimitado de estados de coisas, de coisas e Nós a executamos a fim de identificar mais acuradamente qual é o assunto.
Se descobrimos que a proposição é verdadeira, nós a aceitamos novamente, Se a reflexão filosófica fosse tom ada por ser a mesma que a reflexão
com a nova e mais forte evidência que a confirmação traz, mas se descobri­ proposicional, então a filosofia poderia de fato tornar-se imperialista. Pode­
mos que ela é falsa, nós a rejeitamos. Torna-se um juízo descartado, errôneo. ria tentar se imiscuir em nossas ações e inquirições pré-filosóficas. Poderia
A reflexão proposicional é exercida no interesse da verdade, no interesse da tentar dominar. Poderia tentar corrigir tudo. Poderia tentar pôr em ordem a
verificação. Nosso interesse total nunca é neutralizado quando mudamos bagunça da atitude natural, com todas as perspectivas parciais, vaguidades e
para o modo proposicional. decepções, e poderia tentar fazer-nos viver na pura luz. Poderia introduzir-se
A reflexão filosófica, por outro lado, não é executada por tais razões na conversação humana, e sua voz abafaria o som de todas as outras vozes na
pragmáticas. Não é feita tendo em vista a veracidade ou falsidade de uma condição humana. Se é para a filosofia ser fiel ao seu próprio destino, tem de
enunciação. Ela é mais puram ente contemplativa, mais puramente desinte­ ser mais modesta do que isso. Ela é a coroa da racionalidade humana, mas
ressada (não-interesseira). Quando tomamos um a distância filosoficamente tem de restringir a si mesma ao seu próprio tipo de verdade, a sua própria
em direção a todas as nossas convicções, incluindo nossa crença no mundo, teleologia puramente contemplativa; deve abster-se de tentar ser um a opção
e em direção a todas as coisas dadas para nossa intencionalidade, incluindo para os talentos, recursos e habilidades da atitude natural. O filósofo pare­
o mundo, não estamos pondo todas essas convicções e coisas entre aspas até ceria um tolo se tentasse substituir os políticos, advogados, cientistas e arte­
podermos verificar se são ou não verdadeiras. Não estão sendo suspensas do sãos. É também verdade, naturalmente, que os especialistas e os políticos,
modo como suspendemos as proposições. Elas são neutralizadas, mas so­ por sua vez, pareceriam tolos se pensassem que o que eles fazem é o ápice da
mente para ser contempladas, não para ser verificadas. razão humana.
Quando proposicionalizamos um estado de coisas, quando entramos Até agora, vimos que a reflexão filosófica difere da reflexão proposicional
na reflexão proposicional, questionamos o estado de coisas. Não o assevera­ de dois modos; em alcance (a primeira é universal enquanto a última é limita­
mos mais. M udamos a sua modalidade: era um a convicção, mas agora se da) e em tipo (a primeira é meramente contemplativa e não uma tentativa de
constituiu em dúvida ou ao menos em algo questionável. Quando entramos verificar; a última é ajustada para determinar a exatidão das afirmações). Ain­
na reflexão filosófica, não mudamos a modalidade das convicções que temos da permanecem duas diferenças adicionais que devem ser consideradas.
na atitude natural. Tomamos um a distância delas, e daí contemplamos e, no
momento, não as partilhamos, mas sem que as tornemos dúbias ou questio­
náveis. Não tentamos verificá-las ou falseá-las. Meramente pensamos sobre Diferenças entre noema e sentido, pôr entre parênteses e citar
elas e tentamos tornar pública sua estrutura intencional e sua teleologia.
Deixamos todas as coisas como estavam quando entramos na filosofia. Não Em ambos os tipos de reflexão, a filosófica e a proposicional, nós m o­
tentamos transformar nossas opiniões pré-filosóficas ou verificações ou evi­ dificamos o m odo em que os correlatos objetivos são dados para nós.
dências. Devemos deixar tudo como estava, caso contrário mudaríamos a Quando mudamos para a reflexão filosófica, quando executamos a re­
própria coisa que desejamos examinar. dução transcendental, não nos ocupamos somente com nossa intencio­
De um a maneira que não deveria ser levada a mal, a filosofia é indife­ nalidade; também consideramos os alvos dessa intencionalidade, as coisas
rente à verdade ou falsidade encontrada na atitude natural. A filosofia con­ que são dadas aos nossos vários modos de intencionar (percepção, memória,
templa a verdade, mas também reconhece a falsidade, a vaguidade, as inten­ imaginação, antecipação, juízo e o resto). De nossa privilegiada perspectiva
ções vazias e o erro que são partes da atitude natural, e não tenta apagar essas filosófica, contudo, não nos concentramos direta e inocentemente nesses
sombras que acompanham a verdade. Admite essas inevitabilidades na bus­ objetos; antes, nos concentramos neles precisamente como sendo intencio­
ca da verdade. Não as domina e nem tenta livrar-se delas. Não tenta substi­ nados por, ou presentados para, nossas intencionalidades na atitude natu­
tuir sua própria perspectiva, com seu calmo afastamento e sua maior luci­ ral. Nós os consideramos não simplesmente como coisas, mas como “coisas
dez, pela perspectiva da atitude natural. Não se torna imperialista e nem rei­ sendo intencionadas”. Isto é, nós os consideramos como noemas. Nós os
vindica que seu modo de verdade é o único que há. consideramos noematicamente. Por exemplo, o objeto percebido olhado do
ponto de vista filosófico e considerado precisamente como percebido, como engajados na filosofia (nós as vemos como elas são presentadas para as evi­
o correlato objetivo da percepção, é o noema da percepção. O estado de coi­ dências pré-filosóficas), assim como as aspas expressam o tipo de distância
sas asseverado, olhado desde o ponto de vista filosófico e considerado preci­ que tomamos de um estado de coisas quando estamos engajados na reflexão
samente como asseverado, como o correlato objetivo da asserção, é o noema proposicional. Colchetes significa que estamos tom ando o que está posto
da asserção. A tarefa da fenomenología é explorar as correlações entre noemas entre colchetes como um noema, enquanto aspas significa que estamos to­
e suas noésis correspondentes, as atividades intencionais que constituem os mando o que está citado como um sentido.
noemas e permitem que as coisas descobertas sejam presentadas para nós.
A redução fenomenológica transforma objetos em noemas. A reflexão
preposicional, em contraste, transforma objetos em sentidos. Quando co­ Diferenças em perspectiva
meçamos a questionar um estado de coisas e a tomá-lo como sendo mera­
mente proposto por outrem, transformamos o estado de coisas num sentido Há mais um a diferença entre reflexão filosófica e proposicional que
ou num a proposição. Nós o vemos apenas como a compreensão de outrem. devemos examinar. Recordamos que a reflexão proposicional é executada
Podemos então testá-lo por exatidão. Ser um sentido, contudo, não é o mes­ na atitude natural. A reflexão proposicional suspende a crença num a in ­
mo que ser um noema. Um sentido ou um a proposição é um candidato à tencionalidade e seu objeto, mas não suspende nossa crença no mundo,
verificação, à verdade da exatidão, mas um noema é meramente o alvo da como o faz a reflexão fenomenológica. Se alguém nos diz que a casa tem
análise filosófica. O mundo, junto com tudo que há nele, é transformado em cinqüenta anos, e se exercemos um a reflexão proposicional dirigida a esse
noema quando entramos na reflexão fenomenológica, mas seria impossível estado de coisas, ainda permanecemos na atitude natural. O estado de coisas
transformar o m undo e tudo nele num sentido ou num a proposição, em (o ser da casa de cinqüenta anos) foi transform ado num a proposição ou
algo que precisa ser verificado. n um sentido, mas como tal ele tam bém ainda está encerrado no interior da
Como vimos no capítulo VII, quando executamos um a reflexão prepo­ atitude natural.
sicional, pode ser dito que colocamos aspas em volta do estado de coisas que Um sentido ou um a proposição é em si mesmo, como tal, o correlato
estamos questionando. Alguém nos diz que a casa tem cinqüenta anos, e objetivo de um tipo especial de intencionalidade. É o correlato de um a refle­
nós, em nossa hesitação em concordar, transformamos o ser da casa de cin­ xão proposicional, assim como o objeto percebido é o correlato de um a per­
qüenta anos na opinião de outrem, “a casa tem cinqüenta anos”. Algo análo­ cepção e um objeto enunciado é o correlato de um a enunciação assertiva.
go a esse tipo de citação também acontece na reflexão fenomenológica; há Agora, quando mudamos para a atitude fenomenológica, contempla­
um tipo de citação na fenomenología que se assemelha às citações feitas na mos a proposição ou o sentido como correlato objetivo de um a reflexão pro­
atitude natural, mas deve ser distinguida delas. posicional. Focamos noematicamente sobre a proposição ou sobre o senti­
Na atitude fenomenológica, não focalizamos meramente nos objetos; do. A proposição ou o sentido é um noema, assim como qualquer outro
focalizamos neles precisamente como os alvos da atitude natural, precisa­ correlato objetivo de qualquer outra intencionalidade. De fato, a descrição
mente como dados para nossas intencionalidades na atitude natural. Por completa que estivemos desenvolvendo do estabelecimento do domínio pro­
conseguinte, de certo modo nós “citamos” a atitude natural quando falamos posicional, o domínio do sentido, foi feita do interior da reflexão filosófica.
filosoficamente. Nós “citamos” a nós mesmos quando intencionamos as coi­ Foi como fenomenólogos que indicamos que um a proposição ou um senti­
sas na atitude natural. Mas deixem-nos evitar a palavra “citação” aqui, para do surgem em resposta a um a reflexão proposicional.
que não sejamos induzidos à confusão. Deixem-nos seguir a terminologia Assim, a reflexão fenomenológica não é apenas mais radical do que a
fenom enológica aceita e dizer que nós pomos entre parênteses o m undo proposicional, no sentido de que derruba de todos os modos a crença no
e tudo nele quando executamos a reflexão filosófica. Pomos o m undo e tudo mundo; é também mais abrangente, no sentido especial de que focaliza na
nele entre colchetes ou entre parênteses. Colchetes são as aspas da filosofia. reflexão proposicional e descreve o que a leva a cabo. A reflexão fenomenoló­
Expressam o tipo de distância que tomamos das coisas quando estamos gica chega ao topo da reflexão proposicional e explica o que a constitui: expli-
ca como a reflexão proposicional constitui proposições. A reflexão proposi- Como poderia a reflexão filosófica ser ilustrada nesse cenário? O filóso­
cional, contudo, não explica a transformação na fenomenologia. A transfor­ fo não poderia ser representado dentro da história em quadrinhos. O filó­
mação na fenomenologia está fora da tela do radar da reflexão proposicional. sofo é algo como a pessoa que está lendo a história em quadrinhos, não como
Observamos no capítulo IV que o noema não deveria ser equivalente ao um a das personagens dentro dela. Ele fica “fora” da m oldura da atitude
sentido. Agora podemos dizer por que os dois não devem ser identificados. natural, fora dos desenhos da história em quadrinhos. O filósofo (empolei­
Equiparar o sentido e o noema seria equiparar a reflexão proposicional e a rado ou suspenso na atitude fenomenológica) contempla os acontecimentos
fenomenológica. Seria tom ar a filosofia simplesmente como a reflexão críti­ na história em quadrinhos (as mudanças na atitude natural). Os persona­
ca de nossos significados ou sentidos; equipararia a filosofia com a análise gens da história em quadrinhos, Alfa e Beta, executam todo tipo de atos in­
lingüística. A instância especial a partir da qual pensamos filosoficamente, a tencionais (percepções, imaginações, recordações), eles constituem objetos
natureza distintiva da análise filosófica, não poderia vir à luz. A filosofia categoriais, e conversam entre eles. Também se engajam na reflexão proposi­
seria assimilada a um a das atividades dentro da atitude natural. O sentido cional, quando transformam um estado de coisas num a proposição ou num
ou o significado difere do noema porque a reflexão proposicional é diferente sentido e testam-no para a verdade.
da reflexão filosófica. A única coisa que os persongens da história em quadrinhos não podem
fazer é mover-se fora das molduras do desenho e ler a história em quadri­
nhos. Essa performance é lógica e metafisicamente impossível. Eles não po­
Uma ilustração gráfica das duas reflexões dem escapar da seção de histórias em quadrinhos do jornal. Para ilustrar a
analogia, a única coisa que eles não podem fazer é assumir um a perspectiva
Gostaríamos de· tentar clarificar a interação entre a reflexão filosófica e fenomenológica. Do mesmo modo, a única coisa que o leitor da história em
a proposicional delineando um a analogia. Usaremos um a história em qua­ quadrinhos não pode fazer é mover-se para dentro da história em quadri­
drinhos para esclarecer a diferença entre a perspectiva que assumimos quan­ nhos e substituir as intenções e evidências dos personagens naquele lugar. O
do estamos engajados na filosofia e a perspectiva que temos quando sim­ filósofo, para ilustrar a analogia, não pode intervir na atitude natural. Com
plesmente proposicionalizamos e testamos um a afirmação quanto à verdade efeito, contudo, tal intervenção da filosofia na atitude natural é o que Des­
da exatidão. cartes tenta fazer com respeito a nossa experiência perceptual e o que Hob­
Suponhamos que temos um a história em quadrinhos na qual um inter­ bes tenta fazer com respeito a nossa vida política. Eles tentam usar a filosofia
locutor, Alfa, está conversando com outro, Beta. Alfa diz algo a Beta sobre como um substitutivo para nossa vida natural. Mais do que salvar a vida
árvores. O que Alfa diz é encerrado no balão que é usado nas histórias em humana, contudo, o racionalismo que eles introduzem ameaça arruiná-la,
quadrinhos para designar a fala. Suponhamos que o balão associado a Alfa como daqui a pouco veremos no capítulo final.
contém as palavras: “Essas árvores cairão na próxima vez em que houver um Porém, antes de abandonar essa analogia com a história em quadrinhos,
vento forte”. Beta, na história em quadrinhos, normalmente tomaria as pala­ devemos qualificá-la e torná-la mais complexa. Como todas as analogias, ela
vras de Alfa no valor nominal e pensaria nas árvores segundo o que ouviu de claudica um pouco. É verdade que o filósofo não pode ser simplesmente
Alfa. Mas suponhamos que Beta fica desconfiado. Ele se pergunta se Alfa está representado dentro da história em quadrinhos, e que ele não pode intervir
certo. Ele proposicionaliza o estado de coisas que Alfa enunciou. Quando Beta na história da história em quadrinhos como um dos seus personagens nor­
age assim, é como se ele mudasse seu foco das árvores para o “conteúdo con­ mais. Contudo, é também verdade que ele não está totalmente destacado
ceituai” do balão associado a Alfa, e o “conteúdo conceituai” daquele balão é dessa história e de seus personagens. Ele é a mesma pessoa que também vive
o ser das árvores pronto para tombar (tomado como proposto). na atitude natural; quando ele entra na atitude fenomenológica ele não sai
Q uando Beta executa esse artifício proposicional, contudo, ele permane­ do mundo, como a imagem do leitor da história em quadrinhos pode suge­
ce inteiramente dentro da moldura da história em quadrinhos. Ele permanece rir. Nesse aspecto, a diferença espacial entre o leitor e o documento sendo
dentro da atitude natural. lido pode nos conduzir a erro quando é transposta para a relação entre o
filósofo e a atitude natural. O filósofo como tal transcende o mundo, mas ele proposicional, com o tipo de verdade que ela permite, tenha tomado lugar.
age assim enquanto permanece um a parte dele. A fenomenologia nos forne­ O raciocínio crítico e proposicional é um a condição de possibilidade para o
ce um a via imanente para sermos transcendentes. A filosofia não se apresen­ raciocínio filosófico.
ta como um a das “ocupações” padrão dentro do m undo natural, mas tem Porque a reflexão proposicional tem de preceder a fenomenológica, não
um a presença pública de algum tipo, presença que quase sempre deixa per­ é surpresa que encontremos dificuldade para distinguir um a da outra. Acha­
plexos aqueles que não são filosóficos. mos difícil avançar suficientemente na nova dimensão que a filosofia traz.
Tendemos a pensar que a reflexão sobre o significado é a forma mais elevada
de análise reflexiva. Por essa razão, é essencial para nós delinear explicita­
A importância das duas reflexões mente a distinção entre reflexão proposicional e reflexão fenomenológica, e
distinguir o sentido do noema, se quisermos afiar nossa compreensão do
A distinção entre as reflexões fenomenològica e proposicional, a qual que a filosofia, como a ciência da verdade, é.
temos explorado neste capítulo, é particularmente im portante para trazer à
luz a natureza do pensamento filosófico. Se tivéssemos omitido o tratam en­
to dessa distinção, e tivéssemos falado somente do contraste entre as atitu­
des natural e fenomenològica, nossa exploração não teria enfrentado corajo­
samente um a das mais comuns confusões a respeito da natureza da fenome­
nologia. A filosofia, freqüentemente, não é compreendida de um a forma
suficientemente radical; ela é tom ada por ser um a mera reflexão sobre, e uma
clarificação do, significado; isto é, é tom ada por ser o que é feito da perspec­
tiva da reflexão proposicional.
A filosofia somente pode surgir após a reflexão proposicional se ter
instalado. É um passo racional além dessa reflexão. Na atitude natural, pas­
samos por três níveis no movimento em direção à verdade: primeiro, sim­
plesmente percebemos e intencionamos as coisas; segundo, enunciamos as
coisas categorialmente, introduzindo a sintaxe em nossa experiência; e ter­
ceiro, refletimos proposicionalmente sobre as coisas que temos enunciado e
assim assumimos um a atitude crítica em relação a elas. Todos os três níveis
pertencem à atitude natural. Somente após ter passado por esses três está­
gios, e especificamente somente após ter realizado a reflexão proposicional,
podemos entrar no pensamento filosófico. O pensamento crítico envolvido
na reflexão proposicional, o esforço por determinar a exatidão das proposi­
ções, deve já ter ocorrido se estamos nos movendo no pensamento mais des­
tacado que chamamos de filosofia. O “eu” expresso na filosofia pressupõe o
“Eu” expresso em frases como “Eu penso que esse é o caso”, ou “Eu sei que
isso é verdade”.
A reflexão filosófica é mais do que apenas reflexão sobre a reflexão pro­
posicional — ela se estende sobre todas as intencionalidades e seus correla­
tos objetivos —, mas ela somente pode ser iniciada depois que a reflexão
A FENOMENOLOGIA NO CONTEXTO
HISTÓRICO PRESENTE

Agora iremos chegar a urna perspectiva final da fenomenología olhan­


do como ela se encaixa na cena fdosófica do presente. Perto do fim do capí­
tulo XIII, observamos que Descartes e Hobbes tentam substituir a atitude
natural pela filosófica. Eles pensam que a filosofía pode não só clarificar,
mas também substituir o conhecimento próprio ao pensamento pré-filosó-
fico. Essa crença no poder da razão filosófica, junto com essa suspeita sobre
outras formas de experiência, é típica da modernidade. A fenomenología
compreende a filosofia m uito diferentemente. Ela acredita que a inteligência
pré-filosófica poderia ser deixada intacta, pois tem sua própria excelência e
verdade, e que a filosofia contempla o pré-filosófíco sem substituí-lo. Assim,
enquanto a fenomenología origina-se dentro da filosofia moderna, também
tom a um a distância dela. Para mostrar como faz isso, vamos começar com
um a interpretação da modernidade.

Modernidade e pós-modernidade

A filosofia moderna tem dois principais componentes: filosofia política


e epistemología. Em ambos esses componentes, a filosofia moderna definiu a
si mesma, em suas origens, como um a revolução contra o pensamento antigo
e medieval. Maquiavel, no começo do século XVI, orgulhava-se de haver iniciado
novos métodos e modos na vida política, e Francis Bacon e Descartes, nos
começos do século XVII, declararam que estavam introduzindo novos modos
de pensar a natureza e a mente humana, modos que requeriam que abando­ novo vividamente na Revolução Russa e no Estado Soviético que se seguiu.
nássemos nossa herança e nossas convicções do senso comum e assumísse­ A idéia de soberania permanece em nossas sociedades políticas contemporâ­
mos um novo método de dirigir nossas mentes na busca do conhecimento. neas, nas tendências que ainda existem de centralizar toda autoridade num a
A nova política iniciada por Maquiavel e sistematizada por Hobbes não única impessoal fonte de poder, um governo todo-poderoso que dissolve todas
foi apenas um a inovação teórica. Teve um a conseqüência prática, o estabe­ as outras formas de autoridade social.
lecimento do Estado moderno. O Estado moderno é diferente das formas Além de estar corporificado nesses diversos modos, o Estado moderno
prévias de regras políticas. Em todas as formas pré-modernas, um a parte da passou por refinamentos teóricos após Maquiavel e Hobbes. Ele encontrou
sociedade — quer um homem, os pouco ricos, os muito pobres, o grupo seu manifesto final em Hegel, cuja formulação foi adaptada por Karl Marx.
médio, ou os mais cultivados — governava sobre o todo. Os governantes Desde Hegel, o que temos tido é um impasse intelectual entre proponentes
podiam exercer seu poder para o bem comum ou para seu próprio benefício, da soberania e do Estado moderno e pensadores políticos que recordam a
mas em qualquer caso a comunidade política envolvia alguns seres humanos alternativa à soberania, as formas políticas descritas pela teoria antiga e
governando outros. Até num a república, na qual se diz que as leis governam, medieval. Há escritores como Alexis de Tocqueville, que nos recordam de
os homens ainda constituem as autoridades estabelecidas, porque tem de formas políticas mais primitivas; Leo Strauss, que joga os antigos e os m o­
haver um número suficiente de cidadãos dotados com a virtude política e a dernos uns contra os outros; e Michael Oakeshott, que tenta operar ajustes
inteligência para permitir que as leis governem. entre os conceitos políticos antigos e modernos, com o ganho de juntar as
O Estado moderno é muito diferente disso. No Estado moderno, uma vantagens enquanto exclui as desvantagens de cada um. Pode ser dito, con­
nova entidade é criada, o soberano. O soberano não é um grupo de pessoas tudo, que a filosofia política moderna terminou sua obra. Alcançou sua con­
no corpo político. O soberano é um constructo, não um desenvolvimento clusão no conceito e no estabelecimento político do Estado moderno; o qual
hum ano espontâneo ou um a forma natural de associação humana. E uma é agora, geralmente, considerado ser a única forma legítima de governo: o
invenção dos filósofos. É proposto como um a solução permanente ao pro­ Estado moderno não precisa ser justificado, e todo m undo concorda que a
blema político humano. A introdução do soberano é para pôr um fim à luta forma de um Estado moderno poderia ser instalada em qualquer parte.
hum ana interminável exercida por indivíduos e por grupos, para governar. O A fenomenología nada tem a dizer diretamente sobre a dimensão polí­
conceito de soberania pretende racionalizar a vida política humana. Ele in­ tica da modernidade. Alguns dos escritos de Sartre e Merleau-Ponty são re­
troduz um a estrutura impessoal, em contraste com as formas personaliza­ lacionados à política, mas são pouco mais do que contribuições modestas à
das de governo encontradas na cidade antiga e medieval. A introdução do teoria socialista. A obra de Alfred Schultz é mais concernente ao social do
soberano, é a promessa, trará a paz civil. A única exigência que o soberano faz que a filosofia política. E impressionante como a fenomenología está com­
é que todos os sujeitos (pois agora são sujeitos e não cidadãos) renunciem a pletamente destituída de qualquer coisa em filosofia política. A fenomenología
qualquer reivindicação à ação e ao discurso público. Eles serão protegidos tem muito a dizer, contudo, sobre outros componentes da modernidade; a
pelo soberano da agressão dos outros e lhes será permitido possuir suas pró­ epistemología e os métodos.
prias preferências e confortos privados, mas todas as decisões públicas e o A modernidade envolveu não apenas um a nova concepção de vida polí­
discurso devem ser deixados somente ao soberano. tica, mas também um a nova concepção da mente. Nos escritos clássicos da
O Estado moderno, modelado pela idéia de soberania, pôs em prática filosofia moderna, nos é dito que a razão hum ana deve tom ar posse de si
seu método através da história política e intelectual das últimas cinco cente­ mesma. A razão não pode aceitar o que herda do passado ou dos outros. As
nas de anos. Encarnou-se primeiro nos monarcas absolutos dos séculos XVII opiniões que são dadas a ela por outros, e até as verdades aparentes que os
e XVIII. Então descartou esses monarcas e mostrou sua face mais claramente sentidos apresentam para ela, são descaminhos. A razão deve aprender a
na Revolução Francesa. Após seu germinar na seqüência de Revolução na conduzir a si mesma de acordo com os novos procedimentos, os novos mé­
França do século XIX, na Alemanha na obra de Bismarck, e nos Estados Uni­ todos que garantirão certeza e verdade. Todas as ciências devem ser recons­
dos na Guerra Civil e suas conseqüências, o Estado moderno apareceu de truídas a partir de novos e melhores fundamentos. A razão deve até desenvol-
ver um método que permitirá testar nossas percepções sensíveis e tornar é compreendida como dominante e como autônoma. Essa é a maior diferen­
possível para nós distinguir as impressões verdadeiras das impressões falsas ça entre a filosofia da modernidade e as filosofias antiga e medieval, nas quais
constituídas em nossa sensibilidade. a razão é compreendida como encontrando sua perfeição na manifestação
Como o político, o componente epistemológico da modernidade tam ­ das coisas, no triunfo da objetividade e na consecução da verdade. Na filoso­
bém tem sua história: moveu-se por entre o racionalismo de Descartes, Spi- fia pré-moderna, até a excelência política está subordinada à verdade do ser
noza e Leibniz, o empirismo de Locke, Berkeley e Hume, a filosofia crítica que é presentado à vida teórica. O governo está subordinado à verdade.
de Kant e seus seguidores, o idealismo de Fichte, Schelling e Hegel, e o po­ Durante os primeiros séculos de sua influência, a modernidade expres­
sitivismo e o pragmatismo do pensamento dos séculos XIX e XX. Há uma sou a si mesma como racionalismo. O nome dado a esse período de sua his­
diferença, contudo, naquilo em que a epistemología não chegou a termo, tória e a esse estilo de pensar foi Iluminismo. A modernidade prometeu um a
como a filosofia política. A despeito dos grandes êxitos das ciências moder­ sociedade política puramente racional e um desenvolvimento científico se­
nas, e a despeito dos esforços estrénuos de movimentos como inteligência
guro do conhecimento humano. Porém, mais recentemente, após as procla­
artificial e ciência cognitiva, não há equivalente epistemológico do Estado
mações iniciais feitas por Nietzsche, tornou-se mais e mais claro que no co­
m oderno na posse inconteste da esfera de ação. Como um a teoria do conhe­
ração do projeto moderno não está o exercício da razão a serviço do conhe­
cimento e método, a modernidade está ainda inacabada, e é para essa área
cimento, mas o exercício de um a vontade, vontade de governar, vontade de
de conhecimento do pensamento moderno que a fenomenología dispõe a
poder. A medida que essa intuição torna-se mais e mais evidente, a moder­
sua contribuição.
nidade se desvanece e a pós-modernidade tom a posse. A pós-modernidade
Antes de consideramos a fenomenología, contudo, devemos examinar
não é um a rejeição da modernidade, mas o florescimento do impulso mais
mais um ponto de ambos os componentes da modernidade, o político e o
epistemológico. O que é comum à política e à epistemología modernas é que profundo nela. Nesse mom ento de nossa vida acadêmica e cultural, as ciên­
ambas insistem em que a mente é para ser compreendia como o poder para cias naturais ainda estão servindo ao projeto da modernidade clássica, mas
governar, Na filosofia política, a mente, em Maquiavel e Hobbes, gera uma as humanidades têm se rendido total e completamente à pós-modernidade.
nova entidade, o Estado soberano, o qual não é apresentado entre as formas
mais espontâneas de associação hum ana que surgiram na história. Desde
então, as incertezas e tensões da competição hum ana para governar estão A resposta da fenomenología
para ser substituídas por um constructo trazido pela intuição filosófica. Algo
novo, algo trans-humano, o Leviatã, substitui as velhas autoridades conflitan­ Como a fenomenología se encaixa nesse desenvolvimento da filosofia
tes, e essa coisa nova é a razão expressando a si mesma como imperando moderna? Ela é um a continuação do esforço racionalista na modernidade?
sobre os homens. Alguns dos caminhos e argumentos encontrados em Husserl pareceriam
Ainda mais, em respeito ao conhecimento humano, a razão tom a posse indicar isso. O u ela é um a contribuição à pós-modernidade, como algumas
de si mesma e rege sobre sua própria experiência gerando métodos de inves­ das passagens em Heidegger, e sobretudo em Derrida, pareceriam indicar?
tigação e executando um a crítica de seus próprios poderes. A mente estabe­ Poderíamos reivindicar que a fenomenología rompe com a modernida­
lece a si mesma como a razão. A mente governa a si mesma e a seu poder para de e permite um a restauração das convicções que animaram a filosofia anti­
conhecer. A mente não é concebida como constituída para a verdade das ga e medieval. Como filosofia pré-moderna, a fenomenología compreende a
coisas, mas como governando suas próprias atividades e gerando a verdade razão como constituída para a verdade. Vê a mente hum ana como ajustada
por seus próprios esforços. A mente não é receptiva, mas criativa. Ela não em direção à evidência, para manifestar o modo como as coisas são. Além do
aceita a si mesma como teleologicamente orientada para a verdade, mas in­ mais, ela valida essa visão da razão e da mente ao descrever, em detalhes
venta a si mesma e constrói suas verdades por meio de metodologias críticas. convincentes, as atividades pelas quais a mente alcança a verdade, junto com
Em ambos os casos, portanto, na política como na ciência, a razão ou a mente as limitações e obscuridades que acompanham essa realização. Por causa de
sua compreensão da razão e da verdade, a fenomenología permite-nos a rea- exercido de acordo com a excelência humana, e também deve reconhecer que
propriação da filosofia da Antiguidade e da Idade Média. há um a vida mais elevada do que a sua própria. Essas verdades foram perdi­
Isto significa que a fenomenología simplesmente restaura o conheci­ das de vista no pensamento político inaugurado por Maquiavel.
mento antigo da filosofia e abandona o projeto moderno? Ou que ela mera­ Se os seres humanos são reconhecidos como agentes da verdade, sua
mente faz dos antigos e dos modernos as duas alternativas básicas do pensa­ associação política deve refletir essa dimensão de seu ser. Um sistema impes­
mento? Não; é mais. Ela responde positivamente às questões que surgiram soal de soberania não pode substituir os governantes hum anos responsáveis
na modernidade. Delineando a filosofia moderna e também restaurando o e os cidadãos. As virtudes cívica e intelectual daqueles que tom am o ofício
conhecimento antigo da razão, a fenomenología vai além dos antigos e dos público não podem ser negligenciadas; governar não é simplesmente um a
modernos. Por exemplo, ela lida com o problema epistemológico moderno e questão de procedimentos automáticos e processos eleitorais. Os problemas
com o lugar da ciência matemática na vida humana. Ela mostra como a per­ urgentes da educação cívica, da estabilidade da família e da ordem social que
cepção não deveria ser entendida como um a barreira entre nós próprios e as surgiram em anos recentes mostram que os ensinamentos da filosofia polí­
coisas, e como as coisas podem ser dadas em várias perspectivas e ainda as­ tica antiga não estão ultrapassados em nosso tempo. Uma melhor compre­
sim manter sua identidade; examina a interação entre presença e ausência ensão da responsabilidade humana, baseada no entendimento da razão como
em todas as nossas experiências; e elucida as intencionalidades pelas quais as constituída para a verdade, é extremamente necessária na educação dos cida­
ciências são constituídas fora do m undo vivido. dãos e dos homens públicos, se os homens não estiverem destinados a tor­
Mas, enquanto se dedica às inquietações da modernidade, a fenome­ nar-se escravos de um Estado despótico.
nología também se aperfeiçoa no conhecimento antigo da ciência. Ela intro­ O Estado moderno não é o mesmo que um a república, a sociedade
duz o papel do ego, mostrando que o conhecimento hum ano não é o traba­ política na qual as leis governam. O soberano é um constructo deliberada­
lho de um intelecto agente separado dos seres humanos, mas a realização e mente fabricado pela razão, ao passo que as leis são os costumes herdados de
posse de alguém que pode dizer “Eu” e que pode assumir responsabilidade um a comunidade, alguns dos quais se tornaram codificados em estatutos
pelo que diz. Porque reconhece o ego transcendental como um a dimensão explícitos; eles são as leis comuns, o modo de vida das pessoas. Mais básica
dos seres humanos, a fenomenología está apta a introduzir um a dimensão de que os estatutos, naturalmente, é a constituição da sociedade política, a
histórica e hermenêutica no conhecimento humano. Faz assim, contudo, sem qual determina os ofícios e as pessoas que serão eleitas para assumi-los; isto
submergir a verdade na subjetividade e nas circunstâncias históricas. Tendo é, determina quais serão os cidadãos. A república compreende que os ho­
tido de tratar com o ceticismo moderno, a fenomenología fornece um a aná­ mens nasceram e foram educados em sociedades pré-políticas, nas famílias e
lise mais radical da experiência e da intencionalidade do que a filosofia an­ tribos, e que eles têm associações (amizades) que são pré-políticas. A sobera­
tiga o fez, bem como um tratam ento mais explícito da diferença entre filoso­ nia é m uito menos controlada. Ela reivindica relegar ou pôr de lado todas as
fia e o pré-filosófico. A fenomenología não é nem um a rebelião contra a An­ outras autoridades e associações, que ela governa. Ela reivindica estar apta a
tiguidade e a Idade Média nem um a rejeição da modernidade, mas um a res­ fazer hum anos os homens. Ela é essencialmente totalitária.
tauração da verdadeira vida filosófica, de um a maneira apropriada à nossa Uma outra diferença entre a república e a soberania é que a república
situação filosófica. se configura em elementos de muitas outras formas de governo: ela é feita
A fenomenología não desenvolveu um a filosofia política, mas, porque de componentes democráticos, oligárquicos, aristocráticos e componentes
vê a razão hum ana como constituída para a verdade, ela pode dar um a con­ da realeza, e essa variedade dá a ela grande resistência tênsil. A soberania,
tribuição im portante para a filosofia política. Se a mente hum ana encontra em contraste, é unívoca. Há apenas o único poder de um ou de um grupo
seu fim na evidência das coisas, então o poder político não pode ser o mais que diz representar todos os sujeitos. Porque é unívoca, a soberania não é
alto bem para o homem. A política tem de estar subordinada à verdade das adaptável às circunstâncias. Ela é o que tem sido chamado de Estado univer­
coisas, isto é, o poder político tem de ser exercido de acordo com a natureza sal ou homogêneo, a única forma de governo que é presumida ser encontra­
humana. O poder absoluto não provê a máxima satisfação. O poder deve ser da em qualquer lugar. Ela é puram ente “racional”, mas racional no sentido
que a modernidade dá ao termo: um a expressão de razão metódica e calcu­ tal. A compreensão da razão hum ana como encaixotada dentro do cérebro
lista, não a razão que evidencia o modo como as coisas são. A ruína moral a compreensão que serve ao Estado soberano, está muito espalhada em nos­
e social deixada para trás pelo colapso do Estado soviético m ostra quão efe­ sa cultura, mas ainda não é universal. Ela tem a fraqueza de ser contra-intui­
tivamente a soberania pode destruir as autoridades sociais que tentam riva­ tiva e auto-solvente, como o pós-modernismo tem mostrado. Em termos pla­
lizar seu poder. tônicos, o que é necessário é um novo “tropo musical”, que nos torne mais
As melhores sociedades políticas no m undo moderno, tais como a for­ claramente conscientes do que somos, e o papel político da filosofia é ajudar
mada pela Constituição Americana original, foram repúblicas. Elas são um a tornar essa música possível.
governo das leis e são compostas de elementos de muitas formas diferentes
de governo: democrático, oligárquico, aristocrático e da realeza. Elas comba­
tem a centralização de forças que também tem se desenvolvido no mundo A fenomenología e a filosofia tomista
moderno. Na medida em que elas permanecem repúblicas, elas tratam sua
gente como cidadãos, não como sujeitos, e consideram essencial educar a Já que estamos tentando definir a fenomenología m ostrando como ela
sua gente como cidadãos, não como sujeitos. Ser educado como um cidadão se encaixa na situação filosófica moderna, seria útil compará-la com a filoso­
é ser capaz de entrar no diálogo hum ano como um agente responsável da fia escolástica, e mais especificamente com a mais proeminente representa­
verdade. A fenomenología pode fortalecer e restaurar esse autoconhecimen- ção do escolasticismo, o tomismo. O tomismo, à semelhança da fenomeno­
to cívico; essa é a contribuição que ela pode oferecer à filosofia e à prática logía, proporciona um a alternativa para a modernidade e a pós-modernida-
política contemporâneas. de, mas as duas alternativas diferem. O tomismo é um a pré-moderna ou não-
O estudo da consciência e do pensamento humanos tem um valor que m oderna forma de pensar. Suas raízes repousam na Antiguidade e na Idade
ultrapassa o da epistemología. Quando descrevemos a razão hum ana filoso­ Média. Historicamente, corre em paralelo aos primeiros desenvolvimentos
ficamente, nós provemos um autoconhecimento humano, e esse conheci­ do pensamento moderno, quando foi representado por escritores dos sécu­
mento não está desconectado da filosofia política. O quadro mais sistemáti­ los XVI e XVII como Cajetano (1468-1534), Suárez (1548-1617) e João de
co do Estado soberano é dado por Thomas Hobbes no Leviatã, um a obra que Santo Tomás (1589-1644). O tomismo desapareceu um pouco durante os
começa com um a teoria mecânica do conhecimento. A conjunção entre po­ dois séculos seguintes, mas após o renascimento motivado pelo papa Leão
lítica e epistemología não é acidental. Se os seres humanos têm de ser feitos XIII, com sua encíclica AeterniPatris (1879), ele tornou-se presença conspícua
sujeitos abjetos de um soberano, eles têm de compreender a si mesmos de no pensamento dos séculos XIX e XX, primariamente, mas não exclusiva­
um certo modo. Uma vez que a eles não será permitido agir no domínio mente nos círculos intelectuais e na educação católica romana. Foi represen­
público (somente o soberano pode executar ações públicas), eles não devem tado por muitos estudiosos e comentadores, mas também por pensadores
tom ar a si mesmos nem como agentes morais nem como agentes da verdade. independentes como Jacques Maritain (1882-1973), Etienne Gilson (1884-
Eles têm de compreender seu intelecto como um processo mecânico, impes­ 1978) e Yves R. Simon (1903-1961). Sua presença foi muito dim inuída em
soal, não como um poder de revelação. Eles não podem compreender a si conseqüência do Concílio Vaticano II. Além do mais, a filosofia neo-escolás-
mesmos como dativos de manifestação. O estado soberano e o subjetivismo tica de Franz Brentano exerceu um a influência significativa em Husserl, as­
moderno andam de mãos dadas. O “predicamento egocêntrico” e a redução sim existiu alguma continuidade entre o pensamento tomista e os primeiros
da mente ao cérebro, a abolição da verdade pública em favor do relativismo estágios da fenomenología.
privado não são apenas teorias epistemológicas, mas também predisposições O tomismo partilha com a fenomenología a convicção de que a razão
políticas. Se nos tornássemos persuadidos de que não entramos no jogo da hum ana é constituída para a verdade, mas há um a diferença importante entre
verdade, veríamos a nós próprios como jogadores solitários que podem agir as duas tradições. O tomismo desenvolveu sua filosofia dentro do contexto
só dentro de nossa vida interna. Não há jogo público, mas somente fantasia da fé e da revelação cristãs. Ele opera dentro das dimensões intelectuais aber­
privada, nem futebol ou beisebol, mas somente um tique-taque-toque men­ tas por Santo Anselmo, que provê um tipo de “dedução teológica” da possi­
bilidade da filosofia, análogo à “dedução transcendental” de Kant de nosso mos o mundo. A fenomenologia pode ajudar a filosofia tom ista e a teologia
poder cognitivo. O primeiro passo que tinha de ser dado na filosofia me­ a compreender suas próprias origens.
dieval era mostrar que a razão tinha seu próprio domínio, sua própria esfera
de operação e que não estava absorvida pela fé. Santo Anselmo e os escolás­
ticos “arranjaram um lugar” para a razão dentro da fé. Eles sabiam da filoso­ A fenomenologia e a experiência humana
fia porque a encontraram entre os antigos, mas sua própria apropriação dela
tinha começado dentro da revelação. Entre as grandes realizações da escolás­ A fenomenologia escapa do voluntarismo da pós-modernidade porque
tica estava a distinção entre fé e razão e entre graça e natureza. Os pensadores evita o racionalismo aparente da modernidade. É mais moderada do que tal
medievais, e Santo Tomás de Aquino em particular, ensinaram que as evi­ racionalismo. Reconhece a validade da experiência e do pensamento pré-filo-
dências naturais têm sua própria integridade, e que a razão pode alcançar a sóficos e não tenta substituí-los. Mesmo assim, pode parecer excessivo dizer,
verdade por meio de seus próprios poderes. Esse ensinamento, contudo, ti­ como temos declarado desde o início, que a fenomenologia é indiferente à
nha de ser justificado de dentro da fé bíblica. verdade ou à falsidade encontradas na atitude natural. A fenomenologia nada
Na filosofia antiga, não era necessária essa justificação teológica, por­ faz da experiência que vem antes dela? Apenas ocupa-se do anterior e reflete
que a filosofia não tinha encontrado seu lugar dentro da revelação divina. para seu próprio benefício?
Ela localizava a si mesma dentro das opiniões herdadas das cidades gregas. A fenomenologia pode esclarecer as intencionalidades que operam na
Daí, a filosofia compreendia a si mesma como a culminação natural do pen­ atitude natural. Pode mostrar, por exemplo, como a lógica difere da matemá­
samento humano. Os homens tinham opiniões sobre o modo como as coi­ tica, e como ambas diferem da ciência natural; ela pode mostrar o que cada
sas são, eles eram aptos a adquirir algum conhecimento científico, eles ti­ um a dessas formas de intencionalidade busca, que evidências visam. A feno­
nham pontos de vista sobre o que era certo e justo fazer, eles fizeram asser­ menologia auxilia a experiência pré-filosófica no esclarecimento do que essa
ções sobre os deuses; além desses exercícios da mente, eles começaram a experiência revela e como se encaixa com outras formas de evidência. Agindo
pensar sobre o todo e sobre eles mesmos como manifestando o todo e as assim, contudo, a fenomenologia ou a filosofia não apresenta um novo mé­
partes nele. Quer no estudo pré-socrático da natureza ou na investigação todo para o que já estava lá. Tudo que ela faz é distinguir mais agudamente
socrática do homem e da ordem política, eles começaram a exercitar o pen­ as intenções que já estabeleceram sua própria integridade. Ela remove as
samento filosófico. confusões nessas intenções e resolve as ambigüidades na fala que as expressa.
A fenomenologia nos oferece esse tipo de compreensão da filosofia como A fenomenologia também ajuda o pensamento pré-filosófico porque
um a realização hum ana natural. A fenomenologia não tenta derivar a filoso­ esse pensamento inevitavelmente vai além de si mesmo e tenta formular um a
fia de dentro da fé religiosa. Antes, tom a a filosofia simplesmente como uma opinião sobre o todo. Toda ciência particular, bem como o senso comum
excelência hum ana natural, excelência que completa o exercício pré-filosófi- humano, expressa um a opinião sobre o todo. Formula essa opinião, contu­
co da razão. Desse modo, a fenomenologia inicia a filosofia de um a maneira do, em termos de sua própria visão parcial. Os físicos pensam o todo como
diferente da do tomismo, mas de um modo que complementa e não contra­ um todo físico, os políticos pensam nele como político, os psicólogos pen­
diz a abordagem tomista. O tomismo oferece um modo legítimo de entrar sam nele como psicológico. Cada visão parcial estende seu próprio pseudó-
na filosofia, mas não é o único modo. Tomando posse da filosofia de dentro pode filosófico. Em contraste, a fenomenologia, como toda verdadeira filo­
da fé, ele não deforma a filosofia, mas dá-lhe um olhar e um a percepção sofia, vê as diferenças entre um a visão parcial do todo e um a visão que é
distintas, um a distinta apresentação. O utra via para entrar na filosofia, o apropriada ao todo. Evita a positividade das ciências particulares. Em vez de
caminho mais antigo, é começar dentro da atitude natural e distinguir dela se precipitar na frente às cegas, sabe que o pensamento sobre o todo requer
a atitude filosófica. Certamente, tom ar a rota oferecida pela fenomenologia sutileza, reserva, nuance, analogia e metáfora. Faz distinções mais básicas do
pode ser benéfico para o tomismo: torna possível mostrar como o contexto que fazem as ciências particulares. E sensível às transformações da lingua­
assumido pelo tomismo é ele mesmo distinto do todo natural que chama- gem que devem ocorrer quando falamos sobre o contexto mais amplo.
A fenomenologia assim ajuda as ciências particulares e a atitude natu­
ral por clarificar sua parcialidade, por trazer à luz o que está ausente para
elas, e por m ostrar que o que elas identificam pode ser visto desde perspec­
tivas que elas não possuem. Não duvida ou rejeita, mas esclarece e restaura.
Esclarecendo a parcialidade de outros modos de pensar, ela formula seu pró­ APÊNDICE
prio sentido do todo. Falando do todo ela também chama o si à mente, e,
assim, opõe o auto-esquecimento das formas modernas da ciência e a auto-
negação da pós-modernidade. A fenomenologia ajuda-nos a pensar sobre os A FENOMENOLOGIA NOS
primeiros e últimos fins e ajuda-nos a conhecer a nós mesmos. ÚLTIMOS CEM ANOS

O começo do movimento: Husserl

O movimento fenomenológico situa-se muito claramente, quase exata­


mente, no século XX. A obra geralmente considerada o primeiro trabalho
verdadeiramente fenomenológico, As investigações lógicas de Edm und Husserl,
apareceu em duas partes nos anos 1900 e 1901; assim, o novo movimento
começou precisamente com a aurora do século. Além disso, essa data foi li­
teralmente um novo começo, porque Husserl era um filósofo verdadeiramente
original. Ele não pode ser considerado o continuador de um a tradição que
tom ou forma antes dele; mesmo M artin Heidegger, como competente filó­
sofo que era, pode ser compreendido somente na tradição aberta por Hus­
serl, mas Husserl não teve qualquer predecessor para eclipsá-lo. Ele valeu-se
da obra de Franz Brentano e do psicólogo Cari Stumpf, mas excedeu grande­
mente a ambos. Sua teoria da intencionalidade, por exemplo, é muito supe­
rior à de Brentano. A obra de Husserl escrita antes de 1900 (sua Filosofia da
aritmética, que apareceu em 1891, e alguns ensaios que se seguiram ao livro),
em bora prenuncie alguns de seus pensamentos posteriores, é justamente
considerada pré-fenomenológica, do mesmo modo que os escritos de Kant
antes da Dissertação inaugural de 1770 são considerados pré-críticos. Assim,
situados que estamos mais de cem anos depois, já podemos recordar esse
movimento filosófico que começou no ano de 1900 e tentar examiná-lo.
Husserl foi Privatdozent na Universidade de Halle por quatorze anos
quando, por causa do sucesso das Investigações lógicas, foi convidado a tornar-
se professor em Göttingen. Ele esteve em Göttingen de 1901 a 1916, de onde por volta da virada do século XIX; o grupo, incluindo figuras como Alexan­
se m udou para Friburgo, onde ensinou de 1916 até sua aposentadoria em der Pfänder e Johannes D aubert no início, e mais tarde Adolf Reinach,
1928. Ele permaneceu em Friburgo outros dez anos até a sua morte em 1938, Theodor Conrad, Hedwig Conrad-Martius, Moritz Geiger, Dietrich Von Hil­
aos 79 anos. Husserl publicou somente seis livros durante toda a sua vida: debrand e Max Scheler, foi influenciado pelas obras escritas de Husserl e
Filosofia da aritmética (1891), As investigações lógicas (1900-1901), Idéias I (1913), gradualmente tornou-se um centro independente de fenomenologia. Mem­
Lições de consciência do tempo interno (1928), Lógicaformal e transcendental (1929) bros encontravam-se freqüentemente com Husserl em Göttingen, o convida­
e Meditações cartesianas (1931), a qual foi publicada primeiro na França. Con­ ram para lecionar em Munique, e alguns se transferiram para Göttingen para
tudo, compôs milhares de páginas de manuscritos: lições de curso, esboços estudar com ele. O que interessou os filósofos de M unique foi a superação de
e meditações filosóficas, comentários, rascunhos para possíveis publicações; Husserl do psicologismo e sua restauração do realismo na filosofia. Eles re­
ele filosofou por escrito. Todos esses materiais foram coletados no Husserl pudiaram seu desenvolvimento posterior de um a filosofia transcendental,
Archives, e muitos volumes foram publicados postumamente na série Hus­ contudo, pensando ser um a recaída no idealismo, e pensaram seus próprios
serliana, que conta já 29 títulos e ainda está sendo publicada. Um total de trabalhos como um a fenomenologia sem a redução. Em Göttingen, subse­
aproximadamente quarenta volumes está planejado. qüentemente, um outro grupo foi formado. Alguns de seus membros vieram
Elisabeth Ströker (em comunicação pessoal) observou que Husserl sem­ de Munique, tais como Reinach, Daubert, Conrad, Conrad-Martius e Von
pre preservou algo de um cientista natural mesmo quando se voltou para a Hildebrand, e a eles se juntaram figuras como Alexandre Koyré e Jean Héring.
filosofia; ele começou seus estudos e escreveu sua tese de doutorado em ma­ Roman Ingarden e Edith Stein se tornaram membros desse grupo e mais
temática, e também estudou astronom ia e psicologia antes de entrar para a tarde foram com Husserl para Friburgo.
filosofia. Como cientista natural, diz Ströker, ele estava mais inclinado ao Quando Husserl m udou para a Universidade de Friburgo em 1916, um
experimento do que à monografia, e muitas de suas composições filosóficas círculo não-formal de fenomenologia foi estabelecido ali, mas muitas figu­
foram mais um a espécie de estudos empíricos ou experimentos. Até seus li­ ras proeminentes trabalharam com ele: Stein, Ingarden, Fink, Ludwig Land­
vros mais extensos se assemelhavam mais a coleções de pequenos estudos e grebe e especialmente Martin Heidegger. Outros que foram influenciados
menos a composições arquitetonicamente estruturadas. por ele enquanto estudaram em outra parte nos anos 1920 foramjacob Klein
Por meio de seus ensinamentos e escritos, Husserl estimulou o cresci­ e Hans-Georg Gadamer, que estava em Marburgo e foi mais diretamente in­
mento de diversas áreas de conhecimento da fenomenologia durante toda fluenciado por Heidegger.
a sua vida. Um outro im portante modo no qual ele exerceu influência foi
por meio de seu trabalho editorial no Jahrbuch fü r Philosophie und phänomeno­
logische Forschung, que ele fundou em 1913. Muitas monografias alemãs im­ O segundo estágio: Husserl, Heidegger e Scheler
portantes apareceram nesse anuário, incluindo Ser e tempo, de Heidegger,
Idéias I e Lógica formal e transcendental, do próprio Husserl, Formalismo na éti­ D urante os anos 1920 o movimento filosófico de Husserl, como um
ca, de Max Scheler, e obras de Adolf Reinach, Alexander Pfänder, Oskar fenômeno cultural, foi de certa forma tirado do caminho pelo aparecimen­
Becker e M oritz Geiger. Um total de onze volumes, alguns dos quais con­ to de M artin Heidegger na cena acadêmica e intelectual. Heidegger causou
tendo mais do que um a obra, foram publicados nessa série entre 1913 e um a tremenda impressão no m undo filosófico alemão e roubou o cetro de
1930. A últim a foi um estudo de Eugen Fink sob o título Vergegenwärtigung Husserl. Husserl e Heidegger formam um dos grandes pares de pensadores
und Bild (Representação e imagem). na história da filosofia, e para compreender seu relacionamento vamos vol­
Dois grupos filosóficos foram influenciados por Husserl durante seu tar alguns anos atrás, até 1907, quando Heidegger leu o livro de Brentano
período de ensino, um em Göttingen e um em Munique. O de Munique surgiu sobre os muitos sentidos do ser em Aristóteles. Dois anos mais tarde, como
espontaneamente através da leitura das Investigações lógicas. Na Universidade estudante em Friburgo, ele leu o Investigações lógicas de Husserl. Completou
de Munique, estudantes de Theodor Lipps organizaram um grupo filosófico sua dissertação de doutorado sob a orientação do neo-kantiano Heinrich
ger do ser-para-a-morte, ou o da ansiedade, ou o da autenticidade, não é pri­
Rickert em 1913, escreveu sua habilitação em 1915, e então começou a en­
mariamente nos dar fundamentos para a aflição ou nos fazer fervorosos da
sinar em Friburgo, justam ente quando Husserl também chegava lá. Como
vida ou obter o nosso voto; mais propriamente, ele está usando esses fenôme­
jovem professor, Heidegger lecionou filósofos gregos e fenomenología, e
nos como abordagens à questão do ser. Eles têm um a função analítica, não
também filosofia da religião. Ele foi convidado a lecionar em Marburgo e
exortativa. São para mostrar que a questão do ser é descoberta não só na
deixou Friburgo em 1923. No inverno de 1923-24 compôs o primeiro rascu­
metafísica especulativa, mas em todas as variedades da existência humana.
nho de Ser e tempo, e começou a lecionar em Marburgo em 1924. Ser e tempo
Contudo, mesmo nos próprios escritos de Heidegger, o propósito analítico
foi publicado em 1927. Heidegger foi convidado a suceder Husserl em Fri­
mistura-se com um a exortação religiosa e moral. Há algo de profético neles.
burgo na aposentadoria deste em 1928. Heidegger permaneceu em M arbur­
Alguém pode ser um profeta, esperando a nova vinda dos deuses, e alguém
go por quatro anos, de 1924 a 1928, mas suas lições, tanto lá quanto antes
pode ser um filósofo, mas é enganoso tentar ser ambos ao mesmo tempo.
em Friburgo, já o haviam tornado famoso e revelado sua própria posição
Um outro modo de expressar essa diferença entre Husserl e Heidegger
filosófica independente.
é dizer que Husserl começou com o impulso de um cientista e matemático e
Heidegger leu Aristóteles aos 17 anos, e leu o Investigações lógicas de Hus­
o transformou em filosofia, enquanto Heidegger começou com o impulso
serl aos 19 anos. Foi a combinação dessas duas fontes que mais profunda­
religioso e o misturou num impulso filosófico. Husserl, o racionalista, pen­
mente moldaram-no filosoficamente. Em Ser e tempo (§ 7) ele declara que o
sou a si mesmo como um cristão livre, não-doutrinal e não-dogmático, mas
método de sua análise será fenomenológico, e provê um a explanação lúcida
usou as categorias religiosas muito frugalmente em sua obra. Ele era aplicado
do que significa a fenomenología, mas a despeito da influência que Husserl
na filosofia como um a ciência rigorosa. Ele respeitava a religião, mas estava
exerceu sobre ele há um número de diferenças óbvias entre os dois filósofos.
relativamente distanciado dela. Heidegger, em contraste, pareceu apresentar
Primeiro, Heidegger formula sua tarefa em termos clássicos e mostra
sua filosofia como um a resolução dos problemas religiosos. Foi notado que
um grande conhecimento da história da filosofia. Husserl foi um matemáti­
vários seguidores de Husserl converteram-se ao catolicismo ou ao protestan­
co que veio para a filosofia, enquanto Heidegger foi educado como filósofo
tismo; isso ocorreu não porque Husserl encorajou essa mudança (de fato,
desde o começo. Ser e tempo cita fontes como Aristóteles, Agostinho, San­
pareceu um tanto embaraçoso para ele), mas porque sua obra restaura a res­
to Tomás, Suárez, Descartes, Kant e outros filósofos e teólogos, bem como o
peitabilidade a vários domínios da experiência e assim permite às pessoas
livro do Gênesis, Calvino, Zuínglio e Esopo, e coloca como sua meta o reju­
cultivar seu próprio desenvolvimento religioso sem obstáculo. Essas conver­
venescimento da questão do ser. Heidegger estava apto a fazer uso daqui­
sões não foram comuns entre os seguidores de Heidegger, contudo, e pode­
lo Husserl realizou por aplicá-lo às questões filosóficas mais clássicas. Ele era
ríamos sugerir que no contexto hum ano que Heidegger formou, o antagôni­
mais apto de que Husserl ao uso do vocabulário filosófico clássico.
co de um a conversão seria mais plausível para tomar lugar. As pessoas esta­
Segundo, Husserl é muito mais um racionalista no estilo e no conteúdo
riam inclinadas a dissuadir da fé religiosa pela filosofia como um modo de
de sua obra, enquanto o estilo e o conteúdo dos escritos e ensinamentos de
lidar com o impulso religioso. As questões de moralidade, autenticidade,
Heidegger engajam o leitor e põem questões existenciais para ele. Isso é bom
determinação, hermenêutica da existência humana, temporalidade e eterni­
e mau ao mesmo tempo. É bom naquilo que traz à luz explicitamente o fato
dade seriam tratadas pela análise e exortação filosófica melhor do que pela
de que a filosofia não é meramente um a especulação indiferente e despreocu­
dedicação religiosa em sua forma tradicional. A resposta filosófica seria até
pada, mas um modo de vida e um grande benefício para aqueles que a prati­
tom ada como a mais autêntica das duas. Ninguém tentou interpretar o Novo
cam. Contudo, é mau porque, perseguindo seu projeto filosófico, Heidegger
Testamento em categorias husserlianas, mas Rudolf Bultmann tentou fazê-
não distingue adequadamente vida teórica de vida prática, filosofia de pru­
lo com categorias de Heidegger, e alguém poderia sustentar que outros fize­
dência; também não distingue claramente vida teórica de religião. Ele quis ser
ram algo similar com respeito à crença católica.
um profeta e líder moral tanto quanto um pensador, e a oscilação entre essas
O que foi em Husserl que mais influenciou Heidegger? Poderíamos su­
formas de vida confundiu sua própria obra e afetou o pensamento daqueles
gerir que foi o fato de que em Husserl o cartesianismo ou o problema epis-
que foram influenciados por ele. O propósito principal da análise de Heideg-
temológico moderno foi dissolvido e superado. A idéia de um a consciência- está aí, é dado para nós como tal. Há, além do mais, diferentes tipos de au­
de-si solitária, enclausurada, consciência somente de si mesma e de suas sen­ sência, correspondendo aos diferentes tipos de intenções que nossas inten­
sações e seus pensamentos, foi descartada pelo conceito de intencionalidade cionalidades podem assumir: a ausência do outro lado das coisas que perce­
de Husserl. Na verdade, o problema epistemológico é ridicularizado em Ser bemos, a ausência das coisas intencionadas somente por meio das palavras,
e tempo (§ 13). Nós experienciamos e percebemos as coisas, não apenas as a ausência das coisas sendo recordadas, a ausência das coisas somente vis­
manifestações ou impactos ou impressões que as coisas nos causam. As coi­ lumbradas, a ausência daqueles que estão distantes como opostas à ausência
sas manifestam-se para nós por meio de um a multiplicidade de presentações. daqueles que morreram, a ausência do passado e a do futuro, a ausência do
Husserl apresentou esse realismo não só para indicar a autocontradição da divino. Um outro im portante tipo de ausência que Husserl descreveu é a da
posição cartesiana e lockiana, do modo das idéias, mas também para operar vaguidade, no qual as coisas são dadas para nós, mas dadas somente indis­
a análise descritiva detalhada das várias formas de intencionalidade, análise tintamente, com a necessidade de posterior enunciação e posse. Esse tema da
que provou a si mesma em virtude de sua precisão e evidência. Não se prova ausência foi, cremos, um estímulo à idéia de Heidegger de desocultamento
o realismo — como se poderia fazê-lo? — se o expõe. como incluído na verdade.
Mais particularmente, essa ruptura na doutrina da intencionalidade Heidegger viu as possibilidades filosóficas da descoberta husserliana da
expressou a si mesma em duas doutrinas mais particulares de Husserl: pri­ intencionalidade e explorou-a com acréscimos. Outros filósofos têm sido
meiro, sua análise da enunciação categorial, e segundo sua insistência de que impressionados pelo que Husserl tornou acessível. Os membros das escolas
nós verdadeiramente intencionamos as coisas em sua ausência. Ambos esses de Munique e Gõttingen, por exemplo, se regozijaram no “realismo” que se
ensinamentos estão vividamente presentes no primeiro Heidegger. Em sua tornou possível pelas descobertas de Husserl. N enhum deles, contudo, teve
doutrina da categorialidade, Husserl mostra que quando enunciamos as a profundidade, a originalidade e a energia filosófica de Heidegger, ou o
coisas, quando julgamos ou relacionamos ou compomos ou estruturamos charme sedutor de sua tonalidade religiosa.
as coisas, não fazemos meramente arranjos de nossos conceitos internos ou Gostaríamos de mencionar mais um a diferença entre Heidegger e Hus­
idéias ou impressões; mais propriamente, enunciamos as coisas no mundo. serl. Husserl é m uito restrito em seu uso da história da filosofia. Ele provê
Revelamos partes dentro de todos. Nossos juízos, por exemplo, não são com­ visões ocasionais dessa história, e usa Descartes, Galileu, Locke, Hume e Kant,
posições internas que tentamos jogar contra algum tipo de m undo “exter­ mas o faz com um conhecimento obviamente limitado desses autores. Ele
no”; eles são, em sua forma mais elementar, a enunciação assertiva das coisas faz alguns comentários incisivos sobre eles e normalmente alcança o coração
que experienciamos; nós enunciamos a presença das coisas, da maneira na das questões de suas filosofias, mas tem um conhecimento muito simplifi­
qual elas são dadas para nós. Assim, a doutrina da intencionalidade de Hus­ cado, livresco, de suas obras. Por outro lado, o conteúdo do que Husserl pro­
serl deveria ser tom ada somente com respeito à percepção, na qual dizemos pôs para a análise filosófica é rico e diversificado. Ele torna acessíveis ques­
que as coisas que percebemos fazem-se imediatamente presentes em si mes­ tões de estrutura da linguagem, percepção, tempo em suas várias formas,
mas para nós. Deveria ser tom ada especialmente em conta, no que respeita à memória, antecipação, coisas vividas, matemática, números, causalidade e
enunciação categorial, que ela é construída na percepção. A doutrina da assim por diante. Ele propôs muitas regiões do ser como objetos de análise.
presentação categorial em Husserl, como dada no sexto capítulo d t Investiga­ Husserl, então, é simplificado demais em seu tratam ento dos autores, mas
ções lógicas, foi crucial para a formulação de Heidegger da questão do ser. rico em seu tratam ento dos tópicos especulativos.
Mais ainda, por meio da doutrina da intencionalidade, Husserl está apto Heidegger é o oposto disso. Ele parece interessado em um único proble­
a dizer que nós atualmente intencionamos as coisas que estão ausentes. Não ma, a questão do ser e suas implicações. É verdade que em Ser e tempo ele
é o caso de que sempre só lidamos com presenças imediatas; não é o caso de introduz certo número do que poderia ser tomado como problemas “regio­
que quando nos referimos a algo ausente estamos realmente falando sobre nais”, tais como instrumentalidade e fala e morte, mas todos eles estão su­
um a imagem ou um conceito que temos da coisa. O pensamento humano é bordinados à única questão do ser. Ele não se estende diante de nós em várias
tal que transcende o presente e intenciona o ausente; o ausente, o que não tarefas regionais, vários domínios a ser analisados; ele é filosoficamente um
monomaniaco, sempre no caminho dos primeiros princípios, enquanto
morte de Husserl. Ele também resgatou e protegeu a viúva de Husserl, Malvine,
Husserl move-se para os primeiros princípios e então gasta muito tempo
que foi abrigada num convento em Louvain enquanto a guerra durou. A ação
movendo-se deles e encarnando-os nas várias coisas que experienciamos. Com
de Van Breda levou ao estabelecimento dos Husserl Archives na Universida­
respeito ao conteúdo, Husserl é variegado enquanto Heidegger parece sim­
de de Louvain após a guerra. Os Archives se tornaram um importante centro
plificado demais. internacional de edição e publicação dos escritos de Husserl e para a pesqui­
Com respeito aos autores, contudo, Heidegger é positivamente exube­
sa de seu pensamento. Arquivos afiliados foram mais tarde estabelecidos em
rante em sua variedade. Ele debate em grande detalhe e interpretações sofis­
Cologne, Friburgo, Paris e New York.
ticadas os pré-socráticos, Platão, Aristóteles, pensadores medievais, Leibniz,
Kant, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche, bem como poetas tais como Hölderlin
e Rilke e escritores religiosos como Angelus Silesius e Lutero. Todos esses
A fenomenologia na França
escritores, contudo, são examinados com respeito a como a questão do ser é
levantada neles. Gostaríamos também de mencionar a importância de Hei­
Depois da Alemanha, foi certamente o ramo francês o de maior relevân­
degger para um a nova abordagem da filosofia grega, para a interpretação
cia para o movimento fenomenológico. Emmanuel Lévinas estudou com
dos pré-socráticos, de Platão e de Aristóteles, especialmente na Alemanha e
Husserl e Heidegger nos anos 1920, escreveu um a tese sobre o conceito de
na França durante o rico período dos últimos cem anos.
intuição no pensamento de Husserl, publicada em 1930, e co-traduziu Medi­
Antes de encerrar este exame da fase alemã da fenomenología, devería­ tações cartesianas, que apareceu em 1931.
mos dizer um a palavra sobre Max Scheler. Scheler não pode ser colocado
Jean-Paul Sartre (1905-1980) passou dois anos na Alemanha (1933-35),
claramente dentro do movimento fenomenológico como Husserl e Heideg­
em Berlim e Friburgo. Seus primeiros trabalhos m ostram a forte influência
ger; ele foi um pensador independente que às vezes desenvolveu e comentou
de Husserl, mas transform ada num hum anism o existencialista. De fato,
os temas fenomenológicos, e em outras criticou e distanciou a si dessa forma
muitos dos primeiros trabalhos de Sartre são excelentes análises fenome-
de filosofia. O que lhe faz parecer ser um fenomenólogo é que ele dá atenção
nológicas que desenvolveram temas im portantes em Husserl. Dignos de
a problemas específicos concretos, especialmente problemas humanos tais
menção são, especialmente, A imaginação (1936), “A transcendência do ego”
como religião, simpatia, amor, ódio, emoções e valores morais, e analisa-os
(1936), Esboço de uma teoria das emoções (1939), O imaginário (1940) e O ser e o
em detalhe. Sua afiliação marginal com a fenomenología ajudou a populari­
nada (1943). O que surpreende quem leia esses trabalhos é o quanto Sartre
zar o movimento, mas ele também se moveu livremente fora dele. Após uma
compreendeu o conceito de intencionalidade e viu seu potencial filosófico, e
vida dramática e turbulenta, Scheler morreu em 1928, aos 54 anos.
como efetivamente usou o elemento da ausência como um tema filosófico,
Seria um a exposição suavizada dizer que os acontecimentos políticos e
tanto em suas descrições dos vários tipos de experiência hum ana como em
históricos intrometeram-se no movimento fenomenológico nos anos 1930.
suas análises do ego. A deferência de Sartre por Husserl certamente ajudou
Com a ascensão ao poder dos nacional-socialistas, Heidegger tornou-se en­
muitíssimo a tornar acessível e interessar a um público mais amplo após a
volvido com o partido e agiu e falou conseqüentemente como reitor da Uni­
guerra o pensamento deste.
versidade de Friburgo em 1933. Husserl, em contraste, sofreu muitas indig­
Em particular, Sartre tem descrições excelentes de como realmente per­
nidades e perigos antes de sua morte em 1938. Os acontecimentos entre as
cebemos ou experienciamos o não-ser, a ausência das coisas; a negação não
nações européias levaram a um a profunda separação entre, de um lado, a
é meramente um a característica de nossos juízos, mas é dada na experiência
filosofia alemã e continental e, do outro, o m undo britânico e americano.
intuitiva que precede o juízo. O poder de transformar das várias emoções,
Justamente na deflagração da guerra, o franciscano Hermán Leo Van
bem como o movimento vigoroso e a projeção da imaginação, são descritos
Breda, de Louvain, chegou a Friburgo para estudar fenomenología e, vendo
de um modo que complementa as próprias descrições de Husserl. Sartre fala
a situação ali, agiu para salvar a biblioteca e os materiais escritos por Husserl,
da imaginação, por exemplo, como “percepção renascente” e descreve a cons­
remetendo-os para Louvain no outono de 1938, uns seis meses depois da
ciência pré-reflexiva em grande detalhe. Ele também dá ênfase ao ser agente
(acting self), mostrando a distinção entre possibilidades abstratas e possibili­ leau-Ponty, e talvez os mais duradouros, foram A estrutura do comportamento
dades que estão aí para um agente como a sua própria, aquelas que não (1942) e Fenomenología da percepção (1945). Ambos constituem críticas à psi­
poderiam acontecer sem sua própria presença na situação. Ele descreve a cologia positivista. Merleau-Ponty salienta o pré-reflexivo, o pré-predicativo,
diferença entre facticidade e transcendência e fornece um a análise notável do o perceptual, o temporal, o corpo vivido e o m undo-da-vida. A riqueza e a
determinismo como um a forma de evitar as ansiedades que a liberdade traz. complexidade de suas descrições equiparam-se à qualidade dos trabalhos de
Seu estilo é fluido e engajado. Sartre e permanecem como im portantes realizações fenomenológicas. Mer­
Contudo, Sartre conscientemente incorporou temas fenomenológicos leau-Ponty interessou-se principalmente pelos últimos trabalhos de Husserl
em seu próprio projeto filosófico de humanismo existencial, o qual envolveu e fez uso de materiais inéditos dos Husserl Archives. Talvez pela sua crítica
elementos d.e muitas outras fontes, especialmente Descartes, Hegel e Marx. do positivismo, mas também pela excelência de sua obra, Merleau-Ponty
Ele até criticou Husserl, em O ser e o nada, por um a espécie de timidez filosó­ exerceu um a grande influência nos Estados Unidos durante os anos 1950 e
fica; ele disse que Husserl restringiu-se á análise neutra e evitou o cometi­ 1960. Muitos acharam sua obra mais acessível do que a rigorosa, quase ma­
mento ontológico e existencial (“ele permaneceu medrosamente [craintivement] temática escrita do próprio Husserl.
no nível da descrição funcional”). Acreditamos, incidentalmente, que Sartre Deveríamos mencionar também Paul Ricoeur (1913) como um mem­
interpreta mal Husserl no conceito de noema e da natureza da manifestação bro da ala francesa do movimento fenomenológico. Ele traduziu Idéias I de
quando ele declara que o noema é o mesmo que o lekton estóico e quando ele Husserl, e o comentou extensivamente, e executou um a análise filosófica
afirma que Husserl permaneceu um fenomenalista mais do que um fenome- independente da liberdade humana, da religião, do simbolismo, do mito e da
nólogo, sempre titubeando à beira do abismo do idealismo kantiano. psicanálise. E interessante que seu estudo sobre a liberdade humana, O volun­
O contraste radical de Sartre entre o “em si” e o “para si” negligencia tário e o involuntário, foi m uito mais influenciado por Alexander Pfänder, um
distinções intermediárias que deveriam ser respeitadas, tais como aquelas dos fenomenólogos de Munique.
que ocorrem na consciência animal. Em particular, quando fala do fenôme­
no do nada, le néant, como sendo fundado na consciência humana, ele enfatiza
assim a diferença e a diversidade como para omitir elementos da identidade A fenomenología em outros países
que sempre vêm juntos com esses negativos. Sua descrição do le rien como
permitindo ao ego tornar-se alienado para si mesmo na consciência antecipa A raiz alemã e a ala francesa da fenomenología foram certamente as
a introdução de Derrida da différance e “traços”, mas ambos os pensadores partes principais desse movimento, mas outras partes significativas surgi­
franceses parecem negligenciar a correspondente similaridade e identidade ram em outros países. Nos Estados Unidos, William Ernest Hocking estu­
que Husserl reconheceria nesses fenômenos. Sartre fez uso da fenomenolo­ dou com Husserl por um semestre em 1902, e assim fez Dorion Cairns nos
gía dentro de um a filosofia que não era somente analítica, mas também exor- fins dos anos 1920 e começos dos anos 1930. Cairns escreveu um a tese em
tativa, um tipo de humanismo dramático, e nesses escritos retóricos alguém Harvard sobre Husserl em 1933 e se tornou um soberbo tradutor das obras
sempre enfatiza alguns aspectos das coisas para negligenciar outros. de Husserl. Marvin Färber escreveu um a dissertação sobre Husserl em Buffalo
O desenvolvimento de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) seguiu-se em 1928 e mais tarde escreveu sobre seu pensamento e fundou a revista Phi­
uns poucos anos depois do de Sartre. Merleau-Ponty nunca estudou na Ale­ losophy and Phenomenological Research, mas permaneceu mais um filósofo na­
manha, mas entre outras influências em seus estudos ele foi ajudado na sua turalista do que um fenomenólogo. O principal impacto da fenomenología
compreensão da fenomenología e da psicologia Gestalt nos primeiros anos nos Estados Unidos ocorreu nos anos 1950 e 1960, quando veio a ser estabe­
da década de 1930 por Aron Gurwitsch, que tinha escapado da Alemanha e lecida um a das mais importantes escolas de filosofia nesse país, ainda que
ensinava em Paris antes de ir para os Estados Unidos, onde veio a ser uma ofuscada por outras formas mais nativas e mais anglicanas. No m undo filo­
figura im portante representando a fenomenología na New School for Social sófico norte-americano, a fenomenología desfrutou um a durável mas relati­
Research nos anos 1960 e 1970. Os primeiros e principais escritos de Mer- vamente pequena presença, comparada com a da filosofia analítica em seus
vários estilos. Significativos centros de fenomenología têm estado presentes Guerra ^Mundial. Também Sofia Vanm Rovighi relacionou o pensamento de
em muitas universidades, e diversas associações e jornais dedicados a ela foram Husserl aos temas cie Aristóteles e Tomas de Acjumo. O existencialismo de
estabelecidos. O mais antigo centro, datado dos anos 1950, está localizado Nicola Abbagnano deveria também ser mencionado. Na Polônia, Roman In-
na Gradúate Faculty o f New School for Social Research, onde ensinaram Do- garden, que estudou com Husserl em 1912-1918 e permaneceu em contato
rion Cairns, Aron Gurwitsch e Alfred Schutz. próximo com ele posteriormente, iniciou um ramo do movimento fenome-
A fenomenología nunca foi muito proeminente na Inglaterra, contudo, nológico e escreveu diversos trabalhos fenomenológicos importantes sobre
graças aos esforços de Wolfe Mays em Manchester e seus estudantes Barry estética, ética e metafísica. Ele ensinou em Lwów nos anos 1930 e em Cracó-
Smith, Kevin Mulligan e Peter Simons, um grupo vigoroso de estudiosos foi via após a guerra. Essa tradição foi continuada posteriormente como uma
fundado, há cerca de vinte anos, com a intenção de explorar o período inicial influência parcial na obra de Karol Wojtyla e na obra da escola de tomismo
da fenomenología e m ostrar sua relação com as origens da filosofia analítica de Lublin. Na Checoslováquia, Jan Patocka, estudante e amigo de Husserl,
em Gottlob Frege e outros pensadores da Áustria na primeira metade do foi um forte representante da fenomenologia em Praga e um corajoso defen­
século passado. sor da liberdade civil. Ele morreu em 1977 após ter sido interrogado pela
Esse desenvolvimento na Inglaterra, incidentalmente, teve um a contra­ polícia. A fenomenologia foi influente na Rússia pré-revolucionária. Investi­
parte nos Estados Unidos, um a interpretação de Husserl que é inspirada por gações lógicas foi traduzido para o russo em 1909 e exerceu um a influência
Frege e a filosofia analítica. Está centrada na Califórnia e representada por indireta sobre o estruturalismo e o formalismo na teoria literária através da
escritores como Dagfinn Follesdal, Hubert Dreyfus, Ronald Mclntyre e David obra de Roman Jakobson, que sempre se referiu à teoria das partes e todos de
W oodruff Smith. Vale-se especialmente dos primeiros escritos de Husserl. Husserl como um a doutrina filosófica importante. Gustav Shpet é mencio­
Esses leitores de Husserl da “Costa Oeste” têm como sua antítese um a inter­ nado como um representante da fenomenologia na Rússia naquele tempo,
pretação da “Costa Leste”, situada largamente no corredor Boston-Washing- mas a Primeira Guerra M undial e a Revolução Com unista frustraram qual­
ton, que assume suas posições a partir dos trabalhos lógicos e filosóficos quer desenvolvimento desses começos. Atualmente estão sendo feitos esfor­
tardios de Husserl e não usa Frege e a filosofia analítica como seu ponto de ços para traduzir Husserl para o idioma russo.
partida. Lê Frege à luz de Husserl e não vice-versa. Está expresso nos escritos
de John Brough, Richard Cobb-Stevens, John D rum m ond, James Hart, Ro-
bert Sokolowski e outros. O presente livro está escrito no seu espírito. As Hermenêutica e desconstrução
duas “escolas” diferem especialmente em sua compreensão do noema, do
sentido e da redução fenomenológica. A diferença teórica básica entre eles Após essa visão geográfica do que veio após o período principal da feno­
está em que o grupo da Costa Oeste identifica o sentido e o noema e os menologia, poderíamos mencionar duas outras formas metamórficas que se
pressupõe como mediadores entre a mente e o mundo, enquanto o grupo da seguiram e estão um pouco às margens da fenomenologia — a hermenêutica
Costa Leste distingue o sentido e o noema como conseqüências de dois dife­ e a desconstrução.
rentes tipos de reflexão sobre o objeto intencionado; não os pressupõe como A hermenêutica começou como um movimento especificamente alemão,
mediando a relação intencional da mente ao mundo. J. N. M ohanty desen­ com Friedrich Schleiermacher (1768-1834) e especialmente Willhelm Dilthey
volveu um a interpretação independente de ambos, Husserl e Frege, e tam­ (1833-1911), que foi contemporâneo de Husserl. A hermenêutica ressaltou
bém relacionou a fenomenología à antiga filosofia indiana. originalmente as estruturas de ler e interpretar textos do passado e apresen­
José Ortega y Gasset foi um filósofo independente que tanto represen­ tou seu trabalho como um a filosofia da interpretação bíblica e literária e de
to u quanto criticou Husserl e Heidegger na Espanha. Xavier Zubiri poderia pesquisa histórica. Heidegger expandiu a compreensão de hermenêutica do
ser mencionado como envolvido com a fenomenología. Na Itália, a fenome­ estudo de textos e documentos para a auto-interpretação da existência hu­
nología e o existencialismo foram desenvolvidos em Milão por Antonio Banfi m ana como tal. A pessoa primariamente associada à hermenêutica é, natu­
no período entre as duas guerras mundiais e por Enzo Paci após a Segunda ralmente, Hans-Georg Gadamer, que não foi só um estudioso de Heidegger,
Considerações finais
mas também um douto intérprete de Platão, Aristóteles e textos poéticos.
Ele também foi um verdadeiro Boswell do movimento fenomenológico, apto
A fenomenologia ainda continua, de um modo relativamente menos
a representá-lo para outros países e para as gerações mais jovens; ele se tor­
espetacular, como um a das tradições principais da filosofia. Seus trabalhos
nou um a testem unha independente de suas figuras e acontecimentos prin­
mais importantes continuarão sendo lidos como clássicos, e o tempo dirá
cipais, e um a pessoa cuja congenialidade e exposição vivaz o ajudaram a es­
até quando eles resistirão. Os pensadores da primeira metade do século pas­
tabelecer contatos em todo o mundo. Gadamer foi influenciado por Heideg-
sado certamente ficarão entre as figuras mais significativas da história do
ger, sob cuja orientação estudou em Marburgo, mas menos influenciado por
pensamento, e eles irão inspirar o pensamento filosófico como os melhores
Husserl, com quem tam bém estudou por um tempo em Friburgo. Alguns
escritos do passado têm feito. A força da fenomenologia como um movimen­
conceitos de Husserl são úteis em hermenêutica — os conceitos de significa­
to se evidencia no fato de que ela apresenta-nos não apenas grandes e óbvias
dos ideais, de sedimentação e linguagem, por exemplo —, mas eles desempe­
figuras, mas também um círculo amplo de escritores menores, aqueles que
nham um papel relativamente pequeno no pensamento de Gadamer. E las­
preenchem as possibilidades nos nichos e recantos do estilo fenomenológico
timável que a hermenêutica seja com freqüência tom ada como um a licença
de filosofar.
para o relativismo, um uso que Gadamer poderia certamente contestar. O
Além do mais, um a grande quantidade de trabalhos escolares continua
fato de que pode haver múltiplas interpretações de um texto não destrói a
a ser consumada nessa tradição, tais como a edição de textos (em que Lou-
identidade de um texto, nem exclui leituras totalmente inadequadas e errô­
vain e Cologne se destacam como centros especialmente importantes), co­
neas, daquelas que destroem o texto.
mentários sobre as principais obras e pensadores, e controvérsias sobre o
A desconstrução deveria ser mencionada também num a visão geral do
significado de vários termos e conceitos. Ainda que a edição da obra de Husserl
movimento fenomenológico, se bem que com algum embaraço, ao modo
esteja chegando ao ponto em que alguém pode até dizer “basta”, alguns ma­
em que um a família pode ser forçada a falar de um tio excêntrico cujas
teriais importantes, tais como seus últimos manuscritos sobre a consciência
maneiras engraçadas e fora do com portam ento com um são conhecidas de
do tempo interno, ainda esperam publicação. A edição das conferências de
todos, mas que a gente tenta evitar mencionar num a sociedade cultivada. Os
Heidegger irradiou m uita luz sobre o desenvolvimento de seu pensamento e
escritos iniciais de Jacques Derrida foram traduções e interpretações (inter­
proveu-nos com textos de grande valor filosófico.
pretações altamente questionáveis, decerto) de trabalhos curtos de Husserl,
Uma das grandes deficiências do movimento fenomenológico é sua total
mas logo ele abandonou Husserl e mudou-se para campos filosóficos mais
carência de qualquer filosofia política. Essa é claramente um a área na qual
amplos. A desconstrução é mais fortemente influenciada por figuras como
um suplemento é necessário. Na verdade, alguém pode dizer que a carência
Hegel, Heidegger, Sartre e Jacques Lacan, e num sentido mais profundo por
de discernimento político não foi somente um a catástrofe especulativa, mas
Nietzsche e Freud. Poderíamos reivindicar que Husserl tem um tratam ento
também um a catástrofe prática no caso de Heidegger. Alfred Schütz (1899-
muito mais sutil de ausência e diferença do que Derrida credita a ele, trata­
1959), que ensinou na New School e comentou em parte o pensamento de
mento que reconhece esses fenômenos, mas não cai nos extremos da des­
Husserl, foi mais influenciado por Weber e Scheler e fez um trabalho impor­
construção. Um dos comentários mais apropriados que ouvimos sobre a
tante em filosofia social e sociologia humana, mas também não desenvolveu
desconstrução foi feito num a conferência do teórico da literatura escocesa
realmente um a filosofia política.
Alastair Fowler; ele observou que a desconstrução em doses moderadas pro­
Poderíamos também dizer que a terminologia estabelecida é um a des­
vê um a correção bem-vinda à teoria literária tradicional, a qual pode ter se
vantagem para o movimento fenomenológico. Palavras como “noesis” e “noe-
tornado um pouco meticulosa e racionalista em demasia, mas que nos Esta­
m a”, “redução”, “mundo-da-vida” e “ego transcendental” tendem a se tornar
dos Unidos veio a ser absorvida num a ideologia política e por essa razão
fossilizadas e provocam problemas artificiais. Elas substancializam o que
desenvolvida além de toda proporção.
deveria ser um aspecto do ser e da atividade d a filosofia. A própria denomi­
nação “fenomenologia” é enganosa e grosseira. A tradução da terminologia
para a língua inglesa é ruim, soa pomposa; os escritores ingleses da fenome­
nología deveriam aprender com autores como Jo h n Findlay, Michael
Oakeshott e Gilbert Ryle.
Há im portantes recursos teóricos na fenomenología que permanecem
inexplorados, depósitos minerais, por assim dizer, que esperam para ser esca­
vados. Husserl operou um a ruptura decisiva no pensamento moderno. Ele
m ostrou a possibilidade de evitar o cartesianismo, o conceito lockiano de
consciência como um a esfera fechada; ele restaurou a compreensão da men­ B IB LIO G R A F IA SELETA
te como pública e como presentada às coisas. Ele abriu o caminho para um
realismo e um a ontologia filosófica que pode substituir a primazia da epis­
temología. Muitas dessas possibilidades positivas do pensamento de Husserl
não foram apreciadas porque o poder cartesiano — “la main morte de Des­
cartes” — é muito forte sobre muitos filósofos e estudiosos. Com demasiada
freqüência, tudo em Husserl é reinterpretado de acordo com as m uitas posi­ BERNET, Rudolf; KERN, Iso; MARBACH, Eduard, A n Introduction to Husserlian Pheno­
ções que ele rejeitou. O m odo das idéias, a idéia da consciência isolada ainda menology. Evanston, IL, N orthw estern Unversity Press, 1993. Os autores são estudio­
mantêm muitos de nós cativos, e é m uito difícil, se não impossível, desalojar sos suíços proem inentes que estud aram n a U niversidade de Louvain d u ran te os anos
as pessoas desse modo de pensar, um a vez que ele tenha criado raiz, um a vez 1960. Todos eles têm editado textos de H usserl e escreveram m u ito s trabalhos em
que tenha vindo a ser usado para um certo conjunto de problemas e um fenom enologia. R u d o lf Bernet é atu alm en te D iretor do H usserl Archives de Leuven.
certo modo de raciocinar. Porém, muito permanece na fenomenología para BROUGH, J o h n Barnett, T ran slato r’s in tro d u c tio n ,” in E d m u n d HUSSERL, On the Phe­
nomenology o f the Consciousness o f Internal T im e (1893-1917), D ordrecht, Kluwer, 1991,
aqueles que o desejam. O movimento fenomenológico, com suas origens em
xi-lvii. N essa su a in tro d u ção e em o u tro s ensaios, B rough fornece o m ais claro tra ta ­
Husserl no começo do século passado e sua rica história nos últimos cem m en to em língua inglesa d a d o u trin a fenom enològica d a tem poralidade.
anos, fornece muitos recursos para um a vida filosófica autêntica. COBB-STEVENS, Richard, Husserl a nd A nalytic Philosophy, D ordrecht, Kluwer, 1984. H á
u m a q u antidade de livros, de vários autores, que com p aram a fenom enologia e o
p en sam en to analítico, e esse é u m dos m ais b em sucedidos. E stu d a prim ariam en te as
diferenças entre H usserl e Frege, m as tam bém m o stra com o H usserl resolve proble­
mas que do m in aram a filosofia desde Descartes. O papel d a intuição categorial é
enfatizado.
DILLON, M artin C .,Merleau-Ponty’s Ontology, Bloomington, Indiana University Press, 1988.
DREYFUS, H u b ert L. (ed.), Husserl, Inteyitionality, and Cognitive Science. C am bridge (MA),
MIT, 1982. Essa coleção contém alguns ensaios im p o rta n te s de D agfinn Follesdal
bem com o trabalhos de autores com o Dreyfus, J. N. M ohanty, J o h n Searle e David
W o o d ru ff Sm ith, lidando com intencionalidade e ciência cognitiva.
D R U M M O N D , Jo h n J., Husserlian Intentionality and N on-foundational Realism: N oem a and
Object. D ordrecht, Kluwer, 1990. Esse volum e é u m a co m p leta e sistem ática avaliação
da interpretação fregeana de Husserl. A presenta a critica d a “C osta Leste” da form a
de fenom enologia d a “C osta O este”, tra ta n d o especialm ente com os tem as do noem a,
sentido e redução.
ELVETON, R. O. (ed. e trad.), The Phenomenology o f Husserl: Selected Critical Readings. Chi­
cago, Q uadrangle, 1970. Seis ensaios clássicos, escritos entre 1930 e ljJ62. D e especial
im po rtância são os ensaios de Eugen Fink, T he phenom enological philosophy o f
E d m u n d H usserl a n d contem porary criticism, 73-147; e o de W alter Biemel, The d a linguagem e pensam ento indiano. Esse livro descreve a n atu reza d a fenom enolo-
decisive phases in the developm ent o f H usserl’s philosophy”, 148-173. gia transcendental, usando categorias e tem as familiares aos filósofos analíticos.
EMBREE, Lester et al. (eds.), Encyclopedia o f Phenomenology. Boston, Kluwer, 1997. Artigos ______ ; McKENNA, Richard (eds.), Husserl’s Phenomenology: A Textbook. L anham (MD),
nessa enciclopédia tra ta m os conceitos principais da fenom enología, desenvolvimen­ University Press o f America, 1989. Ensaios que in tro duzem vários aspectos do p ensa­
tos em vários países, principais autores e im p o rtan tes novas áreas de controvérsia, m ento de Husserl.
tais com o linguagem , inteligência artificial, ciência cognitiva e ecologia. E stá m uito N A TA N SO N , M aurice, E d m u n d Husserl: Philosopher o f In fin ite Tasks. E v an sto n (IL),
bem organizada e os artigos são escritos po r estudiosos reconhecidos. Essa obra, pro ­ N o rthw estern University Press, 1974. Esse volum e venceu u m American Book Award
vavelmente, perm anecerá p or m uitos anos com o a mais autorizada obra de referência em 1974. E u m a exposição clara e viva do p ensam ento de Husserl.
sobre fenom enología. OTT, Hugo, M artin Heidegger: A Political Life, N ew York, Basic Books, 1993. O a u to r dessa
GADAMER, H ans-Georg. “The Phenom enological M ovem ent”. Em sua Philosophical Her­ biografia é professor de h istória n a Universidade de Friburgo. O livro é u m a acurada
meneutics, Berkeley, University o f California Press, 1976, 130-181. U m a revisão pesso­ e desapaixonada biografia de Heidegger. A borda as controvérsias políticas nas quais
al dos tem as essenciais n a história d a fenom enología. Fleidegger esteve envolvido.
G U IG N O N , Charles (ed.), The Cambridge Companion to Heidegger. Cam bridge, Cam bridge PÕGGELER, O tto, M artin Heidegger’s Path o f Thinking, A tlantic H ighlands (NJ), H um anities,
University Press, 1993. Os livros da série “Cam bridge C o m p an io n ” são coleções de 1987. U m a in tro d u ç ão a Heidegger p o r um de seus in térpretes m ais autorizados.
aproxim adam ente dez ensaios escritos recentem ente sobre u m dado filósofo. Cada SEPP, H ans Reiner (ed.), E dm und Husserl und die phdnomenologishe Bewegung. Zeugnisse in
volum e tem u m ensaio in tro d u tó rio do editor que apresenta u m a visão geral do pen­ T ext und Bild. Freiburg, Karl Alber, 1988. Essa ob ra foi elaborada com o u m catálogo
sam ento do filósofo e fornece u m a extensiva bibliografia. p ara aco m p an h ar u m a exibição que com em oro u o qüinquagésim o aniversário do
H AM M ON D , Michael; H OW O RTH , Jane; KEAT, Russel, Understanding Phenomenology. Husserl Archives. O livro con tém m u itas fotos de pessoas e lugares, bem com o im a­
Oxford, Blackwell Publisher, 1991. gens de d o cu m entos relacionados n ão som ente a H usserl e su a vida, m as a outras
HOWELLS, C hristina (ed.), The Cambridge Companion to Sartre. Cam bridge, C am bridge pessoas e desenvolvim entos d a fenom enologia. Inclui rem iniscências de Hans-G eorg
University Press, 1992. G adam er, E m m anuel Lévinas, H erbert Spiegelberg e outros, cinco ensaios sobre o
KISIEL, T heod ore, The Genesis o f Heidegger's “Being and T im e”, Berkeley, University o f m ovim ento fenom enológico, esboços biográficos de quase noventa pessoas associa­
California Press, 1993. Explica nos m ínim os detalhes as circunstâncias históricas, das com o m ovim ento, u m a lin h a de tem po histórica do período de 1858-1928 (apre­
interesses pessoais e desenvolvim entos intelectuais que ajudaram a configurar a p rin ­ sen tan d o eventos paralelos aos eventos da fenom enologia), bibliografias dos princi­
cipal publicação de Heidegger, bem com o to d a a su a filosofia. pais trabalhos da fenom enologia e suas traduções, e u m a bibliografia de fontes se­
KOCKELMANS, Joseph J. E dm und H usserl’s Phenomenology. West Lafayette (IN), Purdue cundárias escolhidas.
University Press, 1994. SMITH, Barry; W OODRUFF-SM ITH, D avid (eds.), The Cambridge Companion to Husserl.
LANGIULLI, N ino (ed.), European Existentialism, New Brunswick (NJ), T ransaction, 1997. C a m b rid g e , C a m b rid g e U n iv ersity Press, 1995. Esse v o lu m e d o “C a m b rid g e
Essa é a terceira edição de u m livro que apareceu em 1971, sob o título The Existentialist C o m p an io n ” contém ensaios de im p o rta n te s com entadores britânicos e am ericanos
Tradition. C ontém seleções de autores que vão desde Kierkegaard a Camus. Além dos de Husserl. A in tro d u ção exam ina a filosofia de H usserl e esboça várias in terp reta­
principais autores nessa tradição, o livro con tém escritos de O rtega y Gasset, Abbag- ções de seu pensam ento. O s ensaios abrangem o desenvolvim ento da filosofia de
nano, Buber e Marcel. As seleções são valiosas e incom uns, e as introduções, escritas H usserl, a perspectiva fenom enológíca, linguagem , conhecim ento, percepção, idea­
po r vários estudiosos, são m u ito úteis. lismo, m ente e corpo, senso com um , m atem ática e lógica d a parte-todo.
M acQUARRÍE, John, Existentialism. Baltimore, Penguin, 1962. SOKOLOWSKY, Robert, Husserlian Meditations: How Words T’resent Things. Evanston (IL),
MADISON; Gary Brent, The Phenomenology ofMerleau-Ponty. Athens, O hio University Press, N o rthw estern University Press, 1974. Um estudo dos principais conceitos do pensa­
1973. m ento de Husserl, com referências a autores com o Straw son e Austin.
MANSER, Anthony. Sartre: A Philosophical Study. Oxford, O xford university Press, 1966. _______ , Pictures, Quotations, and Distinctions: Fourteen Essays in Phenomenology. N otre D am e
McINTYRE, Ronald; W OODRUFF-SM ITH, David, Husserl and Intentionality: A Study o f (IN), University o f N otre D am e Press, 1992. U m a coleção de ensaios descrevendo fe­
M ind, M eaning and Language. Boston, Reidel, 1982. Esse é o mais abrangente estudo nôm enos tais com o form ação de imagens, citação, fazer distinções, medição, referên­
d a filosofia de H usserl desde o p o n to de vista fregeano e analítico. cia, tem poralidade e ação moral. Os ensaios te n tam esclarecer filosoficam ente coisas
McKENNA, W illiam R.; e EVANS, J. Claude (eds.), Derrida and Phenomenology. D ordrecht, que são parte e parcela da condição hum ana.
Kluwer, 1995. U m a revisão d a relação entre fenom enología e desconstrução. SPIEGELBERG, H erbert, The Phenomenological M ovem ent. Terceira edição, revisada e a m ­
MOHANTY, J. N., Transcendental Phenomenlogy: A n Analytic Account. New York, Blackwell pliada, com Karl SCHUHM AN, The Hague, N ijh o ff 1982. Essa é a história clássica
Publisher, 1989. M o h a n ty é a u to r de m u ito s trabalhos em fenom enología, filosofía da fenom enologia. As duas prim eiras edições (que consistiam de dois volumes) fo-
ram escritas por H erbert Spiegelberg; a terceira edição (em volum e único) foi escrita
com a colaboração de Karl Schuhm an. O livro tra ta em grandes detalhes o desenvol­
vim ento em vários países, com am pla cob ertura de to das as figuras menores.
STRÕKER, Elisabeth, H usserl’s Transcendental Phenomenology, Stanford, S tanford Universi­
ty Press, 1993. A a u to ra foi diretora do H usserl Archives de Colônia p o r m uitos anos.
Ela é especialista não só em fenom enologia, mas tam bém n a filosofia da ciência.
WARNKE, Geórgia, Gadamer: Hermeneutics, Tradition, and Reason. Stanford, S tanfo rd U ni­
versity Press, 1987.
WILLARD, Dallas, Logic and the Objectivity o f Knowledge. Athens, University o f O hio Press, ÍNDICE REMISSIVO
1984. U m a exposição clara e precisa d a o bra inicial de Husserl, com u m estu do com ­
pleto dos principais tem as de Investigações Lógicas.

A c
adequação n a análise fenom enològica, 66, 67 Cairns, D orion, 234
alm a, 35, 53 categorialidade, 121, 228
alucinações, 23, 24 cérebro, 18,19, 3 4 ,6 6 ,7 6 ,8 5 ,1 1 8 ,1 2 4 -1 2 7 ,1 5 8 ,
anim ais, 2 2 ,2 3 ,9 6 ,1 0 0 ,1 1 9 ,1 2 0 ,1 3 1 ,1 4 2 ,1 6 9 , 1 7 4 ,2 1 8 ,2 1 9
196, 221 ciência, 60-63, 67, 68,71, 72, 109, 114,115,124,
apofàntica, 110, 115,198 126, 132, 138, 157-160, 162, 163, 167, 177,
178, 197, 209, 214, 216, 221, 222, 227
Aristóteles, 31, 53, 62, 72, 166, 205, 235
citação, 112, 139, 204
arqueologia, 178, 183
citacional, 112
Arquivos de Husserl, 224, 2 3 1,237, 238
coerência, 181-183, 185
arrep en d im en to , 45
com binações, 180
a titu d e fenom enològica, 13, 51, 54, 56-60, 62-
67, 69, 8 5,133, 1 3 4 ,1 4 3 ,2 0 4 ,2 0 5 ,2 0 7 conceitos, 13, 14, 18, 23, 45, 106, 107,109, 115,
128, 162, 198, 213, 228, 236, 237
a titu d e n atu ral, 13, 51, 54, 56-61, 63, 64-68, 71-
73, 84, 85, 97, 113, 133, 134, 166, 178, 179, concreto, 33, 5 3 ,131
193, 1 96-198,201-208,211,220-222 consciência d o tem po interno, 142-145,150-156,
ausência, 12, 1 3 ,2 6 ,2 9 , 3 1 ,42-49,55, 67,75-77, 224, 237
84, 85, 89, 91, 108, 113, 120, 132, 134, 143, consistência, 114, 117, 181-183, 185
147-150, 153-155, 159, 164, 165, 176, 177, constituição, 10, 103, 104, 118, 126, 145, 217,
1 8 7 ,2 1 6 ,2 2 8 , 2 2 9 ,2 3 1 ,2 3 6 218
constituição genética, 104
corporalidade, 135-138
B crença, 54-57,63,6 4 ,7 2 ,8 0 -8 2 ,9 7 ,1 1 0 ,1 1 6 ,1 3 3 ,
174, 175,200-202, 2 0 5 ,2 1 1 ,2 2 7
Beckett, Sam uel, 19, 20
beleza, 184-186
biologism o, 124, 125 D
B rentano, Franz, 219, 223, 225 deliberação, 82, 83, 118, 138, 173
bricolage, 12 Derrida, Jacques, 221, 238
ÍNDICE REMISSIVO

Descartes, René, 2 9 ,3 1 ,6 3 ,6 4 ,7 1 ,1 0 9 ,1 5 7 ,1 6 0 , 1S5, 163, 167, 173, 178, 179, 182, 191, 193,
Ingarden, R om an, 225, 235 m em ória, 13, 43, 49, 66, 75-85, 87, 96, 99, 103,
175, 207, 211, 214, 226, 229, 232, 238 195, 197, 198, 201-209, 211, 213-221, 223-
227, 229, 230, 232-235, 237-239 intencionalidade, 10,12,1 4 ,1 7 -2 2 ,2 4 ,2 8 ,2 9 ,4 4 , 105, 114, 121, 134, 137, 142, 146-148^ 15o’
desconstrução, 235, 236
4 5 ,4 8 ,4 9 ,5 2 -5 4 ,5 6 ,5 8 -6 0 ,6 2 ,6 3 ,6 8 ,6 9 ,7 5 - 151, 154, 162, 195,203, 229
desinteresse em filosofia, 202 filosofia analítica, 233, 234
78, 80, 81, 87-92, 94, 99, 100-102, 104, 105, M erleau-Ponty, M aurice, 10, 11, 213, 232, 233
dúvida, 54, 57, 61, 63, 64, 80, 202 filosofia medieval, 220
107, 111-113, 115, 119, 121, 129, 138, 143, m etáfora, 59, 177, 182, 221
filosofia política, 1 5 ,2 11,213,214,216-218,237 150, 154, 157, 159, 160, 171, 189, 194-196,
m étodo, 63, 158, 161, 175, 176, 178, 212, 214,
física, 22, 32, 42, 61, 62, 67, 139, 158, 161, 162, 202, 203,205, 216, 221, 223,228, 229, 231 221,2 2 6
E 169 intenções significativas, 47, 89-92, 94, 96, 100
m odernidade, 7 ,1 5 ,1 7 5 ,2 1 1 ,2 1 3 -2 1 6 ,2 1 8 ,2 1 9 ,
educação, 182, 217, 219 Frege, G ottlob, 234 intenções vazias, 2 6 ,4 2 -4 4 ,4 6 ,4 7 ,4 9 ,5 2 ,6 9 ,8 9 , 221,222
ego, 1 4 ,5 3 ,5 5 ,5 6 , 6 7 ,8 0 ,8 2 ,1 2 1 ,1 2 3 -1 2 6 ,1 2 8 - fu n d a m e n to , 21, 65, 162 9 1 ,2 0 2 M ohanty, J. N., 234
139, 144, 163, 166, 167, 173, 174, 187, 216, intersubjetividade, 1 4 ,4 0 ,4 9 ,1 5 7 ,1 6 3 ,1 6 5 ,1 6 6 m undo, 10, 14, 19-24, 26, 34, 42, 45, 51-62, 64,
2 3 1 ,2 3 2 ,2 3 7 intuição, 1 0 ,1 4 ,4 2 ,4 4 ,4 8 ,9 0 ,9 1 ,1 0 1 ,1 0 6 ,1 8 9 - 65, 68-73, 76, 78, 80, 81, 84, 87, 90, 96, 97,
ego em pírico, 123, 129, 138 G 1 9 6 ,2 1 4 ,2 1 5 ,2 3 1 106, 107, 109-111, 120, 121, 123, 124, 129,
ego transcendental, 67, 121, 124, 126, 128-138, G adam er, Hans-G eorg, 225, 235, 236 in tu ição categorial, 10, 101, 106 131-137, 139, 141-145, 147, 149, 151, 155,
144, 163, 166, 167, 174, 187, 216, 237 G urw itsch, Aron, 232, 234 in tu ição eidètica, 10, 14, 189-191, 193-195, 196 157-165, 172, 174, 176-178, 192, 193, 195,
Einstein, Albert, 192 197, 199-202, 204, 205, 207, 208, 213, 216,
218,221, 225, 228, 230,23 3 ,2 3 4 ,2 3 6 , 237
Eliot, T. S., 152
epistem ologia, 15, 70, 211,2 1 3 , 214, 218, 238 H J m undo-da-vida, 14, 157-159

Hegel, G. W. F., 213, 214, 230, 232, 236 Jam es, William, 7, 147, 170, 234
epoché, 58, 69, 72
escola de fenom enologia de G öttingen, 224,225 Heidegger, M artin, 10,1 1 ,5 9 ,1 4 9 ,1 5 5 ,1 7 2 ,2 1 5 , N
escola de fenom enologia de M unique, 224, 225 223-231,234-237 κ neutralização, 58, 63-65, 80
esfera d a si-m esm idade, 165, 166 herm enêutica, 11, 177, 216, 227, 235, 236 N ew ton, Isaac, 157, 160, 177, 192, 195
Kant, Im m anuel, 109, 128, 214, 220, 223, 226,
essências, 126, 162, 189, 190, 195 H obbes, T hom as, 36, 195, 207, 211-214, 218 229, 230 N icklaus, Jack, 47, 48
E stado m od ern o , 212-214, 217 H ocking, W illiam E fnest, 233 N ietzsche, Friedrich, 2 1 5 ,2 3 0 , 236
evento histórico, 37, 38 Husserl, E dm tm d, 10-12, 31, 46, 61, 152, 155, noem a, 68-70,1 1 5 ,1 7 1 , 203-206, 2 0 9 ,2 3 2 ,2 3 4 ,
166 ,2 1 5 ,2 1 9 , 223-238 L
237
evidência, 10, 14, 15, 19, 48, 58, 65, 71-73, 91,
Lévinas, E m m anuel, 11, 231, 241 noesis, 68-70
121, 125, 129, 139, 156, 167, 170-178, 182-
185, 190, 193, 197-199, 202, 215, 216, 221, linguagem , 33, 36, 37, 49, 53, 67, 73, 95, 100,
228
I 102, 105, 107, 109, 113, 115, 118-121, 125,
129, 130, 1 5 4 ,1 5 5 ,1 5 8 , 165, 169, 177, 178,
O
experiência pré-predicativa, 104, 105, 184 idealização, 159-162
181, 184,189, 1 9 7 ,2 0 0 ,2 2 1 ,2 2 9 ,2 3 6 O akeshott, M ichael, 213, 238
expressão, 19, 37, 66, 218 identidade, 12-14, 27-29, 31, 34, 36-42, 44, 46,
47, 49, 53, 55, 59, 62, 66, 67, 75-82, 88, 91, lògica, 3 4 ,55, 105, 114, 115, 117, 125, 138, 154, objetos categoriais, 14, 99, 102-104, 106, 113,
95 ,9 6 ,1 0 0,102-106,123, 134,137-139,141, 156, 162,164, 174, 179, 182, 1 8 7 ,2 0 7 ,2 2 1 , 114, 116-121,134, 139,170, 207
143, 150-153, 155, 159, 161-164, 167-169, 224 objetos estéticos, 38, 49
F
171, 186, 189, 190, 216, 232, 236 ocultação, 40, 176-179, 186, 187
Faber, M arvin, 233
ilusões, 23, 24, 54
fenom enologia, 10, 11-15, 17, 1 8 ,2 1 -2 5 ,2 9 ,3 1 , Μ op in ião pública, 116, 118
im agem , 20, 44,45, 48, 76,78, 79,84, 85, 88, 89, O rtega y Gasset, José, 234
35, 40, 42, 44, 48, 49, 51, 58, 60, 62-65, 68- m anifestações, 37, 39-41, 44, 48, 57, 59-61, 66,
92-94, 107, 115, 131, 147, 207, 224, 228
73, 78, 90, 94, 99, 100, 103, 104, 109, 111, 71,75-77,95-97,101,123,134,185-187,194,
im aginação, 13, 17, 4 0 ,4 9 , 75, 78, 80-84, 87,88,
114, 115, 119, 120, 123, 125-129, 138, 140-
95,96, 99, 105,11 3 ,1 1 4 ,1 2 1 , 134, 151,154,
228 P
143, 145, 147, 154, 155, 158, 159, 162, 163, M aquiavel, 71, 211-214, 217
165, 168, 171, 172, 179, 180, 184, 189, 196- 160, 191-193, 195, 196, 203, 231 palavras, 1 0 ,1 1 ,1 3 , 14, 22-24, 2 7 ,4 4 ,4 5 , 53, 67,
M arx, Karl, 36, 213, 232 68, 70, 87-96, 100, 106-108, 115, 117-120,
198, 204, 206, 208, 211, 213-216, 218-226, im precisão, 163
230-235, 237-238 m atem ática, 9 , 1 5 ,4 3 ,4 7 ,5 8 ,5 9 ,6 8 ,7 2 ,1 1 8 ,1 3 8 , 130, 139, 142, 169, 171, 173,179, 180,182,
indexações, 129, 132-134, 138-140, 200, 208,
154, 157-159, 161, 162, 167, 169, 170,216, 1 9 4 ,1 9 9 ,2 0 6 ,2 2 9 ,2 3 7
filosofia, 9-15, 18, 20, 22, 31, 34, 45, 49, 58, 60, 2 0 9,216
2 2 1 ,2 2 4 ,2 2 9 ,2 3 3 p artes e todos, 1 2 ,1 3 ,3 1 ,3 2 ,3 4 -3 6 ,7 5 ,1 2 1 ,1 3 7 ,
61, 63, 65-68, 70-73, 90, 99, 100, 109, 134, indicações, 94
Mays, Wolfe, 234 1 4 3 ,1 5 2 ,2 3 5
Patocka, Jan, 235 religião, 40, 182, 226, 227, 230, 233 tem poralidade, 14, 141-145, 147-149, 151, 152,
percepção, 13, 21, 25-29, 33, 34, 36, 47-49, 56, retenção, 58, 147-149, 152-154 154, 165,227
Van Breda, H e rm án Leo, 230, 231
66, 75-81, 83-85, 87-93,95, 96, 99-103, 105, revelação, 12, 15, 66, 69, 172, 173, 218-220 teoria d a correspondência, 111
variação im aginativa, 191-193, 196
106, 114, 119-121, 125, 132, 134-136, 142, teo ria dos conjuntos, 55
Ricoeur, Paul, 11, 233 verdade, 12-15, 19,21, 23, 38, 44, 47, 52, 5 6 ,58,
146, 147, 151, 154, 160, 162, 170, 173-175, tipicalidade, 190
Rota, Gian-Carlo, 9, 10 61,67,70-7 3 ,9 5 -9 7 ,1 0 0 ,1 0 2 ,1 0 3 ,1 0 5 ,1 0 8 *
184, 191, 195, 196, 203-205, 216, 220, 228,
Tocqueville, Alexis de, 213 109, 111-116, 119, 121, 124-126, 128-136,
229, 231,2 3 3
to m ism o , 15, 219, 220, 235 139, 146, 152, 156-160, 166-185, 187, 193,
perfis, 25, 27-29, 34, 36, 37, 39, 40, 48, 52, 59,
66, 75, 78, 93, 95, 100, 103, 105-107, 112,
s transcendental, 51, 67-71,73, 7 6 ,8 0 ,8 4 , 90,97,
195, 197-204, 206-209, 211, 213-221, 228,
Sartre, Jean-Paul, 11, 213, 231-233, 236 229, 237
161, 163, 189 113, 121, 123, 124, 126, 128-138, 144, 145,
Scheler, Max, 224, 225, 230, 237 163, 164, 166, 167, 174, 187, 196-198, 203,
Platão, 10, 11,31, 1 5 5 ,2 3 0 ,2 3 6
Plotino, 155 Schutz, Alfred, 234 2 1 6 ,2 2 0 ,2 2 4 ,2 2 5 , 237 w
sedim entação, 178, 194, 202 transcendentales, 67, 68, 73, 197 Wojtyla, Karol, 235
p ô r e ntre colchetes o u e ntre parênteses, 58, 59,
64, 97, 203, 205, 207, 208 sentença, 26, 37, 39,88, 119,120, 129,130, 179,
pós-m odernidade, 15, 211, 215, 219, 221, 222 180
P ound, Ezra, 21 sentido, 10, 12, 14, 15, 17, 21, 28, 36, 37, 40,41,
pred icam en to egocêntrico, 1 8 ,1 9 ,2 1 ,2 2 ,3 1 ,4 9 , 45-48, 55, 60, 63, 67-71, 77, 78, 81-83, 85,
88-92, 95, 96, 99, 103, 110, 112-116, 118,
55, 100,218
120, 127-133, 135-137, 146-148, 151, 155,
presença, 12, 13, 26, 27, 29, 31, 37, 40, 42-49, 52,
162, 165, 166, 168, 169, 171-174, 177, 178,
5 5 ,6 5 ,6 7 ,7 1 ,7 5 ,8 4 ,8 5 ,8 8 ,8 9 ,9 1 ,9 2 ,9 4 ,9 5 ,
180, 187, 194, 198-200, 203-207, 209, 217,
108, 110, 120, 121, 128, 134, 143, 146, 147,
2 2 2 ,2 3 4 ,2 3 6
149, 153-155, 159, 163, 170, 171, 173, 174,
176-178,187,190,208,216,219,228,232,233 si, 9, 14, 19-21, 23, 24, 32-34, 39, 40, 42, 44, 48,
53, 55-63, 65-67, 70, 72, 73, 75, 78-80, 82-
presença e ausência, 1 2 ,1 3 ,2 6 ,3 1 ,4 2 -4 6 ,4 8 ,4 9 ,
8 4 ,8 9 ,9 7 ,1 0 2 -1 0 4 ,1 1 4 ,1 1 5 ,1 1 7 ,1 1 9 ,1 2 1 ,
67, 75, 8 4 ,9 1 , 1 3 4 ,1 4 3 ,1 5 5 ,1 5 9 ,1 7 6 ,2 1 6
123-127, 130-135, 137-140, 142-148, 150-
presente vivo, 145-150 153, 156, 162-167, 172-174, 179, 181, 184-
proposições, 1 3 ,14,21,41,99,108-111,114,115, 186, 190, 197, 198, 203, 205, 211, 213-215,
117, 121, 127, 168, 170, 174, 179-184, 198, 218, 220-222,227, 228, 230, 232
2 0 2 ,2 0 6 ,2 0 8 significado, 44, 67, 99, 107-110, 112, 115-117,
protensão, 147, 149-151, 154-156, 247 125, 126, 168, 169, 171, 179-184, 206, 208,
psicologism o, 125-127, 225 209, 237
sím bolos, 13, 14, 24, 37, 87, 9 4,95
R sincategorem as, 119, 120, 179, 180
sintaxe, 8 9 ,9 5 ,9 9 ,1 0 0 , 102, 105,106, 114, 119-
racionalism o, 71, 175, 179, 207, 214, 215,221
121, 125, 129, 154, 179-181, 183, 184, 187,
razão, 12, 14, 15, 19, 29, 37, 42, 44, 45, 69, 71,
2 0 0 ,208
7 2 ,8 9 ,1 0 2 ,1 1 7 ,1 2 1 ,1 2 3 ,1 2 5 ,1 2 8 ,1 3 0 ,1 3 1 ,
soberania, 212, 213, 217, 218
133, 153, 164, 167-169, 172, 174, 176, 180,
184, 185, 187, 193, 196-198, 200, 203, 209, Sócrates, 195
2 1 1 ,2 1 3 -2 2 0 ,2 3 6 Sofistas, 11, 193
realism o, 29, 225, 228, 229, 238 sonhos, 82, 84
realização, 1 0 0 ,1 0 2 -104,171,172,174,178,193, Strauss, Leo, 213
2 0 0 ,2 1 5 ,2 1 6 ,2 2 0 Ströker, Elisabeth, 224
reconhecim ento, 29, 45, 62, 137, 165
redução, 58, 60-65, 67-71, 73, 80, 145, 163, 166,
196, 1 9 8 ,2 0 1 ,2 0 3 ,2 0 4 , 218, 2 2 5 ,2 3 4 ,2 3 7 T
reflexão proposicional, 14, 110-113, 198-209 tem po interno, 14, 142-145, 150-156, 224, 237
S diçô es L o y o la

Editoração, Impressão e Acabamento


Rua 1822, n. 347 · Ipiranga
04216-000 SÃO PAULO, SP
Tel.: (0**11)6914-1922

Você também pode gostar