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Biblioteca do Pensam ento M oderno

Ernst Cassirer

18 H //í/martinsfontes
A proposta da Biblioteca do Pensamento
Ernst Cassirer
Moderno é publicar obras em diversas Ensaio sobre o Homem
áreas da produção acadêmica e intelectual Introdução a uma filosofia da cultura humana
que, a partir de Nietzsche, tenham
contribuído para demarcar e caracterizar o
modo de pensar moderno e contemporâneo.

Tradução
TOMÁS ROSA BUENO

ipm/martinsfontes
SÃO PAULO 2016
Título original: A N ESSAY ON M AN - A N INTRODUCTION
TO A PHILOSOPHY OF HUM AN CULTURE
publicado p or Yale University Press
Copyright © 1944,1972 by Yale University Press
Copyright © 1994, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
Publicado po r acordo com Yale University Press.
Todos os direitos reservados.
A
1" edição 1994 Charles W. Hendel
2‘ edição 2012
2" tiragem 2016
com amizade e gratidão

Tradução
TOMÁS ROSA BUENO

Revisão da tradução
Carlos Eduardo Silveira Matos
Revisões gráficas
Renato da Rocha Carlos
Flora Maria de Campos Fernandes
Produção gráfica
Geraldo Alves

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cassirer, Emst
Ensaio sobre o homem : introdução a uma filosofia da cultura
humana / Em st Cassirer ; tradução Tomás Rosa Bueno. - 2? ed. -
São Paulo : Editora W M F Martins Fontes, 2012. - (Biblioteca do
pensamento moderno)

Titulo original: An essay on man : an introduction to a philosophy


o f human culture
ISBN 978-85-7827-609-6

1. Antropologia filosófica 2. Civilização - Filosofia 3. Cultura


4. Simbolismo I. Titulo. II. Série.

12-09135 CDD-128
índices para catálogo sistemático:
1. Homem : Antropologia filosófica 128

Todos os direitos desta edição reservados à


Editora WMF Martins Fontes Ltda.
Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325-030 São Paulo SP Brasil
Tel. (11) 3293-8150 Fax (11) 3101-1042
e-mail: info@wmfmartinsfontes.com. br http://www. wmfmartinsfontes. com. br
Não pode ser vendido em Portugal
SUMÁRIO

Prefácio ................................................................... 1

PARTE I
O QUE É O HOMEM?

I. A crise do conhecimento de si do homem . 9


II. Uma chave para a natureza do homem: o sím­
bolo ....................................................... 45
III. Das reações animais às respostas humanas . 51
IV. O mundo humano do espaço e do tempo . . 73
V. Fatos e ideais ............................................... 95

PARTE II
O HOMEM E A CULTURA

VI. A definição do homem nos termos da cultura


humana .................................................. 107
V II. M ito e religião ............................................. 121
V III. A linguagem ................................................ 181
IX . A a r t e ............................................................. 225
X. A h is tó r ia ....................................................... 279
X I. A ciência ....................................................... 337
X II. Sum ário e c o n c lu sã o .................................... 361

Notas ............................................................................. 373

PREFACIO

O primeiro impulso para que este livro fosse escrito


veio de meus amigos ingleses e americanos, que me pe­
diam, repetida e urgentemente, que publicasse um a tra­
dução para o inglês de m inha Filosofia das Formas Simbó­
licas1 . Em bora me agradasse m uito a idéia de ceder às
suas instâncias, após os primeiros passos tentativos jul-
guei impraticável e, nas presentes circunstâncias, injus­
tificável reproduzir o livro original em sua totalidade. No
que tange ao leitor, seria exigir demasiado de sua aten­
ção ler um estudo em três volumes sobre um tem a difícil
e abstrato. M as mesmo do ponto de vista do autor difi­
cilmente seria possível ou aconselhável publicar um a obra
planejada e escrita há mais de 25 anos. Desde então, o
autor continuou seu estudo do tema. Aprendeu muitos
fatos novos e deparou com muitos problemas novos. Até
os velhos problemas são por ele vistos de outro ângulo,
e surgem sob um a luz diferente. Por todas estas razões,
resolvi começar de novo e escrever um livro inteiram en­
te novo. Teria de ser muito mais curto que o primeiro.
2 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM PREFÁCIO 3

“ U m livro grande” , disse Lessing, “ é um grande m al.” lhe sou m uito grato pelas m uitas observações valiosas
Ao escrever a m inha Filosofia das Formas Simbólicas, esta­ e pertinentes acerca do tem a do livro.
va de tal modo envolvido no próprio tem a que esqueci Não pretendí escrever um livro “ popular” sobre
ou desprezei essa máxima estilística. Hoje sinto-me muito um tem a que, em muitos aspectos, resiste a qualquer
mais inclinado a subscrever as palavras de Lessing. Em popularização. Por outro lado, este livro não é dedica­
vez de apresentar um a relação detalhada dos fatos e um a do apenas a estudiosos e filósofos. Os problem as funda­
alentada discussão das teorias, tentei concentrar-m e, no mentais da cultura hum ana têm um interesse hum ano
presente livro, em uns poucos pontos que me parece­ geral, e devem ser tornados acessíveis para o público ge­
ram ser de especial im portância filosófica, e expressar ral. Tentei, portanto, evitar todas as tecnicismos e ex­
meus pensamentos tão breve e sucintamente quanto pos­ prim ir meus pensam entos da m aneira mais clara e sim ­
sível. ples possível. Contudo, devo avisar aos meus críticos que
M esm o assim, o livro teve de lidar com temas que, o que apresento aqui é mais um a explicação e um a ilus­
à prim eira vista, podem parecer am plam ente divergen­ tração que um a dem onstração da m inha teoria. Para
tes. U m livro que se ocupa de questões psicológicas, on- um a discussão e um a análise mais minuciosas dos pro­
tológicas e epistemológicas e que contém capítulos so­ blemas envolvidos, devo pedir-lhes que vejam a descri­
bre M ito e Religião, Linguagem e Arte, Ciência e H is­ ção detalhada na m inha Filosofia das Formas Simbólicas.
tória está aberto à objeção de que se trata de um mixtum Desejo fortemente não im por um a teoria pronta e
compositum das coisas mais disparatadas e heterogêneas. acabada, exposta em um estilo dogmático, às mentes dos
Espero que o leitor, após ter lido estas páginas, ache in­ meus leitores. Tive a preocupação de deixá-los em um a
fundada tal objeção. U m de meus objetivos mais im por­ posição em que pudessem julg ar por eles mesmos. C la­
tantes foi convencê-lo de que todos os temas tratados nes­ ro que não foi possível colocar diante deles o conjunto
te livro são apenas, afinal, um único tem a. São caminhos completo de evidências empíricas em que se funda a m i­
diferentes que levam ao mesmo centro — e, a meu m o­ nha tese principal. Tentei, contudo, fazer citações am ­
do de ver, cabe a um a filosofia da cultura descobrir e plas e detalhadas das obras básicas sobre os vários te­
determ inar esse centro. mas. O que o leitor encontrará não é, absolutam ente,
Q uanto ao estilo deste livro, foi um sério impedi­ um a bibliografia completa — até mesmo os títulos de
m ento, é claro, ter tido de escrevê-lo em um a língua que um a tal bibliografia teriam excedido de longe o espaço
não me é nativa. Dificilmente eu teria superado esse obs­ que me foi concedido. Tive de contentar-m e em citar
táculo sem a ajuda de meu amigo Jam es Pettegrove, do os autores para com os quais eu mesmo me sinto mais
New Jersey State Teachers College. Ele revisou o m a­ em dívida, e em selecionar os exemplos que me parece­
nuscrito todo e ofereceu-me seus cordiais conselhos so­ ram ter um significado típico e ser de superior interesse
bre todas as questões lingüísticas e de estilo. Tam bém filosófico.
4 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM PREFÁCIO 5

Pela dedicatória a Charles W . H endel, desejo ex­ agradecimentos ao Decano da Graduate School, pela hos­
pressar meus sentimentos de profunda gratidão para com pitalidade que me foi oferecida nos últimos três anos.
o hom em que me ajudou, com zelo incansável, a pre­ U m a palavra de agradecim ento cordial tam bém é devi­
parar este livro. Foi ele o prim eiro a quem falei sobre da aos meus estudantes. Discuti com eles quase todos
o plano geral da obra. Sem o seu vivido interesse pelo os problemas contidos neste livro, e tenho a confiança
tem a do livro e seu amigável interesse pessoal pelo au­ de que eles encontrarão muitos sinais do nosso trabalho
tor, dificilmente eu teria encontrado o ânim o necessá­ comum nas páginas que se seguem.
rio p ara publicá-lo. Ele leu o m anuscrito diversas ve­ Estou agradecido ao Fluid Research Fund da Yale
zes, e sempre pude aceitar suas sugestões críticas, que University pelos fundos de pesquisa que me ajudaram
se revelaram m uito úteis e valiosas. a preparar este livro.
A dedicatória, no entanto, tem não apenas um sen­
tido pessoal, mas tam bém “ sim bólico” . Dedicando es­ Ernst Cassirer
te livro ao Presidente do D epartam ento de Filosofia e Yale University
ao D iretor de Pós-G raduação da Yale University, que­
ro expressar ao próprio D epartam ento meus cordiais
agradecim entos. Q uando, há três anos, vim para a Ya­
le University, foi um a surpresa agradável encontrar um a
estreita colaboração que se estendia por todo um amplo
campo. Foi um prazer especial, e um grande privilégio,
trabalhar com meus colegas mais jovens em seminários
conjuntos sobre diversos temas. Esta foi, com efeito, um a
experiência nova em m inha longa vida acadêmica — e
um a experiência m uito interessante e estim ulante. T e ­
rei sempre um a grata lem brança desses seminários con­
juntos — um sobre filosofia da história, outro sobre fi­
losofia da ciência e um terceiro sobre a teoria do conhe­
cimento, realizados por Charles Hendel e Hajo Holborn,
F .S .C . N orthrop e H enry M argenau, M onroe Beards-
ley, Frederic Fitch e Charles Stevenson.
Devo ver neste livro, em larga m edida, o desfecho
do m eu trabalho n a G raduate School da Yale U niver­
sity, e sirvo-me desta oportunidade para expressar meus
PARTE I

O QUE É O HOMEM?
C A P ÍT U L O I

A CRISE DO CONHECIMENTO
DE SI DO HOMEM

Que o conhecimento de si mesmo é a mais alta m e­


ta da indagação filosófica parece ser geralmente reconhe­
cido. Em todos os conflitos entre as diferentes escolas fi­
losóficas, esse objetivo permaneceu invariável e inabala-
do: foi sempre o ponto de Arquimedes, o centro fixo e
inamovível, de todo pensamento. Nem os pensadores mais
céticos negam a possibilidade e a necessidade do autoco-
nhecimento. Desconfiaram de todos os princípios gerais
relativos à natureza das coisas, mas tal desconfiança ser­
viu apenas para abrir um novo modo de investigação mais
confiável. Com grande freqüência, na história da filoso­
fia, o ceticismo foi simplesmente a contrapartida de um
resoluto humanismo. Pela negação e destruição da certeza
objetiva do m undo externo, o cético espera trazer todos
os pensamentos do homem de volta para o seu próprio
ser. O autoconhecimento — declara — é o primeiro pré-
10 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 11

requisito da auto-realização. Devemos tentar rom per as brir todo o campo dos fenômenos hum anos. M esmo que
cadeias que nos ligam ao m undo exterior para poder­ conseguíssemos coletar e com binar todos os dados, te-
mos desfrutar nossa verdadeira liberdade. “ La plus gran­ ríamos ainda um a imagem pobre e fragm entária — um
de chosc du m onde c ’cst dc savoir être à soy” , escreveu mero esboço — da natureza hum ana.
M ontai gne. Aristóteles declara que todo o conhecimento hum a­
C ontudo, nem mesmo essa abordagem do proble­ no tem origem em um a tendência básica da natureza
m a — o m étodo da introspecção — está ao abrigo das hum ana que se m anifesta nas ações e reações mais ele­
dúvidas céticas. A filosofia m oderna teve início com o m entares do hom em . T oda a extensão da vida dos sen­
princípio de que a evidência de nosso próprio ser é im- tidos é determ inada e im pregnada por essa tendência.
pregnável e inatacável. M as o avanço do conhecimento
psicológico pouca coisa fez para confirm ar esse princí­ Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Uma in­
pio cartesiano. Hoje, a tendência geral do pensam ento dicação disso é o deleite que obtemos dos sentidos; pois estes,
inclina-se novam ente para o pólo oposto. Poucos psicó­ além de sua utilidade, são amados por si mesmos; e acima de
logos modernos adm itiríam ou recom endariam um sim­ todos os demais o sentido da visão. Pois não só com vistas à
ples m étodo de introspecção. No geral, dizem-nos que ação, mas, mesmo quando não vamos fazer nada, preferimos
tal m étodo é m uito precário. Estão convencidos de que ver a tudo o mais. A razão é que este, mais que todos os senti­
um a atitude behaviorista estritam ente objetiva é a ú n i­ dos, faz-nos conhecer e traz à luz muitas diferenças entre as
ca abordagem possível para um a psicologia científica. coisas1 .
Um behaviorism o coerente e radical, porém , não con­
segue atingir seus fins. Pode prevenir-nos — de possí­ Este trecho é altam ente característico da concepção do
veis erros metodológicos, mas não consegue resolver to­ conhecimento de Aristóteles, no que esta se distingue
dos os problem as da psicologia hum ana. Podemos criti­ da de Platão. Tal elogio filosófico da vida sensual do ho­
car a visão puram ente introspectiva, ou colocá-la sob sus- m em seria impossível n a obra de Platão. Ele nunca po­
peição, mas não suprim i-la ou eliminá-la. Sem a intros­ dería com parar o desejo de conhecimento ao deleite que
pecção, sem um a consciência im ediata dos sentimentos, derivamos dos nossos sentidos. Em Platão, a vida dos
emoções, percepções e pensamentos, não poderiamos se­ sentidos está separada da vida do intelecto por um a bre­
quer definir o campo da psicologia hum ana. No entan­ cha am pla e insuperável. O conhecimento e a verdade
to, é preciso adm itir que, seguindo apenas este cami­ pertencem a um a ordem transcendental — ao reino das
nho, nunca poderemos chegar a um a visão abrangente idéias puras e eternas. O próprio Aristóteles estava con­
da n atureza hum ana. A introspecção revela-nos apenas vencido de que o conhecimento científico não é possível
aquele pequeno segmento da vida hum ana que é aces­ unicam ente através do ato da percepção. M as fala co­
sível à nossa experiência individual. N unca poderá co­ mo biólogo ao negar a separação platônica entre o mundo
12 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 13

ideal e o empírico. Ele tenta explicar o m undo ideal, o mem. Nas prim eiras explicações mitológicas do univer­
m undo do conhecim ento, em term os de vida. Nos dois so encontram os sempre um a antropologia prim itiva lado
domínios, segundo Aristóteles, encontram os a mesma a lado com um a cosmologia prim itiva. A questão da ori­
continuidade ininterrupta. N a natureza, assim como no gem do m undo está inextricavelm ente entrelaçada com
conhecimento hum ano, as formas superiores desenvol­ a questão da origem do hom em . A religião não destrói
vem-se a partir de formas inferiores. A percepção dos essas prim eiras explicações mitológicas. Ao contrário,
sentidos, a m em ória, a experiência, a imaginação e a preserva a cosmologia e a antropologia mitológicas
razão estão todas ligadas por um vínculo comum; são dando-lhes nova forma e nova profundidade. A partir
apenas estágios e expressões diferentes de um a única e de então, o autoconhecimento não é mais concebido co­
m esm a atividade fundam ental, que atinge a sua mais mo um interesse m eram ente teórico. Deixa de ser ape­
alta perfeição no homem, mas que também, de certo mo­ nas um tem a de curiosidade ou especulação; é declara­
do, é com partilhada por todos os anim ais e todas as for­ do como a obrigação fundam ental do hom em . Os gran­
mas de vida orgânica. des pensadores religiosos foram os prim eiros a afirm ar
Se fôssemos adotar essa visão biológica, seria de es­ essa exigência moral. Em todas as formas superiores de
perar que os primeiros estágios do conhecimento humano vida religiosa, a m áxim a “ Conhece-te a ti m esm o” é
lidassem exclusivamente com o m undo externo. Para to­ vista como um imperativo categórico, como um a lei re­
das as suas necessidades imediatas e interesses práticos, ligiosa e moral suprema. Neste imperativo sentimos, por
o hom em depende de seu am biente físico. Não pode vi­ assim dizer, um a súbita çeversão do prim eiro instinto
ver sem um a constante adaptação às condições do mundo natural de conhecer — percebemos um a transavaliação
que o rodeia. Os prim eiros passos na direção da vida — de todos os valores. Nas histórias de todas as reli­
intelectual e cultural do hom em podem ser descritos co­ giões do m undo — no judaísm o, no budism o, no con-
mo atos que implicam um a espécie de ajuste m ental ao fucionismo e no cristianismo — podemos observar as
ambiente imediato. A medida que a cultura hum ana pro­ etapas individuais desse desenvolvimento.
gride, porém , logo encontram os um a tendência oposta O mesmo princípio é válido para a evolução geral
da vida hum ana. Desde os primeiros vislumbres de cons­ do pensam ento filosófico. Em seus prim eiros estágios,
ciência hum ana, encontramos um a visão introvertida da a filosofia grega parece ocupar-se exclusivamente do uni­
vida que acom panha e com plem enta essa visão extro­ verso físico. A cosmologia tem um a clara predom inân­
vertida. Q uanto mais esse desenvolvimento se afasta des­ cia sobre todos os demais ram os de investigação filosó­
sas origens, mais essa visão introvertida vem ao primeiro fica. No entanto, é característico da profundidade e da
plano. A curiosidade natural do homem começa aos pou­ abrangência da m ente grega que. quase todos os pensa­
cos a m udar de direção. Podemos estudar esse cresci­ dores individuais representam ao mesmo tempo um novo
m ento em quase todas as formas da vida cultural do ho­ tipo geral de pensam ento. P ara além da filosofia física
14 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 15

da escola de Mileto, os pitagóricos descobrem uma filo­ e universal. Mas o único universo que ele conhece, e
sofia matemática, enquanto os pensadores eleáticos são ao qual se referem todas as suas indagações, é o univer­
os primeiros a conceber o ideal de uma filosofia lógica. so do homem. Sua filosofia — se é que ele possui uma
Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento cos- — é estritamente antropológica. Em um dos diálogos
mológico e o antropológico. Embora fale ainda como fi­ platônicos, Sócrates é descrito envolvido em uma con­
lósofo natural e faça parte dos “ antigos fisiologistas” , versa com seu pupilo Fedro. Estão caminhando, e logo
está convencido de que é impossível penetrar o segredo chegam a um lugar fora dos portões de Atenas. Sócra­
da natureza sem ter estudado o segredo do homem. De­ tes exprime sua admiração pela beleza do lugar. Fica
veremos cumprir a exigência de auto-reflexão se quiser­ deliciado com a paisagem, à qual faz grandes elogios.
mos manter nosso domínio sobre a realidade e enten­ Mas Fedro o interrompe. Surpreende-se pelo fato de que
der o seu sentido. Assim, Heráclito pôde caracterizar Sócrates se comporte como um estrangeiro passeando
o conjunto de sua filosofia pelas duas palavras ebi^aáp.^v com um guia. “ Cruzas a fronteira alguma vez?” , per­
e/zecoTÓv (“ Busquei a mim mesmo” )2 . Mas essa nova gunta-lhe. Sócrates introduz um significado simbólico
tendência de pensamento, embora fosse de certo modo em sua resposta. “ E bem verdade, meu bom amigo” ,
inerente à filosofia grega primitiva, só alcançou sua plena retruca ele, “ e espero que me perdoes quando ouvires
maturidade na época de Sócrates. Portanto, é no pro­ a razão, ou seja, que sou um amante do conhecimento,
blema do homem que se encontra o marco que separa e os homens que residem na cidade são meus mestres,
o pensamento socrático do pré-socrático. Sócrates nun­ e não as árvores, ou o campo.” 3
ca ataca ou critica as teorias de seus predecessores. Não No entanto, quando estudamos os diálogos socrá-
pretende introduzir uma nova doutrina filosófica. Ne­ ticos de Platão, não encontramos em parte alguma uma
le, porém, todos os antigos problemas são vistos sob uma solução direta para o novo problema. Sócrates oferece-
nova luz, pois são dirigidos a um novo centro intelec­ nos uma análise detalhada e meticulosa das qualidades
tual. Os problemas da filosofia natural e da metafísica e virtudes humanas individuais. Procura determinar a
gregas são subitamente eclipsados por uma nova ques­ natureza dessas qualidades e defini-las: bondade, justi­
tão que, a partir de então, parece absorver todo o inte­ ça, temperança, coragem e assim por diante. Mas nun­
resse teórico do homem. Em Sócrates, não temos mais ca arrisca uma definição do homem. Como deve ser vista
uma teoria independente da natureza ou uma teoria ló­ essa aparente deficiência? Teria Sócrates adotado deli-
gica independente. Não temos sequer uma teoria ética beradamente uma abordagem perifrástica — que lhe per­
congruente e sistemática — no sentido em que foi de­ mitisse apenas arranhar a superfície de seu problema,
senvolvida nos sistemas éticos posteriores. Resta apenas sem jamais penetrar a sua profundidade e seu verdadeiro
uma questão: o que é o homem? Sócrates sustenta e de­ âmago? Aqui, porém, mais que em qualquer outra parte,
fende sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta devemos desconfiar da ironia socrática. É precisamente
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a resposta negativa de Sócrates que lança sobre a ques­ tureza, a verdade é fruto do pensam ento dialético. Lo­
tão um a luz nova e inesperada, e que nos proporciona go, só pode ser obtida m ediante um a constante coope­
um a compreensão positiva da concepção socrática do ho­ ração dos sujeitos em m útua interrogação e resposta. Não
mem. Não podemos descobrir a natureza do homem do é, portanto, como se fosse um objeto empírico; deve ser
mesmo modo que podemos detectar a natureza das coi­ entendida como produto de um ato social. Tem os aqui
sas físicas. As coisas físicas podem ser descritas nos ter­ um a resposta nova, indireta, à questão “ O que é o ho­
mos de suas propriedades objetivas, mas o hom em só m em ?” . Declara-se que o homem é a criatura que está
pode ser descrito e definido nos termos de sua consciên­ em constante busca de si mesmo — um a criatura que,
cia. Este fato coloca um problem a inteiram ente novo, em todos os m omentos de sua existência, deve exam i­
que não pode ser resolvido por nossos modos costumei­ nar e escrutinar as condições de sua existência. Nesse
ros de investigação. A observação em pírica e a análise escrutínio, nessa atitude crítica para com a vida hum a­
lógica, no sentido em que esses termos eram usados na na, consiste o real valor da vida hum ana. ‘‘U m a vida
filosofia pré-socrática, revelaram-se neste caso ineficientes que não é exam inada” , diz Sócrates em sua Apologia,
e inadequadas. Pois é apenas nas nosssas relações im e­ ‘‘não vale ser vivida.” 4 Podemos epitom izar o pensa­
diatas com os seres hum anos que obtemos um a com­ mento de Sócrates dizendo que o hom em é definido por
preensão do caráter do hom em . N a verdade, devemos ele como o ser que, quando lhe fazem um a pergunta ra­
confrontar o hom em , devemos enfrentá-lo diretam en­ cional, pode d ar um a resposta racional. T anto o seu co­
te, frente a frente, para poderm os entendê-lo. Logo, a nhecimento como a sua m oralidade estão com preendi­
característica distintiva da filosofia de Sócrates não é um dos nesse círculo. E por essa faculdade fundam ental, por
novo conteúdo objetivo, mas um a nova atividade e fun­ essa faculdade de dar um a resposta a si mesmo e aos
ção do pensam ento. A filosofia, que fora até então con­ outros, que o hom em se torna um ser “ responsável” ,
cebida como um monólogo intelectual, é transform ada um sujeito m oral.
em um diálogo. Só por meio do pensam ento dialógico
ou dialético podemos abordar o conhecimento da n atu ­
reza hum ana. Antes disso, a verdade podia ter sido con­ 2
cebida como um a espécie de coisa pronta que poderia
ser apreendida por um esforço do pensador individual De certo modo, esta prim eira resposta sempre foi
e prontam ente transferida e com unicada a outros. M as a resposta clássica. O problem a socrático e o método so-
Sócrates não pôde continuar a subscrever essa opinião. crático não podem jam ais ser esquecidos ou obliterados.
E tão impossível — diz Platão na República — im plan­ Por meio do pensam ento platônico, ela deixou sua
tar a verdade na alm a de um hom em quanto o é dar m arca 5 sobre todo o desenvolvimento futuro da civili­
o poder de ver a um hom em que nasceu cego. Por n a­ zação hum ana. Talvez não haja m aneira mais segura,
18 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 19

ou mais direta, de convencer-nos da profunda unidade diferente (àòtóupopov). Tudo o que interessa é a tendên­
e perfeita continuidade do pensam ento filosófico antigo cia, a atitude interior da alma; e tal princípio interior
que com parar esses prim eiros estágios da filosofia gre­ não pode ser perturbado. “ Aquilo que não torna o ho­
ga com um dos últimos e mais nobres produtos da cul­ mem pior que antes tampouco pode piorar sua vida, nem
tura greco-rom ana, o livro Para Si Mesmo escrito pelo im ­ feri-la do exterior ou do in terio r.” 8
perador M arco Aurélio A ntonino. A prim eira vista, tal Portanto, a exigência de autoquestionam ento apa­
com paração pode parecer arbitrária, pois M arco A uré­ rece no estoicismo, tal como na concepção de Sócrates,
lio não era um pensador original, nem seguia um m é­ como privilégio do hom em , e seu dever fundam ental9 .
todo estritam ente lógico. Ele próprio agradece aos deu­ M as esse dever é agora entendido em um sentido mais
ses por não se ter tornado, ao decidir-se pela filosofia, amplo; tem um em basam ento não apenas m oral, mas
um escritor de filosofia ou um resolvedor de silogismos6 . também universal e metafísico. “ N unca deixes de fazer
M as Sócrates e M arco Aurélio têm em comum a con­ a ti mesmo esta pergunta e de inquirir-te assim: que re­
vicção de que, para encontrar a verdadeira natureza ou lação tenho eu com essa parte de mim que cham am de
essência do hom em , devemos prim eiro rem over dele to­ Razão soberana (zò ijye/wpiKÓí')?” 10 Aquele que vi­
dos os traços externos ou incidentais. ve em harm onia consigo mesmo, com o seu demônio,
vive em harm onia com o universo; para ambos, a or­
N ão cham ai do hom em n en h u m a daquelas coisas que não lhe dem universal e a ordem pessoal não passam de dife­
cabem com o hom em . N ão podem ser ditas do hom em ; a n a ­ rentes expressões e manifestações de um princípio co­
tu reza do hom em não as garante; elas não são culm inações mum subjacente. O hom em prova o seu poder inerente
dessa natureza. C onsequentem ente, nem o fim pelo qual o ho­ de crítica, de juízo e discernimento, ao conceber que nes­
m em vive está situado nessas coisas, nem ainda aquilo que é ta correlação o Eu, e não o Universo, tem o papel p rin ­
perfectivo do fim, isto é, o Bem. Além disso, se q ualquer des­ cipal. Depois que o Eu conquista a sua form a interior,
sas coisas coubesse ao hom em , não caberia a ele desdenhá-las esta perm anece inalterável e im perturbável. “ U m a es­
ou opor-se a elas... m as, de q ualqu er form a, q u anto mais o fera, depois de form ada, perm anece redonda e fiel.” 11
hom em consegue lib ertar-se,... destas e de outras coisas tais Esta é, por assim dizer, a última palavra da filosofia grega
com eq uanim idade, tanto m ais ele é bom ?. — palavra que, mais um a vez, contém e explica o espí­
rito em que foi concebida originariam ente. Tal espírito
T udo o que acontece de fora ao hom em é nulo e inváli­ era um espírito de juízo, de discernim ento crítico entre
do. Sua essência não depende de circunstâncias exter­ Ser e Não-Ser, entre verdade e ilusão, entre bem e mal.
nas; depende exclusivamente do valor que ele mesmo A própria vida está m udando e flutuando, mas o ver­
se dá. R iquezas, posição, distinção social, até mesmo dadeiro valor da vida deve ser buscado em um a ordem
a saúde e os dotes intelectuais — tudo isso torna-se in­ eterna que não admite qualquer m udança. Não está no
20 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 21

m undo de nossos sentidos, é apenas pelo poder de nos­ homem. As teorias estóica e cristã do hom em não são
so juízo que podemos apreender essa ordem . O juízo necessariamente hostis um a à outra. N a história das
é o poder central no hom em , a fonte comum da verda­ idéias, ambas trabalham em conjunção, e com frequência
de e da m oralidade, pois é a única coisa em que o ho­ as encontramos em estreita conexão em um único e m es­
mem depende inteiram ente de si mesmo; o juízo é li­ mo pensador individual. Não obstante, sempre resta um
vre, autônom o e auto-suficiente 1 2 . “ Não te perturbes” , ponto em que o antagonismo entre os ideais estóico e
diz M arco Aurélio, cristão se revelou irreconciliável. A declarada indepen­
dência absoluta do homem, que na teoria estóica era con­
não sejas demasiado impaciente, mas sê teu próprio senhor, siderada como a virtude fundamental do homem, na teo­
e olha para a vida como varão, como ser humano, como cida­ ria cristã torna-se o seu vício e erro fundam entais. E n­
dão, como criatura mortal... As coisas não atingem a alma, quanto o hom em persevera neste erro não há caminho
pois são externas e permanecem inamovíveis, mas nossa per­ possível para a salvação. A luta entre essas duas visões
turbação vem apenas do juízo que formamos em nós mesmos. conflitantes durou muitos séculos, e no início da era mo­
Todas essas coisas que vês mudam imediatamente, e não mais derna — na época da Renascença e no século X V II —
serão; e lembra constantemente quantas dessas mudanças já sentimos ainda a sua força 14 .
testemunhaste. O Universo — mudança, a Vida — afir- Aqui podemos apreender um dos traços caracterís­
maça-o 13 . ticos da filosofia antropológica. Esta não é, tal como ou­
tros ram os da investigação filosófica, um lento e contí­
O m aior m érito desta concepção estóica do hom em está nuo desenvolvimento de idéias gerais. M esm o na histó­
no fato de dar ao hom em um profundo sentim ento tan ­ ria da lógica, da metafísica e da filosofia natural encon­
to de sua harm onia com a natureza como da sua inde­ tramos as mais nítidas oposições. Esta história pode ser
pendência moral em relação à natureza. N a mente do descrita, em termos hegelianos, como um processo dia­
filósofo estóico, essas asseverações não são conflitantes; lético em que cada tese é seguida de sua antítese. Ape­
estão correlacionadas um a à outra. O homem encontra-se sar disso, há um a coerência interna, um a clara ordem
em perfeito equilíbrio com o universo, e sabe que este lógica, que liga os diferentes estágios desse processo dia­
equilíbrio não deve ser perturbado por nenhum a força lético. A filosofia antropológica, por outro lado, demons­
externa. Este é o caráter dual da “ im perturbabilidade” tra um caráter totalmente diverso. Se quisermos apreen­
(arap a^io ;) estóica. Esta teoria estóica revelou-se como der os seus reais sentido e im portância, deveremos es­
um a das mais potentes forças formativas da cultura an­ colher, não o modo épico de descrição, e sim o dram á­
tiga, mas viu-se subitam ente em presença de um a nova tico. Pois não somos confrontados com um desenvolvi­
força, até então desconhecida. O conflito com essa no­ mento pacífico de conceitos ou teorias, mas com um
va força abalou em suas fundações o ideal clássico do choque entre poderes espirituais conflitantes. A histó-
22 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 23

ria da filosofia antropológica está cheia das mais pro­ mento, todo o poder original de raciocínio ficou obscu-
fundas paixões e emoções humanas. Não se ocupa de recido. E a razão sozinha, deixada a si mesma e a suas
um único problema teórico, por mais geral que seja o próprias faculdades, nunca pode encontrar o caminho
seu escopo; aqui, todo o destino do homem está em jo­ de volta. Não pode reconstruir-se; não pode, por seus
go, e clamando por uma decisão definitiva. próprios esforços, retornar à sua pura essência anterior.
Essa característica do problema encontrou sua ex­ Se tal transformação for algum dia possível, será ape­
pressão mais clara na obra de Agostinho. Agostinho nas por ajuda sobrenatural, pelo poder da graça divi­
situa-se na fronteira entre duas eras. Vivendo no século na. Assim é a nova antropologia, tal como é entendida
IV da era cristã, foi criado na tradição da filosofia gre­ por Agostinho, e mantida em todos os grandes sistemas
ga, e é em especial o sistema do neoplatonismo que dei­ de pensamento medieval. Até Tomás de Aquino, o dis­
xou sua marca em toda a filosofia dele. Por outro lado, cípulo de Aristóteles, que volta às fontes da filosofia gre­
porém, ele é o pioneiro do pensamento medieval; é o ga, não se aventura a desviar-se desse dogma fundamen­
fundador da filosofia medieval e da dogmática cristã. Em tal. Ele concede à razão humana um poder muito mais
suas Confissões podemos acompanhar cada passo da sua alto que o concedido por Agostinho; mas está convenci­
passagem da filosofia grega para a revelação cristã. Se­ do de que a razão não pode usar corretamente esses po­
gundo Agostinho, toda a filosofia anterior ao apareci­ deres a menos que seja guiada e iluminada pela graça
mento de Cristo padecia do mesmo erro fundamental de Deus. Chegamos aqui a uma inversão total de todos
e estava infectada por uma única e mesma heresia. O os valores sustentados pela filosofia grega. O que ou-
poder da razão era exaltado como o mais alto poder do trora parecia ser o mais alto privilégio do homem revela-
homem. Mas o que o homem jamais poderia ter sabi­ se como seu perigo e sua tentação; o que surgia como
do, até ser iluminado por uma revelação divina espe­ seu orgulho torna-se sua mais profunda humilhação. O
cial, é que a própria razão é uma das coisas mais ques­ preceito estóico de que o homem deve obedecer e reve­
tionáveis e ambíguas do mundo. A razão não nos pode renciar seu princípio interior, o “ demônio” dentro de
mostrar o caminho para a clareza, a verdade e a sabe­ si, é agora considerado como uma perigosa idolatria.
doria, pois é em si mesma obscura em seu sentido, e sua Não é praticável continuar aqui a descrição do ca­
origem está envolta em mistério — um mistério que só ráter dessa nova antropologia, analisar os seus motivos
pode ser solucionado pela revelação cristã. Para Agos­ fundamentais e acompanhar o seu desenvolvimento.
tinho, a razão não tem uma natureza simples e única, Mas, para podermos entender o seu propósito, podemos
mas antes dupla e dividida. O homem foi criado à ima­ escolher uma via diferente, mais direta. No início dos
gem de Deus; e em seu estado original, no qual saiu das tempos modernos, apareceu um pensador que deu a es­
mãos de Deus, era igual ao seu arquétipo. Mas tudo is­ sa antropologia um novo vigdr e um novo esplendor.
so foi perdido com a queda de Adão. A partir desse mo­ Na obra de Pascal, ela encontrou a sua última, e talvez
24 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 25
mais im pressionante, expressão. Pascal estava prepara­ de seus princípios e na necessidade de suas deduções.
do para essa tarefa mais que qualquer outro escritor j a ­ M as nem todos os objetos são passíveis de serem tra ta ­
mais estivera. Possuía um dom incom parável para elu­ dos desse modo. H á coisas que, em virtude de sua suti­
cidar as questões mais obscuras, e para condensar e con­ leza e sua infinita variedade, desafiam toda tentativa de
centrar sistemas de pensam ento complexos e dispersos. análise lógica. E, se existe no m undo qualquer coisa que
N ada parece ser im perm eável à agudeza de seu pensa­ devamos tratar d a segunda m aneira, é a m ente do ho­
m ento e à lucidez de seu estilo. Nele estão unidas todas mem. O que caracteriza o hom em é a riqueza e sutile­
as vantagens da literatura e d a filosofia m odernas. T o ­ za, a variedade e a versatilidade de sua natureza. Lo­
davia, ele as usa como arm as contra o espírito m oder­ go, a m atem ática nunca poderá tornar-se o instrum en­
no, o espírito de Descartes e de sua filosofia. A prim ei­ to de um a verdadeira doutrina do hom em , de um a a n ­
ra vista, Pascal parece aceitar os pressupostos do carte- tropologia filosófica. E ridículo falar do hom em como
sianismo e da ciência moderna. Não há na natureza nada se fosse um a proposição geométrica. U m a filosofia m o­
que possa resistir ao esforço da razão científica, pois não ral nos termos de um sistema de geometria — um a Ethica
existe n ad a que possa resistir à geometria. E um evento more geométrico demonstrata — é p ara Pascal um absurdo,
curioso na história das idéias o fato de ter sido um dos um sonho filosófico. A lógica e a metafísica tradicionais
maiores e mais profundos geômetras que se tornou o de­ tampouco estão em posição de entender e resolver o enig­
fensor tem porão da filosofia antropológica da Idade M é­ m a do hom em . Sua lei prim eira e suprem a é a lei da
dia. Aos dezesseis anos de idade, Pascal escreveu o tra ­ contradição. O pensam ento racional, o pensam ento ló­
tado sobre secções cônicas, que abriu um novo campo, gico e metafísico só são capazes de com preender os ob­
m uito rico e fértil, de pensam ento geométrico. M as ele jetos que estão livres de contradição e que tenham um a
não era apenas um grande geôm etra, era tam bém um natureza e um a verdade coerentes. C ontudo, é precisa­
filósofo; e, como filósofo, não estava m eram ente absor­ mente essa hom ogeneidade que nunca encontram os no
to nos problem as geométricos, mas queria com preen­ homem. Não se permite ao filósofo conceber um homem
der o verdadeiro uso, a extensão e os limites da geome­ artificial; ele deve descrever o verdadeiro. Todas as cha­
tria. Foi desse modo levado a fazer a distinção funda­ m adas descrições do hom em não são mais que especu­
mental entre o “ espírito geométrico” e o “ espírito agudo lações visionárias se não forem baseadas na nossa expe­
ou sutil” . O espírito geométrico sobressai em todos aque­ riência do hom em , e por ela confirmadas. Não h á o u ­
les tem as que são suscetíveis de um a análise perfeita — tra m aneira de conhecer o homem senão pela com preen­
que podem ser divididos até seus elementos primeiros15 . são de sua vida e conduta. M as o que encontram os aqui
Parte de certos axiomas e destes extrai inferências cuja desafia toda tentativa de inclusão em um a fórm ula sim ­
verdade pode ser dem onstrada por regras lógicas u n i­ ples e única. A contradição é o próprio elemento da exis­
versais. A vantagem desse espírito consiste na clareza tência hum ana. O hom em não tem um a “ n atu reza” ,
26 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 27

um ser simples ou homogêneo. Ele é uma estranha mis­ ta do pecado do homem, pois ele não é produzido ou
tura de ser e não-ser. O lugar dele é entre esses dois pó­ necessitado por qualquer causa natural. Tampouco po­
los opostos. demos dar conta da salvação do homem, pois esta de­
Existe, portanto, apenas uma abordagem para o se­ pende de um ato inescrutável de graça divina. E livre­
gredo da natureza humana: a da religião. A religião mente dada e recusada; não há qualquer ação humana,
mostra-nos que há um homem duplo — o homem an­ nem qualquer mérito humano, que possa merecê-la. A
tes e depois da queda. O homem estava destinado à mais religião, portanto, nunca pretende esclarecer o misté­
alta meta, mas perdeu o direito a sua posição. Pela que­ rio do homem. Ela confirma e aprofunda esse mistério.
da, perdeu seu poder, e sua razão e sua vontade foram O Deus de que ela fala é um Deus absconditus, um deus
pervertidas. Logo, a máxima clássica “ Conhece-te a ti oculto. Logo, até mesmo a sua imagem, o homem, não
mesmo’’, entendida em seu sentido filosófico, no senti­ pode ser senão misterioso. O homem também é um ho-
do de Sócrates, Epíteto ou Marco Aurélio, é não só ine­ mo absconditus. A religião não é nenhuma “ teoria” do
ficaz, mas também enganadora e equivocada. O homem Deus e do homem e da sua relação mútua. A única res­
não pode ter confiança em si mesmo e ouvir-se. Deve posta que recebemos da religião é que é vontade de Deus
silenciar-se para poder ouvir uma voz mais alta e mais ocultar-se. “Assim, sendo Deus oculto, toda religião que
verdadeira. “ O que será de ti, ó Homem! tu que bus­ não diga que Deus é oculto não é verdadeira; e toda re­
cas qual é a tua verdadeira condição por tua razão na­ ligião que não dê uma razão para tal não é instrutiva.
tural? Sabe então, homem arrogante, que paradoxo és A nossa faz tudo isso: Vere tu es Deus absconditus^. ... Pois
para ti mesmo. Humilha-te, razão impotente; fica quieta, a natureza é tal que por toda a parte indica um Deus
natureza imbecil; aprende que o homem supera infini­ perdido, tanto dentro como fora do homem.” 18 Portan­
tamente o homem, e ouve de teu senhor tua verdadeira to, por assim dizer, a religião é uma lógica do absurdo,
condição, de que és ignorante. Ouve a Deus.” 16 pois só assim pode apreender o absurdo, a contradição
O que se apresenta aqui não pretende ser uma so­ interna, o ser quimérico do homem. “ Certamente, na­
lução teórica do problema do homem. A religião não po­ da nos marca com mais rudeza que essa doutrina; e no
de proporcionar essa solução. Por seus adversários, a re­ entanto, sem esse mistério, o mais incompreensível de
ligião sempre foi acusada de obscuridade e incompreen- todos, somos incompreensíveis para nós mesmos. O nó
sibilidade. Mas tal acusação torna-se o mais alto louvor de nossa condição dá suas voltas e mergulha nesse abis­
tão logo consideramos a sua verdadeira meta. A religião mo, de tal modo que o homem é mais inconcebível sem
não pode ser clara e racional. O que ela relata é uma esse mistério do que esse mistério é inconcebível para
história obscura e sombria: a história do pecado e da o homem.” 19
queda do homem. Revela um fato para o qual nenhu­
ma explicação racional é possível. Não podemos dar con­
28 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 29

3 um a ordem hierárquica na qual o hom em ocupa o lu­


gar mais elevado. N a filosofia estóica e na teologia cris­
O que vemos no exemplo de Pascal é que no início tã, o hom em era descrito como o fim do universo. Am ­
da era m oderna o velho problem a continuava sendo sen­ bas as doutrinas estão convencidas de que há um a pro­
tido com toda a sua força. M esm o após a publicação do vidência geral regendo o m undo e os destinos do homem.
Discours de la Méthode, de Descartes, a m ente hum ana Esse conceito é um dos pressupostos básicos dos pensa­
debatia-se ainda com as mesmas dificuldades. Estava di­ mentos estóico e cristão 2 0 . Tudo isso é subitamente pos­
vidida entre duas soluções inteiram ente incompatíveis. to em causa pela nova cosmologia. A pretensão do ho­
Ao mesmo tem po, porém , tem início um lento desen­ mem a ser o centro do universo perdeu o seu fundam en­
volvim ento intelectual pelo qual a questão “ O que é o to. O hom em é colocado em um espaço infinito em que
hom em ?” é transform ada e, por assim dizer, elevada
seu ser parece um ponto único e evanescente. Está ro­
a um nível superior. O im portante aqui não é tanto a
deado por um universo m udo, por um m undo silencio­
descoberta de fatos novos quanto a descoberta de um
so para os seus sentimentos religiosos e para as suas mais
novo instrum ento de pensam ento. Agora, pela prim ei­
profundas exigências morais.
ra vez, o espírito científico, no m oderno sentido da pa­
É compreensível, e foi de fato necessário, que a pri­
lavra, entra na arena. A busca agora é por um a teoria
m eira reação a essa nova concepção do m undo só pu­
geral do homem baseada em observações empíricas e em
desse ser negativa — um a reação de dúvida e medo. Nem
princípios lógicos gerais. O prim eiro postulado desse es­
pírito novo e científico foi a remoção de todas as barrei­ mesmo os maiores pensadores conseguiram livrar-se des­
ras artificiais que até então separavam o m undo hum a­ se sentimento. “ Le silence éternel de ces espaces infinis
no do resto da natureza. Para entenderm os a ordem das m ’effraye” , diz Pascal2 1 . O sistema copernicano tornou-
coisas hum anas, devemos com eçar com um estudo da se um dos mais fortes instrum entos do agnosticismo e
ordem cósmica. E essa ordem cósmica aparece agora sob do ceticismo filosóficos que se desenvolveram no século
um a luz inteiram ente nova. A nova cosmologia, o sis­ X V E Em sua crítica da razão hum ana, M ontaigne usa
tem a heliocêntrico introduzido n a obra de Copérnico, todos os conhecidos argum entos tradicionais dos siste­
é a única base sólida e científica p ara um a nova antro­ mas do ceticismo grego. M as acrescenta um novo ins­
pologia. trum ento, que em suas mãos revela ter enorm e força e
N em a m etafísica clássica, nem a religião e a teolo­ fundamental importância. Nada é melhor para humilhar-
gia medievais estavam preparadas para essa tarefa. Es­ nos e abater o orgulho da razão hum ana que um a visão
ses dois corpos de doutrina, por mais diferentes que se­ sem preconceitos do universo físico. Q ue o hom em , es­
jam em seus métodos e objetivos, estão baseados em um creveu ele em um famoso trecho de sua Apologie de Rai-
princípio comum . Ambos concebem o universo como mond Sebond,
30 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 31

me faça entender, pela força de sua razão, sobre quais funda­ As palavras de M ontaigne fornecem-nos a chave pa­
ções ele ergueu as grandes vantagens que pensa ter sobre ou­ ra todo o subseqüente desenvolvimento da m oderna teo­
tras criaturas. Quem o fez acreditar que este admirável movi­ ria do homem. A filosofia e a ciência m odernas tiveram
mento do arco celestial, a luz eterna dessas luminárias que pas­ de aceitar o desafio contido nessas palavras. T iveram de
sam tão altas sobre a cabeça dele, os prodigiosos e temíveis provar que a nova cosmologia, longe de enfraquecer ou
movimentos desse oceano infinito teriam sido estabelecidos e obstruir o poder da razão hum ana, estabelece e confir­
continuariam por tantas eras para seu serviço e conveniência?
m a esse poder. Essa foi a tarefa dos esforços com bina­
Pode-se imaginar algo tão ridículo, que essa criatura alque-
dos dos sistemas metafísicos dos séculos X V I e X V II.
brada e miserável, que não é sequer senhora de si mesma, mas
Estes sistemas seguem caminhos diferentes, mas todos
está sujeita às injúrias de todas as coisas, devesse chamar a
estão dirigidos para um único e mesmo fim. Lutam , por
si mesma de senhora e imperatriz do mundo, do qual não tem
assim dizer, p ara transform ar a aparente maldição da
o poder de conhecer a menor parte, e muito menos de coman­
nova cosmologia em um a bênção. G iordano Bruno foi
dar o todo?22
o prim eiro pensador a enveredar por esse cam inho, que
O hom em está sem pre inclinado a considerar este pe­ de certo modo se tornou o caminho de toda a metafísica
moderna. O característico da filosofia de Giordano Bruno
queno círculo em que vive como o centro do m undo,
é que nela o term o “ infinidade” m uda de sentido. No
e a fazer de sua vida particular, privada, o padrão do
pensamento grego clássico, a infinidade é um conceito
universo. M as deve renunciar a essa vã pretensão, essa
negativo. O infinito é o sem limites, ou indeterm inado.
m aneira medíocre e provinciana de pensar e julgar.
Não tem limite nem form a e é, portanto, inacessível à
razão hum ana, que vive no reino das formas e não con­
Quando as vinhas de nossa aldeia são comidas pela geada, o
segue entender nada além de formas. Neste sentido, o
padre da paróquia logo conclui que a indignação de Deus está
finito e o infinito, Trépaç e atreipop, são declarados por
dirigida contra toda a raça hum ana... Quem é que, ao ver es­
tas nossas guerras civis, não exclama Que a máquina de todo
Platão no Philebus como os dois princípios fundam entais
o mundo está desarranjada, e que o dia do juízo está próxi­ que estão necessariamente opostos um ao outro. N a dou­
mo!. .. Mas quem quer que apresente à sua fantasia, como em trina de Bruno, a infinidade não significa mais um a m era
um quadro, a grande imagem de nossa mãe natureza, retra­ negação ou limitação. Ao contrário, significa a im ensu­
tada em toda a sua majestade e glória; quem quer que na face rável e inesgotável abundância da realidade e o poder
dela leia tão geral e tão constante variedade, quem quer que irrestrito do intelecto hum ano. E neste sentido que B ru­
se observe nessa figura, e não a si mesmo mas a todo um rei­ no entende e interpreta a doutrina copemicana. Esta dou­
no, não maior que o menor toque de um lápis, em compara­ trina, segundo Bruno, foi o primeiro e decisivo passo em
ção com o todo, só esse homem é capaz de avaliar as coisas direção à autolibertação do homem. O Hom em não vi­
de acordo com sua verdadeira estimativa e grandeza-^. ve mais no m undo como um prisioneiro encerrado no in-
32 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 33

terior das paredes estreitas de um universo físico finito. trar a realidade de Deus e, de maneira indireta, a reali­
Pode atravessar os ares e romper todos os limites ima­ dade do mundo material. Leibniz combina essa prova
ginários das esferas celestiais erigidos por uma metafí­ metafísica a uma nova prova científica. Descobre um
sica e uma cosmologia falsas2 4 . O universo infinito não novo instrumento de pensamento matemático — o cál­
fixa qualquer limite à razão humana. O intelecto hu­ culo infinitesimal. Pelas regras desse cálculo, o univer­
mano toma consciência de sua própria infinidade me­ so físico torna-se inteligível; vê-se que as leis da nature­
dindo seus poderes pelo universo infinito. za não são nada além de casos especiais das leis gerais
Tudo isso é expresso na obra de Bruno em uma lin­ da razão. E Spinoza que se aventura a dar o último pas­
guagem poética, e não científica. O novo mundo da ciên­ so, decisivo, nessa teoria matemática do mundo e da
cia moderna, a teoria matemática da natureza, ainda mente humana. Spinoza concebe uma nova ética, uma
era desconhecida de Bruno. Ele não pôde, portanto, se­ teoria das paixões e afetos, uma teoria matemática do
guir por seu caminho até sua conclusão lógica. Foram mundo moral. Está convencido de que só por meio des­
necessários os esforços combinados de todos os metafí­ sa teoria podemos atingir o nosso fim: a meta de uma
sicos e cientistas do século XVII para superar a crise “ filosofia do homem” , de uma filosofia antropológica,
intelectual provocada pela descoberta do sistema coper- que esteja livre dos erros e preconceitos de úm sistema
nicano. Todo grande pensador — Galileu, Descartes, meramente antropocêntrico. Este é o tópico, o tema ge­
Leibniz, Spinoza — tem sua parte especial na solução ral, que em suas várias formas permeia todos os gran­
desse problema. Galileu afirma que, no campo da ma­ des sistemas metafísicos do século XVII. E a solução ra-
temática, o homem alcança o ápice de todo o conheci­ cionalista do problema do homem. A razão matemática
mento possível — conhecimento que não é inferior ao é o vínculo entre o homem e o universo; permite-nos
do intelecto divino. E claro que o intelecto divino co­ passar livremente de um para o outro. A razão mate­
nhece e concebe um número infinitamente maior de ver­ mática é a chave para uma verdadeira compreensão das
dades matemáticas do que nós, mas, com relação à cer­ ordens cósmica e moral.
teza objetiva, as poucas verdades conhecidas pela men­
te humana são conhecidas tão perfeitamente pelo homem
quanto o são por Deus25 . Descartes começa com sua dú­ 4
vida universal que parece encerrar o homem nos limi­
tes de sua própria consciência. Parece não haver saída Em 1754, Denis Diderot publicou uma série de afo­
desse círculo mágico — nenhuma abordagem da reali­ rismos intitulada Pensées sur l ’interprétation de la nature. Nes­
dade. Mesmo neste caso, porém, a idéia do infinito acaba se ensaio ele declarou que a superioridade da matemá­
sendo o único instrumento para a derrubada da dúvida tica no domínio da ciência não é mais inconteste. A ma­
universal. Só por meio desse conceito podemos demons- temática, afirmou, alcançou um tão alto grau de perfei-
34 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 35

ção que nenhum progresso é mais possível; a partir desse Mas está chegando o momento em que superaremos esse
m om ento, a m atem ática perm anecerá estacionária. preconceito, e então teremos chegado a um ponto novo
e culminante na história da ciência natural.
Nous touchons au moment d ’une grande révolution dans les T erá sido cum prida a profecia de Diderot? T erá o
Sciences. Au pcnchant que les esprits me paroissent avoir à desenvolvimento das idéias científicas no século X IX
la morale, aux belles lettres, à l’histoire de la nature et à la confirmado a sua opinião? Em um ponto, sem dúvida,
physique expérimentale j'oserois presque assurer qu’avant qu’il o erro dele é óbvio. A sua expectativa de que o pensa­
soit cent ans on ne comptera pas trois grands géomètres en mento m atemático se paralisaria, que os grandes m ate­
Europe. Cette Science s’arrêtera tout court oü l’auront laissé máticos do século X V III haviam chegado aos Pilares de
les Bernoulli, les Euler, les Maupertuis et les d ’Alembert. Ils Hércules, revelou-se inteiramente incorreta. Aquela ga­
auront posés les colonnes d ’Hercule, on n ’ira point au delà"^. láxia do século X V III devemos agora acrescentar os no­
mes de Gauss, de R iem ann, de W eierstrass, de Poinca-
Diderot é um dos grandes representantes da filoso­ ré. Por toda a parte, na ciência do século X IX , depara­
fia do Ilum inism o. Com o editor da Encyclopédie, ele está mos com a m archa triunfal de novas idéias e novos con­
no próprio centro de todos os grandes movimentos in ­ ceitos matemáticos. Não obstante, a previsão de Dide­
telectuais de seu tem po. Ninguém tinha um a perspecti­ rot continha um elemento de verdade. Pois a inovação
va mais clara do desenvolvimento geral do pensam ento da estrutura intelectual do século X IX está precisamente
científico; ninguém tinha um a sensibilidade mais agu­ no lugar que o pensam ento m atem ático ocupa na hie­
da para todas as tendências do século X V III. É ainda rarquia científica. U m a nova força começa a surgir. O
mais característico e notável de Diderot que, represen­ pensamento biológico tom a a precedência sobre o pen­
tando todos os ideais do Ilum inism o, tenha começado samento m atemático. N a prim eira m etade do século
a duvidar da correção desses ideais. Ele espera o surgi­ X IX há ainda alguns metafísicos, como H erbart, ou al­
m ento de um a nova form a de ciência — um a ciência guns psicólogos, como G. T h. Fechner, que nutrem a
de caráter mais concreto, baseada antes na observação esperança de fundar um a psicologia m atem ática. M as
dos fatos que na adoção de princípios gerais. De acordo tais projetos desaparecem rapidam ente após a publica­
com D iderot, superestim am os demais os nossos m éto­ ção da obra de Darwin A Origem das Espécies. A partir
dos lógicos e racionais. Sabemos como com parar, orga­ desse m om ento, o verdadeiro caráter da filosofia antro­
nizar e sistem atizar os fatos conhecidos; mas não culti­ pológica parece ter sido fixado de um a vez por todas.
vamos os únicos métodos pelos quais seria possível des­ Após inúm eras tentativas infrutíferas, a filosofia do ho­
cobrir novos fatos. Somos vítimas da ilusão de que o ho­ mem está finalmente em terreno firme. Não precisamos
m em que não sabe contar sua fortuna não está em m e­ mais dedicar-nos a especulações visionárias, pois não es­
lhor posição que o homem que não tem fortuna alguma. tamos em busca de um a definição geral da natureza ou
36 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 37

da essência do homem. O nosso problema é simplesmen­ sas finais de Aristóteles são caracterizadas como um mero
te colher as evidências empíricas que a teoria geral da asylum ignorantiae. U m dos principais objetivos da obra
evolução colocou à nossa disposição em um a m edida ri­ de Darw in foi livrar o pensam ento m oderno dessa ilu­
ca e abundante. são de causas finais. Devemos procurar entender a es­
T al era a convicção com um aos cientistas e filóso­ trutura da natureza orgânica unicamente por causas m a­
fos do século X IX . M as o que se tornou mais im por­ teriais, ou não poderemos entendê-la. M as as causas m a­
tante para a história geral das idéias e para o desenvol­ teriais são, na term inologia de Aristóteles, causas “ aci­
vimento do pensamento filosófico não foram os fatos em ­ dentais” . Aristóteles havia afirmado enfaticamente a im­
píricos da evolução, e sim a interpretação teórica desses possibilidade de se entender o fenômeno da vida por tais
fatos. Essa interpretação não foi determ inada, em um causas acidentais. A teoria m oderna aceita esse desafio.
sentido inequívoco, pela própria evidência empírica, mas Pensadores modernos afirm aram que, após as inúm e­
antes por certos princípios fundam entais que tinham um ras tentativas infrutíferas dos tempos antigos, consegui­
caráter metafísico definido. Em bora raram ente reconhe­ ram definitivamente dar conta da vida orgânica como
cido, esse cariz metafísico do pensam ento evolucioná- um mero produto do acaso. As m udanças acidentais que
rio foi um a força m otivadora latente. Em um sentido têm lugar na vida de cada organismo bastam para ex­
filosófico geral, a teoria da evolução não era, de modo plicar a transform ação gradual que nos leva das formas
algum , um a realização recente. Ela havia tido a sua ex­ mais simples de vida em um protozoário às mais eleva­
pressão clássica na psicologia de Aristóteles e na sua vi­ das e complicadas formas. Encontram os um a das mais
são geral da vida orgânica. A distinção característica e notáveis expressões dessa visão no próprio Darwin, que
fundam ental entre a versão aristotélica e a m oderna da costuma ser tão reticente acerca de suas concepções fi­
evolução consistia no fato de que Aristóteles fazia um a losóficas. “ Não só as várias raças dom ésticas” , obser­
interpretação form al, enquanto os m odernos tentavam va ele no final de seu livro The Variation of Animais and
um a interpretação m aterial. Aristóteles estava conven­ Plants under Domestication,
cido de que para entender o plano geral da natureza,
as origens da vida, as formas inferiores devem ser in­ como também os mais distintos gêneros e ordens dentro da
terpretadas à luz das formas superiores. N a sua m etafí­ mesma grande classe — por exemplo, mamíferos, aves, rép­
sica, na sua definição da alm a como “ a prim eira efeti­ teis e peixes — são todos descendentes de um único progeni-
vação de um corpo natural potencialm ente com vida” , tor comum, e devemos admitir que toda a vasta quantidade
a vida orgânica é concebida e interpretada em termos de diferença entre essas formas surgiu primariamente da sim­
da vida hum ana. O caráter teleológico da vida hum ana ples variabilidade. Considerar o tema sob esse ponto de vista
é projetado sobre todo o dom ínio dos fenômenos n atu ­ é bastante para deixar a pessoa muda de espanto. Mas o nos­
rais. N a teoria m oderna, essa ordem é invertida. As cau­ so espanto deveria diminuir ao refletirmos que seres quase in-
38 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 39

finitos em número, durante um lapso quase infinito de tem­ dentais? Não possuirá ele um a distinta e inegável estru­
po, tiveram muitas vezes toda a sua organização tornada até tura teleológica? Com isso, um novo problem a apresen­
certo grau plástica, e que cada ligeira modificação de estrutu­ tou-se a todos os filósofos cujo ponto de partida era a
ra que fosse de algum modo benéfica sob condições excessiva­ teoria geral da evolução. Tinham de provar que o mundo
mente complexas de vida foi preservada, enquanto cada uma cultural, o m undo da civilização hum ana, é redutível
que fosse de algum modo perniciosa foi rigorosamente destruí­ a algumas causas gerais que são as mesmas tanto para
da. E a longa acumulação de variações benéficas terá levado
os fenômenos físicos quanto para os fenômenos ditos es­
infalivelmente a estruturas tão diversificadas, tão belamente
pirituais. Este foi o novo tipo de filosofia da cultura in­
adaptadas para vários propósitos e tão excelentemente coor­
troduzido por Hippolyte T aine em sua Philosophy of Art
denadas como as que vemos nas plantas e animais à nossa volta.
Por isso, falei da seleção como o poder supremo, aplicada pe­
e em sua History of the English Literature. “ Aqui como em
lo homem para a formação das raças domésticas ou pela natu­ outras partes” , disse ele,
reza para a produção de espécies... Se um arquiteto erguesse
um edifício nobre e cômodo sem usar pedras cortadas, sele­ não temos mais que um problema mecânico; o efeito total é
cionando entre os fragmentos na base de um precipício pedras um resultado, que depende inteiramente da magnitude e da
em forma de cunhas para seus arcos, pedras alongadas para direção das causas que o produzem. Embora os meios de no­
seus lintéis e pedras chatas para seu teto, deveriamos admirar tação não sejam os mesmos nas ciências físicas e morais, mas
seu talento e considerá-lo como um poder supremo. Ora, os em ambas a matéria é a mesma, igualmente feita de forças,
fragmentos de pedra, embora indispensáveis para o arquite­ magnitudes e direções, podemos dizer que em ambas o resul­
to, têm com o edifício construído por ele a mesma relação que tado final é produzido segundo o mesmo m étodo^.
as variações flutuantes dos seres orgânicos têm com as varia­
das e admiráveis estruturas adquiridas em última instância por E o mesmo círculo férreo de necessidade que encerra tan­
seus descendentes modificados^?. to a nossa vida física como a cultural. Em seus senti­
mentos, suas inclinações, suas idéias, seus pensam en­
M as outro passo, e talvez o mais im portante, tinha tos e sua produção de obras de arte, o hom em nunca
ainda de ser dado antes que um a real filosofia antropo­ rompe esse círculo mágico. Podemos considerar o ho­
lógica pudesse desenvolver-se. A teoria da evolução h a­ mem como um animal de espécie superior que produz
via destruído os limites arbitrários entre as diferentes for­ filosofias e poemas do mesmo modo que o bicho-da-seda
mas de vida orgânica. Não há espécies separadas; há ape­ produz seus casulos ou as abelhas constroem suas celas.
nas um a contínua e ininterrupta corrente de vida. M as No prefácio à sua grande obra, Les origines de la France
será que podemos aplicar o mesmo princípio à vida h u ­ contemporaine, Taine declara que estudará a transform a­
m ana e à cultura hum ana? Será o m undo cultural, tal ção da França como resultado da Revolução Francesa
como o m undo orgânico, form ado por m udanças aci­ como estudaria “ a metamorfose de um inseto” .
40 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 41

Neste ponto, porém, surge outra questão. Podemos qual os fatos empíricos são esticados para amoldar-se a
contentar-nos em contar de modo m eram ente empírico um padrão preconcebido.
os diferentes impulsos que encontramos na natureza hu­ Em virtude desse desenvolvimento, nossa teoria m o­
m ana? P ara um a visão realm ente científica, tais im pul­ derna do hom em perdeu seu centro intelectual. A dqui­
sos deveríam ser classificados e sistematizados. O bvia­ rimos, no lugar dele, um a completa anarquia de pensa­
m ente, nem todos eles estão no mesmo nível. Devemos mento. E claro que mesmo nos tempos antigos havia um a
supor que possuem um a estrutura definida — e um a das grande discrepância de opiniões e teorias relativas a este
prim eiras e mais im portantes tarefas da nossa psicolo­ problema. M as restava pelo menos um a orientação ge­
gia e teoria da cultura é descobrir essa estrutura. Na com­ ral, um marco de referência ao qual todas as diferenças
plicada engrenagem da vida hum ana, devemos encon­ individuais podiam ser submetidas. A metafísica, a teo­
tra r a força acionadora oculta que põe todo o mecanis­ logia, a matemática e a biologia assumiram sucessivamen­
mo do nosso pensam ento e da nossa vontade em movi­ te a orientação do pensam ento sobre o problem a do ho­
m ento. A m eta principal de todas essas teorias era pro­ mem e determ inaram a linha de investigação. A verda­
var a unidade e a hom ogeneidade da natureza hum ana. deira crise deste problem a manifestou-se quando deixou
M as, se exam inam os as explicações que tais teorias fo­ de existir um tal poder central, capaz de dirigir todos os
ram concebidas para dar, a unidade da natureza hum ana esforços individuais. A im portância decisiva do proble­
parece extrem am ente duvidosa. C ada filósofo acredita ma continuava a ser sentida em todos os diferentes ra­
ter encontrado a m ola m estra e a faculdade principal — mos de conhecimento e de investigação, mas não existia
l ’idée maitresse, tal como foi cham ada por T aine. Porém , mais um a autoridade estabelecida à qual se pudesse ape­
quanto ao caráter dessa faculdade principal, todas as ex­ lar. Teólogos, cientistas, políticos, sociólogos, biólogos,
plicações diferem am plam ente um as das outras, e são psicólogos, etnólogos e economistas, cada um abordou
contraditórias entre si. Cada pensador individual nos ofe­ o problema a partir de seu próprio ponto de vista. C om ­
rece a sua própria imagem da natureza hum ana. T o ­ binar ou unificar todos esses aspectos e perspectivas p ar­
dos esses filósofos são empiristas determinados; desejam ticulares era impossível. E nem em cada um dos campos
m ostrar-nos os fatos e nada mais que os fatos. M as sua especiais havia um princípio científico de aceitação ge­
interpretação da evidência empírica contém, desde o iní­ ral. O fator pessoal tornou-se cada vez mais prevalecen-
cio, um a suposição arbitrária — e esta arbitrariedade te, e o tem peram ento do escritor individual tendia a ter
vai ficando cada vez mais óbvia à m edida que a teoria um papel decisivo. Trahit sua quemque voluptas-, cada autor
avança e assume um aspecto mais elaborado e sofistica­ parece ser conduzido, em últim a análise, por sua própria
do. Nietzsche proclam a a vontade de potência, Freud concepção e avaliação da vida hum ana.
assinala o instinto sexual, M arx entroniza o instinto eco­ Que esse antagonismo de idéias não é m eram ente
nômico. C ada teoria torna-se um leito de Procrusto no um grave problem a teórico e sim um a am eaça im inen-
42 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 43

te a toda a extensão de nossa vida ética e cultural não to, não teremos qualquer compreensão real do caráter
admite qualquer dúvida. No pensam ento filosófico re­ geral da cultura hum ana; continuarem os perdidos em
cente, M ax Scheler foi um dos prim eiros a perceber e uma massa de dados desconexos e desintegrados que pa­
a assinalar esse perigo. “ Em nenhum outro período do recem carecer de toda unidade conceituai.
conhecimento h u m an o ” , declara ele,

o homem tornou-se mais problemático para si mesmo que em


nossos próprios dias. Temos uma antropologia científica, ou­
tra filosófica e outra teológica que não sabem nada uma da
outra. Portanto, não possuímos mais qualquer idéia clara e
coerente do homem. A multiplicidade cada vez maior das ciên­
cias particulares que se dedicam ao estudo do homem confun­
diu e obscureceu muito mais que elucidou o nosso conceito
do homem®.

T al é a estranha situação em que se encontra a fi­


losofia m oderna. N enhum a época passada esteve em po­
sição tão favorável com relação às fontes do nosso co­
nhecim ento da natureza hum ana. A psicologia, a etno­
logia, a antropologia e a história acum ularam um cor­
po de fatos espantosam ente rico e em constante cresci­
mento. Nossos instrum entos técnicos para a observação
e a experim entação foram im ensam ente aperfeiçoados,
e nossas análises tornaram -se mais aguçadas e mais pe­
netrantes. M esmo assim, aparentem ente não encontra­
mos ainda um método para o domínio e a organização
desse m aterial. C om parado à nossa própria abundân­
cia, o passado deve parecer m uito pobre. Nossa rique­
za de fatos, contudo, não é necessariamente um a rique­
za de pensam entos. A menos que consigamos achar um
fio de A riadne que nos conduza para fora deste labirin­
C A P ÍT U L O II

UMA CHAVE PARA A NATUREZA


DO HOMEM: O SÍMBOLO

O biólogo Johannes von Uexküll escreveu um livro


em que empreende um a revisão crítica dos princípios da
biologia. Segundo Uexküll, a biologia é um a ciência na­
tural que tem de ser desenvolvida pelos métodos em píri­
cos usuais — os métodos da observação e da experimen­
tação. O pensamento biológico, por outro lado, não é do
mesmo tipo que o pensamento físico ou químico. Uex­
küll é um defensor resoluto do vitalismo; é um advoga­
do do princípio da autonomia da vida. A vida é um a rea­
lidade suprema e dependente de si mesma. Não pode ser
descrita ou explicada nos termos da física ou da quím i­
ca. A partir desse ponto de vista, Uexküll desenvolve um
novo esquema geral de pesquisa biológica. Como filóso­
fo ele é idealista, ou fenomenalista. Seu fenomenalismo,
porém, não se baseia em considerações metafísicas ou
epistemológicas; funda-se, antes, em princípios em píri­
cos. Tal como ele assinala, seria um tipo muito ingênuo
de dogmatismo presum ir que existe um a realidade abso-
46 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 47

luta de coisas que seja a m esm a para todos os seres vi­ mo, mesmo o mais simples, não está apenas, em um sen­
vos. A realidade não é um a coisa singular e homogê­ tido vago, adaptado (angepasst) como também inteiramen­
nea; é im ensam ente diversificada, e tem tantos esque­ te ajustado (eigenpasst) ao seu am biente. De acordo com
mas e padrões diferentes quanto há organismos diferen­ sua estrutura anatôm ica, ele possui um certo Merknetz
tes. C ad a organism o é, por assim dizer, um ser moná- e um certo Wirknetz — um sistema receptor e um siste­
dico. Tem um m undo só seu porque tem um a experiên­ ma efeituador. Sem a cooperação e o equilíbrio desses
cia só sua. Os fenômenos que encontram os na vida de dois sistemas, o organismo não poderia sobreviver. O
um a determ inada espécie biológica não são transferíveis sistema receptor, através do qual um a espécie biológica
para nenhum a outra espécie. As experiências — e por­ recebe os estímulos externos, e o sistema efetuador, pe­
tanto as realidades — de dois organismos diferentes são lo qual reage a eles, estão em todos os casos intim am en­
incom ensuráveis um com o outro. No m undo de um a te entrelaçados. São elos da m esm a cadeia única que
mosca, diz Uexküll, encontramos apenas “ coisas de mos­ Uexküll descreve como o círculo funcional (Funktionskreis)
ca’’; no m undo de um ouriço-do-m ar encontram os ape­ do anim al 1 .
nas “ coisas de ouriço-do-m ar” . Não posso encetar aqui um a discussão dos princí­
A partir desse pressuposto geral, Uexküll desenvolve pios biológicos de Uexküll. Referi-me aos seus concei­
um esquem a engenhoso e original do m undo biológico. tos e à sua term inologia apenas para colocar um a ques­
Desejando evitar toda interpretação psicológica, segue tão geral. Será possível fazer uso do esquem a proposto
um método inteiramente objetivo ou behaviorista. A úni­ por Uexküll para um a descrição e caracterização do mun­
ca chave para a vida anim al, sustenta ele, é a que nos do humano? E óbvio que esse m undo não é nenhum a ex­
dão os fatos da anatom ia com parada. Conhecendo a es­ ceção às regras biológicas que regem a vida de todos os
trutura anatôm ica de um a espécie animal, possuímos to­ demais organismos. No entanto, no m undo hum ano en­
dos os dados necessários p ara reconstruir seu modo es­ contramos um a característica nova que parece ser a m ar­
pecial de experiência. Um estudo atento do corpo ani­ ca distintiva da vida hum ana. O círculo funcional do
mal, do núm ero, da qualidade e da distribuição dos ó r­ homem não é só quantitativam ente m aior; passou tam ­
gãos dos sentidos e das condições do sistema nervoso bém por um a m udança qualitativa. O hom em desco­
fornece-nos um a imagem perfeita do m undo interior e briu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se
exterior do organism o. Uexküll começou suas investi­ ao seu am biente. Entre o sistema receptor e o efetua­
gações com os organismos mais inferiores e estendeu-as dor, que são encontrados em todas as espécies anim ais,
gradualm ente a todas as formas de vida orgânica. De observamos no homem um terceiro elo que podemos des­
certo m odo, ele se nega a falar de formas de vida infe­ crever como o sistema simbólico. Essa nova aquisição trans­
riores ou superiores. A vida é perfeita em toda a parte; forma o conjunto da vida hum ana. C om parado aos ou­
é a m esm a no círculo m enor e no m aior. C ada organis­ tros anim ais, o hom em não vive apenas em um a reali-
48 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 49

dade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova di­ artificial. Sua situação é a mesma tanto na esfera teóri­
mensão de realidade. Existe uma diferença inconfundí­ ca como na prática. Mesmo nesta, o homem não vive
vel entre as reações orgânicas e as respostas humanas. em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas ne­
No primeiro caso, uma resposta direta e imediata é da­ cessidades e desejos imediatos. Vive antes em meio a
da a um estímulo externo; no segundo, a resposta é di­ emoções imaginárias, em esperanças e temores, ilusões
ferida. E interrompida e retardada por um lento e com­ e desilusões, em suas fantasias e sonhos. “ O que per­
plicado processo de pensamento. A primeira vista, tal turba e assusta o homem” , disse Epíteto, “ não são as
atraso pode parecer um ganho questionável. Muitos fi­ coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas.”
lósofos preveniram o homem contra esse pretenso pro­ A partir do ponto de vista a que acabamos de che­
gresso. “ L ’homme qui médite” , diz Rousseau, “ est un gar, podemos corrigir e ampliar a definição clássica do
animal dépravé” : exceder os limites da vida orgânica homem. A despeito de todos os esforços do irracionalis-
não é um melhoramento, mas uma deterioração da na­ mo moderno, essa definição do homem como um ani­
tureza humana. mal rationale não perdeu sua força. A racionalidade é de
Todavia, não existe remédio para essa inversão da fato um traço inerente a todas as atividades humanas.
ordem natural. O homem não pode fugir à sua própria A própria mitologia não é uma massa grosseira de su­
realização. Não pode senão adotar as condições de sua perstições ou ilusões crassas. Não é meramente caótica,
própria vida. Não estando mais num universo meramen­ pois possui uma forma sistemática ou conceituai2 . Mas,
te físico, o homem vive em um universo simbólico. A por outro lado, seria impossível caracterizar a estrutura
linguagem, o mito, a arte e a religião são partes desse do mito como racional. A linguagem foi com freqüên-
universo. São os variados fios que tecem a rede simbó­ cia identificada à razão, ou à própria fonte da razão. Mas
lica, o emaranhado da experiência humana. Todo o pro­ é fácil perceber que essa definição não consegue cobrir
gresso humano em pensamento e experiência é refina­ todo o campo. É uma pars pro toto\ oferece-nos uma par­
do por essa rede, e a fortalece. O homem não pode mais te pelo todo. Isso porque, lado a lado com a linguagem
confrontar-se com a realidade imediatamente; não po­ conceituai, existe uma linguagem emocional; lado a la­
de vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade do com a linguagem científica ou lógica, existe uma lin­
física parece recuar em proporção ao avanço da ativi­ guagem da imaginação poética. Primariamente, a lin­
dade simbólica do homem. Em vez de lidar com as pró­ guagem não exprime pensamentos ou idéias, mas sen­
prias coisas o homem está, de certo modo, conversando timentos e afetos. E até mesmo uma religião “ nos limi­
constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo tes da razão pura” , tal como concebida e elaborada por
em formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos mí­ Kant, não passa de mera abstração. Transmite apenas
ticos ou ritos religiosos que não consegue ver ou conhe­ a forma ideal, a sombra, do que é uma vida religiosa
cer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio genuína e concreta. Os grandes pensadores que defini-
50 ENSAIO SOBRE O HOMEM

ram o hom em como animal rationale não eram empiris-


tas, nem pretenderam jam ais dar um a explicação em ­
pírica da natureza hum ana. C om essa definição, esta­
vam antes expressando um imperativo moral fundam en­
tal. A razão é um term o m uito inadequado com o qual
com preender as formas da vida cultural do homem em
toda a sua riqueza e variedade. M as todas essas formas C A P ÍT U L O III
são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o ho­
mem como animal rationale, deveriamos defini-lo como
animal symbolicum. Ao fazê-lo, podemos designar sua di­
DAS REAÇÕES ANIMAIS
ferença específica, e entender o novo caminho aberto pa­ ÀS RESPOSTAS HUMANAS
ra o hom em — o caminho para a civilização.

Com nossa definição do homem como um animal


symbolicum, chegamos ao nosso primeiro ponto de parti­
da para o prosseguimento das investigações. Agora, po­
rém, torna-se imperativo que desenvolvamos um pouco
essa definição para dar-lhe maior precisão. E inegável que
o pensamento simbólico e o comportamento simbólico es­
tão entre os traços mais característicos da vida hum ana,
e que todo o progresso da cultura hum ana está baseado
nessas condições. Teremos, porém, o direito de considerá-
las como um dom especial do homem, com exclusão de
todos os outros seres orgânicos? Não seria o simbolismo
um princípio cujas origens podemos encontrar em fon­
tes muito mais profundas, e com um campo de aplicabi­
lidade muito mais vasto? Se respondermos a essa pergunta
pela negativa deveremos, aparentem ente, confessar nos­
sa ignorância acerca de muitas questões fundamentais que
têm sido perenemente o centro das atenções na filosofia
da cultura hum ana. A questão da origem d a linguagem,
52 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 53

da arte e da religião torna-se irrespondível, e somos dei­ empíricas relativas aos cham ados estímulos representa­
xados com a cultura hum ana como um fato dado que tivos. No caso dos macacos antropóides, um estudo ex­
perm anece, de certo modo, isolado e portanto ininte­ perimental m uito interessante de Wolfe dem onstrou a
ligível. eficácia das “ recompensas por fichas’’. O s anim ais
E compreensível que os cientistas sempre se tenham aprenderam a reagir a fichas como substitutos p ara as
recusado a aceitar tal solução. Fizeram um grande es­ recompensas em alimentos da mesm a m aneira que rea­
forço para ligar o fato do simbolismo a outros fatos co­ giam ao próprio alim ento 1 . Segundo Wolfe, os resulta­
nhecidos e mais elem entares. Sentiu-se que o problem a dos das longas e variadas experiências m ostraram que
era de fundam ental im portância, mas, infelizmente, ra­ processos simbólicos ocorrem no comportamento dos m a­
ras foram as vezes em que foi abordado com um a m en­ cacos antropóides. R obert M . Yerkes, que descreve es­
te inteiram ente aberta. Desde o início, ele tem sido obs- sas experiências em seu último livro, tira delas um a im ­
curecido e confundido por outras questões, pertencen­ portante conclusão geral.
tes a um campo de discurso totalm ente diferente. Em
vez de proporcionar-nos um a descrição e um a análise É evidente que eles [os processos simbólicos] são relativamen­
sem preconceitos dos próprios fenômenos, a discussão te raros e difíceis de observar. E razoável continuar a questio­
deste problem a foi convertida em um a disputa m etafí­ nar sua existência, mas suspeito que logo serão identificados
sica. Tornou-se o pomo da discórdia entre diferentes sis­ como antecedentes dos processos simbólicos humanos. Assim,
temas metafísicos: entre idealismo e m aterialism o, es- estamos abandonando este tema em um interessantíssimo es­
piritualism o e naturalism o. P ara todos esses sistemas, tágio de desenvolvimento, quando descobertas de importân-
• • 9
a questão do simbolismo tornou-se um problem a cru­ cia parecem iminentes .
cial, do qual parecia depender a form a futura da ciên­
cia. Seria prem aturo fazer quaisquer previsões quanto
Não estamos preocupados aqui com esse aspecto do ao desenvolvimento futuro deste problema. O campo de­
problema, tendo-nos proposto um a tarefa bem mais m o­ ve ser deixado aberto para futuras investigações. A in­
desta e concreta. T entarem os descrever a atitude sim ­ terpretação dos fatos experimentais, por outro lado, de­
bólica do hom em de m aneira mais precisa, para poder­ pende sempre de certos conceitos fundam entais que de­
mos contrapô-la a oütros modos de comportamento sim­ vem ser esclarecidos antes que o m aterial empírico pos­
bólico encontrados em todo o reino animal. Não se ques­ sa dar seus frutos. A psicologia e a psicobiologia m o­
tiona, evidentem ente, que os anim ais nem sempre rea­ dernas levam esse fato em consideração. Parece-me
gem aos estímulos de m aneira direta, que são capazes altamente significativo que hoje em dia não sejam os fi­
de um a reação indireta. As famosas experiências de Pa- lósofos, mas os observadores e pesquisadores empíricos
vlov proporcionam -nos um abundante corpo de provas que parecem estar assumindo os papéis principais n a so-
54 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 55

lução deste problem a. Estes últimos dizem-nos que, afi­ de um a sentença que tem um a distinta estrutura sintá­
nal, o problem a não é m eram ente empírico, mas em tica e lógica 4 . É certo que até na linguagem altam ente
grande parte lógico. Georg Révész publicou recentemen­ desenvolvida, na linguagem teórica, a ligação com o pri­
te um a série de artigos que começam com a proposição meiro elemento não se rompe por inteiro. R aram ente
de que a questão calorosam ente debatida da cham ada se encontra um a sentença — exceto, talvez, nas senten­
linguagem animal não pode ser resolvida com base ape­ ças formais puras da m atem ática — sem um a certa tin­
nas nos fatos da psicologia anim al. Q uem quer que exa­ tura afetiva ou emocional5 . Analogias e paralelos com
mine as diferentes teses e teorias psicológicas com a m en­ a linguagem emocional podem ser encontrados em abun­
te im parcial e crítica deve acabar chegando à conclusão dância no m undo animal. No que toca aos chimpanzés,
de que o problem a não pode ser esclarecido com um a Wolfgang Koehler afirma que eles atingem um alto grau
simples referência a formas de comunicação anim al e de expressão por meio da gesticulação. R aiva, terror,
a certas proezas anim ais aprendidas por repetição e trei­ desespero, pesar, súplica, desejo, brincadeira e prazer
nam ento. Todas essas proezas adm item as interpreta­ são expressados com facilidade desse modo. Falta, no
ções mais contraditórias. Logo, é necessário, antes de entanto, um elemento, característico e indispensável a
mais nada, encontrar um ponto de partida lógico corre­ toda a linguagem hum ana: não encontram os nenhum
to, que possa conduzir-nos a um a interpretação natural sinal que tenha um a referência ou sentido objetivo. “ Po­
e sólida dos fatos empíricos. T al ponto de partida é a de ser considerado como positivam ente provado” , diz
definição da fala (die Begriffsbestimmung der Sprachef. C on ­ Koehler,
tudo, em vez de apresentar um a definição pronta da fa­
la, talvez fosse m elhor seguir algumas linhas tentativas. que sua escala de fonética é inteiramente “ subjetiva” e só con­
A fala não é um fenômeno simples e uniform e. Consis­ segue expressar emoções, nunca designar ou descrever obje­
te em diferentes elementos que, tanto biológica como sis­ tos. Mas eles têm tantos elementos fonéticos em comum com
tematicamente, não estão no mesmo nível. Devemos ten­ as linguagens humanas que sua falta de fala articulada não pode
tar encontrar a ordem e a inter-relação dos elementos ser atribuída a limitações secundárias (glossolabiais). Tam bém
constituintes; devemos, por assim dizer, distinguir as di­ seus gestos faciais e corporais, tal como sua expressão por sons,
versas cam adas geológicas d a fala. A prim eira cam ada, nunca designam ou “ descrevem” objetos (Bühler)®.
e a mais fundam ental, é evidentemente a linguagem das
emoções. G rande parte da expressão hum ana pertence Chegam os aqui ao ponto crucial de todo o nosso
ainda a essa camada. M as existe um tipo de fala que problema. A diferença entre a linguagem proposicional e
se nos m ostra de um tipo totalm ente diverso. Nela a pa­ a linguagem emocional é a verdadeira fronteira entre o m un­
lavra não é, de modo algum , um a m era interjeição; não do hum ano e o m undo anim al. Todas as teorias e ob­
é um a expressão involuntária de sentim ento, mas parte servações relativas à linguagem animal estarão bem longe
56 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 57

do alvo se deixarem de reconhecer essa diferença fun­ genética não deve ser confundida aqui com a questão
dam ental 7 . Em toda a literatura sobre o tem a parece analítica e fenomenológica. A análise lógica da fala h u ­
não haver um a única prova conclusiva de que algum ani­ m ana sempre nos conduz a um elemento de sum a im ­
mal jam ais deu o passo decisivo que leva da linguagem portância, sem paralelo no m undo anim al. A teoria ge­
subjetiva à objetiva, da afetiva à proposicional. Koeh- ral da evolução não se opõe, de modo algum , ao reco­
ler enfatiza que a fala está decididam ente fora do alcan­ nhecimento desse fato. M esm o no cam po dos fenôm e­
ce dos macacos antropóides. Sustenta que a falta desse nos de natureza orgânica vemos que a evolução não ex­
inestimável auxílio técnico e a grande limitação desses clui um a espécie de criação original. O fato da m utação
im portantíssim os com ponentes do pensam ento, as cha­ súbita e da evolução emergente deve ser admitido. A bio­
m adas imagens, constituem as causas que impedem os logia m oderna não fala mais da evolução nos term os do
anim ais de jam ais realizarem sequer os mais mínimos darwinismo prim itivo, nem explica as causas da evolu­
rudim entos de desenvolvimento cultural8 . Révész che­ ção da m esm a m aneira. Podemos adm itir com facilida­
gou à m esm a conclusão. A fala, afirm a ele, é um con­ de que os macacos antropóides, no desenvolvimento de
ceito antropológico que, por isso, deve ser inteiram ente certos processos simbólicos, podem ter feito um avanço
descartado do estudo da psicologia animal. Se partirmos significativo. Mais um a vez, porém, devemos insistir que
de u m a definição clara e precisa da fala, todas as de­ não chegaram ao lim iar do m undo hum ano. E ntraram ,
mais formas de expressão que tam bém encontramos nos por assim dizer, em um beco sem saída.
anim ais serão autom aticam ente elim inadas 9 . Yerkes, Com vistas a um enunciado claro do problem a, de­
que estudou o problem a com especial interesse, fala em vemos distinguir com cuidado entre sinais e símbolos. P a­
um tom mais positivo. Está convencido de que mesmo rece ser um fato estabelecido que encontram os sistemas
em relação à linguagem e ao simbolismo existe um a ín­ bastante complexos de signos e sinais no comportamento
tim a relação entre os hom ens e os macacos antropóides. animal. Podemos até dizer que alguns anim ais, em es­
“ Isso sugere” , escreve ele, “ que podemos estar diante pecial os anim ais domésticos, são extrem am ente susce­
de um estágio filogenético anterior da evolução do pro­ tíveis aos sinais 1 2 . U m cão reage às m ínim as m ud an­
cesso simbólico. H á indícios abundantes de que vários ças no comportam ento de seu dono; distingue até as ex­
outros tipos de processo de sinalização, além do sim bó­ pressões do rosto hum ano ou as modulações da voz
lico, são de ocorrência frequente e funcionam efetiva­ hum ana 1 3 . M as há um a enorm e distância entre tais fe­
m ente no chim panzé.” 10 No entanto, tudo é ainda dis­ nômenos e a compreensão da fala simbólica e hum ana.
tintam ente pré-lingüístico. M esm o na opinião de Yer­ As famosas experiências de Pavlov provam apenas que
kes, todas essas expressões funcionais são excessivamente os animais podem ser treinados facilmente p ara reagir
rudim entares, simples e de utilidade lim itada, em com­ não só a estímulos diretos como a todo tipo de estím u­
paração aos processos cognitivos hum anos 1 1 . A questão los mediatos ou representativos. U m a cam painha, por
58 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 59

exemplo, pode tornar-se um “ sinal de ja n ta r” , e um ani­ a falar de inteligência de animais. Em todo o com porta­
mal pode ser treinado para não tocar a comida enquan­ m ento anim al, viram apenas a ação de um certo auto-
to esse sinal estiver ausente. Com isso, porém , ficamos matismo. Tal tese tinha o respaldo da autoridade de Des­
sabendo apenas que o experim entador, nesse caso, con­ cartes; no entanto, foi reafirm ada na psicologia m oder­
seguiu m udar a situação alim entar do anim al. Ele com ­ na. “ O anim al” , diz E.L . T horndike em seu trabalho
plicou essa situação acrescentando-lhe voluntariam ente sobre a inteligência anim al, “ não pensa que um é co­
um novo elemento. Todos os fenômenos comumente des­ mo o outro, nem confunde, como se diz com freqüên-
critos como reflexos condicionados não estão apenas mui­ cia, um com o outro. Ele não pensa sobre isso, m as ape­
to afastados, mas são até opostos ao caráter essencial do nas pensa isso... A idéia de que os animais reagem a um a
pensam ento simbólico hum ano. Os símbolos — no sen­ impressão dos sentidos particular e absolutam ente defi­
tido próprio do termo — não podem ser reduzidos a m e­ nida e realizada e de que um a reação semelhante a um a
ros sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois universos impressão dos sentidos diferente da prim eira constitui
diferentes de discurso: um sinal faz parte do m undo fí­ prova de um a associação por sim ilaridade é um m i­
sico do ser; um símbolo é parte do m undo hum ano do to .” 15 Observações posteriores mais exatas levaram a
significado. Os sinais são “ operadores” e os símbolos um a conclusão diferente. No caso dos anim ais superio­
são “ designadores” 14 . Os sinais, mesmo quando enten­ res, ficou claro que eram capazes de resolver problemas
didos e usados como tais, têm mesmo assim um a espé­ bastante difíceis, e que tais soluções não ocorriam de m a­
neira m eramente mecânica, por tentativa e erro. Tal co­
cie de ser físico ou substancial; os símbolos têm apenas
mo assinala Koehler, existe um a diferença notabilíssi-
um valor funcional.
ma entre um a simples solução casual e um a solução ge­
Com essa distinção em m ente, podemos achar um a
nuína, de tal modo que um a pode ser facilmente dife­
abordagem a um dos problem as mais controversos. A
renciada da outra. Parece incontestável que pelo menos
questão da inteligência dos animais sempre foi um dos m aio­
algumas reações dos anim ais superiores não são meros
res enigmas da filosofia antropológica. Esforços trem en­
produtos do acaso, mas são guiadas pela com preen­
dos, tanto de pensam ento quanto de observação, foram
são 1 6 . Se entendemos por inteligência o ajuste ao am ­
dedicados a respostas para esta questão. M as o caráter biente imediato, ou a modificação adaptativa do am bien­
ambíguo e vago do próprio termo “ inteligência” foi sem­ te, devemos com certeza atribuir aos anim ais um a inte­
pre um obstáculo para um a solução clara. Com o pode­ ligência com parativam ente bastante desenvolvida. D e­
mos ter esperanças de responder a um a pergunta cujas ve tam bém ser admitido que nem todas as ações ani­
implicações não compreendemos? Metafísicos e cientis­ mais são regidas pela presença de um estímulo imediato.
tas, naturalistas e teólogos têm usado a palavra inteli­ O anim al é capaz de toda espécie de desvios em suas
gência com sentidos variados e contraditórios. Alguns reações. Pode aprender não só a usar implementos, mas
psicólogos e psicobiologistas recusaram -se francam ente até a inventar instrum entos para seus propósitos. Por
60 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 61

isso, alguns psicobiologistas não hesitam em falar de uma Tenho de escrever-lhe uma linha esta manhã porque uma
imaginação criativa ou construtiva em animais17 . Mas coisa muito importante aconteceu. Helen deu o segundo grande
nem essa inteligência, nem essa imaginação pertencem passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem um nome, e que
ao tipo especificamente humano. Em resumo, podemos o alfabeto manual é a chave para tudo o que ela quer saber.
dizer que o animal possui uma imaginação e uma inte­ Hoje de manhã, quando se estava lavando, ela quis sa­
ligência práticas, enquanto apenas o homem desenvol­ ber o nome da “ água” . Quando quer saber o nome de algu­
ma coisa,.ela aponta para a coisa e bate na minha mão. Sole­
veu uma nova forma: uma imaginação e uma inteligência
trei “ a-g-u-a” e não pensei mais nisso até depois do café da
simbólicas. manhã... [Mais tarde] saímos para ir até a casa das bombas,
Além disso, no desenvolvimento mental individual, e fiz Helen segurar a caneca dela debaixo da bica enquanto
fica evidente a transição de uma forma para outra — eu bombeava. Quando a água fria jorrou, enchendo a cane­
de uma atitude meramente prática a uma atitude sim­ ca, eu soletrei “ a-g-u-a” em sua mão livre. A palavra assim
bólica. Mas esse passo é aqui o resultado final de um tão perto da sensação da água fria correndo-lhe pela mão pa­
processo longo e contínuo. Pelos métodos comuns da ob­ receu assombrá-la. Deixou cair a caneca e ficou como que trans-
servação psicológica não é fácil distinguir os estágios in­ fixada. Uma nova luz espalhou-se por seu rosto. Soletrou
dividuais desse complicado processo. Existe, no entan­ “ água” várias vezes. Então deixou-se cair no chão e pergun­
to, outro método de se obter uma plena compreensão tou o nome dele e apontou para a bomba e para a treliça e,
voltando-se de repente, perguntou o meu nome. Soletrei “ pro­
do caráter geral e da suprema importância dessa transi­
fessora” . Durante todo o caminho de volta para casa ela este­
ção. Neste caso a própria natureza fez uma experiên­
ve muito excitada, e aprendeu o nome de todos os objetos que
cia, por assim dizer, capaz de lançar uma luz inespera­ tocou, de modo que em poucas horas havia acrescentado trin­
da sobre o ponto em questão. Temos os casos clássicos ta novas palavras a seu vocabulário. Na manhã seguinte, ela
de Laura Bridgman e Helen Keller, duas crianças ce­ levantou-se como uma fada radiante. Saltitou de objeto em
gas, surdas e mudas, que aprenderam a falar mediante objeto, perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura
métodos especiais. Embora os dois casos sejam conhe­ alegria... Agora, tudo deve ter um nome. Aonde quer que va­
cidos e tenham sido tratados com freqüência na litera­ mos, ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo o que não
tura psicológica18, devo mesmo assim reapresentá-los ao aprendeu em casa. Está ansiosa para que seus amigos soletrem,
leitor, pois contêm aquela que é talvez a melhor ilustra­ e ávida por ensinar as letras para todas as pessoas que fica co­
nhecendo. Abandona os sinais e pantomimas que usava an­
ção do problema geral de que nos estamos ocupando.
tes, assim que tem as palavras para usar no lugar deles, e a
Mrs. Sullivan, a professora de Helen Keller, registrou
aquisição de uma nova palavra proporciona-lhe o mais inten­
a data precisa cm que a criança começou de fato a en­ so prazer. E notamos que seu rosto fica mais expressivo a ca­
tender o sentido e a função da linguagem humana. Ci­ da dia 1 ®.
to suas próprias palavras:
62 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 63

Dificilmente o passo decisivo que leva do uso de si­ cular. T anto em capacidade m ental quanto em desen­
nais e pantom im as ao uso de palavras, isto é, de símbo­ volvimento intelectual, ela era bem inferior a Helen Kel­
los, poderia ser descrito de m aneira mais marcante. Qual ler. Sua vida e sua educação não têm os mesmos ele­
foi a verdadeira descoberta da m enina naquele m om en­ mentos dram áticos que encontram os em Helen. T oda­
to? Helen Keller havia antes aprendido a combinar um a via, nos dois casos estão presentes os mesmos elem en­
certa coisa ou evento com um certo sinal do alfabeto m a­ tos típicos. Depois que Laura Bridgman aprendeu a usar
nual. U m a associação fixa fora estabelecida entre essas o alfabeto de dedos, também chegou de repente ao ponto
coisas e certas impressões tácteis. M as um a série dessas em que começou a entender o simbolismo da fala h u ­
associações, mesmo quando repetidas e amplificadas, não mana. A esse respeito, encontram os um surpreendente
implicam ainda um a compreensão do que é e significa paralelismo entre os dois casos. “ N unca esquecerei” ,
a fala hum ana. P ara chegar a tal compreensão, a m eni­ escreve Miss Drew, um a das prim eiras professoras de
n a teve de fazer um a descoberta nova e m uito mais sig­ Laura, “ a prim eira refeição que comemos depois que
nificativa. Teve de entender que tudo tem. um nome — que ela percebeu o valor do alfabeto de dedos. C ada coisa
a função simbólica não está restrita a casos particula­ que ela tocava precisava de um nome; e fui obrigada
res, mas é um princípio de aplicabilidade universal que a cham ar alguém para me ajudar a atender as outras
abarca todo o campo do pensam ento hum ano. No caso crianças, enquanto ela me m antinha ocupada soletran­
de H elen Keller, essa descoberta veio como um choque do as palavras novas.” 20
repentino. Ela era um a m enina de sete anos de idade O princípio do simbolismo, com sua universalida­
que, com a exceção de defeitos no uso de certos órgãos de, validade e aplicabilidade geral, é a palavra mágica,
dos sentidos, estava em excelente estado de saúde e pos­ o abre-te sésamo que dá acesso ao m undo especificamen­
suía um a m ente altam ente desenvolvida. Em virtude de te hum ano, ao m undo da cultura hum ana. U m a vez de
a sua educação ter sido abandonada, estava m uito atra­ posse dessa chave mágica, a continuação do progresso
sada. Então, de repente, tem lugar o desenvolvimento do hom em está garantida. Tal progresso não é, eviden­
crucial. Este funciona como um a revolução intelectual. temente, obstruído ou impossibilitado por qualquer fa­
A m enina começa a ver o m undo sob um a nova luz. lha do m aterial dos sentidos. O caso de Helen Keller,
A prendeu a usar as palavras não como meros sinais ou que alcançou um altíssimo grau de desenvolvimento
signos mecânicos, mas como um instrum ento inteira­ mental e cultura intelectual, mostra-nos clara e irrefu­
mente novo de pensamento. U m novo horizonte se abre, tavelmente que, na construção de seu m undo hum ano,
e a partir desse m om ento a criança corre à vontade por o ser hum ano não depende da qualidade de seu m ate­
essa área incom paravelm ente mais am pla e livre. rial de sentidos. Se as teorias do sensacionalismo fossem
O mesmo pode ser m ostrado no caso de L aura corretas, se cada idéia não passasse de um a vaga cópia
Bridgm an, em bora a história dela seja menos espeta­ de um a impressão originária dos sentidos, a condição
64 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 65

de um a criança cega, surda e m uda seria de fato deses- bolismo hum ano. M as não é a única. H á mais um a ca­
peradora. Isso porque ela seria privada das próprias fon­ racterística dos símbolos que acompanha e complementa
tes do conhecimento hum ano; estaria, por assim dizer, esta última, e forma o seu correlato necessário. U m sím­
exilada da realidade. Contudo, ao estudarmos a biografia bolo é não só universal, mas tam bém extrem am ente va­
de Helen Keller, percebemos imediatamente que isso está riável. Posso expressar o mesmo sentido em várias lín­
errado, e ao mesmo tempo entendem os por que está er­ guas; e, mesmo nos limites de um a única língua, um
rado. A cultura hu m ana não deriva o seu caráter espe­ certo pensam ento ou idéia pode ser expressado em ter­
cífico e seus valores morais e intelectuais do material que mos totalm ente diversos. U m sinal ou signo está rela­
a consiste, e sim de sua form a, sua estrutura arquitetô­ cionado à coisa à qual se refere de um modo fixo e sin­
nica. E tal form a pode ser expressada em qualquer m a­ gular. Q ualquer sinal concreto e individual refere-se a
terial dos sentidos. A linguagem vocal tem um a grande um a certa coisa específica. Nas experiências de Pavlov,
vantagem técnica sobre a linguagem táctil, mas os de­ os cães podiam ser facilmente treinados para dirigir-se
feitos técnicos desta não destroem o seu uso essencial. para o alimento só depois de receber sinais especiais; não
O livre desenvolvimento do pensam ento simbólico e da comiam sem antes ouvir um som particular que podia
expressão simbólica não é obstruído pelo uso de sinais ser escolhido ao gosto do experim entador. M as isso não
tácteis em lugar dos vocais. Se a criança consegue apreen­ tem qualquer analogia, como foi m uitas vezes interpre­
der o sentido da linguagem hum ana, não interessa por tado, com o simbolismo hum ano; ao contrário, está em
qual meio m aterial esse sentido é acessível para ela. C o­ oposição ao simbolismo. U m símbolo hum ano genuíno
mo prova o caso de Helen Keller, o hom em pode cons­ não é caracterizado por sua uniform idade, mas por sua
tru ir seu m undo simbólico com base nos m ateriais mais versatilidade. Não é rígido e inflexível, e sim móvel. E
pobres e escassos. A coisa de im portância vital não são verdade que a plena percepção dessa mobilidade parece
os tijolos e pedras individuais, mas a sua função geral co­ ser um a realização bastante recente no desenvolvimen­
mo form a arquitetônica. No dom ínio da fala, é a fun­ to intelectual e cultural do homem. E m uito raro que
ção simbólica geral dos sinais m ateriais que lhes dá vi­ essa percepção seja atingida na m entalidade prim itiva.
da e os “ faz falar” . Sem esse princípio vivificador, o Nesta, o símbolo ainda é visto como um a propriedade
m undo hum ano perm anecería de fato surdo e mudo. da coisa, como outra propriedade física qualquer. No
Com esse princípio, até o m undo de um a criança cega, pensam ento mítico, o nome de um deus é parte inte­
surda e m uda pode tornar-se incom paravelm ente mais grante da natureza do deus. Se eu não cham ar o deus
rico que o m undo do anim al mais altam ente desenvol­ pelo seu nome certo, o feitiço ou oração deixa de fun­
vido. cionar. O mesmo vale para as ações simbólicas. U m ri­
A aplicabilidade geral é, devido ao fato de que tu­ to religioso, um sacrifício, deve sempre ser realizado da
do tem um nome, um a das maiores prerrogativas do sim­ mesma m aneira invariável e na m esm a ordem para ter
66 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 67

efeito 2 1 . As crianças frequentem ente ficam muito con­ Miss Drew tivesse assinado a carta com seu nome anti­
fusas ao saber pela prim eira vez que nem todo nome de go em vez de usar o nome do marido. Disse até que agora
objeto é um “ nome próprio” , que a mesm a coisa pode precisava encontrar outro ruído para a professora, pois
ter nomes diferentes em línguas diferentes. Elas tendem o de Drew não devia ser o mesmo do de M orton 2 4 . Es­
a achar que um a coisa “ é ” aquilo que a cham am . M as tá claro que, neste caso, os antigos “ ruídos” passaram
este é apenas o prim eiro passo. T oda criança normal por um a m udança im portante, e m uito interessante, de
aprende logo que pode usar vários símbolos para expres­ sentido. Não são mais expressões especiais, inseparáveis
sar o mesmo desejo ou pensamento. Aparentemente, não de um a situação concreta particular. T ornaram -se no­
existe paralelo no m undo anim al para essa variabilida­ mes abstratos, pois o novo nome inventado pela m eni­
de e m obilidade 2 2 . M uito antes de aprender a falar, na não designava um novo indivíduo, mas o mesmo in­
L aura Bridgm an desenvolveu um curiosíssimo modo de divíduo em um a nova relação.
expressão, um a linguagem só dela. Esta linguagem não Surge agora outro aspecto importante do nosso pro­
era form ada por sons articulados, mas apenas por ruí­ blema geral — o problem a da dependência do pensa­
dos variados que são descritos como “ ruídos emocio­ mento relacionai para com o pensamento simbólico. Sem
nais” . Ela desenvolveu o hábito de pronunciar esses sons um complexo sistema de símbolos o pensam ento rela­
na presença de certas pessoas. Estas ficaram , assim, in­ cionai simplesmente não pode nascer, nem m uito m e­
teiramente individualizadas; no ambiente dela, cada pes­ nos desenvolver-se plenam ente. Não seria correto dizer
soa era recebida por um ruído especial. “ Sempre que que a m era consciência das relações pressupõe um ato in­
ela encontrava um conhecido inesperadam ente” , escreve telectual, um ato de pensam ento lógico ou abstrato. Es­
o Dr. Lieber, “ verifiquei que ela pronunciava repeti­ sa consciência é necessária até nos atos elem entares de
dam ente a palavra para aquela pessoa antes de come­ percepção. As teorias sensacionalistas descreviam a per­
çar a falar. E ra a expressão de reconhecim ento prazen- cepção como um mosaico de dados simples dos senti­
teiro .” 23 M as depois que, por meio do alfabeto de de­ dos. Os pensadores dessa corrente menosprezaram cons­
dos, a criança percebeu o sentido da linguagem hum a­ tantem ente o fato de que a própria sensação não é, de
na, o caso alterou-se. O som tornou-se de fato um no­ modo algum, um mero aglomerado ou feixe de im pres­
me, e este nom e não estava preso a um a pessoa indivi­ sões. A m oderna psicologia gestaltiana corrigiu essa vi­
dual, mas podia m udar se as circunstâncias parecessem são. M ostrou que os mais simples processos perceptuais
exigi-lo. Certo dia, por exemplo, L aura Bridgm an re­ implicam elementos estruturais fundamentais, certos pa­
cebeu um a carta de sua antiga professora, Miss Drew, drões ou configurações. Este princípio serve tanto para
que desde então se tinha casado, tornando-se M rs. M or- o m undo hum ano quanto para o animal. M esmo em es­
ton. N a carta, ela era convidada a visitar sua ex-profes­ tágios com parativam ente baixos da vida anim al, a pre­
sora. Isso lhe deu m uito prazer, mas achou ruim que sença desses elementos estruturais — em especial das es-
68 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 69

truturas espaciais e ópticas — foi provada por experi­ foram confirmados e estendidos por experiências poste­
ências 2 5 . A simples percepção das relações não pode, riores. Foi possível m ostrar que os anim ais superiores
portanto, ser vista como um a característica específica da são capazes daquilo que foi chamado de “ isolamento de
consciência hum ana. C ontudo, encontramos no homem fatores perceptuais” . Eles têm a potencialidade para iso­
um tipo especial de pensam ento relacionai que não tem lar um a qualidade perceptual particular da situação ex­
paralelo no m undo anim al. No hom em , desenvolveu- perim ental e reagir em conseqüência. Neste sentido, os
se um a capacidade de isolar relações — de considerá- animais são capazes de abstrair a cor do tam anho e do
las em seu significado abstrato. Para apreender esse sig­ formato, ou o form ato da cor e do tam anho. Em alguns
nificado, o homem não mais depende dos dados concretos experimentos feitos por M rs. Kohts, um chim panzé foi
dos sentidos, dos dados visuais, auditivos, tácteis e ci- capaz de selecionar entre objetos que variavam extre­
nestésicos. Ele considera essas relações “ em si m esm as” m am ente em qualidades visuais aqueles que tivessem
— avrò k < x 6’ od)TÓ, como disse Platão. A geometria é o um a qualidade em comum; foi capaz, por exemplo, de
exemplo clássico dessa virada n a vida intelectual do ho­ apanhar todos os objetos de um a determ inada cor e
mem. Nem mesmo na geometria elementar estamos ata­ colocá-los em um a caixa receptora. Tais exemplos pa­
dos à apreensão de figuras concretas individuais. Não recem provar que os anim ais superiores são capazes do
nos ocupamos de coisas físicas ou objetos da percepção, processo que H um e, em sua teoria do conhecimento,
pois estamos estudando relações espaciais universais para chama de fazer um a ' ‘distinção de razão” 2 6 . M as todos
cuja expressão temos um simbolismo adequado. Sem a os investigadores envolvidos nessas pesquisas salienta­
etapa prelim inar da linguagem hum ana, tal realização ram a raridade, o caráter rudim entar e a imperfeição
não seria possível. Em todos os testes que foram feitos desses processos. M esmo após terem aprendido a isolar
sobre os processos de abstração ou generalização em ani­ um a qualidade particular e selecioná-la, os anim ais são
mais, isso ficou evidente. K oehler conseguiu dem ons­ passíveis de todo tipo de enganos curiosos 2 7 . Se há cer­
trar a capacidade dos chim panzés para reagir à relação tos vestígios de um a distinctio rationis no m undo anim al,
entre dois ou mais objetos, em vez de a um objeto em eles são, por assim dizer, podados em botão. Não con­
particular. C onfrontado com duas caixas com alimento seguem desenvolver-se, pois não contam com a ajuda
o chim panzé, em virtude de seu treinam ento geral an­ inestimável, e de fato indispensável, da fala hum ana,
terior, escolhia constantem ente a m aior — mesmo que de um sistema de símbolos.
o objeto selecionado houvesse sido rejeitado como o m e­ O prim eiro pensador a ter um a clara compreensão
nor do par em um a experiência anterior. T am bém foi deste problem a foi H erder, que falou como um filósofo
dem onstrada um a capacidade semelhante de reagir ao da hum anidade que desejava colocar a questão em ter­
objeto mais próxim o, mais brilhante, mais azul, em vez mos inteiram ente “ hum anos” . Rejeitando a tese m e­
de a um a caixa em especial. Os resultados de Koehler tafísica ou teológica de um a origem sobrenatural ou di-
70 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 71

vina para a linguagem , H erd er começa com um a revi­ como elemento de consciência, apresentou-se claramente. Bom,
são crítica da própria questão. A fala não é um objeto, exclamemos então: Eureka! Esse caráter inicial da consciên­
um a coisa física p ara a qual podemos buscar um a causa cia foi a linguagem da alma. Com isso, a linguagem humana
natural ou sobrenatural. E um processo, um a função ge­ foi criada 2 8 .
ral da m ente hum ana. Psicologicamente, não podemos
descrever esse processo com a term inologia que foi usa­ Isso parece mais um retrato poético que um a aná­
da por todas as escolas psicológicas do século X V III. Se­ lise lógica da fala hum ana. A teoria de H erder sobre a
gundo H erder, a fala não é um a criação artificial da ra ­ origem da linguagem sempre foi inteiram ente especu­
zão, nem deve ser explicada por um mecanismo espe­ lativa. Ela não procedia de um a teoria geral do conhe­
cial de associações. Em sua tentativa de estabelecer a na­ cimento, nem de um a observação de fatos empíricos. Es­
tureza da linguagem , H erder põe toda a ênfase sobre tava baseada no seu ideal de hum anidade e na sua pro­
o que cham a de reflexo. O reflexo, ou pensam ento refle­ funda intuição do caráter e do desenvolvimento da cul­
xivo, é a capacidade que o hom em tem de distinguir, tura hum ana. M esm o assim, contém elementos lógicos
dentre toda a m assa indiscrim inada da corrente de fe­ e psicológicos da espécie mais valiosa. Todos os proces­
nômenos sensuais flutuantes, certos elementos fixos pa­ sos de abstração e generalização em anim ais que foram
ra poder isolá-los e concentrar sua atenção neles. estudados e descritos com precisão 29 carecem claram en­
te da m arca distintiva enfatizada por H erder. Posterior­
mente, contudo, a visão de H erder teve um a confirm a­
O homem manifesta a reflexão quando o poder de sua alma
age de modo tão livre que consegue segregar de todo o oceano
ção e um esclarecimento vindos de um terreno totalmente
de sensação que irrompe por todos os seus sentidos uma onda,
diferente. Pesquisas recentes no campo d a psicopatologia
por assim dizer; e consegue deter essa onda, chamar a aten­ da linguagem levaram à conclusão de que a perda ou um a
ção para ela c ter consciência dessa atenção. Manifesta a re­ limitação grave da fala, causada por danos cerebrais,
flexão quando, de todo o sonho bruxuleante de imagens que nunca é um fenômeno isolado. Um defeito assim altera
passam por seus sentidos, consegue apanhar-se em um m o­ todo o caráter do comportamento hum ano. Pacientes de
mento de vigília, demorar-se em uma imagem espontaneamen­ afasia ou de outras doenças do mesmo tipo não só per­
te, observá-la com clareza e com mais tranquilidade e abstrair deram o uso das palavras como tam bém sofreram m u­
características que lhe mostram que este e não outro é o obje­ danças correspondentes n a personalidade. Tais m udan­
to. Assim, manifesta a reflexão não só quando consegue per­ ças são dificilmente observáveis em suas m aneiras ex­
ceber vivida ou claramente todas as qualidades, mas também ternas, pois os pacientes tendem a agir de modo per-
quando consegue reconhecer um a ou várias delas como qualida­ feitamente norm al. Podem desem penhar as tarefas da
des distintivas... O ra, por quais meios ocorreu tal reconheci­ vida quotidiana; alguns deles até desenvolvem um a con­
mento? Por uma característica que ele teve de abstrair e que, siderável habilidade em todos os testes desse tipo. M as
72 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

ficam completamente perdidos quando a solução do pro­


blem a exige algum a atividade teórica ou reflexiva espe­
cífica. Não são mais capazes de pensar em conceitos ou
categorias gerais. Tendo perdido o domínio dos univer­
sais, apegam-se aos fatos imediatos, às situações concre­
tas. Tais pacientes são incapazes de desem penhar qual­
quer tarefa que só possa ser executada por meio de um a C A P ÍT U L O IV
compreensão do abstrato 3 0 . T udo isso é altam ente sig­
nificativo, pois m ostra a que ponto o tipo de pensam en­
to que H erder chamou de reflexivo é dependente do pen­
O MUNDO HUMANO
samento simbólico. Sem o simbolismo, a vida do homem DO ESPAÇO E DO TEMPO
seria como a dos prisioneiros na caverna do famoso sí­
mile de Platão. A vida do hom em ficaria confinada aos
limites de suas necessidades biológicas e seus interesses
práticos; não teria acesso ao “ m undo ideal” que lhe é O espaço e o tempo são a estrutura em que toda a
aberto em diferentes aspectos pela religião, pela arte, pela realidade está contida. Não podemos conceber qualquer
filosofia e pela ciência. coisa real exceto sob as condições do espaço e do tempo.
Nada no mundo, segundo Heráclito, pode exceder suas
medidas — e estas são limitações espaciais e temporais.
No pensamento mítico, o espaço e o tempo nunca são
considerados como formas puras ou vazias. São vistos co­
mo as grandes forças misteriosas que governam todas as
coisas, que regem e determinam não só a nossa vida mor­
tal, mas também a vida dos deuses.
Descrever e analisar o caráter específico que o es­
paço e o tempo assumem na experiência hum ana é um a
das tarefas mais atraentes e importantes de um a filosofia
antropológica. Seria um a suposição ingênua e infunda­
da considerar que a aparência do espaço e do tempo é
necessariamente a mesma para todos os seres orgânicos.
E óbvio que não podemos atribuir aos organismos infe­
riores o tipo de percepção espacial que tem o homem. E
74 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 75

mesmo entre o m undo hum ano e o m undo dos antro- sejam guiados por qualquer processo ideacional. Ao con­
póides superiores continua a haver, a este respeito, um a trário, parecem conduzidos por impulsos corporais de
diferença inconfundível e indelével. No entanto, não será um tipo especial; não têm qualquer imagem m ental ou
fácil dar conta dessa diferença se nos lim itarm os a apli­ idéia de espaço, nenhum program a de relações espaciais.
car os nossos métodos psicológicos comuns. Devemos to­ A medida que nos vamos aproximando dos animais
m ar um a via indireta: devemos analisar as formas da superiores, passamos a encontrar um a nova form a de
cultura hum ana para poderm os descobrir o verdadeiro espaço que podemos cham ar de espaço perceptual. Este es­
caráter do espaço e do tempo no nosso m undo hum ano. paço não é um simples dado dos sentidos; é de natureza
A prim eira coisa que fica clara com tal análise é que muito complexa, e contém elementos de todos os dife­
há tipos fundam entalm ente diferentes de experiência es­ rentes tipos de experiência dos sentidos — óptica, tác­
pacial e tem poral. Nem todas as formas dessa experiên­ til, acústica e cinestésica. A m aneira pela qual todos es­
cia estão no mesmo nível. Existem cam adas superiores ses elementos cooperam na construção do espaço per­
e inferiores, arranjadas de um a determ inada m aneira. ceptual revelou-se como um a das questões mais difíceis
A camada mais baixa pode ser descrita como espaço e tempo da m oderna psicologia dos sentidos. U m grande cien­
orgânicos. Todo organism o vive em um certo ambiente tista, H erm ann von Helmholtz, julgou ser necessária a
e deve adaptar-se constantemente às condições desse am ­ inauguração de um ramo inteiram ente novo de conhe­
biente para sobreviver. M esm o nos organismos inferio­ cimento, a criação da ciência da óptica fisiológica, para
res a adaptação exige um sistema bastante complicado poder resolver os problemas com que deparam os aqui.
de reações, um a diferenciação entre estímulos físicos e Não obstante, restam ainda muitas questões que não po­
um a reação adequada a esses estímulos. Nem tudo isso dem, no presente, ser decididas de m aneira clara e ine­
é aprendido pela experiência individual. Os animais re­ quívoca. Na história da psicologia m oderna, a luta no
cém-nascidos parecem ter um sentido bem fino e preci­ “ obscuro campo de batalha do nativism o e do n a tu ra ­
so de distância e direção espacial. U m frango acabado lismo” deu a impressão de ser interm inável1 .
de sair do ovo orienta-se e apanha os grãos espalhados Não nos interessa aqui este aspecto do problem a.
em seu cam inho. As condições especiais de que depen­ A questão genética, a questão da origem da percepção es­
de esse processo de orientação espacial foram cuidado­ pacial, que por muito tem po eclipsou todos os demais
samente estudadas por biólogos e psicólogos. Em bora problemas, não é a única questão, nem a mais impor-
sejamos incapazes de responder às complexas questões tante. Do ponto de vista de um a teoria geral do conhe­
relativas ao poder de orientação nas abelhas, formigas cimento e da filosofia antropológica, outra questão co­
e aves m igratórias, podemos ao m enos dar um a respos­ m anda agora o nosso interesse, e deve ser focalizada.
ta negativa. Não podemos presum ir que esses anim ais, Em vez de investigar a origem e o desenvolvimento do
quando desem penhando essas complicadíssimas reações, espaço perceptual, devemos analisar o espaço simbólico.
76 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 77

Ao abordar essa questão, estamos na fronteira entre os As pessoas comuns, diz ele, pensam no espaço, no tem ­
m undos anim al e hum ano. Com relação ao espaço o r­ po e no movimento seguindo apenas o princípio das re­
gânico, o espaço de ação, o homem parece inferior aos ani­ lações que esses conceitos têm com objetos sensíveis. Mas
mais em muitos aspectos. U m a criança tem de apren­ deveremos abandonar esse princípio se quisermos alcan­
der muitos talentos com os quais o anim al já nasce. M as çar qualquer verdade científica ou filosófica: na filoso­
o hom em compensa essa deficiência com outro dom que fia, temos de abstrair os dados dos nossos sentidos2 . Es­
somente ele desenvolve, e que não tem qualquer analo­ sa visão new toniana tornou-se o obstáculo de todos os
gia com coisa algum a da natureza orgânica. Não im e­ sistemas sensacionalistas. Berkeley concentrou todos os
diatam ente, mas por um processo m uito complexo e di­ seus ataques críticos nesse ponto. Sustentou que o “ es­
fícil de pensam ento, ele chega à idéia do espaço abstrato paço matemático verdadeiro” de Newton não era na ver­
— idéia esta que lhe abre o cam inho não só para um dade mais que um espaço imaginário, um a ficção da
novo campo de conhecimento, como tam bém para um a mente hum ana. E, se admitirmos os princípios gerais
direção inteiram ente nova em sua vida cultural. da filosofia do conhecimento de Berkeley, será difícil re­
Desde o início, as maiores dificuldades foram en­ futarmos essa visão. Devemos adm itir que o espaço abs­
contradas pelos próprios filósofos, para explicar e des­ trato não tem qualquer contrapartida e fundam ento em
crever a verdadeira natureza do espaço abstrato ou sim­ nenhum a realidade física ou psicológica. Os pontos e li­
bólico. O fato da existência de um a coisa como o espa­ nhas do geômetra não são objetos físicos, nem psicoló­
ço abstrato foi um a das prim eiras e mais im portantes gicos; não são nada além de símbolos de relações abs­
descobertas do pensam ento grego. T anto m aterialistas tratas. Se atribuirm os um a “ verdade” a essas relações,
como idealistas enfatizaram o significado dessa desco­ o sentido do termo verdade terá de ser redefinido. Pois,
berta, mas pensadores das duas correntes tiveram difi­ no caso do espaço abstrato, não estamos lidando com
culdade p ara elucidar o seu caráter lógico. T endiam a a verdade das coisas, e sim com a verdade de proposi­
refugiar-se em afirmações paradoxais. Demócrito declara ções e juízos.
que o espaço é não-ser ov), mas que este não-ser tem, M as, antes que esse passo pudesse ser dado e fun­
não obstante, um a verdadeira realidade. No Timaeus, damentado sistematicamente, a filosofia e a ciência ti­
Platão refere-se ao conceito de espaço como um Xoytoyzótf veram que percorrer um longo caminho e passar por
pó^oç — um “ conceito h íb rido” , dificilmente descrití- muitos estágios intermediários. A história deste proble­
vel em term os adequados. E até na ciência e n a filosofia ma não foi escrita ainda, em bora seja um a tarefa m uito
m odernas essas prim eiras dificuldades ainda não foram atraente acom panhar os passos individuais desse desen­
solucionadas. Newton avisa que não devem os confun­ volvimento. Eles proporcionam um a compreensão do
dir o espaço abstrato — o verdadeiro espaço m atem áti­ próprio caráter e da tendência geral da vida cultural do
co — com o espaço da experiência dos nossos sentidos. homem. Devo contentar-m e aqui em selecionar alguns
78 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 79

estágios típicos. Na vida primitiva e nas condições da eretas da experiência imediata dos nossos sentidos são
sociedade primitiva, raramente encontramos qualquer obliteradas. Deixamos de ter um espaço visual, táctil,
vestígio da idéia de um espaço abstrato. O espaço pri­ acústico ou olfativo. O espaço geométrico abstrai toda
mitivo é um espaço de ação; e a ação revolve em torno a variedade e heterogeneidade que nos é imposta pela
a necessidades e interesses práticos imediatos. Na me­ natureza díspar de nossos sentidos. Temos então um es­
dida em que podemos falar de uma “ concepção” pri­ paço homogêneo, universal. E foi apenas por meio des­
mitiva do espaço, esta não tem um caráter puramente sa forma nova e característica de espaço que o homem
teórico. Está ainda repleta de sentimentos pessoais ou pôde chegar ao conceito de uma ordem cósmica singular
sociais concretos, de elementos emocionais. “ Na medi­ e sistemática. A idéia de uma tal ordem, da unidade e
da em que o homem primitivo leva a cabo atividades da obediência às leis do universo, nunca poderia ter si­
técnicas no espaço” , escreve Heinz Werner, do alcançada sem a idéia de um espaço uniforme. Mas
muito tempo se passou antes que fosse possível dar esse
n a m edida em que cie avalia distâncias, dirige sua canoa, ati­ passo. O pensamento primitivo não é apenas incapaz
ra sua lança a um certo alvo e assim p o r diante, seu espaço de pensar um sistema de espaço; não pode sequer con­
como espaço de ação, como espaço pragm ático, não difere do ceber um esquema do espaço. Seu espaço concreto não
nosso em sua estru tu ra. M as, q u ando o hom em prim itivo faz pode ser reduzido a uma forma esquemática. A etnologia
desse espaço um tem a de representação e de pensam ento re­ mostra-nos que as tribos primitivas costumam ser dota­
flexivo, surge u m a idéia especificam ente prim ordial que dife­ das de uma percepção extraordinariamente nítida do es­
re radicalm ente de q u alq u er versão intelectualizada. A idéia paço. Um nativo dessas tribos tem olhos para os míni­
de espaço, p a ra o hom em prim itivo, m esmo q uando é siste­ mos detalhes de seu ambiente. É extremamente sensí­
m atizada, está sincreticam ente presa ao sujeito. T rata-se de vel a toda mudança na posição dos objetos comuns à sua
u m a noção m uito m ais afetiva e concreta que o espaço ab stra­ volta. Mesmo em circunstâncias muito difíceis ele é ca­
to do hom em de cu ltu ra a v a n ç a d a ... N ão tem um caráter tão paz de encontrar seu caminho. Quando está remando
objetivo, m ensurável e abstrato. Exibe características egocên­ ou velejando, segue com grande precisão todas as vol­
tricas ou antropom órficas e é fisionôm ica-dinâm ica, en raiza­ tas do rio que está subindo ou descendo. Examinando
da no concreto e substancial^.
com mais atenção, porém, descobrimos para nossa sur­
presa que, a despeito dessa facilidade, parece haver uma
Do ponto de vista da cultura e da mentalidade pri­ estranha lacuna em sua apreensão do espaço. Se lhe pe­
mitivas, é de fato uma tarefa quase impossível dar o passo dem para fazer uma descrição geral, delinear o curso
decisivo que é o único que nos leva do espaço de ação do rio, ele não é capaz de o fazer. Se lhe pedem que de­
a um conceito teórico ou científico de espaço — ao es­ senhe um mapa do rio e de suas voltas, ele dá a impres­
paço da geometria. Neste último, todas as diferenças con- são de nem mesmo entender a pergunta. Percebemos
80 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 81

aqui, com muita clareza, a diferença entre a apreensão tirei aqui essas teorias pan-babilônicas4 , pois quero le­
concreta e a abstrata do espaço e das relações espaciais. vantar outra questão. Será possível alegar uma razão pela
O nativo está perfeitamente familiarizado com o curso qual os babilônios não só foram os primeiros a observar
do rio, mas essa familiaridade está longe do que pode­ os fenômenos celestiais, como também foram os primei­
mos chamar de conhecimento, em um sentido abstrato, ros a assentar as fundações de uma astronomia e uma
teórico. A familiaridade significa apenas apresentação; cosmologia científicas? A importância dos fenômenos do
o conhecimento inclui e pressupõe a representação. A céu nunca fora completamente negligenciada. O homem
representação de um objeto é um ato totalmente dife­ deve ter percebido logo o fato de que toda a sua vida
rente da mera manipulação desse objeto. Esta última não dependia de certas condições cósmicas gerais. O nascer
exige mais que uma série definida de ações, de movi­ e o pôr do sol, da lua e das estrelas, o ciclo das estações
mentos corporais coordenados um com o outro e seguin­ — todos esses fenômenos naturais são fatos conhecidos
do-se um ao outro. E uma questão de hábito, adquirido que têm um papel importante na mitologia primitiva.
pelo desempenho invariável, constantemente repetido, Porém, para incorporá-los a um sistema de pensamen­
de certos atos. Mas a representação do espaço e das re­ to, era necessária outra condição, que só podia ser rea­
lações espaciais significa muito mais. Para representar lizada sob circunstâncias especiais. Tais circunstâncias
uma coisa, não basta sermos capazes de manipulá-la da favoráveis prevaleceram nas origens da cultura babilô­
maneira correta e para usos práticos. Devemos ter uma nica. Otto Neugebauer escreveu um interessantíssimo
concepção geral do objeto e considerá-lo de diversos ân­ estudo da história da matemática antiga, em que corri­
gulos para podermos encontrar suas relações com ou­ ge muitas das opiniões anteriores a esse respeito. Os ba­
tros objetos. Devemos situá-lo e determinar sua posição bilônios e os egípcios — presumia-se em geral — ha­
em um sistema geral. viam tido um grande progresso prático e técnico; mas
Na história da cultura humana, essa grande gene­ não haviam ainda descoberto os primeiros elementos de
ralização, que levou à concepção de uma ordem cósmi­ uma matemática teórica. Segundo Neugebauer, uma
ca, parece ter sido feita pela primeira vez na astrono­ análise crítica das fontes disponíveis leva a uma inter­
mia babilônica. Nesta encontramos o primeiro indício pretação diferente. Ficou claro que o progresso feito pela
definido de um pensamento que transcende a esfera da astronomia babilônica não foi um fenômeno isolado, mas
vida prática concreta do homem, que ousa abarcar o uni­ dependeu de um fato mais fundamental — a descober­
verso inteiro em uma visão abrangente. É por essa ra­ ta e o uso de um novo instrumento intelectual. Os ba­
zão que a cultura babilônica foi considerada como o berço bilônios haviam descoberto uma álgebra simbólica. Sem
de toda a vida cultural. Muitos estudiosos sustentaram dúvida, em comparação com o desenvolvimento poste­
que todas as concepções mitológicas, religiosas e cientí­ rior do pensamento matemático, essa álgebra era ainda
ficas da humanidade derivaram desta fonte. Não discu­ muito simples e elementar. Apesar disso, continha uma
82 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 83

concepção nova e extrem am ente fértil. Neugebauer en­ N a astronom ia babilônia, contudo, encontram os
contra essa concepção nos primórdios da cultura babi- apenas as prim eiras fases do grande processo que final­
lônica. P a ra entender a form a característica da álgebra mente levou à conquista intelectual do espaço e à des­
babilônica, diz ele, temos de levar em conta o passado coberta de um a ordem cósmica, de um sistema do u n i­
histórico da civilização babilônica. Esta civilização evo­ verso. O pensam ento m atemático não podia, como tal,
luiu sob condições especiais. Foi produto do encontro levar a um a im ediata solução do problem a, pois na au­
e da colisão de duas raças diferentes — os sumérios e rora da civilização jam ais aparece em sua verdadeira for­
os acadianos. As duas raças têm origens diferentes e fa­ m a lógica. Está, por assim dizer, envolto n a atmosfera
lam línguas sem qualquer relação um a com a outra. A do pensam ento mítico. Os prim eiros descobridores de
língua dos acadianos pertence ao tipo semítico; a dos su­ uma matemática científica não conseguiram rom per esse
mérios pertence a outro grupo, nem semítico, nem indo- véu. Os pitagóricos falavam do núm ero como um po­
europeu. Q uando esses dois povos se encontraram, quan­ der mágico e misterioso, e mesmo em sua teoria do es­
do passaram a ter um a vida política, social e cultural paço usam um a linguagem mística. Essa interpenetra-
com um , tiveram novos problemas para resolver, pro­ ção de elementos que parecem heterogêneos torna-se es­
blemas p a ra os quais acharam necessário desenvolver pecialmente conspícua em todos os sistemas primitivos
novos poderes intelectuais. A língua original dos sum é­ de cosmogonia. A astronom ia babilônica, em seu con­
rios não podia ser entendida; seus textos escritos só po­
junto, é ainda um a interpretação mítica do universo. J á
diam ser decifrados pelos acadianos com grande dificul­
não estava restrita à estreita esfera do espaço prim itivo,
dade e constante esforço mental. Foi devido a esse es­
concreto e corporal. E como se o espaço fosse transpos­
forço que os babilônios começaram a entender o senti­
to da terra p ara o céu. Q uando se voltou para a ordem
do e os usos de um simbolismo abstrato. “ T oda opera­
dos fenômenos celestiais, contudo, a hum anidade não
ção algébrica” , diz Neugebauer,
conseguiu esquecer-se de suas necessidades e interesses
terrestres. Se o hom em começou a dirigir os olhos para
pressupõe a posse de certos símbolos fixos para as operações os céus, não foi para satisfazer um a curiosidade m era­
matemáticas e para as quantidades às quais são aplicadas es­
mente intelectual. O que ele realmente procurava no fir­
sas operações. Sem tal simbolismo conceituai não seria possí­
mamento era o seu próprio reflexo e a ordem de seu uni­
vel combinar quantidades que não são numericamente deter­
verso hum ano. Sentia que seu m undo estava preso por
minadas e designadas, e não seria possível derivar delas no­
vas combinações. Mas esse simbolismo apresentou-se imedia­ muitos laços visíveis e invisíveis à ordem geral do u ni­
ta e necessariamente na escrita dos textos acadianos... Desde verso — e tentou penetrar nessa conexão misteriosa. Lo­
o princípio os babilônios puderam, portanto, dispor do mais go, os fenômenos celestiais não podiam ser estudados
importante fundamento do desenvolvimento algébrico — um com o espírito distanciado de meditação abstrata e ciência
simbolismo apropriado e adequado^. pura. E ram vistos como senhores e soberanos do m un-
84 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 85

do e regentes da vida hum ana. P ara organizar a vida conceito e ideal de um a mathesis universalis. Seu ideal es­
política, social e m oral do hom em acabou sendo neces­ tava fundado em um a grande descoberta m atemática —
sário voltar-se para os céus. N enhum fenômeno hum a­ a geometria analítica. Nisto, o pensamento simbólico deu
no parecia explicar a si mesmo; tinha de ser explicado mais um passo à frente, que viria a ter as mais im por­
com referência a um fenômeno celestial correspondente tantes conseqüências sistemáticas. Ficou claro que todo
do qual dependia. Com base nestas considerações, fica o nosso conhecimento do espaço e das relações espaciais
claro que o espaço dos prim eiros sistemas astronômicos podia ser traduzido para um a nova linguagem , a dos
não podia ser um m ero espaço teórico, e por quê. Ele núm eros, e que m ediante essa tradução e transform a­
não consistia em pontos e linhas, de superfícies no sen­ ção o verdadeiro caráter lógico do pensam ento geomé­
tido geométrico abstrato desses term os. Estava repleto trico poderia ser concebido de modo m uito mais claro
de poderes mágicos, divinos e demoníacos. A prim eira e adequado.
m eta, essencial, da astronomia era obter um a compreen­ Encontram os o mesmo progresso característico
são da natureza e da atividade desses poderes, p ara po­ quando passamos do problema do espaço para o proble­
der prevê-los e evitar suas perigosas influências. A as­ ma do tempo. É verdade que existem não apenas analo­
tronom ia só podia surgir nessa form a m ítica e m ágica gias estritas, mas tam bém diferenças m arcantes no de­
— na form a da astrologia. Ela conservou esse caráter por senvolvimento de ambos os conceitos. Segundo K ant,
m uitos m ilhares de anos; de certo modo, ainda era pre­ o espaço é a form a de nossa “ experiência exterior’’ e
dom inante nos primeiros séculos de nossa época, na cul­ o tempo é a form a de nossa “ experiência interior” . N a
tu ra do Renascim ento. Até Kepler, o verdadeiro fun­ interpretação de sua experiência interna, o hom em te­
dador da nossa astronom ia científica, teve de debater- ve novos problemas para enfrentar. Nesse caso, ele não
se durante toda a vida com esse problem a. M as final­ podia usar os mesmos métodos que usara em sua pri­
m ente esse últim o passo teve de ser dado. A astronom ia m eira tentativa de organizar e sistematizar o conheci­
supera a astrologia; o espaço geométrico tom a o lugar m ento do m undo físico. Existe, no entanto, um passa­
do espaço mítico e mágico. Foi um a form a falsa e errô­ do comum para as duas questões. T am bém o tem po é
nea de pensam ento simbólico que começou a pavim en­ pensado no início não como um a forma específica da vida
tar o cam inho para um simbolismo novo e verdadeiro, hum ana, mas como um a condição geral da vida orgâ­
o simbolismo da ciência m oderna. nica. A vida orgânica existe apenas n a m edida em que
U m a das prim eiras tarefas da filosofia m oderna, e evolui no tem po. Não é um a coisa, m as um processo
das mais difíceis, foi entender esse simbolismo em seu — um fluxo contínuo de eventos, que nunca se detém.
verdadeiro sentido e seu significado pleno. Se estudar­ Neste fluxo, nada jam ais recorre com a m esm a form a
mos a evolução do pensam ento cartesiano, veremos que idêntica. O dito de Heráclito serve para toda a vida or­
Descartes não começou com o Cogito, ergo sum. Partiu do gânica: “ Não se entra duas vezes no mesmo rio .” Ao
86 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 87

tratar do problem a da vida orgânica precisamos, antes m undo hum ano. O conceito antropológico de m nem e
e acima de tudo, livrar-nos daquilo que W hitehead cha­ ou m em ória é algo totalmente diferente. Se entendemos
m ou de preconceito da “ localização sim ples’’. O orga­ a m em ória como um a função geral de toda a m atéria
nismo nunca está localizado em um único instante. Em orgânica, queremos apenas dizer que o organism o con­
sua vida, três modos de tem po — passado, presente e serva alguns traços de sua antiga experiência, e que to­
futuro — form am um todo que não pode ser dividido dos esses vestígios têm um a distinta influência sobre as
em seus elementos individuais. “ Le présent est chargé suas futuras reações. M as, para ter a m em ória no sen­
du passé, et gros de 1’avenir” , disse Leibniz. Não po­ tido hum ano da palavra, não basta que reste “ um re­
demos descrever o estado m om entâneo de um organis­ manescente latente da ação anterior de um estím ulo” 8 .
mo sem levar em consideração a sua história e sem referi- A mera presença, a soma total desses remanescentes, não
lo a um estado futuro para o qual este estado é apenas consegue explicar o fenômeno da m em ória. Esta im pli­
um ponto de passagem. ca um processo de reconhecimento e identificação, um
Um dos mais destacados fisiologistas do século X IX , processo ideacional de tipo m uito complexo. As im pres­
Ewald H ering, defendia a teoria de que a memória deve sões anteriores não devem ser apenas repetidas; devem
ser vista como um a função geral de toda m atéria também ser ordenadas e localizadas, e referidas a dife­
orgânica 6 . Não é apenas um fenômeno de nossa vida rentes pontos do tempo. T al localização não é possível
consciente, mas está difundida por todo o domínio da sem a concepção do tempo como um esquem a geral —
natureza viva. Essa teoria foi aceita e desenvolvida ain­ como u m a ordem serial que compreende todos os eventos
da mais por R. Semon, que, com base nela, elaborou individuais. A percepção do tempo implica necessaria­
um novo esquem a geral da psicologia. Segundo Semon, mente o conceito de tal ordem serial correspondente
a única abordagem de um a psicologia científica era por àquele outro esquem a que chamamos de espaço.
meio de um a “biologia mnêmica". Ele definia “ m nem e” A m em ória como simples reprodução de um even­
como o princípio da conservação na m utabilidade de to­ to passado ocorre tam bém entre os anim ais superiores.
dos os acontecimentos orgânicos. A m em ória e a here­ A que ponto ela depende de processos ideacionais com ­
ditariedade são dois aspectos da m esm a função orgâni­ paráveis aos que encontram os no hom em é um proble­
ca. C ada estímulo que age sobre um organismo deixa ma difícil e bastante controverso. Em seu último livro,
nele um “ engram a” , um traço fisiológico definido; e to­ R obert M . Yerkes dedica um capítulo especial à inves­
das as futuras reações do organism o dependem da ca­ tigação e esclarecimento do problema. Será que esses ani­
deia desses engram as, do “ complexo de engram as” mais, pergunta ele com referência aos chim panzés,
conectados 7 . M esm o adm itindo a tese geral de H ering
e Semon, porém , ainda estarem os m uito longe de ter agem como se capazes de lembrar, rememorar, reconhecer ex­
explicado o papel e o significado da m em ória no nosso periências prévias, ou será que fora da vista quer mesmo di-
88 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 89

zer fora da mente? Poderão eles antecipar, ter expectativas, cobrir quantas palavras ou sílabas sem sentido ela pode
imaginar e, com base nessa percepção, preparar-se para eventos conservar na mente e repetir após um certo lapso de tem ­
futuros?... Poderão eles resolver problemas e adaptar-se em po. As experiências feitas com base nessa pressuposição
geral a situações ambientais com ajuda de processos simbóli­ pareciam dar a única m edida exata da m em ória hum a­
cos análogos aos nossos símbolos verbais, bem como com as­ na. U m a das contribuições de Bergson para a psicolo­
sociações que funcionam como signos?^
gia consiste nos seus ataques contra todos essas teorias
mecânicas da m emória. Segundo a visão de Bergson,
Yerkes inclina-se a responder pela afirmativa a todas es­ desenvolvida em Matière et mémoire, a m em ória é um fe­
sas perguntas. M esm o que aceitemos todas as suas evi­ nôm eno muito mais profundo e complexo. Ela significa
dências, porém , a questão crucial permanece. Pois o que “ internalização” e intensificação; significa a interpene-
interessa aqui não é tanto o fato de processos ideacio- tração de todos os elementos de nossa vida passada. Na
nais em hom ens e anim ais quanto a forma desses pro ­ obra de Bergson, esta teoria tornou-se um novo ponto
cessos. No hom em não podemos descrever a lem brança de partida metafísico, que revelou ser a pedra de toque
como um simples retorno de um evento, como um a va­ de toda a sua filosofia da vida.
ga imagem ou cópia de impressões anteriores. Não é sim­ Não estamos preocupados aqui com esse aspecto
plesmente um a repetição, mas antes um renascim ento metafísico do problem a. Nosso objetivo é um a fenome-
do passado; implica um processo criativo e construtivo. nologia da cultura humana. Devemos, portanto, tentar ilus­
Não basta recolher dados isolados da nossa experiência trar e elucidar a questão com exemplos tirados da vida
passada; devemos realm ente re-colhê-las, organizá-las e cultural do hom em . U m a ilustração clássica é a vida e
sintetizá-las e reuni-las em um foco de pensam ento. E a obra de Goethe. A m em ória simbólica é o processo
este tipo de lem brança que nos proporciona a form a h u ­ pelo qual o homem não só repete sua experiência pas­
m ana característica da m em ória, e a distingue de todos sada, mas tam bém reconstrói essa experiência. A im a­
os demais fenômenos na vida anim al ou orgânica. ginação torna-se um elemento necessário da verdadeira
E claro que na nossa experiência ordinária encon­ lem brança. Foi por essa razão que Goethe intitulou sua
tramos muitas formas de lembrança ou memória que ob­ autobiografia de Poesia e Verdade (Dichtung und Wahrheit).
viamente não correspondem a esta descrição. M uitos ca­ Não quis dizer com isso que havia introduzido quais­
sos de m em ória, talvez a m aioria deles, podem ser ex­ quer elementos imaginários ou fictícios. Q ueria desco­
plicados de modo bastante adequado segundo a abor­ brir e descrever a verdade sobre sua vida; mas tal ver­
dagem comum das escolas do sensacionalismo, ou seja, dade só podia ser encontrada dando aos fatos isolados
por um m ecanism o simples de “ associação de idéias” . e dispersos de sua vida um a form a poética, ou seja, sim­
M uitos psicólogos convenceram-se de que não há m e­ bólica. Outros poetas viram sua própria obra de m aneira
lhor modo de testar a m em ória de um a pessoa que des­ parecida. Ser poeta, declarou Henrik Ibsen, significa pre-
90 ENSAIO SOBRE O HOMEM O QUE É O HOMEM? 91

sidir como juiz a si mesmo10 . A poesia é uma das for­ Até aqui levamos em consideração apenas um as­
mas pelas quais um homem pode passar veredicto so­ pecto do tempo — a relação do presente com o passa­
bre si mesmo e sua vida. E autoconhecimento e auto­ do. Mas há outro aspecto que parece ainda mais carac­
crítica. Tal crítica não deve ser entendida em um senti­ terístico e importante para a estrutura da vida huma­
do moral. Não significa estima ou censura, justificativa na. Isso é o que poderia ser chamado de terceira dimen­
ou condenação, e sim uma compreensão nova e mais são do tempo, a dimensão do futuro. Na nossa consciên­
profunda, uma reinterpretação da vida pessoal do poe­ cia do tempo, o futuro é um elemento indispensável.
ta. O processo não se restringe à poesia; é possível em Mesmo nos primeiros estágios da vida, esse elemento
todos os outros meios de expressão artística. Se olhar­ começa a ter um papel dominante. “ E característico de
mos para os auto-retratos de Rembrandt, pintados em todo o início do desenvolvimento da vida das idéias” ,
diferentes épocas de sua vida, encontraremos nas linhas escreve William Stern, “ que elas não apareçam tanto
toda a história da vida de Rembrandt, de sua persona­ como memórias que apontam para alguma coisa do pas­
lidade, de seu desenvolvimento como artista. sado, mas como expectativas dirigidas para o futuro —
Mas a poesia não é a única forma, e talvez não se­ embora apenas para um futuro imediatamente próxi­
ja a mais característica, de memória simbólica. O pri­ mo. Deparamos aqui pela primeira vez com uma lei geral
meiro grande exemplo de o que é e o que significa uma do desenvolvimento. A referência ao futuro é apreendi­
autobiografia foi dado pelas Confissões de Agostinho. Nela da pela consciência antes que a referência ao passa­
encontramos um tipo diferente de auto-exame. Agosti­ do.” 11 Mais adiante na vida, essa tendência torna-se
nho não relata os eventos de sua própria vida, que para ainda mais pronunciada. Vivemos muito mais em nos­
ele mal valiam a pena ser lembrados ou registrados. O sas dúvidas e temores, nossas ansiedades e esperanças
drama contado por Agostinho é o drama religioso da hu­ sobre o futuro, do que em nossas lembranças ou em nos­
manidade. Sua própria conversão não é mais que a re­ sas experiências presentes. Isso parecería, à primeira vis­
ta, um dom humano questionável, pois introduz um ele­
petição e o reflexo do processo religioso universal — da
mento de incerteza na vida humana que é estranho a
queda e da redenção do homem. Cada linha do livro
todas as demais criaturas. Parece que o homem seria
de Agostinho tem não só um sentido histórico, mas tam­
mais sábio e feliz caso se livrasse dessa idéia fantástica,
bém um sentido simbólico oculto. Agostinho não podia
dessa miragem do futuro. Filósofos, poetas e grandes
entender sua própria vida ou falar dela a não ser na lin­ pensadores religiosos de todos os tempos preveniram o
guagem simbólica da fé cristã. Por esse procedimento, homem contra essa fonte de constante auto-ilusão. A re­
tornou-sc ao mesmo tempo um grande pensador reli­ ligião admoesta o homem a não temer o dia vindouro,
gioso e o fundador de uma nova psicologia, de um no­ e a sabedoria humana o aconselha a desfrutar o dia pre­
vo método de introspecção e auto-exame. sente, sem ligar para o futuro. “ Quid sit futurum eras
92 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 93

fuge quaerere” , diz Horácio. M as o hom em nunca foi consideração mais clara de um evento futuro ocorra quando
capaz de seguir esse conselho. Pensar no futuro e viver o evento antecipado é um ato planejado do próprio animal. Em
no futuro é um a parte necessária de sua natureza. tal caso, pode realmente acontecer que o animal passe um tem­
De certo modo, essa tendência parece não exceder po considerável em um trabalho preparatório (em um sentido
os limites da vida orgânica. E um a característica de to­ inequívoco)... Onde quer que esse trabalho preliminar, ob­
dos os processos orgânicos o não poderem ser descritos viamente empreendido com vistas ao objetivo final, dure muito
sem referência ao futuro. A m aioria dos instintos ani­ tempo, mas não proporcione por si mesmo nenhuma aproxi­
mais deve ser interpretada desse modo. As ações instin­ mação visível desse objetivo, teremos os indícios de pelo me­
tivas não são suscitadas por necessidades imediatas; são nos algum sentido de futuro^.
impulsos dirigidos para o futuro, e com frequência pa­
ra um futuro m uito remoto. O efeito dessas ações não Com base nessas evidências, parece seguir-se que
será visto pelo anim al que as realiza, visto que ele se dá a antecipação de eventos futuros e até mesmo o plane­
na vida da geração vindoura. Ao estudarm os um livro jam ento de ações futuras não estão inteiram ente fora do
como Souvenirs entomologiqu.es, de Jules Fabre, encontra­ alcance da vida animal. Nos seres hum anos, porém , a
mos em quase todas as páginas exemplos notáveis dessa consciência do futuro sofre a m esm a m udança caracte­
característica dos instintos anim ais. rística de sentido que observamos em relação à idéia do
N ada disso exige, nem prova, qualquer “ idéia” , passado. O futuro não é apenas um a imagem; torna-se
qualquer concepção ou consciência do futuro nos animais
um “ ideal” . O sentido dessa transform ação manifesta-
inferiores. Assim que abordam os a vida dos animais su­
se em todas as fases da vida cultural do homem. E nquan­
periores, o caso fica duvidoso. M uitos observadores com­
to ele está envolvido por inteiro em suas atividades p rá­
petentes falaram da capacidade de previsão dos animais
ticas, a diferença não é claram ente observável. Parece
superiores; tem-se a impressão de que, sem essa suposi­
ser apenas um a diferença de grau, e não um a diferença
ção, dificilmente faríamos um a descrição adequada do
com portam ento deles. Se nas experiências de Wolfe um específica. E claro que o futuro avistado pelo hom em
anim al aceita fichas no lugar de recompensas verdadei­ estende-se por um a área m uito mais ampla, e seu pla­
ras, isso parece implicar um a antecipação consciente de nejam ento é m uito mais consciente e cuidadoso. M as
fatos futuros; o anim al “ espera” que as fichas possam isso ainda pertence ao domínio da prudência, não ao da
ser mais tarde trocadas por comida. “ É pequeno o n ú ­ sabedoria. O term o “ prudência” (prudentia) está etimo-
mero de observações” , escreve W olfgang Koehler, logicamente ligado a “ providência” (providentià). Signi­
fica a capacidade de prever eventos futuros e preparar-
era que é reconhecível algum cálculo baseado em uma contin­ se para as necessidades futuras. M as a idéia teórica do
gência futura, e parece-me ser de importância teórica que a futuro — idéia que é um pré-requisito de todas as ativi-
94 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

dades culturais superiores do hom em — é de um tipo


totalm ente diferente. É mais que m era expectativa;
torna-se um im perativo da vida hum ana. E esse im pe­
rativo vai m uito além das necessidades práticas im edia­
tas do hom em — em sua form a m ais elevada, vai além
dos limites de sua vida em pírica. T rata-se do futuro sim­
bólico do hom em , que corresponde ao seu passado sim­ C A P ÍT U L O V
bólico e está em estrita analogia com ele. Podemos
chamá-lo de futuro “ profético” , pois em nenhum a ou­
tra parte é mais bem expressado que na vida dos gran­
FATOS E IDEAIS
des profetas religiosos. Esses mestres religiosos não se
contentavam em prever simplesmente os eventos futu­
ros ou em se prevenir contra males futuros. Nem fala­
vam como áugures e aceitavam os indícios de agouros Em sua Crítica do Juízo, K ant levanta a questão de
e presságios. A m eta deles era outra — na verdade, era saber se é possível descobrir um critério geral com o qual
o exato oposto da dos vaticinadores. O futuro de que possamos descrever a estrutura fundam ental do intelec­
falavam não era um fato em pírico, mas um a tarefa éti­ to hum ano e distinguir essa estrutura de todos os demais
ca e religiosa. Assim, a previsão era transform ada em modos possíveis de conhecer. Após um a análise penetran­
profecia. A profecia não significa um a simples previsão; te, ele é levado à conclusão de que tal critério deve ser
significa um a promessa. Esta é a nova característica que procurado no caráter do conhecimento hum ano, que é
se torna evidente pela prim eira vez nos profetas de Is­ tal que o entendimento está sujeito à necessidade de fa­
rael — em Isaías, Jerem ias e Ezequiel. Seu futuro ideal zer um a distinção nítida entre a realidade e a possibili­
significa a negação do m undo empírico, o “ fim de to­ dade das coisas. É esse caráter do conhecimento hum a­
dos os dias” ; mas contém ao mesmo tem po a esperança no que determ ina o lugar do homem na corrente geral
e a garantia de “ um novo céu e um a nova terra” . T am ­ do ser. U m a diferença entre “ real” e “ possível” não exis­
bém aqui o poder simbólico do hom em aventura-se pa­ te nem para os seres abaixo do homem, nem para os que
ra além de todos os limites da sua existência finita. M as estão acima dele. Os seres abaixo do homem estão confi­
essa negação implica um novo e grandioso ato de inte­ nados ao m undo de suas percepções sensoriais. São sus­
gração; m arca um a fase decisiva na vida ética e religio­ cetíveis a estímulos físicos reais e reagem a tais estím u­
sa do hom em . los. M as não conseguem form ar nenhum a idéia de coi­
sas “ possíveis” . Por outro lado, o intelecto sobre-humano,
a mente divina, não conhece distinção entre realidade e
96 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 97

possibilidade. Deus é actuspurus. T udo que ele concebe to simbólico, é indispensável fazer um a distinção clara
é real. A inteligência de Deus é um intellectus archetypus entre real e possível, entre coisas reais e ideais. U m sím­
ou intuitus originarius. Ele não pode pensar em um a coi­ bolo não tem existência real como parte do m undo físi­
sa sem, pelo próprio ato de pensar, criar e produzir es­ co; tem um “ sentido” . No pensam ento prim itivo ain­
sa coisa. E só no hom em , na sua “ inteligência derivati­ da é m uito difícil diferenciar entre as duas esferas de ser
va’’ {intellectus ectypus') que ocorre o problem a da possi­ e sentido. As duas são constantemente confundidas: um
bilidade. A diferença entre realidade e possibilidade não símbolo é visto como se fosse dotado de poderes m ági­
é metafísica, mas epistemológica. Não denota qualquer cos ou físicos. Com o avanço do progresso da cultura
caráter das coisas em si; aplica-se apenas ao nosso co­ hum ana, porém , a diferença entre as coisas e os sím bo­
nhecimento das coisas. Com isso K ant não quis afirm ar los é sentida com mais clareza, o que significa que a dis­
de m aneira positiva e dogm ática que um intelecto divi­ tinção entre realidade e possibilidade tam bém fica cada
no, um intuitus originarius, exista de fato. Ele apenas em ­ vez mais pronunciada.
pregou o conceito de um tal “ entendim ento intuitivo” Essa interdependência pode ser provada de m aneira
para descrever a natureza e os limites do intelecto hu ­ indireta. Vemos que em condições especiais, em que a
mano. Este último é um “ entendimento discursivo” , que função do pensam ento simbólico é obstruída ou obscu-
depende de dois elementos heterogêneos. Não podemos recida, a diferença entre realidade e possibilidade tam ­
pensar sem imagens, e não podemos intuir sem concei­ bém fica confusa. Não pode mais ser percebida clara­
tos. “ O s conceitos sem intuições são vazios; as intuições m ente. A patologia da fala lançou um a luz interessante
sem conceitos são cegas.” E este dualism o nas condi­ sobre este problema. Nos casos de afasia, viu-se com mui­
ções fundamentais do conhecimento que, segundo Kant, ta freqüência que os pacientes não só haviam perdido
está na base de nossa distinção entre realidade e possi­ o uso de classes especiais de palavras, mas tam bém de­
bilidade 1 . m onstravam ao mesmo tempo um a curiosa deficiência
Do ponto de vista do nosso problem a presente, es­ em sua atitude intelectual geral. Em termos práticos,
se trecho kantiano — um dos mais im portantes e mais muitos desses pacientes não se desviavam tanto do com ­
difíceis das obras críticas de K ant — tem um interesse portam ento de pessoas normais. M as quando eram con­
especial. Ele indica um problem a crucial p ara qualquer frontados com um problema que exigisse um modo mais
filosofia antropológica. Em vez de dizer que o intelecto abstrato de pensam ento, quando tinham de pensar em
hum ano é um intelecto que “ precisa de im agens” 2 , de­ m eras possibilidades em vez de realidades, experim en­
veriamos antes dizer que precisa de símbolos. O conhe­ tavam no mesmo instante um a grande dificuldade. Não
cim ento hum ano é por sua própria natureza um conhe­ conseguiam pensar, nem falar, em coisas “ irreais” . Um
cimento simbólico. E este traço que caracteriza tanto a paciente que estava sofrendo de hemiplegia, de parali­
sua força como as suas limitações. E, para o pensam en­ sia da mão direita, por exemplo, era incapaz de pronun-
98 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 QUE É 0 HOMEM? 99

ciar as palavras: “ Posso escrever com a mão direita.” realidade que são capazes de apreender... Aparentemente, di­
zer essas coisas requer que se tome um a atitude muito difícil.
Recusava-se até mesmo a repetir essas palavras quando
Exige, por assim dizer, a capacidade de viver em duas esfe­
eram pronunciadas para ele pelo médico. Mas conse­
ras, a esfera concreta em que as coisas reais ocorrem, e a esfe­
guia dizer com facilidade: “ Posso escrever com a mão
ra não-concreta, a esfera meramente “ possível” ... Isso o pa­
esquerda” , pois para ele tratava-se de uma declaração ciente é incapaz de fazer. Ele pode viver e agir apenas na esfe-
de fato, e não de um caso hipotético ou irreal3 . “ Estes ra concreta .
4
exemplos e outros semelhantes” , declara Kurt Golds-
tein, Chegamos aqui a um problema universal, um pro­
blema de suma importância para todo o caráter e o de­
mostram que o paciente é totalmente incapaz de lidar com qual­ senvolvimento da cultura humana. Os empiristas e os
quer situação apenas “ possível” . Assim, podemos também des­
positivistas sempre sustentaram que a mais alta tarefa
crever a deficiência desses pacientes como a falta de capacida­
do conhecimento humano é fornecer-nos fatos, e nada
de de abordar um a situação “ possível” ... Nossos pacientes têm
mais que fatos. Uma teoria que não se baseia em fatos
a maior dificuldade em dar início a qualquer atividade que
não seja determinada diretamente por estímulos externos... têm
seria na verdade um castelo nas nuvens. Mas esta não
grandes problemas com o deslocamento voluntário, em pas­
é uma resposta para o problema de um método científi­
sar voluntariamente de um tema a outro. Por conseguinte, fa­ co verdadeiro; é, ao contrário, o próprio problema. Pois
lham em tarefas em que tais deslocamentos são necessários... qual é o sentido de um “ fato científico” ? E óbvio que
O deslocamento pressupõe que tenho em mente, ao mesmo nenhum fato desse tipo é dado em qualquer observação
tempo, o objeto ao qual estou reagindo no momento e aquele casual ou em uma mera acumulação de dados sensoriais.
ao qual reagirei. Um está no primeiro plano, o outro está no Os dados científicos sempre implicam um elemento teó­
fundo. Mas é essencial que o objeto que está no fundo esteja rico, ou seja, simbólico. Muitos, se não a maioria, des­
lá como um objeto possível para um a reação futura. Só então ses fatos científicos que mudaram todo o curso da histó­
eu poderei m udar de um para o outro. Isso pressupõe a capa­ ria da ciência foram fatos hipotéticos antes de se torna­
cidade de abordar coisas que são apenas imaginadas, coisas rem fatos observáveis. Quando Galileu fundou sua no­
“ possíveis” , coisas que não estão dadas na situação concreta. va ciência da dinâmica, teve de começar com a concep­
O homem mentalmente enfermo não é capaz de fazer isso de­
ção de um corpo inteiramente isolado, um corpo que
vido à sua incapacidade de apreender o que é abstrato. Nos­
se move sem a influência de qualquer força externa. Tal
sos pacientes são incapazes de copiar ou imitar qualquer coisa
corpo nunca fora observado e jamais poderia ser obser­
que não faça parte de sua experiência concreta imediata. È
uma interessante expressão dessa incapacidade que eles tenham
vado. Não se tratava de um corpo real, mas possível —
a m aior dificuldade em repetir um a sentença que não tenha
e, de certo modo, não era sequer possível, pois a condi­
sentido para eles — isto é, cujo conteúdo não corresponda à ção na qual Galileu baseou sua conclusão, a ausência
100 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 101

de todas as forças externas, nunca é realizada na natu­ cional” (apprjTOv) significa uma coisa em que não se pode
reza5 . Já se enfatizou, corretamente, que todas as con­ pensar e da qual não se pode falar. Os números negati­
cepções que levaram à descoberta do princípio da inér­ vos apareceram pela primeira vez no século XVI, na
cia não são, de modo algum, evidentes ou naturais; que Arithmetica integra de Michael Stifel — que os chamou de
para os gregos, bem como para os homens da Idade Mé­ “ números fictícios” (numerifictí). Por muito tempo, até
dia, essas concepções pareceríam evidentemente falsas, os maiores matemáticos olharam para a idéia de núme­
até absurdas6 . Não obstante, sem o auxílio dessas con­ ros imaginários como um mistério insolúvel. O primei­
cepções totalmente irreais, Galileu não poderia ter pro­ ro a dar uma explicação satisfatória e uma teoria sólida
posto a sua teoria do movimento; nem poderia ter de­ desses números foi Gauss. As mesmas dúvidas e hesita­
senvolvido “ uma nova ciência que trata de um tema ções ocorreram no campo da geometria, quando os pri­
muito antigo” . E o mesmo vale para quase todas as ou­ meiros sistemas não-euclidianos — os de Lobatschevs-
tras grandes teorias científicas. Ao surgirem, foram in­ ki, Bolyai e Riemann — começaram a aparecer. Em to­
variavelmente grandes paradoxos, que exigiram uma co­ dos os grandes sistemas de racionalismo, a matemática
ragem intelectual incomum para serem postuladas e de­ fora considerada o orgulho da razão humana — a pro­
fendidas. víncia das idéias “ claras e distintas” . Mas essa reputa­
Talvez não haja melhor maneira de provar isso que ção pareceu ter sido posta subitamente em causa. Lon­
considerando a história da matemática. Um dos conceitos ge de serem claros e distintos, os conceitos matemáticos
mais fundamentais da matemática é o número. Desde fundamentais revelaram-se repletos de armadilhas e obs­
o tempo dos pitagóricos, o número tem sido reconheci­ curidades. Essas obscuridades não poderíam ser remo­
do como o tema central do pensamento matemático. A vidas até que o caráter geral dos conceitos matemáticos
descoberta de uma teoria abrangente e adequada do nú­ fosse claramente reconhecido — até que fosse reconhe­
mero tornou-se a maior e mais urgente tarefa dos estu­ cido que a matemática não é uma teoria de coisas, e sim
diosos desse campo. A cada passo nesta direção, porém, uma teoria de símbolos.
os matemáticos e filósofos enfrentavam a mesma difi­ A lição que derivamos da história do pensamento
culdade. Estavam constantemente sujeitos à necessida­ matemático pode ser suplementada e confirmada por ou­
de de ampliar seu campo e introduzir números “ novos” . tras considerações que, à primeira vista, parecem per­
Todos esses números novos tinham um caráter altamente tencer a uma diferente esfera. A matemática não é o úni­
paradoxal. Seu surgimento suscitava as mais profundas co tema em que a função geral do pensamento simbóli­
desconfianças dos matemáticos e lógicos. Eram consi­ co pode ser estudada. A verdadeira natureza e a plena
derados absurdos ou impossíveis. Podemos acompanhar força deste pensamento ficam ainda mais evidentes quan­
esse desenvolvimento na história dos números negati­ do nos voltamos para o desenvolvimento de nossas idéias
vos, irracionais e imaginários. O próprio termo “ irra­ e ideais éticos. A observação de Kant de que para o en-
102 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 QUE É O HOMEM? 103

tendimento humano é ao mesmo tempo necessário e in­ Todas as teorias éticas e políticas modernas mol­
dispensável distinguir entre a realidade e a possibilida­ dadas segundo a República de Platão foram concebidas
de das coisas exprime não só uma característica geral na mesma linha de pensamento. Quando Thomas Mo­
da razão teórica, mas também uma verdade sobre a ra­ re escreveu a Utopia, expressou essa visão no próprio tí­
zão prática. É característico de todos os grandes filóso­ tulo de sua obra. Uma Utopia não é um retrato do mun­
fos o não pensarem em termos de mera realidade. Suas
do real, nem da ordem política ou social real. Não exis­
idéias não podem avançar um único passo sem ampliar
te em nenhum momento do tempo e em nenhum ponto
e até transcender os limites do mundo real. Possuídos
do espaço; é um “ nenhures” . Mas foi precisamente es­
de grande poder intelectual e moral, os mestres éticos
da humanidade foram dotados também de uma profunda sa concepção de um nenhures que resistiu ao teste e pro­
imaginação. Sua visão imaginativa permeia e anima to­ vou sua força no desenvolvimento do mundo moderno.
das as suas afirmações. Faz parte da própria natureza e do caráter do pensa­
Os escritos de Platão e seus seguidores sempre es­ mento ético o não poder jamais condescender a aceitar
tiveram sujeitos à objeção de que se referem a um mundo “ o dado” . O mundo ético nunca é dado; está sempre
completamente irreal. Mas os grandes pensadores éti­ em processo de ser feito. ‘‘Viver no mundo ideal” , dis­
cos não temiam essa objeção. Eles aceitavam-na e pro­ se Goethe, “ é tratar o impossível como se fosse possí­
cediam abertamente a desafiá-la. “ A República platô­ vel.” 7 Os grandes reformadores políticos e sociais labo­
nica” , escreve Kant na Crítica da Razão Pura. ram de fato sob a constante necessidade de tratar o im­
possível como se fosse possível. Em seus primeiros es­
sempre foi vista como um exemplo notável de perfeição pura­ critos políticos, Rousseau parece falar como um natu­
mente imaginária. Tornou-se um caso proverbial de algo que ralista determinado. Deseja restaurar os direitos naturais
só poderiaexistir no cérebro de um pensador ocioso... Faría­ do homem, e levá-lo de volta ao seu estado original, o
mos melhor, no entanto, se déssemos prosseguimento ao seu estado da natureza. O homem natural (1’homme de natu-
pensamento e esforço para colocá-la sob uma luz mais clara ré) deve substituir o homem convencional, social (1’homme
por nossos próprios esforços, em vez de colocá-la de lado co­ de rhomme). Mas, se acompanhamos o desenvolvimen­
mo inútil, sob o pretexto miserável e perigosíssimo de sua im­
to posterior do pensamento de Rousseau, torna-se cla­
praticabilidade... Pois nada pode ser mais nocivo e mais in­
digno de um filósofo que o apelo vulgar ao que é chamado de
ro que mesmo esse ‘‘homem natural” está longe de ser
experiência adversa, que possivelmente poderia não ter jamais um conceito físico, que na verdade se trata de um con­
existido se no momento adequado houvessem sido formadas ceito simbólico. O próprio Rousseau não pôde negar-se
instituições segundo essas idéias, e não segundo concepções a admitir esse fato. “ Comecemos” , diz ele na Introdu­
grosseiras que, por terem sido derivadas apenas da experiên­ ção ao seu Discours sur l ’origine et lesfondements de l ’inégali-
cia, frustraram todas as boas intenções. té parmi les hommes,
104 ENSAIO SOBRE O HOMEM

pondo de lado os fatos \par écarter tous les faits}; pois eles não
afetam a questão. As pesquisas em que nos podemos envol­
ver nesta ocasião não devem ser vistas como verdades históri­
cas, mas apenas como raciocínios hipotéticos e condicionais, PARTE II
mais adequados para ilustrar a natureza das coisas que para
mostrar sua verdadeira origem; tal como aqueles sistemas que
nossos naturalistas fazem todos os dias acerca da formação do
O HOMEM E A CULTURA
mundo.

Com estas palavras, Rousseau tenta introduzir o méto­


do hipotético que Galileu empregara para o estudo dos
fenômenos naturais no campo das ciências morais; e está
convencido de que só por meio de tais “ raciocínios hi­
potéticos e condicionais” (des raisonnements hypothétiques
et conditionelles') podemos chegar a um verdadeiro enten­
dimento da natureza do homem. A descrição de Rous­
seau do estado da natureza não pretendia ser uma nar­
rativa histórica do passado. Era uma interpretação sim­
bólica concebida para retratar e formar um novo futuro
para a humanidade. Na história da civilização, a Uto­
pia sempre cumpriu essa tarefa. Na filosofia do Ilumi-
nismo, tornou-se um gênero literário de direito próprio
e revelou ser uma das armas mais poderosas em todos
os ataques contra a ordem política e social existente. Foi
empregada com esse fim por Montesquieu, Voltaire e
Swift. No século XIX, Samuel Butler deu-lhe um uso
semelhante. A grande missão da Utopia é abrir passa­
gem para o possível, no sentido de oposto a uma aquies­
cência passiva do estado presente real de coisas. E o pen­
samento simbólico que supera a inércia natural do ho­
mem e lhe confere uma nova capacidade, a capacidade
de reformular constantemente o seu universo humano.
C A PÍT U L O VI

A DEFINIÇÃO DO HOMEM NOS


TERMOS DA CULTURA HUMANA

O momento em que Platão interpretou a m áxima


“ Conhece-te a ti mesmo” em um sentido inteiramente
novo constituiu-se em um a virada na cultura e no pensa­
mento dos gregos. Essa interpretação introduziu um pro­
blema que não só era estranho ao pensamento pré-socrático
como também ia muito além do método socrático. Para
obedecer à exigência do deus délfico, para cum prir o de­
ver religioso de auto-exame e autoconhecimento, Sócra­
tes abordara o homem individual. Platão reconheceu as
limitações do modo de indagação socrático. Para resol­
ver o problema, declarou, devemos projetá-lo a um pla­
no mais amplo. Os fenômenos que encontramos em nos­
sa experiência individual são tão variados, tão comple­
xos e contraditórios, que mal conseguimos desemaranhá-
los. O homem não deve ser estudado em sua vida indivi­
dual, mas em sua vida política e social. A natureza hu­
m ana, segundo Platão, é como um texto difícil, cujo sen-
108 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 109

tido deve ser decifrado pela filosofia. N a nossa experiên­ mo um paralelo moderno da teoria platônica do hom em .
cia pessoal, porém , esse texto é escrito em letras tão di­ C om te, é claro, nunca foi platônico. N unca pôde acei­
m inutas que se torna ilegível. O prim eiro trabalho da tar os pressupostos lógicos e metafísicos sobre os quais
filosofia deve ser aum entar essas letras. A filosofia não se baseia a teoria das idéias de Platão. Contudo, por ou­
pode dar-nos um a teoria satisfatória do homem sem antes tro lado, ele era fortemente contrário às opiniões dos
desenvolver um a teoria do estado. A natureza do ho­ ideologistas franceses. Em sua hierarquia do conheci­
mem está escrita em letras maiúsculas na natureza do m ento hum ano, duas novas ciências, a ciência da ética
estado. Nesta, o sentido oculto do texto surge de repen­ social e a da dinâm ica social, ocupam o mais alto posto.
te, e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e Deste ponto de vista sociológico, Com te ataca o psico-
legível. logismo de sua época. U m a das m áximas fundam entais
M as a vida política não é a única form a de existên­ de sua filosofia é que o nosso método de estudar o ho­
cia com unitária hum ana. N a história da hum anidade mem deve, na verdade, ser subjetivo, mas que não po­
o estado, em sua form a presente, é um produto tardio de ser individual. Pois o que querem os conhecer não é
do processo civilizador. M uito antes de o homem des­ a consciência individual, mas o sujeito universal. Se nos
cobrir essa form a de organização social, ele havia feito referirmos a este sujeito pelo term o “ hum anidade” , de­
outras tentativas de organizar seus sentimentos, dese­ veremos então afirm ar que a hum anidade não será ex­
jos e pensam entos. Tais organizações e sistematizações plicada pelo hom em , e sim o hom em pela hum anidade.
estão contidas n a linguagem , no mito, na religião e na O problem a deve ser reformulado e reexam inado; deve
arte. Deverem os aceitar essa base mais am pla se qui­ ser posto sobre um a base mais am pla e mais sólida. Foi
sermos desenvolver um a teoria do hom em . O estado, essa base que descobrimos no pensam ento sociológico
por mais im portante que seja, não é tudo. Não pode ex­ e histórico. “ Para conhecer-te a ti m esm o” , diz C om ­
pressar ou absorver todas as outras atividades do homem. te, “ conhece a história.” A partir desse momento, a psi­
E claro que essas atividades, em sua evolução histórica, cologia histórica suplem enta e supera todas as formas
estão intim am ente ligadas ao desenvolvimento do esta­ anteriores de psicologia individual. “ As chamadas ob­
do; em muitos aspectos, elas dependem das formas de servações feitas sobre a m ente, considerada em si mes­
vida política. No entanto, em bora não possuam um a m a e apriori” , escreveu Com te em um a carta, “ são pu­
existência histórica separada, têm mesmo assim um pro­ ras ilusões. T udo o que chamamos de lógica, metafísica e
pósito e um valor próprios. ideologia é um a fantasia ociosa e um sonho, quando não
N a filosofia m oderna, C om te foi um dos prim eiros um absurdo.” 1
a abordar este problem a e a formulá-lo de m aneira cla­ No Cours dephilosophie positive de C om te, podemos
ra e sistemática. E um tanto paradoxal que a esse res­ acom panhar passo a passo a transição dos ideais m eto­
peito devamos considerar o positivismo de Com te co­ dológicos no século X IX . Com te começou apenas co-
110 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 111

mo cientista, interessando-se de m aneira aparentem en­ miam que reconhecê-la levasse de volta a um dualismo
te total por problem as m atem áticos, físicos e químicos. metafísico. Sua ambição era estabelecer um a teoria pu­
Em sua hierarquia do conhecimento hum ano, a escala ram ente naturalista do m undo social e cultural. Para tal
vai da astronom ia à biologia, passando pela m atem áti­ fim, julgaram necessário negar e destruir todas as b ar­
ca, pela física e pela quím ica. V em então o que parece reiras que parecem separar o m undo hum ano do ani­
ser um a súbita inversão dessa ordem . Q uando aborda­ mal. A teoria da evolução havia, evidentem ente, apa­
mos o m undo hum ano, os princípios d a m atem ática ou gado todas essas diferenças. M esm o antes de D arw in,
das ciências naturais não se tornam inválidos mas dei­ o progresso da história natural havia frustrado todas as
xam de ser suficientes. Os fenômenos sociais estão su­ tentativas de um a tal diferenciação. Nos prim eiros es­
jeitos às mesmas regras que os fenômenos físicos, mas tágios da observação empírica, ainda era possível que
são de um caráter diferente e m uito mais complicado. o cientista nutrisse a esperança de acabar encontrando
Não devem ser descritos apenas em termos de física, quí­ um caráter anatôm ico reservado para o hom em . Ainda
mica e biologia. “ Em todos os fenômenos sociais’’, diz no século X V III aceitava-se em geral a teoria de que
Com te, há um a diferença m arcada, e em alguns casos um claro
contraste, entre a estrutura anatôm ica do hom em e a
percebemos a ação das leis fisiológicas do indivíduo, e algo mais dos outros animais. Um dos grandes méritos de Goethe
que modifica seus efeitos e que pertence à influência dos indi­ no campo da anatomia comparada foi ter combatido com
víduos uns sobre os outros — o que é singularmente compli­ vigor essa teoria. A mesma hom ogeneidade, não ape­
cado no caso da raça hum ana pela influência das gerações so­ nas na estrutura anatôm ica e fisiológica, mas tam bém
bre suas sucessoras. Assim, fica claro que nossa ciência social na m ental do hom em , ainda precisava ser dem onstra­
deve-se originar daquilo que se relaciona à vida do indivíduo. da. Para tal propósito, todos os ataques contra o velho
Por outro lado, não há ocasião para supor, como fizeram al­ modo de pensar tinham de ser concentrados em um pon­
guns fisiologistas eminentes, que a Física Social é apenas um to. A coisa a ser provada era que o que chamamos de
apêndice da Fisiologia. Os fenômenos das duas não são idên­ inteligência do hom em não é de modo algum um a fa­
ticos, embora sejam homogêneos; e é importantíssimo m an­ culdade original, dependente apenas de si m esm a. Os
ter as duas ciências separadas. Como as condições sociais mo­ defensores das teorias naturalistas podiam buscar suas
dificam a operação das leis fisiológicas, a Física Social deve provas nos princípios da psicologia estabelecidos pelas
ter um conjunto próprio de observações"^. velhas escolas do sensacionalismo. T aine desenvolveu
a base psicológica para a sua teoria geral da cultura h u ­
O s discípulos e seguidores de Com te, porém , não m ana em um a obra sobre a inteligência do hom em 3 . Se­
estavam inclinados a aceitar essa distinção. Negavam gundo Taine, aquilo que chamamos de “ comportamento
a diferença entre a fisiologia e a sociologia porque te­ inteligente” não é um princípio especial ou privilégio
112 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 113

da natureza hum ana; é apenas um a ação mais requin­ to e o conceito excessivamente simplista de inteligência’’.
tada e complicada do mesmo mecanismo associativo e Em um a de suas publicações mais recentes, R obert M .
autom atism o que encontram os em todas as reações ani­ Yerkes declara que os termos “ instinto” e “ inteligên­
mais. Se aceitamos essa explicação, a diferença entre a cia” estão fora de m oda e que os conceitos que repre­
inteligência e o instinto torna-se desprezível; é um a mera sentam estão tristemente necessitados de um a redefini­
diferença de grau, não de qualidade. A própria inteli­ ção 4 . M as no campo da filosofia antropológica estamos
gência torna-se um term o inútil e cientificamente sem ainda, aparentemente, longe de qualquer redefinição des­
sentido. se tipo. Nela, esses termos são ainda aceitos com total
A característica mais surpreendente e paradoxal das ingenuidade, sem análise crítica. U sado desse m odo, o
teorias desse tipo é o contraste m arcante entre o que elas conceito de instinto torna-se um exemplo do erro m eto­
prom etem e o que de fato nos dão. Os pensadores que dológico típico que foi descrito por W illiam Jam es co­
conceberam essas teorias foram m uito severos quanto mo a falácia do psicólogo. A palavra “ instinto” , que po­
aos seus princípios metodológicos. Não se contentavam de ser usada para a descrição do comportamento hum ano
em falar da natureza hum ana em term os da nossa ex­ ou anim al, é hipostasiada em um a espécie de poder na­
periência comum, pois aspiravam a um ideal muito mais tural. E curioso que esse erro tenha sido cometido com
elevado, um ideal de absoluta exatidão científica. M as, freqüência por pensadores que, em todos os demais as­
quando com param os os resultados obtidos por eles com pectos, sentiam-se seguros contra as recaídas no realis­
esse padrão, não podemos evitar a decepção. “ Instin­ mo escolástico ou na “ psicologia-faculdade” . U m a crí­
to ” é um term o m uito vago. Pode ter um certo valor tica m uito clara e impressionante desse modo de pensar
descritivo, mas é óbvio que não tem qualquer valor ex­ é feita em Human Nature and Conduct, de Jo h n Dewey.
plicativo. Ao reduzir algumas classes de fenômenos o r­ “ Não é científico” , escreve ele,
gânicos ou humanos a certos instintos fundamentais, não
alegamos um a nova causa, mas apenas introduzimos um tentar restringir as atividades originais a um número definido
novo nome. Fizemos um a pergunta, em vez de respon­ de classes claramente demarcadas de instintos. E o resultado
der. N a m elhor das hipóteses, o term o “ instinto” nos prático dessa tentativa é pernicioso. Classificar é, na verdade,
proporciona um idem per idem, e na m aioria dos casos tão útil quanto natural. A multidão indefinida de eventos par­
é um obscurum per obscurius. Até mesmo na descrição do ticulares e mutáveis é enfrentada pela mente com atos de defi­
com portam ento anim al, a m aioria dos biólogos e psico- nição, inventariação, listagem, redução a verbetes comuns e
biologistas m odernos tornaram -se m uito cautelosos p a­ separação em grupos... mas, quando presumimos que nossas
ra usá-lo. Previnem -nos contra as falácias que parecem listas e grupos representam separações fixas e coleções in re-
estar inextricavelmente ligadas a ele. Tentam antes evitar rum natura, obstruímos em vez de ajudar as nossas transações
ou abandonar o “ conceito carregado de erros de instin­ com as coisas. Somos culpados de uma presunção que a natu-
114 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 115

reza pune prontamente. Ficamos impotentes para lidar efeti­ fia das formas simbólicas parte do pressuposto de que,
vamente com as sutilezas e novidades da natureza e da vi­ se houver qualquer definição da natureza ou “ essência”
d a... A tendência a esquecer o ofício das distinções e classifi­ do homem, tal definição só poderá ser entendida como
cações e a tomá-las como coisas marcantes em si mesmas sendo funcional, e não substancial. Não podemos defi­
e a atual falacia do especialismo científico... essa atitude que nir o homem com base em qualquer princípio inerente
floreceu outrora na ciência física rege agora a teorização so­ que constitua a sua essência metafísica — nem podemos
bre a natureza humana. O homem foi resolvido em uma co­
defini-lo por qualquer faculdade ou instinto inato que
leção definida de instintos primários que podem ser numera­
possa ser verificado pela observação empírica. A carac­
dos, catalogados e descritos exaustivamente um por um. Os
terística destacada do homem, sua marca distintiva, não
teóricos diferem apenas, ou principalmente, quanto ao seu
número e classificação. Alguns dizem um, o amor a si mes­
é a sua natureza metafísica ou física, mas o seu traba­
mo; outros, dois, o egoísmo e o altruísmo; outros ainda, três, lho. É este trabalho, o sistema das atividades humanas,
a cobiça, o medo e a glória, enquanto hoje em dia escritores que define e determina o círculo da “ humanidade” . Lin­
de uma veia mais empírica elevam o número para cinquenta guagem, mito, religião, arte, ciência e história são os
ou sessenta. Na verdade, porém, há tantas reações específi­ constituintes, os vários setores desse círculo. Uma “ fi­
cas a diferentes condições estimulantes quanto há tempo pa­ losofia do homem” seria portanto uma filosofia que nos
ra elas, e nossas listas são apenas classificações para um pro­ proporcionasse uma compreensão da estrutura funda­
pósito^. mental de cada uma dessas atividades humanas, e que
ao mesmo tempo nos permitisse entendê-las como um
Após este breve levantamento dos diferentes mé­ todo orgânico. A linguagem, o mito e a religião não são
todos que foram até aqui empregados para responder criações isoladas, aleatórias. Estão unidas por um vín­
à pergunta sobre o que é o homem, chegamos agora à culo comum. Mas este vínculo não é um vinculum subs-
nossa questão central. Serão esses métodos suficientes tantiale, como foi imaginado e descrito pelo pensamento
e exaustivos? Ou haverá ainda mais uma abordagem pa­ escolástico; é antes um vinculum functionale. E a função
ra uma filosofia antropológica? Haverá qualquer outro básica da fala, do mito, da arte e da religião que deve­
caminho além do da introspecção psicológica, da ob­ mos buscar por trás de suas inumeráveis formas e ex­
servação e experimentação biológica e da investiga­ pressões, e para a qual em última instância devemos ten­
ção histórica? Esforcei-me para descobrir uma aborda­ tar encontrar uma origem comum.
gem alternativa assim em meu livro Filosofia das Formas É óbvio que no desempenho desta tarefa não deve­
Simbólicas6 . O método dessa obra não é de modo algum mos menosprezar nenhuma possível fonte de informa­
uma inovação radical. Não foi concebido para abolir, ção. Devemos examinar todas as evidências empíricas
mas para complementar as visões anteriores. A filoso­ disponíveis, e utilizar todos os métodos de introspecção,
116 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 117

observação biológica e indagação histórica. Esses m éto­ m udança nos conceitos e ideais metodológicos da ciên­
dos anteriores não devem ser eliminados, mas reporta­ cia empírica. N a linguística, por exemplo, a concepção
dos a um novo centro intelectual, e portanto vistos de de que a história da linguagem cobre todo o campo dos
um novo ângulo. Ao descrever a estrutura da lingua­ estudos lingüísticos foi por muito tempo um dogm a acei­
gem, do m ito, da religião, da arte e da ciência, senti­ to. Esse dogma deixou sua m arca em todo o desenvol­
mos a necessidade constante de um a term inologia psi­ vimento da lingüística durante o século X IX . Hoje em
cológica. Falamos de “ sentim ento” religioso, de “ im a­ dia, contudo, .essa unilateralidade parece ter sido total­
ginação” artística ou m ítica, de pensam ento lógico ou m ente superada.
racional. E não podemos ingressar em todos esses m un­ A necessidade de métodos independentes de análi­
dos sem um sólido m étodo psicológico científico. A psi­ se descritiva é reconhecida por todos7 . Não podemos ter
cologia infantil fornece-nos pistas valiosas para o estu­ esperanças de m edir a profundidade de um determ ina­
do do desenvolvimento geral da fala hum ana. Ainda mais do ram o da cultura hum ana a menos que tal m edida se­
valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da so­ ja precedida por um a análise descritiva. Esta visão es­
ciologia geral. Não podemos entender a form a do pen­ trutural da cultura deve preceder a visão m eramente his­
samento mítico prim itivo sem levar em consideração as tórica. A própria história ficaria perdida na m assa ili­
formas da sociedade prim itiva. E ainda mais urgente é m itada de fatos desconexos se não tivesse um esquem a
o uso de métodos históricos. A questão de o que “ são” estrutural com o qual classificar, ordenar e organizar es­
a linguagem , o mito e a religião não pode ser respondi­ ses fatos. No campo da história da arte, um esquem a
da sem um estudo profundo de seu desenvolvimento his­ assim foi desenvolvido, por exemplo, por Heinrich Wõlf­
tórico. flin. T al como insiste Wõlfflin, um historiador da arte
M as, mesmo que fosse possível d ar um a resposta seria incapaz de caracterizar a arte de épocas diferentes
a todas essas questões psicológicas, sociológicas e histó­ ou de artistas diferentes se não possuísse algumas cate­
ricas, ainda estaríam os nos limites do m undo propria­ gorias fundam entais de descrição artística. E ncontra es­
m ente “ h u m an o ” ; não teríam os passado o seu lim iar. sas categorias estudando e analisando os diferentes m o­
Todas as obras hum anas surgem em condições históri­ dos e possibilidades de expressão artística. Essas possi­
cas e sociológicas particulares. M as nunca poderiamos bilidades não são ilimitadas; na verdade, podem ser re­
entender essas condições especiais se não fôssemos ca­ duzidas a um pequeno número. Foi com base neste ponto
pazes de apreender os princípios estruturais gerais sub­ de vista que Wõlfflin fez sua famosa descrição do clássi­
jacentes a tais obras. No nosso estudo da linguagem , da co e do barroco. Nela, os term os “ clássico” e “ barro­
arte e do m ito, o problem a do sentido tem precedência co” não foram usados como nomes para fases históri­
sobre o problem a do desenvolvimento histórico. E tam ­ cas definidas. Pretendiam designar alguns padrões es­
bém neste caso podemos verificar um a lenta e contínua truturais gerais que não se restringiam a um a época par-
118 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 119

ticular. “ Não é a arte dos séculos X V I e X V II” , diz cem ser pouca coisa mais que um pium desidenum — um
Wõlfflin no final de seu livro Principies of Art History, embuste virtuoso — que é constantemente frustrado pelo
curso real dos acontecimentos.
que devia ser analisada, mas apenas o esquema e as possibili­ Neste ponto, porém , necessitamos fazer um a dis­
dades visuais e criativas em que a arte se manteve em ambos tinção clara entre o ponto de vista m aterial e o formal.
os casos. Para ilustrar isso, naturalmente, só poderiamos pro­ A cultura hum ana está sem dúvida dividida em várias
ceder fazendo referências à obra de arte individual, mas tudo atividades que procedem segundo linhas diferentes e per­
que foi dito de Rafael e Ticiano, de Rembrandt e Velasquez seguem fins diferentes. Se nos contentamos em contem ­
pretendia apenas elucidar o curso geral das coisas... Tudo é plar os resultados dessas atividades — as criações do m i­
transição, e é difícil responder ao homem que considera a his­ to, os ritos ou credos religiosos, obras de arte, teorias
tória como um fluxo sem fim. Para nós, a autopreservação in­ científicas — parece impossível reduzi-los a um deno­
telectual exige que classifiquemos a infinidade de eventos com m inador comum. U m a síntese filosófica, porém , signi­
referência a uns poucos resultados®. fica algo diferente. O que procuram os aqui não é um a
unidade de efeitos, mas um a unidade de ação; um a u ni­
Se o lingüista e o historiador da arte precisam de dade não de produtos, mas áo processo criativo. Se o ter­
categorias estruturais fundam entais p ara sua “ autopre­ mo “ hum anidade” quer dizer algum a coisa, quer di­
servação intelectual” , tais categorias são ainda mais ne­ zer que, a despeito de todas as diferenças e oposições
cessárias para um a descrição filosófica da civilização hu­ que existem entre suas várias formas, todas elas estão,
m ana. A filosofia não pode contentar-se em analisar as mesmo assim, trabalhando para um fim comum. A longo
formas individuais da cultura hum ana. Ela procura um a prazo, deve ser encontrado um traço destacado, um ca­
visão universal sintética que inclua todas as formas in­ ráter universal, sobre o qual todas concordam e se h ar­
dividuais. M as não seria um a tal visão abrangente um a monizam. Se pudermos determ inar esse caráter, os raios
tarefa impossível, um a simples quim era? N a experiên­ divergentes poderão ser reunidos e concentrados em um
cia hum ana não encontram os, de m aneira algum a, as foco de pensam ento. Tal como foi assinalado, essa or­
várias atividades que constituem o m undo da cultura ganização dos fatos da cultura hum ana já foi iniciada
existindo em harm onia. Ao contrário, vemos o atrito per­ nas ciências particulares — na linguística, no estudo com­
pétuo entre forças conflitantes. O pensam ento científi­ parativo do mito e da religião, na história da arte. T o ­
co contradiz e suprim e o pensam ento mítico. A religião, das essas ciências estão esforçando-se por encontrar certos
em seu mais alto desenvolvimento teórico e ético, vê-se princípios, “ categorias” definidas, com as quais seja pos­
na necessidade de defender a pureza de seu próprio ideal sível reduzir os fenômenos da religião, da arte e da lin­
contra as fantasias extravagantes do mito ou da arte. As­ guagem a um a ordem sistemática. Não fosse por essa
sim, a unidade e a harm onia da cultura hum ana p are­ síntese prévia efetuada pelas próprias ciências, a filoso-
120 ENSAIO SOBRE O HOMEM

fia não teria um ponto de partida. A filosofia, por outro


lado, não pode p arar aqui. Ela deve procurar alcançar
um a condensação e um a centralização ainda maiores.
N a ilim itada multiplicidade e variedade de imagens m í­
ticas, dogm as religiosos, formas linguísticas, obras de
arte, o pensam ento filosófico revela a unidade de um a
função geral por meio da qual todas essas criações são C A P ÍT U L O V II
m antidas unidas. O m ito, a religião, a arte, a lingua­
gem e até a ciência são hoje vistos como diversas varia­
ções de um tem a comum — e a tarefa da filosofia é tor­ MITO E RELIGIÃO
nar esse tem a audível e compreensível.

De todos os fenômenos da cultura hum ana, o mito


e a religião são os mais refratários a um a análise m era­
mente lógica. O mito, à prim eira vista, parece ser apenas
caos — um a massa disforme de idéias incoerentes. Pro­
curar as “ razões” para tais idéias parece fútil e vão. Se
existe alguma coisa que seja característica do mito, é o
fato de que ele “ não tem pé, nem cabeça” . Q uanto ao
pensamento religioso, não está de modo algum em oposi­
ção, necessariamente, ao pensamento racional ou filosófi­
co. Determinar a verdadeira relação entre esses dois modos
de pensamento foi um a das principais tarefas da filosofia
medieval. Nos sistemas do alto escolasticismo, o problema
parecia ter sido solucionado. Segundo Tomás de Aquino,
a verdade religiosa é supranatural e supra-racional; mas
não é “ irracional” . Com base apenas na razão, não pode­
mos penetrar os mistérios da fé. No entanto, esses mistérios
não contradizem, mas completam e aperfeiçoam, a razão.
Apesar disso, sempre houve pensadores religiosos
profundos que discordavam de todas essas tentativas de
122 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 123
reconciliar as duas forças opostas. Sustentavam um a tese um negro oceano ilimitável,
m uito mais radical e inflexível. O dito de T ertuliano, sem confim, sem dimensão, em que comprimento, largura e
Credo quia absurdum, nunca perdeu sua força. Pascal de­
altura,
clarou que a obscuridade e a incompreensibilidade eram E Tempo e lugar se perdem.
os próprios elementos da religião. O verdadeiro Deus,
o Deus da religião cristã, nunca deixa de ser um Deus Não h á nenhum fenômeno natural, e nenhum fenôm e­
absconditus, um deus oculto 1 . Kierkegaard descreve a vi­ no da vida hum ana, que não seja passível de um a inter­
da religiosa como o grande “ paradoxo” . Para ele, um a pretação m ítica, e que não peça um a tal interpretação.
tentativa de atenuar esse paradoxo significava a nega­ Todas as tentativas das diversas escolas de mitologia com­
ção e a destruição da vida religiosa. E a religião é um parativa no sentido de unificar as idéias mitológicas,
enigm a não só no sentido teórico, m as tam bém no sen­ reduzi-las a um certo tipo uniform e, estavam destina­
tido ético. Está repleta de antinom ias teóricas e contra­ das a acabar em um completo fracasso. Apesar dessa va­
dições éticas. Promete-nos um a com unhão com a n atu ­ riedade e discrepância das produções mitológicas, po­
reza, com os hom ens, com os poderes sobrenaturais e rém, a função de feitura dos mitos não deixa de ter um a
com os próprios deuses. No entanto, o seu efeito é pre­ certa homogeneidade. Antropólogos e etnólogos freqüen-
cisamente o oposto. Em sua aparência concreta ela se temente ficaram bastante surpresos ao encontrar os mes­
torna a fonte das mais profundas dissensões e lutas fa­
mos pensamentos elementares dispersos por todo o m un­
náticas entre os hom ens. A religião alega estar de posse do, e em condições culturais e sociais totalm ente dife­
de um a verdade absoluta; m as a sua história é um a his­ rentes. O mesmo vale para a história da religião. Os a r­
tória de erros e heresias. Oferece-nos a promessa e a pers­ tigos de fé, os credos dogmáticos e os sistemas teológi­
pectiva de um m undo transcendente — bem além dos
cos estão envolvidos em um a disputa interm inável. Até
limites de nossa experiência hum ana — e permanece hu­
mesmo os ideais éticos de diferentes religiões são am ­
m ana, dem asiado hum ana. plamente divergentes e dificilmente conciliáveis entre si.
Todavia, o problem a apresenta-se sob um a nova Mas nada disso afeta a form a específica do sentimento
perspectiva assim que decidimos m udar nosso ponto de
religioso e a unidade interna do pensam ento religioso2 .
vista. U m a filosofia da cultura hum ana não faz a mesma Os símbolos religiosos m udam incessantemente, mas o
pergunta que um sistema metafísico ou teológico. Não es­ princípio subjacente, a atividade simbólica como tal, per­
tamos indagando aqui acerca do tem a da imaginação mí­
manece a mesma: una est religio in rituum varietate.
tica e do pensam ento religioso, e sim acerca da sua for­
U m a teoria do mito, porém , está carregada de difi­
m a. Os assuntos, os temas e motivos do pensamento mí­
culdades desde o início, o mito é não-teórico em seu pró­
tico são imensos. Se abordam os o m undo mítico por este prio sentido e essência. Ele desafia e enfrenta as nossas
lado ele nunca deixa de ser — nas palavras de M ilton —
categorias fundam entais de pensam ento. Sua lógica —
124 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 125
sc é que tem alguma lógica — não pode ser medida por não tinha consciência do sentido de suas próprias cria­
nenhuma de nossas concepções de verdade empírica ou ções. Mas cabe a nós, cabe à nossa análise científica,
científica. Mas a filosofia nunca poderia admitir uma revelar esse sentido — detectar o rosto verdadeiro por
tal bifurcação. Estava convencida de que as criações da trás dessas inúmeras máscaras. Essa análise pode pro­
função de fazer mitos devem ter um “ sentido” filosófi­ ceder em uma direção dupla. No primeiro caso, ela ten­
co, compreensível. Se o mito esconde esse sentido sob tará classificar os objetos do pensamento mítico; no se­
todos os tipos de imagens e símbolos, tornou-se tarefa gundo, tentará classificar os seus motivos. Uma teoria pa­
da filosofia desmascará-lo. Desde o tempo dos estóicos, recerá ser tanto mais perfeita quanto mais longe for neste
a filosofia desenvolveu uma técnica especial, muito ela­ processo de simplificação. Se no final ela conseguir des­
borada, de interpretação alegórica. Por muitos séculos cobrir um único objeto ou um único motivo que conte­
essa técnica foi vista como o único acesso possível ao nha e abranja todos os demais, terá atingido a sua meta
mundo mítico. Ela prevaleceu durante toda a Idade Mé­ e cumprido a sua tarefa. A etnologia e a psicologia mo­
dia, e estava ainda em pleno vigor no início da era mo­ dernas tentaram essas duas vias. Muitas escolas etnoló­
derna. Bacon escreveu um tratado especial sobre a “ Sa­ gicas e antropológicas partiram do pressuposto de que
bedoria dos Antigos” , no qual demonstrou uma gran­ antes e acima de tudo temos que procurar por um cen­
de sagacidade na interpretação da mitologia antiga.
tro objetivo para o mundo mítico. “ Para os autores desta
Se estudarmos esse tratado, ficaremos inclinados a escola” , diz Malinowski,
sorrir diante das interpretações alegóricas que na maio­
ria dos casos, para um estudioso moderno, parecem ser
todo mito contém em seu âmago ou em sua realidade supre­
extremamente ingênuas. Mesmo assim, nossos próprios
ma um fenômeno natural qualquer, elaboradamente tecido em
métodos muito mais requintados e sofisticados são em
uma história, a tal ponto que esta às vezes quase o mascara
grande medida passíveis da mesma objeção. A “ expli­
e oblitera. Esses estudiosos não concordam muito quanto a qual
cação” que eles fazem dos fenômenos míticos torna-se tipo de fenômeno natural está na base da maioria das produ­
no fim uma total negação desses fenômenos. O mundo ções mitológicas. Existem mitologistas lunares tão completa­
mítico aparece como um mundo artificial, como simu­ mente aluados com sua idéia que não admitem que qualquer
lação de outra coisa qualquer. Em vez de ser uma cren­ outro fenômeno possa prestar-se a uma interpretação rapsó-
ça, é um mero faz-de-conta. O que distingue esses mé­ dica selvagem além do satélite noturno da terra... Outros...
todos modernos das formas mais antigas de interpreta­ consideram o sol como o único tema em torno ao qual o ho­
ção alegórica é o fato de não mais considerarem o mito mem primitivo teceu suas histórias simbólicas. Há também a
como uma simples invenção feita para um propósito es­ história dos interpretadores meteorológicos que consideram o
pecial. Embora o mito seja fictício, trata-se de uma fic­ vento, o clima e as cores dos céus como a essência do mito...
ção inconsciente, e não consciente. A mente primitiva Alguns desses mitologistas departamentais lutam ferrenhamen-
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 127
126

te por seu corpo celestial ou princípio; outros têm um gosto implicado um ato de crença. Sem a crença na realidade de
mais católico, e preparam-se para concordar que o homem pri­ seu objeto, o mito perdería o seu fundamento. Por meio
mevo fez sua sopa mitológica com todos os corpos celestiais dessa condição intrínseca e necessária, parecemos ser trans­
tomados em conjunto5 . portados ao pólo oposto. A esse respeito, parece ser pos­
sível e mesmo indispensável com parar o pensam ento m í­
N a teoria psicanalítica do m ito de Freud, por outro la­ tico ao científico. E claro que eles não seguem os mesmos
do, declara-se que todas as produções míticas são va­ caminhos, mas parecem estar em busca da mesm a coisa:
riações e disfarces de um único e mesmo tem a psicoló­ a realidade. N a antropologia moderna, esta relação foi en­
gico — a sexualidade. Não precisamos entrar aqui nos fatizada por Sir Jam es Frazer. Frazer postula a tese de
detalhes de todas essas teorias. Por mais divergentes que que não há qualquer limite claro que separe a arte mági­
sejam em seus conteúdos, todas elas exibem a m esm a ca de nossos modos de pensamento científico. A magia,
atitude metodológica. T êm esperanças de fazer-nos en­ por mais imaginários e fantásticos que sejam os seus meios,
tender o m undo mítico por um processo de redução in­ também é científica em seus fins. Falando teoricamente,
telectual. M as nenhum a delas pode alcançar seus obje­ a magia é ciência, embora seja na prática um a ciência elu-
tivos sem apertar e esticar constantem ente os fatos para siva — um a pseudociência. Pois até a m agia argum enta
transform ar a teoria em um todo homogêneo. e age com base no pressuposto de que na natureza um
O mito combina um elemento teórico e um elemen­ evento segue-se a outro necessária e invariavelmente, sem
to de criação artística. O que nos impressiona em pri­ necessidade da intervenção de qualquer agência espiritual
meiro lugar é a sua íntim a associação com a poesia. “ O ou pessoal. A convicção aqui é ‘‘que o curso da natureza
mito antigo” , disseram , “ é a ‘m assa’ a p artir da qual não é afetado pelas paixões ou pelo capricho de seres pes­
a poesia m oderna cresceu lentam ente m ediante os pro­ soais, mas pela operação de leis imutáveis que agem m e­
cessos que os evolucionistas cham am de diferenciação canicamente” . Logo, a magia é fé: implícita, mas real e
e especialização. A m ente do criador do mito é o protó­ firme, na ordem e uniformidade da natureza 5 . No entan­
tipo; e a m ente do p o e ta ... ainda é essencialmente mi- to, essa tese não resistiu ao teste da crítica; a antropolo­
topoética.” 4 M as, a despeito desta conexão genética, gia moderna parece ter abandonado inteiramente os pontos
não podemos deixar de reconhecer a diferença específi­ de vista de Frazer 6 . Hoje é geralmente admitido que é
ca entre o mito e a arte. U m a chave para isso pode ser uma concepção muito inadequada do mito e da m agia
encontrada na declaração de K ant de que a contem pla­ considerá-los como tipicamente etiológicos ou explicati­
ção estética é ‘‘inteiram ente indiferente à existência ou vos. Não podemos reduzir o mito a certos elementos es­
não-existência de seu objeto” . E precisam ente um a in­ táticos fixos; devemos esforçar-nos para apreendê-lo em
diferença assim, porém , que é inteiram ente estranha à sua vida interior, em sua mobilidade e versatilidade, em
imaginação mítica. N a im aginação m ítica está sempre seu princípio dinâmico.
128 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 129

Será mais fácil abordar esse princípio se abordar­ sas qualidades emocionais. T udo o que é visto ou senti­
mos o problem a de um ângulo diferente. O m ito, por do está rodeado por um a atm osfera especial — um a at­
assim dizer, tem um a face dupla. Por um lado nos mos­ mosfera de alegria ou pesar, de angústia, de excitação,
tra um a estrutura conceituai, por outro um a perceptual. de exultação ou depressão. Não podemos falar aqui de
Não é um a simples massa de idéias desorganizadas e con­ “ coisas” como m atéria m orta ou indiferente. Todos os
fusas; depende de um modo de percepção definido. Se objetos são benignos ou malignos, amistosos ou hostis,
o mito não percebesse o m undo de modo diferente, não familiares ou estranhos, atraentes e fascinantes ou re­
poderia julgá-lo ou interpretá-lo à sua m aneira específi­ pelentes e ameaçadores. Podemos reconstruir facilmente
ca. Devemos voltar a essa cam ada mais profunda de per­ essa forma elem entar da experiência hum ana, pois nem
cepção para podermos entender o caráter do pensamento mesmo n a vida do homem civilizado ela perdeu seu po­
mítico. O que nos interessa no pensamento empírico são der original. Q uando estamos sob a tensão de um a emo­
os traços constantes da nossa experiência sensorial. Neste ção violenta, temos ainda essa concepção dram ática de
caso, fazemos sempre um a distinção entre o que é subs­ todas as coisas. Elas não têm mais o rosto de sempre;
tancial ou acidental, necessário ou contingente, invariável m udam abruptam ente de fisionomia, ficam tingidas da
ou passageiro. Por essa discrim inação somos levados ao cor específica de nossas paixões, de am or ou ódio, de
conceito de um m undo de objetos físicos dotados de qua­ medo ou esperança. Dificilmente pode haver um con­
lidades fixas e determ inadas. M as tudo isso envolve um traste m aior que o existente entre essa direção original
processo analítico que está em oposição à estrutura fun­ da nossa experiência e o ideal de verdade que é intro­
damental da percepção e do pensam ento mítico. O m un­ duzido pela ciência. Todos os esforços do pensam ento
do mítico está, p o r assim dizer, em um estágio muito científico são dirigidos p ara a m eta de obliterar todos
mais fluido e flutuante que o nosso m undo teórico de os vestígios dessa visão anterior. Diante da nova luz da
coisas e propriedades, de substâncias e acidentes. Para ciência, a percepção mítica deve desaparecer. M as isso
apreender e descrever essa diferença, podemos dizer que não quer dizer que todos os dados d a nossa experiência
o que o mito percebe prim ariam ente não são caracteres fisionômica como tais sejam destruídos e aniquilados.
objetivos, mas fisionômicos. A natureza, em seu sentido Perderam todo valor objetivo ou cosmológico, m as seu
empírico ou científico, pode ser definida como “ a exis­ valor antropológico persiste. No nosso m undo hum ano,
tência de coisas enquanto for determ inada por leis ge­ não podemos negá-los e não podemos deixar de vê-los;
rais” 7 . U m a “ n atu reza” assim não existe para os mi­ eles m antêm seu lugar e seu significado. N a vida social,
tos. O m undo do m ito é um m undo dram ático — um em nossas relações diárias com os hom ens, não pode­
m undo de ações, de forças, de poderes conflitantes. Em mos apagar esses dados. Até na ordem genética a dis­
todo fenômeno da natureza ele vê a colisão desses pode­ tinção entre qualidades fisionômicas parece preceder a
res. A percepção m ítica está sempre im pregnada des­ distinção entre qualidades perceptuais. U m a criança pa-
130 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 131

rece ser sensível a elas nos primeiros estágios do seu da um deles, a seu modo, é um passo no nosso caminho
desenvolvimento8 . Embora a ciência tenha de abstrair para a realidade.
essas qualidades para cumprir sua tarefa, não pode O melhor e mais claro enunciado deste problema
suprimi-las totalmente. Elas não são extirpadas pela raiz; foi a meu ver feito por John Dewey. Ele foi um dos pri­
ficam apenas restritas ao seu próprio campo. É esta res­ meiros a reconhecer e a enfatizar o direito relativo nas
trição das qualidades subjetivas que marca o modo ge­ qualidades de sentimento que provam todo o seu poder
ral da ciência. A ciência delimita a objetividade delas, na percepção mítica e que são aqui consideradas como
mas não pode destruir por inteiro sua realidade. Pois os elementos básicos da realidade. Foi precisamente a
cada aspecto da nossa experiência humana tem uma rei­ sua concepção da tarefa de um genuíno empirismo que
vindicação à realidade. Em nossos conceitos científicos, o levou a esta conclusão. “ Empiricamente” , diz Dewey,
reduzimos a diferença entre duas cores, digamos ver­
melho e azul, a uma diferença numérica. Mas declarar as coisas são pungentes, trágicas, belas, cômicas, assentadas,
que o número é mais real que a cor é uma maneira muito perturbadas, confortáveis, tediosas, desoladas, ásperas, con-
inadequada de falar. O que se quer de fato dizer é que soladoras, esplêndidas, temíveis; são-no imediatamente, por
ele é mais geral. A expressão matemática oferece-nos direito próprio e em seu próprio nome... Em si mesmos estes
traços estão precisamente no mesmo nível que as cores, sons,
uma visão nova e mais abrangente, um horizonte de co­
qualidades de contato, sabor e aroma. Q ualquer critério que
nhecimento mais livre e mais amplo. Mas hipostasiar
considere estes últimos como dados supremos e “ concretos” ,
o número como faziam os pitagóricos, falar dele como
se aplicado imparcialmente, chegará à mesma conclusão so­
a realidade suprema, a própria essência e substância das
bre os primeiros. Qualquer qualidade como tal é final; é ao mes­
coisas, é uma falácia metafísica. Quando argumentamos mo tempo inicial e terminal; é precisamente o que é, tal como
com base neste princípio metodológico e epistemológi- existe. Pode ser usada em referência a outras coisas, pode ser
co, até mesmo a camada mais baixa da nossa experiên­ tratada como efeito ou como sinal. Mas isso envolve extensão
cia sensorial — a camada de nossas “ qualidades de sen­ e uso extrínsecos. Leva-nos para além da qualidade em sua
timento’’ — aparece em uma nova luz. O mundo das qualitatividade im ediata... O abandono das qualidades ime­
nossas percepções sensoriais, das chamadas “ qualida­ diatas, sensoriais e significantes, como objetos da ciência e como
des secundárias” , está em uma posição intermediária. formas apropriadas de classificação e entendimento, na ver­
Ele abandonou e superou o primeiro estágio rudimen­ dade deixou essas qualidades imediatas precisamente como
tar de nossa experiência fisionômica, sem ter alcançado eram; visto que são dadas não há necessidade de conhecê-las.
aquela forma de generalização que se atinge em nossos M as... a visão tradicional de que o objeto do conhecimento
conceitos científicos — nossos conceitos do mundo físi­ é a realidade par excellence levou à conclusão de que o objeto
co. Mas cada um desses três estágios tem seu valor fun­ da ciência era preeminentemente real do ponto de vista meta­
cional definido. Nenhum deles é uma simples ilusão; ca­ físico. Logo, as qualidades imediatas, sendo estendidas do ob-
132 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 133

jeto da ciência, foram com isso deixadas penduradas do obje­ e não estático, e só pode ser descrito em termos de ação.
to “ real” . Como sua existência não podia ser negada, foram O hom em prim itivo não expressa seus sentimentos e
reunidas em um reinado psíquico do ser, colocadas contra o emoções em meros símbolos abstratos, mas de m aneira
objeto da física. Dada esta premissa, todos os problemas que concreta e imediata; e devemos estudar o conjunto des­
dizem respeito à relação entre mente e matéria, entre psíqui­ sa expressão para podermos tom ar consciência da estru­
co e corporal, seguem-se necessariamente. Mude-se a premis­ tura do mito e da religião prim itiva.
sa metafísica; ou seja, restaurem-se as qualidades imediatas U m a das teorias mais claras e coerentes sobre essa
à posição que lhes cabe como qualidades de situações inclusi- estrutura foi oferecida pela escola sociológica francesa,
vas, e os problemas em questão deixam de ser problemas epis-
na obra de D urkheim e de seus discípulos e seguidores.
temológicos. Tornam-se problemas científicos especificáveis;
Durkheim parte do princípio de que não poderemos ex­
isto é, questões de como tal e tal evento com tais e tais quali­
plicar adequadamente o mito enquanto procurarmos suas
dades de fato ocorre0 .
fontes no m undo físico, em um a intuição dos fenôm e­
nos naturais. O verdadeiro modelo do mito é a socieda­
Logo, se quiserm os d ar conta do m undo da per­
de, não a natureza. Todos os seus motivos fundam en­
cepção m ítica e da imaginação m ítica, não deveremos
tais são projeções da vida social do homem. Através des­
começar com um a crítica de ambas do ponto de vista
sas projeções a natureza torna-se a imagem do m undo
dos nossos ideais teóricos de conhecimento e verdade. social; reflete todos os seus aspectos fundam entais, sua
Deveremos aceitar as qualidades da experiência mítica organização e sua estrutura, suas divisões e subdivi­
por sua “ qualitatividade im ediata” . Pois o que preci­ sões 1 0 . A tese de Durkheim alcançou seu pleno desen­
samos aqui não é de um a explicação de meros pensa­ volvimento na obra de Lévy-Bruhl. M as nela encontra­
mentos ou crenças, mas de um a interpretação da vida mos um a característica mais geral. O pensam ento m íti­
mítica. O mito não é um sistema de credos dogmáticos. co é descrito como ‘‘pensamento pré-lógico’ ’. Se precisa de
Consiste m uito mais em ações que em simples imagens causas, estas não são nem lógicas, nem empíricas; são
ou representações. E m arca de um distinto progresso na “ causas m ísticas” . “ Nossa atividade cotidiana implica
antropologia m oderna e na m oderna história da religião um a confiança serena e perfeita na invariabilidade das
que esta visão se torne cada vez mais predominante. Que leis naturais. A atitude do hom em prim itivo é m uito di­
o ritual é anterior ao dogm a, tanto em um sentido his­ ferente. Para ele, a natureza em que vive apresenta-se
tórico como no psicológico, parece ser agora um a m á­ sob um aspecto inteiram ente diverso. Todas as coisas
xima adotada pela maioria. M esmo que conseguíssemos e todas as criaturas que há nela estão envolvidas em um a
analisar o mito em elementos conceituais fundam entais, rede de participações e exclusões m ísticas.” Segundo
seria possível que com tal processo analítico nunca Lévy-Bruhl, esse caráter místico da religião prim itiva
apreendéssemos o seu princípio vital, que é dinâmico, decorre do próprio fato de que suas representações são
134 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 135
“ representações coletivas’’. A estas não podemos apli­ nizado. Para nós, a questão mais essencial sobre a magia e
car as regras de nossa própria lógica, concebidas para o ritual religioso é que só vêm à frente quando o conhecimen­
propósitos bastante diferentes. Quando abordamos es­ to fracassa. O cerimonial de fundamento sobrenatural surge
se campo, até mesmo a lei da contradição, e todas as da vida, mas nunca estultifica os esforços práticos do homem.
demais leis do pensamento racional tornam-se inváli­ Em seu ritual de magia ou religião, o homem tenta represen­
das11 . A meu modo de ver, a escola sociológica france­ tar milagres, não porque ignore as limitações de seus poderes
sa forneceu uma prova plena e conclusiva da primeira mentais, mas, ao contrário, porque tem plena consciência de­
parte de sua tese, mas não da segunda. O caráter social las. Para dar mais um passo à frente, o reconhecimento disso
fundamental do mito é incontestado. Mas que toda a parece-me indispensável se quisermos estabelecer de uma vez
mentalidade primitiva seja necessariamente pré-lógica por todas a verdade de que a religião tem seu próprio tema,
ou mística parece estar em contradição com nossas evi­ seu próprio campo legítimo de desenvolvimento1 2 .
dências antropológicas e etnológicas. Vemos muitas es­
feras da vida e da cultura primitivas que apresentam co­ E mesmo neste último campo, no campo legítimo
nhecidas características da nossa própria vida cultural. do mito e da religião, a concepção de natureza e de vi­
Enquanto presumirmos uma absoluta heterogeneidade da humana não está, de modo algum, privada de senti­
entre nossa própria lógica e a da mente primitiva, en­ do racional. Aquilo que, de nosso próprio ponto de vis­
quanto as considerarmos especificamente diferentes e ra­ ta, podemos chamar de irracional, pré-lógico e místico
dicalmente opostas entre si, será difícil explicar esse fa­ são as premissas de que parte a interpretação mítica ou
to. Até na vida primitiva achamos sempre uma esfera religiosa, mas não o modo de interpretação. Se aceitar­
profana ou secular fora da esfera sagrada. Há uma tra­ mos essas premissas e as entendermos direito — se as
dição secular que consiste çm regras consuetudinárias virmos sob a mesma luz que o homem primitivo — as
ou legais e que determina a maneira pela qual a vida inferências feitas com base nelas deixarão de parecer iló­
social é conduzida. “ As regras que encontramos aqui” , gicas ou antilógicas. E claro que todas as tentativas de
diz Malinowski, intelectualizar o mito — explicá-lo como uma expres­
são alegórica de uma verdade teórica ou moral — fra­
são completamente independentes da magia, de sanções so­ cassaram completamente13 . Ignoraram os fatos funda­
brenaturais, e nunca são acompanhadas por quaisquer elemen­ mentais da experiência mítica. O verdadeiro substrato
tos cerimoniais ou rituais. E um engano supor que, em um do mito não é um substrato de pensamento, mas de sen­
estágio primitivo de desenvolvimento, o homem vivia em um timento. O mito e a religião primitiva não são, de ma­
estado confuso, em que o real e o irreal formavam uma mis­ neira alguma, inteiramente incoerentes, não são vazios
tura, em que o misticismo e a razão eram tão intercambiáveis de sentido ou razão. Sua coerência, porém, depende mui­
quanto as moedas falsas e as verdadeiras em um país desorga­
to mais de unidade de pensamento que de regras lógi-
136 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 137

cas. Esta unidade é um dos impulsos mais fortes e mais tivo depende em grande parte de seus dons de observa­
profundos do pensam ento prim itivo. Se o pensam ento ção e discriminação. Se for um caçador, deverá estar fa­
científico pretende descrever e explicar a realidade, é for­ miliarizado com os mais mínimos detalhes da vida ani­
çado a usar seu m étodo geral, que é o da classificação mal; deverá ser capaz de distinguir as pistas de vários
e da sistematização. A vida é dividida em províncias se­ animais. N ada disso é condizente com a suposição de
paradas que são claram ente distinguidas um as das ou­ que a m ente prim itiva, por sua própria natureza e es­
tras. Os limites entre os reinos das plantas, dos animais, sência, é indiferenciada ou confusa, um a m ente pré-
do hom em — as diferenças entre espécies, famílias, gê­ lógica ou mística.
neros — são fundam entais e indeléveis. M as a m ente O que é característico da mentalidade primitiva não
prim itiva as ignora e rejeita. Sua visão da vida é sinté­ é a sua lógica, mas o seu sentimento geral da vida. O
tica, e não analítica. A vida não é dividida em classes hom em prim itivo não olha para a vida com os olhos de
e subclasses. E sentida como um todo contínuo e inin­ um naturalista que deseja classificar coisas p ara poder
terrupto que não adm ite distinções nítidas e claras. Os satisfazer um a curiosidade intelectual. Ele não a abor­
limites entre as diferentes esferas não são barreiras in­ da com um interesse apenas pragm ático ou técnico. Pa­
superáveis; são fluentes e flutuantes. Não há qualquer ra ele, a natureza não é nem um simples objeto de co­
diferença específica entre os vários domínios da vida. nhecim ento, nem o campo de suas necessidades práti­
N ada tem um a forma definida, invariável e estática. Por cas imediatas. Tem os o costume de dividir nossa vida
um a súbita m etamorfose, tudo pode ser transform ado nas duas esferas de atividade, a prática e a teórica. Nessa
em tudo. Se existe algum aspecto característico e desta­ divisão, estamos inclinados a esquecer que há um a ca­
cado do m undo mítico, qualquer lei que o governe, é m ada subjacente às duas. O homem primitivo não é pas­
a lei da m etamorfose. M esm o assim, dificilmente pode­ sível desse tipo de esquecimento. Todos os seus pensa­
riamos explicar a instabilidade do m undo mítico pela mentos e sentimentos estão ainda mergulhados nessa ca­
incapacidade do homem primitivo para apreender as di­ m ada inferior original. Sua visão da natureza não é nem
ferenças empíricas das coisas. Q uanto a isso, o selva­ apenas teórica, nem simplesmente prática: é simpática.
gem m uitas vezes prova a sua superioridade em relação Se deixarmos de ver isso, não poderemos encontrar um a
ao homem civilizado. E suscetível a muitos aspectos dis­ abordagem para o m undo mítico. O aspecto mais fun­
tintivos que escapam à nossa atenção. Os desenhos e pin­ dam ental do mito não é um a direção especial de pensa­
turas de animais que encontramos nos estágios mais bai­ mento, nem um a direção especial da imaginação hum a­
xos da cultura hum ana, na arte paleolítica, foram m ui­ na. O mito é um produto da emoção, e seu fundam ento
tas vezes adm irados por seu caráter naturalista. M os­ emocional im bui todas as suas produções de sua pró­
tram um surpreendente conhecimento de todos os tipos pria cor específica. O homem prim itivo não carece da
de formas anim ais. T oda a existência do hom em prim i­ capacidade de apreender as diferenças empíricas das coi-
0 HOMEM E A CULTURA 139
138 ENSAIO SOBRE O HOMEM

Vemos por esses exemplos de que modo a firme


sas. N a sua concepção da natureza e da vida, porém ,
crença na unidade da vida eclipsa todas aquelas diferen­
todas essas diferenças são obliteradas por um sentim en­
ças que, do nosso ponto de vista, parecem inconfundí­
to mais forte: a profunda convicção de um a fundam en­
veis e inelutáveis. De m aneira algum a precisamos su­
ta] e indelével solidariedade da vida que passa por cima da
por que tais diferenças sejam totalm ente desprezadas.
multiplicidade e da variedade de suas formas isoladas.
Elas não são negadas em um sentido empírico, mas de­
Ele não atribui a si mesmo um papel singular e privile­
claradas irrelevantes em um sentido religioso. Para o sen­
giado na escala da natureza. A consangüinidade de to­
timento mítico e religioso, a natureza torna-se um a gran­
das as formas de vida parece ser um pressuposto geral
de sociedade, a sociedade da vida. O homem não possui
do pensam ento prim itivo. O s credos totêmicos estão en­
um a posição de destaque nessa sociedade. Faz parte dela,
tre os traços mais característicos da cultura prim itiva.
mas não é em aspecto algum superior a qualquer outro
T oda a vida social e religiosa da m aioria das tribos pri­
mem bro. A vida possui a mesm a dignidade religiosa em
mitivas — tal como, por exemplo, a das tribos aboríge­
suas mais humildes e em suas mais altas formas. H o ­
nes australianas, que foram cuidadosam ente estudadas
mens e anim ais, animais e plantas, estão todos no m es­
e descritas por Spencer e G illen 14 — é governada por
mo nível. Nas sociedades totêmicas vemos plantas-totem
concepções totêmicas. E m esm o em um estágio muito
lado a lado com anim ais-totem. E encontram os o mes­
mais avançado, na religião de nações altam ente cultas,
mo princípio — o da solidariedade e da unidade inin­
encontram os um sistem a m uito complexo e elaborado
terrupta da vida — se passamos do espaço para o tem ­
de veneração anim al. No totem ism o, o hom em não vê
po. Ele serve não somente para a ordem da simultanei-
a si mesmo apenas como descendente de um a certa es­
dade, mas tam bém para a ordem da sucessão. As gera­
pécie animal. Um vínculo que está presente e é real, além
ções de homens formam um a única corrente ininterrup­
de genético, liga toda a sua existência física e social a
ta. Os estágios anteriores da vida são preservados pela
seus ancestrais totêmicos. Em m uitos casos, essa liga­
reencarnação. A alma do avô aparece na alm a de um
ção é sentida e expressada como identidade. O etnólo­
recém-nascido em um estado rejuvenescido. Presente,
go K arl von den Steinen relata que os m em bros de cer­
passado e futuro m isturam-se sem qualquer linha clara
tos clãs totêmicos de um a tribo indígena afirm avam ser
de demarcação; os limites entre as gerações dos homens
um a única e m esm a coisa que os anim ais de que deri­
tornam -se incertos.
vavam a sua origem: declaravam expressamente que eram
O sentimento da unidade indestrutível da vida é for­
anim ais aquáticos ou papagaios verm elhos 1 5 . Frazer
te e inabalável a ponto de negar e desafiar o fato da m or­
conta que na tribo D ieri, n a A ustrália, as pessoas fala­
te. No pensam ento prim itivo, a m orte nunca é vista co­
vam do chefe de um totem que consistia em um tipo es­
mo um fenômeno natural que obedece a leis gerais. Sua
pecial de semente como sendo a p ró p ria planta que dá
ocorrência não é necessária, mas acidental. Depende
a sem ente 1 6 .
140 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 141

sempre de causas individuais e fortuitas. É obra de bru ­ cultura humana. Em uma descrição dos mais antigos tex­
xaria ou m agia, ou de algum a outra influência pessoal tos das Pirâm ides, Breasted diz que a nota principal e
hostil. Em sua descrição das tribos aborígenes da Aus­ dom inante em todos eles é um protesto insistente, até
trália, Spencer e Gillen assinalam que um a coisa como apaixonado, contra a morte. “ Pode-se dizer que são o
a m orte natural nunca é percebida pelo nativo. U m ho­ registro da prim eira revolta elem entar da hum anidade
mem que m orre foi, necessariam ente, m orto por outro contra a grande escuridão silenciosa da qual ninguém
hom em , ou talvez até por outra m ulher; e mais cedo ou retorna. A palavra ‘m orte’ nunca ocorre nos Textos da
mais tarde esse hom em ou essa m ulher será vítim a de Pirâm ide, exceto na negativa ou aplicada a um inim i­
um ataque 1 7 . A m orte não existiu sempre; passou a go. Ouvimos reiteradamente a garantia indôm ita de que
existir em virtude de um evento particular, pelo fracas­ os m ortos vivem .” 18
so do hom em ou por algum acidente. M uitas histórias Em seu sentimento individual e social, o homem
míticas referem-se à origem da m orte. A concepção de prim itivo está pleno dessa garantia. A vida do hom em
que o hom em é m ortal, por sua natureza e essência, p a­ não tem limites definidos no espaço ou no tem po. Es­
rece ser inteiram ente estranha ao pensam ento mítico e tende-se por sobre todo o domínio da natureza e sobre
religioso prim itivo. A este respeito, há um a notável di­ o conjunto da história do homem. H erbert Spencer pro­
ferença entre a crença m ítica na im ortalidade e todas pôs a tese de que o culto aos ancestrais deve ser consi­
as formas posteriores de crença filosófica pura. Q u a n ­ derado como a prim eira fonte e a origem da religião.
do lemos o Fedo, de Platão, sentimos todo o esforço do Seja como for, trata-se de um dos motivos religiosos mais
pensam ento filosófico no sentido de apresentar um a pro­ gerais. Parece haver poucas raças no m undo que não
va clara e irrefutável da im ortalidade da alm a hum ana. pratiquem , de um a forma ou de outra, um a espécie de
No pensam ento mítico, o caso é bem diferente. Nele, culto da m orte. Um dos mais im portantes deveres reli­
o ônus da prova sempre cabe ao lado contrário. Se al­ giosos do sobrevivente, após a m orte de um genitor, é
gum a coisa precisa de prova, não é o fato da im ortali­ fornecer-lhe alimento e outras coisas necessárias para
mantê-lo no novo estado em que en tro u 1 9 . Em muitos
dade, mas o da m orte. E o mito e a religião prim itiva
casos, o culto aos ancestrais aparece como o traço difu­
nunca adm item essas provas. Negam enfaticam ente a
so que caracteriza e determ ina toda a vida religiosa e
própria possibilidade da m orte. De certo modo, o con­
social. N a C hina, esse culto aos ancestrais, sancionado
ju nto do pensam ento mítico pode ser interpretado co­
e regulam entado pela religião oficial, é concebido como
mo um a constante e obstinada negação do fenômeno da
a única religião perm itida ao povo. Isso significa, segun­
m orte. Em virtude dessa convicção da unidade e conti­
do diz de Groot em sua descrição da religião chinesa,
nuidade ininterruptas da vida, o mito deve superar esse
fenômeno. A religião prim itiva é talvez a mais forte e que os laços de familia.com os mortos não são rompidos, e que
mais enérgica afirmação de vida que encontram os na os mortos continuam a exercer sua autoridade e proteção.
142 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 143

São as divindades padroeiras naturais do povo chinês, seus deu­ espíritos dos mortos 22 . Tudo isso mostra de m aneira cla­
ses domésticos, que proporcionam proteção contra os espec­ ra e inequívoca que temos aqui um a característica real­
tros, criando assim a felicidade... E o culto aos ancestrais que, m ente universal, irredutível e essencial, da religião pri­
conferindo ao homem a proteção do membro falecido de sua
mitiva. E será impossível entender esse elemento em seu
família, traz-lhe riqueza e prosperidade. Portanto, na verda­
verdadeiro sentido se partirm os do pressuposto de que
de, suas possessões são dos mortos; com efeito, estes continuam
toda a religião tem origem no medo. Deveremos procu­
a m orar e a viver com ele e as leis da autoridade paternal e
rar por outra fonte mais profunda se quisermos enten­
patriarcal decretarão que os genitores são donos de tudo o que
der o vínculo comum que une o fenômeno do totemis-
os filhos possuam ... Devemos, então, considerar o culto aos
mo ao fenômeno do culto aos ancestrais. E certo que o
genitores e ancestrais como o próprio núcleo da vida religiosa
e social do povo chinês211. Santo, o Sagrado e o Divino contêm sempre um elemento
de medo; trata-se, ao mesmo tempo, de um mysterium
fascinosum e de um mysterium tremendurrp’'. M as quando
A C hina é o país clássico do culto aos ancestrais,
onde podemos estudar todos os seus aspectos fundam en­ seguimos o nosso instrum ento geral — quando ju lg a­
mos a m entalidade do homem prim itivo por suas ações
tais e implicações especiais. C ontudo, os motivos reli­
e por suas representações ou credos — descobrimos que
giosos gerais que estão na base do culto aos ancestrais
essas ações implicam um motivo diferente e mais forte.
não dependem de condições culturais ou sociais espe­
De todos os lados, e em todos os m omentos, a vida do
ciais. Encontram o-los em am bientes culturais inteira­
hom em prim itivo é am eaçada por perigos desconheci­
m ente distintos. Q uando olhamos para a antiguidade
dos. O velho dito Primus in orbe deos fecit timor contém ,
clássica deparam os com os mesmos motivos na religião
portanto, um a verossimilhança psicológica interna. Tem-
rom ana — e nela tam bém m arcaram todo o caráter da
se a impressão, porém , de que mesmo nos estágios mais
vida rom ana. Em seu conhecido livro La citéantique, Fus-
antigos e primitivos da civilização o hom em já havia en­
tel de Coulanges fez um a descrição da religião rom ana
contrado um a força nova com a qual conseguia enfren­
na qual tenta m ostrar que o conjunto da vida social e
tar e banir o medo da morte. O que ele opunha ao fato
política dos rom anos traz a m arca do culto aos M anes
da m orte era a sua confiança na solidariedade, na u n i­
por eles praticado. O culto aos ancestrais sempre foi um a dade ininterrupta e indestrutível da vida. Até o totemis-
das características básicas e predom inantes da religião mo expressa essa profunda convicção de um a com uni­
rom ana 2 1 . Por outro lado, um dos traços m arcantes da dade de todos os seres vivos — um a com unidade que
religião dos índios am ericanos, com partilhada por qua­ deve ser preservada e reforçada pelos esforços constan­
se todas as inúm eras tribos do Alasca à Patagônia, é a tes do homem e pelo cumprimento estrito de rituais m á­
crença na vida após a m orte, baseada na crença igual­ gicos e observâncias religiosas. Um dos m aiores m éri­
m ente geral n a comunicação entre a hum anidade e os tos do livro de W. Robertson-Sm ith sobre a religião dos
144 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 145

semitas é a ênfase dada a esta questão. Desse modo, ele tal reação é encontrada apenas em uns poucos casos ex­
foi capaz de ligar os fenômenos do totemismo a outros cepcionais. Ela é logo substituída pela atitude oposta,
fenômenos da vida religiosa que, à prim eira vista, pa­ pelo desejo de reter ou cham ar de volta o espírito dos
recem ser de um tipo totalm ente diferente. M esm o as mortos. O m aterial etnológico à nossa disposição m os­
superstições mais grosseiras e cruéis aparecem sob um a tra a luta entre esses dois impulsos. Todavia, é o último
luz diferente quando vistas deste ângulo. “ Alguns dos que geralmente parece levar a melhor. É claro que en­
aspectos mais notáveis e constantes de todo o paganis­ contramos muitas tentativas de im pedir que o espírito
mo antigo” , diz Robertson-Sm ith, do m orto volte para casa. Cinzas são espalhadas atrás
do caixão quando ele está sendo levado para o túm ulo,
do totemismo dos selvagens em diante, encontram explicação para que o fantasm a erre o caminho. O costume de fe­
suficiente na afinidade física que une os membros humanos char os olhos de um cadáver foi explicado como um a
e sobre-humanos da mesma comunidade religiosa e social... tentativa de vendar o m orto e im pedir que este veja o
O laço indissolúvel que une os homens ao seu deus é o mesmo caminho pelo qual está sendo levado para o túm ulo 2 5 .
laço de irmandade de sangue que na sociedade primitiva é o Na maioria dos casos, porém, prevalece a tendência con­
primeiro elo de união entre o homem e o homem, o primeiro trária. Com todos os seus poderes, os sobreviventes lu­
princípio sagrado de obrigação moral. E vemos assim que mes­
tam para m anter o espírito nas vizinhanças. M uitas ve­
mo em suas formas mais grosseiras a religião era uma força
zes o corpo é enterrado na própria casa, onde m antém
moral... Desde os tempos mais antigos a religião, no sentido
sua m orada perm anente. Os fantasmas dos mortos
de oposta à magia ou à feitiçaria, dirige-se a seres bondosos
e amistosos, que podem com efeito ficar irados com os seus
tornam -se os deuses familiares; a vida e a prosperidade
por algum tempo, mas são sempre clementes, a não ser com da família dependem da assistência e do favor deles.
os inimigos de seus fiéis ou com os membros renegados da co­ Q uando um genitor m orre, implora-se p ara que não se
munidade... A religião, neste sentido, não é filha do terror, vá. “ Sempre te amamos e te quisem os” , diz um a can­
e a diferença entre ela e o pavor que o selvagem tem de inimi­ ção citada por Tylor, “ e por m uito tempo vivemos ju n ­
gos invisíveis é tão absoluta e fundamental nos primeiros quan­ tos sob o mesmo teto. Não o desertes agora! Vem para
to nos últimos estágios de desenvolvimento^. a tua casa! Ela está varrida para ti, e lim pa; e nós, que
sempre te amam os, estamos lá; e o arroz está servido
Os ritos fúnebres que encontramos em todas as par­ para ti; e água. Vem para casa, vem para casa, volta
tes do m undo tendem para o mesmo ponto. O m edo da para nós.” 26
m orte é sem dúvida um dos instintos hum anos mais ge­ Q uanto a isso, não há qualquer diferença radical
rais e mais profundam ente enraizados. A prim eira rea­ entre o pensamento mítico e o religioso. Ambos têm ori­
ção do hom em para com o cadáver deve ter sido de gem nos mesmos fenômenos fundam entais da vida h u­
abandoná-lo à sua sina e fugir dele, aterrorizado. M as m ana. No desenvolvimento da cultura hum ana, não po-
146 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 147

demos fixar um ponto em que o mito acaba ou começa do nos desfazemos das aparências para alcançar a realidade...
a religião. Em todo o curso de sua história, a religião nos dois extremos encontramos pressão e aspiração: a primei­
perm anece indissoluvelmente ligada a elementos m íti­ ra tanto mais perfeita quanto mais impessoal, e a últim a mais
cos, e im pregnada deles. Por outro lado o m ito, mesmo poderosa segundo seja mais obviamente suscitada em nós por
em suas formas mais grosseiras e rudim entares, traz em pessoas definidas, e quanto mais aparentemente triunfar so­
si alguns motivos que de certo modo antecipam os ideais bre a natureza^?.
religiosos superiores que chegam depois. Desde o iní­
cio, o m ito é religião em potencial. O que leva de um E um tanto supreendente que em sua últim a obra
estágio para o outro não é nenhum a crise repentina de Bergson, cuja doutrina foi m uitas vezes descrita como
pensamento, nem qualquer revolução de sentimento. Em um a filosofia biológica, como a filosofia da vida e da na­
Les deux sources de la morale et de la religion, H enri Bergson tureza, pareça estar inclinado para um ideal m oral e re­
tenta convencer-nos de que há um a oposição irreconci- ligioso que está m uito além desse campo.
liável entre o que descreve como “ Religião E stática”
e “ Religião D inâm ica” . A prim eira é produto da pres­ O homem defrauda a natureza quando amplia a solidarieda­
são social; a últim a baseia-se na liberdade. N a religião de social na fraternidade dos homens; mas mesmo assim ele
a está enganando, pois as sociedades cujo projeto foi prefigu-
dinâm ica, não cedemos a um a pressão, mas a um a a tra­
rado na estrutura original da alma hum an a... exigiam que o
ção — e por tal atração rompem os todos os laços sociais
grupo fosse intimamente unido, mas que entre grupo e grupo
anteriores com um a m oralidade estática, convencional
houvesse uma virtual hostilidade... O homem, recém-saído das
e tradicional. Não chegamos à mais alta form a de reli­
mãos da natureza, era um ser ao mesmo tempo inteligente e
gião, a um a religião da hum anidade, por etapas, a tra ­ social, sendo a sua sociabilidade concebida para encontrar seu
vés dos estágios da família e da nação. “ Devemos” , diz escopo em comunidades pequenas, e sendo sua inteligência con­
Bergson, cebida para ajudar a vida individual e em grupo. Mas a inte­
ligência, ampliando-se por seus próprios esforços, desenvolveu-
de um único salto, ser levados muito além dela e, sem ter feito se inesperadamente. Libertou os homens das restrições a que
disso a nossa meta, alcançá-la ultrapassando-a... Q uer fale­ estavam condenados pelas limitações de sua natureza. Sendo
mos a linguagem da religião ou a da filosofia, quer seja uma assim, não era impossível que alguns deles, especialmente ta­
questão de am or ou respeito, de uma moralidade diferente, lentosos, reabrissem o que estava fechado e fizessem, pelo me­
outro tipo de obrigação sobrevem, acima e além da pressão nos para si mesmos, aquilo que a natureza não podia ter feito
social... Enquanto a obrigação natural é um a pressão ou for­ pela hum anidade- 8 .
ça propulsiva, uma moralidade completa e perfeita tem o efeito
de um apelo... Não é por um processo de expansão do eu que A ética de Bergson é conseqüência e corolário de
podemos passar do primeiro estado para o segundo... Q uan­ sua metafísica. A tarefa que ele se impôs foi a de inter-
148 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 149

pretar a vida ética do hom em nos termos de seu sistema Se aceitamos essa tese, não existe qualquer processo con­
metafísico. Em sua filosofia da natureza, o m undo o r­ tínuo que possa levar de um a form a para outra. E um a
gânico fora descrito como resultado de um a luta entre crise repentina do pensam ento e um a revolução do sen­
duas forças contrárias. Por um lado encontram os o me- tim ento que m arca a passagem da religião estática para
canicismo da m atéria, por outro o poder criativo e cons­ a dinâm ica.
trutivo do élan vital. O pêndulo da vida oscila sem ces­ No entanto, é pouco provável que um estudo mais
sar de um pólo a outro. A inércia da m atéria resiste à atento da história da religião corrobore essa concepção.
energia do impulso vital. Segundo Bergson, a vida éti­ De um ponto de vista histórico, é difícil sustentar a dis­
ca do hom em reflete a m esm a disputa metafísica entre tinção clara entre as duas fontes da religião e da m orali­
um princípio ativo e um princípio passivo. A vida so­ dade. Com certeza, Bergson não pretendia apoiar sua
cial repete e espelha o processo universal que encontra­ teoria ética e religiosa em razões m eram ente metafísi­
mos na vida orgânica. Está dividida entre duas forças cas. Ele sempre se baseia na evidência em pírica contida
opostas. U m a tende a m anter e tornar eternos o p re­ nas obras dos sociólogos e dos antropólogos. C om efei­
sente estado de coisas; a outra lu ta por novas formas de to, há m uito que entre os estudiosos da antropologia era
vida hum ana que nunca existiram antes. A prim eira ten­ corrente a opinião de que, nas condições da vida social
dência é característica da religião estática, a segunda da primitiva, não podemos falar de qualquer atividade por
religião dinâm ica. As duas nunca podem ser reduzidas parte do indivíduo. Na sociedade primitiva — presumia-
ao mesmo denom inador. Só por um salto repentino a se — o indivíduo ainda não ingressara na arena. Os sen­
hum anidade pode passar de um ponto a outro; da pas­ tim entos, pensamentos e atos de um hom em não proce­
sividade à atividade, da pressão social a um a vida ética diam dele mesmo; eram impostos a ele por um a força
individual e dependente de si mesma. externa. A vida prim itiva é caracterizada por um me-
Não nego que exista um a diferença fundam ental canicismo rígido, uniforme e inexorável. A tradição e
entre as duas formas de religião descritas por Bergson o costume eram obedecidos de m aneira submissa e in­
como as da “ pressão” e do “ apelo” . Seu livro faz um a consciente por simples inércia m ental, ou por força de
análise muito clara e impressionante dessas duas formas. um instinto grupai difuso. Essa submissão autom ática
No entanto, um sistema metafísico não pode contentar- de cada m em bro da tribo às suas leis foi por m uito tem ­
se com um a simples descrição analítica dos fenômenos, po vista como o axioma fundam ental subjacente à in­
deve tentar rastreá-los até suas causas básicas. Bergson, vestigação da ordem prim itiva e da adesão às regras. A
portanto, teve de derivar os dois tipos de vida religiosa pesquisa antropológica recente fez muito para abalar esse
e m oral de duas forças divergentes: um a que rege a vi­ dogm a sobre o completo mecanicismo e autom atism o
da social prim itiva, outra que rompe as cadeias da so­ da vida social primitiva. Segundo Malinowski, esse dog­
ciedade p ara criar um novo ideal de vida pessoal livre. m a colocou a realidade da vida nativa em um a perspec-
0 HOMEM E A CULTURA 151
150 ENSAIO SOBRE O HOMEM

dos homens, um estágio para o qual nossos antropólogos e ex­


tiva falsa. Tal como ele assinala, o selvagem tem sem
ploradores encontraram paralelos em todas as partes do mun­
dúvida o m aior respeito por seus costumes e tradições
do... Em certos aspectos caracteristicamente grego, em outros
tribais como tais; mas a força do costume e da tradição
tão típico de estágios parecidos do pensamento em outras par­
não é a única na vida selvagem. M esm o em níveis bem
tes que ficamos tentados a considerá-lo como o começo nor­
inferiores da cultura hum ana h á vestígios de um a força mal de toda religião, ou quase como a matéria bruta normal
diferente 2 9 . U m a vida de p ura pressão, um a vida hu­ de que é feita a religião3 1 .
m ana em que todas as atividades individuais são com­
pletamente suprimidas e eliminadas, parece ser mais uma Vem então o processo que no trabalho de Gilbert M u r­
idéia sociológica ou metafísica que um a realidade histó­ ray é chamado de ‘‘conquista olím pica” . Depois dessa
rica.
conquista, o hom em passou a conceber a natureza e o
N a história da cultura grega encontram os um pe­
seu lugar nela em um sentido diferente. O sentimento
ríodo em que os deuses antigos, os deuses de Hom ero
geral de solidariedade da vida cedeu o lugar a um m oti­
e Hesíodo, começam a declinar. As concepções popula­
vo novo, mais forte — ao sentido específico da indivi­
res desses deuses são vigorosamente atacadas. Surge um
dualidade do hom em . J á não havia qualquer afinidade
novo ideal religioso form ado por hom ens individuais.
natural, um a consangüinidade que liga o homem às plan­
Os grandes poetas e os grandes pensadores — Esquilo
tas ou aos animais. Em seus deuses pessoais, o hom em
e Eurípedes, Xenófanes, Heráclito, Anaxágoras — criam
começou a ver sua própria personalidade sob um a nova
novos padrões intelectuais e m orais. Q uando medidos
luz. Esse avanço é sentido com clareza no desenvolvi­
por esses padrões, os deuses homéricos perdem a auto­
mento do deus mais alto, do Zeus olímpico. Mesmo Zeus
ridade. Seu caráter antropom órfico é claram ente visto
é um deus da natureza, um deus venerado no alto das
e duram ente atacado. M as esse antropom orfism o da re­
montanhas, que controla as nuvens, a chuva, o trovão.
ligião popular grega não era, de modo algum , despro­
Mas gradualmente vai assumindo um a nova forma. Em
vido de valor e significado. A hum anização dos deuses
Ésquilo ele já se tornou a expressão dos mais altos ideais
foi um passo indispensável na evolução do pensam ento
éticos, guardião e protetor da justiça. ‘‘A religião ho-
religioso. Em muitos cultos gregos regionais encontra­
mos ainda vestígios definidos de um culto aos animais mérica” , diz M urray,
e até de um credo totemista 3 0 . “ O progresso da religião
grega” , diz Gilbert M urray, é uma etapa na auto-realização da Grécia... O mundo era con­
cebido como nem totalmente sem governo externo, nem me­
ramente sujeito às incursões de serpentes e touros mana e
acontece naturalmente em três estágios, todos importantes do
pedras-trovão e monstros, mas como governado por um cor­
ponto de vista histórico. Primeiro há a Euetheia primitiva, ou
po organizado de deuses pessoais e razoáveis, pais bondosos
Idade da Ignorância, antes que Zeus viesse perturbar a mente
152 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 153

e generosos, como o homem em mente e forma, só que indizi- vicção de que os efeitos naturais dependem , em larga
velmente superiores . m edida, de feitos hum anos. A vida da natureza depen­
de da correta distribuição e cooperação de forças hum a­
Nesse progresso do pensam ento religioso travamos nas e sobre-hum anas. Um ritual estrito e elaborado re­
conhecimento com o despertar de um a nova força e um a gula essa operação. Cada campo particular tem suas pró­
nova atividade da m ente hum ana. Filósofos e antropó­ prias regras mágicas. H á regras especiais para a agri­
logos disseram muitas vezes que a fonte verdadeira e fun­ cultura, para a caça, para a pesca. Nas sociedades tote-
dam ental da religião é o sentim ento de dependência do mistas, os diferentes clãs possuem diferentes ritos mágicos
hom em . Segundo Schleierm acher, a religião surgiu do que são seu privilégio e seu segredo. Tais ritos tornam -
“ sentimento de absoluta dependência do hom em em re­ se tanto mais necessários quanto mais difícil e perigosa
lação ao Divino” . Em The Golden Bough, J .G . Frazer ado­ for a tarefa. A m agia não é usada para propósitos p ráti­
tou essa tese. “ A religião, assim ” , diz ele, “ começan­ cos, para sustentar o hom em em suas necessidades coti­
do como um reconhecim ento ligeiro e parcial de pode­ dianas. E destinada a metas superiores, a em preendi­
res superiores ao hom em , com o aum ento do conheci­ mentos ousados e perigosos. Em sua descrição da m ito­
m ento tende a aprofundar-se em um a confissão de um a logia dos nativos das ilhas Trobriand, na Melanésia, Ma-
inteira e absoluta dependência do hom em em relação linowski relata que em todas as tarefas que não exigem
ao divino; sua velha conduta livre é substituída por um a quaisquer esforços particulares e excepcionais, coragem
atitude de abjeta prostração perante os poderes m iste­ ou resistência especial, não encontram os nenhum a m a­
riosos do invisível.” 33 M as, se essa descrição da religião gia ou mitologia. Q uando o em preendim ento é perigo­
contém qualquer verdade, apresenta-nos apenas a m e­ so e seus resultados incertos, porém, sempre ocorre um a
tade dela. Em nenhum campo da cultura hum ana um a m agia altam ente desenvolvida, e ligada a ela um a m i­
“ atitude de abjeta prostração” pode ser considerada co­ tologia. Nas empresas econômicas m enores, tais como
mo o impulso genuíno e decisivo. De um a atitude intei­ as artes e ofícios, a caça, a coleta de raízes e a colheita
ram ente passiva nenhum a energia produtiva consegue de frutos, o hom em não precisa de m agia 3 4 . E apenas
desenvolver-se. A esse respeito, mesmo a m agia deve sob um a forte tensão emocional que ele recorre aos ri­
ser considerada um passo im portante no desenvolvimen­ tos mágicos. M as é precisamente o desem penho desses
to da consciência hum ana. A fé na magia é um a das mais ritos que lhe proporciona um novo sentim ento de seus
antigas e mais notáveis expressões da nascente autocon­ próprios poderes — sua força de vontade e sua energia.
fiança do hom em . C om ela, já não se sente à m ercê de O que o hom em conquista com a m agia é a mais alta
forças naturais ou sobrenaturais. Ele começa a desem ­ concentração de todos os seus esforços, que em circuns­
penhar seu próprio papel, torna-se um ator no espetá­ tâncias comuns ficam dispersos ou incoerentes. É a téc­
culo da natureza. T oda prática mágica baseia-se n a con­ nica da própria m agia que exige essa concentração in-
154 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM
O HOMEM E A CULTURA 155
tensa. T oda arte m ágica precisa da mais alta atenção.
que, mesmo de um ponto de vista antropológico, a m a­
Se não for realizada na ordem correta e segundo as mes­ gia e a religião não podem ser agrupadas sob um título
mas regras invariáveis, ela falha em seu efeito. A este comum. Segundo ele, as duas são inteiram ente diferen­
respeito, pode-se dizer que a m agia foi a prim eira esco­ tes em origem psicológica, e tendem a metas opostas.
la pela qual o hom em prim itivo teve de passar. M esmo O fracasso e o colapso da m agia pavim entaram o cam i­
sem ser capaz de levar aos fins práticos desejados, mes­ nho para a religião. A m agia teve de cair para que a
mo que não possa satisfazer as aspirações do homem, religião pudesse ascender. “ O hom em viu que havia to­
ela lhe ensina a ter confiança em seus próprios poderes m ado por causa o que não era causa algum a, e que to­
— a ver-se como um ser que não precisa simplesmente dos os seus esforços para agir por meio dessas causas ha­
submeter-se às forças da natureza, mas que é capaz, atra­ viam sido vãos. Seus penosos labores haviam sido per­
vés da energia espiritual, de regulá-las e controlá-las. didos, sua engenhosidade curiosa havia sido desperdi­
A relação entre a m agia e a religião é um dos as­ çada sem qualquer propósito. Ele estivera puxando cor­
suntos mais obscuros e controversos. O s antropólogos dões aos quais não havia nada am arrado.” Foi perdendo
filosóficos tentaram reiteradam ente esclarecer esta ques­ a esperança n a m agia que o hom em encontrou a reli­
tão, m as suas teorias divergem am plam ente e com fre-
gião e descobriu seu verdadeiro sentido. “ Se o grande
qüência estão em flagrante oposição entre si. É natural
m undo seguia em frente sem a ajuda dele ou de seus
desejar um a definição clara que nos perm ita traçar um a companheiros, com certeza devia ser porque havia ou­
linha nítida de dem arcação entre a m agia e a religião.
tros seres, como ele, mas m uito m ais fortes, que, sem
Falando teoricam ente, estamos convencidos de que não serem vistos, dirigiam os seus rum os e causavam toda
podem significar a mesma coisa, e abomina-nos atribuir-
a variada série de eventos que até então ele acreditara
lhes um a origem comum . Pensam os n a religião como serem dependentes de sua própria m ag ia.” 36
a expressão simbólica de nossos mais altos ideais mo­
Essa distinção, porém , parece ser um tanto artifi­
rais; pensamos na m agia como um agregado grosseiro cial, de um ponto de vista sistemático e tam bém no to­
de superstições. A crença religiosa parece tornar-se m e­ cante aos fatos etnológicos. Não tem os absolutam ente
ra credulidade supersticiosa se adm itim os qualquer re­ nenhum a prova em pírica de que tenh a jam ais havido
lação com a m agia. Por outro lado, o caráter do nosso um a era da m agia que fosse seguida e substituída por
m aterial antropológico e etnográfico faz com que seja
um a era da religião 3 7 . Até a análise psicológica, n a qual
difícil separar os dois campos. As tentativas feitas nesse se baseia essa distinção entre as duas eras, é questioná­
sentido tornaram -se cada vez mais questionáveis. Pare­ vel. Frazer considera a m agia como produto de um a ati­
ce ser um dos postulados da antropologia m oderna que vidade teórica ou científica, resultado da curiosidade do
há um a completa continuidade entre a m agia e a homem. Essa curiosidade incitou-o a indagar das cau­
religião 3 5 . Frazer foi um dos prim eiros a tentar provar sas das coisas; porém , como ele era incapaz de desco-
156 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 157

b rir as causas reais, teve de satisfazer-se com causas fundam ental que está na base de todos os rituais m ági­
fictícias3 8 . A religião, por outro lado, não tem qualquer cos. É verdade que parece ser perigoso e arbitrário aplicar
m eta teórica, é um a expressão de ideais éticos. M as es­ um a concepção da filosofia grega às crenças mais rudi­
sas duas posições parecem insustentáveis quando olha­ m entares da hum anidade. M as os estóicos, que cunha­
mos p ara os fatos da religião prim itiva. Desde o início, ram esse conceito da “ sim patia do T o d o ” , não haviam
a religião teve de cum prir um a função teórica e um a fun­ de modo algum superado com pletam ente as visões da
ção prática. A religião traz em si um a cosmologia e um a religião popular. Em virtude do seu princípio das noti-
antropologia; responde à questão da origem do m undo tiae communes — as noções comuns que podem ser en­
e da origem da sociedade hum ana, e deriva desta ori­ contradas em todo o m undo e em todas as épocas — eles
gem os deveres e as obrigações do hom em . Esses dois se esforçaram em reconciliar o pensam ento mítico com
aspectos não são claram ente definidos; combinam-se e o filosófico; adm itiam que até este últim o continha al­
fundem -se naquele sentim ento fundam ental que ten ta­ guns elementos de verdade. Eles próprios não hesitavam
mos descrever como o sentim ento de solidariedade da em usar o argum ento da “ sim patia do T odo ” para in­
vida. Aqui encontram os um a fonte com um para a m a­ terpretar e justificar as crenças populares. N a verdade,
gia e a religião. A m agia não é um a espécie de ciência, a doutrina estóica de um irvevp.a difuso — um sopro es­
um a pseudociência. Nem deve ser derivada do princí­ palhado por todo o universo que confira a todas as coi­
pio que foi descrito na psicanálise m oderna como a “ oni­ sas a tensão pela qual são m antidas unidas — m ostra
potência do pensam ento” (Allmacht des Gedankens)^. ainda notáveis analogias com conceitos prim itivos, com
Nem o simples desejo de saber, nem o simples desejo o m ana dos polinésios, o orenda iroquês, o wakan sioux,
de possuir e controlar a natureza podem d ar conta do o m anitu algonquino 4 1 . E claro que seria absurdo co­
fato da magia. Frazer faz um a distinção clara entre duas locar a interpretação filosófica no mesmo nível da mítico-
formas de m agia que cham a de “ m agia im itativa” e mágica. M as mesmo assim podemos encontrar para am ­
“ m agia sim pática” 4 0 . M as toda m agia é “ sim pática” bas um a raiz com um , em um a cam ada m uito profunda
em sua origem e seu significado, pois o homem não pen­ de sentimento religioso. P ara poderm os penetrar nessa
saria em estabelecer um contato mágico com a n atu re­ cam ada, não devemos tentar idear um a teoria da m a­
za se não tivesse a convicção de que existe um vínculo gia baseada nos princípios da psicologia em pírica, es­
comum que une todas as coisas — que a separação en­ pecialmente nos princípios da associação de idéias4 2 .
tre ele e os diferentes tipos de objetos naturais é, afinal Devemos abordar o problem a do ponto de vista do ri­
de contas, artificial e não real. tual mágico. Malinowski fez um a descrição bastante im ­
N a linguagem filosófica, essa convicção foi expres­ pressionante das festividades tribais dos nativos das ilhas
sada pela m áxim a estóica, au/zTráfatoi rü v ó Xcúv, que Trobriand. São sempre acompanhadas por histórias m í­
de certo modo exprime de m aneira bem concisa a crença ticas e cerimônias mágicas. D urante a estação sagrada,
158 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 159

o período de celebração da colheita, os mais velhos fa­ nita, não poderemos apreender o infinito. E ra essa difi­
zem lem brar à geração mais jovem que os espíritos de culdade e esse enigm a que tinham de ser resolvidos pe­
seus ancestrais estão prestes a retornar do m undo infe­ lo progresso do pensam ento religioso. Podem os acom ­
rior. P or algum as semanas os espíritos vêm e se estabe­ panhar esse progresso em um a direção tripla. Podemos
lecem de novo nas aldeias, encarapitados nas árvores, descrevê-lo em suas implicações psicológicas, sociológi­
sentados em plataformas altas erigidas especialmente pa­ cas e éticas. O desenvolvimento do individual, do so­
ra eles, assistindo às danças mágicas4 3 . U m rito m ági­ cial e da consciência moral tende para o mesmo ponto.
co como esse nos proporciona um a impressão clara e con­ Apresenta um a diferenciação progressiva que acaba le­
creta do verdadeiro sentido da “ m agia sim pática” e das vando a um a nova integração. As concepções da reli­
suas funções sociais e religiosas. Os homens que come­ gião prim itiva são muito m ais vagas e indeterm inadas
m oram essas festividades, que fazem as danças m ági­ que nossas próprias concepções e ideais. O m ana dos
cas, estão fundidos entre si e fundidos com todas as coi­ polinésios, tal como as concepções correspondentes que
sas da natureza. Não estão isolados; sua alegria é senti­ encontram os em outras partes do m undo, apresenta es­
da por toda a natureza, e partilhada por seus antepas­ se caráter vago e flutuante. Não tem individualidade al­
sados. O espaço e o tem po desvaneceram-se; o passado guma, subjetiva ou objetiva. E concebido como um a m a­
tornou-se o presente; a idade de ouro da hum anidade téria misteriosa comum que perm eia todas as coisas. Se­
voltou 4 4 . gundo a definição de Codrington, que foi o prim eiro a
A religião nunca teve o poder, nem a tendência, descrever o conceito de m ana, ele é “ um poder ou in­
para suprim ir e erradicar esses instintos mais profun­ fluência, não física, e de um certo m odo sobrenatural;
dos da hum anidade. T inha um a tarefa diferente a cum ­ mas apresenta-se na força física, ou em qualquer tipo
prir — usá-los e dirigi-los p ara novos canais. A crença de poder ou excelência que um hom em possua” 4 5 . Po­
na “ sim patia do T o d o ” é um dos m ais firmes funda­ de ser o atributo de um a alm a ou espírito; mas não é
m entos da própria religião. M as a sim patia religiosa é em si mesmo um espírito — não é um a concepção ani-
de um tipo diferente da sim patia m ítica e da mágica. mista, mas pré-anim ista 4 6 . E encontrado em toda e
Abre espaço para um novo sentim ento, o da individua­ qualquer coisa, independentem ente de sua natureza es­
lidade. A parentem ente, contudo, confrontamo-nos aqui pecial e de sua distinção genérica. U m a pedra que cha­
com um a das antinom ias fundam entais do pensam ento m a a atenção por seu tam anho ou sua form a singular
religioso. A individualidade parece ser um a negação, ou está repleta de m ana e exercerá poderes mágicos4 7 . Não
pelo menos um a restrição, da universalidade de senti­ está preso a nada em particular, o m ana de um hom em
m ento que é postulada pela religião: ornnis determinatio pode ser roubado dele e transferido para um novo pos­
est negatio. Ela significa u m a existência finita — e, en­ suidor. Não podemos distinguir nele nenhum aspecto
quanto não rom perm os as barreiras dessa existência fi­ individual, nenhum a identidade pessoal. U m a das pri-
160 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 161

m eiras e m ais im portantes funções de todas as religiões a orientação e a proteção das deidades funcionais, e ca­
superiores foi a de descobrir e revelar tais elementos pes­ da classe tinha seus próprios ritos e observâncias.
soais no que era cham ado de Santo, Sagrado, Divino. Neste sistema religioso vemos todos os traços típi­
M as, para atingir essa meta, o pensamento religioso cos da m ente hum ana. T rata-se de um a m ente sóbria,
teve de percorrer um longo caminho. O hom em só pô­ prática e enérgica, dotada de grande poder de concen­
de dar aos seus deuses um a form a individual definida tração. Para um rom ano, a vida significava um a vida
depois de encontrar um novo princípio de diferencia­ ativa. E ele tinha um talento especial p ara organizar es­
ção em sua própria vida e em sua vida social. Não o e n ­ sa vida ativa, regulando-a e coordenando todos os seus
controu no pensam ento abstrato, mas em seu trabalho. esforços. A expressão religiosa dessa tendência pode ser
N a verdade, foi a divisão do trabalho que introduziu um a encontrada nos deuses funcionais rom anos. Estes têm
nova era de pensam ento religioso. M uito antes do su r­ de cum prir tarefas práticas definidas. Não são produto
gimento dos deuses pessoais, vemos aqueles deuses que da imaginação ou da inspiração religiosa, mas são con­
foram cham ados de deuses funcionais. Não são ainda cebidos como regentes de atividades particulares. São,
os deuses pessoais d a religião grega, os deuses olím pi­ por assim dizer, deuses administrativos que dividiam en­
cos de H om ero. Por outro lado, não têm mais o caráter tre si as diferentes províncias da vida hum ana. Não têm
vago das concepções míticas prim itivas. São seres con­ um a personalidade definida; contudo, são claram ente
cretos, mas concretos em suas ações, não em sua apa­ diferenciados por seu ofício, e deste ofício depende a sua
rência ou existência pessoal. Logo, não têm nomes pró­ dignidade religiosa.
prios — como Zeus, H era, Apoio — mas nomes adjeti­ De um tipo diferente são os deuses que eram reve­
vais que caracterizam sua função ou atividade especial. renciados em todas os lares romanos: os deuses da cha­
Em muitos casos, estão presos a um lugar específico; são m a da lareira. Não têm origem em um a esfera especial
deuses locais, e não gerais. Se quisermos entender o ver­ e restrita da vida prática. Exprimem os sentimentos mais
dadeiro caráter desses deuses funcionais e o papel que profundos da vida familiar rom ana; são o centro sagra­
representam no desenvolvimento do pensamento religio­ do do lar romano. Esses deuses surgiram da piedade para
so, deveremos olhar para a religião rom ana. Nela, a di­ com os ancestrais. M as tam pouco eles têm um a fisio­
ferenciação alcançou o mais alto grau. N a vida de um nom ia individual. São os DiManes — os “ bons deuses”
lavrador rom ano, cada ato, por mais especializado, tem — concebidos em um sentido coletivo, não pessoal. O
seu sentido religioso específico. H avia um a classe de dei- termo “ m anes” nunca aparece no singular. Foi somente
dades — os D i Indigites — que presidia o ato da semea- em um período posterior, quando a influência grega
dura, o ato de gradear, ou de adubar; havia um Sator, tornou-se preponderante, que esses deuses assum iram
um O ccator, um Sterculinus 4 8 . Em todo o trabalho um a forma mais pessoal. Em seu estado mais prim iti­
agrícola, não havia u m único ato que não estivesse sob vo, os Di M anes são ainda um a massa indefinida de es-
162 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 163

píritos unidos por sua relação especial com a família. dência moral que criou os deuses homéricos. Os filóso­
Foram descritos como m eras potencialidades tomadas fos gregos tinham razão em queixar-se do caráter des­
em grupo em vez de isoladamente. “ Os séculos subse- ses deuses. “ Homero e Hesíodo” , diz Xenófanes, “ atri­
qüentes” , foi dito, “ saturados de filosofia grega e re­ buíram aos deuses todos os feitos que são um a vergo­
pletos de um a idéia de individualidade que faltava in­ nha e um a desgraça entre os homens: roubo, adultério,
teiram ente nos prim eiros dias de R om a, identificaram fraud e.” Contudo, essa própria carência e defeito dos
essa pobre potencialidade indistinta à alm a hum ana, e deuses pessoais gregos foi capaz de preencher a lacuna
enxergaram na questão toda um a crença na im ortali­ entre a natureza hum ana e a divina. Nos poemas ho­
d a d e .” Em Rom a, era “ a idéia da família, tão funda­ méricos não encontramos qualquer barreira definida en­
m ental na estrutura da vida rom ana, que triunfava so­ tre os dois mundos. O que o homem retrata em seus deu­
bre o túm ulo e possuía um a im ortalidade que o indiví­ ses é ele mesmo, em toda a sua variedade e multiformi-
duo não conseguia ob ter” 4 9 . dade, sua disposição m ental, seu tem peram ento e até
U m a tendência de pensam ento totalm ente diversa suas idiossincrasias. M as não é, tal como na religião ro­
parece ter prevalecido desde os prim eiros tempos na re­ m ana, o lado prático de sua natureza que o homem pro­
ligião grega. Nela tam bém encontram os vestígios dis­ jeta na deidade. Os deuses homéricos não representam
tintos de culto aos ancestrais 5 0 . A literatura clássica gre­ ideais morais, mas exprimem ideais m entais m uito ca­
ga preservou muitos desses vestígios. Esquilo e Sófocles racterísticos. Não são deidades funcionais e anônim as
descrevem os presentes — as libações de leite, as guir- que devem assistir a um a atividade especial do homem:
landas de flores, os cachos de cabelo — oferecidos na estão interessados em homens individuais, e favorecem-
tum ba de Agamenon por seus filhos. M as, sob a influên­ nos. C ada deus ou deusa tem seus favoritos, que são
cia dos poemas homéricos, todos esses aspectos arcaicos apreciados, amados e auxiliados, não com base em um a
da religião grega começaram a desaparecer. Foram eclip­ m era predileção pessoal, mas em virtude de um tipo de
sados por um a nova direção do pensam ento mítico e re­ relação m ental que liga o deus ao homem. M ortais e
ligioso. A arte grega pavim entou o cam inho para um a imortais não são a corporificação de ideais m orais, mas
nova concepção dos deuses. Tal como diz Heródoto, H o­ de talentos e tendências m entais especiais. Nos poemas
mero e Hesíodo “ deram aos deuses gregos seus nomes homéricos encontramos com freqüência expressões muito
e retrataram suas form as” . E o trabalho que fora ini­ claras e características deste novo sentim ento religioso.
ciado pela poesia grega foi completado na escultura gre­ Q uando Ulisses volta a Itaca sem saber que chegou ao
ga: mal dá para pensar no Zeus olímpico sem representá- seu país natal, Atenas aparece-lhe na form a de um jo ­
lo na form a que recebeu de Fídias. O que era negado vem pastor, e pergunta-lhe o seu nome. Ulisses, que está
à m ente ativa e prática rom ana foi realizado pela mente ansioso para manter-se incógnito, inventa imediatamente
contem plativa e artística dos gregos. Não foi um a ten­ um a história cheia de m entiras e enganos. A deusa sor-
164 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 165

ri da história, reconhecendo o que ela m esm a lhe havia cionam sempre do mesmo modo. Agem, tal como diz
conferido: C odrington, “ de todos os tipos de modos para o bem
e para o m al” 5 2 . O m ana pode ser descrito como a pri­
Sagaz deve ser e velhaco aquele que te supere em todo tipo m eira dimensão, ou dimensão existencial, do sobrena­
de astúcia, sim, mesmo que fosse um deus a te encontrar. Ho­ tural — mas não tem nada a ver com sua dimensão m o­
mem ousado, engenhoso no conselho, insaciável no engano, ral. Nele, as boas manifestações do poder sobrenatural
nem mesmo em tua própria terra, parece, deverías tu deixar- difuso estão no mesmo nível que as m alignas ou destru­
te de astúcias e histórias enganosas, às quais amas do fundo tivas 5 3 . Desde o início, a religião de Zoroastro é radi­
do teu coração. Mas vem, não falemos mais disso, sendo am­ calmente contrária a essa indiferença mítica ou a essa
bos bem versados em engenho, visto que és de longe o melhor indiferença estética que é característica do politeísmo gre­
de todos os homens no conselho e na fala, e eu entre todos go. Esta religião não é produto da im aginação m ítica
os deuses sou famosa pela sabedoria e pelo engenho... Sem­ ou estética; é a expressão de um a grande vontade m o­
pre é este o pensamento em teu peito, e logo é que não te pos­ ral pessoal. Até a natureza assume um a nova forma, pois
so deixar em teu pesar, pois és suave de fala, incisivo no juízo é vista exclusivamente no espelho da vida ética. N enhu­
e prudente 5 h m a religião pôde jam ais pensar em cortar, ou sequer
afrouxar, os laços entre o homem e a natureza. M as nas
Nas grandes religiões m onoteístas deparam os com grandes religiões éticas esse laço é feito e apertado em
um aspecto totalmente diverso do Divino. Essas religiões um novo sentido. A ligação sim pática que encontram os
são produto de forças morais; concentram-se em um úni­ na m agia e na mitologia prim itiva não é negada ou des­
co ponto, no problem a do bem e do mal. N a religião truída; mas a natureza é agora abordada do ponto de
de Zoroastro existe apenas o Ser Supremo A hura M az­ vista racional, em vez do emocional. Se a natureza con­
da, o “ sábio senhor” . Fora dele, além dele e sem ele tém um elemento divino, ele não aparece na ab u nd ân ­
nada existe. Ele é o prim eiro e o mais destacado, o ser cia da sua vida, mas na simplicidade d a sua ordem . A
mais perfeito, o soberano absoluto. Não encontram os natureza não é, como na religião politeísta, a grande e
aqui nenhum a individualização, nenhum a pluralidade benigna mãe, o regaço divino do qual toda a vida se ori­
de deuses que sejam os representantes de diferentes po­ gina. E concebida como a esfera da lei e da obediência
deres naturais ou diferentes qualidades m entais. A m i­ às leis. E só por esse fato prova a sua origem divina.
tologia primitiva é atacada e superada por um a nova for­ N a religião zoroastriana a natureza é descrita pelo con­
ça, um a força puram ente ética. Nas prim eiras concep­ ceito de Asha. O Asha é a sabedoria da natureza que re­
ções do sagrado, do sobrenatural, um a força assim é to­ flete a sabedoria de seu criador, de A hura M azda, o “ sá­
talm ente desconhecida. O m ana, o wakan ou o orenda bio senhor” . Essa ordem universal, eterna e inviolável
podem ser usados para bons ou maus propósitos — fun­ governa o m undo e determ ina cada acontecim ento iso-
164 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 165

ri da história, reconhecendo o que ela m esm a lhe havia cionam sempre do mesmo modo. Agem, tal como diz
conferido: C odrington, “ de todos os tipos de modos para o bem
e para o m al” 5 2 . O m ana pode ser descrito como a pri­
Sagaz deve ser e velhaco aquele que te supere em todo tipo m eira dimensão, ou dimensão existencial, do sobrena­
de astúcia, sim, mesmo que fosse um deus a te encontrar. Ho­ tural — mas não tem nada a ver com sua dimensão mo­
mem ousado, engenhoso no conselho, insaciável no engano, ral. Nele, as boas manifestações do poder sobrenatural
nem mesmo em tua própria terra, parece, deverías tu deixar- difuso estão no mesmo nível que as malignas ou destru­
te de astúcias e histórias enganosas, às quais amas do fundo tivas 5 3 . Desde o início, a religião de Zoroastro é radi­
do teu coração. Mas vem, não falemos mais disso, sendo am­ calmente contrária a essa indiferença m ítica ou a essa
bos bem versados em engenho, visto que és de longe o melhor indiferença estética que é característica do politeísmo gre­
de todos os homens no conselho e na fala, e eu entre todos go. Esta religião não é produto da im aginação mítica
os deuses sou famosa pela sabedoria e pelo engenho... Sem­ ou estética; é a expressão de um a grande vontade m o­
pre é este o pensamento em teu peito, e logo é que não te pos­ ral pessoal. Até a natureza assume um a nova forma, pois
so deixar em teu pesar, pois és suave de fala, incisivo no juízo
é vista exclusivamente no espelho da vida ética. N enhu­
e prudente"’ 1 .
m a religião pôde jam ais pensar em cortar, ou sequer
afrouxar, os laços entre o homem e a natureza. M as nas
Nas grandes religiões monoteístas deparam os com grandes religiões éticas esse laço é feito e apertado em
um aspecto totalmente diverso do Divino. Essas religiões um novo sentido. A ligação simpática que encontram os
são produto de forças morais; concentram-se em um úni­ na m agia e na mitologia prim itiva não é negada ou des­
co ponto, no problem a do bem e do mal. N a religião truída; mas a natureza é agora abordada do ponto de
de Zoroastro existe apenas o Ser Suprem o A hura M az­ vista racional, em vez do emocional. Se a natureza con­
da, o “ sábio senhor” . Fora dele, além dele e sem ele tém um elemento divino, ele não aparece na abu nd ân ­
nada existe. Ele é o prim eiro e o mais destacado, o ser cia da sua vida, mas na simplicidade da sua ordem . A
mais perfeito, o soberano absoluto. Não encontram os natureza não é, como na religião politeísta, a grande e
aqui nenhum a individualização, nenhum a pluralidade benigna mãe, o regaço divino do qual toda a vida se ori­
de deuses que sejam os representantes de diferentes po­ gina. E concebida como a esfera da lei e da obediência
deres naturais ou diferentes qualidades m entais. A m i­ às leis. E só por esse fato prova a sua origem divina.
tologia primitiva é atacada e superada por um a nova for­ N a religião zoroastriana a natureza é descrita pelo con­
ça, um a força puram ente ética. Nas prim eiras concep­ ceito de Asha. O Asha é a sabedoria da natureza que re­
ções do sagrado, do sobrenatural, um a força assim é to­ flete a sabedoria de seu criador, de A hura M azda, o “ sá­
talm ente desconhecida. O m ana, o wakan ou o orenda bio senhor” . Essa ordem universal, eterna e inviolável
podem ser usados p ara bons ou maus propósitos — fun­ governa o m undo e determ ina cada acontecim ento iso-
166 ENSAIO SOBRE O HOMEM
0 HOMEM E A CULTURA 167
lado: o cam inho do sol, da lua e das estrelas, o cresci­
um animal perigoso, cumpre um dever religioso; ele pre­
m ento das plantas e anim ais, o rum o dos ventos e das
para e garante a vitória final do poder do bem, do “ sá­
nuvens. N ada disso é m antido e preservado por meras
bio senhor” , contra o seu adversário demoníaco. Em
forças físicas, mas pela força do Bem. O m undo tornou-se
tudo isso sentimos um esforço heróico da hum anidade;
um grande dram a moral no qual tanto a natureza quanto
o hom em devem representar seus papéis. um esforço para livrar-se da pressão e da compulsão das
M esm o em um estágio m uito prim itivo do pensa­ forças mágicas, um novo ideal de liberdade. Pois neste
m ento mítico encontram os um a convicção de que o ho­ caso é só através da liberdade, através de um a decisão
mem, para atingir um fim desejado, deve cooperar com que dependa apenas de si mesma, que o hom em pode
a natureza e seus poderes divinos ou demoníacos. A na­ fazer contato com o divino. Por essa decisão o homem
tureza não lhe dá seus presentes sem a ativa assistência torna-se um aliado da divindade.
dele. N a religião de Zoroastro, deparam os com a mes­
m a concepção. M as aqui ela aponta para um a direção A decisão entre os dois modos de vida cabe ao indivíduo. O
inteiram ente nova. O sentido ético substituiu e superou homem é árbitro de seu destino. Tem o poder e a liberdade
o sentido mágico. T oda a vida do hom em torna-se um a para escolher entre a verdade e a falsidade, a virtude e a per­
luta ininterrupta em prol da virtude. A tríade de “ bons versidade, o bem e o mal. E responsável pela escolha moral
que faz e, consequentemente, por suas ações. Se fizer a esco­
pensam entos, boas palavras e boas ações” tem o papel
lha certa e abraçar a virtude, colherá as recompensas desta,
mais im portante nessa luta. O Divino não é mais pro­
mas, se como agente livre, escolher a perversidade, a respon­
curado ou abordado por poderes mágicos, mas pelo po­
sabilidade será dele e seu próprio daena ou ser o levará à reta­
der da virtude. A p artir desse m om ento, não há mais
liação... [No final chegará] o período em que cada indivíduo,
um único passo na vida cotidiana prática do homem que
em sua própria capacidade, abraçará e exercerá a virtude, fa­
seja considerado, em um sentido religioso e m oral, in­
zendo assim com que todo o mundo da humanidade gravite
significante ou indiferente. N ada pode ficar de fora no
para Asha... Todos... têm de contribuir para essa obra gran­
combate entre o poder divino e o demoníaco, entre Ahu- diosa. Os virtuosos que vivem em lugares e épocas diferentes
ra M azda e A ngra M ainyu. O s dois espíritos prim or­ são os membros de um único grupo virtuoso, no sentido de
diais, diz um dos textos, que se revelaram em visão co­ que são todos impelidos por um único e mesmo motivo e tra­
mo gêmeos são o M elhor e o M au. Entre os dois o sá­ balham para a causa com um ^.
bio sabia como escolher bem , e o tolo não. Todo ato,
por mais comum ou hum ilde, tem seu valor ético dis­ E esta form a de sim patia ética universal que, nas reli­
tinto e está tingido de cor ética específica. Significa or­ giões monoteístas, conquista a vitória sobre o sentimento
dem ou desordem, preservação ou destruição. O homem prim itivo de um a solidariedade natural ou m ágica da
que cultiva ou rega o solo, que planta um a árvore, m ata vida.
168 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 169

Q uando a filosofia grega abordou o problem a, di­ te social. Não podiam criar um a religião nova a partir
ficilmente poderia ter superado a grandeza e a sublim i­ do nada. Os grandes reformistas religiosos individuais
dade desses pensam entos religiosos. A filosofia grega, não viviam no espaço vazio, no espaço de suas próprias
no período helenista posterior, reteve grande núm ero de experiência e inspiração religiosas. Mil vínculos ligavam-
motivos religiosos e até míticos. N a filosofia estóica, é nos ao seu am biente social. Não é por um a espécie de
central o conceito de um a providência universal (trpó revolta que a hum anidade passa da obrigação m oral à
rota) que conduz o m undo à sua m eta. E mesmo neste liberdade religiosa. Até Bergson admite que, em termos
caso o hom em , como ser consciente e racional, tem de históricos, o espírito místico que ele julga ser o espírito
trabalhar a favor da providência. O universo é um a gran­ da verdadeira religião não é um a ru p tu ra de continui­
de sociedade de Deus e dos hom ens, “ urbs Dis homini- dade. O misticismo nos revela, ou antes nos revelaria
busque com m unis” 5 5 . “ V iver com os Deuses’’ (ovffji' se assim quiséssemos, uma perspectiva maravilhosa; mas
üfois) significa trabalh ar com eles. O hom em não é um não querem os isso, e na m aior parte dos casos não po­
simples espectador; ele é, segundo a sua m edida, o cria­ demos querer isso; a tensão nos abateria. Ficamos, por­
dor da ordem m undial. O sábio é um sacerdote e m i­ tanto, com um a religião mista. Encontram os na histó­
nistro dos deuses 5 6 . Aqui tam bém encontram os a con­ ria transições interpostas entre duas coisas que são na
cepção da “ sim patia do T o d o ” , mas agora entendida verdade radicalm ente distintas em sua natureza e que,
e interpretada em um novo sentido ético. à prim eira vista, nem parecem m erecer o mesmo no­
T udo isso só podia ser alcançado por um desenvol­ m e 5 7 . P ara o filósofo, para o metafísico, essas duas for­
vimento lento e contínuo do pensamento e do sentimento mas de religião serão sempre antagônicas. Não pode
religioso. A transição das formas mais rudimentares para derivá-las da mesm a fonte, pois são expressões de for­
as formas mais altas e superiores não podia ser feita por ças totalm ente diversas. U m a baseia-se inteiram ente no
um salto repentino. Bergson declara que sem um salto instinto; foi o instinto de vida que criou a função de fa­
assim a hum anidade não teria sido capaz de encontrar zer mitos. M as a religião não nasce do instinto, nem da
um a religião puram ente dinâm ica — um a religião que inteligência ou da razão. Ela precisa de um ímpeto no­
não se baseia na pressão social e na obrigação, mas na vo, um tipo especial de intuição e inspiração.
liberdade. M as seria difícil dizer que sua própria tese
metafísica da “ evolução criativa” favorece essa visão. Para chegar à própria essência da religião e entender a histó­
Sem os grandes espíritos criativos, sem os profetas que ria da humanidade, é preciso passar imediatamente da reli­
se sentiam inspirados pelo poder de Deus e destinados gião estática e exterior para a religião dinâmica e interior. A
a revelar a vontade dele, a religião não teria encontra­ primeira foi concebida para afastar os perigos aos quais a in­
do o seu caminho. M as nem mesmo esses poderes indi­ teligência poderia expor o homem; era infra-intelectual... Mais
viduais poderíam m udar seu caráter fundam entalm en­ tarde, e por um esforço que facilmente poderia nunca ter sido
í 70 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 171

feito, o homem libertou-se desse movimento seu em torno de que de fato significa a evolução religiosa. Não significa
seu próprio eixo. Mergulhou novamente na corrente da evo­ a destruição completa das prim eiras e mais fundam en­
lução, empurrando-a ao mesmo tempo para a frente. Nela es­ tais características do pensam ento mítico. Se os gran­
tava a religião dinâmica, sem dúvida associada à intelectuali­ des reformadores religiosos individuais quisessem ser ou­
dade superior, mas distinta dela. A primeira forma de religião vidos e entendidos, tinham de falar não só a linguagem
fora infra-intelectual... a segunda era supra-intelectual5 0 . de Deus, mas também a do homem. Mas os grandes pro­
fetas de Israel já não falavam apenas para suas próprias
Contudo, um a distinção dialética de tal clareza entre nações. O Deus deles era um deus de Justiça e Sua m en­
três poderes fundam entais — instinto, inteligência e in­ sagem não se restringia a um grupo especial. O s profe­
tuição mística — está em desacordo com os fatos da his­ tas previram um novo céu e um a nova terra. O que é
tória da religião. Até mesmo a tese de Frazer, segundo realm ente novo não é o conteúdo dessa religião proféti­
a qual a hum anidade começou por um a era da m agia ca, mas sua tendência interna, seu sentido ético. Um
que mais tarde foi seguida e substituída por u m a era da dos maiores milagres que todas as religiões superiores
religião, é insustentável. A m agia perdeu terreno por precisaram realizar foi desenvolver seu novo caráter, sua
um processo m uito lento. Q uando olhamos para a his­ interpretação ética e religiosa da vida, a partir da tosca
tória de nossa própria civilização européia, vemos que m atéria-prim a das mais primitivas concepções, das mais
mesmo nos estágios mais avançados, nos estágios de um a grosseiras superstições.
cultura intelectual altam ente desenvolvida e m uito re­ Talvez não haja melhor exemplo dessa transform a­
quintada, a crença na m agia não foi abalada com serie­ ção que o desenvolvimento do conceito de tabu. H á m ui­
dade. A própria religião podia, até certo ponto, adm itir tos estágios da civilização hum ana em que não encon­
essa crença. Ela proibia e condenava algum as práticas tramos qualquer idéia distinta de poderes divinos e ne­
mágicas, mas havia um a esfera de magia “ branca” que nhum anim ism o definido — nenhum a teoria da alma
era considerada inócua. Os pensadores do Renascimento humana. M as parece não haver nenhum a sociedade, por
— Pom ponazzi, C ardano, C am panella, Bruno, Giam- mais prim itiva, que não tenha desenvolvido um siste­
battista delia Porta, Paracelso — apresentaram suas pró­ m a de tabu — e na m aioria dos casos esse sistema era
prias teorias filosóficas científicas da arte mágica. Um um a estrutura bastante complexa. Nas ilhas polinésias
dos pensadores mais nobres e mais devotos do R enasci­ das quais deriva o term o “ tab u ” , o nome refere todo
m ento, Giovanni Pico delia M irandola, estava conven­ o sistema de religião 5 9 . E vemos m uitas sociedades p ri­
cido de que a m agia e a religião estão ligadas um a à ou ­ mitivas em que o único delito conhecido é a violação do
tra por laços indissolúveis. “ Nulla est scientia” , diz ele, tabu 6 0 . Nos estágios elementares da civilização, o ter­
“ quae nos magis certificet de divinitate C hristi quam mo cobre todo o campo da religião e da moralidade. Nes­
M agia et C abala. ’ ’ Podemos inferir desses exemplos o te sentido, muitos historiadores da religião atribuíram
172 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 173

um valor bem alto ao sistema de tabu. A despeito de homem que comete um crime torna-se tabu, mas o mes­
seus óbvios defeitos, ele foi declarado como o prim eiro mo acontece com um a m ulher em trabalho de parto. A
e indispensável germ e de um a vida cultural superior; “ im pureza infecciosa” estende-se para todas as esferas
chegou-se a dizer que ele foi um princípio apriorístico da vida. Um toque do Divino é tão perigoso quanto o
do pensam ento m oral e religioso. Jevons descreve o ta­ toque de coisas fisicamente im puras; o sagrado e o abo­
bu como um a espécie de im perativo categórico, o único minável estão no mesmo nível. A “ infecção de santida­
que o hom em prim itivo conhecia, e que lhe era acessí­ d e” tem o mesmo resultado que a “ poluição de im pu­
vel. O sentim ento de que há certas coisas que “ não de­ reza” . Aquele que toca um cadáver torna-se im puro;
vem ser feitas” , diz ele, é puram ente formal e sem con­ mas até um a criança recém-nascida é tem ida do m es­
teúdo. A essência do tabu é que sem recurso à experiência mo modo. Entre alguns povos, no dia do nascim ento
ele pronuncia a priori que certas coisas são perigosas. as crianças eram tão tabus que sequer podiam ser pos­
tas no chão. E, em virtude do princípio da transmissi-
Essas coisas, na verdade, em um certo sentido não eram peri­ bilidade da infecção original, não há limite possível pa­
gosas, e a crença na sua periculosidade era irracional. No en­ ra a propagação. “ Uma única coisa tabu” , foi dito, “ po­
tanto, se a crença não houvesse existido, hoje não havería qual­ de infectar o universo inteiro.” 62 Nesse sistema, não há
quer moralidade, e por conseguinte nenhuma civilização. A nem som bra de responsabilidade individual. Se um ho­
crença era uma falácia... Mas essa falácia era a casca que en­ mem comete um crime não é só ele que fica marcado
cerrava e protegia uma concepção que deveria florecer e cres­ — sua família, seus amigos e toda a sua tribo trazem
cer em um fruto inestimável — a concepção de Obrigação a mesma marca. Ficam estigmatizados; partilham o mes­
Social6 ^. mo m iasma. E os mitos de purificação correspondem a
essa concepção. A ablução deve ser alcançada por meios
M as como foi possível que tal concepção se desen­ simplesmente físicos e externos. A água corrente pode
volvesse a p artir de um a convicção que, por si só, não lavar a m ancha do crime. As vezes o pecado é transferi­
tinha qualquer relação com valores éticos? Em seu sen­ do para um anim al, para um “ bode expiatório” ou p a­
tido original e literal, o tabu parece significar apenas um a ra um pássaro, que voa p ara longe com ele6 3 .
coisa que é m arcada — que não está no mesmo nível Todas as religiões superiores tiveram extrem a difi­
das outras coisas comuns, profanas e inofensivas. Está culdade para superar esse sistema de um tabuísmo muito
rodeada por um a atm osfera de tem or e perigo. Tal pe­ primitivo, mas depois de grandes esforços elas consegui­
rigo foi com freqüência descrito como sendo sobrenatu­ ram realizar essa tarefa. Para tal, precisaram do mes­
ral, mas de modo algum é m oral. Se é diferenciado das mo processo de discriminação e individualização que ten­
outras coisas, essa diferenciação não significa um a dis­ tamos descrever acima. O prim eiro passo necessário foi
crim inação m oral, e não implica um juízo m oral. Um encontrar um a linha de demarcação que separasse a es-
174 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 175

fera sagrada da esfera do im puro ou do fantástico. Não atreve a rejeitar o tabu, pois com um ataque a essa esfe­
pode haver dúvida de que todas as religiões semíticas, ra sagrada ela se arriscaria a um a perda em seu próprio
quando apareceram , baseavam-se em um complicadís­ terreno. M as ela começa por introduzir um novo ele­
simo sistema de tabus. Em sua investigação da religião m ento. “ O fato de todos os semitas terem regras de im ­
dos semitas, W . R obertson-Sm ith declara que, em sua pureza e regras de santidade” , diz Robertson-Sm ith,
origem, as prim eiras regras semíticas de santidade e im ­
pureza não se distinguiam dos tabus selvagens. M esm o de que o limite entre as duas seja muitas vezes vago, e que
nas religiões baseadas nos mais puros motivos éticos tanto as primeiras como as segundas apresentem a mais sur­
conservam-se ainda m uitos aspectos que apontam para preendente concordância em questões de detalhe com os tabus
um estágio anterior de pensamento religioso, em que pu­ selvagens, não deixa qualquer dúvida razoável quanto à ori­
reza e im pureza eram entendidas em um sentido pu ra­ gem e às relações fundamentais da idéia de santidade. Por ou­
mente físico. A religião de Zoroastro, por exemplo, con­ tro lado, o fato de que os semitas... distinguem entre o santo
tém prescrições rigorosíssimas contra a poluição dos ele­ e o impuro marca um avanço real em relação à selvageria. To­
m entos físicos. Sujar o elem ento puro do fogo pelo con­ dos os tabus são inspirados pelo assombro do sobrenatural, mas
tato de um cadáver ou qualquer outra coisa im pura é há uma grande diferença moral entre as precauções contra a
invasão de poderes hostis misteriosos e as precauções basea­
considerado pecado m ortal. E crime até mesmo levar
das no respeito às prerrogativas de um deus amistoso. A pri­
fogo para um a casa em que m orreu um hom em , por no­
meira pertence ao campo da superstição mágica... o qual, ba­
ve noites no inverno e um mês no verão 6 4 . M esmo pa­
seado apenas no medo, funciona só como uma barreira ao pro­
ra as religiões superiores e ra impossível ignorar ou re­
gresso e um impedimento para o uso livre da natureza pela
prim ir todas essas regras e esses ritos purificadores. O energia e industriosidade humanas. Mas as restrições à liber­
que podia ser alterado e o que teve de ser alterado ao dade de ação individual que são devidas ao respeito por um
longo do progresso do pensam ento religioso não foram poder conhecido e amistoso aliado do homem, por mais tri­
os próprios tabus, mas os motivos que estavam por trás viais ou absurdas que nos possam parecer em seus detalhes,
deles. No sistema original, esses motivos eram totalmente trazem em si princípios germinantes de progresso social e or­
irrelevantes. Além da região das nossas coisas comuns dem moral6 6 .
e familiares há outra, repleta de poderes e perigos des­
conhecidos. U m a coisa que pertença a esse campo fica Para desenvolver esses princípios, era im perativo
m arcada, mas é apenas a distinção em si, e não a dire­ fazer um a distinção clara entre a violação subjetiva e a
ção desta, que lhe confere a sua m arca especial. Ela po­ objetiva de um a lei religiosa. Tal distinção é inteiramente
de ser tabu por sua superioridade ou por sua inferiori­ estranha ao sistema primitivo de tabus. Neste, o que in­
dade, por sua virtude ou por seu vício, por sua excelên­ teressa é a própria ação, e não o seu motivo. O perigo
cia ou por sua depravação. No início, a religião não se de tornar-se tabu é um perigo físico. Está inteiram ente
176 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 177

fora do alcance dos nossos poderes morais. O efeito é olharmos para o desenvolvimento do judaísmo, veremos
o mesmo no caso de um ato involuntário ou voluntário. como foi completa e decisiva essa mudança de sentido.
A infecção é inteiramente impessoal, e transmitida de Nos livros proféticos do Velho Testamento encontramos
modo apenas passivo. Falando de maneira geral, o sen­ uma direção inteiramente nova de pensamento e senti­
tido do tabu pode ser descrito como uma espécie de No- mento. O ideal de pureza significa algo totalmente di­
li me tangere — é o intocável, uma coisa que não pode ferente de todas as concepções míticas precedentes. Pro­
ser abordada com ligeireza. O modo ou a intenção da curar por pureza ou impureza em um objeto, em uma
abordagem não conta. Um tabu pode ser transmitido coisa material, passou a ser impossível. Mesmo as ações
não só pelo toque, mas também pela audição ou pela humanas, como tais, deixaram de ser vistas como pu­
visão. E as conseqüências são as mesmas, não impor­ ras ou impuras. A única pureza que tem significado e
tando se eu olho deliberadamente para um objeto tabu dignidade do ponto de vista da religião é a pureza do
ou se o vislumbro de maneira acidental e involuntária. coração.
Ser visto por uma pessoa tabu, por um sacerdote ou rei, E com essa primeira discriminação somos levados
é tão perigoso quanto olhar para ela. a outra que não é menos importante. O sistema de ta­
bus impõe ao homem inúmeros deveres e obrigações.
... a ação do tabu é sempre mecânica; o contato com o objeto Mas todos esses deveres têm um caráter comum. São
tabu comunica a sua infecção com tanta certeza quanto o con­ inteiramente negativos; não incluem qualquer ideal po­
tato com a água comunica umidade, ou com uma corrente elé­ sitivo. Algumas coisas devem ser evitadas; é preciso
trica comunica um choque elétrico. As intenções daquele que abster-se de algumas ações. O que vemos aqui são ini­
viola um tabu não têm qualquer efeito sobre a ação do tabu; bições e proibições, e não exigências morais ou religio­
pode tocar por ignorância, ou para benefício da pessoa toca­ sas. O que domina o sistema de tabus é o medo, e este
da, mas torna-se tabu com tanta certeza quanto se o seu moti­ só sabe proibir, não sabe dirigir. Previne contra o peri­
vo fosse irreverente, ou hostil a sua ação. A disposição das pes­ go, mas não pode suscitar uma nova energia ativa ou
soas sagradas, do Mikado, do chefe polinésio, da sacerdotisa moral no homem. Quanto mais desenvolvido o sistema
de Artemis Hymnia, tampouco modifica a ação do tabu; o to­ de tabus, mais ele ameaça congelar a vida do homem
que ou o olhar delas é igualmente fatal para amigos e inimi­ em uma completa passividade. Ele não pode comer ou
gos, para a vida das plantas ou dos homens. Menos ainda in­ beber, não pode ficar parado, nem caminhar. Até a fa­
teressa a moralidade do violador do tabu, a penalidade cai co­ la torna-se preocupante; a cada palavra o homem é amea­
mo chuva sobre os justos e os injustos*’®. çado por perigos desconhecidos. Na Polinésia não é ape­
nas proibido pronunciar o nome de um chefe ou de um
Mas aqui começa aquele lento processo que tentamos morto; até as outras palavras em que esse nome apare­
designar como uma “ mudança de sentido’’ religiosa. Se ce não podem ser usadas em conversas comuns. Foi nisso
178 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 179

que a religião, em seu progresso, encontrou uma nova compensação descobrem um sentido mais profundo de
tarefa. Mas o problema que teve de enfrentar era extre­ obrigação religiosa, que em vez de ser uma restrição ou
mamente difícil, e de certo modo parecia insolúvel. Em compulsão é a expressão de um novo ideal positivo de
que pesem todos os seus óbvios defeitos, o sistema de liberdade humana.
tabus era o único sistema de restrição e obrigação social
descoberto pelo homem. Era a pedra fundamental de
toda a ordem social. Não havia nenhuma parte do sis­
tema social que não fosse regulada por tabus especiais.
A relação entre soberanos e súditos, a vida política, a
vida sexual e a vida familiar não possuíam nenhum ou­
tro vínculo, nem nada mais sagrado. O mesmo vale pa­
ra toda a vida econômica. Até mesmo a propriedade pa­
rece ser, em sua origem, uma instituição tabu. O pri­
meiro modo de tomar posse de uma coisa ou pessoa, ocu­
par um pedaço de terreno ou casar-se com uma mulher
foi marcá-los com um sinal de tabu. Era impossível pa­
ra a religião abolir esse complexo sistema de interdições.
Suprimi-lo teria significado uma total anarquia. No en­
tanto, os grandes mestres religiosos da humanidade en­
contraram um novo impulso pelo qual, a partir de en­
tão, toda a vida do homem foi levada em uma nova di­
reção. Descobriram em si mesmos um poder positivo,
não de inibição, mas de inspiração e aspiração. Trans­
formaram a obediência passiva em um sentimento reli­
gioso ativo. O sistema de tabus ameaça fazer da vida
do homem uma carga que no fim se torna insuportável.
Toda a existência do homem, física e moral, fica esma­
gada pela pressão contínua desse sistema. È aqui que
a religião intervém. Todas as religiões éticas superiores
— a religião dos profetas de Israel, o zoroastrismo, o
cristianismo — propuseram-se uma tarefa comum. Elas
aliviam o peso intolerável do sistema de tabus, mas em
C A P IT U L O V III

A LINGUAGEM

A linguagem e o mito são parentes próximos. Nos pri­


meiros estágios da cultura hum ana, sua relação é tão ín­
tim a e sua cooperação tão óbvia que é quase impossível
separar um do outro. São dois brotos diferentes de um a
única e mesma raiz. Sempre que encontramos o homem,
vemo-lo em possessão da faculdade da fala e sob a in­
fluência da função de fazer mitos. Logo, para um a an­
tropologia filosófica, é tentador colocar essas duas carac­
terísticas especificamente hum anas sob um mesmo títu­
lo. Tentativas nesse sentido foram feitas com freqüên-
cia. F. M ax M üller desenvolveu um a teoria curiosa, na
qual o mito era explicado como um simples subproduto
da linguagem. Ele considerava o mito como um a espé­
cie de doença da mente hum ana, cujas causas devem ser
procuradas na faculdade da fala. A linguagem, por sua
própria natureza e essência, é metafórica. Incapaz de des­
crever as coisas diretam ente, ela recorre a modos indire-
182 0 HOMEM E A CULTURA 183
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

tos de descrição, a termos ambíguos e equívocos. É a assim dizer, irmãos gêmeos. Ambos baseiam-se em uma
esta ambigüidade inerente à linguagem que o mito, se­ experiência muito geral e muito primitiva da humani­
gundo Max Müller, deve a sua origem, e na qual sem­ dade, uma experiência de natureza antes social que fí­
sica. Muito antes de aprender a falar, a criança já des­
pre encontrou sua nutrição mental. “ A questão da mi­
tologia” , diz Müller, cobriu outros meios mais simples de se comunicar com
as pessoas. Os gritos de desconforto, dor e fome, medo
tornou-se de fato u m a questão de psicologia, e, como a nossa
e susto que encontramos em todo o mundo orgânico co­
m ente torna-se objetiva p a ra nós principalm ente através da
meçam a assumir uma nova forma. Deixam de ser rea­
linguagem , tornou-se um a questão da C iência d a Linguagem .
ções instintivas simples, pois são empregados de maneira
Isso explica por q u e ... cham ei [o mito] de D oença d a L ingu a­ mais consciente e deliberada. Quando é deixada sozi­
gem em vez de do P e n sam en to ... A linguagem e o pensam en­ nha, a criança exige por sons mais ou menos articula­
to são inseparáveis, e. .. u m a doença da linguagem é po rtan to dos a presença da babá ou da mãe, e percebe que essas
a m esm a coisa que u m a doença do p en sam en to... R epresen­ exigências surtem o efeito desejado. O homem primiti­
ta r o deus suprem o com etendo todo tipo de crim e, sendo e n ­ vo transfere essa primeira experiência social elementar
ganado pelos hom ens, ficando irado com sua esposa e violen­ para a totalidade da natureza. Para ele, natureza e so­
to com seus filhos, é com certeza prova de u m a doença, de ciedade não estão apenas interligadas pelos mais fortes
u m a condição incom um de pensam ento, ou, p a ra falar mais vínculos; formam um todo coerente e indistinguível. Ne­
claram ente, de verdadeira lo u cu ra... E um caso de patologia nhuma linha clara de demarcação separa os dois domí­
m itológica... nios. A própria natureza não passa de uma grande so­
A linguagem antiga é um instrum ento difícil de m an ip u ­ ciedade — a sociedade da vida. A partir desse ponto de
lar, em especial com propósitos religiosos. N a linguagem h u ­
vista, podemos entender facilmente o uso e a função es­
m an a, é impossível abstrair idéias a não ser p or m etáforas,
pecífica da palavra mágica. A crença na magia está ba­
e não é exagero dizer que todo o dicionário d a religião antiga
seada em uma profunda convicção da solidariedade da
é feito de m etáfo ras... Eis aqui um a fonte constante de m al­
vida2 . Para a mente primitiva o poder social da pala­
entendidos, m uitos dos quais conservaram seu lug ar n a reli­
gião e n a m itologia do m undo antig o 1 . vra, experimentado em inúmeras ocasiões, torna-se uma
força natural, e até sobrenatural. O homem primitivo
Considerar, porém, uma atividade humana funda­ sente-se rodeado por todo tipo de perigos visíveis e in­
mental como uma mera monstruosidade, uma espécie visíveis. Não pode ter esperanças de superar esses pe­
de doença mental, dificilmente pode passar por uma in­ rigos por meios meramente físicos. Para ele, o mundo
terpretação adequada dessa atividade. Não precisamos não é uma coisa morta ou muda; ele pode ouvir e en­
de teorias estranhas e forçadas como essa para ver que tender. Logo, se os poderes da natureza forem convo­
para a mente primitiva o mito e a linguagem são, por cados da maneira correta, não poderão negar-se a aju-
184 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 185

dar. N ada resiste à palavra m ágica, carmina vel coelo pos- Essa transição ocorreu nos prim órdios da filosofia
sunt deducere lunam. grega. Heráclito pertence ainda àquela classe de pensa­
Q uando o homem começou a perceber que essa con­ dores gregos a que a Metafísica de Aristóteles se refere
fiança era vã — que a natureza era inexorável não como os “ antigos fisiologistas” (d apxoãoi <pvocó\oyoí).
porque relutasse em atender às exigências dele, mas por­ Todo o seu interesse concentra-se no m undo fenom e­
que não entendia a linguagem que ele falava — a des­ nal. Ele não admite que acima do m undo fenomenal,
coberta deve ter sido um choque. Nessa altura, ele teve o m undo do “ devir” , exista um a esfera superior, um a
de enfrentar um novo problem a que m arcou um a vira­ ordem ideal ou eterna de puro “ ser” . M as não se con­
da e um a crise em sua vida intelectual e m oral. A partir tenta com o simples fato da m udança; ele busca o princí­
desse momento, o homem deve ter descoberto em si mes­ pio da m udança. Segundo Heráclito, esse princípio não
mo um a profunda solidão, ficando sujeito a um a sensa­ pode ser encontrado em um a coisa m aterial. Não é no
ção de total abandono e de absoluta desesperança. Difi­ m undo m aterial, mas no hum ano, que está a chave p a ­
cilmente ele teria superado isso se não tivesse desenvol­ ra um a interpretação correta da ordem cósmica. Neste
vido um a nova força espiritual, que barrou o caminho m undo humano, a faculdade da fala ocupa um lugar cen­
da magia, mas ao mesmo tempo abriu outra estrada mais tral. Portanto, precisamos entender o que a fala signifi­
promissora. T oda esperança de subjugar a natureza me­ ca para entenderm os o “ significado” do universo. Se
diante a palavra m ágica fora frustrada. M as, como re­ deixarmos de encontrar essa abordagem — a aborda­
sultado, o hom em começou a ver a relação entre a lin­ gem pelo meio da linguagem em vez de pelos fenôm e­
guagem e a realidade sob um a nova luz. A função m á­ nos físicos — não enxergaremos a porta para a filoso­
gica da palavra foi eclipsada e substituída por sua fun­ fia. Até no pensam ento de Heráclito a palavra, o L o­
ção semântica. A palavra deixa de ser dotada de pode­ gos, não é um fenômeno m eram ente antropológico. Ela
res misteriosos, não tem mais um a influência física ou não está confinada aos estreitos limites de nosso m undo
sobrenatural direta. Não pode m udar a natureza das coi­ hum ano, pois possui a verdade cósmica universal. M as
sas e não pode forçar a vontade dos deuses ou dem ô­ em vez de ser um poder mágico a palavra é entendida
nios. Nem por isso passa a não ter sentido ou poder. em sua função semântica e simbólica. “ Não dês ouvi­
Não é simplesmente flatus voeis, um mero sopro de ar. dos a m im ” , escreve Heráclito, “ mas à Palavra, e con­
C ontudo, o aspecto decisivo não é o seu caráter físico, fessa que todas as coisas são u m a .”
mas o lógico. Fisicamente a palavra pode ser declarada O pensamento grego primitivo passou assim de um a
im potente, mas logicamente ela é elevada a um a posi­ filosofia da natureza para um a filosofia da linguagem .
ção mais alta, na verdade a mais alta de todas. O Logos M as nesta ele deparou com novas e graves dificuldades.
torna-se o princípio do universo e o prim eiro princípio É possível que não haja problem a mais desconcertante
do conhecimento hum ano. e controvertido que o do “ significado do significado” 3 .
186 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 187
M esm o nos nossos dias, lingüistas, psicólogos e filóso­ ciai entre as duas. A ligação entre o símbolo e seu obje­
fos sustentam opiniões amplamente divergentes sobre esse to deve ser natural, e não simplesmente convencional.
assunto. A filosofia antiga não podia enfrentar direta­ Sem essa ligação natural, um a palavra da linguagem hu­
m ente esse intricado problem a em todos os seus aspec­ m ana não poderia cum prir sua tarefa; tornar-se-ia inin­
tos. Podia apenas dar um a solução tentativa. Essa solu­ teligível. Se adm itirm os esse pressuposto, que tem sua
ção baseava-se em um princípio que tinha aceitação ge­ origem mais em um a teoria geral do conhecimento que
ral no pensam ento grego prim itivo, e que parecia estar em um a teoria da linguagem, estarem os im ediatam en­
firm em ente estabelecido. Todas as diferentes escolas — te diante de um a doutrina onom atopéica. Só essa dou­
tanto os fisiologistas como os dialéticos — partiam do trina parece capaz de lançar um a ponte entre os nomes
pressuposto de que sem um a identidade entre o sujeito e as coisas. Por outro lado, essa nossa ponte ameaça ruir
que conhece e a realidade conhecida o fato do conheci­ em nossa prim eira tentativa de usá-la. Para Platão, bas­
m ento seria inexplicável. O idealismo e o realismo, em ­ tou desenvolver a tese onom atopéica em todas as suas
bora diferissem na aplicação desse princípio, concorda­ conseqüências p ara poder refutá-la. No diálogo platô­
vam no reconhecimento de sua verdade. Parmênides de­ nico Kratylus, Sócrates aceita a tese à sua m aneira irôni­
clarou que não podemos separar o ser do pensam ento, ca. M as essa aprovação pretende apenas destruí-la por
pois são um a única e m esm a coisa. O s filósofos da n a tu ­ seu próprio absurdo inerente. O relato que Platão faz
reza entendiam e interpretavam essa identidade em um da teoria de que toda a linguagem tem origem na im i­
sentido estritam ente m aterial. Q uando analisamos a na­ tação de sons term ina em farsa e caricatura. M esm o as­
tureza do hom em encontram os a mesm a combinação de sim, a tese onom atopéica predom inou por m uitos sécu­
elementos que ocorre por toda a parte no m undo físico. los. Nem mesmo na literatura recente ela está totalmente
O fato de o microcosmo ser um a exata contrapartida do obliterada, em bora não apareça mais nas mesmas for­
macrocosmo torna possível o conhecimento deste últi­ mas ingênuas que no Kratylus de Platão.
mo. “ Pois é com te rra ” , diz Empédocles, “ que vemos A objeção óbvia a essa tese é o fato de que, ao ana­
a T erra, e a A gua com água; pelo ar vemos o A r bri­ lisar as palavras da linguagem comum, ficamos na maior
lhante, pelo fogo o Fogo destruidor. Pelo am or é que ve­ parte das vezes perdidos p ara descobrir a pretensa se­
mos o A m or, e o Ó dio pelo ódio a tro z .” 4 m elhança entre os sons e os objetos. No entanto, essa
Aceitando essa teoria geral, qual é o “ significado dificuldade pode ser removida assinalando-se que a lin­
do significado” ? Antes de mais nada, o sentido deve ser guagem hum ana, desde o início, tem sido sujeita à m u ­
explicado em term os de ser; pois o ser, ou substância, dança e à deterioração. Logo, não podemos contentar-
é a categoria mais universal que liga e une a verdade nos com ela em seu estado presente. Devemos levar nos­
e a realidade. U m a palavra não podería ‘‘significar’’ um a sos termos de volta à origem se quisermos descobrir o
coisa se não houvesse pelo m enos um a identidade par- vínculo que os une a seus objetos. Das palavras deriva-
188 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA
189
das devemos regressar às palavras primárias; devemos do universo. Segundo o dito de Pitágoras, “ o homem
descobrir o étimo, a forma verdadeira e original, de ca­ é a medida de todas as coisas, das que são, do que são
da termo. De acordo com esse princípio, a etimologia — e das que não são, do que não são” . Procurar por
tornou-se não só o centro da lingüística, mas também qualquer explicação da linguagem no mundo das coisas
um dos princípios básicos da filosofia da linguagem. E físicas é, portanto, vão e inútil. Os sofistas haviam en­
as primeiras etimologias usadas pelos gramáticos e filó­ contrado uma abordagem nova e muito mais simples pa­
sofos gregos não sofriam de quaisquer escrúpulos teóri­ ra a fala humana. Foram os primeiros a tratar dos pro­
cos ou históricos. Nenhuma etimologia baseada em prin­ blemas lingüísticos e gramaticais de modo sistemático.
cípios científicos apareceu antes da primeira metade do Contudo, não estavam preocupados com esses proble­
século X IX 5 . Até então, tudo era possível, e as expli­ mas em um sentido apenas teórico. Uma teoria da lin­
cações mais fantásticas e bizarras eram prontamente acei­ guagem tem outras tarefas mais urgentes a cumprir. Pre­
tas. Além das etimologias positivas, havia as famosas eti­ cisa ensinar-nos a falar e a agir em nosso mundo social
mologias negativas do tipo lucus a non lucendo. Enquanto e político real. Na vida ateniense do século V, a lingua­
esses esquemas mantiveram o domínio, a teoria de uma gem tornara-se um instrumento com propósitos defini­
relação natural entre nomes e coisas pareceu ser filoso­ dos, concretos e práticos. Era a mais poderosa arma nas
ficamente justificável e defensável. grandes lutas políticas. Ninguém podia ter esperanças
Mas havia outras considerações gerais que desde de desempenhar um papel importante sem esse instru­
o início militavam contra essa teoria. Os sofistas gregos, mento. Era de vital importância usá-lo da maneira cor­
de certo modo, eram discípulos de Heráclito. Em seu reta, aprimorá-lo e afiá-lo. Para tal fim, os sofistas cria­
diálogo Theaetetus, Platão chegou a dizer que a teoria so­ ram um novo rumo de conhecimento. A retórica, e não
fistica do conhecimento não tinha qualquer direito a a gramática ou a etimologia, tornou-se a principal preo­
dizer-se original. Proclamou que era uma excrescência cupação deles. Em sua definição de sabedoria (sophia),
e um corolário da doutrina heraclitiana do ‘‘fluxo de to­ a retórica ocupa uma posição central. Todas as dispu­
das as coisas” . No entanto, havia uma diferença não- tas sobre a “ verdade” e a “ correção” (op^órijç) dos ter­
erradicável entre Heráclito e os sofistas. Para o primei­ mos e nomes tornaram-se fúteis e supérfluas. Os nomes
ro a palavra, o Logos, era um princípio metafísico uni­ não servem para expressar a natureza das coisas. Não
versal, dotado de veracidade geral, validade objetiva. têm quaisquer correlatos objetivos. Sua verdadeira ta­
Mas os sofistas não admitem mais a “ palavra divina” refa não é descrever as coisas, mas despertar emoções
que Heráclito afirmava ser a origem e o primeiro prin­ humanas; não transmitir meras idéias ou pensamentos,
cípio de todas as coisas, da ordem cósmica e moral. A mas incitar os homens a certas ações.
antropologia, e não a metafísica, tem o papel principal Vimos até aqui três aspectos da função e do valor
na teoria da linguagem. O homem tornou-se o centro da linguagem: o mitológico, o metafísico e o pragmáti-
190 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 191

co. M as todas essas explicações parecem de certo modo a tese de Dem ócrito e seus pupilos e seguidores, a se­
errar o alvo, pois deixam de notar um a das característi­ m ântica deixa de ser um a província separada; torna-se
cas m ais evidentes d a linguagem . As expressões h u m a­ um ram o da biologia e da fisiologia.
nas mais elementares não se referem a coisas físicas, nem No entanto, a teoria interjecional só pôde chegar
são sinais m eram ente arbitrários. A alternativa entre <pv à m aturidade depois que a própria biologia encontrou
aei ov e Oéaei ov não se aplica a elas. São “ n atu rais” , um a base científica. Não bastava ligar a fala h u m an a
e não “ artificiais” ; mas não têm qualquer relação com a certos fatos biológicos. Essa ligação tinha de ser ba­
a natureza dos objetos externos. Não dependem da sim­ seada em um princípio universal, princípio proporcio­
ples convenção, do costume ou do hábito; têm raízes nado pela teoria da evolução. Q uando o livro de Dar-
m uito mais profundas. São um a expressão involuntária win apareceu, foi saudado com o m aior entusiasm o não
de sentimentos, interjeições e exclamações humanas. Não só pelos cientistas e filósofos, mas tam bém pelos lingüis-
foi por acaso que essa teoria interjecional foi introduzi­ tas. August Schleicher, cujos primeiros escritos mostram-
da por um cientista natural, o m aior cientista dentre os no como um adepto e pupilo de Hegel, tornou-se um
pensadores gregos. Dem ócrito foi o prim eiro a propor convertido de D arw in 6 . O próprio Darwin havia trata­
que a fala hum ana tem origem em certos sons de cará­ do o seu tem a estritam ente do ponto de vista de um n a­
ter m eram ente emocional. M ais tarde, a mesm a posi­ turalista. M as o seu método geral era facilmente aplicá­
ção foi defendida por Epicuro e Lucrécio, baseados na vel a fenômenos lingüísticos, e até mesmo nesse campo
autoridade de Dem ócrito. Ela exerceu um a influência pareceu ter aberto um caminho inexplorado. Em The Ex-
perm anente sobre a teoria da linguagem. A inda no sé­ pression of Emotions in Man and Animais, D arw in m ostra­
culo X V III ela aparece quase n a m esm a form a em pen­ ra que os sons ou atos expressivos são ditados por certas
sadores como Vico e Rousseau. Do ponto de vista cien­ necessidades biológicas e usados segundo regras bioló­
tífico, é fácil entender as grandes vantagens dessa tese gicas definidas. Abordado desta perspectiva, o enigm a
interjecional. Nela, aparentem ente, não precisamos mais da origem da linguagem podia ser tratado de modo es­
apoiar-nos apenas na especulação. Revelamos alguns fa­ tritam ente empírico e científico. A linguagem hum ana
tos verificáveis, e estes não estão restritos à esfera h u­ deixou de ser um “ estado dentro do estado” e tornou-
m ana. A fala hum ana pode ser reduzida a um instinto se, a partir desse m om ento, um talento natural geral.
fundam ental implantado pela natureza em todas as cria­ A inda havia, porém , um a dificuldade fundam en­
turas vivas. Exclamações violentas — de m edo, raiva, tal. Os criadores das teorias biológicas sobre a origem
dor ou alegria — não são um a propriedade específica da linguagem deixaram de ver o bosque por causa das
do hom em . Encontram o-las por toda a parte no m undo árvores. Partiram do pressuposto de que um cam inho
anim al. N ada mais plausível que atribuir o fato social direto liga a interjeição à fala. M as isso é evadir a ques­
da linguagem a essa causa biológica geral. Se aceitamos tão, e não solucioná-la. Não era apenas o fato, m as to-
192 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 193

da a estrutura da linguagem , que precisava de um a ex­ Jespersen foi talvez o último lingüista m oderno a con­
plicação. U m a análise dessa estrutura revela um a dife­ servar um forte interesse pelo velho problem a da ori­
rença radical entre a linguagem emocional e a proposi- gem da linguagem. Ele não negava que todas as solu­
cional. Os dois tipos não estão no mesmo nível. M esmo ções anteriores do problem a haviam sido m uito inade­
que fosse possível ligá-los geneticam ente, a passagem de quadas; com efeito, estava convencido de ter descober­
um tipo para o oposto nunca deixaria de ser logicamen­ to um novo m étodo, que prom etia mais êxitos. “ O m é­
te um a metabasis eis alio genos, um a transição de um gê­ todo que recom endo’’, declara Jespersen,
nero para outro. T anto quanto eu saiba, nenhum a teo­
ria biológica conseguiu jam ais apagar essa distinção ló­ e que sou o primeiro a empregar coerentemente, é remontar
gica e estrutural. N ão temos absolutam ente nenhum a nossas línguas modernas tão para trás no tempo quanto nos
prova psicológica de que algum anim al atravessou ja ­ permitam a história e nossos materiais... Se por esse processo
mais a fronteira entre a linguagem preposicional e a emo­ chegarmos finalmente à pronúncia de sons de uma tal nature­
cional. A cham ada “ linguagem anim al’’ nunca deixa za que não mais possam ser chamados de linguagem verda­
de ser inteiram ente subjetiva; ela expressa vários esta­ deira, mas de algo anterior à linguagem — ora, então o pro­
dos de sentim ento, mas não designa, nem descreve, blema terá sido resolvido; pois a transformação é uma coisa
objetos 7 . Por outro lado, não há qualquer prova histó­ que podemos entender, ao passo que uma criação baseada no
rica de que o hom em , mesmo nos estágios mais prim i­ nada nunca pode ser compreendida pelo entendimento
tivos de sua cultura, tenha jam ais estado reduzido a um a humano.
linguagem puram ente emocional ou à linguagem dos ges­
tos. Se quiserm os seguir um método empírico estrito, Segundo essa teoria, tal transformação teve lugar quando
deveremos excluir todo pressuposto desse tipo como, se as expressões hum anas, que a princípio não passavam
não totalm ente improvável, pelo menos duvidoso e hi­ de gritos emocionais ou talvez frases musicais, foram usa­
potético. das como nomes. O que fora originariam ente um am on­
N a verdade, um exame mais cuidadoso dessas teo­ toado de sons sem sentido tornou-se assim, repentina­
rias leva-nos sempre a um ponto em que o próprio prin­ m ente, um instrum ento de pensam ento. Por exemplo,
cípio em que se baseiam torna-se questionável. Após um a combinação de sons, cantada segundo um a certa
avançar alguns passos nesse argum ento, os defensores melodia e em pregada como canto de triunfo sobre um
dessas teorias são forçados a admitir e a sublinhar as mes­ inimigo derrotado e m orto, podia ser transform ada em
mas diferenças que à prim eira vista pareciam negar ou, um nom e próprio para aquele acontecim ento peculiar
pelo menos, m inim izar. P ara ilustrar esse fato, escolhe­ ou até para o hom em que m atou o inimigo. E o desen­
rei dois exemplos concretos, o prim eiro da lingüística volvimento podia então prosseguir, mediante um a trans­
e o segundo da literatura psicológica e filosófica. O tto ferência metafórica da expressão, p ara situações seme-
194 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 195

lhantes 8 . No entanto, é precisam ente essa “ transferên­ portante da linguagem hum ana. M as não consigo ver
cia m etafórica’ ’ que contém todo o nosso problem a re­ de que modo um a teoria m eram ente interjecional pode
sumido. Tal transferência significa que os sons pronun­ explicar esse passo decisivo. E na explicação da Profes­
ciados, até então m eros gritos, descargas involuntárias sora de Laguna a separação entre as interjeições e os no­
de emoções fortes, estavam cum prindo um a tarefa in­ mes não foi transposta; ao contrário, destaca-se com ain­
teiram ente nova. Estavam sendo usados como sím bo­ da mais nitidez. E um fato notável que esses autores que,
los para transm itir um sentido preciso. O próprio Jes- de m aneira geral, têm estado inclinados a crer que a fa­
persen cita um a observação de Benfey segundo a qual la desenvolveu-se a partir de um estado de simples in­
entre a interjeição e a palavra há um abismo largo o bas­ terjeições tenham sido levados à conclusão de que, afi­
tante para que possamos dizer que a interjeição é a ne­ nal de contas, a diferença entre os nomes e as interjei­
gação da linguagem; pois as interjeições só são em pre­ ções é m uito m aior e m uito mais evidente que sua su­
gadas quando não se pode ou não se quer falar. Segun­ posta identidade. G ardiner, por exemplo, parte da afir­
do Jespersen, a linguagem surgiu quando “ a comuni- mação de que entre a linguagem anim al e a hum ana há
catividade assum iu a precedência sobre a exclamativi- um a “ homogeneidade essencial” . M as ao desenvolver
dade” . É precisamente este passo, todavia, que a teoria a sua teoria ele tem de adm itir que entre as expressões
não explica, mas pressupõe. anim ais e a fala hum ana há um a diferença tão vital que
A m esm a crítica vale para a tese desenvolvida no chega quase a encobrir a hom ogeneidade essencial10 .
livro de Grace de Laguna, Speech. Its Function and Deve- Na verdade, a aparente semelhança é apenas um a liga­
lopment. Nele encontramos um enunciado muito mais de­ ção m aterial que não exclui, mas, ao contrário, acen­
talhado e elaborado do problem a. Os conceitos um tan­ tua a heterogeneidade formal, funcional.
to fantásticos que encontram os às vezes no livro de Je s ­
persen são eliminados. A transição do grito para a fala
é descrita como um processo de objetivação gradual. As 2
qualidades afetivas prim itivas ligadas à situação como
um todo foram diversificadas e ao mesmo tempo dife­ A questão da origem da linguagem exerceu em to­
renciadas dos aspectos percebidos da situação. “ ... sur­ das as épocas um estranho fascínio sobre a m ente h u ­
gem objetos, que são conhecidos em vez de sentidos... Ao m ana. Desde o primeiro vislumbre de intelecto o homem
mesmo tem po, essa condicionalidade am pliada assume começou a intrigar-se com esse assunto. Em muitos re­
um a form a sistem ática... F inalm ente,... a ordem obje­ latos míticos ficamos sabendo que o hom em aprendeu
tiva da realidade aparece e o m undo torna-se verdadei­ a falar com Deus em pessoa, ou com a ajuda de um pro­
ram ente conhecido.’’9 Estas objetivação e sistematiza- fessor divino. Tal interesse pela origem da linguagem
ção consistem, com efeito, na tarefa principal e mais im ­ será facilmente compreensível se aceitarmos as premis-
196 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 197

sas básicas do pensam ento mítico. O mito não conhece quer ser fora e além do tempo; ela não pertence ao do­
outro modo de explicação além de rem ontar ao passado mínio das idéias eternas. A m udança — fonética, ana­
rem oto e derivar o estado presente do m undo físico e lógica, semântica — é um elemento essencial da lingua­
hum ano desse estágio prim evo das coisas. No entanto, gem. Não obstante, o estudo de todos esses fenômenos
é surpreendente e paradoxal encontrar essa m esm a ten­ não é o bastante para fazer-nos entender a função geral
dência ainda predom inante no pensam ento filosófico. da linguagem. Dependemos de dados históricos para a
E m bora estivesse presente por muitos séculos, a ques­ análise de cada forma simbólica. A pergunta sobre o que
tão sistemática foi obscurecida pela genética. Conside­ “ são” o mito, a religião, a arte e a linguagem não pode
rava-se como um a conclusão inevitável que, um a vez ser respondida de m aneira puram ente abstrata, por um a
resolvida a questão genética, todos os outros problemas definição lógica. Por outro lado, ao estudar a religião,
seriam prontam ente solucionados. A teoria do conheci­ a arte e a linguagem, deparam os sempre com proble­
m ento ensinou-nos que devemos sempre traçar um a li­ mas estruturais gerais que pertencem a um tipo espe­
nha clara de dem arcação entre os problem as genéticos cial de conhecimento. Esses problem as devem ser tra ­
e os sistemáticos. A confusão entre esses dois tipos é en­ tados separadamente; não é possível lidar com eles, nem
ganadora e perigosa. Com o é que essa m áxim a m eto­ solucioná-los, por meio de investigações m eram ente his­
dológica, que em outros ram os de conhecimento pare­ tóricas.
cia estar firm em ente estabelecida, foi esquecida no tra ­ No século X IX , ainda era um a opinião corrente e
tam ento de problem as lingüísticos? E claro que seria do de aceitação geral que a história é a única chave para
m aior interesse e da m aior im portância estar em posse um estudo científico da fala hum ana. Todas as grandes
de todas as provas históricas relativas à linguagem — realizações da lingüística vieram de estudiosos cujo in­
ser capaz de responder à questão sobre a derivação das teresse histórico era a tal ponto predom inante que im ­
línguas da terra de um tronco com um , ou de raízes di­ possibilitava qualquer outra tendência de pensam ento.
ferentes e independentes, e ser capaz de acompanhar pas­ Jakob G rim m estabeleceu as prim eiras fundações para
so a passo o desenvolvimento dos idiomas e tipos lin­ um a gram ática com parativa das línguas germ ânicas. A
güísticos individuais. M as nem isso bastaria para resol­ gramática comparativa das línguas indo-européias foi ini­
ver os problem as fundam entais de um a filosofia da lin­ ciada por Bopp e Pott, e aperfeiçoada por A. Schleicher,
guagem. Em filosofia, não podemos contentar-nos com K arl Brugm ann e B. Delbrück. O prim eiro a levantar
o simples fluxo das coisas e com a cronologia dos acon­ a questão dos princípios da história lingüística foi H er-
tecimentos. Nela devemos, de certo modo, aceitar sem­ m ann Paul. Ele tinha plena consciência do fato de que
pre a definição platônica segundo a qual o conhecim en­ sozinha a pesquisa histórica não podia solucionar todos
to filosófico é um conhecimento do “ ser” , e não do sim­ os problemas da fala hum ana. Insistia que o conheci­
ples “ devir” . E claro que a linguagem não tem qual­ m ento histórico tem sempre necessidade de um comple-
198 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 199

mento sistemático. A cada ramo do conhecimento his­ nhecimento afete sua descrição está fadado a distorcer seus
tórico, declarou ele, corresponde uma ciência que trata dados. Nossas descrições não deverão ter preconceitos, se qui­
das condições gerais sob as quais os objetos históricos sermos que sejam uma base sólida para o trabalho compara­
evoluem e que estuda os fatores que permanecem inva­ tivo 1 2.
riáveis em todas as mudanças dos fenômenos huma­
nos11 . O século XIX não foi só histórico, mas também Esse princípio metodológico havia encontrado a
psicológico. Portanto, era bastante natural presumir, pa­ sua primeira expressão, talvez clássica, na obra de um
recia até evidente, que os princípios da história lingüís- grande lingüista e grande pensador filosófico. Wilhelm
tica deveriam ser procurados no campo da psicologia. von Humboldt deu o primeiro passo no sentido de clas­
Estas foram as duas pedras fundamentais dos estudos sificar as línguas do mundo e reduzi-las a certos tipos
lingüísticos. “ Paul e a maioria de seus contemporâneos” , fundamentais. Para esta finalidade, não podia empre­
diz Leonard Bloomfield, gar métodos exclusivamente históricos. As línguas que
ele estudou já não foram apenas as do tipo indo-
tratavam apenas das línguas indo-européias e, com o menos­ europeu. Seu interesse era verdadeiramente abrangen­
prezo que tinham pelos problemas descritivos, recusavam-se te, e incluía todo o campo dos fenômenos lingüísticos.
a trabalhar com línguas cuja história fosse desconhecida. Essa Ele fez a primeira descrição analítica das línguas ame­
limitação afastou-os do conhecimento de tipos estrangeiros de ricanas nativas, utilizando a abundância de material
estrutura gramatical, que teria aberto os olhos deles para o fa­ que seu irmão, Alexander von Humboldt, trouxera de
to de que até os aspectos fundamentais da gramática indo- suas viagens exploratórias pelo continente americano.
européia... não são de modo algum universais na fala huma­ No segundo volume da sua grande obra sobre as va­
na... Paralelamente à grande corrente de pesquisa histórica
riedades da fala humana13 , W. von Humboldt escre­
havia, contudo, uma corrente pequena, mas cada vez mais ace­
veu a primeira gramática comparativa das línguas aus-
lerada, de estudos lingüísticos gerais... Alguns estudiosos viam
tronésias, o indonésio e o melanésio. No entanto, não
com clareza cada vez maior a relação natural entre os estudos
descritivos e os históricos... A fusão dessas duas correntes de
existiam quaisquer dados históricos para essa gramáti­
estudo, a histórico-comparativa e a filosófico-descritiva, escla­ ca, sendo a história dessas línguas totalmente desco­
receu alguns princípios que não eram aparentes para os gran­ nhecida. Humboldt teve de abordar o problema a par­
des indo-europeístas do século X IX ... Todo estudo histórico tir de um ponto de vista inteiramente novo, e abrir
da linguagem baseia-se na comparação de dois ou mais con­ seu próprio caminho.
juntos de dados descritivos. Só pode ser tão preciso e tão com­ Mesmo assim, seus métodos eram estritamente em­
pleto quanto lhe permitam esses dados. Para descrever uma píricos; baseavam-se em observações, não em especu­
língua, não é preciso absolutamente nenhum conhecimento lações. Mas Humboldt não se contentava com a descri­
histórico; na verdade, o observador que permita que tal co­ ção de fatos particulares. Extraía imediatamente desses
200 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 201

fatos inferências gerais de m uito longo alcance. É im ­ trabalham em áreas diferentes são unânim es em subli­
possível, afirm ava ele, obter um a verdadeira compreen­ nhar o fato de que a língüística descritiva nunca poderá
são do caráter e da função da fala hum ana enquanto vir­ ser tornada supérflua pela língüística histórica, pois es­
mos nela apenas um a coleção de “ palavras” . A verda­ ta deve sempre basear-se na descrição dos estágios do
deira diferença entre as línguas não é de sons ou sinais, desenvolvimento da linguagem que nos sejam diretamen­
mas de “ perspectivas de m undo ” ( Weltansichten). U m a te acessíveis1 5 . Do ponto de vista da história geral das
língua não é um simples agregado mecânico de termos. idéias, é um fato muito interessante e notável que a lin­
Dividi-la em palavras ou termos equivale a desorganizá- guística, com relação a isso, tenha passado pelas mes­
la e desintegrá-la. Tal concepção é nociva, se não des­ mas m udanças que vemos em outros ram os do conheci­
trutiva, para qualquer estudo dos fenômenos lingüísti- m ento. O positivismo anterior foi suplantado por um
cos. As palavras e regras que segundo as nossas noções novo princípio, ao qual podemos cham ar de estrutura-
comuns formam um a língua, afirmava H um boldt, exis­ lismo. A física clássica estava convencida de que, para
tem realm ente apenas no ato da fala conexa. Tratá-las descobrir as leis gerais do m ovim ento, devemos sempre
como entidades separadas “ não passa de um produto começar pelo estudo dos movimentos de “ pontos m ate­
m orto de nossa desastrada análise científica” . A lingua­ riais” . A Mécanique analytique, de Lagrange, baseava-se
gem deve ser vista como um a energeia, e não como um nesse princípio. Posteriorm ente, as leis do campo ele­
ergon. Não é um a coisa pronta, mas um processo contí­ trom agnético, tal como foram descobertas por Faraday
nuo; é o esforço reiterado da m ente hum ana no sentido e Maxwell, tenderam para a direção oposta. Ficou cla­
de usar sons para expressar pensam entos 14. ro que o campo eletromagnético não podia ser dividido
A obra de Hum boldt significou mais que um avanço em pontos individuais. U m elétron não era mais visto
notável do pensamento linguístico. M arcou também um a como um a entidade independente com existência pró­
nova época n a história da filosofia da linguagem. H u m ­ pria; era definido como um ponto-lim ite no campo co­
boldt não era nem um estudioso que se concentrava so­ mo um todo. Surgiu assim um novo tipo de “ física de
bre fenômenos lingüísticos particulares, nem um m eta­ cam po” , que em muitos aspectos divergia da concep­
físico como Schelling ou Hegel. Seguia o m étodo “ crí­ ção anterior da mecânica clássica. N a biologia encon­
tico” de K ant, sem se dar a especulações sobre a essên­ tram os um desenvolvimento análogo. As novas teorias
cia ou a origem da linguagem. Este último problema não holísticas, que se tornaram predom inantes desde o prin­
é sequer m encionado em suas obras. O que estava em cípio do século X X , voltaram para a velha definição aris-
prim eiro plano em seus livros eram os problemas estru­ totélica do organismo. Insistiram que, no m undo orgâ­
turais d a linguagem. Hoje, a m aioria admite que tais nico, “ o todo é anterior às partes” . Essas teorias não
problemas não podem ser solucionados por métodos me­ negam os fatos da evolução, mas não podem mais
ram ente históricos. Estudiosos de diversas escolas e que interpretá-los no mesmo sentido que o faziam Darwin
202 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 203

e os darw inianos 1 6 . Q uanto à psicologia, com poucas da entre la langue e la parole. A língua (Za langue) é u n i­
exceções, havia seguido a trilha de H um e ao longo de versal, ao passo que o processo da fala {la parole), como
todo o século X IX . O único m étodo para explicar um processo temporal, é individual. Todo indivíduo tem sua
fenômeno psíquico era reduzi-lo a seus elementos pri­ própria m aneira de falar. M as em um a análise científi­
mários. Todos os fatos complexos eram considerados co­ ca da linguagem não nos preocupamos com essas dife­
mo um a acum ulação, um agregado de dados sensoriais renças individuais; estamos estudando um fato social que
simples. A m oderna psicologia gestaltiana atacou e des­ segue regras gerais — regras totalm ente independentes
truiu essa concepção: abriu assim o cam inho para um do indivíduo que fala. Sem essas regras, a linguagem
novo tipo de psicologia estrutural. não poderia cum prir a sua tarefa principal; não pode­
Se a lingüística adota hoje o mesmo método e ría ser em pregada como meio de comunicação entre to­
concentra-se cada vez mais nos problem as estruturais, dos os mem bros da comunidade falante. A lingüística
isso não quer dizer, é claro, que as posições anteriores “ sincrônica” trata das relações estruturais constantes;
perderam alguma coisa em importância e interesse. C on­ a linguística “ diacrônica” lida com os fenômenos que
tudo, em vez de avançar em linha reta, em vez de preo­ variam e se desenvolvem no tem po 1 7 . A unidade estru­
cupar-se unicam ente com a ordem cronológica dos fe­ tural fundamental da linguagem pode ser estudada e pos­
nômenos da fala, a pesquisa lingüística está traçando um a ta à prova em dois modos. Essa unidade aparece tanto
linha elíptica com dois pontos focais diferentes. Alguns no lado m aterial como no form al, m anifestando-se não
estudiosos chegaram a dizer que a combinação das vi­ só no sistema de formas gram aticais, mas tam bém no
sões descritiva e histórica, que constituiu a m arca dis­ sistema sonoro. O caráter da linguagem depende de am ­
tintiva da lingüística durante todo o século X IX , foi um bos os fatores. M as os problemas estruturais da fonolo-
erro do ponto de vista metodológico. Ferdinand de Saus- gia foram um a descoberta m uito posterior aos da sinta­
sure declarou em suas conferências que seria preciso re­ xe e da morfologia. Q ua haja ordem e coerência nas for­
nunciar por inteiro à idéia de um a “ gram ática históri­ mas da fala é óbvio e indubitável. A classificação dessas
ca’’. Esta, segundo ele, era um conceito híbrido. C on ­ formas e sua redução a regras definidas tornou-se um a
tém dois elementos díspares que não podem ser reduzi­ das prim eiras tarefas de um a gram ática científica. Des­
dos a um denom inador comum e fundidos em um todo de o início, os métodos para esse estudo foram levados
orgânico. Segundo Saussure, o estudo da fala hum ana a um alto grau de perfeição. Os lingüistas modernos ain­
não é tem a de uma ciência, mas de duas. Em um estudo da aludem à gram ática do sânscrito de Panini, que data
desses precisamos sempre distinguir entre dois eixos di­ de algum a época entre 350 e 250 a .C ., como um dos
ferentes, o “ eixo da sim ultaneidade” e o “ eixo da su­ maiores m onum entos à inteligência hum ana. Insistem
cessão” . A gram ática, por sua essência e natureza, per­ que nenhum a outra língua foi até hoje descrita com tal
tence ao prim eiro tipo. Saussure traçou um a linha níti­ perfeição. Os gramáticos gregos fizeram um a análise cui-
204 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 205

dadosa das partes da fala que encontraram na língua gre­ gavam que existisse um a m udança esporádica de sons.
ga, e interessaram -se por todo tipo de questões sintáti­ Segundo eles, toda m udança fonética segue regras in­
cas e estilísticas. O aspecto m aterial do problem a, po­ violáveis. Logo, a tarefa da lingüística é rem ontar to­
rém , era desconhecido, e sua im portância só foi reco­ dos os fenômenos da fala hum ana a essa cam ada funda­
nhecida no início do século X IX . Encontram os então mental: as leis fonéticas que são necessárias e não ad­
as prim eiras tentativas de lidar com os problem as m os­ mitem exceções19 .
trou que as palavras das línguas germ ânicas guardam O estruturalism o m oderno, tal como foi desenvol­
um a relação formal regular, em questões de sons, com vido nas obras de Trubetzkoy e nos Travaux du Cercle Lin-
as palavras de outras línguas indo-européias. Em sua guistique de Prague, abordou o problem a de um ponto de
gram ática do alemão, Jakob G rim m fez um a exposição vista totalm ente novo. Não perdeu as esperanças de en­
sistemática das correspondências consonantais entre as contrar um a “ necessidade” nos fenômenos da fala h u ­
línguas germânicas e outras línguas indo-européias. Essas
m ana, mas, ao contrário, enfatizou essa necessidade. Pa­
prim eiras observações tornaram -se a base da lingüísti-
ra o estruturalism o, porém , o próprio conceito de ne­
ca e da gram ática comparativa modernas. Foram enten­
cessidade precisava ser redefinido, e entendido em um
didas e interpretadas, porém , num sentido m eram ente
sentido mais teleológico que m eram ente causai. A lin­
histórico. Foi de um am or rom ântico pelo passado que
guagem não é um simples agregado de sons e palavras;
Jakob Grim m recebeu sua prim eira e mais profunda ins­
é um sistema. Por outro lado, sua ordem sistemática não
piração. O mesmo espírito rom ântico levou Friedrich
Schlegel à descoberta da língua e da sabedoria da pode ser descrita em termos de causalidade física ou his­
ín d ia 18. N a segunda m etade do século X IX , porém , o tórica. C ada idioma tem sua estrutura própria, tanto no
interesse pelos estudos lingüísticos era ditado por outros sentido formal como no material. Q uando examinamos
impulsos intelectuais, e um a interpretação m aterialista os fonemas de línguas diferentes, encontram os tipos di­
começou a predom inar. A grande ambição dos cham a­ vergentes que não podem ser incluídos em um esque­
dos “ Neogramáticos” era provar que os métodos da lin- m a uniform e e rígido. C ada língua apresenta suas pró­
güística estavam no mesmo nível que os das ciências na­ prias características particulares na escolha desses fone­
turais. P ara ser considerada como um a ciência exata, mas. M esm o assim, pode-se dem onstrar um a conexão
a lingüística não poderia contentar-se com vagas regras estrita entre os fonemas de um a língua específica. Essa
empíricas para a descrição de ocorrências históricas par­ conexão é relativa, e não absoluta; é hipotética, não apo-
ticulares. T eria de descobrir leis que, em sua form a ló­ díctica. Não podemos deduzi-la a priori com base em re­
gica, fossem comparáveis às leis gerais da natureza. Os gras lógicas gerais; temos de basear-nos nos dados em ­
fenômenos da m udança fonética deram a impressão de píricos à nossa disposição. C ontudo, mesmo esses da­
provar a existência dessas leis. Os Neogramáticos ne­ dos apresentam um a coerência interna. Depois de en-
206 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 207

contrarmos alguns dados fundamentais, estamos em con­ Pensava-se que, visto que a m udança sonora não passa
dições de derivar deles outros dados que estão invaria­ de um a m udança nos hábitos da articulação, ela devia
velm ente ligados a eles. “ II faudrait étu dier” , escreve afetar um fonema em todas as ocorrências, não im por­
V. Brõndal ao form ular o program a de seu novo estru- tando a natureza de qualquer form a linguística particu­
turalism o, “ les conditions de la structure linguistique, lar em que tal fonem a ocorresse. Esse dualism o desapa­
distinguer dans les systèmes phonologiques et morpho- receu da lingüística recente. A fonética deixou de ser urn
logiques ce qui est possible de ce qui est impossible, le campo separado, tornando-se parte e parcela da própria
contingent du nécessaire” 2 0 . semântica. Pois o fonema não é um a unidade física, mas
Se aceitarmos essa visão, até a base m aterial da fa­ um a unidade de significado. Foi definido como um a
la hum ana, até os próprios fenômenos sonoros deverão “ unidade m ínim a de aspecto sonoro distintivo” . Entre
ser estudados de um a nova m aneira e sob um aspecto as grandes linhas características de qualquer expressão
diferente. Com efeito, não podemos mais adm itir que vocal há certos traços que são significantes, pois são usa­
haja um a base m eram ente m aterial. A distinção entre dos para expressar diferenças de sentido, enquanto os
forma e m atéria revela-se artificial e inadequada. A fa­ outros são não-distintivos. T oda língua tem seu siste­
la é um a unidade indissolúvel que não pode ser dividi­ m a de fonemas, de sons distintivos. No chinês, a m u­
da em dois fatores independentes e isolados, forma e m a­ dança na altura de um som é um dos meios mais im ­
téria. E precisamente nesse princípio que está a diferença portantes de expressar o sentido das palavras, enquan­
entre a nova fonologia e os tipos anteriores de fonética. to em outras línguas essa m udança não tem significa­
N a fonologia, o que estudamos não são os sons físicos, ção 2 1 . De um a multidão indistinta de sons físicos pos­
mas os significantes. A linguística não se interessa pela síveis, cada língua escolhe um núm ero lim itado de sons
natureza dos sons, e sim por sua função semântica. As para seus fonemas. M as a escolha não é feita ao acaso,
escolas positivistas do século X IX estavam convencidas pois os fonemas formam um todo coerente. Podem ser
de que a fonética e a sem ântica exigiam estudos separa­ reduzidos a tipos gerais, a certos padrões fonéticos2 2 .
dos, segundo métodos diferentes. O s sons da fala eram Esses padrões fonéticos parecem estar entre os aspectos
considerados simples fenômenos físicos que podiam ser mais persistentes e característicos da língua. Sapir en­
descritos, na verdade tinham de ser descritos, em ter­ fatiza que cada língua tem um a forte tendência a m an­
mos de física ou de fisiologia. Do ponto de vista m eto­ ter intacto o seu padrão fonético:
dológico geral dos Neogramáticos, tal concepção era não
só compreensível, mas tam bém necessária. Pois sua te­ Atribuiremos as principais concordâncias e divergências na for­
se fundam ental — a tese de que as leis fonéticas não ad ­ ma lingüística — padrão fonético e morfologia — ao impulso
m item exceções — baseava-se no pressuposto de que a autônomo da língua, e não aos aspectos singulares e difusos
m udança fonética independe de fatores não fonéticos. que se acumulam ora aqui, ora ali. A linguagem é provável-
208 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 209

mente o mais autocontido, o mais poderosamente resistente, máticas latina e grega — tinha um a validade geral e ob­
de todos os fenômenos sociais. E mais fácil liquidá-la que de­ jetiva. Acreditava que a distinção entre as várias partes
sintegrar sua forma individual2 ^. da fala, entre os casos dos substantivos, os modos e tem ­
pos verbais e a função dos particípios, eram distinções
T odavia, é m uito difícil responder à pergunta so­ de pensam ento, e não só das palavras. “ A estrutura de
bre o que de fato quer dizer essa “ form a individual” cada sentença” , declara, “ é um a lição de lógica.” 24 O
da linguagem . Q uando estamos diante dessa questão, avanço das pesquisas lingüísticas foi tornando essa po­
somos sempre presas de um dilema. Tem os dois extre­ sição cada vez mais insustentável, pois passou a ser ge­
mos a evitar, duas soluções radicais, ambas de certo mo­ ralm ente reconhecido que o sistema de partes da fala
do inadequadas. Se a tese de que cada língua tem sua não tem um caráter fixo e uniform e, m as varia de um a
forma individual implicasse que é inútil procurar por as­ língua para outra. Além disso, foi observado que mes­
pectos comuns na fala hum ana, teríamos de adm itir que mo as línguas derivadas do latim têm m uitos aspectos
a simples idéia de um a filosofia da linguagem é um cas­ que não podem ser expressados adequadam ente nos ter­
telo nas nuvens. Do ponto de vista empírico, contudo, mos e categorias comuns da gram ática latina. Os estu­
o que está sujeito a objeções não é tanto a existência diosos do francês sublinharam m uitas vezes o fato de
quanto o enunciado claro desses aspectos comuns. Na que a gramática francesa teria assumido um a forma bem
filosofia grega, o próprio term o “ Logos” sempre suge­ diferente caso não houvesse sido escrita por discípulos
riu e apoiou a idéia de um a identidade fundam ental en­ de Aristóteles. A firm aram que a aplicação das distin­
tre o ato da fala e o ato do pensam ento. A gram ática ções da gram ática latina ao inglês e ao francês resulta­
e a lógica eram concebidas como dois ram os diferentes rá em muitos erros graves e revelara-se um sério obstá­
do conhecimento que tratavam do mesmo tem a. Até os culo a um a descrição sem preconceitos dos fenômenos
lógicos m odernos, cujos sistemas estão m uito distantes lingüísticos 2 5 . M uitas distinções gramaticais que julga­
da lógica aristotélica clássica, são ainda da mesm a opi­ mos fundam entais e necessárias perdem seu valor, ou
nião. Jo h n Stuart M ill, o fundador da “ lógica induti­ pelo menos ficam muito incertas, assim que exam ina­
va’’, afirm ava que a gram ática era a parte mais elemen­ mos as línguas que não pertencem à família indo-euro-
tar da lógica, por ser o início da análise do processo de péia. A existência de um sistema distinto e único de par­
pensam ento. Segundo M ill, os princípios e as regras da tes da fala, visto como um constituinte necessário da fala
gram ática são os meios para fazer com que as formas e do pensam ento racionais, acabou revelando-se como
da linguagem correspondam às formas universais de pen­ um a ilusão 2 6 .
samento. M as M ill não se contentou com essa afirm a­ N ada disso prova necessariamente que devemos
ção. Chegou até a presum ir que um sistema particular abandonar o velho conceito de um a grammaire générale et
de partes da fala — sistema que fora deduzido das gra­ raisonnée, um a gramática geral baseada em princípios ra-
210 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 211

cionais. M as devemos redefinir esse conceito e formulá-lo não apenas um a tarefa lógica universal, mas tam bém
em um sentido novo. Estender todas as línguas sobre um a tarefa social que depende das condições sociais es­
o leito procústeo de um único sistema de partes da fala pecíficas da comunidade falante. Logo, não podemos es­
seria um a vã tentativa. M uitos linguistas modernos che­ perar um a verdadeira identidade, um a correspondên­
garam até a prevenir-nos contra o próprio term o “ gra­ cia um -a-um entre as formas gramaticais e as lógicas.
m ática geral” , por julgarem que este representa mais U m a análise empírica e descritiva das formas gram ati­
um ídolo que um ideal científico2 7 . U m a atitude tão in­ cais propõe a si mesma um a tarefa diferente e leva a ou­
transigentem ente radical como esta não foi, contudo, tros resultados que a análise estrutural que é feita, por
com partilhada por todos os estudiosos da área. Esfor­ exemplo, na obra de C arnap sobre a sintaxe lógica da
ços sérios foram feitos no sentido de m anter e defender linguagem, Logical Syntax of Language.
a concepção de um a gram ática filosófica. O tto Jesper-
sen escreveu um livro especialmente dedicado à gram á­
tica filosófica em que tentou provar que paralelam ente, 3
além ou por trás das categorias sintáticas de que depen­
de a estrutura de cada língua tal como de fato se encon­ Para encontrarmos o fio de Ariadne que possa guiar-
tra, há algumas categorias que são independentes dos nos através do labirinto complicado e desconcertante da
fatos mais ou menos acidentais das línguas existentes. fala hum ana, podemos proceder de duas m aneiras. Po­
Tais categorias são universais no sentido de que são apli­ demos tentar encontrar um a ordem lógica e sistem áti­
cáveis a todas as línguas. Jespersen propôs que fossem ca, ou um a ordem cronológica e genética. No segundo
chamadas de categorias “ nocionais” , e considerou co­ caso, tentamos rem ontar os idiomas individuais e os vá­
mo tarefa do gram ático investigar, em cada caso, a re­ rios tipos linguísticos a um estágio anterior com parati­
lação entre as categorias nocionais e as sintáticas. A mes­ vam ente mais simples e amorfo. M uitas tentativas nes­
m a opinião foi expressada por outros estudiosos, como, se sentido foram feitas por lingüistas do século X IX ,
por exemplo, Hjelm stev e B rõndal 2 8 . Segundo Sapir, quando se tornou corrente a opinião de que a fala hu­
toda língua contém certas categorias necessárias e in­ m ana, antes de alcançar sua form a presente, tivera de
dispensáveis, ao lado de outras que são de um caráter passar por um estado sem formas sintáticas ou morfoló-
mais acidental 2 9 . Portanto, a idéia de um a gram ática gicas definidas. O riginariam ente, a linguagem era for­
geral ou filosófica não é de modo algum invalidada pelo m ada por elementos simples, raízes monossilábicas. O
progresso das pesquisas lingüísticas, em bora não pos­ rom antism o deu predileção a essa perspectiva. A. W.
samos mais ter esperanças de realizar um a gram ática Schlegel propôs um a teoria segundo a qual a linguagem
desse tipo pelos meios simples que foram empregados se desenvolveu a partir de um prim eiro estágio amorfo,
nas tentativas anteriores. A fala hum ana deve cum prir desorganizado. Desse estado, ela passou em um a ordem
212 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 213

fixa para outros estágios mais avançados — os estágios pertence a uma classe distinta, e cada classe é caracteri­
isolante, aglutinante e flexionai. As línguas flexionais, zada por um prefixo especial. Esses prefixos não apare­
segundo Schlegel, são a última etapa dessa evolução; são cem só nos substantivos, mas devem ser repetidos, em
as línguas realmente orgânicas. Na maior parte dos ca­ concordância com um complicadíssimo sistema de acor­
sos, uma análise descritiva detalhada destruiu as pro­ dos e congruências, em todas as demais partes da sen­
vas nas quais essas teorias se baseavam. No caso do chi­ tença que se refiram ao substantivo31 .
nês, que costumava ser citado como exemplo de uma A variedade dos idiomas individuais e a heteroge-
língua formada por raízes monossilábicas, foi possível neidade dos tipos lingüísticos surgem sob uma luz to­
demonstrar a probabilidade de que seu atual estado iso­ talmente diversa, segundo as vemos de um ponto de vista
lante tenha sido precedido por um estágio flexionai mais filosófico ou científico. O lingüista aprecia essa varie­
antigo30 . Não conhecemos nenhuma língua desprovida dade; mergulha no oceano da fala humana sem espe­
de elementos formais ou estruturais, embora a expres­ ranças de sondar a sua verdadeira profundeza. A filo­
são das relações formais, entre sujeito e objeto, entre atri­ sofia, em todas as épocas, moveu-se na direção contrá­
buto e predicado, varie amplamente de língua a língua. ria. Leibniz insistia que, sem uma Characterislica genera-
Sem forma, a linguagem tem não só a aparência de uma lis, nunca chegaremos a uma Scientia generalis. \ lógica
ideação histórica altamente questionável, mas de uma simbólica moderna segue a mesma tendência. Mesmo
contradição em termos. As línguas das nações menos ci­ que essa tarefa fosse realizada, uma filosofia da cultura
vilizadas de todas não são de modo algum carentes de humana teria ainda de enfrentar o mesmo problema. Em
forma; ao contrário, apresentam na maioria dos casos uma análise da cultura humana, devemos aceitar os fa­
uma estrutura complicadíssima. A. Meillet, um lingüista tos em sua forma concreta, em toda a sua diversidade
moderno que possuía um conhecimento muito abran­ e divergência. A filosofia da linguagem enfrenta aqui
gente das línguas do mundo, declarou que nenhum idio­ o mesmo dilema que aparece no estudo de toda forma
ma conhecido nos proporciona a mais mínima idéia do simbólica. A mais alta tarefa de todas essas formas, na
que poderá ter sido uma linguagem primitiva. Todas verdade a única, é unir os homens. Mas nenhuma de­
as formas da fala humana são perfeitas, no sentido de las pode causar tal unidade sem ao mesmo tempo divi­
que conseguem expressar os sentimentos e pensamen­ dir e separar os homens. O que fora concebido para ga­
tos humanos de forma clara e apropriada. As línguas rantir a harmonia das culturas torna-se a fonte das mais
ditas primitivas são tão congruentes com as condições profundas discórdias e dissensões. Esta é a grande anti­
da civilização primitiva e com a tendência geral da mente nomia, a dialética da vida religiosa32 . A mesma dialé­
primitiva quanto as nossas próprias línguas o são com tica é encontrada na fala humana. Sem a fala não have­
os fins de nossa cultura requintada e sofisticada. Nas lín­ ría a comunidade dos homens. No entanto, não há obs­
guas da família bantu, por exemplo, cada substantivo táculo mais sério a essa comunidade que a diversidade
214 0 HOMEM E A CULTURA 215
ENSAIO SOBRE O HOMEM

da fala. O mito e a religião recusam-se a ver nessa di­ lares, considerava as línguas flexionais como um a espé­
versidade um fato necessário e inevitável. A tribuem -na cie de exemplo e modelo de excelência. P ara ele, a for­
antes a um a falha ou culpa do hom em que à constitui­ m a flexionai era die einzig gesetzmàssige Form, a única for­
ção original deste ou à natureza das coisas. Em muitas m a que é inteiramente coerente e segue regras estritas3 4 .
mitologias encontram os analogias notáveis da história Os linguistas modernos preveniram -nos contra esse ti­
bíblica sobre a T orre de Babel. M esm o nos tempos m o­ po de juízo. Dizem-nos que não temos qualquer padrão
dernos, o hom em sempre teve um profundo anseio pela único e comum p ara estim ar o valor dos tipos lingüísti-
Idade de O uro em que a hum anidade possuía ainda um a cos. Ao com parar tipos, pode parecer que um tem níti­
língua uniforme. Ele olha para o seu estado primevo co­ das vantagens sobre o outro, mas um a análise mais cui­
mo um paraíso perdido. O velho sonho de um a lingua dadosa convence-nos de que aqueles que chamamos de
Adamica — da língua “ verdadeira” dos prim eiros an ­ defeitos de um certo tipo podem ser compensados e equi­
cestrais do hom em , um a língua que não consistia ape­ librados por outros méritos. Se quisermos entender a lin­
nas em sinais convencionais, mas que expressava antes guagem, declara Sapir, deveremos livrar nossa m ente
a própria natureza e essência das coisas — tam pouco de valores preconcebidos, e acostum arm o-nos a olhar
desapareceu totalm ente, nem mesmo no dom ínio da fi­ para o inglês e para o hotentote com o mesmo distan­
losofia. O problem a dessa lingua Adamica continuava a ciam ento frio, mas interessado 3 5 .
ser discutido com seriedade pelos místicos e pensadores Se fosse tarefa da fala hum ana copiar ou im itar a
filosóficos do século X V II 3 3 . ordem dada ou pronta das coisas, seria difícil m anter­
C ontudo, a verdadeira unidade da linguagem , se mos esse distanciamento. Não poderiamos evitar a con­
é que existe tal unidade, não pode ser substancial; deve clusão de que, afinal, um a de duas cópias diferentes de­
antes ser definida como um a unidade funcional. Essa ve ser a melhor; que um a deve estar mais próxim a, e
unidade não pressupõe um a identidade formal ou m a­ a outra mais afastada, do original. N o entanto, quando
terial. Duas línguas diferentes podem representar extre­ atribuím os à fala um valor produtivo e construtivo, em
mos opostos, tanto em relação aos seus sistemas fonéti­ vez de simplesmente reprodutivo, nosso juízo é bem di­
cos como aos seus sistemas de partes da fala. Isso não ferente. Nesse caso, o que tem a m áxim a im portância
impede que cum pram a m esm a tarefa na vida da co­ não é o “ trabalho” da língua, e sim sua “ energia” . Para
m unidade que as fala. O que im porta aqui não é a va­ m edir essa energia é preciso estudar o próprio processo
riedade de meios, mas sua adequação e coerência com lingüístico, em vez de simplesmente analisar o seu des­
o fim. Podemos achar que esse fim comum é atingido fecho, seu produto e seus resultados finais.
com m aior perfeição em um tipo lingüístico que em ou­ Os psicólogos são unânim es em enfatizar que, sem
tro. Até mesmo H um boldt, que, de m aneira geral, abo­ um a compreensão da natureza da fala hum ana, nosso
m inava em itir juízos sobre o valor de idiomas particu­ conhecimento acerca do desenvolvimento da m ente hu-
216 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 217

mana continuaria sendo superficial e inadequado. Existe um processo de objetificação progressiva. As professo­
ainda, porém, uma considerável incerteza quanto aos ras de Helen Keller e Laura Bridgman descreveram-nos
métodos de uma psicologia da fala. Quer estejamos es­ a avidez e a impaciência com que as duas crianças, uma
tudando os fenômenos em um laboratório psicológico vez entendido o uso dos nomes, perguntavam os nomes
ou fonético, quer nos apoiemos em métodos apenas in- específicos de cada objeto ao seu redor37 . Esta é tam­
trospectivos, derivamos invariavelmente a mesma im­ bém uma característica geral do desenvolvimento nor­
pressão de que esses fenômenos são tão evanescentes e mal da fala. “ No início do vigésimo terceiro mês” , diz
flutuantes que desafiam todos os esforços para estabilizá- D. R. Major, “ a criança desenvolveu a mania de pe-
los. Em que, então, consiste a diferença fundamental en­ rambular dando nome às coisas, como se para dizer aos
tre a atitude mental que podemos atribuir a uma cria­ outros os nomes delas, ou para chamar a nossa atenção
tura sem fala — um ser humano antes da aquisição da para as coisas que ela estava examinando. Ela olhava
fala ou um animal — e o outro estado mental que ca­ para uma coisa, apontava para ela ou a tocava, falava
racteriza um adulto que dominou plenamente sua lín­ o nome dela e olhava para seus companheiros.” 38 Tal
gua nativa? atitude não seria compreensível não fosse pelo fato de
Curiosamente, é mais fácil responder a essa per­ que o nome, no desenvolvimento mental da criança, tem
gunta com base nos exemplos anormais do desenvolvi­ uma função de primeira importância a desempenhar.
mento da fala. Nosso exame dos casos de Helen Keller Se ao aprender a falar a criança tivesse apenas de apren­
e Laura Bridgman36 ilustrou o fato de que, com o pri­ der um certo vocabulário, se precisasse apenas impri­
meiro entendimento do simbolismo da fala, ocorre uma mir em sua mente e em sua memória uma grande mas­
verdadeira revolução na vida da criança. A partir desse sa de sons artificiais e arbitrários, isso seria um proces­
momento, toda a sua vida pessoal e intelectual assume so puramente mecânico. Seria muito laborioso e cansa­
uma forma inteiramente nova. De um modo geral, essa tivo, e exigiría um esforço consciente demasiado gran­
mudança pode ser descrita dizendo-se que a criança passa de para que a criança o empreendesse sem uma certa
de um estado mais subjetivo para um estado objetivo, relutância, visto que o que se espera que ela faça estaria
de uma atitude simplesmente emocional para uma ati­ inteiramente desligado de qualquer necessidade bioló­
tude teórica. A mesma mudança pode ser observada na gica real. A “ fome de nomes” que a uma certa idade
vida de qualquer criança normal, embora de maneira aparece em toda criança normal, e que foi descrita por
muito menos espetacular. A própria criança tem um sen­ todos os estudiosos de psicologia, prova o contrário3 9 .
tido claro do significado do novo instrumento para o seu Lembra-nos que estamos aqui diante de um problema
desenvolvimento mental. Ela não se satisfaz em apren­ bem diferente. Ao aprender a dar nome às coisas, a crian­
der de modo puramente receptivo, mas assume um pa­ ça não se limita a acrescentar uma lista de sinais artifi­
pel ativo no processo da fala, que é ao mesmo tempo ciais ao seu conhecimento prévio de objetos empíricos
218 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 219

prontos. A prende antes a form ar conceitos desses obje­ um estágio posterior e mais avançado de nossa vida cons­
tos, a e n trar em acordo com o m undo objetivo. A p ar­ ciente, nunca podemos repetir os passos que nos leva­
tir de então, a criança passa a estar em terreno mais fir­ ram a entrar pela prim eira vez no m undo da fala hu­
me. Suas percepções vagas, incertas e flutuantes e seus mana. No frescor, na agilidade e elasticidade da primeira
sentim entos confusos começam a assum ir um novo as­ infância, esse processo tinha um sentido totalm ente di­
pecto. Pode-se dizer que eles se cristalizam em torno ao ferente. Paradoxalm ente, a dificuldade está m uito m e­
nome como um centro fixo, um foco para o pensam en­ nos em aprender a língua nova que em esquecer a anti­
to. Sem a ajuda do nom e, cada novo avanço feito no ga. J á não estamos no estado m ental d a criança que se
processo de objetificação correría sempre o risco de aproxim a pela prim eira vez da concepção de um m un­
perder-se de novo no m om ento seguinte. Os primeiros do objetivo. Para o adulto, o mundo objetivo já tem um a
nomes de que a criança faz uso podem ser comparados form a definida como resultado d a atividade da fala, que
à bengala com que o cego tateia seu caminho. E a lin­ de certo modo moldou todas as nossas outras ativida­
guagem, como um todo, torna-se a porta para um novo des. Nossas percepções, intuições e conceitos fundiram-se
m undo. Nela, todo progresso abre um a nova perspecti­ com os termos e formas discursivas da nossa língua n a­
va, amplia e enriquece nossa experiência concreta. A avi­ tiva. São necessários grandes esforços p ara desatar os
dez e o entusiasmo pela fala não têm origem em um sim­ laços entre as palavras e as coisas. E no entanto, qu an ­
ples desejo de aprender ou de usar nomes; m arcam o do começamos a aprender um a língua nova, temos de
desejo de descobrir e conquistar um m undo objetivo 4 0 . fazer esse esforço e separar os dois elementos. Superar
Ao aprender um a língua estrangeira, podemos ain­ essa dificuldade sempre m arca um novo passo im por­
da subm eter-nos a um a experiência semelhante à da tante no aprendizado de um a língua. Q uando penetra­
criança. Neste caso, não basta adquirir um novo voca­ mos o “ espírito” de um a língua estrangeira, temos in­
bulário ou fam iliarizar-nos com um sistema de regras variavelmente a impressão de estar chegando a um m un­
gramaticais abstratas. T udo isso é necessário, mas é ape­ do novo, um m undo com um a estrutura intelectual pró­
nas o prim eiro passo, e o menos im portante. Se não pria. E como um a viagem de descoberta em um a terra
aprenderm os a pensar n a nova língua, todos os nossos estrangeira, e a m aior vantagem de u m a viagem como
esforços terão sido inúteis. N a m aioria dos casos acha­ essa é termos aprendido a olhar para a nossa língua n a­
mos extrem am ente difícil fazer isso. Linguistas e psicó­ tiva com outros olhos. “ W er fremde Sprachen nicht
logos levantaram m uitas vezes a questão de como é pos­ kennt, weiss nichts von seiner eigenen” , disse Goethe 4 1 .
sível que um a criança, por seus próprios esforços, reali­ E nquanto não conhecermos nenhum a língua estrangei­
ze um a tarefa que nenhum adulto pode realizar do mes­ ra seremos de certo modo ignorantes acerca da nossa pró­
mo modo ou com a m esm a perfeição. Talvez possamos pria, pois não conseguiremos ver a sua estrutura espe­
responder se olharmos para a nossa análise anterior. Em cífica e seus traços distintivos. U m a com paração de lín-
220 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 221

guas diferentes mostra-nos que sinônimos exatos não mos nomes idênticos. Tal como assinalou Humboldt,
existem. Termos correspondentes de duas línguas rara­ os termos grego e latino para a lua, embora se refiram
mente fazem referência aos mesmos objetos e ações. Co­ ao mesmo objeto, não expressam a mesma intenção ou
brem campos diferentes que se interpenetram e nos pro­ conceito. O termo grego (mm) denota a função da lua
porcionam visões multicoloridas e perspectivas variadas de “ medir” o tempo; o termo latino (luna, luc-nd) deno­
de nossa própria experiência. ta a luminosidade ou brilho da lua. Desse modo, obvia­
Isso fica especialmente claro quando consideramos mente, isolamos e concentramos a atenção em dois as­
os métodos de classificação empregados em línguas di­ pectos bem diferentes do mesmo objeto. Mas o ato em
ferentes, em particular nas de tipos linguísticos diferen­ si, o processo de concentração e condensação, é o mes­
tes. A classificação é um dos aspectos fundamentais da mo. O nome de um objeto não tem qualquer direito so­
fala humana. O próprio ato de denominação depende bre a sua natureza; não é concebido para ser <pvoet ov,
de um processo de classificação. Dar um nome a um ob­ para apresentar-nos a verdade dc uma coisa. A função
jeto ou ato é incluí-lo em um certo conceito de classe. do nome limita-se sempre a enfatizar um aspecto parti­
Se tal inclusão fosse prescrita de uma vez por todas pela cular de uma coisa, e é precisamente dessa restrição e
natureza das coisas, ela seria única e uniforme. No en­ dessa limitação que depende o valor do nome. Não é
tanto, os nomes que ocorrem na fala humana não po­ função de um nome referir-se exaustivamente a uma si­
dem ser interpretados dessa maneira invariável. Não são tuação concreta, mas apenas isolar um certo aspecto e
designados para referir-se a coisas substanciais, entida­ deter-se nele. O isolamento desse aspecto não é um as­
des que existem por si mesmas. São antes determina­ pecto negativo, mas positivo, pois no ato de denomina­
dos pelos interesses e propósitos humanos. Mas esses in­ ção selecionamos, da multiplicidade e difusão dos da­
teresses não são fixos e invariáveis. E as classificações dos dos nossos sentidos, certos centros fixos de percep­
que encontramos na fala humana tampouco são feitas ção. Esses centros não são os mesmos que os do pensa­
ao acaso; são baseadas em certos elementos constantes mento lógico ou científico. Os termos da fala comum
e recorrentes de nossa experiência sensorial. Sem tais não podem ser medidos pelos mesmos padrões que aque­
recorrências não haveria um suporte, um ponto de apoio, les com que expressamos conceitos científicos. Compa­
para os nossos conceitos linguísticos. Mas a combina­ rados com a terminologia científica, os termos da fala
ção ou a separação dos dados da percepção depende da comum apresentam sempre um caráter um tanto vago;
livre escolha de uma estrutura de referência. Não há quase sem exceção, eles são tão indistintos e mal defini­
qualquer esquema rígido e preestabelecido segundo o dos que não resistem à prova da análise lógica. Mas,
qual nossas divisões e subdivisões possam ser feitas de não obstante esse defeito inevitável e inerente, nossos
uma vez por todas. Nem mesmo em línguas intimamente termos e nomes cotidianos são os marcos de quilome­
ligadas e concordantes em sua estrutura geral encontra­ tragem da estrada que leva aos conceitos científicos; é
222 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 223

nesses term os que recebemos nossa prim eira visão ob­ um nome diferente que outro com um látego ou um
jetiva ou teórica do mundo. Tal visão não é simplesmente bastão 4 3 . Em sua descrição da língua bakairi — falada
“ d a d a ” ; resulta de um esforço intelectual construtivo por um a tribo indígena do Brasil central — Karl von
que não poderia alcançar seus fins sem a constante as­ den Steinen relata que cada espécie de papagaio e de
sistência da linguagem. palm eira tem seu nome individual, mas que não existe
Tais fins, contudo, não serão alcançados em qual­ nome algum para expressar o gênero “ papagaio” ou
quer época dada. A ascensão a níveis mais altos de abs­ “ palm eira” . “ Os bakairi” , afirm a ele, “ apegam-se de
tração, para nomes e idéias mais abrangentes e gerais, tal modo às numerosas noções particulares que não se
é um a tarefa difícil e laboriosa. A análise da linguagem interessam pelas características comuns. Estão imersos
fornece-nos um a rica abundância de m ateriais para o na abundância de material, e não conseguem administrá-
estudo do caráter dos processos m entais que finalmente lo economicamente. Têm apenas dinheiro trocado, mas
levaram à realização dessa tarefa. A fala hum ana evo­ pode-se dizer que nisso eles são excessivamente ricos,
lui a p artir de um prim eiro estado com parativam ente e não pobres.” 44 N a verdade, não existe qualquer m e­
concreto para um estado mais abstrato. Nossos prim ei­ dida uniforme para a riqueza ou pobreza de um idio­
ros nomes são concretos. Ligam-se à apreensão de fatos ma. C ada classificação é dirigida e ditada por necessi­
ou ações particulares. Todos os tons e matizes que en­ dades especiais, e é claro que essas necessidades variam
contram os em nossa experiência concreta são descritos de acordo com as condições diferentes da vida social e
m inuciosa e circunstancialm ente, m as não são classifi­ cultural do homem. Na vida prim itiva, o interesse pelo
cados em um gênero comum. H am m er-Purgstall escre­ aspecto concreto e particular das coisas predom ina ne­
veu um artigo em que enum era os vários nomes para cessariamente. A fala hum ana sempre se conforma a cer­
camelo em árabe; contudo, nenhum desses nomes nos tas formas de vida hum ana, e é por elas m ensurável.
dá um conceito biológico geral. Todos expressam deta­ Um interesse por meros “ universais” não é nem possí­
lhes concretos relativos à form a, ao tam anho, à idade vel, nem necessário, em um a tribo indígena. E bastan­
e à andadura do anim al 4 2 . Essas divisões ainda estão te, e mais importante, distinguir os objetos segundo cer­
m uito longe de qualquer classificação científica sistemá­ tas características visíveis e palpáveis. Em m uitas lín­
tica, mas servem a propósitos bem diferentes. Em m ui­ guas, um a coisa redonda não pode ser tratada da mes­
tas línguas de tribos nativas am ericanas encontram os m a m aneira que um a coisa quadrada ou oblonga, pois
um a espantosa variedade de termos para um a ação par­ pertencem a gêneros diferentes que devem ser diferen­
ticular, por exemplo para andar ou bater. Tais termos ciados por meios lingüísticos especiais, tais como o uso
têm entre si um a relação mais de justaposição que de de prefixos. Em algumas línguas da família bantu en­
subordinação. Um golpe dado com o punho não pode contramos não menos de vinte classes de gênero para
ser descrito com o mesmo termo que serve para um golpe os substantivos. Em línguas das tribos nativas am erica­
com a palm a da m ão, e um golpe com um a arm a exige nas, como por exemplo no algonquino, alguns objetos
224 ENSAIO SOBRE O HOMEM

pertencem a um gênero anim ado, outros a um gênero


inanim ado. M esm o neste caso é fácil entender isso, e
tam bém por que essa distinção, do ponto de vista da
m ente prim itiva, deve parecer de particular interesse e
vital importância. Trata-se de fato de um a diferença m ui­
to mais característica e notável que a que é expressada
em nossos nomes abstratos de classes lógicas. A mesm a C A P ÍT U L O IX
passagem lenta dos nomes concretos para os abstratos
tam bém pode ser estudada na denom inação das quali­ A ARTE
dades das coisas. Em m uitas línguas encontram os um a
abundância de nomes para as cores. C ada tom indivi­
dual de um a determ inada cor tem seu nome especial,
enquanto os nossos term os gerais — azul, verde, ver­
melho e assim por diante — não existem. Os nomes das 1
cores variam de acordo com a natureza dos objetos: um a
palavra para cinzento pode ser usada, por exemplo, pa­ A beleza parece ser um dos fenômenos hum anos
ra falar de lã ou de gansos, o u tra para cavalos, outra mais claramente conhecidos. Sem ser obscurecida por
para o gado e outra ainda para falar dos pêlos de um qualquer aura de segredo e mistério, seu caráter e sua
hom em ou de certos anim ais 4 5 . O mesmo vale p a ra a natureza não precisam de teorias metafísicas sutis e com­
categoria do núm ero: num erais diferentes são necessá­ plicadas para a sua explicação. A beleza é parte e parce­
rios para enum erar classes diferentes de objetos46 . A as­ la da experiência hum ana; é palpável e inconfundível.
censão para os conceitos e as categorias universais pa­ Mesmo assim, na história do pensamento filosófico o fe­
rece ser, portanto, m uito lenta no desenvolvimento da nômeno da beleza sempre se mostrou como um dos maio­
fala hum ana; mas cada novo avanço nessa direção leva res paradoxos. Até a época de K ant, um a filosofia da be­
a um reconhecim ento mais abrangente, a um a melhor leza significava sempre um a tentativa de reduzir nossa
orientação e organização do nosso m undo perceptual. experiência estética a um princípio alheio e de submeter
a arte a um a jurisdição alheia. K ant, em sua Crítica do
Juízo, foi o primeiro a apresentar um a prova clara e con­
vincente da autonom ia da arte. Todos os sistemas ante­
riores haviam procurado por um princípio da arte na es­
fera do conhecimento teórico ou na da vida moral. Se
a arte fosse considerada como produto da atividade teó-
226 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 221

rica, tornava-se necessário analisar as regras lógicas às ou da arte poderia esquecer ou suprim ir qualquer des­
quais essa atividade particular está sujeita. M as nesse ses pólos, em bora a ênfase possa ser dada ora a um , ora
caso a própria lógica deixava de ser um todo homogê­ a outro.
neo. T inha de ser dividida em partes separadas e com­ No prim eiro caso, a linguagem e a arte são agru­
parativam ente independentes. A lógica da imaginação padas sob o mesmo título, a categoria da imitação, e sua
tinha de ser distinguida da lógica do pensam ento racio­ principal função é mimética. A linguagem tem origem
nal e científico. Em sua Aesthetica (1750), Alexander em um a imitação de sons, a arte é um a imitação de coi­
B aum garten fizera a prim eira tentativa sistemática sas externas. A imitação é um instinto fundam ental, um
abrangente de idear um a lógica da imaginação. Mas nem fato irredutível da natureza hum ana. “ A im itação” , diz
essa tentativa, que de certo modo revelou ser decisiva Aristóteles, “ é natural para o hom em desde a infância;
e inestimável, foi capaz de garantir para a arte um va­ um a das vantagens que ele tem sobre os anim ais infe­
lor de fato autônom o. Isso porque a lógica da im agina­ riores é esta, ser a criatura mais im itativa do m undo,
ção nunca poderia alcançar a m esm a dignidade que a e aprender no início por im itação.” E a imitação tam ­
lógica do intelecto puro. Se houvesse um a teoria da ar­ bém é um a fonte inesgotável de prazeres, tal como é pro­
te, só poderia ser um a gnosiologia inferior, um a análise da vado pelo fato de que, em bora os objetos em si possam
parte sensual, “ inferior” , do conhecimento humano. Por ser dolorosos de se ver, deliciamo-nos mesmo assim em
outro lado, a arte podia ser descrita como um emblema ver as mais realistas representações deles na arte — as
da verdade m oral. E ra concebida como um a alegoria, formas, por exemplo, dos anim ais mais inferiores e de
um a expressão figurativa que, sob a sua form a sensual, cadáveres. Aristóteles descreve esse prazer como um a
ocultava um sentido ético. M as nos dois casos, tanto na experiência mais teórica que especificamente estética.
interpretação moral como na teórica, a arte não possuía “ Estar aprendendo alguma coisa” , declara, “ é o maior
qualquer valor independente próprio. N a hierarquia do dos prazeres, não só para o filósofo como tam bém para
conhecimento hum ano e da vida hum ana, a arte era ape­ o resto da hum anidade, por m enor que seja a sua capa­
nas um estágio preparatório, um meio subordinado e cidade para tal; a razão do deleite com a visão da im a­
subserviente para algum fim superior. gem é que se está ao mesmo tempo aprendendo —
A filosofia da arte apresenta o mesmo conflito en­ apreendendo o sentido das coisas, isto é, que o hom em
tre duas tendências antagônicas que encontram os na fi­ ali é isto e aquilo.” 1 Â prim eira vista, este princípio pa­
losofia da linguagem. Não se trata, é claro, de m era coin­ rece servir apenas para as artes representativas. C o n tu ­
cidência histórica. R em onta à m esm a divisão básica na do, podia ser transferido com facilidade para todas as
interpretação da realidade. A linguagem e a arte osci­ demais formas. A própria m úsica tornou-se um a im a­
lam constantem ente entre dois pólos opostos, um obje­ gem de coisas. Afinal, até tocar flauta ou dançar não
tivo e outro subjetivo. N enhum a teoria da linguagem passa de um a imitação, pois o flautista ou o dançarino
228 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 229

representam com seus ritmos o caráter dos homens, bem é tão essencial desviar-se da natureza quanto reproduzi-
como o que eles fazem e sofrem 2 . E toda a história da la. Determ inar a medida, a proporção correta, desse des­
poética foi influenciada pela divisa de Horácio, “ utpic- vio tornou-se um a das principais tarefas de um a teoria
tura poesis'’’, e pelo ditado de Simônides, “ a pintura é da arte. Aristóteles havia afirm ado que, para os propó­
poesia m uda, e a poesia é um a pintura falante” . A poe­ sitos da poesia, um a impossibilidade convincente é pre­
sia é diferenciada da pintura pelo modo e pelos meios, ferível a um a possibilidade pouco convincente. A obje­
mas não pela função geral de imitação. ção de um crítico por Zeuxis ter pintado homens que
C ontudo, deve ser observado que as teorias da imi­ nunca poderíam existir na realidade, a resposta certa se­
tação mais radicais não pretendiam restringir a obra de ria que é melhor que fossem assim, pois o artista deve
arte a um a reprodução apenas m ecânica da realidade. aperfeiçoar seu modelo 4 .
Todas elas tiveram de levar em conta, em certa m edi­ Os neoclassicistas — dos italianos do século X V I
da, a criatividade do artista. E ra difícil reconciliar essas ao trabalho do Abbé Batteux, Les beaux arts réduits à un
duas exigências. Se a im itação é a verdadeira m eta da même príncipe (VHT) — tinham por ponto de partida o
arte, fica claro que a espontaneidade, o poder produti­ mesmo princípio. A arte não reproduz a natureza em
vo do artista, constitui um fator mais perturbador que um sentido geral e indiscriminado; ela reproduz l l la belle
construtivo. Em vez de descrever as coisas em sua ver­ nature” . M as, se a imitação é o verdadeiro propósito da
dadeira natureza, ela falsifica o seu aspecto. Essa per­ arte, o próprio conceito de um a “ natureza bela” é alta­
turbação introduzida pela subjetividade do artista não mente questionável. Pois como podemos aperfeiçoar o
podia ser negada pelas teorias clássicas da imitação. Mas nosso modelo sem desfigurá-lo? Com o podemos trans­
podia ser confinada a seus limites próprios, e subm eti­ cender a realidade das coisas sem atentar contra as leis
da a regras gerais. Desse m odo, o princípio ars símia na- da verdade? Do ponto de vista dessa teoria, a poesia e
turae não pôde ser sustentado em um sentido estrito e a arte em geral nunca podem ser nada além de um a fal­
intransigente. Pois nem mesmo a natureza é infalível,
sidade aprazível.
nem tam pouco atinge sempre o seu fim. Nesse caso, a
A teoria geral da imitação pareceu não ceder ter­
arte deve ir ao auxílio da natureza, e até mesmo corrigi-la
reno e desafiar todos os ataques até a prim eira m etade
ou aperfeiçoá-la.
do século X V III. M as até no tratado de Batteux, que
foi talvez o último defensor resoluto dessa teoria 5 , sen­
Mas a natureza desfigura, no que ela se assemelha
Ao artesão que de sua arte se ocupa timos um a certa apreensão quanto à sua validade u n i­
Sem perder o jeito, mesmo que seus dedos tremam 5 . versal. O obstáculo para essa teoria sempre foi o fenô­
meno da poesia lírica. Os argum entos pelos quais Bat­
Se “ toda beleza é verdade” , toda verdade não é neces­ teux tentou incluir a poesia lírica no esquem a geral da
sariam ente beleza. P ara se alcançar a mais alta beleza arte im itativa são fracos e inconclusivos. E, com efeito,
230 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 231

esses argumentos superficiais foram subitamente varri­ mem tem em si uma natureza formativa, que se apresenta na
dos pela aparição de uma nova força. Mesmo no cam­ atividade assim que a existência dele está segura;... De modo
po da estética o nome de Rousseau marca uma virada que o selvagem remodela com traços bizarros, formas grotes­
decisiva na história geral das idéias. Rousseau rejeitou cas e cores grosseiras, seus “ cocos” , suas plumas e seu pró­
toda a tradição clássica e neoclássica da teoria da arte. prio corpo. E muito embora esse elenco de imagens seja com­
Para ele, a arte não é uma descrição ou reprodução do posta das formas mais caprichosas, mas sem proporção de for­
mundo empírico, mas um transbordar de emoções e pai­ mato, suas partes se harmonizam, pois um único sentimento
criou-as em um todo característico.
xões. A Nouvelle Héloise de Rousseau revelou-se como um
Ora, essa arte característica é a única verdadeira arte.
novo poder revolucionário. A partir dele, o princípio mi-
Quando ela age sobre aquilo que a rodeia baseada em um sen­
mético, que prevalecera por muitos séculos, teve de abrir
timento interior, singular, original e independente, descuidan­
caminho para uma nova concepção e um novo ideal —
do e até ignorando o que lhe é alheio, então, seja nascida da
o ideal da “ arte característica” . Desde então podemos selvageria rude, seja da sensibilidade cultivada, ela é plena e
acompanhar o triunfo de um novo princípio em toda a viva6 .
literatura européia. Na Alemanha, Herder e Goethe se­
guiram o exemplo de Rousseau. Desse modo, toda a teo­ Com Rousseau e Goethe teve início um novo pe­
ria da beleza teve de assumir uma nova forma. A bele­ ríodo da teoria estética. A arte característica conquis­
za, no sentido tradicional do termo, não é de modo al­ tou uma vitória definitiva sobre a arte imitativa. Con­
gum a única meta da arte; na verdade, não passa de um tudo, para entendermos essa arte característica em seu
aspecto secundário e derivativo. “ Não deixeis que uma verdadeiro sentido, devemos evitar uma interpretação
concepção errônea fique entre nós” ; aconselha Goethe unilateral. Não basta enfatizar o lado emocional da obra
a seus leitores em seu artigo “ Von deutscher Baukunst” ; de arte. E certo que toda arte característica ou expressi­
va é “ o transbordar espontâneo de sentimentos pode­
não permitais que a doutrina afeminada do moderno traficante
rosos” . Porém, se aceitássemos sem reservas esta defi­
de beleza vos torne delicados demais para desfrutar uma ru­
nição wordsworthiana, seríamos levados apenas a uma
deza significativa, para que no fim vosso sentimento enfraque­
cido não seja capaz de suportar nada além da suavidade sem
mudança de sinal, e não a uma mudança decisiva de
sentido. Tentam fazer-vos crer que as belas artes surgem da sentido. Nesse caso, a arte continuaria sendo reprodu­
nossa suposta inclinação para embelezar o mundo à nossa volta. tiva; mas, em vez de ser uma reprodução de coisas, de
Isso não é verdade... objetos físicos, ela se tornaria uma reprodução de nossa
A arte é formativa muito antes de ser bela, e no entanto vida interior, de nossos afetos e nossas emoções. Usan­
ela é então arte verdadeira e grandiosa, muitas vezes mais ver­ do mais uma vez a nossa analogia com a filosofia da lin­
dadeira e mais grandiosa que a própria arte bela. Pois o ho­ guagem, poderiamos dizer que neste caso teríamos ape-
232 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 233

nas trocado um a teoria onom atopéica da arte por um a Isso vale tanto para as artes especificamente expres­
teoria interjecional. M as não era neste sentido que Goe- sivas quanto para as representativas. M esm o na poesia
the entendia o term o “ arte característica” . O trecho ci­ lírica, a emoção não é o único aspecto, nem o decisivo.
tado acim a foi escrito em 1773, na fase juvenil “Sturm Sem dúvida é verdadeiro que os grandes poetas líricos
undDrang” de Goethe. No entanto, em nenhum perío­ são capazes das emoções mais profundas e que o artista
do de sua vida ele abandonou o pólo objetivo de sua poe­ que não seja dotado de sentimentos poderosos nunca pro­
sia. A arte é de fato expressiva, mas não pode ser expres­ duzirá nada além de arte oca e frívola. M as não pode­
siva sem ser form ativa. E esse processo formativo é le­ mos concluir, com base nesse fato, que a função da poesia
vado a cabo em um certo meio sensual. “ Assim que fica lírica e da arte em geral pode ser adequadam ente des­
livre de preocupações e tem ores” , escreve Goethe, “ o crita como a capacidade do artista para “ esvaziar os sen­
semideus tateia à sua volta em busca de m atéria sobre timentos do peito” . “ O que o artista está tentando fa­
a qual soprar seu espírito” . Em m uitas teorias estéticas zer” , diz R .G . Collingwood, “ é expressar um a em o­
m odernas — em especial na de Croce e de seus discípu­ ção dada. Expressá-la e expressá-la bem são a mesm a
los e seguidores — esse fator m aterial é esquecido ou m i­ coisa... C ada palavra e cada gesto que cada um de nós
nimizado. Croce está interessado apenas no fato da ex­ faz é um a obra de a rte .” 7 M ais um a vez, todo o pro­
pressão, não no modo. C onsidera o modo irrelevante, cesso construtivo que é pré-requisito tanto da produção
tanto para o caráter como para o valor da obra de arte. quanto da contemplação da obra de arte é totalm ente
A única coisa que interessa é a intuição do artista, não menosprezado. Um gesto qualquer não é mais obra de
a corporificação dessa intuição em um m aterial particu­ arte do que um a interjeição qualquer é um ato de fala.
lar. O m aterial tem um a im portância técnica, não esté­ Tanto o gesto como a interjeição carecem de um aspec­
tica. A filosofia de Croce é um a filosofia do espírito, que to essencial e indispensável. Ambos são reações invo­
enfatiza o caráter puram ente espiritual da obra de arte. luntárias e instintivas; não possuem qualquer esponta­
M as em sua teoria toda a energia espiritual está contida neidade real. O momento de intencionalidade é neces­
e é consumida unicamente na formação da intuição. Um a sário para a expressão lingüística e artística. Em cada
vez completado esse processo, a criação artística foi rea­ ato de fala e em cada criação artística encontram os um a
lizada. O que se segue é apenas um a reprodução exter­ estrutura teleológica definida. Um ator em um dram a
na, necessária para a comunicação da intuição, mas sem realmente “ faz” o seu papel. C ada palavra individual
qualquer sentido relativo à sua essência. M as para um é parte de um todo estrutural coerente. A tônica e o rit­
grande pintor, um grande músico ou um grande poeta mo de suas palavras, a modulação de sua voz, suas ex­
as cores, os versos, os ritmos e as palavras não são sim­ pressões faciais e suas posturas corporais — tudo tende
plesmente parte do seu aparato técnico; são momentos para o mesmo fim: a corporificação do caráter hum a­
necessários do próprio processo produtivo. no. N ada disso é simples “ expressão” ; é tam bém re-
234 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 235

presentação e interpretação. Nem mesmo um poem a lí­ esse ato de condensação e concentração. Aristóteles in­
rico está totalm ente desprovido dessa tendência geral da sistiu nesse processo quando quis descrever a verdadei­
arte. O poeta lírico não é apenas um homem que se com­ ra diferença entre a poesia e a história. O que um dra­
praz em exibir sentim entos. Ser arrastado só pela emo­ ma nos apresenta, afirma ele, é um a única ação (g ía irpã
ção é sentimentalismo, não arte. Um artista que não está £tç) que é um todo completo em si m esm a, com toda
absorto na contem plação e n a criação de formas, mas a unidade orgânica de um a criatura viva; ao passo que
antes em seu próprio prazer ou em seu gozo da “ ale­ o historiador não lida com um a única ação, mas com
gria do pesar” , torna-se um sentim entalista. Logo, di­ um período e tudo o que ocorreu neste a um a ou mais
ficilmente poderiam os atribuir à arte lírica um caráter pessoas, por mais desconexas que as diversas ocorrên­
mais subjetivo que o de todas as demais formas de arte, cias possam ser8 .
pois ela contém o mesmo tipo de corporificação e o mes­ A esse respeito a beleza, tanto quanto a verdade,
mo processo de objetificação. “ A poesia” , escreveu Mal- pode ser descrita nos termos da mesm a fórm ula clássi­
larm é, “ não é escrita com idéias, é escrita com pala­ ca: elas são “ um a unidade na m ultiplicidade” . M as nos
v ras.” E escrita com imagens, sons e ritm os que, assim dois casos há um a diferença de ênfase. A linguagem e
como no caso da poesia e d a representação dram áticas, a ciência são um a abreviação da realidade; a arte é um a
se fundem em um todo indivisível. Em todo grande poe­ intensificação dessa realidade. A linguagem e a ciência
m a lírico encontram os essa unidade concreta e indivi­ dependem de um único e mesmo processo de abstração;
sível. a arte pode ser descrita como um processo contínuo de
T al como todas as outras formas simbólicas, a arte concreção. Na nossa descrição científica de um dado ob­
não é um a simples reprodução de um a realidade dada, jeto, começamos com um grande núm ero de observa­
pronta. E um dos meios que levam a um a visão objeti­ ções que, à prim eira vista, parecem apenas um conglo­
va das coisas e da vida hum ana. Não é um a imitação, m erado indefinido de fatos desconexos. Q uanto mais
mas um a descoberta da realidade. C ontudo, não desco­ avançamos, porém , mais esses fenômenos individuais
brimos a natureza através da arte no mesmo sentido que tendem a assum ir um a form a definida e a tornar-se um
o cientista usa o term o “ n atu reza” . A linguagem e a todo sistemático. O que a ciência procura é um a carac­
ciência são os dois processos principais pelos quais ava­ terística central de um determ inado objeto, da qual pos­
liamos e determ inam os nossos conceitos do m undo ex­ sam ser derivadas todas as suas qualidades particulares.
terior. Precisamos classificar nossas percepções senso- Se um químico conhece o núm ero atômico de um certo
riais e agrupá-las em noções e regras gerais para poder­ elemento, tem um a chave para um a plena com preen­
mos dar-lhes um sentido objetivo. Tal classificação re­ são da sua estrutura e constituição. Desse núm ero ele
sulta de um esforço persistente no sentido da simplifi­ pode deduzir todas as propriedades características do ele­
cação. A obra de arte, de um modo parecido, implica mento. M as a arte não adm ite esse tipo de simplifica-
238 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 239

tética é incom paravelm ente mais rica. Está prenhe de estética"' e a “ validade objetiva” , que faz parte de nos­
infinitas possibilidades que não são realizadas na expe­ sos juízos lógicos e científicos1 0 . Em nossos juízos esté­
riência sensorial ordinária. N a obra do artista, essas pos­ ticos, sustenta ele, não nos preocupamos com o objeto
sibilidades tornam -se realidades; são trazidas à lu z e as­ como tal, mas com a pura contemplação do objeto. A
sumem um a form a definida. A revelação dessa inesgo­ universalidade estética significa que o predicado de be­
tabilidade dos aspectos das coisas é um dos grandes pri­ leza não se restringe a um indivíduo especial, mas se
vilégios e um dos m ais profundos encantos da arte. estende por sobre todo o campo dos sujeitos julgantes.
Em suas m em órias, o pintor Ludwig R ichter con­ Se a obra de arte não passasse de extravagância e frene­
ta que certa vez na sua juventude, quando estava em si de um artista individual, não possuiría essa comuni-
Tivoli, ele e três amigos decidiram-se a pintar a m esm a cabilidade universal. A imaginação do artista não inventa
paisagem. Todos tinham a firme resolução de não se des­ arbitrariam ente as formas das coisas; m ostra-nos essas
viar da natureza; queriam reproduzir o que viam com formas em seu aspecto verdadeiro, tornando-as visíveis
a m aior precisão possível. M esm o assim, a experiência e reconhecíveis. O artista escolhe um certo aspecto da
resultou em quatro quadros completamente diversos, tão realidade, mas esse processo de seleção é ao mesmo tem ­
diferentes um do outro quanto as personalidades dos ar­ po um processo de objetificação. Depois de ingressar­
tistas. O narrado r concluiu disso que a visão objetiva mos nessa perspectiva, somos forçados a olhar para o
não existe, e que a form a e a cor são sempre apreendi­ m undo com os olhos dele. Temos a impressão de nunca
das de acordo com o tem peram ento individual9 . Nem antes ter visto o m undo sob essa luz peculiar. Conven-
mesmo os defensores mais determ inados de um n atu ra­ cemo-nos de que essa luz não é apenas um fulgor m o­
lismo estrito poderíam m enosprezar ou negar esse fa­ mentâneo. Em virtude da obra de arte, ela tornou-se du­
tor. Emile Zola define a obra de arte como “ uzz coin de radoura e perm anente. Depois que a realidade nos é re­
la nature vu à travers un tempérament” . O tem peram ento a velada nesse modo particular, continuamos a vê-la com
que se faz referência aqui não é apenas singularidade esse mesmo aspecto.
ou idiossincrasia. Q uando estamos absortos na intuição Portanto, é difícil m anter um a distinção nítida en­
de um a grande obra de arte, não sentimos um a separa­ tre o objetivo e o subjetivo, entre as artes expressivas
ção entre os m undos subjetivo e objetivo. Não vivemos e as representativas. A frisa do Partenon ou um a M issa
n a nossa realidade simples e corriqueira das coisas físi­ de Bach, a “ Capela Sistina” de M ichelangelo ou um
cas, nem vivemos integralm ente em um a esfera indivi­ poem a de Leopardi, um a sonata de Beethoven ou um
dual. Além dessas duas esferas detectamos um novo do­ rom ance de Dostoievski — nada disso é m eram ente re­
m ínio, o dom ínio das formas plásticas, musicais, poéti­ presentativo, nem meramente expressivo. São obras sim­
cas; e estas têm u m a universalidade real. K ant faz um a bólicas em um sentido novo e mais profundo. As obras
distinção nítida entre o que cham a de “ universalidade dos grandes poetas líricos — de Goethe ou Hôlderlin,
240 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 241

de Wordsworth ou Shelley — não nos oferecem disjecti monia da nossa vida moral. A imaginação poética, se­
membra poetae, fragmentos dispersos e incoerentes da vi­ gundo Platão, rega as nossas experiências de luxúria e
da do poeta. Não são uma simples erupção momentâ­ ira, de desejo e dor, fazendo com que vicejem onde de­
nea de um sentimento apaixonado, mas revelam uma veríam murchar com a seca12 . Tolstói vê na arte uma
profunda unidade e continuidade. Por outro lado, os forma de infecção. “ Não só a infecção é um sinal de
grandes escritores trágicos e cômicos — Eurípides e Sha- arte” , diz ele, “ como o grau de infecciosidade é tam­
kespeare, Cervantes e Molière — não nos entretêm com bém a única medida de excelência da arte.” Mas a fa­
cenas destacadas do espetáculo da vida. Tomadas em lha de sua teoria é óbvia. Tolstói suprime um momen­
si mesmas, essas cenas não passam de sombras fugidias. to fundamental da arte, o momento da forma. A expe­
De repente, porém, começamos a ver por trás dessas riência estética — a experiência de contemplação — é
sombras e a vislumbrar uma nova realidade. Através de um estado de espírito diferente da frieza do juízo teóri­
seus personagens e de suas ações, o cômico e o poeta co e da sobriedade do juízo moral. Está repleta das mais
trágico revelam a sua visão da vida como um todo, da vividas energias da paixão, mas a própria paixão é ne­
sua grandeza e sua fraqueza, seu caráter sublime e ab­ la transformada tanto em sua natureza como em seu sen­
surdo. “ A arte” , escreveu Goethe, tido. Wordsworth define a poesia como “ emoção relem­
brada na tranqüilidade” . Mas essa tranqüilidade que
não se propõe a emular a natureza em sua amplidão e profun­ sentimos na grande poesia não é a da lembrança. As
didade; atém-se à superfície dos fenômenos naturais. Mas tem emoções suscitadas pelo poeta não pertencem a um pas­
sua própria profundidade, seu próprio poder: cristaliza os mo­ sado remoto. Estão “ aqui” — vivas e imediatas. Te­
mentos mais elevados desses fenômenos superficiais reconhe­ mos consciência de seu pleno vigor, mas esse vigor ten­
cendo neles o caráter de aderência às leis, a perfeição da pro­ de para uma nova direção. E mais visto que imediata­
porção harmoniosa, o cúmulo de beleza, a dignidade de sig­ mente sentido. Nossas paixões deixam de ser poderes
nificado, o auge de paixão1 1 . obscuros e impenetráveis; tornam-se, por assim dizer,
transparentes. Shakespeare nunca apresenta uma teo­
Essa fixação dos ‘‘momentos mais elevados dos fenôme­ ria estética. Não especula sobre a natureza da arte. Con­
nos” não é nem uma imitação de coisas físicas, nem um tudo, no único trecho em que fala do caráter e da fun­
simples transbordar de sentimentos poderosos. E uma ção da arte dramática, toda a ênfase é dada a esse as­
interpretação da realidade — não através de conceitos, pecto. “ O propósito da representação” , tal como ex­
mas de intuições; por meio não do pensamento, mas das plica Hamlet, “ no início como agora, era e é, segurar,
formas sensuais. por assim dizer, o espelho para a natureza; mostrar à
De Platão a Tolstói a arte foi acusada de excitar virtude seus traços, ao escárnio a sua imagem, e à pró­
nossas emoções, perturbando assim a ordem e a har­ pria era e ao corpo do tempo sua forma e pressão. ’’ Mas
242 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 243

a imagem de um a paixão não é a própria paixão. O poeta estar claro e tem hoje aceitação geral é que o processo
que representa um a paixão não nos contagia com ela. catártico descrito por Aristóteles não significa um a pu­
Em um a peça de Shakespeare não somos contagiados rificação ou um a m udança de caráter e qualidade das
pela ambição de M acbeth, pela crueldade de Ricardo próprias paixões, e sim um a m udança na alm a hum a­
III ou pelo ciúm e de Otelo. Não estamos à mercê des­ na. Através da poesia trágica a alm a adquire um a nova
sas emoções; olhamos através delas; temos a impressão atitude para com suas emoções. Experim enta as em o­
de penetrar em sua própria natureza e essência. A esse ções de piedade e medo, mas, em vez de ficar p erturba­
da e intranqüila por causa delas, é levada a um estado
respeito, a teoria da arte dram ática de Shakespeare, se
de repouso e paz. À prim eira vista, isso pode parecer
é que ele tinha tal teoria, está em completo acordo com
um a contradição, pois aquilo que Aristóteles ve como
a concepção das belas artes dos grandes pintores e es­
efeito da tragédia é um a síntese de dois m omentos que
cultores do Renascim ento. Ele teria subscrito as pala­
na vida real, na nossa existência prática, são mutuamente
vras de Leonardo da Vinci, de que o saper vedere é o mais
exclusivos. Considera-se que a mais alta intensificação
alto talento do artista. Os grandes pintores mostram-nos
da nossa vida emocional nos proporciona ao mesmo tem ­
as formas das coisas exteriores; os grandes autores d ra­
po um sentimento de repouso. Vivemos todas as nossas
máticos m ostram -nos as formas de nossa vida interior. paixões sentindo todo o seu alcance e sua mais alta ten­
A arte dram ática revela novas amplidões e profundida­ são. M as o que deixamos para trás, quando passamos
des da vida. Transm ite um a percepção das coisas e dos o lim iar da arte, não é a pressão concreta, a compulsão
destinos dos hom ens; da grandeza e da m iséria hum a­ de nossas emoções. O poeta trágico não é escravo, mas
nas, diante do que nossa experiência comum parece-nos senhor, de suas emoções; e é capaz de transferir esse do­
pobre e trivial. Todos nós sentimos, de m aneira vaga mínio aos espectadores. N a obra dele não somos con­
e indefinida, os infinitos potenciais da vida, que silen­ trolados e arrastados por nossas emoções. A liberdade
ciosamente esperam o m om ento em que serão desper­ estética não é a ausência de paixões, não é a apatia es-
tados de seu sono para a luz clara e intensa da consciên­ tóica, mas precisamente o contrário. Significa que nos­
cia. Não é o grau de infecciosidade, mas o grau de in­ sa vida emocional adquire o seu mais alto vigor e que,
tensificação e ilum inação que é a m edida da excelência nesse próprio vigor, ela m uda de forma. Isso porque não
da arte. estamos mais vivendo na realidade im ediata das coisas,
Se aceitarmos essa visão da arte poderemos ter um a mas em um m undo de formas sensuais puras. Neste
m elhor compreensão de um problem a que surgiu pela m undo, todos os nossos sentimentos sofrem um a espé­
prim eira vez na teoria aristotélica da catarse. Não pre­ cie de transubstanciação no que tange à sua essência e
cisamos detalhar aqui todas as dificuldades do termo aris- ao seu caráter. As próprias paixões são aliviadas de seu
totélico, nem os inúmeros esforços dos comentaristas no peso m aterial. Sentimos sua form a e sua vida, mas não
sentido de esclarecer tais dificuldades 1 3 . O que parece o seu estorvo. A calma da obra de arte é, paradoxalmen-
244 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 245

te, uma calma dinâmica, não estática. A arte nos apre­ processo dinâmico da nossa vida interior, então dificil­
senta os movimentos da alma humana em toda a sua mente uma qualificação desse tipo seria qualquer coisa
profundidade e variedade. Mas a forma — a medida e mais que perfunctória e superficial. A arte deve sempre
o ritmo — desses movimentos não é comparável a qual­ dar-nos mais moção do que mera emoção. Até mesmo
quer estado emocional isolado. O que sentimos na arte a distinção entre arte trágica e arte cômica é mais con­
não é uma qualidade emocional simples ou única. E o vencional que necessária. Ela diz respeito ao conteúdo
processo dinâmico da própria vida: a oscilação contínua e aos motivos, mas não à forma e à essência da arte.
entre pólos opostos, entre alegria e pesar, esperança e H á muito Platão negara a existência desses limites arti­
temor, exultação e desespero. Dar uma forma estética ficiais e tradicionais. No final do Banquete ele descreve
a nossas paixões é transformá-las em um estado livre e uma conversa de Sócrates com Agathon, o poeta trági­
ativo. Na obra do artista, o poder da própria paixão foi co, e Aristófanes, o poeta cômico. Sócrates obriga os dois
transformado em um poder formativo.
poetas a admitir que o verdadeiro autor trágico é o ver­
Pode-se objetar que tudo isso se aplica ao artista
dadeiro artista na comédia, e vice-versa14. No Philebus
mas não a nós, espectadores e ouvintes. Tal objeção, po­
faz-se um comentário sobre esse trecho. Neste diálogo
rém, implicaria uma falta de compreensão do processo
Platão sustenta que na comédia, assim como na tragé­
artístico. Assim como o processo da fala, o processo da
dia, experimentamos sempre um sentimento misto de
arte é dialógico e dialético. Nem mesmo o espectador
fica em um papel meramente passivo. Não podemos en­ prazer e dor. Nisto o poeta segue as regras da própria
tender uma obra de arte sem, até certo ponto, repetir natureza, pois retrata “ toda a comédia e a tragédia da
e reconstruir o processo criativo pelo qual ela veio à luz. vida’’15 . Em todo grande poema — nas peças de Sha-
Pela natureza desse processo criativo, as próprias pai­ kespeare, na Comédia de Dante, no Fausto de Goethe —
xões são transformadas em ações. Se tivéssemos de su­ devemos com efeito passar por toda a gama das emo­
portar, na vida real, todas as emoções por que passa­ ções humanas. Se fôssemos incapazes de apreender as
mos no Êdipo de Sófocles ou no Rei Lear de Shakespea- nuanças mais delicadas dos diferentes sentimentos, in­
re, dificilmente sobreviveriamos ao choque e à tensão. capazes de acompanhar as contínuas variações de rit­
Mas a arte transforma todas essas dores e ultrajes, es­ mo e tom, se não fôssemos levados pelas súbitas mudan­
sas crueldades e atrocidades, em um meio de autoliber- ças dinâmicas, não poderiamos entender e sentir o poe­
tação, conferindo-nos assim uma liberdade interior que ma. Podemos falar do temperamento individual do poe­
não pode ser atingida de nenhum outro modo. ta, mas a obra de arte, como tal, não tem qualquer tem­
A tentativa de caracterizar a obra de arte de acor­ peramento especial. Não podemos incluí-la em nenhum
do com algum traço emocional particular, portanto, dei­ dos conceitos de classe tradicionais da psicologia. Falar
xa inevitavelmente de lhe fazer justiça. Se o que a arte da música de Mozart como serena ou alegre, da de Bee-
tenta expressar não é um estado especial, mas o próprio thoven como grave, sombria ou sublime seria marca de
246 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 247

um gosto pouco profundo. Na música também a distin­ ne, nos Pickwick Papers de Dickens. Passamos a obser­
ção entre a tragédia e a comédia torna-se irrelevante. var os mais mínimos detalhes; vemos este mundo em
Mal vale a pena tentar responder à pergunta de se o Don toda a sua estreiteza, mesquinhez e tolice. Vivemos neste
Giovanni de Mozart é uma tragédia ou uma opera bitffa. mundo restrito, mas não estamos mais aprisionados por
A composição de Beethoven baseada no “ Hino à Ale­ ele. Tal é o caráter peculiar da catarse cômica. As coi­
gria” de Schiller expressa o mais alto grau de exulta- sas e os eventos começam a perder seu peso material;
ção. Mas, quando a escutamos, nem por um momento o escárnio dissolve-se no riso, e o riso é libertação.
esquecemos os acentos trágicos da Nona Sinfonia. To­ Que a beleza não é uma propriedade imediata das
dos esses contrastes devem estar presentes e devem ser coisas, que envolve necessariamente uma relação com
sentidos com toda a sua força. Em nossa experiência es­ a mente humana é uma questão que parece ser admiti­
tética eles se fundem em um todo indivisível. O que ou­ da por todas as teorias estéticas. Em seu ensaio “ Sobre
vimos é a escala completa das emoções humanas, da nota o Padrão do Gosto” , Hume declara: “ A beleza não é
mais grave à mais aguda; é o movimento e a vibração uma qualidade das coisas em si; existe apenas na mente
de todo o nosso ser. Nem mesmo os maiores comedian­ que as contempla.” Mas essa afirmação é ambígua. Se
tes podem propiciar-nos uma beleza fácil. Sua obra es­ entendermos a mente no sentido do próprio Hume, e
tá com freqüência repleta de uma grande amargura. pensarmos no eu como nada além de um feixe de im­
Aristófanes é um dos críticos mais ferinos e rigorosos pressões, será muito difícil encontrar nesse feixe aquele
da natureza humana; ern lugar algum Molière é mais predicado que chamamos de beleza. A beleza não pode
grandioso que no Misantropo ou no Tartufo. Mas a amar­ ser definida por seus meros percipi, como “ sendo perce­
gura dos grandes escritores cômicos não é a acrimônia bida” ; deve ser definida em termos de uma atividade
do satirista ou a severidade do moralista. Não leva a um da mente, da função de perceber e de uma direção ca­
veredicto moral sobre a vida humana. A arte cômica pos­ racterística desta função. Não consiste em percepções
sui no mais alto grau uma faculdade comum a toda a passivas; é um modo, um processo de perceptualização.
arte, a visão solidária. Em virtude dessa faculdade, ela Mas esse processo não é de caráter apenas subjetivo; ao
é capaz de aceitar a vida humana com todos os seus de­ contrário, é uma das condições da nossa intuição do
feitos e suas fraquezas, sua insensatez e seus vícios. A mundo objetivo. O olho artístico não é um olho passivo
grande arte cômica sempre foi uma espécie de encomium que recebe e registra a impressão das coisas. E um olho
moriae, um elogio à insensatez. Na perspectiva cômica construtivo, e só por meio de atos construtivos podemos
todas as coisas começam a assumir um rosto novo. Tal­ descobrir a beleza das coisas naturais. O sentido de be­
vez nunca fiquemos mais próximos do nosso mundo hu­ leza é a susceptibilidade à vida dinâmica das formas, e
mano do que nas obras de um grande autor cômico — esta vida não pode ser apreendida sem um processo di­
no Dom Quixote de Cervantes, no Tristam Shandy de Ster- nâmico correspondente em nós mesmos.
O HOMEM E A CULTURA 249
248 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

É claro que nas várias teorias estéticas esta polari­ pelo aspecto dinâmico das formas que consiste a expe­
dade, que como vimos é um a condição inerente à bele­ riência estética.
za, levou a interpretações diam etralm ente opostas. Se­
gundo Albrecht D ürer, o verdadeiro talento do artista
é “ extrair” beleza da natureza. “ Denn wahrhaftig steckt 2
die K unst in der N atur, wer sie heraus kann reissen,
der hat sie.” 16 P or outro lado, temos teorias espiritua­ Em certo sentido, todas as controvérsias entre as di­
listas que negam qualquer conexão entre a beleza da arte versas escolas estéticas podem ser reduzidas a um a ú n i­
e a cham ada beleza da natureza. A beleza da natureza ca questão. O que todas essas escolas têm de adm itir é
é entendida como simples m etáfora. Croce vê como pu ­ que a arte é um “ universo de discurso” independente.
ra retórica falar de um belo rio ou de um a bela árvore. M esmo os defensores mais radicais de um realismo es­
Para ele, a natureza é estúpida quando comparada à arte; trito, que queriam lim itar a arte a um a função apenas
ela é m uda, a menos que o hom em a faça falar. Talvez mimética, foram forçados a fazer concessões ao poder es­
seja possível resolver a contradição entre essas concep­ pecífico da imaginação artística. M as as diversas escolas
ções fazendo-se um a distinção clara entre a beleza or­ divergiam amplamente na avaliação desse poder. As teo­
gânica e a beleza estética. H á m uitas belezas naturais rias clássicas e neoclássicas não encorajavam o exercício
sem qualquer caráter estético específico. A beleza orgâ­ livre da imaginação. Segundo essas teorias, a im agina­
nica de um a paisagem não é a m esm a coisa que a bele­ ção do artista é um grande talento, mas um tanto ques­
za estética que sentimos nas obras dos grandes pintores tionável. O próprio Boileau não negava que, do ponto
de paisagens. M esm o nós, os espectadores, temos ple­ de vista psicológico, o dom da im aginação é indispensá­
na consciência dessa diferença. Posso andar em meio a vel para todo verdadeiro poeta. M as, se o poeta se com ­
um a paisagem e sentir seus encantos. Posso apreciar a praz no mero exercício desse impulso natural e desse po­
leveza do ar, o frescor dos prados, a variedade e a ale­ der instintivo, nunca chegará à perfeição. A imaginação
gria do colorido e o arom a das flores. M as posso expe­ do poeta deve ser guiada e controlada pela razão e sujei­
rim entar um a súbita m udança no m eu estado de espíri­ ta às regras desta. M esmo quando se desvia do natural
to. Passo então a ver a paisagem com olhos de artista o poeta deve respeitar as leis da razão, e estas o lim itam
— começo a form ar um quadro dela. Acabo de ingres­ ao campo do provável. O classicismo francês definia es­
sar em um novo território — não o domínio das coisas se campo em termos puram ente objetivos. As unidades
vivas, mas o das “ formas vivas” . Saindo da realidade dram áticas de tempo e espaço tornavam -se fatos físicos,
im ediata das coisas, estou agora vivendo no ritm o das mensuráveis por um padrão linear ou por um relógio.
formas espaciais, na harm onia e no contraste das cores, U m a concepção inteiram ente diferente do caráter
no equilíbrio entre a luz e a sombra. E nesta absorção e da função da imaginação poética foi introduzida pela
250 ENSAIO SOBRE O HOMEM
O HOMEM E A CULTURA 251
teoria rom ântica da arte. Esta teoria não é obra da cha­
m ada “ escola rom ântica” , da Alemanha. J á fora desen­ No entanto, a concepção rom ântica da poesia não
volvida e tivera um papel decisivo m uito antes, tanto encontrou um apoio sólido em Shakespeare. Se preci­
na literatura francesa como na inglesa, no século X V III. sássemos de um a prova de que o m undo do artista não
U m a das melhores e mais concisas expressões dessa teoria é um universo apenas “ fantástico” , não poderiamos en­
pode ser encontrada nas Conjectures on Original Composi- contrar m elhor testemunho, nem mais clássico, que o
tion, de Edw ard Young (1759). “ A plum a de um escri­ de Shakespeare. A luz com que ele vê a natureza e a
tor original” , diz Young, “ como o bastão de Arm ida, vida hum ana não é um a simples “ luz de fantasia em
faz brotar um a fonte de um deserto desolado. ’’ A partir fantasia apanhada” . H á contudo outra form a ainda de
de então, as visões clássicas do provável passaram a ser imaginação à qual a poesia parece indissoluvelmente li­
cada vez mais suplantadas pelo seu oposto. Passa-se a gada. Q uando Vico fez sua prim eira tentativa sistemá­
acreditar que o maravilhoso e o milagroso são os únicos tica de criar um a “ lógica da im aginação” , voltou para
temas que adm item um verdadeiro retrato poético. Na o m undo do mito. Ele fala de três eras diferentes: a era
estética do século X V III podemos acom panhar passo a dos deuses, a era dos heróis e a era do hom em . É nas
passo a ascensão desse novo ideal. Os críticos suíços Bod- duas prim eiras, declarou ele, que devemos procurar a
m er e Breitinger apelam a M ilton p ara justificar o “ m a­ verdadeira origem da poesia. A hum anidade não pode­
ravilhoso na poesia” 1 7 . Pouco a pouco, o maravilhoso ría começar com o pensam ento abstrato ou com um a
ultrapassa e supera o provável como tem a literário. A linguagem racional. T inha de passar pela era da lingua­
nova teoria parecia estar sendo corporificada na obra dos gem simbólica do mito e da poesia. As prim eiras nações
grandes poetas. O próprio Shakespeare ilustrou-a em sua não pensavam por conceitos, mas por imagens poéticas;
descrição da imaginação do poeta: falavam por fábulas e escreviam em hieróglifos. O poe­
ta e o criador de mitos parecem viver, com efeito, no
The lunatic, the lover and the poet mesmo mundo. São dotados do mesmo poder fundamen­
Are of imagination all compact: tal, o poder da personificação. Não conseguem contem ­
One sees more devils than vast hell can hold, plar um objeto qualquer sem lhe dar um a vida interior
That is, the madman; the lover, all as frantic, e um a form a pessoal. O poeta m oderno volta com fre-
Sees Helen’s beauty in a brow of Egypt: qüência o olhar para as eras “ divina” ou “ heróica” ,
The poet’s eye, in a fine frenzy rolling, como para um paraíso perdido. Em seu poema “ Os Deu­
Doth glance from heaven to earth, from earth to heaven; ses da Grécia” , Schiller expressou este sentimento. Quis
And, as imagination bodies forth
lem brar os tempos dos poetas gregos, para os quais o
The forms of things unknown, the poet’s pen
mito não era um a alegoria vazia, mas um poder vivo.
Turns them to shapes, and gives to airy nothing
O poeta anseia por esta idade de ouro da poesia, em
A local habitation and a name .
que todas as coisas estavam ainda cheias de deuses,
252 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 253

em que cada colina era a morada de uma oréade, cada sas formas que nos afeta na obra de arte. Cada arte tem
árvore o lar de uma dríade. seu próprio idioma característico, que é inconfundível
Mas a queixa do poeta moderno parece ser infun­ e intransferível. Os idiomas das diversas artes podem
dada, pois um dos maiores privilégios da arte é que nun­ estar interligados, como, por exemplo, quando se faz
ca pode perder essa “ idade de ouro” . Nela, a fonte da uma letra para uma música ou se ilustra um poema; mas
criação imaginativa nunca seca, porque é indestrutível não são traduzíveis entre si. Cada idioma tem uma ta­
e inesgotável. A cada época e em cada grande poeta a refa especial a cumprir na “ arquitetura” da arte. “ Os
operação da imaginação ressurge em novas formas e com problemas de forma que surgem dessa estrutura arqui­
nova força. Nos poetas líricos, acima de tudo, sentimos tetônica” , afirma Adolf Hildebrand,
esse renascimento e essa regeneração contínuos. Não po­
dem tocar uma coisa sem imbuí-la de sua própria vida embora não nos sejam dados imediata e evidentemente pela
interior. Wordsworth descreveu esse dom como o po­ Natureza, não deixam de ser os verdadeiros problemas da ar­
der inerente à sua poesia: te. O material adquirido através de um estudo direto da Na­
tureza é transformado, pelo processo arquitetônico, em uma
To every natural form, rock, fruits or flower, unidade artística. Quando falamos do aspecto imitativo da arte,
Even the loose stones that cover the highway, fazemos referência ao material que ainda não foi desenvolvi­
I gave a moral life: I saw them feel, do desse modo. Através do desenvolvimento arquitetônico, por­
O r linked them to some feeling: the great mass tanto, a escultura e a pintura emergem da esfera do mero na­
Lay imbedded in a quickening soul, and all turalismo para o domínio da verdadeira arte^9 .
That I beheld respired with inward meaning1 9 .
Até na poesia encontramos esse desenvolvimento arqui­
Com esses poderes de invenção e de animação, po­ tetônico. Sem ele, a imitação ou invenção poética per-
rém, estamos apenas na ante-sala da arte. O artista não deria a sua força. Os horrores do Inferno de Dante se­
deve sentir o “ sentido interior” das coisas e a vida mo­ riam horrores crus e imediatos, e os arrebatamentos do
ral delas, ele deve exteriorizar seus próprios sentimen­ Paraíso seriam sonhos visionários se não houvessem si­
tos. O mais alto e mais característico poder da imagina­ do moldados em novas formas pela magia da dicção e
ção artística surge neste último ato. A exteriorização sig­ do verso de Dante.
nifica uma corporificação visível ou tangível, não só em Em sua teoria da tragédia, Aristóteles destacou a
um meio material particular — argila, bronze ou már­ invenção da trama trágica. De todos os ingredientes ne­
more —, mas também em formas sensuais, em ritmos, cessários para a tragédia — espetáculo, personagens, fá­
no padrão das cores, nas linhas do desenho, nas formas bula, dicção, melodia e pensamento — ele dava mais
plásticas. E a estrutura — o equilíbrio e a ordem — des­ importância à combinação dos incidentes da narrativa
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 255
254

(r) t c ò v 'KpaynÚTwv o v o t c k h ç ). Isso porque a tragédia é em seu System of Transcendental Idealism que a arte é a cul­
essencialmente um a imitação, não de pessoas, mas de m inação da filosofia. N a natureza, na m oralidade e na
ação e vida. Em um a peça, as pessoas não atuam para história, estamos ainda vivendo no propileu da sabedo­
retratar as personagens; estas é que são representadas ria filosófica; com a arte, entram os no próprio santuá­
por causa da ação. U m a tragédia é impossível sem ação, rio. Os escritores românticos, em verso e prosa, expres­
mas pode haver tragédia sem personagem 2 1 . O classi- saram -se n a m esm a veia. Sentia-se que a distinção en­
cismo francês adotou e enfatizou essa teoria aristotéli- tre poesia e filosofia era vazia e superficial. Segundo Frie-
ca. Nos prefácios às suas peças, Corneille sempre insis­ drich Schlegel, a mais alta tarefa do poeta m oderno é
te nesse ponto. Fala com orgulho de sua tragédia Hera- buscar um a nova form a de poesia que ele cham a de
clius, porque nela a tram a era tão complicada que exi­ “ poesia transcendental” . N enhum outro gênero de poe­
gia um esforço intelectual especial para ser entendida sia pode nos fornecer a essência do espírito poético, a
e decifrada. E claro, porém , que esse tipo de atividade “ poesia da poesia” 2 2 . Poetizar a filosofia e filosofizar
intelectual e de prazer intelectual não é um elemento ne­ a poesia — tal era a mais alta m eta dos pensadores ro­
cessário do processo artístico. Apreciar as tram as de Sha- mânticos. O poem a verdadeiro não é obra de um artis­
kespeare — acom panhar com o mais vivo interesse “ a ta individual: é o próprio universo, a única obra de arte
combinação de incidentes da n arrativ a” de Otelo, Mac- que está sempre se aperfeiçoando. Logo, todos os mais
beth ou Lear — não significa necessariamente que se en­ profundos mistérios de todas as artes e ciências dizem
tenda e se sinta a arte trágica de Shakespeare. Sem a respeito à poesia 2 3 . “ A poesia” , diz Novalis, “ é aqui­
linguagem de Shakespeare, sem o poder de sua dicção lo que é absoluta e genuinam ente real. Este é o cerne
dram ática, nada disso seria im pressionante. O contex­ da m inha filosofia. Quanto mais poético, mais real.” 24
to de um poem a não pode ser separado de sua forma Segundo essa concepção, a poesia e a arte pareciam
— do verso, da m elodia, do ritm o. T ais elementos for­ ter sido elevadas a um a posição e um a dignidade que
mais não são meros meios externos ou técnicos para re­ nunca antes haviam possuído. Tornaram -se um novum
produzir determ inada intuição; são parte integrante da organum para a descoberta da riqueza e profundidade do
própria intuição artística. universo. Apesar disso, esse elogio exuberante e enle­
No pensam ento romântico, a teoria da imaginação vado da imaginação poética tinha suas limitações estri­
poética alcançou seu clímax. A im aginação não é mais tas. P ara poderem alcançar seu fim metafísico, os ro ­
a atividade hum ana especial que constrói o m undo hu­ mânticos foram forçados a fazer um grande sacrifício.
m ano da arte. Tem agora um valor metafísico univer­ O infinito fora declarado o verdadeiro tem a da arte, na
sal. A im aginação poética é a única chave para a reali­ realidade o único. O belo foi concebido como um a re­
dade. O idealismo de Fichte está baseado em sua con­ presentação simbólica do infinito. Só pode ser artista,
cepção d a “ im aginação produtiva” . Schelling declarou segundo Friedrich Schlegel, aquele que tenha sua pró-
256 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM
0 HOMEM E A CULTURA 251
pria religião, um a concepção original do infinito2 5 . Nes­
lismo radical e intransigente. M as foi precisam ente es­
te caso, porém , o que acontece com o nosso m undo fi­
se naturalism o que os levou a um a concepção mais pro­
nito, o m undo das experiências sensoriais? Fica claro
funda da forma artística. Negando as “ formas p u ras”
que, como tal, este m undo não tem quaisquer direitos
das escolas idealistas, concentraram -se no aspecto m a­
sobre a beleza. Ao lado do universo verdadeiro, do uni­
terial das coisas. Em virtude dessa concentração total,
verso do poeta e artista, encontram os o nosso m undo
foram capazes de superar o dualismo convencional en­
prosaico, carente de toda verdade poética. U m dualis­
tre as esferas poética e prosaica. A natureza de um a obra
mo desse tipo é um a característica essencial de todas as
de arte, segundo os realistas, não depende da grandeza
teorias rom ânticas da arte. Q uando Goethe começou a
ou da pequenez de seu tem a. T em a algum é im perm eá­
publicar Wilhelm Meister’s Lehrjahre, os prim eiros críti­
vel à energia formativa da arte. U m dos maiores triun-
cos românticos saudaram a obra com expressões extra­
fos da arte é fazer com que vejamos as coisas corriquei­
vagantes de entusiasm o. Novalis viu em Goethe “ a en­
ras em sua verdadeira form a e sob a sua verdadeira luz.
carnação do espírito poético sobre a te rra ” . N a conti­
Balzac mergulhou nos aspectos mais frívolos da “ comé­
nuação do livro, porém , quando as figuras românticas
dia h u m an a ” , Flaubert fez análises profundas das per­
de M ignon e do harpista foram eclipsadas por persona­
sonagens mais sórdidas. Em alguns romances de Emile
gens mais realistas e acontecimentos mais prosaicos, No­
Zola encontramos descrições minuciosas da estrutura de
valis ficou profundam ente desapontado. Ele não se li­
um a locomotiva, de um a loja de departam entos, de um a
m itou a revogar seu prim eiro juízo; chegou até a cha­
m ina de carvão. N enhum detalhe técnico, por mais in­
m ar Goethe de traidor da causa da poesia. Wilhelm Meister
significante, era omitido nesses relatos. No entanto, ao
passou a ser considerado um a sátira, um “ Cândido con­
percorrer as obras de todos esses realistas, encontra-se
tra a poesia” . Q uando a poesia perde de vista o m ara­
um grande poder imaginativo, em n ad a inferior ao dos
vilhoso, perde seu significado e sua justificativa. A poe­
escritores românticos. O fato de não ser possível reco­
sia não pode prosperar em nosso m undo trivial e corri­
nhecer abertam ente esse poder foi um dos grandes em ­
queiro. O milagroso, o prodigioso e o misterioso são os
pecilhos para as teorias naturalistas da arte. Em suas ten­
únicos temas dignos de um tratam ento verdadeiram en­
tativas de refutar as concepções rom ânticas acerca de
te poético.
um a poesia transcendental, eles reverteram p ara a ve­
Contudo, essa concepção da poesia é mais um a qua­
lha definição da arte como imitação da natureza. Fa­
lificação e um a lim itação que um a explicação genuína
zendo isso, eles passaram ao largo da questão principal,
do processo criativo da arte. E curioso que os grandes
pois deixaram de reconhecer o caráter simbólico da a r­
realistas do século X IX tivessem a esse respeito um a
te. Se essa caracterização da arte fosse adm itida, pare­
compreensão mais precisa do processo da arte que seus
cia não haver como escapar às teorias metafísicas do ro­
adversários rom ânticos. Eles sustentavam um natu ra­
m antism o. A arte é de fato simbolismo, mas o simbolis-
O HOMEM E A CULTURA 259
258 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

são obrigadas a apresentar um a teoria geral da beleza.


mo da arte deve ser entendido em um sentido im anente,
Limitam-se a um terreno mais estreito, pois ocupam-se
não transcendente. A beleza é “ O Infinito finitam ente
apenas do fato da beleza, e de um a análise descritiva
apresentado” , segundo Schelling. O verdadeiro tema não
deste fato. A prim eira tarefa da análise psicológica é de­
é, contudo, o Infinito metafísico de Schelling, nem o Ab­
term inar a classe de fenômenos a que pertence a nossa
soluto de Hegel. Deve ser procurado em certos elemen­
experiência de beleza. Esse problem a não traz dificul­
tos estruturais fundam entais da nossa própria experiên­
dade alguma. Ninguém pôde jam ais negar qufe a obra
cia sensorial — nas linhas, no desenho, nas formas- ar­
de arte nos propicia o mais alto prazer, talvez o prazer
quiteturais e musicais. Tais elementos são, por assim di­
mais duradouro e intenso de que é capaz a natureza h u ­
zer, onipresentes. Livres de todo mistério, são patentes
m ana. Assim que escolhemos essa abordagem psicoló­
e conspícuos; são visíveis, audíveis, tangíveis. Neste sen­
gica o segredo da arte parece, portanto, ser desvenda­
tido, Goethe não hesitou em dizer que a arte não pre­
do. Não há nada menos misterioso que o prazer e a dor.
tende m ostrar a profundidade metafísica das coisas, mas
Q uestionar esses conhecidíssimos fenômenos — não só
perm anece n a superfície dos fenômenos naturais. M as
da vida hum ana como da vida em geral — seria absur­
essa superfície não é im ediatam ente determ inada. Não
do. Se existe algum território em que encontram os um
a conhecemos antes de descobri-la nas obras dos gran­
ôóç goi t t o v aiã}, um lugar fixo e inamovível, é nesses
des artistas. Essa descoberta, porém , não está confinada
fenômenos. Se conseguirmos ligar nossa experiência es­
a um campo especial. N a m edida em que a linguagem
tética a esta posição, não poderá mais haver qualquer
hum ana possa expressar tudo, as coisas mais elevadas
incerteza quanto ao caráter da beleza e da arte.
e as mais vis, a arte pode abarcar e perm ear toda a esfe­
A pura simplicidade dessa solução parece recomen­
ra da experiência hum ana. N ada no mundo físico ou mo­
dá-la. Por outro lado, todas as teorias do hedonismo es­
ral, nenhum a coisa natural e nenhum a ação hum ana é
tético têm os defeitos de suas qualidades. Partem da afir­
por sua natureza e essência excluída do dom ínio da ar­
mação de um fato simples, inegável e óbvio; mas, al­
te, porque nada resiste ao seu processo form ativo e cria­
guns passos depois, elas se detêm subitam ente, sem al­
tivo. “ Quicquid essentia dignum est” , diz Bacon em seu
cançar seus propósitos. O prazer é um dado imediato
Organum, “ id etiam scientia dignum est” 2 6 . Essas pala­
da nossa experiência. Q uando é tom ado como princí­
vras servem tanto para a arte quanto para a ciência.
pio psicológico, porém , seu sentido torna-se vago e am ­
bíguo ao extremo. O termo estende-se por sobre um cam­
po tão vasto que cobre os fenômenos mais diversos e he­
3
terogêneos. E sempre tentador introduzir um termo geral
amplo o bastante para incluir as referências mais dispa­
As teorias psicológicas da arte têm um a vantagem
ratadas. No entanto, se cedermos a essa tentação, cor-
clara e palpável sobre todas as teorias metafísicas. Não
260 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 261

reremos o risco de perder de vista diferenças im portan­ ta à exigência de informação, e nesta pedimos toda a
tes e significativas. O s sistemas do hedonismo ético e es­ verdade e nada mais que a verdade. A arte é a resposta
tético sempre tiveram tendência a suprim ir essas dife­ à exigência de diversão,... e a verdade só entra nela
renças específicas. K ant sublinha essa questão em um a quando serve a esses fins” 2 8 . M as, se este fosse o fim
observação característica na Crítica da Razão Pura. Se a da arte, seríamos forçados a dizer que, em suas realiza­
determ inação de nossa vontade, argum enta ele, está ba­ ções mais elevadas, ela não atinge o seu verdadeiro fim.
seada no sentim ento de agradabilidade ou desagradabi- A “ exigência de diversão” pode ser satisfeita por meios
lidade que esperam os de qualquer causa, tanto se nos m uito melhores e mais baratos. Pensar que os grandes
dá por qual tipo de idéia seremos afetados. A única coi­ artistas trabalharam com este fim, que M ichelangelo
sa que nos preocupa ao fazer nossa escolha é a grande­ construiu São Pedro ou que D ante ou M ilton escreve­
za, a duração e a facilidade de obtenção dessa agrada­ ram seus poemas tendo em vista a diversão, é impossí­
bilidade. vel. Eles sem dúvida subscreveríam as palavras de Aris­
tóteles, segundo as quais “ esforçar-se e trabalhar pela
Assim como para o homem que quer dinheiro para gastar não diversão parece tolo e totalm ente infantil” 2 9 . Se a arte
interessa se o ouro foi extraído de uma montanha ou lavado é gozo, não é gozo de coisas, mas de formas. O deleite
da areia, contanto que seja aceito por toda a parte com o mes­ com as formas é totalm ente diferente do deleite com as
mo valor, o homem que se preocupa apenas com gozar a vida coisas ou com as impressões sensoriais. As formas não
não pergunta se as idéias são do entendimento ou dos senti­ podem ser simplesmente impressas na nossa m ente; de­
dos, mas apenas quanto e quão grande será o prazer que elas nos vemos produzi-las para poder sentir sua beleza. E um a
darão pelo maior tempo2 7 . falha comum a todos os sistemas antigos e m odernos de
hedonismo estético a proposição de um a teoria psicoló­
Se o prazer é o denom inador com um , o que de fato in­ gica do prazer estético que deixa totalm ente de dar con­
teressa é o grau, e não o tipo; todos os prazeres estão ta do fato fundam ental da criatividade estética. N a vi­
no mesmo nível e devem ser rem ontados a um a origem da estética, experimentam os um a transform ação rad i­
psicológica e biológica comum. cal. O próprio prazer deixa de ser simples afeição e torna-
No pensam ento contem porâneo, a teoria do hedo­ se função. Isso porque os olhos do artista não são sim ­
nismo estético encontrou sua expressão mais clara na fi­ plesmente olhos que reagem às impressões dos sentidos,
losofia de Santayana. Segundo ele, a beleza é o prazer ou que as reproduzem. Sua atividade não se limita a re­
visto como um a qualidade das coisas; é o “ prazer obje- ceber ou registrar as impressões de coisas exteriores, ou
tificado” . M as isso é evitar a questão, pois como pode a com binar essas impressões em novas m aneiras arbi­
o prazer — o estado mais subjetivo da nossa m ente — trárias. Um grande pintor ou músico não é caracteriza­
ser objetificado? A ciência, diz Santayana, “ é a respos­ do por sua sensibilidade à cor ou aos sons, mas por seu
262 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM
0 HOMEM E A CULTURA 263

poder de extrair de seu m aterial estático um a vida di­


iluminismo como um a paródia da arte. Não podemos
nâmica de formas. Apenas neste sentido, portanto, o pra­
entender a obra de arte subm etendo-a a regras lógicas.
zer que encontram os na arte pode ser objetificado. Lo­
Um m anual de poética não nos pode ensinar a escrever
go, a definição da beleza como “ prazer objetificado”
um bom poema. A arte surge de outras fontes, mais pro­
contém todo o problema resumido. A objetificação é sem­
fundas. Para entendermos essas fontes, devemos prim ei­
pre um processo construtivo. O m undo físico — o mundo
ro esquecer nossos padrões comuns, devemos m ergulhar
das coisas e qualidades constantes — não é um mero
nos mistérios da nossa vida inconsciente. O artista é um a
aglomerado de dados sensoriais, nem o m undo da arte
espécie de sonâmbulo que deve seguir seu cam inho sem
é um aglom erado de sentim entos e emoções. O prim ei­
a interferência ou o controle de qualquer atividade cons­
ro depende de atos de objetificação teórica, objetifica­
ciente. Despertá-lo seria destruir seu poder. “ O início
ção por ideações e conceitos científicos; o segundo de­
de toda poesia” , disse Friedrich Schlegel, “ é abolir a
pende de atos formativos de um tipo diferente, atos de
lei e o método da razão que procede racionalm ente e
contemplação.
mergulhar-nos novamente na arrebatadora confusão da
O utras teorias m odernas que protestam contra to­
fantasia, no caos original da natureza hum ana.” 30 A ar­
das as tentativas de identificar a arte ao prazer estão aber­
te é um sonho acordado ao qual nos rendem os volunta­
tas à m esm a objeção que as teorias de hedonismo esté­
riam ente. Esta mesma concepção rom ântica deixou sua
tico. T entam encontrar a explicação da obra de arte
m arca sobre os sistemas metafísicos contem porâneos.
ligando-a a outros fenômenos conhecidos. Estes fenô­
Bergson apresentou um a teoria da beleza que preten­
menos, contudo, estão em um nível bastante diferente;
dia ser a prova derradeira e mais conclusiva dos seus
são estados mentais passivos, e não ativos. Entre as duas
princípios metafísicos gerais. Segundo ele, não existe me­
classes podemos encontrar algum as analogias, mas não
lhor ilustração do dualismo fundam ental, da incom pa­
podemos rem ontá-las a um a única e mesm a origem m e­
tibilidade entre intuição e razão do que a obra de arte.
tafísica ou psicológica. E a luta contra as teorias racio-
O que chamamos de verdade racional ou científica é su­
nalista e intelectualista da arte que representa um a ca­
perficial e convencional. A arte é a saída (escape) deste
racterística comum e um motivo fundamental dessas teo­
mundo sem profundidade, estreito e convencional. Leva-
rias. Em certo sentido, o classicismo francês havia trans­
nos de volta às próprias fontes da realidade. Se a reali­
formado a obra de arte em um problem a aritmético, que
dade é “ evolução criativa” , é na criatividade da arte
deveria ser solucionado por um a espécie de regra de três.
que devemos buscar a evidência e a manifestação fun­
A reação contra essa concepção foi necessária e benéfi­
dam ental da criatividade da vida. A prim eira vista, isso
ca. M as os prim eiros críticos rom ânticos — em especial
dá a impressão de ser um a filosofia da beleza verdadei­
os românticos alemães — passaram im ediatam ente ao
ram ente dinâm ica ou enérgica. M as a intuição de Berg­
pólo oposto. Proclam aram o intelectualismo abstrato do
son não é um princípio realmente ativo. E um modo de
264 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 265

receptividade, não de espontaneidade. Em todos os seus U m a das grandes contribuições de Shaftesbury para
escritos, Bergson descreve a intuição estética tam bém a teoria da arte foi sua insistência nessa questão. Em seu
como um a capacidade passiva, e não como um a form a “ M oralistas” ele apresenta um a explicação impressio­
ativa, “ ...o objeto da a rte ” , escreve ele, nante da experiência da beleza — experiência que ele
considerava como um privilégio exclusivo da natureza
é adormecer os poderes ativos, ou antes resistentes, da nossa hum ana. “ Nem se negará beleza” , escreve Shaftesbury,
personalidade, levando-nos desse modo a um estado de' per­
feita receptividade, no qual damos conta da idéia que nos é ao campo selvagem, ou a essas flores que crescem à nossa vol­
sugerida e simpatizamos com o sentimento expressado. Nos ta, no leito verdejante. E contudo, por adoráveis que sejam
processos da arte encontramos, em uma forma diluída, uma essas formas da natureza, a relva brilhante ou o musgo pra­
versão refinada e em certa medida espiritualizada dos proces­ teado, o tomilho florido, a rosa selvagem ou a madressilva;
sos comumente usados para a indução do estado de hipnose... não é esta beleza que atrai as manadas vizinhas, delicia o cer-
O sentimento do belo não é um sentimento específico... cada vo que pasta, ou brinca e espalha a alegria que vemos entre
sentimento experimentado por nós assume um caráter estéti­ os rebanhos que se alimentam; não é a Forma que regozija,
co, contanto que tenha sido sugerido, e não causado... Portanto, mas aquilo que está debaixo da forma: este sabor atrai, a fo­
há fases distintas no progresso de um sentimento estético, tal me impele;... pois nunca pode a Forma ter força real onde não
como no estado de hipnose^1 ... é contemplada, julgada e examinada, e representa apenas a
nota ou sinal acidental do que apazigua o sentido provocado...
Se os brutos portanto... são incapazes de conhecer a beleza
Contudo, a nossa experiência da beleza não tem esse
e desfrutá-la, por serem brutos e terem sentido apenas... para
caráter hipnótico. Por meio da hipnose podemos condu­ sua própria parte; segue-se que nem pode o homem pelo mes­
zir um hom em a certas ações ou podemos impor-lhe al­ mo sentido... conceber a beleza ou desfrutá-la; mas toda a bele­
gum sentimento. M as a beleza, em seu sentido genuíno za... que ele desfruta é, em um modo mais nobre e com a aju­
e específico, não pode ser impressa em nossas mentes des­ da do que é mais nobre que tudo, sua mente e sua razãtr^.
se modo. P ara senti-la é preciso cooperar com o artista.
E preciso não só solidarizar-se com os sentimentos do ar­ O elogio da m ente e da razão por Shaftesbury estava
tista, mas tam bém en trar em sua atividade criativa. Se bem afastado do intelectualismo do iluminismo. Sua rap­
o artista conseguisse adormecer os poderes ativos da nossa sódia sobre a beleza e o infinito poder criativo da n atu ­
personalidade, ele paralisaria o nosso sentido de beleza. reza foi um a característica inteiram ente nova d a histó­
A apreensão da beleza, a consciência do dinam ism o das ria intelectual do século X V III. Nesse aspecto, ele foi
formas, não pode ser com unicada desse modo, pois a be­ um dos primeiros defensores do romantismo. M as o ro­
leza depende tanto de sentimentos de um tipo específico mantismo de Shaftesbury era do tipo platônico. Sua teo­
quanto de um ato de juízo e de contemplação. ria da form a estética era um a concepção platônica, em
266 0 HOMEM E A CULTURA 267
ENSAIO SOBRE O HOMEM

virtude da qual ele foi levado a reagir e a protestar con­ plicar essa unidade reduzindo-a a dois estados diferen­
tra o sensacionalismo dos empiristas ingleses3 3 . tes que, como o estado onírico e o estado de em bria­
A objeção feita contra a metafísica de Bergson ser­ guez, são inteiram ente difusos e desorganizados. Não
ve tam bém para a teoria psicológica de Nietzsche. Em podemos integrar um todo estrutural com elementos
um de seus prim eiros escritos, The Birth of Tragedy from amorfos.
the Spint of Musrc, Nietzsche desafiava as concepções dos As teorias que esperam elucidar a natureza da arte
grandes classicistas do século X V III. Não é o ideal de reduzindo-a à função de jogo são de um tipo diferente.
W inckelm ann, argum enta ele, que encontram os na ar­ Não se pode objetar que essas teorias m enosprezam ou
te grega. Em Esquilo, Sófocles ou Eurípedes procura­ subestimam a atividade livre do hom em . O jogo é um a
mos em vão por “ nobre simplicidade e tranqüila gran­ função ativa; não está confinada aos limites do que é em-
diosidade” . A grandeza da tragédia grega consiste na piricam ente dado. Por outro lado, o prazer que encon­
profundidade e extrem a tensão dc emoções violentas. A tram os no jogo é completamente desinteressado. P o r­
tragédia grega era produto de um culto dionisíaco; seu tanto, nenhum a das condições essenciais da obra de ar­
poder era um poder orgiástico. M as só a orgia não se­ te parece estar faltando na atividade lúdica. Com efei­
ria capaz de produzir o dram a grego. A força de Dioní- to, a m aioria dos expoentes da teoria lúdica da arte
sio era contrabalançada pela de Apoio. Essa polaridade garantiram -nos de que foram totalm ente incapazes de
fundam ental é a essência de toda grande obra de arte. encontrar qualquer diferença entre as duas funções3 5 .
A grande arte de todos os tempos surgiu da interpene- Declararam que não há um a só característica da arte que
tração de duas forças opostas — de um impulso orgiás­ não se aplique aos jogos de ilusão, e nenhum a caracte­
tico e de um estado visionário. Trata-se do mesmo con­ rística de tais jogos que não possa tam bém ser encon­
traste que existe entre o estado onírico e o estado de em ­ trada na arte. M as todos os argum entos que podem ser
briaguez. Os dois estados libertam toda sorte de pode­ alegados em favor dessa teoria são puram ente negati­
res artísticos de dentro de nós, mas cada um deles desa- vos. Do ponto de vista psicológico, o jogo e a arte têm
correnta poderes de um tipo diferente. O sonho nos dá entre si um a forte semelhança. São não-utilitários e não
o poder de visão, de associação, de poesia; a em bria­ têm relação com qualquer fim prático. No jogo, assim
guez nos dá o poder das grandes atitudes, da paixão, como na arte, deixamos para trás toda necessidade p rá ­
do canto e da dança 3 4 . Até mesmo nesta teoria sobre tica im ediata para dar um a nova forma ao nosso m un­
suas origens psicológicas um dos aspectos essenciais da do. M as essa analogia não basta para provar um a iden­
arte desapareceu. Isso porque a inspiração artística não tidade real. A imaginação artística nunca deixa de
é em briaguez, e a imaginação artística não é sonho ou distinguir-se com clareza do tipo de imaginação que ca­
alucinação. T oda grande obra de arte é caracterizada racteriza a atividade lúdica. No jogo lidamos com im a­
por um a profunda unidade estrutural. Não podemos ex- gens simuladas que podem tornar-se vividas e impres-
268 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 269

sionantes a ponto de serem confundidas com a realida­ solve a m atéria concreta das coisas no crisol de sua im a­
de. Definir a arte como m era soma de tais imagens si­ ginação, e o resultado desse processo é a descoberta de
m uladas indicaria um a concepção m uito pobre de seu um novo m undo de formas poéticas, musicais ou plás­
caráter e de sua tarefa. O que chamamos de “ sim ula­ ticas. E claro que muitas obras de arte ostensivas estão
cro estético” não é o mesmo fenômeno que experim enta­ longe de ter satisfeito essa exigência. E tarefa do juízo
mos nos jogos de ilusão. O jogo nos dá imagens ilusó­ estético ou do gosto artístico distinguir entre um a obra
rias; a arte nos dá um novo tipo de verdade — não de de arte genuína e os outros produtos espúrios que na
coisas empíricas, mas de formas puras. verdade são brinquedos ou, na m elhor das hipóteses,
N a análise estética que fizemos acima distinguimos “ reações à exigência de diversão” .
entre três tipos de imaginação: o poder de invenção, o U m a análise mais detalhada da origem psicológica
poder de personificação e o poder de produzir formas e dos efeitos psicológicos do jogo e da arte leva à mesma
sensuais puras. No jogo de um a criança encontram os conclusão. O jogo proporciona diversão e recreação, mas
os dois prim eiros poderes, mas não o terceiro. A crian­ tam bém serve a outros propósitos. O jogo tem um a re­
ça joga com coisas, o artista joga com formas, com linhas levância biológica geral, no sentido em que antecipa ati­
e desenhos, ritmos e melodias. Em um a criança que brin­ vidades futuras. Foi assinalado com freqüência que as
ca adm iram os a facilidade e a rapidez da transform a­ brincadeiras infantis têm um valor propedêutico. O m e­
ção. As maiores tarefas são realizadas com os meios mais nino que brinca de guerra e a m enina que veste a bone­
escassos. Q ualquer pedaço de m adeira pode ser trans­ ca estão ambos fazendo um a espécie de preparação e edu­
form ado em um ser vivo. Apesar disso, essa transfor­ cação para outras tarefas mais sérias. A função das be­
mação significa apenas um a m etamorfose dos próprios las artes não pode ser explicada desse modo. Nela não
objetos; não quer dizer um a m etamorfose dos objetos há nem diversão, nem preparação. Alguns teóricos da
em formas. No jogo apenas rearranjam os e redistribuí­ estética modernos julgaram necessário fazer um a distin­
mos os m ateriais dados à percepção sensorial. A arte é ção clara entre dois tipos de beleza. U m a é a beleza da
construtiva e criativa em um sentido diferente, e mais “ grande” arte; a outra é descrita como beleza “ fácil” 3 6 .
profundo. U m a criança que joga não vive no mesmo Em sentido estrito, porém, a beleza de um a obra de ar­
mundo de fatos empíricos rígidos que o adulto. O mundo te nunca é “ fácil” . O gozo da arte não tem origem em
da criança tem um a m obilidade e um a transm utabili- um processo de suavização ou de relaxam ento, mas de
dade m uito m aiores. M as mesmo assim a criança que intensificação de todas as nossas energias. A diversão
brinca não faz mais que trocar as coisas reais de seu am ­ que encontram os no jogo é precisam ente o oposto dessa
biente por outras coisas possíveis. N enhum a troca as­ atitude, que é um pré-requisito da contem plação estéti­
sim caracteriza a atividade artística genuína. Nesta, as ca e do juízo artístico. Assim que deixamos de nos con­
exigências são m uito mais rigorosas, pois o artista dis­ centrar e cedemos a um mero jogo de sentimentos e as-
270 ENSAIO SOBRE O HOMEM
O HOMEM E A CULTURA 271
sociações agradáveis, perdem os de vista a obra de arte
Esse ponto de vista fica facilmente compreensível
como tal.
se levarmos em conta o fundo histórico da teoria de Schil­
A teoria lúdica da arte desenvolveu-se em duas di­
ler. Ele não hesitava em ligar o m undo “ ideal” da arte
reções inteiram ente diversas. N a história da estética,
à brincadeira de um a criança, pois, a seu modo de ver,
Schiller, Darwin e Spencer costumam ser vistos como re­
o m undo da criança passara por um processo de ideali­
presentantes destacados dessa teoria. No entanto, é difí­
zação e sublimação. Schiller falava na qualidade de pu­
cil encontrar qualquer ponto de contato entre as posi­
pilo e adm irador de Rousseau, e via a vida da criança
ções de Schiller e as das m odernas teorias biológicas da
sob a nova luz em que Rousseau a colocara. “ H á um
arte. Em sua tendência fundam ental, essas posições não
sentido profundo na brincadeira de um a criança” , as­
são apenas divergentes como tam bém , em certo senti­
severou Schiller. Contudo, mesmo que adm itam os essa
do, incompatíveis. O próprio term o “jo g o ” é entendi­
tese, deve ser dito que o “ sentido” do jogo é diferente
do e explicado por Schiller em um sentido completamente
do da beleza. O próprio Schiller define a beleza como
diferente do de todas as teorias subseqüentes. A teoria
“ form a viva” . P ara ele, a consciência das formas vivas
de Schiller é transcendental e idealista; as de Darw in e
é o prim eiro passo indispensável que leva à experiência
Spencer são biológicas e naturalistas. Darwin e Spencer
da liberdade. A contemplação ou reflexão estética, se­
consideram o jogo e a beleza como fenômenos naturais
gundo Schiller, é a prim eira atitude liberal do hom em
gerais, ao passo que Schiller os associa ao m undo da li­
para com o universo. “ Enquanto o desejo apreende ime­
berdade. E, de acordo com seu dualismo kantiano, a li­
diatam ente o seu objeto, a contemplação o remove pa­
berdade não significa a m esm a coisa que a natureza; ao
ra mais longe e o torna inalienavelmente seu salvando-o
contrário, representa o pólo oposto. T anto a liberdade
da cobiça da paixão.” 38 E precisamente essa atitude “ li­
como a beleza pertencem ao m undo inteligível, não ao
beral” , consciente e reflexiva, que falta nos jogos infantis,
fenomenal. Em todas as variantes naturalistas da teoria
e que m arca a fronteira entre o jogo e a arte.
lúdica da arte o jogo dos anim ais é estudado lado a lado
Por outro lado, essa “ remoção p a ra m ais longe”
com o dos hom ens. Schiller não podia adm itir tal posi­
que é descrita aqui como um dos aspectos necessários
ção. P ara ele, o jogo não é um a atividade orgânica ge­
e mais característicos da obra de arte sempre foi um obs­
ral, mas especificamente hum ana. “ O hom em só joga
táculo para a teoria estética. Se isso for verdade, objetou-
quando é hom em no pleno sentido da palavra, e só é com­
se, a arte não é mais um a coisa realmente hum ana, pois
pletamente homem quandojoga.” 37 Falar de analogia, e mais
perdeu toda ligação com a vida hum ana. M as os defen­
ainda de identidade, entre o jogo hum ano e o animal ou,
sores do princípio de l ’artpour l ’art não tem iam essa ob­
na esfera hum ana, entre o jogo da arte e os chamados jo ­
jeção; ao contrário, desafiavam-na abertamente. Susten­
gos de ilusão, é totalmente estranho à teoria de Schiller.
tavam que o mais alto m érito e privilégio da arte era
Para ele, tal analogia teria parecido um equívoco básico.
queim ar todas as pontes que a ligavam à realidade cor-
0 HOMEM E A CULTURA 273
272 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

zar um de seus aspectos fundamentais, o seu poder cons­


riqueira. A arte não deve deixar de ser um mistério ina­ trutivo na estruturação de nosso universo.
cessível para o profanum vulgus. “ U m poem a” , disse Sté-
Todas as teorias estéticas que tentam explicar a ar­
phane M allarm é, “ deve ser um enigm a para o vulgo,
te em termos de analogias tiradas de esferas desordena­
música de câm ara para o iniciado.” 39 O rtega y Gasset
das e desintegradas da experiência hum ana — hipnose,
escreveu um livro em que prevê e defende a “ desuma-
sonho ou embriaguez — passam ao largo da questão
nização da a rte ” . C onsidera que nesse processo será fi­
principal. Um grande poeta lírico tem o poder de dar
nalm ente alcançado o ponto em que o elemento hum a­
um a form a definida aos nossos sentimentos mais obs­
no terá quase desaparecido da arte 4 0 . O utros críticos
curos. Isso só é possível porque sua obra, apesar de li­
apoiaram um a tese diam etralm ente oposta. “ Q uando
dar com um tem a aparentem ente irracional e inefável,
olhamos para um quadro, lemos um poem a ou ouvimos
possui um a clara organização e articulação. Nem mes­
m úsica” , insiste I. A. Richards,
mo nas criações mais extravagantes da m úsica encon­
não estamos fazendo uma coisa totalmente diferente do que
tramos as “ confusões arrebatadoras da fantasia” , o “ caos
estávamos fazendo a caminho da Galeria ou quando nos ves­ original da natureza hu m an a” . Essa definição da arte,
timos de manhã. O modo com que a experiência é causada fornecida pelos escritores românticos 4 2 , é um a contra­
em nós é diferente e como regra a experiência é mais comple­ dição em termos. Toda obra de arte tem um a estrutura
xa e, se tivermos êxito, mais unificada. Mas nossa atividade intuitiva, e isso significa um caráter de racionalidade.
não é de um tipo fundamentalmente diferente4 1 . C ada elemento isolado deve ser sentido como parte de
um todo abrangente. Se m udarm os um a palavra, um a
No entanto, esse antagonism o teórico não é um a ver­ tônica ou um ritm o de um poem a lírico, correrem os o
dadeira antinom ia. Se a beleza, segundo a definição de risco de destruir o seu tom e encanto específicos. A arte
Schiller, é “ form a viva” , une em sua natureza e essên­ não está acorrentada à racionalidade das coisas ou even­
cia os dois elementos que aqui estão em oposição. È claro tos. Pode violar todas as leis da probabilidade que os
que não é a m esm a coisa viver no domínio das formas teóricos clássicos da estética proclam aram como as leis
e no das coisas, dos objetos empíricos que nos rodeiam. constitucionais da arte. Pode apresentar-nos a visão mais
As formas da arte, por outro lado, não são formas va­ bizarra e grotesca, e mesmo assim ter um a racionalida­
zias. Realizam um a tarefa específica na construção e or­ de própria — a racionalidade da forma. Podem os as­
ganização da experiência hum ana. Viver no domínio das sim interpretar um dito de Goethe que, à prim eira vis­
formas não significa um a evasão das questões da vida; ta, parece paradoxal: “ Arte: um a segunda natureza; mis­
ao contrário, é a realização de um a das mais altas ener­ teriosa, também, mas mais compreensível, pois tem ori­
gias da própria vida. Não podemos falar da arte como gem na com preensão.” 43
“ extra-hum ana” ou “ sobre-hum ana” sem m enospre­
274 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 275

A ciência nos dá a ordem nos pensam entos; a m o­ tista e na de um artista. Um géografo pode retratar um a
ralidade nos dá a ordem nas ações; a arte nos dá a or­ paisagem de m aneira plástica, pode até pintá-la em co­
dem na apreensão das aparências visíveis, tangíveis e res vivas e ricas. M as o que ele deseja transm itir não
audíveis. A teoria estética dem orou de fato m uito para é um a visão da paisagem, e sim o seu conceito em píri­
reconhecer e tom ar plena consciência dessas diferenças co. Para tal, ele deve com parar a form a da paisagem
fundam entais. C ontudo, se nos limitássemos a analisar com outras formas; deve descobrir, por observação e in­
a nossa experiência im ediata da obra de arte em vez de dução, seus traços característicos. O geólogo vai ainda
buscarmos um a teoria metafísica da beleza, dificilmen­ mais longe nesse delineamento empírico. Ele não se con­
te deixaríam os de notar isso. A arte pode ser definida tenta com um registro dos fatos físicos, pois deseja di­
como um a linguagem simbólica. M as isso nos deixa ape­ vulgar a origem desses fatos. Diferencia as camadas com
nas com o gênero comum , não com a diferença especí­ que o solo se acumulou, observando as diferenças cro­
fica. N a estética m oderna, o interesse pelo gênero co­ nológicas, e rem onta às leis causais gerais segundo as
m um parece predom inar a tal ponto que quase eclipsa quais a terra alcançou sua form a presente. P ara o artis­
e oblitera a diferença específica. Croce insiste em que ta, todas essas relações empíricas, todas essas com para­
não há apenas um a relação íntim a, mas um a completa ções com outros fatos e toda essa pesquisa das relações
identidade, entre a linguagem e a arte. Para o seu m o­ causais não existem. Falando de m aneira geral, nossos
do de pensar, é totalm ente arbitrário fazer um a distin­ conceitos empíricos ordinários podem ser divididos em
ção entre as duas atividades. Todo aquele que estudar duas classes, segundo tenham a ver com interesses p rá­
a lingüística geral, diz Croce, estará estudando proble­ ticos ou teóricos. U m a classe ocupa-se do uso das coisas
mas estéticos — e vice-versa. C ontudo, existe um a di­ e da pergunta “ Para que serve isso?” A outra ocupa-se
ferença inconfundível entre os símbolos da arte e os ter­ com as causas das coisas e da pergunta “ Por que m oti­
mos linguísticos da fala e da escrita ordinárias. Essas duas vo?” Ao ingressarmos no domínio da arte, porém , te­
atividades não concordam nem em caráter, nem em pro­ mos de esquecer todas as questões como essas. Além da
pósito; não em pregam os mesmos meios, nem tendem existência, da natureza e das propriedades empíricas das
para os mesmos fins. Nem a linguagem , nem a arte fa­ coisas, descobrimos de repente as suas formas. Estas não
zem um a m era imitação de coisas ou ações; ambas são são elementos estáticos. O que elas m ostram é um a or­
representações. M as um a representação por meio de for­ dem móvel, que nos revela um novo horizonte da n a tu ­
mas sensuais difere em muito de um a representação ver­ reza. Até os m aiores adm iradores da arte com freqüên-
bal ou conceituai. A descrição de um a paisagem por um cia falaram dela como mero acessório, um embelezamen­
pintor ou poeta e a de um geógrafo ou geólogo têm pou­ to ou enfeite da vida. M as isso é subestim ar o seu signi­
quíssimas coisas em comum. T anto o modo de descri­ ficado real e seu verdadeiro papel na cultura hum ana.
ção quanto o motivo são diferentes na obra de um cien­ U m a simples duplicação da realidade teria sempre um
276 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 277

valor questionável. Só concebendo a arte como um a di­ com a multiformidade e a diversidade das intuições. Até
reção especial, um a nova orientação, dos nossos pensa­ a arte pode ser descrita como conhecimento, m as um
m entos, nossa im aginação e nossos sentimentos, pode­ conhecimento de um tipo peculiar e específico. Pode­
remos entender sua função e seu significado verdadei­ mos subscrever a observação de Shaftesbury, segundo
ros. As artes plásticas fazem-nos ver o m undo sensível a qual “ toda beleza é verdade’’. M as a verdade da be­
em toda a sua riqueza e variedade. O que saberiamos leza não consiste em um a descrição teórica ou explica­
dos inúmeros matizes no aspecto das coisas não fosse pe­ ção das coisas; é antes a “ visão sim pática” das coisas4 4 .
los trabalhos dos grandes pintores e escultores? Do mes­ As duas visões da verdade estão em contraste entre si,
mo m odo, a poesia é um a revelação de nossa vida pes­ mas não em conflito ou contradição. Com o a arte e a
soal. Os inúm eros potenciais de que tínham os apenas ciência se movem em planos totalm ente diferentes, não
um vago e obscuro pressentimento são trazidos à luz pelo podem contrariar-se ou contradizer-se. A interpretação
poeta lírico, pelo romancista e pelo autor dramático. Essa conceituai da ciência não exclui a interpretação intuiti­
arte não é, de modo algum, simples falsificação ou ré­ va da arte. C ada um a delas tem sua própria perspecti­
plica, mas um a m anifestação genuína de nossa vida in ­ va e, por assim dizer, seu próprio ângulo de refração.
terior. A psicologia da percepção sensorial ensinou-nos que sem
E nquanto vivermos apenas no m undo das im pres­ o uso de ambos os olhos, sem um a visão binocular, não
sões sensoriais estaremos limitados a simplesmente to­ existiría percepção da terceira dimensão do espaço. Do
car a superfície da realidade. A consciência da profun­ mesmo modo, a profundidade da experiência hum ana
didade das coisas exige sempre um esforço da parte de depende do fato de sermos capazes de variar nossos mo­
nossas energias ativas e construtivas. Porém , como es­ dos de ver, de podermos alternar nossas visões d a reali­
sas energias não se movem na mesm a direção e não ten­ dade. Berlim videre formas é um a tarefa não menos im ­
dem para o mesmo fim, não nos podem apresentar o portante e indispensável que rerum cognoscere causas. Na
mesmo aspecto da realidade. H á tam bém um a profun­ experiência ordinária, associamos os fenômenos segun­
didade conceituai, além da puram ente visual. A primeira do a categoria de causalidade ou finalidade. Conforme
é descoberta pela ciência; a segunda é revelada na arte. estivermos interessados nas razões teóricas ou nos efei­
A prim eira ajuda-nos a entender as razões das coisas; tos práticos das coisas, pensamos nelas como causas ou
a segunda, a ver suas formas. N a ciência, tentam os re­ meios. Desse modo, norm alm ente perdemos de vista a
m ontar os fenômenos a suas causas prim eiras, a leis e sua aparência imediata, até não poderm os mais vê-las
princípios gerais. Na arte, somos absorvidos por sua apa­ face a face. A arte, por outro lado, ensina-nos a visuali­
rência imediata, e apreciamos essa aparência em sua mais zar as coisas, e não apenas conceitualizá-las ou utilizá-
plena extensão, com toda a sua riqueza e variedade. Nela las. A arte nos propicia um a imagem mais rica, mais
não nos preocupamos com a uniformidade das leis, mas viva e mais colorida da realidade, e um a compreensão
278 ENSAIO SOBRE O HOMEM

mais profunda de sua estrutura formal. É característico


da natureza do hom em não estar limitado a um a única
abordagem específica da realidade, mas poder escolher
seu próprio ponto de vista e assim passar de um aspecto
das coisas para outro.

C A PIT U L O X

A HISTÓRIA

Após todas as variadas e divergentes definições da


natureza do homem apresentadas ao longo da história da
filosofia, os filósofos modernos foram muitas vezes leva­
dos à conclusão de que a própria questão é, de certo mo­
do, enganadora e contraditória. Em nosso m undo mo­
derno, diz Ortega y Gasset, estamos experimentando uma
ruptura do clássico, da teoria grega do ser e, conseqüen-
temente, da teoria clássica do homem.

A natureza é uma coisa, uma grande coisa, composta de mui­


tas coisas menores. Ora, qualquer que seja a diferença entre
as coisas, todas têm um aspecto básico em comum, que consis­
te simplesmente no fato de que as coisas são, têm seu ser. E isso
significa não só que elas existem, que elas estão diante de nós,
mas também que possuem uma estrutura ou uma consistência
dada, fixa... U m a expressão alternativa é a palavra “ nature­
za” . E a tarefa da ciência natural é penetrar sob as aparências
mutáveis até essa natureza ou textura permanente... Hoje sa­
bemos que todas as maravilhas das ciências naturais, por ines-
280 ENSAIO SOBRE O HOMEM
0 HOMEM E A CULTURA 281
gotáveis que sejam em princípio, devem sempre deter-se com­
sico. Já não falamos de um mundo de mudança absolu­
pletamente diante da estranha realidade da vida humana. Por
ta no sentido de oposto a um mundo de repouso abso­
quê? Se todas as coisas revelaram uma boa parte de seu segre­
luto. Não consideramos a substância e a mudança co­
do para a ciência física, por que somente esta resiste com tan­
mo domínios diferentes do ser, mas como categorias —
ta tenacidade? A explicação deve ir bem fundo, até as raízes.
Talvez seja apenas isto: que o homem não é uma coisa, que
como condições e pressupostos do nosso conhecimento
é falso falar de natureza humana, que o homem não tem na­
empírico. Tais categorias são princípios universais; não
tureza. .. A vida hum ana... não é uma coisa, não tem nature­ estão confinadas a objetos de conhecimento especiais.
za, e por conseguinte devemos decidir-nos a pensar nela em Devemos portanto esperar encontrá-las em todas a for­
termos e categorias e conceitos que sejam radicalmente diferen­ mas da experiência humana. Na verdade, nem mesmo
tes dos que lançam a luz sobre os fenômenos da matéria... o mundo da história pode ser entendido e interpretado
apenas em termos de mudança. Este mundo inclui tam­
Até agora, nossa lógica tem sido uma lógica do ser, ba­ bém um elemento substancial, um elemento de ser —
seada nos conceitos fundamentais do pensamento eleá- o qual, contudo, não deve ser definido no mesmo senti­
tico. Mas com esses conceitos nunca teremos esperança do que no mundo físico. Sem esse elemento, dificilmente
de entender o caráter distintivo do homem. O eleatis- poderiamos falar, como o faz Ortega y Gasset, da his­
mo foi a intelectualização radical da vida humana. Está tória como sistema. Um sistema pressupõe sempre, se
na hora de sairmos desse círculo mágico. “ Para poder­ não uma natureza idêntica, pelo menos uma estrutura
mos falar do ser do homem, devemos antes elaborar um idêntica. Na verdade, essa identidade estrutural — uma
conceito não-eleático do ser, assim como outros elabo­ identidade de forma, não de matéria — sempre foi en­
raram uma geometria não-euclidiana. Chegou o momen­ fatizada pelos grandes historiadores. Estes sempre nos
disseram que o homem tem uma história porque tem uma
to para que a semente plantada por Heráclito produza
natureza. Esta era a opinião dos historiadores do Re­
sua imensa colheita.” Tendo aprendido a imunizar-nos
nascimento — de Maquiavel, por exemplo — e muitos
contra o intelectualismo, tomamos agora consciência de
historiadores modernos defenderam essa posição. Por
uma libertação em relação ao naturalismo. “ 0 homem
baixo do fluxo temporal e por trás do polimorfismo da
não tem natureza, o que ele tem é... história.” 1
vida humana, eles tinham esperanças de descobrir os as­
No entanto, o conflito entre o ser e o devir, que
pectos constantes da natureza humana. Em seu Thoughts
no Theaetetus de Platão é descrito como o tema funda­
on World History, Jakob Burckhardt definiu a tarefa do
mental do pensamento filosófico grego, não é resolvido
historiador como a tentativa de avaliar os elementos cons­
se passamos do mundo da natureza para o da história.
tantes, recorrentes e típicos, pois estes elementos podem
Desde a Crítica da Razão Pura de Kant concebemos o dua­ evocar um eco de ressonância em nosso intelecto e nos
lismo entre o ser e o devir como mais lógico que metafí­ nossos sentimentos2 .
282 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 283

Aquilo que chamamos de “ consciência histórica” o prim eiro pensador a ver e descrever a história de seu
é um produto bastante recente d a civilização hum ana, próprio tempo e a olhar para o passado com um espíri­
que não é encontrado antes da época dos grandes histo­ to claro e crítico — e tem consciência de que este é um
riadores gregos. E nem mesmo os pensadores gregos passo novo e decisivo. Está convencido de que a discri­
eram ainda capazes de propor um a análise filosófica da minação clara entre o pensam ento mítico e o histórico,
form a específica do pensam ento histórico. T al análise entre lenda e verdade, é o traço característico que fará
só surgiu no século X V III. O conceito de história al­ de sua obra um a “ possessão perpétu a” 3 . O utros gran­
cança a m aturidade pela prim eira vez na obra de Vico des historiadores sentiram-se do mesmo modo. Em um
e H erder. Q uando o hom em começou a tom ar consciên­
esboço autobiográfico, Ranke fala sobre como tomou
cia do problem a do tem po, quando deixou de estar con­
consciência pela prim eira vez de sua missão como his­
finado ao círculo estreito de suas necessidades e desejos
toriador. Q uando jovem , foi m uito atraído pelos escri­
imediatos, quando começou a indagar da origem das coi­
tos romântico-históricos de Walter Scott. Lia-os com viva
sas, só foi capaz de encontrar um a origem m ítica, não
sim patia, mas tam bém se ofendia com alguns pontos.
histórica. Para poder entender o m undo — tanto o m un­
Ficou chocado ao descobrir que a descrição do conflito
do físico como o social — teve de projetar sobre este o
entre Luís X I e Carlos, o Temerário, estava em flagrante
passado mítico. N o m ito encontram os as prim eiras ten­
contradição com os fatos históricos.
tativas de estabelecer um a ordem cronológica das coi­
sas e eventos, fazer um a cosmologia e um a genealogia
Estudei Commines e os relatos contemporâneos anexos às edi­
dos deuses e dos homens. M as essa cronologia e essa ge­
ções deste autor e convenci-mc de que um Luís XI e um Car­
nealogia não significam um a distinção histórica propria­
los, o Temerário, como os que são descritos em Quentin Dur-
m ente dita. O passado, o presente e o futuro ainda es­
ward, de Scott, nunca haviam existido. Nesta comparação des­
tão unidos; form am um a unidade indiferenciada e um cobri que as evidências eram mais belas e, pelo menos, mais
todo indiscrim inado. O tempo mítico não tem estrutu­ interessantes que toda a ficção romântica. Afastei-me desta e
ra definida; é ainda um “ tem po eterno” . Do ponto de resolví evitar toda invenção e fabricação em minhas obras, e
vista do mito, o passado nunca passou; está sempre aqui apegar-me aos fatos4 .
e agora. Q uando o hom em começa a desfiar a comple­
xa teia da im aginação mítica, sente-se transportado pa­ C ontudo, definir a verdade histórica como “ con­
ra um m undo novo; começa a form ar um novo concei­ cordância com os fatos” — adaequatio res et intellectus —
to de verdade. não é um a solução satisfatória para o problema. Isso evita
Podemos acom panhar os estágios desse processo a questão em vez de solucioná-la. É inegável que a his­
quando estudam os o desenvolvimento do pensam ento tória deve começar com os fatos e que, de certo modo,
histórico grego, de H eródoto a Tucídides. Tucídides foi estes são não só o começo, mas tam bém o fim, o alfa
284 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 285

e o ôm ega do nosso conhecimento histórico. M as o que está em dúvida quanto aos resultados de um a experiên­
é um fato histórico? T oda verdade factual implica um a cia, pode repeti-la e corrigi-la. Encontra seus objetos pre­
verdade teórica 5 . Q uando falamos de fatos, não nos re­ sentes a qualquer momento, prontos para responder às
ferimos aos nossos dados sensoriais imediatos. Estamos suas perguntas. M as com o historiador o caso é diferen­
pensando em fatos empíricos, ou seja, objetivos. Esta te. Seus fatos pertencem ao passado, e este foi embora para
objetividade não é dada; implica sempre um ato e um sempre. Não podemos reconstruí-lo; não podemos des­
complicado processo de julgam ento. Se quisermos sa­ pertá-lo para um a nova vida em um sentido apenas físi­
ber a diferença entre fatos científicos — entre os fatos co, objetivo. Tudo o que podemos fazer é “ lembrarmo-
da física, da biologia, da história — deveremos, portanto, nos” dele — dar-lhe uma nova existência ideal. A recons­
começar sempre com um a análise dos julgam entos. D e­ trução ideal, e não a observação empírica, constitui o pri­
veremos estudar os modos de conhecimento pelos quais meiro passo na direção do conhecimento histórico. Aqui­
tais fatos são acessíveis. lo que chamamos de fato científico é sempre a resposta
O que faz a diferença entre um fato físico e um fa­ para um a questão científica que formulamos anteriormen­
to histórico? Ambos são vistos como partes de um a rea­ te. M as a que pode o historiador dirigir essa pergunta?
lidade empírica; a ambos atribuím os um a verdade ob­ Não pode confrontar os próprios acontecimentos, e não
jetiva. M as, se quiserm os estabelecer a natureza dessa pode entrar nas formas de um a vida anterior. Só pode
verdade, procederem os de modos diferentes. Um fato abordar seu tema de m aneira indireta. Precisa consultar
físico é determ inado por observação e experimentação. suas fontes. Estas, porém, não são coisas físicas no senti­
O processo de objetificação alcançará o seu fim se con­ do usual do termo. Todas implicam um m om ento novo
seguirmos descrever os fenômenos dados em linguagem e específico. O historiador, como o físico, vive em um
m atem ática, na linguagem dos núm eros. U m fenôme­ m undo material. No entanto, o que ele encontra logo no
no que não possa ser descrito desse m odo, que não seja início de sua investigação não é um m undo de objetos fí­
redutível a um processo de m ensuração, não faz parte sicos, mas um universo simbólico — um m undo de sím­
do nosso m undo físico. Definindo a tarefa da física, M ax bolos. Antes de mais nada, ele precisa aprender a ler es­
Planck diz que o físico deve m edir todas as coisas m en­ ses símbolos. Q ualquer fato histórico, por mais simples
suráveis e to rn ar m ensuráveis todas as coisas im ensu­ que possa parecer, só pode ser determinado e entendido
ráveis. Nem todas as coisas e processos físicos são im e­ por um a tal análise prévia dos símbolos. Os objetos pri­
diatam ente m ensuráveis; em muitos casos, se não na meiros e imediatos do nosso conhecimento histórico não
m aioria, dependem os de métodos indiretos de verifica­ são coisas ou eventos, mas documentos ou monumentos.
ção e m ensuração. M as os fatos físicos estão sempre re­ Só através da mediação e da intervenção desses dados sim­
lacionados por leis causais a outros fenômenos que são bólicos podemos apreender os dados históricos reais —
diretam ente observáveis ou m ensuráveis. Se um físico os acontecimentos e os homens do passado.
286 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 287

Antes de e n tra r em um a discussão geral do proble­ bre o método histórico e a verdade histórica. A m aioria
m a, gostaria de esclarecer essa questão por meio de um a dos escritores procurava pela diferença entre a história
referência a um exemplo concreto específico. H á cerca e a ciência na lógica, e não no objeto da história. Esforça­
de 35 anos, um velho papiro egípcio foi encontrado no ram-se ao máximo para conceber um a nova lógica da
Egito sob as ruínas de um a casa. C ontinha diversas ins­ história. M as todas essas tentativas estavam fadadas ao
crições que pareciam ser anotações de um advogado ou fracasso, pois a lótpca, afinal, é um a coisa m uito sim ­
notário público, relativas ao seu negócio — rascunhos ples e uniforme. É una, porque a verdade é una. Em
de testam entos, contratos legais e coisas do gênero. Até sua busca da verdade, o historiador está preso às m es­
então, o papiro pertencia apenas ao m undo material; mas regras formais que o cientista. Em seus modos de
não tinha im portância histórica e, por assim dizer, ne­ raciocínio e argum entação, em suas inferências induti­
nhum a existência histórica. M as um segundo texto foi vas, em sua investigação das causas, ele obedece às mes­
descoberto sob o prim eiro, que após ser examinado com mas leis gerais do pensamento que um físico ou um bió­
mais atenção pôde ser reconhecido como um rem anes­ logo. No que toca a essas atividades teóricas fundam en­
cente de quatro comédias até então desconhecidas de Me- tais da mente hum ana, não podemos fazer qualquer dis­
nandro. Nesse m om ento, a natureza e o significado do crim inação entre os diferentes campos de conhecim en­
códice m udaram com pletam ente. O papiro deixou de to. Em relação a este problem a, devemos subscrever as
ser um simples “ pedaço de m aterial’’; transform ou-se palavras de Descartes:
em um docum ento histórico do mais alto valor e inte­
resse. E ra um testem unho de um estágio im portante do As ciências, tomadas em conjunto, são idênticas à sabedoria
desenvolvimento da literatura grega. Contudo, esse sig­ humana, que sempre permanece a mesma, ainda que aplica­
nificado não foi im ediatam ente óbvio. O códice teve de da a temas diferentes, e não sofre mais diferenciação prove­
ser subm etido a todo tipo de testes críticos, a um a cui­ niente destes que a luz do sol experimenta com a variedade
dadosa análise lingüística, filológica, literária e estéti­ das coisas que ilumina'7.
ca. Após esse complicado processo, ele não era mais ape­
nas um a coisa; estava carregado de sentido. Tornara-se Por mais heterogêneos que possam ser os objetos
um símbolo, e esse símbolo proporcionou-nos um a no­ do conhecimento hum ano, as formas de conhecimento
va com preensão da cultura grega — da vida e da poesia sempre apresentam um a unidade interna e um a hom o­
gregas 6 . geneidade lógica. Os pensamentos histórico e científico
T udo isso parece óbvio e inconfundível. E curio­ são distinguíveis não apenas por sua form a lógica, mas
so, porém , que precisam ente essa característica funda­ tam bém por seus objetivos e por seu tem a. Se quisésse­
mental do conhecimento histórico tenha sido m enospre­ mos descrever essa distinção, não bastaria dizer que o
zada por inteiro n a m aioria das discussões m odernas so­ cientista se ocupa de objetos presentes, enquanto o his-
288 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 289

toriador tem a ver com objetos do passado. Essa distin­ todo da geologia ou da paleontologia. A história tam ­
ção seria enganadora. O cientista pode m uito bem, co­ bém tem de começar com esses vestígios, pois sem eles
mo o historiador, inquirir sobre a origem rem ota das não conseguiría dar um único passo. Esta, porém, é ape­
coisas. U m a tentativa assim foi feita, por exemplo, por nas um a prim eira tarefa prelim inar. A essa reconstru­
Kant. Em 1755, ele desenvolveu um a teoria astronômica ção empírica dos fatos, a história acrescenta um a recons­
que tam bém se tornou um a história universal do m un­ trução simbólica. O historiador precisa aprender a ler
do m aterial. Ele aplicou o novo método da física, o m é­ e a interpretar os documentos e m onum entos não ape­
todo new toniano, à solução de um problem a histórico. nas como restos mortos, mas como mensagens vivas do
Ao fazê-lo, desenvolveu a hipótese nebular, pela qual passado, mensagens que se dirigem a nós com um a lin­
tentou descrever a evolução da presente ordem cósmica guagem própria. No entanto, o conteúdo simbólico des­
a partir de um estado anterior indiferenciado e desor­ sas mensagens não é im ediatam ente observável. E tare­
ganizado da m atéria. Este era um problem a de história fa do linguista, do filólogo e do historiador fazê-los fa­
natural, mas não era história no sentido específico do lar e fazer-nos entender sua linguagem . Não é na estru­
term o. A história não visa revelar um estado anterior tu ra lógica do pensam ento histórico, mas nessa tarefa
do m undo físico, m as um estágio anterior da vida e da especial, nesse m andato especial, que reside a distinção
cultura hum anas. Para solucionar este problema, ela po­ fundam ental entre as obras do historiador e as do geó­
de fazer uso de métodos científicos, mas não pode logo ou do paleontologista. Se o historiador não conse­
restringir-se apenas aos dados postos à disposição por guir decifrar a mensagem simbólica dos m onum entos,
tais métodos. N enhum objeto está isento das leis da n a­ para ele a história continuará sendo um livro fechado.
tureza. Os objetos históricos não têm um a realidade se­ De certo modo, o historiador é m uito mais um lingüis-
parada e autocontida; são corporificados em objetos fí­ ta que um cientista. M as ele não se lim ita a estudar a
sicos. Porém , a despeito dessa corporificação eles per­ línguas faladas e escritas da hum anidade; tenta pene­
tencem, por assim dizer, a um a dimensão superior. trar no sentido de todos os diversos idiomas simbólicos.
Aquilo que cham am os de sentido histórico não m uda Não encontra seus textos somente em livros, anais e m e­
o aspecto das coisas, nem descobre nelas um a qualida­ mórias. Tem de ler hieróglifos e inscrições cuneiformes,
de nova; mas dá às coisas e aos eventos um a nova pro­ olhar para as cores de um a tela, para estátuas de m ár­
fundidade. Q uando o cientista deseja voltar ao passa­ more ou bronze, para catedrais ou templos, moedas e
do, não em prega outros conceitos ou categorias senão pedras preciosas. M as não considera essas coisas sim ­
os derivados de suas observações do presente. Ele liga plesmente com um espírito de antiquário que deseja co­
o presente ao passado acom panhando para trás a cadeia lecionar e preservar os tesouros de outrora. O que o his­
de causas e efeitos. Estuda no presente os vestígios m a­ toriador procura é antes a m aterialização do espírito de
teriais deixados pelo passado. Este é, por exemplo, o mé­ um a época passada. Ele descobre o mesmo espírito em
290 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 291

leis e estatutos, em alvarás e cartas de direitos, em ins­ oculta. A história não pode prever os eventos vindou­
tituições sociais e constituições políticas, em ritos e ce­ ros; só pode interpretar o passado. M as a vida hum ana
rim ônias religiosas. P ara o verdadeiro historiador, esse é um organismo em que todos os elementos implicam
m aterial não é fato petrificado, mas form a viva. A his­ e explicam um ao outro. Por conseguinte, um a nova
tória é a tentativa de fundir todos esses disjecta membra, compreensão do passado nos proporciona ao mesmo tem­
os membros espalhados do passado, sintetizá-los e moldá- po um a nova perspectiva do futuro, que por sua vez se
los em um novo aspecto. torna um impulso para a vida intelectual e social. Para
D entre os fundadores modernos de um a filosofia da obter essa dupla visão do m undo em perspectiva e em
história, H erder teve a mais clara compreensão desse la­ retrospectiva, o historiador deve escolher um ponto de
do do processo histórico. Suas obras apresentam -nos não partida. Não pode encontrá-lo a não ser em seu próprio
apenas um a lem brança, mas um a ressurreição do passa­ tempo. Não pode ir além das condições de sua experiên­
do. H erder não era um historiador propriam ente dito. cia presente. O conhecimento histórico é um a resposta
Não deixou nenhum a grande obra histórica, e nem mes­ a perguntas definidas, resposta que deve ser dada pelo
mo as suas realizações filosóficas podem ser comparadas passado; mas as próprias perguntas são feitas e ditadas
à obra de Hegel. Apesar disso, foi o pioneiro de um novo pelo presente — por nossos atuais interesses intelectuais
ideal de verdade histórica. Sem ele, a obra de Ranke ou e necessidades morais e sociais.
de Hegel não teria sido possível. Isso porque ele tinha o Essa ligação entre o passado e o presente é inegá­
grande poder pessoal de reviver o passado, de conferir vel; mas podemos tirar disso conclusões m uito diferen­
eloqüência a todos os fragm entos e remanescentes da vi­ tes acerca da certeza e do valor do conhecimento histó­
da m oral, religiosa e cultural do hom em . Foi este aspec­ rico. N a filosofia contem porânea, Croce é o defensor do
to da obra de H erder que suscitou o entusiasm o de Goe- “ historicism o” mais radical. Para ele, a história não é
the. Tal como escreveu ele em um a de suas cartas, não apenas um a província especial, mas o conjunto da rea­
encontrou nas descrições de H erder apenas “ a casca dos lidade. Sua tese de que toda história é história contem ­
seres hum anos” . O que provocou sua profunda adm ira­ porânea leva, portanto, a um a completa identificação
ção por H erder foi seu “ modo de varredura — não sim­ da filosofia com a história. Acima e além do domínio
plesmente peneirando o ouro dentre os detritos, mas re­ hum ano da história não há nenhum outro dom ínio do
generando os próprios detritos para um a planta viva’ ’8 . ser, nenhum outro tema para o pensamento filosófico10 .
E essa “ palingênese” , esse renascim ento do pas­ A inferência oposta foi feita por Nietzsche. Ele tam bém
sado, que m arca e distingue o grande historiador. Frie- insistia que “ só podemos explicar o passado por aquilo
drich Schlegel chamou o historiador de einen rückwàrts que é mais elevado no presente” . M as essa afirmação
gekehrten Propheten, um profeta retrospectivo 9 . Existe tam ­ serviu-lhe apenas de ponto de partida para um violento
bém um a profecia do passado, um a revelação de sua vida ataque contra o valor da história. Em seus “ Pensam en-
292 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 293

tos Fora de É poca” , com que iniciou sua obra de filó- físico a m áxim a óôóç avw kó ít c i) a subida e a des­
sofo e crítico da cultura m oderna, Nietzsche desafiou o cida são um a única e m esm a coisa 12 . De certo modo,
cham ado “ sentido histórico” dos nossos tempos. T en ­ podemos aplicar a mesma afirmação ao m undo históri­
tou provar que esse sentido histórico, longe de ser um co. Até mesmo a nossa consciência histórica é um a “ uni­
m érito e um privilégio de nossa vida cultural, é seu pe­ dade de opostos” : ela liga os pólos opostos do tem po,
rigo intrínseco. É um a enferm idade de que padecemos. perm itindo-nos assim sentir a continuidade da cultura
A história não tem significado a não ser como serviçal hum ana.
da vida e da ação. Se o serviçal usurpa o poder, se nos Estas unidade e continuidade são especialmente cla­
tom a o lugar de senhor, ele obstrui as energias da vida. ras no campo da nossa cultura intelectual, na história
Por excesso de história, nossa vida ficou deform ada e da m atem ática, da ciência ou da filosofia. N inguém po­
degenerada. A história impede o impulso vigoroso para dería sequer tentar escrever um a história da m atem áti­
novos feitos e paralisa o realizador, pois a m aioria de ca ou da filosofia sem ter um a clara compreensão dos
nós só consegue agir esquecendo. O sentido histórico problemas sistemáticos dessas duas ciências. Os fatos do
irrestrito, levado ao seu extrem o lógico, erradica o fu­ passado filosófico, as doutrinas e sistemas dos grandes
tu ro 1 1 . Essa opinião, porém , depende da discrim ina­ pensadores não têm qualquer sentido sem um a interpre­
ção artificial feita por Nietzsche entre a vida da ação e tação. E esse processo de interpretação nunca chega a
a vida do pensam ento. Q uando fez esse ataque, Nietzs­ deter-se completamente. Assim que chegamos a um novo
che ainda era adepto e pupilo de Schopenhauer. C o n ­ centro e um a nova linha de visão em nossos próprios
cebia a vida como m anifestação de um a vontade cega. pensam entos, temos de rever nossos juízos. Talvez ne­
P ara Nietzsche, a cegueira chegou a ser a própria con­ nhum exemplo seja mais característico e instrutivo a este
dição p ara a vida verdadeiram ente ativa, o pensam ento respeito que a m udança na nossa visão de Sócrates. T e­
e a consciência opunham -se à vitalidade. Se rejeitarmos mos o Sócrates de Xenofonte e Platão; temos um Só­
esse pressuposto, as conseqüências de Nietzsche se tor­ crates estóico, um cético, um místico, um racionalista
narão insustentáveis. É claro que a nossa consciência do e um romântico. Todos eles são inteiram ente diferentes
passado não deve debilitar ou m utilar nossos poderes ati­ entre si. No entanto, não são falsos; cada um deles
vos. E m pregada da m aneira correta, ela nos proporcio­ apresenta-nos um novo aspecto, um a perspectiva carac­
na u m a visão mais livre do presente e reforça nossa res­ terística do Sócrates histórico e de sua fisionomia inte­
ponsabilidade p ara com o futuro. O hom em não pode lectual e moral. Platão via em Sócrates o grande dialé­
m oldar a form a do futuro sem ter consciência de suas tico e o grande mestre ético; M ontaigne viu nele o filó­
condições presentes e das limitações do seu passado. C o­ sofo antidogmático que confessava sua ignorância; Frie-
mo dizia Leibniz, on recède pour mieux sauter, recuamos drich Schlegel e os pensadores românticos enfatizaram
para saltar mais alto. Hcráclito cunhou para o m undo a ironia de Sócrates. E no caso do próprio Platão pode-
294 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 295

mos acom panhar o mesmo desenvolvimento. Temos o tória das idéias, mas que a necessidade deixa de existir
Platão místico, o do neoplatonism o; um Platão cristão, quando chegamos à história “ real” — à história do ho­
o de Agostinho e de M arsilio Ficino; um Platão racio- mem e das ações hum anas. Neste caso tem-se a im pres­
nalista, o de Moses M endelssohn; e há algumas déca­ são de que estamos lidando com fatos concretos, óbvios,
das apresentaram -nos o Platão kantiano. Podemos sor­ palpáveis, fatos que simplesmente têm de ser relaciona­
rir diante dessas diferentes interpretações, m as além do dos para serem conhecidos. M as nem mesmo a história
negativo elas têm tam bém um lado positivo. Todas, em política é um a exceção à regra metodológica geral. O
sua medida, contribuíram para um a compreensão e um a que serve para a interpretação de um grande pensador
avaliação sistemática da obra de Platão. C ada um a de­ e de suas obras filosóficas serve tam bém para os juízos
las insistiu sobre um certo aspecto que está contido nes­ relativos a um a grande personagem política. Friedrich
ta obra, m as que só podia se tornar manifesto m ediante
G undolf escreveu um livro inteiro não sobre César, mas
um complicado processo de pensamento. Ao falar de Pla­
sobre a história da fama de C ésar e sobre as variadas
tão em sua Crítica da Razão Pura, K ant indicou este fato.
interpretações do seu caráter e da sua missão política,
“ ... Não é de modo algum incom um ” , disse ele, “ ao
desde a antiguidade até nossos dias 1 4 . M esmo na nos­
com parar os pensam entos que um autor expressou em
sa vida social e política, m uitas tendências fundam en­
relação ao seu tem a,... descobrir que o entendemos m e­
tais só revelam sua plena força e significado em um es­
lhor que ele entendia a si mesmo. Com o ele não deter­
tágio relativamente tardio. U m ideal político e um pro­
minou suficientemente o seu conceito, m uitas vezes fa­
gram a social, há muito concebidos em um sentido im ­
lou, e até pensou, em oposição à sua própria inten­
plícito, tornam -se explícitos m ediante um desenvolvi­
ção.” 13 A história da filosofia mostra-nos com m uita
m ento posterior. m uitas idéias dos prim eiros
clareza que m uito raram ente a plena determ inação de
americanos” , escreve S. E. M orison em sua história dos
um conceito é obra do pensador que o introduziu pela
Estados Unidos,
prim eira vez. Isso porque, de m aneira geral, um con­
ceito filosófico é antes um problem a que a solução de
um problem a — e o pleno significado desse problem a podem ser remontadas à mãe pátria. Na Inglaterra, essas idéias
persistiram ao longo dos séculos a despeito de uma certa dis­
não pode ser entendido enquanto ele permanecer em seu
torção e mutilação às mãos dos monarcas Tudor e dos aristo­
prim eiro estado implícito. Ele deve tornar-se explícito
cratas Whig; na América elas tiveram oportunidade de
para poder ser entendido em seu verdadeiro sentido, e
desenvolver-se livremente. Desse modo... encontramos sóli­
essa transição de um estado implícito para o explícito
dos e antigos preconceitos britânicos exaltados na carta de Di­
é obra do futuro.
reitos americana, e instituições há muito obsoletas na Ingla­
Pode-se objetar que esse processo contínuo de in ­ terra. .. perdurando com poucas mudanças nos Estados ame­
terpretação e reinterpretação é de fato necessário na his­ ricanos até meados do século XIX. Foi uma missão incons-
296 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 297

ciente dos Estados Unidos tornar explícito o que por muito vida política de Rom a. A menos que o historiador seja
tempo fora implícito na Constituição britânica, e provar o va­ um mero analista, a menos que ele se contente com um a
lor de princípios que haviam sido em grande parte esquecidos narrativa cronológica dos eventos, ele deve sempre em ­
na Inglaterra de Jorge III 1 6 . preender essa difícil tarefa; deve descobrir a unidade por
trás de inúm eras declarações, m uitas vezes contraditó­
O que nos interessa na história política não são, de m o­ rias, de um personagem histórico.
do algum , os m eros fatos. Q uerem os entender não só G ostaria, para ilustrar isso, de citar outro exemplo
as ações, mas tam bém os agentes. E claro que o nosso característico tirado da obra de Ferrero. U m dos acon­
juízo acerca dos eventos políticos depende da nossa con­ tecimentos mais importantes da história rom ana — acon­
cepção dos hom ens que neles estiveram envolvidos. As­ tecimento que decidiu os destinos futuros de R om a e,
sim que vemos esses indivíduos sob um a nova luz, te­ por conseguinte, o futuro do m undo — foi a Batalha de
mos de alterar nossas idéias sobre os eventos. No en ­ Actium . A versão comum é que Antônio perdeu essa
tanto, mesmo assim um a verdadeira visão histórica não batalha porque Cleópatra, que estava assustada e temia
pode ser obtida sem um a constante revisão. O livro Gran­ o desfecho, fez sua nave m anobrar e fugiu. Antônio re­
deza e Decadência de Roma, de Ferrero, difere em m uitos solveu segui-la, abandonando seus soldados e amigos por
pontos im portantes da descrição que M om m sen fez do C leópatra. Se esta versão tradicional estiver certa, tere­
mesmo período. Tal desacordo é devido em grande parte mos de subscrever as palavras de Pascal; teremos de ad­
ao fato de que os dois autores têm um a concepção intei­ m itir que, se o nariz de Cleópatra houvesse sido mais
ram ente diferente de Cícero. P ara form ar um a opinião curto, toda a face da terra teria sido m udad a 1 6 . M as
ju sta acerca de Cícero, porém , não basta conhecer to­ Ferrero lê o texto histórico de um modo bastante dife­
dos os eventos de seu consulado, o papel que ele teve rente. Proclam a que a história de am or de Antônio e
na revelação da conspiração de C atilina ou nas guerras C leópatra é um a lenda. Antônio, afirm a ele, não se ca­
civis entre Pom peu e César. Todas essas questões são sou com C leópatra por estar apaixonadam ente enam o­
dúbias e ambíguas enquanto eu não conhecer o homem, rado dela. Ao contrário, A ntônio estava levando a cabo
enquanto eu não entender a sua personalidade e o seu um grandioso plano político.
caráter. P ara este fim, é necessária um a interpretação
simbólica. E preciso não apenas que eu estude suas ora­ Antônio queria o Egito, e não a bela pessoa da rainha egípcia;
ções e seus escritos filosóficos; devo ler suas cartas à fi­ pretendia, por esse casamento dinástico, estabelecer ó prote-
lha T ulia e aos seus amigos íntimos; devo sentir os en ­ torado romano sobre o vale do Nilo e poder dispor, para a cam­
cantos e os defeitos de seu estilo pessoal. Somente ju n ­ panha persa, dos tesouros do Reino dos Ptolomeus... Com um
tando todos esses indícios circunstanciais poderei obter casamento dinástico ele pôde garantir para si mesmo todas as
um a imagem verdadeira de Cícero e do seu papel na vantagens da posse efetiva, sem correr os riscos da anexação;
298 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 299

desse modo ele se decidiu por esse artifício que... fora prova­ riam despachadas para guardar os pontos mais importantes
velmente imaginado por César... O romance entre Antônio da Grécia; a frota deveria partir em ordem de batalha e ata­
e Cleópatra encobre, pelo menos no início, um tratado políti­ car se o inimigo avançasse; então deveria rumar para o
co. Com o matrimônio, Cleópatra procura fortalecer seu po­ Egito1 8 .
der vacilante; Antônio, colocar o vale do Nilo sob o proteto-
rado romano... A história real de Antônio e Cleópatra é um Não estou avançando aqui nenhum a opinião acer­
dos episódios mais trágicos de uma luta que dilacerou o Im­ ca da validade dessa afirmação. O que quero ilustrar com
pério Romano por quatro séculos até finalmente destruí-lo, a este exemplo é o método geral da interpretação históri­
luta entre o Oriente o Ocidente... A luz dessas considerações, ca dos eventos políticos. N a física, os fatos são explica­
a conduta de Antônio fica esclarecida. O casamento em An- dos quando conseguimos dispô-los em um a ordem se­
tióquia, através do qual ele coloca o Egito sob o protetorado rial tripla: na ordem de espaço, tem po, causa e efeito.
de Roma, é o ato decisivo de uma política que procura trans­ Desse modo eles são plenam ente determ inados; e é pre­
portar o centro de seu governo para o Oriente 1 ? ... cisamente essa determinação que temos em mente quan­
do falamos de verdade ou realidade dos fatos físicos. Con­
Se aceitarmos esta descrição dos caracteres de A n­ tudo, a objetividade dos fatos históricos pertence a um a
tônio e C leópatra, as ocorrências individuais, até a Ba­ ordem diferente e mais elevada. .Tam bém neste caso li­
talha de Actium , aparecerão sob um a luz nova e dife­ damos com a determ inação do lugar e do m om ento dos
rente. A fuga de Antônio da batalha, declara Ferrero, eventos. M as quando se trata de investigar suas causas
não foi de modo algum induzida pelo medo, nem um temos um novo problem a a enfrentar. Se conhecermos
ato de am or cego e apaixonado. Foi um ato político cui­ todos os fatos em sua ordem cronológica, teremos um
dadosam ente planejado. esquem a geral e um esqueleto de história, mas não te­
remos a vida real. Todavia, um entendim ento da vida
Com a obstinação, a certeza e a veemência de uma mulher hum ana é o tem a geral e a m eta últim a do conhecim en­
ambiciosa, de uma rainha confiante e voluntariosa, Cleópa­ to histórico. Na história consideramos todas as obras do
tra esforçou-se para convencer o triúnviro... a voltar ao Egito homem, e todos os seus feitos, como precipitados de sua
por m ar... No princípio de julho, Antônio parece ter contem­ vida; e queremos reconstituí-los em seu estado original,
plado o abandono da guerra e o regresso ao Egito. Era impos­
querem os entender e sentir a vida de que derivam .
sível, porém, proclamar sua intenção de abandonar a Itália
A este respeito, o pensam ento histórico não é a re­
para Otaviano, de desertar a causa republicana e trair os se­
produção, mas o inverso, do processo histórico efetivo.
nadores romanos que haviam saído da Itália por ele. Portan­
to, a engenhosidade de Cleópatra concebeu outro artifício; seria
Em nossos documentos e m onum entos históricos, en­
travada uma batalha naval para mascarar a retirada. Parte do
contramos um a vida passada que assumiu um a certa for­
exército deveria ser posta a bordo da frota, outras tropas se­ m a. O hom em não pode viver sua vida sem constantes
300 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 301

esforços para expressá-la. Os modos dessa expressão são devem ser continuamente renovadas e restauradas. U m a
variados e inúmeros. M as são outros tantos testemunhos coisa física permanece em seu estado presente de exis­
de um a única e m esm a tendência fundam ental. A teo­ tência graças à sua inércia física. Conserva a mesm a na­
ria de Platão sobre o am or define-o como um desejo de tureza enquanto não for alterada ou destruída por for­
im ortalidade. No am or, o hom em esforça-se para rom ­ ças externas. M as as obras hum anas são vulneráveis de
per as cadeias de sua existência individual e efêmera. um ponto de vista bem diferente. Estão sujeitas à m u­
Este instinto fundamental pode ser satisfeito de duas m a­ dança e à decadência não só em um sentido m aterial,
neiras. mas também no mental. M esmo que sua existência con­
tinue, elas estão em constante perigo de perder seu sen­
Aqueles que estão prenhes no corpo só se dirigem às mulheres tido. Sua realidade é simbólica, não física; e tal realida­
e geram filhos — tal é o caráter do amor deles; sua prole, es­ de nunca deixa de exigir interpretação e reinterpreta-
peram, guardará a sua memória e lhes trará a bem-aventurança ção. E é neste ponto que começa a grande tarefa da his­
e a imortalidade... Mas as almas que estão prenhes concebem tória. O pensam ento do historiador tem com seu objeto
aquilo que é apropriado para a alma conceber ou contcrU um a relação bastante diferente da do pensam ento do fí­
sico ou do naturalista. Os objetos m ateriais m antêm a
Logo, um a cultura pode ser descrita como produ­ sua existência independentem ente do trabalho do cien­
to e prole desse am or platônico. M esmo no estágio mais tista, mas os objetos históricos só têm um a existência ver­
primitivo da civilização hum ana, mesmo no pensamento dadeira enquanto são lembrados — e o ato de lem bran­
mítico, encontram os esse protesto apaixonado contra o ça deve ser ininterrupto e contínuo. O historiador não
fato da m orte 2 0 . Nas cam adas culturais mais elevadas deve apenas observar seu objetos como o naturalista; de­
— na religião, na arte, na história, na filosofia — esse ve tam bém conservá-los. Sua esperança de m anter-lhes
protesto assume um novo aspecto. O hom em começa a a existência física pode ser frustrada a qualquer m om en­
descobrir em si mesmo um novo poder, através do qual to. Por causa do fogo que destruiu a biblioteca de Ale­
ele ousa desafiar o poder do tem po. Em erge do mero xandria, inúmeros e inestimáveis documentos foram per­
fluxo do tem po, esforçando-se p ara eternizar e im orta­ didos para sempre. Mas até os m onumentos sobreviven­
lizar a vida hum ana. As pirâm ides egípcias parecem ter tes desapareceríam pouco a pouco se não fossem cons­
sido construídas para a eternidade. Os grandes artistas tantemente mantidos vivos pela arte do historiador. Para
pensam em suas obras e falam delas como monumento, ae- possuir o m undo da cultura devemos reconquistá-lo sem
reperennius. Têm a certeza de ter erguido um monumento cessar através da recordação histórica. M as a recorda­
que não será destruído pelos anos incontáveis e pelo cor­ ção não significa simplesmente um ato de reprodução.
rer dos tempos. M as essa pretensão está sujeita a um a E um a nova síntese intelectual — um ato construtivo.
condição especial. P ara resistirem , as obras do homem Nessa reconstrução, a m ente hum ana move-se na dire-
302 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 303

ção contrária à do processo original. Todas as obras de não é um a simples codificação de leis constitucionais.
cultura têm origem em um ato de solidificação e estabi­ Essas leis são cheias de vida; sentimos por trás delas os
lização. O hom em não poderia com unicar seus pensa­ grandes poderes necessários para construir um tal siste­
mentos e sentimentos e não poderia, por conseguinte, ma. Sentimos as grandes forças intelectuais e morais que
viver em um m undo social se não tivesse o talento espe­ eram as únicas que podiam ter produzido esse organis­
cial de objetificar seus pensamentos, de dar-lhes um a for­ mo do direito romano; o talento do espírito rom ano pa­
m a sólida e perm anente. Por trás dessas formas fixas e ra ordenar, organizar e com andar. T am bém neste caso
estáticas, dessas obras petrificadas da cultura hum ana, a intenção de M omm sen foi m ostrar-nos o m undo ro­
a história descobre os impulsos dinâmicos originais. E m ano no espelho do direito romano. “ E nquanto a ju ­
um talento dos grandes historiadores reduzir todos os risprudência ignorou o Estado e o povo” , disse ele, “ e
fatos simples a se u s/ím , todos os produtos a processos, a história e a filologia ignoraram o direito, ficaram ba­
todas as coisas e instituições estáticas a suas energias cria­ tendo em vão à porta do m undo ro m an o .”
tivas. Os historiadores políticos apresentam-nos um a vida Se entenderm os a tarefa da história deste modo,
cheia de paixões e emoções, de lutas violentas de p arti­ m uitos dos problemas que têm sido discutidos com tan ­
dos políticos, de conflitos e guerras entre nações dife­ to ardor nas últimas décadas, encontrando respostas tão
rentes. variadas e divergentes, poderão ser desvendados sem di­
M as nem tudo isso é necessário para dar a um a obra ficuldade. Os filósofos modernos tentaram m uitas ve­
histórica o seu caráter e o seu acento dinâmicos. Q u a n ­ zes conceber um a lógica especial da história. A ciência
do M om m sen escreveu sua História Romana falou como natural, afirm aram , baseia-se em um a lógica de univer­
um grande historiador político, em um tom novo e m o­ sais, a história em um a lógica de particulares. W indel-
derno. “ Q uis descer os antigos” , disse ele em um a car­ band declarou que o juízo da ciência natural é nomoté-
ta, “ do pedestal fantástico sobre o qual aparecem ao tico, e que os da história são idiográficos2 2 . Os prim ei­
m undo real. Foi por isso que o cônsul teve de tornar-se ros apresentam -nos leis gerais; os segundos descrevem
o burgom estre. Talvez eu tenha exagerado; mas a m i­ fatos particulares. Essa distinção tomou-se a base de toda
nha intenção foi acertada o bastante.” 21 Suas obras pos­ a teoria do conhecimento histórico de Rickert. “ A rea­
teriores parecem ter sido concebidas e escritas em um lidade empírica torna-se natureza, se a considerarmos
estilo totalm ente diferente. M esm o assim, não perdem com relação ao universal; torna-se história, se a consi­
seu caráter dram ático. Pode parecer paradoxal atribuir derarm os com relação ao particu lar.” 23
um tal caráter a obras que tratam dos tem as mais ári­ M as não é possível separar os dois m omentos de
dos, tais como, por exemplo, a história da cunhagem universalidade e de particularidade dessa m aneira abs­
ou do direito público rom ano. M as tudo e feito no mes­ trata e artificial. U m juízo é sempre a unidade sintética
mo espírito. O livro Rõmisches Staatsrecht, de M om m sen, dos dois momentos; contém um elemento de universa-
304 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 305

lidade e outro de particularidade. Tais elementos não za e a variedade, a profundidade e a intensidade de sua
são m utuam ente opostos: um implica o outro, e os dois experiência invididual que constitui a m arca distintiva
se interpenetram. “ Universalidade” não é um termo que do grande historiador. Em caso contrário, sua obra fi­
designa um certo campo de pensam ento; é um a expres­ caria sem cor e sem vida. M as, desse m odo, como po­
são do próprio caráter, da função do pensamento. O pen­ demos ter esperanças de alcançar o objetivo supremo do
samento é sempre universal. Por outro lado, a descri­ conhecimento histórico, como podemos descobrir a ver­
ção de fatos particulares, de um “ aq u i” e de um “ ago­ dade das coisas e dos eventos? Não seria um a verdade
ra ” , não é de m aneira algum a privilégio da história. A pessoal um a contradição em termos? C erta vez, Ranke
singularidade dos eventos históricos foi muitas vezes con­ expressou o desejo de extinguir o seu próprio eu para
siderada como a característica que distingue a história ser capaz de fazer de si mesmo o espelho duro das coi­
da ciência. C ontudo, esse critério não é suficiente. U m sas, para ser capaz de ver os eventos do modo que eles
geólogo que faz um a descrição dos vários estados da terra efetivamente ocorreram. Está claro, porém, que essa de­
em diferentes períodos geológicos apresenta um relató­ claração paradoxal tinha a intenção de ser vista como
rio sobre eventos concretos e singulares. Tais eventos um problem a, não como um a solução. Se o historiador
não podem ser repetidos; não ocorrem na m esm a or­ conseguisse apagar sua vida pessoal, não alcançaria com
dem por um a segunda vez. A este respeito, a descrição isso um a objetividade mais alta. Ao contrário, ele se pri­
do geólogo não difere da de um historiador que, por varia do próprio instrum ento de todo pensam ento his­
exemplo, como G regorovius, conta-nos a história da ci­ tórico. Se eu apagar a luz da m inha experiência pessoal,
dade de R om a n a Idade M édia. M as o historiador não não serei capaz de enxergar e não poderei ju lg ar a ex­
se lim ita a nos apresentar u m a série de eventos em um a periência alheia. Sem um a rica experiência pessoal no
ordem cronológica definida. P ara ele, esses eventos são campo da arte, ninguém pode escrever um a história da
a m áscara sob a qual procura um a vida hum ana e cul­ arte; ninguém senão um pensador sistemático pode dar-
tural — um a vida de ações e paixões, de perguntas e nos um a história da filosofia. A aparente antítese entre
respostas, de tensões e soluções. O historiador não po­ a objetividade da verdade histórica e a subjetividade do
de inventar um a nova linguagem e um a nova lógica para historiador deve ser resolvida de outro modo.
tudo isso. Não pode pensar, nem falar, sem usar ter­ A m elhor solução talvez não se encontre nas pala­
mos gerais. M as infunde a seus conceitos e suas pala­ vras de Ranke, m as em suas obras. Nelas encontram os
vras seus próprios sentimentos interiores, dando-lhes as­ a verdadeira explicação do que realmente significa a ob­
sim um novo som e um a nova cor — a cor de um a vida jetividade histórica, e do que ela não significa. Q uando
pessoal. Ranke publicou seus primeiros escritos, seu ideal de ver­
O dilema fundam ental do pensamento histórico co­ dade histórica não foi, de modo algum , entendido por
meça precisam ente neste ponto. É sem dúvida a rique­ todos os seus contemporâneos. Sua obra foi alvo de vio-
306 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 307

lentos ataques. U m famoso historiador, Heinrich von tuo conflito entre grandes idéias políticas e religiosas.
Leo, acusou Ranke de “ evitar tim idam ente as opiniões Para ver esse conflito sob sua verdadeira luz, ele foi for­
pessoais’’; descreveu com desprezo os escritos de R a n ­ çado a estudar todos os partidos e todos os atores dessa
ke como pintura de porcelana, delícia de dam as e am a­ peça histórica. A sim patia de Ranke, a sim patia do ver­
dores. Hoje em dia, um tal juízo parecería não só total­ dadeiro historiador, é de um tipo específico. Não impli­
m ente injusto, mas tam bém absurdo e grotesco. Ape­ ca amizade ou parcialidade, mas abarca amigos e opo­
sar disso, foi repetido por críticos posteriores, em espe­ nentes. A melhor comparação que se pode fazer com essa
cial pelos historiadores da escola prussiana. Heinrich von form a de sim patia é com a dos grandes poetas. Eurípe-
Treitschke queixou-se da pálida objetividade de R a n ­ des não sim patiza com M edéia; Shakespeare não sim ­
ke, “ que não diz de que lado está o coração do n a rra ­ patiza com Lady M acbeth ou com Ricardo III. M esmo
d or” 2 4 . Algumas vezes, em um tom zombeteiro, os ad­ assim, eles nos fazem entender essas personagens; pe­
versários de Ranke com pararam sua atitude e seu estilo netram suas paixões e seus motivos. O dito toul compren-
pessoal à atitude das esfinges na segunda parte do Faus­ dre est tout pardonner não serve nem para as obras dos gran­
to de Goethe: des artistas, nem para as dos grandes historiadores. A
simpatia deles não implica qualquer juízo moral, nenhu­
Sitzen vor den Pyramiden, m a aprovação ou desaprovação de atos isolados. E cla­
Zu der Võlker Hochgericht; ro que o historiador tem toda liberdade para julgar, mas
Uberschwemmung, Krieg und Frieden — antes de julgar ele deseja entender e interpretar.
Und verziehen kein Gesicht2 ®. Schiller cunhou o dito Die Weltgeschichte ist das Welt-
gericht, dito que foi ecoado por Hegel e transform ado em
T al sarcasmo, contudo, é m uito superficial. Ninguém um a das pedras angulares de sua filosofia da história.
pode estudar os escritos de R anke sem se aperceber da “ As sinas e os feitos de estados particulares e de mentes
profundidade de sua experiência pessoal e de seu senti­ particulares” , disse Hegel,
mento religioso. Esse sentimento permeia toda a sua obra
histórica. M as o interesse religioso de Ranke era amplo são a dialética fenomenal da finitude dessas mentes das quais
surge a mente universal, a mente ilimitada do mundo. Esta men­
o bastante para incluir todo o campo da vida religiosa.
te exerce seu direito — e seu direito é o mais alto — naquelas;
Antes de se aventurar a fazer sua descrição da R efor­
na história universal, o juízo do mundo. A história do mundo
m a, ele term inou sua grande obra sobre a História dos
é o juízo do mundo, pois contém, em sua universalidade de­
Papas. Foi precisam ente o caráter peculiar de seu senti­ pendente de si mesma, todas as formas especiais — a família,
m ento religioso que impediu que ele tratasse as ques­ a sociedade civil e a nação — reduzidas à idealidade, isto é, a
tões religiosas à m aneira de um fanático ou de um m e­ membros subordinados, mas orgânicos, de si mesma. E tarefa
ro apologista. Ele concebia a história como um perpé­ do espírito produzir todas essas formas especiais2 ®.
308 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 309

O próprio Ranke, por mais que se opusesse às opiniões um a obra de história política sem paixões políticas e sem
básicas de Hegel, poderia ter subscrito esta. M as ele con­ parcialidade nacional. Treitschke, representante da es­
cebia a missão do historiador de modo menos presun­ cola prussiana, negava-se até a estudar material que não
çoso. Achava que, no grande julgam ento da história, o fosse proveniente de arquivos prussianos. Tem ia que um
historiador deveria preparar a sentença, e não pronunciá- tal estudo perturbasse o seu juízo favorável acerca da
la. Isso está bem longe da indiferença m oral; trata-se, política prussiana 2 8 . Tal atitude pode ser com preensí­
ao contrário, de um sentimento da mais alta responsa­ vel e perdoável em um panfletista ou propagandista po­
bilidade moral. Segundo Ranke, o historiador não é nem lítico. Em um historiador, porém , representa o colapso
o acusador, nem o defensor do réu. Se fala como juiz, e a bancarrota do conhecimento histórico. Podemos
é como juge d ’instruction. Ele deve coletar todos os docu­ com pará-la ao estado de espírito dos adversários de Ga-
mentos do processo para submetê-los a um tribunal su­ lileu que se recusavam insistentem ente a olhar pelo te­
perior, à história do m undo. Se fracassar nessa tarefa, lescópio e a convencerem-se da verdade das descober­
se por favoritismo partidário ou ódio ele suprim ir ou fal­ tas astronômicas de Galileu, pois não queriam ser per­
sificar um único testem unho, estará faltando para com turbados em sua fé implícita no sistema aristotélico. A
seu mais alto dever. um a tal concepção da história podemos opor as palavras
Essa concepção ética de sua tarefa, da dignidade de Jakob Burckhardt:
e da responsabilidade do historiador, é um dos princi­
pais m éritos de R anke, e conferiu à obra dele o seu ho­ Além do louvor cego a nosso próprio país, outro dever mais
rizonte amplo e livre. Sua simpatia universal pôde abran­ oneroso impõe-se a nós como cidadãos, nomeadamente o de
ger todas as épocas e nações 2 7 . Ele foi capaz de escre­ educar-nos para sermos seres humanos compreensivos, para
ver a história dos papas e a história da Reform a, a da os quais a verdade e a afinidade das coisas do espírito sejam
França e a da Inglaterra, seu trabalho sobre os otoma- o bem supremo, e que possam extrair o nosso verdadeiro de­
nos e sobre a m onarquia espanhola com o mesmo espí­ ver como cidadãos desse conhecimento, mesmo que não fosse
rito de imparcialidade e sem qualquer viés nacional. Para inato em nós. No domínio do pensamento, é supremamente
ele, as nações latinas e as teutônicas, os gregos e os ro­ justo e certo que todas as fronteiras sejam varridas2 ^.
m anos, a Idade M édia e os estados nacionais modernos
significavam um único organismo coerente. C ada nova Com o diz Schiller nas C artas Estéticas, existe um a
obra perm itia-lhe alargar seu horizonte histórico e apre­ arte da paixão, mas não pode haver “ arte apaixona­
sentar um a perspectiva m ais am pla e mais livre. d a ” 3 0 . Essa visão das paixões serve tam bém para a his­
M uitos dos adversários de Ranke que não possuíam tória. O historiador que fosse ignorante acerca do m undo
esse espírito livre e distanciado tentaram fazer da ne­ das paixões — das ambições políticas, do fanatism o re­
cessidade virtude. Asseveraram ser impossível escrever ligioso e dos conflitos econômicos e sociais — apresen-
310 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 311

tar-nos-ia um compêndio m uito árido dos eventos his­ caráter específicos. Mas o antropom orfism o do pensa­
tóricos. Se ele tiver qualquer pretensão à verdade histó­ mento histórico não se constitui em um obstáculo ou im ­
rica, porém , não poderá perm anecer nesse m undo. A pedim ento para a sua verdade objetiva. A história não
todo esse m aterial das paixões ele deve dar um a form a é um conhecimento de fatos ou eventos externos; é um a
teórica; e essa form a, tal como a da obra de arte, não forma de autoconhecimento. Para conhecer-me, não pos­
é um produto ou um a excrescência da paixão. A histó­ so tentar ir além de mim mesmo, não posso saltar, por
ria é um a história de paixões; se ela própria tenta ser assim dizer, por cima de m inha própria sombra. Devo
apaixonada, porém , deixa de ser história. O historia­ escolher a abordagem oposta. Na história, o homem volta
dor não deve dem onstrar as afeições, as fúrias e os fre- constantem ente a si mesmo; tenta recordar e efetivar o
nesis que descreve. Sua sim patia é intelectual e imagi­ conjunto de sua experiência passada. M as o eu históri­
nativa, não emocional. O estilo pessoal que sentimos a co não é um simples eu individual. E antropom órfico,
cada linha de um grande historiador não é emocional mas não egocêntrico. Falando na forma de um parado­
ou retórico. U m estilo retórico pode ter muitos m éri­ xo, podemos dizer que a história busca um “ antropo-
tos; pode comover e deliciar o leitor. M as falha no pon­ mprfismo objetivo” . Dando-nos a conhecer o polimor-
to principal: não pode levar-nos a um a intuição e a um fismo da existência hum ana, ela nos liberta das aberra­
juízo livre e imparcial das coisas e dos eventos. ções e preconceitos de um m omento especial e singular.
Se tivermos em m ente essa característica do conhe­ E esse enriquecim ento e alargam ento do eu, do nosso
cim ento histórico, ficará fácil distinguir a objetividade ego que conhece e sente, e não o seu apagam ento, que
histórica daquela form a de objetividade que é a m eta é a m eta do conhecimento histórico.
da ciência natural. U m grande cientista, M ax Planck, O ideal de verdade histórica desenvolveu-se com
descreveu todo o processo do pensam ento científico co­ m uita lentidão. Nem mesmo a m ente grega, com toda
mo um esforço constante para eliminar todos os elemen­ a sua riqueza e profundidade, pôde levá-lo à sua plena
tos “ antropológicos” . Devemos esquecer o homem pa­ m aturidade. No progresso da consciência m oderna, po­
ra poderm os estudar a natureza, descobrir e form ular rém , a descoberta e a formulação desse conceito de his­
suas leis3 1 . No desenvolvimento do pensam ento cientí­ tória tornou-se um a de nossas tarefas mais im portan­
fico, o elemento antropom órfico é pouco a pouco em ­ tes. No século X V II, o conhecimento histórico ainda é
purrado para o fundo da cena, até desaparecer inteira­ eclipsado por outro ideal de verdade. A história não en­
m ente na estrutura ideal da física. A história procede controu ainda o seu lugar ao sol, e está encoberta pela
de m aneira bastante diferente. Só pode viver e respirar m atem ática e pela física. M as então, no início do sécu­
no m undo hum ano. Tal como a linguagem ou a arte, lo X V III, surge um a nova orientação do pensam ento
a história é fundam entalm ente antropomórfica. Apagar m oderno. O século X V III foi m uitas vezes considerado
seus aspectos hum anos seria destruir sua natureza e seu um século a-histórico ou anti-histórico. T rata-se, con-
312 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 313

tudo, de um a visão unilateral e equivocada. Os pensa­ e que agora começa a penetrar em todas as ciências morais
dores do século X V III são precisam ente os pioneiros do consiste em considerar as obras do homem... como fatos e pro­
pensam ento histórico. Fazem novas perguntas e conce­ dutos cujas propriedades devem ser apresentadas e cujas cau­
sas devem ser investigadas. Vista desse modo, a ciência não
bem novos m étodos para respondê-las. A investigação
precisa nem justificar, nem condenar. As ciências morais de­
histórica foi um dos instrum entos necessários da filoso­
vem proceder como a botânica, que com igual interesse estu­
fia do Ilum inism o 3 2 . M as no século X V III ainda pre­
da a laranjeira e o loureiro, o pinheiro e a faia. Não são nada
domina um a concepção pragmática da história. Nenhum além de um a espécie de botânica aplicada que não trata de
novo conceito crítico surgiu antes do início do século plantas, mas das obras humanas. Este é o movimento geral
X IX , antes do advento de N iebuhr e de Ranke. A par­ pelo qual as ciências morais e as ciências naturais se estão apro­
tir desse m om ento, porém , o conceito m oderno de his­ ximando umas das outras, e em virtude do qual as primeiras
tória fica firm em ente estabelecido, e estende a sua in ­ alcançarão a mesma certeza e o mesmo progresso que as
fluência sobre todos os campos do conhecimento e da últimas3 3 .
cultura hum anos.
E ntretanto, não foi fácil determ inar o caráter espe­ Se aceitamos essa visão, o problem a da objetividade da
cífico da verdade histórica e do m étodo histórico. M u i­ história parece ser resolvido da m aneira mais simples.
tos filósofos estavam mais inclinados a negar que a ex­ T al como o físico ou o químico, o historiador deve estu­
plicar esse caráter específico. E nquanto o historiador dar as causas das coisas em vez de ju lg ar o valor delas.
m antiver suas opiniões pessoais especiais, enquanto acu­ ‘‘Não im porta se os fatos são físicos ou m orais” , diz
sar ou elogiar, aprovar ou desaprovar, afirm aram eles, Taine,
nunca estará à altura de sua tarefa. Consciente ou in­
todos têm suas causas; há uma causa para a ambição, para
conscientem ente, ele distorcerá a verdade objetiva. O
a coragem e para a verdade, assim como há um a para a diges­
historiador deve perder seu interesse pelas coisas e pe­
tão, para o movimento muscular e para o cio animal. O vício
las ocorrências para ser capaz de vê-las em seu aspecto
e a virtude são produtos, como o vitríolo e o açúcar; e cada
verdadeiro. Esse postulado metodológico teve sua expres­ fenômeno complexo tem suas fontes em outros fenômenos mais
são mais clara e impressionante nas obras históricas de simples, dos quais depende. Procuremos, então, os fenôme­
Taine. O historiador, declarou T aine, deve agir como nos simples para as qualidades morais, tal como os procura­
um naturalista. Deve livrar-se não só de todos os pre­ mos para as qualidades físicas.
conceitos convencionais, mas tam bém de todas as pre-
dileções pessoais e de todos os padrões m orais. “ O m é­ Em ambos os casos encontramos as mesmas causas uni­
todo m oderno que sigo” , escreveu ele n a introdução ao versais e perm anentes,
seu Filosofia da Arte,
ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA
314 315
presentes em cada momento e em cada caso, sempre e por to­ za quanto um eclipse solar ou lunar; e mesmo assim podemos
da a parte atuantes, indestrutíveis e, no final, infalivelmente sustentar que o homem é livre3 6 .
supremas, visto que os incidentes que lhes são obstáculos, por
serem limitados e parciais, acabam cedendo à monótona e in­ Não estamos lidando aqui com esse aspecto do proble­
cessante repetição da força delas; de tal maneira que a estru­ ma, com o conceito metafísico ou ético de liberdade.
tura geral das coisas, e os grandes rasgos dos acontecimentos, Interessamo-nos apenas pela repercussão desse concei­
são obra delas; e as religiões, filosofias, poesias, indústrias, a
to no método histórico. Ao estudar as principais obras
estrutura da sociedade e das famílias são na verdade apenas
de Taine, ficamos surpresos ao ver que, na prática, tal
marcas impressas pelo selo d c la sT
repercussão foi muito pequena. A primeira vista tem-
se a impressão de que não foi uma diferença maior e
Não pretendo aqui começar uma discussão e uma mais radical que a que houve entre as concepções de Tai­
crítica desse sistema de determinismo histórico35 . Uma
ne e Dilthey sobre o mundo histórico. Os dois pensado­
negação da causalidade histórica seria precisamente a res abordam o problema de pontos de vista inteiramen­
maneira incorreta de combater esse determinismo. Isso
te diferentes. Dilthey enfatiza a autonomia da história,
porque a causalidade é uma categoria geral que se es­ sua irredutibilidade a uma ciência natural, seu caráter
tende por todo o campo do conhecimento humano. Não de Geisteswissenschaft. Taine nega enfaticamente essa vi­
está restringida a um domínio particular, ao mundo dos são. A história nunca se tornará uma ciência enquanto
fenômenos materiais. A liberdade e a causalidade não insistir em seguir seu próprio caminho. Existe apenas
devem ser consideradas forças metafísicas diferentes ou um modo e um caminho de pensamento científico. Mas
opostas; são simplesmente modos de juízo diferentes. essa visão é imediatamente corrigida quando Taine co­
Nem mesmo Kant, o mais resoluto defensor da liberda­
meça sua própria investigação e descrição dos fenôme­
de e do idealismo ético, jamais negou que o nosso co­ nos históricos. “ Qual é a vossa primeira observação” ,
nhecimento empírico, o conhecimento dos homens bem pergunta ele,
como o das coisas físicas, deve reconhecer o princípio
da causalidade. Pode-se admitir, diz Kant, ao abrirdes as páginas grandes e rígidas de um fólio, as folhas
amareladas de um manuscrito — um poema, um código de
que se fosse possível ter do caráter mental de um homem, tal leis, uma declaração de fé? Isto, dizeis, não foi criado sozi­
como é mostrado por suas ações internas e externas, uma com­ nho. Não passa de um molde, como uma concha fóssil, uma
preensão profunda a ponto de dar a conhecer todos os seus marca, como aquelas formas deixadas na pedra por algum ani­
motivos, mesmo os mais ínfimos, e do mesmo modo todas as mal que viveu e pereceu. Sob a concha havia um animal, e
condições externas que podem influenciá-los, poderiamos cal­ por trás do documento havia um homem. Por que estudais
cular a conduta de um homem para o futuro com tanta certe­ a concha, a não ser para que se vos apresente o animal? As-
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA
316 317
sim também estudais o documento só para poder conhecer o Tudo isso está em perfeito acordo com a visão de his­
homem. A concha e o animal são restos sem vida, valiosos ape­ tória e de método histórico que tentam os expor e defen­
nas como chave para a existência inteira e vivente. Devemos der nas páginas precedentes. No entanto, se esta visão es­
procurar alcançar essa existência, esforçar-nos para recriá-la. tiver correta, é impossível “ reduzir” o pensam ento his­
E um engano estudar o documento como se estivesse isolado. tórico ao método do pensamento científico. Se conhecés­
Isso seria tratar as coisas como um simples pedante, incorrer semos todas as leis da natureza, se aplicássemos ao ho­
no erro do bibliomaníaco. Por trás de tudo não temos nem m em todas as nossas regras estatísticas, econômicas e
a mitologia, nem as linguagens, mas apenas homens, que ar­ sociológicas, isso não nos ajudaria a “ ver’’ o homem neste
ranjam as palavras e as imagens... nada existe exceto através
aspecto especial e em sua form a individual. Não nos mo­
de um homem individual; é com esse indivíduo que devemos
vemos aqui em um universo físico, mas simbólico. E pa­
travar conhecimento. Depois de estabelecermos a linhagem dos
ra entender e interpretar os símbolos temos de desenvol­
dogmas, ou a classificação dos poemas, ou o progresso das cons­
ver outros métodos que não os da investigação das cau­
tituições, ou a modificação dos idiomas, teremos apenas lim­
sas. A categoria do sentido não pode ser reduzida à cate­
pado o terreno: a história genuína vem à existência só quando
goria do ser3 8 . Se formos buscar um título geral sob o qual
o historiador começa a desvendar, através do lapso do tempo,
incluir o conhecimento histórico, poderemos descrevê-lo
o homem vivo, labutando, apaixonado, arraigado em seus cos­
não como um ram o da física, mas d a semântica. As re­
tumes, com sua voz e seus traços, seus gestos e seu vestuário,
distinto e completo como aquele de quem acabamos de nos
gras da semântica, e não as leis da natureza, são os p rin ­
cípios gerais do pensamento histórico. A história está si­
despedir na rua. Esforcemo-nos, portanto, para aniquilar tanto
quanto possível este grande intervalo de tempo que nos impe­ tuada no campo da hermenêutica, não no da ciência na­
de de ver o homem com nossos próprios olhos, os olhos da nossa tural. Taine admite isso na prática, mas nega n a teoria.
cabeça. ... Uma língua, uma legislação ou um catecismo nunca
Sua teoria reconhece apenas duas tarefas do historiador:
passam de coisas abstratas: a coisa completa é o homem que ele deve colher “ fatos” e investigar suas causas. O que
age, o homem corpóreo e visível, que come, anda luta, traba­ Taine despreza por completo é que esses próprios fatos
lha... Tornemos presente o passado; para podermos julgar uma não são imediatamente dados ao historiador. Não são ob­
coisa, precisamos tê-la diante de nós; não existe experiência serváveis como fatos físicos ou químicos; precisam ser re­
a respeito do que está ausente. Não há dúvida de que tal re­ construídos. E para essa reconstrução o historiador pre­
construção é sempre incompleta; só pode produzir juízos in­ cisa dom inar um a técnica especial e muito complicada;
completos — mas devemos resignar-nos a isso. E melhor ter deve aprender a ler os documentos e a entender os mo­
um conhecimento incompleto que fútil ou falso; e não há qual­ numentos para poder ter acesso a um único e simples fa­
quer outra maneira de travarmos conhecimento aproximada­ to. N a história, a interpretação dos símbolos tem prece­
mente com as ocorrências de outros dias além de ver aproxi­ dência sobre a coleta de fatos, e sem essa interpretação
madamente os homens de outros dias3 ?. não há como alcançar a verdade histórica.
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA
318 319

Isso nos leva a outro problem a m uito controverti­ ta simplesmente pragm ático, têm m uito pouco signifi­
do. E óbvio que a história não pode descrever todos os cado. U m a carta de Goethe ou um a observação feita du­
fatos do passado. Ela lida apenas com os fatos “ m em o­ rante um a conversa sua não deixou qualquer vestígio
ráveis” , os que “ valem a p en a” lem brar. M as onde es­ n a história da literatura. M esm o assim podemos consi­
tá a diferença entre tais fatos memoráveis e todos os de­ derá-la notável ou memorável. M esm o sem qualquer
mais que caem no esquecimento? Rickert tentou pro­ efeito prático, essa carta ou essas palavras podem ser con­
var que o historiador, para ser capaz de distinguir en­ tadas entre os documentos com os quais tentaremos cons­
tre os fatos históricos e os não-históricos, deve ter em truir nosso retrato histórico de Goethe. N ada disso é im ­
mãos um certo sistema de valores form ais, e que deve portante em suas conseqüências, mas pode ser altamente
usar tal sistema como padrão n a seleção dos fatos. C on­ característico. Todos os fatos históricos são fatos carac­
tudo, essa teoria é suscetível de graves objeções3 9 . P a­ terísticos, pois na história — tanto n a das nações como
recería m uito m ais natural e plausível dizer que o ver­ na dos indivíduos — nunca olhamos apenas para os fei­
dadeiro critério não consiste no valor dos fatos, mas em tos ou para as ações. Nos feitos vemos a expressão do
suas conseqüências práticas. U m fato torna-se histori­ caráter. No nosso conhecimento histórico — que é co­
camente relevante se estiver prenhe de conseqüências. nhecim ento semântico — não aplicamos os mesmos p a­
Muitos historiadores eminentes foram dessa opinião. “ Se drões que nos servem no conhecimento prático ou físi­
co. U m a coisa que, física ou praticamente, não tem qual­
nos perguntarm os” , diz E duard M eyer,
quer im portância pode apesar disso ter um grande sig­
nificado semântico. A letra iota nas expressões gregas
quais dos eventos de que sabemos são históricos, teremos de
responder: histórico é tudo aquilo que é efetivo ou tornou-se
homo-ousios e homoi-ousios não significava nada em um sen­
efetivo. O que é efetivo experimentamos primeiro no presen­ tido físico; mas, como símbolo religioso, como expres­
te em que percebemos imediatamente o efeito, mas também são e interpretação do dogm a da T rindade, tornou-se
podemos experimentá-lo em relação ao passado. Em ambos o ponto de partida de discussões interm ináveis que sus­
os casos temos diante de nossos olhos uma massa de estados citaram as mais violentas emoções e abalaram as fun­
do ser, ou seja, de efeitos. A pergunta histórica é: como foram dações da vida religiosa, social e política. Taine gosta­
produzidos esses efeitos? O que reconhecemos como a causa va de basear suas descrições históricas naquilo que de­
de tal efeito é um evento histórico^9 . signava como l í de tout petits faits significatifs” . T ais fatos
não eram significativos com relação a seus efeitos, mas
M as nem mesmo essa m arca de distinção é suficiente. eram “ expressivos” ; eram símbolos através dos quais
Quando estudamos um a obra histórica, em especial um a o historiador podia ler e interpretar caracteres indivi­
obra biográfica, podemos encontrar quase a cada pági­ duais ou o caráter de toda um a época. M acaulay conta
na menções a coisas e eventos que, de um ponto de vis­ que, ao escrever sua grande obra histórica, não form ou

1
320 ENSAIO SOBRE O HOMEM
O HOMEM E A CULTURA 321
sua concepção da índole dos partidos religiosos e políti­
agora a informação mais extensa, não só relativa aos in­
cos a partir de uma única obra, e sim de milhares de
teresses materiais do homem, mas também a respeito
folhetos, sátiras e sermões esquecidos. Nenhuma dessas
de suas peculiaridades morais. Conhecemos agora a ta­
coisas tinha um grande peso histórico, e todas podem
xa de mortalidade, a taxa de casamentos e também a
ter tido muito pouca influência sobre o curso geral dos
taxa de criminalidade dos povos mais civilizados. Estes
acontecimentos. Apesar disso, são valiosas para o his­
e outros fatos semelhantes foram colhidos e sistematiza­
toriador, indispensáveis mesmo, pois ajudam-no a en­
dos e estão agora maduros para serem usados. Que a
tender as personagens e os eventos. criação da ciência da história tenha sido retardada e que
Na segunda metade do século XIX houve muitos
a história nunca tenha sido capaz de emular a física ou
historiadores que nutriram esperanças extravagantes com
a química é devido ao fato de que os métodos estatísti­
a introdução dos métodos estatísticos. Profetizaram que,
cos foram negligenciados. Não tínhamos percebido que
através de uso correto daquela nova e poderosa arma, cada evento está ligado ao seu antecedente por uma co­
uma nova era de pensamento histórico se abriria. Se fosse nexão inevitável, e que cada antecedente está ligado a
possível descrever estatisticamente os fenômenos histó­ um fato precedente, e que desse modo o mundo inteiro
ricos, isso pareceria de fato ter um efeito revolucionário — o mundo moral tanto quanto o físico — forma uma
sobre o pensamento humano. Nesse caso, todo o nosso cadeia necessária na qual cada homem tem de fato o seu
conhecimento do homem assumiría de repente uma nova papel. De maneira nenhuma, porém, ele pode determi­
feição. Teríamos atingido um grande objetivo, uma ma­ nar qual será esse papel. “ Rejeitando, portanto, o dog­
temática da natureza humana. Os primeiros escritores
ma metafísico do livre arbítrio, ... somos levados à con­
históricos a expor essa visão estavam convencidos de que clusão de que as ações dos homens, determinadas ape­
não só o estudo dos grandes movimentos coletivos, mas nas por seus antecedentes, devem ter um caráter de uni­
também o da moralidade e da civilização, dependiam
formidade, ou seja, devem, sob circunstâncias precisa­
em grande medida de métodos estatísticos. Isso porque
mente idênticas, ter sempre precisamente os mesmos
existe uma estatística moral, assim como uma estatísti­ resultados.” 41
ca sociológica ou econômica. Na verdade, nenhuma pro­ Sem dúvida é inegável que a estatística tem uma
víncia da vida humana está isenta de estritas regras nu­ grande e valiosa serventia para o estudo dos fenômenos
méricas, que se estendem por sobre todo o campo de sociológicos ou econômicos. Até mesmo no campo da
ação dos homens. história, a uniformidade e a regularidade de certas ações
Essa tese foi vigorosamente defendida por Buckle
humanas devem ser admitidas. A história não nega que
na introdução à sua History of Civilization in England
tais ações, por serem o resultado de causas amplas e ge­
(1857). A estatística, declarou, é a melhor e mais con­
rais que agem sobre o agregado da sociedade, produ­
clusiva refutação do ídolo do “ livre arbítrio’’. Temos
zam certas consequências sem levar em conta a vonta-
322 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 323

de dos indivíduos de que é com posta essa sociedade. um caso individual — digamos, o suicídio de C atão —
Q uando chegamos à descrição histórica de um ato indi­ fica claro que para a interpretação histórica desse fato
vidual, porém , tem os de enfrentar um problem a dife­ individual ele não pode esperar qualquer ajuda dos m é­
rente. Por sua própria natureza, os métodos estatísticos todos estatísticos. Sua intenção prim ária não é fixar um
restringem-se aos fenômenos coletivos. As regras esta­ evento no espaço e no tem po, mas desvendar o “ senti­
tísticas não são concebidas p ara determ inar um caso iso­ d o ” da morte de Catão. O sentido da m orte de C atão
lado; lidam apenas com certos “ coletivos” . Buckle está é expressado no verso de Lucano, “ Victrix causa diis pla-
bem longe de um a compreensão clara do caráter e do cuit sed vida Catoni” 4 i . O suicídio de Catão não foi um
propósito dos métodos estatísticos. U m a análise lógica ato apenas físico, mas tam bém simbólico. Foi a expres­
adequada desses métodos só foi feita em um período são de um grande caráter; foi o último protesto do espí­
posterior 4 2 . H á ocasiões em que ele fala das regras es­ rito republicano romano contra a nova ordem de coi­
tatísticas de um m odo um tanto estranho. D á a im pres­ sas. Tudo isso é complctamente inacessível àquelas “ cau­
são de não ver nelas fórmulas que descrevem certos fe­ sas amplas e gerais” que podemos considerar responsá­
nôm enos, mas forças que produzem esses fenômenos. veis pelos grandes movimentos coletivos na história.
Isso, é claro, não é ciência, mas mitologia. Para ele, as Podemos tentar reduzir as ações hum anas a regras es­
leis estatísticas são de certo modo “ causas” . O suicídio, tatísticas. Estas, porém , nunca alcançarão o fim que é
sustenta, parece ser um ato inteiram ente livre. M as, se reconhecido até pelos historiadores da escola naturalis­
estudarm os a estatística m oral, deveremos ter u m a opi­ ta. Não “ verem os” os homens de outras épocas. Nesse
caso, o que veremos não será a vida real, o dram a da
nião bem diferente. Descobrirem os que
história; serão apenas os movimentos e os gestos de m a­
rionetes em um espetáculo de m arionetes, e os cordéis
o suicídio é simples produto das condições gerais da socieda­
que as m ovim entam .
de, e que o criminoso individual apenas leva a cabo o que é
uma consequência necessária de circunstâncias precedentes. A m esm a objeção serve para todas as tentativas de
Em um dado estado da sociedade, um certo número de pes­ reduzir o conhecimento histórico ao estudo dos tipos psi­
soas deve pôr fim às próprias vidas... E o poder da lei maior cológicos. A prim eira vista parecería evidente que, se
é tão irresistível que nem o amor à vida, nem o temor do ou­ podemos falar de leis gerais n a história, essas leis não
tro mundo servem de nada, sequer para atrapalhar a sua podem ser as da natureza, e sim as da psicologia. A re­
operaça-o 43 . gularidade que procuramos e desejamos descrever na his­
tória não pertence à nossa realidade exterior, m as à in­
M al é preciso dizer que esse “ deve” contém todo um terior. E um a regularidade de estados psíquicos, de pen­
cesto cheio de falácias metafísicas. O historiador, porém, samentos e sentimentos. Se conseguíssemos encontrar
não se ocupa com esse aspecto do problem a. Se fala de um a lei geral inviolável que governasse esses pensamen-
324 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 325

tos e sentim entos e lhes prescrevesse um a ordem defini­ restringi-lo a essa única área. Achava que seu esquem a
da, então poderiam os pensar ter encontrado um a cha­ era um princípio apriorístico de aplicação geral da vida
ve para o m undo histórico. histórica. “ Obtemos do material total” , escreveu, “ não
E ntre os historiadores m odernos, foi K arl Lam- só a idéia de unidade, histórica e empírica, m as tam ­
precht quem se convenceu de ter encontrado um a tal bém um a impressão psicológica geral que declara e exi­
lei. Nos doze volumes de sua História Alemã, ele tentou ge absolutamente essa unidade; todos os incidentes psí­
provar sua tese geral com um exemplo concreto. Segundo quicos simultâneos, tanto os individuais como os socio­
Lam precht, existe um a ordem invariável em que os es­ psíquicos, tendem a aproximar-se de u m a similitude co­
tados da m ente h u m an a se seguem uns aos outros. E m u m .” 45 O mecanismo psíquico universal do curso dos
essa ordem determ ina, de um a vez por todas, os pro­ vários eventos ocorre por toda a parte, tanto na Rússia
cessos da cultura hum ana. Lam precht rejeitou as visões m oderna como na história da G récia ou de R om a, tan ­
do m aterialism o econômico. C ad a ato econômico, de­ to na Ásia como na Europa. Se exam inarm os todos os
clarou ele, assim como cada ato mental, depende de con­ m onum entos da Europa do norte, central e m eridional,
dições psicológicas. Não precisamos de um a psicologia bem como os do M editerrâneo oriental, e da Ásia m e­
individual, e sim social, um a psicologia que explique as nor, poderemos ver que todas essas civilizações avança­
m udanças n a m ente social. T ais m udanças estão presas ram ao longo de linhas paralelas. “ Q uando tudo isso
a um esquem a rígido e fixo. Logo, a história deve dei­ houver sido realizado, poderemos estim ar a im portân­
xar de ser um estudo de indivíduos; deve libertar-se de cia para a história m undial de cada com unidade ou n a ­
toda espécie de culto ao herói. Seu principal problem a ção individual. U m a Weltgeschichte científica poderá e n ­
tem a ver com fatores sociopsíquicos. N em as diferen­ tão ser escrita.” 46
ças individuais, nem as nacionais podem afetar ou alte­ O esquema geral de Lamprecht é totalmente diverso
rar o curso norm al de nossa vida sociopsíquica. A his­ da concepção de Buckle acerca do processo histórico.
tória da civilização apresenta-nos, sempre e em toda a Apesar disso, as duas teorias têm um ponto de contato.
parte, a m esm a seqüência e o mesmo ritm o uniform e. Em ambas encontram os o mesmo term o nefasto, “ de­
De um prim eiro estágio, descrito por Lam precht como v e” . Após um período de tipismo e convencionalismo
anim ism o, passamos a um a era de simbolismo, depois deve sempre seguir-se um período de individualism o e
tipismo, convencionalismo, individualismo e subjetivis- subjetivismo. N enhum a época especial e nenhum a cul­
mo. O esquem a é im utável e inexorável. Se aceitarmos tu ra especial podem jam ais escapar a esse curso geral
esse princípio, a história deixará de ser um a simples ciên­ das coisas, que parece ser um a espécie de fatalismo his­
cia indutiva. Estaremos em condições de fazer afirm a­ tórico. Se essa concepção fosse verdadeira, o grande dra­
ções dedutivas gerais. Lam precht abstraiu esse esque­ m a da história tornar-se-ia um espetáculo monótono que
m a dos fatos da história alem ã, mas nunca pretendeu poderiamos dividir, de um a vez por todas, em atos iso-
326 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 327

lados cuja seqüência seria invariável. Mas a realidade ele veste, atos visíveis e feitos de todo tipo, são meramente ex­
da história não é uma seqüência uniforme de eventos, pressões; algo se revela debaixo de tudo, e isso é a alma. Um
e sim a vida interior do homem. Essa vida pode ser des­ homem interior está oculto debaixo do homem externo; o se­
crita e interpretada após ter sido vivida; não pode ser gundo não faz senão revelar o prim eiro... Todas essas coisas
antecipada em uma fórmula abstrata geral, e não pode externas não passam de avenidas que convergem para um cen­
ser reduzida a um esquema rígido de três ou cinco atos. tro; ingressais nelas apenas para poderdes alcançar esse cen­
Contudo, não pretendo discutir aqui o contexto da tese tro; e este é o homem genuíno... Esse mundo subterrâneo é
de Lamprecht, mas apenas colocar uma questão formal, um tema novo, apropriado para o historiador4 ?.
metodológica. Como foi que Lamprecht obteve as pro­
vas empíricas para fundamentar sua teoria construtiva? Portanto, é precisamente o estudo dos historiadores “ na­
Tal como todos os historiadores anteriores, teve de co­ turalistas” , de Taine e Lamprecht, que confirma a nossa
meçar com um estudo de documentos e monumentos. própria visão, que nos convence de que o mundo da his­
Não estava interessado apenas por acontecimentos po­ tória é um universo simbólico e não físico.
líticos, organizações sociais, fenômenos econômicos. Após a publicação dos primeiros volumes da His­
Queria abarcar toda a gama da vida cultural. Muitos tória Alemã, de Lamprecht, a crescente crise no pensa­
de seus argumentos mais importantes baseiam-se em mento histórico tornou-se cada vez mais manifesta e foi
uma cuidadosa análise da vida religiosa, das obras de sentida em toda a sua intensidade. Teve início uma longa
música e literatura. Um de seus maiores interesses era e áspera controvérsia acerca do caráter do método his­
o estudo da história das belas artes. Em sua história da tórico. Lamprecht havia declarado que todas as visões
Alemanha, fala não só de Kant e Beethoven, mas tam­ tradicionais estavam obsoletas. Considerava seu próprio
bém de Feuerbach, Klinger, Boecklin. No seu Instituto método como o único “ científico” e o único “ moder­
Histórico, em Leipzig, ele acumulou um material as­ no” 48 . Seus adversários, por outro lado, estavam con­
sombrosamente variado sobre todas essas questões. Mas vencidos de que o que ele apresentara era uma mera ca­
está claro que, para interpretar esse material, precisa­ ricatura do pensamento histórico4 9 . Os dois lados ex­
ria primeiro traduzi-lo para uma linguagem diferente. pressavam-se em linguagem muito peremptória e intran­
Para usar as palavras de Taine, ele tinha de encontrar sigente. A reconciliação parecia impossível. O teor eru­
por trás da “ concha fóssil” o animal, por trás do docu­ dito do debate foi muitas vezes perturbado por precon­
mento o homem. “ Quando considerais com vossos olhos ceitos pessoais ou políticos. Mas quando abordamos o
o homem visível, o que procurais?” , perguntou Taine. problema com um espírito imparcial e de um ponto de
vista meramente lógico encontramos, a despeito de to­
O homem invisível. As palavras que chegam aos vossos ouvi­ das as diferenças de opinião, uma certa unidade funda­
dos, os gestos, os movimentos de sua cabeça, as roupas que mental. Tal como assinalamos, nem mesmo os histo-
328 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 329

riadores naturalistas negaram, na verdade não puderam mais; pode tentar métodos de interpretação estatísticos
negar, que os fatos históricos não são do mesmo tipo que ou ideais. A intricada questão da cronologia dos diálo­
os físicos. Tinham conhecimento do fato de que seus do­ gos platônicos pôde ser resolvida, em grande medida,
cumentos e monumentos não eram simplesmente coi­ por observações estatísticas relativas ao estilo de Platão.
sas físicas, mas tinham de ser lidos como símbolos. Por Por meio de vários critérios estilísticos, foi possível de­
outro lado, está claro que cada um dos símbolos — um terminar que um certo grupo dos diálogos — o Sofista,
edifício, uma obra de arte, um rito religioso — tem seu o Estadista, o Filebus, o Timeus — pertencem ao período
lado material. O mundo humano não é uma entidade da velhice de Platão50 . E, quando Adickes preparou sua
separada, nem uma realidade dependente apenas de si edição dos manuscritos de Kant, não conseguiu encon­
mesma. O homem vive em ambientes físicos que o in­ trar um critério melhor para colocá-los em uma ordem
fluenciam constantemente e deixam a sua marca sobre cronológica definida que uma análise química da tinta
todas as formas da vida dele. Para entender suas cria­ com que as várias anotações foram escritas. Se, em vez
ções — seu “ universo simbólico” — devemos ter essa de usar esses critérios, começarmos com uma análise dos
influência sempre em mente. Em sua obra-prima Mon- pensamentos de Platão ou de Kant e de sua conexão ló­
tesquieu tentou descrever o “ espírito das leis” . Mas des­ gica, precisaremos de conceitos que pertencem obvia­
cobriu que em toda a parte esse espírito está preso a suas mente a outro domínio. Se eu, por exemplo, encontrar
condições físicas. O solo, o clima, o caráter antropoló­ um desenho ou esboço, poderei reconhecê-lo imediata­
gico das várias nações foram declarados condições fun­ mente como uma obra de Rembrandt; poderei até ser
damentais de suas leis e instituições. E óbvio que tais capaz de dizer a que período da vida de Rembrandt ele
condições físicas precisam ser estudadas por meios físi­ pertence. Os critérios estilísticos por meio dos quais eu
cos. Tanto o espaço como o tempo históricos estão in­ decido essa questão são de uma ordem totalmente di­
crustados em um todo mais amplo. O tempo histórico versa da dos critérios materiais51 . Esse dualismo de mé­
não passa de uma pequena fração de um tempo cósmi­ todos não atrapalha o trabalho do historiador, nem des-
co universal. Se quisermos medir esse tempo, se esti­ trói a unidade do pensamento histórico. Os dois méto­
vermos interessados na cronologia dos eventos, preci­ dos cooperam para um fim comum sem se perturbarem
saremos de instrumentos físicos. No trabalho concreto ou obstruírem entre si.
do historiador não encontramos qualquer oposição en­ A questão sobre qual desses métodos tem a prima­
tre essas duas visões. Elas estão perfeitamente fundidas zia lógica sobre o outro e qual é o método verdadeira­
em uma única. Só na nossa análise lógica podemos se­ mente “ científico” dificilmente permite uma resposta
parar um fato do outro. Na investigação de um proble­ definida. Se aceitamos a definição de Kant, segundo a
ma cronológico complicado, o historiador pode proce­ qual, no sentido apropriado do termo, só podemos apli­
der de dois modos. Pode usar critérios materiais ou for­ car o termo “ ciência” a um corpo de conhecimentos cuja
ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 331
330

certeza seja apodíctica 5 2 , fica claro que não podemos fa­ que a história não é um a coisa que possa ser im ediata­
lar de um a ciência da história. M as o nome que damos mente adquirida por meio do ensino e da aprendizagem.
à história não interessa, contanto que tenhamos um a cla­
ra compreensão do seu caráter geral. Sem ser um a ciência A roda que guia mil fios e a compreensão da individualidade
dos homens e das nações são golpes de gênio que desafiam to­
exata, a história sempre m anterá seu lugar e sua n atu ­
do ensino e todo aprendizado. Se um professor de história
reza inerente no organism o do conhecimento hum ano.
achar-se capaz de educar historiadores no mesmo sentido que
O que procuram os na história não é o conhecimento de
os estudiosos clássicos e os matemáticos podem ser ensinados,
um a coisa externa, mas de nós mesmos. U m grande his­ é vítima de uma perigosa e perniciosa ilusão. O historiador
toriador como Jak ob B urckhardt, em sua obra sobre nasce, não é feito; não pode ser educado, tem de educar a si
C onstantino, o G rande, ou sobre a civilização do R e­ mesmo 55.
nascim ento, não pretendeu ter apresentado um a descri­
ção científica dessas épocas. Tam pouco hesitou em pro­ M as, mesmo que não possamos negar que toda
por o paradoxo de que a história é a menos científica grande obra histórica contém e implica um elemento ar­
de todas as ciências5 3 . “ O que eu concebo historicamen­ tístico, nem por isso ela se torna um a obra de ficção.
te ” , escreveu B urckhardt em um a carta, “ não é o re­ Em sua busca da verdade, o historiador está tão lim ita­
sultado da crítica ou da especulação, mas da im agina­ do pelas mesmas regras estritas quanto o cientista. D e­
ção que procura preencher as lacunas das observações. ve utilizar todos os métodos da investigação empírica.
A história, para m im , em grande parte ainda é poesia; Tem de colher todos os indícios que estiveram à sua dis­
é um a série das mais belas e pitorescas composições.” 34 posição, com parar e criticar todas as suas fontes. Não
A m esm a opinião foi sustentada por M om m sen. Este pode esquecer ou menosprezar qualquer fato importante.
não foi apenas um gênio científico; foi, ao mesmo tem ­ Apesar disso, seu último ato, e decisivo, é sempre um
po, um dos grandes organizadores do trabalho científi­ ato da imaginação produtiva. Em um a conversa com
co. C riou o Corpus inscriptionum-, organizou o estudo da Eckermann, Goethe queixou-se de que havia poucos ho­
num ism ática e publicou sua História da Cunhagem. E di­ m ens com “ imaginação para a verdade da realidade”
fícil dizer que esta tenha sido a obra de um artista. M as, (‘ ‘eine Phantasiefür die Wahrheit des Realen” ). “ A m aioria
quando M om m sen tomou posse do cargo de reitor da prefere países e circunstâncias estranhas” , disse ele, “ de
Universidade de Berlim e fez seu discurso inaugural, de­ que nada sabem e por meio dos quais podem cultivar
finiu o ideal do método histórico dizendo que o histo­ sua imaginação, por estranho que pareça. O u então há
riador tem m ais a ver com os artistas que com os erudi­ outros que se apegam completam ente à realidade e,
tos. E m bora ele próprio fosse um dos mais eminentes quando querem integralmente o espírito poético, são se­
professores de história, não teve escrúpulos em afirm ar veros demais em suas requisições.” 56 O s grandes his-
332 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 333

toriadores evitam ambos os extremos. São empiristas; corramos constantem ente o risco de perder de vista a
são cuidadosos observadores e investigadores de fatos es­ verdade ideal das coisas e das personalidades. O justo
peciais, mas não carecem de “ espírito poético” . E da equilíbrio entre os dois m omentos depende do tato in­
perspicácia para a realidade em pírica das coisas, com­ dividual do historiador; não pode ser reduzido a um a
binada ao talento livre da im aginação, que depende a regra geral. N a consciência histórica m oderna, a pro­
síntese ou a sinopse histórica. porção m udou, mas os elementos ainda são os mesmos.
O equilíbrio dessas forças opostas não pode ser des­ Com relação à distribuição e ao poderio das duas for­
crito em um a fórm ula geral. A proporção parece variar ças, cada historiador tem sua própria equação pessoal.
de um a época para outra e de um escritor para outro. E no entanto a idealidade da história não é o mes­
N a história antiga encontram os um a concepção da ta ­ mo que a idealidade da arte. A arte nos dá um a descri­
refa do historiador diferente daquela da história m oder­ ção da vida hum ana através de um a espécie de proces­
na. O s discursos que Tucídides incluiu em sua obra his­ so alquímico; transform a a nossa vida em pírica em di­
tórica não têm qualquer base empírica. Não foram pro­ nâm ica de formas puras 5 8 . A história não funciona as­
nunciados tal qual Tucídides os apresenta. Contudo, não sim. Não vai além da realidade em pírica das coisas e
são nem ficção pura, nem mero adorno retórico. São his­ dos eventos, mas molda essa realidade em um a nova for­
tória, não por reproduzirem acontecim entos reais, mas m a, conferindo-lhe a idealidade da lem brança. A vida
porque, na obra de Tucídides, cum prem um a im por­ à luz da história permanece um grande dram a realista,
tante função histórica. C onstituem , de m aneira m uito com todas as suas tensões e conflitos, sua grandiosidade
significativa e concentrada, um a caracterização dos acon­ e sua miséria, suas esperanças e ilusões, sua exibição de
tecim entos e dos hom ens. A grande oração fúnebre de energias e paixões. Esse dram a, contudo, não é apenas
Péricles talvez seja a m elhor e mais im pressionante des­ sentido; ele é intuído. Ao vermos esse espetáculo no es­
crição d a vida e da cultura de Atenas no século V. O pelho da história enquanto ainda estamos vivendo no
estilo de todos esses discursos tem a m arca pessoal e ge­ nosso m undo empírico de emoções e paixões, tomamos
nu ína de Tucídides. “ São de estilo nitidam ente tucidi- consciência de um sentido interior de clareza e calma
d ian o ” , foi dito, “ assim como as várias personagens de — da lucidez e serenidade da contemplação pura. “ A
u m a peça de Eurípedes têm todas um a dicção pareci­ m ente” , diz Jakob Burckhardt em suas Reflexões sobre a
d a .” 57 A pesar disso, não transm item idiossincrasias História Mundial, “ deve transform ar em um a possessão
apenas pessoais; são representativos da época como um a lem brança de sua passagem através das eras do m un ­
todo. Neste sentido são objetivos, e não subjetivos; pos­ do. O que foi outrora alegria e pesar deve agora tornar-
suem u m a verdade ideal, se não um a verdade em píri­ se conhecim ento... Nosso estudo, porém , não é apenas
ca. Nos tempos modernos, tornamo-nos m uito mais sus­ um direito e um dever; é tam bém um a necessidade su­
cetíveis às exigências da verdade em pírica, mas talvez prem a. È a nossa liberdade na própria consciência da
334 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA
335
servidão universal e da corrente de necessidades.” 59 Es­ lo, devemos procurar os grandes historiadores ou os gran­
crita e lida da m aneira correta, a história nos eleva a des poetas — os grandes autores trágicos como Eurípe-
essa atm osfera de liberdade em meio a todas as necessi­ des ou Shakespeare, os escritores cômicos como Cervan-
dades da nossa vida física, política, social e econômica. tes, M olière ou Laurence Sterne ou os nossos rom an­
Não é m inha intenção, neste capítulo, enfrentar os cistas modernos como Dickens ou Thackeray, Balzac ou
problem as de um a filosofia da história. No sentido tra ­ Flaubert, Gogol ou Dostoievski. A poesia não é um a sim­
dicional do term o, um a filosofia da história é um a teo­ ples imitação da natureza; a história não é um a n arra­
ria especulativa e construtiva do próprio processo his­ ção de fatos e acontecimentos mortos. A história, assim
tórico. U m a análise da cultura hu m an a não precisa en ­ como a poesia, é um sistema do nosso autoconhecim en-
trar nessa questão especulativa. A tarefa que ela pro­ to, um instrum ento indispensável para construir nosso
põe a si m esm a é bem mais simples e modesta. Procura universo hum ano.
determ inar o lugar do conhecimento histórico no orga­
nismo da civilização hum ana. Não podemos duvidar de
que, sem a história, perderiamos um elo essencial na evo­
lução desse organismo. A arte e a história são os mais
poderosos instrum entos da nossa indagação sobre a n a­
tureza hum ana. Q ue saberiamos sobre o hom em sem
essas duas fontes de informação? Ficaríamos dependentes
dos dados da nossa vida pessoal, que só nos podem pro­
porcionar um a visão subjetiva e que, na melhor das hi­
póteses, não passam de fragm entos dispersos do espe­
lho partido da hum anidade. E claro que, se quisésse­
mos com pletar a imagem sugerida por esses dados in-
trospectivos, poderiamos apelar para métodos mais ob­
jetivos. Poderiam os fazer experiências psicológicas e
colher dados estatísticos. M as, a despeito disso, nossa
imagem do hom em continuaria sendo inerte e sem cor.
Só descobririam os o hom em “ m édio” — o homem das
nossas relações cotidianas práticas e sociais. Nas gran­
des obras d a história e da arte começamos a distinguir,
por trás dessa m áscara do hom em convencional, os tra­
ços do homem real, individual. Para podermos encontrá-
C A PÍT U L O X I

A CIÊNCIA 1

A ciência é a última etapa do desenvolvimento m en­


tal do homem, e pode ser vista como a mais alta e mais
característica façanha da cultura hum ana. E um produto
recente e requintado, que só se pôde desenvolver sob con­
dições especiais. Nem mesmo a concepção de ciência, em
seu sentido específico, existia antes da época dos grandes
pensadores gregos — antes dos pitagóricos e dos atomistas,
de Platão e Aristóteles. E essa primeira concepção pareceu
ter sido esquecida e eclipsada nos séculos seguintes. Foi
preciso redescobri-la e restabelecê-la na época do Renasci­
mento. Após essa redescoberta, o triunfo da ciência pare­
ceu ser completo e incontestado. Não existe nenhum se­
gundo poder no nosso mundo moderno que possa ser com­
parado ao do pensamento científico. Este é proclamado
como o ápice e a consumação de todas as nossas atividades
humanas, o último capítulo da história do gênero humano
e o tem a mais importante de um a filosofia do homem.
Podemos discutir os resultados da ciência ou os seus
princípios básicos, mas sua função geral parece ser inques-
338 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 339

tionável. É a ciência que nos proporciona a garantia de m ente ligada ao fato da ciência. Sua Estética T ranscen­
um m undo constante. A ciência podemos aplicar as pa­ dental ocupa-se do problem a da m atem ática pura; sua
lavras ditas por Arquimedes: ôóç /j .ol t t o v <j t w k c xí k ó o ix o v Analítica Transcendental procura explicar o fato de um a
Ktvqow ( “ Dêem -m e um ponto de apoio e eu moverei o ciência m atem ática da natureza.
universo” ). Em um universo m utável, o pensam ento U m a filosofia da cultura hum ana, porém , deve re­
científico fixa os pontos de apoio, os pólos inamovíveis. m ontar o problema a um a fonte mais rem ota. O homem
Em grego, o próprio term o episteme deriva etimologica- vivia em um m undo objetivo m uito antes de viver em
m ente de um a raiz que significa firmeza e estabilidade. um m undo científico. M esmo antes de ter encontrado
O processo científico leva a um equilíbrio estável, a um a a abordagem da ciência, sua experiência não era um a
estabilização e consolidação do m undo de nossas per­ simples massa amorfa de expressões sensoriais. Era um a
cepções e pensam entos. Por outro lado, a ciência não experiência organizada e articulada, possuidora de um a
está sozinha no cumprimento dessa tarefa. Na nossa epis- estrutura definida. Mas os conceitos que dão a esse m un­
temologia m oderna, tanto na escola em pirista como na do a sua unidade sintética não são os mesmos, nem es­
racionalista, encontram os com freqüência a concepção tão no mesmo nível, dos conceitos científicos. São con­
ceitos míticos ou linguísticos. Quando os analisamos, ve­
de que os prim eiros dados da experiência hum ana es­
mos que não são de modo algum simples ou “ prim iti­
tão em um estado de caos total. O próprio K ant, nos
vos” . As primeiras classificações dos fenômenos que en­
prim eiros capítulos da Crítica da Razão Pura, parece p ar­
contramos na linguagem ou no mito são, de certo modo,
tir desse pressuposto. A experiência, diz ele, é sem dú ­
m uito mais complicadas e sofisticadas que nossas clas­
vida o prim eiro produto do nosso entendim ento. M as
sificações científicas. A ciência começa com um a busca
não é um fato simples; é um composto de dois fatores
da simplicidade. Simplex sigillum veri parece ser um dos
opostos, m atérias e forma. O fator m aterial é dado por seus mecanismos fundamentais. Essa simplicidade lógica,
nossa percepção sensorial; o formal é representado por contudo, é um terminus ad quem, e não um terminus a quo.
nossos conceitos científicos. Estes, os conceitos do en­ É um fim, não um começo. A cultura hum ana começa
tendim ento puro, conferem aos fenômenos e sua u ni­ com um estado de espírito m uito mais complexo e con-
dade sintética. O que chamamos de unidade de um ob­ voluto. Quase todas as nossas ciências da natureza tive­
jeto não pode ser senão a unidade formal da nossa cons­ ram de passar por um estágio mítico. N a história do pen­
ciência na síntese da multiplicidade nas nossas represen­ samento científico, a alquim ia precede a quím ica, a as­
tações. Dizemos que conhecemos um objeto só se tiver­ trologia precede a astronomia. A ciência só foi capaz de
mos produzido um a unidade sintética n a multiplicidade avançar para além dessas prim eiras etapas pela intro­
da intuição. 3 P ara K ant, portanto, toda a questão da dução de um a nova m edida, um padrão lógico de ver­
objetividade do conhecimento hum ano está indissolúvel­ dade diferente. A verdade, declara ela, não será alcan-
340 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 341

çada enquanto o homem continuar limitado ao estreito desenvolve para uma função mais objetiva, “ represen­
círculo de sua experiência imediata, dos fatos observá­ tativa” 4 . Toda aparente semelhança entre fenômenos
veis. Em vez de descrever fatos separados e isolados, a diferentes basta para que sejam designados por um no­
ciência esforça-se para apresentar-nos uma visão abran­ me comum. Em alguns idiomas, a borboleta é descrita
gente. Mas tal visão não pode ser obtida por uma sim­ como um pássaro, ou a baleia como um peixe. Quando
ples extensão, um alargamento e enriquecimento da nos­ a ciência começou suas primeiras classificações, preci­
sa experiência ordinária. Ela exige um novo princípio sou corrigir e superar essas semelhanças superficiais. Os
de ordem, uma nova forma de interpretação intelectual. nomes científicos não são criados ao acaso; seguem um
A linguagem é a primeira tentativa do homem no senti­ distinto princípio de classificação. A criação de uma ter­
do de articular o mundo de suas percepções sensoriais. minologia sistemática coerente não é, de modo algum,
Essa tendência é uma das características fundamentais um aspecto acessório da ciência, e sim um de seus ele­
da fala humana. Alguns linguistas chegaram a julgar ne­ mentos inerentes e indispensáveis. Quando Lineu criou
cessário presumir um instinto classificatório especial no sua Philosophia botanica, teve de enfrentar a objeção de
homem para poderem dar conta do fato e da estrutura que se tratava apenas de um sistema artificial, não na­
da fala humana. “ O homem” , diz Otto Jespersen, tural. Mas todos os sistemas classificatórios são artifi­
ciais. A natureza, como tal, contém apenas fenômenos
é um animal classificador: em certo sentido, pode ser dito que
individuais e diversificados. Se colocarmos esses fenô­
todo o processo da fala não passa de uma distribuição de fenô­ menos em conceitos de classe e leis gerais, não estare­
menos — dos quais não há dois que sejam idênticos em todos mos descrevendo fatos da natureza. Todo sistema é uma
os aspectos — em classes diferentes, com base nas semelhan­ obra de arte — resultado da ação criativa consciente.
ças e dessemelhanças percebidas. No processo de atribuição Mesmo os sistemas biológicos mais recentes, ditos “ na­
de nomes testemunhamos a mesma tendência inerradicável, turais” , que se opuseram ao sistema de Lineu tiveram
e muito útil, de ver a parecença e expressar a similitude nos de usar elementos conceituais novos. Baseavam-se em
fenômenos através da similitude nos nornes\ uma teoria geral da evolução. Mas a própria evolução
não é um simples fato da história natural; é uma hipó­
Mas o que a ciência procura nos fenômenos é mui­ tese científica, uma máxima reguladora para a nossa ob­
to mais que a similitude; é a ordem. As primeiras clas­ servação e classificação dos fenômenos naturais. A teo­
sificações que encontramos na fala humana não têm qual­ ria de Darwin abriu um horizonte novo e mais amplo,
quer objetivo estritamente teórico. Os nomes dos obje­ forneceu um levantamento mais completo e mais coe­
tos cumprem a sua tarefa se nos permitirem comunicar rente dos fenômenos da vida orgânica. Não era de mo­
nossos pensamentos e coordenar nossas atividades prá­ do algum uma refutação do sistema de Lineu, que sem­
ticas. Têm uma função teleológica, que aos poucos se pre foi considerado por seu autor como uma etapa pre-
342 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 343

lim inar. Ele tinha consciência de que, de certo modo, m uito antes dos tempos de Pitágoras essa ordem havia
havia apenas criado um a nova term inologia botânica, sido descrita não apenas em termos míticos, mas tam ­
mas estava convencido de que essa term inologia tinha bém em símbolos matemáticos. As linguagens m ítica e
tanto um valor verbal como real. ‘‘Nomina si nescis” , disse matemática se interpenetram de modo muito curioso nos
ele, “perit et cognitio rerum." primeiros sistemas de astrologia da Babilônia, cujas ori­
A esse respeito parece não haver qualquer solução gens rem ontam a cerca de 3.800 a.C . A distinção entre
de continuidade entre a linguagem e a ciência. Nossos os diferentes grupos estelares e a divisão em doze partes
nomes linguísticos ou os primeiros nomes científicos po­ do zodíaco foram introduzidas pelos astrônomos babi-
dem ser vistos como resultado e produto do mesmo ins­ lônicos. Todos esses resultados não teriam sido alcan­
tinto classificatório. O que é feito inconscientemente na çados sem um a nova base teórica. M as foi necessária
linguagem é conscientemente pretendido e metodicamen­ um a generalização muito mais ousada para criar a pri­
te realizado no processo científico. Em seus prim eiros m eira filosofia dos núm eros. Os pensadores pitagóricos
estágios, a ciência tinha ainda de aceitar os nomes das foram os primeiros a conceber o núm ero como um ele­
coisas no sentido em que eram usados na fala cotidia­ mento abrangente, realmente universal. Seu uso não está
na. Podia usá-los para descrever os elementos fundamen­ mais confinado aos limites de um campo especial de in­
tais ou as qualidades das coisas. Nos prim eiros sistemas vestigação. Estende-se por todo o território do ser. Q uan­
gregos de filosofia natural, em Aristóteles, vemos que do Pitágoras fez sua prim eira grande descoberta, qu an ­
esses nomes comuns ainda exercem grande influência do descobriu a dependência da altura do som em rela­
sobre o pensam ento científico 5 . M as no pensam ento ção ao com prim ento das cordas vibrantes, não foi o fa­
grego esse poder já não é o único, nem o predom inan­ to em si, mas a sua interpretação, que se m ostrou deci­
te. N a época de Pitágoras e dos prim eiros pitagóricos, siva para a futura orientação do pensamento matemático
a filosofia grega havia descoberto um a nova linguagem, e filosófico. Pitágoras não podia ver nessa descoberta um
a dos núm eros. Essa descoberta m arcou o m om ento do fenômeno isolado. Um dos mais profundos mistérios,
nascim ento da nossa m oderna concepção de ciência. o mistério da beleza, parecia ter sido revelado nela. P a­
Q ue há um a regularidade, um a certa uniform ida­ ra a m ente grega, a beleza sempre teve um sentido in­
de, nos eventos naturais — nos movimentos dos plane­ teiram ente objetivo. A beleza é a verdade; é um traço
tas, no nascer do sol ou da lua, na m udança das esta­ fundam ental da realidade. Se a beleza que sentimos na
ções — é um a das prim eiras grandes experiências do gê­ harm onia dos sons pode ser reduzida a um a simples ra ­
nero hum ano. J á no pensam ento mítico essa experiên­ zão num érica, é o núm ero que nos revela a estrutura
cia havia encontrado seu pleno reconhecimento e sua ex­ fundam ental da ordem cósmica. “ O núm ero” , diz um
pressão característica. Aqui encontram os os prim eiros dos textos pitagóricos, “ é o guia e o m estre do pensa­
traços da idéia de um a ordem geral da natureza 6 . E m ento hum ano. Sem o seu poder tudo seria obscuro e
344 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 345

confuso.” 7 Não viveriamos em um m undo de verdade, persos e isolados. Na “ síntese da m ultiplicidade” , cada
mas de engano e ilusão. No núm ero, e apenas no n ú ­ nova palavra é um novo começo.
mero encontram os um universo inteligível. Esse estado de coisas m uda por completo assim que
Q ue esse universo fosse um novo universo de dis­ ingressamos no reino do núm ero. Não podemos falar
curso — que o m undo do núm ero fosse um m undo sim­ de núm eros singulares ou isolados. A essência do nú­
bólico — era um a concepção inteiram ente estranha à mero é sempre relativa, não absoluta. U m núm ero sin­
mente dos pensadores pitagóricos. Neste, como em to­ gular é apenas um lugar singular em um a ordem siste­
dos os outros casos, não podia haver um a distinção cla­ m ática geral. Não tem ser próprio, nem realidade con­
ra entre símbolo e objeto. O símbolo não só explicava tida em si mesma. Seu sentido é definido pela posição
o objeto; definitivam ente, assum ia o seu lugar. As coi­ que ocupa no conjunto do sistema numérico. A série dos
sas não eram apenas relacionadas aos núm eros ou ex- núm eros naturais é um a série infinita. Tal infinitude,
primíveis por eles; elas eram núm eros. J á não sustenta­ porém , não impõe limites ao nosso conhecimento teóri­
mos essa tese pitagórica da realidade substancial do n ú ­ co. Não significa um a indeterm inação, um Apeiron no
mero; não o consideram os mais como o próprio cerne sentido platônico, mas precisamente o contrário. N a pro­
da realidade. M as o que somos forçados a reconhecer gressão dos núm eros não deparam os com um a lim ita­
é que o núm ero é um a das funções fundam entais do co­ ção externa, com um “ últim o term o” . O que encon­
nhecim ento hum ano, um a etapa necessária no grande tram os é um a limitação em virtude de um princípio ló­
processo de objetifícação. Esse processo começa na lin­ gico intrínseco. Todos os term os estão ligados por um
guagem, mas assume na ciência um aspecto inteiramente elo comum . Têm origem em um a única e m esm a rela­
novo. Isso porque o simbolismo do núm ero é de um ti­ ção generativa, a relação que liga o núm ero n a seu su­
po lógico completam ente diverso do simbolismo da fa­ cessor imediato (n + 1). A partir dessa relação singela po­
la. N a linguagem encontram os os prim eiros esforços de demos derivar todas as propriedades dos núm eros in­
classificação, m as estes são ainda descoordenados. Não teiros. A marca distintiva e o maior privilégio lógico desse
são capazes de levar a um a verdadeira sistematização, sistema é a sua completa transparência. Em nossas teo­
pois os próprios símbolos da linguagem não têm qual­ rias modernas — nas teorias de Frege e Russell, de Peano
quer ordem sistemática definida. C ada term o lingüísti- e Dedekind — o núm ero perdeu todos os seus segredos
co isolado tem um a “ área de sentido” especial. Ele é, ontológicos. Concebemo-lo como um simbolismo novo
como diz G ardiner, “ um raio de luz, que ilum ina pri­ e poderoso que, para todos os propósitos científicos, é
meiro esta e depois aquela porção do campo em que es­ infinitam ente superior ao da fala. O que encontram os
tá a coisa, ou antes a complexa concatenação de coisas nele não são mais palavras isoladas, mas termos que pro­
significada por um a sentença” 8 . M as nem todos esses cedem segundo um único plano fundamental e, portanto,
diferentes raios de luz têm um foco com um . Estão dis­ m ostram -nos um a lei estrutural clara e definida.
346 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 347

Apesar disso tudo, a descoberta pitagórica signifi­ nia real entre a aritmética e a geometria, entre o reino
cou apenas uma primeira etapa no desenvolvimento da dos números distintos e o das quantidades contínuas.
ciência natural. O conjunto da teoria pitagórica do nú­ Foram precisos os esforços de muitos séculos de
mero foi subitamente posto em causa por um fato no­ pensamento matemático e filosófico para restaurar essa
vo. Quando os pitagóricos descobriram que em um triân­ harmonia. Uma teoria lógica do continuum matemático
gulo retângulo a linha oposta ao ângulo reto não tem é uma das mais recentes realizações do pensamento ma­
qualquer medida comum com os dois outros lados, ti­ temático11. E, sem uma teoria assim, toda a criação de
veram de enfrentar um problema inteiramente novo. Em novos números — das frações, dos números irracionais
toda a história do pensamento grego, em especial nos e assim por diante — sempre pareceu um empreendi­
diálogos de Platão, sentimos a profunda repercussão des­ mento questionável e precário. Se a mente humana, por
se dilema. Ele indica uma crise genuína na matemática seu próprio poder, pudesse criar arbitrariamente uma
grega. Nenhum pensador da antiguidade conseguiu re­ nova esfera de coisas, teríamos de mudar todos os nos­
solver o problema à maneira moderna, através da in­ sos conceitos de verdade objetiva. Mas também aqui o
trodução dos chamados “ números irracionais” . Do pon­ dilema perde força assim que levamos em conta o cará­
to de vista da lógica e da matemática gregas, os núme­ ter simbólico do número. Nesse caso fica evidente que,
com a introdução de novas classes de números, não cria­
ros irracionais eram uma contradição em termos. Eram
mos novos objetos, mas novos símbolos. A esse respei­
um app^TOV, uma coisa sobre a qual não se podia pen­
to, os números naturais estão no mesmo nível dos irra­
sar, nem falar9 . Como o número fora definido como um
cionais ou fracionais. Também eles não são descrições
inteiro ou uma relação entre inteiros, uma extensão in-
ou imagens de coisas concretas, de objetos físicos, mas
comensurável era uma extensão que não admitia qual­
antes expressam relações muito simples. A ampliação
quer expressão numérica, que desafiava e anulava to­ do território natural dos números, sua extensão por so­
dos os poderes lógicos do número. O que os pitagóricos bre um campo mais vasto, significa apenas a introdu­
haviam procurado e encontrado no número era a per­ ção de novos símbolos capazes de descrever relações de
feita harmonia de todos os tipos de seres e todas as for­ uma ordem mais elevada. Os números novos não são
mas de conhecimento, percepção, intuição e pensamento. símbolos de relações simples, mas de “ relações de rela­
A partir de então a aritmética, a geometria, a física, a ções” , de “ relações de relações de relações” e assim por
música e a astronomia deram a impressão de formar diante. Nada disso está em contradição com o caráter
um todo coerente. Todas as coisas no céu e na terra dos números inteiros, mas elucida e confirma esse ca­
tornaram-se “ uma harmonia e um número” 10 . A des­ ráter. Para preencher a lacuna entre os números intei­
coberta de extensões incomensuráveis, contudo, foi o co­ ros, que são quantidades distintas, e o mundo de even­
lapso dessa tese. Passou a não existir mais uma harmo­ tos físicos contido no continuum do espaço e do tempo,
348 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM
0 HOMEM E A CULTURA 349
o pensam ento m atem ático foi obrigado a encontrar um
como físico, podia errar em seus meios, não errou em sua
novo instrumento. Se o número fosse um a “ coisa” , um a
m eta filosófica fundamental. A partir dele, essa m eta pas­
substantia quae in se est et per se concipitur, o problem a seria
sou a ser entendida com clareza e ficou firmemente esta­
insolúvel. Com o se tratava de um a linguagem simbóli­
belecida. Em todos os seus ramos isolados, a física tendeu
ca, porém , só era preciso desenvolver o vocabulário, a
para um único e mesmo ponto; tentou colocar todo o m un­
morfologia e a sintaxe dessa linguagem de modo coe­
do dos fenômenos naturais sob o controle do núm ero.
rente. O que se exigia não era um a m udança na natu­
Nesse ideal metodológico geral não encontram os
reza e na essência do núm ero, mas apenas um a mudança
qualquer antagonismo entre a física clássica e a m o­
de sentido. U m a filosofia da m atem ática precisava pro­
derna. A mecânica quântica, de certo modo, é a ver­
var que essa m udança não conduz a um a am bigüidade
dadeira renascença, a renovação e a confirmação do
ou a um a contradição — que quantidades que não po­
ideal pitagórico. Nela tam bém , contudo, foi necessário
dem ser expressadas com exatidão pelos núm eros intei­
introduzir um a linguagem simbólica m uito mais abs­
ros ou por razões entre estes tornavam -se inteiram ente
trata. Q uando Demócrito descreveu a estrutura do seu
compreensíveis e exprimíveis com a introdução dos no­
átom o, recorreu a analogias tiradas do m undo de nos­
vos símbolos. sas experiências sensoriais. Apresentou um retrato, um a
Q ue todas as questões geométricas adm item um a
imagem do átom o, que se parece com objetos comuns
tal transform ação foi um a das prim eiras grandes desco­
do nosso macrocosmo. Os átomos distinguiam-se uns
bertas da filosofia m oderna. A geom etria analítica de
dos outros por sua forma, por seu tam anho e pelo ar­
Descartes apresentou a prim eira prova convincente dessa
ranjo de suas partes. A ligação entre eles era explicada
relação entre a extensão e o núm ero. A partir dela, a
por vínculos m ateriais; os átomos isolados receberam
linguagem da geom etria deixou de ser um idiom a espe­
ganchos e ilhoses, pinos e encaixes, para que pudes­
cial e passou a fazer parte de um a linguagem muito mais
sem ser ligados. Todas essas imagens, essa ilustração
abrangente, de um a mathesis universalis. Porém, para Des­
figurativa, desapareceram das nossas m odernas teorias
cartes não era ainda possível dom inar o m undo físico,
do átom o. No modelo de átomo de Bohr não resta na­
o m undo da m atéria e do m ovim ento, do mesmo m o­
da dessa linguagem pitoresca. A ciência não fala mais
do. Suas tentativas de desenvolver um a física m atem á­
a língua da experiência sensorial com um , mas o idio­
tica fracassaram . O m aterial do nosso m undo físico é
m a pitagórico. O simbolismo puro do núm ero substi­
composto de dados dos sentidos, e os fatos obstinados
tui e oblitera o simbolismo da fala comum. Não só o
e refratários representados por esses dados pareciam re­
macrocosmo, mas tam bém o microcosmo — o m undo
sistir a todos os esforços do pensam ento lógico e racio­
dos fenômenos interatômicos — podia agora ser des­
nal de Descartes. A física cartesiana não deixou de ser
crito por essa linguagem. Isso acabou sendo o ponto
um a tram a de suposições arbitrárias. M as se Descartes,
de partida de um a interpretação sistemática inteiramente
350 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 351

nova. “ Após a descoberta da análise espectral” , escre­ totalmente inadequada. Quando o alquimista começa­
veu Arnold Sommerfeld no prefácio de seu livro Atomic va a descrever suas observações, não tinha à sua dispo­
Structure and Spectral Linesl \ sição outro instrumento além de uma linguagem semi-
mística, repleta de termos obscuros e mal definidos. Fa­
ninguém com uma formação em física podia duvidar de que lava em metáforas e alegorias, não em conceitos cientí­
o problema do átomo seria resolvido quando os físicos apren­ ficos. Essa linguagem obscura deixava uma marca so­
dessem a entender a linguagem dos espectros. Tão variada era bre toda a sua concepção da natureza. Esta transforma-
a enorme quantidade de material acumulado em sessenta anos va-se em um território de qualidades obscuras que só
de pesquisa espectrográfica que, à primeira vista, parecia es­ era compreensível para o iniciado, para os adeptos. Uma
tar além da possibilidade de ser desenredado.... O que esta­
nova corrente do pensamento químico tem início na épo­
mos agora ouvindo da linguagem dos espectros é uma verda­
ca do Renascimento. Nas escolas da “ iatroquímica” ,
deira “ música das esferas” no seio do átomo, acordes de rela­
o pensamento biológico e médico toma-se predominante.
ções integrais, uma ordem e uma harmonia que se tornam ca­
da vez mais perfeitas a despeito de sua múltipla variedade....
Uma verdadeira abordagem científica dos problemas da
Todas as leis integrais das linhas espectrais e da teoria atômi­ química, porém, só foi alcançada no século XVII. O li­
ca surgem originariamente da teoria quântica. Esta é o orga- vro Chymista scepticus, de Robert Boyle (1677), é o pri­
non misterioso no qual a Natureza toca a sua música dos es­ meiro grande exemplo de um ideal moderno da quími­
pectros, e com cujo ritmo ela regula a estrutura dos átomos ca, baseado em uma nova concepção geral da natureza
e dos núcleos. e das leis naturais. Contudo, mesmo nele, e no ulterior
desenvolvimento da teoria do flogístico, encontramos
A história da química é um dos melhores e mais apenas uma descrição qualitativa dos processos quími­
notáveis exemplos dessa lenta transformação da lingua­ cos. Só no final do século XVIII, na época de Lavoi-
gem científica. A química ingressou na “ rodovia da ciên­ sier, a química aprendeu a falar uma linguagem quan­
cia” muito depois da física. Não foi absolutamente a falta titativa. A partir de então pode-se observar um rápido
de novas provas empíricas que obstruiu por muitos sé­ progresso. Quando Dalton descobriu a lei das propor­
culos o progresso do pensamento químico e que mante­ ções equivalentes ou múltiplas, um novo caminho foi
ve a química nos limites dos conceitos pré-científicos. aberto para a química. O poder do número foi firme­
Quando estudamos a história da alquimia verificamos mente estabelecido. Não obstante isso, restavam ainda
que os alquimistas possuíam um espantoso talento para vastos campos de experiência química que não estavam
a observação. Eles acumularam uma vasta reserva de completamente submetidos às regras dos números. A lis­
fatos valiosos, uma matéria-prima sem a qual a quími­ ta de elementos químicos era uma simples listagem em­
ca dificilmente teria sido desenvolvida13. No entanto, a pírica; não dependia de qualquer princípio fixo, nem
forma em que essa, matéria-prima era apresentada era apresentava uma ordem sistemática definida. Mas até
352 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 353

esse últim o obstáculo foi removido pela descoberta do inspeção; o do estágio postulacionalmente prescrito é o con­
sistema periódico dos elementos. C ada elemento encon­ ceito por postulação. Um conceito por inspeção é aquele cujo
trou o seu lugar em um sistema coerente, e esse lugar sentido completo é dado por algo que se apreende imediata­
era m arcado por seu núm ero atômico. “ O verdadeiro mente. O conceito por postulação é aquele cujo sentido é pres­
crito para ele pelos postulados da teoria dedutiva em que
núm ero atômico é simplesmente o núm ero que dá a po­
ocorre1 .
sição do elem ento no sistema natural quando se levam
em devida conta as relações químicas ao decidir a or­
Para esse passo decisivo, que leva do meramente apreen-
dem de cada elem ento.” A rgum entando com base no
sível ao compreensível, precisamos sempre de um novo
sistema periódico foi possível prever elementos desco­
instrumento de pensamento. Devemos referir nossas ob­
nhecidos e descobri-los posteriorm ente. Desse modo, a
servações a um sistema de símbolos bem ordenados pa­
quím ica adquiriu um a nova estrutura m atem ática e
ra poder torná-las coerentes e interpretáveis em termos
dedutiva 1 4 .
de conceitos científicos.
Podemos acom panhar a m esm a tendência geral de
Q ue a m atem ática seja um a linguagem simbólica
pensam ento na história da biologia. T al como todas as
universal — que não se ocupa da descrição das coisas,
outras ciências naturais, a biologia teve de começar por
mas de expressões gerais de relações — é um a concep­
um a simples classificação dos fatos, ainda guiada pelos
ção que aparece em um período relativam ente recente
conceitos classificatórios da nossa linguagem ordinária.
da história da filosofia. U m a teoria da m atem ática b a­
A biologia científica deu a esses conceitos um sentido
seada nesse pressuposto só surgiu no século X V II. Leib-
mais definido. O sistema zoológico de Aristóteles e o sis­
niz foi o prim eiro grande pensador m oderno a ter um a
tem a botânico de Teofrasto m ostram um alto grau de
clara compreensão do verdadeiro caráter do simbolis­
coerência e ordem metodológica. Na biologia m oderna,
mo m atemático e a tirar dessa compreensão, im ediata­
porém, todas essas formas anteriores de classificação são
m ente, conclusões férteis e abrangentes. A esse respei­
encobertas por um ideal diferente. A biologia vai pas­
to, a história da m atem ática não difere da de todas as
sando aos poucos para um novo estágio de ‘‘teoria for­
m ulada dedutivam ente” . ‘‘Q ualquer ciência, em seu de­ demais formas simbólicas. M esmo para a m atem ática
foi extrem am ente difícil descobrir a nova dim ensão de
senvolvimento norm al” , diz o Professor N orthrop,
pensam ento simbólico. Tal pensam ento era em prega­
passa por dois estágios — o primeiro, que chamamos de está­
do pelos m atemáticos m uito antes que fossem capazes
gio da história natural, e o segundo, que é o da teoria prescri­ de explicar o seu caráter lógico específico. Assim como
ta postulacionalmente. A cada um desses estágios correspon­ os símbolos da linguagem e da arte, os da m atem ática
de um tipo definido de conceito científico. O tipo de conceito estão desde o princípio envoltos em um a espécie de a t­
para o estágio da história natural é chamado de conceito por mosfera mágica. São vistos com reverência e veneração
354 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 355

religiosas. Posteriorm ente essa fé religiosa e mística E não terá o verdadeiro astrônomo o mesmo sentimento quan­
desenvolve-se aos poucos para um a espécie de fé m eta­ do olha para o movimento das estrelas? Não pensará que o
física. N a filosofia de Platão o núm ero j á não está en­ céu e as coisas no céu são ali colocadas pelo Criador da ma­
volto em mistério. Ao contrário, é visto como o próprio neira mais perfeita? Mas nunca imaginará que as proporções
centro do m undo intelectual — tornou-se a chave para da noite e do dia, ou de ambos para o mês, ou deste para o
toda a verdade e inteligibilidade. Q uando Platão, já ido­ ano, e quaisquer outras coisas que sejam materiais e visíveis
possam também ser eternas e não estar sujeitas a nenhum des­
so, apresentou sua teoria do m undo ideal, tentou des­
vio — isso seria absurdo; e é igualmente absurdo dar-se a tan­
crevê-lo em term os de núm ero puro. Para ele, a m ate­
tas penas para investigar a sua exata verdade1 6 .
m ática é o dom ínio interm ediário entre o m undo sensí­
vel e o supra-sensível. T am bém ele é um verdadeiro pi-
A epistemologia m oderna não sustenta mais essa
tagórico — e nessa qualidade está convencido de que
teoria platônica do núm ero. Não considera a m atem á­
o poder do núm ero se estende por sobre todo o m undo
tica como um estudo de coisas, visíveis ou invisíveis, mas
visível. M as a essência metafísica do núm ero não pode
como um estudo de relações e tipos de relação. Q uando
ser revelada por nenhum fenômeno visível. Os fenôme­
falamos da objetividade do núm ero, não pensam os nele
nos fazem parte dessa essência, mas não podem expressá-
como um a entidade física ou metafísica separada. O que
la adequadam ente. E um engano considerar esses n ú ­
querem os expressar é que o núm ero é um instrum ento
meros visíveis que encontramos nos fenômenos naturais,
para a descoberta da natureza e da realidade. A histó­
nos movim entos dos corpos celestiais, como os verda­
ria da ciência mostra-nos exemplos típicos desse processo
deiros núm eros m atem áticos. O que vemos nesse caso
intelectual contínuo. M uitas vezes, o pensam ento m a­
são apenas “ indicações” (irapaôeíypara) dos núm eros
temático parece ir à frente da investigação física. Nos­
ideais puros. Esses núm eros devem ser apreendidos pe­
sas teorias matemáticas mais im portantes não brotaram
la razão e pela inteligência, mas não pela visão.
de necessidades práticas ou técnicas imediatas. São con­
cebidas como esquemas gerais de pensam ento antes de
Os céus estrelados deveriam ser usados como um padrão,
qualquer aplicação concreta. Quando Einstein desenvol­
e com vistas a um conhecimento mais elevado; sua beleza
é como a beleza das figuras e imagens forjadas com excelên­
veu sua teoria da relatividade geral, recorreu à geome­
cia pela mão de Dédalo ou qualquer outro grande artista, tria de Riemann, que este criara muito tempo antes, mas
que possamos por acaso ver; qualquer geômetra que as visse considerava como um a m era possibilidade lógica. Ape­
apreciaria o requinte do trabalho que as fez, mas nunca so­ sar disso, estava convencido de que precisamos de tais
nharia em pensar que nelas podería encontrar o verdadeiro possibilidades para estarmos preparados para um a des­
igual ou a verdadeira réplica, ou a verdade de qualquer ou­ crição dos fatos reais. O que necessitamos é de plena li­
tra proporção... berdade na ideação das várias formas do nosso simbo-
O HOMEM E A CULTURA 357
356 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

século X IX , Felix Klein afirmou que um dos aspectos


lismo m atem ático, p ara poderm os dar ao pensam ento
físico todos os seus instrum entos intelectuais. A nature­ mais característicos desse desenvolvimento é a progres­
za é inesgotável — sempre nos colocará problemas no­ siva “ aritmetização da m atem ática” 18 . T am bém pode­
vos e inesperados. Não podemos antecipar os fatos, mas mos acom panhar esse processo de aritm etização n a his­
podemos tom ar providências para a interpretação inte­ tória da física moderna. Dos quatérnios de Ham ilton aos
lectual dos fatos através do poder do pensam ento sim­ diferentes sistemas da mecânica quântica deparamos com
bólico. sistemas cada vez mais complexos de simbolismo algé­
Se aceitarmos essa visão, poderem os encontrar a brico. O cientista age com base no princípio de que até
resposta para um dos problemas mais difíceis e mais de­ nos casos mais complicados acabará conseguindo encon­
batidos da nossa ciência natural m oderna — o proble­ trar um simbolismo adequado que lhe perm ita descre­
m a do determ inism o. O que a ciência precisa não é de ver suas observações em um a linguagem universal e de
um determ inism o metafísico, mas de um determ inism o compreensão geral.
metodológico. Podemos repudiar o determ inism o me- E certo que o cientista não nos dá um a prova lógi­
canicista que teve sua expressão n a famosa fórm ula de ca ou empírica de sua pressuposição fundamental. A úni­
Laplace 1 7 . M as o verdadeiro determ inism o científico, ca prova que nos apresenta é seu trabalho. Ele aceita
o determ inism o do núm ero, não é passível de tais obje- o princípio do determinism o num érico como um a m á­
ções. Deixamos de ver no núm ero um poder místico ou xim a condutora, um a idéia norm ativa que confere ao
a essência metafísica das coisas. Consideramo-lo um ins­ seu trabalho a sua coerência lógica e sua unidade siste­
trum ento específico de conhecimento. E óbvio que essa m ática. Encontro um a das melhores explanações desse
concepção não é questionada por nenhum resultado da caráter geral do processo científico no Tratado sobre Ópti­
física m oderna. O progresso da mecânica quântica ca Fisiológica, de Helmholtz. Ele afirma que, se os p rin ­
m ostrou-nos que a nossa linguagem m atem ática é m ui­ cípios do nosso conhecimento científico, por exemplo a
to mais rica, elástica e flexível do que se pensava nos lei da causação, não passassem de regras empíricas, sua
sistemas da física clássica. É adaptável a novos proble­ prova indutiva estaria em péssimo estado. O melhor que
mas e exigências. Q uando Heisenberg postulou sua teo­ poderiamos dizer seria que tais princípios não eram m ui­
ria, usou um a nova forma de simbolismo algébrico, pa­ to mais válidos que regras da m eteorologia como a lei
ra o qual algumas das regras algébricas usuais tornaram - da rotação dos ventos, etc. M as esses princípios trazem
se inválidas. M as a form a geral do núm ero é preserva­
estam pado o caráter de leis puram ente lógicas, pois as
da em todos os esquemas subseqüentes. Gauss declarou
conclusões derivadas deles não dizem respeito à nossa
que a m atem ática é a rainha das ciências e a aritm ética
experiência efetiva e aos meros fatos da natureza, mas
é a rainha da m atem ática. Em um estudo histórico do
à nossa interpretação da natureza.
desenvolvimento do pensam ento m atem ático durante o
358 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 359

O processo da nossa compreensão com relação aos fenô­ pelas margens de um imenso oceano e apanha ocasio­
menos naturais é que tentamos encontrar noções gerais e leis da nalm ente um calhau cuja cor ou form a atraem o seu
natureza. As leis da natureza são apenas noções genéricas para olhar. Tal sentimento modesto é compreensível, mas não
as mudanças da natureza... Logo, quando não podemos atri­ proporciona um a descrição verdadeira e completa do tra­
buir um fenômeno natural a uma lei... cessa a própria possi­ balho do cientista. Este não pode atingir seu objetivo
bilidade de compreendermos esse fenômeno. sem um a estrita obediência aos fatos da natureza. Essa
Contudo, devemos tentar compreendê-los. Não há outro obediência, porém , não é submissão passiva. A obra de
método para colocá-los sob o controle do intelecto. De modo todos os grandes cientistas naturais — de Galileu e New­
que, ao investigá-los, devemos agir com base no pressuposto ton, de Maxwell e Helmholtz, de Planck e Einstein —
de que são compreensíveis. Conseqüentemente, a lei da razão
não foi um a m era coleta de fatos; foi um a obra teórica,
suficiente não passa, na verdade, da ânsia de nosso intelecto
ou seja, construtiva. Essas espontaneidade e produtivi­
de colocar todas as nossas percepções sob seu controle. Não
dade são o próprio centro de todas as atividades h u m a­
é uma lei da natureza. O nosso intelecto é a faculdade de for­
nas. E o mais alto poder do hom em , e designa ao m es­
mular concepções gerais. Não tem nada a ver com nossas per­
cepções sensoriais e experiências, a menos que seja capaz de
mo tempo o limite natural de nosso m undo hum ano. Na
formar concepções ou leis gerais... Além do nosso intelecto, linguagem, na religião, na arte e na ciência, o hom em
não existe qualquer outra faculdade igualmente sistematiza­ não pode fazer mais que construir seu próprio universo
da, pelo menos para a compreensão do mundo externo. Lo­ — um universo simbólico que lhe perm ite entender e
go, se formos incapazes de conceber uma coisa, não poderemos interpretar, articular e organizar, sintetizar e universa­
imaginá-la existindo1 ®. lizar sua experiência hum ana.

Estas palavras descrevem de modo m uito claro a


atitude geral do espírito científico. O cientista sabe que
existem ainda vastos campos de fenômenos que ainda
não foi possível reduzir a leis estritas e a regras num éri­
cas exatas. M esmo assim, continua fiel a este credo pi-
tagórico geral: acha que a natureza, tom ada em seu con­
ju n to e em todos os seus campos especiais, é “ um n ú ­
mero e um a h arm onia” . D iante da im ensidão da n atu ­
reza, muitos dos maiores cientistas podem ter tido aquela
sensação especial que foi expressada em um a frase fa­
mosa de Newton. Eles podem ter pensado que, em seu
próprio trabalho, eram como um a criança que cam inha
C A P ÍT U L O X II

SUMÁRIO E CONCLUSÃO

Se, no final de nossa longa estrada, olharmos de novo


para o ponto de partida, poderemos não ter a certeza de
havermos alcançado o nosso objetivo. U m a filosofia da
cultura parte do pressuposto de que o m undo da cultura
hum ana não é um mero agregado de fatos dispersos e
separados. Procura entender esses fatos como um siste­
ma, como um todo orgânico. Para um a visão empírica
ou histórica parecería ser bastante colher os dados da cul­
tura hum ana. O que nos interessa aqui é a totalidade da
vida hum ana. Estamos envolvidos em um estudo dos fe­
nômenos particulares em sua riqueza e variedade; apre­
ciamos a policromia e a polifonia da natureza do homem.
U m a análise filosófica, porém, impõe a si mesm a um a
tarefa diferente. Seu ponto de partida e sua hipótese de
trabalho estão corporificados na convicção de que os raios
variados e aparentemente dispersos podem ser concen­
trados e levados a um foco comum. Os fatos estão aqui
reduzidos a formas, e supõe-se que essas próprias formas
possuam uma unidade interna. Mas teremos sido capazes
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA
362 363

de provar esse ponto essencial? Não terão todas as nos­ mana, só pode ser descrito como dinâmico, e não está­
sas análises individuais mostrado precisamente o con­ tico; resulta de uma luta entre forças opostas. Essa luta
trário? O tempo todo tivemos de enfatizar a estrutura não exclui a “ harmonia oculta” que, segundo Herácli­
e o caráter específico das várias formas simbólicas — do to, “ é melhor que aquela que é óbvia” 2 .
mito, da linguagem, da arte, da religião, da história, da A definição do homem por Aristóteles como um
ciência. Tendo em mente esse aspecto da nossa investi­ “ animal social” não é suficientemente abrangente. Ela
gação, talvez possamos sentir-nos inclinados a favore­ nos proporciona um conceito geral, mas não a diferen­
cer a tese oposta, a tese da descontinuidade e da radical ça específica. A sociabilidade como tal não é uma ca­
heterogeneidade da cultura humana. racterística exclusiva do homem, nem privilégio só de­
De um ponto de vista meramente ontológico ou me­ le. Nos chamados estados animais, entre as abelhas e
tafísico, pode ser de fato muito difícil refutar essa tese. formigas, encontramos uma nítida divisão do trabalho
Para uma filosofia crítica, porém, o problema assume e uma organização social surpreendentemente compli­
outro aspecto. Nela não temos a obrigação de provar cada. No caso do homem, porém, encontramos não só
a unidade substancial do homem. Este não é mais visto uma sociedade de ação, como ocorre entre os animais,
como uma substância simples que existe em si mesma mas também uma sociedade de pensamento e de senti­
e deve ser conhecida por si mesma. A unidade do ho­ mento. A linguagem, o mito, a arte, a religião e a ciên­
mem é concebida como uma unidade funcional. Tal uni­ cia são os elementos e as condições constitutivas dessa
dade não pressupõe uma homogeneidade dos vários ele­ forma mais elevada de sociedade. São os meios pelos
mentos de que consiste. Nem tampouco simplesmente quais as formas de vida social que encontramos na na­
admite, ou sequer pede, uma multiplicidade e multifor- tureza orgânica se desenvolvem para um novo estado,
midade de suas partes constituintes. Trata-se de uma o da consciência social. A consciência social do homem
unidade dialética, uma coexistência de contrários. depende de um ato duplo, de identificação e discrimi­
“ Os homens não entendem” , disse Heráclito, “ de nação. O homem não pode encontrar a si mesmo, não
que modo aquilo que é puxado para direções diferentes pode tomar consciência de sua individualidade, a não
entra em acordo consigo mesmo — harmonia na con­ ser através do meio da vida social. Para ele, porém, es­
trariedade, como no caso do arco e da lira.” 1 Para po­ se meio significa mais que uma força externa determi­
dermos demonstrar essa harmonia não precisamos pro­ nante. O homem, como os animais, submete-se às re­
var a identidade ou similitude das diferentes forças pe­ gras da sociedade, mas, além disso, tem uma participa­
las quais é produzida. As várias formas da cultura hu­ ção ativa na criação e um poder ativo de mudança das
mana não são mantidas juntas por uma identidade em formas de vida social. Nos estágios rudimentares da so­
sua natureza, mas por uma conformidade em sua tare­ ciedade humana, essa atividade é dificilmente perceptí­
fa fundamental. Se existe um equilíbrio na cultura hu­ vel; parece estar reduzida a um mínimo. Quanto mais
364 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM O HOMEM E A CULTURA 365

avançam os, contudo, mais explícita e significativa fica pagar suas obras. Não pode viver sua vida sem expressá-
essa característica. Esse lento desenvolvimento pode ser la. Os vários modos dessa expressão constituem um a no­
acom panhado em quase todas as formas da cultura h u ­ va esfera. Têm um a vida própria, um tipo de eternida­
m ana. de através da qual sobrevivem à existência individual
E fato conhecido que m uitas ações realizadas nas e efêm era do homem. Em todas as atividades hum anas
sociedades anim ais são não apenas iguais, mas em al­ vemos um a polaridade fundam ental, que pode ser des­
guns aspectos superiores às obras dos hom ens. Foi com crita de várias m aneiras. Podemos falar de um a tensão
frequência assinalado que, na construção de seus alvéo­ entre estabilização e evolução, entre um a tendência que
los, as abelhas agem como um perfeito geômetra, alcan­ leva a formas fixas e estáveis de vida e outra que rompe
çando a mais alta precisão. T al atividade exige um com- esse esquem a rígido. O hom em fica dividido entre es­
plexíssimo sistema de coordenação e colaboração. Em sas duas tendências, um a das quais procura preservar
nenhum a dessas realizações anim ais, no entanto, encon­ as formas antigas, enquanto a outra esforça-se para pro­
tram os um a diferenciação individual. Todas são produ­ duzir novas formas. H á um a luta incessante entre a tra ­
zidas do mesmo modo e segundo as mesmas regras in ­ dição e a inovação, entre forças reprodutivas e criati­
variáveis. Não há qualquer latitude para a escolha ou vas. Esse dualismo é encontrado em todos os domínios
a capacidade individual. Só quando chegamos aos está­ da vida cultural. O que varia é a proporção dos fatores
gios superiores da vida anim al encontram os os prim ei­ opostos. O ra um fator, ora outro, parece preponderar.
ros indícios de um a certa individualização. As observa­ Essa preponderância determ ina em alto grau o caráter
ções dos macacos antropóides por W olfgang Koehler pa­ das formas isoladas e confere a cada um a delas a sua
recem provar que há m uitas diferenças de inteligência fisionomia particular.
e habilidade nesses anim ais. U m deles pode ser capaz No mito e na religião prim itiva, a tendência à es­
de resolver um problem a que p ara os demais é insolú­ tabilização é tão forte que supera totalmente o pólo opos­
vel. E aqui podemos até falar de “ invenções” indivi­ to. Esses dois fenômenos culturais parecem ser os pode­
duais. Porém, para a estrutura geral da vida animal, tudo res mais conservadores da vida hum ana. O pensam en­
isso é irrelevante. Essa estrutura é determ inada pela lei to mítico, por sua origem e princípio, é pensam ento tra­
biológica geral segundo a qual os caracteres adquiridos dicional, pois o mito não tem meios de entender, expli­
não são passíveis de transmissão hereditária. Todo aper­ car e interpretar a forma presente da vida hum ana, a
feiçoamento que um organismo possa obter no curso de não ser rem etendo-a a um passado rem oto. Aquilo que
sua vida individual fica confinado à sua própria exis­ tem suas raízes nesse passado mítico, que tem sido des­
tência, e não influencia a vida da espécie. Nem o ho­ de então, que existiu desde tempos imemoriais, é firme
mem é um a exceção a essa regra biológica geral. M as e inquestionável. Colocar isso em causa seria um sacri­
o homem descobriu um novo modo de estabilizar e pro­ légio. P ara a m ente prim itiva não h á nada mais sagra-
ENSAIO SOBRE 0 HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA
366 367
do que a sacralidade da idade. É a idade que confere a a predom inância sobre os simples poderes de estabiliza­
todas as coisas, aos objetos físicos e às instituições hum a­ ção. A vida religiosa alcançou sua m aturidade e sua liber­
nas, seu valor, sua dignidade e seu m érito m oral e reli­ dade; quebrou o feitiço de um tradicionalismo rígido3 .
gioso. Para que seja possível m anter essa dignidade, torna- Se passarmos do campo do pensam ento mítico e re­
se im perativo preservar a ordem hu m an a na m esm a o r­ ligioso p ara o da linguagem, encontrarem os neste, sob
dem inalterável. Q ualquer solução de continuidade des­ form a diferente, o mesmo processo fundam ental. Até
tru iría a própria substância da vida religiosa e mítica. Do mesmo a linguagem é um dos mais firmes poderes con­
ponto de vista do pensam ento prim itivo, a mais leve al­ servadores da cultura hum ana. Sem esse conservadoris­
teração no esquem a estabelecido das coisas é algo desas­ mo não seria capaz de cum prir sua tarefa principal, a
troso. As palavras de um a fórm ula m ágica, de um feitiço comunicação. Esta requer regras estritas. O s símbolos
ou encantam ento, as fases singulares de um ato religio­ e as formas lingüísticas precisam ter estabilidade e cons­
so, de um sacrifício ou de um a oração, tudo deve ser re­ tância para poderem resistir à influência corrosiva e des-
petido em um a única e m esm a ordem invariável. Q u al­ truidora do tempo. Apesar disso, as m udanças fonéti­
quer m udança aniquilaria a força e a eficácia da palavra cas e semânticas não são apenas aspectos casuais do de­
mágica ou do rito religioso. A religião primitiva, portanto, senvolvimento da linguagem. São condições inerentes
não pode deixar espaço para qualquer liberdade de pen­ e necessárias desse desenvolvimento. U m a das razões
sam ento individual. Ela prescreve suas regras fixas, rí­ mais im portantes para essa contínua m udança é o fato
gidas e invioláveis não só p ara cada ação hum ana, mas de que a língua deve ser transm itida de geração a gera­
tam bém para todo sentim ento hum ano. A vida do ho­ ção. Essa transm issão não é possível através da simples
m em está sob um a pressão constante. Está encerrada no reprodução de formas fixas e estáveis. O processo de
estreito círculo de exigências positivas e negativas, de con­ aquisição da linguagem envolve sempre um a atitude ati­
sagrações e proibições, de observâncias e tabus. Apesar va e produtiva. Até os enganos infantis são característi­
disso, a história da religião m ostra-nos que essa prim ei­ cos a esse respeito. Longe de serem erros que surgem
ra form a de pensam ento religioso não expressa de modo de um a capacidade insuficiente de m em ória ou de re ­
algum o seu real sentido e seu fim. Nela tam bém encon­ produção, constituem a m elhor prova de atividade e es­
tram os um avanço contínuo na direção oposta. O inter­ pontaneidade por parte da criança. Em um estágio com­
dito sob o qual a vida hum an a fora posta pelo pensam en­ parativam ente prim itivo de seu desenvolvimento, a
to mítico e religioso prim itivo é gradualm ente afrouxa­ criança parece ter adquirido um a certa idéia da estru­
do, e finalm ente dá mostras de ter perdido a sua força tura geral de sua língua m aterna sem ter, é claro, qual­
coesiva. Surge um a nova form a dinâm ica de religião que quer consciência abstrata de regras lingüísticas. U sa pa­
abre um a nova perspectiva de vida moral e religiosa. Nes­ lavras ou sentenças que nunca ouviu antes e que são in ­
sa religião dinâm ica, os poderes individuais obtiveram frações às regras morfológicas ou sintáticas. M as é pre-
368 ENSAIO SOBRE O HOMEM 0 HOMEM E A CULTURA 369
cisamente nessas tentativas que surge o agudo senso de em sua Ars Poética (“ A mediocridade dos poetas não é
analogia da criança. Nelas, ela ensaia a sua capacidade permitida, nem pelos deuses, nem pelos homens, nem
de apreender a forma da língua em vez de se limitar a pelos pilares que sustentam as lojas dos livreiros” ). E
reproduzir o seu conteúdo. A transferência da língua de claro que mesmo neste campo a tradição tem um papel
uma geração a outra, portanto, nunca pode ser compa­ de suprema importância. Tal como no caso da lingua­
rada a uma simples transferência de propriedade atra­ gem, as mesmas formas são transmitidas de uma gera­
vés da qual uma coisa material, sem alterar sua nature­ ção a outra. Os mesmos motivos fundamentais da arte
za, apenas muda de dono. Em seus Prinzipien derSprach- ocorrem repetidamente. Apesar disso todo grande ar­
geschichte, Hermann Paul enfatizou especialmente esta tista, de certo modo, faz uma nova época. Tomamos
questão. Mostrou com exemplos concretos que a evolu­ consciência desse fato quando comparamos nossas for­
ção histórica de uma língua depende em grande medi­ mas comuns de fala com a linguagem poética. Nenhum
da dessas mudanças lentas e contínuas que têm lugar poeta pode criar uma linguagem inteiramente nova. Pre­
na transferência de palavras e formas lingüísticas dos pais cisa adotar as palavras, e respeitar as regras fundamen­
para os filhos. Segundo Paul, esse processo deve ser visto tais de sua língua. A tudo isso, porém, o poeta dá não
como uma das razões principais para os fenômenos da só um novo aspecto, mas também uma nova vida. Na
transformação sonora e da mudança semântica4 . Em tu­ poesia as palavras não são significativas apenas de ma­
do isso sentimos com muita nitidez a presença de duas neira abstrata; não são meros ponteiros através dos quais
tendências diferentes — uma que leva à conservação, queremos indicar certos objetos empíricos. Deparamos
outra à renovação e ao rejuvenescimento da língua. No neste caso com uma espécie de metamorfose de nossas
entanto, mal poderiamos falar de uma oposição entre palavras comuns. Cada verso de Shakespeare, cada es­
essas duas tendências. Elas estão em equilíbrio perfei­ trofe de Dante ou de Ariosto, cada poema lírico de Goe-
to; são os dois elementos e condições indispensáveis da the tem seu som peculiar. Lessing disse que é tão im­
vida da linguagem. possível roubar um verso de Shakespeare quanto rou­
Um novo aspecto do mesmo problema se nos apre­ bar a maça de Hércules. E o que é ainda mais espanto­
senta no desenvolvimento da arte. Neste caso, porém, so é o fato de que o grande poeta nunca se repete. Sha­
o segundo fator — o fator da originalidade, da indivi­ kespeare falava uma língua que nunca antes fora ouvida
dualidade, da criatividade — parece definitivamente pre­ — e cada personagem shakesperiano fala seu próprio
dominar sobre o primeiro. Na arte não nos contenta­ idioma incomparável e inconfundível. Em Lear ou em
mos com a repetição ou reprodução de formas tradicio­ Macbeth, em Brutus ou em Hamlet, em Rosalinda ou
nais. Sentimos uma nova obrigação; introduzimos no­ em Beatriz ouvimos essa linguagem pessoal que é o es­
vos padrões críticos. “ Mediocribus esse poetis non di, pelho de uma alma individual. Somente assim pode a
non homines, non concessere columnae” , diz Horácio poesia expressar todos os inúmeros matizes, aqueles de-
370 ENSAIO SOBRE O HOMEM O HOMEM E A CULTURA 371

licados tons de sentim ento que são impossíveis em ou­ tanto que seja Arte bela.” Podemos falar de Newton co­
tros modos de expressão. Se em seu desenvolvimento mo um gênio científico; mas nesse caso falamos apenas
a linguagem necessita um a constante renovação, não metaforicamente. ‘‘Desse modo podemos aprender pron­
existe para isso fonte m elhor e mais profunda que a poe­ tamente tudo o que Newton apresentou em sua obra imor­
sia. A grande poesia sempre faz um a incisão clara, um a tal sobre os Princípios da Filosofia N atural, por m aior
cesura definida, n a história da linguagem . Após a m or­ que fosse a m ente necessária para descobri-la; mas não
te de D ante, Shakespeare e Goethe, a língua italiana, podemos aprender a escrever poesia com espírito, por
a língua inglesa e a língua alem ã não eram as mesmas mais expressos que sejam os preceitos da arte e por mais
que haviam sido no dia do nascim ento deles. excelentes que sejam os seus m odelos.” 5
Em nossas teorias estéticas, a diferença entre os po­ A relação entre subjetividade e objetividade, indi­
deres conservador e produtivo de que depende a obra vidualidade e universalidade, não é de fato a m esm a na
de arte foi sempre sentida e expressada. Em todas as épo­ obra de arte e na obra do cientista. É verdade que um a
cas houve sempre um a tensão e um conflito entre as teo­ grande descoberta científica sempre traz a marca da m en­
rias da imitação e da inspiração. A prim eira declara que te individual de seu autor. Nela não encontram os so­
a obra de arte deve ser julgada segundo regras fixas e m ente um novo aspecto objetivo das coisas, mas tam ­
constantes, ou de acordo com modelos clássicos. A se­ bém um a atitude mental individual e até um estilo pes­
gunda rejeita todos os padrões ou cânones de beleza. A soal. M as tudo isso tem um a relevância apenas psicoló­
beleza é única e incom parável, é obra do gênio. Foi es­ gica, não sistemática. No conteúdo objetivo da ciência,
sa concepção que, após um a longa lu ta contra as teo­ esses traços individuais são esquecidos e apagados, pois
rias do classicismo e do neoclassicismo, se tornou pre­ um a das principais metas do pensam ento científico é a
dom inante no século X V III e pavim entou o caminho eliminação de todos os elementos pessoais e antropomór-
para a nossa estética m oderna. ‘ ‘O gênio'' , diz K ant em ficos. Nas palavras de Bacon, a ciência esforça-se para
sua Crítica do Juízo, “ é a disposição m ental inata (inge- conceber o m undo “ex analogia universi” , e não “ex ana­
niuní) através da qual a N atureza dá a regra à A rte .” E logia hominis"^.
um "‘talento p a ra produzir aquilo para o que nenhum a Tom ada como um todo, a cultura hum ana pode ser
regra definida pode ser dada; não é m era aptidão para descrita como o processo da progressiva autolibertação
o que pode ser aprendido por u m a regra. Logo, a origi­ do homem. A linguagem, a arte, a religião e a ciência
nalidade deve ser sua prim eira propriedade” . Essa ori­ são várias fases desse processo. Em todas elas o hom em
ginalidade é a prerrogativa e a distinção da arte; não descobre e experim enta um novo poder — o poder de
pode ser estendida a outros campos da atividade hum a­ construir um m undo só dele, um m undo ‘‘ideal” . A fi­
na. “ A N atureza, por meio do gênio, não prescreve re­ losofia não pode renunciar à sua busca por um a unida­
gras para a C iência, m as para a Arte; e p ara ela con­ de fundam ental nesse m undo ideal; mas não confunde
372 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM

essa unidade com simplicidade. Ela não m enospreza as


tensões e atritos, os fortes contrastes e os profundos con­
flitos entre os vários poderes do hom em . Estes não po­
dem ser reduzidos a um denom inador comum. Tendem
para direções diferentes e obedecem a princípios dife­
rentes. M as essas m ultiplicidade e disparidade não de­
notam discórdia ou desarm onia. Todas essas funções
completam -se e com plem entam -se entre si. C ada um a
delas abre um novo horizonte e m ostra-nos um novo as­ NOTAS
pecto da hum anidade. O dissonante está em harm onia
consigo mesmo; os contrários não são m utuam ente ex­
clusivos, mas interdependentes: “ harm onia na contra­
riedade, como no caso do arco e da lira .
PREFÁCIO

1. 8 volumes, Berlim, Bruno Cassirer, 1923-29.

CAPÍTULO I

1. Aristóteles, Metafísica, Livro A. 1980' 21. Tradução para o inglês de


W.D. Ross, The Works ofAristotle^OxÍGrdy Clarendon Press, 1924), Vol. VIII.
2. Fragmento 101 em Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, editado por
W. Krantz (5.a edição, Berlim, 1934), I, 173.
3. Platão, Phaedrus 230A (tradução de Jowett).
4. Platão, Apology 37E (tradução de Jowett).
5. Nas páginas seguintes não tentarei apresentar um levantamento do
desenvolvimento histórico da filosofia antropológica. Selecionarei apenas al­
guns estágios típicos para ilustrar a linha geral de pensamento. A história
da filosofia do homem é ainda uma aspiração. Enquanto a história da meta­
física, da filosofia natural, do pensamento ético e científico foi estudada em
todos os detalhes, neste caso estamos ainda no início. No decorrer do último
século, a importância deste problema vem sendo sentida de maneira cada
vez mais ciara. Wilhelm Dilthey concentrou todos os seus esforços em sua
solução. Mas a obra de Dilthey, por mais rica e sugestiva que fosse, ficou
incompleta. Um dos pupilos de Dilthey, Bernhard Groethuysen, fez uma
excelente descrição do desenvolvimento geral da filosofia antropológica. In-
felizmente, porém, mesmo esta descrição detém-se antes da última e decisi­
va etapa — ad a era moderna. Ver Bernhard Groethuysen, “ Philosophische
Anthropologie” , Handbuch der Phüosophie (Munique e Berlim, 1931), III, 1-207.
374 ENSAIO SOBRE O HOMEM NOTAS 375

Ver também o artigo de Groethuysen, “ Towards an Anthropological Philo- 25. Galileo, Dialogo dei due massimi sistemi dei mondo, I (Edizione nazio-
sophy” , Philosophy and History, Essays presented to Emst Cassirer (Oxford, Cla- nale), VII, 129.
rendon Press, 1936), pp. 77-89. 26. Diderot, Pensées sur 1’interprétation de la nature, seção 4; cf. seções
6. Marcus Aurelius Antoninus, Ad se ipsum (etç eotvTÓv), Livro I, 17, 21.
par. 8. Na maior parte dos trechos seguintes de Marco Aurélio, cito a versão 27. Darwin, The Variation of Animais and Plants under Domestication (No­
inglesa de C.R. Haines, The Communings with Himself of Marcus Aurelius Anto­ va York, Appleton & Co., 1897), II, cap. xxviii, 425 s.
ninus (Cambridge, Massachussets, Harvard University Press, 1916), Loeb 28. Taine, Histoire de la littérature anglaise, Introdução. Tradução para
o inglês de H. van Laun (Nova York, Holt & Co., 1872), I, 12 ss.
Classical Library.
7. Marcus Aurelius, op. cit, Livro V, par. 15. 29. Max Scheler, Die Stellung des Menschen im Kosmos (Darmstadt, Reichl,
1928), pp. 13 s.
8. Idem, Livro IV, par. 8.
9. Idem, Livro III, par. 6.
10. Idem, Livro V, par. 11.
CAPÍTULO II
11. Idem, Livro VIII, par. 41.
12. Cf. Idem, Livro V, par. 14. rO Xóyoç Kai 17 XoytKrf T€%vri ôvpápeis
1. Ver Johannes von Uexküll, TheoretischeBiologie (2.a ed., Berlim, 1938);
eiaip lavrais apKovpevcu Kai t o is KaO’ lavrás cpycnç.
Umvuelt und Innenuuelt der Tiere (1909; 2. a ed., Berlim, 1921).
13. D KÓopoç àXXotwcTíÇ • o (3íos óicoMpl/is. Livro IV, par. 3. O ter­
2. Ver Cassirer, Die Begriffsform im mythischen Denken (Leipzig, 1921).
mo “ afirmação” ou “juízo” parece-me ser uma expressão muito mais ade­
quada do pensamento de Marco Aurélio do que “ opinião” , que encontrei
em todas as versões inglesas que consultei. “ Opinião” (a òóÇa platônica)
CAPÍTULO III
contém um elemento de mudança e incerteza que não era entendido por Marco
Aurélio. Como termos equivalentes para viróXrpl/is encontramos em M ar­ 1. J. B. Wolfe, “ Effectiveness ofToken-Rewards for Chimpanzees” ,
co Aurélio KpÚJts, Kpipa, ôiáKptais. Cf. Livro III, par. 2; VI, par. 52; VIII Comparative Psychology Monographs, 12, n? 5.
pars. 28, 47. 2. Robert M. Yerkes, Chimpanzees. A Laboratory Colony (New Haven,
14. Para um relato detalhado, ver Cassirer, Descartes (Estocolmo, 1939), Yale University Press, 1943), p. 189.
pp. 215 ss. 3. G. Révész, “ Die menschlichen Kommunikationsformen und die so-
15. Para uma distinção entre Tesprit géométrique e Tesprit de finesse, genannte Tiersprache” , Proceedings of the Netherlands Akademie van Wetenschap-
compare-se o tratado “ De Tesprit géométrique” , de Pascal, e Pensées, tam­ pen, XLIII (1940), n? 9, 10; XLIV (1941), N? 1.
bém de Pascal, editado por Charles Louandre (Paris, 1858), cap. ix, p. 231. 4. Sobre a distinção entre as meras expressões emocionais e “ o tipo
Nos trechos que se seguem, citei a tradução para o inglês de O.W . Wight normal de comunicação de idéias que é a fala” , ver as observações introdu­
(Nova York, 1861). tórias de Edward Sapir, Language (Nova York, Harcourt, Brace, 1921).
16. Pensées, cap. x, seção 1. 5. Para mais detalhes, ver Charles Bally, Le langage et la vie (Paris, 1936).
17. Idem, cap. xii, seção 5 6. Wolfgang Koehler, “ Zur Psychologie des Schimpansen” , Psycholo-
18. Idem, cap. xiii, seção 3. gische Forschung, I (1921), 27. Cf. a edição inglesa, The Mentality ofApes (No­
19. Idem, cap. x, seção 1. va York, Harcourt, Brace, 1925), Apêndice, p. 317.
20. Sobre o conceito estóico de providência (rcpóvota), ver, por exem­ 7. Uma das primeiras tentativas de se fazer uma nítida distinção entre
plo, Marcus Aurelius, op. cit., Livro II, par. 3. a linguagem preposicional e a emocional foi feita no campo da psicopatolo-
21. Pascal, op. cit., cap. xxv, seção 18. gia da linguagem. O neurologista inglês Jackson introduziu o termo “ lin­
22. Montaigne, Essais, II, cap. xii. Tradução para o inglês de William guagem preposicional” para explicar alguns fenômenos patológicos muito
Hazlitt, The Works of Michel deMontaigne (2 a edição, Londres, 1845), p. 205. interessantes. Descobriu que muitos pacientes de afasia não haviam de mo­
23. Idem, I, cap. xxv. Tradução para o inglês, pp. 65 s. do algum perdido o uso da fala, mas que não conseguiam empregar suas
24. Para mais detalhes, ver Cassirer, Individuum und Kosmos in der Phi- palavras de modo objetivo, preposicional. A distinção de Jackson revelou-se
losophie der Renaissance (Leipzig, 1927), pp. 197 ss. muito frutífera. Teve um papel importante no desenvolvimento da psicopa-
376 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM NOTAS 377

tologia da linguagem. Para mais detalhes, ver Cassirer, Philosophie der symbo- Dewey Bridgman (Boston, 1881); Wilhelm Jerusalem, Laura Bridgman. Erzie-
lischen Formen, III, cap. vi, 237-323. hung einer Taubstumm-Blinden (Berlim, 1905).
8. Koehler, The Mentality of Apes, p. 277. 19. Ver Helen Keller, The Story of My Life (Nova York, Doubleday, Pa­
9. Révész, op. cit., XLIII, Parte II (1940), 33. ge & Co., 1902, 1903), Supplementary Account of Helen Keller’s Life and
10. Yerkes e Nissen, “ Pre-linguistic Sign Behavior in Chimpanzee” , Education, pp. 315 ss.
Science, LXXXIX, 587. 20. Ver Mary Swift Lamson, Life and Education of Laura Dewey Bridg­
11. Yerkes, Chimpanzees, p. 189. man, the Deaf Dumb and Blind Girl (Boston, Houghton, Mifflin Co., 1881),
12. A susceptibilidade foi provada, por exemplo, no famoso caso de pp. 7 s.
“ Hans Esperto” , que há algumas décadas criou uma certa sensação entre 21. Para mais detalhes, ver Cassirer, Sprache undMythos (Lepzig, 1925).
os psicobiólogos. Hans Esperto era um cavalo que parecia possuir uma es­ 22. Para este problema, ver W.M. Urban, Language and Reality, Parte
pantosa inteligência. Ele conseguia até dominar problemas aritméticos bas­ I, iii, 95 ss.
tante complicados, extrair raízes cúbicas e coisas do gênero, batendo a pata 23. Ver Francis Lieber, “ A Paper on the Vocal Sounds of Laura Bridg­
no chão quantas vezes fossem necessárias para a solução do problema. Uma man” , Smithsonian Contributions to Knowledge, II, Artigo 2, p. 27.
24. Ver Mary Swift Lamson, op. cit., p. 84.
comissão especial de psicólogos e outros cientistas foi convocada para inves­
25. Ver Wolfgang Koehler, “ Optische Untersuchungen am Schimpansen
tigar o caso. Logo ficou claro que o animal reagia a certos movimentos invo­
und am Haushuhn; Nachweis einfacher Strukturfunktionen beim Schimpan­
luntários do dono. Quando este estava ausente ou não entendia a pergunta,
sen und beim Haushuhn’’, Abhandlungen der Berliner Akademie der Wissenschaf-
o cavalo não conseguia responder. ten (1915, 1918).
13. Para ilustrar isto, gostaria de mencionar outro exemplo revelador.
26. A teoria de Hume sobre a “ distinção da razão” é explicada em seu
O Dr. Pfungst, psicobiólogo que desenvolvera métodos novos e interessan­
Treatise of Human Nature, Parte I, seção 7 (Londres, Green and Grose, 1874),
tes para o estudo do comportamento animal, contou-me certa vez que havia I, 332 ss.
recebido uma carta de um major sobre um problema curioso. O major tinha 27. Exemplos são dados por Yerkes em Chimpanzees, pp. 103 ss.
um cão que o acompanhava em suas caminhadas. Todas as vezes que o do­ 28. Herder, Über den Ursprung der Sprache (1772), “ Werke” , ed. Suphan,
no se preparava para sair, o animal dava mostras de grande alegria e excita­ V. 34 s.
ção. Certo dia, porém, o major decidiu tentar uma pequena experiência. 29. Ver, por exemplo, as observações de R.M . Yerkes acerca das “ res­
Fingindo que ia sair, colocou o chapéu, apanhou a bengala e fez os prepara­ postas generalizadas” no chimpanzé, op. cit., pp. 130 ss.
tivos costumeiros — sem ter, no entanto, a menor intenção de sair para pas­ 30. Um relato detalhado e interessantíssimo desses fenômenos pode ser
sear. Para sua grande surpresa, o cão não se deixou enganar; ficou calma­ encontrado em várias publicações de K. Goldstein e A. Gelb. Goldstein apre­
mente em seu canto. Após um breve período de observação, o Dr. Pfungst sentou um apanhado geral de suas visões teóricas em Human Nature in the
conseguiu resolver o problema. No quarto do major havia uma escrivani­ Light of Psychopathology, das William James Lectures, pronunciadas na Har-
nha com uma gaveta que continha documentos importantes e valiosos. O vard University, 1937-38 (Cambridge, Massachussets, Harvard University
major criara o hábito de sacudir essa gaveta antes de sair de casa para ga­ Press, 1940). Discuti esta questão de um ponto de vista filosófico geral em
rantir que estava trancada em segurança. Não fez isso no dia em que não Philosophie der symbolischen Formen, III, vi, 237-323.
pretendia sair. Mas para o cão aquilo se tornara um sinal, um elemento ne­
cessário da situação de passeio. Sem esse sinal o cão não reagiu.
14. Sobre a distinção entre operadores e designadores, ver Charles Mor­ CAPÍTULO IV
ris, “ The Foundation of the Theory of Signs” , Encyclopedia of the Unified Sciences
(1938). 1. Ver as observações de William Stem em seu Psychology of Early Child-
15. Edward L. Thorndike, Animal Intelligence, (Nova York, Macmillan, hood, traduzido por Anna Barwell (2? ed., Nova York, Holt & Co., 1930),
1911), pp. 119 ss. pp. 114 ss.
16. Ver Koehler, op. cit., cap. vii, “ ‘Chance’ and ‘Imitation’ ” . 2. Ver os Principia, de Newton, Livro I, Definição 8, Scholium.
17. Ver R.M . e A.W. Yerkes, The Great Apes (New Haven, Yale Uni- 3. Heinz Werner, Comparative Psychology of Mental Development (Nova
versity Press, 1929), pp. 368 ss., 520 ss. York, Harper & Bros., 1940), p. 167.
18. Sobre Laura Bridgman, ver Maud Howe e Florence Howe Hall, 4. Sobre estas teorias, ver os escritos de Hugo Winckler, especialmen­
Laura Bridgman (Boston, 1903); Mary Swift Lamson, Life and Educaiion of Laura te Htmmelsbild und Weltenbild der Babylonier ais Grundlage der Weltanschauung und
378 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM NOTAS 379

Mythologie aller Võlker (Leipzig, 1901) e Die babylonische Geisteskultur in ihren Be- 6. Ver A. Koyré, “ Galileo and the Scientifíc Revolution of the seven-
ziehungen zur Kulturenturicklung der Menschheit (Leipzig, 1901). teenth Century” , Philosophical Review, LII (1943), 392 ss.
5. Otto Neugebauer, “ Vorgriechische Mathematik” , em Vorlesungen 7. “ In der Idee leben heisst das Unmõgliche so behandeln ais wenn
über die Geschichte der antiken Mathematischen Wissenschaften (Berlim, J. Sprin- es mõglich wãre.” Goethe, Sprüche in Prosa, “ Werke” (edição Weimar), XLII,
ger, 1934), I, 68 ss. Parte II, 142.
6. Ver Ewald Hering, Über das Gedãchtnis ais eme allgemeine Funktion der
organischen Materie (1870).
7. Para mais detalhes, ver Mneme (1909) e Die Mnemischen Empfindungen PARTE II
(1909), de Semon. Uma versão inglesa abreviada desses livros, editada por
Bella Duffy, foi publicada com o título Mnemic Psychology (Nova York, 1923). CAPÍTULO VI
8. “ Der latente Rest einer früheren Reizwirkung” (Semon).
9. Yerkes, Chimpanzees, p. 145. 1. Comte, Lettres à Valat, p. 89; citado de L. Lévy-Bruhl, La philosophie
10. “ At leve er — krig med trolde i hjertets og hjernens hvaelv. d ’Auguste Comte. Para mais detalhes, ver Lévy-Bruhl, op. cit., tradução para
Att digte, — det er at holde dommedag over sig selv.” o inglês, The Philosophy of Comte (Nova York e Londres, 1903), pp. 247 ss.
Ibsen, Digte (5 a ed., Copenhague, 1886), p. 203. 2. Comte, Cours de philosophie positive. Tradução para o inglês de Har-
11. Stern, op. cit., pp. 112 s. riet Martineau, Positive Philosophy (Nova York, 1855), introdução, cap. ii,
12. Koehler, The Mentality of Apes, p. 282. 45 s.
3. De 1’intelligence (Paris, 1870), 2 volumes.
4. Chimpanzees, p. 110.
CAPÍTULO V 5. John Dewey, Human Nature and Conduct (Nova York, Holt & Co.,
1922), Parte II, seção 5, p. 131.
1. Ver Kant, Critique qfJudgment, seções 76, 77. 6. Philosophie der symbolischen Formen. Vol I, Die Sprache (1923); Vol. II,
2. “ ... ein der Bilder bedürftiger Verstand” (Kant). Das mythische Denken (1925); Vol. III, Phaenomenologie der Erkenntnis (1929).
3. As crianças também parecem ter às vezes muita dificuldade para 7. Para uma discussão mais detalhada do problema, ver Cap. VIII,
imaginar casos hipotéticos. Isso fica particularmente claro quando o desen­ pp. 196-201.
volvimento da criança é retardado por circunstâncias especiais. Um notável 8. Wõlffiin, Kunstgeschichtliche Grundbegrijfe. Tradução para o inglês de
paralelo dos casos patológicos citados acima pode ser extraído, por exemplo, M.D. Hottinger (Londres, G. Bell & Sons, 1932), pp. 226 ss.
da vida e da educação de Laura Bridgman. “ Foi observado” , escreve uma
de suas professoras, “ que no início era muito difícil fazê-la entender figuras
CAPÍTULO VII
de linguagem, fábulas ou casos supostos de qualquer tipo, e essa dificuldade
ainda não foi inteiramente superada. Se lhe é dado um problema aritmético
1. Ver acima, Cap. I, p. 26.
qualquer,, a primeira impressão é de que aquilo que se supõe aconteceu de
2. Uma excelente descrição desta unidade interna foi feita na obra de
fato. Por exemplo, há alguns dias, quando sua professora pegou um livro
Archibald Allan Bowman, Studies in the Philosophy of Religion (Londres, 1938).
de aritmética para ler um problema, ela perguntou: ‘Como é que o homem que 2 volumes.
escreveu esse livro sabia que eu estava aqui?' O problema era o seguinte: Se voce 3. Malinowski, Myth in Primitive Psychology (Nova York, Norton, 1926),
pode comprar um barril de cidra por quatro dólares, quanto é que você po­ pp. 12 s.
de comprar com um dólar?’, sobre o qual seu primeiro comentário foi, ‘Não 4. F.C. Prescott, Poetry andMyth (Nova York, Macmillan, 1927), p. 10.
posso pagar muito pela cidra, porque é muito azeda’. ” Ver Maud Howe e Florence 5. Vçr Frazer, The Magic Art and the Evolution of Kings, Vol. I de The
Howe Hall, Laura Bridgman, p. 112. Golden Bough (2? ed. Macmillan, 1900), pp. 61 ss., 220 ss.
4. Kurt Goldstein, Human Nature in the Light ofPsychopathology, pp. 49 6. Para uma crítica da tese de Frazer, ver R.R. Marett, The Threshold
ss., 210. of Religion (2? ed., Londres, Methuen, 1914), pp. 47 ss., 177 ss.
5. Para um tratamento mais detalhado deste problema, ver Cassirer, 7. Cf. Kant, Prolegomena to Every Future Metaphysics, seção 14.
Substanzbegriff und Funktionsbegriff. Tradução para o inglês de W .C. e M.C. 8. Com relação a este problema, ver Cassirer, Philosophie der symbolis­
Swabey, Substance and Function (Chicago e Londres, 1923). chen Formen, Vol. III, Parte I, caps. ii e iii.
380 ENSAIO SOBRE O HOMEM NOTAS 381

9. Experience andNature (Chicago, Open Court Publishing Co., 1925), 30. Para mais detalhes, ver Jane Ellen Harrison, Prolegomena to the Study
pp. 96, 264 s. of Greek Religion (Cambridge, 1903), cap. 1.
10. Cf. Durkheim, Lesformes élémentaires de la vie religieuse (Paris, 1912); 31. Gilbert Murray, Five Stages of Greek Religion, Columbia University
tradução para o inglês, Elementary Forms of the Religious Life (Nova York, 1915). Lectures (Nova York, Columbia University Press, 1930), p. 16.
11. Cf. Lévy-Bruhl, Les fonctions mentales dans les sociétés inférieures (Pa­ 32. Idem, p. 82.
ris, 1910); tradução inglesa, Hoiv Natives Think (Londres e Nova York, 1926); 33. Frazer, The Golden Bough, I, 78.
La mentalité primitive (Paris, 1922); tradução para o inglês, Primitive Mentality 34. Malinowski, The Foundations of Faith and Morais, p. 22.
(Nova York, 1923); L ’Ame primitive (Paris, 1928); tradução para o inglês, 35. Ver, por exemplo, R.R. Marett, Faith, Hope, and Charity in Primiti­
The “Soul” of the Primitive (Nova York, 1928). ve Religion, Giflòrd Lectures (Macmillan, 1932), Lecture II, pp. 21 ss.
12. Malinowski, The Foundations of Faith and Morais (Londres, Oxford 36. Frazer, op. cit., I, 76 s.
University Press, 1936; publicado para a University of Durham), p. 34. 37. Ver a crítica da teoria de Frazer em Marett, The Threshold of Reli­
13. Até na literatura moderna encontramos ainda muitos vestígios desta gion, pp. 29 ss.
tendência intelectualista. Ver, por exemplo, F. Langer, Intellectualmythologie 38. Ver acima, p. 126 s.
(Leipzig, 1916). 39. Cf. Freud, Totem und Tabu (Viena, 1920).
14. Sir Baldwin Spencer e F.J. Gillen, The Native Tribes of Central Aus­ 40. Cf. Frazer, op. cit., I, 9.
trália, The Northern Tribes of Central Australia. 41. Para uma descrição mais detalhada destes conceitos e seu signifi­
15. Cf. Karl von den Steinen, Unter den Naiurvôlkern Zentral-Brasiliens cado no pensamento mítico, ver Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen,
(Berlim, 1897), p. 307. II, 98 ss.
16. Frazer, Lectures on the Early History of Kingship (Londres, Macmil- 42. Uma teoria assim foi desenvolvida por Frazer, Lectures on the Early
lan, 1905), p. 109. History of Kingship, pp. 52 ss.
17. Spencer e Gillen, The Native Tribes of Central Australia, p. 48. 43. Cf. Malinowski, op. cit., p. 14.
18. James Henry Breasted, Development of Religion and Thought in An- 44. O povo Arunta dos desertos centrais da Austrália, segundo Ma­
cient Egypt (Nova York, Charles Scribner’s Sons, 1912), p. 91. rett, “ estabeleceu por meio de seus ritos dramáticos uma espécie de Alche-
19. Um rico material etnológico para ilustrar esta questão pode ser en­ ringa atemporal na qual pode afastar-se das durezas de seu presente destino,
contrado no artigo sobre o culto aos ancestrais (Ancestor-Worship) da Ency- de maneira a aliviar-se mediante a comunhão com seres transcendentes que
clopedia of Religion and Ethics, de Hastings, I, 425 ss. são ao mesmo tempo seus antepassados e suas personalidades ideais. Quan­
20. J.J.M . de Groot, The Religion of the Chinese (Nova York, Macmil- to ao resto, deve ser notado que, em matéria de individualidade distintiva,
lan, 1910), pp. 67, 82. Para mais informações, ver de Groot, The Religious esses super-homens da Alcheringa não têm quase nada. O coro procura sim­
System of China (Leyden, 1892 ss.), Volumes IV-VI. plesmente colar sua alma coletiva ao glamour dos ancestrais — com a cons­
21. Fustel de Coulanges, La cite antique-, Wissowa, Religion der Romer ciência do gênero. O mana de que tomam parte é tribal” . Faith, Hope, and
(1902), pp. 187 ss. Charity in Primitive Religion, p. 36.
22. Cf. Ancestor-Worship, na Encyclopedia de Hastings, I, 433. 45. R. H. Codrington, The Melanesians (Oxford, Clarendon Press, 1891),
23. Cf. Rudolf Otto, Das Heilige (Gõttingen, 1912). p. 118.
24. W. Robertson-Smith, Lectures on the Religion of the Semites (Edim- 46. Sobre este problema, ver Marett, “ The Gonception of Mana” ,
burgo, A. & C. Black, 1889), Lecture II, pp. 53 ss. Cf. Lecture X, pp. 334 The Threshold of Religion, pp. 99 ss.
ss. 47. Codrington, op. cit., p. 119.
25. Para o material etnológico, ver Sir Edward Burnett Tylor, Primiti­ 48. Para mais detalhes, ver Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen,
ve Culture (Nova York, Henry Holt & Co., 1874), cap. xiv. II, 246 ss.
26. Tylor, op. cit., (3? ed.), II, 32 s. 49. Ver J.B. Carter em um artigo da Encyclopedia de Hastings, I, 462.
27. Bergson, Les deux sources de la morale et de la religion. Tradução para 50. Sobre esta questão, ver Erwin Rohde, Psyche. The Cult of Souls and
o inglês de R. Ashley Audra e Cloudesley Brereton, The Two Sources of Mora- the Beliefin Immortality among the Greeks (Nova York, Harcourt, Brace, 1925).
lity and Religion (Nova York, Holt & Co., 1935), ii, 25, 26, 30, 42. 51. The Odissey, Livro XIII, vv. 291 ss. Traduzido por A.T. Murray
28. Bergson, op. cit., pp. 48 ss. (Loeb Classical Library, Harvard University Press, Cambridge, Massachus-
29. Ver Malinowski, Crime and Custom in Savage Society (Londres e No­ sets, 1930).
va York, 1926). 52. Codrington, op. cit., p. 118.
382 ENSAIO SOBRE O HOMEM NOTAS 383

53. Ver Marett, “ The Conception of Mana” , op. cit., pp. 112 ss. 11. Hermann Paul, Prinzipien der Sprachgeschichte (JAalie, 1880), cap. i.
54. M.N. Dhalla, History of Zoroastrianism (Nova York, Oxford Uni- Tradução para o inglês de H.A. Strong (Londres, 1889).
versity Press, 1938), pp. 52 ss. 12. Bloomfield, Language (Nova York, Holt & Co., 1933), pp 17 ss.
55. Sêneca, Ad Mareiam de consolatione, 18. 13. Berlim (1836-39). Ver Gesammelte Schriften, de Humboldt (Acade­
56. Marco Aurélio, Ad se ipsum, Livro III, parágrafo 4. mia de Berlim), Vol. VII, Parte I.
57. Bergson, op. cit., pp. 201 ss. 14. Humboldt, op. cit., pp. 46 s. Um relato mais detalhado da teoria
58. Idem, pp. 175 s. de Humboldt é apresentado no meu Philosophie der symbolischen Formen, I, 98
59. Cf. Marett, “ Is Taboo a Negative Magic?” . The Threshold of Reli­ ss.
gion, p. 84. 15. Ver, por exemplo, Jespersen, The Philosophy of Grammar (Nova York,
60. Cf. F.B. Jevons, An Introduction to the History of Religion (Londres, Holt & Co., 1924), pp. 30 s.
Methuen, 1902), p. 70. 16. Ver J.B.S. Haldane, The Causes of Evolution (Nova York e Londres,
61. Idem, pp. 86 s. Citado por cortesia da Methuen & Co. e dos Testa- 1932).
menteiros de F.B. Jevons. 17. Ver as conferências de Ferdinand de Saussure publicadas postu­
62. Sobre o material antropológico, ver Frazer, The Golden Bough, I, mamente sob o título Cours de linguistiquegénérale (1915; 2? edição, Paris, 1922).
169 ss., e Parte VI, The Scapegoat-, e Jevons, op. cit., caps. vi-viii. 18. Über die Sprache und Weisheit der Inder (1808).
63. Para mais detalhes, ver Robertson-Smith, op. cit., Nota G., pp. 19. Este programa, por exemplo, foi desenvolvido por H. Osthoff e
427 ss. K. Brugmann em Morphologische Untersuchungen (Leipzig, 1878). Para mais
64. Para mais detalhes, ver Dhalla, op. cit., pp. 55, 221 ss. detalhes, ver Bloomfield, op. cit., caps. i, xx, xxi.
65. Robertson-Smith, op. cit., pp. 143 s. 20. V. Brõndal, “ Structure et variabilité des système morphologiques” ,
66. Jevons, op. cit., p. 91. Scientia (Agosto, 1935), p. 119. Para uma explanação detalhada dos proble­
mas e métodos do estruturalismo lingüístico moderno, ver os artigos publi­
cados em Travaux du Cercle Linguistique de Prague (1929 ss.); em especial H.F.
CAPÍTULO VIII Pos, “ Perspectives du structuralisme” , Travaux (1929), pp. 71 ss. Um estu­
do geral da história do estruturalismo foi apresentado por Roman Jakobson
1. F. Max Müller, Contributions to the Science ofMythology (Londres, Long- em “ La scuola linguística di Praga” , La cultura (Anno XII), pp. 633 ss.
mans, Green & Co., 1897), I, 68 s., e Lectures on the Science of Religion (Nova 21. Tanto quanto eu saiba, dentre as línguas indo-européias o sueco
York, Charles Scribner’s Sons, 1893), pp. 118 s. é a única em que a altura do tom ou o acento tem um sentido semântico
2. Ver acima, Cap. VII, pp. 137-144. definido. Em algumas palavras suecas, o sentido pode ser completamente
3. Ver C.K. Ogden e LA. Richards, The Meaning of Meaning (1923; alterado pelo tom agudo ou grave do som.
5? edição, Nova York, 1938). 22. Para mais detalhes, ver Bloomfield, op. cit., em especial os caps.
4. Empédocles, Fragmento 335. Ver John Burnet, Early Greek Philo- v e vi.
sophy (Londres e Edimburgo, A. & C. Black, 1892), Livro II, p. 232. 23. Sapir, Language, p. 220. Sobre a diferença entre “ fonética” e “ fo­
5. Cf. A.F. Pott, Etymologische Forschungen aus dem Gebiete der indogerma- nologia” , ver Trubetzkoy, “ La-phonologie actuelle” , em Journal de psycholo-
nischen Sprachen (1833 ss.). gie (Paris, 1933), Vol. XXX. Segundo Trubetzkoy, a tarefa da fonética é
6. Ver August Schleicher, Die Darwin’sche Theorie und die Sprachwissens- estudar os fatores materiais dos sons da fala humana, as vibrações do ar cor­
chaft (Weimar, 1873). respondentes aos diferentes sons ou movimentos produtores de sons da pes­
7. Ver os pontos de vista de W. Koehler e G. Révész citados acima, soa que fala. A fonologia, em vez de estudar os sons físicos, estuda os “ fone-
Cap. III, pp. 54-55. mas” , isto é, os elementos constitutivos do sentido lingüístico. Do ponto de
8. Esta teoria foi proposta pela primeira vez por Jespersen em Progress vista da fonologia, o som é apenas o “ símbolo material do fonema” . O pró­
in Language (Londres, 1894). Ver também, do mesmo autor, Language, Its prio fonema é “ imaterial” , visto que o sentido não pode ser descrito nos
Nature, Development and Origin (Londres e Nova York, 1922), pp. 418, 437 ss. termos da física ou da fisiologia.
9. Grace de Laguna, Speech. Its Function andDevelopment (New Havcn, 24. O parágrafo seguinte é baseado no meu artigo, “ The Influence
Yale University Press, 1927), pp. 260 s. of Language upon the Development of Scientific , Journal of Philo­
10. Alan H. Gardiner, The Theory of Speech and Language (Oxford, 1932), sophy, XXXIX, n.° 12 (junho de 1942), 309-327.
pp. 118 s. 25. Ver F. Brunot, La pensée et la langue (Paris, 1922).
384 ENSAIO SOBRE 0 HOMEM NOTAS 385

26. Para mais detalhes, ver Bloomfield, op. cit., pp. 6 ss., e Sapir, op. 5. É claro que mesmo no século XIX a teoria geral da imitação tinha
cit., pp 124 ss. ainda um papel importante. Por exemplo, é sustentada e defendida na Philo­
27. Ver, por exemplo, Vendryès, Le langage (Paris, 1922), p. 193. sophie de Tart, de Taine.
28. Ver Hjelmstev, Príncipes de grammaire générale (Copenhague, 1928), 6. Goethe, “ Von deutscher Baukunst” , “ Werke” , XXXVII, 148 s.
Tradução para o inglês de Bernard Bosanquet em Three Lectures on Aesthetic
Brôndal, Ordklassame (Résumé: Les parties du discours, partes orationis, Co­
(Londres, Macmillan, 1923), pp. 114 ss.
penhague, 1928).
7. R. G. Collingwood, The Principies oJArt (Oxford, Clarendon Press,
29. Sapir, op. cit., pp. 124 ss.
1938), pp. 279, 282, 285.
30. Ver B. Karlgren, “ Le Proto-Chinois, langue flexionelle’’, Journal
8. Aristóteles, op. cit., 23. 1459a , 17-29. Ed. Bywater, pp. 70-73.
asiatique (1902). 9. Empresto este relato dos Principies ofArt History, de Heinrich Wõlf-
31. Para mais detalhes, ver C. Meinhof, Grundzüge einer vergleichenden flin.
Grammatik der Bantu-Sprachen (Berlim, 1906). 10. Na terminologia de Kant, a primeira é chamada de Gemeingültig-
32. Ver acima, Cap. VII, pp. 121-122. keit, ao passo que a última é chamada de Allgemeingültigkeit — distinção que
33. Ver, por exemplo, Leibniz, Nouveaux essais sur 1’entendement humain. é difícil de traduzir para termos ingleses correspondentes. Para uma inter­
Livro III, cap. ii. pretação sistemática dos dois termos, ver H.W. Cassirer, A Commentary on
34. Humboldt, op. cit., VII, Parte II, 162. KanPs “Critique of Judgment” (Londres, 1938), pp. 190 ss.
35. Sapir, op. cit., p. 130. 11. Goethe, notas a uma tradução do “ Essai sur la peinture” , de Di-
36. Ver acima, Cap. III, pp. 59-67. derot, “ Werke” , XLV, 260.
37. Ver acima, Cap. III, pp. 61-62. 12. Platão, Republic, 606D (tradução de Jowett).
38. David R. Major, First Steps in Mental Growth (Nova York, Macmil- 13. Para mais detalhes, ver Jakob Bernays, Zwei Abhandlungen über die
lan, 1906), pp. 321 s. Aristotelische Theorie des Dramas (Berlim, 1880) e Ingram Bywater, Aristotle on
39. Ver, por exemplo, Clara e William Stern, Die Kindersprache (Leip- the Art of Poetry (Oxford, 1909), pp. 152 ss.
zig, 1907), pp. 175 ss. 14. Platão, Symposium, 223 (tradução de Jowett).
40. Para uma discussão mais detalhada deste problema, ver Cassirer, 15. Philebus, 48 ss. (tradução de Jowett).
“ Le langage et la construction du monde des objets” , Journal depsychologie, 16. “ Pois a arte permanece firmemente fixa à Natureza — e só aquele
XXX C Année (1933), pp. 18-44. que conseguir transportá-la de tá a possuirá.” Ver William M. Conway, Li-
41. Goethe, Spriiche in Prosa, “ Werke” , XLII, Parte II, 118. terary Remains of Albrecht Dürer (1889), p. 182.
42. Ver Hammer-Purgstall, Academia de Viena, Classe histórico- 17. Cf. Bodmer e Breitinger, Diskurse der Maler (1721-23).
filosófica, Vols. VI e VII (1855 s.) 18. Sonho de uma Noite de Verão, Ato V, cena 1.
43. Para mais detalhes, ver Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen, 19. Prelude, III, 127-132. (A toda forma natural, rocha, fruto ou flor,
I, 257 ss. mesmo às pedras soltas que cobrem a estrada, eu dei uma vida moral: eu
44. K. von den Steinen, Unter den Naturvõlkern Zentral-Brasiliens, p. 81. as vi sentir ou as uni a algum sentimento: a grande maioria jaz enterrada
45. Ver os exemplos apresentados em Jespersen, Language, p. 429. numa alma mutável, e tudo que eu contemplei respirava com um sentido
46. Para mais detalhes, ver Cassirer, Philosophie der symbolischen Formen, interior).
I, 188 ss. 20. Adolf Hildebrand, Das Problem der Form in der bildenden Kunst. Tra­
dução para o inglês de Max Meyer e R.M. Ogden, The Problem of Form in
Painting and Sculpture (Nova York, G.E. Stechert Co., 1907), p. 12.
CAPÍTULO IX 21. Aristóteles, op. cit., 6. 1450a 7-25. Ed. Bywater, pp. 18-19.
22. Cf. Schlegel, “ Athenãumsfragmente” , 238, em ProsaischeJugend-
1. Aristóteles, Poetics, 4. 1448b , 5-17. Em Aristotle on the Art of Poetry, schriften, editado por J. Minor (2? edição, Viena, 1906), II, 242.
editado por Ingram Bywater (Oxford, 1909), pp. 8-11. 23. Schlegel, “ Gesprãch über die Poesie” (1800), op. cit., II, 364.
2. Idem, 1. 1447a 26. Ed. Bywater, pp. 2-5. 24. Novalis, ed. J . Minor, III, 11. Cf. O. Walzel, German Romanti-
3. Dante, Paradiso, XIII, v. 76. Tradução para o inglês de Melville cism, tradução para o inglês de Alma E. Lussky (Nova York, 1932), p. 28.
Best Anderson, The Divine Comedy (World Book Co., 1921), p. 357. 25. Ideen, 13, em Prosaische Jugendschriften, II, 290.
4. Aristóteles, op. cit., 25. 1461b . Ed. Bywater, pp. 86-87. 26. Bacon, Novum Organum, Liber I, Aphor. CXX.
NOTAS 387
386 ENSAIO SOBRE O HOMEM

CAPÍTULO X
27. Critique of Practical Reason, tradução de T.K. Abbott (6? edição, Nova
York, Longmans, Green & Co., 1927), p. 110. 1. Ortega y Gasset, “ History as a System” , em Philosophy andHistory,
28. The Sense of Beauty (Nova York, Charles Scribner’s Sons, 1896), Essays Presented to Ernst Cassirer, pp. 293, 294, 300, 305, 313.
p. 22. 2. Jakob Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, editado por Jakob
29. Aristóteles, Nichomachean Ethics, 1776b 33. Oeri (Berlim e Stuttgart, 1905), p. 4. Edição em inglês de James Hastings
30. Para uma documentação mais completa e uma crítica dessas pri­ Nichols, Force and Freedom; Reflections on History (Nova York, Pantheon Books,
meiras teorias românticas da arte, ver Irving Babbitt, The New Laokoon, cap. 1943), p. 82.
iv. 3. KTqiJ.a eç àeí, Tucídides, De bello Peloponnesiaco, I, 22.
31. Bergson, Essai sur les données immédiates de la conscience. Tradução para 4. Ranke, “ Aufsãtze zureigenen Lebensgeschichte” (novembro, 1885),
o inglês de R.L. Pogson, Time and Free Will (Londres, Macmillan, 1912), em “ Sámmtliche Werke” , editado por A. Dove, LIII, 61.
pp. 14 ss. 5. “ Das Hõchste wãre: zu begreifen, dass alies Faktische schon Theo-
32. Shaftesbury, “ The Moralists” , seção 2, Parte III, Ver Characteris- rie ist.” Goethe, Maximen und Reflexionen, p. 125.
tics (1714), II, 424 s. 6. Para mais detalhes sobre esta descoberta, ver Gustave Lefebre, Frag-
33. Para uma discussão detalhada sobre o lugar de Shaftesbury na fi­ ments d ’un manuscrit de Ménandre, découverts epubliés (Cairo, Impression de l ’Ins-
losofia do século XVIII, ver Cassirer, Die platonische Renaissance in England titut Français d ’Archéologie, 1907).
und die Schule von Cambridge (Leipzig, 1932), cap. vi. 7. Descartes, Regulae ad directionem ingenii, I, “ Oeuvres” , editadas por
34. Cf. Nietzsche, The Will to Power. Tradução para o inglês de A.M. Charles Adam e Paul Tannery (Paris, 1897), X, 360. Tradução para o in­
Ludovici (Londres, 1910), p. 240. glês de Elizabeth S. Haldane e G .R.T. Ross, “ The Philosophical Works of
35. Ver, por exemplo, Konrad Lange, Das Wesen der Kunst (Berlim, Descartes” (Cambridge University Press, 1911), I, 1.
1901). 2 volumes. 8. “ Deine Art zu fegen — und nicht etwa aus dem Kehricht Gold zu
36. Ver Bernard Bosanquet, Three Lectures on Aesthetics, e S. Alexan- sieben, sondern den Kehricht zur lebendigen Pflanze umzupalingenesieren,
der, Beauty and Other Forms of Value. legt mich immer auf die Knie meines Herzens.” Goethe e Herder, maio de
37. Schiller, Briefe über die ásthetische Erziehung des Menschen (1795), Car­ 1775, Briefe (edição Weimar), II, 262.
ta XV. Tradução para o inglês, Essays Aesthetical and Philosophical (Londres, 9. “ Athenãumsfragmente” , 80, op. cit., II, 215.
George Bell & Sons, 1916), p. 71. 10. Sobre este problema, ver Guido Calogero, “ On the So-Called Iden-
38. Schiller, op. cit., Carta XXV. Tradução para o inglês, p. 102. tity of History and Philosophy” , in Philosophy and History, Essays presented to
39. Citado de Katherine Gilbert, Studies in Recent Aesthetic (Chapei Hill, Ernst Cassirer, pp. 35-52.
1927), p. 18. 11. Nietzsche, Vom Nutzen und Nachteil der Historiefür das Leben, em “ Un-
40. Ortega y Gasset, La dezhumanización dei’arte (Madrid, 1925). zeit gemãsse Betrachtungen” (1874), Parte III. Tradução para o inglês de
41. I. A. Richards, Principies of Literary Criticism (Nova York, Harcourt, Oscar Levy, Vol. II.
Brace, 1925), pp. 16-17. 12. Fragmento 60 em Diels, Die Fragmente der Vorsokratiker, I, 164.
42. Ver acima, pp. 263-264. 13. Kant, Critiqueof Pure Reason (2? edição), p. 370. Tradução de Nor-
43. “ Kunst: eine andere Natur, auch geheimnisvoll aber verstãndli- man Kemp Smith (Londres, Macmillan, 1929), p. 310.
cher; denn sie entspringt aus dem Verstande.” Maximen und Reflexionen, 14. Friedrich Gundolf, Caesar, Geschichte seines Ruhm (Berlim, 1924).
editado por Max Hecker, em “ Schriften der Goethe-Gesellschaft” , XXI 15. S. E. Morison, The Oxford History of the United States (Oxford, Cla-
(1907), 229. rendon Press, 1927), I, 39 s.
44. Ver De Witt H. Parker, The Principies of Aesthetics, p. 39: “ A ver­ 16. Pascal, Pensées, edição Louandre, p. 196.
dade científica é a fidelidade de uma descrição aos objetos externos da expe­ 17. Guglielmo Ferrero, “ The History and Legend of Antony and Cleo-
riência; a verdade artística é a visão simpática — a organização em clareza patra” , em Characters and Euents of Roman History, From Caesar to Nero (Nova
da própria experiência. ” A diferença entre a experiência científica e a estéti­ York, G.P. Putnam’s Sons, 1909), pp. 39-68.
ca foi ilustrada recentemente em um artigo muito instrutivo do Prof. F.S.C. 18. Ferrero, Grandezza e decadenza diRoma (Milão, 1907), III, 502-539.
Northrop na revista Furioso, I, n? 4, 71 ss. Tradução para o inglês de H J . Chaytor, Greatness and Decline of Rome (Nova
York, G.P. Putnam’s Sons, 1908), IV, 95 ss.
19. Platão, Symposium, 208-209; tradução de Jowett, I, 579 s.
20. Ver acima, pp. 140-141.
388 ENSAIO SOBRE O HOMEM NOTAS 389

21. Mommsen em carta a Henzen; citado de G.P. Gooch, History and 36. Kant, Critique of Practical Reason, traduzido por T.K. Abbott (6?
Historians in the Nineteenth Century (Londres, Longmans, Green & Co., 1913; edição, 1927),p. 193.
nova edição, 1935), p. 457. 37. Taine, op. cit., pp. 1 ss.
22. Windelband, “ Geschichte und Naturwissenschaft” , em Pràludien 38. Ver acima, p. 186.
(5? edição, Tübingen, 1915), Vol. II. 39. Para uma crítica desta teoria, ver Ernst Troeltsch, Der Historismus
23. Rickert, Die Grenzen der naturwissenschaftlichen Begrijfsbildung (Tübin­ undseine Probleme, em “ Gesammelte Schriften” , Vol. III, e Cassirer, Zur Lo-
gen, 1902), p. 255. gik der Kulturwissenschaften (Goteburgo, 1942), pp. 41 ss.
24. Para esta crítica da obra de Ranke, ver G.P. Gooch, op. cit., caps. 40. Eduard Meyer, Zur Theorie undMethodik der Geschichte (Halle a. S.,
vi, viii. 1902), pp. 36 s.
25. Faust, Parte II, “ Classische Walpurgisnacht” . G.M. Priest traduz 41. Buckle, History of Civilization in England (Nova York, 1858), pp. 14 s.
como segue (Nova York, Knopf, 1941): 42. Para a literatura moderna sobre estatística, ver Keynes, A Treatise
“ At the pyramids our station on Probability (Londres, 1921) e von Mises, Wahrscheinlichkeit, Staiistik und Wahr­
We look on the doom of races, heit (Viena, 1928).
War and peace and inundation, 43. Buckle, op. cit., p. 20.
With eternal changeless faces.” 44. “ A causa vencedora agradou aos deuses, mas a vencida agradou
26. Hegel, Rechtsphilosophie, seções 340 s. Tradução para o inglês das a Cato.”
duas últimas frases de J. Macbride Sterrett, The Ethics of Hegel, Translated 45. What Is History?, traduzido por E. A. Andrews (Nova York, Mac-
Selectionsfrom his “Rechtsphilosophie’’ (Boston, Ginn & Co., 1893), p. 207. millan, 1905), p. 163.
27. Em um excelente estudo da personalidade e obra de Ranke, Al- 46. Idem, p. 219.
fred Dove menciona o seu ‘‘Universalitàt des Mitempfindens, \ Ver Dove, Aus- 47. Taine, op. cit., I, 4.
gewàhlte Schriftchen (1898), pp. 112 ss. 48. Cf. Lamprecht, Alte und neue Richtungen in der Geschichtswissenschaft
28. Ver Ed. Fueter, Geschichte der neueren Historiographie (3? edição, Mu­ (1896).
nique e Berlim, 1936), p. 543. 49. Para mais detalhes, ver Bernheim, Lehrbuch der historischen Methode
29. “ Es gibt aber neben dem blinden Lobpreisen der Heimat eine ganz (5? edição, Munique, Duncker, 1908), pp. 710 ss.
andere und schwerere Pflicht, nãmlich sich auszubilden zum erkennenden 50. Para mais detalhes, ver W. Lutoslawski, The Origin and Growth of
Menschen, dem die Wahrheit und die Verwandtschaft mit aliem Geistigen Plato ’s Logic, with an Account of Plato ’s Style and of the Chronology of His Writings
über alies geht und der aus dieser Erkenntnis auch seine Bürgerpflicht wür- (Londres e Nova York, 1907).
de ermitteln kõnnen, wenn sie ihm nicht schon mit seinem Temperament 51. Discuti o caráter lógico desses “ conceitos estilísticos” em Zur Lo-
eingeboren ist. Vollends im Reiche des Gedankens gehen alie Schlagbãume gik der Kulturwissenschaften (Goteburgo, 1942), pp. 63 ss.
billig in die H õhe.” Jakob Burckhardt, op. cit., p. 11. Tradução para o in­ 52. Kant, Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, Vorrede,
glês, p. 89. “ Werke” (editado por Cassirer), IV, 370.
30. Essays Aesthetical and Philosophical, Carta XXII. 53. Jakob Burckhardt, Weltgeschichtliche Betrachtungen, p. 81. Tradução
31. Ver Max Planck, Die Einheit des physikalischen Weltbildes (Leipzig, inglesa, Force and Freedom, p. 167.
1909). Para mais detalhes, ver Cassirer, Substance and Function, tradução pa­ 54. BaselerJahrbücher (1910), pp. 109 s.; citado com base em Karl Joèl,
ra o inglês de W. C. e M. C. Swabey (1923), pp. 306 ss. Jakob Burckhardt ais Geschichtsphilosoph (Basiléia, 1918).
32. Para mais detalhes, ver Cassirer, Die Philosophie der Aufklàrung (Tü­ 55. Th. Mommsen, “ Rektoratsrede” (1874), em Reden undAufsàtze (Ber­
bingen, 1932), cap. v, pp. 263-312. lim, 1912).
33. Taine, Philosophie de l ’art, (15? edição, Paris, Librairie Hachette, 56. Goethe a Eckermann, 25 de dezembro de 1825, em Conversations
1917), Parte I, cap. i, p. 13. of Goethe with Eckermann and Sorel, tradução de John Oxenford (Londres, 1874),
34. Taine, Histoire de la littérature anglaise, Introdução, tradução para p. 162.
o inglês, I, 6 s. 57. VerJ.R. Bury, TheAncient GreekHistorians, Harvard Lectures (Nova
35. Tratei desta questão em um artigo intitulado “ Naturalistische und York, Macmillan, 1909), Conferência IV.
humanistische Begründung der Kulturphilosophie” , Gõteborgs Kungl. 58. Ver acima, pp. 242 ss.
Vetenskaps-och Vitterhets-Samhãllets Handlingar (Goteburgo, 1939). 59. Burckhardt, op. cit., pp. 8 s. Tradução inglesa, pp. 86 s.
390 ENSAIO SOBRE O HOMEM NOTAS . 391

CAPÍTULO XI CAPÍTULO XII

1. Este capítulo não pretende, é claro, fazer o esboço de uma filosofia 1. Heráclito, Fragmento 51, em Diels, Die Fragmente der Vorsokraiiker
da ciência ou de uma fenomenologia do conhecimento. Discuti este último (5* edição). Tradução para o inglês de Charles M. Bakewell, Source Book in
problema no terceiro volume de Philosophie der symbolischen Formen (1929); o Ancient Philosophy (Nova York, Charles Scribner’s Sons, 1907), p. 31.
primeiro em Substance and Function e Einstein’s Theory of Relativity (1910; tra­ 2. Idem, Fragmento 54, em Bakewell, op. cit., p. 31.
dução para o inglês de W.C. e M.C. Swabey, Chicago e Londres, 1923) 3. Para mais detalhes ver acima, Cap. VII, pp. 145 ss.
e em Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik (Gõteborgs Hõgs- 4. H. Paul, Prinzipien der Sprachgeschichte (4? edição, 1909), p. 63.
kolas Arsskrift, 1936: 1). Aqui tentei apenas indicar brevemente a função 5. Kant, Critique offudgment, seções 46, 47. Tradução para o inglês de
geral da ciência e determinar o lugar desta no sistema das formas simbóli­ J.H . Bernard (Londres, Macmillan, 1892), pp. 188-190.
cas. 6. Cf. Bacon, Novum Organum, Liber I, Aphor. XLI.
2. Kant, Crítica da Razão Pura (1? edição alemã), p. 105.
3. Jespersen, Language, pp. 388 s.
4. Com relação a este problema, ver Philosophie der symbolischen Formen,
I, 255 ss.
5. Cf. Cassirer, “ The Influence of Language upon the Development
of Scientific Thought” ,y<9Mrn<2/of Philosophy, XXXIX, n? 12 (junho de 1942),
309-327.
6. Ver Philosophie der symbolischen Formen, II, 141 ss.
7. Ver Filolau, Fragmentos 4, 11, em Diels, Die Fragmente der Vorsokra-
tiker, I, 408, 411.
8. Gardiner, The Theory of Speech and Language, p. 51.
9. Cf. Heinrich Scholz e H. Hasse, Die Grundlagen Krise dergriechischen
Mathematik (Charlottenburg, 1928).
10. Cf. Aristóteles, Metafísica, I, 5, 985b.
11. Ver Hermann Weyl, Das Kontinuum. Kritische Untersuchungen über
die Grundlagen der Analysis (Leipzig, 1918).
12. (Edição alemã de 1919). Tradução para o inglês de Henry L. Bro­
se (Nova York, Dutton, 1923).
13. Sobre a história da alquimia, ver E.O. von Lippmann, Entsiehung
und Ausbreitung der Alchimie (Berlim, Springer, 1919), e Lynn Thorndike, A
History of Magic and Experimental Science (Nova York, 1928-41). 6 volumes.
14. Para mais detalhes, ver, por exemplo, Sommerfeld, op. cit., cap. ii.
15. F.S.C. Northrop, “ The Method and theories of physical Science
in their bearingupon biological organization” , suplemento de Growth (1940),
pp. 127-154.
16. Platão, República, 529, 530 (tradução de Jowett).
17. Sobre este problema, ver Cassirer, Determinismus und Indeterminis-
mus in der modernen Physik.
18. Felix Klein, Vorlesungen über die Entivicklung der Mathematik im 19.
Jahrhundert (Berlim, 1926-27).
19. Helmholtz, Treatise on Physiological Optics, tradução de James P.C.
Southall (Optical Society of America; George Banta Publishing Co., 1925;
Copyright, G.E. Stechert), III, 33-35.
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