da Filosofia Política /1
A LIBERDADE
DOS ANTIGOS
Direcção de ALAIN RENAUT
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INSTITUTO
PIAGET
I
Prólogo
por Alain Renaut
1 Ela data de facto da reedição por M. Gauchet dos principais opúsculos políticos de
Constant, sob o título: De la liberte chez les Modernes, LGF-Livre de Poche-Pluriel,
1980, republicado em 1997, Gallimard, Folio, sob o título Écrits politiques. O contexto
dessa redescoberta e a sua importância para a discussão interior à filosofia política
francesa são analisados aqui mesmo por Pierre-Henri Tavoillot, tomo rv, cap. iii
«Constant contre Rousseau».
24 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
Thomas sur le droit et la politique, Paris, PUF, 1987. As duas principais obras de
A. MacIntyre estão hoje disponíveis em francês: Après la vertu (1981), tradução de
L. Bury, Paris, PUF, 1997; Quelle justice? Quelle rationalité? (1988), tradução de
M. Vignaux d'Hollande, Paris, PUF, 1993.
28 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
por um outro corpo que, pela sua parte, tendia para o dele:
em virtude disto o movimento de um corpo assim expulso
desta maneira do seu lugar cessa no momento em que re
gressou a ele.
4 Sobre essa solidariedade, cf. L. Strauss, Droit naturel et histoire, p. 20: «O direito
natural, na sua forma clássica, está ligado a uma perspectiva teleológica do universo.»
5 Sobre a definição do direito como uma ciência da partilha, podemos reportar-nos
antes de mais aos trabalhos de M. Villey, por exemplo: «Une définition du droit», in
Seize essais de philosophie du droit, Paris, Dalloz, 1969; ver também L. Strauss, op. cit.,
pp. 161 e segs.
30 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
essência tão mutável como pode ser mutável a natureza na sua sub
missão ao movimento. Era nesse sentido que M. Villey, por exemplo,
não hesitava em atribuir a Aristóteles e a São Tomás uma forma de
«relativismo» jurídico-político que exprime bem, na Política, o que
tem de gradativo e de diferenciado a resposta à questão do «melhor
regime» — na qual seria preciso ver, relativamente às respostas mo
dernas, uma superioridade muito profunda do direito natural clás
sico, que sabia «não [ser] feito de máximas gerais abstractas, mas de
relações jurídicas concretas, apropriadas às circunstâncias, próxi
mas das necessidades da prática» (Questions de saint Thomas sur le
droit et la politique, p. 148).
Caberá aos estudos reunidos na primeira das duas secções deste
volume consagrado à «liberdade dos Antigos» confirmar, mostrar as
gradações ou desmentir, cada um à sua maneira e segundo as con
vicções próprias do seu autor, semelhante apresentação dos méritos
susceptíveis de serem atribuídos à tematização grega, e em especial
aristotélica, da experiência política. Não se disporia, no entanto, dos
meios indispensáveis para medir o que se joga nesta discussão do
momento grego se não se integrassem nos temas a debater a conside
ração das transformações que tinha sofrido, na Grécia do século que
precedeu o nascimento da filosofia política, a representação do di
reito.
7 Para uma análise precisa desta solução, ver nomeadamente P. Aubenque, «La loi
chez Aristote», Archives de philosophie du droit, 1980.
PRÓLOGO 35
8 Sabe-se que esta questão da escravatura, que continua a dividir os leitores de Aristó
direto natural ó íe T t " f medida “ “ ™ Aristóteles, o teles (segundo uma clivagem que reproduz de perto a dos Antigos e dos Modernos),
atreito natural e descoberto na natureza, no seio da qual se sunõé a é discutida no livro i da Política. Certamente Aristóteles não exclui a eventualidade
de um desaparecimento da escravatura tornado possível pela mecanização da
Z to te r ís ld ,e nlre0 8 h 0 m C T S A u a l d a d e Z a é
turais) teria sido impossível a uma filosofia assim perguntar-se se a produção («se os teares tecessem sozinhos [...], os senhores não teriam necessidade
de escravos»), mas na ausência dessa mecanização de modo algum condena essa
risrir adreirrHfUd Ça° ^ mstândas jurídico-políticas não é vir a cor prática e justifica-a, pelo contrário, pelo seu enraizamento em desigualdades naturais
o ane s e Í ^ e ^ d n° m^ - ^ transcendente. Nesse sentido, em virtude das quais alguns são feitos para comandar e outros para obedecer: a única
que se apresenta derradeiramente, em Aristóteles, como a aceitacão reserva de Aristóteles aplica-se na realidade contra as aberrações de facto, que fazem
df dispositivo tão inaceitável para nós como o da eL ravatoa com que, na cidade tal como ela é, certos seres cuja natureza os destina para a
liberdade sejam reduzidos à escravatura — reserva que visa, portanto, de modo
ítístórico%a ^Ttum inaS d°m mbra P a t a d a , saída do contexto
tonco e cultural, vmdo ensombrar do exterior um empreendimento algum o princípio da escravatura, mas, se assim se pode dizer, os erros e as imperfei
ções contingentes que por vezes acompanham a aplicação deste.
38 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
A política
entre arte e sabedoria
por Pierre-H enri Tavoillot
1 Cf. sobre este ponto P. Hadot, Qu'est-ce que la philosophie antique?, Paris, Gallimard,
«Folio essais», 1995.
2 Como observa Séneca (De tranquillitate animi, 1 ,10): «Resolvi seguir a máscula ener
gia das nossas máximas e imiscuir-me na vida pública; decido procurar as honras e os
fáscios, não, decerto, porque a púrpura ou as varas do lictor me seduzam, mas para
estar em situação de melhor servir os meus amigos e os que me são próximos e
todos os meus concidadãos, e por fim a humanidade inteira: com um ardor de no
viço dedico-me a seguir Zenão, Cleanto, Crisipo, dos quais nenhum, para dizer a
verdade, tomou parte nos assuntos públicos, mas todos convidaram os seus discí
pulos a fazê-lo.»
3 De Otio, III, 2.
A POLÍTICA ENTRE ARTE E SABEDORIA 45
I
Capítulo 1
Platão
por A n d ré Laks
10 Ver C. Meier, La Naissance de la politique, Paris, Gallimard, 1995. Para dar uma ordem
de grandeza, situa-se à volta de 20 000 o número de cidadãos atenienses no século
iv. Devia ter crescido consideravelmente desde o século vi. A cidade platónica das
Leis, com os seus 5040 proprietários, contará cerca de metade.
11 P. Lévêques e P. Vidal-Naquet, Clisthène VAihénien, Paris, Les Belles Lettres, 1964.
12 Ver, neste volume o capítulo que lhes é consagrado.
58 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
13 Ver infra, pp. 91 e segs., e A. Delatte, Essai sur la politique pythagoricienne, Liège-Paris,
éd. Champion, 1922.
14 A expressão convencionada, tirada evidentemente da célebre passagem citada supra
p. 54, não é inteiramente adequada, primeiro porque não sugere que as mulheres
tenham tanto direito a reinar como os homens, e mais ainda porque confunde duas
situações claramente distinguidas por Platão na República. Na cidade realizada, os
filósofos, no plural, exercem à vez, forçados e constrangidos, até porque não po
dem filosofar durante esse tempo, a magistratura suprema: não se trata de uma
monarquia no sentido usual do termo (o Político é mais ambíguo a este respeito,
porque fala mais frequentemente do monarca no singular. Cf. todavia 297c). A reali
zação da cidade arrisca-se a não poder iniciar-se caso poder e saber não coincidam
num só indivíduo. As Leis vão no sentido da unicidade (711d-712a).
PLATÃO 59
15 As Leis renunciam à comunidade dos bens, das mulheres e das crianças. No entanto,
ainda não à censura.
16 Ver a última secção do presente capítulo.
17 Cf. J. Annas, Introduction à la Republique de Platão, tradução francesa, Paris, PUF,
1994, pp. 232 e segs.
60 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
2 — Política e «psicologia»
E costume observar que para os gregos a política não é ainda
claramente distinta da ética, o que é incontestável18. Mas tratando-se
de Platão, pode ser-se mais preciso, e deve-se mesmo sê-lo, não tanto
por ele não conhecer ainda o termo ética (o que é apenas uma razão
formal) mas porque ele mesmo produziu uma definição de política
que funda filosoficamente a interferência tradicional dos dois domí
nios.
O próprio termo de «política» ou «arte política» (politikê, sc.
technê) deriva do termo polis19. Mas Platão não pensa que a arte polí
tica é simplesmente determinada pela ideia de uma tal comunidade.
Naquilo que pode ser considerado como a primeira exposição em forma
da filosofia política platónica, o Górgias avança uma definição da
política em que a característica mais surpreendente é que omite a
menção da cidade: «chamo política à técnica que tem a alma por
18 Cf. o último capítulo da Ética a Nicómaco de Aristóteles (X, 9) que mostra bem como
se passa do ético ao político por intermédio da legislação. Isso é também verdade
para Platão (ver infra, pp. 61 e segs.).
19 Ver supra, p. 57.
PLATÃO 61
23 Pode ver-se neste termo quer uma alusão à teoria das Formas, quer um indicador da
sua gestação.
PLATÃO 63
3 — Constituição e consenso
31 A teoria das Formas não é mencionada no Político (apesar de 285e-286a), que, como
o Sofista, assenta no exercício da divisão por géneros e espécies. Segundo uma
interpretação corrente, Platão teria, a partir do Parménides, renunciado à teoria das
Formas devido às dificuldades a que se expõe.
32 «Noocracia» não terá futuro. «Teocracia» não é atestada antes de Flávio José, Con
tra Apion, II, p. 16.
PLATÃO 69
4 — Economia e política
36 Para esta concepção, ver também as Leis, 921 d4 e segs. (embora já não se trate de
um exército «profissional»).
37 Platão começa aqui no ponto em que C. Schmitt acaba.
38 A sugestão, em J. Armas, op. cit, p. 101, que a primeira cidade conhece bem a justiça,
mas não a injustiça, que só a cidade doente conseguiria descobrir, é difícil de
defender, mas reveladora.
PLATÃO 73
da cidade das Leis são, por razões que serão indicadas na próxima
secção, proprietários (739e8 e segs.). Isso não quer dizer que se dedi
quem aos trabalhos dos campos, a não ser a título de intendentes.
Platão invoca de novo aqui o princípio da especialização: «Porque o
cidadão possui uma arte que lhe basta, tanto pelo intenso exercício
como pelos numerosos conhecimentos que exige, quando salva
guarda e procura a ordem comum da cidade, actividade que não convém
exercer a título secundário. Ora, dedicar-se a duas práticas ou a duas
artes, quase nenhuma de entre as naturezas humanas conseguiria,
não mais do que exercer uma, governando simultaneamente alguém
que exerceria a outra» (846d4-el). Se se exclui que a cultura da terra
é também reservada aos metecos, é indispensável que a exploração
do solo seja assegurada por escravos.
É o que, de facto, confirma uma extraordinária passagem do livro
vn, que vale a pena reproduzir integralmente, de tal forma a concep
ção antiga do «ofício de cidadão» é expressa em termos puros, e
cruamente:
Qual seria então o modo de vida de pessoas a quem o necessário seria
fornecido na medida certa, enquanto o produto das artes teria sido confiado a
outros, e os campos entregues a escravos que dariam as primícias dos produ
tos da terra em quantidade suficiente para pessoas vivendo na temperança,
cujas refeições comuns seriam fornecidas separadamente aos homens e, à
parte, aos domésticos, aos rapazes ao mesmo tempo que às raparigas e às
mães destas, quando o fim de todas as refeições comuns ocorreria por ordem
de presidentes e presidentas uma vez que estes, dia após dia, tivessem exami
nado e visto a maneira como os convivas conduzem a sua vida, antes que o
presidente e os outros, tendo feito as libações aos deuses a quem esta noite e
este dia são consagrados, não voltem nestas condições para casa! A homens
assim organizados, não resta nenhuma tarefa verdadeiramente conveniente,
mas é preciso que cada um deles viva farto segundo o modo de vida que é o do
gado? Isto não é nem justo nem belo, afirmamos, e não é possível que aquele
qüe assim vive receba o que necessita. E o que convém a um animal engordado
na preguiça e indolência, é, não é verdade, ser retalhado por um outro
animal a quem a coragem e também o exercício emagreceram» (806d7-807b3)47.
5 — Da República às Leis
Apesar de diferenças inegáveis, a República e as Leis comportam
numerosos elementos comuns. Os Antigos parecem ter sido sempre
mais sensíveis à continuidade existente entre as duas obras do que às
modificações que se introduziram de uma para a outra. Assim, Aris
tóteles, no segundo livro da Política (consagrado à crítica da cidade
platónica), observa que Platão «volta pouco a pouco (a saber, nas
Leis) à primeira das duas constituições (a saber, a da República). Efec
tivamente, excluindo a comunidade das mulheres e dos bens, as dis
posições das duas constituições são idênticas. Porque a educação é
idêntica, e a sua vida afastada dos trabalhos necessários, e o mesmo
em relação às refeições em comum»49. Uma leitura unitária das duas
obras era, aliás, encorajada pelo próprio título. No vocabulário po
lítico grego, os termos «constituição» (politeia) e lei (nomos) são de
facto complementares. Aristóteles explicita a diferença no início do
livro iv da Política: a politeia, que definiu a natureza das magistratu
ras e os procedimentos da sua designação, incide essencialmente so
bre a forma de governo. Os notnoi, em compensação, indicam aos
magistrados o conteúdo do seu cargo, enunciando os princípios que
devem regular a conduta dos cidadãos nas diferentes circunstâncias
da vida (1289al3-20). Esta distinção reflecte efectivamente a história
das duas palavras: se a questão a que se chama «constitucional» é
50 Ver mais acima, pp. 61 e 66 e segs. Subsiste o facto de que as fronteiras são fluidas,
porque a própria constituição podia ser julgada de um ponto de vista «moral»
(cf. supra, p. 67).
51 O contra-senso, que tem consequências bastante grandes, não pode explicar-se
senão por uma visão demasiado sumária, ou demasiado global, do contraste por
outro lado inegável entre as duas obras. Supõe para além disso a retrojecção na
República da temática do Político, o primeiro diálogo a fazer da lei um problema (ver
infra, pp. 99 e segs.).
52 As Leis esclarecem no entanto que as disposições comunitárias na primeira cidade
se estendem «em todas as medidas possíveis a todas as constituições» (739cl).
PLATÃO 81
A fórmula não é stricto sensu incompatível com a sua restrição aos guardiães;
desloca apesar disso a tónica.
53 A primeira cidade das Leis, equivalente à República, não tem evidentemente nada a
ver com o que a República chama a primeira cidade, i. e., a cidade dos «porcos».
82 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
nal, senão aquilo que ela reclama, pelo menos com que apaziguá-la; e
a força, se o conflito não puder ser resolvido de outra maneira. De
entre as disposições-quadro, duas pelo menos dependem claramente
do compromisso: a partilha das terras, e o recurso a argumentos
«humanos». Junta-se-lhes pelo menos um aspecto da constituição
mediana (a utilização limitada do sorteio). A maioria das outras dis
posições desta constituição e a submissão dos magistrados à lei de
senvolvem uma forma mínima de coacção, que as leis propriamente
ditas modulam de maneira mais ou menos rigorosa, em função do
grau de irracionalidade implicado pelo delito.
A questão é complicada (daí o seu interesse) porque se o homem
das Leis não é um deus, também já não é apenas um homem. Um
homem que não fosse mais do que um homem, não passaria de um
animal selvagem (c/. 718d2, 870a2). Mas se a selvajaria se mantém
sempre como uma possibilidade inscrita na natureza do homem, a
sua compleição essencial seria antes a da domesticidade — a forma
divina, por assim dizer, do animal (766a). É o que existe do deus nele,
e, mais ainda, até no seu prazer.
É o que sobressai da célebre comparação do homem com uma
«marioneta» (thauma, 644d7) no livro I das Leis que, continuando a
comparação que a República desenhava já entre as partes da alma e
os metais, lhe acrescenta uma dimensão dinâmica54. O homem está
submetido à tracção conjunta de um fio de ouro, imagem da razão,
que é precioso mas sem força, e dos cabos metálicos das pulsões irra
cionais. A imagem presta-se, no próprio Platão, a uma interpretação
«pessimista», e de certa maneira trágica — o homem seria, segundo a
continuação do livro vn, um belo brinquedo nas mãos dos deuses
(803c). Mas num momento inicial, a marioneta é sobretudo da ordem
do prodígio, um objecto de «espanto»: é, como se sabe, o primeiro
sentido da palavra thauma. Neste caso, o espanto que a marioneta
humana provoca provém de que, ao mesmo tempo que é o lugar de
uma certa desarticulação (é o conflito entre as duas instâncias racio
nal e irracional), ou melhor, porque é o lugar dessa desarticulação, é
também capaz de harmonia. Ouro e ferro podem, em certas circuns
tâncias, puxar no mesmo sentido. Um exemplo disso é o prazer da
dança, presente desde a mais tenra infância, e que se prolonga (se a
6 — 0 prodígio constitucional
altura da «constituição ancestral» (693d e segs.)59. A constituição Leis, as competências da Assembleia são muitas, e a liberdade a de
das Leis, por seu lado, constituiria uma forma de mediação mais con todos.
sumada ainda entre a democracia e a monarquia — algo como uma As instituições políticas da cidade das Leis lembram em muitos
mediação dessas mediações —, em que nenhum dos dois extremos aspectos as da Atenas democrática, com três assembleias (a Assem
seria de todo em todo privilegiado. Nesse ponto paradigmático, os bleia propriamente dita ou ecclêsia62, o Conselho ou boulê e o Conselho
termos «democracia» e «monarquia» ganham um novo sentido. Ver dito «nocturno»), e corpos de magistrados, definidos pelos diferentes
dadeiramente «democrática» é uma instituição que assegura a parti sectores de actividade que administram: a manutenção da lei (trinta
cipação de todos os cidadãos na vida política ou pelo menos na sua e sete nomofílacas) a defesa (os oficiais militares: três generais, dois
representação; verdadeiramente monárquica, a que garante o exer hiparcas, dez taxiarcas e dez filarcas), a religião (os sacerdotes, em
cício da competência. Por potencialmente opostas que permaneçam número indeterminado), a economia (sessenta responsáveis pela vida
estas duas exigências, elas não tendem menos a sobrepor-se — é o rural ou agronomoi — cinco por tribo —, três responsáveis pela cidade
próprio sinal de uma mediação bem sucedida. A autoridade não se ou astínomos, cinco responsáveis pelos mercados ou agorânomos),
limita a tolerar a liberdade dos cidadãos, mas constitui, de preferên pela educação (um só responsável: único caso de não colegialidade),
cia, a sua condição de possibilidade. É que a verdadeira liberdade a apresentação de contas (os «auditores», euthunoi, em número de doze
depende da submissão à única autoridade autêntica, a da lei60. pelo menos) e a justiça (juízes seleccionados do supremo tribunal)63.
O magistrado da constituição mediana das Leis não é um tirano cujo O princípio da participação manifesta-se em primeiro lugar atra
poder tivesse sido limitado, mas, precisamente, um magistrado cujos vés da composição e das funções da Assembleia (ecclêsia), a institui
poderes estão por definição circunscritos. Inversamente, a assembleia ção democrática por excelência, porque reúne a totalidade dos cida
democrática não é apenas (embora também o seja) uma assembleia dãos (incluindo mulheres, consta). A sua tarefa principal é seleccio-
ateniense que tivesse perdido uma parte das prerrogativas. A sua li nar os magistrados (à excepção dos «juízes superiores» e do minis
berdade não é a liberdade negativa da permissão, mas sim um valor tro da educação) e eleger os membros do Conselho. Tem portanto o
— ao ponto de constituir um dos três «objectivos» oficiais da legisla poder de determinar o exercício dos poderes na cidade64. Mas a parti
ção, ao lado da «sabedoria» e da «concórdia» (701d7)61. A lógica da cipação dos cidadãos na vida política traduz-se também, sob a forma
mediação exige que a liberdade não seja mais a propriedade exclu mais fraca da representação, de três outras maneiras. Se a represen
siva do povo do que a sabedoria o é dos magistrados. Por outras tação administrativa (por «tribos») desempenha apenas um papel
palavras, a mistura não tem lugar apenas entre os ingredientes mis menor, a preocupação de representação económica é manifesta,
turados (a mediação permaneceria externa), mas afecta a própria nomeadamente no Conselho. E que a desigualdade das fortunas, por
natureza dos ingredientes (segundo o princípio de uma mediação mais limitada que seja na cidade platónica, é uma das fontes mais
interna). Há alguma coisa de democrático numa instância «real» perigosas de conflito civil. À extrema complicação do processo eleito
(= competente) da magistratura, na medida em que se encarrega dos ral mostra a importância que Platão dá a este problema65. Mas é
interesses da comunidade (coisa que o tirano não faz), não menos do
que há uma dimensão «real» na instância democrática da Assem
bleia, que escolhe a maioria dos magistrados. De facto, na cidade das 62 A que se junta o tribunal popular de justiça.
63 Para um quadro mais detalhado das funções relevantes das diferentes magistratu
ras, ver R. F. Stalley, An Introduction to Plato's Laws, Indianapolis, Hackett, 1983,
pp. 187-191. ^
59 Os gregos da época clássica chamavam «constituição ancestral» ao regime anterior 64 As suas outras funções têm todas relação directa com o bem comum. É ela que
às reformas democráticas de Clístenes, e que era suposto ser caracterizada pela sua julga, em primeira instância, os crimes públicos; participa na regulação dos festivais
moderação e pela influência dos sábios. e sacrifícios, que por definição dizem respeito ao conjunto da comunidade; decide
60 A prefiguração aqui dos temas rousseauianos é surpreendente. a extensão dos direitos de cidadania aos estrangeiros que os mereceram da cidade,
61 Observa-se no entanto que o termo «liberdade» (eleutheria) se encontra aqui sobre- e confere, em nome desta, as honras supremas.
determinado. Refere-se certamente tanto à independência da cidade como à liber 65 O facto de o voto ser facultativo para os mais pobres explica-se sem dúvida pela
dade «política». preocupação de evitar que as obrigações políticas tragam prejuízos à actividade
88 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
O Conselho nocturno não é um órgão de governo. O seu poder Com efeito, a constituição deve ser aceite pela totalidade dos cida
reside na sua autoridade intelectual e moral. Por essa razão, não existe dãos. Ora mesmo o grau de mediação atingido pela constituição
na cidade platónica verdadeira separação de poderes. O Conselho «média» não basta para garantir essa aceitação, e isso pela razão
nocturno inclui alguns de entre os mais importantes magistrados da bem platónica que o saber, no elemento democrático, é deficiente.
cidade: os dez guardiães da lei mais idosos, um certo número de sa Isto ressalta perfeitamente da famosa passagem do livro vi sobre
cerdotes e de «auditores» distintos, e o ministro da educação. Os ou as «duas igualdades» (757a-b)69. Platão aceita o «antigo adágio»
tros membros podem ser antigos magistrados (todos os antigos minis (de origem pitagórica), segundo o qual a amizade — no sentido
tros da educação fazem parte dele por inerência) ou cidadãos meri político do termo — é fundada na igualdade. Esta igualdade, no
tórios e ricos em experiência, em particular por terem viajado (951 d-e, entanto, não é a igualdade «aritmética», em virtude da qual todo
961a-d). Cada um dos seus membros, por definição idoso, tem por o cidadão vale o mesmo que um outro (como as unidades constitu
adjunto um membro mais novo, entre os trinta e os quarenta anos. tivas dos números são iguais entre si), mas uma igualdade «mais
E do seio desses colaboradores, que secundam os mais velhos (a quem verdadeira e melhor», a igualdade «geométrica» ou «proporcio
emprestam os seus olhos e ouvidos, 964-965a), que sairá sem qual nal» que o Górgias já recomendava (508a4-8), e em virtude da qual
quer dúvida a geração seguinte dos magistrados superiores. Esta dis os cargos devem caber a cada um segundo o seu valor. A constitui
posição manifesta claramente a vocação pedagógica do Conselho ção não pode contudo eliminar a discórdia substituindo simples
nocturno que, dedicando-se ele próprio inteiramente ao estudo apro mente uma pela outra. É que compreender a natureza da igual
fundado das diferentes disciplinas em relação com a lei, educa as dade geométrica e a sua superioridade sobre a igualdade aritmética
elites da cidade. não está ao alcance de todos. Assim, a aplicação estrita do prin
cípio da igualdade geométrica tenderá a reproduzir a um nível
Mesmo sob a sua forma mais acabada, a mediação encontra limi superior a discórdia que era suposto prevenir. É para sair desta
tes. E o que indica o lugar deixado na constituição das Leis à coacção dificuldade que, no seio da Constituição, será dado um lugar ao
por um lado, ao compromisso por outro, segundo uma polaridade sorteio, que é a expressão política tradicional da igualdade arit
que se encontrará ao longo de toda a legislação propriamente dita. mética70. E nesse sentido que as magistraturas religiosas anuais
A expressão mínima dessa coacção encontra-se sob a forma das serão «democraticamente» atribuídas (759b-c); o sorteio tem tam
diferentes condições às quais está submetido o exercício das magistra bém um papel na composição nos tribunais de justiça popular
turas. A sua duração, por exemplo, é limitada, e não há reelegibilidade. (758b) e no fim de algumas eleições, para desempatar entre um
No domínio judiciário, o controlo é assegurado pela existência de um número de candidatos restrito (763d, a propósito dos astínomos).
sistema de chamada, tanto para os crimes públicos (ao que parece) No total, isto é bem pouco. O sorteio parece jogar nas Leis um pa
como para os crimes privados, e pela existência de garantias legais. pel largamente simbólico. Desse ponto de vista, difere da proprie
A pena de morte não pode ser decretada senão em circunstâncias excep dade privada que é, no plano das disposições económicas, o seu
cionais e por uma comissão especial constituída pelo supremo tribu homólogo estrutural. Sem dúvida que isto não é insignificante.
nal e pelos guardiães da lei (855c). Mas o controlo efectua-se por meio Nenhum cidadão, por ser homem, poderá alguma vez renunciar a
da apresentação de contas aos auditores, a que estão sujeitos todos os possuir. Mas será de excluir que uma maioria de cidadãos, na con
magistrados sem excepção — incluindo esses «magistrados dos magis dição de serem adequadamente educados, possam finalmente re
trados» (945c) que são os próprios auditores. Todas essas disposições conhecer a superioridade política da igualdade geométrica sobre
têm evidentemente por função prevenir a corrupção, cuja possibili a igualdade aritmética? O programa pedagógico das Leis, que
dade é doravante inscrita no coração da natureza humana, mesmo
que os magistrados, cujos poderes são por definição reduzidos, não
69 Ver F. D. Harvey, «Two Kinds of Equality», Classica et Meãiaevalia, 16,1965.
estejam submetidos a eles tão fatalmente como o déspota. 70 O argumento supõe que a igualdade dos cidadãos no seio da Assembleia não conta
Da mesma maneira que admitem uma forma residual de coacção, como expressão da igualdade autêntica. Isso é revelador. O elemento decisivo é o
as leis constitucionais dão também lugar a alguns compromissos. exercício do poder (neste caso, a magistratura).
92 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA PLATÃO 93
insiste na instrução obrigatória para todos, em particular no do chora, encontra-se agora o homem, na sua natureza, mas também
mínio das matemáticas elementares (818b-e), incita a pensá-lo. moldado pela história, que todo o legislador tem que ter em conside
ração; quanto ao artífice, ele é representado, pelo menos potencial
mente, pelos legisladores que são os interlocutores do diálogo. Mais
surpreendente ainda é que o legislador das Leis, como o demiurgo do
7 — 0 possível Timeu, tem que contar sempre com uma «necessidade» que será como
que a manifestação, a níveis não principiais, desse princípio da li
Por maior que seja, pelo menos no que respeita às medidas-qua- mitação radical que é o próprio material da sua acção (por exemplo
dro, a distância entre a República e as Leis, é difícil falar de aban 857dl0-858a6)71.
dono. As Leis, no próprio momento de marcar a distância entre as duas Embora o par paradigm a/realização dê conta de aspectos
cidades, sublinham que a cidade das Leis se limitará «o mais possí importantes das Leis, e ofereça uma maneira tão frutífera como ele
vel» às instituições da República, e, mais explicitamente ainda, que gante de abordar o problema da relação entre as Leis e a República,
«não é necessário procurar outro modelo (paraâeigma) de constitui essa maneira não faz justiça à sua complexidade. Um indício exterior
ção» além do da primeira cidade, precisamente na medida em que disso é que a maioria dos intérpretes, sem ignorar os recursos do
ela só convém a «deuses ou a filhos de deuses» (739e). As Leis estabe paradigmatismo, tendem no entanto a sustentar que Platão, entre a
lecem assim, entre a cidade da República e a das Leis, uma relação República e as Leis, mudou de opinião.
paradigmática: a primeira cidade forneceria o modelo de que a se Essa interpretação pode apoiar-se com uma série de argumen
gunda seria, senão a realização, porque toda a realização é por defi tos simultaneamente cronológicos, biográficos e filosóficos. Embora
nição prática, pelo menos a primeira etapa, de natureza ainda teó não se conheça a data da República, concorda-se com situá-la por
rica (702d), dessa realização. volta de 387, pouco depois da fundação da Academia: os livros cen
Tal perspectiva, para além de permitir explicar simultaneamente trais, que descrevem as etapas de formação científica dos guar
os dois movimentos tendencialmente contraditórios de «acabamento» diães filósofos, podem ser considerados como elaborando o programa
e «revisão» que coexistem de maneira tão surpreendente nas Leis, pedagógico dessa instituição inédita de educação superior. As Leis,
pode apelar para, de uma maneira geral, o paradigmatismo plató por seu lado, são certamente a última obra de Platão, que ele ainda
nico. Um princípio fundamental da filosofia platónica, desenvolvida se esforçava por acabar na altura da sua morte, em 347. Perto de
na República, é que o devir mantém com o ser verdadeiro (as Formas) quarenta anos separam pois a redacção das duas obras. A metafí
uma relação icónica (de imagem a modelo) tal que a semelhança é sica platónica conheceu entretanto, senão uma verdadeira ruptura,
acompanhada de uma intransponível distância ontológica. O Timeu pelo menos inflexões importantes. Mesmo admitindo que Platão te
especifica esta relação mostrando como o mundo da natureza, in nha mantido até ao fim uma doutrina das Formas inteligíveis
cluindo a natureza humana, nasce da inscrição por um artífice divino (o que é uma questão discutível), a economia geral da sua filosofia
(o «demiurgo») de Formas paradigmáticas imutáveis num «lugar» modificou-se profundamente, orientando-se, por um lado, para a
(a chora) que Platão concebe como agitado por movimentos convulsivos análise lógica da relação entre os universais, por outro, para uma
irracionais, e que a esse título chama «necessidade» (48al-5, 56c5 e ontologia da medida e da «mistura» — dois desenvolvimentos que,
segs.). Assim, as Leis podem ser consideradas como fornecendo, no em graus diferentes, tendem a reduzir o fosso entre o ser e o devir.
domínio da cidade, o equivalente do que Timeu realiza no domínio Como é que uma abordagem dessas não teria afectado a teoria po
da cosmofisiologia — com a diferença essencial que no fim do Timeu, lítica, que na República é estritamente indissociável da teoria das
o mundo e o homem estão aí, enquanto a cidade das Leis ainda está Formas?
por realizar.
De facto, encontram-se nas Leis, mutatis mutanãis, os principais
ingredientes do processo demiúrgico. Correspondendo ao modelo das 71 Sobre o paralelo entre o Timeu e as Leis, cf. A. Laks, «Legislation and demiurgy. On
Formas em si, há o modelo político da primeira cidade; no lugar da the relationship between Plato's Republic and Laws», Classical Antiquity, 9 , 1990.
94 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
72 A irmã de Dion, Aristómaca, tinha sido a primeira mulher de Dionísio. Ver o qua
dro feito por L. Brisson (tradução, Platão, Cartas, Paris, Garnier-Flammarion, 1987,
p. 58), a que nos reportaremos para os factos.
PLATÃO 95
. '73 Crítica da Razão Pura, A599/B627 (com o exemplo dos cem táleres).
96 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
alguém seja subjugado ou escravo, mas sim que seja ele a dirigir, se
for autêntica e verdadeiramente livre na sua natureza» (875c6-d2).
No entanto, é notável que, diferentemente do Político, o estatuto vi-
cariante da lei desempenha, nas Leis, apenas um papel periférico. Se
a lei também está sujeita à crítica nas Leis, o motor é agora o aspecto
epitáctico da lei. É o que ressalta do fim do livro iv, que analisa, antes
que o diálogo se encaminhe para a legislação propriamente dita, a
própria noção de «lei». Se a lei é deficiente, é porque, enquanto or
dem, ela não persuade. Essa deslocação do conteúdo da lei para a
modalidade da sua imposição traça, depois da República, os contor
nos de uma segunda utopia platónica, a utopia propriamente legisla
tiva, cuja determinação complica ainda a ideia que se pode ter da
relação entre as Leis e a República77.
A mudança de perspectiva relaciona-se com o relevo particular
concedido nas Leis ao critério do consentimento78 que, sem estar au
sente no Político, se mantém no entanto claramente em segundo plano,
e cujo estatuto se torna, na verdade, extremamente problemático, face
ao primado do saber. Se o Político, na análise da lei, se concentra
essencialmente na relação existente entre a ordem e a sua origem, a
saber, o bom soberano ou o intelecto, as Leis voltam-se decididamente
para a relação entre a ordem e o seu destinatário, a saber, o cidadão.
Isto resulta claramente da utilização que Platão faz da analogia
médica nas Leis. No Górgias, a analogia médica servia para estabele
cer que o verdadeiro político não tem que «persuadir» os seus súbdi
tos mais do que o médico tem de persuadir os seus pacientes para
aceitarem seguir a prescrição (521e6-522a3), e é esse argumento que
é significativamente retomado no Político, 293a9-b8 (uma citação
quase literal do Górgias). Porque o médico e o político conhecem, por
hipótese, o bem daqueles por quem são responsáveis, podem recorrer
à violência a fim de o impor. O fim justifica os meios. Platão especi
fica no Político as diversas medidas correspondentes à «amputação e
à cauterização» médicas: «Que lhe seja preciso matar ou ainda exi
lar alguns, expurgando a cidade para o bem, que lhe seja preciso,
para a submeter, criar colónias como se enxameiam abelhas ou, para
a engrandecer, mandar vir pessoas do estrangeiro e criar novos cida
dãos, enquanto se servirem da ciência e da justiça para a conservar
e, de má, a tornar o melhor possível, temos de dizer que se trata aqui,
: neste momento e em conformidade com as definições, da única cons-
79 Recordamos que a primeira etapa que conduzia à realização da cidade justa era uma
radical «purificação» (ver supra, p. 96).
PLATÃO 103
81 A fórmula viria a encontrar o seu caminho, por intermédio de Séneca que a cita
(Carta, 94, 38), até ao jurista F. Duaren, no seu comentário do Digeste (1560), I, 3.
82 A despeito do modelo, esboçado pelo Cármides, de uma filosofia fisicamente eficaz.
PLATÃO 105
pelo célebre panfleto que Popper, defensor da sociedade «aberta»; J L sistematicamente esta dimensão efectivamente capital do pensa-
iln to platónico, voltando a atribuir-lhe as honras propriamente po
lançou contra o fecho da cidade platónica88.
Duas vias se oferecem para salvar Platão de si próprio e da sua
’
lias através da ideia de uma «pedagogia social»92. Mas esta abor-
posteridade. le e m , por mais legítima que seja, não faz mais do que sublinhar
Pode-se, em primeiro lugar, ser tentado a explorar a distinção en I f a apropriação moderna do pensamento político platpnico pas-
tre a liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos tematizada I necessariamente por uma estratégia interpretativa definida e ar-
por B. Constant. Da mesma forma que, na história real, a aplicação Jlca-se, em vez de ser conscientemente praticada, a enfraquecer o
de modelos antigos a uma realidade alterada gera a tirania ou a sim Rp se ioga no debate. , . ,
ples regressão, uma interpretação guiada pelas exigências do libera fe Resta a possibilidade de nos colocarmos menos do ponto de vista
lismo moderno conduz a forjar uma imagem autoritária, quando não I s conteúdos do que da forma do pensamento político platomco e em
despótica, de Platão89. Quanto ao resto, a avaliação variará, se se làrticular da relação entre a República e as Leis, ou amda da distancia
conseguirem relativizar os critérios do nosso julgamento, segundo as \tre o ideal e a realidade. Foi esse aspecto que foi acentuado aqui.
convicções morais e políticas do intérprete. Uma das dimensões
positivas, do ponto de vista da modernidade, da teoria política pia-
tónica é certamente a sua tematização da especificidade do espaço I ibliografia
político, quanto mais não seja sob a forma problemática do «ofício
de cidadão»90. H. Arendt não se reencontrou aí menos do que em ftNNAS, J., Introduction à la République de Platon (1981), trad, fr., Paris, PUF, 1994.
Aristóteles. IÉ îickon L trad. Platão, Lettres, Paris, Garnier-Flammarion, 1987.
No entanto, é difícil desculpar inteiramente Platão em nome da l o S o R D F. M„ « Plato's Commonwealth » (1935), in The Unwritten Philosophy and other
I Essays, Cambridge, 1950, Cambridge University Press, pp. 46-67.
liberdade dos Antigos. Os aspectos mais contestáveis do pensamento B elatte, A., Essai sur la politique pythagoricienne, Liège-Pans, ed. Champion, 1922 (ree .
político platónico que recordámos no início, em particular a legiti
mação da censura e da mentira, eram «iliberais» do ponto de vista l l R i s w o m Ï ^ ! «^e Ubéralisme platonicien: de la perfection individuelle comme fonde-
dos próprios Antigos, e na verdade do próprio Platão. É o limite da I f ^ m i m t d'une théorie politique», in M. Dixsaut (ed.), Contre Platon, vol. 2 (Renverser le
interpretação de Constant, e a força, salvo todos os excessos, da de R platonisme), Paris, Vrin, 1995, pp. 155-195.
Popper. IH arvey, F. D„ «Two Kinds of Equality», Classica et Mediaevaha, 16' 1965' P P 101' 146'
PKraut, R., Socrates and the State, Princeton, Princeton University Press, 19M .
Uma segunda opção consiste em desatrelar a política platónica I laks, André, «Legislation and Demiurgy. On the Relationship between Plato s Republic
daquilo que ela esconde ou visa, e em particular da pedagogia. ii and Laws», Classical Antiquity, 9,1990, pp. 209-229.
Conhece-se a famosa frase de Rousseau, no livro i de Emílio: «Quer ter
uma ideia sobre a educação pública? Leia a República de Platão. E . , ' 1957 (Beiheft 1); 9,1961
Não é uma obra política como o pensam aqueles que só julgam os
livros pelos títulos. É o mais belo tratado de educação jamais
Contre Platon, vol. 2 (Renverser le platonisme), Paris, Vnn, 1995, pp. 129-15 .
escrito91.» É ao neokantismo que cabe o mérito de ter desenvolvido ; Meier, Ch., La Naissance de la politique (1980), Paris, Gallimard, 1 9 .
ï Morrow, G., Plato's Cretan City, Princeton, Princeton University Press, « 6 0 , 1993 (2. ed.).
88 Elementos da recepção contemporânea de Platão encontram-se em E. Manasse, ! Natorp, P., «Platons Staat und die Idee der Sozialpädagogik», in Gesammelte Abhandlun-
«Bücher über Platon», Philosophische Rundschau, 5 , 1957; 9,1961; 23,1976,
89 O princípio pode ser alargado e encontrar uma aplicação, no próprio seio da
família antiliberal, entre as suas diferentes orientações. Assim, quando Gadamer e ? archéologie de la culture politique européenne, vol. ï: Le platonisme politique dans
Maurer, no seguimento do primeiro, exigem «uma conversão de pensamento» i l'Antiquité, Lovaina-Paris, 1995.
para subtrair Platão à acusação de despotismo (ver Maurer, op. tit, pp. 131,143), é
em benefício, num e no outro caso, de duas formas distintas de tradicionalismo.
90 Cf. supra, p. 78. -■ 92 Ver P. Natorp, «Platons Staat und die Idee der Sozialpädagogik», in Gesammelte
91 Oeuvres completes, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Plêiade, 1962, IV, p. 250. Abhandlungen, I. Abteilung, Stuttgart, 1907.
110 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
Popper, Karl, La Société ouverte et ses ennemis, vol. i: L'ascendant de Platon (1945), trad, Capítulo 2
francesa Paris, Payot, 1979.
Saunders, T. J., Plato's Penal Code. Tradition, Controversy and Reform in Greek Penology
Oxford, 1991,1994 (2.a ed.).
Schmitt-Pantel, P., La Cité au banquet, Roma, 1992.
Aristóteles
Stalley, R. F., An Introduction to Plato's Laws, Indianapolis, 1983.
Vidal-Naquet, Pierre, «Étude d'une ambiguïté: les artisans dans la cité platonicienne», por Otfried Hõffe
in Le Chasseur noir. Formes de pensée et formes de société dans le monde grec, Paris'
Maspero, 1991, pp. 289-315. 7 traduzido do alemão por Jean Kahn
Vlastos Gregory, «Does slavery exist in Plato's Republic?» (1968), in Platonic Studies,
Princeton, 1973, pp. 140-146. 7
Introdução ^ «
1)
P opper, Karl, La Société ouverte et ses ennemis, vol. i: L'ascendant de Platon (1945), tra< Capítulo 2
francesa Paris, Payot, 1979.
Saunders, T. ]., Plato's Penal Code. Tradition, Controversy and Reform in Greek Penolog
Oxford, 1991,1994 (2.a ed.).
Schmitt-P antel, P., La Cité au banquet, Roma, 1992.
Aristóteles
Stalley, R. F., An Introduction to Plato's Laws, Indianapolis, 1983.
V idal-N aquet, Pierre, «Étude d'une ambiguïté: les artisans dans la cité platonicienne por Otfried Höffe
in Le Chasseur noir. Formes de pensée et formes de société dans le monde grec, Par:
Maspero, 1991, pp. 289-315.
traduzido do alemão por Jean Kahn
V lastos Gregory, «Does slavery exist in Plato's Republic?» (1968), in Platonic Studu
Princeton, 1973, pp. 140-146.
Introdução
1)
2)
O texto principal de Aristóteles em matéria de filosofia política,
uma obra-prima no seu género, que permaneceu sem igual até aos
nossos dias, a Política, tem, tanto pelos temas como pelo método, um
horizonte de tal forma extenso que não só é estudado por filósofos,
filólogos e historiadores, mas também por especialistas de teoria cons
titucional e de ciências políticas, e até por investigadores nas ciên
cias sociais dos ramos experimentais.
A Política não é certamente uma «obra redigida de uma assen
tada». Se é verdade que em geral os seus oito livros constituem uma
unidade desde o primeiro momento, não se lêem no entanto com a
mesma facilidade que a Ética a Nicómaco. Apesar disso, apresentam
uma doutrina coerente no essencial. Entrp as tpcpc anfocont-uioc
114 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
1 — Liberalismo no método
Saturado de experiência
Sem metafísica
Um saber compendiado
ciados exactos na maioria das vezes, mas não em todos os casos (hôs
epi to polu: Ética a Nicómaco, I , 1, 1094 b 21; III, 5,1112 b 8 e segs.; V, 14,
1137 b 15 segs.). Ao mesmo tempo, opõe-se a um rigorismo antiliberal
que proclama que as regras gerais são princípios universais. Em vez
disso, a ética requer aquilo que fortalece a responsabilidade de si
mesmo (autonomia e soberania): a capacidade, tanto sensível como
criativa, de prudência (phronêsis). (2) Porque as acções concretas e
as instituições dependem de condições marginais variáveis, fala-se
delas tupô: um saber em grandes linhas, um saber compendiado. Este
não consiste em descrições completas da coisa, mas apenas num tipo
de grelhas estruturais. Essas últimas designam o ser mantendo-se idên
tico a si próprio (o da felicidade, da virtude e das virtudes, etc.), e têm
em conta que a realização completa faz parte do ser, e deixam cons
cientemente em suspenso o que faz parte dele (cf. X, 9,1179 a 17-22).
2 — Política e ética
nativa para a maioria dos homens, e para uns poucos de entre eles
uma forma suplementar da vida teorética. Aquele que se empenha
na vida teorética leva uma existência parcialmente suprapolítica,
mas não uma existência extrapolítica.
3 — Antropologia política
4 — Justiça
Justiça e equidade
maco, V, 14, 1138 a 3). Situações que requerem a equidade são certa
mente uma ocasião na qual se põe à prova a nossa justiça. Dirigida
contra um subsumir mecânico, a equidade provoca o juízo e com
pleta assim a prudência (cf. VI, 11,1143 a 19-24). Enquanto a equidade
prepara em todos os casos a correcção da lei, a prudência determina
o correctivo exacto.
Porque as outras virtudes devem também fazer justiça ao caso
particular, poderia também esperar-se delas um correctivo, que Aris
tóteles no entanto nunca apresenta. Nisso, ele poderia valer-se do facto
que, diferentemente da justiça, as outras virtudes não serem determi
nadas por regras, e, enquanto «meio para nós», rejeitarem mesmo
expressamente uma tal determinação. Em consequência disto, o que
a equidade não realiza senão como correctivo, a saber, uma flexibili
dade aberta à situação, é-lhes já imanente.
Dado que as regras restringem a justiça no caso particular, pode
ríamos ser tentados a renunciar completamente a elas. É precisamente
esta opinião que defende Platão no Político, quando diz: «o melhor
realiza-se quando não são as leis que estão no poder, mas o homem
real dotado de discernimento» (294 a). Aristóteles apresenta na Polí
tica (III, 15) a mesma alternativa, mas, contrariamente a Platão, não
considera que se possa renunciar a nenhuma das duas opções, nem à
justiça regular das leis, nem à justiça particular da equidade. As leis
são melhores na medida em que estão isentas de todas as paixões,
contrariamente aos homens; em compensação o homem sabe melhor
aconselhar nos casos particulares (Política, III, 15, 17-21). Aqui, ma-
nifesta-se uma dupla tarefa que não deixa de apresentar tensões e
que a linguagem corrente conserva nas expressões «justo e equita
tivo» e «os que pensam com justiça e equidade»; por um lado, o direito
tem necessidade da norma geral porque é responsável pela igual
dade, por outro lado, tem que reconhecer o caso particular na sua
singularidade que não pode ser confundida.
Desigualdades elementares
Os escravos
Os bárbaros As mulheres
Os gregos não classificam com neutralidade como bárbaros os Em Atenas, as mulheres são, juridicamente dependentes de um
membros de uma comunidade linguística estrangeira, mas sim ho tutor, geralmente o pai ou o marido. O seu esposo não é escolhido
mens que não falam a língua da cultura superior, o grego; a onoma livremente; os seus negócios são supervisionados pelo tutor, não têm
topéia desacredita aquele que fala uma língua estrangeira como cul direitos sucessórios, podendo no entanto, como filhas herdeiras, trans
turalmente inferior. É certo que, na época clássica, por exemplo em mitir a sua herança aos seus filhos. Por outro lado, são juridicamente
Heródoto, os bárbaros são admirados, a exemplo dos Egípcios e dos livres, têm juridicamente direito a obter os seus meios de subsistência
Persas, pela sua ciência, a sua sabedoria e a sua humanidade. Nas e gozam de uma protecção judiciária em caso de maus tratos.
Histórias, VII, 136, Heródoto expõe por exemplo a magnanimidade Os enunciados de Aristóteles relativos a esta questão não são in
que Xerxes, o rei dos Persas, demonstrou para com os Espartanos. teiramente unívocos. Por um lado, a própria mulher é considerada,
Apesar disso, Aristóteles cita com aprovação a afirmação de Eurí- do ponto de vista da virtude, como inferior aos homens (Política, I,
pedes (Ifigênia em Auliãa, v. 1400): «é conveniente que os gregos 13, 1260 a 20-24), e por outro, toda a casa, e portanto a esposa incluída,
comandem os bárbaros» (Política, I, 2, 1252 b 8). Sobre este ponto, é governada monarquicamente (Política, I, 7, 1255 b 19). Por
extrai privilégios políticos da superioridade cultural; além disso, acen outro lado ainda, a Ética enfraquece a preeminência de um poder
tua a significação do verso ao colocar o bárbaro ao nível do escravo unicamente autocrático e fala além disso de uma divisão de trabalho
de nascença. Explica-o dizendo que lhe falta «o que por natureza (VIII, 12, 1160 b 32 e segs.; VIII, 13, 1161 a 22 e segs.). Na Política, I,
comanda». O défice correspondente em pensamento prospectivo, no 12-13, esta relação é mesmo definida como «política», e portanto
entanto, já não pode aplicar-se porque os Egípcios, os Persas, etc., como uma relação entre iguais. Mas Aristóteles, usando uma compa
gozam de períodos de prosperidade económica, de florescimento ração, introduz sorrateiramente a desigualdade; decerto que não é
cultural e de estabilidade política. só o homem que é o único a ser capaz de dirigir, não obstante é-o em
Esquilo apresenta em Os Persas (v. 181-189) o mundo dos bárba grande medida (hêgemonikôteron: Política, I, 12, 1259 b 2).
ros e o dos gregos como formas de existência de igual valor; critica É já por causa de uma instituição jurídica da época, a da filha
apenas a tentativa feita para impor aos gregos um império estran herdeira, que autoriza a mulher a «governar» a casa (Ética a Nicó-
geiro. Também Antifonte, um contemporâneo de Sócrates, rejeita de maco, VIII, 12, 1161 a 1-3; cf. Política, II, 9, 1270 a 26 e segs.), e além
forma completamente clara esta diferença antropológica: «por natu disso por causa do facto de as mulheres governarem outros povos
reza, somos todos constituídos sob todos os pontos de vista de uma (gunaikokratoumenoi: Política, II, 9, 1269 b 24 e segs.) que Aristóteles, o
mesma maneira, tanto bárbaros como gregos» (Diels-Kranz, 87 B 44). empirista, pode emitir dúvidas sobre a sua hipótese da menor apti
E neste sentido que Alexandre tratará todos os povos como iguais em dão da mulher para dirigir. De qualquer maneira, menciona o papel
direitos e procurará até fundir umas com as outras as suas camadas activo das mulheres na constituição espartana (Política, II, 9). Reco
dirigentes. nhece também que as mulheres constituem «metade das pessoas li
Se bem que Aristóteles não se associe a esta avaliação e se ligue vres» (I, 3, 1260 b 19). Mais frequentes e mais importantes são con
antes a esta singularidade em política constitucional, o poder exer tudo os seus enunciados contrários; ele cita o exemplo de Ájax de Sófo-
cido por homens livres sobre homens livres, que interpreta como privi cles (v. 293): «Para a mulher, o silêncio é um adorno» (Política, I, 13,
légio ético-político dos gregos sobre os não gregos (Política, VII, 14, 1260 a 30). Além disso, na passagem correspondente, não se trata da
1333 b 27-29), isso não pode prejudicar a sua curiosidade de investi virtude da pessoa em geral, mas apenas da do homem (aretê andros
gador. Na Retórica, convida repetidas vezes ao estudo comparado das agathou. III, 4, 1276 b 17), tal como, relativamente aos filhos, unica
relações políticas (por exemplo, I, 14, 1360 a 30-37); e concede todo o mente da do pai (I, 3, 1253 b 6 e segs.) e, na educação das crianças,
seu apreço a constituições como a de Cartago na Política (II, 11, 1272 unicamente da das filhas (VIII, 3, 1338 a 31).
b 24 e segs.). Por consequência, Aristóteles segue também neste caso uma prá-
154 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
5 - A teoria constitucional
imortais» (segundo Platão, Górgias, 484 b, cf. Carta VIII, 345 c).
A segunda limitação incidente sobre o poder legítimo consiste nessa
«Rule of Law», nesse reino áa lei (III, 11, 1282 b 2 e segs.). Através de
determinações gerais que se devem aplicar de igual maneira aos inte
ressados, elabora-se a igualdade jurídica que se opõe ao perigo de os
homens, porque preferem agir de acordo com o seu bem pessoal, se
tornarem tiranos (Ética a Nicómaco, V, 10, 1134 a 35-b 2). As leis estão
isentas de todas as paixões; além disso, fundam-se em considerações
feitas há muito, por outras palavras, na experiência (Retórica, I, 1,
1354 a 21 -b 2). Com elas, na verdade, somente é dada a igualdade de
direitos do primeiro nível, a aplicação imparcial das regras, que to
lera a condição jurídica dos escravos, das mulheres e dos metecos.
Além disso, Aristóteles, consciente dos limites inerentes às regras ge
rais, flanqueia a lei com um correctivo, a equidade. A Grécia, de resto,
não conhece nem juristas profissionais nem outros peritos profis
sionais, o que faz com que a política esteja muito próxima do povo
(mais «democrática») e ao mesmo tempo seja menos determinada pelo
direito; o quase perito, o retórico, toma o lugar do perito em direito.
Aristóteles distingue já três poderes públicos (Política, IV, 14-16),
antecipando a ideia de separação de poderes, e expõe uma terceira
limitação de poder (Política, IV, 14, 1297 b 37 e segs.): a instância
deliberativa corresponde de certa maneira ao poder legislativo; com
efeito, ela decide da guerra e da paz, das alianças e dos tratados, das leis,
da escolha e das contas dos funcionários (a Ética, VI, 8, 1141 b 32 e
segs., apresenta a legislação por si própria e distinguindo-a da delibe
ração). Os funcionários formam o executivo, e o terceiro poder é cons
tituído pela jurisdição. De facto, existe ainda na Grécia uma segunda
forma, e até uma espécie duplicada de divisão de poderes, mas em
que Aristóteles não entra. Por um lado, as diferentes cidades-estado
partilham entre si o poder, e por outro lado, todas as cidades-estado
partilham a sua influência com o «centro espiritual» que é Delfos.
Na sua teoria, influente pelos seus efeitos, relativa às constitui
ções ou às formas de Estado, na classificação destas em duas vezes
três, e portanto em seis formas, Aristóteles separa claramente as cons
tituições visando o bem comum (to koinê sumpheron) das constituições
visando o bem dos dirigentes (to tôn archontôn), e considera as primei
ras absolutamente legítimas e as segundas defeituosas (Política, III,
6, 1279 a 17-20). (Hobbes põe de lado esse quarto critério de limitação
de poder usando um argumento ao qual falta força: a tirania e a
oligarquia não são nomes de formas diferentes de governo, mas dos
mesmos governos, a saber a monarauia e aríst-nrraria
ARISTÓTELES 159
decorre (3) em seu benefício próprio e não dos seus súbditos; e (4)
ninguém obedece voluntariamente (a 19-22).
O conceito de bem comum mantém-se singularmente vago não
obstante a sua forte significação criteriológica. Aristóteles não explica
imediatamente o conceito; no entanto, certos elementos podem ser
explicitados a partir da imagem que ele fornece da cidade ideal:
é preciso citar em primeiro lugar a defesa do país. Que se trate da si
tuação geográfica da cidade (Política, VII, 5, 1326 b 39, 1327 a 7), que
inclui os acessos ao mar (VII, 6, 1327 a 18-25), da extensão do país
(VII, 10, 1330 a 16-23) ou da disposição das estradas (VII, 11, 1330 b
17-31) — Aristóteles aprecia sempre tudo em função da segurança
militar. Um segundo elemento é constituído pelas relações comer
ciais (VII, 5, 1327 a 7-10) ou pelas questões gerais de política econó
mica. Um terceiro elemento consiste na repartição das terras cultiva
das. Aristóteles sugere quatro partes (que não são explicitamente
iguais): (1) uma propriedade comum (terras do Estado) cujo produto
cobre (1.1) os custos das explorações agrícolas e (1.2) os custos das
refeições comuns; e (2) uma propriedade privada em que cada cida
dão, tanto por razões de justiça como para chegar à unanimidade
contra vizinhos hostis, possui duas parcelas, (2.1) uma junto às fron
teiras do país e (2.2) uma no interior do país, situada na proximi
dade da cidade (VE, 10, 1330 a 9-23). Um tal sistema misto, constituído
por propriedade colectiva e propriedade privada, é dirigido contra
dois extremos, simultaneamente contra uma completa «socialização»
ou estatização da propriedade fundiária e contra uma pura e sim
ples propriedade privada do solo. Além disso, devem ser asseguradas
duas coisas pela propriedade comum, por um lado o financiamento
de missões públicas (em Aristóteles, trata-se unicamente de actos de
culto), por outro lado meios de existência suficientes («refeições
comuns») para todo o cidadão.
Por causa das funções sociais da propriedade comum, encontra
mos em Aristóteles rudimentos de justiça comutativa ou de Estado
social. Há refeições comuns asseguradas — segundo o modelo de
Creta e ao contrário de Esparta, por exemplo — pelos serviços do
Estado (II, 10, 1272 a 12 e segs.). O Estado ideal preocupa-se até,
devido à sua importância elementar, com a água; aquela que só pode ser
utilizada para beber, a que serve para outras necessidades (VII, 11,
1330 b 11 e segs.). O raio de acção do Estado social não deve no en
tanto ser sobrestimado por isso, na medida em que Aristóteles denuncia
as instituições democráticas como as retribuições pela presença nas
sessões, embora elas tornem possível aos mais pobres a particmarãr»
ARISTÓTELES 161
ciais, se bem que Aristóteles reconheça esta ideia (por exemplo, Polí
tica, III, 15, 1286 a 17-21: a ausência de paixões). Indica antes a razão
socioeconómica segundo a qual se deixam reinar as leis nos casos em
que falta ao soberano, por exemplo, ao campesinato, o tempo (scholê)
necessário à política permanente. No entanto, se as cidades cresce
rem e sobretudo se enriquecerem de tal forma que os pobres, neste
caso em especial os artífices e os trabalhadores assalariados (cf. IV,
12, 1296 b 29 e segs.), possuam, graças a uma retribuição correspon
dente, o ócio requerido pela política, então suprime-se a lei, e o povo
assume a totalidade do poder (IV, 6, 1292 b 41-1293 a 10).
No que se refere ao fundamento da democracia, a saber, à liber
dade, Aristóteles dispõe como se disse de dois conceitos: a liberdade
política positiva em consequência da qual se governa e se é gover
nado alternadamente, e a liberdade política negativa, o notável con
ceito liberal segundo o qual se pode viver como se quer. Do primeiro
conceito resultam as instituições democráticas (b TI e segs.): o facto
de as funções serem preenchidas por todos (os cidadãos); o facto de
todas as decisões, ou pelo menos as mais importantes, serem tomadas
pela assembleia do povo, etc.
Ora, Aristóteles critica antes de tudo a democracia radical. Le
vanta-se contra as retribuições de presença nas sessões (pela partici
pação na assembleia popular) que são financiadas por um imposto
sobre a riqueza e pela confiscação da propriedade (Política, VI, 5,
1320 a 17-24). Mais fundamental é a censura de uma incompetência
que não tem somente a ver com a falta de especialização; pedir-se-ia
demasiado à assembleia do povo tanto no plano intelectual com no
plano moral (Política, III, 11, 1281 b 25 e segs.). Se se considerar a
guerra do Peloponeso que foi recusada pelos ricos — teriam que suportar
os encargos com a frota — e que, pelo contrário, foi violentamente
defendida pela maioria, os pobres, tem provavelmente razão; é notó
rio que a guerra se conclui com a derrota de Atenas e com o fim de
inúmeras coisas que se apreciam na cultura grega. Mas Aristóteles
avança também noutro lugar argumentos a favor da democracia. Ele
considera, por exemplo — contrariamente à mencionada censura de
incompetência — a maioria como mais competente do que uma pe
quena elite (III, 11, 1281 a 39 e segs.).
A justificação deste facto é na realidade surpreendentemente in
génua; a virtude e a prudência de diversos homens devem poder muito
simplesmente ser somadas de maneira que numa dupla perspectiva,
tanto caracterológica como intelectual, delas resulte uma competên-
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ARISTÓTELES 165
6 — Aberturas
Críticas a Platão
dão deve cumprir a função (ergon) que lhe é própria (Política, III, 4,
1276 b 39).
A própria crítica de Aristóteles contra o livro n da República é
conduzida na base de duas premissas partilhadas por Platão: por um
lado, procura-se uma comunidade estatal em que se aliam desejabili-
dade e réalizabilidade (Política, II, 1, 1260 b 27 e segs.), trata-se pois de
uma cidade seguramente ideal, decerto, mas não puramente utópica;
por outro lado, ambos concordam com o diagnóstico de uma carên
cia: as constituições presentes não satisfazem ainda esta condição
(b 34 e segs.). As objecções avançadas segúidamente contra Platão são
enunciadas de maneira simultaneamente global e radical: o Estado
de Platão aspira a (1) um fim falso, emprega (2) para o seu fim meios
inapropriados que, além disso, têm (3) consequências prejudiciais.
Essas objecções múltiplas não são, na verdade, desenvolvidas a par
tir de um princípio comum. Mas a maior parte assenta na tese se
gundo a qual falta a medida das coisas em comum que convém a um
Estado bem ordenado.
A primeira série argumentativa começa pelas três opções conce
bíveis: os cidadãos não têm nem nada em comum, ou têm poucas
coisas, ou tantas coisas quanto possível. Ela exclui em seguida a pri
meira opção por um argumento lógico-semântico; a comunidade de
local, pelo menos, é indispensável ao conceito de Estado (Política, II,
1, 1260 b 40-1261 a 1). E contra a terceira opção, sustentada por Pla
tão, da maior unidade possível do Estado no seu todo (II, 2,1261 a 15
e segs.), Aristóteles defende um fim alternativo para o Estado. Porque
a aspiração a uma maior unidade destrói o Estado — é como a redu
ção de uma sinfonia a uma homofonia ou a de um ritmo a uma só
nota (Política, n, 5, 1263 b 35), pronuncia-se a favor da autarcia que
pertence ao fim ao qual se aspira absolutamente no mais alto grau, a
eudemonia.
Na sua crítica ao excesso de unidade no seio da elite dirigente, os
guardiães — até as mulheres, as crianças e as propriedades são par
tilhadas —, Aristóteles não se satisfaz com a objecção pragmática
segundo a qual se exige demasiado do homem real. Ele desenvolve
em vez disso a crítica de princípio segundo a qual o excesso de uni
ficação destrói o Estado na sua essência («natureza»); porque faz
dele uma oíkia, uma comunidade familiar e doméstica — na reali
dade levada artificialmente até ao gigantismo —, talvez até um homem
individual (II, 2, 1261 a 18-20; cf. República, V, 462 c). Além disso, no
número de mil homens armados admitido por Platão (IV, 423 a), a
170 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
Liberalismo ou comunitarismo?
KKeyt
K YTN nAni °en{M' iller
, David / nSfoife
F. D° n (ed
the Perf LifLe' 0 x•ford,
) Aectr w x 1992
/
(Mass.), 1991 . ’ ') , A ComPamon to Aristotle's «Politics» Cambridge Capítulo 3
I W g' 0tl tkf HUmm G°0d' Princeton, 1989.
I atzig, G. (ed.), Aristoteles’ «Politik» Aktpn dec yt c ■
1990. ' Akt d XL Symposium Aristotelicum, Göttingen,
Reveroin, O., La Politique d'Aristote, Genebra, 1965
Uma primeira crítica
da razão política: a sofística
Aristoteles, «Politik», Buch IV-VI, Berlim-Darmstedt 1996
por AlonsoTordesillas
ZW GeSCMChte ^ W Hl: Die praktische Vernuuft
Wolf, Francis, Aristote et la politique, Paris, 1991.
É sempre um desafio escrever sobre os sofistas, e com maioria de
Urmson, J„ Aristotle’s Ethics, Oxford, 1988.
razão quando se trata da sua filosofia política. Por um lado, porque
muito poucos textos chegaram até nós; em matéria política, os tex
tos são ainda menos numerosos, porque, ao todo, não temos à nossa
disposição mais do que certos fragmentos dispersos e em mau estado
de alguns papiros de Antifonte e um texto de Protágoras, apresen
tado por Platão, em que o sofista teria tratado da origem da política.
De resto, apenas algumas referências incluídas em obras que não
tratam directamente de política permitem, de vez em quando, for
mular algumas conjecturas, sem qualquer certeza a seu respeito. Por
outro lado, porque, apesar dessas indicações, e por vezes graças a
elas, somos efectivamente obrigados a renunciar a falar tranquilamente
de política sofística de tal forma divergentes, e até mesmo opostas e
contraditórias, parecem, a avaliar por alguns testemunhos, as atitu
des dos sofistas considerados individualmente. Perante essa falta de
documentos e essa dispersão de atitudes, devemos pois renunciar a
examinar a questão política a partir das posições dos sofistas? Parece,
pelo contrário, que o reconhecimento das divergências entre os
sofistas permite examinar esta questão sob um novo prisma sem nos
limitarmos a algumas obras menores que encerravam esses primeiros
pensadores políticos da Grécia em oposições rígidas: natureza-lei,
democracia-aristocracia, revolução política de um século de Luzes
-conservadorismo de momentos precedentes. É de notar, aliás, que
no debate sobre as democracias antigas que abunda nas democracias
modernas, em que na maior parte das vezes se procuram modelos e
se consideram as democracias antigas como paradigmas que permi
tem justificar, quando não fundar, as pesquisas contemporâneas, os
sofistas parecem poder trazer alguma luz à compreensão desses de
bates políticos na medida em que os traços que caracterizam algu
mas constituições políticas, tanto aos olhos dos gregos como aos
7
História
da Filosofia Política / 2
NASCIMENTOS
DA MODERNIDADE
Direcção de ALAIN RENAUT
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INSTITUTO
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Capítulo 1
A contribuição augustiniana:
Agostinho e o augustinismo
político
por Benoit Beyer de Ryke
De todos os autores da patrística, Agostinho é sem qualquer dúvida
aquele que exerceu a mais forte e mais durável influência sobre o Oci
dente latino da Idade Média. Frequentemente copiado, citado, usado
como auctoritas, o bispo de Hipona dominou o pensamento da cristan
dade ocidental, pelo menos até à grande síntese aristotélica-tomista do
século xiii. Todavia, mais do que a palavra, foi o espírito de Agostinho
que reinou no período medieval. Esse espírito augustiniano é aquilo a
que se chamou o augustinismo. O P.e Pierre Mandonnet definia-o pela
«ausência de uma distinção formal entre os domínios da filosofia e da
teologia, isto é, entre a ordem das verdades racionais e a das verdades
reveladas»; caracteriza-se também pela preeminência da noção de bem
sobre a de verdade, da vontade sobre a inteligência, da mesma forma que
pela preferência atribuída a Platão em detrimento de Aristóteles e pela
tendência «para apagar a separação formal entre a natureza e a graça».
Similarmente, Étienne Gilson escreveu na sua Introdução ao estudo de
Santo Agostinho que «entre duas soluções igualmente possíveis de um
mesmo problema, uma doutrina augustiniana tenderá espontanea
mente para aquela que atribua menos à natureza e mais a Deus».
O forte cunho doutrinal de Agostinho sobre o Ocidente marcou igual
mente a reflexão política. A noção de «augustinismo político» foi pro
posta por Henri-Xavier Arquillière numa obra tendo precisamente este
título: O augustinismo político, ensaio sobre aformação das teorias políticas
na Idade Média (1934). Estendendo ao domínio político as característi
cas do augustinismo em geral concebido como uma «tendência para
absorver a ordem natural na ordem sobrenatural», Arquillière definiu
38 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
1 — A teologia da história
e a política augustiniana
muito antes das filosofias modernas da história (Kant, Hegel, Marx). a História Universal de Bossuet e depois disso. Étienne Gilson passou
Houve, e certo, a tentativa de Eusebio de Cesareia de pensar o devir em revista diversas Metamorfoses da Cidade de Deus; colocando a obra
histórico do cristianismo, mas não teve a envergadura da doutrina do doutor africano ao lado dos trabalhos de Roger Bacon, Dante, Nicolau
augustiniana. Como escreveu Étienne Gilson: «Talvez pela primeira de Cusa, a Cidade do Sol de Campanella e A Nova Atlântida, de Francis
vez [...] graças à luz da revelação que lhe revela a origem e o fim ocul Bacon... Augusto Çomte inspirou-se no De civitate Dei para a sua defi
tos do universo, uma razão humana ousa tentar a síntese da história nição de humanidade como uma entidade composta mais de mortos
universal.» Diferentemente do pensamento cósmico antigo que não do que de vivos e incluiu-a entre os 158 volumes do catálogo da sua
reflectia a história, o cristianismo abre o caminho a uma visão histórica Biblioteca positiva.
do devir da humanidade, da criação e da queda à redenção e ao Juízo Vejamos agora o conteúdo dessa obra. Mas, em primeiro lugar, é
Final. Trata-se, bem entendido, de uma história providencial, conforme
preciso dizer algumas palavras sobre o contexto em que foi escrita
aos desígnios divinos. Esta teologia cristã da história — «teologia da
a Cidade de Deus. Agostinho viveu no momento de cristianização defi
história da salvação» como alguns precisaram — procura visualizar
nitiva do Império Romano. O mais ilustre dos Padres da Igreja latina,
conjuntamente a aventura temporal humana e a eternidade. Ao tempo
cíclico dos pensadores gregos, o cristianismo opõe um tempo histórico nasceu a 13 de Novembro de 354 em Tagasta, pequena cidade da
e linear, orientado por um princípio escatológico de salvação. A obra Numídia, e morreu a 28 de Agosto de 430 em Hipona — então sitiada
por excelência na qual Agostinho desenvolve a sua teologia da história pelos Vândalos —, cidade da qual era bispo católico desde 395 ou 396,
i e, ja o dissemos, De civitate Dei. Nela, explica que o mundo inteiro, ou seja, mais ou menos dez anos depois de sua conversão (386). Santo
| da sua origem ao seu termo, tem como fim único a constituição dé Agostinho elaborou uma reflexão doutrinal muito rica ao longo de uma
! urna sociedade santa, a dos eleitos, em vista da qual tudo foi feito. obra abundante (113 tratados, mais de 800 sermões, cerca de 300 car
• A Cidade de Deus, obra-prima do bispo de Hipona, teve um grande tas) e frequentemente polémica, reflexo dos combates que travou: con
I sucesso na Idade Média, como o atestam os numerosos manuscritos da tra o maniqueísmo que propunha um dualismo absoluto entre o bem e
| obra <lue foram conservados. Como escreveu precisamente Dom André o mal; contra os donatistas que, na África do Norte, reprovavam à
i Wilmart1*: «Nenhuma obra de Santo Agostinho foi copiada tantas vezes Catholica ter faltado ao seu dever aquando das perseguições; contra os
j como a Cidade de Deus e a lista dos manuscritos dela que podemos pelagianos que negavam a hereditariedade do pecado original e afir
j Propor permanece formidável relativamente às outras.» Wilmart esta mavam a capacidade da natureza humana de chegar à salvação sem o
; beleceu assim uma lista de 376 números, do qual o primeiro, um exem- recurso à graça. Quanto ao seu pensamento propriamente político,
I piar parcial remontando ao século v, é o mais antigo manuscrito conhe- exprimiu-o no seguimento de um acontecimento inaudito para as pes
|eido que ainda existe de uma obra de Santo Agostinho. A título de soas da época: o saque de Roma de 410.
I comparação, o número de manuscritos das Confissões é de 258. Sabemos que o século iv foi determinante para o sucesso do cristia
IA Cidade de Deus constituiu, duma ponta à outra da Idade Média, uma nismo. Perseguido e depois tolerado no início do século (perseguição
Ireferência incontomável na elaboração da reflexão política: Carlos de Diocleciano, 303-311/312), tomou-se religião de Estado em 380 quando
|Magno adorava que lha lessem e, no fim do século xiv, o rei Carlos V o imperador Teodósio promulgou o édito de Tessalónica tornando
Imandou-a traduzir para francês, com comentários pelo advogado Raoul obrigatório o cristianismo niceiano. Este mesmo Teodósio proibirá os
de Presles. O De civitate Dei foi o primeiro livro impresso em Itália, em cultos pagãos em 391. O século iv marcou portanto, para o Império, o
|1467 em Subiaco. Além disso, depois de ter fascinado o Ocidente medie- início dos têmpora christiana. Ora Roma, a cidade-farol desse Império,
jval, a Cidade de Deus continuou a exercer uma forte influência sobre as tomada cristã, iria sofrer em 410 o seu mais grave traumatismo: no dia
[doutrinas políticas e os pensamentos da história até aos Discursos sobre 24 de Agosto desse ano, os Visigodos de Alarico entraram na cidade
eterna e pilharam-na durante três dias. O escândalo foi geral. Na ver
dade, o desastre foi mais simbólico do que material. A queda de Roma
1 t ^ dlÇZ daS jbfaS de Sant0 Ag °stinho' in Miscellanea Agostiam, tomo n, Roma,
Y 3} ' ? ' cltado Por G- Bardy na sua introdução geral a Cidade de Deus, em Œuvres
relança a polémica entre pagãos e cristãos e suscita um debate sobre a
e Saint Augustin, vol. 33, trad. fr. G. Combès, «Bibliothèque augustinienne», Paris, intervenção da Providência na história. Os pagãos acusam os cristãos
Desdee de Brower, 1959, p. 135. ' de serem responsáveis pelas desgraças do Império porque tinham
42 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
(ver Epístola aos Hebreus, 11, 10; 10, 3-16; 12, 22-23; e Apocalipse
3; 13,2 e 10). Quanto à oposição das duas cidades, a celeste e a terrestre,
ela já tinha sido formulada pelo bispo donatista Ticonius onde talvez
Agostinho a tenha ido buscar. Santo Agostinho evoca estas duas cida
des em múltiplas obras anteriores a De civitate Dei: sobretudo nas
Enarrationes in Psalmos, mas também em De vera religione, De catechizanãis
ruáibus, De Genesi aã litteram e nas Confissões.
A Cidade de Deus divide-se em duas grandes partes: a primeira
(livros i a x) é polémica, trata-se de uma crítica às crenças dos pagãos,
esses «inimigos da Cidade de Deus que preferem os seus deuses»;
a segunda (livros xi a xxn), dogmática e construtiva, expõe a teologia
cristã da história, a saber, o começo, o progresso e o fim das duas cidades.
Cada uma destas duas partes — refutação do paganismo e afirmação
do cristianismo — subdivide-se por seu turno em múltiplas secções; a
primeira, em duas: os deuses pagãos não asseguram, àqueles que lhes
prestam culto, a felicidade material nesta vida (livros i a v), como não
lhes asseguram a felicidade espiritual na vida futura (livros vi a x);
a segunda e última parte divide-se, por seu turno, em três secções:
origem das duas cidades, da criação do mundo ao pecado original
(livros xi a xiv); história das duas cidades até à época de Agostinho,
cidades que estão inextrincavelmente misturadas no decurso do seu
desenvolvimento (livros xv a xvm); os fins últimos das duas cidades
(livros xix a xxn).
Para desenvolver o conteúdo do pensamento político do bispo de
Hipona, o melhor é ainda, parece, seguir as grandes articulações do De
civitate Dei, insistindo nas passagens mais significativas para o nosso
propósito. A primeira parte da obra parece não ter mais do que uma
relação bastante longínqua com o projecto augustiniano de esboçar a
história das duas cidades, desde a sua origem até à consumação dos
tempos. Trata-se na verdade, para o pensador africano, de refutar o
paganismo greco-romano antes de expor, na segunda parte, a visão
cristã do mundo e da história.
Os cinco primeiros livros são uma crítica dos politeístas que ado
ram os deuses em consideração dos bens materiais, deuses em quem
vêem os protectores dos interesses de Roma. O início de a Cidade de
Deus é, já o dissemos, uma obra de circunstância destinada a responder
à acusação formulada em 410 pelos pagãos, que sustentavam que o
saque de Roma tinha como causa o abandono, imposto pelo cristianismo
vinte anos antes, dos cultos tradicionais da religião romana (livro i).
Agostinho dirige-se assim aos cristãos, faz-lhes ver que a pilhagem da
cidade foi uma prova salutar na medida em que lembra o escasso valor
44 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
dos bens terrestres perecíveis: para eles, a felicidade não está neste
mundo. Aos pagãos, ele replica que os deuses romanos, esses «ídolos
de madeira e de pedra», nunca protegeram Roma, pelo contrário. Muito
antes do actual desastre, a imoralidade dos costumes dos seus deuses
tinha desencadeado a corrupção moral do povo. Agostinho cita aqui
Salústio: «A República transformou-se pouco a pouco e de muito bela e
muito boa tomou-se muito má e muito corrompida3.» O bispo de Hipona
tece desta forma uma ligação entre a imoralidade da religião romana, a
cormpção dos costumes individuais, sociais e políticos, e a ruína re
cente da cidade etema (livro n). Ele mostra à luz da história de Roma
que a Urbs conheceu desgraças no tempo do paganismo, quando o cris
tianismo nem sequer existia (livro m). Assim, a cidade tinha já caído
uma primeira vez em 390 a. C. sob os golpes dos Gauleses. Por outro
lado, a prosperidade material e o desenvolvimento do Império Romano
não podem ter sido obra dos deuses pagãos (livro iv), nem sequer obra
de uma pretensa fatalidade astrológica. A grandeza de Roma foi uma
dádiva do único verdadeiro Deus (livro v). Aqui, Santo Agostinho de
senvolve a sua concepção da Providência: a sorte dos impérios está nas
mãos de Deus, que favoreceu os Romanos dotando-os do amor pela
liberdade, pela glória e pelo domínio, virtudes que lhes permitiram ter
«o mais glorioso dos impérios». Foi a Providência divina, não o acaso
dos epicuristas ou o destino dos estóicos, que atribuiu a Roma a sua
glória terrestre como recompensa temporal das suas virtudes inatas.
Agostinho usa como testemunhas da grandeza romana o poeta Virgílio
e o historiador Salústio. A Roma que ele admira é aquela da República,
antes de degenerar no vício. A homenagem que o bispo de Hipona
presta aos homens virtuosos e aos heróis da Urbs, como César e Catão,
que souberam pôr o interesse geral à frente do interesse privado, essa
homenagem não o impede de relativizar a glória completamente hu
mana e terrestre do Império Romano, sem comparação com a glória do
Reino de Deus. Agostinho apela igualmente aos Romanos para que se
virem para o verdadeiro Deus, sem por isso renunciarem que foi a sua
grandeza. «Ambiciona antes estes bens, ó nobre índole do povo romano,
raça dos Régulos, dos Cévolas, dos Cipiões, dos Fabrícios. Sim,
ambiciona estes bens, mas distingue-os da infame vaidade, da pérfida
malignidade dos demónios. Se brilha em ti um dom natural estimável,
somente a verdadeira piedade pode purificá-lo e aperfeiçoá-lo; a impie
dade coloca-o em perigo e consome a sua ruína. Escolhe agora a tua
estrada para conseguir ser louvado sem erro, não em ti mesmo, mas no
verdadeiro Deus4.» Por outro lado, o bispo de Hipona mostra aos cristãos
que Roma deve ser um exemplo para eles: os cidadãos da cidade
celeste devem ultrapassar as virtudes dos Romanos. O livro v termina
com um elogio dos reinados idealizados dos imperadores cristãos
Constantino e Teodósio. O bispo de Hipona vê neles um modelo do
que poderia ser um Estado ou uma república cristãos, ainda que o pe
cado não esteja ausente. Quer isto dizer que Agostinho confunde a
cidade de Deus com o Império cristão? De forma nenhuma. Como ve
remos mais à frente, a cidade de Deus não pode ser realizada na terra.
Trata-se de uma cidade mística cuja realização é reportada ao fim dos
tempos e que vive como que em peregrinação na história. É certo,
Constantino e Teodósio são melhores do que os imperadores ímpios e
perseguidores, mas não podem estabelecer — ninguém o pode — a
cidade de Deus na terra. O equívoco do augustinismo político da Idade
Média será precisamente o de julgar possível a realização terrestre da
cidade celeste.
Os livros vi a x são uma refutação dos filósofos que justificam o
culto dos deuses pagãos com vista à felicidade ultraterrestre. Para ata
car os fundamentos intelectuais do politeísmo romano, Agostinho cita
abundantemente, com o fito de o criticar, o estudo do célebre erudito
Varrão, As Antiguidades das Coisas Humanas e Divinas. Partindo da dis
tinção feita por este autor entre três teologias — a teologia mítica ou
fabulosa, a teologia natural ou filosófica, e a teologia civil ou política —,
o bispo de Hipona começa por combater a primeira e a terceira (livros
vi e viii), antes de se debruçar sobre a teologia filosófica (livros vm, ix e x).
Entre os filósofos, Agostinho escolhe, como interlocutores privilegiados,
os platónicos e os neoplatónicos (Plotino e Porfírio em particular).
O augustinismo foi frequentemente apresentado como um platonismo
cristão, insistindo na influência sofrida por Agostinho, quer seja pelo
reconhecimento da pura espiritualidade e imaterialidade de Deus e da
alma quer, no domínio da noética ou teoria do conhecimento, a manu
tenção das ideias platónicas eternas em Deus e a doutrina da ilumina
ção interior. E certo, tal como Tomás de Aquino pôs em evidência —
pela primeira vez, ao que parece — no século x iii , Agostinho seguiu
Platão tanto quanto o toleravam os dogmas cristãos. Todavia, ao adoptar
este ponto de vista que apresenta o augustinismo como platonismo
cristão, arriscamo-nos a esquecer a subversão que Agostinho faz sofrer
ao platonismo. Segundo o bispo de Hipona, o cristianismo assegura ao
platonismo, de certa forma, a sua realização, apresenta-se como a
bondade totalmente gratuita, não é pelos seus méritos, que ele será terrena, devido ao facto de ser a cidade do diabo, cidade do mal, não
arrancado ao mal, quando se vir liberto da sociedade destes homens possui, na sua essência, um ser verdadeiro. Isso depende, é claro, da
com os quais ele teria devido partilhar o justo castigo8.» tese augustiniana, oposta ao maniqueísmo, da não substancialidade do
Agostinho parte portanto de uma consideração moral, a saber, a mal: Deus, sendo perfeito, não podia criar o mal. Este, portanto, é sem
constatação de que existem dois modos de vida antagónicos determi substância. Como Plotino, o bispo de Hipona pensa que o mal é uma
nados por dois amores — um bom, o outro mau; e faz remontar o prin deficiência do bem, que não pode ser atribuído a uma natureza, ao ser.
cípio desta oposição às consequências da culpa original do primeiro A sua origem é a vontade perversa de criaturas criadas boas. Isso torna
homem. Desde o pecado de Adão, a espécie humana divide-se em duas evidentemente a cidade terrestre mais difícil de apreender no seu
grandes cidades, duas sociedades simbólicas: a cidade do céu e a «menos-ser» (Marrou) do que a cidade do céu. Mesmo essa cidade da
cidade da terra. A primeira serve Deus e os seus bons anjos, a outra serve terra é boa por natureza, é a perversidade da sua vontade que a torna
o diabo, os anjos rebeldes e os demónios. Para definir a orientação destas má.
duas cidades, Agostinho retoma as expressões de São Paulo, «viver se Percorramos agora brevemente a teologia da história que figura na
gundo o espírito» e «viver segundo a carne», às quais prefere, contudo, segunda parte do De civitate Dei. Aqui, como por todo o lado no pensa
as expressões «viver segundo Deus» e «viver segundo si próprio» por mento augustiniano, a fé precede a razão. E portanto a revelação que
que estão menos sujeitas a mal-entendidos (sendo o orgulho do espí dá os elementos desse grande fresco histórico. Agostinho começa por
rito frequentemente mais grave do que o deboche da carne). Os cidadãos expor a origem primitiva das duas cidades. Para o fazer, parte da cria
da cidade celeste estão portanto unidos no seu amor a Deus, os da ci ção: criação do mundo, criação dos anjos (livro xi). E afirma que o pró
dade terrestre, no seu amor às coisas temporais. Se bem que estas duas prio tempo foi criado com o mundo, que é de alguma forma uma cria
cidades estejam inextrincavelmente misturadas no seu desenvolvimento tura: «É portanto incontestável que o mundo foi feito, não dentro do
histórico, elas serão separadas quando do Juízo Final, quando Cristo tempo, mas com o tempo.» Quanto ao espaço, ele também não existe
pronunciar a sentença e Jerusalém, a civitas Dei, aparecer à sua direita fora do mundo. Como preâmbulo à história das duas cidades, a espiri
enquanto Babilónia, a civitas terrena ou diaboli, estará à sua esquerda. tual e a carnal, o bispo de Hipona desenvolve o tema d as duas cidades
Se as duas cidades estão ligadas, é preciso notar que Agostinho as angélicas — uma boa, a outra má —, que estarão associadas às duas
mantém numa posição assimétrica entre si, de forma a evitar o risco do cidades humanas. No início, os primeiros homens qram felizes no
dualismo maniqueísta. Alguns emitiram no entanto a hipótese de que a paraíso (livro x h ) , antes do pecado e da irrupção do mal (livros xin e
teoria das duas cidades era em Santo Agostinho como que um resto de xiv), a primeira grande escansão na narrativa de Agostinho. Foi a partir
maniqueísmo. Não me parece que seja esse o caso. Tanto mais que, como do pecado que se operou a cisão entre os bons e os maus, da mesma
dissemos, as duas cidades não estão numa relação de igualdade: a ci forma que entre as cidades das quais Caim e Abel serão os fundadores, o
dade celeste acabará por se sobrepor à cidade terrestre. Reinhart primeiro da cidade da terra, o segundo da do céu. As etapas sucessivas
Koselleck insiste nesse ponto: «As duas cidades têm uma relação mútua desta história providencial distribuem-se em seis eras, reflexo dos seis
assimétrica. Não são domínios opostos de forma maniqueísta, consti dias da criação, antes do descanso do sétimo dia: de Adão ao dilúvio
tuem antes, estando as duas imbricadas nas leis hierárquicas de um (livro xv); do dilúvio a Abraão; de Abraão a David (livro xvi);
cosmos existente, um processo cujo resultado certo mas fixado no tempo de David à deportação para Babilónia; desta última a Jesus Cristo
não pode levar senão à vitória da civitas Dei.» A temporalidade das (livro xvii); por fim, de Cristo ao Juízo Final (livro x v iii ) . Esta reparti
duas civitates não tem, portanto, a mesma natureza: enquanto a eterni ção da história da humanidade em seis eras, fundamentada analogica-
dade caracteriza a cidade de Deus, a cidade terrestre não é de forma mente nos seis dias da criação da narrativa do Génesis, antes do des
nenhuma eterna, porque não se manterá como cidade depois do Juízo canso do sétimo dia, é extraída da tradição antiga dos hexâmetros, ou
Final, se bem que os seus membros sejam votados a penas eternas. Por comentários dos seis dias, dos quais Ambrósio tinha dado, no século iv,
outro lado, outro aspecto da assimetria entre as duas cidades, a civitas um belo exemplo. Existiam por outro lado diversas tentativas de
periodizações, tanto pagãs como cristãs, às quais Agostinho pôde ir beber
8 Vol. 35, XIV, X X V I, p. 461. ou nas quais ele em todo o caso se inspirou. Essas doutrinas das idades
50 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
que existe pelo menos um fim comum às duas, que é a paz: «Da mesma
forma que todos desejam a alegria, não há ninguém que não ame a
paz.» Esta busca universal da paz aparece em Santo Agostinho como
uma regra à qual se submetem todas as sociedades empíricas. Isso
permite-lhe criar um modelo formal constrangedor das regularidades
históricas, modelo fundado na sua teologia política. Essas regularida
des permitem a Agostinho estabelecer constantes e reduzir assim a
parte de imprevisibilidade na história. Constrói desta forma um esquema
de interpretação global das condições de possibilidade do desenrolar
histórico. Toda a sociedade busca a paz, mesmo quando faz a guerra.
«Uma vez que mesmo aqueles que querem a guerra seguramente não
querem mais nada senão a vitória, é portanto a uma paz gloriosa que
aspiram atingir ao fazer a guerra.9» A falta de paz neste mundo não
se deve portanto a uma falta de amor pela paz mas sim ao facto de que
cada um procura a sua paz e que a paz procurada é frequentemente
uma paz gloriosa, e daí as situações conflituosas. Agostinho parte do
axioma teológico da paz perfeita, que não existe a não ser no além, para
desvalorizar a paz neste mundo que, todavia, é ardentemente pro
curada no domínio terrestre. De tal forma que se o fim comum das duas
cidades é a paz, esta não é da mesma natureza para cada uma delas:
enquanto a paz da cidade do céu é eterna, a da terra nunca é definitiva.
A paz terrestre e a paz de Deus não podem ser confundidas. Não pode
ria haver paz verdadeira sem a graça salvadora de Deus. A verdadeira
paz não é deste mundo: «Nesta terra, é verdade, dizemo-nos felizes
quando temos paz, por muito pequena que seja essa paz que possamos
ter numa vida honesta; mas essa felicidade, comparada à beatitude que
chamamos final, é de facto uma verdadeira miséria10.»
Em que condição fundamental essa paz, que toda a sociedade deseja,
pode ser mantida na duração do tempo? E preciso para isso que a
ordem reine. Daí a definição que Santo Agostinho dá da paz: «A paz de
todas as coisas, é a tranquilidade da ordem11.» Agostinho define em
que consiste essa paz na cidade: «E a concórdia bem ordenada dos
cidadãos nos mandamentos e na obediência»; e na cidade celeste «é a
comunidade perfeitamente harmoniosa na fruição de Deus e na fruição
mútua em Deus». A paz resulta da ordem estabelecida por Deus.
Quanto à ordem, é «a disposição dos seres iguais e desiguais, desig
nando a cada um o lugar que lhe convém». Desejada por Deus, a
Estado: Redde Caesari quae sunt Caesaris, et quae sunt Dei Deo (Mateus,
22, 21). Esta palavra será interpretada como afirmando a distinção
necessária entre o temporal e o espiritual. Por outro lado, São Paulo
recomendava, sabemo-lo, a obediência ao Estado porque todo o poder
vem de Deus. Na época em que vivia Agostinho, esse poder tinha-se
tornado cristão. Na linha de Paulo e dos Padres dos primeiros séculos,
Agostinho afirmava que a Igreja no plano político deveria ser subme
tida ao poder imperial. Ele não acreditava, como sustentarão a maioria
dos clérigos depois da coroação de Carlos Magno (800), que a digni
dade imperial devesse ser transmitida por intermédio da Igreja. O bispo
de Hipona adoptava como sua a doutrina da origem divina do poder
do príncipe, fosse ele rei ou imperador. Mas não exprimiu de forma
muito clara quais eram as prerrogativas da Igreja, e quais eram as do
Estado. De onde uma certa imprecisão que alimentará os conflitos ul
teriores entre essas duas instituições. Tanto mais que, apesar da
heterogeneidade afirmada dos dois domínios do espiritual e do tem
poral, Agostinho julgou legítimo o recurso ao braço secular, logo à au
toridade civil, para lutar contra os heréticos e os cismáticos, como, por
exemplo, os donatistas. Aceitou portanto uma colaboração, no plano
religioso, entre o Estado e a Igreja. Poder-se-á dizer que para isso for
mulou votos para a constituição de um Império teocrático que se con
fundiria com a cidade de Deus? Certamente que não, mas a questão é
delicada. Passemos a palavra a Etienne Gilson que enunciou muito bem
o problema: «Não poderíamos portanto considerar Agostinho nem
como tendo definido o ideal medieval de uma sociedade civil subme
tida à primazia da Igreja, nem como tendo condenado à partida uma
tal concepção. O que permanece verdade, estrita e absolutamente, é
que em nenhum caso a cidade terrestre, e menos ainda a cidade de
Deus, pode ser confundida com uma forma do Estado, qualquer que
ela seja; mas que o Estado possa, e deva mesmo ser eventualmente
utilizado para os fins próprios da Igreja, e, através dela, para os fins da
cidade de Deus, é uma questão completamente diferente e um ponto
acerca do qual Agostinho não teria certamente nada a objectar. Se bem
que ele nunca tenha formulado expressamente o princípio, a ideia de
um governo teocrático não é inconciliável com a sua doutrina, pois se o
ideal da cidade de Deus não implica essa ideia, também não a exclui.»
Depois desta primeira parte sobre a política augustiniana, aborde
mos presentemente a constituição, na Idade Média latina, da dou
trina da teocracia pontifical, fundamentada nessa leitura redutora de
a Cidade de Deus a que chamamos, seguindo Arquillière, o augustinismo
político.
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 59
2 — 0 augustinismo político
e a teocracia pontifical medieval
sobre Roma, a península italiana e todo o Ocidente. Este texto terá uma
imensa aceitação durante toda a Idade Média e será utilizado como
argumento da política pontifícia, sobretudo a partir do século xiii.
Com Carlos Magno produz-se uma viragem na evolução do
augustinismo político. Enquanto até então, a tendência para absorver o
político no religioso tinha favorecido o poder eclesiástico, Carlos Magno
inflecte essa tendência em proveito do poder político. Ao fazê-lo, cons
titui uma espécie de teocracia imperial, prelúdio da teocracia pontifícia.
Com ele, o Império do Ocidente renasce, mas absorvido numa função
religiosa e sacra: o temporal funde-se com o espiritual. Carlos Magno,
«eleito de Deus», não se priva por outro lado de governar a sua Igreja:
ele legisla em todos os domínios como testemunham as capitulares,
intervindo em questões de disciplina eclesiástica, precisando o dogma
da trindade, tomando partido na querela das imagens. A antiga noção
romana de Estado, distinta da Igreja e fundamentada no direito natu
ral, tende a desaparecer completamente em proveito de uma respublica
christiana, à frente da qual se encontra um soberano cristão, detentor ao
mesmo tempo do poder temporal e da autoridade espiritual. É visível
que a distinção gelasiana dos dois poderes é colocada em dificuldades.
Mais do que nunca, o sonho medieval de uma unidade religiosa e polí
tica parece realizado. O seu horizonte é a comunidade política de to
dos os cristãos. Sob Carlos Magno, o imperador está à frente dessa uni
dade mística; mais tarde, o papa vai substituir-se ao imperador na
direcção da sociedade cristã. Um ponto anunciava já a preeminência
do papa sobre o imperador: a sagração carolíngia. Ao fazer-se —
voluntariamente ou não — coroar pelo papa Leão III no dia de Natal de
800, Carlos Magno colocava implicitamente o poder laico sob depen
dência do poder espiritual. Era o reconhecimento da superioridade do
pontífice sobre o imperador, porque se este último está à frente
do mundo cristão, ele não é, apesar disso, mais do que o advogado de
uma Igreja cujo chefe espiritual é o papa. Em polémicas posteriores, a
sagração de Carlos Magno — e depois, de qualquer outro imperador
— será um argumento de peso a favor da supremacia pontifícia.
Sob o sucessor de Carlos Magno, Luís, o Piedoso (814-840), as coisas
mudam. O episcopado mostra pretensões hierocráticas, das quais Jonas
de Orléans se toma o teórico na sua De institutione regia (cerca de 830),
um dos mais antigos tratados políticos do período medieval. Afirma nele
o primado da autoridade sacerdotal sobre o poder imperial. Para ele,
a política não é mais do que a aplicação da moral cristã. Esta ideologia
episcopal participa seguramente no augustinismo político. Se o rei não
é justo, já não tem direito ao seu título de rei. É o que acontece em
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 63
delega ao imperador o gládio temporal, é para não ter ele próprio que
se servir dele, tendo Cristo dito a Pedro: «Embainha de novo a espada.»
Este argumento dito «dos dois gládios», ou das duas espadas — uma
material, outra espiritual —, foi elaborado pela primeira vez no século
xn por Bernardo de Clairvaux no De consiãeratione aá Eugenium papam e
por João de Salisbúria no Policraticus.
É também no século xiii que Aristóteles faz o seu aparecimento na
universidade criada de novo. O aristotelismo universitário vem legiti
mar, contra o augustinismo político do papado, a ascensão das monar
quias nacionais. Tomás de Aquino (1225-1274), inspirado pela Política
do Estagirita, retoma o direito natural do Estado: a sociedade, e a auto
ridade política que lhe está ligada, é um facto da natureza, desejado por
Deus na ordem da criação. O homem é naturalmente sociável, natural
mente inclinado a viver em sociedade. O Estado não tem como causa o
pecado original como em Agostinho. A distinção é feita entre o Estado
ou a sociedade política, realidade natural que goza de uma certa auto
nomia no seu domínio, e a Igreja, sociedade religiosa. O desenvolvi
mento deste naturalismo tomista não porá fim, todavia, à tradição do
augustinismo político. Sublinhemos, contudo, que se Tomás de Aquino
reconhece uma relativa independência temporal aos poderes seculares,
estes não ficam menos submetidos, quanto ao espiritual, à autoridade
do vigário de Cristo. Os dois domínios são distintos, mas o fim espiri
tual é o mais alto dos dois. Também o espiritual deve, em última aná
lise, subordinar o temporal, e o poder pontifício subordinar o poder
secular. A perspectiva permanece globalmente teocrática.
Com a bula Unam sanctam publicada em 1302 no contexto do seu
diferendo com o rei de França, Filipe IV, o Belo, Bonifácio VIII (1294-1303)
dá a definição mais forte da teocracia pontifícia alguma vez formulada
por um papa. É uma declaração dos direitos do pontífice romano afir
mando que todos os homens lhe estão em tudo submetidos. A Igreja,
ima, santa, católica e apostólica, tem como missão levar os homens à
salvação e fora dela não há remissão possível. A frente dela está um
chefe único, o vigário de Pedro, que tem todos os poderes: detém os
dois gládios do temporal e do espiritual, delegando o primeiro aos prín
cipes laicos que lhe estão subordinados. O poder pontifício, poder espi
ritual convertido em poder eclesiástico, é portanto absoluto e quem quer
que lhe resista «resiste à ordem estabelecida por Deus». Encontramo-nos
aqui diante de um ponto culminante da retórica teocrática e do dis
curso do augustinismo político pontifício. Nestas declarações de Bonifácio
Vm, não há lugar para o direito natural do Estado: tudo está orientado
68 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
Bibliografia
Bibliografia
Capítulo 3
[Cf. Repertorium edierter Texte des Mittelalters. Ed. R. Schönberger (1994), n.° 13372-
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'■ in ^ to que direito e em virtude de qual justiça conservais vós esses índios
num a tão cruel e tão horrível servidão? Q uem poderia autorizar-vos
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tranquilam ente e pacificam ente no seu país, e a exterm iná-los em nú
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m ero tão infinito, através de assassinatos e de chacinas inauditas? Es
O ckham , Guillelmus de, Opera philosophic et theologica, cura institut! Franciscani ed
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- , Opera politico, ed. H. S. Offler, vol. P, II, III, IV (1974,1956,1963 1997) N ão sois vós obrigados a am á-los com o a vós próprios?... Ficai p ersua
- , Dialogue, impresso por Johannes Trechsel (Lyon, 1494 [Reimpresso in: Guillelmus de didos de que no estado em que vós vos encontrais, não encontrareis
c am. Opera plunma, vol. 1, 1963]). De acordo em esta edição: M. Goldast, m ais a vossa salvação do que os M ouros ou os Turcos que ignoram ou
Monorchia s. Romani Impen, vol. II (Francfort-sur-le-Main, 1614). Reimpressão: Graz
1960. Reimpressão: ed. L. Firpo, Turim, 1970, pp. 394-957. desprezam a fé de Jesus C risto1.
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meira aula pública (Relectio) sobre os índios recentemente descobertos,
VlLT w 5 M 9 S np p ' 163 M *™ ^ dmit SUbjeCtif' in A rc h iv e s d e P h ilo so p h ie d u d ro it
V ossenkuhl e S chönberger R. (ed), Die Gegenwart Ockhams, 1990. 1 O sermão é apenas conhecido devido à relação que fez dele, muito mais tarde,
Bartolomeu de Las Casas. Cf. Las Casas et la défense des Indiens, apresentado por
W illm es, B Kontingenz und Konkretion, Wilhelm von Ockham, in Die Rolle des Juristen bei
M. Bataillon e A. Saint-Lu, Paris, Archives Julliard, 1971, pp. 67-69.
der Entstehung des modernen Staates, ed. R. Schnur, 1986, pp. 13-49.
106 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
* *
2 O grande historiador e editor Angel Losada sublinhou com frequência, com ênfase, a
importância real desta controvérsia: «Nunca, sem dúvida, nem antes daquela data
nem depois, um imperador tão poderoso — e, em 1550, Carlos V, imperador do Sacro
Império Romano, era o soberano mais poderoso da Europa, à cabeça de um grande
império colonial — ordenou a suspensão das conquistas até que se decidisse se elas
eram justas», in «Evolución dei Moderno Pensamiento Filosófico-Histórico sobre Juan
Ginés de Sepúlveda», Actas de Congreso internacional sobre el V Centenário ãel nacimiento
dei Dr. Juan Ginés de Sepúlveda, Córdova, 1993, p. 11.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 107
7 Ia Ilae, qu. 91, a. 2: «[...] Uma tal participação da lei eterna na criatura, chamamos-lhe
a lei natural.» Cf. também Ia Ilae, qu. 93, a. 1: «[...] A lei eterna não é mais do que a
razão da divina sabedoria, na medida em que ela dirige todos os actos e todos os
movimentos.» — Sobre tudo isto, podemos remeter para os trabalhos de Michel Villey,
especialmente Questions de Saint Thomas sur le droit et la politique, Paris, PUF, 1987;
La Formation de la pensée juridique moderne, Paris, éditions Montchrétien, 1975 (4.3 ed.),
particularmente pp. 123 e segs.
8 Cf. Jean-Marie Aubert, Le Droit romain dans l’oeuvre de Saint Thomas, Paris, Vrin, 1955.
110 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
[...] pela sua definição, a lei humana deve derivar-se da lei da natu
reza. E deste ponto de vista, dividiremos o direito positivo (jus positivum)
em direito das gentes (jus gentium) e direito civil (jus civile), segundo as
duas maneiras como um preceito pode derivar da lei natural.
9 Ia Ilae, qu. 95, a. 2: «Nas coisas humanas, uma coisa é dita justa pelo facto de estar
conforme à regra da recta razão. Mas a regra primeira da razão, é a lei natural. Desde
logo, toda a lei positiva humana não terá razão de lei senão na medida em que deriva
da lei natural.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 111
coisa que, contudo, está enraizada na lei natural, uma vez que o ho
mem é por natureza um animal social10.
18 Ibid.: «Falando em absoluto, o facto de apreender qualquer coisa não pertence ape
nas ao homem, mas igualmente aos outros seres animados. E é por esta razão que o
direito a que chamamos natural de acordo com o primeiro modo é a nós e aos outros
seres animados. [...] Em contrapartida, o facto de comparar qualquer coisa relacio-
nando-a com aquilo que dela procede como consequência, eis o que é próprio da
razão» (Absolute autem apprehendere aliquid non solum convenit homini, sed etiam alliis
animalibus. Et ideo jus quod dicitur naturcde secundum primum modum, commune est
nobis et aliis animalibus. [...] Considerare autem aliquid comparando ad id quod ex ipso
sequitur, est proprium rationis).
19 «Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populos peraeque
costoditur vocaturque jus gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur», Institutiones I,
2 ,1 , Corpus Juris Civilis, éd. Krueger, I, p. 1.
20 Ibid, ad tertium: «[...] Na medida em que a razão natural dita o que releva do direito
das gentes, esses direitos não têm necessidade de qualquer instituição especial, mas
é a própria razão que os institui» ([...] quia ea quae sunt juris gentium naturalis ratio
dictat..., inde est quod non indigent aliqua spedali institutions, sed ipsa naturalis ratio ea
instituit).
116 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
2 — Vitoria
Uma das peças centrais na reflexão jurídico-política de Vitoria
— aquela que subtende o edifício, solidamente estruturado, da Relectio
de Indis23 —é a análise da comunidade política como comunidade perfeita
I perseguindo um fim próprio e suficiente; análise central na primeira
| lição pública, a Relectio de Potestate civili, pronunciada no fim do ano de
i 1528, no início da sua docência em Salamanca24. Vitoria está muito cons-
j
| ______________
21 Sobre tudo isto, cf. Michel Villey, Questions de saint Thomas sur le droit et la politique,
I Paris, PUF, 1987, em particular pp. 121 e segs., 141 e segs.
j 22 Retomamos aqui a caracterização tão pertinente de Venando Carro, La teologia y los
! teólogos-juristas espanoles ante la conquista de América, 2 vol. Madrid, 1955.
j 23 A edição de referênda é hoje a de L. Perena e J. M. Prendes, edição crítica com
tradução espanhola (no Corpus Hispanorum de Pace), Madrid, CSIC, 1967. Citaremos
j também a tradução francesa, com introdução e notas, de M aurice Barbier, Leçons sur
I les Indiens et sur le droit de guerre, Genebra, Droz, 1966. Infelizmente esta tradução,
I de resto excelente, não se pôde apoiar na edição de L. Perena. Assinalamos também
| a notável edição italiana bilingue, que dá o texto da edição crítica: Relectio de Indis.
j La questione ãegli índios> texto crítico de L. Perena, edição italiana e tradução de
A. Lamacchia.
24 Edição T. Urdánoz, Obras de Francisco de Vitoria, Relecciones Teológicas, Edição crítica
do texto latino, versão espanhola, Madrid, BAC, 1960. Tradução francesa por Maurice
Barbier, Leçon sur le pouvoir civil, Paris, Vrin, 1980. — A edição Urdánoz comporta
uma excelente introdução biográfica (pp. 1-107).
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 117
25 Trad. citada, p. 43: Pater ergo quod fons et origo civitatum rerumque publicaram, non
inventam est hominum, neque inter artificata numerandum, sed tanquam a natura profectum.
26 «[...] foi necessário ao homem não errar à aventura dispersando-se e isolando-se
como os animais selvagens, mas socorrer-se mutuamente vivendo em sociedade»,
trad. citada, p. 41.
27 «Se nos abstrairmos do direito comum positivo e humano, já não existe razão para
que esse poder pertença a um mais do que ao outro. É portanto necessário que seja
a própria comunidade que se baste e que possua o poder de se governar [...] Não
existe razão para que, dentro da comunidade política, cada um reclame para si um
poder sobre os outros» (trad. citada, p. 46).
118 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
28 De jure belli, 7-9 [24-28], trad., fr. citada, pp. 118-119: «Mas saber o que é um Estado
e quem é príncipe propriamente dito é toda a dificuldade. Respondamos brevemente
que chamamos Estado, propriamente dito, a uma comunidade perfeita. Mas o que é
uma comunidade perfeita? Essa é a questão. — Sobre este assunto é preciso notar
que «perfeita» equivale a «completa». Porque aquilo a que falta qualquer coisa é
dito imperfeito e, pelo contrário, aquilo a que nada falta é dito perfeito. E logo é
perfeito o Estado ou a comunidade que forma um todo em si mesmo, isto é, que não
faz parte de um outro Estado, mas que tem as suas leis próprias, o seu conselho
próprio e os seus magistrados próprios [...] Consequentemente, o direito de decla
rar a guerra pertence apenas a um Estado perfeito ou ao seu príncipe.»
29 «O Estado não pode de maneira nenhuma ser privado do poder de se defender e de
se proteger das injustiças dos seus súbditos e dos estrangeiros, coisa que não pode
fazer sem poderes públicos» (trad. citada, p. 55).
30 «Non est impedimentum quod aliquis sit verus dominus.»
31 Trad. citada, p. 21. Cf. Ha Ilae, qu. 10, a. 10: « E preciso ter em conta o seguinte: a sobe
rania e a autoridade foram introduzidas pelo direito humano, a distinção entre fiéis e
infiéis é, pelo contrário, de direito divino; apenas esse direito divino que vem da graça
•não destrói o direito humano que vem da razão natural. É por isso que a distinção entre
fiéis e infiéis, por si só, não suprime a soberania nem a autoridade dos infiéis sobre os
fiéis» (Ubi considemndum est quod dominium et praelatio introducta sunt ex jure humano;
distinctio autemfidelium et infidélium est exjure divino. Jus autem divinum, quod est exgratia,
non tollit jus humanum, quod est ex naturali ratione. Et ideo distinctio fidelium et infidélium,
secundum se considerata, noa tollit dominium et praelationem infidélium suprafideles).
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 119
35 Cf. Lições Sobre o Poder Político, trad. citada, p. 55: «Se, com efeito, o homem não pode
renunciar ào direito e à faculdade de se defender e de se servir dos seus membros à
sua vontade, também não pode portanto renunciar ao poder, porque este lhe per
tence em virtude do direito natural e divino. Da mesma forma também, o Estado
não pode de nenhuma maneira ser privado do poder de se defender e de se proteger
contra as injustiças dos seus súbditos e dos estrangeiros, coisa que não pode fazer
sem poderes públicos.» — Sem dúvida que caberá a Las Casas, e apenas a ele, ir
muito mais longe no reconhecimento da diversidade das comunidades políticas e
dos seus direitos próprios, afirmando que cada Respüblica tem igualmente o direito
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 121
de defender os seus deuses e que essa é uma primeira marca fundamental de pie
dade. Na 11.® réplica redigida por Las Casas para responder às objecções de
Sepúlveda na célebre controvérsia de Valladolid, em 1550 (cf sobretudo, a propó
sito dessa controvérsia, Lewis Hanke, All Mankind is one. A study of the Disputation
between Bartolome de Las Casas et Juan Ginés de Sepúlveda in 1550, on the Intellectual and
Religious Capacity of the American Indians, Northern Illinois Press, 1974; ver também
a excelente síntese de A. Losada, que terá contribuído grandemente para uma apre
ciação m ais apurada das posições de Sepúlveda, «The controversy between
Sepúlveda and Las Casas in the Junta of Valladolid», na obra colectiva: Bartolome de
Las Casas in the History. Toward an understanding of the Man and His Work, ed. Juan
Friede e Benjamin Keen, Northern Illinois University Press, 1971, pp. 279-306), Las
Casas declara, com efeito: «Dada a convicção (errónea) em que se encontram os
idólatras de que as divindades que honram são o verdadeiro Deus, não só têm o
direito de defender a sua religião, como o direito natural a isso os obriga, e se eles
não quiserem expor as suas vidas para defender os seus ídolos e os seus deuses,
pecam mortalmente. A razão disso é, entre muitas outras, que todos os homens são
obrigados, pela lei natural, a amar e a servir Deus mais do que a eles próprios, e a
defender a honra e o culto divino inclusivamente até à morte [...]. E não existe ne
nhuma diferença quanto a esta obrigação entre aqueles que conhecem o verdadeiro
Deus, ou seja os cristãos, e aqueles que não o conhecem e que julgam verdadeira
qualquer divindade. [...]. Porque a consciência errónea liga e obriga tal como a cons
ciência recta [...]» (in Las Casas, L'Evangile et laforce. Apresentação, escolha de textos
e tradução por Marianne Mahn-Lot, Paris, Cerf, 1964, p. 192).
36 Como sabemos, o termo será oficialmente proscrito a partir das Leis novas de 1542.
37 C f M. Senellart, «L'effet américain dans la pensée politique européenne du XVIe
siècle», in Penser la rencontre de deux mondes, publicado sob a direcção de A. Gomez-
-Muller, Paris, PUF, 1993, pp. 80-81.
38 Foi sob este título que foi publicada separadamente a terceira parte da Defensio Fidei,
ed. E. Elorduy e L. Perena, Madrid, CSIC, 1965.
122 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 123
O tratado de 1539 é organizado em tomo da discussão de sete títu legítimo sobre as suas terras, e, por esse facto, os príncipes cristãos não
los impróprios e ilegítimos e de igual número de títulos legítimos, Vi têm nenhum direito imediato à Conquista43. A questão da guerra justa é
toria examina em primeiro lugar os títulos ilegítimos: a soberania mun elaborada em princípio no quadro de uma reciprocidade e de uma
dial do imperador — a soberania mundial do Soberano Pontífice; — o reversibilidade a priori: todos os direitos dos Espanhóis relativamente
jus inventionis (a descoberta); — a recusa do cristianismo; — os crimes aos bárbaros são igualmente válidos tratando-se dos bárbaros relativa
bárbaros; — o pretenso livre acordo ou consentimento dos índios; — a mente aos Espanhóis. Esses direitos são recíprocos (jura contraria), de
missão divina especial definida pelas Bulas Alexandrinas. Importa notar acordo com uma reversibilidade total. Daí a fórmula, que parece fre
imediatamente que um certo número de títulos considerados como não quentemente estranha e escandalosa, a propósito do direito de «socie
legítimos será retomado, transformado e assumido nos títulos legítimos; dade e de comunicação», que desenvolve o exame do primeiro título
é nomeadamente o caso da propagação do cristianismo, do direito de legítimo de dominação (dicio):
intervenção e de protecção. É devido a essa estrutura argumentativa
que Cari Schmitt39 pôde insistir com razão naquilo que ele chama «a É permitido aos Espanhóis o comércio com os bárbaros, mas com
imparcialidade, a objectividade, a neutralidade» do autor cuja argu a condição de não trazer prejuízos ao país deles. Eles podem, por
mentação já não aparece como medieval, mas sim como moderna40. exemplo, levar as mercadorias que lhes fazem falta e entregar ouro,
O mesmo Cari Schmitt sublinha ainda a profunda novidade da tese prata ou outros bens que têm em abundância. Os príncipes índios
central de Vitoria, no seu comentário do primeiro título legítimo da não podem impedir os seus súbditos de comerciar com os Espa
«dominação dos Espanhóis sobre os bárbaros41», o do direito natural nhóis e, inversamente, os príncipes espanhóis não podem proibir o
de «sociedade e de comunicação» (I, 3,1). Vitoria recusa aí a fórmula comércio com os índios. [...] Em suma, é certo que os bárbaros não
de Plauto: O homem é um lobo para o homem, nestes termos: Non enim podem impedir o comércio aos Espanhóis mais do que cristãos po
homini homo lupus est, ut ait Comicus, sed homo. E Cari Schmitt comenta dem impedi-lo a outros cristãos. Ora, é evidente, se os Espanhóis
assim: impedissem os Franceses de comerciarem com eles, não para o bem
de Espanha, mas para que os Franceses não tirassem proveito desse
O termo «homo» repetido por três vezes soa de maneira tautológica comércio, essa seria uma lei injusta e contrária à caridade44. [Subli
e neutralizadora; [...] [para a Idade Média] a qualidade comum: ser nhado por nós.]
homem, não tinha ainda necessidade de nivelar as diferenças sociais,
jurídicas e políticas que apareceram ao longo da história humana [...] Vitoria leva a inversão até ao ponto de impor aos bárbaros o man
Todos os teólogos cristãos sabiam que os infiéis, os Sarracenos ou os damento evangélico: «Ama o teu próximo como a ti mesmo!»
Judeus eram homens, e o direito das gentes da Respublica christiana,
com as suas distinções traçadas entre diferentes tipos de inimigos e Os Espanhóis são o próximo dos bárbaros, como mostra a
consequentemente de guerra, assentava sobre distinções profundas parábola do bom Samaritano (Lc 10,29-37). Ora os bárbaros são obri
entre os homens e sobre a grande variedade do seu estatuto. gados a amar o seu próximo como a si próprios (Mt 22, 39). Não
43 Ibid., pp. 73-74. Cf. a discussão da primeira questão examinada por Vitoria (1 ,1 ,1 ;
Ora são essas distinções que são apagadas pela tautologia de Vito trad. fr. p. 13): «Os índios tinham um poder verdadeiro, tanto público como pri
ria, a título de uma primeira e decisiva neutralização42. Os príncipes vado?» e a conclusão dessa discussão (1,1,16; trad. fr., p. 32): «De tudo o que precede
dos povos não cristãos — vimo-lo — têm uma jurisdição legítima sobre resulta portanto que, sem nenhuma dúvida, os bárbaros tinham, tal como os cris
esses povos, tal como os habitantes do Novo Mundo têm um dominium tãos, um poder verdadeiro, tanto público como privado. Nem os príncipes nem os
cidadãos puderam ser despojados dos seus bens sob o pretexto de não terem poder
verdadeiro (non essent veri domini). Seria inadmissível recusar àqueles que nunca
39 Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum, Berlim, 1950. cometeram injustiça aquilo que concedemos aos Sarracenos e aos Judeus, esses ini
40 Ibid., p. 71. migos perpétuos da religião cristã. Reconhecemos com efeito a estes últimos um
41 Leçons sur les Indiens et sur le droit de guerre, introdução, trad. e notas por M. Barbier, poder verdadeiro sobre os seus bens, salvo quando se apoderaram de territórios
Genebra, Droz, 1966, p. 82. cristãos.»
42 Ibid., p. 74: «Neutralisierung», «neutralisierende Argumentation». 44 1,3, 2; trad. fr., p. 85.
124 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 125
podem portanto afastar sem razão os Espanhóis do seu país. Com para isso é certamente que em Vitoria, e mais ainda em Las Casas, o
efeito, Santo Agostinho escreveu no De doctrina christiana: «Quando exame dos títulos da conquista desenvolve-se ainda, na realidade, num
dizemos: Tu amaras o teu proximo”, é evidente que o próximo é horizonte que permanece largamente teológico ou económico-
todo o homem45.» -teológico49. Aquilo a que o teólogo-jurista não pode renunciar, aquilo
que ele nunca põe em causa directamente, como não o fará Suárez50, é
Podemos, por fim, como faz Vitoria na discussão do terceiro título o quadro doutrinal da problemática da guerra justa. Com isso, ele adere
ilegítimo46, inverter, por hipótese, o movimento da descoberta, de Oeste ainda plenamente à base conceptual e jurídica da Respublica christiana,
para Este: os índios não teriam mais direitos sobre nós, a título de um o que nos mostra também a dimensão da extraordinária tensão que
pretenso «direito de descoberta», se tivessem sido que nos tivessem atravessa toda a sua obra ou mais precisamente a Relectio de Indis: com
descoberto (non plus quam si illi invenissent nos...); esta é ainda uma ou efeito, reencontramos aí a argumentação, a retórica tradicional (esco
tra forma, é certo que paradoxal, de defender os índios e de assegurar lástica) que mantém os quadros fundamentais da missão, da evan
a legitimidade do seu dominium: gelização, da causa de uma justa guerra, e ao mesmo tempo o alargamento
incontestável do horizonte através da noção de totus orbis, a radicalização
Sem dúvida, em virtude do direito das gentes, o que não pertence do tema da societas e do commercium, o retomar e a transposição para o
a ninguém torna-se propriedade daquele que disso se apodera [...] Mas plano internacional da philia aristotélica-ciceriana.
esses bens [os descobertos pelos Espanhóis] não eram desprovidos de Como vimos, aos olhos de Vitoria, o primeiro título legítimo da con
proprietários. Esse título não se aplica portanto a eles [os índios] [...] quista espanhola é o direito natural de sociedade e de comunicação (De
Em si mesmo esse título [o direito de descoberta] não justifica de ma Indis, 1,3,1), fundado na amizade que uma natureza comum estabelece
neira nenhuma a possessão desses territórios, não mais do que se os entre todos os homens. Esse é um direito fundamental, natural e, no
bárbaros nos tivessem descoberto47. limite, susceptível de ser imposto.
Todo o ser vivo ama o seu próximo, dizem as Escrituras. Parece
É sem dúvida em relação a anotações deste género que é preciso portanto que a amizade entre os homens seja de direito natural e que é
compreender o comentário de Cari Schmitt, denunciando em Vitoria contra-natura evitar a sociedade dos homens inocentes51.
«uma subtileza demasiado abstractamente neutra, desligada e conse
quentemente igualmente a-histórica»48. A a-historicidade merece em O primeiro título legítimo que depende do direito das gentes e
todo o caso ser sublinhada aqui na medida em que marca bem a imensa por isso do direito natural é portanto o da circulação e livre comuni
distancia que separa as considerações jurídicas de Vitoria de qualquer cação:
tomada de posição regulada por uma ideia de progresso ou de supe
Os Espanhóis têm o direito de ir até e permanecer nesses
rioridade de uma civilização relativamente a outra, e é talvez um dos
territórios [...] Podemos mostrá-lo, antes de tudo, a partir do di
traços que contribuem para distinguir mais claramente a posição de
reito das gentes que é ou o direito natural ou derivado do direito
Vitoria da de um autor (mais moderno) como Juan Ginés de Sepúl-
Y£da. Não encontramos em Vitoria, e afortiori em Las Casas, nenhuma
perspectiva que diga respeito àquilo que poderíamos chamar, 49 Este ponto é naturalmente ainda mais acentuado num Las Casas do qual pudemos
anacronicamente, uma qualquer filosofia da história. A razão principal evocar o profetismo. Cf. F. Cantü, «La dialectique de Las Casas et l'histoire», in Le
Supplément, n.° 160, Cerf. Março de 1987, pp. 5-26. Este número inclui uma preciosa
documentação consagrada a «Las Casas & Vitoria. O direito das gentes na era mo
45 1,3 ,1 . Aqui mais uma vez, a comparação com Las Casas permite medir o fosso que derna».
separa as duas doutrinas. 50 Cf. L. Perena Vicente, Teoria de la guerra en Francisco Suárez, Madrid, CSIC, 1954.
46 I, 2 ,1 0 ; trad. fr., p. 59. O tomo n inclui a edição crítica do De bello.
47 E permitido permanecer sonhador perante a nota do tradutor: «É a afirmação da 51 De Indis, 1 ,3 ,1 (trad. 83): «Omne animal diligit sibi simile (Eccl. 13 [19]). Ergo videtur
igualdade dos povos e das raças.» quad amidtia ad omnes homines sit de jure naturali, et quod contra naturam est vitare
48 Op. cit., p. 76. consortium hominum innoxiorum.»
126 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
52 Institutiones, I ,2 ,1 Corpus Juris Civilis, tomo i, ed. Krueger, p. 1: «Quod vero mturalis
ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque jus
gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur.»
53 De Indis, 1,3 ,1 , trad, fr., p. 82 (CSIC, pp. 77-78): «Primus titulus potest vocari naturalis
societatis et communicationis. — Et circa hoc sit prima conclusio: Hispani habent jus
peregrinandi in illas provindas [...] Probatur primo ex jure gentium, quod vel estjus naturale
vel derivatur ex jure naturali (Inst. De jure naturali et gentium): "Quod naturalis ratio
inter omnes gentes constituit, vocatur jus gentium": Apud omnes enim nationes habetur
inhumanum sine aliqua speciali causa hospites et peregrinos male accipere; e contrario autem
humanum [et officiosum] se bene habere erga hospites; quod non esset si peregrini male
facerent accedentes in alienas nationes.»
54 Neste sentido, podemos considerar excessivas as conclusões de Henri Méchoulan,
Le Sang de Vautre et l'honneur de Dieu, Paris, Fayard, 1979: «O direito das gentes é um
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 127
que, numa das suas últimas obras, o De thesauris55, sublinhava que di
reito natural e direito das gentes autorizam também a defender e a
proibir a penetração no território, o comércio e a liberdade de trocas:
quer dizer que eles receberam da natureza qualidades que lhes permi
Mas o que vale esta analogia e em particular como designar aquele
tem comandar e governar. Assim, admitindo que esses bárbaros sejam
que teria a seu cargo exercer tal poder internacional cujo direito de
tão estúpidos e obtusos como se diz, não devemos por isso recusar
intervenção pela causa superior da humanidade («direito de ingerên
-lhes um poder verdadeiro e não se deve incluí-los no número dos es
cravos legítimos [...]61 cia») é seguramente uma peça essencial63? Com efeito, o princípio de
tal intervenção nunca é discutido a partir do momento em que se trata
de sacrifícios humanos, de prostituição sagrada, de antropofagia, de
Mas deixemos de lado a controvérsia de Valladolid e a dialéctica sodomia... Uma vez reconhecido esse direito, a verdadeira e espinhosa
subtil da Relectio, e regressemos, para concluir neste ponto, à tese fun questão é evidentemente a das suas limitações. Da mesma forma que a
damental do teólogo jurista: se o totus orbis - transposição laicizada comunidade política nunca se fundamenta num contrato ou num con
da Respública christiana ou do Imperium — constitui de uma certa forma curso de vontade, mas assenta no direito natural e encontra o seu ponto
(ahquo modo) um único corpo político (una respública), Vitoria não de ancoragem na necessidade que o homem tem de se humanizar atra
considera por isso que ele possa materializar-se numa instância vés dos seus laços sociais que asseguram desde logo a sua conservação
supranacional ou superestatal. E certo, na sua Lição Sobre o Poder Polí e a sua defesa, a sociedade internacional, mesmo que ela se actua
tico, vai até à estipulação de uma «autoridade do mundo inteiro» como lize factualmente através dos pactos, nunca é em si mesma de
fundamento do direito das gentes. Contudo, para ele, permanece em essência contratual, mas sempre de direito natural64; ela é, também,
aberto a questão da possível incarnação desta autoridade do totus orbis. uma exigência primordial da natureza racional e social do homem, e
Qual poderia ser ao certo o poder político da comunidade mundial? pode, como tal definir uma ordem jurídica própria: o jus gentium.
O direito das gentes assim fundado no direito natural ganha valor de
Da mesma forma que a maioria do Estado pode estabelecer um rei
lei, na medida em que o mundo inteiro (totus orbis), que constitui analo-
sobre o Estado inteiro, apesar da oposição dos outros, a maioria dos
gicamente uma nova comunidade política (una respública), vê assim
cristãos pode legitimamente, mesmo se todos os outros se lhe opuse
ser-lhe outorgado o poder de editar leis justas e boas para todos65.
rem, escolher um único monarca, ao qual todos os príncipes e todas as
províncias seriam obrigadas a obedecer62.
63 Cf. De jure belli, 19 [52), trad. dtada, p. 125: «Ora o que é necessário ao governo e à
protecção do mundo é de direito natural: é precisamente esta razão que mostra que
o Estado tem, em virtude do direito natural, o poder de punir e de castigar os seus
61 De Indis, 1 1 ,1 6 , trad, fr., p. 32: «[...] ipsi servi a natura, quia parutn valent ratione ad próprios cidadãos quando estes o prejudicam. Se o Estado possui esse poder relati
aS T T \ f T ° S lf ° l! tica 1 2' 1254 a 13' 15J- Ad hoc respondeo quad certe vamente aos seus súbditos, o mundo possuiu-o sem nenhuma dúvida relativamente
Aristoteles mm intellexit quod tales, qui parum valent "ingenio", sint natura alieni iuris et a todos os que o prejudicam e não vivem humanamente; e só o exerce por intermé
tum habeant dominium et sui et aliarum rerum; haec enim est servitus civilis et legitima dio dos príncipes.»
qumnulla est servus a natura [Política 1,6,1255 a], Nec m it Philosophus quod, si qui sunt 64 Cf. sobre este ponto a excelente síntese de Antonio Truyol y Serra, Le Supplément.
a natura parum mente vtdidi quod liceat occupare patrimonia illorum et ilios redigere in Revue d'éthique et théologie morale, n.° 160, Março de 1987. «Las Casas & Vitoria.
serzntudinem et venales facere; sed m it docere quod a natura est in illos necessitas, qua
O direito das gentes na era moderna», p. 84. Cf. também, do mesmo autor, «La
indigent subiciparentihus ante adultam aetatem, et uxor viro. Et quod haec sit intentio
conception de paix chez Vitoria», in Recueils de la Société Jean Bodin, tomo XV, Bruxe
PtoiosopAi pafef, quia eodem modo dicit quod a natura sunt aliqui domini, scilicet qui vigent
las, La Paix, 1961, pp. 241-273.
intellectu Certum est autem quad non intellect quod tales possint sibi ampere imperium in
65 De potestate civili, n.° 21 (trad. pp. 73-74): «O direito das gentes não deriva o seu valor
ahos tilo titulo, quod sint sapientiores, sed guia a natura habentfacultatem, ad imperandum
apenas de um pacto ou de um acordo entre os homens, mas tem também valor de
y ,In E ^ dUm' ^ ! u C’ dat° qVf d tSti barbari sint ita inePti et hebetes, ut dicitur, non ideo lei. Porque o mundo inteiro, que forma, de uma certa maneira, uma única comuni
en M T * htoere verum dominium, nec sunt in numero servorum "civilium ” habendi.»
d„ n. 14. Anota do tradutor sublinha aqui, involuntariamente, a dificuldade desta dade política, tem o poder de fazer leis justas e boas para todos, como aquelas que
assim ilaçao dos Estados cristãos ao totus orbis. M. Barbier faz notar: «É uma se encontram no direito das gentes. Resulta claramente daí que todos os que violam
consequência da comunidade política mundial. Se esta existe efectivamente, possui o direito das gentes, seja em tempos de paz, seja em tempos de guerra, cometem um
um poder político da mesma forma que o Estado, isto é, em virtude do Direito natu- pecado mortal, mas com a condição de que o façam em relação a coisas bastante
importantes, como a imunidade dos embaixadores. E não é permitido nenhum
e ra a rre ^ d < ^ *f^ é rc& .Ío ^ e i8 ualmente transmitir esse poder e designar o prmdpe
Estado recusar submeter-se ao direito das gentes, porque foi em virtude da autori
dade de todo o mundo que ele foi estabelecido» (Jus Gentium non solum habet vim ex
132 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
facto et condicto inter homines, sed etiam habet vim legis. Haec enim totus orbis, qui aliquando
est una respublica, potestatemferendi leges aequas et convenientes omnibus, quotes sunt in
jure gentium. Ex quo patef quod mortaliter peccant violantes contra jura gentium, sive in
pace, sive in hello, in rebus tarnen gravioribus, ut est de incolumitate legatorum; non licet
uni regno nolle tenerijure gentium; est enim latum totius orbis authoritate).
66 De Indis, l, 3,3 (CSIC, pp. 81-82), trad, fr., p. 86: «[...] Nota quod, si jus gentium derivatur
sufficienter ex jure naturali, manifestam mm habet ad dandum jus et obligandum. Et dato
quod non semper derivetur ex juri naturali, sequi videtur consensus majoris partis totius
orbis, maxime pro bono communi omnium. Si enim post praeterita tempora creati orbis out
reparati post diluvium, major pars hominum constituent ut legati ubique essent inviolabiles,
ut mare esset commune, ut hello capti essent servi, et hoc ita expediret, ut hospites non
exigerentur, certe hoc haberet vim, etiam aliis repugnantibus.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 133
3 — Suárez
Se Suárez, como Vitoria, afirma a autonomia e a auto-suficiência da
comunidade política como comunidade perfeita, ele radicaliza contudo
a tese do teólogo de Salamanca em função de duas considerações no
vas: a sua determinação «voluntarista» da lei e a sua decisão quase
metodológica de considerar primeiramente o estatuto da lei e do Estado
in pura natura, isto é, abstraindo dos teologismos relativos à queda e à
história da salvação, numa palavra, abstraindo de todas as considera
ções económicas.
No seu De Legibus, Suárez começa com efeito por criticar a definição
tomista geral da lei67, antes da sua divisão em lei eterna, lei divina, lei
humana, e secundariamente lei antiga, lei nova, porque tal definição é a
seus olhos demasiado ampla68. Para Tomás, a lei é em primeiro lugar
a ordenação racional ao bem comum, promulgada pela autoridade que
tem a seu cargo a comunidade69. Mas o ad primum da questão 93, artigo
4, precisa que no caso da lex naturae, a promulgação se deve entender
como o facto de Deus ter inscrito esta lei no espírito humano de forma
a que a lei seja naturalmente conhecida por ele (ex hoc ipso quod Deus
earn mentibus hominum inseruit naturaliter cognoscenáam). O que equivale
a dizer que o que faz com que uma lei seja lei não depende primeira
mente ou apenas da sua promulgação por uma autoridade reconhecida,
mas que o elemento essencial para toda a lei é a ordenação da razão,
a referência ao Bem comum70.
67 Suma teológica, Ia, Ilae, qu. 90, a. 1, e qu. 93, a. 3: «A lei é uma determinada regra e
uma medida dos actos, segundo a qual somos levados a agir ou restringidos de
agir» (Lex est quaedam regula et mensura secundum quam inducitur ad agendum vel ab
agendo retrahitur).
68 De Legibus, I, c. 1, n. 1: «Esta caracterização é, parece, demasiado ampla e demasiado
geral» (Quae descriptio nimis lata et generalis videtur). Dispomos hoje para este texto
da notável edição crítica bilingue realizada por Luciana Perena, no quadro da série
«Corpus Hispanorum de Pace», Madrid, 1971 e seguintes.
69 Ia Ilae, qu. 90, a. 4 :« [...] a definição da lei: ela não é mais do que uma ordenação da
razão tendo em vista o bem comum, estabelecida por aquele que tem a seu cargo a
comunidade, e promulgada» — (definitio legis quaenihil estaliudquamquaedamrationis
ordinatio ad bonumcommune, ab eo qui curamcommunitatis habet, promulgata).
70 Suma teológica, Ia, Ilae, qu. 93, a. 4, ad 2um: «A lei humana não é propriamente uma
lei a não ser na medida em que está conforme à recta razão; nesse caso, é manifesto
que ela deriva da lei eterna. Mas na medida em que se afasta da razão, ela é o que se
pode chamar uma lei iníqua, e dessa forma não tem tanta razão de lei como de
violência» ([...] lex humana intantum habet rationem legis, inquantum est secundum
rationemrectam; etsecundumhocmanifestumest quodalegeaetemaderivatur. Inquantum
vero a ratione recedit, sic dicitur lex iniqua; et sic non habet rationemlegis...)-
134 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
71 Sobre a doutrina tomista da lei, cf. em particular O. J. Brown, Natural Rectitude and
Divine Law in Aquinas, Toronto, Pontifical Institute of M ediaeval Studies, 1981.
Cf. também M. Bastit, Naissance de la loi moderne, Paris, PUF, 1990, primeira parte:
«São Tomás e a lei analógica».
72 Cf. Ia Ilae, qu. 90, a. 1; la Ilae, qu. 91, a. 2, ad 3m: «Mas porque a criatura racional
participa nela num modo intelectual e racional, resulta daí que a participação da lei
eterna na criatura racional se chama propriamente uma lei: pois a lei é assunto de
razão» (Quiaratíonaliscreaturaparticipairationemaetermmintellectualiteretrationdbiliter,
ideoparticipado legis aetemae in creatura rationali proprie lex vocatur; namlex est aliquid
rationis).
73 De Legibus, II, c. 5, n. 2 (CHP, tomo m, p. 60). — Sobre esta discussão, cf. R. Specht,
«Zur Kontroverse von Suárez un Vázquez über den Grund der Verbindlichkeit des
Naturrechts», in Archivß r Rechts- und Sozial-philosophie, 1959, pp. 251 e segs.
74 Ibid., II, 3 ,3 -4 (CHP, tomo III, pp. 33-35): «É predso dizer na verdade que a lei etema
não significa um acto necessário em Deus, mas um acto livre [...] a lei etem a indui
necessariamente ou postula um acto da vontade divina [...)»
75 Cf. I. André-Vincent, «La notion moderne de droit naturel et te volontarisme (de
Vitoria à Suárez et à Rousseau)» in Archives de philosophie ou droit, 1963, pp. 237-259,
em particular p. 243.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 135
76 Cf. a discussão sobre o estatuto «legal» da lei natural, in De Legibus, II, VI, 1-13 (CHP,
tomo in, pp. 76-96).
77 De Legibus, II, VI, 1 (CHP, tomo m, p. 76): «Não existe lei no seu sentido próprio e
prescritivo sem a vontade daquele que prescreve» (Lex... própriaetpraeceptiva non est
sine vóluntate alicujuspraecipientis).
78 DeLegibus, I, III, 9, CHP, I, pp. 44-45:«[...] A lei natural no sentido próprio é portanto
_ aquela que é imanente ao espírito humano com vista a discernir o que é honesto do
que é vergonhoso [...] É por isso que esta lei se diz natural, não apenas na medida
em que o que é natural é distinto do que é sobrenatural, mas ainda na medida em
que se distingue do que é livre. Não é porque a sua execução é natural ou porque ela
proceda da necessidade, como é a execução da inclinação natural nos animais ou
nas coisas inanimadas, mas porque esta lei é como uma propriedade da natureza e
porque o próprio Deus a introduziu na natureza» (Lex ergo mturalis própria... est illa
quaehumanae mentiinsiâet aãdiscemendumhonestamaturpi... Itaergohaec lex mturalis
dicitur nonsolumprout naturale asupematurali distinguitur, sedetiamprout distinguitur
alibero; non quia ejus executio mturalis sit seu ex necessitatefiat, sicut executio mturalis
inclinationis est in brutis vel rebus inanimis, sed quia lex illaest veluti proprietas quaedam
naturae et quia Deus ipse illam naturae inseruit). — Sobre esta separatio, cf. I. André-
-Vincent, art. cit., p. 243: «Em Suárez a razão perdeu o seu carácter normativo: ela já
não dita a ordem ao Bem, não pode senão conhecê-lo especulativamente. Então a
vontade assume o lugar da razão para dar à fé a sua forma normativa: o imperium
toma-se o seu acto.»
79 De Legibus, II, 11,12 (CHP, tomo m, pp. 144-145). Cf. também I, V, 23 :« [... ] A obriga
ção induzida pela lei emana da vontade do legislador [...]» (CHP, I, p. 98).
80 De Legibus, I, 3 ,1 3 : «Com efeito, a lei diz-se positiva porque é como que acrescen
tada à lei natural, sem que emane necessariamente dela.»
136 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
81 De Legibus, II; 3 ,4 . Cf. sobre este ponto Rainer Specht, art. citado.
82 F. Suárez, Principatus politicus, III, 13 (CHP, p. 43): «[...] a monarquia pontifícia foi
instituída imediatamente pelo próprio Deus, na Igreja universal [...] E por essa ra
zão que o poder espiritual nunca foi "presente como no seu sujeito" na comunidade
da Igreja inteira [...]».
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 137
justiça, e que o príncipe aceitou tanto esse poder como a sua condi-
|;. çãO83.
83 Principatus politicus, II, 12 (CHP, p. 26). C f também II, 20: «[...] Já disse mais acima
que o poder real foi fundado num contrato ou num quase-contrato [...] Assim, tal
poder é sempre obtido imediatamente por um título humano ou por vontade hu
mana.»
84 Defensio fidei, VI, 6 ,1 1 .
85 Sobre as expectativas e as implicações das discussões sobre o estatuto de pura natu
reza, remetemos para as obras dássicas do padre Henri de Lubac, Surnaturel, Paris,
Aubier 1946, e Augustinisme et théologie moderne, Paris, Aubier 1965. C f também, na
linha do trabalho do padre de Lubac, Franco Todescan, Lex, natura, beatitudo. II pro
blema delia legge nélla scolastico spagnola dei sec. XVI, Pádua, Cedam, 1973.
138 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
;4ar conta do Estado como corpo orgânico — corpo místico —, cujo fim
lé o bem comum, sem que as condições da ordem social tenham sido
rsubstancialmente modificadas pela Revelação. É por isso que o poder
público, tal como existe hoje em dia nos príncipes cristãos, não é maior
ínem de outra natureza que o dos pagãos. Reencontramos aqui, na
;linha de Vitoria, a afirmação radicalizada da autonomia da autoridade
política, aceitando a possibilidade de distinguir, em função da hetero
geneidade dos fins (felicidade política, felicidade sobrenatural), dois
tipos de submissão ou de sujeição":
? Existe uma dupla sujeição, a saber, directa e indirecta. Chamamos
!. directa àquela que se mantém no interior e nos termos desse poder;
indirecta aquela que procede da direcção em vista de um fim superior
e que é relativa a um poder mais excelente*100.
num órgão soberano. É portanto ex natura rei, segundo uma lei de;
essência, que uma multidão, quando forma uma comunidade e se ,
encontra unida por um laço político, se toma detentora de um poder
próprio101. E por assim dizer estruturalmente, e previamente a toda á
determinação da forma de governo, que a comunidade política é corts-'
tituída em democracia primitiva. O único ponto verdadeiramente fum
damental é o de que o poder (potestas), inerente à comunidade consti
tuída, ou melhor, em constituição, pode incarnar num órgão soberano,
único susceptível de assegurar a unidade do corpo político na prosse
cução do seu fim próprio. Estabelecido o princípio da constituição de
uma comunidade política ou de uma comunidade perfeita orientada
pelo seu fim próprio, Suárez não parece, apesar disso, pelo menos não
mais do que Vitoria, encarar seriamente a ideia de uma única e mesma:
comunidade política universal: uma tal comunidade verosimilmente
nunca existiu, ainda que fosse numa humanidade adâmica, ou, se ti
vesse existido, só teria durado muito pouco tempo, e não teria mais
probabilidades de existir no futuro, da mesma forma que todas as figu
ras históricas do Império universal nunca puderam pretender seria
mente instituir leis válidas para o mundo inteiro (totus orbis)102.301 Cabe
com efeito a cada comunidade política promulgar leis destinadas a
manter e a regular a vida do corpo político, mas tais leis são sempre
«leis humanas, próprias e particulares», leis «positivas», que não têm
portanto sentido senão em relação com o governo desta ou daquela
comunidade definida, e não poderiam em princípio ser universais, quer
dizer aqui estender-se estritamente ao conjunto de todos os homens"
(tota hominum universitas)m . Suárez, depois de Vitoria, recusa portanto
expressamente a ideia segundo a qual o imperador poderia ou teria
podido ser «de direito, senhor e soberano do universo inteiro e
101 De Legibus, III, II, 4: «Hominum multitudo quatenus speciali voluntate seu communi
consensu in unum corpus politicum congregantur uno societatis vinculo et ut mutuo se
juvent in ordine ad unum finem politicum, quomodo ejficiunt unum corpus mysticum,
quod moraliter did potest per se unum; illudque consequenter indiget uno capite. In tali
ergo communitate, ut sic, est haec potestas ex natura rei, ita ut non sit in hominum potestate
ita congregari et impedire hone potestatem.»
102 Ibid.: «Mihi verisimilius est vel nunquam vel bressimo temporefuisse hone potestatem hoc
modo in tota hominum collectione, sed paulo post mundi creationem coepisse homines divi
di in varios respublicas et in singulis fuisse hone potestatem distinctam.»
103 III, II, 6: «[...] potestatem haneferendi leges humanas proprias et particulares (quas civiles
vocamus, tanquam ordinatas ad regimen unius communitatis perfectae), hanc (inquam)
potestatem nunquam fuisse unam et eandem in totam hominum universitatem; sed
ita fuisse per communitatem divisam, sicut ipsae communitates instituebantur et divide-
bantur.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 143
104 III, VII, 1: «Potest hoc loco tractari quaestio Celebris inter juristas: An Imperator jure sit
dominus et princeps totius orbis et consequenter an possit totum mundum suis civilibus
legibus obligare...?»
105 ni, VH, 6: «Sit ergo imprimis cerium neque imperatorem romanum neque aliquem unum
hominem vel regem habere potestatem universalem ad ferendas leges civiles obligantes
Universum orbem.»
106 III, II, 6: «[...] nam licet univeristas hominum non fuerit congregata in unum corpus
politicum, sed in varias communitates divisa fuerit, nihilominus ut illae communitates
sese mutuojuvare et inter se injustitia et pace conservari possent (quod ad bonum universi
necessarium erat), oportuit ut aliqua communia jura quasi communifoedere et consensione
inter se observarent; et haec sunt quae appellantur jura gentium, quae magis traditione et
consuetudine quam constitutione aliqua introducta sunt.»
144 HISTORIADA FILOSOFIA POLÍTICA
108 De Legibus, II, XVII-XX, CSIC, IV, pp. 99-149, ao qual é preciso acrescentar as
«Additiones Suarecii ad jus gentium», ibid., pp. 151-165.
109 I. André-Vincent puxa sem dúvida exageradamente Suárez para o lado de Grotius,
quando observa (art. citado, p. 245): «Para Vitoria o direito das gentes era um direito
intermédio (um direito natural segundo). Doravante ele não é mais do que um
direito positivo. Perdeu o seu verdadeiro lugar entre esse direito positivo e o direito
natural, porque perdeu a sua verdadeira natureza. Não é mais do que positivo, ou
seja voluntário. Assenta na vontade dos Estados.»
110 De Legibus, II, XIX, 6.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 147
146 ______________________HISTORIA DA FILOSOFIA POLÍTICA_______ ;___________________
114 Cf. De Legibus, II, XIX, 8: «Adão vero ad maiorem declamtionem, duóbus modis... did
aliquid de jure gentium, uno modo quia est jus, quod omnes populi, et gentes variae inter se
servare debent, alio modo quia est jus, quod singulae civitates, vel regna intra se observant,
per similitudinem autem et convenientiam jus gentium appellatur.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 149
De M aquiavel a Hobbes:
eficácia e soberania no
pensamento político moderno
por L uc Foisneau
O pensamento político moderno adquiriu os traços que lhe conhe
cemos através de pinceladas sucessivas, sob a pena de numerosos auto
res pertencentes a espaços geopolíticos diferentes, formados de formas
ídiversas no exercício do pensamento político. Nas páginas que se vão
. seguir, esforçar-nos-emos para dar uma análise tão exacta quanto pos-
, sível dessas diferenças, dedicando-nos mais particularmente a obser
var os princípios formulados por Maquiavel, Guicciardini, Bodin e
Hobbes. Se outros autores teriam podido ser considerados não menos
legitimamente para esboçar os contornos intelectuais de Florença no
início do século xvi, da França do fim do século xvi ou da Inglaterra da
primeira metade do século xvn, a escolha destas figuras tem a sua justi
ficação na vontade de pôr em evidência, para lá dos percursos singula
res desses escritores a das circunstâncias particulares da elaboração das
suas obras, os princípios de política dos quais eles souberam junta
mente com outros, mas frequentemente melhor do que outros, dar a
formulação exacta. Essa atenção dada à formulação dos princípios
conduzir-nos-á a atribuir uma importância particular ao vocabulário
empregue por cada um, assim como às variações de sentido que conhe
ceram as palavras «Estado», «república» ou «estado civil» entre a re
dacção do Príncipe de Maquiavel, em 1513, e a publicação do Leviatã de
Hobbes em 1651. Esta evolução dos termos, que reflecte à sua maneira
a evolução histórica, permitirá esclarecer mais próximo da história dos
Estados o significado filosófico dos princípios políticos da modernidade.
O estudo do pensamento de Maquiavel, perspectivado com o de
Guicciardini, seu contemporâneo e amigo, permitir-nos-á sublinhar o
170 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
* Usámos este termo porque o termo «maquiavélico» está actualmente conotado com
uma interpretação errada do espírito de Maquiavel. (Nota do revisor.)
DE MAQUIAVELAHOBBES... 171
1 — Guicciardini e Maquiavel
ou a legitimidade republicana medida péla bitola do
princípio de eficácia
3 Ibid.
4 Ibid., p. 226.
5 Ver sobre este ponto F. Gilbert, Machiavél et Guichardin. Politique et histoire à Florence
au XVIe siècle, traduzido por J. Viviès, Paris, Seuil, 1996, p. 85.
174 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
externa, Guicciardini estima, com efeito, que é preciso não ,só restringir
o acesso aos cargos, mas igualmente eleger, seguindo o modelo
veneziano, um chefe susceptível de assegurar a permanência das insti
tuições. Nas instituições florentinas, esta função foi preenchida, a par
tir da reforma institucional de 1502, pelo gonfaloneiro vitalício Piero
Soderini. De facto, a introdução na lógica institucional florentina da
função de gonfaloneiro vitalício permite resolver a contradição entre o
imperativo republicano da participação política do maior número e
o imperativo de eficácia que exigia a promoção dos homens competen
tes aos postos de responsabilidade. A eleição de um chefe vitalício ti
nha de facto a vantagem de permitir que uma pessoa experiente se
ocupasse assiduamente dos interesses do Estado e, se fosse caso disso,
de «manter o segredo9», sem comprometer com isso a liberdade pública,
uma vez que a autoridade continuava a emanar apenas do Grande Con
selho. Se desta instituição puderam «nascer efeitos muito bons10», é
porque um detentor de um cargo efectivo de curta duração «não pensa
senão no tempo que dura o seu cargo e mesmo, quando se aproxima o
fim deste, começa a não pensar mais nisso11», ao passo que o gonfa
loneiro vitalício tem todo o tempo necessário para pensar nos interesses
do Estado. Se bem que ele não possa exercer um domínio pessoal,
porque isso seria contrário ao espírito de liberdade das instituições
republicanas, o gonfaloneiro vitalício deve preencher a função do
senhor, porque deve ter «essa preocupação e esses pensamentos que
têm os senhores para os seus próprios assuntos12».
Essa preocupação com a eficácia das instituições responde a um
preconceito metodológico realista, que encontramos igualmente em
Maquiavel e em outros escritores políticos florentinos da mesma época.
Mais do que «procurar um governo imaginado e que apareceria mais
facilmente nos livros do que na prática», Guicciardini prefere, como
manda dizer a Bernardo dei Nero, «procurar um governo que não de
sesperemos de poder introduzir, depois de ter persuadido disso a
cidade, e que possamos, uma vez introduzido, aceitar a conservar tendo
em conta o nosso gosto»13. Ora, para isso, convém partir de uma
análise da natureza, isto é, das inclinações a dos «humores da cidade
a dos cidadãos»14, à maneira do médico que nunca administra uma
9 Tbid., p. 63.
10 Tbid.
11 Diálogo sobre aforma de governar Florença, in Escritos Políticos, op. d t , p. 230.
12 F. Guicciardini formula de forma muito vigorosa essa necessidade do lugar do mes
tre em política: «Eis porque é que precisamos de um mestre [...]» (Md.).
13 Md., p. 224.
14 Md.
176 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
15 M i., p. 225.
16 Ibid.
17 Ibid., p. 226.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 177
22 Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, III, II, trad. C. Bec, in Oeuvres, Paris,
Robert Laffont, 1996, p. 374.
23 Ibid.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 179
efectiva das coisas» (alia verità effetuale delia cosa)2i. Maquiavel exige com
efeito, e é o primeiro sentido da sua célebre fórmula, que o pensamen
to político não se perca nas miragens da utopia: «Numerosos são os
que imaginam repúblicas e monarquias as quais nunca vimos ou sou
bemos que tenham verdadeiramente existido2 25.»
4 Os autores visados
por esta afirmação erraram ao confundir as virtudes ideais do príncipe
a as virtudes específicas que são requeridas àquele que deseja manter-se
no poder (mantenere lo stato)26, ou seja, àquele que tem como único fim
a conservação e o aumento das posições de autoridade que conquistou.
Esses autores cometeram nomeadamente o erro de terem querido des
crever o real a partir da lógica das suas ideias em lugar de ter querido
conformar as suas ideias à lógica do real. Como a lógica do real é uma
lógica dos efeitos, e não uma lógica do sentido, Maquiavel entende que
se deve partir dos efeitos produzidos pelas acções, e não daquilo
que pode dar sentido a uma acção numa justificação posterior. Se pode
ter importância que um príncipe tenha em conta o significado da sua
acção, é apenas na medida em que esse significado é um efeito produ
zido pela acção sobre a opinião da maioria, e que esse efeito de sentido
é susceptível de modificar a relação de dominação que o príncipe man
tém com os seus súbditos. Dois preceitos guiam neste ponto o pensa
mento de Maquiavel, a saber, primeiramente, a ideia de que «é perigoso
assumir a responsabilidade de um empreendimento novo, envolvendo
muita gente27», e, em segundo lugar, a ideia de que em política apenas
conta a opinião da maioria28. Uma vez tomada a decisão de se empe
nhar na via perigosa da política, é preciso saber analisar judiciosamente
as situações a formular correctamente os problemas, a saber, em
termos de efeitos produzidos (effetti)29 e não em termos de significado.
41 Md.
42 Leo Strauss defende a tese inversa, segundo a qual Maquiavel teria querido arrui
nar a diferença estabeledda por Xenofonte entre a realeza e a tirania. Cf. De la tyrannie,
Paris, Gallimard, 1983, p. 45.
43 O Príncipe, op. cit, cap. vm, p. 315.
44 Porque conjuga as ideias de virtude e de eficácia, a expressão forjada por Tomás de
Aquino para designar a virtude de prudência própria do príncipe — virtus efficax —
pode ser considerada como uma primeira formulação do problema colocado pela
virtú maquiaveliana. Cf. Suma Teológica, 2a-2ae, qu. 47, art. 11, título, p. 55; citado
por M. Senellart, op. cit, p. 221.
45 O Príncipe, op. cit, cap. xv, p. 363.
184 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
respeita a lei e a palavra dada, embora sabendo utilizar, quando for pre
ciso, a força e a astúcia. Usando como modelo o comportamento dos
animais, um príncipe deve mais particularmente imitar a raposa e o leão,
porque a astúcia da primeira permite-lhe evitar as armadilhas e a força
do segundo permite-lhe vencer os lobos48. De facto, a utilização da astú
cia é uma característica permanente da acção política e, entre as astúcias
políticas, a principal é a de não respeitar a palavra dada: o papa Alexan
dre VI (1492-1503), que passou a sua vida a dissimular os seus perjúrios,
foi de todos os homens o «mais eficaz (efficaáa) a pretender uma coisa»,
a «afirmá-la com os maiores juramentos»49, e a respeitar o menos possí
vel estes últimos. Este comportamento encontra uma vez mais a sua jus
tificação última na maldade dos homens, a saber, neste caso, no facto de
os homens serem mentirosos e perjuros. Para se manter no poder, um
príncipe que saiba não poder contar com a fidelidade dos seus súbditos
deve saber não se envolver em compromissos que lhe seriam prejudi
ciais. No fim de contas, as máximas formuladas em O Príncipe compõem
uma arte de governar que assenta no essencial na capacidade de um
príncipe dar uma imagem favorável de si mesmo e da sua acção, ou,
para dizê-lo de outra forma, de integrar nessa mesma acção a represen
tação que o povo tem da sua acção. Se Maquiavel estende ao príncipe do
Renascimento um espelho onde contemplar a sua imagem, é segura
mente uma imagem desdobrada que nele se reflecte, do príncipe tal como
deve agir e tal como deve parecer ao seu povo que ele age. O propósito
dos Discursos afasta-se seguramente desta encenação da figura princi
pesca. Não se trata doravante de compreender a que lógica responde a
acção de um só, mas de compreender em que condições uma organiza
ção política fundada com vista ao bem comum e animada pela preo
cupação da liberdade é susceptível de resistir ao fenómeno recorrente
da corrupção.
argumento, é claro que a liberdade vale menos por ela própria do que
depois de um interregno republicano de dezoito anos, e mantê-lo-ão
petosefeitos, apreciados em termos de ganho de poder e de riqueza,
sem interrupção após o fracasso de uma última refundação republi
que produz. A^emonstração de Maquiavel a favor da ^ b h c a as
cana entre 1527 e 1530. Por todo o resto de Itália, até à sua extinção
completa no fim do século xvi, as cidades livres cederão progressiva senta também, no entanto, em dois pressupostos ^pecificamente p
mente o lugar a formações políticas de tipo monárquico. Esta tendên ticos a saber, primeiramente, que «não é o bem individual, mas o bem
cia histórica, que encontrou a sua expressão nas teorias absolutistas do I r a i que constitui a grandeza das cidades» e, em segundo lugar, que o
fim do século xvi, não arrastou, porém, o desaparecimento puro e sim- «bern geral não é certamente observado a nao ser nas republicas» .
pies de toda a reflexão sobre o modelo político republicano. As teorias Destespressupostos deduz-se logicamente a tese segundoa qual uma
elaboradas pelos humanistas do primeiro Renascimento, como Coluccio tirania desencadeia na melhor das hipóteses uma estagnaçao, na piore
Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (1369-1444) e Leon Battista Alberti o mais das vezes, uma regressão do poder e da riqueza do Estado^
(1404-1472), encontraram, com efeito, um prolongamento no pensa Na hipótese pouco provável em que um tirano dana provas desse
mento republicano florentino do fim do século xv e' princípio do xvi. dinamismo e de energia, o benefício da sua acçao nao aproveitar
Se bem que sejam originais em mais do que uma perspectiva, os ao seu povo, pois um tirano é incapaz de redistribuir riqueza e
Discursos de Maquiavel inscrevem-se de facto muito claramente na pos
teridade do pensamento republicano dos humanistas florentinos do P° A preocupação maquiaveliana de pensar a republica a partir dos
primeiro Renascimento50. Retomam, em particular, o ideal de liberdade efeitos que ela produz reencontra-se, por outro lado, na escolha do
i defendido com uma força muito particular por Francesco Patrizi método seguido nos Discursos. Se bem que se inspire largamente no
; (1412-1494). Consciente do facto de que é mais fácil dizer mal dos po comentário humanista dos Antigos, o método dos Discursos carac
; vos51 do que dos príncipes52, Maquiavel, nos seus Discursos, toma o teriza-se, com efeito, por uma preocupação aguda com a eflcacia Pr^ '
! partido da virtude política dos povos livres. Não esquecendo, todavia, Se importa reler Tito Lívio, não é antes de tudo por amor pela Antigui
Ia lição de O Príncipe, justifica a sua adesão aos valores da república dade, ou porque o passado é sempre mais rico de ensinamentos do qu
iatravés de uma preocupação de eficácia política que não encontramos o presente56, mas porque essa leitura é susceptível de guiar a acçao
nos seus precursores florentinos do início do século xv. Assim, a propó- homens políticos, da mesma maneira que a leitem do Coiyusjuns civüis
isito dos povos livres de Itália que resistiram encamiçadamente às guer- pôde guiar os juristas modernos nas suas actividades judiciais . A aten
|ras imperialistas dos Romanos, escreve ele que o seu «afecto pela liber ção que dá à prática leva assim Maquiavel a interrogar-se mais atenta
dade» se devia à convicção de que «as cidades não ganharam em poder mente do que os seus precursores sobre as condiçoes concretas da rea
e em riqueza a não ser na medida em que tinham sido livres»53.* Neste lização do modelo republicano. Longe de esquecer o principio de
eficácia de que tinha lançado mão na sua reflexão sobre os príncipes,
50 Para uma crítica da tese formulada por Hans Baron, em The Crisis ofthe Early Italian
; Remissance (Princeton, Princeton University Press, 19661, de acordo com a qual a
esterca-se! pelo contrário, nos Discursos, por pô-lo ao serviço da sua
; im portância da reflexão política dos humanistas florentinos do prim eiro reflexão sobre as repúblicas. Se o ideal político que orienta a redacçao
: Renascimento — corrente designada por Baron sob o nome de «humanismo cívico» de O Príncipe e dos Discursos é incontestavelmente diferente, permane
; — seria devida apenas à resistência de Florença aos objectivos expansionistas de ce contudo inalterada a tese segundo a qual, uma forma política nao se
| Milão, ver Quentin Skinner, op. cit., vol. 1, pp. 69-84.
conseguiria manter sem levar em linha de conta as asperezas da
51 «A opinião desfavorável ao povo vem do facto de toda a gente dizer mal dele sem
| temor e livremente, mesmo quando ele governa; criticam-se sempre os príncipes matéria em que se deve incarnar, isto e as vicissitudes da histor
i com mil temores e suspeitas» (Discursos, I, LVIII, op. cit., pp. 288). as disposições políticas dos homens. Consciente da fragilidade das
52 A glória de César está ligada à ausência de liberdade, na qual os escritores tiveram
I durante muito tempo que se exprimir livremente sobre os seus actos e de formà
| nenhuma sobre a sua virtude: «Que ninguém se deixe enganar pela glória de César, 54 Ibid.
j vendo que ele é tão celebrado pelos escritores. Com efeito, esses que o louvam são 56 N o p re fá c io d o s e u s e g u n d o D iscu rso (op. cif., p p . 291-293), M a q u ia v e l a n a lisa o
Iseduzidos pelo seu feliz destino e assustados pela longa duração do império, cujos p re c o n c e ito q u e c o n d u z o h o m e m a lo u v a r sis te m a tic a m e n te o p a s s a d o , e a c n ti
Ichefes usavam o seu nome, que não lhes permite exprimirem-se livremente acerca
s e m d isce rn im e n to o p re se n te .
dele» (Discursos, I, X, op. cit., p. 211).
53 Discursos, II, II, op. cit., p. 297. 57 Discursos, I, op. cit., p re fá c io , p p . 187-188.
I
188 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
58 Na sua História de Florença, que redige entre 1520 e 1525, a pedido do papa Medieis
Clemente VII, Maquiavel apresenta a história da república florentina como um
I lento e inexorável processo de corrupção das instituições e dos costumes,
j 59 Discursos, I, XVI, op. d t , p. 223.
i 60 Maquiavel observa muito judiciosamente que a fragilidade da liberdade se deve ao
facto de que ninguém «se confessará reconhecido àqueles que não o atacam» (Dis-
- cursos, I, XVI, op. cit, p. 223). Podemos interrogarmo-nos se as teorias da obrigação
i não assentam inversamente na eventualidade, mais ou menos imediata, de uma
agressão.
61 Discursos, II, op. cit., prefácio, p. 292.
! 62 Ibid.
DE MAQUIAVEL A H O BBES- 189
neos pela Sereníssima63, Maquiavel explica a sua escolha por uma von
tade de apresentar a república como um regime dinâmico, mesmo que
essa dinâmica seja a do imperialismo, e não como um regime estático,
condenado a manter dentro de fronteiras intangíveis um perpétuo statu
quo. Em lugar de adoptar como modelo a demasiado serena Veneza,
Maquiavel prefere interrogar-se sobre as contradições dinâmicas da
Roma republicana. No primeiro livro dos seus Discursos, dedica-se
assim a evidenciar as condições políticas da formação progressiva da
república romana; no segundo, mostra em que é que a sua constituição
em república permitiu a Roma conquistar o seu império; e, por fim, no
terceiro, sublinha o papel da acção individual na preservação, ou na
perda, da liberdade republicana.
No primeiro livro dos seus Discursos, Maquiavel defende duas te
ses principais, a saber, em primeiro lugar, que um regime misto é pre
ferível a um regime simples, em segundo, que os Romanos chegaram à
perfeição do seu regime graças ao conflito que opôs o senado à plebe.
A primeira destas teses é uma tese clássica colhida em Políbio, que tinha
pensado encontrar na constituição mista um remédio para a dege
nerescência obrigatória das formas simples que são a monarquia, a
aristocracia e a democracia. Comparando os méritos respectivos das
constituições dadas por Licurgo a Esparta e por Sólon a Atenas,
Maquiavel observa que Licurgo «organizou tão bem as leis em Esparta
que, dando a sua parte aos reis, aos optimates e ao povo, edificou um
Estado que durou mais de oitocentos anos64», ao passo que o regime
democrático fundado por Sólon foi substituído, antes da morte deste
último, pela tirania de Pisístrato. Se bem que os atenienses tenham adop-
tado pouco a pouco leis para lutar contra a insolência dos poderosos e
a licenciosidade da multidão, não tendo essas leis dado direito de cida
dania ao princípio monárquico e ao princípio aristocrático, não asse
guram uma estabilidade suficiente ao Estado. Fundado sobre um só
princípio constitucional, a saber, o princípio democrático, a república
ateniense não pôde escapar ao ciclo, descrita por Políbio, do encadea
mento dos regimes simples. O poder da república romana, como a de
Esparta, explica-se inversamente pela forma mista da sua constituição
política. Contudo, diferentemente de Esparta, Roma não deve a sua
constituição à sabedoria de um único legislador, mas a um processo
histórico singular que conduziu os seus habitantes a corrigir progressi
vamente os defeitos da sua primeira constituição monárquica.
63 Sobre a função de Veneza como «conceito e como mito», ver J. G. A. Pocock (1975),
Le Moment machiavélien, trad. fr. Luc Borot, Paris, PUF, 1997, cap. dc.
64 Discursos, I, II, op. cit, p. 194.
190 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
65 De 509 a 121a. C.
66 Discursos, I, III, op. cit, p. 195.
67 Ibid.
68 Ibid., I, IV, op. cit., p. 196.
69 Ibid. Modificámos a tradução de Christian Bec, traduzindo umori por «humores» de
preferência a «orientações». O termo médico utilizado por Maquiavel sugere, com
efeito, que o conflito dos humores é necessário à saúde do corpo político.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 191
sssésês
sobre isso,« pois não se deve falar de um tão grande homem a não ser
com respeito»77. A propósito da Igreja de Roma, dá seguramente pro
vas de uma reserva menor: segundo ele, o comportamento indigno dos
membros da cúria tinha como efeito destruir toda a devoção e toda a
religião nos países próximos de Roma; por outro lado, envolvido nas
irmão, Remo, e do seu colega Titus T ^ u « 7 1 R a1 C° ntra ° seu
lutas pela dominação temporal, mas demasiado fraco para dominar
sozinho toda a Itália, o papado não deixava de pôr obstáculos à uni
dade do país. Enfraquecida pelas intrigas da Igreja, a península italiana
«tinha sido reduzida ao estado de presa, não somente de poderosos
bárbaros, mas de qualquer um que a ataque78». Opostamente à antiga
religião dos Romanos, que contribuiu para reforçar a virtude dos cida
dãos e a união da república, o cristianismo romano constitui assim, aos
olhos de Maquiavel, o principal obstáculo na via da unificação política
do povo italiano. Aglutinadora dos costumes de um povo, quando bem
ordenada, uma religião pode precipitar a corrupção dos costumes desse
mesmo povo, quando é desviada.
De constituição republicana, como vimos, Roma conduziu uma po
lítica externa expansionista. Para se engrandecer, três meios se lhe pro
punham, como é o caso em geral para todas as repúblicas: o primeiro,
empregue pelos Etruscos, consiste em «constituir uma federação de
várias repúblicas, em que nenhuma se sobrepõe às outras, nem em au
toridade nem em honras79»; o segundo meio consiste em «fazer aliados,
necessidade de reduzir um povo indisciplinado à oLüêncía. U r a 'vTz
80 Ibid., p. 303.
81 Ibid.
82 Ibid., p. 305.
83 Ibid.
D E M AQU1AVEL A H O B B E S ... 195
84 Md., p. 304.
85 Md., II, X, p. 315.
86 Md., II, XVII, p. 328. Para mais pormenores sobre a polemologia de Maquiavel, é
preciso ler A Arte da Guerra que ele publicou em 1521.
87 Discursos, III, I, op. cit, p. 370.
196 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA
bom exemplo, uma vez que era preciso que «Roma fosse tomada pelos
Gauleses para que renascesse, e para que, renascendo, ela retomasse uma
nova vida e uma nova valentia e para que observasse de novo a religião e
a justiça, que começavam a perder a sua pureza88». Da segunda causa de
renovação, os tribunos da plebe são uma boa ilustração, uma vez que,
graças à sua vigilância, foi possível ter mão na ambição da nobreza.
Maquiavel sublinha todavia que as instituições, por si sós, não se po
diam manter sem o envolvimento dos cidadãos: as melhores disposições
institucionais têm necessidade «de ser vivificadas pela energia de um
cidadão que contribui corajosamente para que sejam executadas contra
o poder daqueles que as transgridem89». De facto, a causa principal que
permite refundar um Estado, reconduzi-lo à virtude das suas origens,
reside na acção extraordinária de cidadãos de excepção. Para evitar os
progressos da corrupção, convém que intervenha regularmente uma
acção dessa natureza. Essa acção recorda aos homens que devem res
peitar as instituições da sua cidade, e temer o castigo da lei. Essas acções
exemplares, que os homens virtuosos desejam imitar e às quais os maus
têm vergonha de se opor, produzem frequentemente os «mesmos
efeitos90» que as leis e as instituições. Comparando a acção de Piero
Soderini, quando foi gonfaloneiro vitalício da república florentina, e a
de Júnio Bruto, Maquiavel põe em evidência a necessidade, numa re
pública estabelecida há pouco tempo, de que certos indivíduos dêem
provas de um rigor muito grande contra os inimigos do regime. A pre
sença de Bruto quando da execução dos seus filhos, condenados por
terem conspirado contra a nova república, constitui um exemplo ex
tremo de empenhamento individual ao serviço da renovação de um
Estado. Inversamente, a humanidade e bondade de Soderini não colhem
favor aos olhos de Maquiavel, pois a ingenuidade política deste último,
que acreditava poder persuadir os adversários do regime através da
sua indulgência relativamente a eles, arrastou a queda da república.
Mais do que temer o uso de meios excepcionais — «assumir um poder
extraordinário e destruir pela lei a igualdade dos cidadãos91»29 —,
Soderini deveria ter «pensado que, devendo os seus actos e as suas
intenções ser julgados pelos seus resultados (no caso de ele ter vencido
e sido bem sucedido), ele poderia convencer todos de que o que tinha
feito tinha sido em vista da salvação da pátria e não da sua própria
88 Ibid.
89 Ibid., p. 371.
90 Ibid., p. 372.
91 Ibid., III, III, p. 375.
92 Ibid.
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S - 197
ambição92». Quem pretende salvar uma república deve portanto ter pre
sente no espírito a ideia de que a maldade dos homens não pode ser
vencida nem pelo tempo nem pelas benfeitorias.
A tese da maldade dos homens constitui de facto um argumento a
„favor da instauração de um poder absoluto. Maquiavel sublinha, com
'.efeito, que a virtude do povo é uma condição sine qua non da manuten
ção da forma republicana. Quando reina a corrupção num país, corrup-
■ ção cuja forma principal é a desigualdade de condições, não é possível
instaurar uma república. Para reformar as instituições feudais de um
país assim, não existe então outra solução senão instaurar uma monar
quia, «isto é, um poder real que, através do seu poder absoluto e sem
limites (potenza assoluta ed eccessiva), possa colocar um travão à ambição
e à corrupção sem limites dos poderosos93». Historicamente, contudo,
a passagem do princípio republicano à afirmação da necessidade polí
tica da força maior (maggiorforza), não foi o forte de Maquiavel, pois se
Jean Bodin retomou, no fim do século xvi, o termo república, o sentido
que ele dava a essa república estava muito afastado do sentido
maquiaveliano. Entre o princípio maquiaveliano de eficácia e o princí
pio bodiniano de soberania, existe de facto toda a distância que separa
uma teoria da virtude política de uma teoria do direito político.
2 — Bodin ou a afirmação
dos direitos da soberania
108 S. Ammirato, Discord sopra Cornelio Tácito, Florença, F. Giunti, 1594, p. 240. Ver a
análise de G. Borrelli, «Obligation juridique et obéissance politique: les temps de la
discipline moderne pour Jean Bodin, Giovanni Botero et Thomas Hobbes», in
Politique, droit et théologie chez Bodin, Grotius et Hobbes, L. Foisneau (ed.), Paris, Kimé,
1997, p. 19.
DEMAQUIAVELAHOBBES... 203
109 Ver G. Botero (1589), Della ragion di Stato, Turim, UTET, 1948, trad. fr. G. Chappuys,
Paris, 1599.
110 Cf. Y. C. Zarka, «État et gouvernement chez Bodin et les théoriciens de la raison
d'Etat», in Jean Bodin. Nature, histoire, droit et politique, Y. C. Zarka (ed.), Paris, PUF,
1996, pp. 156-158.
111 République, II, 2, op. tit, p. 34.
112 Cf. A. Tenenti, Stato: un idea, una logica, Il Mulino, 1987, p. 271.
DE MAQU1AVEL A HOBBES... 205
119 Para a verificação desta hipótese, ver M.-D. Couzinet, «La logique divine dans les
Six Livres de la République de Jean Bodin», in Politique, droit et théologie chez Bodin,
Grotius et Hobbes, op. cit, pp. 60-61.
120 République, I, 8, op. cit., p. 192.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 207
121 A sua contribuição mais importante para a teoria mecanicista foi traduzida sob o
título de Court traité des premiers principes, texto e trad. fr. J. Bernhardt, Paris, PUF,
1988.
122 Para uma visão do conjunto da carreira intelectual de Hobbes e mais particular
mente dos seus trabalhos em óptica, ver J. Bernardt, Hobbes, Paris, PUF, 1989. Os
elementos textuais, permitindo reconstituir a evolução do pensamento de Hobbes,
foram reunidos por Karl Schuhmann em Hobbes, chronique. Cheminement de sa pensée
et de sa vie. Paris. Vrin, 1998.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 209
123 A mais importante dessas controvérsias opôs Hobbes ao bispo anglicano John
Bramhall sobre a questão da liberdade e da necessidade. Ver T. Hobbes, Les Questions
concernant la liberté, la nécessité et le hasard, trad. fr. L. Foisneau e F. Perronin, Paris,
Vrin, 1999; Thomas Hobbes, De la liberté et de la nécessité, trad. fr. F. Lessay, Paris,
Vrin, 1993.
124 Béhémoth, ou le Long Parlement, trad. fr. L. Borot, Paris, Vrin, 1990.
125 «No mundo, não há outro igual a ele» (Job, 41,24).
126 Job, 41,25.
210 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
127 Cf. J. Vialatoüx, La Cité de Hobbes. Théorie de VÉtat totalitaire. Essai sur la coneeptíon
naturaliste de la civilisation, Paris, Librairie Lecoffre, 1935.
128 Elements of Law, abreviado como EL, 1, XIV, 12, F. Tõnnies (ed.), Londres, 1889,
reedição Bad-Cannstadt, F. Cass, 1969, p. 73; tradução por M. Triomphe, Paris,
Vrin.
129 EL, I, XIV, 11, p. 73.
130 EL, II, 1,15, p. 115.
131 EL, I, XIX, 8, p. 104.
132 EL, I, XIX, 11, p. 105.
133 Léoiathan, abreviado como Lev, C. B. Macpherson (ed.), Londres, Penguin Books,
1982, título do capítulo xm, p. 183; tradução por F. Tricaud, Paris, Sirey, 1971, tradução
p. 121.
DE MAQUIAVEL AHOBBES... 211
134 Devido, sem dúvida, às suas origens mais antigas, o vocabulário latino do estado
sofreu menos modificações entre o De Cive e o Leviatã latino do que entre as duas
obras de filosofia política em inglês. Nas duas obras latinas, Hobbes opõe
identicamente o status naturae e a societas civilis, ao mesmo tempo que retoma a
utilização clássica do termo respublica. Encontramos no De Cive um equivalente do
estate of govemment dos Elements of Law sob a forma de um status civitatum que
Sorbière traduziu por estados (De Cive, VI, 13, rem., abreviado como DCi,
H. Warrender (ed.), Oxford, At the Clarendon Press, 1983, p. 144).
212 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
135 A terceira lei da natureza é a «fonte e a origem da justiça» (Lev, XV, 2, trad., p. 143).
DE MAQU1AVEL A HOBBES— 213
146 «Cum ergo ad pacem conseruandam, necessarium sit legis naturalis exercitium; & ad
legis naturalis exercitium necessaria sit securitas, considerandum est quid sit quod talem
securitatem prnestare possit» (DCi, V, 3, p. 331).
147 «Hoc est, societatem mutui tantum auxilu, non praestare consentientibus, siue sociis,
securitatem quam quaerimus exercendi inter se ipsos leges naturae surpra dictas» {DCi, V,
4, p. 132.
218 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
A função do soberano está contida «no fim para o qual lhe foi con
fiado o poder soberano, e que é a preocupação com a segurança do
povo155». A dificuldade é, no caso em apreço, compreender bem o sen
tido que Hobbes confere, nesta citação, à expressão clássica «segurança
do povo», em latim, salus populi. Esta expressão pode ser compreen-
ilida num sentido estrito e num sentido lato: no primeiro caso, a salva-
,,guarda do povo reside unicamente na preservação da ordem interior e
na defesa do país; no segundo caso, consiste em tomar em consideração
: da felicidade do povo. Poder-se-ia esperar que Hobbes retivesse a pri
meira acepção. Ora, é a segunda que ele parece privilegiar. Ele observa,
com efeito, que por «segurança» não entende «aqui apenas a preserva
ção, mas também todas as outras satisfações desta vida que cada um
poderia adquirir pela sua indústria legítima, será perigo nem dano para
a República156». O Estado aparece assim como responsável do de
senvolvimento das riquezas do país, de acordo com um modelo que
não deixa de evocar o modelo das teorias da razão de Estado, ou até a
utopia baconiana de A Nova Atlântida. Esta preocupação com a satisfa
ção dos súbditos vai bastante longe, uma vez que Hobbes preconiza,
em certos casos, a intervenção directa do Estado na esfera económica e
social.
Dois casos são particularmente emblemáticos desta intervenção di
recta do Estado, a saber, a tomada a seu cargo dos acidentados de tra
balho e a luta contra o desemprego. Relativamente ao primeiro ponto,
Hobbes declara que os homens que «não podem suprir às suas necessi
dades pelo trabalho [...] não devem ser abandonados à caridade das
pessoas privadas», mas que «cabe às leis da República provê-los, em
toda a medida requerida pelas necessidades da natureza»157. Da mesma
forma que existem princípios da caridade privada, que impõem a
cada um que cuide dos inválidos, existem também princípios da cari
dade pública, que impõem ao soberano de uma república que não aban
done os inválidos apenas à caridade privada. O Estado tem o dever de
não «expor [os inválidos] ao acaso de uma caridade tão incerta158», em
suma, ele tem o dever de representar quanto a eles o papel de provi
dência civil. Retativamente ao segundo ponto, Hobbes esclarece que
os homens cuja capacidade de trabalho está intacta devem poder en
contrar um emprego, acrescentando que, se não tiverem desejo disso, é
preciso «forçá-los a trabalhar159». Para os ajudar a encontrar um em
prego, existem dois meios principais, ambos da esfera de uma inter
venção do Estado: convém, em primeiro lugar, que o Estado adopte leis
«que encorajem todos os ramos de actividade, tais como a navegação, a
156 Ibid.
157 Ibid., 18, trad. p. 363.
158 «[...] it is uncharibleness [...] in the Soveraign of a Commonwealth, to expose them [the
imponent] to the hazard of such uncertain Charity» (ibid.).
159 Ibid.
222 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
160 Ibid.
161 Hobbes esclarece que os colonos «não deverão, não obstante, exterminar aqueles
que aí encontrarem [i.e., nesses territórios pouco povoados]: mas deverão forçá-los
a adoptar um habitat mais limitado, e, em lugar de correr vastas extensões para se
apoderarem do que nelas encontrarem, a cultivar amorosamente cada parcela de
terreno, de uma maneira hábil e laboriosa, para dela receberem a sua subsistência
nos tempos vindouros» (Lev, XXX, 18, trad., p. 370).
162 Lev, XXX, 2, trad., p. 357.
163 Ibid., 6, trad., pp. 360-361.
164 Ibid., 6, trad., p. 361.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 223
168 M. Oakeshott, De la conduite humaine, traduzido por O. Sedeyn, Paris, PUF, 1995,
p. 289.
169 Cf. The Works ofFrancis Bacon, Spedding, Ellis and Heath, 14 vols., Londres, 1857-1874,
vol. i, p. 365. Para um comentário desta passagem, ver B. Farrington, The Philosophy
ofFrancis Bacon, Chicago, University of Chicago Press, 1966, pp. 27-29.
170 «De qualquer forma, é absolutamente preciso que nos recordemos que em tudo
isto os preceitos que formulámos pertencem ao género a que podemos chamar as
Bonae Artes [as boas artes]. Quanto às más artes, um homem pode certamente adop-
tar para si mesmo o princípio de Maquiavel, "não procuramos atingir a virtude em
si própria, mas apenas a sua aparência, porque uma reputação de virtude é útil,
enquanto a sua prática é um entrave"». (F. Bacon [1605], D u progrès et de laprom otion
des savoirs, trad. fr. M. Le Doeuff, Paris, Gallimard, 1991, p. 267).
171 Ver Chr. Lazzeri e D. Reynié (ed.), La Raison d'État: politique et rationalité, Paris,
PUF. 1992.
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S ... 225
paz civil e a aplicação das leis de natureza, mas que deve garantir para
si «um firme domínio sobre os povos», com a ajuda da razão de Estado
; que é «o conhecimento dos meios adequados para fundar, conservar e
aumentar um tal domínio e senhorio»172. Este modelo da política, com
preendida como administração eficaz de um território, é verdadeira-
mente retomado por Hobbes? Apesar de determinadas aparências, não
se passa nada disso, pois podemos mostrar que as finalidades econó
mica, social e educativa consideradas no Leviatãnão constituem de forma
alguma fins em si mesmas, mas apenas meios ao serviço da preser
vação da soberania.
No que respeita, em primeiro lugar, ao envolvimento do Estado na
esfera da economia, partiremos da questão da propriedade, porque ela
é particularmente esclarecedora. Do facto de Hobbes afirmar que «em
toda a espécie de República», a repartição dos bens é da esfera de com
petência do soberano, e que o soberano possui uma propriedade abso
luta sobre os bens dos seus súbditos, não se deve concluir que o sobe
rano hobbesiano é semelhante ao suserano de um domínio feudal, que
possui uma propriedade total em relação ao seu domínio, para o gerir
como entender. Evidentemente, o direito absoluto de propriedade
detido pelo soberano do Leviatã não implica de forma alguma a trans
formação da república num domínio a explorar, pois, bem longe de
implicar a extensão do domínio real, supõe pelo contrário a sua diminui
ção. De facto, Hobbes critica o raciocínio daqueles que pensam que, para
preservar a paz pública, o representante da república tem necessidade
de receber uma parte das terras, de ocupá-la e de fazê-la render à ma
neira de um senhor que explora o seu senhorio173. Um tal raciocínio é
falso, pois pressupõe um representante político dotado de uma natu
reza humana ideal, «liberto das paixões e das fraquezas humanas174»,
quando não poderíamos contar apenas com a virtude do monarca para
assegurar a salvação da república: «Mas sendo a natureza dos homens
o que é, a constituição de um domínio público, ou a atribuição à Repú
blica dé um determinado rendimento, é um vão empreendimento que
tende para a dissolução do governo e para o regresso ao estado de pura
natureza e de guerra, a partir do momento em que o poder soberano
caísse nas mãos de um monarca ou de uma assembleia demasiado ne
gligentes relativamente às questões pecuniárias, ou demasiado
aventurosos nas suas maneiras de aplicar os fundos públicos quando
172 G. Botero, Della ragione di Stato, trad. fr. G. Chappuys (revista), Paris, 1599,1 ,1.
173 Lev, XXIV, 8, trad., p. 298.
174 Ibid., trad., p. 265.
227
D E M AO UIAVEL A H O B B E S -
226 HISTORIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA
175 Md.
176 Md. 180 Expressions du mouvement eommunautaire dans
177 Md., XXX, 4, trad., p. 358.
178 Ibid. le Moyen Âge latin, Paris, Vrin, 1970.
228 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA
181 Sobre a utilização desses conceitos para pensar a oposição entre o Estado com
preendido como societas civilis e o Estado compreendido como universitas, ver
M. Oakeshott, De la conduite humaine, crp. cit., pp. 200-208.
182 «Tal é a geração desse grande Leviatã, ou antes, para falar dele com mais reverência,
desse deus mortal, ao qual devemos, sob o Deus imortal, a nossa paz e a nossa
protecção» (Lev, XVH, 13, trad., p. 178).
183 Lev, XXI, 21, trad., p. 234.
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S ... 229
184 «Ainda que nada possa ser imortal, daquilo que fabricam os mortais, não obstante,
se os homens tivessem essa utilização da razão à qual pretendem, as suas Repúbli
cas poderiam pelo menos ser postas ao abrigo do perigo de perecer de maleitas
internas. Com efeito, pela própria natureza da sua instituição, elas são concebidas
para viver tanto tempo como a humanidade, ou tanto tempo como as leis de
natureza ou como a própria justiça, da qual tiram a sua vida» (Lev, XXIX, 1, tradu
ção, p. 342).
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S ...
230 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA
B odin , Oeuvres philosophiques [Oratio, Juris universi ditributio, M ethodus],texto - , ^ i d ô ^ m t r T u n philosophe et un légiste des Common-Laws d'A ngleterre, trad.
latino e trad. fr. P. Mesnard, Corpus général des philosophes français, tomo 1, ' fr. L. et P. Carrive, O euvres, tomo 10, Paris, Vrin, 1990.
Paris, PUF, 1951.
232
HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA
AR^ ; I VeSÎ harIeS: La Décision métaphysique de Hobbes, Paris, Vrin, 1987 1999
, Hobbes et la pensée politique moderne, Paris, PUF, 1995. ’
O contratualismo
como filosofia política
por Alain Renaut
1 — A noção de contrato todas as relações entre os seres humanos são, para o melhor ou para o
pior, regidas por um contrato? Pelo menos é preciso acrescentar que,
a Antes de interrogar o contexto graças ao qual a noção do contrato segundo os a -príori jurídico-políticos que estruturam o viver juntos nas
pôde ver esboçar-se o extraordinário sucesso que tem hoje, importa diversas sociedades ou culturas, a esfera daquilo que é, de direito,
desfazer um mal-entendido. A teorização filosófica da noção de con contratualizável se encontra mais ou menos limitada, e que em conse
trato é certamente muito antiga, tal como o é com maioria de razão a quência, dependendo dos casos, se confere uma importância e um signi
prática de um direito criando um lugar para o processo contratual. ficado bem diferentes ao campo das «transacções involuntárias».
Assim, invoca-se frequentemente, como testemunho da antiguidade Assim, não há nada de misterioso em que Aristóteles, evocando as
de um direito dos contratos, a Babilónia do século x v i i antes da nossa «transacções involuntárias», não tenha podido pensar unicamente; nem
era e aquilo que se convencionou designar como o Código de Hamurabi, sequer prioritariamente, nas obrigações que o direito romano chamará
no qual se encontravam os primeiros rudimentos de uma teoria contra- ex delicto (opondo-as, ele também, às obrigações ex contractu): numa
tualista da sociedade4. É de recear, todavia, que se trate nesse caso, de cidade em que a escravatura é legal, a «transacção involuntária» não
facto, de um exemplo típico de ilusão retrospectiva. É certo que as poderia, de facto, ser mais estranha por princípio à ordem social do que
sociedades antigas não estavam isentas de relações interpessoais em o é a «transacção voluntária» (contratual), mas apenas são condenáveis
que se vinham inscrever o compromisso, a promessa e a obrigação que em direito aquelas transacções involuntárias — Aristóteles elabora uma
a ela está ligada: apesar disso, nada indica, bem pelo contrário, que a lista — que incluem a intervenção de um delito. Para explicitar a distri
óptica constitutiva de uma contratualização das relações sociais se buição das relações interpessoais na cidade antiga, seria então neces
encontrasse já em germe nessas sociedades. sário completar a dicotomia aristotélica (transacções voluntárias, tran-
Em geral, é a Aristóteles que se atribui o mérito de ter sabido expri sacções involuntárias) através da distinção, nas transacções obrigatórias,
mir filosoficamente a maneira como a Antiguidade grega teria desde daquelas que são delituosas e daquelas que, sendo da esfera, por exem
logo identificado no contrato a forma das «relações que mantêm entre plo, do direito da escravatura, de forma nenhuma o são. Neste sentido,
si os membros de um grupo social»5. Contudo, ao considerar a passa mesmo quando, tanto em Aristóteles como no direito romano, uma
gem da Ética, a Nicomaco a que se faz sempre referência para escorar teorização se reveste da forma do contrato, nada anuncia ainda a
uma tal apreciação (V, 5,1130 b 30 - 1131a 9), é forçoso constatar que elevação dessa forma ao nível de um arquétipo das relações entre os
Aristóteles não considera o contrato nessa passagem (synthèkè), a não - homens.
ser como uma das formas susceptíveis de serem adoptadas pelo que ele Desta evocação da reflexão aristotélica sobre o contrato, podemos
chama uma «transãcção» (synallagma): as transacções, esclarece ele efec- apesar de tudo reter, independentemente das restrições que nela é im
tivamente, podem ser voluntárias se se trata de uma venda, de uma posta à noção do ponto de vista da sua extensão, uma primeira caracte
compra, de um empréstimo (a operação em causa assenta neste caso rização da noção de contrato que retém já um dos elementos essenciais
num acto voluntário dos participantes) ou, pelo contrário, involuntárias, da sua compreensão — exactamente aquele que o contratualismo explo
quando são independentes da vontade de pelo menos um dos partici rará ulteriormente, quando se tiver tomado filosofia política: não há
pantes, sendo o modelo fornecido pelo roubo ou pelo adultério. Em contrato a não ser a propósito de uma relação entre duas vontades que
todo o caso, o contrato não constitui então aqui mais do que um caso se comprometem livremente. Por outras palavras: o espaço contratual
particular das relações interpessoais. Constatação banal e que não po abre-se a partir do momento em que uma convenção livremente
deria de maneira nenhuma desconcertar, se não envolvesse mais do debatida entre partes em presença intervém para regular uma transac
que factos: como negar que, qualquer que seja a época considerada, ção entre elas. Consequentemente, Aristóteles explicita mesmo um
outro elemento essencial da relação contratual, a saber, que os contra
tos surgem sempre de uma «justiça correctiva» para a qual as partes
4 Cf. por exemplo S. Goyard-Fabre, op. cit., p. 21. aceitam remeter-se para regular o litígio que as oporia assim que
5 J.-M. Poughon, «Une constante doctrinale: l'approche économique du contrat», in uma delas tirasse proveito do contrato para conseguir uma vantagem
Droits, n.° 12 (Le contrat), pp. 46.
ilícita.
1
262 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIAPOLITICA 263
Tendo estes elementos da sua compreensão sido postos em evidên constituir um contrato: para que haja efectivamente contrato é
cia muito cedo, a noção de contrato quase não mudara mais, na tradi preciso também, de facto, que as duas vontades consigam real
ção ulterior, quanto à sua definição. Podemos constata-lo ainda hoje, no mente limitar-se, isto é, que cada uma renuncie a uma parte do
plano propriamente jurídico, ao consultar o artigo 1101 do Código que visava: é preciso portanto um acordo, não apenas sobre a
Civil: o contrato aparece nesse artigo como «uma convenção através da iíi
forma, mas também sobre a matéria ou sobre o conteúdo do con
qual uma ou mais pessoas se obrigam relativamente a uma ou a várias trato, a saber a limitação respectiva do que pertence propria
outras pessoas a dar, a fazer ou a não fazer qualquer coisa» — ficando mente a cada um (a propriedade) — por outras palavras: não
entendido que, da noção, rigorosamente compreendida, desta «obriga existe contrato a menos que seja concebível uma vontade geral
ção» que as partes se impõem, a doutrina deduz que o contrato assenta materialiter, e é precisamente essa materialidade do acordo (esse
num acordo de vontades e que é o consentimento que cria aqui o conteúdo material do acordo) que a jurisdição é chamada a fa
direito. _ zer respeitar.
Relativamente a esta estabilidade do conteúdo da própria noção de
contrato, chegar-se-ia a uma conclusão similar no registo das teorizações Em suma, de Aristóteles a Fichte, a precisão da noção de contrato
filosóficas: assim, por exemplo, no que continua a ser, juntamente com afinou-se seguramente, mas os seus princípios constitutivos permane
os Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, uma das últimas grandes ceram inalterados: razão suplementar para procurar, menos na elabo
contribuições propriamente filosóficas para a reflexão jurídica, a saber ração da própria noção do que na maneira como ela pôde encontrar um
o Fundamento do Direito Natural de Fichte (1796-1797), podemos ler no certo contexto histórico e cultural, as razões da sua extensão tão pro
§ 16 que todo o contrato põe em presença duas vontades (dois arbítrios) fundamente transformada.
em conflito quanto à posse (propriedade) de uma coisa, e que não have
ria contrato a não ser que sejam preenchidas duas condições6:
1) Exige-se antes de mais que as duas vontades estejam de acordo 2 — Contratualismo e modernidade
sobre o princípio da procura de uma solução jamigável, através
da limitação recíproca das suas exigências: todò o contrato é por Para dar simplesmente uma ideia de tal encontro, e da maneira como
tanto um acordo sobre o próprio princípio do direito (limitação ele pôde aumentar, em proporções consideráveis, a pertinência da no
recíproca das liberdades), isto é, sobre a forma intrinsecamente' ção de contrato, seria preciso concentrar novamente o olhar sobre esse
jurídica da relação desejável entre as partes envolvidas; neste sen traço essencial das sociedades modernas que consiste no papel que ne
tido, esclarece Fichte reunindo as aquisições da tradição las desempenhou a dinâmica do individualismo e cujos laços com a
contratualista, não existe contrato concebível a não ser que as dqas promoção da ideia e do valor do contrato são tão estreitos que foi sem
vontades cheguem a acordo sobre essaforma jurídica da regulação
contestação graças a essa dinâmica que o contratualismo se pôde elevar
dos conflitos, dando assim nascimento a uma «vontade geral
ao nível de uma verdadeira filosofia política. Como já aludimos, foi
formaliter» (compreender: a uma vontade comum dessa forma)7;
sem dúvida Tocqueville quem, pela primeira vez, mais fez sobressair,
2) Todavia, a existência de uma tal vontade comum incidindo sobre
I neste aspecto, as principais características do individualismo moderno,
a forma jurídica da regulação dos conflitos não chega ainda para
em análises hoje tão célebres que podemos limitarmo-nos a recordar,
do ponto de vista do que anima o nosso propósito, os seus resultados
6 As reservas de Hegel sobre determinadas aplicações da noção de contrato (por exem- essenciais.
pio, contra Kant, a aplicação ao casamento) não impedem o seu sumário das prind- Se seguirmos a análise tocquevilliana, cuja lógica interna será
pais determinações do próprio conceito de estar bastante próximo daquele que va evocada com mais pormenor e por si própria no volume 4 desta História,
mos propor aqui a partir de Fichte: ver Hegel, Principes de la philosophie du droit, ou:
dois traços principais caracterizam esse individualismo moderno que
Droit naturel et science de l'État en abrégé (1821), trad. R. Derathé, Paris, Vrin, 1975, »
pp. 123 e segs. (§ 72 e segs.). _ |
I encontrou na Revolução Francesa a sua mais viva expressão, através
7 J. G. Fichte, Fondement du droit naturel, trad. A. Renaut, Paris, PUF, 1986, pp. 204-205. \ dessa espantosa promoção política da ideia jurídica de contrato que
264 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA