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Karine Salgado

José Luiz Borges Horta


Organização

Razão e Poder
(re)leituras do político
na filosofia moderna

Belo Horizonte
2018
Razão e poder: (re)leituras do político na filosofia moderna
Karine Salgado
José Luiz Borges Horta
(Orgs.)
Copyright © desta edição [2018] Initia Via Editora Ltda.
Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes, Belo Horizonte, MG
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parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou
pro-cesso, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais
é punível como crime e passível de indenizações diversas.
______________________________________________________
Razão e Poder: (re)leituras do político na filosofia moderna/ Karine
F488 Salgado e José Luiz Borges Horta (organização). - Belo Horizonte :
Ini-tia Via, 2018.

350p.

ISBN: 978-85-64912-96-0

Outros autores: José de Magalhães Campos Ambrósio, Antônio Al-


ves Mendonça Junior, Raul Salvador Blasi Veyl, Cézar Cardoso de Sou-
za Neto, Lucas Camargos Bizzotto Amorim, João Protásio Domingues
de Vargas, Levindo Ramos Vieira Neto, Aléxia Alvim Machado Faria,
Layon Duarte Costa, Renan Victor Boy Bacelar, Lucas César Severino
de Carvalho, Vinícius Batelli de Souza Balestra, Isadora Eller Freitas de
Alencar Miranda, Igor Moraes Santos, Ana Paula Silva Ferreira, Ma-
ria Luísa Estanislau Reis, Raoni Macedo Bielschowsky, Rafael Costa de
Souza, Rosa Juliana Cavalcante da Costa, Philippe O. Almeida, Daniel
Cabaleiro Saldanha.

1. Direito - Filosofia . 2. Ciência Política. 3. Teoria Geral do Estado.


I. Salgado, Karine. II. Horta, José Luiz Borges. III. Título.
CDU: 34(082)
SUMÁRIO

Nota dos organizadores 6

Ainda a modernidade? 7

CAPÍTULO 1 12
Modernidade e Filosofia da História
José de Magalhães Campos Ambrósio

CAPÍTULO 2 30
História e política renascentista:
Maquiavel entre a República e o Principado
Antônio Alves Mendonça Junior
Raul Salvador Blasi Veyl

CAPÍTULO 3 62
Thomas More: da utopia à eternidade
Cézar Cardoso de Souza Neto
Lucas Camargos Bizzotto Amorim

CAPÍTULO 4 90
Thomas Hobbes: o limiar da ciência do estado na modernidade
João Protásio Domingues de Vargas
Levindo Ramos Vieira Neto

CAPÍTULO 5 125
Um breve panorama sobre a filosofia política
no pensamento de John Locke
Aléxia Alvim Machado Faria
Layon Duarte Costa
4 • Razão e Poder: (re)leituras do Político na Filosofia Moderna

CAPÍTULO 6 152
Teologia política em Baruch de Espinosa
Renan Victor Boy Bacelar
Lucas César Severino de Carvalho

CAPÍTULO 7 174
Montesquieu: das leis às formas de governo
Vinícius Batelli de Souza Balestra

CAPÍTULO 8 193
Das leis à história: direito, política e
causalidade histórica em Montesquieu
Isadora Eller Freitas de Alencar Miranda
Igor Moraes Santos

CAPÍTULO 9 230
Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar
a tolerância nas sociedades democráticas
Ana Paula Silva Ferreira
Maria Luísa Estanislau Reis

CAPÍTULO 10 257
Vontade geral vs. vontade de todos:
do que é a Democracia?
Raoni Macedo Bielschowsky

CAPÍTULO 11 283
Jean-Jacques Rousseau:
do homem natural ao homem social
Rafael Costa de Souza
Rosa Juliana Cavalcante da Costa

CAPÍTULO 12 301
Kant entre republicanismo e liberalismo
Karine Salgado
Philippe O. Almeida
Sumário • 5

CAPÍTULO 13 318
Direito e Coerção: a permanência de elementos
da Antiguidade em Kant
Daniel Cabaleiro Saldanha

Posfácio: sobre a constelação de modernidades 337


José Luiz Borges Horta

Sobre os autores 347


NOTA DOS ORGANIZADORES

Uma obra jamais brota ex nihilo, mas, ao contrário, depende de


um sem-número de fatores, dos mais diversos âmbitos, para poder
emergir e intervir nos debates intelectuais de seu tempo.
O livro nasce dos debates travados a partir das pesquisas vincu-
ladas ao projeto Macrofilosofia, Direito e Estado, desenvolvido no âm-
bito do Programa de Pós-graduação em Direito da UFMG, envolvendo
docentes e discentes interessados na reflexão sobre a experiência política
a partir da releitura das principais contribuições aportadas à FIlosofia
do Estado na Modernidade.
Assim, os maiores e mais importantes fatores, sabemos todos,
são sempre humanos, e nesse ponto, autores e organizadores devemos
reconhecer aos colaboradores que, com seu empenho e seu trabalho, efe-
tivamente trouxeram à realidade o que idealizamos. Assim, registramos
nossa gratidão à equipe que, sob a coordenação do competente mestran-
do Igor Moraes Santos, contribuiu no processo de editoração do livro:
os mestrandos Lucas Camargos Bizzotto Amorim e Renan Victor Boy
Bacelar e os jovens pesquisadores João Vítor Sales, Maria Gabriela
Machado Prado, Maria Laura Tolentino Marques Gontijo Couto,
Pedro Henrique Moysés e Raphael Machado de Castro.
Agradecemos também ao Programa de Pós-Graduação em Di-
reito da Universidade Federal de Minas Gerais, na pessoa de seu Coor-
denador, Prof. Dr. Fabrício Bertini Pasquot Polido, bem como à Casa
Editorial que nos acolhe e oferta a obra ao olhar crítico dos leitores.
Ainda a Modernidade?

Karine Salgado

Todo momento histórico procura justificar suas ideias e sua ori-


ginalidade na comparação com aqueles que o antecederam. Assim é a
história do Ocidente, auto referenciada em si mesma. O passado, o pas-
sado mais distante ainda1 e o futuro - sempre o nós que quer se legitimar
- se encontram nesse discurso de resgate e ruptura, de reconhecimento e
de negação daquilo que somos nós mesmos em algum momento.
A originalidade, a autenticidade e, paradoxalmente, mas acima
de tudo, o lastro com a cultura passada que engendrou o momento pre-
sente – o presente que quer se pôr como futuro– estão imediatamente em
contato com esse passado, quer seja para assumi-lo, quer seja para ne-
gá-lo. Não basta simplesmente ser o que se é, construir o que se acredita
que deve ser construído, é preciso pôr-se em relação com.
A cultura ocidental marca assim a sua identidade. Absoluta na
sua ausência de humildade, na sua convicção de certeza, de verdade,
de regra para o mundo, mas sempre dependente de si mesma, sempre
prestadora de contas a seu passado, como se isso fizesse parte de um rito
de passagem para a aceitação universal daquilo que agora se quer dizer.
Interessante observar que não raras vezes, o que se quer dizer àquele
passado ao qual é preciso fazer referência para se justificar a si mesmo
é justamente que ele está errado, ou, ao menos, que não se pode nem se
deseja mais ser igual a ele.
Se pudéssemos perscrutar o íntimo do Ocidente e dizer alguma
coisa sobre ele, diríamos que ele padece de falta de autoconfiança e com-
pensa isso com excesso de autoestima. Está condenado a propor o novo
sempre com um gosto de passado, um novo que, por mais original que
seja, nunca nasce ex nihilo – se é que o homem, em qualquer tempo ou
cultura é capaz de criar algo inteira e espontaneamente por si. A histo-
1
Braudel procura explorar a relação da atualidade com o passado, próximo ou remoto, evidencian-
do a sua dimensão no presente. “Assim, um passado próximo e um passado mais ou menos distante
se confundem na multiplicidade do tempo presente: enquanto uma história próxima corre a nosso
encontro em largas passadas, uma história distante nos acompanha a passo lento.” BRAUDEL,
Fernand. Gramática das civilizações. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes,
2004. p. 18
8 • Razão e poder: (re)leituras do Político na Filosofia Moderna

ricidade é marca da humanidade, sem qualquer demérito à razão hu-


mana, àquela sem a qual a história seria simplesmente história natural
ou da natureza e não mereceria, sequer, ostentar o título de história.
Entretanto, a forma de se construir esta historicidade, de se relacionar
com a história, isto é próprio de cada cultura. A chamada tradição tem
significados normativos diversos. Pode ser tomada como necessidade
de conservação, de manutenção e de respeito absoluto, como regra inal-
terável e inadiável. Pode ser tomada como necessidade para revisitação
constante ou, ainda, como dever argumentativo para qualquer ponto
de vista sério que se pretenda defender. Numa leitura negativa, que se
almeja mais vanguardista e rompida com a ordem posta, a tradição é
tomada como aquilo que não se deve ser, aquilo que não se deve fazer.
Mas perquirir a alma do Ocidente não é algo que consideramos
apropriado, sobretudo diante da tímida pretensão que aqui assumimos
como tarefa. É a Modernidade que nos põe o convite. Mas ela não foge
à regra. Tem íntima relação com seu passado (com todos os seus passa-
dos), o que não significa necessariamente ratifica-lo.
A Modernidade, aqui tomada convencionalmente como o perío-
do compreendido entre o fim da Idade Média e a Revolução Francesa2, é
talvez o momento em que essa cultura melhor revela sua natureza, suas
características, suas fraquezas. Nela, tudo parece ampliado e sintetizado,
talvez justamente por ter sido essa Modernidade dedicada a assumir e
dialogar com o legado que lhe cabia de forma mais intensa que qualquer
momento anterior ou posterior. Talvez também porque nela se vislum-
bra de forma nítida a autoconsciência, a percepção crítica de si mesmo
aliada a uma consciência histórica que só poderia surgir a partir da afir-
mação do homem como arquiteto do seu destino.
A Modernidade quer ser moderna, no que não há nenhuma no-
vidade. Muitos medievais cultivaram e invocaram o “sentimento de
modernidade” ao se colocarem como mensageiros do novo, da ruptura,
de algo que está adiante. Nela talvez esteja mais generalizado este sen-
timento, esta vontade de romper com o velho, com a tradição e simples-
mente inovar, desejo que inequivocamente ela é capaz de pôr em ato, de
realizar. Para tanto, para se colocar como diversa, ela precisou buscar
com mais intensidade lastro na cultura que queria oxigenar, precisou
2
Não se pretende pôr em discussão os critérios para definição dos cortes temporais, todos sempre
artificiais e infiéis às realidades históricas que pretendem referenciar. Apenas admite-se, para fins
de delimitação de abordagem, marcos que sinalizam ou simbolizam transformações importantes,
aceitando-se a tradicional indicação historiográfica. Da mesma forma, não se enfrentará o problema
de definição do período pós-revolução francesa, dado que escapa ao arco temporal acolhido pela
coletânea e exigiria, por sua vez, uma análise que nos distancia do objetivo aqui eleito.
Ainda a modernidade? • 9

se legitimar perante aquilo que negava, tirando da sua negação, ou da


produção recusada, seu sustento, sua força, sua fundamentação.
Se a Modernidade é marcadamente ou autenticamente ocidental
no que tange à característica exaltada, a saber, a forma de se colocar e se
legitimar a partir de uma necessária comparação/relação com o passado,
é preciso então analisa-la com mais cuidado com o intuito de entender
como ela se desenvolve, como se constitui e como constitui o seu futuro.
Na Modernidade está a chave inefável que dá sentido à história dessa
cultura e que explica perdas e ganhos do mundo contemporâneo. Enfim,
entendê-la é entender a nós mesmos, é compreender a nossa realidade,
nossos padecimentos, nossas limitações.
Não esperamos, com essa afirmação, depositar na Modernidade
a responsabilidade por todas as frustrações impingidas ao mundo con-
temporâneo, mas apenas ressaltar o quanto os caminhos e as possibili-
dades eleitos e explorados a partir daquilo que ela nos oferece podem
auxiliar na difícil leitura e interpretação da realidade atual. As respostas
não são modernas, não estão lá, mas não podem ser construídas para
o mundo contemporâneo sem a compreensão do passado e, neste caso
específico, sobretudo do seu passado mais recente.
Ainda a Modernidade porque nela a consciência história encon-
trará terreno fértil e abrirá em definitivo as portas para uma reflexão que
articula e pensa a cultura como um todo e dá sentido ao seu revelar, o
que demandará uma convicção inequívoca do homem como artífice de
si mesmo e de sua cultura, como rector de sua história, como livre. Tais
questões encontram resposta e amadurecimento nessa Modernidade à
qual nos referimos e este esforço frutificará em outras modernidades, ou
mais precisamente nos séculos XIX e XX.
A Modernidade se inaugura pelo desarranjo da estrutura que
sustenta a mundivisão medieval – e por que não clássica? – em que o
universo se estende como um grande mapa acolhedor e definidor do
lugar de tudo o que existe. Tudo tem seu lugar nessa ordem. No caso me-
dieval, trata-se de um universo teocêntrico, que se desmoronará pondo
fim ao mundo ideal e à sua tomada por uma perspectiva ontológica.
A Modernidade rompe ainda com o Renascimento e com o seu
paradigma organicista. Dele toma o lugar uma visão mecanicista, estri-
tamente calcada num racionalismo que pode assumir vestes de empi-
rismo ou de racionalismo puro. Ambos, grandes vetores da Modernida-
de, são igualmente racionalistas, têm na razão seu pilar de sustentação
mais profundo, seu fundamento de existência, embora divirjam quanto
à compreensão do papel da razão e, obviamente, quanto aos métodos.
10 • Razão e poder: (re)leituras do Político na Filosofia Moderna

O nominalismo, fenômeno catalizador da desconstrução desse


universo teocêntrico, contribui sobremaneira para a colocação do gran-
de desafio que marcará o início da Modernidade e determinará as ca-
racterísticas mais destacadas deste período: o descalabro da ordo que
tinha como referência o divino para a existência e para a determinação
do lugar de tudo o que existe em uma hierarquia perfeita e inexorável.
Deslocado de uma ordem que se esvazia, que perdeu sentido on-
tológico e que não mais se sustenta, fica o homem com uma tarefa impe-
riosa: precisa sediar a si mesmo e deverá fazê-lo a partir de sua vontade.

(…) “toda a cultura moderna, a começar no plano das razões


teóricas, pela filosofia e, no plano operacional, pelas tecnoci-
ências, não é mais do que um imenso esforço para povoar um
espaço abandonado pelos antigos símbolos e correspondências
que o tornavam habitável para o homem antigo e medieval.”3

A Metafísica do Sujeito4 é a resposta possível da Modernidade.


A filosofia precisará pensar o que é o homem, qual a sua essência e,
portanto, qual é o seu lugar no mundo. Para essas questões, a filosofia
moderna buscará resposta em um homem racional, portador de uma
vontade livre. É a partir dele que o mundo se define. Ele é a referência
determinante para todo o resto.
O protagonismo do sujeito na filosofia moderna inverteria o ca-
minhar natural do pensamento investigativo e reflexivo, que instinti-
vamente havia caminhado a partir da natureza, do físico ao metafísico.
Isso porque agora assume-se, na certeza da subjetividade bem ilustrada
no pensamento de Descartes, o sujeito como ponto de partida para, só
então, caminhar-se para a verdade do mundo objetivo.5 Essa inversão
propicia um olhar inteiramente novo para questões antigas.
A Modernidade, como já assinalado, deve ser tomada como uma
ruptura importante, porém não absoluta em relação a toda a produção
cultural que a antecede. Nessa nova perspectiva, ela precisará lidar não
apenas com questões que sempre se colocaram como objeto de reflexão
– o que obviamente não exclui novas questões – mas igualmente terá de
lidar com as respostas pretéritas e buscar, nesse constante diálogo com o
passado, sua legitimidade, sua verdade, seu lugar e seu valor.
3
LIMA VAZ. Henrique Cláudio de. Escritos de Filosofia IV. São Paulo: Loyola, 1999. p. 271
4
Sobre a filosofia clássica, medieval e moderna e sua definição como metafísica do objeto ou meta-
física do sujeito, cf. SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça no perído clássico ou da metafísica do
objeto: igualdade. Belo Horizonte: Del Rey, 2018.
5
Cf. LIMA VAZ. Henrique Cláudio de. Op. Cit.
Ainda a modernidade? • 11

Reler os filósofos modernos não é apenas uma visita ao nosso


passado próximo, é o pôr-se em relação com a imensa história do pen-
samento ocidental que ali frutifica. Mais ainda, é compreender o quão
imbricada no passado está toda reflexão que se pretende “moderna”,
inovadora, rompedora com a tradição. É permitir a nós mesmos um “co-
nhece-te a ti mesmo”, entender o que somos agora e por que o somos.
Não há conhecimento no mundo humano, no mundo da cultura, que
possa se construir limitando-se ao presente. Nele está apenas a super-
fície de uma montanha densa e permeada de riquezas. Conhecer o pre-
sente é sempre superficial, ilusório e ingênuo se se ignora o passado.
Que nossos retornos sejam constantes, não pelo saudosismo que nunca
deve existir, mas pela potencialidade que ele tem de nos armar e preca-
ver quanto ao presente que queremos entender. Para nós, ainda o passa-
do, todo ele. Ainda a Modernidade.
CAPÍTULO 1

Modernidade e Filosofia da História

José de Magalhães Campos Ambrósio

Depois, como se pensasse em voz alta:


- Se o espaço é infinito,
estamos em qualquer ponto do espaço.
Se o tempo é infinito,
estamos em qualquer ponto do tempo.
(Jorge Luiz Borges. O livro de areia)

§ 1 - [assimetria] Urge realizarmos uma revisão: por que Moder-


nidade? Em que ela se difere de outros períodos históricos? Especifica-
mente, o tema da História, quando e onde foi pensado pela primeira
vez? Isso importa?
Parece-nos que é certo que as periodizações temporais indicam
um quê de arbitrariedade planejada. O que é um Moderno em relação
a um Antigo? Pergunta Bruno Latour.1 Para o pensador francês, o con-
traste antigo/moderno causa uma dupla assimetria: “assinala uma ruptura
na passagem regular do tempo; assinala um combate no qual há vencedores e
vencidos.”2
A linha divisória traçada entre antiguidade e modernidade é frá-
gil, porém pode ter utilidades. A primeira é didática, que não nos inte-
ressa aqui; a segunda é avaliar a consistência das razões e argumentos
para a assimetria abordada e por que a manteremos - conscientemente
- neste ensaio sobre a história e o tempo.
§ 2 - [Ocidente Insatisfeito] O tema da História é transtemporal
no Ocidente! A passagem do tempo, como captá-lo em forma de conhe-
cimento ou evadi-lo, está em nossa pauta civilizatória desde longuíssi-

1
LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos; ensaio de Antropologia simétrica. Trad. Carlos Irineu
Costa. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 15.
2
LATOUR, Jamais fomos modernos, cit., p. 15.
José de Magalhães Campos Ambrósio • 13

ma duração. Urge, assim, um retorno aos cultores do modus ocidental:


os gregos.3
É certo que o fazer historiográfico ou proto-historiográfico
antecede o momento e a ambiência da filosofia grega. Não é disso que
falamos. O tema da história, tratado filosoficamente, surgiu com gregos
pela mundivisão peculiar que os pensadores da hélade nos legaram:
thaumázein, o espanto, a admiração.4
Em busca de desvendar a essência mesma do filosofar helênico e
dos motivos de sua permanência no mundo ocidental, Pierre Hadot en-
contra um duplo estranhamento no fenômeno da philoshopia. Em primei-
ro plano, o filósofo se espanta com a vida cotidiana e quer ultrapassá-la:
os empíricos sabem ‘o quê’, mas não sabem ‘por quê’; os filósofos sabem
‘porque’, lembra-nos Aristóteles.5 Em retribuição, passo contínuo, os
não-filósofos estranham o filósofo e sua prática: filósofos são bizarros,
perigosos, inclassificáveis.6
O mero fazer empírico do cotidiano não satisfazia a exigência
profunda de compreensão total da realidade que marcava pensamento
grego. Daí que História, em seu sentido propriamente ocidental, é uma
ultrapassagem do simples fazer (registro); é necessário que exista cons-
ciência e pensamento histórico. Isso implica um saber espantado com
seu próprio tempo e com sua passagem.
§ 3 - [Aberturas] A possibilidade de uma Filosofia da História
Antiga se relaciona, a nosso ver, com duas aberturas que cravam o con-
texto filosófico grego no campo da consciência e do pensamento histó-

3 O debate das origens do Ocidente não será feito aqui. No sentido filosófico, filiamos nossa arché
civilizacional tal como nas palavras de Heidegger: A palavra philosophía diz-nos que a filosofia é
algo que pela, primeira vez e antes de tudo, vinca a existência do mundo grego. Não só isto — a phi-
losophía determina também a linha mestra de nossa história ocidental-europeia. A batida expressão
‘filosofia ocidental-europeia’ é, na verdade, uma tautologia. Por quê? Porque a ‘filosofia’ é grega em
sua essência — e grego aqui significa: a filosofia é nas origens de sua essência de tal natureza que
ela primeiro se apoderou do mundo grego e só dele, usando-o para se desenvolver.” HEIDEGGER,
Martin. O que é isto, a Filosofia?; Identidade e Diferença. trad. Petrópolis: Vozes. p. 17.
4 Platão e Aristóteles notaram essa característica diferenciadora dos que amam a sabedoria. Pla-
tão, no Banquete, relaciona a ausência e a admiração com aquilo que falta ao amante, que, no caso
do filósofo, é a sabedoria. PLATÃO. O Banquete. Trad. Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: Ed.
UFPA, p.153, 204 a-b.
No § 15 da Metafísica, Aristóteles declara: “De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na
origem, por causa da admiração[...]”. ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p.
11, 982b/15
5
ARISTÓTELES, Metafísica, cit., p. 12.
6
HADOT, Pierre. Elogio da Filosofia Antiga. Trad. Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. São
Paulo: Edições Loyola, 2012. p. 20-21.
14 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

rico.
A primeira se conecta com o espanto já mencionado. Henrique
Cláudio de Lima Vaz faz uma ascensão dos níveis de consciência para
entrelaçá-los com o processo histórico.
Para o filósofo mineiro, os dois primeiros níveis conscienciais
são: empírico, momento do puro acontecer factual em que a consciência
somente capta os fragmentos do mundo; e racional, no qual a consciência
estabelece conexões inteligíveis como a causalidade.7
O último nível, autenticamente filosófico, define a consciência
como aquilo que permite:

Definir o homem enquanto oposto ao mundo, e, por isso mes-


mo, relacionado dialeticamente com o mundo’. [...] Assim, ten-
tamos a compreensão dinâmica de sua essência, a compreen-
são do movimento mesmo em que ele é e se manifesta como
ser histórico.8

Assim, a oposição-conexão do homem-filósofo com seu tempo


movimenta o sentido comunitário global do seu contexto, seja como
participante ou como doador de sentido, alterando e enriquecendo o per-
curso simplesmente fático da história. Por isso, o espanto se inscreve
sempre em relação ao real, situado historicamente.
A segunda possibilidade advém da distensão ocorrida pela pri-
meira vez no mundo grego entre tempo mítico e tempo profano.
Sônia Viegas traça o paralelo: o tempo mítico é substancial, sa-
grado, confere uma dimensão especial à realidade. Renova-se dentro do
termo de experiências fundamentais que podem, a cada momento pre-
sente, reabilitar valores e as situações decisivas da vida de um povo e de
uma cultura; o tempo profano é aquele vazio, medido, linear, extrínseco
às experiências e acontecimentos.9
Os dois tempos não são excludentes e coexistem harmonicamen-
te, mas o contexto da crise grega do séc. V a.C. provoca um abalo no elo
mítico-profano. Podemos encontrar as origens da crise na transição de
um paradigma do conhecimento oral para o escrito, possibilitando uma
dispersão hermenêutica que rompe a totalidade ética da polis. O tem-
po profano é superdimensionado e, como consequência, ocorrem mu-
danças nas estruturas sociais - e.g. democracia -, intensificando a crise

7
VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ontologia e História. São Paulo: Loyola, 2001. p. 249-251.
8
VAZ, Ontologia e História. cit., p. 247-48.
9
VIEGAS, Sônia. Escritos; filosofia viva. Belo Horizonte: Tessitura, 2009. p. 29-30
José de Magalhães Campos Ambrósio • 15

e abrindo espaço para a emergência de um modo diferente de pensar o


real: a filosofia.10
Eis que temos, então, a abertura histórica:

A ruptura ou o distanciamento dessas duas formas de experi-


mentar a temporalidade cria condição para a reflexão filosófica
e, talvez também, para reflexão científica sobre o tempo11

A reflexão filosófica se coloca, assim, na tarefa de preencher o to-


pos que a distância das duas experiências de temporalidade enseja. Entre
a permanência absoluta do tempo mítico e a passagem absoluta do tempo
profano, o tempo filosófico tenta responder à agonia da sua circunstân-
cia: o que permanece na mudança? É nessa chave que é possível uma
Filosofia da História no Mundo Antigo.
§ 4 - [Inventário] A Filosofia da História - e uma ciência histórica
-, no mundo antigo, é um esboço. Não existe, como na modernidade, um
corpus filosófico dedicado, sistematicamente, ao problema da história.
Mesmo os pais da história, como Heródoto e Tucídides, não deixaram
uma historiografia consolidada como ciência, por isso, levantaremos um
pequeno inventário de pensadores que enfrentaram o problema.
Heráclito de Éfeso é, reconhecidamente, o cultor do movimen-
to, do eterno devir. Sua dialética de contrários faz a mediação, no logos,
do movimento que o tempo profano impõe aos homens. No Fragmento
52, está exposto: “Tempo é criança brincando, jogando; de criança o reinado.”12
A temporalidade do que muda é, para Heráclito, aquilo que
permanece, e o papel do filósofo é mediar esse movimento no logos,
como comenta Kostas Axelos:

Se o tempo é uma criança que joga, a dialética do sábio é a de


uma criança que compreendeu o jogo. (...) O tempo funda a
dialética, apreendida pelo pensamento que desperta. Uma vez

10
A dispersão hermenêutica e o rompimento da totalidade ética da polis é um processo longo e
complexo. Eric Havelock traça as linhas fundamentais desse processo. Para ele, a experiência poé-
tico-mítico grega, calcada na transmissão oral pelos Poetas que, pelas técnicas empregas, repassa-
vam diretamente a mensagem sem mediação interpretativa; o acúmulo de memória cultural é o
único objetivo. Além disso, a grande autoridade de que eram dotados os poetas contribuíam para
seu impacto na coesão do mundo grego. Para uma descrição mais detalhada da crise grega dentro
desse paradigma, sugerimos HAVERLOCK, Eric. Prefácio a Platão. São Paulo: Papirus, 1996.
11
VIEGAS, Escritos, cit., p. 31.
12
HERÁCLITO. Doxografia e fragmentos. In: SOUZA, J. C.(Supervisão). Os pré-socráticos: fragmen-
tos, doxografia e comentários. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 84. (Os pensadores)
16 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

surgida a admiração, dirigimos nosso olhar para os instantes


do tempo e, vivendo-os, empreendemos um diálogo com ele.13

Sônia Viegas, aprofunda a dimensão dialética homem-tempo ex-


posta por Axelos:

Na verdade, o tempo é uma criança que joga peões na medida


em que ele constrói suas próprias regras. Não se trata, pois,
de uma medida extrínseca à própria sucessividade; trata-se de
algo como uma criança que, ao jogar, cria as próprias regras
do jogo, o que não significa que essas regras sejam arbitrárias,
porque a própria natureza do jogo se definirá por elas. A re-
aleza indica o poder lúdico de uma criança. A comparação é,
ademais, muito bonita; o tempo-criança é uma possibilidade
sempre renovada e a realiza essa força de inovação.14

Compreender a marcha do tempo e participar da definição das


regras enquanto as assimila é a grande tarefa do filósofo. Pensar a histó-
ria, desde Heráclito, é estar imerso nesse problema do homem entre a
passagem e da permanência.
Platão eleva o problema heraclitiano a um novo patamar. Inter-
pretado, quase sempre, como um filósofo idealista descolado do mundo
sensível, a-histórico e imobilista, vemos, em Platão, um filósofo aflito
com o fluxo do tempo e de como intervir nesse processo.
Completamente imerso na amplitude da crise grega, todo o pen-
samento platônico é um projeto político-pedagógico de reconstrução do
seu mundo, portanto, intimamente relacionado com seu contexto histó-
rico. Não só isso, a teoria platônica é extremamente oportuna do ponto
de vista histórico,15 “o destino humano e da cidade passou a oferecer a
possibilidade de elaboração dessa filosofia da história”.16 Destacaremos
dois aspectos na defesa de uma filosofia platônica da história: metodo-
lógico e o propositivo.17

13
AXELOS, Kostas. Héraclite et la philosophie. Paris: Les Editions de Minuit, 1962. p. 54.
14
VIEGAS, Escritos, cit., p. 32.
15
Além do processo já exposto por Havelock, Constantine Despotopoulos lembra que o entorno
platônico era de uma supremacia ateniense em todos os aspectos (cultural, política, comércio e
militar). DESPOTOPOULOS, Constantine. Philosophy of History in ancient Greece. Atenas: Academy
of Athens-Sole Foreign Distributor/Ousia, 1991. p. 53.
16
FILHO, Gérson Pereira. Uma Filosofia da História em Platão; O percurso histórico da Cidade platô-
nica de As Leis. São Paulo: Paulus, 2009. p. 15.
17
Essa separação entre metodologia e proposição é didática. Em Platão, o próprio método revela
uma substância e a própria proposição é reveladora do método.
José de Magalhães Campos Ambrósio • 17

A dialética irrompe a tessitura da história intensamente. De He-


ráclito a Platão e deste a Hegel, nenhum outro método busca no pró-
prio devir forças para sua reorientação. A dialogia platônica, se desdo-
bra em seu verdadeiro propósito: a mediação entre pensamento e ação
histórica - voltada para o aperfeiçoamento da polis e do seu governo18,
lembra-nos Gerson Pereira Filho, para além de uma movimentação e
ascensão especulativa das ideias,
É representativo, portanto, que a Filosofia da História platônica
esteja nos projetos mais bem estruturados de uma outra polis: A Repúbli-
ca, O Político e As Leis - este último diálogo como mais representativo de
uma filosofia da história.19
Dessa forma, expondo o contraste entre a polis empírica e a ideal é
que Platão pretende redirecionar conscientemente o curso do seu mun-
do e do seu tempo. A história é um processo problemático, já que a Cidade
sempre estará entre o risco de destruição e a possibilidade de salvação;
se a probabilidade está na pauta, lembra Gérson Pereira Filho, ela é
histórica. O curso do mundo, assim, estaria entre duas alternativas, lembra
Bernard Duquesne: de um lado, teríamos cisão, quando o governo da
polis estaria rumo a um devir desconectado do Todo. De outro lado, uni-
ficação, quando existe um governo que entrelace a participação do Logos
no mundo, proporcionada pelo pensamento/ação do filósofo.20
Resumindo: o percurso dramático pela sobrevivência da polis,
sua escrita em contexto de crise, o engendramento de uma dialética para
a construção de uma alternativa ao regime e o estabelecimento de um

18
FILHO, Uma Filosofia da História em Platão, cit., p. 17.
Gérson Pereira Filho demonstra que o conjunto dos diálogos platônicos oferece material para
19

uma Filosofia da História, mas que os escritos políticos são os mais representativos.
20
DUQUESNE, Bernard. Platonisme et sens de l’histoire. In: Revue Philosophique de Louvain. Qua-
trième série, Tome 85, N°67, 1987. pp. 309-328, p. 326. Vale reproduzir o parágrafo de Duquesne:
“Les hommes peuvent donc tout, d’une part parce que, du commun, ils sont ceux par qui l’absolu
se dédouble, incarnations de la différence qui constitue en même temps qu’elle le ronge et le meut,
mais dans l’instante, ce Logos, incarnations de cette Haine interne à l’Amour que compose la na-
ture propre du sensible; d’autre part parce que, philosophes ils peuvent être ceux par qui le Logos
se retrouve soi-même, triomphe de cette Haine tout en la nourrissant, incarnations de l’unité qui
maintient la Justice. Mais, puisque cette Haine este haine de soi, ces deux pouvoirs n’en font qu’un.
Les hommes du commun, en instaurant la décadence, rendent plus proche le renouveau, tandis
que le Sage, entretenant la justice, rend toujours plus imminente la catastrophe. Ce que fait que
personne ne peut rien contre ce cycle, qui est celui même du Logos, qu’il communique à son rejeton
sensible, Grande Année qui s’écoule selon un sens (progès) et une structure (décadence) issus du
Sens qu’est le Logos-Raison-Participation symbolisé par l’Amour qu’est le Sage qui Contemple,
mais dont les phases durent, ne s’inversent pas immédiatement à tout instant, pour une autre “Rai-
son” que cette Participation. La Grande Année s’écoule sous l’ceil d’un Absolu transcendant même
la Contemplation du Sage.”
18 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

“sentido histórico”, colocam Platão também entre os filósofos da histó-


ria.
Santo Agostinho, sob o novo incremento da eticidade cristã,
confere um outro sentido à dialética platônica. Primeiro, porque a histó-
ria sofre, para ele, uma grande guinada devido ao evento kairós, a encar-
nação histórica do Logos.21 A religião cristã exige a inscrição da História
de Jesus como factuais - situados no tempo e no espaço.22 Ainda mais
intenso que o Rei-filósofo platônico, Jesus alterara definitivamente a his-
tória humana: o destino universal do humano é gestado no tempo em
função de um mundo que há-de-vir.
A Filosofia da História de Cristã, especificamente a agostiniana,
tem como premissa a ideia de Providência: o sujeito da história é Deus,
todos os homens e coisas estão expostos a uma reorientação divina. A
participação do homem se dá à medida que este, pela graça, executa os
planos que são de divinos.23
Outro traço marcante na teo-filosofia da história agostiniana é o
universalismo. Não existem particularidades, raças ou classes privile-
giadas, o destino de todos os homens está interligado inexoravelmente;
conduzidos somos ao fim da história.
A estrutura do devir temporal se dá no confronto entre as duas
Cidades: a Terrena e a de Deus. Ao instaurar a distância entre o que é
do sæculum e o que é æterno, Agostinho aprisiona o processo histórico
no futuro, nos últimos dias, no advento da Cidade de Deus.24 À Cidade
Terrena fica reservado o espaço temporal da peregrinação, ou seja, do
testemunho perene da competição entre fé e descrença.
Joaquim de Fiore propõe uma linearidade histórica mais bem
acabada e que unifica as histórias profana e sagrada em uma evolução
paulatina. Tendo o Apocalipse de João como fundamento e a Trindade

21
1) Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁλόγος. 2) οὗτος ἦν ἐ
ν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν. 3) πάντα δι’ αὐτοῦ ἐγένετο,καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἓν ὃ γέγονε.
Evangelho segundo João, cap. I, v. 1-3. In: SAYAO, Luiz. Novo testamento; trilingue. São Paulo: Vida
nova, 2003. p. 520.
CHAUNU, Pierre. A História como Ciência Social; A Duração, o Espaço e o Homem na Época Mo-
22

derna. trad. Fernando Ferro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976. p.44.
23
Convém aqui lembrar uma ambiguidade percebida por R.G. Collingwood a ideia de história
agostiniana: Apesar de não ser sujeito, o homem é o único agente da história, ou seja, é só por meio
dele que os fins divinos se realizam. O objetivo central de Deus é o bem-estar e a salvação dos
homens. Ou seja, o homem é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto, fim e meio da história. COLLIN-
GWOOD, R.G. A Idéia de História. São Paulo: Martins Fontes, 1981. p. 84.
24
LÖWITH, Karl. O Sentido da História. Trad. Maria Georgina Segurado. Lisboa: Edições 70, 1991.
p. 170.
José de Magalhães Campos Ambrósio • 19

como parâmetro, Joaquim define as épocas de acordo com as pessoas


divinas.
A primeira época - a do Pai - assenta-se no medo, no signo da lei,
é governada pelo esforço e pelo trabalho (scientia); a segunda - própria
do Filho - é marcada pelo despertar da espiritualidade, pela aprendiza-
gem e pela disciplina (sapientia ex parte); a última - no seio do Espírito
Santo -, e que se avizinha, seria o momento de perfeição, de pura con-
templação e louvor (plenitudo intelectus). Cada época se articula uma na
outra, de modo que o fim de uma já configura o início da próxima.25 A
última, diferentemente de Agostinho, não é colocada fora da história,
mas em seu interior, pois seria anunciada em uma segunda vinda factu-
al de Cristo.
De uma maneira ou de outra, a teo-filosofia da história cristã
elege a vida futura como tempo privilegiado da experiência humana.
Marca indelevelmente o mundo ocidental e determina tanto o caminho
que as filosofias da história tomaram, quanto as tentativas de superação.
§ 5 - [Substituições] Procedente das duas Fundações de nossa
Civilização,26 o Ocidente moderno pretendeu negar parte de sua herança
cultural e construir um mundo novo, racional e livre. Mas negar é tam-
bém conservar e, por isso, o caminho substancial do ocidente moderno
foi avançar, substituindo.
As estratégias de substituição afetaram diretamente as filosofias
da história e da política. Karl Löwith defende que:

A filosofia da história está, no entanto, na total dependência


da teologia da história, em particular do conceito teológico na
história como uma história de realização e salvação.27

No campo político, para citar dois exemplos, vemos um Carl


Schimitt defender que “todos os conceitos concisos da teoria do Esta-

25
LÖWITH, O Sentido da História, cit., p. 151.
26
Defendemos, em nossa Dissertação de Mestrado, que o Ocidente conjuga duas Fundações que
configuram sua arché civilizacional: “ O Ocidente tem duas fundações bem definidas: de um lado,
busca no espírito grego a Razão que lhe é tão cara e que é um dos eixos de nossa civilização, e
que fundou também a política; de outro lado, funda-se também no Cristianismo, obra-prima da
construção religiosa que soube incutir em si a razão e o espírito grego.” AMBRÓSIO, J.M.C. Estado
e Religião; contributo histórico a Filosofia do Estado presente. Belo Horizonte: PPGD-UFMG, 2011.
p. 34. (Dissertação de Mestrado).
27
LÖWITH, O Sentido da História, cit., p. 15.
20 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

do moderno são conceitos teológicos secularizados”28. Ou um Eric Vo-


egelin realizar um profundo estudo sobre como as ideologias políticas
modernas, ao recortarem o real em favor de um ens realissimum (raça,
classe, povo), na verdade, não fazem mais do que mimetizarem as es-
tratégias religiosas, seja para a captação de adeptos ou efetividade de
dominação.29
De toda forma, a negação tem como escopo a produção do novo,
e é na inovação que, a despeito da assimetria e dos claros continuísmos e
substituições, veremos o que de moderno tem a modernidade.
§ 6 - [Queda] Poderíamos narrar os fatos exteriores que simbo-
lizam a modernidade da sua aurora ao apogeu - Reforma Protestante,
Renascimento, Revolução Gloriosa, Revolução Franscesa, etc. -, mas pre-
ferimos outro caminho, dar um passo atrás e perscrutar a significação
interna desse novo período da história ocidental.
Usando figuras triádicas - Autoridade, Queda e Castigo - como me-
táfora da modernização, Nelson Saldanha identifica, na segunda cate-
goria, a referência à gênese do espírito e do destino moderno.30 A Queda
é rebelião contra a Autoridade fundante, secularização. O homem ociden-
tal, no desdobramento de sua insurgência contra as autoridades entrela-
çadas, vê-se sem paraíso num mundo que não é mais dado e chancelado
pela divindade e transcendências - damo-nos conta de nossa condição.31
No bojo da acumulação de aprendizado histórico, ensina Salda-
nha, vemo-nos que, para além de seres políticos, racionais e dignos, nos
achamos frágeis e débeis, mas, sobretudo, históricos:

O exagero de Ortega (a de que o homem não possui nature-


za ‘sine que tiene historia’) se desvia um pouco da nagulação
mais compreensiva, a que entende que a natureza humana é
um conceito histórico (ou inteligível historicamente); mas ser-
ve para chamar atenção para a inanidade das análises pura-
mente formais. O humano e o histórico são dois lados (ou duas
exigências verbais) de um mesmo conceito, e incidem sobre o
mesmo ser. O homem produz o humano e produz a história:
claro que é também certa frase inversa, e não há porque inda-
gar - velha aporia ociosa - se o homem faz a história ou é feito

28
SCHIMITT, Carl. Teologia Política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 35.
29
Ens realissimum é um ente mais real entre todos os entes reais. VOEGELIN, Eric. Modernity without
restraint. Columbia: University of Missoury Press, 1999.
30
SALDANHA, Nelson. Secularização e Democracia; sobre a relação entre formas de governo e con-
textos culturais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 10.
31
SALDANHA, Secularização e Democracia, cit., p. 201.
José de Magalhães Campos Ambrósio • 21

por ela. O homem, na história, constrói paredes e com elas o


humano: paredes, armas, idéias, paixões e utopias.32

No mesmo sentido, Ivan Domingues:

Desprendido dos arquétipos e de sua ação limitadora e para-


lisante, os quais levaram os homens antigos a abafar a própria
história, é um novo homem que irrompe: um homem que se
sabe e se quer criador da história; uma homem que, ao quebrar
de vez o invólucro em que o mito encerrava os personagens e
acontecimentos históricos (heróis, façanhas etc.), libera as for-
ças da história, empurra o tempo para frente (uma vez livre
dos arquétipos que o puxavam para trás), transformando-o de
cíclico em linear (linha ascendente), e permite o surgimento do
acontecimento histórico enquanto tal, sem nenhum invólucro,
simplesmente histórico; um homem que reconhece na história
seu próprio modo de ser de homem (homem histórico) e vê no
acontecimento histórico, com seu selo do novo e do efêmero, o
próprio ser da história enquanto tal.33

O horizonte temporal da modernidade contrai-se do æternum


para o sæculum.34 Não cabe mais a espera pelos últimos dias, pela
salvação desenhada extrinsecamente ao coletivo humano. Instala-se
outro sentido: urgência! Cabe ao homem salvar a si mesmo.
§ 7 - [Técnica e Aceleração] Escolhido o caminho da Queda e pos-
ta de lado a Autoridade, resta ao homem mostrar-se capaz de domínio
sobre o tempo e a história.
O conforto, antes dado pela substancialidade divina, agora é
substituído pela agonia da técnica do novo - ou de sua pretensão. De
acordo com Schimitt, o homem em sua rebelião passou a pensar o mun-
do como um permanente novum, em que todas as substâncias são ex-
tintas sob uma tábula rasa.35 À ausência-presença de um conteúdo fixo,
o homem responde ao seu modo, ao seu horizonte de finitude que aos
seus fins seculares estabelece meios encurtados para suas realizações e
satisfações. Esses tempos seculares são, para Saldanha:

32
SALDANHA, Secularização e Democracia, cit., p. 202.
DOMINGUES, Ivan. O Fio e a Trama; Reflexões sobre o Tempo e a História. Belo Horizonte: EDU-
33

FMG, 1996. p. 60.


34
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio
de Janeiro: Contraponto; Ed PUC-Rio, 2006. p. 25.
35
SCHIMITT, Teologia Política, cit., p. 150.
22 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

Tempos carregados de tecnicismos e submetidos à técnica, nos


quais se alteram também as proporções da vida: nas relações
com o mundo, no tamanho das edificações, no sentido do tem-
po. A técnica, que diminui a substância do homem substituin-
do-se a ele e tirando-lhe parte de seu ser, permitirá talvez que
o homem intensifique sua experiência e faça crescer por den-
tro a parte que lhe é deixada. (..) A técnica traz a fruição do
imediato e o prazer da facilidade, diversamente da ética, que
delineia exigências. A técnica esvazia o senso crítico e entroni-
za o prestígio do útil, mas convive com a banalização e com o
ceticismo.36

Ensaia o mundo moderno uma neutralização do tempo e da his-


tória: o tempo é um “marco vazio”, meio neutro; a história é a ação dos
homens sobre o tempo.37
Não sem razão, essa assepsia promove a conquista do tempo:
medimos com exatidão do tempo cotidiano das horas, o tempo ultracur-
to de partículas entre seu aparecimento de desaparecimento ao tempo
ultralongo das galáxias, crostas terrestres e dos antepassados longín-
quos.38
Entretanto, inserindo a neutralização e a conquista em movi-
mento dialético, vemos o risco do extremo de um estado ou de um agir
converter-se em seu contrário. A técnica, como já tematizou Heidegger,
pode fagocitar o humano, se este não souber se relacionar com ela,39
como nos grandes males históricos a que, de tempos em tempos, somos
submetidos. Perguntamos: Estamos preparados?40
E o outro perigo, e as ambiguidades se acentuam: a nova tem-
poralidade parece que consegue - tal como o destino antigo - tornar-se

36
SALDANHA, Secularização e Democracia, cit., p. 202.
37
DOMINGUES, O Fio e a Trama; cit., p. 18.
38
DOMINGUES, O Fio e a Trama; cit., p. 41.
39
HEIDEGGER, Martin. A questão da Técnica. trad. Marco Aurélio Werle.São Paulo: USP; Scientiæ
studia, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. p. 389-390.
40
Nesse sentido, é valioso citar o que Horkheimer denominou de razão instrumental. É com essa
criação que o autor elucida que a razão, ao invés de promover a emancipação do indivíduo, aqui
tomado em sentido kantiano, com a finalidade de contribuir para a promoção de uma vida justa,
se transformou em mero instrumento. É diante dessa premissa que a razão se tornou hábil para a
manutenção de formas de poder. Um exemplo prático dessa teorização é o fascismo, um dos ter-
rores da Segunda Guerra Mundial, nele a razão é adaptada não visando à manutenção de vidas,
mas, paradoxalmente, a irracionalização do sistema, mutilando, assim, as subjetividades . PETRY,
Franciele Bete. O conceito de razão nos escritos de Max Horkheimer. Cadernos de Filosofia Alemã. nº
22. p. 31-48.
José de Magalhães Campos Ambrósio • 23

senhora do homem, tendo poder absoluto sobre a vida e morte;41 algo


que se aprofunda no modo de produção capitalista.
Como nada é permanência substancial, a modernidade é impa-
ciente, implicando aceleração. O homem constrói sobre o tempo a sua
história, como à frente está sempre o novo, a expansão é constante.
Partindo da aceleração apocalíptica dos textos sagrados e das
mudanças temporais42, Reinhart Koselleck, chega à aceleração pro-
priamente moderna.
São cinco são os elementos que indicam uma aceleração: 1) Re-
volução Francesa, momento em que, num período de dez anos, todas as
formas de governo conhecidas ocorreram no território francês; 2) Modo
e técnicas capitalistas que, ao economizar tempo de produção pela sua
organização e divisão do trabalho, geraram um efeito cascata em que
antigas e novas necessidades dinamizam a busca pelo novo; 3) Trans-
porte de pessoas, bens e mensagens em prazos cada vez menores e mes-
mo simultâneos, obviamente, possibilitados pelos esforços capitalistas e
sua dinamização demanda-necessidade; 4) Crescimento populacional, o
fato de, na modernidade, a população aumentar em 5 bilhões de pessoas
é um diagnóstico evidente de aceleração, já que nunca antes e tão rápido
o número verticalizou-se de tal maneira.43
Técnica e Aceleração estão interligadas, pois a primeira é o núcleo
da qual a segundo irá se alimentar. A era das neutralizações e despoli-
tizações44, como aludia Schimitt, é o que torna possível os atalhos, pois
não há Autoridade obstrutora.
§ 8 - [Castigo] Outra das referências teológicas usadas por Sal-
danha para indicar o nosso tempo: à Queda sobrevém o Castigo - referen-
ciamos à solidão na qual o homem moderno se encontra; deixado a sua
própria sorte, tem o desafio de construir seu próprio caminho.
Defrontam-nos, mais uma vez, em correspondência45 com mundo

41
DOMINGUES, O Fio e a Trama; cit., p. 43.
42
Para Koselleck, a aceleração apocalíptica está calcada no anúncio dos Evangelhos de Mateus (24,
22) e Marcos (13,20) para os quais a proximidade do fim do mundo abreviaria a duração dos dias.
Essa expectativa seria reformulada durante toda a história eclesiástica - inclusive a Reforma de Lu-
tero como um dos últimos repositórios panfletários do Apocalipse. KOSELLECK, Reinhart. Estratos
do Tempo; estudos sobre história. Trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC-Rio,
2014. p. 171 et. seq.
43
KOSELLECK, Estratos do Tempo, cit., p. 182-188.
44
SCHMITT, Carl. A era das neutralizações e despolitizações. In: SCHMITT, Carl. O conceito do
político. Trad. Álvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1992 [1929]. p. 106-120.
45
Heidegger usa o termo correspondência no sentido de conexão, de diálogo, de interpelação. Po-
24 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

grego. O moderno é o retorno da distância entre o tempo mítico e tempo


profano - reduzida, mas resguardada a separação entre essas ordens na
cristandade ocidental.
A diferença notável entre a antiguidade grega e a modernidade
é a permanência das crises.46 Enquanto o processo histórico da crise no
mundo antigo fora interrompido por uma nova Autoridade que renovou
a robustez do tempo mítico, o horizonte da longa duração do mundo
moderno ainda não repetiu o processo.
Decerto que a crise permanece. Como outrora, no processo tran-
sicional da oralidade para escritura, vislumbramos uma nova fragmen-
tação hermenêutica - aliás, possível somente quando há mediação que
permita pulverização. Em nosso caso, a nova mediação histórica inicia
com a prensa de Gutenberg e a ‘anarquia’ interpretativa dos textos bíbli-
cos inaugurada por Martinho Lutero.47
A tese de Saldanha, que acompanhamos, é que todo o processo
secularizador altera a percepção do tempo e da história, propiciando,
ainda um contexto de mudanças nas formas políticas e no olhar do ho-
mem sobre elas:

Todas essas mudanças de perspectiva (e as revoluções são sem-


pre inversões de perspectivas) levaram o pensamento político
liberal (democrática, para-democrático, racional-secularizante)
a uma atitude de constante debate, um interminável debate
que retorna aos problemas básicos e reexamina conclusões. Em
vez das tranqüilas Sumas elaboradas para glorificação de Deus,
o pensamento moderno inventa formas, perde-se a cada passo,
retorna e recomeça.48

Nessa “algazarra de teorias”49 - perdidas, consideradas ilegíti-


mas, esquecidas as referências transcendentais -, não pode a modernida-
de deixar-se ficar na passagem absoluta que o tempo profano alimenta.

deríamos dizer analogamente que os tempos históricos se interpelam, se exigem. Questão que será
retomada posteriormente. V. HEIDEGGER, O que é isto- a Filosofia, cit., p. 26.
46
SALDANHA, Secularização e Democracia, cit., p. 199.
47
Lembremos os princípios gerais da reforma que indicam esse movimento: “1- A autoridade da
Bíblia em questões de fé. [...] 2. A salvação do homem como dom de Deus. [...] 3. A gratuidade da
salvação apreendida pela fé.[...] 4. A atualidade do testemunho interior do Espírito Santo.” BOIS-
SET, Jean. História do Protestantismo. Trad. Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1971. p. 10-14.
48
SALDANHA, Secularização e Democracia, cit., p. 109.
CUNHA, Euclides. Carta ao digno amº. dr. Oliveira Lima, 5 de maio de 1909. GALVÃO, Walnice
49

Nogueira. Correspondência de Euclides da Cunha. São Paulo: EDUSP, 1997. p. 405.


José de Magalhães Campos Ambrósio • 25

Por isso, também, a época moderna cria suas estratégias de barragem ou


evasão do tempo,50 que já relacionaremos no que toca as formas jurídi-
co-políticas.
Podemos observar ao menos duas dessas posturas. A primeira
delas, num nível de consciência empírica a que aludimos anteriormente,
o homem cria outras mitologias para si (lembremos do ens realissimum
de Voegelin).51 Paolo Grossi fala de Mitologias Jurídicas da Modernidade
em que o Estado e a Legislação adquirem forças divinas e irrefutáveis:
o monoteísmo é substituído pelo monismo estatal.52 Adela Cortina
mostra como é cheia de paralelismos a ideia de contrato em contraste
com o conceito bíblico de aliança: ambos denotam o ponto de partida de
um tipo de sociedade, seja ela a judaica (Velha Aliança), a cristã (Nova
Aliança) ou a moderna (Contrato).53
As diversas formalizações - da língua, da família, das instituições
- são estratégias, por vezes, inconscientes, que “não somente se furtam
ao tempo, mas ainda se voltam e se organizam contra ele, assegurando
outros tantos elementos de permanência e coesão, sem os quais a huma-
nidade ficaria desprotegida e nele se desintegraria.”54
Num outro nível, o da consciência histórico-filósofica, tomando
pé da gravidade que o novo momento apresenta, os filósofos se colocam
em marcha.55 Homens conscientes do seu tempo e de sua aceleração - fi-
lhos do seu tempo56 - esforçam-se por captar como o novo tempo-criança
joga, e, nessa compreensão, buscam o equilíbrio na mediação do logos;

50
DOMINGUES, O Fio e a Trama; cit., p. 63.
51
Assim como vale lembrar das reações das mitologias à modernização/secularização/desmagifi-
cação do mundo. Gestado, vagarosamente, ao longo a história moderna, Gilles Kepel defende a
existência de uma Revanche de Deus na contemporaneidade: “Un nuevo discurso religioso toma
forma, no para adaptarse a los valores seculares sino para devolver el fundamento sacro a la or-
ganización de la sociedad, cambiándola si es necesario. Este discurso, a través de sus múltiples
expresiones, propone la superación de una modernidad fallida a la que atribuye los fracasos y las
frustraciones provenientes del alejamiento de Dios. Ya no se trata del aggiornamento sino de una
‘segunda evangelización de Europa’. KEPEL, Gilles. La revancha de Dios. Trad. Marcelo Cohen. Ma-
drid: Anaya & Mario Muchnik, 1995. p. 12-13.
52
GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis: Boi-
teux, 2006.
53
CORTINA, Adela. Aliança e Contrato; política, ética e religião. Trad. Silvana Cobucci Leite. São
Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 15-20.
54
DOMINGUES, O Fio e a Trama; cit., p. 21.
55
GRAMMONT, Guiomar. Prefácio. In: REIS, José Carlos Reis. História da Consciência Histórica Oci-
dental contemporânea; Hegel, Nietzsche, Ricoeur. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 9.
HEGEL, G.W.F. Filosofia da História. 2. ed. trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. Brasília: Editora
56

UNB, 1999. p. 50.


26 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

assim, espera-se desaceleração, fôlego (epoché) para a projeção, para o


redesenho, para a árdua tarefa de anunciar o mundo em marcos indubi-
tavelmente humanos:

A consciência da cultura como dimensão específica do mundo


humano, distinta da natureza, poderia talvez fundar o esforço
pela limitação da técnica. A técnica como produto da cultura,
mas também como exploração, sempre utilitária e jamais críti-
ca, dos poderes da natureza. E contudo, quem sabe, os emara-
nhados da técnica, onde se aninham ou se alimentam grandes
ousadias, poderão ensejar o reencontro do homem com a trans-
cendência.57

Não é insignificante que Hegel tenha colocado a Filosofia como


momento culminante do Espírito Absoluto, ultrapassando-conservando
a Arte - intuição do Absoluto - e a Religião - representação do Absoluto. O
projeto filosófico hegeliano é o saber do Absoluto no qual a fragmentação
empírica é re-unida, num meio-enlace de um tempo e de mundo que
sabe-de-si-mesmo no pensamento.58
§ 9 - [Assimetria II] E por que iniciar, então, do moderno? Pela
diferença, pela aceleração. Pela resposta que estamos dando à crise per-
manente em que nos colocamos e escolhemos diariamente nos reter.
Permanecemos, ainda, confusos. A despeito dos esforços para
colocar ordem no tempo e na história, o fluxo intenso da modernida-
de ilude: fomos até a pós-modernidade e desistimos dela;59 fizemos um
projeto de ilustração que corre o risco de converter-se em seu contrário,60
julgamos que a razão curaria o mundo, mas, exatamente por conta des-
ta, o mundo pode ter seu fim; repetimos os gregos, romanos e cristãos,
com reserva de independência. Por quê?
Porque ainda insistimos na luta pelo espírito moderno, por mais
frágil que se apresente, por mais dúvidas de quão moderno ele seja. In-
clusive porque o projeto moderno de um Estado de Direito, em seus
vários desdobramentos, continua se aprofundando e exigindo compro-

57
SALDANHA, Secularização e Democracia, cit., p. 202.
58
HEGEL, G.W.F. Enciclópédia das Ciências Filosóficas; vol. III Filosofia do Espírito. Trad. Paulo Me-
neses. São Paulo: Loyola, 1995. p. 341-364.
Para uma revisão da Pós-Modernidade, Vide: MAYOS, Gonçal. Post-il·lustració o autocrítica de la
59

modernitat?. In: Postmodernitat. Barcelona: La Busca Edicions, Liceu Joan Maragall, 1998. p. 51-74.
60
A hiperinformatização e o excesso cognitivo podem traduzir-se em uma Sociedade que possui
acesso, mas não comunga do conhecimento. BREY, Antoni; MAYOS, Gonçal. La Sociedad de la Igno-
rancia. Barcelona: Ediciones Península, 2011.
José de Magalhães Campos Ambrósio • 27

missos do mais árduos; “Estado Democrático é Estado de Direito” lembra


José Luiz Borges Horta, em sua História do Estado de Direito.61

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61
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28 • Capítulo 1 - Modernidade e Filosofia da História

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CAPÍTULO 2

História e política renascentista:


Maquiavel entre a República e o Principado

Antônio Alves Mendonça Junior1


Raul Salvador Blasi Veyl2

Introdução

O objetivo do presente trabalho é analisar o pensamento político


de Maquiavel, especialmente no que tange à diferenciação, contrapo-
sição e possível predileção de duas formas de governo de central im-
portância para o Renascimento e para a Modernidade, a república e o
principado. Para isso, será construído um sólido panorama histórico da
época e da Florença renascentista, assim como das principais formas de
pensar e de se fazer filosofia que estiveram presentes no caminho tri-
lhado por Maquiavel. Tentar-se-á, dessa maneira, evidenciar as aproxi-
mações e distanciamentos da nova ordem pós-Medievo com aquela for-
malmente deixada para trás – ainda que materialmente se faça presente
até a contemporaneidade. Explorar-se-á, também, os principais legados
deixados pelo pensamento político anteriormente desenvolvido, anali-
sando em que medida conseguem ou não disciplinar o efervescer de
novos horizontes na realidade jurídico-política renascentista.
Assim, através de uma abordagem dialética e dialógica, edificar-
-se-á não apenas um Maquiavel filósofo, mas também, cidadão e, pos-
teriormente, Secretário da Segunda Chancelaria de Florença, atributos
que não só dizem muito sobre as condições que o fizeram escrever, mas
também do teor e das interpretações que decorreram de seus escritos.
Vê-se, então, um filósofo intrinsecamente relacionado com os problemas

1
Graduado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais em 2009. Pós-Graduado em Di-
reito e Processo do Trabalho pela Universidade Uniderp /RJ em 2012. Graduando em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais.
² Graduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista de iniciação científica
PIBIC/CNPq sob orientação da Prof. Dra. Karine Salgado.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 31

apresentados por uma Florença pioneira, ainda que absolutamente ins-


tável, o que, como veremos, é fator determinante nos rumos que o autor
e que a história trilham.
Faz-se mister, ainda, destacar a pertinência do trabalho, que,
mesmo com as inúmeras e aclamadas contribuições já existentes acerca
da temática, apresenta-se como uma síntese crítica da comunhão dos
mais diversos influxos que recebe Maquiavel – e tantos outros autores
do Renascimento – com sua obra e com os estudos já consagrados de
Hans Baron, John Pocok, Paul Kriesteller, John Najemy, Helton Adverse,
Newton Bignotto e tantos outros.
O presente trabalho não possui a pretensão, vale ressaltar, de en-
contrar uma resposta definitiva para os impasses no que concerne às tra-
dições republicanas ou principescas de leitura de Maquiavel, mas reto-
mar e ampliar esse debate, abarcando uma perspectiva histórica sensível
às nuances da época e, consequentemente, às oscilações do pensamento
do filósofo florentino que serão mais tarde trabalhadas.
Para endossar o tratamento que damos ao desenvolvimento do
presente trabalho e da pertinência do mesmo, trazemos os ensinamentos
de Brian O’Kelly, que afirma que “Dentre as parcialidades que podem
nos cegar quanto a verdade sobre o passado, a mais perversa e, talvez a
mais insidiosa é precisamente o desejo pela a absoluta clareza da visão,
pela simplicidade, pela definição completa” (tradução nossa).3

1. Contexto histórico

1.1 Baixa Idade Média, secularização do Estado, e a formação do “novo


homem”

Aliado ao complexo pensamento político de Maquiavel está o


contexto histórico do Renascimento, que, a despeito de parecer negar,
em grande parte, as heranças medievais, encontra suas raízes e deve
grande parte do amadurecimento necessário às reflexões desenvolvidas,
a esse período.
Pode-se afirmar que a Idade Média é o momento de reflexão para
a interioridade, a qual, por mais que ainda estivesse ligada a Deus, era

³ “Among the partialities that can blind us to truth about the past, the most perverse and perhaps
the most insidious is precisely the desire for absolute clarity of vision, for simplicity, for complete
definition”. O’KELLY, Brian. Introduction In BISH, Douglas et al. The Renaissance Image of Man and
the World. Columbus: Ohio State University Press, 1966. p. 7.
32 • Capítulo 2 - História e política renascentista

uma construção do homem enquanto tal, o que tornou possível o surgi-


mento de uma filosofia que também considerava a subjetividade indivi-
dual, a introspecção e o modo com o qual o homem percebia a realidade
a sua volta4. Cria-se um arcabouço acerca do individualismo que será
reaproveitado ao longo de toda a filosofia renascentista e, posteriormen-
te, moderna. Dessa forma, o retorno ao indivíduo, à interioridade e à
subjetividade, não é anulado com o fim da Idade Média ou com o prota-
gonismo que ganha a vida terrena, mas o mesmo se adéqua aos ensejos
históricos e a essa mudança de perspectiva que tem seu início no fim da
Idade Média.
Pode-se afirmar, ainda, que o retorno à interioridade da Idade
Média muito deve à escolástica, desenvolvida, principalmente, com
Santo Tomás de Aquino. Apadrinhado pelo desenvolvimento das uni-
versidades e com o avanço dos influxos da Igreja nas mais diversas for-
mas de atuação do ser humano, esse movimento é um reflexo da visão
da sociedade através das lentes escolásticas. Acerca da difícil e plural
definição da escolástica, assevera Rui Afonso da Costa Nunes

Quando se considera o conjunto de doutrinas que o termo es-


colástica abrange e quando se observa que é a filosofia, a dis-
ciplina que exprime os seus aspectos mais salientes, pode afir-
mar-se com Grabmann que a escolástica é um modo de pensar
e um sistema de concepções em que se valoriza a vida terrena
como dom admirável de que usufruímos para o nosso bem e
para o nosso desenvolvimento pessoal e em que se admite que
o ser do homem não se esgota no breve tempo da sua existên-
cia terrena, uma vez que o homem tem um fim supraterreno
e eterno e o destino de uma vida interminável, sobre poder
crescer ainda neste mundo na vida sobrenatural que ele obtém
através do batismo. Portanto, num primeiro momento, casam-
-se na escolástica a concepção filosófica da vida terrena, da sua
transcendência às limitações deste mundo e a mundivivência
cristã em que a revelação de Cristo assegura que a vida con-
tinua além da morte, que um destino feliz ou infeliz aguarda
o homem conforme o seu modo de viver na terra, e que neste
mundo já se é possível ao homem nascer para a vida sobrenatu-
ral e nela crescer até que possa, após a morte, fixar num estado
definitivo de completa beatitude ou de felicidade eterna5

⁴ Notas de aula de Temas de Filosofia do Estado - (Re)leituras do Político, da pólis à despolitização


(II), oferecida pelos Professores Doutores José Luiz Borges Horta e Karine Salgado no Programa de
Pós-Graduação da FDCEUFMG no segundo semestre de 2015.
⁵ NUNES, Rui Afonso da Costa. História da Educação na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1979. p. 244
e 245.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 33

Percebe-se, assim, que a interioridade estanca suas bases na for-


ma escolástica de ver o mundo. Através da preocupação com as ações
humanas na Terra, com a preponderância da vida contemplativa e com a
preparação para a existência supraterrena, o homem é colocado em evi-
dência, ainda que como um meio para que se alcance a felicidade eterna.
Nas palavras de Terezinha Oliveira, “É preciso, portanto, salien-
tar que nas duas situações em que os mestres escolásticos ensinavam [na
doutrinação e nos ensinamentos nos mosteiros e universidades], tinham
a pessoa na sua totalidade, pois não perdiam de vista o homem nas suas
duas dimensões: a material e a mental.”6
Os homens saem da Idade Média, então, com uma consciência
muito maior acerca da interioridade e de sua subjetividade, ao mesmo
tempo em que se veem cada vez mais presos em dogmas que não mais
correspondem à realidade e na insuficiência das respostas às questões
com as quais se deparam. A coincidência desses dois elementos fez com
que os homens desenvolvessem certo anseio à liberdade e autoconfian-
ça, já que passaram a se ver como sujeitos de sua própria realidade, não
mais tão vinculados à providência divina ou despreocupados com as
questões mundanas, dada a transitoriedade da vida terrena. Cada vez
mais a vida ativa encontra amparo na realidade e nos ensejos do homem
pós-Idade Média, enquanto a contemplação adquire conotação relativa-
mente negativa já que se associava à manutenção da doutrinação cató-
lica. Assim caminhou em direção ao Renascimento um “novo homem”7
mais preocupado com sua liberdade e consciente de seu poder subjetivo
e exterior.

A independência do pensamento que já começa a ensaiar seus


primeiros voos vai de encontro a este mesmo pensamento que
não se vê e não se acredita fora da fé e, por consequência fora
de seus supostos interesses. É o conflito que vive o poder e
que vive o homem, dilema doloroso, mas essencial, pois põe
o homem no epicentro da decisão e da transformação, chama
para ele a responsabilidade e, com isso, traz para si e para sua
realidade mundana todos os olhares da reflexão, alimentando
o nascimento de um ‘novo homem’, que nem tanto se difere
do medieval, mas que é visto sob uma ótica completamente
diversa, desvencilhada dos dogmas cristãos que o construíram

⁶ OLIVEIRA, Terezinha. A Escolástica como Filosofia e Método de Ensino na Universidade Medie-


val: uma reflexão sobre o Mestre Tomás de Aquino. Notandum, n. 32, CEMOrOC-Feusp / IJI-Univer-
sidade do Porto, 2013. p. 42.
⁷ SALGADO, Karine. A Filosofia da Dignidade Humana: Por que a essência não chegou ao conceito?
Belo Horizonte: Mandamentos, 2009
34 • Capítulo 2 - História e política renascentista

como ele é.8

Observa-se, nesse sentido, para além do amadurecimento do Ho-


mem para lidar com as novas questões que surgem com os fins da Idade
Média, o desprendimento desse Homem e do pensamento do mesmo
frente às amarras – cristãs ou “temporais” – que o prendiam até então,
reflexo claro desse “giro” sofrido pelo homem e pela realidade política
ou cívica que permeava a Idade Média e que começa a ruir com os pre-
núncios do Renascimento. Não basta, porém, como nos ensina Newton
Bignotto, reduzir as alterações ao campo da filosofia política ou da vida
civil; o movimento de redescoberta do homem é muito mais amplo e
recai sobre as mais diversas facetas da vida do Baixo Medievo e do Re-
nascimento.

A menção dos dois grandes eixos de transformação da antro-


pologia filosófica no Renascimento [os antigos modelos de vida
ideal e a ideia do homem] não significa que basta nos referir a
eles para resumir o que ocorreu num período de grande plas-
ticidade das ideias e intensa criatividade. Um estudo mais am-
plo do período mostraria um quadro rico, que vai das obras
de Alberti, nas quais é celebrado o homem universal, a uma
nova psicologia, que surge com a tradução das obras de Pla-
tão, na segunda metade do século XV em Florença, passando
pelo amadurecimento de uma cultura filosófica toda centrada
no homem.9

O desenvolvimento econômico, a valorização da subjetividade e,


principalmente, o avanço científico, observados com mais força no Bai-
xo Medievo e, mais especificamente, com um movimento denominado
Humanismo – ao qual, retornaremos mais adiante –, também contribuí-
ram para o declínio constante que sofre o pensamento medieval cristão
e para o emergir do novo homem.

O avanço científico, já mencionado, abre novas perspectivas


acima de tudo na esfera do pensar. A autoconfiança à qual o
humanismo do século XII conduz, desperta a capacidade críti-
ca, dá asas à reflexão e ao questionamento, aponta incoerências
de tradicionais posições e cobra definições. O homem começa
a se libertar do manto de convicções que amalgamaram toda

⁸ SALGADO. A Filosofia da Dignidade Humana..., cit., p. 142.


⁹ BIGNOTTO, Newton. Antropologia Negativa de Maquiavel. ANALYTICA, Rio de Janeiro, v. 12,
n. 2, 2008. p. 78.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 35

a Idade Média mediante descobertas proporcionadas pelo co-


nhecimento. A razão que sempre foi trabalhado com subservi-
ência à fé e que não tem por exigência o seu rompimento com
ela, encontra-se diante dela, mas, neste momento, oposta a ela
e ensaia a sua cisão que é ainda inefável, embora já interponha
seus reflexos perante a Igreja e encontre sua válvula de escape
na política. 10

Analisada, ainda que rapidamente, a contextualização da nova


subjetividade formada a partir do Baixo Medievo, passar-se-á aos influ-
xos externos que influenciaram no novo desenho da realidade, a saber:
a instabilidade da Igreja Católica – que, indissociavelmente, está ligada
à formação do “novo homem” – e as consequências dessa instabilidade
religiosa na estruturação das preocupações políticas do Renascimento,
as quais inegavelmente deixam sua marca na obra de Maquiavel.
A disputa entre o poder temporal e o poder espiritual foi um dos
grandes marcos da fragilidade da Igreja Católica durante o Baixo Medie-
vo, e pode ser vista como um reflexo dos rumos que a história tomava
com o transcorrer do tempo. Nessa linha, discorre Wolkmer:

Decorrente dos confrontos ente o Papa (João XXII) e o Impera-


dor (Luís, da Baviera), e da gradual autonomia do poder tem-
poral sobre o espiritual, emerge o processo de secularização do
Estado através das ideias políticas de alguns autores reformis-
tas e antipapistas, como Dante Alighieri, Marsílio de Pádua e
do próprio Guilherme de Occam” 11

Ademais, além dos problemas externos que rodeavam e ameaça-


vam a manutenção do poder clerical, a Igreja Católica, ao longo do fim
da Idade Média, passou por inúmeras desavenças internas que contri-
buíram para que sua instabilidade se agravasse ainda mais. A querela
do Papa João XXII e Bonifácio VIII com os reis Luís Da Baviera e Felipe,
o Belo, respectivamente, assim como a suas disputas com os Francisca-
nos, evidencia como, gradativamente, o ideal católico ia perdendo força
à medida em que sofria ataques na busca pela tomada de poder12. Essa
crise interna e externa da Igreja Católica enquanto instituição, aliada aos

10
SALGADO. A Filosofia da Dignidade Humana..., cit., p. 116.
WOLKMER, Antonio Carlos. O Pensamento Político Medieval: Santo Agostinho e São Tomás de
11

Aquino. Revista Crítica Jurídica, Coyoacán, México, n. 19, 2001. p 26.


12
Cf AZNAR, Bernardo Bayona. El Origen del Estado laico desde la Edad Media. Madrid: Grupo Anaya.
2009. pp. 21 e ss.
36 • Capítulo 2 - História e política renascentista

avanços observados no Baixo Medievo, deu abertura aos questionamen-


tos relacionados à dominação das cidades e abriu caminho a uma frente
de resistência que, embora ainda em formação, já desenhava uma tercei-
ra via – a via da independência – com relação à disputa entre os Reis e
a Igreja.
Tal como apresenta Quentin Skinner13, diversos autores do Bai-
xo Medievo, principalmente de origem italiana – lidando com esse con-
texto de instabilidade que enfrentava o Regnum Italicum – contribuíram
para a consolidação do pensamento que futuramente seria sustentáculo
principal da filosofia juspolítica renascentista. Percebe-se, assim, que o
pensamento já na baixa Idade Média, com Marsílio de Pádua, Dante e
Compagni caminha a passos largos para o movimento de busca por al-
ternativas a esse lapso de representatividade, que tem seu foco tanto na
nova concepção de homem, quanto na crise gerada pela disputa entre o
poder temporal e o espiritual.
Nesse cenário de instabilidade política, em que há, nas palavras
de Helton Adverse, um “vácuo de poder”, as cidades-Estados italianas
passam a ver a necessidade de fundamentar sua real autonomia política
frente aos poderes externos da Igreja Católica e do Sacro Império Ro-
mano-Germânico.14 Tal argumento é endossado por Newton Bignotto,
trazendo a questão do desvio do olhar para a cidade e para os proble-
mas internos, quando leciona que, “A preocupação com as instituições
internas ganha destaque num contexto em que as forças universais – o
império e a Igreja – não exercem mais um controle efetivo das cidades
italianas. ”15. Mostra, dessa maneira, que, com a disputa ferrenha pelo
poder, os dois maiores influentes da época perdem o controle e enfra-
quecem o domínio, embora ainda presente, das cidades italianas.
Surge, assim, como resposta a esse vácuo de poder e com um
embasamento pautado no retorno dos estudos à Antiguidade, uma de-
fesa republicana do Estado e do Poder, pautada, principalmente, em
três principais eixos, quais sejam: liberdade, igualdade e participação,
insistindo, não apenas na conceituação e diferenciação dos três, mas na

13
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Le-
tras, 1999. pp. 34 e ss.
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana. In BIGNOTTO, Newton. Matrizes do Republicanismo. Belo
14

Horizonte: Editora UFMG, 2013.P. 54


15
BIGNOTTO, Newton. O Humanismo e a Linguagem Política do Renascimento: o uso das Pratiche
como fonte para o estudo da formação do pensamento político moderno. CADERNO CRH, Salva-
dor, v. 25, n. 02, 2012, p. 122.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 37

relação íntima e irredutível que guardam uns com os outros.16


Assim, a correlação da interioridade com a abertura de horizon-
tes, que o retorno às questões temporais despertou no homem do fim do
Medievo, começa a traçar os rumos da filosofia que será observada no
início do Renascimento.
Veremos, a seguir, como consequência desse movimento de li-
berdade, o surgimento do Humanismo Cívico, uma das principais fon-
tes nas quais beberam os pensadores do republicanismo renascentista e
que marca, incisivamente, o pensamento que efervesce em Florença e,
consequentemente, na obra e nas posições adotadas por Maquiavel.

1.2 Florença renascentista e o humanismo

Indissociável das mudanças pelas quais passou o homem renas-


centista e ocupando uma dupla posição de motivador e consequência
dessa nova formação, está um dos mais importantes e plurais movimen-
tos dos primórdios da Modernidade, iniciado ainda no século XIV com
Petrarca, o Humanismo17. Conglomerando revoluções nas mais diversas
áreas do conhecimento e da vida civil, o termo, segundo Paul Kriesteller,
abarca um ciclo de estudos que incluía gramática, retórica, poesia, his-
tória e filosofia moral, envolvendo o estudo de autores da Antiguidade
clássica, seja grega ou latina.18
A constante busca, principalmente nas bibliotecas monásticas,
pelas obras da Antiguidade, trouxe, nas palavras de Skinner, um novo
senso de distanciamento histórico19 dos estudiosos do Baixo Medievo e
do Renascimento com relação à realidade greco-romana20. Esse despren-

16
BIGNOTTO, Newton. O Humanismo e a Linguagem Política do Renascimento: o uso das Pratiche
como fonte para o estudo da formação do pensamento político moderno..., cit., p. 123.
17
Faz-se mister ressaltar, segundo Paul Kristeller que o Renascimento não concebia o Humanismo
necessariamente nesse termo. Segundo o autor, os documentos que remontam ao período trazem
os termos “humanist” e “humanities” mas não o próprio “humanism”, sendo o mesmo uma herança
recebida dos comentadores e estudiosos que, mais tarde se dedicaram a sistematizar os influxos da
época, tal como Hans Baron e John Najemy. KRIESTELLER, Paul. Philosophy and Humanism in Re-
naissance Perspective. In BUSH, Douglas et al. The Renaissance Image of Man and the World. Columbus:
Ohio State University Press. 1966. p. 30 e 31.
18
KRIESTELLER, Paul. Philosophy and Humanism in Renaissance Perspective…, cit., pp. 30 e 31.
19
Esse senso, segundo Panofsky, não foi antes verificado em razão do que chamou de “princípio da
disjunção”, que consiste, nas palavras de Skinner, em “uma disjunção entre o emprego das formas
clássicas e a insistência em que elas portem mensagens de significado para o tempo presente”, o
que se verificava, principalmente, na arquitetura e nas artes do período. SKINNER, Quentin. As
Fundações do Pensamento Político Moderno..., cit., p. 106.
20
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno..., cit., p. 107.
38 • Capítulo 2 - História e política renascentista

dimento – não enquanto esquecimento, mas como consciência histórica


da distância e das condições que separavam as duas civilizações – foi de
suma importância em todos os aspectos da vida renascentista e para o
modo como o Humanismo passou a olhar o passado. Já não havia, aqui,
os olhos medievais de continuidade e de pertencimento àquela reali-
dade clássica, endossada principalmente na Itália, onde o código legal
de Justiniano vigorava, ainda que no imaginário21, e a grande maioria
das cidades ainda estava nos mesmos locais da época romana. Assim,
a chave de leitura Humanista dos temas e dos textos clássicos passou a
direcionar-se no sentido de uma reconstrução e apreciação nos termos
próprios do Renascimento.22
Essa nova forma de apreciar a Antiguidade trouxe consigo um
leque de perspectivas para o enfrentamento dos problemas da época,
além de “redespertar” nos pensadores – principalmente nos leitores de
Cícero – o interesse para a chamada vida activa, a qual, devido à doutri-
nação católica durante todo o Medievo, estava subordinada à vida con-
templativa. Essa gradual inversão de valores e a necessidade de se pensar
novas saídas para a crise política que se instaurava em grande parte da
Itália foram parte de um movimento de retomada do homem para o
vivere civille.
Em um contexto em que a máquina pública se via cada vez mais
inchada, em que parte substancial da filosofia da época era feita para
fora dos muros das Universidades23 - uma vez que os pensadores da

21
Nota-se, que o Corpus Iuris Civilis só foi “redescoberto” nos fins da Idade Média. Esse redespertar
das normas jurídicas de Roma, ainda que tivesse sido um marco para o Renascimento, não atingia
a vida civil do modo como o fez ainda na Antiguidade. Ainda assim, vale ressaltar, a distância
histórica entre os dois períodos também se traduziu em uma distância intelectual sobre o modo e
a aplicabilidade do estudo das normas do Corpus Iuris Civilis, uma vez que durante os fins do Me-
dievo e início do Renascimento, o mesmo limitou-se à academia. O estudo, de início, foi meramente
historiográfico e, só depois, com os comentadores, nos séculos XIV e XV é que o corpo jurídico de
Roma passa a se apegar à vida mundana, buscando, mesmo que minimamente, solucionar respos-
tas colocadas à sociedade. Cf HORTA, José Luiz Borges; SALGADO, Karine. Recepção Fundante do
Direito Romano na Cultura Ocidental. In: XX Encontro Nacional do Conpedi, 2011. Belo Horizonte,
Anais, p. 10141-10157; SALGADO, Karine. O Direito Tardo Medieval: entre o ius commune e o ius
proprium. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 56, p. 243-264, jan./jun. 2010;
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 3. ed. Trad A. M. Hespanha. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2004.
22
SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno..., cit., p. 107.
23
Kriesteller leciona a existência de duas formas concorrentes do fazer e do pensar filosóficos à
época, o primeiro, mais voltado à escolástica aristotélica e ainda muito trabalhada dentro das Uni-
versidades – as quais ainda estavam subordinadas à Igreja Católica – o segundo, já absorvendo os
ideais do Humanismo e das leituras antigas sobre a vida ativa, direcionado para o fazer político e
para as questões práticas da vida civil. Segundo o autor: “To sum up, the conception and place of
philosophy in the Renaissance are characterized by two competing intellectual traditions, human-
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 39

época faziam parte da realidade civil de suas cidades – e em que ain-


da era possível observar a presença da retórica no modus operandi do
pensar24, surge uma ramificação do Humanismo do século XIV, o cha-
mado Humanismo Cívico. Esse viés caracterizou-se “(...) por uma rup-
tura com o humanismo retórico e supostamente apolítico do século XIV,
pela gênese delimitada historicamente na guerra contra Milão, por uma
identificação total entre os textos humanistas e a realidade republicana
florentina.”25. Inicia-se, então, um novo movimento ainda baseado nas
premissas do Humanismo “clássico”, mas que dá um novo foco para os
estudos da época.

Como conclusão desse primeiro movimento, é possível afirmar


que o humanismo cívico forjou as bases de uma concepção de
política baseada na importância da ação humana na construção
das cidades, que deixaram de ser o espaço de espera pelo final
dos tempos. Ao ressaltar o caráter ativo da relação dos homens
com seu meio, os humanistas apontaram para o lugar de uma
política cujo centro se deslocou da eternidade das formas trans-
cendentes para a imanência das cidades.26

Não se pode separar do surgimento do Humanismo Cívico, que,


segundo Kriesteller desabrochou inicialmente em Florença no século
XV- com Salutati, Bruni, Alberti e Palmieri - para depois tomar grande
parte da Itália27, a realidade sociopolítica da cidade, que, sob a leitura
de Gabriel Pancera acerca da obra de Maquiavel, desde 1393 enfrentava
uma profunda crise política.28

ism and Aristotelian scholasticism, which partly overlap and quarrel, but largely coexist in a kind
of division of labor. If we want to use contemporary analogies, we might say that there was a phi-
losophy oriented toward the sciences, and another that was oriented toward the humanities, and
actually the scholastics were philosophers and scientists, and the humanists were philosophers and
scholars.” KRIESTELLER, Paul. Philosophy and Humanism in Renaissance Perspective… cit., p. 34 e 35.
24
Tal como elucida John Pocock, fazendo-se valer do pensamento de Jerrold Seigel: “Jerrold Seigel
has argued that the origins of the humanists’ concern with the vita activa lie in their professional
and intellectual commitments rather than their civic sensibilities. He points out that humanists
were by their social function affiliated with the art of rhetoric, an intellectual pursuit fully as im-
portant in Italian culture as philosophy and always seen in the sharpest contrast with it.” POCOCK.
John Greville Agard. The Machiavellian moment. Princeton: Princeton University Press, 1975. p. 58.
25
TEIXEIRA, Felipe Charbel. A República bem ordenada: Francesco Guicciardini e a arte do “bom
governo”. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Abril de 2008. Dissertação.
26
BIGNOTTO, Newton. O Humanismo e a Linguagem Política do Renascimento: o uso das Pratiche
como fonte para o estudo da formação do pensamento político moderno..., cit., p. 124.
27
KRIESTELLER, Paul. Philosophy and Humanism in Renaissance Perspective..., cit., p. 40.
28
PANCERA, Carlo Gabriel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2010,
40 • Capítulo 2 - História e política renascentista

A substituição de um governo de corporações, com uma larga


base popular e que convidava os cidadãos a participarem da vida políti-
ca29, pelo governo dos Albizzi, fez com que houvesse um paulatino afas-
tamento do corpo social em relação à política. A mudança substancial
se deu com o aparelhamento das principais instituições republicanas da
época, como as accoppiatorie as balías, o que propiciava, assim, o surgi-
mento das facções e o aumento substancial na instabilidade política – já
que era comum a associação dessas facções com outros reis para a tenta-
tiva da tomada de poder.30
Com os Médici, que sucederam os Albizzi no poder de Florença,
a utilização dos expedientes extraordinários existentes tornou-se ainda
mais presente. Nesse sentido, endossa Gabriel Pancera quando afirma
que a diferença entre os dois regimes “foi principalmente de grau”31 e
que, com a tentativa de institucionalizar as práticas e concentrar ain-
da mais o poder através de uma reforma política, os Médici seguiram
a enfrentar insatisfações populares e instabilidade política. O governo
Médici encontrou dificuldade em se manter e, com Piero Médici no po-
der – que não apresentava, para Maquiavel a virtú que dispunham seus
antecessores -, não resistiu à conjunção de insatisfações internas e pro-
blemas externos com o rei da França, abrindo espaço para o governo do
Frei de Savonarola. Mesmo buscando reverter as medidas autocráticas
tomadas pelos Médici e retornar ao antigo cenário político de participa-
ção popular, afim de enfraquecer as facções e trazer uma “pacificação
citadina”32, o Frei não obteve sucesso. Tal como afirma Gabriel Pancera,
“Faltava-lhe, segundo Maquiavel, um elemento republicano por exce-

p. 38.
29
“Isso porque, também vigorava em Florença um costume bastante difuso nas cidades medievais
italianas, segundo o qual ‘aquilo que concerne a todos os homens deve ser objeto de aprovação de
todos eles’ <quod omnes tangit ab ominibus comprobri debet>. Esta norma tinha origem no direito ro-
mano e constituía-se efetivamente numa instituição política que servia para os mais diversos níveis
da vida associativa do período. ” PANCERA, Carlo Gabriel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas..., cit.,
p. 41 e 42.
30
Não cabe, aqui, aprofundar as questões acerca das instituições da Florença renascentista, o que se
pretende é evidenciar como o aparelhamento das mesmas fez com que houvesse o esvaziamento do
debate político público e da participação popular de uma forma geral, trazendo à tona a figura das
facções, que na tentativa incessante de se fazerem ouvidos, influenciam exponencialmente na crise
conjuntural que enfrentava a cidade. Para uma maior profundidade na questão da política florenti-
na entre os séculos XIV, XV e XVI, Cf. PANCERA, Carlo Gabriel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas...,
cit.; LARIVAILLE, Paul. A Itália no tempo de Maquiavel: Florença, Roma. Trad. Jônatas Batista Neto.
São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
31
PANCERA, Carlo Gabriel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas..., cit., p. 51.
32
FUBINI, Ricardo Apud PANCERA, Carlo Gabriel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas..., cit., p. 55.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 41

lência, sem conseguir se estabelecer verdadeiramente um principado,


pois a ação dos homens poderosos não tinha um meio institucional ade-
quado que os reprimisse.”33
É nesse complexo, profundo e plural contexto em que escreve
Maquiavel. Desde a formação do “novo homem” na Baixa Idade Média,
até o caos que se instaura na Florença renascentista contemporânea a
seus escritos, todo esse emaranhado de influxos permeia, quer direta
ou indiretamente o pensamento do filósofo. Entretanto, o Humanismo
Cívico e o contexto florentino – enquanto influência mais fortemente
arraigada ao cotidiano de Maquiavel – despertaram no autor o ímpeto
pela tentativa de solucionar os problemas políticos de sua realidade.
Para além das reviravoltas políticas dos governos que protagonizavam
uma sucessão de fracassos na busca por uma coesão social e acúmulo
de poder, Maquiavel afirma que o principal problema de Florença, na
época, era a oscilação entre a república e o principado, e a incapacidade
da cidade de se posicionar enquanto uma ou outra forma de governo.
“As formas de governo intermediárias, ao contrário, têm duas vias,
podendo se transformar ou num principado ou numa república. Daí a
sua instabilidade. ”34. Cabia, assim, como central questão a ser analisada
pelo pensador em seu projeto político-filosófico, qual seria a melhor for-
ma de governo a ser seguida, república ou principado.
Deter-nos-emos, a seguir, nas respostas dadas por Maquiavel ao
longo de seus escritos e nas interpretações que decorreram das mesmas.
Através de uma construção dialética em que não se nega o contexto his-
tórico e tampouco a substancialidade da obra do florentino, apresen-
taremos tanto um Maquiavel republicano quanto um principesco, bem
como as nuances no pensamento do autor, afim de tentar enxergar com
mais clareza a sua verdadeira essência.

2. Maquiavel

No século XV, em meio à fragmentação territorial da penínsu-


la itálica, e principalmente à instabilidade das formas de governo das
comunas, dentre elas Florença, está presente um dos mais importantes
pensadores da filosofia renascentista, Nicolau Maquiavel35 (1469 a 1527),

33
PANCERA, Carlo Gabriel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas..., cit., p. 38.
34
MAQUIAVEL, Nicolau. Discurso sobe a Primeira Década de Títo Lívio. Apud PANCERA, Carlo Ga-
briel Kszan. Maquiavel entre Repúblicas... cit., p. 59.
35
Originário de uma família decadente, ainda que antiga, da região da Toscana, Nicolau Maquiavel
42 • Capítulo 2 - História e política renascentista

um florentino de família pobre, que alcançou, mais tarde, participação


nos negócios públicos, e se interessou pela história das ideias políticas e
pelo contexto político da época. Nas suas principais obras, entre as quais
cumpre citar O Príncipe (1513) e Discursos sobre a Primeira Década de Tito
Lívio (1531), abordou “o conhecimento das ações dos grandes homens”,36
que governaram desde importantes cidades, como Milão e Pisa, ao gran-
de Império Romano, buscando adotá-los como exemplo positivo ou ne-
gativo para a vida pública de sua época. Nesse sentido, Skinner afirma
que Maquiavel seleciona, entre outros, “Fernando de Aragão como um
governante da época que merece ser imitado.”37 Por outro lado, o autor
florentino, “inversamente, não esconde o desprezo que sente por Agá-
tocles da Sicília, a despeito de seus sucessos notáveis.”38 Partindo da ob-
servação histórica e de sua época, portanto, Maquiavel buscou compre-
ender o atribulado panorama político de Florença e encontrar respostas
a questões fundamentais, tais como o papel dos governantes e do povo
para o alcance da estabilidade de um governo.
Cabe ressaltar, aqui, nas palavras de Fichte, em seu “panfleto na-
cionalista” chamado Sobre Maquiavel como escritor:

Maquiavel repousa inteiro sobre a vida efetiva e a imagem dela,


a história; e tudo aquilo que o mais fino, o mais abrangente en-
tendimento e sabedoria prática da vida e do governo são capa-
zes de introduzir na história e, por isso mesmo, desentranhar
novamente dela, ele o executa exemplarmente e, como estamos
inclinados a acreditar, de maneira privilegiada em relação aos
outros escritores modernos de sua espécie.39

Frente a uma profícua análise histórica e frente ao questiona-

nasceu em Florença, Itália, no dia 3 de maio de 1469, e é reconhecido como fundador do pensa-
mento e da Ciência Política Moderna. Começou uma carreira política no governo da República de
Florença, após a queda do governo de Savonarolla. Durante a época, exerceu cargos governamen-
tais e desenvolveu missões diplomáticas na França, Santa Sé e Alemanha – atividades essas, funda-
mentais para a edificação de seu pensamento. A volta da família Médici ao poder, levou o filósofo
a se exilar por oito anos, durante os quais escreveu a maior parte de seus escritos. Maquiavel, mais
tarde, volta a Florença, após se entender com Lourenço de Médici, onde reside até sua morte em
1527. Dentre suas obras, destacam-se: Tratado da arte da guerra, Discurso sobre Tito Lívio, Histórias
florentinas.
36
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Roberto Grassi. 20. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1997. p. 3.
37
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p. 140.
38
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p. 140
39
SALATINI, Rafael; ROIO, Marcos Del (Orgs.). Reflexões sobre Maquiavel. São Paulo: Cultura Aca-
dêmica, 2014. p. 9.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 43

mento acerca do papel político do povo e dos governantes, duas cor-


rentes importantes se formaram, retirando dos principais escritos de
Maquiavel respostas diferentes acerca do papel que o autor atribui aos
governantes e ao povo na política. A primeira resposta dada aponta-
va para um povo com atribuições políticas significantes, que levariam a
conflitos, que, por sua vez, poderiam ser férteis para a manutenção de
um ambiente republicano. Já a segunda resposta consistiu na compre-
ensão de que o autor florentino centralizava nas mãos do príncipe todas
as atribuições políticas e que, por essa razão, o povo representaria mero
elemento passivo do principado. São exatamente essas duas posturas
que serão pormenorizadas a seguir, por meio da elucidação de alguns
dos principais pontos utilizados por diferentes autores para afirmar que
os textos de Maquiavel argumentam ora em favor do principado ora em
favor da república.

2.1 Virtú e fortuna

Sabe-se que Platão já se referira ao conceito de virtú em sua obra


ao eleger quatro virtudes principais, assim como Aristóteles já utilizara
a ideia de fortuna, “ao no livro II, de sua Física, reservar-lhe um lugar
entre as espécies de causalidade.” 40 Todavia, embora possam guardar
alguma similaridade com o contexto em que foram utilizados inicial-
mente, em especial fortuna, é certo que Maquiavel dá a esses dois concei-
tos sentidos originais.
Em relação à virtú, assim como Platão já elegera as virtudes
principais, quais sejam sabedoria, temperança, coragem e justiça, assim
também o fez o cristianismo, durante a Idade Média, afirmando que
piedade e fé eram virtudes indispensáveis àqueles que almejassem al-
cançar o céu, sempre se fazendo valer, é claro, da religião. Contudo, em
Maquiavel, a virtú assume sentido inovador consistindo não é um rol
de valores, mas “na capacidade de responder ao novo, de fazer frente
às intempéries; logo, de lidar com aquilo que é contingente.” 41 De fato,
parece ser essa a ideia de virtude com que o autor florentino intencionava
trabalhar. Note que ao afirmar que “para que o nosso livre arbítrio não
seja extinto, a sorte (...) nos deixa governar a metade ou quase” 42, Ma-
quiavel parece realmente fazer referência à importância de se encontrar
40
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.102.
41
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 104.
42
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe…, cit., p. 139 e 140.
44 • Capítulo 2 - História e política renascentista

direções em meio às surpresas fornecidas pelo elemento sorte. Enfim,


para Maquiavel, “o conceito de virtú serve dessa forma para indicar a
qualidade indispensável que capacita um príncipe a vencer as pedras
e setas enfurecidas da fortuna, e a aspirar assim à obtenção da honra,
glória e fama.” 43
Note-se, tal como fica explícito no excerto de Skinner citado aci-
ma, que os conceitos de virtú e fortuna estabelecessem entre si uma rela-
ção de complementação e de oposição. Por um lado, complementam-se
na medida em que a fortuna representa a ocasião em que a virtú tem
sua existência testada. Nesse sentido, afirma Adverse que a fortuna “é o
obstáculo com o qual a virtú tem de se haver; é a ocasião que, colocando a
qualidade do homem político à prova, lhe oferece a possibilidade de ex-
pressar seu verdadeiro valor”44. Por outro lado, os conceitos opõem-se
na medida em que, enquanto a virtú é a capacidade humana de prever
e responder racionalmente às intempéries da fortuna, esta contém em si
a noção da “limitação da capacidade de ação; a presença de uma força
atuante no curso dos acontecimentos que transcende a vontade huma-
na.” 45Acerca dessa complementariedade e indissociabilidade, trata John
Pocock

“Virtú e fortuna – para anglicizá-los – foram regularmente co-


locados como opostos (…) essa oposição foi frequentemente
expressa na imagem de uma relação sexual: uma inteligência
ativa masculina procurava dominar uma passiva e imprevisí-
vel inteligência feminina, a qual poderia submissamente pre-
miá-lo pela força ou vingativamente traí-lo por sua fraqueza.”
(tradução nossa)46

A fim de compreender com clareza a conceituação do par virtú e


fortuna, em Maquiavel, é válido recorrer à metáfora de um barco à vela,
navegando em alto mar. O alto mar, nessa metáfora, corresponderia à
fortuna, representando o contexto no qual o navegante teria condições de
demonstrar sua virtú. Isto é: a ocasião imprevisível em que o barqueiro

43
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p. 142.
44
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 104.
45
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.103.
46
“Virtue and fortune—to Anglicize them—were regularly paired as opposites (…) This opposition
was frequently expressed in the image of a sexual relation: a masculine active intelligence was
seeking to dominate a feminine passive unpredictability which would submissively reward him
for his strength or vindictively betray him for his weakness. POCOCK. John Greville Agard. The
Machiavellian moment…, cit., p. 37.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 45

demonstraria ser hábil ou não. Sendo assim, a virtú do navegante seria


exatamente a sua capacidade de aproveitar um mar calmo para se apro-
ximar de seu destino, ou à perspicácia de, diante de um mar furioso,
contornar as adversidades, sem perder de vista onde se pretende chegar.
Por fim, há ainda uma acepção dos conceitos de virtú e fortuna
que remonta à Antiguidade grega e romana, e que não é desconsiderada
por Maquiavel. É exatamente essa acepção que John Pocock parece que-
rer abordar ao afirmar que “fortuna possui tanto o significado de sorte
como de acaso: um homem pode ser sortudo (felix ou faustu) no sentido
de que há algo em sua personalidade que parece comandar circunstân-
cias a seu favor” (tradução nossa).47 Por essa lógica, fortuna e virtú seriam
características de alguma forma inerentes à personalidade do indivíduo.
Isto é: a história, embora contingente, tenderia a trabalhar em favor de
indivíduos virtuosos. Nota-se que Maquiavel não desconsidera essa
acepção do par virtú e fortuna48, uma vez que afirma que “não se vê no
presente em quem possa ela (Florença) confiar a não ser na vossa ilustre
casa, a qual é favorecida com sua virtude e fortuna.”49

2.2 Maquiavel e a República

Assim como há argumentos em favor da tese de que Maquia-


vel seria um adepto do regime monárquico, há outros que, em sentido
diferente, afirmam que há elementos suficientes na obra do autor para
situá-lo em meio aos republicanos. Dentre esses, destacam-se, no Brasil,
Newton Bignotto, autor da obra Maquiavel Republicano (1991), e Helton
Adverse, autor do capítulo II, A matriz italiana, do livro Matrizes do Re-
publicanismo (2013), e de tantos outros artigos sobre o mesmo assunto,
alguns dos quais amplamente citados neste trabalho.
O simples reconhecimento de que a obra de Maquiavel poderia
apresentar argumentos a favor da forma republicana de governo já re-
presentaria em si uma distinção frente a alguns dos autores já citados
neste artigo. Tal como trabalharemos mais à frente, autores como Mans-
field e Sfez não se mostravam muito dispostos a isso. Todavia, avançan-

47
“(…) fortuna had rather the meaning of luck than of chance: a man might be lucky (felix or faus-
tus) in the sense that there was something about his personality that seemed to command favorable
circumstances.” POCOCK. John Greville Agard. The Machiavellian moment…, cit., p. 37.
48
A esse respeito, cumpre, contudo, deixar claro que a acepção subjetiva do par virtú e fortuna não é
o que há de mais original em Maquiavel. Tal originalidade, sem nenhuma dúvida, se deve à acepção
objetiva desses conceitos desenvolvida pelo autor florentino.
49
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe…, op. cit., p. 144.
46 • Capítulo 2 - História e política renascentista

do ainda mais na importância de Maquiavel para o republicanismo, há


quem o insira nessa tradição não apenas como um reprodutor de ideias,
mas como um autêntico produtor. Esta é a posição de Helton Adverse,
que percebe, em O Príncipe e nos Discursos, elementos essenciais que
ajudaram a compor a matriz italiana do republicanismo, da qual muito
compartilhamos ainda hoje. A propósito desse assunto, afirma o próprio
autor:

O republicanismo renascentista ofereceu uma contribuição


original à história do pensamento republicano, constituindo
efetivamente uma de suas matrizes. A ideia de “matriz”, é im-
portante observar, evoca sua originalidade, implica um status
superior àquele de quem dispõem os momentos de passagem.
A matriz cria um espaço próprio diferente daquele da frontei-
ra.50

Dessa forma, sendo o republicanismo renascentista tão impor-


tante, e sendo Maquiavel, a um só tempo, parte integrante e, sensivel-
mente, inovadora desse movimento, não há como não passar pela apre-
sentação das ideias dos autores republicanos no Renascimento como um
todo para, somente então, chegarmos a elucidar as ideias próprias de
Maquiavel.

2.2.1 O republicanismo renascentista

Deve-se a Hans Baron, a partir de seu livro The Crisis of the Early
Italian Renaissance (1955), a mudança definitiva de enfoque nos estudos
das formas de governo durante o Renascimento. Até então, eram fre-
quentes as abordagens que consideravam as monarquias do período,
e desconsideravam a existência de outras organizações políticas. Ao
consolidar o termo humanismo cívico nos estudos políticos, Baron reco-
nheceu que o “Renascimento italiano apresentava um horizonte mais
amplo, abrigando forças, concepções e formas de organizações políticas
complexas.”51Na leitura de Adverse sobre a obra de Hans Baron, “não é
o individualismo o elemento de continuidade entre o Renascimento e a
modernidade, mas o republicanismo.”52
Sendo o humanismo cívico o elemento característico do republica-

50
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 51.
51
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 52.
52
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 53.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 47

nismo renascentista, afinal, em que ele consiste? Como já abordamos o


conceito ao reconstituir o contexto histórico, utilizá-lo-emos neste mo-
mento apenas como instrumento para delimitar o que há de continui-
dade e ruptura entre Maquiavel e os demais renascentistas. Tal como
visto, segundo Adverse, o humanismo cívico se caracterizaria por dois
elementos fundamentais.

O primeiro deles concerne a uma nova valorização da vida po-


lítica, isto é, da vita activa, sendo esta agora afirmada como su-
perior à vida teorética ou vita contemplativa; o segundo elemen-
to consiste na visão histórica, desenvolvida pelos humanistas
após 1400, que lhes oferece uma original chave de leitura para
os acontecimentos de seu próprio tempo e um material impor-
tante para a orientação do homem político.53

Ainda segundo Adverse54, desses dois elementos, apenas o pri-


meiro, de fato, introduz o problema do regime político e do republica-
nismo, enquanto o segundo acaba por evidenciar a presença da retórica
na cultura humanista. Sendo assim, tendo em vista nossa preocupação
com a forma de governo que seria mais adequada a partir das obras de
Maquiavel, cabe aqui desenvolver de que forma a exaltação da “vida
ativa” teria emoldurado e influenciado o republicanismo renascentista.
É sabido que o debate acerca da forma ideal de vida remonta à
Antiguidade. Ao abordar o homem como animal político, Aristóteles, de
certa forma, já sinalizava o valor de uma vida com participação em de-
trimento de uma vida meramente de contemplação. Contudo, tal como
salienta Adverse, “no escrutínio que deve decidir o modo de vida a ser
adotado, o advogado do homem político é Cícero.”55 Nesse mesmo sen-
tido, desenvolve-se, no Renascimento, relação ainda mais estreita entre
a exaltação de uma vida ativa e sua correlação com uma vida política.
Cumpre ressalvar que uma vida ativa, usufruto da liberdade, para os
humanistas, “está sempre associada ao exercício da cidadania; não exis-
te associação entre liberdade e indivíduo.”56Em contraposição à doutri-
na cristã, tão marcante durante alguns momentos da Idade Média, que
diante da dicotomia vida terrena e vida espiritual, tende a privilegiar a
espiritualidade e o desinteresse pelas questões terrenas, instala-se, en-

53
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 56.
54
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.56.
55
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.57.
56
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991. p. 28.
48 • Capítulo 2 - História e política renascentista

tre os renascentistas, certo afeto pela vida cívica. Sendo assim, uma das
marcas do humanismo cívico consistiu na primazia do homem da ação fren-
te ao homem da contemplação, e, por consequência, na escolha do republi-
canismo, como forma ideal de governo, uma vez possuía suas bases em
conceitos como liberdade, igualdade e governo de leis.

2.2.2 O republicanismo em Maquiavel

Tal como salientado acima, há quem argumente que Maquiavel


preferia o republicanismo ao principado, e que trouxe elementos novos
ao conceito de republicanismo, que foram além da exaltação da partici-
pação ativa na vida política. Para tanto, não é incomum à referência ao
capítulo IX, do livro O Príncipe (1513), no qual Maquiavel afirma:

Porque em toda cidade se encontram estas duas tendências57


diversas e isso resulta do fato de que o povo não quer ser man-
dado nem oprimido pelos poderosos e estes desejam governar
e oprimir o povo: é destes dois anseios diversos que nasce nas
cidades um dos três efeitos: ou principado ou liberdade ou de-
sordem.58

Antes mesmo que se argumente sobre as inovações ao conceito


de república trazidas já nesse excerto, faz-se necessário provar, de acor-
do com a leitura republicana da obra de Maquiavel, que, diferente do
afirmado por alguns autores, entre eles Mansfield e Sfez, os quais traba-
lharemos adiante, o povo não seria elemento passivo e contemplativo,
que simplesmente não quer ser dominado59. Em defesa da vida ativa
e da participação política do povo, autores capazes de enxergar uma
matriz republicana na obra de Maquiavel argumentam que o desejo ne-
gativo de não ser dominado não implica em passividade. Ao abordar
por inúmeras vezes a possibilidade de rebelião por parte do povo60, os

57
É válido ressaltar que a palavra tendências é mais comumente traduzida como humores ou desejos.
58
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe..., cit., p.55.
59
Cumpre dizer que ambos os autores, em suas respectivas obras, referenciadas neste artigo, endos-
sam esse posicionamento. Para mais informações sobre a contribuição de ambos para o pensamento
de Maquiavel, Cf SFEZ, G. Machiavel, La politique du moindre mal. Trad. Helton Adverse. Paris: PUF,
1999, p. 182; WINTER, Lairton Moacir A teoria dos humores de Maquiavel: a relação entre o con-
flito e a liberdade. Cadernos de Ética e Filosofia Política, n. 19 São Paulo, 2º semestre de 2011, p. 43-75;
MANSFIELD, H. C. Machiavelli’s virtue. Chicago: The University of Chicago Press, 1996.
60
Note isso, por exemplo, no seguinte trecho: “quem torne príncipe pelo favor dos grandes, contra
o povo, deve antes de qualquer coisa procurar ganhar este para si. ”. MAQUIAVEL, Nicolau. O
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 49

defensores do republicanismo presente na obra O Príncipe advertem


que o povo não somente é considerado, como também é temido como
agrupamento capaz de alterar a organização política da época. Sendo
assim, tendem a concluir que, em vez de uma acusação ao povo quanto à
sua passividade, Maquiavel defenderia, no trecho acima mencionado, a
importância da participação popular para concretizar uma organização
política adequada.
Todavia, a defesa da vida ativa e da participação política consiste
numa contribuição da grande maioria dos autores humanistas para o
conceito de republicanismo. Sendo assim, qual elemento teria sido, pois,
introduzido por Maquiavel? A esse respeito, Adverse afirma que, em
sentido distinto dos demais humanistas e de toda a tradição republica-
na, Maquiavel enfatiza a discórdia como elemento essencial para a exis-
tência da república. A respeito dos conflitos internos, Adverse salienta
que

(...) a tradição republicana, afirma, inequivocamente, um ideal


irênico. Não se trata de desconsiderar, nesse ideal, a presen-
ça das dissensões, mas de dar a elas um tratamento sempre
negativo porque sua intensificação ameaça arruinar o corpo
político.61

Contudo, uma vez que Maquiavel sujeita a organização política


às tendências antagônicas entre povo e poderosos, “as divisões internas
de uma república, longe de significarem uma ameaça à sua existência,
estão no fundamento de sua liberdade.”62Acerca desse assunto, afirma
também Bignotto, que, para Maquiavel, “é da propensão ao conflito que
nasce a possibilidade da liberdade. A liberdade é, portanto, o resultado
dos conflitos.”63 Cumpre afirmar, ainda em relação às dissensões, que
tanto para Adverse quanto para Bignotto não se trata de uma argumen-
tação em favor de um conflito desordenado entre os poderosos e o povo.
A esse respeito, informa Adverse que, em Maquiavel, “livre é aquela
república que, a exemplo de Roma, é capaz de dar uma solução insti-
tucional para os conflitos originados da diversidade de desejos.”64 Nes-
se mesmo sentido, argumenta Bignotto que “uma sociedade que não é

Príncipe..., cit., p.57.


61
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.99.
62
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.98.
63
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano..., cit., p.86.
64
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p.100.
50 • Capítulo 2 - História e política renascentista

mais capaz de canalizar seus conflitos por seus mecanismos legais, não
é mais uma sociedade livre.”65Sendo assim, cumpre enfatizar que, se-
gundo a interpretação republicana de obras como O Príncipe e Discursos,
Maquiavel ora se aproxima ora se afasta dos demais autores humanistas.
Aproxima-se ao exaltar a necessidade de uma vida ativa, que implique
participação política popular. Afasta-se ao instituir os conflitos internos
como base para a liberdade, ensejando um governo baseado em leis, que
criem instituições que tratem a todos como iguais.

2.3 Maquiavel e o principado

Assim como exposto acima, há autores, dentre os quais poderí-


amos citar Harvey Mansfield, Gerald Sfez e Quentin Skinner, tal como
trabalharemos a seguir, que, guardadas as devidas diferenças, foram
capazes de argumentar em favor da idéia de que havia tamanha passi-
vidade na descrição de Maquiavel do papel político do povo, que seria
impossível que não se percebesse a escolha do principado como forma
de governo ideal. Segundo Mansfield

“(...) para Maquiavel, apenas alguns homens são políticos, e


eles governam em qualquer regime, não importa como seja
chamado. O povo não quer governar e quando parece querer
governar, está sendo manipulado por seus governantes. Ele é
objeto sem forma, corpo sem cabeça. Tendo em vista que não
pode governar, o regime é sempre o governo de um príncipe
ou de príncipes.” (Tradução nossa)66

É notório que a interpretação que Mansfield faz da obra de


Maquiavel, em especial do já mencionado trecho do capítulo IX, do
Príncipe, que faz referência aos dois humores ou duas tendências, não
autoriza outro ponto de vista, senão que, de fato, o autor de florentino é
um defensor do principado. Isso porque descreveria o povo como uma
grande massa, incapaz de governar, e, portanto, de participar da vida
política, uma vez que apenas possui o desejo negativo de não ser domi-
nado. A propósito da obra de Mansfield, Helton Adverse, em seu artigo

65
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano... cit., p.88.
66
“(…) for Machiavelli, only some few men are political, and they rule in every regime, whatever it
is called. The people do not wish to rule, and when they seem to rule, they are being managed by
their leaders. They are matter without form, body without head. Since they cannot rule, the regime
is always the rule of a prince or princes”. MANSFIELD, H. C. Machiavelli’s virtue Chicago: The Uni-
versity of Chicago Press, 1996, p. 237.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 51

Maquiavel, a República e o desejo de liberdade (2007), afirma que

(...) a consequência do esvaziamento político do desejo do


povo é inequívoca: as convicções republicanas de Maquiavel
ficam sob suspeita; somos obrigados a vê-lo como o pensador
da dominação. Logicamente impecável é, portanto, a leitura de
Mansfield: o regime é sempre o principado. Se quisermos ne-
gar a conclusão, devemos então negar as premissas.67

Ainda com o objetivo de apresentar um Maquiavel, incapaz de


perceber qualquer desejo político no povo, é válido citar Gerald Sfez,
para o qual ficaria claro, também a partir da leitura do trecho sobre hu-
mores, do capítulo IX de O príncipe, que o povo “não quer saber nada do
poder, e não se preocupa com as condições necessárias para o estabele-
cimento dessa não-opressão.”68
Por fim, com a finalidade de demonstrar a frequência histórica
com que Maquiavel foi lido como um autor que tratava o povo como
simples joguete frente ao príncipe, cumpre citar Michael Foucault. Se-
gundo Skinner, Foucault teria afirmado, “em curso ministrado no Collè-
ge de France em 1978, que ‘para Maquiavel, no fundo, o povo era es-
sencialmente passivo, ingênuo, ele tinha de servir de instrumento ao
príncipe, sem o que ele serviria de instrumento aos grandes’”69. Embo-
ra Michael Foucault70 não tenha chegado a concluir, a partir disso, que
Maquiavel seria um defensor do principado, é relevante a citação de sua
compreensão do papel político do povo. Isso porque tal interpretação
acaba fornecendo subsídio para a ideia de que o autor florentino, embora
afirme “com todas as letras nos Discursos, que sua preferência pessoal
sempre estará voltada para a liberdade política e, por conseguinte, para
a forma republicana de governo”71 escondia, “no fundo” – para utilizar
expressão também utilizada por Foucault –, sua preferência pelas mo-

67
ADVERSE, Helton. Maquiavel, a república e o desejo de Liberdade. Trans/Form/Ação, São Paulo,
v. 30 (2), p. 33-52, 2007. p. 37.
68
SFEZ, G. Machiavel, La politique du moindre mal. Trad. Helton Adverse. Paris: PUF, 1999. p. 182.
69
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p. 36 e 37.
70
É preciso observar que essa inexistência de conclusão de Foucault quanto à forma de governo
defendida na obra de Maquiavel possa ter uma relação com certo desinteresse do primeiro pelo
segundo. Segundo Adverse, nas obras de Foucault, “além de relativamente escassas (quando temos
em mente o volume de sua produção intelectual), as referências a Maquiavel não parecem desem-
penhar uma função crucial no seu desenvolvimento argumentativo.” ADVERSE, Helton. Foucault,
Maquiavel e a crítica da razão Política Moderna. Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, p. 293-316,
2014, p. 308 e 309.
71
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p.145.
52 • Capítulo 2 - História e política renascentista

narquias.
Insta salientar que não só Mansfield e Sfez enxergam na obra de
Maquiavel uma preferência pelo principado. Além do esvaziamento do
desejo político do povo, Quentin Skinner72 apresenta, no livro As funda-
ções do pensamento político moderno (2009), outro argumento que compro-
varia a preferência de Maquiavel pelas monarquias. Segundo Skinner,
“nenhum indivíduo que se preocupasse genuinamente com os valores
da paz e da segurança poderia manter a opção (...) pela liberdade re-
publicana. ”73 Dessa forma, Skinner intenciona afirmar que, ainda que
Maquiavel prefira “manter em tensão duas teorias opostas sobre os mé-
ritos, respectivamente do regime popular e do monárquico”74, é lógica
sua preferência pelo principado, devido aos valores que seleciona como
essenciais ao governo de um príncipe. Para Skinner, Maquiavel defende
“seguidas vezes, que o principal dever de um governante deve ser o de
cuidar de sua própria ‘segurança e força’, ao mesmo tempo em que ga-
rante que seus súditos vivam ‘estavelmente e em segurança.’”75 Por isso,
estaria fazendo uma efetiva escolha pelo principado em detrimento da
República.

Não há dúvidas (...) de que Maquiavel confere excepcional im-


portância ao papel que a força bruta desempenha na direção
dos negócios do governo. (...) o objetivo essencial do prínci-
pe (...) está antes de mais nada na defesa da sua condição de
príncipe, que é o requisito para ele governar o seu ou os seus
Estados.76

A lógica argumentativa de Skinner é simples, e, neste momento,


não cabe tecer nenhuma crítica: se Maquiavel escolhe como principal ob-
jetivo de um governo a segurança e a paz em detrimento da liberdade e
da justiça, opta, na verdade, por valores caros à Monarquia em oposição
a valores importantes para um governo republicano. Ou seja: Maquia-
vel, ao afirmar que “havendo boas armas, inevitavelmente haverá boas

72
Em relação a este autor, cabe fazer uma ressalva. Embora argumente em favor da preferência
de Maquiavel pelo principado, dedica um trecho, no capítulo “A sobrevivência dos valores repu-
blicanos”, do livro As fundações do pensamento político moderno, para trabalhar as contribuições de
Maquiavel para o republicanismo.
73
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p.145.
74
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p.145
75
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., 144.
76
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., 151.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 53

leis”77, ou que o príncipe “não deve ter outra preocupação ou empenho,


nem capacitar-se em nada, a não ser na guerra e em sua organização e
disciplina”78, deixaria transparecer que o seu regime político de prefe-
rência, “ainda que se recuse a efetuar essa inferência”79, seria o principa-
do.

3. Virtú e fortuna: principado ou república?

Cumpre dizer que, na teoria de Maquiavel, os conceitos de virtú


e fortuna são sempre utilizados para justificar o sucesso ou o fracasso
da ação política. Toda ação, politicamente orientada, tem seu resultado
influenciado ora pela fortuna - “um desses rios torrenciais, que quando
se escolarizam, alagam as planícies, destroem as árvores e os edifícios,
e carregam terra de um lugar para outro”80, ora pela virtú. Segundo Ma-
quiavel, a respeito da virtú e da fortuna, “sem a oportunidade, o valor
pessoal ter-se-ia apagado e sem a virtude a ocasião teria surgido em
vão. ”81 Sendo assim, pode-se concluir que toda ação política só adquire
sucesso na medida em que ocorre uma conjugação entre a afortunada
oportunidade e a perspicaz ação ou reação, tal como já foi abordado
anteriormente na análise em que o autor florentino faz do governo de
Piero Médici.
Diante de tamanha valorização da prática política82 por meio
da afirmação da dialética sem fim que envolve o par virtú/fortuna, uma
questão importante tem sido imposta àqueles que se propõem a uma
leitura republicana da obra de Maquiavel: como compatibilizar as inevi-
táveis intempéries da fortuna com as previsões legais, caras a um gover-
no republicano? Em princípio, seria mais fácil argumentar em favor da
compatibilização do par virtú/fortuna com um governo monárquico, no
qual o príncipe percebendo as intempéries causadas pela contingência
histórica, tomaria as imediatas medidas que considerasse válidas para
solucionar as novas questões. Todavia, segundo os autores republica-

77
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe..., cit., p. 77.
78
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe..., cit., p. 87.
79
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p.145.
80
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe..., cit., p. 140.
81
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe…, cit., p. 140.
82 A esse respeito, vale atentar-se para a seguinte citação de Adverse: “Qualificada dessa forma, a
virtú perde valor epistêmico (uma vez afirmada a contingência, que ciência é possível?), mas ganha
valor prático (contam muito então a experiência, o ethos e o “engenho”). ADVERSE, Helton. A Ma-
triz Italiana…, cit., p.104.
54 • Capítulo 2 - História e política renascentista

nos, essa leitura reduziria a virtú do príncipe a mera solução prática de


questões.
Para responder a essa questão, Adverse83 recorre ao tema da fun-
dação da cidade. Cumpre lembrar que a virtude do príncipe não é defi-
nida exclusivamente como “a capacidade de responder ao novo”, mas
também como a habilidade de “fazer frente às intempéries. ”84 Sendo
assim, tendo a virtú um elemento prospectivo, inexiste dúvida quanto à
compatibilidade entre o binômio conceitual virtú / fortuna e um governo
de leis. O governante não demonstraria sua virtude somente quando
respondesse às novidades históricas, mas também quando as antecipas-
se, não só no momento da fundação da cidade, como também ao dire-
cionar a criação de leis. Nesse contexto, as boas leis seriam resultado da
virtude do legislador, que não perderia de vista os conflitos populares
internos do passado, do presente e também os do futuro. Ainda a esse
respeito, Adverse afirma:

O legislador inicia a história, torna-se um marco referencial


(como Rômulo) a partir do qual devem gravitar as instituições
da república. A ação do legislador é, portanto, pontual: ele fun-
da ou refunda. Ela recorta a linha da história da república, mas
como um objetivo determinado: colocá-la (ou trazê-la de volta)
nos eixos.85

Note-se que, nesse excerto, Adverse desenvolve dois importan-


tes pontos da teoria de Maquiavel. O primeiro, já discutido acima, diz
respeito ao fato de que um legislador virtuoso precisa, no momento da
fundação da cidade, servir como ponto inicial a partir do qual a virtude
poderá continuar a se perpetuar. O segundo diz respeito ao fato de que
a atuação do legislador tem caráter pontual, cabendo ao povo agir com
virtú para a manutenção do ambiente virtuoso, iniciado pelo legislador.
A esse respeito, afirma Adverse que “a virtú do legislador deve abrir
caminho, então, para a virtú do povo.”86 Sendo assim, a leitura republi-
cana da obra de Maquiavel nos autoriza, pois, afirmar que não apenas
as ações políticas do príncipe poderiam ser julgadas de acordo com o
par virtú/fortuna, mas ações políticas em geral, inclusive as do povo. Por
essa lógica, o povo virtuoso seria aquele que, diante da necessidade de

83
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 105.
84
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 104.
85
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 106.
86
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 106.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 55

tomada de decisões políticas, exigidas pela contingência característica


da fortuna, não perdesse de vista valores como “a devoção à pátria, o
respeito às leis, e a constância e o amor à liberdade.”87

4. Conclusão

A questão acerca da melhor forma de governo no pensamento de


Nicolau Maquiavel vai muito além da simples leitura e apresentação dos
intérpretes de suas obras. Precisa-se levar em consideração todo o cená-
rio político, socioeconômico, filosófico e jurídico da época em que viveu,
de forma que, só assim constrói-se uma sólida conceituação acerca do
pensamento do filósofo sobre a temática abordagem.
A fim de entendermos melhor como os escritos políticos de Ma-
quiavel foram estudados ao longo da história, devemos, inevitavelmen-
te, apegarmo-nos ao contexto histórico que permeava as interpretações
sob as quais nos debruçamos. É de uma dificuldade inequívoca desven-
cilhar-se das lentes históricas e culturais pelas quais lemos a realidade
que nos cerca, e o filósofo florentino, tal como seus leitores, não escapa à
regra.
Procurou-se, ao longo desse trabalho, estabelecer de forma mais
clara esse vínculo irredutível e complementar estabelecido entre o que
denominamos um “Maquiavel filósofo” e um “Maquiavel cidadão”.
Para além do cargo político que exercia e da sua completa consciência
acerca da hierarquia de poder à qual estava vinculado, Maquiavel – as-
sim como grande parte dos humanistas cívicos – esteve imerso em uma
realidade instável e sedenta por rumos que revivessem a pax da Antigui-
dade clássica, tão presente no imaginário popular renascentista.
Essa completa imersão exige de nós não só que nos policiemos
enquanto a cronologia das obras e ao momento político em que foram
escritas, mas também na contraposição entre a realidade e o discurso. Já
anunciava Kriesteller, quando fazia referência à defesa a vida ativa em
detrimento da contemplativa, a dificuldade na apreciação das posições
dos pensadores.

Não posso deixar de sentir que essas aparentes contradições


ou hesitações se deem graças à ocasião em que determinada
declaração tenha sido escrita e à pessoa a qual tenha sido dire-
cionada. Um humanista retórico não pode deixar de louvar a

87
ADVERSE, Helton. A Matriz Italiana…, cit., p. 106.
56 • Capítulo 2 - História e política renascentista

vida ativa quando está escrevendo a um homem de negócios,


a um estadista ou até mesmo a um príncipe (a vida ativa não
está limitada às repúblicas), inclusive Ficino faria o mesmo em
um contexto similar, como algumas de suas cartas deixam cla-
ro. Por outro lado, a vida contemplativa receberia sua quota
de louvor quando o envolvido, a pessoa a qual se endereça o
discurso, é um monge, tal como no caso de Salutati, ou um filó-
sofo, estudioso, ou cientista, em muitos casos. (...) nós devemos
nos perguntar, em cada situação, se o escritor está advogando
por um ideal de vida ativa apenas para os outros aos quais se
dirige, ou também para si mesmo. (tradução nossa)88

A mesma cautela deve ser tomada quando analisamos a defe-


sa da forma de governo feita por Maquiavel em seus escritos. Tanto as
obras, quanto as interpretações divergem, e isso se dá não só pela muta-
bilidade do pensamento - que pode ocorrer com o amadurecimento da
forma de lidar com a realidade - mas pela própria alteração do cenário
político ou institucional da época.
Vale ressaltar ainda, no que tange à interpretação da obra, que
os influxos históricos e de jogo de poder também marcaram substan-
cialmente os rumos que a história trilhou. Nas artes, na filosofia ou na
política, o contexto histórico determina a forma como as obras dos gran-
des escritores foram interpretadas. Forjam-se, a partir daquilo que se
deseja alcançar, as bases do que se concebe como correto ou do modo
como determinada leitura deve ser feita. Bignotto, ao tratar do Huma-
nismo Cívico, traz à tona esse caráter “militante” que o mesmo exerce, e
o modo como vincula o pensamento da época. Nesse sentido, a mesma
abordagem, salvas as proporções, pode ser adequada para justificar a
adoção de um ou de outro posicionamento de Maquiavel ao longo de
seus escritos.

A compreensão que ele demonstra da maneira como funciona-


va efetivamente a distribuição do poder em sua cidade nos aju-
da a perceber que o republicanismo cívico dos humanistas era

88
“I cannot help feeling that these apparent contradictions or hesitations may be due to the occasion
on which a given statement was written and to the persons for which it was intended. A humanist
rhetorician cannot help praising the active life when writing of and for a businessman or a states-
man or even a prince (for the life of action is not limited to republics), and even Ficino would do
the same in a similar context, as some of his letters clearly show. On the other hand, the life of
contemplation would get its due share when the person addressed or involved is a monk, as in
Salutati’s case, or a philosopher, scholar, or scientist, as in most other instances. (…) we must ask in
each instance whether a writer is advocating the ideal of the active life only for others to whom he
addresses himself or also for himself.” KRIESTELLER, Paul. Philosophy and Humanism in Renaissance
Perspective…, cit., p. 30 e 31.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 57

uma arma no combate político e uma estrela polar para muitos


participantes da vida pública. Os valores defendidos por Bru-
ni, Poggio Bracciolini, Matteo Palmieri, Alberti e outros funcio-
naram como um programa político que demonstrou toda sua
força em 1494, quando da queda dos Médice.89

Tal como vimos, há, por um lado, autores, entre eles Mansfield e
Sfez, que não demonstraram nenhuma hesitação em afirmar a preferên-
cia de Maquiavel pelo principado. Para isso, argumentaram em favor do
esvaziamento do papel político do povo, bem como da íntima relação
entre o par virtú / fortuna e um principado, uma vez que, sendo um ho-
mem virtuoso, o príncipe poderia definir o que é melhor para a socie-
dade, quando surgissem as intempéries ocasionadas pela fortuna. Por
outro lado, autores, como Bignotto e Adverse, também não demonstra-
ram hesitação em incluir Maquiavel entre os teóricos que propuseram a
república como forma prioritária de governo. Para tanto, argumentaram
em favor da importância do papel político do povo, uma vez que seriam
exatamente os conflitos populares que permitiriam a criação e o aprimo-
ramento de instituições que garantiriam a liberdade e a igualdade.
Diante do cenário apresentado, no qual teorias conflitantes ten-
dem a dar respostas diferentes para a mesma questão, enfocando pontos
distintos da obra, e desconsiderando informações já discutidas sobre o
autor, a velha pergunta resiste: Maquiavel: principado ou república?
Primeiramente, é válido ressaltar que parece haver um esforço
de grande parte dos estudiosos de Maquiavel para inseri-lo em uma tra-
dição interpretativa, e desconsiderar as demais. Contudo, tendemos a
afirmar que, entre a primeira obra publicada – O Príncipe (1513) – e a
segunda – Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1531) –, houve
algumas importantes alterações no contexto histórico de Florença, bem
como na vida do autor, que poderiam ter permitido um amadurecimen-
to de ideias. Portanto, talvez seja necessário o reconhecimento de que,
entre essas duas principais obras, alguns conceitos tenham sido apro-
fundados, enquanto outros tenham sido deixados de lado. A esse respei-
to, Leo Strauss afirma que as

(...) diferenças entre os dois livros podem ser ilustradas pelo


fato de que, no Príncipe, Maquiavel evita determinados ter-
mos que utiliza nos Discursos. O Príncipe omite, por exemplo,

89
BIGNOTTO, Newton. O Humanismo e a Linguagem Política do Renascimento: o uso das Pratiche
como fonte para o estudo da formação do pensamento político moderno..., cit., p. 127.
58 • Capítulo 2 - História e política renascentista

a menção à consciência, ao bem comum, aos tiranos (isto é, a


distinção entre reis e tiranos) e ao céu.90

Dito isso, para respondermos à pergunta “república ou princi-


pado?”, partiremos da afirmação de Skinner, segundo o qual Maquiavel
“(...) no Príncipe (...) dá a entender, e posteriormente afirma com todas as
letras nos Discursos, que sua preferência pessoal sempre estará voltada
para a liberdade política e, por conseguinte, para a forma republicana
de governo”91 Tal como já vimos acima, Skinner opta por desconsiderar
a afirmação autoral ao argumentar que “nenhum indivíduo que se pre-
ocupasse genuinamente com os valores da paz e da segurança poderia
manter a opção (...) pela liberdade republicana”.92 Contudo, tal análise
merece um olhar mais atento. De fato, é inequívoca a afirmação de que
os valores mais caros a Maquiavel eram a segurança e a paz? Há quem
afirme que, para o autor florentino, “o verdadeiro desafio não é, pois, o
da estabilidade, mas o da potência”.93 Além disso, ainda que considere-
mos, como de fato parece ser possível, que a paz e a segurança seriam
valores importantes para Maquiavel, precisaríamos fazer uma distinção
entre a paz interna e a paz externa. Parece correto que Maquiavel inten-
cionava a estabilidade de Florença, que precisava ser reconhecida por
seus vizinhos, principalmente após a querela vivida com Milão naquele
século. Contudo, seria realmente adequado afirmar que o autor de O
Príncipe intencionava a plena pacificação interna da comuna? Ao afirmar
no capítulo IX, de O príncipe, que é do conflito entre tendências – ou
humores, como preferem alguns autores – que pode surgir a liberda-
de, Maquiavel não parece querer afirmar a vantagem da inexistência de
conflitos de classe. Em vez disso, parece argumentar que é exatamente
por meio do conflito entre desejos distintos, que o povo pode colaborar
na construção de uma república.
Enfim, não pretendemos com este artigo exaurir o tema, uma vez
que há tantos outros conceitos em Maquiavel que precisam ser conside-
rados para definirmos se há, em sua obra, uma demarcação de uma for-
ma de governo ideal, ou mesmo se o governo ideal não seria uma forma
híbrida dos regimes políticos aqui mencionados. Contudo, de antemão,

90
STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph. História da Filosofia Política. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p.
273.
91
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p. 145.
92
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno..., cit., p. 145.
93
BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991. p. 93.
Antônio Alves Mendonça Junior & Raul Salvador Blasi Veyl • 59

poderíamos reconhecer que, dada a aparente fragilidade das argumen-


tações que percebem na obra de Maquiavel, como um todo, o esvazia-
mento do desejo político do povo, tenderíamos a nos filiar a abordagem
segundo a qual o autor florentino seria mesmo um republicano.

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60 • Capítulo 2 - História e política renascentista

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do em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Abril de 2008. Dissertação.
CAPÍTULO 3

Tomas More: da utopia à eternidade

Cézar Cardoso de Souza Neto1


Lucas Camargos Bizzotto Amorim2

1. Introdução

O exemplo do humanista Tomas More3 tem repercutido ao lon-


go dos séculos, transcendendo questões históricas, políticas, religiosas e
literárias nas quais o Patrono dos Políticos tem se revelado sempre uma
inesgotável fonte de pesquisas, descobertas e conhecimentos.
Para uma melhor compreensão de More faz-se necessária assimi-
lar a complexidade oculta em uma personalidade rica e muito cativante
de Tomas More. A dificuldade se encontra na aparente crítica suave, po-
rém, dotada de uma ironia apurada, própria do humanismo, que muitas
vezes passa despercebida e que ele cultivava para submeter o espírito a
uma atividade mais bem humorada.4
Neste texto buscamos analisar um pouco deste grande humanis-
ta, em uma leitura de sua obra Utopia5, publicada em 1516. Nesta obra
se observa o mundo complexo de sentimentos e ideias que no decorrer
de poucos anos se tornou um fator decisivo na formação ocidental. Daí
advém a sua importância filosófica, política, jurídica, literária e histórica
que apresentamos.
A ética testemunhada com o preço de sua própria vida evidencia

1
Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
² Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
³ A bibliografia sobre Thomas More está no subcapítulo 2.
⁴ BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro: Solo frente al poder. Madrid: Editorial Palabra,
1993. p. 10.
⁵ Neste estudo usamos o texto MORUS, Thomas. Utopia ou a Melhor Forma de Governo. 2.
ed. Tradução, prefácio e notas Aires A. Nascimento; Estudos e introdução José V. de Pina Martins.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 63

a convicção que toma a forma de sua atitude religiosa. More proclama


sua fé e age estritamente de acordo com a própria consciência, tendo
plena consciência dos resultados prováveis dessa ação, porém, mostra-
-se firme e assume o que crê.
De acordo com Berglar, não há incompatibilidade entre esta
perspectiva racional e a de uma fé teológica de grande profundidade.
Estas características iluminam-se reciprocamente e contribuem para
uma melhor compreensão de um autor, complexo, entretanto, coerente,
encantador e exemplar como São Tomas More, um dos mais importan-
tes humanistas, considerado como o mais original e radical deste movi-
mento na Inglaterra do século XVI.6

2. A riqueza de um político honesto: a família e os ideais7

O humanista Thomas More – ou Morus – nasceu no dia 07 de fe-


vereiro de 1478, em Londres. De família da nobre, filho de Sir John More,
Juiz e Cavaleiro Real da corte de Eduardo IV, conhecido pela seriedade
e retidão e de Agnes Graunger More, piedosa e sábia mulher, dedicada
às leituras e orações.
Quando estudante pensara em ingressar na vida religiosa. Po-
rém, dedicou-se ao estudo do Direito e da Filosofia, casou-se em 1505
com Jane Colt, tendo quatro filhos, Margaret, Elizabeth, Cecily e John.
Após o falecimento de Jane, em 1510, casou-se novamente em 1511 com
Alice Middleton. Respeitado advogado, honrado e competente. Exerceu
a docência por breve período, em 1503.
Membro da Câmara dos Comuns, em 1504  foi eleito Speaker (pre-
sidente), por ser um responsável e assíduo parlamentar. Em 1510, rece-
beu a nomeação de  Under-Sheriff  da capital, tornando-se juiz membro
da Commission of Peace em 1511. Nomeado membro de honra da corte de
Henrique VIII em 1520, representando o reino inglês como Embaixador
Real em diversas oportunidades em muitos reinos europeus.
Em 1516, após concluir a escrita durante uma embaixada, More
publicou sua obra De Optimo Reipublicae Statu deque Nova Insula Utopia,
Sobre o Melhor Estado de uma República que Existe na Nova Ilha Uto-
pia, ou como ficou conhecida sua obra, Utopia.

⁶ SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato Janine Ri-
beiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 234.
⁷ Para esta informação bibliográfica, utilizamos o texto de Peter Berglar. BERGLAR, Pe-
ter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 12-67.
64 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

Nomeado Cavaleiro Real (Sir) em 1521, foi elevado ao cargo de


vice-tesoureiro e, posteriormente, nomeado Chanceler de Lancaster.
More renunciou aos vencimentos deste ofício, pois acreditava que um
funcionário real deveria receber apenas os valores referentes de seu pos-
to.
Devido a suas atitudes nobres e honradas, bem como o admirá-
vel trabalho realizado em Lancaster possibilitaram sua nomeação como
Lorde Chanceler de todo o Reino da Inglaterra, pelo rei Henrique VIII.
Destarte, reconhecia-se o homem aclamado por todo o parla-
mento como modelo de político e, principalmente, pela população hu-
milde que era recebida diariamente em audiências na chancelaria real
para expor suas dificuldades.
Entretanto, sua vida começou a mudar após as tentativas do rei
em se divorciar de Catarina de Aragão para se casar com Ana Bolena.
Devido à negativa papal, o rei instituiu o Ato de Supremacia, no
qual todos deveriam jurar fidelidade ao monarca que se auto-intitulou
Rei e Chefe da Igreja na Inglaterra.
Em 1532, por não querer dar apoio ao plano de Henrique VIII
que desejava controlar a Igreja na Inglaterra, More pede demissão, ati-
tude que impressionou o próprio rei e a todo parlamento. Efetivada a
exoneração, retirou-se da vida pública, resignando-se a sofrer, com a sua
família, a pobreza e o abandono de muitos que, na provação revelaram-
-se falsos amigos.
Em abril de 1534, More foi convocado, excepcionalmente, para
fazer o juramento na presença de todo o parlamento, na data de 17 desse
mês. Diante de sua recusa, foi preso na Torre de Londres, juntamente
com o Bispo João Fisher, de Rochester, porque ambos se recusaram a
admitir e a jurar o Ato de Supremacia. 
Ainda que aconselhado por seus familiares, More dizia que caso
“jurasse em falso”, como muitos o fizeram, ele se tornaria um péssimo
exemplo a todos os cidadãos, pois, estaria a contrariar sua fé e sua cons-
ciência.
Na Torre escreve o Dialogue of Comfort against Tribulation, Diálo-
go de Conforto contra a Tribulação, já que lhe permitiram que levasse
seus livros e pudesse escrever, bem como receber visitas, com o intuito
de dissuadi-lo de sua obstiniação e fazê-lo jurar.
Sua decisão foi manter o silêncio sobre o assunto. Ainda que
pressionado pela família, pelos amigos mais próximos, incluindo o pró-
prio rei, bem como muitos admiradores e parlamentares, mesmo assim,
More decidiu que não prestaria o juramento. Tampouco elencaria as ra-
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 65

zões para tal, pois, a única razão era sua consciência e sua fé.
O rei condenou-lhe à morte, tendo sido executado diante de nu-
merosa multidão em Tower Hill em 6 de julho de 1535, aos 57 anos de
idade. Ao lhe ser permitido falar antes de sua execução, reafirmou sua
lealdade ao rei, mas sua fidelidade a Deus e à sua consciência.
More foi um homem de extremada honra e fé inabalável. Dotado
de uma cultura ímpar, mostrando-se muito simples, dotado de muito
bom humor, devotava sua atenção à sua família. Era um homem caseiro,
avesso a festas, contudo, muito próximo dos amigos e cordato no trato
para com todos.
Dele se dizia que era como um “irmão de seus amigos”8, entre
os quais se encontravam os mais destacados humanistas de seu tempo,
como Erasmo de Rotterdam e Luis Vives. Porém, o que mais impressio-
na em sua vida é sua modéstia e a abertura a todos aqueles que o busca-
vam como Juiz ou mesmo como um conselheiro.
Foi beatificado pelo Papa Leão XIII em 1886, canonizado em
1935, no quarto centenário de seu martírio pelo Papa Pio XI e elevado
a Patrono dos Políticos e dos Governantes Cristãos, pelo Papa S. João
Paulo II em 30 de outubro de 2000.9

3. More: crítica, criatividade e sensibilidade

O mundo em que Morus viveu estava marcado por efervescente


criatividade, imaginação fértil, devido à descoberta da América. Entre-
tanto, lamentavelmente estigmatizado pela violência e a injustiça que
passava a Europa.
A velha sociedade inglesa estava em franca transformação, de-
vido em parte à expansão da ovinocultura, que determinou o desterro
de inúmeras comunidades camponesas e a dissolução gradativa das tra-
dições comunais do Medievo, em nome do lucro pela exportação de lã
para as Flandres.10
A época de More marca o início da expansão para um mundo
novo, estendendo por todos os lugares a civilização europeia, levada na
ousadia das grandes navegações, em um processo de expansão cultu-

⁸ BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 14-15.


⁹ Declaração pontifícia disponível em: < http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/
motu_proprio/documents/hf_jp-ii_motu-proprio_20001031_thomas-more.html> Acesso em 11 de
abril de 2016.
10
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 22-26.
66 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

ral11
De fato, o século XVI representa um grande marco na história do
Ocidente. Nessa época, a cultura humanista ainda se mostrava permea-
da por um profundo sentido religioso, no qual as sociedades europeias
desenvolveram diversos conhecimentos e novas técnicas. Firmava-se na
dianteira das civilizações principalmente no que se relacionava à nave-
gação, ao domínio da arte da guerra que a destacava frente às culturas
mais antigas, tidas até então como exuberantes e sofisticadas no imagi-
nário europeu.12

4. Utopia e utopias

Uma das marcas mais evidentes da modernidade estilística de


More, que exerce fascínio contínuo até nossos dias, consiste no desafio
que apresenta ao leitor para que este possa pensar e a rever, ou até mes-
mo reformular, a interpretação de seu texto.
Utopia13 é marcada pela criatividade linguística, pela ironia mo-
desta, reforçando uma característica em que os humanistas foram mes-
tres exímios, dos quais More é um dos seus expoentes mais expressivos.
A obra, considerada por muitos como fundadora de um gênero
literário, apresenta uma proposta de organização política que tende a
afirmar-se como viável.14
Entretanto, More seria o primeiro teórico a fazer circular o ideal
utópico, em sua corrente mais influente. Foi ele quem criou a palavra
Utopia, em uma crítica à dura ordem social orientada pela exploração do


11
HUNTINGTON, Samuel P. O choque de civilizações e a recomposição da Ordem Mundial.
Trad. M. H. C. Cortês. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. p. 53.

12
DAWSON, Christopher. Dinâmicas da História do Mundo. Trad. Maurício G. Righi. São
Paulo: É Realizações, 2010. p. 354.
13
O termo Utopia, elaborado por More veio a receber diversas interpretações com o passar
do tempo, não ficando somente em construções semelhantes a de seu criador, mas traduzindo,
tanto no passado quanto no futuro, todo ideal político, social ou religioso que se mostra difícil ou
impossível de se concretizar. Este gênero apresentaria as transformações que podem ser vistas na
multiplicidade de reinterpretações de utopias anteriores, ainda que ancoradas na realidade concre-
ta do tempo histórico, propondo uma abertura como alternativa possível, uma transição de escato-
logias intramundanas. Entendido como fuga da realidade, do mundo concreto e tendo o ideal de
igualdade e fraternidade entre os homens, evidenciam os ideais que o autor nos traz através de uma
visão crítica, envolta em uma obra atraente e permeada de uma ironia peculiar.

14
“Com a Utopia de More estamos na transição da escatologia cristã intramundana para a
escatologia intramundana revolucionária.” VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas: Renascen-
ça e Reforma. Vol. IV. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 140-141.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 67

trabalho dos pobres e pela força da ganância.15


Transcende o seu momento histórico e seu caráter enseja trans-
formação. Propõe uma diferente ordenação das estruturas sociais e das
condições materiais de existência. Sua concepção de liberdade, justiça,
propriedade e trabalho é demonstrada sob uma nova ótica, que eviden-
cia o âmago de sua filosofia política.
Uma utopia política tem como propósito a reflexão e a possibi-
lidade de se instaurar de uma sociedade ideal, contrastando contraste
com os aspectos desagradáveis da realidade, aos quais são uma respos-
ta.16
A literatura, tanto quanto a pintura do século XVI se mostram
ricas em motivos fantásticos. Os paradisíacos jardins das delícias, os
quais refletem o desejo de evasão de um mundo que se revela cruel e
extremamente infeliz estimulam a criatividade. A grande responsável
pela divulgação desses sonhos foi a imprensa nascente que produziu
em toda a Europa daquele período centenas de edições de histórias de
aventuras.
A obra moreana exala humanismo, sendo possível observar duas
ricas fontes de inspiração, uma pagã e outra cristã. A primeira se trata
da República de Platão, enquanto a segunda é o De Civitate Dei, o livro
mais extenso e complexo de Santo Agostinho, do qual More apresentou
algumas conferências em 1501.17
Utopia mostra-se um texto no qual o grau de abertura é dotado
de grande amplitude. Uma dialética de inspiração platônica se consti-
tui como característica intrínseca do texto, desenvolvida na sucessão
de opiniões expressas pelos três diferentes personagens retratados por
More.
Uma das características típicas do período humanista é o con-
vencimento de que em alguns autores pagãos, sobretudo os filósofos
gregos, traziam em suas consciências uma chama da iluminação divina,
princípios da moral natural em vista da busca do bem.
Ele enfoca De Civitate Dei dissertando sua preocupação sobre
questões mais profundas da política e do direito, desde um ponto de


15
KRISTELLER, Paul Oskar. El pensamiento renascentista y sus fuentes. Trad. Federico Patán
López. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 22-23.
16
FINLEY, Moses. Uso e abuso da História. Trad. Marylene Pinto Michael. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1989. p. 194-195.
17
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 132-134.
68 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

vista histórico e filosófico, e não apenas sob uma perspectiva teológica.18


A continuidade substancial entre contos e cantigas do medievo,
a filosofia e espiritualidade cristãs e as façanhas humanistas, tornam-se
o fértil terreno. A literatura criava uma infinidade de paraísos terrestres
em que a vida era agradável e onde só havia espaço para a diversão, a
música e o amor.19
Esses mundos maravilhosos representavam os anseios dos po-
bres e uma obstinada recusa, por meio da imaginação, da precariedade
da vida. As terras fantásticas do imaginário popular daquela época ten-
tam fornecer ao povo aquilo sobre o qual existe uma grande frustração
em não possuir.
São lugares idílicos, que oferecem como compensação às realida-
des mais duras, fome, pobreza, enfermidades e morte, o luxo e a abun-
dância de alimentos. É, uma mensagem contra a exploração e a morte.
As pessoas cultas das sociedades humanistas passaram a sonhar com
paraísos terrestres, com deusas e fadas habitando em palácios encanta-
dos, universos imaginários abertos a todos.20
Entretanto, não podemos nos esquecer do relevante cunho pe-
dagógico empregado na literatura do medievo tardio e continuado no
Renascimento, levando o leitor a refletir sobre suas atitudes pessoais e a
necessidade de emendar-se de vida.
Nesse sentido, havia aqueles autores que não enveredaram por
estas terras de sonho e de fuga, ricas em imaginação. Estes elaboraram
sociedades perfeitas, também criativas, contudo, ressaltando a impor-
tância transformadora do trabalho em franca oposição à supervaloriza-
ção do ócio.
Dessa forma, visavam despertar o leitor para os problemas so-
ciais, principalmente a pleonexia21, reconhecendo que esta ocorre em to-


18
Assim escreve Lima Vaz: “As relações entre essas duas formas de vida espiritual e cul-
tural constituem uma das mais ricas matrizes heurísticas a nos permitirem uma interpretação ade-
quada dos universos simbólicos que presidiram ao ciclo das civilizações do Ocidente.” LIMA VAZ,
Henrique C. de. Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002. p. 224.
19
VOEGELIN, Eric. História das Ideias Políticas: Renascença e Reforma. Vol. IV. Trad. Elpí-
dio Mário Dantas Fonseca. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 239-240.
20
Novas narrativas, baseadas nos novos mundos, repletas de ficção, movia a imaginação
das pessoas, em uma mescla do Paraíso Terrestre com o imaginário popular inspirado em contos
trovadorescos. SICHEL, Edith. O Renascimento. Trad. Iracilda M. Nascimento. Rio de Janeiro: Zahar,
1977. p. 107.

21
Pleonexia, termo originado no grego πλεονεξια – Trata-se do conceito filosófico usado
nos textos de Platão, Aristóteles e Plotino, também empregado pelo cristianismo, o qual correspon-
de à avareza. Pode ser definido como um desejo de possuir aquilo que pertence a outra pessoa por
direito. FERRATER MORA, José. Diccionario de Filosofía Abreviado. Barcelona: EDHASA, 2008. p.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 69

das as classes de pessoas.22 Teve uma grande facilidade em aliar termos


inteligentes e agradavelmente cordiais, usando uma discreta ironia, pre-
tendia formar no leitor um critério sólido através de exemplos ideais.
More apresenta o mais célebre desses mundos fantásticos, no
qual se escaparia de todas as injustiças. Descreveu a vida em uma ilha
na forma de uma lua crescente, onde havia uma divisão de tudo entre a
população, que vivia confortavelmente e sem violência e injustiça.23

5. O reino da quimera satírica

O ideal de constituir uma sociedade mais justa surge como inspi-


ração para um humanista de relevo. More, ao proclamar a possibilidade
de um Estado ideal, contrastava a ilha de Utopia com as condições obje-
tivas da realidade, estruturando a obra que apresentamos.
Toda utopia, ao propor uma diferente ordenação das estruturas
sociais e das condições materiais de existência, evidencia sua intenção
transformadora da realidade.
Separadas pela distância entre ideal e real, Utopia e Inglaterra
encontram-se unidas no mesmo mar de criatividade humanista, envol-
tas nas brumas jocosas da ironia, guiadas por um navegador que traça
um vasto mapeamento das questões políticas, econômicas e religiosas
que caracterizam tão díspares semelhanças.
Como qualquer outra obra, Utopia representa uma contradição
com as condições objetivas da existência, transcendendo seu momento
histórico, vinculando-se ao mundo moral.
Conceitos de justiça, liberdade e trabalho, concebidos sob uma
roupagem ética, convertem-se em conceitos centrais expressos em Uto-
pia através de sua filosofia política.
Conhecedor da realidade sociocultural inglesa More se recusa
traduzir o texto para o inglês. Ciente de poderia ser mal interpretado
por aqueles que se consideravam sábios, mas na verdade eram ignoran-
tes e pelo pior tipo de pessoas, os parasitas do poder.
O texto nos traz um diálogo entre três personagens, Rafael Hitlo-
deu, Pierre Gilles e Tomas More.

387.

22
Voegelin diz que More “Reconhece o mal não apenas na pleonexia do príncipe, mas geral-
mente entre todas as classes de pessoas; a paixão de poder e de engrandecimento político é apenas
uma manifestação entre outras.” VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas... cit., p. 144-145.
23
SICHEL, E. O Renascimento... cit., p. 108-109.
70 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

O personagem Rafael Hitlodeu, inspirado no marinheiro luso,


membro da viagem de Vespúcio24, caracterizado como o sábio marinhei-
ro que se revela um homem típico do humanismo, versado em latim e
grego, referindo-se sempre a Cícero e Sêneca.
O termo Hytholodæus significa aquele que se mostra insensato,
que se dá a insensatez. Entretanto este insensato mostra-se brilhante e o
significado do nome é desfeito, revelando mais uma das satíricas críticas
moreanas.
Este personagem caracterizado como alguém aberto ao conhe-
cimento, desapegado dos falsos valores, estava disposto a aconselhar
quem o procurasse, exceto aqueles que ainda se encontravam presos às
amarras do dinheiro e do poder.
Ademais, seu primeiro nome Raphäel, nome advindo do hebrai-
co, significando remédio de Deus, ou seja, um remédio para cada um de
nós, para um mundo que se mostra enfermo. Aquele que curara a ce-
gueira de Tobit se dispõe a curar nossa cegueira e guiar-nos à verdadeira
felicidade.25
Este letrado marujo, que navega pelas águas da filosofia, prefe-
riu não estar vinculado a nenhum lugar específico. Viajava pelo mundo,
conhecendo novos lugares e depois, divulgava o conhecimento adquiri-
do.
Com o Renascimento surge uma nova maneira de se compre-
ender o mundo, o que levava a cultura política da Europa voltar-se em
novas direções.
Observa-se outra ironia moreana aos poderosos de seu tempo. O
auxílio proposto para que se estabelecesse uma nova política não seria
bem-vinda. Afinal, os poderosos se mostravam absortos em multiplicar
suas posses, mantendo-se no ócio, continuando com suas guerras e com
a vida repleta de frivolidades. Dessa forma, olvidavam-se de sua missão
primordial, o bem de seu reino.
Por essa razão, Rafael não desejava aconselhar nenhum príncipe,
uma vez que estes se preocupavam mais com supérfluos do que com o
ato de governar. Acostumaram-se às sobras da escuridão e a luz os in-
comodava. Portanto, não haveria nenhum interesse da parte destes em
aplicar os conselhos de Rafael.26

24
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 25.
25
Tb 11, 11-14.
26
Utopia I, 33.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 71

6. Da produção do pão à manufatura do orgulho

A progressiva expansão do comércio entre os diversos reinos


que se formavam provocaria um desequilíbrio nas economias agrárias
de uma Europa que ainda trazia a terra como sinônimo de riqueza.
Estas mudanças ocorrem de forma desigual no continente, po-
rém, na Inglaterra essa transformação acontecera antes dos demais rei-
nos europeus. Essa realidade devia-se às atividades mercantilistas de
sua burguesia e de parte da nobreza que inovaram suas atividades pro-
dutivas, proporcionando, dois séculos e meio mais tarde, o embrião da
Revolução Industrial.27
As transformações econômicas, em rápida transformação, puse-
ram em movimento novos extratos sociais, pessoas desgarradas de suas
antigas atividades rurais.
Ao explicar uma das causas pelas quais havia tantos ladrões na
Inglaterra, o autor explicitava sua crítica irônica quanto ao êxodo rural.
Ao se referir àqueles que se dirigiam às cidades e se viam força-
dos pela necessidade a se dedicar à mendicância ou ao roubo, já que se
encontravam tolhidos de suas atividades agrícolas. Por isso, Rafael se
dizia contrário à pena capital para os ladrões28.
More reflete que ao se preferir a criação de ovelhas no lu-
gar das atividades agrícolas, trocava-se a produção de alimentos pela de
lã e, consequentemente, optava-se pela miséria, mendicância e violência
nas cidades.29
A crítica das questões sociais de sua época oferece uma perspec-
tiva dos ideais político-sociais de More. O autor propõe uma sociedade
justa e fraterna, na qual seriam superadas as diferenças sociais entre ri-
cos e pobres.
Dessa forma, ele construiu uma comunidade abstrata a fim de
mostrar como seria uma sociedade quando o orgulho tivesse sido remo-
vido. Isso seria possível a partir do momento que todos se dedicassem
ao trabalho, sem a menor possibilidade da existência de privilégios.
Destarte, não haveria mais espaço para o orgulho insolente de
uma nobreza indolente e perdulária. Afastava-se de uma vez por todas
a possibilidade de acúmulo de riqueza, pois, todos os bens produzidos
socialmente seriam repartidos em igual proporção entre todos os cida-

27
FONTAN, Antón. Príncipes y humanistas. Madrid: Marcial Pons, 2008. p. 136.
28
Utopia I, 43-44.
29
Utopia I, 39-40.
72 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

dãos.
Esta grave situação de desigualdade conduz aos vícios, e tal con-
juntura é causada pela superbia30, gerada pela necessidade de se ter cada
vez mais bens. More entende que a propriedade privada seria a raiz de
todos esses males. Dessa forma, estabelece sua abolição na ilha de Uto-
pia.
Esta realidade vai além do fim da propriedade e dos meios de
produção, tornando-se parte da vida social de todos os habitantes da
ilha, uma vez que até as casas seriam comuns, trocadas a cada tempo.31
Assim, como a propriedade privada se mostrava como origem
de tantos problemas, propunha sua extinção para a instituição de uma
sociedade justa e fraterna.32
O desprezo pela propriedade privada reflete a proximidade de
More aos ideais franciscanos, com os quais convivera e se tornara mem-
bro de uma fraternidade de Terceiros.33
Essa formação cristã ofereceu-lhe conceitos como a cooperação
fraterna entre os homens. Ademais, proporciona-lhe refletir a ordem so-
cial através de princípios morais e políticos mais próximos dos ideais de
uma comunidade fundada no bem e na justiça.
Por essa aversão à propriedade privada, entendida como fonte
de orgulho e de diferenças sociais que More foi associado ao pensamen-
to socialista.

7. Bem-aventurada a preguiça, dela serão os conventos

Durante a longa conversa entre Rafael e seus interlocutores, pro-


pôs-se que os criminosos fossem forçados a trabalhar para a comunida-
de. Nesse momento, aparece-lhes um bufão sugerindo que os infratores
fossem acolhidos nos conventos, sendo então convertidos em piedosos
e trabalhadores cidadãos. Isso fez gargalhar um frade, doutor em teolo-
gia, que se encontrava a falar com eles.
Neste mesmo jogo de ironia jocosa, a resposta do frei insiste que


30
Superbia – palavra latina cujo significado quer dizer soberba/orgulho – no texto o termo
apropriado é o orgulho.
31
Utopia II, 76.
32
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno... cit., p. 279.

33
Membro da Ordem Terceira, uma das três fraternidades dentro da mesma Ordem fun-
dada por São Francisco de Assis. Assim se dividem as fraternidades: Primeira – ramo dos frades;
Segunda – as monjas clarissas; Terceira – dos leigos. Dessa forma, São Francisco acolhia a todos em
sua Ordem.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 73

tal alternativa não livraria os malfeitores, somente por se tornarem co-


laboradores dos religiosos. Contestou-lhe o bufão, afirmando que isso
seria sim uma excelente solução, pois caso os vagabundos fossem conde-
nados a trabalhar, seria muito mais lucrativo, já que os religiosos eram
os tipos mais ociosos que existiam.34
A comparação de que os membros das ordens religiosas seriam
mais desocupados que mendigos, empregada um bufão – que no perí-
odo do Medievo era caracterizado como o sábio que dizia coisas sérias
através do deboche inteligente – seria mais uma artimanha divertida,
escancarando a crítica moreana.
Em relação aos abusos religiosos da época, Dawson diz que o
descaso dos bispos seria menos prejudicial caso as ordens religiosas
tivessem mantido suas atividades quanto antes, em outros momentos
sombrios da Igreja.
Contudo, as grandes abadias tinham se tornado corporações lati-
fundiárias, tendo os abades sido nomeados entre os favoritos dos papas
ou dos reis ingleses, pessoas da nobreza totalmente descomprometidas,
desviando-se dos ideais religiosos.
Na triste realidade inglesa da época de More, apenas os monges
Cartuxos, os frades Observantes, seguidores da Reforma de São Bernar-
dino de Sena, que ainda se mantinham fiéis aos ideais do catolicismo. 35

8. Irmãos na alma, no humanismo e na fé

A crítica jocosa revela a proximidade entre dois grandes huma-


nistas: More e Erasmo36, um grande amigo, com o qual partilha a mesma

34
Utopia I, 50-51.

35
DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade – da Reforma Protestante à Era do Iluminis-
mo. Trad. Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, 2014. p. 108.
36
Desidério Erasmo, 1466-1536, nascido em Roterdã, tendo desenvolvido grande parte
de sua atividade intelectual em Basileia, na Suíça, onde faleceu e está sepultado. Grande pensador
humanista, padre católico, crítico da filosofia escolástica, do acúmulo de dinheiro e poder por parte
de muitos bispos e clérigos, crítico da política e dos desmandos reais. Publicou uma edição crítica
do Novo Testamento Grego em 1516 - Novum Instrumentum omne, diligenter ab Erasmo Rot. Recog-
nitum et Emendatum. Incluindo anotações de seus estudos baseados em manuscritos descobertos
na época. Uma segunda versão revista dessa Bíblia foi usada na tradução da Bíblia do Rei Jaime
I de Inglaterra. O texto ficou conhecido mais tarde como o textus receptus. Erasmo publicou mais
três edições - 1522, 1527 e 1535. Seu trabalho bíblico foi dedicado ao Papa Leão X, como patrono da
aprendizagem, que considerou seu trabalho como o seu principal serviço à causa do Cristianismo.
Estabeleceu um “programa para a Reforma da Igreja”, baseado na remoção dos piores excessos
financeiros e políticos, porém, falhou devido à resistência de boa parte do episcopado e da nobreza
que lucrava com a degeneração religiosa. Quando Erasmo foi acusado de ter “posto o ovo que
74 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

visão crítica da urgente necessidade de uma reforma na religião, na so-


ciedade, através da mudança de consciência.
A vida do espírito havia sido relegada à vida privada, a salvação
não era mais a preocupação da hierarquia eclesiástica, tampouco dos
governantes.
A ordem temporal se transformara em comunidade secular, com
o monopólio da representação pública, retendo tanto das tradições cris-
tãs quanto a circunstância histórica deixada no momento.37
Observa-se, tanto em More quanto em Erasmo que a transforma-
ção do poder espiritual no poder do intelectual secular. Desenvolvem o
conceito de que a superbia parecia ter tomado as consciências. Portanto,
seria mais urgente uma mudança de consciências e, a partir desta, a re-
novação das instituições.38
Ambos os autores têm a percepção de que a ideia de Christianitas
como o corpo místico de Cristo, articulada em suas ordens espiritual e
temporal com grau público integral, já não era vivenciada como uma
ordem pública representativa na comunidade, devido aos abusos come-
tidos por grande parte do clero.

9. Superbia: a raiz de todos os males

A dúvida apresentada pelo intelectual do que haveria de fazer é

Lutero chocou” ele admitiu parcialmente a verdade da acusação, mas disse que tinha esperado
outra espécie de pássaro completamente diferente, mas nascera uma serpente. Isso afirmara, pois o
reformador alemão fora seduzido pelos mesmos vícios que Erasmo combatia, ou seja, a ganância e
a proximidade com o poder, em um novo tipo de cesaropapismo. Tendo conhecido pessoalmente
Tomas More, John Fisher, bem como o rei Henrique da Inglaterra, ficou decepcionado com a prisão
e a posterior execução de ambos, seus grandes amigos. Tinha extrema consideração por More e foi
um dos grandes divulgadores de seu testemunho. Dizia que More era “o homem que não vendera
sua alma”. Apesar das críticas e do temperamento irônico e debochado com o episcopado, Erasmo
sempre se manteve fiel ao catolicismo, tendo escrito textos combativos a os feitos de Lutero. Nos
últimos anos de sua vida, teve de fugir de Basileia devido ao fato de a cidade ter aderido à Reforma.
Após seis anos vivendo em Friburgo, retornou à sua cidade, onde pode alegremente terminar seus
dias. Após sua morte seus livros foram acusados de heresias tanto pelos católicos quanto pelos
protestantes. O Cardeal Roberto Bellarmino, um jesuíta extremamente culto, observou que as crí-
ticas elaboradas por Erasmo estavam corretas e que ele nunca fora um herege. Suas obras foram
novamente reconhecidas e seu humor sarcástico ainda leva à refletir sobre a ganância e a sedução
pelo poder por parte da Igreja. Para Erasmo, a verdadeira Reforma era a reforma das mentalidades,
obtida através de um conhecimento da Palavra de Deus e do testemunho dos Padres da Igreja, es-
pecialmente Santo Agostinho. BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro...cit., p. 142-147.
37
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno... cit., p. 247.

38
Quanto a esta questão, Voegelin discorre: “Como um cristão consciencioso e teólogo trei-
nado, More sabia que a superbia não pode ser abolida por mecanismos institucionais.” VOEGELIN,
Eric. História das ideias políticas... cit., p. 147.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 75

respondida por More através do exemplo de Rafael, o qual deixara da


segurança de seu lugar de origem para aventurar-se no desconhecido
novo mundo, mas que não estaria a serviço dos poderosos, pois, como
o pão fora substituído pela ganância, a sabedoria também o fora pelo
orgulho.
O problema da propriedade privada levava à superbia, tornando
quase impossível que se pudesse governar justamente, que se fizesse
florescer a prosperidade, porque o interesse se volta ao lucro e não à
produção.39
A conexão estabelecida entre superbia e injustiça mostra-se inse-
parável. A propriedade deveria ser abolida porque é o principal instru-
mento para o deleite da superbia. O orgulho é a fonte real do mal, porque
o orgulho mede seu bem-estar não em termos de riqueza, mas pela mi-
séria dos outros.
Dessa forma, aqueles que detêm a propriedade e o dinheiro fin-
gem representar o interesse da comunidade, e com esse pretexto tomam
conta de seus próprios interesses. Elaboram truques legais para manter
a salvo o que ganham injustamente, explorando o trabalho daqueles que
se colocam a seu serviço.40
Após essas discussões preliminares, as personagens propõem a
Rafael que lhes conte sobre Utopia enquanto se dirigem para a refeição,
concluindo assim o primeiro livro.

10. Assim na Inglaterra como em Utopia

Ao iniciar o Livro II, Rafael lhes conta que o nome Utopia advém
do rei que havia conquistado aquele lugar, Utopos. Este conduziu seu
povo, rude e selvagem aos bons costumes e à perfeição, em uma cla-
ra alusão aos ideais humanistas de civilização que deveria ser levado a
todo mundo.41
Na ilha de Utopia tem-se cinquenta e quatro cidades-Estado con-
federadas, amplas e belas, estando Amaurotus, a capital e principal ci-
dade do país, no centro da ilha42. Esse número de cidades-Estado não se
trata de uma mera casualidade, pois, na época de More havia na Ingla-
terra exatos cinquenta e quatro condados. Ademais, o nome da capital,

39
Utopia I, 64-65.
40
FONTAN, Antón. Príncipes y humanistas... cit., p. 141.
41
Utopia II, 71.
42
Utopia II, 71-72.
76 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

Amaurotus, é um termo grego que significa nebuloso, brumoso, sombrio,


um gracejo irônico a Londres, evidenciando que justamente estava a sa-
tirizar sua amada Inglaterra.43
Rafael lhes diz que nos campos há vários sítios habitados por
muitas pessoas que se dedicam à agricultura, os quais periodicamente
trocam suas moradias e labores com os habitantes das cidades. Dessa
forma, todos os utopienses aprendem e praticam essa nobre tarefa de
produzir alimentos, existindo muitos que ficam mais tempo cultivando,
pois sentem grande alegria nesse labor.44
A economia utopiana não se dedicava ao mercantilismo. Ao
contrário, estruturava-se em uma economia que produz essencialmente
para o consumo interno produtos com valores de uso.
Fundar a sociedade baseada em uma economia que está orien-
tada para a produção de valores de uso foi a maneira encontrada por
More para estabelecer uma divisão social do trabalho que fosse capaz
de organizar relações sociais de produção, das quais fosse excluída a
propriedade privada.
Na ilha de Utopia, a aplicação de todos ao trabalho, sem a menor
possibilidade da existência de privilégios, era a hipótese que More utili-
zava no intuito de acabar com a falsa impressão de superioridade social.
Logo, a superbia, fonte de todos os vícios, seria aniquilada.45

11. Trabalho que produz o pão e a salvação

Como católico e humanista tinha como meta a redução da pobre-


za, a valorização do trabalho, tornando a riqueza compatível com uma
sociedade fraterna. E isto somente seria possível se todos recebessem
tratamento igualitário em um uma sociedade na qual todos teriam as
mesmas oportunidades.46
Em Utopia os trabalhos braçais mostravam-se extremamente im-
portantes, gozando da mesma categoria que quaisquer outros trabalhos
na sociedade. Assim, toda população sabe trabalhar, entendendo como


43
“No parece mera coincidencia. El objeto de crítica de Moro sigue siendo el Reino de Inglaterra,
pero también el resto de las monarquias absolutas de la Europa Cristiana.” FONTÁN, Antón. Príncipes y
humanistas... cit., p. 289.
44
Utopia II, 72-73.

45
MIGUEL, Luis Felipe. O nascimento da Política Moderna. Brasilia: Editora Universidade de
Brasília: Finatec, 2007. p. 57-59.
46
FONTAN, Antón. Príncipes y humanistas... cit., p. 304-305.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 77

se planta e colhe, como se produzem os alimentos denota a crítica more-


ana quanto à nobreza e à burguesia renascentista e sua peculiar ociosi-
dade e desonestidade.
More faz uma crítica aos excessos de uma falsa privacidade na
vida cotidiana, que fora caracterizado pela burguesia mercantilista da
renascença, que se baseava na propriedade privada, construindo patri-
mônios admiráveis. Isso visava ostentar uma alta qualidade de vida, cuja
riqueza é medida em relação à indigência da maioria da população.47
Nesse sentido, o texto moreano enfatiza que todos tivessem aces-
so às residências. Nestas nada havia que não fosse de uso comum, sendo
que a cada dez anos, mediante sorteio, havia uma troca de casas entre os
cidadãos.48
As questões sociais de sua época revelam as implicações políti-
cas presentes na Utopia. Usando de sua ironia, esforça-se na intenção
de se eliminar a distância social existente entre a nobreza e burguesia
mercantilista com os pobres camponeses e mendigos em sua sociedade.
Em Utopia o príncipe é eleito democraticamente e seu cargo é
vitalício, a menos que seja deposto por suspeita de tirania.49
More concebia que muitas atitudes dos governantes poderiam
ser questionadas, especialmente no que se refere às guerras, aos impos-
tos e à manutenção de uma corte ociosa. Porém, o mais grave perigo ao
reino consiste na tirania, da qual ele mesmo, alguns anos após a edição
de seu livro, seria vítima.
Considerando sua pontualidade e seus rigorosos hábitos pesso-
ais, o autor dispõe em apenas seis horas diárias a jornada de trabalho
dos utopienses, onde todos trabalham, homens e mulheres, sem distin-
ção.
O dia de trabalho teria início às sete horas, sendo que ao meio
dia almoçavam, descansando por duas horas, reiniciando as atividades
laborais às três da tarde, terminando o dia às seis da tarde, quando se
dirigiam às suas casas, jantavam e dedicavam uma hora a jogos e di-
vertimentos em família, após descansavam por oito horas no período
noturno.50
Estes horários estão precisamente definidos para produzir sufi-
ciente e abundantemente todas as coisas necessárias para a vida.

47
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 187.
48
Utopia II, 76.
49
Utopia II, 77-78.
50
Utopia II, 81.
78 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

Uma vez mais critica a nobreza, a burguesia e o clero, cuja cobiça


e orgulho são causas de que o trabalho seja exercido apenas pelos menos
favorecidos, que trabalham de sol a sol. Tais excessos não ocorrem em
Utopia.51
Ante uma sociedade na qual o dinheiro determina o exercício
de muitas ocupações, servindo exclusivamente para fomentar o orgulho
e prazeres desonestos, Utopia apresenta uma situação completamente
oposta àquela vivida na época de More.
A crítica social moreana expõe os males sociais da época, através
da descrição ricamente elaborada no decorrer do texto, evidenciando
sugestões para melhorias concretas.
Dessa forma, a verdadeira nobreza se encontrava no desenvolvi-
mento humanista de virtudes e não o legado histórico familiar ou rique-
zas.52
Para se alimentarem, os habitantes se dirigiam à praça do merca-
do, onde adquiriam todo o necessário, porém, sem pagar.53
Isso era possível porque havia uma produção voltada à satisfa-
ção das necessidades da população, não possibilitando gastos com coi-
sas supérfluas ou com a ostentação que leva à superbia.

12. Nem só de liberdade vive Utopia: a escravidão

Alegando que se deve evitar qualquer tipo de violência, os cida-


dãos relegam aos escravos o que acreditam ser algo indigno, pois requer
o uso da violência. Assim, ao preparar a carne que será consumida, os
cidadãos livres não estão autorizados a realizar tais tarefas, que eram
realizadas pelos escravos.54
Estes escravos eram justamente aqueles que foram condenados
pelo cometimento de graves delitos, considerados como hediondos.
Destarte, eram condenados ao trabalho contínuo, em favor de toda a
comunidade.55
Há neste mesmo trecho uma interessante exceção quanto aos pri-
sioneiros de guerra, já que não seriam escravizados os derrotados em
uma batalha contra os utopienses. Contudo, havia a exceção daqueles

51
Utopia II, 82-83.
52
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno... cit., p. 256.
53
Utopia II, 88.
54
Utopia II, 88.
55
Utopia II, 119.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 79

que atacavam Utopia, que se tornavam escravos, porém, apenas eles,


poupando-se seus descendentes.56
More critica a escravidão que se praticava ainda em muitos rei-
nos europeus. Todavia, substitui a pena de morte pela escravidão, em
um evidente ideal humanista visando atenuar as penas capitais, larga-
mente empregada nas leis da época.
Convém recordar que More escreve para um público específico,
para os seus pares, aqueles que detinham os instrumentos linguísticos,
culturais e filosóficos que lhes permitiriam decodificando o texto. Por-
tanto, é necessário entender o autor e sua obra como fruto de seu tempo
e que espelha aquela cultura.57

13. Solidariedade: na saúde e na doença

Na sociedade utopiana, os enfermos eram os primeiros a recebe-


rem os alimentos, que são atendidos nos quatro grandes hospitais, que
se localizavam no entorno da cidade, um pouco distante das muralhas.
Estes hospitais são grandes, espaçosos que mais pareciam quatro peque-
nas cidades.58
More ressalta a solidariedade e o respeito para com os enfermos
em uma época que os hospitais eram depósitos de doentes.
Ao que tudo indica, durante suas embaixadas, More teria conhe-
cido na Itália hospitais que se adequavam aos ideais humanistas. Nestas
instituições, os doentes eram atendidos por médicos e o ambiente estava
arejado e limpo. More incentivou que o futuro médico real, Sir Thomas
Linacre, fosse viver algum tempo na Toscana e em Roma, o que possibi-
litou o desenvolvimento do ideal de saúde humanista na Inglaterra.59

14. Deixe a morte me levar

O tema da enfermidade localiza um dos dilemas morais suscita-


dos na obra Utopia, a morte digna.
No caso de uma enfermidade incurável, gerando consigo sofri-
mento e angústia, os sacerdotes e os médicos exortavam o doente, que

56
Utopia II, 119.
57
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 78-79.
58
Utopia II, 89.
59
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 315-317.
80 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

não se mostrava apto a realizar nenhuma função vital e que sua sobrevi-
vência lhe traria maiores tormentos, tornando-se uma verdadeira tortu-
ra. Decidia-se a não consentir a continuidade desse mal, optando-se por
terminar este sofrimento com uma morte digna.
Aqueles que assim decidissem, terminariam suas vidas volunta-
riamente, deixando de se alimentarem, morrendo durante o sono, sem
nenhuma sensação de agonia.
Contudo, ninguém seria obrigado a morrer contra sua própria
vontade, tampouco deixariam de usar da mesma atenção e cuidado que
têm para com todos os enfermos com aquele que decidira continuar a
sofrer as dores e angústias de sua enfermidade incurável.60
Assim, essa morte que acabava com a dor, não seria contrária
às leis divinas, pois estaria de acordo com os sacerdotes, intérpretes da
vontade de Deus, agindo de modo honrado e virtuoso.
Quanto àqueles que tiravam sua própria vida, sem o necessário
aconselhamento dos sacerdotes e dos magistrados, tinham seus corpos
jogados em um pântano, pois eram considerados indignos de receberem
sepultamento ou de seus corpos serem consumidos pelas chamas.61
A morte digna assistida, com a permissão da religião e da justiça,
demonstra que não é permitido tirar a vida de ninguém, mesmo que
tenha cometido um crime.62
Observa-se a forte influência platônica, presente nessa concep-
ção moreana, como uma forma de se entender o conceito de morte digna
assistida63. O dilema moral apresentado nos convida à reflexão, ante a
complexidade do tema.

15. O tesouro pelo qual se dá a vida: a Família

A visão moral cristã está presente no que se relaciona ao casa-


mento. More nos diz, através de Rafael que caso alguém tenha pecado

60
Utopia II, 119-120.
61
Utopia II, 120.
62
Utopia I, 43-44.
63
Berglar se refere a esta passagem de A República, na qual se aconselha a deixar morrer
aqueles que não têm condições de se reuperar de uma enfermidade: “El ciudadano tiene un deber
que cumplir en todo Estado bien organizado; nadie puede pasar su vida con las enfermedades y los remédios.
Establecerás, Glaucón, en el Estado una disciplina y una jurisprudência tales como nosotros las entendemos,
prodigando cuidados a los ciudadanos bien sanos de cuerpo y alma. Por lo que respecta a los que no estén sanos
de cuerpo, se los dejará morir.” PLATÃO. República, III Apud BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro...
cit., p. 322.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 81

antes do matrimônio, seria condenado e severamente castigado. Não lhe


seria permitido casar-se, exceto se esta falta fosse absolvida pelo prínci-
pe.64
Alegando que o sentido dessa norma se encontra na proteção ao
matrimônio, que não deve ser dissolvido, senão pela morte de um dos
cônjuges, preserva a união conjugal da degeneração do adultério.
Caso ocorresse este problema, a parte ofendida deveria buscar o
Conselho, o qual se encarregaria de analisar o caso. Assim, após a análi-
se e a consequente decisão do Conselho, a parte traída receberia a licen-
ça para se separar e, posteriormente, contrair novas núpcias, enquanto a
parte adúltera seguiria vivendo na infâmia fora do casamento.
Porém, ante uma situação de desentendimento do casal, onde se
tornasse impossível a convivência, considerava que seria uma grande
crueldade expor uma família a tal conflito. Assim, caso fosse impossível
que se restabelecesse a harmonia, em vista de uma vida mais pacífica e
alegre, e estando ambos em pleno acordo, torna-se possível o divórcio.
Contudo, sem uma análise pormenorizada e o consentimento
do Conselho, nenhum divórcio se realizaria em Utopia65. Este posicio-
namento que considera a unicidade e indissolubilidade do matrimônio
tornar-se-á a causa da condenação e do martírio de More, uma vez que
em nada o casamento entre Henrique e Catarina se enquadrava nas hi-
póteses nas quais poderia ser passível de anulação.66

16. Pacifistas, porém, guerreiros

Quanto à difícil questão da defesa, Rafael alega que os utopien-


ses detestavam a guerra, considerando-a desagradável e primitiva, um
costume animalesco, uma verdadeira ignomínia que todos deveriam se
envergonhar. Este posicionamento se mostra em total oposição ao ideal
glorioso das vitórias obtidas pelos reis, nas batalhas que consideravam
bravura e valentia, um verdadeiro prazer nos tempos de More. 67
  A imbecilidade da guerra torna-se ainda mais desumana

64
Utopia II, 121.
65
Utopia II, 122.

66
Não podemos nos esquecer que os casamentos reais, no tempo de More, eram
compromisso de Estado, e no caso de Henrique e Catarina, o matrimônio estava consumado e
corria na normalidade há mais de 10 anos, portanto, seriam impossíveis quaisquer alegações da
parte do rei, visto que o mesmo buscava a anulação do casamento para viver com uma de suas
amantes. BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 115-116.
67
Utopia II, 129.
82 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

quando se usam mercenários, uma prática muito comum naquela época.


Rafael conta que os Zapoletas68, dedicavam-se somente à guerra, alegran-
do-se enormemente quando a conseguiam, oferecendo seus serviços por
pouco dinheiro, ganhando a vida buscando a morte. 69
Entretanto, apesar de desprezarem a guerra, os utopienses eram
treinados e equipados para ela, não só para proteger seus tesouros ame-
alhados com o comércio e o arrendamento de terras, mas também para
defender seu território, ou ajudando algum povo oprimido. Utopia mos-
trava-se independente de tropas de mercenários, prática muito comum
na Europa nos tempos de More, pois, seu povo, a pesar de pacífico, sabia
defender seus interesses.70
Uma estratégia usada pelos utopienses era o enfraquecimento
moral de seus adversários. Estimulavam as dissidências internas incen-
tivando as traições e revoltas contra os dirigentes. Destarte, ao dividirem
internamente seus adversários os tornava mais fracos, o que lhes poupa-
va de uma guerra com muitas vítimas fatais.71
Dessa forma, Utopia somente conhece a guerra caso se trate de
“guerra justa”, pois são contrários a qualquer tipo de violência.

17. Em nome do Altíssimo

O último tema tratado na longa conversa trata-se da religião. Em


Utopia existe a liberdade religiosa, já que Utopos tomou a decisão de
deixar livres os utopienses no que concerne à religião, a fim de que se
conservasse a paz.
Essa seria uma de suas mais antigas leis, que nenhuma pessoa
fosse censurada por manter e defender sua religião. Antes da chegada
deles à ilha, havia muitas discussões religiosas e, para encerrar tais dis-
cussões, decretou-se que cada um seguisse a religião que melhor lhe
aprouvesse.72
More critica o uso do cuius regio eius religio73 para a obtenção da
convivência religiosa, sugerindo justamente o contrário, o rei deixando
com que seus súditos escolhessem a religião que quisessem. Essa con-

68
Termo cujo significado grego é aquele que se vende com facilidade.
69
Utopia II, 134.
70
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno... cit., p. 219.
71
FONTAN, Antón. Príncipes y humanistas... cit., p. 292.
72
Utopia II, 143.
73
Que a religião do rei seja a de seu reino.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 83

cepção de More terá ressonância na posterior ideia de tolerância propos-


ta por Locke, permitindo que cada um possa crer no que desejar, em um
notório deísmo, em nome de um mútuo respeito religioso.
Considerando que Horta enfatiza que “religião é poder, devendo
ser entendida como algo muito mais importante que uma mera questão
de crença”, mostrando-se um tema essencial devido à profunda vincula-
ção entre poder temporal e religioso, como elemento determinante para
a cultura ocidental.74
More acreditava que o senso comum dos fiéis os levava a perce-
ber que os príncipes nada mais queriam senão aumentar suas rendas,
pouco se importando com a salvação das almas de seu povo, em uma
clara negligência de seu múnus real. Dessa forma, como havia ocorrido
no passado durante a controvérsia ariana75, quando apenas os leigos e
apenas um único bispo, Santo Atanásio, mantiveram o depósito da fé, o
sensum fidelium conseguiria manter intocada a doutrina.
Ademais, os fiéis sabiam que as propostas de Reforma Religiosa
advindas por parte dos príncipes, não passavam de um jogo de interes-
ses para acomodar seus objetivos de dominação e ganância, tendo uma
instituição que os abençoasse e os justificasse.76
Apesar da crítica aos membros da Igreja de seu tempo, More
manteve-se fiel à autoridade do magistério e da tradição da Igreja. O
recurso exclusivo à autoridade do texto da Sagrada Escritura, sistemati-
camente praticado pelos adversários, More opôs a autoridade do magis-
tério, partindo dos textos da Escritura, passando pela literatura patrís-
tica, grega e latina, até aos concílios ecumênicos, invocando a doutrina
transmitida à Cristandade ao longo dos séculos.77
A fé de Tomas More evidencia-se por estar intimamente rela-
cionada à intensidade de sua vida. Expressava seu fervor no convívio
familiar, ao mostrar-se útil a todos através de seu trabalho, no qual teve
dedicação exemplar. Também a expressão literária, nascida nos ideais
cristãos medievais, voltada à dedicação para promover uma verdadeira


74
Notas de aula do Prof. Dr. José Luiz Borges Horta, no Curso (Re)leituras do político, da
polis à despolitização I, oferecida pelos Professores: Prof. Dr. José Luiz Borges Horta e Profa. Dra.
Karine Salgado, do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG, no primeiro semestre de
2015.

75
Heresia do início da Igreja, estabelecida por Ario, padre de Alexandria, que afirmava
ser Cristo a essência intermediária entre a divindade e a humanidade, negava-lhe o caráter divino,
portanto, não era consubstancial ao Pai, desacreditando a Santíssima Trindade.
76
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 347-349.
77
BERGLAR, Peter. La hora de Tomás Moro... cit., p. 388.
84 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

Reforma da Igreja: a reforma que cada um pode fazer em sua própria


vida.78

18. Do sonho ao real: a presença do universo utópico no direito.

Apesar de retratarem lugares imaginários e inexistentes, e, à pri-


meira vista, mostrarem-se distantes da realidade, as utopias possuem a
capacidade de interferir sobremaneira no universo real e cotidiano.  
A utopia retrata lugares onde inexiste o mal, onde há, ubiqua-
mente, harmonia, paz, fartura e felicidade. Isso não faz dela, contudo,
um lugar anárquico, desprovido de leis e regras. Pelo contrário, sua or-
dem é explícita.  
Ao analisar a descrição feita por Rafael sobre ilha de Utopia, ob-
serva-se um intrínseco e complexo sistema político e, inclusive, normati-
vo (por mais que não se possa chamar de direito). Um sistema distinto,
sim. Mas, não obstante, um sistema.  
Compreende-se, assim, que as utopias não advogam para uma
sociedade sem poder ou leis, mas sim para uma sociedade à margem da
vivenciada, trazendo consigo a importante atividade do pensar diferen-
te. Nesse contexto, cumpre trazer a lição de Paulo Ferreira Cunha: 

As regularidades do género utópico são conhecidas. Desde


logo, poderiam (tal como o próprio empreendimento jurídico
e constitucional) sintetizar-se no elemento caracterizador “ra-
cionalidade”: ordem, simetria, harmonia, geometrismo, hierar-
quia, concentracionarismo, etc. Com excepções, claro. Mas se
tal é verdade, facto é também que, ao mesmo tempo, e sem con-
tradição, a utopia tem a enorme vantagem de abrir a mente dos
cidadãos das sociedades tópicas. Abrir-lhes a mente a outras
possibilidades, rasgar-lhes horizontes de esperança e possibi-
lidade, para além das do seu regular e pardacento quotidiano79

  No âmbito do direito, a utopia possui o importante papel de


instigar o sujeito a pensar além das regras positivadas, fazendo a impor-
tante ligação entre o universo jurídico e o universo do possível. Não que


78
“Uma vez que More diagnosticou os males do tempo como uma excitação da superbia, a
resposta cristã teria de ser a restauração da ordem espiritual através, por exemplo, da reforma da
Igreja.” VOEGELIN, Eric. História das ideias políticas... cit., p. 148.

79
CUNHA, Paulo Ferreira. Direito, Utopia e Insularidade. Revista de Cultura, Atlântida,
Instituto Açoreano de Cultura, Angra do Heroísmo, v. LV, 2010, p. 11. Disponível em: http://works.
bepress.com/pfc/125/. Acesso em: 20 de abril de 2016.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 85

elas sirvam como base para projetos jurídicos factuais, uma vez que ten-
dem a simplificar o universo real.  
A questão central, contudo, resta na forma de se passar do es-
tágio  imaginário para o estado real. Segundo alguns autores, como o
citado Paulo Ferreira da Cunha, essa questão pode ser respondida pelo
constitucionalismo. 
No mundo ocidental, vivemos sob a égide do direito constitucio-
nalizado, e as constituições representam justamente a utopia, ou, mais
precisamente, o utopismo, em forma de lei. Ela reflete os anseios, valores
e objetivos da sociedade. Mais do que um sistema normativo, a consti-
tuição revela, ou deveria revelar, aquilo que uma sociedade almeja ser. 
Verifica-se que as constituições hodiernas trazem em seu texto
dispositivos que, à época de More, seriam impensáveis no universo do
real, tais como a igualdade entre os sexos, a liberdade, a separação de
poderes, o sufrágio universal, entre outros. Todavia, mesmo que outrora
inimagináveis, aqui eles estão, presentes no dia a dia. 
Após a segunda guerra mundial, com a declaração universal dos
direitos humanos da ONU, e, especialmente, com sua incorporação em
vários dos sistemas jurídicos ocidentais, nota-se que o utopismo (pois a
referida declaração é, antes de mais nada, utópica) se arraigou de forma
profunda e, ao que tudo indica, definitiva, no constitucionalismo, viabi-
lizando, inclusive, a restrição do próprio poder do Estado. 
Hoje não mais se imagina ilimitado o poder soberano estatal, a
ponto de institucionalizar discriminações raciais ilegítimas, tais como
ocorreram à época do nazismo, ou estimular  a guerra, o genocídio, o
nacionalismo exacerbado, etc.  
Pelo contrário, percebe-se que, atualmente, busca-se combater,
juridicamente,  as aludidas práticas. Evidência disso é a consolidação
dos direitos fundamentais de terceira dimensão, também chamados de
direitos de fraternidade, dentre os quais se destaca a paz, a autodetermi-
nação dos povos e o direito ao progresso.  
Abandonou-se, assim, o positivismo engessante de décadas
atrás, dando lugar a uma visão mais reflexiva e zetética sobre a função
constitucional.  Nesse contexto,  vale trazer,  novamente,  as palavras de
Paulo Ferreira da Cunha:  

Recordemos entretanto o que se passou da banda do Direito


Constitucional, e para isso bastará que nos limitemos ao que
ocorreu em Portugal: se ainda há cinquenta anos, o conceito de
constituição [...] ainda era a de uma doutrina da forma jurídica
86 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

do Estado, com muito de positivismo e quase nula permeabi-


lidade à ideia de constituição natural e do seu conceito histó-
rico-universal, a evolução foi-se operando, tendo tido como
cume problemático a síntese de Gomes  Canotilho, que deci-
sivamente liberta, em Portugal, o universo constitucional da
perspectiva  definitório-positivista dogmática: ‘A Constituição
é um estatuto reflexivo que, através de certos procedimentos,
do apelo a auto-regulações, de sugestões no sentido da evolu-
ção político-social permite a existência de uma pluralidade de
opções políticas, a compatibilização dos dissensos e possibili-
dade de vários jogos políticos, a garantia da mudança através
da construção de rupturas80’.81

O constitucionalismo, em constante evolução, já galgou distân-


cias para a construção de um mundo mais justo. Este é o legado que nos
foi deixado pelo desafiador sonhar da utopia. 

19. Conclusão

 No ano de 1516, Tomas More propõe soluções e transformações


que ainda se mostram extremamente atuais, como uma melhor regula-
mentação do trabalho, a participação na produção pelos empregados
e, principalmente, o respeito ao país por parte dos governantes. Como
fundamento dessas transformações destaca um programa de educação,
tal qual na sua Utopia, que abrangesse os aspectos físico, intelectual, ar-
tístico, cívico, moral e religioso, aberta a todos e de caráter permanente.
Afinal, em uma sociedade culta, na qual todos os seus membros
possuam uma sólida formação humana, social e cívica é, necessariamen-
te, uma sociedade mais justa.
Tanto na obra quanto de modo especial no testemunho de Tomas
More torna-se viva a afirmação de Lima Vaz que a vida espiritual e cul-
tural constituem as ricas matrizes heurísticas82 que nos permitem inter-

80
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, 5. ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 14
Apud CUNHA, Paulo Ferreira. Lion in Winter – Tomás Moro na nossa estação. Diálogos com o Di-
reito Constitucional, o Cristianismo e a Utopia Social. Revista Brasileira de Direito Constitucional, São
Paulo, ESDC, n. 7, v. 1, p. 379-390, 2006. Disponível em: http://works.bepress.com/pfc/36/. Acesso
em: 12 de abril de 2016. p. 15.
81
CUNHA, Paulo Ferreira. Lion in Winter – Tomás Moro na nossa estação... cit., p.15.
82
Heurística: método ou processo criado com o objetivo de encontrar soluções para um problema. É
um procedimento simplificador, ainda que não simplista, que em face de questões difíceis envolve
a substituição destas por outras de resolução mais fácil a fim de encontrar respostas viáveis, ainda
que imperfeitas. KAHNEMEN, Daniel. Rápido & Devagar; Duas Formas de Pensar. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2012, p. 127.
Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 87

pretar os universos simbólicos que presidiram ao ciclo das civilizações


do Ocidente. 83
Mostra-se muito propícia a reflexão do historiador inglês Daniel
Sargent, ressaltando a coragem do homem que enfrentou a prepotência
de um obstinado tirano:

O machado cai sobre esta palavra – traição – separando de seu


corpo aquela cabeça que, em um mundo cheio de revoltas e de-
sordem, cometeu o equívoco de querer ser fiel à consciência.84

Referências Bibliográficas

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tos fundamentais de terceira dimensão: aspectos teóricos e aplicabilida-
de nas decisões do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Amicus Curiae,
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ções, 2014.
DAWSON, Christopher. Dinâmicas da História do Mundo. Trad. Maurício
G. Righi. São Paulo: É Realizações. 2010.

83
VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia III…, cit., p. 224.
84
SARGENT, Daniel. Thomas More. New York: Sheed & Ward, 1938, p. 374 Apud BERGLAR, Pe-
ter. La hora de Tomás Moro...cit., p. 395.
88 • Capítulo 3 - Tomas More: da utopia à eternidade

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Cézar Cardoso de Souza Neto & Lucas Camargos Bizzotto Amorim • 89

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Paulo: É Realizações, 2014.
CAPÍTULO 4

Thomas Hobbes
O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

João Protásio Farias Domingues de Vargas1


Levindo Ramos Vieira Neto2

Introdução

O presente texto aborda a presença da Ciência do Estado nos


tratados de Hobbes de acordo com vários autores. O desenvolvimento
apresenta uma segmentação composta por grupos de autores aborda-
dos: 1) Hobbes: politólogo e estadólogo e 2) Hobbes: jurista e estadólo-
go. Uma pesquisa sobre o limiar da Ciência do Estado na Modernidade
tem que passar pelos clássicos pensadores sobre o Estado, que são, pelo
tronco da árvore de abordagens, Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Mon-
tesquieu e Kant. Não perquirimos aqui sobre a Ciência do Estado na
Contemporaneidade, inaugurada a partir do século XIX, onde figuram
Hegel, Marx, Comte, Weber e Durkheim como os primeiros. Também
não abordaremos aqui o limiar da Ciência do Estado na Antiguidade,
com Platão, Aristóteles, Plotino, Cícero e Agostinho sob a base, e nem no
medievo. Nossa pesquisa se cinge a um único autor da modernidade,
Thomas Hobbes, na sua clássica trilogia De Cive (sociedade), Leviatã (Es-
tado) e Behemoth (Guerra), para quem perguntamos, igualmente a outros
autores, se Hobbes, ao escrever tais obras, atuava como politólogo, como
jurista ou como estadólogo (que inclui o estadista). Esta pergunta foi
também dirigida para duas dezenas de importantes autores: Karl Man-
nheim, Pierre Bourdieu, Norberto Bobbio, Martin van Creveld, Michel
Villey, Franz Wieacker, Friedrich Hegel, Gaetano Mosca, Montesquieu,


1
Mestrando em Direito na UFMG, sob a orientação o Prof. Dr. José Luiz Borges Horta;
Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS; Bacharel em Ciências do Estado pela UFMG.

2
Mestrando em Direito pela UFMG, sob a orientação do Prof. Dr. Joaquim Carlos Salgado;
Bacharel em Direito pela UFMG.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 91

José Maria Rodrigues Paniágua, John Gunnel, Joaquim Carlos Salgado,


José Luiz Borges Horta, Carl Schmitt, Jürgen Habermas, Giovanni Sarto-
ri, Samuel Finer, John Gillisen e Hannah Arendt.
O plano de desenvolvimento do projeto de texto prevê três par-
tes, cada uma para um artigo distinto. A Parte I, no primeiro artigo, apre-
sentará uma biobibliografia de Hobbes (bastante compacta) e abordará a
Ciência do Estado no tratado De Cive (1640) e no Behemoth (1668). A Parte
II, no segundo artigo, abordará a Ciência do Estado exclusivamente no
tratado Leviatã (1651), dado o fato de ser esta obra a mais extensa e densa
dentre as outras duas. A Parte II, no terceiro artigo, abordará a Ciência
do Estado em Hobbes segundo diversos autores, acima mencionados.
Seria o ideal que a abordagem do Leviatã sucedesse a do De Cive, e que a
totalidade da abordagem compusesse um único texto, porém, por ques-
tão de espaço textual, tivemos de segmentar as abordagens e intercalar o
Behemoth entre as duas obras de ponta; porém, isso não impediu a com-
preensão das abordagens feitas e nem a exposição do resultado buscado
pela pesquisa, cuja conclusão se encontra no terceiro artigo, na Parte III.
Por uma opção metodológica, parte desta introdução será repe-
tida nos três artigos e cada um apresentará uma conclusão do seu pró-
prio desenvolvimento específico, ficando a conclusão do terceiro artigo
como a conclusão geral, que abrange todas as três partes postas nos três
artigos.
É necessário agradecer aqui aos Professores José Horta e Karine
Salgado, pelo oferecimento desta importante disciplina, pelo seu método
de trabalho semestral, por ter incluído Hobbes em sua programação
de ensino para a pesquisa dos pós-graduandos, e, sobretudo, pela
compreensão para com a dificuldade dos ora autores em se expressar em
poucas páginas, em se tratando de Thomas Hobbes, pela mão brasileira
de Janine. Estre tradutor e estudioso de Hobbes se pergunta: “Por que
não entendemos as filosofias como obras de arte, cada uma delas prismando o
mundo a partir de uma faceta, que pode ser uma paixão, um sentimento, uma
prática?”3. Quem sabe esteja na hora de observar Hobbes também por
este prisma diferenciado.

“Nada falta, de horrível, à reputação de Hobbes”.


(Renato Janine Ribeiro)4

3
RIBEIRO, Renato Janine. Ao Leitor Sem Medo: Hobbes Escrevendo Contra o Seu Tempo.
2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999. p. 20.
⁴ Ibid., p. 19: “Nada falta, de horrível, à reputação de Hobbes: embora – raramente – se
admita que os hobbistas possam não ter sido seus leitores fiéis, compõe-se a sua memória do medo,
92 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

1. Hobbes: Politólogo e Estadólogo.

1.1 A Contribuição de Mannheim, Bourdieu e Bobbio

Karl Mannheim (1893-1947)5 entende que as grandes dificulda-


des que o conhecimento científico enfrenta (na Alemanha da virada dos
anos 20 para os 30 do século XX, que é quando o autor está escrevendo
a obra) advêm do fato de que a ciência política não lida com entidades
objetivas e rígidas, mas com tendências e anseios em constante fluxo.
Exemplifica dizendo que uma dificuldade adicional é que a constelação
das forças em interação muda constantemente. Cada força é imutável
em caráter – diz Mannheim; onde quer que as mesmas forças interajam,
e onde quer que a interação siga um curso regular, é possível formular
leis gerais. Porém, na política, isso não é tão fácil quando novas forças
estão penetrando incessantemente no sistema e formando combinações
imprevisíveis. Assome-se ao rol de dificuldades de pesquisa no campo
da política que o observador não está fora do domínio do irracional,
mas participa no conflito de forças. Esta participação vincula o observa-
dor inevitavelmente a uma visão partidária, através de suas valorações
e interesses. Ademais, prossegue o politólogo tedesco, é de importância
especial a existência do fato de que o teórico político não só é um partici-
pante o conflito, em razão e seus valores e interesses, mas a maneira pela
qual o problema se apresenta a ela, seu modo e pensamento mais geral,
incluindo até suas categorias, vincula-se às correntes políticas e sociais
gerais. Em vista disso, tanto quanto isso ocorra, na esfera do pensamen-
to político e social, deve-se, segundo o autor, reconhecer diferenças reais
nos estilos de pensamentos, e estas diferenças se estendem, para além
dos fenômenos meramente políticos, ainda ao campo da Lógica. .6

da amoralidade, do escândalo sexual, do ateísmo”. Em suma, o filósofo maldito do início da Mo-


dernidade.
⁵ MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Trad. Sérgio Magalhães Santeiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1976. Capítulo III – Panorama de uma Política Científica: A Relação entre a Teoria Social e
a Prática Política, com ênfase no item 1 – Por Que não Existe uma Ciência Política?, p. 135 ss (142).
⁶ Ibid., p. 142-143: “Nisso, sem dúvida, reside o maior obstáculo a uma ciência política, pois, de acor-
do com as expectativas normais, uma ciência da conduta somente seria possível quando a estrutura
fundamental do pensamento independesse das diferentes formas de conduta em estudo, apesar
de que o observador é um participante da luta, a base de seus pensamentos, isto é, o seu aparato
observacional e o seu método de estabelecer as diferenças intelectuais, deve estar acima do conflito.
Não se pode resolver um problema obscurecendo-lhe as dificuldades, mas somente definindo-as
tão nítida e pronunciadamente quanto possível. Para isso, nossa tarefa consiste em estabelecer de
maneira definida a tese de que na política a formulação de um problema e as técnicas lógicas envol-
vidas variam com a posição política do observador”.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 93

Dentro do pensamento sociológico europeu contemporâneo do


final do século XX, Bourdieu7, no Curso de 18/01/1990, depois de tratar
a teoria sociológica do Estado como Um Objeto Impensável, na esteira de
Max Weber, aborda um segundo modo de compreensão do Estado, o do
Estado Como Lugar Neutro, na esteira de Durkheim. Vamos centrar a nos-
sa atenção nesta última. Para esta concepção, o Estado pode ser definido
como um princípio de ortodoxia, como um princípio oculto que só pode ser
captado nas manifestações da ordem política, entendia esta ao mesmo
tempo como ordem física e como o inverso da desordem, da anarquia,
da guerra civil, por exemplo. Ora, diz Bourdieu, um princípio oculto
perceptível nas manifestações da ordem política, só pode entendida si-
multaneamente no sentido físico e no sentido simbólico.
Entende ele que dentro da concepção de integração lógica e de
integração moral, porta por Durkheim no tratado Formas Elementares da
vida Religiosa8. Aduz que o Estado, tal como via de regra o compreen-
demos, é o fundamento da integração9 lógica e da integração moral do
mundo social. Segundo a concepção do Estado como integração lógica,
ele é o consenso fundamental sobre o sentido do mundo social e a condição
mesma dos próprios conflitos a propósito do mundo social. Para que o
conflito sobre o mundo social seja possível é preciso haver uma espécie
de acordo sobre os terrenos de desacordo e sobre os modos de expressão
do desacordo. Bourdieu fornece um exemplo disso.

⁷ BOURDIEU, Pierre. Sobre o Estado: Curso no Collège de France (1989-92). Trad. Rosa Freire
D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Curso de 18 de janeiro de 1990, p. 29 ss.
8
Ibid., p. 31, explica a distinção durkheiminiana: “A integração lógica, no sentido de Durkheim,
consiste no fato de que os agentes do mundo social têm as mesmas percepções lógicas – o acordo
imediato se estabelecendo entre pessoas com as mesmas categorias de pensamento, de percepção,
de construção da realidade. A integração moral é o acordo sobre um certo número de valores. Serpe
se insistiu na leitura que se faz de Durkheim, na integração moral, esquecendo o que, parece-me,
é seu fundamento, a saber, a integração lógica. Essa definição provisória consistiria em dizer que
o Estado é o que fundamenta a integração lógica e a integração moral do mundo social, e, por con-
seguinte, o consenso fundamental sobre o sentido do mundo social que é a condição mesma dos
conflitos a propósito do mundo social”.
⁹ HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Trad. Renato Janine Ribeiro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
p. 358, nota 3, do tradutor Janine. “No original, commonwealths, que é o termo que Hobbes utiliza-
rá no Leviatã para definir os Estados, mas aqui raramente é empregado. Literalmente, significaria
“bem público” – por isso, a tradução latina usual na época é república. Aplica-se aos regimes repu-
blicanos em sentido estrito, como por exemplo o da Holanda e o que vigorou na própria Inglaterra
na década de 1650, depois de executado o rei – daí o termo que Hobbes usa pejorativamente no
Behemoth (1668), “commonwealthmen” (republicanos). Mas o seu uso mais frequente é o que diz
respeito a qualquer regime, mesmo monárquico, enfatizando nele o aspecto pelo qual busca o bem
público. Por exemplo, se a propósito da França enfatizarmos o poder do rei, citaremos “os Estados
de Luíz XIV”; mas, se quisermos falar da organização política, que os parlamentos garantem, ou da
lei fundamental não escrita, que o próprio monarca protege, falaremos da República”.
94 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

No campo político, a gênese desse subuniverso do mundo social,


que é o campo aa da alta função pública, pode ser vista como o desen-
volvimento progressivo e uma espécie de ortodoxia, de um conjunto de
regras do jogo amplamente impostas, a partir das quais se estabelece,
no interior do mundo social, uma comunicação que pode ser uma co-
municação no e pelo conflito. O sociólogo gascão do Estado vai além da
formulação de tal concepção e diz que este modo de conceber o estado
pode ser prolongado como definição até se poder dizer que o Estado
é o princípio de organização do consentimento como adesão à ordem
social, ou seja, a princípios fundamentais da ordem social, e que ele é o
fundamento – não necessariamente um consenso – da própria existência
das trocas que devam a um dissenso. O autor francês não concorda com
esta concepção e explica porquê.10 Hobbes pretendia ser um filósofo da
natureza, dedicado à física, porém, os acontecimentos políticos do seu
tempo levavam-no para a reflexão política e a intervenção na história do
seu tempo através das obras que publicou referentes à Inglaterra. Isso é
demonstrado com suas obras Elementos de Lei Natural e Política, de 1640,
Sobre o Corpo, em 1654, e Sobre o Homem, em 1658. Na obra Leviatã, o sub-
título já denuncia o caminho: Matéria, Forma e Poder de um Estado e, na
primeira parte, trata do Homem, cuja abordagem é, no sentido da época,
matéria da ontologia ou teoria do conhecimento11.
Hobbes é monarquista e antirrepublicano, contrário à Com-
monwealth, que nascia contra a organização política do Estado Absolu-
tista que ele vivenciou ao longo da vida, que ele se beneficiou e defen-
deu. Na linguagem da época, a commonwealth se trata da res publica, a

10
BOURDIEU, cit., p. 31-32: “Essa atitude é um pouco perigosa porque pode parecer voltar ao que
é a definição primeira o Estado, esta que os Estados dão de si mesmos e que foi retomada em certas
teorias clássicas, como a de Hobbes ou de Locke, para as quais o Estado é, segundo essa crença
primeira, uma instituição destinada a servir o bem comum, e o governo, o bem do povo. Em certa
medida, o Estado seria o lugar neutro ou, mais exatamente – para empregar a analogia de Leibniz
dizendo que Deus é o lugar geométrico de todas as perspectivas antagônicas –, esse ponto de vista
dos pontos de vista em um plano mais elevado, que não é mais um ponto de vista já que é aquilo
em relação a que se organizam todos os pontos de vista: ele é aquele que pode assumir um ponto
de vista sobre todos os pontos de vista. Essa visão do Estado como um quase Deus é subjacente à
tradição da teoria clássica e funda a sociologia espontânea do Estado, que se expressa nisso que por
vezes denominamos de ciência administrativa, isto é, o discurso que os agentes do Estado produ-
zem a respeito do Estado, verdadeira ideologia do serviço público e o bem público”. Depois deste
tratamento da teoria sociológica do Estado como lugar neutro, Bourdieu trata da teoria sociológica
do Estado na tradição marxista, com base em Marx, Gramsci e Althusser, que não abordaremos
aqui (p. 32-34), por não se remeter a Hobbes.
11
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. João
Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 9-99, ante-
cedendo ao tratamento do Estado.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 95

coisa comum, que pode ser entendido no sentido de república, mesmo


no sentido de república parlamentar burguesa12, como a que se instalou
com a decapitação do Rei Carlos I e a instalação da Ditadura de Cromwell,
de cunho protestante e anticatólica, liberal e antiaristocrata. Hobbes, no
famoso Prefácio do Autor ao Leitor13, praticamente sustenta que está fun-
dando a Ciência Política (civil Science14) com a obra De Cive, ao dizer que
o que favorece a dignidade da ciência não é aqueles que se gabam de
possuí-la em função dos cargos que ocupam no Estado, pois entendem
que somente a eles é devido e somente o conhecimento deles é que va-
lem em matéria de conhecimento político; a dignidade da ciência vem
do fato de ela dizer respeito aos príncipes e aos que têm a função de go-
vernar. Bobbio, ao tratar da dicotomia público privado na teoria jurídica
do Estado, sustenta que estas duas categorias fundamentais do direito
público europeu serviram durante séculos para os juristas fundamenta-
rem as suas construções do público utilizando institutos do direito pri-
vado. Para ele, isso implica em uma tricotômica distinção: o dominium,
poder do Estado sobre a totalidade do território do país; pelo imperium,
que é o poder jurídico sobre todos os cidadãos ou súditos; e o pactum,
que é o pacto dos indivíduos na fundação do Estado. É no tocante ao
pactum, que “passa por princípio de legitimação do poder a tradição
contratualista que vai de Hobbes até Kant. Portanto, para o jusfilósofo
italiano, Hobbes é o fundador da teoria contratualista do surgimento,
fundamento e legitimação do Estado moderno15. Em outras palavras, a
12
KELSEN, Hans. O Estado Como Integração (Um Confronto de Princípios). Trad. Plínio Fernandes
Toledo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 1-3, para ver um debate iniciado nos anos 20 e que se
prolongou na década de 30 do século XX, entre a teoria normativista do Estado, desenvolvida por
Kelsen, de cunho republicano, parlamentarista e democrática, contrária à nascente teoria da inte-
gração do Estado, de 1928, defendida por Rudolf Smend, de cunho republicano, antiparlamentaris-
ta e antidemocrática, colocadas, ambas, dentro de uma moldura denominada “ciência do Estado”.
No capítulo I – Fundamentos Metodológicos, p. 5, Kelsen se refere assim: “O trabalho de Smend é,
em grande parte, apenas uma crítica da assim chamada teoria dominante, isto é, a teoria do Estado
do século XIX, classicamente resumida na obra Teoria Geral do Estado de George Jellinek. Mas
Smend nega também a teoria normativa do Estado da Escola de Viena, que, por sua vez, surgiu
de uma crítica àquela teoria dominante. A teoria da integração deve ser entendida, portanto, como
um antídoto à Escola de Viena. O que, certamente, não impede Smend de apossar-se do trabalho
crítico do sistema científico por ele tratado de forma pouco amistosa. Isso deve ser colocado de
início com toda clareza, para redimensionar um método muito apreciado na ciência do direito do
Estado alemã, que consiste em demolir a teoria pura do direito da escola de Viena mencionando-a
somente quando se acredita poder polemizar contra ela; com o que se criam então oportunidades
de atribuir-lhe quaisquer afirmações.
13
HOBBES, Leviatã, cit., p. 9 ss (10/11).
14
HOBBES, Do Cidadão, cit., p. 356, nota 1, do tradutor Janine.
BOBBIO, Norberto. Estado, Governo e Sociedade: para uma Teoria Geral da Política. Trad. Marco
15

Aurélio Nogueira. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. p. 23. Na p. 45, ato tratar da sociedade civil
96 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

dignidade da ciência advém de seu objeto e não dos agentes do Estado.


Diz Hobbes que o primeiro dos cientistas políticos foi Sócrates, por amar
de verdade essa ciência política, atribuindo-lhe alto valor ao ponto de aban-
donar por completo e desprezar as outras partes da filosofia, entenden-
do que era a única digna dos esforços da mente. Depois dele, na ótica
de Hobbes, vêm Platão, Aristóteles, Cícero e outros filósofos gregos e
latinos. Não cita Maquiavel e ninguém mais, adentrando em assuntos
que dizem respeito ao De Cives, ou seja, após os clássicos greco-latinos,
a Ciência Política é inaugurada, nos tempos modernos, por ele próprio,
principalmente ao se referir que só é passível de se atingir com mui-
to esforço e estudo16. Bobbio, ao trata do Estado e Sociedade, observa
que o tratamento da política até Hegel inclusive, permanece constante
a relação entre o Estado e as sociedades menores ou parciais, inclusive
as igrejas17. 18 No tocante às teorias do poder, o autor italiano sustenta
que há três teorias básicas: a substancial (encabeçada por Hobbes e sus-
tentada por Bertrand Russell), a subjetiva (Encabeçada por Locke) e a
racional (encabeçada por Robert Dahl), a mais aceita no discurso político
contemporâneo, segundo Bobbio.

1.2 A Contribuição de Creveld, Villey, Wieacker e Gunner

na tradição jusnaturalista, coloca Hobbes como jusnaturalista: “No entanto, através da persistência
do modelo jusnaturalista da idade moderna, de Hobbes a Kant, a contraposição da sociedade civil
à sociedades natural acabou por prevalecer, no uso da expressão “sociedade civil”, o significado
de “sociedade artificial”, tanto que o autor tradicionalista Haller, considerando o Estado segundo
o modelo aristotélico como uma sociedade natural semelhante à família, “o grau mais eminente da
sociedade natural ou privada (...)”.
16
HOBBES, Do Cidadão, cit., p. 10, no Prefácio do Autor ao Leitor.
17
BOBBIO, cit., p. 61: “No Leviatã de Hobbes [1651], além do capítulo sobre a família e sobre a so-
ciedade patronal, que é comum a todos os tratados de política da época, há também um capítulo (o
XXIII) sobre as sociedades parciais (denominadas, de modo grego, systems), das quais é apresentada
uma rica exemplificação com a correspondente tipologia, que constituiria hoje um dos capítulos
principais de um tratado de sociologia”.
18
BOBBIO, cit., p. 77: “Na filosofia política o problema do poder foi apresentado sob três aspectos,
à base dos quais podem-se distinguir as três teorias fundamentais do poder: a substancialista, a
subjetivista e a racional. Nas teorias substancialistas, a o poder é concebido como uma coisa que se
possui e se usa como um outro bem qualquer. Típica interpretação substancialista do poder é a de
Hobbes, segundo o qual “o poder de um homem... consiste nos meios de que presentemente dispõe
para obter qualquer visível bem futuro” [1951, tra. It., p. 82]. Que esses meios sejam dotes naturais,
como a força e a inteligência, ou adquiridos, como a riqueza, não altera o significado precípuo do
poder entendido como qualquer coisa que serve para alcançar aquilo que é o objeto do próprio de-
sejo”. Prossegue Bobbio: “Análoga é a conhecidíssima definição de Bertrand Russel [1938], segundo
a qual o poder consiste na “produção dos efeitos desejados” e pode assumir enquanto tal três for-
mas: poder físico e constritivo (...); poder psicológico (...); poder mental”.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 97

No tratado Ascensão e Declínio do Estado, ao tratar do Estado como


instrumento – de 1648 a 1789 –, abordando a evolução da teoria política, co-
meça dizendo que “Com exceção das clássicas Cidades-Estado e de seus
magistrados, nenhuma das comunidades que existiram até 1648 faziam
distinção entre a pessoa do governante e seu governo”19 e mostra que
“exemplo ainda mais interessante da incapacidade de distinguir entre
governo e assuntos privados do governante é o de Maquiavel”20. Diz que
quando Jean Bodin [1530-1596] escreveu Os Seis Livros da República, teve
grande dificuldade em encontrar uma palavra que denominasse a enti-
dade que tinha em mente, com o estranho resultado de que foi obrigado
a usar a antiga expressão latina res publica, porém, em 1589, o espanhol
Giovanni Botero [1544-1617], inimigo de Maquiavel, utilizou e definiu o
termo “Stato” como “governo estável sobre o povo, bem como a expres-
são “Ragione di Stato” como “conhecimento por meio dos quais se pode
fundar tal domínio”21. É dentro desta linha evolutiva da ciência política
que aparece Hobbes, a quem pertence o mérito de ter sido o primeiro a
definir o Estado como um “homem artificial”, separado da pessoa do
governante. Diferentemente de Bodin, que utilizava o método aristoté-
lico, Hobbes passa a utilizar o método de Galileu. Aduz Creveld que a
finalidade de Hobbes, tanto no De Corpore quanto no Leviatã, era “dotar
a política com o tipo de precisão até então só alcançado pela física”, ou
seja, acabar com todos os fatores (à exceção dos fatores como os corpos e
o movimento) pudessem ser percebidos e avaliados de maneira objetiva.
Foi esta abordagem com pretensão científica que levou Hobbes a definir
o homem como “uma máquina, mera matéria que sofria a ação de diver-
sos corpos que provocavam esta ou aquela reação”.
Nesta direção investigativa, distinguia dois tipos de corpos, os
naturais, como os corpos dos homens, e os corpos falsos ou corpos artifi-
ciais, que se distinguiam em duas categorias, os corpos privados (compos-
tos por indivíduos de livre iniciativa)e os corpos públicos (eram criados
pelo Estado). A concepção hobbesiana entendia que o Estado era o mais
importante de todos os corpos públicos, que tinha poder para autori-
zar todos os corpos, privados e públicos, mas não era autorizado por
nenhum.22 O politólogo inglês sustenta que Hobbes possui o crédito de

19
CREVELD, Martin van. Ascensão e Declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2004. p. 241.
20
Ibid., p. 246.
21
Ibid., p. 252/253.
22
Ibid., p. 253-254.
98 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

ter inventado o Estado ou a República como entidade abstrata, separada


tanto do soberano quanto dos governados, unindo ambos por meio de
um contrato de transferência de direitos e assunção de obrigações, bem
como levando o positivismo a extremos raramente alcançados antes ou
depois de Hobbes. 23. Ainda no contraste com Bodin, diz que Hobbes
também considerava que a ostentação do poder maior poderia tanto
ser uma assembleia ou uma única pessoa. Caso fosse preferido a pes-
soa [rei] à assembleia [parlamento], era mera questão de conveniência,
pois o propósito era um só, o de garantir unidade do governo e evitar
conflitos. Mas, Hobbes visava a descartar as concepções de corpos imate-
riais e de influências transubstanciais que Bodin sustentava, ou seja, queria
afastar tudo que não fosse passível de percepção direta. Nesta busca,
Hobbes eliminava os dois polares da teoria de Bodin, o direito divino e
o direito natural. Esta seara, diz Creveld, levou Hobbes a um dos positi-
vismos mais extremados e raramente superado depois dele. 24 Creveld,
por fim, faz uma comparação do pensamento de Hobbes com o de Jonh
Locke [1632-1704] para sustentar que este, embora raramente mencione
o nome de Hobbes, grane parte de sua obra no campo da política só
pode ser entendida como resposta direta a Hobbes. No fundo do sistema
político de Hobbes está a hipótese de que o pior Estado era preferível à
ausência do Estado; Locke quer examinar este Estado para descobrir se
era mesmo tão ruim quando sua reputação indicava. 25 Creveld diz, por

23
Ibid., p. 254.
24
Ibid., p. 254-255: “Hobbes acreditava que as leis só existiam dentro da comunidade política e eram
promulgadas por ela; no estado de natureza, onde não existia comunidade organizada, “pactos
sem espadas não passam de palavras”. Limitado por lei nenhuma, exceto por aquelas que criava
(e que, naturalmente, poderia alterar a qualquer momento), o soberano de Hobbes era muito mais
poderoso, não só do que o proposto por Bodin, mas, a fortiori, do que qualquer governante ocidental
desde fins da Antiguidade”. Continua Creveld: “Em Roma e em outros lugares, os imperadores
eram, até certo ponto, limitados pela religião, mesmo que fossem eles os chefes religiosos e que
o povo os considerasse como deuses vivos. O soberano de Hobbes não era assim. Seguindo uma
linha de raciocínio já elaborada por Maquiavel nos Discursos, esse soberano ditava as crenças dos
súditos com o objetivo calculado de manter a ordem pública, e assim tornou-se o governante mais
absoluto de toda a história”.
25
Ibid., p. 255/256: “No Segundo Tratado Sobre o Governo (provavelmente escrito imediatamente antes
da Revolução Gloriosa, mas publicado depois), Locke, como um dos primeiros representantes do
Iluminismo, descartou a hipótese que orientada o pensamento ocidental desde Agostinho, ou seja,
de que o homem era uma criatura fundamentalmente má que precisava do controle do governo.
Tanto na opinião de Locke quanto na de Hobbes, a qualidade essencial do homem era sua racio-
nalidade; mas enquanto Hobbes achava que essa qualidade levava à guerra de todos contra todos,
Locke considerava que ela se traduzia num interesse pessoal esclarecido que, na maior parte das
vezes, permitia a convivência pacífica, mesmo no estado de natureza, em que não havia nenhum go-
verno comum”. Prossegue Creveld: “A tarefa mais importante do governante não era tanto contro-
lar os seres humanos quanto, pelo contrário, salvaguardar os direitos com os quais forma dotados
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 99

derradeiro, que, para Locke, para além do voto de confirmação, outra


forma de barrar a ascensão do absolutismo era dividir o poder do sobe-
rano entre uma autoridade legislativa, uma executiva e uma federativa,
ficando esta encarregada da guerra e da política internacional. Esta ideia
estava no ar na época de Locke e sua forma sofreu grande influência do
sistema político inglês de então, indo influenciar, mais adiante, quando
esteve e na Inglaterra, para “descobrir meios de proteger a sociedade
civil contra o arbítrio do soberano”, o nobre francês Barão de La Brède
e de Montesquieu, no tratado Do Espírito das Leis, publicado em 1748.26
Villey diz que não pode subestimar a parcela de originalidade
das definições de Hobbes. Foi Hobbes que foi levado a combater con-
tras concepções clássicas e leva-lo às suas últimas consequências, ao
ter enfrentado o problema do direito subjetivo, não pelo viés da moral,
como o faziam os estoicos, nem pelo dado da lógica determinista, mas
na fonte, começando por demolir e substituir a Política de Aristóteles, de
onde brotava precisamente a antiga concepção do direito. 27 Hobbes não

pela natureza – isto é, a tríade vida, liberdade e propriedade. O que se deveria evitar a todo custo era
o governo absoluto (essa ênfase se repete bastante no original). O governo devia fundamentar-se no
consentimento: não aquele tipo de consentimento que, uma vez dado, era definitivo e irrevogável,
como no caso de Hobbes, mas do tipo que devia ser reconfirmado por meio de eleições. Locke não
explica quem deveria ter direito ao voto, mas, bom burguês que era, se pressionado, provavelmente
teria proposto algum tipo de qualificação ligado à propriedade, como realmente existia na maioria
dos países da Europa até os primeiros anos do século XX”.
26
Ibid., p. 257. Cfe. também CASSESE, Sabino. A crise do Estado. Trad. Ilse Paschoal Moreira e Fer-
nanda Landucci Ortale. Campinas: Saberes Editora, 2010. Parte IV – A Erosão do Estado: um Fato
irreversível?, item 1 – um problema histórico e culturalmente condicionado, p. 53: “Os ordenamen-
tos gerais contemporâneos têm ainda as organizações estatais como organizações regentes, mas
diferem dos ordenamentos do período do Estado burguês por dois aspectos: `) o Estado-ente não é
mais governado apenas pela classe burguesa, mas por todas as classes; 2) o Estado-ente não é mais
apenas o poder público, dominante sobre uma série de entes menores dirigidos e controlados, mas
é um dos poderes públicos existentes, condicionado – por enquanto usamos um termo genérico –
por outros poderes públicos, alguns de nível superestatal, outros de nível interno. Foi assim que,
em 1991, Massimo Severo Giannini resumiu a evolução do Estado moderno”.
27
Ibid., p. 695: “Hobbes forja uma nova ciência social profana, racional, não mais escrava da teologia
como era a dos espanhóis, e radicalmente moderna (ao contrário da de Althusius, ou dos humanistas
neo-estóicos). Hobbes é não só um cristão e um humanista, mas um adepto da ciência moderna,
tal como ela acaba de eclodir; ele faz de Galileu seu modelo, assim como de seu amigo Harvey;
tem como pretensão edificar (não será o último a se propor tal empresa) uma ciência social sobre
o modelo da ciência física moderna. Para o que nos interessa, tudo decorrerá dessa inversão em
relação a Aristóteles. (...) Em primeiro lugar, a ciência que Hobbes preza, como ressalta Bacon, que
foi um de seus mestres, não é mais especulativa e sim orientada para fins práticos, o domínio sobre
a natureza; agora ela é utilitarista (“Scientia propter poetentiam”, diz o próprio Hobbes)”. Continua
Hobbes: “Não busca mais saber o que as coisa são, mas o porquê das coisas, de sua gênese, não seu
quid, mas seu quare, o que permite agir sobre elas: assim, em termos de ciência humana, uma vez
que a paz é o maior dos bens e a guerra o pior dos males, ela buscará apenas as causas da felicidade
da paz ou das guerras, bellorum et pacis causae”. É isso, é esse objetivo tão limitado de antemão que
100 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

foi apenas um cientista política, um cientista do Estado, mas também


foi um jurista. Segundo Franz Wieacker, na obra Privatrechtsgeschichte
der neuzeit Unter Besonderer Berücksichtigung der Deutschen Entwicklung,
Hobbes avançar os conhecimentos da ciência do Direito tanto no campo
do direito privado quando no campo do direito público 28. 29 Wieacker
diz que Hobbes adotou um processo de dedução racionalística dotada
de um positivismo político sem precedentes, mas que, no seu tempo,
convenceu os juristas, mas não convenceu os políticos; tanto o é que a
política continuou sem os partidários de Hobbes, com a vitória do Par-
lamento sobre os realistas.30
Gunner, na obra Political Theory: tradition and interpretation31, ao
abordar a relação entre texto e ação, na teoria política, com Enfoque Es-
tadológico na teoria e teorização, sai em busca, em primeiro lugar, do
protótipo do teórico político e, em segundo lugar, do significado do termo
teoria. Entende, no tocante ao primeiro Enfoque Estadológico, que o pro-
tótipo de teórico político é Platão, principalmente por causa do diálogo
As Leis32, redigido no final de sua longa vida, revisando integralmente

permite que a política de Hobbes seja mecanicista, segundo um modelo que Descartes propõe para
a ciência dos corpos extensos”. (pp. 695/696).
28
WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Trad. A. M. Boteho Hepanha. 3. ed. Lis-
boa: Calouste Gulbenkian, 2004. Quarta parte - A Época do Jusracionalismo, § 17, item II – Hobbes
e Espinosa, 1.b) Hobbes é quem primeiro termina a racionalização e secularização da teoria social
europeia, p. 340 ss (342/243).
29
Ibid., p. 342: “Hobbes é quem primeiro termina a racionalização e a secularização da teoria social
europeia – ainda que neste juízo se tenha em vista que a secularização do próprio saber não era
senão a consequência lógica da compreensão cristã (e, sobretudo, nominalista) do mundo como
criação o inconceitual (sic) de Deus, criação que assim passou a requerer e a possibilitar uma expli-
cação imanente, obtida a partir e si própria. Daqui decorreu como antes da filosofia sofística grega,
uma racionalização e uma deseticização (sic) de que só Pufendorf de novo se afastou. Hobbes uti-
lizou este método para a elaboração de uma teoria da soberania. O seu resultado foi uma radical
dissolução o direito natural originário no direito positivo autoritário do soberano.” Continua o
autor: “Uma vez que Hobbes utilizava precisamente para este fim o antigo modelo contratual do
direito natural, influenciou com isto fortemente a ulterior teoria contratualista do jusracionalismo.
Mais diretamente influiu, desde logo, a inexorável racionalização da fundamentação do direito e do
Estado sobre a sua obra De Cive (1ª ed., Paris, 1642), que progredia, por meio de uma rigorosa de-
dução lógica, do estado de natureza (libertas) para o Estado (imperium) e para as suas relações com
a Igreja (religio), o que constituía o fundamento das lutas constitucionais inglesas daquela época”.
30
Ibid., p. 344: “Enquanto que o positivismo político de Hobbes encontrou por toda parte uma
oposição apaixonada, em ano teve sequer influencia na própria Inglaterra, em virtude da vitória do
Parlamento sobre os últimos Stuarts e da influencia de John Locke, as posições de que Hobbes par-
tiu no domínio da declaração da vontade e da vinculação contratual (De Cive, I, 2) influenciaram de
forma duradoura o jusracionalismo, sobretudo por intermédio de Pufendorf”.
31
GUNNEL, John G. Teoria Política. Trad. Maria Inês Caldas de Moura. Brasília: Editora da Univer-
sidade de Brasília, 1981.p. 96 e ss (105/106).
32
Cfe. PLATÃO. As Leis. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 1999. Cfe, ainda, PESSANHA, Vida e
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 101

os diálogos A República33 e O Político34, posto que teóricos posteriores


foram de algum modo influenciados por Platão; ou mesmo que estes
não estivessem de acordo com ele, tinham uma certa afinidade entre
os interesses ele e os seus; as características da teoria política como um
tipo ideal são integralmente apresentadas na obra de Platão e é possí-
vel deduzir paralelos interessantes entre a sua obra e a de personagens
como Maquiavel, Hobbes e Rousseau. No tocante ao segundo Enfoque
Estadológico, aduz que o emprego a palavra “teoria” é em grande parte
uma questão de convenção acadêmica e a etimologia do termo ensina a
elaborar uma representação do teórico político. A palavra teoria deriva
da palavra do grego clássico theoreiu, que significa admirar-se ou admi-
rar, e de theasthai, que é uma outra palavra para olhar, que também tem
o sentido de admiração e denota uma experiência religiosa e o respeito
que os seres humanos experimentavam quando fixavam o espetáculo a
beleza e perfeição os deuses e o cosmos. Aristóteles se debruçou sobre
tal palavra e seu sentido. 35 Platão compreende diferentemente o sentido
do termo política. 36

Obra, in: PLATÃO. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. Trad. José Cavalcanti de Souza
et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. XV, onde diz: “Ao morrer, Platão deixou interminada
(sic) uma grande obra: as Leis. Retomando o problema político e alterando teses expressas anterior-
mente na República, Platão propõe, em sua última obra, uma conciliação entre monarquia consti-
tucional e democracia. O interesse juvenil pelos assuntos políticos acompanhou-o até o fim de sua
vida. Mas, o aprofundamento da consciência política significou um longo itinerário que permitiu a
construção a primeira grande síntese filosófica do pensamento antigo e abriu horizontes de pesqui-
sa ainda hoje explorados, servindo de inspiração e de estímulo a grandes aventuras do espírito”.
33
Cfe. PLATÃO. A República. Trad. Edson Bini. 2 ed. Bauru: Edipro, 1999.
34
PLATÃO. Diálogos, cit., p. 197-261. Segundo José Américo Mota Pessanha, na parte Vida e Obra,
p. XIV, “Essa segunda tentativa política malograda dever ter interrompido a composição da série
de diálogos constituída pelo Parmênides, Teeteto, Sofista e Político. Diálogos da plena maturidade
intelectual de Platão, neles as primeiras formulações da “doutrina das ideias” (como, por exemplo,
apareciam no Fedom) começam a ser revistas e todo o pensamento platônico reestrutura-se a partir
de bases epistemológicas mais exigentes e seguras”. Adiante, diz, especificamente ao diálogo que
nos interessa: “Já o Político retoma a tese de que ao ideal para a polis seria a existência de um rei
filósofo, que inclusive pudesse governar sem necessidade de leis”.
35
GUNNEL, cit., p. 97. Para Aristóteles, teoria significa contemplação intelectual, uma atividade
concordando com sophia ou a virtude daquele aspecto a mente dirigido para a eternidade. Aristó-
teles sustentava que a atividade contemplativa produzia maior felicidade e implicava um divórcio
dos assuntos práticos tais como a política. Para Aristóteles, o filósofo está ainda ligado à polis, pois
a cidade provê a base material e o lazer necessários para a vida teórica (bios theoretikos) e porque
ele deve algo à cidade por fazer possível uma vida assim, mas apesar a teoria poder beneficiar a
política, ela implica uma transcendência da polis e é distintamente superior à vida do cidadão”.
36
Ibid., p. 97-98: “Embora a vida do filósofo e do ator político sejam diferenciadas na obra de Platão
e embora, em princípio, bem como existencialmente, haja uma tensão entre estes modos e vida, é
claro que para Platão não somente a política é diminuía pela ausência do filósofo como a filoso-
fia requer realização na vida prática, na regulamentação e na autoria das instituições políticas. O
conflito entre a teoria e a política na obra de Platão e na vida não deve afetar a atração da teoria
102 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

Hobbes não dissocia de modo estanque o homem (o Estado, a


sociedade e a política) da natureza (física), porém, nesta conexão indis-
solúvel homem-natureza, ocorre a superação do estado de natureza no
próprio ato de estabelecimento do estado de sociedade. Bobbio entende
que Hobbes pode ser considerado o primeiro e, talvez, o maior teóri-
co do Estado moderno. Ao tratar das três formas do poder, afirma que
Hobbes dividiu o poder em três tipos: liberdade, política e religião, sus-
tentando que o poder por excelência é o poder político, legitimado pela
delegação dos indivíduos em troca de proteção pelo Estado. 37

1.3 A Contribuição de Hegel, Mosca e Montesquieu

Hegel, no tratado Filosofia da História38, inobstante não mencione


o nome de Hobbes, ao referir o tempo moderno do mundo germânico,
no tocante ao efeito da reforma na formação estatal, descreve a situa-
ção inglesa, segundo a sua percepção. Na Inglaterra, a Igreja protestante
teve que fixar – por meio da guerra – a luta contra os reis, pois estes

para a política. A esse respeito, a ideia de Platão da teoria pode refletir mais aproximadamente o
significado original da teoria. Originalmente, “teórico” (theoros) designava um observador de um
festival religioso e se aplicava a alguém despachado pela polis para consultar o oráculo de Delfos ou
para visitar uma cidade vizinha e informar sobre os rituais religiosos ou honrar divindades locais.
O teórico observa o espetáculo (Thea) e o resultado é uma compreensão ou um relatório (teorema)”.
Prossegue Gunnel: “Em consequência, thoros era usado como um termo mais geral para expectador
e particularmente um expectador de competições atléticas e apresentações dramáticas nos Jogos
Olímpicos, e para alguma comissionado para viajar a terras estranhas e delas trazer informação.
Finalmente, com Aristóteles, teoria foi adotado pela filosofia e igualada à contemplação do céu no
“teatro” do cosmos, mas, mesmo com Aristóteles, nunca perdeu o seu significado original como
uma atividade intermediária, ainda visível em Platão. O teórico pode ser separado da polis, mas
serve de mediador entre a verdade e a política. O teórico, muitas vezes, é uma pessoa que sob
certos aspectos fica e fora ou foi forçado para fora a esfera da ação política normal e a quem é de-
negado acesso à participação na política e na vida política, ou, ao menos, é afastado de um modo
satisfatório da participação”.
37
BOBBIO, cit., p. 84-85: “No início da idade moderna, é exemplar o De Cive de Hobbes [1642], divi-
dido em três partes: libertas, potesta, religio, correspondentes respectivamente à esfera da liberdade
natural, onde se desenrolavam as relações de troca nas quais o poder político deve interferir o me-
nos possível (há quem, como Macpherson, acreditou poder ver no estado de natureza hobbesiano
uma prefiguração da sociedade de mercado), ao poder político, que detém as duas espadas da jus-
tiça e da guerra, e ao poder espiritual, ao qual cabe uma tarefa essencialmente de ensinamento. Em
Hobbes, o poder por excelência é o poder político, o qual, legitimado por uma específica delegação
de indivíduos isolados e aterrorizados, impelidos pela necessidade a sair do estado de natureza,
controla tanto o poder espiritual quanto o econômico. Mesmo sob este aspecto Hobbes pode ser
considerado como o primeiro e talvez o maior teórico do Estado moderno, vale dizer, do Estado
cuja formação é acompanhada pela persistente ideia do primado da política”.
38
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans Harden. 2.
ed. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2008. p. 343 e ss.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 103

pertenciam secretamente à religião católica e esta confirmava o princípio


da arbitrariedade absoluta. Contra a afirmação da perfeição do poder absolu-
to, do poder segundo o qual os reis só deveriam prestar contas a Deus,
vale dizer, ao confessor, o povo fanático se sublevou e, no confronto do
catolicismo com o puritanismo, atingiu o centro da interioridade que
se esvaia num mundo objetivo, em parte, elevando-se fanaticamente e,
em parte, mostrando-se ridiculamente incongruente. Diz mais, que estes
fanáticos, como também os de Münster, queriam governar o estado ime-
diatamente baseados no temor de Deus. E eram fanáticos também os so-
lados que tinham que rezar enquanto defendiam sua causa no campo de
batalha. Neste diapasão, defende Cromwell e transformou o parlamento
inglês. 39 Ainda que certas leituras das prováveis posturas de Hegel in-
diquem posição monarquista, fica claro que Hegel, em sua Filosofia da
História, valorava positivamente a Ditadura de Cromwell e da institui-
ção do Parlamento permanente, contra o fervor religioso católico e a fa-
vor do domínio religioso protestante, posto que garantidor da liberdade
e contrário ao absolutismo monárquico. 40

39
Ibid., p. 358: “Todavia, um líder militar tinha a força – e com isso o governo – nas mãos; pois
tem-se que governar no Estado. Cromwell sabia o que era governar. Assim, ele se tornou o senhor
e expulsou aquele parlamento que vivia rezando. Com a sua morte, desapareceu também o seu di-
reito de governar, e a antiga dinastia retomou o domínio”. Prossegue Hegel: “Deve-se observar que
era para a segurança do governo os príncipes valorizavam a religião católica, em especial quando a
Inquisição estava ligada ao governo. Esta segurança, porém, reside na obediência servil e religiosa,
e só existe quando a constituição e todo o direito estatal se baseiam na propriedade positiva; mas
quando a constituição e as leis devem ser constituídas pelo direito realmente eterno, então a segu-
rança só existe na religião protestante, em cujo princípio se baseia também a liberdade subjetiva da
racionalidade”. (Negritagem nossa).
40
Ibid., p. 11, nota 1, refere os §§ 341-360 da Filosofia do Direito, o que indica que a Filosofia da História
é posterior àquela. Cfe. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípio da Filosofia do Direito. Trad.
Orlando Vitorino. 4. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 1990. Terceira Parte – A Moralidade Objetiva,
3ª Seção – O Estado, II – A Soberania para o Exterior, b) A História Universal (§§ 341 e ss), IV – O
Império Germânico (§§ 358-360). Diz Hegel: “§ 341 – O elemento da existência do espírito univer-
sal – que é a intuição e imagem na arte, sentimento e representação na religião, pensamento puro
e livre na filosofia – é, na história universal, a realidade espiritual em ato, em toda a sua aceitação:
interioridade e exterioridade. Constitui a história um tribunal porque, na sua universalidade em si
e para si, o particular, os penates, a sociedade civil e o espírito dos povos em sua irisada realidade,
apenas são como algo da natureza da ideia separada; neste elemento, o movimento do espírito con-
siste em tornar isso evidente”. Negritamos aqui para chamar à atenção o leitor sobre a concepção
de TRIBUNAL DA HISTÓRIA; em Kant aparece o TRIBUNAL DA RAZÃO ou da consciência. Se
a História é a razão e os dois tribunais podem ser aproximados, é algo que não abordaremos aqui
para além de consignar – segundo compreendemos - que para Hegel há razão na história e que a
História é a própria razão humana em movimento. Para aproveitar o ensejo, convém mencionar
como Hegel termina a obra de Filosofia do Direito, no final do § 360, dizendo: “(...) assim se tornou
objetiva a reconciliação que, em imagens e em realidade da razão, desenvolve o Estado. Nele, por
uma evolução orgânica, adquire a consciência de si a realidade em ato do seu saber e da sua von-
tade substancial, como na religião encontra o sentimento e a representação daquela verdade que
104 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

Mosca diz que parte do fundamento do estado de natureza


Hobbes foi buscar em Tucídides. 41 Para o italiano, a ideia de um estado
de natureza, que tivesse existido antes da vida social e organizada po-
liticamente, não era nova, pois os monarcômacos já a haviam formulado
e a ideia não era mesmo de todo desconhecida dos escritores da
antiguidade clássica. Entretanto, os monarcômacos, com a finalidade de
limitar a autoridade real, porém, mesmo admitindo fundamentalmente
que houvesse existido um estado de natureza, tinham sustentado que os
homens, no pacto que os ligava ao Estado, havia reservado uma parte de
seus direitos. Para Mosca, Hobbes modificou a ideia para sustentar que
os homens, aterrorizados pelas condições assustadoras em que viviam,
no estado de natureza, tinham cedido quase todos os seus direitos ao Es-
tado, para fugir à situação de homo homini lupus vivendo numa situação
permanente de bellum omnium contra omnes.42
Montesquieu [1689-1755] começa o capítulo I de sua obra, intitu-
lado Das leis em suas relações com os diversos seres, atacando Hobbes. Afir-
ma que as leis, no seu sentido mais amplo, são relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”. Sabe-se disso pela Defénse de l’Esprit
des Lois. 43 No capítulo II, ao tratar das Leis da natureza, metade do de-
senvolvimento é baseado em Hobbes, que é mencionado expressamen-
te, para fins de crítica. Começa dizendo que “antes de todas essas leis,
existem as da natureza, porque decorrem unicamente da constituição
de nosso ser”, e passa a atacar as quatro leis do estado de natureza de

é sua, sua essência ideal, e na ciência obtém o conhecimento livremente concebido dessa verdade
como idêntica em suas três manifestações complementares: o Estado, a natureza e o mundo ideal”.
Negritagem nossa.
41
MOSCA, Gaetano. História das doutrinas políticas desde a Antiguidade. Completada por Gaton Bour-
thoul, as Doutrinas Políticas desde 1914. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1962. p. 189: “Para chegar a justificar o governo absoluto, Hobbes parte da descrição
do estado de natureza que, segundo acreditava se comumente por esta época, teria precedido o
estado social. Encontra-se, sem nenhuma dúvida, no curso dessa descrição, traço do primeiro livro
da história de Tucídides, no qual este autor conta que numa época longínqua os gregos viviam de
rapinagem e violências, e que a única lei era a do mais forte”. Mosca refere que “Hobbes admite a
existência de Deus, mas acredita que as cautelas que determinam as formas dos cultos pertencem
ao Estado”. Como o Estado não pode tirar a vida do súdito, na visão de Hobbes, também não pode
exigir do súdito o serviço militar obrigatório. A propriedade individual, para Hobbes, tem sua ori-
gem na lei e, por isso, no Estado, nem antes e nem acima do Estado.
42
Ibid., p. 190.
43
MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Trad. Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Ro-
drigues. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 25: “O autor tem em mira atacar o sistema de
Hobbes, sistema terrível que, fazendo defender todas as virtudes e os vícios do estabelecimento de
leis que os homens fizeram para si, e querendo provar que os humanos nascem todos em estado de
guerra, e que a primeira lei natural é a guerra de todos contra todos, derruba, como Spinosa, não só
toda religião como toda moral”.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 105

Hobbes e a colocar as suas quatro leis do estado de natureza, cuja base


probatória – fragilíssima, diga-se de passagem - com base num suposto
testemunho de um selvagem encontrado nas florestas de Hanôver, visto na
Inglaterra durante o reinado de Jorge I. 44

2. Hobbes: Jurista e Estadólogo

2.1. A Contribuição de Paniágua, Gunnel e Salgado

Paniagua, na obra Historia del Pensamiento Juridico, compreende


que todas as doutrinas básicas que professam o absolutismo total, mes-
mo quando não no sentido de um totalitarismo do século XX, apresen-
tam certos pontos em comum que podem ser mapeados e sistematiza-
dos pelo pensamento político. 45 Por fim, diz Paniágua que todas estas

44
Ibid., primeira parte, Livro Primeiro – Das Leis em Geral, Capítulo II – Das Leis da Natureza, p.
26/27. “Neste estado, todos se sentem inferiores e dificilmente alguém se sente igual. Ninguém
procuraria, portanto, atacar e a paz seria a primeira lei natural. Não é razoável o desejo que Hobbes
atribui aos homens de subjugarem-se mutuamente. A ideia de supremacia e de dominação é tão
complexa e dependente de tantas outras que não seria ela a primeira ideia que o homem teria.
Hobbes indaga: “Por que que os homens, mesmo quando não estão naturalmente em guerra, estão
sempre armados? E por que utilizam chaves para cerrar suas casas?” Mas não percebe que atribuí-
mos aos homens, antes do estabelecimento de sociedades, o que só poderia acontecer-lhes após
esse estabelecimento, fato que os leva a descobrir motivos para atacar e defender-se mutuamente.”
Prossegue o autor: “Ao sentimento de sua fraqueza, o homem acrescentaria o sentimento de suas
necessidades. Assim, outra lei natural seria a que o incitaria a procurar alimentos. Disse que o
medo levaria os homens a afastarem-se uns dos outros, mas a comprovação de um medo recíproco
levá-los-ia logo a se aproximarem. Aliás, eles seriam levados pelo prazer que sente um animal à
aproximação de outro da mesma espécie. Ademais, este encanto que os dois sexos, pela sua dife-
rença, inspiram-se mutuamente aumentaria esse prazer, e o pedido natural que sempre fazem um
ao outro seria uma terceira lei. Além do sentimento que os homens inicialmente possuem; assim,
possuem um segundo liame que os outros animais não têm. Existe, portanto, um novo motivo para
se unirem, e o desejo de viver em sociedade constitui a quarta lei natural (Aristóteles, Política, Liv. I,
cap. I)”. No extrato, onde consta “Hobbes indaga”, o lugar é o Prefácio do De Cive.
45
PANIAGUA, Jose Maria Rodriguez. Historia del Pensamiento Juridico I: De Heráclito a la Revolu-
ción Francesa. 6. ed. Madrid: Universidad Complutense – Facultad de Derecho, Seccion de Publica-
ciones, 1988. Em especial, capítulo XIII – El Derecho y el Estado em Hobbes, p. 111 ss, com ênfase no
item La ley natural e la organización del poder político, p. 114 ss. “1 – O poder supremo é irrevogá-
vel; com efeito, ele detém o poder que representa toda a força e todas as decisões dos governados;
os governados não podem tomar de vota dos governantes o que tenham empregado previamente.
2 – O pacto foi feito pelos particulares, não pelo soberano; portanto, este não pode quebrá-lo. 3 – o
soberano tem que ter poder para submeter aos dissidentes, e não pode cometer injuria ou injustiça
contra nenhum de seus súditos, já que os representa a todos; ainda que possa cometer iniquidade,
quer dizer, obrar mal moralmente (Mas este último não tem muita relevância para Hobbes, sobre-
tudo no âmbito do Estado e do Direito). 4 – O soberano não pode ser ne castigado, nem julgado
pelos súditos, posto que ele os representa e é o único juiz de tudo o que convém pra o Estado;
5 – Há de controlar também as opiniões, porque “os atos dos homens – diz Hobbes – procedem
de suas opiniões; e o ponto de vista que tem que prevalecer para julgar a “verdade” da doutrina é
106 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

atribuições, contudo, têm um limite, um termo final e isto é o que dife-


rencia decisivamente a postura de Hobbes da postura dos totalitarismos
do século XX: as faculdades concedidas ao Soberano estão estabelecidas
para a proteção dos súditos e, portanto, quando o soberano já não é ca-
paz de proporcioná-la aos súditos, desaparecem também suas compe-
tências sobre eles. A finalidade da obediência é a proteção e quando um
homem vê a sua proteção, seja na sua própria espada ou na de outro, por
natureza situa ali toda sua obediência e seu propósito e mantê-la. Mas
esta proposta de Hobbes só faz sentido se estiver correta a sua premissa
maior, a de que o valor da via e da paz são bens supremos de todos os
seres humanos e estão acima de todos os outros. Sem esta supremacia
da vida e da paz, todo o sistema de Hobbes não faz sentido, como bem
informa a crítica de Rousseau, mais adiante, quando diz que também se
pode viver tranquilo nos calabouços. 46
Gunnel, fixadas as definições conceituais do teórico político e do
termo política, depois analisar o pensamento de Platão, Aristóteles e Ma-
quiavel - e antes de abordar Rousseau - detém-se em Hobbes, para dizer
que o caráter aparentemente abstrato do politólogo britânico correspon-
de ao modo como seus comentadores correntemente o expressam. Sem
citar nomes, diz que a pressa para elevar autores como Locke e Hobbes
ao rol de filósofos sistemáticos, muitos críticos deram menos importância
histórica ao próprio envolvimento na política partidário e aos próprios in-
teresses circunstanciais. Sustenta, novamente sem identificar quem, que
muitos historiadores da teoria política se perderam nas profundezas fi-
losóficas do Leviatã, pois compreendiam que interpretar esta obra era
como detectar o que eles próprios concebiam como sendo a cadeia de
raciocínios dedutivos de Hobbes, procurando a chave de sua teoria da obri-

que favoreçam ou não à paz do Estado. Portanto, também têm que estar submetidas ao controle do
poder supremo as ideias religiosas. 6 – A propriedade dos súditos está submetida às disposições
do soberano; com efeito, no estado de natureza não havia propriedade privada, já que tudo estava
exposto ao saque; todos se consideravam autorizados a apropriar-se de qualquer coisa; a proprie-
dade surge do estado civil; é competência, pois, de seu poder soberano. 7 – Correspondem também
ao poder supremo ou soberano outras faculdades, como a de ser intérprete e terá custódia das leis,
ter o direito e fazer a guerra e a paz (tendo, portanto, o controle do exército), eleger os funcionários
e recompensar ou castigar qualquer cidadão)”.”
46
Ibid., p. 117. Cfe., também, KOSCHAKER, Paul. Europa y el Derecho Romano. Trad. Jose Santa Cruz
Teijeiro. Madrid: Editorial de Derecho Privado, 1974. Cap. XIII – Los Juristas como portadores o adver-
sários de la recepción del decrecho romano, p. 313, quando refere a partir do reinado de Henrique VIII
(1509-1547), criando os pressupostos da fase história seguinte, onde se insere Hobbes; ver, também
ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Barcelona, Bosch,
[1956]. Terceira parte – El papel de los princípios jurídicos e la construcción del derecho privado codificado e
en el judge-made law, cap. X – “Principles and rule” em El Derecho del caso, p 234 ss.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 107

gação, debatendo o grau de seu autoritarismo, ateísmo e cientificismo;


perderam-se na sua versão do contrato social e na extensão de sua revisão
da lei natural tradicional. Aduz, ainda, que aqueles objetos de análise são
razoáveis e legítimos, entretanto, o foco em tais casos leva, muitas vezes,
a negligenciar a melhor aventura teórica de Hobbes, que é aquele con-
teúdo real (passagem do estado de natureza ao estado de sociedade) e o
propósito básico do “Leviatã” (estabelecer a crítica aos rumos do Estado
no seu tempo). O próprio Hobbes, por meio de sua obra, por veze não
reconhece que faz para si mesmo uma série de questionamentos estra-
tégicos perigosos concernentes à criação e à interpretação de um novo
mito comunal que pudesse manter uma estrutura de autoridade política
e, também, que o conteúdo desse mito é a própria ideia do “contrato
social” no “Leviatã”. O que o teórico político procura – argui Gunner
- é uma nova realidade política; mas, no curso dessa procura, ele dese-
nha, de início simbolicamente, os fundamentos da realidade existente;
porém, esta nova realidade política buscada desafia não só instituições
específicas como também a própria visão de mundo que as apoia; e isso
é o que frequentemente leva à sua exclusão do teórico política de sua
sociedade, pela própria sociedade. E arremata dizendo que é esta exata
exclusão do teórico o que serve de fonte para seu senso de objetividade
e, por vezes, até de sua capacidade real de perceber o destino da socieda-
de para o qual estão cegos todos os seus contemporâneos. 47 Não é à-toa
que a primeira obra publicada por Hobbes, em 1629 (os 42 anos, um
ano antes de produzir o seu primeiro tratado, Elementos de Lei Natural e
Política) seja a tradução da Guerra do Peloponeso, de Tucídides. 48 Por fim,
Gunner diz que Hobbes acreditava que poderia realizar, em relação ao
movimento dos corpos políticos o que Galileu tinha conseguido na As-
tronomia. Nas se enganara. Embora, com relativa frequência, seja desde
modo que o teórico vê a si próprio, este papel sempre foi, em grande par-
te, reservado aos grandes estadistas; ao teórico restou apenas um papel
em grande parte simbólico, com pequeno impacto naqueles a quem se
dirigia com seus escritos. Isso não fugiu a Hobbes, assim como antes não

47
GUNNEL, cit., p. 105-106.
48
Ibid., p. 106: “Por exemplo, somente Tucídides, o general exilado, desembaraçado dos eventos em
que havia participado, foi quem viu a guerra do Peloponeso como um fenômeno global e como o
contexto da ascensão e queda do poder ateniense. Foi Hobbes quem viu no torvelinho do século
XVII, na Inglaterra, a possibilidade de uma queda num estado de natureza. Foi Marx quem dis-
cerniu, nas lutas causadas pelo industrialismo moderno, o relacionamento entre alienação e do-
minação. Entretanto, o fardo de articular a natureza da desordem e denunciar o futuro é tomado
como uma responsabilidade terrível e, quando junto a uma nova visão de política, é um papel que
a sociedade frequentemente não tolera”.
108 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

havia fugido a Maquiavel e nem, mais remotamente, a Platão49.


Para Joaquim Salgado, em obra de 1986, Hobbes é jusnaturalista.
No Leviatã, seu ponto de partida é a igualdade tanto do ponto de vista
físico quanto espiritual. A igualdade física ocorre entre o forte e o fraco,
visto que o fraco tem força suficiente para vencer o mais forte, sozinho
ou em grupo; todos os homens são iguais em sua condição natural e a
desigualdade só aparece nas leis civis. Aduz que é uma lei natural que
cada homem reconheça os outros como seres iguais por natureza.50 51
Para Joaquim Salgado, em obra de 1986, Hobbes é jusnaturalista. No
Leviatã, seu ponto de partida é a igualdade tanto do ponto de vista físico
quanto espiritual. A igualdade física ocorre entre o forte e o fraco, visto
que o fraco tem força suficiente para vencer o mais forte, sozinho ou em
grupo; todos os homens são iguais em sua condição natural e a desi-
gualdade só aparece nas leis civis. Aduz que é uma lei natural que cada

49
Ibid., p. 107.
50
SALGADO, Carlos Joaquim. A Ideia de Justiça em Kant. 2. ed. Belo Horizonte: Editora da UFMG,
1995. p. 77.
51
Ibid., p. 77-79: “Embora Hobbes parta dessa concepção sobre a igualdade originária (natural) dos
homens, o seu conceito de justiça não se estriba nela, porque o estado de natureza é um estado de
desprazer pelo convício com os outros seres humanos, este estado é um ambiente de guerra e todos
contra todos; o homem sai dele através de um pacto, pelo qual renuncia a toda sua liberdade para
instituir o poder soberano e com isso prover a sua conservação e uma vida mais feliz, já que a lei
natural por si só (como ditame da razão) impropriamente chamada lei, não garante a vida em socie-
dade, onde o apetite pessoal é “a medida do bem e do mal”. Essa passagem necessária se faz através
de um pacto que cria esse poder soberano, sem o qual o pacto nenhuma eficácia possuirá: “pactos
sem espada não passam e palavras”. Continua o autor (p. 78-79): “Se por esse pacto estão autoriza-
dos todos os atos do soberano, todos os direitos e faculdades lhe são conferidos, devendo os súditos
reconhecer tais atos como seus, considerando bom o que ele “considerar bom”. Ora, no estado de
natureza, onde impera a guerra de todos contra todos, “nada pode ser injusto”. Nesse estado não
há “poder comum”, nem lei, e “onde não há lei, não há justiça”, nem propriedade (o meu e o seu),
pois só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir e conservar. “Justo, diz Hobbes,
é aquele que obedece à lei””. Para obedecer à lei natural basta que se esforce para isso. Justiça está
aí empregada num sentido impróprio, pois que a lei da natureza não é eficaz ao seu cumprimento.
Somente quando há lei em sentido próprio, que é a “palavra daquele que tem o direito de mando
sobre os outros”, é que podemos falar de justiça propriamente dita. É que justiça só existe na me-
dida em que haja um pacto anterior; só se comete injustiça contra a pessoa com a qual se celebrou
algum pacto. Hobbes refere-se ao princípio do pacta sunt servanda (...). Não se trata, contudo, de um
pacto qualquer, mas de um pacto garantido por um poder coercitivo capaz de obrigar a todos ao
seu cumprimento. Só então é possível falar em dar a cada um o seu, porque só então surge a pro-
priedade e os demais direitos. Ora, uma vez celebrado o pacto da instituição do poder soberano,
concedendo-lhe “autorização” para exercer o mando sobre os demais membros da sociedade – o
que é feito através de leis – é injusto o ato contrário à lei do Estado”. Salgado transcreve um trecho
do Leviatã, na p. 79, referente ao pacta sunt servanda, que merece ser transcrito aqui: “Nesta lei de
natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não há transferência
de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente, nenhuma ação pode ser
injusta. Mas depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição de injustiça não é outra
senão o não cumprimento do pacto”.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 109

homem reconheça os outros como seres iguais por natureza.52 53 Salgado


compreende que Hobbes, diferentemente de Locke, não defende o direi-
to de resistência nem mesmo de um Estado Despótico54.

2.2 A Contribuição de Horta, Schmitt, Habermas e Sartori

52
Ibid., p. 77.
53
Ibid., p. 77-79: “Embora Hobbes parta dessa concepção sobre a igualdade originária (natural) dos
homens, o seu conceito de justiça não se estriba nela, porque o estado de natureza é um estado de
desprazer pelo convício com os outros seres humanos, este estado é um ambiente de guerra e todos
contra todos; o homem sai dele através de um pacto, pelo qual renuncia a toda sua liberdade para
instituir o poder soberano e com isso prover a sua conservação e uma vida mais feliz, já que a lei
natural por si só (como ditame da razão) impropriamente chamada lei, não garante a vida em socie-
dade, onde o apetite pessoal é “a medida do bem e do mal”. Essa passagem necessária se faz através
de um pacto que cria esse poder soberano, sem o qual o pacto nenhuma eficácia possuirá: “pactos
sem espada não passam e palavras”. Continua o autor (p. 78/79): “Se por esse pacto estão autoriza-
dos todos os atos do soberano, todos os direitos e faculdades lhe são conferidos, devendo os súditos
reconhecer tais atos como seus, considerando bom o que ele “considerar bom”. Ora, no estado de
natureza, onde impera a guerra de todos contra todos, “nada pode ser injusto”. Nesse estado não
há “poder comum”, nem lei, e “onde não há lei, não há justiça”, nem propriedade (o meu e o seu),
pois só pertence a cada homem aquilo que ele é capaz de conseguir e conservar. “Justo, diz Hobbes,
é aquele que obedece à lei””. Para obedecer à lei natural basta que se esforce para isso. Justiça está
aí empregada num sentido impróprio, pois que a lei da natureza não é eficaz ao seu cumprimento.
Somente quando há lei em sentido próprio, que é a “palavra daquele que tem o direito de mando
sobre os outros”, é que podemos falar de justiça propriamente dita. É que justiça só existe na me-
dida em que haja um pacto anterior; só se comete injustiça contra a pessoa com a qual se celebrou
algum pacto. Hobbes refere-se ao princípio do pacta sunt servanda (...). Não se trata, contudo, de um
pacto qualquer, mas de um pacto garantido por um poder coercitivo capaz de obrigar a todos ao
seu cumprimento. Só então é possível falar em dar a cada um o seu, porque só então surge a pro-
priedade e os demais direitos. Ora, uma vez celebrado o pacto da instituição do poder soberano,
concedendo-lhe “autorização” para exercer o mando sobre os demais membros da sociedade – o
que é feito através de leis – é injusto o ato contrário à lei do Estado”. Salgado transcreve um trecho
do Leviatã, na p. 79, referente ao pacta sunt servanda, que merece ser transcrito aqui: “Nesta lei de
natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não há transferência
de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas, consequentemente, nenhuma ação pode ser
injusta. Mas depois de celebrado um pacto, rompê-lo é injusto. E a definição de injustiça não é outra
senão o não cumprimento do pacto”.
54
Ibid., p. 79: “A consequência é que, diversamente do que se conclui da teoria de Locke, o Estado
despótico concebido por Hobbes em virtude da renúncia sem reserva da liberdade natural dos indi-
víduos para sua instituição, não comete injustiça, do que decorre também não ser possível opor-lhe
qualquer direito de resistência”. Na nota 270, aduz Salgado, dentro deste trecho transcrito: “Liber-
dade é a faculdade de se fazer o que se quer, segundo Hobbes, e se confunde com o direito natural
(impropriamente chamado direito) que é a liberdade que cada um tem de usar seu próprio poder
para a preservação de sua vida. É concebida como o que sobra do quadro das ações obrigatórias
por lei”. Na p. 75, ao abordar o ponto de vista de Locke [1632-1701], Salgado transcreve a página
41 do Segundo Tratado Sobre o Governo [de 1690]: “Locke descreve o estado de natureza como um
estado de liberdade e de igualdade: Estado também de igualdade, no qual é recíproco qualquer
poder ou jurisdição, ninguém tendo mais do que qualquer outro; nada havendo de mais evidente
que criaturas da mesma espécie e da mesma ordem, terão de ser também iguais umas às outras sem
subordinação ou sujeição”.
110 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

Borges Horta, com base em Norberto Bobbio [1909-2004], aborda


Hobbes do ponto de vista do contraponto entre o estado de natureza e o
estado de sociedade, sustentando com o jurista italiano que Hobbes – e
não Hugo Grotius [1583-1645] ou Samuel Pufendorf [1632-1694] – é o
primeiro jusnaturalista moderno. Para o jusfilósofo brasileiro, Hobbes
pensa que o homem nunca viveu inteiramente sem sociedade e que o es-
tado de natureza universal é uma hipótese da razão e que nunca existiu
na realidade fática. 55 Aduz ainda, com Bobbio, que o único direito que o
homem não pode renunciar, para instituir um estado civil, é o direito à
vida; que se preservar a vida dos cidadãos, qualquer tirano será melhor
do que um estado de natureza; fora da autoridade absoluta não há con-
trole sobre a atuação dos homens contra os demais, que poderia levar ao
extermínio pela guerra de todos contra todos. A autoridade absoluta do
Estado impede o estado de natureza e institui a ordem civil no estado de
sociedade. Em assim pensando, Hobbes fornece uma justificação ética
para o arbítrio – conclui Horta.56
Carl Schmitt, ao tratar da Superação da guerra como relação entre
pessoas igualmente soberanas, dentro de uma temática mais ampla, inti-
tulada O Estado como entidade portadora de uma nova ordem espa-
cial da Terra, interestatal e eurocêntrica, no capítulo Do Jus publicaum
europeaum, sustenta que na teoria da guerra de Hobbes compreende a
guerra como um estado de natureza, na miniaturização de uma luta
entre dois homens, ou seja, um combate nada social entre Leviatãs57.

55
Ibid., p. 164: “À primeira vista, seremos tentados, portanto, a concluir que em Hobbes subsistem
todos os elementos que qualificam uma “ciência política”. E acordo com o cartesianismo, existe um
método científico; e há também uma política teorizada na sua forma mais extrema de autonomia.
Se quisermos, poderemos sustentar que Hobbes era isento de valores – Wertfrei. Contudo, fala-se de
Hobbes, com razão, como e um “filósofo” da política; e a ciência política reconhece, com relação a
Maquiavel, uma paternidade que nega a Hobbes. Por que razão? É simples. O elemento que separa
a ciência da filosofia não é o geométrico ou o matemático. Descartes era um grande matemático,
como o foi Leibniz [1646-1716]. A matemática é uma lógica dedutiva: mas as ciências não nascem
da dedução lógica, mas sim da indução, da observação e da experiência. Hobbes não observava;
deduzia more geométrico como o fará mais tarde este exemplo puro de filósofo que foi Spinoza (1632-
1677). O método de Hobbes era, portanto, rigorosamente dedutivo: ele não observava o “mundo
real”.
56
HORTA, cit., p. 66-67. “Vale, de início, registrar que Hobbes, de fato, não acredita na existência
de uma natureza não social: “o gênero humano jamais esteve em uma situação inteiramente sem
sociedade”. Em Hobbes, o estado de natureza é uma pura hipótese da razão, “da qual deriva como
consequência (uma consequência lógica e não histórica) o bellum omnium contra omnes. O estado de
natureza universal jamais existiu e não existirá jamais””.
57
SCHMITT, Carl. O Nomos da Terra no Direito das Gentes do Jus Publicum Europaeum. Trad. Ale-
xandre Franco de Sá et al. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2014. p. 156: “Em consequ-
ência da personalização, as relações entre os Estados soberanos tornam-se suscetíveis de comitas,
cortesia, assim como de jus, jurisdicidade. Também aqui são diferentes as interpretações filosóficas
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 111

Segundo o jusfilósofo tedesco, a teoria de Hobbes é uma construção do-


tada de cientificidade e a doutrina do estado de natureza é a que tem
maior força explicativa comparativamente às teorias de seus sucessores,
como Rousseau, Leibniz, Kant e até mesmo Hegel.58 Vai além, Schmitt
diz que de Hobbes e Leibniz a Kant, todos os autores eminentes afir-
maram que os Estados são como pessoas morais e vivem entre si num
estado de natureza, segundo o direito das gentes pelo fato de que não
possuem uma autoridade institucional como a mais elevada. Por isso,
sendo todos portadores do ius belli, contrapõem-se entre si como pes-
soas soberanas juridicamente iguais e igualmente justas. Aduz que isso
pode ser considerado um estado anárquico, porém, de modo algum um
estado carente de direito. Esta situação é diferente do Estado feudal, que
reconhecia o direito do mais forte e o direito de desistência, fundamen-
tando isso na potestas spiritualis, o que também não era carente de direi-
to. Schmitt, explorando a teoria de Hobbes sob novas luzes, e diz que
como as pessoas soberanas são iguais por natureza, iguais como num
estado de natureza, como pessoas soberanas de igual qualidade, elas
não possuem legislador e nem juiz em comum acima de si mesmas, pois
um par não tem jurisdição entre seus pares. Assim, como qualquer um é
juiz em causa própria, só estão vinculados por seus próprios contratos,
cuja interpretação é somente assunto dos contratantes.59 É inegável que

e as jurídicas. Mas também aqui não devemos deixar que questões secundárias nos distraiam do
caráter espacial do novo ordo, um ordo menos espiritual do que espacial. Uma questão secundária
é, por exemplo, a controvérsia sobre esses “grandes homens”, para além de uma linha de amizade,
devem ser imaginados entre si um “estado de natureza” e se esse estado, por sua vez, será repre-
sentado (segundo Hobbes) como um combate associal entre Leviatãs ou (segundo Locke) coo uma
comunidade social de gentlemen no fundo já saturados; ou se as relações dos grandes entre si será
concebida, de modo supostamente jurídico-positivo, segundo a analogia de uma societas de direito
civil, ou uma communitas de direito civil”.
58
Ibid.: “Em qualquer caso, a analogia, própria do direito das gentes, do Estado com a pessoa huma-
na, a international personal analogy, domina a partir desse momento todo o pensamento do direito
das gentes. De todas as construções científica, a doutrina de Hobbes do estado de natureza dos mag-
nis homines mostrou ter mais força e verdade histórico-espiritual”. Schmitt chega a colocar Hobbes
como fundador do direito internacional público (ius gentium): “As duas orientações da ciência do
direito das gentes, a orientação filosófica e a jurídico-positiva, encontram-se na representação co-
mum de que os Estados soberanos – que, como tais, vivem entre si no estado de natureza – têm o
caráter de pessoas. Rousseau, Kant e o próprio Hegel (Philosophie des Rechts, § 333) falam no estado
de natureza entre os povos estatalmente organizados. Somente assim o jus gentium pode ser trata-
do pela ciência jurídica e se converteu numa disciplina nova e autônoma das faculdades de direito.
Somente a personificação dos Estados territoriais europeus surgiu uma ciência jurídica do jus inter
gentes interestatal”.
59
Ibid., p.157. Como cada um é igualmente soberano em relação aos demais, cada um tem o mes-
mo direito à guerra, o mesmo jus ad bellum. Mesmo quando se supõe que no combate em estado
de natureza “o homem é o lobo do homem”, isso não tem qualquer sentido discriminatório, pois
também no estado de natureza nenhum desses combatentes tem o direito de suprimir a igualdade
112 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

Carl Schmitt [1888-1885] admira Thomas Hobbes, mas ao mesmo tempo


o critica – sustenta Habermas. Celebra-o como o único teórico político
de categoria que reconheceu a substancia decisionista da política esta-
tal no domínio soberano, porém, lamenta que o teórico tenha recuado
diante das últimas consequências metafísicas, tornando-se um dos an-
cestrais do Estado de direito da lei positiva. Aduz ainda que o Schmitt
teólogo político confirma a avaliação ambivalente por meio do sentido
e fracasso de um símbolo político60. O Leviatã se levanta do mar e subjuga
Behemoth, a força da terra firme. Mas, segundo o autor, esta imagem foi
prejudicial para o Leviatã de Hobbes. Diz que aos judeus esta luta ente
monstros sempre pareceu uma imagem temível e odiosa da vitalidade
pagã e, Hobbes, por desconhecer esta versão subversiva, equivocou-se
na escolha do símbolo. Para o sociólogo alemão, a intenção de Hobbes
era oposta e sucumbiu à força perniciosa da figura mítica. A substancia
do estado moderno representada por esta imagem – continua – foi mal
compreendida nos séculos seguintes como uma anormalidade contra a
natureza, pois este símbolo não foi adequado ao sistema de pensamento
a que foi relacionado. A intepretação judaica foi o que conferiu o efeito
prejudicial que pairou sobre o tratado do politólogo inglês61-62.

e considerar a si mesmo como homem e ao seu adversário mero lobo”. Para arrematar, dada a
importância da contribuição de Hobbes para a teoria do autor, aduz: “Como veremos adiante, aqui
reside o novo conceito de guerra, já não discriminatório, que possibilita tratar os estados beligerantes
como juridicamente iguais do ponto de vista do direito das gentes, isto é, tratar ambos como justi
hostes que estão juridicamente e moralmente no mesmo plano, mantendo separados os conceitos de
inimigo e de criminoso”.
60
Apesar de não referir textualmente, Habermas provavelmente está se referindo ao texto de Sch-
mitt, de 1938. Einfiihrung zu Julius Lips: Die Stellung des Thomas Hobbes zu den politischen Parteien
der grossen englischen Revolution [Introdução a Julius Lips: A posição de Thomas Hobbes sobre os
partidos políticos da grande Revolução Inglesa]. Há uma publicação britânica com título diverso:
SCHMITT, Carl. The Leviathan in the State Theory of Thomas Hobbes: Meaning and Failure of a Political
Symbol. Trad. George Schwab e Ema Hilfstein. Westport/Connectcut/London: Greenwood Press,
1996.
61
SCHMITT, Carl. O Conceito do Político/Teoria do Partisan. Trad. Geraldo de Carvalho. Belo Horizon-
te: Del Rey, 2008. Apresentação “Liquidando os Danos. Os Horrores da Autonomia”, de Habermas,
pp. IX/X.
62
Ibid., p. IX/X. Este quadro mitológico é preenchido posteriormente por Schmitt, no âmbito da
história das ideias, com duas teses. Primeiramente, ele projeta de vota a Hobbes sua ideia de sobe-
rania desenvolvida em 1922 na obra Teologia Política. Da mesma forma como o Leviatã só constitui
o poder que ele é, quando subjuga Behemot, o Estado se afirma como poder soberano somente ao
oprimir a resistência revolucionária. Sua dinâmica constitui-se na repressão da revolta, na sujeição
continuada de um caos, instalado na natureza má dos indivíduos. Estes insistem em sua autonomia
e pereceriam no subressalto de sua emancipação, se não fossem salvos pela facticidade de um poder
que domina qualquer outro poder. Soberano é quem decide sobre o estado de exceção. E, uma vez que
as forças subversivas sempre se apresentam em nome da verdade e da justiça, o soberano que quer
prevenir o estado de exceção há de também restringir para si a decisão sobre a definição do que é
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 113

Giovanni Sartori (nascido em 1924), no final dos anos 70, quer


saber o que é, afinal, política, e está em busca a autonomia da políti-
ca. Para tanto, traça um comparativo do pensamento e Hobbes com o
de Maquiavel e aproxima aquele de Orwell. Para ele, No tratamento da
autonomia política, aduz que Hobbes teoriza uma política ainda mais
“pura” do que a de Maquiavel. A obra Leviatã, de 1651, é o precursor
mais direto do “Big Brother” imaginado por Orwell, diz o politólogo
italiano, e explica. Para Hobbes, a ordem política é criada pelo seu fiat,
pelo seu poder de inventar palavras, de dar a definição e de impô-las
aos súditos, pois para ele as primeiras verdades foram propostas arbi-
trariamente pelos que em primeiro lugar deram nomes às coisas. A de-
dução de Hobbes era a de que as verdades políticas se assemelhavam às
verdades arbitrárias e convencionais da geometria. Segundo Sartori, se
o príncipe de Maquiavel governava aceitando as regras da política, o Le-
viatã de Hobbes criava estas regras, estabelecendo o que era a atividades
política. O universo humano é infinitamente manipulável e o Grande
Definidor é seu manipulador total, o Leviatã de Hobbes. Reconhece que
ninguém teorizou7 uma politização tão extrema como a de Hobbes, que
propunha a independência completa e autárquica da política, afirman-
do um pan-politicismo bastante absorvente. Por outro lado, Se Maquia-
vel invoca a virtú, Hobbes não invoca nada. Diz Sartori que as páginas
e Maquiavel eixam sentir uma paixão moral, mas em Hobbes não tem
nada disso; ele era um raciocinador glacial, empenhado em construir
uma perfeita mecânica de corpos em movimento. Maquiavel não via na
religião um sustentáculo a política, enquanto Hobbes confiava ao sobe-

publicamente considerado verdadeiro ou justo. Seu poder de decisão é a fonte de toda validade.
O Estado unicamente determina a confissão pública de seus cidadãos”. Prossegue Habermas: “No
entanto, com respeito à confissão religiosa, Hobbes comete, como pensa Schmitt, uma grave incon-
sequência: ele diferencia “faith” de “confession” e declara a neutralidade do Estado frente à confissão
dos cidadãos, sua fé particular. Unicamente o culto público está subordinado ao controle estatal.
Esta diferenciação pretensamente inconsequente baseia Carl Schmitt sua segunda tese. A ressalva
do credo privado concedida por Hobbes é entendida por Schmitt como o ponto de acesso para a
subjetividade da consciência civil e da opinião privada, as quais, paulatinamente, desenvolvem sua
força subversiva. Esta esfera privada vira-se para fora e se estende até a publicidade civil; nisto se
faz valer a sociedade civil como contrapeso político e finalmente, com a competência para a legis-
lação parlamentar, derruba o Leviatã do trono”. A conclusão de Habermas é a seguinte (pp. X/XI):
“Todavia, este cenário desconsidera por completo o fato de que Hobbes, desde o início, desenvolveu
seu conceito de soberania concatenado com a positivação do Direito. O Direito positivo já requer,
conforme seu conceito, um legislador político que não pode estar vinculado por mais tempo a nor-
mas superiores do Direito Natural – e que, neste ponto, é soberano. Por isso, na ideia de Hobbes
de um legislador soberano, o qual está vinculado à mediação do Direito positivo, já está instalado
um germe para aquele desenvolvimento do estado de direito, considerado por Carl Schmitt como
uma grande fatalidade – e que pretende derivar a partir da neutralização do poder público frente
aos poderes da fé privados”.
114 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

rano o controle da religião, como o fará mais tarde, na França, Augusto


Comte (1798-1857) – acrescenta Sartori.63 Diante deste quadro compa-
rativo, o politólogo italiano compreende que Hobbes não ultrapassou
Maquiavel em muito; não apenas na afirmação e uma política “pura”,
que tudo infundisse e tudo causasse; ultrapassou também em “cienti-
ficidade”. A explicação do autor de Lógica e Métodos das Ciências Sociais
(publicado no Brasil sob o título de A Política) esta superioridade cien-
tífica de Hobbes sobre Maquiavel. Em primeiro lugar, há mais de 100
anos separando Hobbes (1588-1679) e Maquiavel (1469-1527) – prosse-
gue Giovanni Sartori – e os dois se interpõem a Bacon (1561-1624) e Ga-
lileu (1564-1650). Em segundo lugar, Hobbes recebi a lição metodológica
de Descartes (1596-1630), que era seu contemporâneo mais jovem e mais
precoce. É, à sua maneira, Hobbes tinha uma atitude científica para os
padrões de ciência do seu tempo. Isso porque, na leitura de Sartori, seu
sistema filosófico se inspirava numa concepção mecanicista do universo e
seu método se inseria no modelo da geometria, como um matematicismo
lógico. Para usar uma expressão muito cara e conhecida e Thomas Kuhn,
era a ciência normal do tempo de Hobbes; quem fizesse diferente, estava
errado64. Nesta visão, ninguém contesta Hobbes, entretanto, para Sarto-

63
SARTORI, Giovanni. A Política. Trad. Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. na
terceira parte – Aprofundamento, Capítulo 7 – Que é Política?, item 7.2 – A Autonomia da Política,
pp. 157 e ss (163).
64
Ibid., 163-164. Para além disso, mas relacionado, posto que oportuno, precisamente aqui, numa
digressão importante, mencionar ao leitor a leitura do século XX a respeito da compreensão sobre
o que seja cientificidade. O melhor e mais conhecido epistemólogo, neste tocante, é o inglês Tho-
mas Kuhn. Por isso KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Trad. Beatriz Vianna
Boeira e Nelson Boeira. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. Cap. 1 – A Rota para a Ciência Normal,
pp. 29/31 ss. Diz ele, p. 29, que: “Neste ensaio, “ciência normal” significa a pesquisa firmemente
baseada em uma ou mais realizações científicas passadas. Essas realizações são conhecidas durante
algum tempo por alguma comunidade científica específica como proporcionado os fundamentos
para sua prática posterior. Embora raramente na sua forma original, hoje em dia essas realizações
são relatadas pelos manuais científicos elementares e avançados. Tais livros expõem o corpo da
teoria aceita, ilustram muitas (ou todas) as suas aplicações bem sucedidas e comparam essas apli-
cações com observações e experiências exemplares. (...) O estudo dos paradigmas, muitos dos quais
bem mais especializados do que os indicados acima, é o que prepara basicamente o estudante para
ser membro da comunidade científica determinada na qual atuará mais tarde. Uma vez que ali o
estudante reúne-se a homens que aprenderam as bases de seu campo de estudo a partir dos mes-
mos modelos concretos, sua prática subsequente raramente irá provocar desacordo declarado sobre
pontos fundamentais. Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão
comprometidos com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento
e o consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a gêneses e
a continuação de uma tradição de pesquisa determinada”. Cfe., ainda, na mesma obra, cap. 5 – A
Anomalia e a Emergência das Descobertas Científicas, pp. 77 ss. Para o epistemólogo inglês, pp.
77/78, no tocante às anomalias: “A ciência normal, atividade que consiste em solucionar quebra-ca-
beças, é um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem sucedido no que toca ao
seu objetivo, a ampliação contínua ao alcance e da precisão do conhecimento científico. Em todos
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 115

ri, a “ciência” de Hobbes não é científica65. A autonomia da política que


interessa não é a que Hobbes teorizou, ainda que nada afaste o fato e que
Hobbes foi, efetivamente, muito mais “avaliativo” do que Maquiavel. A
conclusão a que chega Sartori é a de que se em Maquiavel não encontra-
mos ainda ciência propriamente, é porque Hobbes não representa um
encontro significativo entre a ciência e a política; a descoberta de Hobbes
da autonomia a política não se funda num método científico. A história a
ciência política é a história destes dois conceitos (ciência e política) que
é preciso manter separados, para não mal ou prematuramente reunidos.

2.3 A Contribuição de Finer, Gillisen e Arendt

Finer (1915-1993), cientista político e historiador inglês, na obra


Comparative Government (1970), fala sobre as instituições políticas da Grã-
-Bretanha dizendo que, em certos aspectos, a história britânica é “o re-
gistro normal de assassinatos, deposições, rebeliões, abdicações e pros-
crições”. As instituições básicas se desenvolveram independentemente,
por um lado, como derivadas de suas predecessoras ou, por outro, para-
lelamente a elas. A continuidade das instituições britânicas, diz Finner,
constitui um fato supremo na evolução histórica do Reino Unido e, por
isso, um grande enigma. Amplas partes a Constituição eram protegidas
somente pelo costume e pela tradição, sem o concurso da fixação escrita.

esses aspectos, ela se adequa com grane precisão à imagem habitual o trabalho científico. Contu-
do, falta aqui um produto comum do empreendimento científico. A ciência normal não se propõe
descobrir novidades no terreno dos fatos ou da teoria; quando é bem sucedida, não as encontra.
Entretanto, fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela pesquisa cientí-
fica; cientistas têm constantemente inventando teorias radicais novas. O exame histórico nos sugere
que o empreendimento científico desenvolveu uma técnica particularmente eficiente na produção
de surpresas essa natureza. Se quisermos conciliar esta característica da ciência normal com o que
afirmamos anteriormente, é preciso que a pesquisa orientada por um paradigma seja meio parti-
cularmente eficaz e induzir a mudanças nesses mesmos paradigmas que a orientam. Esse é o papel
das novidades fundamentais relativas a fatos e teorias”.
65
Ibid., p. 164: “À primeira vista, seremos tentados, portanto, a concluir que em Hobbes subsistem
todos os elementos que qualificam uma “ciência política”. E acordo com o cartesianismo, existe um
método científico; e há também uma política teorizada na sua forma mais extrema de autonomia.
Se quisermos, poderemos sustentar que Hobbes era isento de valores – Wertfrei. Contudo, fala-se de
Hobbes, com razão, como e um “filósofo” da política; e a ciência política reconhece, com relação a
Maquiavel, uma paternidade que nega a Hobbes. Por que razão? É simples. O elemento que separa
a ciência da filosofia não é o geométrico ou o matemático. Descartes era um grande matemático,
como o foi Leibniz [1646-1716]. A matemática é uma lógica dedutiva: mas as ciências não nascem
da dedução lógica, mas sim da indução, da observação e da experiência. Hobbes não observava;
deduzia more geométrico como o fará mais tarde este exemplo puro de filósofo que foi Spinoza (1632-
1677). O método de Hobbes era, portanto, rigorosamente dedutivo: ele não observava o “mundo
real”.
116 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

Até mesmo um rompimento violento e radical a continuidade, como foi


entre 1649-1660, terminou com o cancelamento de todas as leis promul-
gadas durante este interregno de 11 anos, com a restauração formal dos
arranjos políticos anteriores a este período66. Finer mostra-se surpreso
com tal sobrevivência e avança para mostrar o anacronismo terminológi-
co institucional britânico que perdura até os anos 70, quando a pesquisa
do autor. Diz ele que a Constituição se desenvolveu ad hoc, mediante
adaptações que davam respostas, um a um aos problemas políticos que
iam surgindo ao longo da história. Diz ele que nos anos 70 é uma consti-
tuição democrática, mas vazada num molde medieval antigo. Está cheia e
funcionários, terminologia e procedimentos que se originaram na Idade
Média. Dá prova disso dizendo que o governo é o governo a Rainha;
que os ministros são Ministros da Coroa; que os oficiais apresentam suas
patentes em virtude de Comissionamento Real. Acresce ainda mais para
dizer que os tribunais e juízes são Tribunais de Sua Majestade e Juízes
de sua Majestade; os altos funcionários ainda ostentam os títulos de Lord
Chancellor, de Lord do Sele Privado (Lor Privy Seal), de Chanceler do
Erário (Chancellor of the Exchequer) que, segundo ele, têm origem há mais
de seiscentos anos. Por derradeiro, para reafirmar o anacronismo, diz
que o lugar o Parlamento britânico se reúne é ainda o Palácio Real de
Westminster. 67 Gillisen, na sua monumental Introduction Historique au
Droit, ao tratar da Common Law, não cita Hobbes, entretanto, ao abordar

66
FINER, Samuel E. Governo Comparado. Trad. Sérgio Duarte. Brasília: Universidade de Brasília,
1981. Segunda parte – A Democracia Liberal, Capítulo V – O Governo da Grã-Bretanha, primeiro
item - A Nação e o Povo, subitem A) Formação do Consenso, b) O Fluxo do Tempo, pp. 127 e ss
(133).
67
Ibid., p. 134. A importância dessa tradição é que ela preservou não somente as formas medievais,
como a essência medieval; e essa era a de que o rei governava – porém condicionalmente, não e
forma absolutamente. No coração do sistema político inglês – que agora abarca todo o Reino Úni-
co – sempre houve um cerne de funcionários que iniciavam, formulavam e executavam a política.
Somente durante certo período – no tempo extraordinário do Longo parlamento (1640-49) – é que
essa tradição foi suspensa, e mesmo assim isso ocorreu porque o rei “faltou” (por assim dizer) e
com ele o núcleo-chave da Constituição operante. Durante o restante do tempo, a oposição política
jamais procurou eliminar esse grupo, mas apenas controla-lo. A história constitucional britânica é,
em suma, a história de uma luta contínua pelo controle dessa maquinaria executiva”. Prossegue
o autor: No começo, eram o Rei e seus auxiliares escolhidos a dedo, contra os barões no Grane
Conselho. Hoje são o primeiro-ministro e seus ministros, no Gabinete, contra os Comuns, ou – mais
realisticamente – contra o partido de oposição. A forma de uma Lei do Parlamento liga o presente
ao passado e atesta a continuidade subjacente da concepção medieval de governo. Uma lei começa
com estas palavras: “Seja promulgado por Sua mais Excelsa Majestade a Rainha, por conselho e
assentimento dos Lordes Espirituais e Temporais, e dos Comuns, reunidos neste atual Parlamento,
e por autoridade deste... (sic)”. Hoje, na prática, são o Primeiro Ministro e seus colegas do Gabinete
que promulgam as leis, mas “por conselho e assentimento... dos Comuns... e por autoridades destes
... (sic)”.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 117

o desenvolvimento da Statute Law, desenha o contexto inglês do surgi-


mento desta nova modalidade de justiça britânica justamente na época
do autor de Leviatã, expressamente referindo o Parlamento.68
Arendt [1906-1975], em Origens do Totalitarismo, ao tratar do Im-
perialismo, abordando A Emancipação Política da Burguesia, enfoca, na
análise do Poder da Burguesia, o pensamento de Hobbes como “o único
grande filósofo de que a burguesia pode, com direito e exclusividade, se
orgulhar, embora os seu princípios não fossem reconhecidos pela classe
burguesa durante muito tempo”69-70. Diz Hannah tem uma interpretação
diferente e interessante do pensamento de Hobbes, pois o faz dialogar
com a burguesia que está em ascensão política no seu tempo, tomou
de assalto o poder do Estado britânico e confronta o projeto de Estado
derrotado, impondo os seus próprios valores e sua visão de homem que
carrega como origem de classe economicamente e religiosamente do-
minante. A filósofa política alemã sustenta que é difícil encontrar um
único padrão moral burguês que não tenha sido previsto pela inigualá-
vel magnificência da lógica de Hobbes, pois ele pinta um quadro quase
completo, não do homem, mas do homem burguês, fazendo uma análi-
se que em trezentos anos não se tornou antiquada e nem foi superada.
Faz alguns extratos do ponto de vista de Hobbes, como “a razão é nada
mais que cálculo”; um súdito livre, uma vontade livre, são palavras sem
significado, isto é, um absurdo”. Para o inglês, o homem é essencial-

68
GILISEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Trad. A. M. Hespanha e L. M. Macaísta Malheiros.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, [1988]. Primeira Parte – Esboço de uma história universal do direito;
Capítulo 4 – Direitos europeus medievais e modernos; H – O Common law, 5 – Desenvolvimento do
“statute law”, p. 215 ss. “Uma diferença importante entre a Inglaterra e os outros países europeus,
reside no papel reconhecido do Parlamento, ou seja, aos órgãos representativos do povo, muito
mais cedo na Inglaterra que nos outros países; a intervenção do Parlamento no domínio legislativo
foi estabelecida progressivamente entre 1322 e 1415; depois de numerosos conflitos entre o rei e
o Parlamento, este conseguiu a vitória em 1689; por efeito do Bill of Rights, nenhuma lei pode ser
posta em vigor ou suspensa sem o acordo do Parlamento. O mesmo princípio só foi acolhido em
França em consequência da Revolução de 1789”.
69
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo: Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Trad.
Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. p. 207 ss.
70
Ibid., p.208-209: “O Leviatã de Hobbes expôs a única teoria política segundo a qual o Estado não
se baseia em nenhum tipo de lei construtiva – seja divina, seja natural, seja contrato social – que
determine o que é certo ou errado no interesse individual com relação às coisas públicas, mas sim
nos próprios interesses individuais, de que no “interesse privado e o interesse público são a mesma
coisa”. A Nota 36, feita por Hanna (p. 670), ela faz uma explicação deste ponto de vista: “36. É muito
significativo que essa identificação de interesse coincida com a alegação totalitária de haver abolido
as contradições de interesses públicos e os individuais (ver capítulo 12). Contudo, não se deve es-
quecer que Hobbes estava interessado principalmente em proteger os interesses privados, alegando
que, corretamente interpretados, eles eram também os interesses do corpo político, ao passo que, ao
contrário, os regimes totalitários proclamam a não existência da privatividade”.
118 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

mente uma função da sociedade; é julgado de acordo com o seu “valor


ou merecimento, seu preço”. Em outras palavras – diz a autora – aquilo
que seria dado a ele pelo uso da sua força. Este preço é constantemente
avaliado e reavaliado pela sociedade, como fonte a estima dos outros, de
acordo com a lei da oferta e da procura. Para Arendt, o poder, segundo
Hobbes, é o controle que permite estabelecer os preços e regular a oferta
e a procura de modo que sejam vantajosas a quem detém este poder. Na
luta pelo poder, assim como na capacidade inata de persegui-lo, todos
os homens são iguais, pois a igualdade do homem reside no fato de que
cada um, por natureza, tem potencialidades suficientes para matar um
ao outro, inclusive porque a fraqueza pode ser compensada pela astú-
cia. Esta igualdade, para Hobbes, coloca todos os homens numa mesma
insegurança, comprovando a necessidade do Estado. A razão de ser do
Estado é esta necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo, que se
sente ameaçado por todos os seus semelhantes. Vê-se que o traço básico
do desenho que Hobbes pinta do homem não está no seu pessimismo
realista, e se é verdade que o homem é um ser como ele apresenta – diz
Arendt - não seria capaz de fundar qualquer corpo político. Hobbes não
consegue incorporar definitivamente esse ser numa comunidade políti-
ca. 71 O homem de Hobbes não deve qualquer lealdade ao seu país, se
este for derrotado; ele é desculpado de qualquer traição, caso venha a
ser feito prisioneiro. E aqueles que vivem fora da comunidade, os es-
cravos, por exemplo, não têm nenhuma obrigação para com o s que a
compõem e podem matar tantos quantos quiserem. Ademais, “nenhum
homem tem a liberdade de resistir à espada da comunidade em defesa
de outro homem, culpado ou inocente”, o que, na leitura da tedesca, o
homem de Hobbes não tem nenhum espírito de companheirismo; nem
responsabilidade entre os homens existe. O que os mantém unidos é
um interesse comum, dentre alguns exemplos, algum crime capital, pelo
qual todos esperam ser punidos com a morte em retaliação, concedendo,
assim, nestes casos, o direito de se unirem, de se ajudarem e de se defen-
der uns dos outros, dentro do entendimento de que apenas defendem
suas próprias vidas. Por isso para Hobbes a participação em qualquer
forma de comunidade é temporária e limitada, não mudando o caráter
solitário e privado do indivíduo.
Este não tem prazer, mas só desgosto em se manter em compa-

71
Ibid., p. 209. Cfe. também STIGLITZ, Joseph E. Globalização: como dar certo. Trad. Pedro Maia
Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Capítulo 10 – Democratizando a Globalização, pp.
411 ss.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 119

nhia dos outros, exceto se for obrigado pela força. Neste contexto, não
cria laços permanente, muito menos alguma forma de companheirismo.
O resultado disso tudo, deste quadro de luta permanente de todos con-
tra todos, é a inerente e confessada instabilidade da comunidade hu-
mana, a Commonwealth de Hobbes, cuja concepção prevê inclusive a sua
ulterior dissolução. Isto porque para Hobbes, se houver guerra estran-
geira ou interna, os inimigos obtêm a vitória final; então a commonwealth
é dissolvida e cada homem tem a liberdade de se proteger a si mesmo.
Esta instabilidade é interpretada por Hannah Arendt como surpreen-
dente, pois o seu objetivo primário como teórico do Estado era assegurar
um máximo de segurança e estabilidade. O homem só existe em função
do Leviatã e, dissolvido este, volta ao estado de natureza, da luta de to-
dos contra todos. O homem é uma engrenagem na máquina do Estado e
nada mais do que isso; fora da máquina, o homem perde a sua própria
humanidade. O homem está condenado a sustentar o Leviatã. 72 Tanto
é isso que Hobbes isenta de qualquer obrigação todos os excluídos da
sociedade, como os fracassados, os infelizes, os criminosos, tanto para
com o Estado quanto para com a própria sociedade – se o Estado não
cuida deles. 73 74 Por derradeiro, Hannah Arendt diz compreender a pro-
funda suspeita que Hobbes nutria em relação a toda a tradição ocidental

72
ARENDT, cit., p. 209-210.
73
Ibid., p. 211-215. Por ser filósofo, Hobbes já podia perceber na ascensão da burguesia todas aque-
las qualidades antitradicionais da nova classe, que iriam levar três séculos para desenvolver-se
por completo. Seu Leviatã não se perdia em especulações ociosas a respeito de novos princípios
políticos, nem da velha busca da razão que governa a comunidade dos homens; era estritamente
um “cálculo das consequências”, que advêm da ascensão de uma nova classe na sociedade, cuja
existência está essencialmente ligada à propriedade como um mecanismo dinâmico produtor de
mais propriedade”.
74
Ibid., p.215. Cfe. também ALTHUSSER, Louis. Política e História de Maquiavel a Marx. Curso Minis-
trado na École Normale Supérieure de 1955 a 1972. Texto Estabelecido, anotado e apresentado por
François Matheron. Trad. Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Parte Hobbes (1971-
1972), pp.411 ss, em especial no questionamento da p. 412, “Isso propõe o problema: como é possí-
vel conciliar absolutismo, materialismo e individualismo (liberalismo)?”. Adiante, p. 13, Althusser,
ao tratar do Artifício em Hobbes, diz: “Encontra-se em Hobbes um entrelaçado de temas em torna
da indagação antropológica: o que é o próprio homem? Resposta: é o artifício (cf. Leviatã, início): o Esta-
do não passa de “animal artificial”, “corpo artificial”. O homem, como tal é capaz de artifício. Qual é
o artifício-tipo que caracteriza o homem? É a linguagem, a palavra: o poder arbitrário de utilizar marcas
arbitrárias. Esse tema se filia à sofística (cf. Isócrates). Aristóteles também disse que a natureza deu
a linguagem ao homem, que a linguagem é o bem de todos os homens (Política, Ética nicomaquéia);
mas, enquanto para Aristóteles a linguagem e a sociabilidade são naturais, para Hobbes a lingua-
gem é o arquétipo de todos os artifícios. Nesse sentido, Hobbes é o primeiro teórico do arbitrário do
signo. Há dois aspectos dessa arbitrariedade do signo; a) estado de natureza (aspecto secundário);
não há nenhum nexo natural entre significado e significante, não há relação entre a palavra e a coisa
designada; b) aspecto principal: arbitrariedade da instituição do corpo de marcas; donde a recusa a
propor o problema da origem da linguagem e a negação da origem do significante no signifição”.
120 • Capítulo 4 - Thomas Hobbes : O Liminar da Ciência do Estado na Modernidade

de pensamento político, e que isso não a surpreende, pois ele procurava


nada menos do que justificar a Tirania. Embora a tirania houvesse ocor-
rido muitas vezes na história do Ocidente, nunca tinha havido antes ela
sido homenageada com um fundamento filosófico como o fez Hobbes.
Aliás – prossegue Hannah – ele confessa orgulhosamente que o Leviatã
é realmente um governo permanente de tirania, ao dizer que a pala-
vra tirania significa nem mais nem menos do que a palavra Soberania,
achando que tolerar o ódio declarado à Tirania seria tolerar o ódio à
comunidade em geral. 75

Considerações finais

Encerrada a linha expositiva, em suas três partes, em textos apar-


tados, com as ressalvas feitas de início, estamos em condições de con-
cluir, sinteticamente. Retomamos aqui a pergunta anunciada na Intro-
dução: Hobbes foi um Cientista da Política, Cientista do Direito ou Cientista
do Estado? Se considerarmos que todas as ciências que estudam o Estado
como objeto de pesquisa, enquanto abordam tal Enfoque Estadológico,
é Ciência do Estado, então, a Ciência Política e a Ciência do Direito – e
Hobbes foi politólogo e jurista - são ciências dotadas daquele qualifica-
tivo especial. A temática é mais o Estado do que a Política ou o Direito;
portanto, vemos na trilogia hobbesiana mais um estadólogo do que um
politólogo ou um jurista, ainda que doses fortes de ambos estejam pre-
sentes ao longo das três discussões. A política e o Direito são aspectos do
Estado para Hobbes e é em função do todo que as partes são tratadas.
Em vista das considerações acima, pode-se verificar que Hobbes, (a) em
sua trilogia sobre o Estado composta pelos tratados De Cive (“Ziz”), que
trata da passagem do estado de natureza para o estado de sociedade e a
constituição do Estado como ente soberano; Leviatã, que trata do Estado
Soberano, e retoma todas as temáticas da obra anterior, não reconhe-
cendo nenhum poder acima dele em seu território; e Behemoth, que tra-
ta do Parlamento e da Guerra Civil envolvendo os cidadãos, dentro do
próprio Estado; (b) apresenta-se, repetidamente, como cientista político
e cientista do Direito, porém, preponderante e permanentemente, cien-
tista do Estado – e seus comentadores, trazidos à colação no desenvol-

75
ARENDT, cit., p. 215. Cfe., também RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta e
Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Primeira parte – Teoria, Capítulo I – Justiça
como Equidade, item 3 – A Ideia Principal da Teoria da Justiça, p. 12 ss.; e, na parte II – Instituições,
capítulo IV – Liberdade Igual, item 38 – O Estado de Direito, p. 257 ss.
João Protásio Domingues de Vargas & Levindo Ramos Vieira Neto • 121

vimento, corroboram com este ponto de vista. Não resta dúvida de que
Hobbes foi – juntamente com Nicolau Maquiavel, seu antecessor –– um
dos primeiros Cientistas do Estado, precursores da Estadologia na Mo-
dernidade, sem mantendo-se, também, como Epistemólogo, Filósofo do
Estado, Cientista Político e Cientista Jurídico, para dizer o menos.

Referências bibliográficas

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CAPÍTULO 5

Um breve panorama sobre a filosofia política


no pensamento de John Locke

Aléxia Alvim Machado Faria1


Layon Duarte Costa2

1. Introdução

O presente trabalho foi redigido para leitura e análise na disci-


plina “Temas de História do Direito ­(Re)leituras do político. Da pólis à
despolitização (III)” e visa abordar os principais pontos do pensamento
político de John Locke.
Por ser extensa a obra do autor, selecionamos temas que, ao nos-
so ver, são essenciais na compreensão da passagem do estado de natu-
reza à sociedade civil em Locke ­ direito natural, liberdade, igualdade,
direito à propriedade e à vida, delegação de prerrogativas à sociedade
civil. Tais pontos são predominantemente estudados no Segundo Tra-
tado sobre o Governo Civil, razão pela qual escolhemos o mencionado
livro como leitura primária principal. Entretanto, até chegarmos na dis-
cussão acerca destes temas, consideramos necessária uma breve expli-
cação acerca do contexto histórico vivenciado por Locke, que constituiu
patente influência em sua forma de ver a natureza do homem e a so-
ciedade, e igualmente breve menção a alguns de seus principais textos,
para que se mantenha na lembrança do leitor a compreensão de que o
pensamento político não era a única preocupação filosófica do autor.
Por fim, após o delineamento dos pensamentos expressados no Primeiro
e Segundo Tratados, buscamos apontar alguns desdobramentos da filo-
sofia política lockeana em temas adjuntos, nomeadamente o direito de
punir e (o embrião dos) direitos humanos.
O texto é dividido, portanto, em três partes principais: primei-
ramente, trabalhamos com a análise da vida e da produção intelectual

¹ Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.


² Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
126 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

de Locke, a fim de proporcionar ao leitor um posicionamento do pensa-


mento político de Locke nos ambientes internos e externos a ele. Após,
analisaremos os Dois Tratados Sobre o Governo Civil, com maior foco
nos escritos e interpretações ligados ao segundo, buscando passar pe-
las premissas necessárias à sociedade civil e pelos limites impostos às
constituições políticas. Por fim, selecionamos alguns temas diretamen-
te decorrentes das reflexões de Locke sobre o estado de natureza e a
sociedade civil para a realização de breves comentários, no intuito de
fomentar o debate acerca das implicações trazidas pelo pensamento do
jusnaturalista.

2. Biografia ­vida de Locke e seu contexto histórico

O século XVII na Inglaterra foi marcado por numerosos confli-


tos políticos que influenciaram, sobremaneira, a produção intelectual de
John Locke. Pode­se dizer que ele viveu um conturbado período históri-
co, o que certamente marcou seu pensamento político.

Para efeito didático, normalmente se divide a trajetória de Lo-


cke em três grandes fases: a primeira começa com a infância
e estende­se até o período de Oxford, fase eminentenente, de
formação; a segunda é aquela em que conheceu e passou a con-
viver com Lorde Ashley, mais tarde, Conde de Shaftesbury;
finalmente, a terceira, a época da autonomia, em que passa a
dedicar­se integralmente a questões filosóficas. É importante
destacar que, entre a segunda e terceira fase, a desordem po-
lítica e controvérsias religiosas configuraram um dos períodos
mais tensos e conflitantes da história inglesa, produzindo em
todos uma ânsia por paz e estabilidade, o que marcou o pensa-
mento de Locke.3

Quando o autor ainda tinha dez anos de idade, em 1642, iniciou­


se a Guerra Civil inglesa. David Cressy aponta que, em cada um de seus
eventos, a guerra civil “deu forma a duas décadas de exaustiva confusão
que fundamentalmente alterou a política e a cultura do mundo angló-
fono”4.

³ SANTOS, Antônio Carlos dos. Locke. PECORARO, Rossano (Org.). O ​ s filósofos clássicos da filoso-
fia. Vol.1. Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: PUC­Rio, 2009. p. 262.
⁴ CRESSY, David. Revolutionary England 1640–1642, 181, Past & Present, 2003, p. 37 Apud SUESS,
Matthew K. Punishment in the State of Nature: John Locke and Criminal Punishment in the Unit-
ed States of America. Washington University Law Review​, v. 7, issue 2, 2015. p. 371.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 127

Em verdade, a Guerra Civil foi um período violento, caótico, com


frequente confusão do legítimo com o ilegítimo5, terminando com a con-
denação de Carlos I por tirania. Durante a Guerra Civil, o pai de John
Locke ingressou como capitão de cavalaria nas forças parlamentares,
período no qual ganhou as graças de um rico fidalgo e membro do par-
lamento inglês, Alexander Popham. O parlamentar foi quem viabilizou
os estudos de Locke, permitindo­lhe uma sólida formação acadêmica,
estudando na universidade de Oxford, onde se graduou em Medicina.
Em 1666, ainda em Oxford, John Locke conhece Lorde Ashley,
com quem passa a manter uma profunda amizade. O autor se torna mé-
dico particular e conselheiro político de Lorde Ashley, futuro Conde de
Shaftesbury, que lideraria a oposição no parlamento contra o rei Carlos
II. Em virtude dessa amizade, Locke ocupou diversos cargos políticos,
como um posto no Ministério do Comércio e da Agricultura, o que o
levou a viajar muito e ter contato com diferentes grupos e, sobretudo,
com filósofos franceses.
Nesse aspecto, merece relevo o fato de que a amizade entre Lo-
cke e o Conde de Shaftesbury foi bastante marcante para o desenvolver
do pensamento do autor inglês. Devido a ela, Locke se dedica à defe-
sa do parlamento, bem como faz reflexões cada vez mais voltadas ao
liberalismo clássico. Ironicamente, essa situação fática que leva Locke
a posicionar­se teoricamente pelo parlamento completa seu ciclo conse-
quencial, de forma tal que sua teoria política influencia diretamente sua
vida prática: devido à sua oposição à monarquia absolutista, Locke teve
de se exilar na Holanda, junto com o Conde de Shaftesbury, em 1683.
Com a Revolução Gloriosa, em 1689, o trono da Inglaterra é en-
tregue a Guilherme de Orange, sob a condição de submissão do reinado
ao parlamento. A Revolução marcou um importante ponto para o redi-
recionamento do poder em encontro ao parlamento. Aprovou­se o ​Bill
of Rights (Declaração de Direitos) que, ao passo em que fortalecia o Par-
lamento, garantindo­lhe o poder para o estabelecimento de impostos, a
organização e manutenção do exército, tornou impossível a volta de um
monarca católico ao poder. A Revolução Gloriosa marca, dessa forma, o
início da monarquia constitucional6.

⁵ DONAGAN, Barbara. Codes of Conduct in the English Civil War, 118, Past & Present, 1988, p. 81
Apud SUESS, Matthew K. Punishment in the State of Nature... cit., p. 369.
⁶ Nesse sentido, a lição de Horta, que parece concordar com a existência de um constitucionalismo
inglês: “Vale registrar a contribuição dada por Locke ao avanço do constitucionalismo. Já se disse
que a Inglaterra se afirmou como verdadeiro ​laboratório histórico do Direito Constitucional; a
Locke coube dar­lhe a mais apurada sistematização.” ​HORTA, José Luiz Borges. ​História do Estado de
128 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

John Locke, que, do exílio na Holanda, participou ativa e politi-


camente do processo revolucionário, retorna à Inglaterra, quando passa
a dedicar­se integralmente à produção filosófica. No entorno desse con-
texto histórico, Locke viu o povo inglês selecionar seu próprio monarca
e sua própria religião durante a Revolução Gloriosa. Vivenciou alguma
violência, mas viveu em um tempo de relativa paz, já que era criança no
momento do estouro da Guerra Civil e teve seus pensamentos desen-
volvidos principalmente no contexto da Revolução Gloriosa, revolução
(quase!) sem sangue, momento de mudança sem o mal­estar da guerra.
Talvez seja essa uma das razões pelas quais Locke depositava tanta cren-
ça na auto­determinação e na escolha política, o que vai interferir, como
veremos mais adiante, em vários aspectos do seu pensamento.
Também é essa condição de vivência em período de relativa paz
que se torna determinante para a concepção de Locke acerca do homem.
Havendo paz, é compreensível que Locke veja o homem como natural-
mente bom e o Estado como necessário, mas ilegítimo para violar os
direitos naturais7. Hobbes, pelo contrário, inserido em um contexto de
ápice da Guerra Civil inglesa, entende que a natureza humana leva ao
conflito e a segurança deve ser providenciada por um Estado inteira-
mente poderoso. A contextualidade, portanto, não é avulsa ou aleatória,
mas capaz de explicar diferenças nas nuances do jusnaturalismo de Lo-
cke e seu predecessor.

3. Bibliografia

A obra de Locke é vasta e a ela é conferida importância em diver-


sos segmentos que transcendem a política, tais como a medicina, educa-
ção, economia e a tolerância religiosa.
Além do “Dois tratados sobre o governo” (1689), livro escolhido
para a abordagem neste trabalho, Locke escreveu o “Ensaio sobre o en-
tendimento humano” (1690), três obras sobre tolerância ­ “Carta sobre a
tolerância” (1689), “Segunda carta sobre a tolerância” (1690) e “Terceira
carta sobre tolerância” (1692) ­, “Algumas considerações sobre as conse-
quências da redução dos juros e a elevação do valor do dinheiro”(1691),
“Alguns pensamentos sobre a educação” (1693), “A razoabilidade do
cristianismo” (1695) e “Vindicações à razoabilidade do cristianismo”

Direito. São Paulo: Alameda, 2011. p. 69.


⁷ DOUZINAS, Costas. ​Human rights and empire. The political philosophy of cosmopolitanism​.
Abingdon: Routledge­Cavendish, 2007. p. 20.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 129

(1695). Afora tais escritos, ainda há que se contar os manuscritos pós-


tumos ou não publicados8 e aqueles sobre os quais se pairam dúvidas
acerca de sua autoria, levando uma considerável extensão de textos que
vão da filosofia à medicina.
Diante de tantos escritos detentores de discussões e ideias que se
mantêm vivas pelo estudo, paráfrase e crítica, nossa escolha pelo “Dois
tratados sobre o governo”, com enfoque no “Segundo tratado sobre o
governo” é tão­somente pragmática: intenciona­se, com ela, tocar pontos­
chave na teoria política de Locke, tais como o direito natural, o surgi-
mento da sociedade civil e soberania do parlamento.

4. Primeiro Tratado

O Primeiro Tratado Sobre o Governo Civil é uma tentativa de


contradizer a obra O Patriarca, de Robert Filmer, na qual o autor de-
fende a ideia do direito divino dos reis9. Na época, havia vários autores
que sustentavam o direito absoluto do monarca. John Locke, entretanto,
elege Filmer para realizar sua crítica devido ao momento histórico pelo
qual passava a Inglaterra. No século XVII, o pensamento de Filmer era,
a um só tempo, o mais radical na defesa do absolutismo e o mais nefasto
à propagação dos ideiais de liberdade e igualdade.

Filmer sustenta que o poder político, proveniente de Deus, foi


dado ao primeiro homem, Adão, e transmitido por gerações
aos primeiros pais e primeiros reis. O povo, desta forma, não
teria quaisquer direitos ou liberdades, senão aqueles que fos-
sem concedidos pela vontade do monarca10

Na tentativa de vigorosamente marcar oposição ao pensamento


de Filmer, John Locke traz a questão da religiosidade para o centro da
sua reflexão.
Não se trata, contudo, de negação ou rejeição à religiosidade,

⁸ Alguns exemplos são: “Sobre a Conduta do Entendimento” (1706), “Questões relativas à lei da
natureza” (1664) e “Paráfrase e notas nas Epístolas de São Paulo” (1707), “Ensaios sobre a lei dos
pobres” (1697) e “Obrigação das leis penais” (1676).
⁹ Apesar de “O Patriarca” ser seu objeto de ataque principal, Locke não deixa de lado outras obras
de Filmer, tais como “Observações sobre a Política de Aristóteles”. Cf. LOCKE, John. Segundo Tra-
tado sobre o Governo Civil e outros escritos​. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 62.
PEDREIRA DE ALMEIDA, María Cecília. E
10
​ scravos, súditos e homens: a noção de consentimento na
polêmica Locke­Filmer. (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, São Paulo, 2006. p.10.
130 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

mas de crítica relativa à forma de sua utilização. Também Locke se vale


de pressupostos religiosos, porém de uma forma diferente que o autor
por ele criticado. Com efeito, os resquícios da teologia podem ser vis-
tos em Locke não apenas em todo o conteúdo do Primeiro Tratado, no
qual Locke se dedica a contraditar um posicionamento teológico defen-
dido à época, mas também em exemplos do próprio Segundo Tratado –
quando disserta acerca da escravidão, igualdade ou sociedade civil, por
exemplo, frequentemente alude a Deus e aos ensinamentos religiosos,
por vezes até com remissões bíblicas.
A crítica de Locke no Primeiro Tratado não é, portanto, vincu-
lada propriamente à religião em si, mas em seu uso como fundamento
primordial do direito de governar detido pelos reis, os quais seriam,
para Filmer, herdeiros de Adão, o primeiro soberano.

No Primeiro tratado, Locke combate firmemente a posição de


Roberto Filmer, a de que o poder tem origem divina, observan-
do que, fosse isso verdadeiro, não poderia haver ciência políti-
ca, uma vez que o poder teria fundamento na revelação. Ora, se
não há ideias inatas, é necessário pensar em como elas surgem
para melhor entender como os homens vivem. Elas surgem,
assim como a ideia de poder, da experiência. [...] Assim, é nesse
aspecto que o indivíduo é tanto senhor do conhecimento quan-
to de acordos políticos. O ponto de partida dessa interpretação
é a lei natural. Circunscrita no estado de natureza em que Deus
pôs os homens em igualdade, a lei natural é que possibilita ao
homem o cumprimento de seus deveres para com Deus e para
com os outros homens, fundando, assim, a comunidade polí-
tica.11

Essa crítica é direta e ataca desde logo as premissas de Filmer,


segundo o qual “Todo governo é uma monarquia absoluta” e “nenhum
homem nasce livre”12. Parece que, ao menos até onde entende Locke,
Filmer não realiza qualquer exceção quanto ao nascimento dos homens
como escravos ­ mesmo os príncipes teriam nascido nessa condição e
dela saído em virtude de terem herdado um direito divino diretamente
de Adão (monarca absoluto), direito este que conferiria poderes para a
governança.
Para Locke, essa visão que lisonjeia os príncipes e acredita que
estes estão investidos em um direito divino de exercer o poder absolu-

11
SANTOS, Antônio Carlos dos. Locke... cit., p. 268.
12
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil... ​cit.,​p. 53.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 131

to, sem respeitar as leis que regulam e limitam o exercício do cargo e a


atividade do governo, é necessariamente violadora da liberdade natural
e não só expõe os indivíduos à tirania e à opressão, mas também coloca
em dúvida a própria legitimidade dos títulos dos príncipes13.
O problema da teoria de Filmer já começa quando este afirma que
o homem não é livre quando nasce, visto que é dependente de seus pais,
os quais detêm uma autoridade real, direito de paternidade. O segun-
do principal ataque que pode ser feito à sua obra é relativo à assunção
de que Adão deteria esse direito (absoluto e inalterável) de paternidade
devido a uma doação divina e teria o passado a seus sucessores, que
se tornariam os príncipes (mas como definir quem foram os herdeiros
legítimos de Adão?).
Após essas críticas principais, Locke discorre sobre a situação da
monarquia como herança recebida de Adão e os problemas da diferen-
ciação entre piratas e príncipes legítimos (capítulos IX a XI) e da explica-
ção dessa própria transmissão de poder, já que Filmer baseia a soberania
de Adão na paternidade e não há como o direito de paternidade, em si,
ser transmitido aos filhos (capítulo IX). Critica também a transmissão
da propriedade e a decisão acerca de quem será rei ou não (capítulos X
e XI).
O ataque de Locke não se limita à ilogicidade das afirmações de
Filmer ou às falhas da sistematicidade em seu pensamento14, mas inclui
o próprio texto bíblico ­em diversas passagens, Locke argumenta no sen-
tido de que não há de onde Filmer ter tirado essa ou aquela premissa, já
que nada a respeito é tratado na escritura sagrada (além de não poder
ser aduzido pela razão). É isso o que ocorre no ataque de Locke à escra-
vidão desde o nascimento, ao poder absoluto de Adão adquirido por
doação divina e às exceções à regra da primogenitura na herança do
poder soberano15, por exemplo.
Por tudo que aqui se mostra, percebe­se que o Primeiro Tratado
sobre o Governo Civil é uma obra precursora e de sensível importância
para entendermos o pensamento de John Locke, especialmente em seu
Segundo Tratado. Ao passo em que o autor trata de teologia, já prenun-
cia aspectos da sua doutrina liberal, afastando a ideia de que o poder

13
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit.,​p. 53.
14
Cf. as críticas realizadas à assunção do direito de paternidade, à autoridade soberana de Adão,
e em LOCKE, Jonh, Segundo Tratado do Governo Civil e outros escritos​. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
p. 55­56 e 59.
15
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit.,​, p. 53, 60, 64, 68 e 76­77.
132 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

e autoridade dos monarcas derivavam de Deus, lançando as bases da


gênese contratual do poder dos governantes.

5. Segundo Tratado

O Segundo Tratado se inicia com a retomada de algumas conclu-


sões encontradas nas reflexões do Primeiro Tratado. A inexistência da
autoridade de Adão sobre seus filhos por um direito natural de paterni-
dade ou por doação de poderes oriundos de Deus é a primeira premissa
da qual parte o pensamento que Locke desenvolverá no segundo livro.
Não há tal autoridade e, mesmo que esta existisse, os herdeiros
de Adão não a possuiriam. E mais: ainda que os herdeiros tivessem, por
algum motivo, adquirido essa autoridade, não haveria modo de identifi-
car qual o herdeiro legítimo apto a governar, pois não há lei da natureza
ou lei divina específica para tal determinação, o que acarreta a incerteza
sobre quem teria a autoridade monarca capaz de submeter a todos. Por
fim, mesmo que houvesse tal delimitação de herdeiros, não seria possí-
vel identificar qual a linha mais antiga de posteridade de Adão, o que
torna impossível dizer, depois de tanto tempo entre raças humanas e fa-
mílias no mundo, que alguma raça ou família seria a mais antiga e teria
o direito à herança de governar.16
Com isso, Locke chega à conclusão de que

[...] é impossível aos governantes que vivem atualmente sobre


a terra tirar qualquer proveito ou derivar a menor sombra de
qualquer autoridade daquela que se supõe a fonte de todo
o poder, ‘os direitos de prerrogativa privada de Adão e sua
autoridade paterna’. Assim, a menos que se queira fornecer
argumentos àqueles que acreditam que todo governo terrestre
é produto apenas da força e da violência, e que em sua vida
em comum os homens não seguem outras regras senão as dos
animais selvagens, em que o mais forte é quem manda, e assim
justificando para sempre a desordem e a maldade, o tumulto,
a sedição e a rebelião (coisas contra as quais protestam tão
veementemente os seguidores dessa hipótese), será preciso
necessariamente descobrir uma outra gênese para o governo,
outra origem para o poder político e outra maneira para
designar e conhecer as pessoas que dele estão investidas [...]17

16
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​ cit.,​p. 81.
17
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​ cit.,​p. 81–82.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 133

É esta uma das razões pelas quais o poder político terá uma
roupagem diferente para Locke, se comparado com seus predecessores:
para ele, o poder político não se assemelha àquele de um magistrado
sobre um súdito, ou de um pai sobre um filho. É, na verdade, o direito
de fazer leis, aplicando a pena de morte ou qualquer pena menos severa,
a fim de regulamentar a preservar a propriedade; é empregar a força da
comunidade para a execução das leis e para a defesa da república contra
as depredações do estrangeiro; é proteger o bem público18.
Com esta introdução marcante, Locke abre espaço para as dis-
cussões que explicarão a passagem do estado de natureza à sociedade
civil, separando, de forma organizada e relativamente sistemática, os
passos de seu pensamento.
Primeiro, disserta sobre o estado de natureza (capítulo II), dei-
xando claro sua divergência em relação a Hobbes, na medida em que
não o considera um estado de guerra. Seguidamente, explica suas pró-
prias compreensões sobre o estado de guerra (capítulo III), estado tem-
porário, existente somente quando os homens violam os direitos uns
dos outros (e, como possuem a natureza eminentemente pacífica, nem
sempre o fazem).
O pensamento do autor se desenvolve, em sequência, com seus
estudos sobre a escravidão (capítulo IV), sobre a propriedade (capítulo
V) e sobre o poder paterno (capítulo VI), até chegar na sociedade política
ou civil, quando separa o primeiro momento para suas definições (capí-
tulo VII), o segundo para a compreensão de seu início (capítulo VIII) e o
terceiro, para seus fins (capítulo IX).
Por derradeiro, Locke chega a aspectos mais práticos de suas re-
flexões, dissertando sobre as formas de comunidade civil (capítulo X), a
extensão do poder legislativo (capítulo XI), os poderes legislativo, exe-
cutivo e legislativo da comunidade civil (capítulo XII), a hierarquia de
poderes (capítulo XIII), a prerrogativa (capítulo XIV) e os poderes pater-
no, político e despótico considerados em conjunto (capítulo XV).
No capítulo da conquista (capítulo XVI), Locke trata da tomada
de poder através das guerras, argumentando que tal forma de conquista
de poder não é legítima, já que não é possível “​as sociedades políticas
serem fundamentadas sobre outra coisa além do consentimento do po-
vo.”19 Compara ainda a conquista do poder político através da guerra à
atuação de um ladrão sobre o patrimônio alheio, concluindo que:

18
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​ cit.​, p. 82.
19
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​ cit., p. 191.
134 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

O poder que um conquistador adquire sobre aqueles que ele


venceu em uma guerra justa é perfeitamente despótico; ele tem
um poder absoluto sobre as vidas daqueles que, colocando­se
em um estado de guerra, tiveram este poder confiscado; mas
não tem por isso direito nem título sobre seus bens.20

No mesmo sentido, o autor inglês condena a usurpação (capítulo


XVI) do poder por qualquer outro meio que não tenha como fundamen-
to o consentimento do povo:

Assim como a conquista pode ser chamada de usurpação do


estrangeiro, a usurpação também é uma espécie de conquista
doméstica, com a diferença de que jamais um usurpador pode
ter o direito do seu lado, só havendo usurpação quando alguém
toma posse daquilo que pertence por direito a outra pessoa.21

Nos dois últimos capítulos, da tirania (capítulo XVIII) e da dis-


solução do governo (capítulo XIX), Locke escreve sobre o exercício do
poder além do direito que lhe foi outorgado pelo povo (tirania), bem
como da dissolução do governo, quando da alteração do legislativo sem
o consentimento da sociedade:

A constituição do legislativo é o ato primeiro e fundamental


da sociedade; em virtude desse ato, os associados prevêem a
manutenção de sua união, remetendo­se ao consentimento do
povo e a sua escolha para designar as pessoas que os gover-
narão e para habilitar as pessoas que farão as leis que regerão
seus atos, de maneira que nenhum indivíduo, nenhum grupo
entre eles tenha o poder de legislar por outros procedimentos.22

​O foco deste trecho do estudo ora apresentado é nos primeiros


apontamentos de Locke, sem a análise pormenorizada dos aspectos prá-
ticos das suas conclusões. Isto porque as concepções do autor no que se
refere à passagem do estado de natureza à sociedade civil nos parecem
ser de suma e primeira importância, até porque nada de suas ideias re-
lativas ao poder legislativo e à hierarquia de poderes, por exemplo, po-
derá ser explicada sem um sólido entendimento da ideia de liberdade,
direitos naturais e delegação de direitos em nome da sociedade.

20
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​ cit.,​p. 196
21
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​ cit.,​p. 206.
22
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil... ​cit., ,p. 216.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 135

5.1 Estado de natureza

“[O] ensinamento político de Locke depende em absoluto da sua


doutrina da lei natural a respeito das sociedades políticas. (...) Mais, todo
o ensinamento político de Locke baseia­se na pressuposição de um esta-
do de natureza”.23 Os felizes apontamentos de Strauss prestam­se bem
à identificação da importância do conceito de estado de natureza em
Locke ­e das diferenças de tal pensamento em relação a outros jusnatu-
ralistas ­na conformação da sociedade civil. Não é apenas a aceitação da
pré­existência de um estado de natureza a premissa detentora de impres-
cindibilidade, mas a compreensão das principais características e dos
pressupostos deste estado ­ igualdade entre homens, liberdade, direitos
naturais de vida e propriedade, discernimento em relação ao estado de
inocência.
É no segundo livro do “Dois tratados sobre o Governo” que Lo-
cke delineia sua concepção acerca do estado de natureza. Para ele, o es-
tado de natureza é um estado de igualdade, onde todo poder e toda ju-
risdição são recíprocas, não havendo ninguém que possua mais poderes
que os demais.
Nesse detalhado estado de interação humana anterior, o autor
contempla a forma na qual indivíduos, sem qualquer construção socio-
política determinada, são capazes de punir uns aos outros sem determi-
nação de hierarquia ou delegação, pautando­se tão somente na defesa
dos direitos naturais, exercidos com liberdade e igualdade.
A forma de ver liberdade e igualdade já distingue Locke de seus
contemporâneos, especialmente de Thomas Hobbes. Enquanto Hobbes
acredita que nada seria mais capaz de salvaguardar a paz civil do que o
poder absoluto, Locke defende que um estado de natureza não precisa
ser um estado de guerra, e que os homens não causam, automaticamen-
te, conflitos entre si, sendo possível a paz no estado de natureza. Se,
para Hobbes, o estado de natureza é o estado de guerra, o caos total; em
Locke, é um estado de liberdade natural, no qual cada um é responsável
por regular suas próprias ações.
Todo homem tem, por seu próprio nascimento, certos direitos a
ele inerentes e inteiramente inalienáveis: vida, saúde, liberdade e pro-
priedade24. Os três primeiros direitos citados podem ser ligados dire-

23
STRAUSS, Leo. ​Direito Natural e História​. Introdução e Trad. Miguel Morgado. Lisboa: Edições
70, 2009. p. 185.
24
Embora seja inquestionável que tais direitos aparecem como inalienáveis em Locke, fica a dúvi-
136 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

tamente à crença de Locke no direito absoluto de autopreservação. Já o


quarto, propriedade, também é fundado na teoria da preservação, por-
quanto os homens têm o direito à bebida, à comida e a outras coisas do
gênero, uma vez que a natureza as oferece para a sua subsistência25.
O estabelecimento de um governo será necessário para que os
homens possam viver de um modo pacífico e calmo. Para assegurar a
“lei da natureza” (a qual estabelece que nenhum homem tem a facul-
dade de causar mal ao outro), cabe a cada um, no estado de nature-
za, habilitar­se a punir aqueles que a transgridem com penas suficientes
para punir as violações. Se não há superioridade ou jurisdição entre os
homens, todos devem e têm o direito de punir.

5.2 A soberania e o parlamento

Para elaborar um conceito sobre a soberania, Locke se vale da


mesma técnica usada por Hobbes: do fictício estado de natureza surge
o estado social. Talvez, exatamente por isso, o autor de Leviatã tenha
colhido todos os louros do desenvolvimento teórico em torno da sobera-
nia, em detrimento do próprio Locke e de Rousseau, autores importan-
tes para a elaboração do conceito.
Ocorre que, tanto em Locke quanto em Hobbes, o estado social
é uma necessidade de os homens garantirem seus direitos naturais. Em
Hobbes, basicamente, o direito à vida. Em Locke, todos aqueles direi-
tos mencionados anteriormente e que se tornariam os pressupostos do
liberalismo clássico, que tem exatamente em John Locke um dos seus
principais expoentes.
Hobbes não poderia defender os direitos defendidos por Locke,
em virtude do caráter absolutista de seu pensamento, como também por
seu comprometimento político com a realeza. Em outra posição, como

da sobre a constituição de todos como propriamente direitos naturais. Seria a liberdade, por exem-
plo, um direito ou uma pré­condição, situação do próprio estado de natureza? Salgado aponta que
direito natural, para Locke, é vida e propriedade, e que a liberdade e igualdade são características
intrínsecas ao estado de natureza. Liberdade é conceito fundamental para a aquisição e a garantia
da propriedade, é irrenunciável e se conserva ainda que se celebre o pacto social para a constitui-
ção do Estado, mas não é propriamente direito natural. Cf. SALGADO Joaquim Carlos. ​A ideia de
justiça em Kant. Seu fundamento na liberdade e na igualdade​. 2.ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995. p.
76. Quanto à saúde, talvez se possa dizer que ela decorreria do direito natural à vida, porquanto o
assegura, mas sua completa independência como direito natural não nos parece uma leitura muito
correta. A saúde será tratada por Locke em “Carta sobre a Tolerância”, quando é vista como um
interesse civil.
25
SUESS, Matthew K.​Punishment in the State of Nature​... cit., p. 374.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 137

explicitado na parte em que discorremos sobre sua biografia, Locke es-


tava muito mais circunscrito às ideias em torno da defesa parlamento.
Ele estava politicamente livre, portanto, para uma tutela mais enfática
dos direitos liberais e teorizações daí decorrentes, inclusive a respeito
da soberania.
Evidentemente, sendo Locke um liberal, a sua concepção sobre
soberania também adota traços tipicamente liberais. Dessa forma, em-
bora tenha rejeitado a arbitrariedade do soberano de Hobbes, Locke se-
gurou um elemento essencial no conceito de soberania, a supremacia
da autoridade que faz as leis. Ele afirma claramente que o legislativo,
consubstanciado na figura do parlamento, deve ser o poder supremo.

O legislativo não é o único poder supremo da comunidade so-


cial, mas ele permanece sagrado e inalterável nas mãos em que
a comunidade um dia o colocou; [...] Por isso, toda a obediên-
cia que pode ser exigida de alguém, mesmo em virtude dos
vínculos mais solenes, termina afinal neste poder supremo e é
dirigida por aquelas leis que ele adota; jamais um membro da
sociedade, [...] pode ser dispensado de sua obediência ao legis-
lativo e agir por sua própria conta; da mesma forma, também
não é obrigado a qualquer obediência contrária às leis adota-
das, ou que ultrapasse seus termos; seria ridículo imaginar que
um poder que não é o poder supremo na sociedade, possa se
impor a quem quer que seja.26

Em consonância com seu pensamento jusnaturalista, na concep-


ção de Locke, o parlamento não poderia ser limitado a qualquer lei po-
sitiva, mas sim sujeito à lei moral. Dessa forma, em paralelo, a soberania
estatal também estaria sujeita às imposições da lei moral.
Embora o parlamento seja supremo, Locke não o tornará ab-
soluto, pois entende que o seu fundamento reside no povo, que tem a
prerrogativa de remover ou sustar o ato legislativo, quando considerá­lo
contrário aos seus interesses, garantindo, logo, o direito de resistência à
opressão.

5.3. Liberdade e igualdade

A compreensão das ideias de Locke em torno da liberdade e da


igualdade somente pode ser realizada levando­se em consideração o es-
tado de natureza.
26
LOCKE, John. ​Segundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., ​p.162­163.
138 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

O autor inglês considera o homem, no estado natural, como livre,


mas este sente a necessidade de colocar limites à sua própria liberdade.
Dessa forma, a liberdade deve existir para cada um agir como lhe aprou-
ver e se coloca como pressuposto essencial para a garantia da proprieda-
de. Segundo Salgado, a visão de Locke concernente à liberdade divide­se
em dois aspectos: “a liberdade natural, segundo a qual o homem está
livre de qualquer poder superior na terra, submetendo­se tão­somente ‘à
lei da natureza como regra,’ e a liberdade na sociedade, sujeita apenas ao
poder legislativo que se estabelece por consentimento da comunidade e
resguardada contra vontades inconstantes e arbitrárias do homem”27.
Embora o ser humano natural exerça tal liberdade, é necessário
que haja uma ferramenta, que possa licenciá­la. A ferramenta é justamen-
te a constituição de um Estado que garanta o exercício da liberdade e a
segurança da propriedade.
No capítulo sobre escravidão, Locke demanda que a liberdade
esteja sempre acima do poder, não limitável pela ação de um poder ar-
bitrário. Somente são aceitas as limitações acordadas na composição da
sociedade civil, nem mesmo o poder legislativo, posterior, é capaz de su-
primir a falta das previsões no consenso de composição de tal sociedade.
Além disso, já que o homem não pode dispor de sua própria vida, tam-
pouco poderia colocar­se como escravo de outrem, ainda que, aparen-
temente, seja essa sua vontade. Noutra perspectiva, Locke ainda assim
defende a escravidão perpétua quando uma pessoa vencida na guerra
que poderia ser morta aceita o ônus da servidão em troca de sua vida.
Já igualdade aparece, em Locke, como pressuposto de toda or-
dem normativa, tanto de direito natural, quanto de direito positivo28. No
estado de natureza, todo poder ou jurisdição é recíproco, não havendo
pessoa que detenha mais que outra.
Kuntz identifica que a ideia de igualdade lockeana já aparece no
Primeiro Tratado, quando, ao criticar a irrelevância prática da teoria de
Filmer, Locke estabelece que “não há por que supor uma hierarquia na-
tural entre os homens, nem pela paternidade, que só diferencia os indi-
víduos transitoriamente, da relação familiar, nem por qualquer outro
título.29

27
SALGADO, Joaquim Carlos. A
​ ideia de justiça em Kant…​cit., p. 76.
28
SALGADO, Joaquim Carlos. A
​ ideia de justiça em Kant…​cit., p. 76.
29
KUNTZ, Rolf. ​Locke, liberdade, igualdade e propriedade​. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados/
USP, 1997. Disponível em: ​http://www.iea.usp.br/publicacoes/textos/kuntzlocke.pdf​. Acesso em
16.5.2016, p. 3.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 139

No Segundo Tratado, a igualdade é uma das características do


estado de natureza, o que implica que “a reciprocidade determina todo
o poder e toda a competência, ninguém tendo mais que os outros30”.
Para Locke, seres da mesma espécie criados na mesma condição, des-
frutando conjuntamente de todas as vantagens da natureza, devem ser
iguais entre si, sem que haja qualquer sujeição ­ por natureza, portanto,
todos os homens são iguais.
A preocupação de Locke com a igualdade o faz defini­la da forma
mais clara possível, explicando, inclusive, a que tipos de igualdade ele
se refere ao utilizar tal palavra. No capítulo sobre o poder paterno31, o
autor faz ressalvas à igualdade: algumas condições podem conferir a um
homem o que Locke chama de “precedência justa”32. Essa espécie de ní-
vel superior, no qual um homem é colocado em relação aos outros, pode
ocorrer pela idade, pela virtude, pela excelência dos talentos e dos mé-
ritos, até pela aliança e por alguns benefícios. Todavia, assevera o autor,

“[...] tudo isso coincide com a igualdade de todos os homens


com respeito à jurisdição ou ao domínio de um sobre o outro,
ou seja, a igualdade que apresentei como característica disso
que se está tratando e que consiste, para cada homem, em ser
igualmente o senhor de sua liberdade natural, sem depender
da vontade nem da autoridade de outro homem.”33

Todos os homens são iguais perante os direitos naturais, mas


são admissíveis e compreensíveis algumas espécies de sujeições. Talvez
seja por essa figuração antitética da igualdade que Locke seja visto, por
alguns autores, como em teórico da igualdade tão­somente formal. De
qualquer maneira, esse igualitarismo de Locke, ainda que restrito e limi-
tante em alguns pontos da sua teoria (como na escravidão e na aquisição
da propriedade), constituirá peça fundamental da concepção lockeana
acerca do poder político34.

5.4. Vida e propriedade

30
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil... ​cit., p. 83.
31
Capítulo VI, especialmente os parágrafos 54 a 58. Cf. LOCKE, John. ​Segundo Tratado sobre o Go-
verno Civil...​ cit., p. 114­116.
32
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 114.
33
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 114.
34
KUNTZ, Rolf. L
​ ocke, liberdade, igualdade…​cit., p. 2
140 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

Ao explanar suas ideias sobre o estado de natureza, Locke, mais


uma vez demonstrando seu jusnaturalismo patente, aponta que o direi-
to à vida deve ser resguardado por todos, não apenas em relação a si
mesmos, mas também em relação ao restante da humanidade. Não pode
debilitar ou destruir a vida de outra pessoa, sua saúde ou seu corpo, a
não ser que aja para fazer justiça contra um delinquente35.
O homem é incapaz de dispor de sua própria vida e não poderia,
mesmo por convenção ou por seu próprio consentimento, transformar­se
em escravo de outro ou reconhecer a alguém um poder arbitrário abso-
luto que envolvesse a disposição de sua própria vida36.
Esse direito à vida, entretanto, não pode ser visto como um di-
reito absoluto ou superior aos demais direitos naturais. Tanto é que ao
homem é permitido matar para se defender quando um agressor o ataca
a mão armada, roubando seus bens ­ aqui, Locke admite o direito de
guerra, que é a liberdade para se matar um agressor, não porque este
ameaça diretamente sua vida, mas porque não lhe concede tempo para
apelar ao juiz comum entre eles e torna impossível “qualquer decisão
que permita uma solução legal para remediar um caso em que o mal
pode ser irreparável”37.
No tocante à propriedade privada, o próprio Locke insiste: “o
objetivo capital e principal da união dos homens em comunidades so-
ciais e de sua submissão a governos é a preservação de sua proprieda-
de.”38 Dessa forma, o autor relaciona a propriedade privada à gênese do
próprio estabelecimento do governo civil, tamanha a sua importância.
Pietro Costa vê, na reflexão lockeana sobre a propriedade, uma
síntese de várias teses já formuladas em tradições diferentes e anterio-
res (Gerson, Summenrhart, Segunda Escolástica espanhola), mas que
não deixa de ser original, na medida em que leva a uma diferente abor-
dagem da compreensão do sujeito e da ordem. Essa diferenciação, que
impressionaria profundamente as gerações posteriores, decorre do es-
tabelecimento de duplo nexo envolvendo a propriedade: o nexo entre
o indivíduo e a propriedade, de um lado, e, do outro, o nexo entre a
propriedade e a ordem39.
35
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 85.
36
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 95.
37
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 93.
38
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 156.
39
COSTA, Pietro. Propriedade e Cidadania na Europa Moderna: um mapa temático. In: SALGADO,
Karine; DAL RI JÚNIOR, Arno (Org). E ​ ntre Medieval E Moderno: Representações e Rupturas​. Belo Ho-
rizonte: Editora UFMG. (Inédito). p. 312.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 141

A propriedade como momento do sujeito, como liberdade e ple-


na capacidade de disposição de si, já havia aparecido no pensamento
europeu dos séculos XVI e XVII, até mesmo antes da construção do pa-
radigma jusnaturalista. O que Locke traz de novo, no nexo propriedade­
indivíduo, é a emancipação do vínculo da intersubjetividade, a ligação
da propriedade “à pessoa, ao corpo, ao l​abour do sujeito”.40 Por meio do
trabalho, o sujeito, proprietário de si mesmo, “atrai, para a esfera de sua
individualidade, os bens dos quais se apropria”41.
Também como condição de possibilidade da ordem será a pro-
priedade condição do sujeito. Os dois nexos, embora distinguíveis, são
duas faces inseparáveis da mesma realidade:

Não é possível conceber uma ordem das relações intersubjeti-


vas sem evocar a regra de propriedade e não é possível pensar
a propriedade sem recorrer a uma precisa antropologia. A pro-
priedade nunca é “somente” um momento do sujeito ou “so-
mente” uma impessoal estrutura ordenadora. É uma expressão
do sujeito e justamente por isso é um elemento do qual são
salientados a relevância intersubjetiva e as capacidades orde-
nadoras.42

Dotar a propriedade privada de substancioso destaque somente


faz ficar em evidência o compromisso de Locke com a classe revolucio-
nária responsável pelas Revoluções Liberais, Inglesa, Francesa e Ame-
ricana: a burguesia, que tem na propriedade privada o cerne do desen-
volvimento das suas atividades econômicas, de modo a fomentar o seu
ciclo revolucionário.
No segundo tratado, é que Locke melhor desenvolve a ideia de
como alguém teria chegado a obter a propriedade privada. A grosso
modo, em seu estado natural, ninguém tem o domínio privado sobre
a natureza. Entretanto, na passagem para o estado social, deve haver
um meio de apropriar dos produtos da natureza para beneficiar um in-
divíduo em particular. Dessa forma, os homens puderam apropriar­se
daquilo que é comum, por meio do seu próprio trabalho. Nesse sentido,
diz Locke que “Deus deu o mundo aos homens em comum (...). Ele o
deu para o uso industrioso e racional (e o trabalho deveria ser o título),
não para satisfazer o capricho ou a ambição daquele que se mete em

40
COSTA, Pietro. Propriedade e Cidadania na Europa… cit., p. 313­314.
41
COSTA, Pietro. Propriedade e Cidadania na Europa… cit., p. 314.
42
COSTA, Pietro. ​Propriedade e Cidadania na Europa​…cit., p. 315.
142 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

querelas e disputas.”43
O primeiro e inalienável direito natural do homem é o de pro-
priedade, direito este adquirido pelo seu próprio trabalho (não por dá-
diva divina) e inteiramente condicionado a este. A propriedade é ante-
rior a toda Constituição política e, para Salgado, apresentar­se­á em Locke
como o objetivo principal da conformação de um Estado, uma vez que

[o]nde não há propriedade, não há nem justiça no sentido deu


m aparelho dirimidor de disputa, nem justiça ou injustiça das
ações dos indivíduos. Injusto é o ato que viola a propriedade.44

Por pragmatismo ideológico, Locke coloca a propriedade priva-


da no mesmo nível de valor de atributos inerentes ao homem, como a
liberdade e a paz (integridade do corpo, direito à vida). Para justificá­la
como sendo um direito natural do homem, como fazendo parte do esta-
do natural, ele se utiliza do argumento de que todo homem ao ser pro-
prietário de si próprio também o é de seu trabalho. A propriedade priva-
da é, portanto, uma extensão do corpo humano, mediada pelo trabalho.

5.5. Saindo do estado de natureza, entrando na sociedade civil

No capítulo X do Segundo Tratado, Locke abre suas reflexões


com uma pergunta que, após compreendidos os direitos naturais e toda
a liberdade que possui o ser humano diante do estado de natureza, é
impossível de não ser feita: o que leva o homem a sujeitar­se à dominação
e ao controle de qualquer outro poder, já que é senhor absoluto de sua
pessoa e de seus bens?
A resposta advém de uma assunção mais descritiva do que pres-
critiva ­aqui, Locke reconhece a incapacidade de manutenção do estado
de natureza com todas as pessoas gozando igualmente de tudo a que
elas têm direito, pois a maior parte dos homens não respeita a igualdade
ou a justiça, o que torna o gozo da propriedade muito inseguro e incer-
to45.
É essa incerteza, esse perigo de perder a propriedade e não
desfrutar de seus direito naturais que leva o homem a querer se unir
em sociedade com os outros. A preservação da propriedade é o ponto

43
LOCKE, John.​Segundo Tratado sobre o Governo Civil…​cit​, ​p. 101.
44
SALGADO, Joaquim Carlos. A
​ ideia de justiça em Kant…. ​cit, p. 77.
45
LOCKE, John.​Segundo Tratado sobre o Governo Civil… ​cit​,​ p. 156.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 143

crucial desse desejo de transição, pois somente a sociedade civil é


capaz de proporcionar “uma lei estabelecida, fixada, conhecida,
aceita e reconhecida pelo conhecimento geral”, “um juiz conhecido e
imparcial, com autoridade para dirimir todas as diferenças segundo a lei
estabelecida”, um poder capaz de “apoiar e manter a sentença quando
ela é justa” e de assegurar sua execução46.
A passagem do estado de natureza para a sociedade civil deverá
ser baseada na necessidade mínima de regulamentação da própria so-
ciedade, já que os direitos naturais defendidos por Locke subsistem até
mesmo no estado de natureza. Não há a necessidade, portanto, de uma
sociedade civil para a garantia dos direitos naturais, mas tão somente
para melhor regulamentá­los.
Justamente dentro desse contexto que surge a teoria contratua-
lista de Locke. O contrato, instrumento artificial, é o meio pelo qual o
estado de natureza se transforma em sociedade civil.

Podemos explicar o contratualismo a partir de três elementos:


o e​ stado de natureza​, o c​ ontrato social​, e o e​ stado civil​.O estado de
natureza é o ponto de partida do pensamento contratualista;
trata­se ora de uma vida idílica, ora de uma vida aterrorizante;
alguma razão, no entanto, fez com que os homens tomassem a
decisão racional de abandonar tal estágio natural, onde já pos-
suíam direitos (naturais), e ingressar em um estado civil.47

Em Locke, o contrato existe, nessa ótica, para melhor resguardar


os direitos naturais do homem e é válido, somente se o consentimento
comum entre todos for elemento central na formação deste contrato.
Essas ideias em torno do nascimento da sociedade civil, em es-
pecial com o estabelecimento do contrato, são essenciais para compre-
ender, no pensamento do autor, por que os magistrados, no âmbito da
sociedade civil, podem punir estrangeiros. Ora, em tal caso também não
há superioridade ou jurisdição, pois o estrangeiro não se engajou em um
pacto para conferir ao magistrado o direito de punir em função de suas
próprias virtudes, mas ainda sim ao magistrado será permitido dispor
sobre a punição, pois ele se coloca na situação daquele que vê a violação
de uma das leis naturais e, como igual e livre, pode causar mal àquele
que causou mal anteriormente.
Outro tema pertinente quando se discute a passagem do estado

46
LOCKE, John.​Segundo Tratado sobre o Governo Civil…​cit​,​ p. 156-157.
47
HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito.​São Paulo: Alameda, 2011. p. 65.
144 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

de natureza para a sociedade civil diz respeito ao direito de resistência,


o exercício da liberdade diante do poder arbitrário absoluto. “[...] é a
grande inovação de Locke ao estabelecer, de modo inequívoco, o direito­
que assiste à coletividade ­de resistir à tirania e à opressão política.”48
Ora, para Locke, os mesmos elementos que legitimavam a cons-
trução da sociedade civil poderiam ser usados para a desestruturação
dessa mesma sociedade, tendo como base a resistência à opressão, a de-
fesa da propriedade. Como visto, o consentimento é o verdadeiro legi-
timador do governo civil. Inexistindo­o, o governo automaticamente se
torna ilegítimo, gerando o direito à resistência.

6. Locke e o poder punitivo

Interessante notar a importância que Locke dá ao poder de punir


em sua teoria política. Ele é, ao mesmo tempo, base do poder político,
situação já existente no estado de natureza e, ainda, uma das razões de
se desejar a conformação da sociedade civil ­para que seja possível punir
com uniformidade, delega­se o direito que cada cidadão tem de punir
aquele que viola o direito natural a um magistrado, que irá decidir a
forma de punição49.
A punição aparece como um problema no estado de natureza
porque nele, caso os homens violassem os direitos uns dos outros, a
punição acabaria sendo difusa, indefinida e desorganizada, e haveria
excessos toda vez que cada homem fosse juiz em causa própria (já que
pode sê­lo quando se encontra no estado natural). Esses excessos e as
vinganças que cada excesso acarretaria desenvolveriam uma reação em
cadeia que poderia chegar ao estado de guerra, indesejado por todos os
homens, que, para Locke, tendem ao conforto e à paz.
A renúncia ao poder de punir, na sociedade civil, é destinada a
evitar esses excessos desapaziguadores. O homem, renunciando ao po-
der de punir, passa a empenhar sua força natural para ajudar o poder
executivo da sociedade, conforme as exigências da lei50. Por outro lado,
ele somente poderá ser usado se e na medida em que restabelecer a situ-

48
HORTA, José Luiz Borges. H
​ istória do Estado de Direito…​cit., p. 71.
Cf. SUESS, Matthew K. Punishment in the State of Nature… cit, p. 379­380; STEWART, Hamish.
49

Criminal Punishment as Private Morality: Victor Tadros’s The Ends of Harm. Criminal
​​ Law and
Philosophy, v. 9, Issue 1, 2015. p. 26.
50
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil... ​cit., p. 158.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 145

ação anteriormente garantida e deter o violador51.


Essa leitura tem sido bastante útil aos penalistas devido a três as-
pectos. Primeiro porque é capaz de explicar, nas teorias contratualistas
jusnaturalistas, por que um estrangeiro, ainda que não tenha consentido
com o contrato daquela sociedade, pode ser punido por um magistrado:
como vimos no ponto acima, não se trata da concordância do estrangei-
ro em relação aos termos nos quais aquela sociedade civil foi criada, mas
de sua própria ação, pois se ela viola algum direito natural, poderia ser
punida por qualquer pessoa.
O direito de defesa é cabível a todo e qualquer homem, em esta-
do natural para a autoconservação, pois a cada um cabe, no estado de
natureza, assegurar a execução da lei da natureza, habilitando­se a punir
quem a transgride com penas suficientes para punir as violações52. O
que os indivíduos fazem, na sociedade civil, é simplesmente entregar
essa prerrogativa punitiva decorrente do direito natural a uma pessoa
só ­é a estatalização da vingança privada53.
Segundo, porque essa ideia de delegação do poder punitivo ao
magistrado é o embrião das garantias ao agente criminoso, pois ao invés
de ele receber a vingança privada (que faticamente podeira ser despro-
porcional e exercida mais vezes que o necessário), é julgado e punido
uma vez, de acordo com as leis produzidas pela sociedade civil.
Terceiro, porque a definição da vida, liberdade e propriedade
como direitos para cuja tutela se constitui e se justifica o Estado moder-
no também veio a dizer muito sobre as penas capazes de tutelar esses
três diferentes tipos de direitos54.

51
HOERSTER, Norbert. M
​ uss Strafe Sein​? Positionen der Philosophie.Munique: C.H. Beck, 2012. p.
43.
52
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado do Governo Civil...​cit, p. 85­86.
53
FERRAJOLI, Luigi. D ​ ireito e razão​. Teoria do Garantismo Penal. 4. ed. rev. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 309. Na oportunidade, deve-se ressaltar o fato de que a expressão “vingança
privada” é utilizada pelo autor, motivo pelo qual optamos pela sua manutenção, preservando a
fidedignidade, o que não significa adesão à ideia que exprime.
54
Nesse sentido, Ferrajoli cita dois trechos de Carta sobre a Tolerância, na qual essa relação entre
punição e direito tutelado se mostra mais clara do que nos Tratados sobre o Governo Civil: “O
Estado é, ao meu ver, uma sociedade de homens constituída somente para procurar preservar e
fazer avançar seus próprios interesses de índole civil. Estimo, ademais, que os interesses civis são
a vida, a liberdade, a saúde, o descanso do corpo e a possessão de coisas externas (...). O dever do
magistrado civil consiste em assegurar, mediante a execução imparcial de leis justas para todo o
povo, em geral, e a cada um dos seus súditos, em particular, a justa possessão dessas coisas (...).
Se alguém pretende violar as leis da equidade e a justiça pública que têm sido estabelecidas para a
preservação dessas coisas, sua pretensão se verá obstaculizada pelo medo ao castigo, que consiste
na privação ou diminuição desses interesses civis ou objetos que, normalmente, teria a possibi-
lidade e o direito de desfrutar.” (LOCKE, John. Lettera sulla tolleranza, p. 135) e “Toda punição é
146 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

Dessa forma, pode­se dizer que a filosofia política de John Locke


foi importante para o desenvolvimento do pensamento penalista mo-
derno, na medida em que lança as bases da reflexão do direito de punir
dentro do jusnaturalismo.

7. Direitos humanos e o problema da pobreza

Locke é colocado por Bobbio como o pai da ideia de que o ho-


mem, por natureza, tem direitos que nem o Estado lhe poderia subtrair,
nem o próprio homem poderia alienar, na medida em que o verdadeiro
estado do homem é o natural, no qual os homens são livres e iguais, e o
estado civil é uma criação artificial cuja meta é permitir a ampla explici-
tação da liberdade e da igualdade naturais55.
Hobbes já havia usado a expressão “direitos do homem”, mas
Locke que a desenvolve com maior cautela, preocupando­se com, além
da vida, a propriedade, a liberdade e a igualdade.
Embora haja divergências acerca da introdução de Hobbes já em
um sistema pensador do que viria a ser direitos humanos, tende a ser de
amplo reconhecimento o fato de que o legado de Locke, não só nos Tra-
tados, mas também na Constituição da Carolina e da Carta sobre a To-
lerância, foi substancial para sustentar o embrião dos direitos humanos.
Poole explica essa influência lockeana ao dizer que

Locke acreditava na tolerância religiosa e defendia com paixão


o direito dos ingleses de lutar contra a tirania, como tinham
feito contra Carlos I. A esperança de Locke era que fossem
descobertas leis naturais que embasassem a futura lei humana
em torno da qual a sociedade poderia futuramente organizar­
se. Acreditava que, desse modo, a sociedade poderia melhorar
as condições sociais do futuro. Talvez com maior importância
para o desenvolvimento dos direitos humanos, Locke susten-
tava que todas as pessoas (com exceção dos escravos) tinham
direito à vida, à liberdade e à propriedade. Além disso, consi-
derava o casamento um contrato social no qual ambas as partes
eram iguais (embora esperasse que as mulheres se submetes-
sem às vontades dos maridos). Com base nessas crenças, Locke
apoiou a liberdade de imprensa, as reformas educacionais, o
estudo da família como instituição e a separação dos poderes

sempre um mal, um incômodo, um sofrimento que se realiza subtraindo ou diminuindo algum


bem, a que, de outra forma, o punido teria direito”(LOCKE, John. Lettera sulla tolleranza, p. 243).
Apud FERRAJOLI, Luigi. D ​ ireito e razão… ​cit, p.407.
55
BOBBIO, Norberto​. A era dos direitos​. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 28.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 147

políticos, ideias tão importantes para o desenvolvimento cons-


titucional na Inglaterra quanto nos Estados Unidos.56

Todavia, interessante é destacar que o direito do homem por ele


definido não envolve a proteção de pessoas em situação de pobreza ou
desigualdade. Muito pelo contrário, a proteção é efetivada em face dos
mais abastados.57
No capítulo “Da Propriedade”, Locke fundamenta a maior capa-
cidade de os ricos exercerem o direito de propriedade com base na acep-
ção da propriedade pelo trabalho, isto é, considerando que cada pessoa
tem direito de guardar os frutos de seu trabalho (além da herança), im-
plica que aqueles que possuam mais energia e poupança detenham mais
direitos que aqueles acometidos pela preguiça. É legitimada, assim, a
desigualdade entre os vários estratos da sociedade, no pensamento do
autor.
Não obstante tenha sido muito criticado pelo encorajamento da
“ganância do egoísta à custa de seus vizinhos mais pobres58” isso não
significa dizer que ele tenha defendido o direito ilimitado à proprieda-
de. Conforme se aduz do parágrafo 31, um homem só podia se apropriar
da terra desde que deixasse o suficiente e adequado para os outros, e
quanto aos bens móveis, só podia monopolizá­los enquanto “pudesse fa-
zer uso deles para qualquer proveito antes que deteriorassem [...] Seja o
que for que ultrapasse a isso ultrapassa a sua cota e pertence a outros”59.
Esse limite colocado por Locke é criticado fortemente pelo prefaciador
de uma das edições brasileiras da obra, pois ainda permite o acúmulo
infinito de dinheiro, situação que Locke não enfrenta em seus textos60.

8. Conclusão

Após a análise dos Tratados sobre o Governo Civil, alguns pon-


tos nos parecem mais claros. Primeiro, ao analisarmos superficialmente
a bibliografia e a biografia de Locke, percebemos que os Tratados Sobre
o Governo Civil não são nem o único trabalho relevante de Locke, nem

56
POOLE, Hilary. ​Direitos Humanos: Referências Essenciais​. São Paulo: EDUSP, 2008. p. 34.
57
VILLEY, Michel. Nascimento e proliferação dos direitos humanos no século XVII. In O
​ direito e
os direitos humanos​. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 160.
58
GOUGH, J.W.. Introdução. In LOCKE, John.​Segundo Tratado sobre o Governo Civil… ​cit., p. 20.
59
LOCKE, John.​Segundo Tratado sobre o Governo Civil…​cit​, ​p. 21.
60
GOUGH, J.W. Introdução. In LOCKE, John.​Segundo Tratado sobre o Governo Civil…​cit, p. 20.
148 • Capítulo 5 - Um breve panorama sobre a filosofia política no pensamento de John Locke

um compêndio de ideias completamente desvinculadas do contexto po-


lítico vivido pelo autor. Muito pelo contrário, a relação entre as vivências
pessoais de Locke ­seja em relação à guerra, seja quanto à afiliação polí-
tica ­ e seu pensamento se mostra forte durante toda sua vida, havendo
influência mútua entre os fatos vivenciados por Locke e seu posiciona-
mento teórico.
Tampouco são os pensamentos encontrados na obra analisada
totalmente autênticos ou aleatórios, mas, sim, fruto de uma discussão
baseada no pensamento de autores a ele predecessores, inclusive (ou
sobretudo) daqueles dos quais Locke discorda completamente, como
Filmer.
Ainda sobre Filmer, a reflexão lockeana quer mostrar a ilogici-
dade e a irrazoabilidade de se considerar que o poder dos reis advém
da herança de Adão, que teria recebido um poder divino para exercer a
monarquia. Sua rejeição ao fundamento religioso de tal poder não pode,
todavia, ser encarado como uma tentativa de distanciamento do autor
em relação à religião.
Ao mostrar que as premissas de Filmer não fazem muito sentido
nem estão resguardadas pelas Escrituras, Locke não está abandonando
a religião, mas somente colocando­a em seu devido lugar: Deus deter-
minou a medida ao gênero humano, expressada na razão e equidade
comuns, e quem viver sobre outra lei que esta da razão e da equidade,
pode ser punido pelos outros61; Deus instituiu o governo para conter a
parcialidade e a violência dos homens62; Deus é aquele ao qual se apela
quando não há juízes na terra63. Deus deu o mundo em abundância e
a razão aos homens em comum, para que os homens se servissem do
mundo (inclusive da terra) para o maior benefício de sua vida e de suas
conveniências64. Por outro lado, quando Deus deu o mundo em comum
a toda a humanidade, também ordenou que o homem trabalhasse, se
submetesse à terra e a melhorasse para beneficiar sua vida65.
Agindo dessa forma, o homem investe em uma coisa que lhe
pertence diretamente: seu trabalho. Esse trabalho gerará o direito do
homem à propriedade ­ quanto mais trabalha, ou quanto melhor aplica
suas habilidades para a produção, mais extensa será a propriedade ad-

61
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil... ​cit., p. 85.
62
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 88.
63
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 94.
64
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 97.
65
LOCKE, John. S
​ egundo Tratado sobre o Governo Civil...​cit., p. 101.
Aléxia Alvim Machado Faria & Layon Duarte Costa • 149

quirida.
Contudo, embora as pessoas sejam iguais e livres, embora o di-
reito à propriedade já esteja virtualmente assegurado pelo próprio tra-
balho do homem, manter­se no estado de natureza, sem qualquer segu-
rança em relação à proteção da propriedade, torna­se inviável. Devido
a isso, o homem passa a desejar a conformação de uma sociedade civil,
dotada de lei, juízes e poder executório para proteger um de seus maio-
res direitos naturais, a propriedade.
Para assegurar essa proteção, ele não se importará em delegar
sua liberdade e seu poder executório, punitivo, deixando na mão do go-
verno e da lei formulada a partir do consenso a tutela de seus direitos
naturais. Escrevemos “delegar” e não “renunciar” (apesar de a tradução
por nós utilizada preferir a segunda expressão), pois caso o governo não
logre em assegurar o melhor gozo dos direitos nos termos estabeleci-
dos no contrato social, é garantido aos homens o direito à resistência,
retomando a liberdade anteriormente possuída e destituindo o governo
tirano. Influenciado por ideais de defesa do parlamento, Locke concebe
o legislativo como poder supremo, somente podendo ser destituído na
falta do consentimento que o legitimou, dando fundamento, dessa for-
ma, ao direito de resistência.
A teoria de Locke teve refrações nos mais diversos âmbitos do di-
reito. Neste trabalho, escolhemos citar dois que possuem direta relação
com as premissas do pensamento político lockeano: o direito (ou poder)
de punir e os direitos humanos.
As reflexões sobre os desdobramentos do pensamento de Locke,
ou mesmo as discussões encontradas dentro de seu próprio pensamento
não foram, contudo, exaustivamente abordadas. O que se pretendeu,
neste trabalho, foi fomentar um debate sobre alguns dos temas cativos
à filosofia política de Locke, tais como poder político, liberdade, igual-
dade, direito à vida, à resistência, à propriedade privada e direitos hu-
manos.

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CAPÍTULO 6

Teologia política em Baruch de Espinosa

Renan Victor Boy Bacelar1


Lucas César Severino de Carvalho2

[…] maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito


seja seu levantar e maldito seja seu deitar, maldito ele em
seu sair e maldito ele em seu entrar. O Senhor não o per-
doará […]3

1. O homem e sua circunstância

Os ancestrais de Espinosa eram judeus espanhóis que, após a


conquista de Granada pelos reis católicos Fernando e Isabel, migraram
para Portugal a fim de evitar a perseguição levada a efeito pela Coroa
espanhola. Forçada à conversão, a família de Espinosa permaneceu em
Portugal até o fim do século XVI, quando a Coroa portuguesa – neces-
sitando de recursos para financiar o império – passou a estorvar o povo
judeu através do confisco de bens, prisões e até mesmo morte4. Ciente
desse conturbado contexto e atraído pelo decreto de tolerância promul-
gado pela União de Utrecht, o avô do filósofo, Isaac de Espinosa, dirigiu-
-se com a família para Amsterdã, onde Baruch de Espinosa nasceu aos
24 de novembro de 1632, filho de Miguel Spinoza e Ana Débora5.
O contexto social dos Países Baixos era permeado de conflitos
políticos e religiosos. De um lado, a guerra com a monarquia católica da
Espanha perdurou até a assinatura do Tratado de Münster, em 1648. De

1
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
2
Graduando do 3º período do Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
3
Trecho do herem de Espinosa, originalmente redigido numa mescla arcaica de português e espa-
nhol que daria origem ao ladino. In: CHAUÍ, Marilena. Espinosa; uma filosofia da liberdade. São
Paulo: Moderna, 1995. p. 6.
4
Ibid., p. 14-15.
5
SCRUTON, Roger. Espinosa. Trad. Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2005. p. 12-16.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 153

outro lado, as Sete Províncias do Norte estavam divididas entre os par-


tidários da Casa de Orange-Nassau - que reconheciam a Guilherme de
Orange e seus sucessores o direito à monarquia – e os correligionários
do Partido dos Regentes, burgueses que defendiam um governo repu-
blicano6.
A tolerância religiosa pretendida desde a formação da União de
Utrecht7 propiciou a proliferação de inúmeras tendências religiosas que,
não raras vezes, tomaram parte nas disputas políticas, ora em favor do
Partido Orangista, ora em favor do Partido dos Regentes:

anabatistas e quakers libertários milenaristas, cristãos liberti-


nos (isto é, racionalistas), socianianos (contrários aos dogmas
da Santíssima Trindade, da divindade de Jesus e da sacralida-
de da Bíblia), arminianos (calvinistas tolerantes que afirmam a
liberdade de consciência religiosa e a separação entre o poder
civil e a autoridade religiosa), gomaristas (calvinistas intransi-
gentes e intolerantes, seguidores do dogma da predestinação e
defensores de um regime político de tipo teocrático em que o
poder civil fica submetido a autoridade teológica)8.

O século XVII ficou conhecido como o Século de Ouro dos Países


Baixos, que experimentaram um enorme progresso econômico, cientí-
fico e militar. Entretanto, também ficou marcado por sucessivos golpes
de Estado.
Em 1619, após o Sínodo de Dort - que rejeitou os princípios ar-
minianos e tornou o calvinismo ortodoxo a religião oficial dos Países
Baixos – o clero gomarista destituiu o governo dos Regentes, levando
Maurício de Orange ao poder. Seguiu-se um período de intensa perse-
guição: Hugo Grotius e Dirk Camphuysen foram castigados com prisão
perpétua, o cartesianismo foi condenado, diversas obras foram censura-
das ou queimadas e intelectuais presos9.
Após a morte de Guilherme de Orange II, em 1650, os Regentes
tomam o poder da Casa de Orange, transferem o comando das forças ar-
madas para o Grande Pensionário e elegem, para Grandes Pensionários,
os irmãos Cornelius e Jan de Witt. O clero gomarista, porém, pressionou

6
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 23-24.
7
Qualquer tolerância religiosa pretendida por Guilherme de Orange quando da formação da União
de Utrecht não se estenderia ao catolicismo, considerado uma ameaça às Províncias do Norte por
ser identificado com o regime monárquico espanhol. In: SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 13.
8
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 26-27.
9
Ibid., p. 26-27.
154 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

o governo dos de Witt até que, em 1672, os irmãos foram brutalmen-


te assassinados por uma multidão enraivecida, o que possibilitou um
novo golpe por parte do Partido Orangista10. O brutal homicídio de Jan
de Witt, grande amigo de Espinosa, teve um impacto profundo sobre o
pensamento político do filósofo11.
Quando criança, Espinosa foi educado na escola da comunidade
judaica de Amsterdã, onde aprendeu o hebraico e estudou as Escrituras
e o Talmude. Já com vinte anos de idade, frequentou a escola de Fran-
cisco van Enden, livre-pensador de formação católica, onde teve contato
com o latim e as ciências naturais12.
O pensamento de Espinosa foi se tornando cada vez mais afasta-
do do judaísmo ortodoxo e inúmeros foram os conflitos com dirigentes
da comunidade judaica e rabinos da sinagoga13.
Os judeus de Amsterdã, como sói ocorrer em comunidades exi-
ladas, eram especialmente zelosos com sua identidade, razão pela qual
era grande a vigilância contra subversores de uma fé forjada por sangue.
Grande já tinha sido o abalo provocado por Uriel da Costa, pensador
que, após duas excomunhões e reconciliações, perturbado pelas peni-
tências humilhantes que foi obrigado a cumprir, terminou por suicidar-
-se. Assim, em 27 de julho de 1656, após um período de trinta dias de
excomunhão, Espinosa foi definitivamente expulso da comunidade ju-
daica14. Depois do herem, adotou o prenome Benedictus.
Repudiado pelos parentes e amigos judeus e banido da cidade,
refugiou-se numa localidade próxima a Amsterdã, onde redigiu uma
Apologia, dirigida aos anciãos da sinagoga, em defesa de suas posições.

10
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 28-29.
11
Sobre o episódio: “Durante séculos, os comentadores julgaram ver aqui uma espécie de retratação
do filósofo, já arrependido de ter apontado a liberdade como o verdadeiro fim da república. Trau-
matizado pelo assassinato do ex-Grande Pensionário Jan de Witt e de seu irmão Cornelis às mãos de
uma turba enfurecida e manobrada pelos pastores calvinistas, Espinosa teria sentido necessidade
de corrigir a doutrina que desenvolvera antes, moderar a defesa da liberdade e refletir sobre os mo-
dos de ‘conter a multidão’, escrevendo logo no primeiro capítulo do novo tratado – alegadamente
ao contrário do que escrevera no TTP – que a ‘virtude do estado é a segurança’”. AURÉLIO, Diogo
Pires. In: ESPINOSA, Baruch de. Tratado Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins
Fontes, 2009. p. XI-XII.
12
ANTISERI, Dario; GIOVANNI Reale. História da Filosofia; de Spinoza a Kant. Vol. 4. São Paulo:
Paulus, 2005. p. 11.
13
Segundo Bertrand Russell, na tentativa de demovê-lo, foi oferecida a Espinosa a quantia de cem
florins anuais para que mantivesse ocultas suas posições. Após a recusar a oferta, o filósofo sofreu
uma tentativa de homicídio. In: RUSSELL, Bertrand. Historia de la Filosofía Occidental. Trad. Julio
Gomez de la Serna e Antonio Dorta. Versão E-book. Madrid: Espasa Libros, [s.d.]. p. 640.
14
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 15-18.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 155

Em 1660 Espinosa mudou-se para Rijnsburg e em 1663 para Voorburg.


Tendo se espalhado sua fama de erudito, manteve contato com muitos
cientistas, filósofos e teólogos. Nesse período, firmou uma sólida ami-
zade com Jan de Witt, defensor da tolerância religiosa e da liberdade de
expressão, o que o levou a tomar parte em favor do Grande Pensioná-
rio na controvérsia a respeito da natureza secular do Estado. Em 1670,
Espinosa mudou-se para Haia, onde residiu na casa do pintor Van der
Spyck. O modesto estilo de vida e o apreço pela liberdade de expressão
e pensamento o levaram a recusar uma cátedra na Universidade de Hei-
delberg15.
Baruch de Espinosa faleceu16 em 21 de fevereiro de 1677, aos
quarenta e quatro anos de idade. Dentre sua obra destacam-se: Ética
demonstrada à maneira dos geômetras (1661-1677), Tratado Teológico-
-Político (1670), Tratado da Correção do Intelecto (1677) e Tratado Político
(1677)17.

2. Metafísica

A metafísica espinosiana é profundamente marcada por um ob-


jetivo que, ao cabo, seria o propósito último da vida do filósofo:

[…] tendo eu visto que todas as coisas de que me arreceava


ou que temia não continham em si nada de bom nem de mau
senão enquanto o ânimo se deixava abalar por elas, resolvi, en-
fim, indagar se existia algo que fosse o bem verdadeiro e ca-
paz de comunicar-se, e pelo qual unicamente, rejeitado tudo
o mais, o ânimo fosse afetado; mais ainda, se existia algo que,
achado e adquirido, me desse para sempre o gozo de uma ale-
gria contínua e suprema18.

O conhecimento do ser – e, portanto, das respostas às questões


últimas da filosofia – é o propósito da vida humana e o único meio de

15
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 19-23.
16
“Logo após a morte de Espinosa, seu amigo Colerus, depois pastor luterano em Haia, compôs
um memorial biográfico. Nele ficamos sabendo sobre a simplicidade e naturalidade da vida e da
personalidade do filósofo, e da alta estima em que era tido por seus conhecidos e seus amigos”.
Ibid., p. 25.
17
AURÉLIO, Diogo Pires. In: ESPINOSA, Baruch de. Tratado Político, cit., p. LXIX-LXXIII.
18
ESPINOSA, Baruch de. Tratado da correção do intelecto; e do caminho pelo qual melhor se dirige ao
verdadeiro conhecimento das coisas. Trad. Carlos Lopes de Mattos. In: Os Pensadores, v. XVII. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 51.
156 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

se atingir a felicidade suprema: o reconhecimento da unidade entre a


natureza humana e a divina.

2.1 Deus sive Natura

As reflexões de Espinosa partem de uma distinção fundamental,


proposta pela metafísica aristotélica e perpetuada pela Escolástica. Com
efeito, a lógica aristotélica assevera que toda proposição contém dois
componentes: sujeito e predicado - que refletem, na realidade, a distin-
ção entre substâncias e atributos. Atributo é todo predicado que adere
à substância, podendo modificar-se sem descaracterizá-la. Substância,
por sua vez, diz respeito à essência das coisas, àquilo que permanece na
contingência e que, estando ausente, torna a coisa uma outra qualquer.
Em última instância, a realidade é constituída pelas substâncias19.
Em Descartes a questão da substância apresenta uma contradição
formal insuperável. Num primeiro momento, é definida como aquilo que
não depende de mais nada além de si mesma para existir, de modo que
apenas a realidade suprema, ou seja, Deus, seria substância. No entanto,
uma vez que para o filósofo tanto a res cogitans quanto a res extensa são
substância – e, portanto, o são tanto as almas quanto os corpos –, tornou-
se imprescindível uma nova definição. Assim, também as realidades
criadas podem ser substância, na medida em que dependam apenas do
concurso de Deus para existir20. A contradição é evidente “porque não
se pode dizer coerentemente a) que substância é aquilo que, para existir,
não necessita de mais nada a não ser de si mesmo e b) que também são
substâncias as criaturas que, para existir, necessitam apenas do concurso
de Deus”21.
Adotando a primeira definição cartesiana de substância, Espi-
nosa conduz rigorosamente o raciocínio às suas últimas consequências:
uma única é a substância, Deus sive Natura (“Deus ou Natureza”).
Definida a substância como “o que existe em si e por si é concebi-
do, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do
qual deva ser formado”22, conclui-se ser ela a causa sui, isto é, razão de si

19
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 31-32.
20
“[…] es verdad que, incluso para él, Dios era, en un sentido, más sustancial que espíritu y materia,
puesto que los había creado y podía, si quería, aniquilarlos”. In: RUSSELL, Bertrand. Historia de la
Filosofía Occidental, cit., p. 642.
21
ANTISERI, Dario; GIOVANNI Reale. História da Filosofia, cit., p. 16.
22
ESPINOSA, Baruch de. Ética demonstrada à Maneira dos Geômetras. Trad. Joaquim de Carvalho.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 157

mesma, não podendo ser causada por outra coisa qualquer.


Espinosa afirma que a existência decorre necessariamente da na-
tureza incausada da substância. É dizer, sendo a substância causa de
si mesma, deve necessariamente existir23. Cuida-se de uma elaboração
refinada do argumento ontológico, segundo o qual da ideia de uma
substância perfeita decorre necessariamente sua existência, sob pena de
ser imperfeita porque não dotada de um atributo positivo (que é a exis-
tência em si mesma). É dizer, sendo a substância causa de si mesma,
não existe nenhuma “causa ou razão” externa que possa impedir sua
existência, motivo pelo qual ela necessariamente existe.
O sistema filosófico espinosiano é permeado por um pressuposto
oculto: concepção e realidade são necessariamente coincidentes, ou seja,
as relações entre as ideias correspondem às relações dentro da realida-
de24.
A substância é sempre infinita: “Sendo a existência finita, de fato,
uma negação parcial, e a existência infinita a afirmação absoluta da exis-
tência de alguma natureza, segue-se, por consequência […] que toda
substância deve existir infinita”25.
Tais proposições conduziram o filósofo à conclusão de que uma
única é a substância, Deus, uma vez que:

se existisse alguma outra substância de outro tipo – que ca-


recesse das infinitas perfeições de Deus -, deveria necessaria-
mente sua existência a Deus e, portanto, seria um modo de
Deus, não uma substância (seria uma limitação da natureza de
Deus que existisse algo que sua natureza não fosse a explicação
última: mas, por hipótese, Deus é ilimitado). Nenhuma outra
substância a não ser Deus, por conseguinte, pode ser admiti-
da26.

A tradição metafísica ocidental fixou uma distinção básica entre


liberdade e necessidade. A causalidade necessária era a causalidade efi-
ciente, segundo a qual o efeito é necessariamente produzido pela causa.
Por outro lado, a causalidade por liberdade era a causalidade final, ope-

In: Os Pensadores, v. XVII. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 84.


23
A Proposta VII da Parte I da Ética é assim formulada: “À natureza da substância pertence o exis-
tir”. Ibid.., p. 89.
24
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit. p. 46.
25
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 89.
26
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 53.
158 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

rando-se pela escolha de um fim por parte de um agente27.


Considerando, de um lado, livre o que existe tão somente pela
necessidade da sua natureza e apenas por si é determinado a agir e,
de outro lado, necessário o que é determinado por outra coisa a operar
de determinada maneira28, tem-se que, num primeiro momento, apenas
Deus é livre. Tudo o mais é determinado, porque consequência ou efeito
necessário da natureza divina:

Deus é causa livre, necessária e imanente de todas as coisas.


Livre: porque age apenas segundo a necessidade interna de
sua essência. Necessária: porque sua potência é idêntica à sua
essência. Imanente: porque não se separa de seus efeitos, mas
neles se exprime e eles O exprimem29.

Deus, ente absolutamente infinito, possui infinitos atributos,


cada um exprimindo uma mesma essência eterna e infinita. Por atributo
Espinosa entende “o que o intelecto percebe da substância como consti-
tuindo a essência dela”30.
Cada atributo é concebido por si, isto é, distinto dos demais, e
cada um deles exprime, à sua maneira, a forma como o intelecto capta a
essência do ser. Como há o pressuposto oculto de que concepção e reali-
dade coincidem, o que o intelecto percebe como a essência da substância
constitui, de fato, essência da substância. Assim, se Deus possui dois ou
mais atributos, sua essência pode ser integralmente concebida de duas
ou mais maneiras completamente independentes. Seria possível, então,
ter o conhecimento completo da mesma substância a partir de explica-
ções inteiramente diferentes31.
O intelecto humano é capaz de identificar dois dos atributos di-
vinos: extensão e pensamento.
De outro lado, Espinosa define modo como “as afecções da subs-
tância, isto é, o que existe noutra coisa pela qual também é concebido”32.
Cada atributo de Deus produz, inicialmente, modos infinitos de Deus.

27
CHAUÍ, Marilena. Espinosa; poder e liberdade. In: BORON, Atílio A (Org.). Filosofia política moder-
na; De Hobbes a Marx. São Paulo: CLACSO, 2006. Disponível em: < http://goo.gl/EJHMkx>. Acesso
em: 01 mai. 2016.
28
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 84.
29
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 50.
30
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 84.
31
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 50.
32
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 84.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 159

Assim, o atributo infinito pensamento produz o modo infinito intelecto


divino, bem como o atributo infinito extensão produz o modo infinito uni-
verso material (no sentido de proporções de movimento e repouso). Esses
modos infinitos, por sua vez, produzem os modos finitos, particulariza-
ções ou determinações da substância (e.g. almas e corpos)33.
Uma vez que cada atributo expressa perfeita e inteiramente a es-
sência divina, o conjunto dos modos de um atributo corresponde, neces-
sária e perfeitamente, ao conjunto dos modos de cada outro atributo. A
ordem das ideias é perfeitamente paralela à ordem dos corpos34. Espino-
sa consegue, dessa forma, dar solução a uma das principais aporias do
sistema cartesiano: a forma como o espírito se relaciona com o mundo
corpóreo.
Tudo o que existe é concebido em Deus, nada o é fora de Deus.
Nesta sina, a substância é natureza em duplo sentido: a) é a origem de
todas as coisas; b) é o conjunto das coisas originadas35. À substância e
seus atributos, origem das coisas, Espinosa dá o nome de natura natu-
rans. Ao conjunto dos modos produzidos, dá o nome de natura naturata36.
A filosofia espinosiana é impregnada por um racionalismo ab-
soluto: a totalidade do real pode ser conhecida pelo intelecto humano,
não existindo milagres ou mistérios37. Ademais, a imagem de um Deus
antropomórfico, onipotente, onisciente, legislador e monarca, criador do
universo a partir de uma vontade que opera por escolhas, misericor-
dioso e amoroso, não passa de ilusão. Um conhecimento verdadeiro da
essência divina – uma ideia adequada38 de Deus – deve se afastar dessa
projeção imaginativa. Assim, Espinosa busca demonstrar que Deus não
é um intelecto ou uma vontade e não age em vista de finalidades. No

33
CHAUÍ, Marilena. Espinosa,. cit., p. 47-48.
34
ANTISERI, Dario; GIOVANNI Reale. História da Filosofia, cit., p. 21-22.
35
MARÍAS, Julián. História da Filosofia. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p.
253.
36
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 47.
37
Nesse sentido: “No puede existir la inmortalidad personal en que creen los cristianos, sino sólo
aquella inmortalidad impersonal que consiste en hacerse más y más uno con Dios”. In: RUSSELL,
Bertrand. Historia de la Filosofía Occidental, cit., p. 641.
38
O conhecimento em Espinosa apresenta três níveis: a) opinião, decorrente de imagens confusas
provenientes, sobretudo, da experiência; b) razão, conhecimento das noções comuns, das relações
entre um todo e suas partes e das partes de um mesmo todo; c) intuição, conhecimento da essên-
cia das coisas, isto é, das suas relações de causalidade a partir da ótica divina. A primeira forma
consiste em ideias inadequadas. A segunda e a terceira formas consistem em ideias adequadas.
ANTISERI, Dario; GIOVANNI Reale. História da Filosofia, cit., p. 23-24.
160 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

Deus espinosiano, liberdade e necessidade são idênticas39.

2.2 A natureza humana: uma afecção divina

O corpo humano nada mais é do que um modo finito do atributo


divino extensão. A alma, ao seu turno, é um modo finito do atributo di-
vino pensamento. Corpo e alma apresentam-se em perfeito paralelo, uma
vez que são expressões necessárias de uma mesma substância.
Espinosa rompe com a tradição metafísica ocidental, afastando
a ideia de que a alma é superior ao corpo e deve governa-lo. Do mesmo
modo, rejeita a noção de faculdades da alma, concebida, então, como
força ou atividade pensante que se realiza como entendimento ou von-
tade40.
Como, porém, conceber um modo finito como um indivíduo in-
dependente? Na segunda parte da Ética Espinosa apresenta uma defini-
ção de essência que se aplica tanto à substância quanto aos seus modos
de expressão, permitindo uma individualização desses modos:

Digo que pertence à essência de uma coisa aquilo que, sendo


dado, faz necessariamente com que a coisa exista e que, sendo
suprimido, faz necessariamente com que a coisa não exista; por
outras palavras, aquilo sem o qual a coisa não pode nem existir
nem ser concebida e, reciprocamente, aquilo que, sem a coisa,
não pode nem existir nem ser concebido41.

A essência das coisas singulares é o esforço (conatus) pelo qual


toda coisa tende a perseverar no seu ser. Somente quando o conatus é
totalmente removido da coisa, ela deixa de existir:

O conatus de uma coisa é o princípio causal em termos do qual


explicamos sua persistência e suas propriedades. Quanto mais
conatus houver, portanto, mais um objeto será independente –
mais ele será “em si mesmo”. […] A individualidade e a inde-
pendência de um gato, como a de um homem, são parte de sua
natureza, e dividir um gato em dois é criar não as duas metades
de um gato, mas duas peças inteiras de algo mais. O gato se
empenha em persistir como uma coisa […]42

39
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 34-46.
40
Ibid., p. 53-58.
41
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 143.
42
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 71.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 161

A relação da alma com o corpo e deles com o mundo é a afetiva.


Afecções e afetos exprimem nosso conatus, obedecendo à lei natural de
preservação da existência. Na paixão atuamos passivamente, enquanto
causas eficientes parciais do que se passa em nós - ela é o resultado de
causas externas que diminuem nosso conatus. Na ação somos causa ade-
quada dos nossos afetos, na medida em que são causados em nós por
nossa própria potência. Espinosa afasta, assim, a ideia prevalecente de
que a atividade da alma implica passividade do corpo e, inversamente, a
passividade da alma implica atividade do corpo. Além disso, bem e mal
deixam de ser valorados em si: bem é o que aumenta nosso conatus, mal
o que diminui. As paixões, na medida em que representam a prevalência
de causas externas sobre nossa potência interna, causam a diminuição
do conatus. Uma fraqueza interior extrema dá lugar à servidão, à alie-
nação do indivíduo, que busca a satisfação numa causa externa, fora
de si, que só existe enquanto imaginação43. Diferentemente dos estóicos,
Espinosa não pretende frear todos os sentimentos, mas tão somente as
paixões44, resultantes de uma causa inadequada.

2.3 Conhecereis a verdade e ela vos libertará

O problema da liberdade é tratado por Espinosa em dois mo-


mentos distintos. Inicialmente, considera-se “livre o que existe exclusi-
vamente pela necessidade da sua natureza e por si só é determinado a
agir”45. Nestes termos, somente Deus é livre, porque causa de si mesmo.
A ação humana, na medida em que decorre necessariamente da nature-
za divina, é determinada.
Não obstante, Espinosa fornece uma segunda concepção de li-
berdade, voltada para a natureza humana. Desde logo, deve ser afastada
toda ideia de liberdade de escolha. Se tudo é determinado pela essência
divina, não há contingência e, por conseguinte, o livre-arbítrio é mera
confusão da mente humana.
Quanto mais temos uma ideia adequada da realidade, quanto
mais compreendemos a causalidade necessária de nossas ações, tanto
mais alimentamos nosso conatus e adquirimos independência. “Com-
prender que todas las cosas son necesarias ayuda a la mente a adquirir

43
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 64-68.
44
RUSSELL, Bertrand. Historia de la Filosofía Occidental, cit., p. 646.
45
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 84.
162 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

poder sobre las emociones”46. É dizer, “A liberdade não é liberdade da


necessidade, mas antes consciência da necessidade […] O homem livre
é o homem consciente das necessidades que o compelem”47. O conheci-
mento é que permite ao homem ser livre: “aqui ressoa o princípio estói-
co: parere Deo libertas est; obedecer a Deus é liberdade”48.
Somente a verdade contida na ideia adequada da realidade pode
libertar.

3. Amarás teu Deus de toda tua alma: a ética espinosiana

Se tudo o que existe é necessariamente determinado pela potên-


cia divina, se não há causalidade final, liberdade de escolha, livre-arbí-
trio, como conceber a possibilidade de uma ação ética? Em que consiste
a ética espinosiana?
A chave da ética encontra-se na posição do conatus como funda-
mento exclusivo da virtude. Com efeito, de um lado a virtude consiste
na interiorização da causalidade eficiente – na compreensão da realida-
de enquanto necessidade; de outro lado, consiste em construir uma nova
relação frente a exterioridade – que, justamente por ser necessária, não é
capaz de intimidar o homem virtuoso. Em suma, a ação ética consiste na
possibilidade de o homem, ao compreender as relações de necessidade
e tornar-se livre, fortalecer seu conatus e tornar-se a causa adequada de
suas emoções. Isso significa que, ao contrário do que soía ocorrer na tra-
dição filosófica, as emoções não são mais tidas como responsáveis pela
ação antiética49.
As concepções adequadas de bem e mal são despidas de todo
caráter axiológico. Bem é “aquilo que sabemos com certeza ser-nos útil.
[…] mal, ao contrário, aquilo que sabemos com certeza que nos impede
de nos tornarmos senhores de um bem qualquer”50. A metafísica espi-
nosiana tem consequências éticas consideráveis, na medida em que são
úteis para a vida humana: a) enquanto ensina que agimos por necessi-
dade e que participamos da natureza divina, torna a alma tranquila em
todos os sentidos e ensina que a felicidade suprema consiste no conhe-
cimento de Deus; b) enquanto ensina a suportar com ânimo as coisas

46
RUSSELL, Bertrand. Historia de la Filosofía Occidental, cit., p. 646.
47
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 96.
48
MARÍAS, Julián. História da Filosofia, cit., p. 255.
49
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 68-71.
50
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 235.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 163

da fortuna (que não estão sob nosso controle); c) enquanto ensina a não
odiar, não invejar, nem desprezar ninguém, já que apenas a conduta da
razão é capaz de libertar; d) enquanto oferecem vantagens para a insti-
tuição do Estado, porque ensina que os cidadãos devem ser governados
não como escravos, mas como livres para realizar as melhores ações51.
Tal como ocorre em Descartes, a filosofia moral de Espinosa pre-
tende uma concepção absoluta do mundo, isto é, uma concepção do
mundo alheia a qualquer subjetividade. Assim, os problemas éticos são
trabalhados a partir de uma pessoa que pensa de forma desinteressada,
para quem o indivíduo é governado pelas mesmas leis divinas que tudo
governam. Nessa visão desprovida de sujeito52, é possível enxergar a
realidade sub especie aeternitatis, isto é, a partir da visão eterna de Deus:

O amor intelectual da alma relativamente a Deus é o mesmo


amor de Deus, com que ele se ama a si mesmo, não enquanto é
infinito, mas enquanto pode explicar-se pela essência da alma
humana, considerada do ponto de vista da eternidade; isto é, o
amor intelectual da alma relativamente a Deus é parte do amor
com que Deus se ama a si mesmo53.

Nisso consiste a suprema felicidade e a liberdade humana: no


amor dei intellectualis. Amar a Deus é ver as coisas sob o aspecto da eter-
nidade54.

4. Uma nova teologia política

4.1 Contextualização

As reflexões políticas de Espinosa foram formuladas, essencial-


mente, no Tratado Teológico-Político, publicado anonimamente em

51
Ibid., p. 179.
52
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 82.
53
ESPINOSA, Baruch de. Ética, cit., p. 302.
54
“Costuma-se traduzir sub especie aeternitatis por ‘sob uma espécie de eternidade’, mas, em por-
tuguês, ‘uma espécie de’ possui um sentido fraco e vago que não corresponde ao sentido forte e
preciso do que Espinosa afirma [...] Evitamos traduzir species por ‘forma’, porque Espinosa usa
esse termo em um outro contexto [...] assim como evitamos ‘figura’, em razão de seu uso hegeliano
(isto é, para não dar o sentido de um desenvolvimento do Absoluto). Por isso escolhemos ‘aspecto’
pretendendo sublinhar que Espinosa está distinguindo entre conhecimento sub duratione e sub ae-
ternitate”. CHAUÍ, Marilena. A nervura do real; Notas, bibliografia e índices. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006. p. 21.
164 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

1670, e no Tratado Político, obra não concluída e publicada após a morte


do filósofo.
O contexto social de Espinosa era caracterizado por uma forte
pressão para o conformismo exercida pela Igreja calvinista, que perse-
guia católicos e seitas protestantes, razão pela qual a liberdade de pensa-
mento e a religião se tornaram questões proeminentes no Século de Ouro
dos Países Baixos. O Tratado Teológico-Político surge, assim, como uma
defesa da tolerância, moderação e limitação do governo, justificando re-
ligiosa e filosoficamente uma única concepção do Estado. Ciente de que
os homens são conduzidos tanto pela imaginação, quanto pelo intelecto,
Espinosa busca fornecer argumentos que apelem a ambas as forças. Do
contrário, nem todas as pessoas conseguiriam compreender por que mo-
tivos devem aceitar as leis que as governam55.
Ao contrário do modelo geométrico-dedutivo da Ética, o Trata-
do Teológico-Político fia-se em diversos métodos: comentários bíblicos,
filologia, observações empíricas, reflexões teológicas e filosóficas, bem
como meditações políticas teóricas e práticas. Ademais, se o público da
Ética era, fundamentalmente, o meio filosófico, o público do Tratado é
muito mais abrangente: para além dos filósofos, dirige-se aos Regen-
tes, elite relativamente liberal de grande influência política, e, em menor
grau, aos teólogos e pastores56.
As reflexões contidas no Tratado Teológico-Político podem ser
reconduzidas, em última instância, a três pontos principais: a) a inter-
pretação crítica das sagradas escrituras; b) a distinção fundamental en-
tre teologia e filosofia; e c) a liberdade como finalidade do Estado.
Por outro lado, quando Espinosa escreve o Tratado Político, a
política dos Países Baixos passava por um momento decisivo: após a
morte de Jan de Witt, a casa de Orange retornou ao poder. No entanto,
dada a instabilidade decorrente da guerra com a França, dentre outros
fatores, não estava claro se o príncipe de Orange terminaria por aniqui-
lar os Regentes ou se o Partido dos Regentes seria capaz de retomar o
poder. A partir dessa incerteza Espinosa trabalha tanto sua teoria do
Estado, quanto os projetos de constituição do Estado, seja sob a forma
monárquica, seja sob a forma aristocrática57.

55
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 102.
NADLER, Steven. A Book Forged in Hell; Spinoza’s Scandalous Treatise and the Birth of the Secular
56

Age. Princeton: Princeton University Press, 2011. p. 19-25.


57
GEBHARDT, Carl. Spinoza. Trad. Oscar Cohan. Buenos Aires: Losada, 2007. p. 103-104.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 165

4.2 A tradição teológico-política

A partir das noções de transcendência e personalidade divinas a


teologia cristã erigiu o edifício jurídico-político do imperium como poder
voluntário - isto é, radicado na vontade do rei – e teocrático – porque
originado da graça de Deus. O governante, nesse sentido, é imagem e
semelhança do Deus monarca universal. Tal como se dá na união hipos-
tática (união mística da natureza humana e divina de Cristo), também
o governante é dotado de dupla natureza: é, a um só tempo, pessoa na-
tural e pessoa mística (Estado encarnado). Seja qual for a formulação, a
teologia cristã dá a si mesma a autoridade para responder às questões
relativas à origem, à legitimidade e à qualidade do poder, tornando-se,
assim, teologia política58.

4.3 A crítica das Sagradas Escrituras e da religião

As Escrituras, tal como todo texto, devem ser interpretadas den-


tro de seu contexto: considerando-se a linguagem em que foi escrita
(temporalmente, inclusive), a realidade social, os acontecimentos histó-
ricos e os objetivos pretendidos. A metafísica espinosiana não concebe
milagres ou mistérios ininteligíveis. Se tudo procede necessária e racio-
nalmente da substância, toda a realidade pode ser explicada dedutiva-
mente.
A finalidade da Bíblia não é oferecer uma teoria política para o
Estado ou uma teoria sobre a essência de Deus e do homem. Ela ape-
nas oferece à imaginação dos devotos um conjunto de preceitos morais
necessários a quem não aspira a verdade filosófica. Adotá-la como um
tratado político divino nada mais é que utilizá-la fraudulentamente a
serviço da tirania59.

A teologia e a filosofia são reinos separados: a última é verdade


e sabedoria, a primeira é piedade e obediência. Disso resulta
que a aplicação da teologia às questões políticas tem como con-
sequência desenvolver o espírito de submissão em detrimento
do espírito de liberdade60.

58
CHAUÍ, Marilena. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 86-90.
59
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 37.
60
CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER, Evelyne. História das Ideias Políticas. Trad.
Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2009. p. 52.
166 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

As religiões humanas existentes concebem Deus sub specie dura-


tionis, a partir de ideias inadequadas. Elas são uma forma de supersti-
ção, porque estão fundadas sobre um desejo desmedido por bens incer-
tos, que provoca no homem a ignorância de si e, por conseguinte, um
conhecimento confuso de Deus. A religião, nesse sentido, não é a causa,
mas a consequência da superstição61.
Não obstante, para os homens habituados à vida imaginativa,
a obediência é o caminho mais seguro para a paz. Na medida em que
é condição de paz entre as pessoas ignorantes, a religião acaba por ser
necessária à vida do Estado. As diversas facções existentes são reflexo
da imaginação, não existindo qualquer razão filosófica para optar entre
elas. Ainda assim, observado um preceito de tolerância religiosa, o Esta-
do soberano pode determinar sobre bases políticas a forma da religião
a prevalecer62:

además, el culto religioso y el ejercicio de la piedad deben


adaptarse a la paz y a la utilidad del Estado, y que, por lo mis-
mo, sólo deben ser determinados por las supremas potestades,
las cuales, por tanto, deben ser también sus intérpretes. Hablo
expresamente del ejercicio de la piedad y del culto religioso
externo y no de la misma piedad y del culto interno a Dios.63

Os papéis da filosofia na vida do sábio e da superstição na vida


do ignorante guardam correlação com o papel da religião na vida da na-
ção. Com efeito, a religião possui uma função e um significado: compelir
as massas presas às paixões e imaginações a adotarem comportamentos
que, embora não sejam guiados pela razão, encontram nela algum res-
paldo. A religião, assim, é socialmente útil por dar suporte a um Estado
mais livre64.

4.3 Estado e liberdade

Tanto o Tratado Teológico-Político quanto a Ética são parte do

61
SCALA, André. Espinosa. Trad. Tessa Moura Lacerda. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p. 74-
75.
62
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 105.
63
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político. Trad. Atilano Domínguez. Barcelona: Altaya,
1997. p. 393.
64
STRAUSS, Leo. Spinoza’s critique of religion. Trad. E. M. Sinclair. New York: Schocken Books, 1965.
p. 245.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 167

mesmo projeto político filosófico de autonomia: libertar os indivíduos


das superstições e libertar os cidadãos da autoridade eclesiástica. O Tra-
tado é um clamor por liberdade civil: de pensamento e expressão, de
filosofia e de religião. Ética e tratado se complementam: quanto mais
uma pessoa se torna livre e racional em suas crenças, menos é suscetível
de se prender ao sectarismo religioso. Por outro lado, quanto mais o
Estado for livre da influência eclesiástica e for governado por princípios
democráticos liberais, maior liberdade haverá para que seus cidadãos
se dediquem à filosofia e à descoberta das verdades que libertarão suas
mentes cada vez mais65. Na verdade, a liberdade é a finalidade última
do Estado:

De los fundamentos del Estado, anteriormente explicados, se


sigue, con toda evidencia, que su fin último no es dominar a
los hombres ni sujetarlos por el miedo y someterlos a otro, sino
por el contrario, librarlos a todos del miedo para que viva en
cuanto sea posible, con seguridad.66

Uma vez que o pensamento é governado pela lei necessária da


razão, revela-se absurdo pretender controla-lo através da legislação. Li-
mitar a expressão do pensamento é a maior fonte de desarmonia e con-
flito entre os homens67: “Consta, además, que son realmente perturba-
dores quienes no son capaces de soportar, en un Estado libre, la libertad
de juicio, que no puede ser aplastada”68.
Evidentemente, a liberdade de ação pode ser limitada pelo poder
soberano:

Tal liberdade de pensamento e expressão não deve ser confun-


dida com a liberdade de ação – e especialmente não com uma
liberdade de ação mediante o discurso. A calma enunciação do
que é sinceramente pensado como verdadeiro não é um perigo
para ninguém; mas a agitação da massa por meio da retórica –
que incendeia a imaginação ao mesmo tempo em que deixa o
intelecto intacto – é uma ameaça inerente ao governo legal.69

Em Espinosa a liberdade de consciência não justifica, de maneira

65
NADLER, Steven. A Book Forged in Hell, cit., p. 32-33.
66
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político, cit., p. 410.
67
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 106.
68
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político, cit., p. 419.
69
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 106.
168 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

nenhuma, a desobediência civil. Com efeito, ainda que contrário à razão,


deve o indivíduo obedecer a lei. O cidadão que, ante uma lei irracional,
apresenta sua convicção ao poder soberano, age em favor do Estado.
Aquele que ante a mesma situação, atiça o povo contra o poder sobera-
no, não passa de mero subversor70.

4.4 Direito natural, direito civil, estado de natureza e estado civil

A essência humana é o conatus, o esforço natural de autopreser-


vação do ser. Ao contrário da formulação escolástica e de alguns filó-
sofos da modernidade (e.g. Grotius), segundo a qual direito natural era
sinônimo de direito racional, em Espinosa, tal como em Hobbes71, o di-
reito natural é o direito que o homem tem por natureza72.
Estando relacionado ao conatus, a extensão do direito natural73
corresponde à potência do indivíduo para defendê-lo, exercê-lo e fazê-lo
valer frente aos demais74. No estado de natureza cada um impõe seus
apetites e desejos às demais pessoas. Se num primeiro momento esse es-
tado parece ser caracterizado por ampla liberdade, logo se percebe que,

70
Ibid., p. 110-112.
71
“With the younger as with the older thinker, natural right (ius naturale) is nothing but natural
power; man, like every other form of existence, has by nature no more controlling motive or guide
for his actions than self-interest, and the ultimate demand of self-interest is self-preservation”. In:
DUNNING, William Archibald. A history of political theories; from Luther to Montesquieu. New
York: The Macmillan Company, 1921. p. 311.
72
HUBBELING, Hubertus Gezinus. Spinoza. Barcelona: Editorial Herder, 1981. p. 106.
73
Eric Voegelin afirma que a expressão “direito natural” em Espinosa faz parte de um vocabulário
exotérico utilizado para captar a atenção das massas, mas que, em si, não possui qualquer significa-
do. É dizer, a natureza não revela nenhuma estrutura de direitos, só mostra estruturas de poder. A
mesma consideração se aplica ao estado civil e ao estado de natureza, uma vez que o homem jamais
deixa o último. In: VOEGELIN, Eric. History of political ideas, vol. XVII; the new order and the last
orientation. Columbia: University of Missouri Press, 1999. p. 130.
74
A cisão entre Espinosa e Hobbes se mostra mais franca quando analisado a essência dos indiví-
duos que compõem os dois sistemas estatais desenvolvidos nos seus respectivos sistemas filosó-
fico-políticos, nesse sentido: “Vista, porém, de outro prisma, a política de Espinosa mais não faz
que expurgar o hobbismo das suas contradições e levar às últimas consequências a ideia de que o
direito e o estado só podem ser pensados a partir da potência que cada indivíduo detém na nature-
za. Contra a tese hobbesiana de um direito supremo a tudo, acima da lei e dos costumes, no qual se
concentraria definitivamente, após o contrato, a potência de todos os súditos, Espinosa observa que
a potência individual não é transferível por nenhuma espécie de contrato, uma vez que ela constitui
precisamente a essência dos seres vivos, a qual não é senão o conatus, o esforço de cada um para
resistir tanto quanto possa ao que o pode destruir ou reduzir-lhe a liberdade. (...) Nesse sentido,
Espinosa abandonará o binômio clássico direito-dever para o substituir, conforme observa Étienne
Balibar, por um outro binômio de noções correlativas, a independência e a dependência, estar ou
não estar sob a jurisdição de si próprio”. AURÉLIO, Diogo Pereira. In: ESPINOSA, Benedictus de.
Tratado Político. Trad. Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015. p. 13.
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 169

na verdade, é um estado de constante temor, afinal, a potência individu-


al é sempre inferior à potência dos vários outros sujeitos. Nesse estado
o conatus é tão mais enfraquecido quanto mais isolado é o indivíduo. A
vida social e política, nesta sina, visa a garantir o exercício da liberdade
humana, proporcionando paz e segurança75.
Tal como em Hobbes, Espinosa concebe a transição de um estado
de natureza para um estado civil através de um pacto social pelo qual
os homens transferem poderes – logo, direitos -, para um soberano. Ao
contrário do pensador inglês, entretanto, Espinosa afirma que nem todo
o direito natural é transferido ao soberano: “Nadie, en efecto, podrá ja-
más transferir a otro su poder ni, por tanto, su derecho, hasta el punto
de dejar de ser hombre”76.
Uma vez que o estado de natureza implica medo constante, con-
tribuindo para a diminuição do conatus, o homem tem pouco direito
natural enquanto não institui o estado civil. Somente a sociedade civil
e política permite a ampliação da liberdade através do comando de si
mesmo. O estado civil é verdadeira comunidade de interesses por meio
da qual o sujeito se une a outros, aumentando seu poder. No estado de
natureza não há ato mau ou injusto. Somente há justiça ou injustiça, bem
ou mal, quando instituídos pela soberania77.
O soberano é definido pelo filósofo nos mesmos termos do direi-
to natural: é soberano quem tem poder para fazer valer seus direitos, e
quanto poder tiver para impor, defender e garanti-lo, tanto direito terá.
Segundo a Ética, a concepção de bem coincide com a de utilida-
de. É bem o que parece útil ao homem. Pertencer à sociedade é útil – e
faz bem ao indivíduo – por dois motivos:

por um lado, isso aumenta sua potência ao conjugá-la com ou-


tras potências no seio da potência aumentada em quantidade e
em complexidade que é própria do conjunto; por outro lado, a
articulação do mecanismo do desejo com o da lei civil pode se
efetuar nesse conjunto de tal modo que seja assegurada a eficaz
conjunção no indivíduo da potência e da ordem racional.78

Com efeito, quanto mais numerosos forem os indivíduos que,


concordando entre si, tenham posto as suas forças em comum, mais di-

75
CHAUÍ, Marilena. Espinosa, cit., p. 74-75.
76
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político, cit., p. 350.
77
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 110.
78
CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER, Evelyne. História das Ideias Políticas, cit., p. 52.
170 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

reito terão todos eles79 e quanto mais racional o agir, mais livre a socie-
dade.

4.5 Constitutio libertatis e a natureza do Estado

A ordem política ideal é sempre uma constitutio libertatis, isto é,


uma constituição da liberdade. A liberdade política é fundamental para
que o homem possa efetivar sua felicidade, que consiste no agir racio-
nalmente. A razão só poderá influenciar a conduta da política se o prin-
cípio do livre fluxo de opinião for observado em plenitude. A obediência
a uma constituição liberal é, portanto, obediência aos próprios ditames
da razão80.
A sociedade civil forma um órgão corporado, ou seja, ao mesmo
tempo em que é composta por indivíduos, também ela é uma individu-
alidade própria, possuindo seu próprio conatus, sua tendência à auto-
preservação. O objetivo da política é instituir uma constituição liberal
que obedeça à razão, tornando indiferente a obediência dos governantes
à razão ou à paixão81. No que concerne ao governo, embora o Tratado
Político não tenha sido concluído, a preferência de Espinosa pela demo-
cracia parece evidente:

Con esto pienso haber mostrado, con suficiente claridad, los


fundamentos del Estado democrático. He tratado de él, con
preferencia a todos los demás, porque me parecía el más na-
tural y el que más se aproxima a la libertad que la natureza
concede a cada individuo.82

Não obstante, a forma de governo não é determinante, importan-


do mais a divisão e a limitação dos poderes do Estado.

5. O legado do filósofo maldito

Por séculos Benedictus de Espinosa foi considerado um filósofo


maldito83 e qualquer menção que lhe fosse feita o era para condenar um
79
ESPINOSA, Baruch de. Tratado político. Trad. Manuel de Castro. In: Os Pensadores, v. XVII. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 318.
80
SCRUTON, Roger. Espinosa, cit., p. 111-112.
81
Ibid., p. 112-113.
82
ESPINOSA, Baruch de. Tratado teológico-político, cit., p. 341.
83
“Penstilentissima, pestilentissimus são os termos mais frequentes usados pelos adversários para
Renan Victor Boy Bacelar & Lucas César Severino de Carvalho • 171

ateísmo que demole o edifício teológico que, em todos os sentidos, im-


pregnou o Ocidente. A proscrição do “homem embriagado de Deus”84
somente foi superada na alvorada do romantismo, pelas apologias de
Novalis e Goethe. A sua teologia política - política sem teologia - abriu
caminho para a era da secularização.
Preconizou um novo tempo no pensamento político ao decifrar,
esclarecer e dissolver as divergências constantes no pensamento jusfilo-
sófico, insolúveis até então na tradição acadêmica – a saber, as incom-
patibilidades entre jusnaturalismo e jusracionalismo - com a coerência
inerente ao desenvolvimento de seu sistema filosófico.
Dotado de incrível poder de atração, posto que direciona sua fi-
losofia a trilhar caminhos até então impensados, Espinosa se afasta do
jusnaturalismo ao negar uma fundamentação, corrente ao seu tempo, da
justificativa do direito natural na razão85.
A genialidade de seu pensamento está em dar nova figura ao
modo como é compreendido o direito natural, numa equiparação deste
com a própria força natural persistente nos indivíduos, em seu conatus,
que configuraria, por extensão e por agremiação com outras potências,
o poder propriamente dito (potentia).
A excelência da tese espinosista está presente na sua tentativa
(bem sucedida, diga-se de passagem) de trazer uma composição racio-
nalista, física, de compreensão da força para o mundo das ciências po-
líticas.
Ao deduzir a origem das comunidades políticas do esforço vi-
tal dos seres humanos em realizar suas potencialidades e de sua con-
sequente agremiação em torno de uma resultante de forças para e pela
efetivação das potências, Espinosa constrói a figura do Estado como ins-
tituição necessária para a efetivação da liberdade e para a garantia de
sua plenitude, enquanto resultante política da mediação dos poderes e
dos afetos comuns que sempre motivaram a organização dos homens
entre si.

Referências bibliográficas

designar a obra e o autor”. CHAUÍ, Marilena. A nervura do real; imanência e liberdade em Espinosa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 25.
84
Palavras atribuídas ao poeta Novalis. Cf. CHAUÍ, Marilena. A nervura do real, cit., p. 5.
85
OLIVEIRA, Júlio Aguiar de. O fundamento do Direito em Espinosa. Belo Horizonte: Mandamentos,
2009. p. 109.
172 • Capítulo 6 - Teologia política em Baruch de Espinosa

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CAPÍTULO 7

Montesquieu: das leis às formas de governo

Vinícius Batelli de Souza Balestra1

No presente texto, faremos um pequeno esboço a respeito das


considerações de Montesquieu sobre as formas de governo, bem como
alguns comentários a respeito do modo específico com que Hannah
Arendt interpreta essa tipologia. Montesquieu, que analisou as formas
de governo da tipologia clássica – monarquia, república e tirania ou des-
potismo -, colocou como condição de seu estudo que a análise dessas
formas deveria se dar em torno não apenas da natureza de cada gover-
no, mas também de seus princípios.
Esses argumentos a respeito das formas de governo e seus prin-
cípios são trazidos por Montesquieu logo nos primeiros capítulos de O
Espírito das Leis, mais especificamente nos treze primeiros. A relação que
os princípios de governo terão com as formas a que correspondem se
estabelecerão através das leis de cada governo e, por isso, Montesquieu
inicia sua obra tratando do conceito de lei. Para Montesquieu, as leis
expressam “as relações necessárias que derivam da natureza das coi-
sas”2, havendo, portanto, leis que funcionam para a Divindade, para as
coisas materiais, para a natureza e para os animais, bem como leis para
os homens.

1. A respeito da definição de lei em Montesquieu: a cisão com a defini-


ção jusnaturalista

É preciso, a princípio, discutir a posição que Montesquieu ocupa


nos debates a respeito do conceito de lei, bem como esclarecer algumas
questões a respeito das implicações teóricas desse conceito. Hannah

¹ Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Ge-


rais, com bolsa CAPES – Demanda Social. Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo.
² MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O Espírito das Leis. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
p. 12.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 175

Arendt, por ocasião do texto Ideologia e Terror, se ocupara apenas bre-


vemente desse conceito na obra de Montesquieu, e irá trabalhá-lo com
mais afinco mais à frente, em textos como On Revolution, de 1960, entre
outros.
Nesse ponto, parece útil que nos valhamos de algumas conside-
rações de um conhecido comentador da obra de Montesquieu. Usaremos
a explicação de Althusser sobre o conceito de lei presente nessa obra de
Montesquieu, para, mais tarde, explicitarmos eventuais diferenças e si-
milaridades com a interpretação que Arendt fez desse conceito. Vejamos
que Althusser entende que o conceito de lei em Montesquieu abre um
caminho teórico revolucionário ao não submeter as matérias dos feitos
políticos às teorias do direito natural e a juízos morais e religiosos.3
A própria ideia de lei, lembra Althusser, sempre esteve, até os
séculos XVI e XVII, associada a uma estrutura fixa. Assim, o conceito
de lei, fosse essa lei religiosa, moral ou política, dispunha de alguns ele-
mentos necessários: legisladores, criadores da lei, e súditos que a obe-
deciam; um fim, um determinado objeto, que se colocava como ideal a
ser alcançado; e um mandamento, isto é, o efetivo comando da lei, que
visava o referido fim.
Essa estrutura única da lei teria a utilidade, assim, de colocá-las
todas também sob um mesmo sentido: as leis humanas e morais seriam
reflexos da lei mais importante, a lei de Deus. Em outras palavras, os fins
de todas essas leis era sempre o mesmo: as leis de Deus eram o manda-
mento original, do qual as outras leis seriam apenas um eco.
Assim, não fica difícil perceber a grande mudança que a filosofia
moderna traria ao campo do pensamento com suas definições de leis
científicas. Atribuir à natureza leis próprias, desloca a definição de lei
como mandamento e a coloca no capo da necessidade – por exemplo, as
leis que fazem os corpos se movimentarem, a lei da gravidade, etc., des-
crevem acontecimentos necessários, que sempre irão ocorrer conforme
a “lei”, e não eventos que assim existem por um determinado “dever”.
É justamente dessa definição de lei que Montesquieu está se valendo ao
estabelecer que as leis, sejam para os homens, para a natureza ou para
Deus, são relações da ordem da necessidade, derivadas da própria natu-
reza de cada coisa.4
Com isso, Montesquieu passa a aplicar a definição científica de
lei, até então própria apenas das ciências naturais, nas relações dos ho-

³ ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: La política y la historia. Barcelona: Ariel, 1974. p. 33.


⁴ ALTHUSSER, Montesquieu... cit., p. 34.
176 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

mens entre si. As instituições políticas, os assuntos humanos, passam


a ser objeto de investigação próprio, isto é, as “leis” que governam os
assuntos dos homens – ou seja, o modo com que as coisas próprias dos
homens se dão – serão a expressão de relações imanentes a esses assun-
tos. Perceptível, aqui, que há uma separação das leis de cada “coisa”. Em
outras palavras, as leis de Deus são expressão da própria relação ima-
nente entre Deus e suas criaturas, enquanto as leis dos homens surgem
de uma relação de outro tipo: a relação dos próprios homens entre si.
Montesquieu tomara o cuidado, em sua obra, de explicitar que as
leis de Deus são expressão de uma razão primitiva5, e que todas as leis
existentes, incluindo as leis que regem a relação do Criador com suas
criaturas6, teriam sido estabelecidas por ele mesmo. No entanto, apesar
da notória primazia que Montesquieu confere às leis divinas, e mesmo
o elogio que faz da perfeição de todas as leis que antecedem a vida em
sociedade – as leis naturais e as leis divinas – não mudam o fato de que
o autor criou um campo próprio e independente para as leis humanas.
É exatamente aqui que reside a mudança apontada por
Althusser. Antes, as leis políticas e religiosas tinham a mesma estrutura:
um mandamento e um fim; o fato de o fim das leis religiosas ser,
naturalmente, superior, coloca as leis políticas em relação de derivação
e subordinação com as leis religiosas. Com o uso de “lei” como relação
necessária, Montesquieu teria dado dignidade própria às leis humanas,
ainda que reconheendo a superioridade das leis divinas7.
Importa-nos, a princípio, expor essa interpretação bastante re-
corrente e influente de Montesquieu para demonstrar que, em termos
de contraponto às teorias jusnaturalistas, ambas as interpretações do

5
Shklar aponta para o fato de que, na teoria de Montesquieu, seria impossível pensar em sua estru-
tura de normas sem que ela tivesse um Criador. De fato, para Montesquieu, a ideia da existência
de leis requeria, em conjunto, a ideia de um legislador. Desse modo, se tudo no mundo possui uma
causa; se todo artefato possui um artesão; e se toda a lei possui um legislador, seria lógico pensar
que o mundo teria sido concebido por um criador. Montesquieu, deísta, entendia que essa era uma
solução plausível para a explicação não apenas da existência, mas da conservação do mundo. Cf.
SHKLAR, Montesquieu... cit., p. 70-71.
6
Nas palavras do próprio autor, temos: “Deus possui uma relação com o universo, como criador
e conservador: as leis segundo as quais criou são aquelas segundo as quais conserva. Ele age se-
gundo estas regras porque as conhece; conhece-as porque as fez, e as fez porque elas possuem uma
relação com sua sabedoria e potência.” Mais adiante, para enfatizar o caráter necessário das leis,
até mesmo das leis de Deus, Montesquieu argumenta: “Assim, a criação, que parece ser um ato
arbitrário, supõe regras tão invariáveis quanto a fatalidade dos ateus. Seria absurdo dizer que o
Criador poderia, sem estas regras, governar o mundo, já que o mundo não subsistiria sem elas.” Cf.
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p.11-12.
7
ALTHUSSER, Montesquieu... cit., p. 33-36.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 177

conceito de lei em Montesquieu, a althusseriana e a arendtiana, são fun-


cionais. Em outras palavras, com Montesquieu, as leis positivas (ou hu-
manas) ganham contornos próprios, um espaço próprio de estudo que
não as vincula às leis naturais ou divinas.
No terceiro Capítulo do primeiro Livro d’O Espírito das Leis,
Montesquieu anota:

Não separei as leis políticas das leis civis; pois, como não estou
tratando das leis, mas do espírito das leis, e este espírito consis-
te nas diversas relações que as leis podem possuir com diversas
coisas, tive de acompanhar menos a ordem natural das leis do
que a ordem destas relações e destas coisas8.

Montesquieu estaria, assim, distinguindo duas “leis”, seguindo


a distinção que já fizemos entre uma definição científica e uma defini-
ção mandamental de lei. Para Montesquieu, não é o estudo das leis en-
quanto mandamentos, enquanto leis positivas, que está em questão; seu
objeto de estudo é, antes, as leis de seu objeto, ou, ainda, as leis das leis
positivas: o Espírito das Leis. Estudar o Espírito das Leis significa, portan-
to, estudar as relações que as leis têm com os assuntos humanos, para
entender suas relações com as mais diversas coisas.9
Embora seja de nosso interesse tomar a obra de Montesquieu
como conjunto, devemos nos focar em O Espírito das Leis não apenas por
ser, conforme Starobinski10, o livro da maturidade de Montesquieu, mas
por razões metodológicas: a própria Hannah Arendt não se ocupara do
restante da obra do barão francês, concentrando-se basicamente no es-
tudo d’O Espírito das Leis.
Importante dizer que, para Montesquieu, as leis são fruto do iní-
cio de um estado de guerra, e não de seu cessar. Os homens, antes de vi-
ver em sociedade, não teriam necessidade das leis, porque se sentiriam
fracos e isolados; apenas com a sensação e consciência da própria força,
advindas da vida em sociedade, é que o comportamento do homem se

8
Cf. MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 13.
9
“Above all, the book is about the spirit, not the letter of the law; about what it means in society and
not what it says in the law-books”. Cf. SHKLAR, Montesquieu... cit, p. 70.
10
“Considerada a partir de esta mirada retrospectiva, toda la existencia de Montesquieu converge
hacia esta obra; todas las experiencias se vertieron en ella, todas las energías le fueron dedicadas.
Por ello, es preciso buscar su vida en este libro capital, que la utilizó y la absorbió. Entonces, todo
cobra sentido: los Viajes resultan ser un acopio de documentos para El espíritu de las leyes, las Consi-
deraciones sobre los romanos, un capítulo suelto del futuro libro...”. Cf. STAROBINSKI, Jean. Montes-
quieu. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 1989. p. 34.
178 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

tornaria potencialmente perigoso, e as leis positivas passariam a se fazer


necessárias.
O mesmo raciocínio é aplicado para a relação das diversas na-
ções entre si: ao se perceberem fortes, as sociedades passam a necessitar
de uma regulação para se relacionar em república. Os diferentes povos,
assim, lançariam mão da primeira modalidade de direito positivo: o Di-
reito das Gentes. Dentro de cada povo, seriam estabelecidos o Direito
Político e o Direito Civil: o primeiro, para disciplinar a relação entre go-
vernantes e súditos; o segundo, para as relações dos cidadãos entre si.11

2. Formas de Governo: entre natureza e princípio

Vencida a definição de lei do Livro Primeiro de O Espírito das


Leis, Montesquieu passa a tratar das leis que derivam de cada forma de
governo – que, para ele, são três: a república, a monarquia e o despo-
tismo. A definição para cada um seria a mais simples: a República, um
governo de todo o povo (caso seja democrática), ou de parte dele (caso
aristocrática); a monarquia, o governo de apenas um, mas limitado e
regido por leis; e o despotismo ou tirania, o governo também de apenas
um, mas que governaria segundo a sua vontade, sem o constrangimento
e a limitação das leis.
Interessa a Montesquieu estabelecer a natureza e o princípio de
cada uma dessas formas de governo. A partir tanto da natureza quanto
do princípio, seria possível deduzir leis adequadas para cada forma de
governo.
Se podemos definir a natureza das formas de governo de modo
numérico e pela sua relação com as leis, como fizemos acima, também é
essencial que se leve em conta, dirá Montesquieu, o princípio que move
cada uma dessas formas de governo. O princípio é aquilo que faz agir
a forma de governo: consiste nas paixões humanas que dão movimento
ao governo. A análise das leis de cada forma de governo se dá, portanto,
em duas dimensões: as leis conforme a natureza dos governos; e as leis
conforme os princípios desses governos.
Como aponta Bignotto, Montesquieu não defendera enfatica-
mente, durante sua vida, uma forma republicana para a França; sempre
fora um crítico moderado das monarquias; sua frequente classificação
como republicano, no entanto, derivaria antes de sua defesa não da for-

11
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis…cit., p. 15.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 179

ma estrita de governo, mas de seu elogio ao princípio que caracteriza a


república (especialmente a república democrática), a virtude. A seu tem-
po, o que Montesquieu fez foi rejeitar o modo de operar dos Estados
absolutistas, e resgatar Roma, Atenas e Esparta como modelos de gover-
nança das coisas políticas, elaborando substanciosa crítica ao modo com
que a tarefa de governar era encarada.12
Podendo a república, na tipologia proposta por Montesquieu,
ser democrática ou aristocrática, interessa que nela é o povo quem go-
verna; restará saber se será todo o povo, quando democracia, ou par-
te dele, caso da aristocracia. Especificamente em relação à democracia,
Montesquieu dirá que seu princípio é a virtude; mais ainda, dirá que a
virtude, fundamental para a sobrevivência das repúblicas, não se faz tão
importante para a estabilidade das Monarquias, menos ainda das Tira-
nias. Usando as próprias palavras de Montesquieu:

Não é necessária muita probidade para que um governo mo-


nárquico ou um governo despótico se mantenham ou se sus-
tentem. A forças das leis no primeiro, o braço sempre erguido
do príncipe no segundo regram e contêm tudo. Mas num Esta-
do popular se precisa de um motor a mais, que é a VIRTUDE.13

Em sendo todo o povo que governa, dirá Montesquieu, ora o


povo será súdito, ora será soberano. Sendo essa a característica funda-
mental da natureza desta forma de governo, Montesquieu passa a dis-
sertar sobre as leis essenciais para uma democracia, e sua primeira pro-
posição é de analisar as leis sobre o sufrágio.
“Com efeito, neste caso, é tão importante regular como, por
quem, para quem, sobre o que os sufrágios devem ser dados, quanto é
numa monarquia saber qual é o monarca e de que maneira deve gover-
nar”14. Em outras palavras, numa democracia, é essencial estabelecer as
regras pelas quais o povo definirá quem são os seus soberanos.
O papel desses soberanos ou, em outras palavras, desses repre-
sentantes, será, para Montesquieu, decidida a partir de um critério de
conveniência. Em outras palavras, deve o povo assumir como sua tarefa
tudo aquilo que poder decidir bem por contra própria; e deve delegar a
seus representantes tudo aquilo que não puder realizar bem. Em outras

12
BIGNOTTO, Newton. A Matriz Francesa. In: BIGNOTTO, Newton. Matrizes do Republicanis-
mo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 179-180.
13
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 32.
14
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 33.
180 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

palavras, o sufrágio deveria ser tão amplo quanto possível, mas grande
parte dos assuntos de Estado deveria ser exercido por servidores públi-
cos eleitos pelo povo.15
A medida dessa decisão, dirá Montesquieu, é a da velocidade
que os negócios de Estado devem ter: nem muito rápidos, nem muito
lentos. Montesquieu, além do mais, faz um relativo elogio da escolha
popular: diz que o povo, por andar e conhecer o mundo e a praça públi-
ca, saberá bem escolher seus generais, seus pretores, seus edis, melhor
do um monarca fechado em seu palácio. De todo modo, é essencial que
o povo eleja seus magistrados, ou, no mínimo, que eles sejam nomeados
por alguém de sua confiança. Só assim será possível que haja confiança
na república.16
Também é preciso que se faça uma escolha fundamental para a
República democrática: como ocorrerá o sufrágio? Assim, o modo com
que as eleições, as escolhas públicas do povo se darão, também são da
preocupação de Montesquieu; o sorteio, para ele, é o modo mais ade-
quado nas democracias, enquanto as eleições seriam mais próprias de
uma aristocracia. Por ter seus defeitos enquanto método de sufrágio, o
sorteio deveria ser limitado e corrigido.
Essa correção poderia se dar, por exemplo, de modo que os sor-
teios só ocorressem para aqueles que se apresentassem, e os escolhidos
fossem submetidos a juízes. Outro instrumento seria uma avaliação,
ao final do periodo de magistratura, do comportamento do eleito. Para
Montesquieu, isso evitaria aventuras com a coisa pública: “As pessoas
incapazes não deviam gostar muito de dar seu nome para sorteio”, arre-
mata, ao comentar as restrições feitas por Sólon ao sufrágio por sorteio,
ao seu tempo, e que haviam provado o grande valor de Sólon como le-
gislador. 17
Por fim, em relação à natureza das leis de uma república demo-
crática, Montesquieu coloca duas questões: a primeira, a respeito da pu-
blicidade dos sufrágios. Entende, assim, que devem ser públicos, e não
secretos os votos, valendo-se, inclusive, das considerações de Cícero,
para quem o voto secreto fôra a ruína de Roma. A segunda questão colo-
cada é a de que o povo deve elaborar as leis; e, quando não for possível,
deve aprová-las, como ocorria em Roma, época em que as leis promul-
gadas pelo Senado deveriam, um ano após vigentes, ser confirmadas

15
SHKLAR, Montesquieu... cit., p. 76.
16
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 20-21.
17
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 22.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 181

pelo povo.
Assim, com essas considerações, Montesquieu encerra suas li-
ções gerais a respeito das leis fundamentais da natureza do governo;
com isso, contudo, não se encerram as questões a respeito das leis de
uma república. Até aqui, o autor trata do funcionamento dos negócios
de Estado; quando, no entanto, fizer suas considerações a respeito do
princípio republicano – qual seja, a virtude, como já dissemos -, Mon-
tesquieu tratará de leis que funcionam como “molas propulsoras”18 das
emoções dos cidadãos que verdadeiramente movem seu governo.
Não há dúvida de que em O Espírito das Leis, o princípio de go-
verno mais elogiado é aquele da república. A virtude tem papel central
nas considerações de Montesquieu. Essencial para a república, mas de
menor gravidade para as outras formas de governo; de fato, a virtude
é mais extensamente tratada, debatida e exemplificada no texto do que
a moderação aristocrática, a honra monárquica ou mesmo o medo des-
pótico.
Para tal compreensão de República, Montesquieu adotou – con-
forme anota Newton Bignotto19 - uma estratégia que se valia, ao mesmo
tempo da herança dos autores ingleses, que haviam se nutrido do hu-
manismo italiano, e também da própria experiência inglesa do século
XVII20. Em outras palavras, Montesquieu se vale não só de uma análise
da realidade e da sua histórica recente, como também de uma profunda
compreensão do passado. Isto, obviamente, sem falar no amplo trato
que Montesquieu faz da herança da Antiguidade Clássica.
A observação de Montesquieu, de que “não é necessária muita
probidade para que um governo monárquico ou um governo despótico
se mantenham ou se sustentem”,21 é apenas aparentemente casual ou
desinteressada. Montesquieu, com essa frase, queria colocar a virtude
estritamente sob o regime republicano, para dar combate a uma prática

18
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 38.
19
BIGNOTTO, A Matriz Francesa... cit., p. 180-181.
20
Comentando a Revolução Inglesa, a tentativa de estabelecimento de uma democracia e a relação
do povo com a virtude necessária para essa empreitada, Montesquieu comenta: “Foi um espetáculo
deveras interessante, no século passado, assistir aos esforços impotentes dos ingleses para estabe-
lecerem entre eles a democracia. Como aqueles que participaram dos negócios não tinham virtude,
como sua ambição estava acirrada pelo sucesso daquele que tinha sido mais ousado, como espírito
de uma facção só era reprimido pelo espírito de outra, o governo mudava sem cessar; o povo espan-
tado procurava a democracia e não a encontrava em lugar algum. Enfim, após muitos movimentos,
choques e sacolejos, foi necessário voltar para aquele governo que tinha sido proscrito.” Cf. MON-
TESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 32.
21
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis…cit., p. 32.
182 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

que remete ao Império Romano: a de atribuir a virtude republicana ao


soberano e sua corte.
Essa prática, adotada inicialmente pelo primeiro Imperador Ro-
mano, Augustus, repetida diversas vezes na história, tratada amplamen-
te pela literatura, tomara proporções ainda maiores no século XVII. Os
monarcas eram tidos como donos de uma virtuosidade republicana, ho-
mens que graciosamente abdicavam de suas vidas privadas pelo bem
comum; do mesmo modo eram elogiados os seus servos, os membros
da corte.
É exatamente contra essa ideia que Montesquieu estava se
levantando ao defender que a virtude era um princípio republicano,
que pouco importava para a vida dos regimes de outra natureza.
Montesquieu deu-se à tarefa de fazer a crítica22 dos regimes monárqui-
cos absolutistas de sua época, e essa tarefa incluía dar combate à ideia
de que haveria virtude em formas políticas não-republicanas. A virtude
só é possível nos regimes verdadeiramente republicanos, populares e
não-monárquicos.23
Bignotto aponta que “por estar presente no regime que Montes-
quieu qualifica como mais exigente, a virtude acaba oferecendo uma re-
ferência interessante para compreendermos o funcionamento de todos
os regimes, e não apenas da república”24. De fato, é possível perceber
que essa é uma referência para os outros regimes, chegando Montes-
quieu a afirmar que a honra, princípio do governo monárquico, é um
“substituto” para a virtude.25 Mas o que se entende, afinal, por virtude,
em O Espírito das Leis?

22
Veja-se, por exemplo, a crítica feita no Livro III d’O Espírito das Leis: “Os políticos gregos, que vi-
viam no governo popular, não reconheciam outra força que pudesse sustentá-los além da virtude.
Os de hoje só nos falam de manufaturas, de finanças, de riquezas e até de luxo”. Cf. MONTES-
QUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 33.
23
SHKLAR, Judith. Montesquieu and the new republicanism. In: SKINNER, Quentin. Machiavelli
and Republicanism. New York: Cambridge University Press, 1993. p. 266.
24
BIGNOTTO, A Matriz Francesa... cit., p. 180.
25
Não é esse, no entanto, o entendimento de Althusser a respeito do elogio de Montesquieu à
forma republicana democrática. Althusser observa que as considerações feitas por Montesquieu
aos governos republicanos democráticos são sempre acompanhadas dos exemplos das pequenas
repúblicas do período clássico da Antiguidade. Assim, para Althusser, o destaque de um certo
“angelismo político” que teria dominado as repúblicas do período clássico da Antiguidade serve
justamente para demonstrar que a democracia é um regime de exceção, porque alcança estabilidade
e universalidade. Althusser enxerga, portanto, um elogio retrospectivo às democracias antigas, em
especial à virtude que nelas reinava, elogio esse que serviria não para torná-las modelos para a
Modernidade, mas justamente para descartá-las como alternativa política. Ver em: ALTHUSSER,
Montesquieu... cit., p. 77-83.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 183

Assim responde Montesquieu: “A virtude, numa república, é


uma coisa muito simples: é o amor pela república; é um sentimento,
e não uma série de conhecimentos; o último homem do Estado pode
possuir este sentimento, assim como o primeiro.”26 O amor à república,
por sua vez, se definiria em uma democracia como o amor à igualdade.
A ideia de uma democracia é de que todos desfrutem dos mes-
mos prazeres, esperanças e vantagens de modo repartido. Todos os ci-
dadãos devem ter a chance de servirem à pátria, de participarem da vida
pública: do contrário, se uns se destacarem muito mais que outros, está
prejudicada a democracia; nesse caso, aliás, começa a imperar a honra,
princípio definidor da monarquia na tipologia de nosso barão francês.
Se é preciso frugalidade, então as riquezas materiais em excesso
devem ser condenadas; para Montesquieu, esse amor à frugalidade só
pode acontecer se for natural nas pessoas de cada sociedade que se ame
a vida frugal, moderada e ordinária. Aqueles que têm por hábito ado-
rar os luxos, ou mesmo invejá-los, evidentemente, não poderão amar à
frugalidade tampouco a igualdade. Como seria possível, no entanto, o
estabelecimento e a manutenção de um tal estado de coisas, qual seja, o
de respeito e amor à frugalidade e a igualdade num corpo político?
A despeito de dizer, logo de início, que o princípio de governo
é um estado emocional de um povo, estado esse que irá mover o corpo
político, Montesquieu entende que as leis cumprem papel fundamental
para agir como a “mola” que propulsionará esse estado emocional; em
outras palavras:

O amor à igualdade e o amor à frugalidade são extremamente


estimulados pelas próprias igualdade e frugalidade, quando se
vive numa sociedade onde as leis estabeleceram uma e outra.
(...) Logo, é uma máxima bem verdadeira aquela que diz que,
para que se ame a igualdade e a frugalidade numa república, é
preciso que as leis as tenham estabelecido.27

Montesquieu passa, então, em seu Livro Quinto, a tecer uma sé-


rie de considerações a respeito das leis que podem alicerçar o amor à
igualdade e á frugalidade numa república democrática, com base nas
experiências das repúblicas que ele tinha como virtuosas, sendo a mais
destacada, Atenas.
Segundo Shklar, Montesquieu tem Atenas em especial conta,

26
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 53.
27
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 55.
184 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

atribuindo as virtudes republicanas a seus cidadãos – ou seja, o amor


à igualdade – e também lhes atribuindo grande habilidade comercial,
que ele entendia como bastante importante para uma república. Shklar
aponta para o fato de que Montesquieu via como causa da falência de
Atenas sua fragilidade militar, visto que seu povo era virtuoso, isto é,
era patriota e também tinha habilidades comerciais.28
Montesquieu não vê contradição entre a prática do comércio e
a necessidade de que haja igualdade e frugalidade; ao contrário, em O
Espírito das Leis, encontramos uma compatibilidade entre a atividade
comercial e a igualdade, visto que seria uma atividade que incentiva
valores caros a uma democracia, como a sabedoria, a regra, o trabalho, a
moderação e a frugalidade. Nos casos em que a fortuna do comerciante
extrapole o razoável, as leis então deverão agir para que esse comer-
ciante volte a ter apreço pelo trabalho e por uma vida de moderados
prazeres.29
Um legislador poderia, assim, agir diretamente sobre a divisão
de terras, efetuando-a de modo igualitário; mas essa é uma medida que
deveria ser acompanhada de diversas outras regulamentações, para que
o espírito da igualdade não acabasse corrompido. Seria preciso regular
também as sucessões, os dotes das mulheres, as doações, dentre outros,
como, por exemplo, proibindo que uma mesma pessoa recebesse duas
heranças. Montesquieu descreve diversos exemplos que não parece
oportuno detalhar em nosso texto; basta, para nós, destacar a própria
consideração de Montesquieu de que o espírito de semelhantes leis é jus-
tamente o de estabelecer a igualdade.
Nesse ponto, nosso autor reconhece que a igualdade, ainda que
sendo a alma do Estado republicano, é extremamente difícil de ser con-
seguida de modo exato. Propõe, assim, que sejam estabelecidos padrões
máximos de diferenças econômicas entre os cidadãos, padrões a partir
dos quais será papel da lei recolocar a igualdade. Nesse ponto, acres-
centa o autor, no capítulo VI do Livro V, que não basta que as terras
sejam apenas igualmente distribuídas: é preciso que elas também sejam
pequenas, para dar base à desejada frugalidade de uma república de-
mocrática.30

28
SHKLAR, Montesquieu and the new republicanism... cit., p. 265.
29
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 59.
30
“Assim como a igualdade das riquezas mantém a frugalidade, a frugalidade mantém a igualdade
das riquezas. Estas coisas, embora diferentes, são tais que não podem subsistir uma sem a outra;
cada qual é a causa e o efeito, e quando umas delas é retirada da democracia a outra sempre a se-
gue”. Cf. MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 59.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 185

Sabemos, no entanto, que o governo republicano, na classificação


feita por Montesquieu, não assume apenas a forma democrática; pode
também ser uma aristocracia. Nesse ponto, é válido que façamos uma
rápida análise dessa forma de governo, em sua natureza e seu princípio.
Segundo Montesquieu, a aristocracia tem como natureza o fato
de ser um governo de uma parte do povo, e não de todo o povo, como
ocorre na democracia, ou apenas de um soberano, como na monarquia;
é um regime de leis, elaboradas e executadas por uma parcela do povo;
o restante do povo está para seus governantes como estariam os súditos
para um monarca. Desse modo, suas leis devem ser tais que não haja
abuso dessa parcela governante contra a parcela governada.
Em termos mais práticos, Montesquieu indica que a grandeza
de poder nas mãos do magistrado, numa aristocracia, deve ser freada
por uma duração breve de seu mandato. Também dirá Montesquieu
que aquela parcela excluída dos negócios públicos não deve ser grande
nem deter riquezas, para que os magistrados não caiam na tentação de
usar de seus poderes para oprimi-la. Nesse ponto, é possível reafirmar
o elogio de Montesquieu pela democracia: “Quanto mais próxima uma
aristocracia estiver da democracia, mais perfeita será, e o será menos à
medida que se aproximar da monarquia”.31
A república democrática se reafirma como modelo quando ana-
lisamos a virtude que Montesquieu indica ser essencial para a aristocra-
cia: a moderação. Uma moderação que é derivada da virtude democrá-
tica, um sentimento que conduz os nobres a se portarem como iguais
entre si e que permite a eles certa identificação com o povo, isto é, com
seus súditos.32 Os aristocratas não devem se portar como se fossem mo-
narcas: devem ter hábitos frugais e se portar como homens do povo.
Uma grande disparidade econômica e política entre os magistrados da
aristocracia e seu povo, bem como uma disparidade entre os próprios
nobres, são fatores de ruína para a república aristocrática.
De que modo a máxima de Montesquieu de que as leis e prin-
cípios têm uma relação de impulso mútuo se reafirma na aristocracia?
Para Montesquieu, uma aristocracia deve tomar como exemplo a repú-
blica romana: os magistrados não devem receber proventos do exercício
de sua função, para que não se reafirme e aumente a disparidade eco-
nômica entre nobres e povo. Do mesmo modo, os nobres não podem
ser comerciantes, para que não usem da função pública a fim de obter

31
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 26.
32
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 34.
186 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

monopólio de mercado. “O comércio é a profissão das pessoas iguais;


e, dentre os Estados despóticos, os mais miseráveis são aqueles em que
o príncipe é o mercador”33. Ainda, a aristocracia não deve permitir que
haja leis dando privilégios de natureza econômica a determinados mem-
bros de cada família, de modo a não criar disparidades entre famílias
de nobres mais adiantes. A desigualdade entre os próprios membros da
nobreza não é desejada, salienta Montesquieu.34
Se nas repúblicas, deve prevalecer algum apreço pela igualdade
– seja uma igualdade radicalmente democrática, seja a igualdade mo-
derada das aristocracias -, na monarquia valerá o princípio da distinção.
Sendo um regime em que todo o poder se origina do príncipe, a previsão
de Montesquieu é que as leis devem, para prevenir que o governo se
deforme para o despotismo, prevejam os corpos políticos intermediá-
rios. Em outras palavras, uma monarquia assim se manterá, sem se tor-
nar um Estado despótico, se as estruturas de poder abaixo do príncipe
estiverem previstas e reguladas nas leis. Para isso, Montesquieu estava
disposto a aceitar, inclusive, que fossem estabelecidos certos privilégios
estatais ao clero, de modo que assim se pudesse regular o poder do mo-
narca35. Interessante, assim, a metáfora usada pelo autor:

Assim como o mar, que parece querer cobrir toda a terra, é de-
tido pelas ervas e os menores pedregulhos que se encontram
na orla, assim também os monarcas, cujo poder parece sem li-
mites, são detidos pelos menores obstáculos e submetem seu
orgulho natural às queixas e aos pedidos36.

Que relação essas leis que estruturam o regime monárquico têm


com seu princípio, o da honra? Se na aristocracia as vantagens e privi-
légios para os nobres são condenáveis – justamente para que não exer-
çam seus poderes em detrimento do povo -, na monarquia eles são de-
sejáveis, para que os nobres possam fazer frente ao poder do príncipe e
intermediar sua relação com o povo. As leis devem então conservar os
patrimônios dos nobres e a eles dar especial lugar no reino econômico.
Na monarquia, o privilégio dos primogênitos, condenável num regime
aristocrático, é desejada e reforça a honra, princípio caro a este regime.
A conservação da hereditariedade e do patrimônio familiar deve ser o

33
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 54.
34
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 65.
35
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 27.
36
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 27.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 187

mais alto objetivo das leis de uma monarquia.37


Por fim, abordemos brevemente o governo despótico. Sabemos
que este é o governo que se caracteriza justamente pela ausência de leis
a regular a relação entre os homens, seja no campo político ou civil. Há
uma lei fundamental, no entanto, que deve ser outorgada para que o
déspota possa governar conforme sua vontade, e esta lei é aquela que
estabelece o seu vizir. Agindo como longa manus do Príncipe, o vizir é
que se ocupará dos negócios diários do governo.
Não logrará sucesso o tirano que apostar na divisão de poderes
entre diversos servos, pois isso provocará brigas entre eles, e o forçará a
se dedicar a administração; deve nomear apenas um, que agirá em nome
do próprio príncipe e terá todos os seus poderes. Só assim é que poderá
o tirano dedicar-se àquilo que realmente lhe apraz: suas paixões, desejos
e caprichos38. Em outras palavras, a vontade do príncipe, que estrutura
todo o governo despótico, encontra terreno fértil quando os assuntos
públicos são relegados a seu servo mais fiel, o vizir.39
A tirania/despotismo se estrutura no próprio medo, este é seu
princípio. Nas aristocracias e monarquias, os nobres e o príncipe podem
se dar ao luxo de não usar violência, de fazer acomodações. Isso não é
possível na tirania, que não pode se valer de leis e instituições públicas
para garantir a manutenção da ordem. O príncipe deve ser impiedo-
so a todo momento, de modo a abolir todas ambições revolucionárias,
destruir qualquer resquício de coragem que possa ter restado entre os
cidadãos. A respeito das leis do Estado Despótico, algumas considera-
ções podem ser feitas, em especial comparando-as com as leis de outras
formas de governo e em sua relação com o medo. Se lembrarmos que o
comércio, em O Espírito das Leis, aparece como uma atividade que é es-
sencialmente igualitária, típica dos Estados livres, então parecerá lógica
a afirmação de Montesquieu de que as leis sobre o comércio, na tirania,
“quase não existem; reduzem-se à simples polícia.40 Isso certamente re-
força o medo entre os mercadores, e inibe que consigam celebrar gran-
des negócios.
O confisco, que não é recomendado nos governos que Montes-
quieu chama de “moderados” – isto é, nas repúblicas e monarquias – é

37
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 66.
38
“Quando os selvagens da Louisiana querem ter frutas, cortam a árvore e apanham a fruta. Eis o
governo despótico”. Ver em: MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 69.
39
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 29.
40
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 75.
188 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

uma ferramenta útil para o déspota, de modo que as leis que instituam
o confisco ganham força nas tiranias. Com isso, reforça-se o medo que o
povo tem do príncipe, e ainda se proporciona ao governo uma forma de
arrecadação com a qual pode fazer algum benefício ao povo. A limitação
do confisco é característica de Estados moderados; sua previsão indis-
criminada, por outro lado, serve ao medo e ao temor que sustentam os
déspotas. De modo geral, no entanto, Montesquieu ressalta a ausência
de leis nos mais diversos assuntos de Estado, quando se trata de um Es-
tado despótico: não há previsão de sucessão do príncipe (pois também
seus parentes são seus súditos e escravos), não há leis para o comércio,
e as leis que regulam a relação entre o governo e o cidadão são amplas e
arbitrárias (como no exemplo do confisco).41
Assim, após enumerar cada forma de governo, seus princípios
e as relações das leis políticas de cada com tais princípios, é possível
entender melhor a metáfora da mola de que se vale Montesquieu: os prin-
cípios recebem um sopro adicional de força, quando as leis são a eles
moldadas. Nesse ponto, é preciso destacar algumas anotações de Han-
nah Arendt sobre as formas de governo de Montesquieu.

3. Os Princípios de Governo e a Condição Humana

No texto Montesquieu’s Revision of the Tradition42, a autora sis-


tematiza suas considerações sobre a teoria das formas de governo de
Montesquieu. É preciso dizer, no entanto, que esse texto está longe de
encerrar de forma organizada todas as considerações que Arendt faz so-
bre o tema, e sobre o livro O Espírito das Leis. Recolheremos desse texto,
no entanto, duas reflexões que terão peso na caracterização do totalita-
rismo como forma de governo, caracterização essa feita a partir da teoria
de Montesquieu – ou, ao menos, da leitura arendtiana dessa teoria. A
primeira reflexão será a respeito da relação entre a natureza e o princípio
de governo. A segunda consiste na relação que Hannah Arendt faz entre
os princípios de governo e a condição humana.
Arendt enxerga na caracterização que Montesquieu faz da natu-
reza ou essência do governo a pretensão de permanência, tão comum na
tradição do pensamento político, e que nos remete a Platão, para quem
as melhores formas de governo são aquelas que demonstram mais dura-

41
MONTESQUIEU, O Espírito das Leis… cit., p. 69-78.
42
ARENDT, Hannah. Montesquieu’s Revision of the Tradition. In: ARENDT, Hannah. The Promise
of Politics. Nova Iorque: Schoken Books, 2005. p. 63-69.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 189

bilidade e permanência. O estudo dessa estrutura, que é dada pelo con-


junto de leis (exceto, é claro, no caso da tirania), seria insuficiente para
analisar os governos, justamente porque seria preciso destacar como os
governos agem e se movem – o que, diz Arendt, Montesquieu encontra
nos seus estudos de princípios43. A natureza do governo, tomada em si
mesma, é incapaz de ação ou movimento.44
Vejamos que, em Montesquieu, à definição da natureza do go-
verno corresponde um conjunto de leis, e à definição do princípio, outro
conjunto. Na interpretação de Arendt, no entanto, o conjunto de leis que
“inspiram” os princípios do governo não aparecem. Arendt trabalha a
questão da legalidade apenas em termos da natureza de cada forma de
governo, e ressalta o fato de que a grandeza das leis de uma sociedade
livre reside no fato de que elas dizem o que não fazer, mas nunca o que
fazer.45
Nesse sentido, é importante ressaltar o papel que, para Arendt,
os princípios desempenham num corpo político, à luz das reflexões de
Montesquieu. As leis, que estão na essência da natureza do governo,
definem o corpo político a partir do critério da permanência e da estabi-
lidade, e apenas fornecem critérios daquilo que não pode ser feito. Por
outro lado, são os princípios que irão fornecer os critérios de julgamento
para os cidadãos naquilo que eles irão fazer. Essa distinção, nos termos
da leitura arendtiana de Montesquieu, é bastante importante, e será re-
tomada no próximo capítulo, em especial quando tratarmos do conceito
de compreensão.
Ainda nos valendo da sistematização feita por Arendt em Mon-
tesquieu’s Revision of the Tradition, um outro aspecto merece destaque.
Ao tratar mais especificamente dos princípios de cada forma de gover-
no, Arendt separa a república e a monarquia da tirania utilizando um
interessante critério. Para Arendt, a condição humana é marcada pela

43
“But lawfulness, as Montesquieu understood it, can only set limitations to actions, and never
inspires them” é uma das afirmações que Arendt faz nesse texto, e que de algum modo parece con-
traditória com o que o próprio Montesquieu estatui. Em O Espírito das Leis, encontramos Montes-
quieu argumentando que as leis têm o papel de incentivar e reforçar os princípios. Ora, se é preciso,
como o autor argumenta, que as leis exerçam o papel de salvaguarda e reiteração dos princípios de
governo, não parece de todo correto dizer, como faz Arendt, que as leis apenas “limitam” as ações.
É verdade que, em O Espírito das Leis, encontramos a afirmação de as leis não produzem ações nem
discursos, mas não é verdade que as leis não tenham condão de inspirá-las, como argumentou
Arendt. Cf. ARENDT, Montesquieu’s Revision of the Tradition... cit., p. 65.
44
ARENDT, Montesquieu’s Revision of the Tradition... cit., p. 63-65.
45
ARENDT, Montesquieu’s Revision of the Tradition... cit., p. 64.
190 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

pluralidade46, que se desmembra em duas características: a igualdade e


a distinção.47
A distinção é a experiência fundamental que fundamenta a hon-
ra, o princípio da monarquia. Desde o nascimento, somos diferentes uns
dos outros, e com o passar do tempo as diferenças entre nós – sociais ou
naturais - vão se tornando mais e mais destacadas. É justamente a von-
tade de se distinguir que se torna reconhecida numa monarquia.
A igualdade, por outro lado, em termos políticos, significa a
igualdade de força perante todos os outros cidadãos. Desse modo, esses
que estão agindo e vivendo em conjunto, e que têm a mesma força, pre-
zam pela virtude de estarem juntos no mundo e assim permanecerem.
O amor por essa igualdade é que será a experiência fundamental da
república democrática.48
Como veremos, é exatamente essa negação da condição huma-
na da pluralidade – e, portanto, da igualdade e da distinção49 – que dá
fundamento, no argumento de Hannah Arendt, ao totalitarismo. Assim,
a experiência da solidão, que é a experiência oposta à da pluralidade,
constitui o próprio terreno em que viceja o totalitarismo. Para Arendt,
não estaria clara qual a experiência humana diretamente ligada ao medo
(e, portanto, ao despotismo e à tirania) nos escritos de Montesquieu, nem
tampouco a própria autora desenvolve esse ponto com alguma força.
Ela esclarece, no entanto, que o motivo pelo qual Montesquieu não dá
relevo a esse tema é pelo o fato de que a tirania não seria um corpo polí-
tico autêntico. E isso significa, em outras palavras, que o próprio medo,
enquanto princípio de ação, é um princípio antipolítico. As tiranias sur-
gem, diz Arendt, de um medo que se instala a partir da corrupção de
um dos regimes políticos por natureza: a democracia ou a monarquia.

46
Pluralidade é a condição humana da ação, diz Arendt. Ao mesmo tempo em que somos todos
humanos, existimos de tal modo que não seremos iguais a ninguém que já tenha vivido, que viva
ou que viverá no mundo. Cf. ARENDT, Hannah. The Human Condition. Chicago: The University
Of Chicago Press, 1998. p. 8.
47
ARENDT, Montesquieu’s Revision of the Tradition... cit., p. 66.
48
ARENDT, Montesquieu’s Revision of the Tradition... cit., p. 66-67.
49
Vale destacar, nesse ponto, a associação que Arendt faz entre a igualdade e a distinção enquan-
to características da condição humana da pluralidade e seu aspecto político. Encontramos em A
Condição Humana a conceituação que nos auxilia para esclarecimento desse ponto. Se não fôssemos
iguais, não seríamos capazes de nos entender no presente, nem sequer planejar o futuro para aque-
les que virão. Se não fôssemos distintos, diferentes, a comunicação não seria necessária, pois todos
teriam os mesmos desejos e necessidades. E é exatamente nesse contexto de possibilidade e necessi-
dade de comunicação que se desenvolvem a ação e o discurso. A partir da ação e do discurso é que
os homens são capazes de se distinguirem e aparecer para os seus iguais, isto é, aparecer no espaço
público, no espaço entre os homens. Cf. ARENDT, The Human Condition... cit., p. 175-176.
Vinícius Batelli de Souza Balestra • 191

Na tipologia de Montesquieu, em que identificamos a república, a mo-


narquia e a tirania, há uma separação interna, segundo Arendt. Os dois
primeiros são regimes políticos, porque fundados em aspectos funda-
mentais da condição humana; o segundo, um regime antipolítico, e, por
ser fundado no medo50, um regime que tem em si mesmo os gérmens de
sua própria destruição.
Seja porque os cidadãos não conseguem mais se igualar em for-
ça, seja porque o monarca passa a desrespeitar as leis e tomar domínio
sobre os meios de violência do governo, o medo se instala a partir da
impotência dos cidadãos. Ao se sentirem impotentes – isto é, sem pos-
sibilidade de agir – os cidadãos passam a estar sujeitos à dominação do
tirano e à ausência de um corpo de leis.
É preciso, portanto, pontuar que, em Montesquieus’ Revision of the
Tradition, dois temas da leitura arendtiana de Montesquieu aparecem. O
primeiro é o tema da relação entre a natureza e os princípios de governo,
relação que remete à diferença Arendt faz entre lei e ação: as leis, regula-
doras e responsáveis pela permanência da estrutura do governo, dizem
o que não fazer e portanto fornecem apenas um critério de julgamento
negativo; a ação, por outro lado, possível nas condições de igualdade e
distinção, é guiada pelos princípios, estes sim fornecedores dos critérios
para se conduzir na vida pública. O segundo tema, como demonstramos,
é o da relação entre as formas de governo, seus princípios e a condição
humana. Arendt enxerga, na definição dos princípios de Montesquieu,
as experiências humanas que dão sustentação a cada forma de governo.
Por se pautarem, respectivamente, na igualdade e na distinção, a
República e a Monarquia são os dois regimes que Arendt enxerga como
autenticamente políticos. A tirania seria portanto um regime antipolíti-
co, baseado no isolamento dos cidadãos. A importância, aqui, reside no
fato de que a pluralidade, que é a própria condição humana e que tem
dentro de si tanto a igualdade quanto a distinção, é o exato oposto do
isolamento; a solidão, por sua vez, seria uma negação ainda maior des-
sa pluralidade, um aprofundamento do isolamento. Esta anotação é de
grande importância para um dos temas fundamentais do pensamento

50
É preciso observer que em A Condição Humana, Arendt recoloca a questão da tirania sob outra
ótica. No texto sobre Montesquieu que Jerome Kohn inseriu em A Promessa da Política, o argu-
mento da autora é de que que Montesquieu não tratara da experiência humana que fundamenta o
medo na tirania. Já n’A Condição Humana, Arendt retoma a diferença entre isolamento e solidão para
preencher essa lacuna que o isolamento (que está ligado à vida pública) é a base para o medo tirâ-
nico, enquanto que a solidão (que está ligado à vida humana como um todo, tanto pública quanto
privada) é que baseia a experiência totalitária. Cf. ARENDT, The Human Condition... cit., p. 202-203.
192 • Capítulo 7 - Montesquieu: das leis às formas de governo

arendtiano, qual seja, a caracterização do totalitarismo como forma de


governo, vez que é exatamente a solidão, uma experiência humana ain-
da mais terrível que o isolamento, o suporte da ascensão de movimentos
e regimes totalitários.

Referências bibliográficas

ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: La política y la historia. Barcelona:


Ariel, 1974.
ARENDT, Hannah. Montesquieu’s Revision of the Tradition. In: AR-
ENDT, Hannah. The Promise of Politics. Nova Iorque: Schoken Books,
2005. p. 63-69.
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NER, Quentin. Machiavelli and Republicanism. New York: Cambridge
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SKINNER, Quentin. Liberdade antes do Liberalismo. São Paulo: Editora
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bridge University Press, 1993.
STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. Cidade do México: Fondo de Cultu-
ra Económica, 1989.
CAPÍTULO 8

Das leis à história:


Direito, política e causalidade
histórica em Montesquieu

Isadora Eller Freitas de Alencar Miranda1


Igor Moraes Santos2

Introdução

O presente artigo tem por escopo desbravar caminhos introdutó-


rios ao pensamento político-jurídico de Charles-Louis de Secondat, Ba-
rão de La Brède e de Montesquieu, especialmente quanto à relação traçada
pelo autor entre as leis, as formas de governo, a liberdade e a história.
A partir de extensa pesquisa sobre as principais obras de Mon-
tesquieu3, bem como da literatura especializada, analisar-se-á o caráter
multidisciplinar e a originalidade fundante de suas reflexões: dono de
incansável curiosidade, o filósofo de Bordeaux almejava compreender o
homem em sua totalidade. Para tanto, estudou pormenorizadamente as
leis e sua adequabilidade às organizações políticas de cada sociedade,
traçando ainda paralelos entre a realidade física e as manifestações do
caráter de determinado povo. Dotada do brilhantismo próprio dos gran-
des gênios, os trabalhos do Senhor de La Brède permanecem como refe-
rencial singular em discussões como a separação entre Direito, moral e
religião; os limites da intervenção estatal; os tipos de organização políti-

¹ Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.


² Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.
³ Sobre as três principais obras de Montesquieu, desde logo adotaremos a seguinte forma de re-
ferência: título, livro e/ou capítulo. As páginas estarão indicadas na sequência e são referentes às
edições: O espírito das leis. Trad. Cristina Murachco. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (inclui
Defesa do Espírito das Leis); Cartas persas. Trad. Mário Barreto. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960; Consi-
derações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência. Introdução, tradução e notas de
Pedro Vieira Mota. São Paulo: Saraiva, 1997.
194 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

ca; e até a formulação das leis penais. Todos esses diferentes aspectos es-
tão consubstanciados pela história, segundo uma ideia de causalidade.
A originalidade dessa articulação é justamente o que faz perma-
nente a relevância de Montesquieu e, com isso, torna pertinente o artigo
em epígrafe, não obstante as inúmeras contribuições já existentes. As-
sim, apesar da ciência da impossibilidade de esgotamento, o presente
trabalho investiga o pensamento do filósofo bordelês, iniciando-se pelas
circunstâncias que propiciaram sua construção, para, enfim, vislumbrar
a magnitude de sua obra, ainda hoje, intacta.

1. Montesquieu entre razão e ciência no Século das Luzes

Da Renascença do século XV, ou ainda antes, até as profundas


transformações provocadas pela filosofia cartesiana no século XVII, im-
portantes mudanças ocorreram no conjunto da vida intelectual4. No sé-
culo XVIII, o homem continua a caminhar em direção à descoberta do
mundo e de si próprio, orientando-se agora para a derrubada da antiga
ordem teológico-metafísica, dos velhos cultos e instituições, das supers-
tições e dos medos. No lugar, pretende colocar a razão, por meio da qual
ele pode se libertar dos instintos animalescos e das autoridades intelec-
tuais corroídas e vazias, para, enfim, trilhar um caminho autônomo em
direção a uma suposta Verdade.
A Ilustração é a proposição humana não apenas de novas metas
para o pensamento, mas para conhecer, e mais, para assumir a condução
do curso da história. Como expansão quantitativa e qualitativa do co-
nhecimento, o faz para diferentes sentidos, ligados por uma força motor
comum em desenvolvimento e desdobramento, a razão, que, como sus-
tenta Cassirer, “é o ponto de encontro e o centro de expansão do século,
a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu
querer e de suas realizações”5 Há uma fé na unidade e na imutabilidade
da razão, considerada como a mesma para todo indivíduo pensante, em
qualquer nação e tempo, mas o que não significa uniformidade nas ma-
nifestações ilustradas.
Observa-se a relevância das obras dos intelectuais ingleses nos
séculos XVI e XVII para a fundação dos marcos das ciências modernas,
seja com Bacon e Newton, seja com Hobbes e Locke, estes últimos no

⁴ CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: Editora da UNICAMP,
1992. p. 19.
⁵ Ibid., p. 21-23.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 195

plano político. O século XVIII recebe essa gigantesca carga, assinalada


por fortes traços empiristas. O Enlightenment, na Grã-Bretanha, continua
esse legado, de David Hume a Adam Smith. No entanto, no continente,
ela não é simplesmente absorvida, sendo-lhe agregados caracteres pró-
prios de uma tradição racionalista bem assentada, no mínimo, em Des-
cartes e, posteriormente, Leibniz. Assim, se por alguns autores há uma
adesão clara a uma das duas correntes, outros buscarão conciliá-las, ta-
refa assumida, e. g., por Kant. Já na França, os Lumières estão influencia-
dos principalmente pela segunda linha. Razão, progresso e liberdade
são ideias que fervilham entre os frequentadores dos meios letrados.
Ademais, a experiência histórica francesa é fator significativo, tendo em
vista, entre outros aspectos, o peso do absolutismo monárquico. Assim,
a filosofia desenvolvida pelos franceses, em contato com o empirismo
inglês, ganha mais maleabilidade do que a permitida pelo cartesianis-
mo, “confere vivacidade tanto à ideia de verdade quanto à noção de Fi-
losofia”6. Sem retirar o brilho do Enlightenment inglês, da Aufklärung ale-
mã e de outros movimentos iluministas, os Lumières reluziram mundo
afora, notadamente por seu teor propagandista7, de Rousseau e Voltaire
a Condorcet e D’Alembert. Entre os grandes nomes da primeira geração
da Ilustração francesa destacou-se Charles-Louis de Secondat, Barão de
La Brède e de Montesquieu.
Em fevereiro de 1755, num contexto de relativa tranquilidade
para o continente europeu, o seguinte obituário fora publicado pelo Lor-
de de Chesterfield, no London Evening-Post8:

Morreu em Paris o S. de Secondat, Barão de Montesquieu (...)


estimado por todas as nações da Europa, nas quais sua obra
(...) estendeu-se, por meio de numerosas edições, e traduções
em diversas línguas; mas principalmente em seu próprio país,
no qual ele se esforçou, com sucesso, para libertar de muitos
preconceitos e erros, tanto na esfera civil quanto na eclesiástica
(...) ele é, e deve ser reverenciado por nós, cuja Constituição ele
julgou ser a melhor que a Razão poderia conceber, e as paixões
humanas poderiam admitir.9

⁶ SANTOS, Antônio Carlos dos. A Filosofia e o filosofar francês no século XVIII. Sapere Aude, Belo
Horizonte, v. 1, n. 1, p. 84-95, 2010. p. 91.
⁷ MAYOS, Gonçal. Macrofilosofía de la Modernidad. Barcelona: dLibro, 2012. p. 70.
⁸ Mais tarde, naquele mesmo ano, a Europa presenciou um dos piores abalos sísmicos de sua his-
tória moderna: trata-se do Terremoto de Lisboa, que acarretou a morte de aproximadamente trinta
mil pessoas.
⁹ GONTIER, Ursula Haskins. Montesquieu and the England: Enlightened Exchanges, 1689-1755. Lon-
dres: Pickering & Chatto, 2010. (Tradução nossa).
196 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

Esta homenagem póstuma é apenas um vislumbre da notorieda-


de alcançada pelo escritor iluminista, que desfrutou da estima pública ao
longo de toda sua vida. Nascido em 1689, nas proximidades da cidade
francesa de Bordeaux, Montesquieu jamais restringiu sua curiosidade
científica aos limites do Direito: versátil, dedicou-se aos estudos de físi-
ca, biologia, geografia, geologia, estética e economia política, realizando
até experimentos científicos de menor complexidade. Esse entusiasmo
perpassou o período em que integrou a Academia Real de Ciências, Ar-
tes e Belas-Letras de Bordeaux, entre 1716 e 1726, muito mais do que
as atividades judiciárias como presidente do Parlamento de Bordeaux.
Esse afã intelectual pode ser identificado com nitidez desde os primeiros
textos lidos na Academia, como Dissertação sobre a política dos romanos
sobre a religião (1716), O elogio da sinceridade (1717), Discurso sobre a trans-
parência dos corpos (1720), Ensaio sobre observação da história natural (1721)
e Discurso sobre a consideração e a reputação (1726)10. Os resultados obtidos
nessas investigações nem sempre eram originais ou possuíam lingua-
gem científica rigorosa; contudo, eram prova da multidisciplinaridade
de seu interesse, característica comum do período da Ilustração e nota
distintiva de sua obra, em particular. A razão era, então, uma entidade
ampla cuja competência seria “(...) universal; o mundo, diante dela, é in-
teiriço: um único tecido de causas e efeitos. (...) a unidade do mundo tem
por corolário a unidade da ciência”11, imaginado através da correlação
com o mundo físico segundo a ordem natural; ou seja, desvendando a
“natureza das coisas”12. Exatamente por isso, gozava de precisão única,
como o impecável o estilo linguístico da literatura oriental empregado
em Cartas persas (1721) e História verdadeira (1730-1738, não publicado),
que descrevem, em riqueza de detalhes, as condições geográficas, for-
mas de governo, práticas religiosas e convenções sociais observadas na
Pérsia, Índia e, especialmente, na França.
Outro notável aspecto de seu estilo é o cuidado e o distancia-
mento empregados para tecer críticas ao governo e apresentar seu pró-
prio raciocínio, que, além de lhe garantir renome, poupou o iluminista
de ferrenha perseguição política. Mais habilidoso e menos irreverente
do que alguns de seus contemporâneos, Montesquieu exprime suas
ideias em termos de “dever-ser” e “dever-fazer”, utilizando linguagem

10
DESGRAVES, Louis. Montesquieu. Paris: Mazarine, 1986. p. 94-101.
11
STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 17-18.
12
Ibid., p. 19.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 197

pautada pela moderação. Isto não o impede de dirigir, de forma direta e


contundente, críticas abertas ao governo francês – mas o filósofo as em-
prega em meio a seus romances, deixando que o véu da fantasia suavize
o peso de suas afirmações13.
Mesmo como membro da Academia Real de Ciências, em Paris,
a partir de 1728, fez um caminho em certa medida solitário14, embora
habilidoso e bem-sucedido. Esse esforço impendia ser realizado atra-
vés da ciência. Por isso, não deixa de ser elucidativo o Discurso sobre os
motivos que nos devem encorajar às ciências (1725), no qual discorre sobre
o papel da ciência para o progresso do espírito humano e os motivos
pelos quais se deve dedicar a ela15. Assim, mais do que satisfazer uma
curiosidade individual, Montesquieu queria compreender e, para tanto,
parte sozinho rumo ao desconhecido. A sua grande obra, O espírito das
leis (1748), é o aporte de ideias que ele sabe serem novas, descobertas
sem um mestre como referencial16. Por isso, a frase das Metamorfoses de
Ovídio “Prolem sine matre creatam” (Filho criado sem mãe) é empregada
como epígrafe. Nele, tem por objeto a compreensão da “infinita diversi-
dade das instituições humanas em todos os tempos e em todos os luga-
res”. Dessa forma, em posição diversa dos contratualistas, entende ser
“ridículo” começar pelas origens da sociedade, nascida de um pacto ou
contrato, pois ela precede a si mesma17. A sociedade é um “fato da natu-
reza”, existindo mesmo com um pai e um filho18.
Ademais, adota um método novo. Segundo Althusser, ele conhe-
ce apenas os fatos, não pretende descobrir um ideal, um fim nas socie-

13
Como a crítica dirigida a Luís XIV em Cartas persas, romance escrito em forma de epístolas: “O rei
de França é velho, e não há exemplo nos nossos anais de monarca que haja reinado tanto tempo. (...)
Estudei o seu caráter e achei nele contradições que não posso conciliar: por exemplo, tem um minis-
tro de dezoito anos e uma amante de oitenta; é afeiçoado à sua religião, e não tolera os que dizem
que é necessário guardar os seus mandamentos; foge do bulício das cidades, deixa-se ver pouco, e
desde pela manhã até à noite só se ocupa em que falem dele; gosta dos troféus e das vitórias, e as-
susta-o tanto ver um bom general à frente das suas tropas como deveria tremer de vê-lo à frente de
um exército inimigo. Creio que só a ele lhe tenha sucedido possuir mais riquezas que todas quantas
podia esperar um príncipe, e gemer acabrunhado por uma pobreza que num simples particular
seria intolerável”. MONTESQUIEU. Cartas persas, XXXVII. Cf. p. 84-85.
14
Inobstante a colaboração para a Encyclopédie, no final da vida, com o texto Ensaio sobre o gosto. Cf.
SANTOS, Antônio Carlos dos. A Filosofia e o filosofar francês no século XVIII. cit., p. 87.
15
DESGRAVES, Louis. Montesquieu. cit., p. 98-99.
16
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. Paris: PUF, 1992. p. 7-8.
17
Id., ibid., p. 26; GOYARD-FABRE, Simone. Montesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. Paris: PUF,
1993. p. 90.
18
MONTESQUIEU. Cartas persas, XCIV. Cf. p. 171. Este ponto será detalhado no próximo tópico.
198 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

dades humanas. Julga o que é, não o que deve ser19, a despeito de, por
vezes, aparentar o contrário. Montesquieu supõe ser possível aplicar à
política e à história a metodologia newtoniana20, quer dizer, tirar a uni-
dade e a constância da diversidade e da mutabilidade das instituições
humanas, das relações imanentes aos fenômenos, por meio da pesquisa
e da comparação21. Conquanto não tenha ele próprio concebido a ideia
de uma “física social”, foi pioneiro em partir dos fatos para construir a
ciência política22 e, como quer Durkheim, em entrever as condições ne-
cessárias para o estabelecimento das ciências sociais23.
Para o êxito dessa empreitada, foi-lhe preciso afastar as perspec-
tivas religiosas e morais, pertencentes a outras ordens, cada qual do-
tada de suas próprias leis. Para investigar as sociedades é imprescin-
dível partir dos elementos interiores que comandam as suas formas e
naturezas. Assim, afirma a autonomia do político como tal24. Os embates
de Montesquieu com a religião são causa e consequência desta postura.
Para Ehrard, na Dissertação sobre a política dos romanos sobre a religião eco-
am os efeitos da Revocação e as querelas em torno da bula Unigenitus25,
em que o rei francês é criticado pela influência demasiada da Igreja por
meio do retorno aos romanos, felicitados por terem feito a “religião para
o Estado” e não “o Estado para a religião”26. Para Starobinski, embora
autodeclarado cristão respeitoso, quer analisar a fé como objeto de co-
nhecimento, e não mais tê-la como fundamento do saber. Entre os dois

19
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 27.
20
Na obra Philosophiae naturalis principia mathematica, publicada pela primeira vez em 1687, Newton
formulou as regulae philosophandi, princípios metodológicos para guiar os raciocínios sobre as coisas
naturais. Filosofia Natural, o estudo das coisas naturais, é o que se desenvolveu e se tornou as ciên-
cias naturais nos séculos seguintes. HARPER, William H. Isaac Newton’s Scientific Method: Turning
Data into Evidence about Gravity and Cosmology. Oxford: Oxford University Press, 2011. p. 170.
21
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 32.
22
Ibid., p. 15; MONTESQUIEU. O espírito das leis, Prefácio. Cf. p. 5-7.
DURKHEIM, Émile. Montesquieu e Rousseau: pioneiros da Sociologia. Trad. Julia Vidili. São Paulo:
23

Madras, 2008. p. 15.


24
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 17-18.
25
A Revocação ou revogação do Édito de Nantes em 1685, pelo Rei Luís XIV, por meio do Édito de
Fontainebleau, que garantia aos calvinistas franceses (huguenotes) a liberdade religiosa desde 1598,
embora a França mantivesse a fé católica como religião oficial do Estado. Já a bula Unigenitus, de
1713, promulgada pelo papa Clemente XI, condenou 101 proposições de Pasquier Quesnel em sua
obra Abregé de la morale de l’Evangile (1671), em virtude de sua natureza jansenista. O jansenismo
foi um movimento teológico católico originário da França e acusado de apresentar teor próximo ao
calvinismo, desenvolvido a partir de obra do holandês Cornelius Jansen.
26
EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. Paris: Armand Colin, 1965. p. 12.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 199

mundos, opta por este, onde se vive, morre e nada dura27. Esta postura o
levará a ser acusado de espinosismo, jansenismo, deísmo e ateísmo por
sua magnum opus, das quais tentará rebater em Defesa do Espírito das Leis.
No referido texto, afirma ter redigido obra de pura política e de pura ju-
risprudência”28, sendo recriminado por quem “nunca entende o sentido
das coisas e se prende a palavras”29.
Vejamos agora como Montesquieu desenvolve algumas de suas
principais concepções.

2. As leis

Montesquieu inicia O espírito das leis declarando ter examinado


primeiramente os homens e constatado que, “na infinita diversidade de
leis e de costumes eles não eram conduzidos somente por suas fanta-
sias”. Então, ao desvendar os princípios, viu “os casos particulares do-
brarem-se diante deles como que por si mesmos” e percebeu as histórias
das nações como consequências desses princípios30.
As leis, no sentido mais amplo, são “as relações necessárias que
derivam da natureza das coisas”31. Todos os seres têm suas leis, de Deus
aos homens, pois relacionam entre si; “a legalidade é universal”32. Há
leis que expressam os movimentos da matéria que constitui o mundo,
relações entre termos variáveis, de modo que “cada diversidade é uni-
formidade, cada mudança é constância”33. Assim, em um universo no qual
não há fatalidade cega, nem pura sorte ou mera contingência, há uma
razão primitiva que dá ao mundo sua ordem unitária34 e, em última ins-
tância, “a lei de todas as leis é ainda uma lei, a saber, a forma relacional
na qual ela liga todas as leis à ordem do mundo”35.

27
STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. cit., p. 52-53.
28
MONTESQUIEU. Defesa do espírito das leis. Cf. p. 711.
29
Ibid., p. 714.
30
MONTESQUIEU. O espírito das leis, Prefácio. Cf. p. 5.
31
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 1. Cf. p. 11.
32
GOYARD-FABRE, Simone. Montesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. Paris: PUF, 1993. p. 69.
33
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 1. Cf. p. 11-12. Sobre Deus também estar submetido a leis:
“Deus possui uma relação com o universo, como criador e como conservador: as leis segundo as
quais criou são aquelas segundo as quais conserva. Ele age segundo estas regras porque as conhe-
ce; conhece-as porque as fez, e as fez porque elas possuem uma relação com sua sabedoria e sua
potência”.
34
GOYARD-FABRE, Simone. Montesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. cit., p. 70.
35
Ibid., p. 96.
200 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

Os seres inteligentes podem elaborar e seguir as suas próprias


leis. Entretanto, também estão submetidos a leis que não elaboraram.
Antes mesmo de existirem, eles eram possíveis, logo, possuíam “rela-
ções possíveis e, consequentemente, leis possíveis”, o que significa ainda
a presença de “relações de justiça possíveis”36. O homem, como ser físi-
co, é regido por leis invariáveis; como ser inteligente, “viola incessante-
mente as leis que Deus estabeleceu e transforma aquelas que ele mesmo
estabeleceu”:

Deve orientar a si mesmo e, no entanto, é um ser limitado; está


sujeito à ignorância e ao erro, como todas as inteligências fini-
tas; quanto aos parcos conhecimentos que possui, ainda está
sujeito a perdê-los. Como criatura sensível, torna-se sujeito a
mil paixões. Tal ser poderia, a todo instante, esquecer-se de
seu criador; Deus chamou-o a si com as leis da religião. Tal ser
poderia, a todo instante, esquecer-se de si mesmo; os filósofos
advertiram-no com as leis da moral. Feito para viver em so-
ciedade, poderia nela esquecer-se dos outros; os legisladores
fizeram-no voltar a seus deveres com as leis políticas e civis.37

Com efeito, como destaca Goyard-Fabre, em vez de enfatizar,


numa perspectiva agostiniana, os males gerados pelo amor dirigido a
si mesmo, em vez de reservá-lo para Deus, “Montesquieu insistiu so-
bre a natureza limitada da inteligência, assim exposta ao erro, e sobre
as iniciativas tomadas pela vontade, às vezes de maneira intempestiva,
comprometendo-se fora da ordem universal”38.
As leis naturais são aquelas que “derivam unicamente da cons-
tituição de nosso ser” e somente podem ser bem compreendidas ao se
considerar o homem antes do estabelecimento das sociedades39. Nesse
sentido, quatro são as leis naturais: a primeira imprime no homem a
ideia de um criador e o leva em sua direção; a segunda é a procura da
alimentação, seguidas da reprodução e do desejo de viver em socieda-
de. É possível perceber que sociabilidade e conservação são as ideias
a moverem o homem no estado de natureza. Ao contrário de Hobbes,

36
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 1. Cf. p. 12. Sobre as relações de justiça possíveis, segue afir-
mando: “Dizer que não há nada de justo ou de injusto além daquilo que as leis positivas ordenam
ou proíbem é dizer que antes de se traçar o círculo todos os raios não são iguais.”
37
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 1. Cf. p. 13.
38
GOYARD-FABRE, Simone. Montesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. cit., p. 76. (Tradução nossa).
39
O que não quer dizer que mencione a ideia do pacto social como condição de possibilidade da
realidade social e política, como analisado no tópico anterior. V. GOYARD-FABRE, Simone. Mon-
tesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. cit., p. 91-92.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 201

entende que todos se sentem inferiores e, “no limite, cada um se sente


igual aos outros”; logo, não buscariam atacar, mas a paz. “O desejo que
Hobbes atribui em primeiro lugar aos homens de subjugarem-se uns aos
outros não é razoável”: império e dominação são ideias compostas, de-
pendentes de outras ideias ainda não concebíveis em um primeiro mo-
mento; ele atribui aos homens no estado de natureza aquilo que somente
seria possível após o estabelecimento da sociedade e, então, daria ensejo
ao ataque e à proteção40. Na Defesa, assume a investida contra Hobbes,
cujo “sistema terrível” faz com que todas as virtudes e todos os vícios
dependam do estabelecimento das leis que os homens fizeram para si41.
Desse modo, Montesquieu trata do estado de natureza apenas em se-
gundo plano, não é seu ponto de partida, como entre os contratualistas.
A igualdade original é perdida com a formação da sociedade e
apenas é restabelecida com as leis positivas42, dadas pelo homem a si
mesmo. De fato, o fim do estado de natureza gera dois tipos de estado de
guerra, entre as sociedades e entre os particulares que as compõem43. As
leis positivas são então criadas para assegurar o respeito às leis naturais,
de acordo com Bobbio44. Já Althusser aponta que, quando tratadas como
dever-ser, as leis positivas são correções propostas à consciência huma-
na errante pela consciência científica, sem mirar um ideal a ser atingido;
por outro lado, existem precisamente em razão do erro humano, da ca-
pacidade de insubmissão, o que pode levar a concluir que “a margem
de dever-ser das leis não concerne, como antes, à distância que separa
o inconsciente humano da consciência das leis, ela concerne à condição
humana”45.
As leis positivas assumem muitas formas. Podem ser de direito
das gentes quando há leis para as relações entre diferentes povos, natu-
ralmente baseadas, em todas as nações, nos princípios de que “devem
fazer umas às outras, na paz, o maior bem e, na guerra, o menor mal

40
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 2. Cf. p. 14-15.
41
MONTESQUIEU. Defesa do espírito das leis. Cf. p. 713.
42
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 3. Cf. p. 123.
43
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 3. Cf. p. 15. Starobinski reflete que, para Montesquieu,
“quando os homens deixam a solidão para associar-se, não encontram a ordem, mas a guerra. E
que fazer então para reprimir a violência? Leis. (…) Portanto, o que liberta os homens da violência
é a lei. De modo que Montesquieu poderá afirmar que a liberdade é a lei. A função do direito, que
submete os homens a seu dever, consiste em reprimir a guerra e a violência.” STAROBINSKI, Jean.
Montesquieu. cit., p. 86.
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Trad. Sérgio Bath. 10. ed. Brasília: Editora da
44

UnB, 2001. p. 128.


45
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 36-39.
202 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

possível, sem prejudicar seus verdadeiros interesses”; e de que “o ob-


jetivo da guerra é a vitória; o da vitória, a conquista; o da conquista, a
conservação”46. As leis podem também ser de direito político quando os
homens são considerados como membros de uma sociedade que deve
ser mantida e existem leis na relação entre governantes e governados.
Uma sociedade não poderia subsistir sem um governo e o estado políti-
co é, precisamente, a reunião de todas as forças particulares, força geral,
que pode ser depositada nas mãos de um só ou de vários47. Finalmente,
as leis podem ser de direito civil quando os homens, como cidadãos, pos-
suem relações entre si regidas por leis. As forças particulares não podem
reunir-se sem que todas as vontades se congreguem, reunião esta que é
o estado civil.
Outrossim, no livro XXVI, assinala outras ordens que governam
os homens, como as leis de direito divino, direito eclesiástico ou canôni-
co, direito de conquista e direito doméstico. Montesquieu defende o res-
peito às diversas ordens e é particularmente incisivo quanto à separação
entre leis humanas e divinas, inadmitindo intervenção destas em maté-
rias daquela: as leis humanas são variáveis, no sentido de estarem sub-
metidas a diversos tipos de acidentes e serem modificadas segundo as
vontades humanas, legislam sobre o bem, sua força provém do temor e
sua vantagem está na novidade. A “sublimidade da razão humana con-
siste em saber a qual destas ordens estão principalmente relacionadas as
coisas sobre as quais se deve legislar, e em não confundir os princípios
que devem governar os homens”48. Ou ainda, “as leis são feitas para
anunciar as ordens da razão àqueles que não podem recebê-las imedia-
tamente dela”49.
Em suma, Montesquieu sintetiza que “a lei, em geral, é a razão
humana, enquanto governa todos os povos da terra”. As leis políticas e
civis são apenas casos particulares nos quais se aplica esta razão, pró-
prias a cada povo para o qual foram feitas. Portanto, devem correspon-
der à natureza e ao princípio do governo que foi ou será estabelecido,
seja para formá-lo (leis políticas), seja para mantê-lo (leis civis). Ade-
mais, devem ser compatíveis com os aspectos físicos (clima, geografia)

46
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 3. Cf. p. 15.
47
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 3. Cf. p. 15-16.
48
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XXVI, 1-2. Cf. p. 501-502.
MONTESQUIEU. Pensées, 208. Cf. Pensées et fragments inédits de Montesquieu. Tomo I. Bordeaux: G.
49

Gounouilhou, 1899. p. 105-106. (Tradução nossa).


Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 203

e morais (religião, costumes, modos) de cada país50. Enfim, as leis po-


sitivas possuem relações entre si, com sua origem, com o objetivo do
legislador, com a ordem das coisas sobre as quais foram estabelecidas.
Montesquieu quer, justamente, examinar todas essas relações que, jun-
tas, formam o “espírito das leis”.
Uma constatação já pode ser feita sobre a originalidade do pen-
samento de Montesquieu. Segundo Goyard-Fabre, as leis positivas, en-
quanto prescrição, não podem ser estranhas à realidade que exprimem
as leis da natureza; “o fato e o direito devem se corresponder e, na nor-
matividade das leis, devem refletir a ordem do mundo que exprimem
(...) as leis científicas da natureza”. As leis exprimem, “horizontalmen-
te”, as relações entre os diversos seres e, ao mesmo tempo, exprimem,
“verticalmente”, as relações entre os diferentes seres e a razão primitiva
do Deus criador. Em suma, “o espírito das leis” é essa conjunção entre
relatividade e universalidade51.
Eis evidenciado o caráter ambicioso da obra. Compreender o
“espírito das leis” significa conhecer a totalidade da vida dos homens52.
Nesse caminho, o Senhor de La Brède reconhece o Estado como totalida-
de real, unidade interna expressa necessariamente nas instituições, na
legislação e nos costumes. Inobstante não tenha sido o primeiro a assim
pensar, vide Platão e Hobbes, a totalidade como ideia torna-se com ele
uma hipótese científica destinada a ser comprovada nos fatos. Por isso,
um governo não é uma forma pura, mas a forma de existência concreta
de uma sociedade de homens, o que se pode notar pela exposição dos
modelos puros sempre acompanhada de exemplos impuros53 e como
podem se corromper, o que se verá a seguir.

3. Panorama das formas de governo

Como visto, Montesquieu acredita que as leis possuem relação


necessária com as formas de governo; assim, em sua obra principal, par-
te para o exame dessas conexões com as diversas naturezas e princípios.
A natureza refere-se à quantidade de pessoas que detém o poder sobera-
no. Reformulando o conteúdo da tipologia clássica54, o filósofo bordelês

50
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 3. Cf. p. 16-17.
51
GOYARD-FABRE, Simone. Montesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. cit., p. 98.
52
MONTESQUIEU. Defesa do Espírito das leis. Cf. p. 726.
53
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 48; 46 e 50.
54
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. cit., p. 130.
204 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

declara que um governo é republicano se o povo, em seu conjunto ou em


parte, governa; é monárquico se apenas um governa, mas através de leis
fixas e estabelecidas; é despótico se um só governa, sem lei e sem regra,
impondo tudo por força de sua vontade e de seus caprichos55. A natu-
reza é o que faz ser como é; é sua estrutura particular56. O princípio, por
sua vez, é o que faz o governo agir, expressa as paixões humanas que o
movimentam57: na república, a virtude; na monarquia, a honra; no des-
potismo, o temor. Isso não significa que em certo governo efetivamente
esteja presente um desses princípios, mas sim que, para ser perfeito, se-
ria necessário tê-los58.
Por governo republicano Montesquieu denomina tanto a demo-
cracia quanto a aristocracia. Na democracia, o povo é monarca, pois pelo
sufrágio expressa a sua vontade, e, inversamente, é súdito, pois gover-
nado. Por isso, a regulamentação do sufrágio e a atribuição exclusiva do
poder legiferante ao povo são leis fundamentais. Todavia, são necessá-
rios magistrados e um senado ou conselho responsáveis pela condução
dos negócios públicos. De fato, o povo sabe escolher os mais bem prepa-
rados segundos seus méritos, mas não consegue administrar porquanto
incapaz de agir conforme o movimento harmonioso do qual dependem
os negócios59. O princípio da democracia é a virtude, posto que quem
executa as leis também está submetido a elas60; não uma virtude moral
ou cristã, mas de “amor à pátria”, “virtude política”61, sentimento tra-
duzido em amor à igualdade e à frugalidade, pois, numa democracia,
“cada um deve possuir a mesma felicidade e as mesmas vantagens”, se-
gundo estabelecido pelas leis62. A democracia corrompe-se por dois ex-
cessos, a desigualdade ou a igualdade extrema. Por esse último, o povo,
“não podendo suportar o próprio poder que delegou, quer fazer tudo
sozinho, deliberar pelo senado, executar pelos magistrados e despojar

55
MONTESQUIEU. O espírito das leis, II, 1. Cf. p. 19.
56
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III,1. Cf. p. 31.
57
Idem. Sobre as “paixões” da tipologia platônica, ver BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de go-
verno. cit., p. 133.
58
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III, 11. Cf. p. 40.
59
MONTESQUIEU. O espírito das leis. II, 1-2. Cf. p. 19-23: “Mas o povo sempre tem ação de mais ou
de menos. Algumas vezes, com cem mil braços ele derruba tudo; outras vezes, com cem mil pés,
só caminha como os insetos.”; CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a
nossos dias. Trad. Lydia Cristina. 8. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1999. p. 128.
60
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III, 4. Cf. p. 32-34.
61
MONTESQUIEU. O espírito das leis, Advertência do autor. Cf. p. 3.
62
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 4-5. Cf. p. 55-56.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 205

todos os juízes”. Em suma, quanto maiores as vantagens que o povo


parece “estar tirando de sua liberdade, mais ele estará aproximando do
momento em que deve perdê-la”63.
A aristocracia é a forma de governo em que o poder soberano
está nas mãos de um certo número de pessoas, às quais cabem elaborar
as leis e mandar executá-las. Na melhor aristocracia, a parte do povo
que não tem participação no poder é tão pequena e pobre que não há
interesse em oprimi-la pela parcela dominante, e na mais imperfeita, “a
parte do povo que obedece se encontra na escravidão civil daquela que
manda”64. O princípio também é a virtude, porém, uma vez que o povo
está contido pelas leis, carece menos dela. De todo modo, os nobres que
fazem executar as leis, por impor inclusive aos seus colegas e, assim,
sentirem-se como agindo contra si próprios, devem ser virtuosos. Isso
quer dizer que os nobres devem ser iguais entre si, mas não iguais a todo
o povo65. Ou seja, a alma dos governos aristocráticos é a moderação,
a orientar leis que preservem certa igualdade numa constituição que a
suprime necessariamente66. A aristocracia é corrompida quando o poder
dos nobres torna-se arbitrário, o governo é mantido apenas para e entre
eles, gerando profunda desunião entre os corpos políticos67.
A monarquia, por sua vez, é a forma de governo mais adequada
aos impérios modernos, no qual um só governa, segundo leis funda-
mentais68. O príncipe é a fonte de todo o poder político e civil, mas está
atrelado a regras que “supõem necessariamente a existência de canais
médios por onde flui o poder”. Logo, não pode externalizar vontade

63
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 1-4. Cf. p. 121-124.
64
MONTESQUIEU. O espírito das leis, II, 3. Cf. p. 23-26.
65
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III, 4. Cf. p. 34.
66
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 8. Cf. p. 62-65.
67
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 5. Cf. p. 124-125. Note-se que a ideia de república é nos-
tálgica. Com dimensões pequenas, em seu tempo, as repúblicas italianas são exemplos decadentes.
Como afirma Althusser, a “república verdadeira, Roma, Esparta ou Atenas, pertencem ao passado;
não é uma realidade atual, mas, no máximo, uma grande lembrança”. ALTHUSSER, Louis. Montes-
quieu: la politique et l’histoire. cit., p. 21; MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 20. Cf. p. 134-135;
CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. cit., p. 130.
68
Como observa Aron, sobretudo na primeira metade do século XVIII, a grande querela dos escri-
tores políticos franceses era marcada pela teoria da monarquia e a situação da aristocracia nessa
forma de governo. Os posicionamentos eram divididos entre os romanistas, que defendiam ser a
monarquia francesa descendente do Império Romano e, assim, justificavam as pretensões ao abso-
lutismo; e os germanistas, que pregavam que a posição privilegiada da nobreza francesa decorria da
conquista pelos francos. Montesquieu estaria filiado à segunda corrente, mas com reservas, como se
nota pela presença dos corpos intermediários e o lugar em que lhes coloca. ARON, Raymond. As
etapas do pensamento sociológico. Trad. Sérgio Bath. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 48-50.
206 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

caprichosa e momentânea, pois refreada pelos corpos intermediários,


subordinados e dependentes, a saber, a nobreza e o clero, e pelas leis
fundamentais, como a que rege a sucessão do trono. De fato, os corpos
sozinhos não são suficientes, demandando um “depósito das leis”, res-
ponsável por anunciar as leis elaboradas e relembrá-las quando esque-
cidas69. O governo monárquico subsiste independentemente da virtude,
substituída pela lei, embora não excluída. O princípio é a honra, ou seja,
“o preconceito de cada pessoa e de cada condição”, conforme “prefe-
rências e distinções” garantidas pelas leis70. Ela move o corpo político
por meio da crença de realização dos interesses particulares quando,
na prática, concretiza o bem comum. Portanto, é uma “falsa honra” que
conduz todas as partes do Estado, “tão útil para o público quanto o se-
ria a verdadeira honra para os particulares que poderiam possuí-la”71.
A monarquia é mais célere na execução, vez que conduzida por uma
só pessoa, “o Estado é mais fixo, o regime mais inabalável, a pessoa de
quem governa mais garantida”72. Contudo, corrompe-se quando supri-
midas as prerrogativas dos corpos intermediários. O príncipe deixa de
respeitar a ordem das coisas e reduz tudo a si mesmo: “chama o Estado
para sua capital, a capital para sua corte e a corte para sua pessoa”73. Em
síntese, a monarquia é um governo moderado em razão de condições so-
ciais fixas e estáveis, as ordens dos privilégios que impedem os excessos
do príncipe e são dele protegidas pela honra74. Desta feita, o grande pro-
blema é passar de um governo moderado para um governo despótico, o
que é possível até mesmo entre os povos da Europa75.
Precisamente por isso, a última forma é o despotismo, governo de
um só, sem leis fundamentais, típico do Oriente. O príncipe fica imer-
so na satisfação de prazeres e volúpias, desatentando-se dos negócios
públicos, então delegados a um vizir, sendo esta a única lei fundamen-

69
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III, 4-5. Cf. p. 26-28; ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la po-
litique et l’histoire. Paris: PUF, 1992. p. 72. Segundo Chevallier, este ofício caberia ao parlamento.
CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas de Maquiavel a nossos dias. cit., p. 132.
70
Para Voltaire, a honra é mais necessária na república, enquanto a monarquia precisa de virtude.
Cf. VOLTAIRE. Dicionário filosófico. Trad. Ciro Mioranza e Antonio Geraldo da Silva. São Paulo:
Escala, 2008. p. 250.
71
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III, 5-7. Cf. p. 35-37. Ademais, como questiona Montesquieu,
“não é muito obrigar os homens a realizarem todas as ações difíceis, que demandam força, sem
outra recompensa além do alarde destas ações?”.
72
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 10-12. Cf. p. 67-69.
73
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 6-8. Cf. p. 125-127.
74
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 81.
75
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 8. Cf. p. 127.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 207

tal76. Em geral, são grandes impérios e, quanto maiores, mais o prínci-


pe embriaga-se de prazeres e abandona os negócios, embora mais estes
existam e demandem governo77. O princípio do governo despótico não
é a honra, pois todos os homens são iguais, mas como escravos, e sim o
temor, que acaba “com todas as coragens” e apaga “o menor sentimen-
to de ambição”. Não pode o príncipe cessar as ameaças por um único
momento e sequer ser obrigado a manter a palavra ou juramento. Em
contrapartida, requer extrema obediência e a produção infalível de efei-
tos da sua vontade, pois o tempo do despotismo é o instante78. Apenas
os preceitos religiosos podem fazer frente ao príncipe, em razão de sua
natureza superior79, servindo como espécie de depósito de leis e perma-
nência. “Quando os selvagens da Louisiana querem ter frutas, cortam a
árvore e apanham a fruta. Eis o governo despótico”80. Nele não há glória
nem grandeza; existindo o temor, para povos “tímidos, ignorantes, aba-
tidos, não se precisa de muitas leis”81. Logo, a política e as leis são limita-
das, o governo político é tão simples quanto o governo civil, quer dizer,
não conhece estrutura político-jurídica e social82. Ninguém é soberano
de direito, apenas de fato83.
Embora característico dos climas quentes, o despotismo submete
a maioria dos povos. Isso porque, para formar um governo moderado,
devem ser combinados, regulados e temperados os poderes, enquanto
para um governo despótico, basta as paixões, nas quais “todos são bons
para isso”84. A mudança ocorre em qualquer governo, seja porque pro-
vocado, seja porque desenvolve os próprios germes da degeneração85. A
corrupção do governo despótico é incessante, pois naturalmente perver-

76
Para Althusser, mera aparência de lei política. ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et
l’histoire. cit., p. 84.
77
MONTESQUIEU. O espírito das leis, II, 5. Cf. p. 28-29.
78
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 88.
79
MONTESQUIEU. O espírito das leis, III, 8-10. Cf. p. 37-40.
80
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 13. Cf. p. 69.
81
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 14. Cf. p. 69.
82
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 87.
83
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 14-15. Cf. p. 70-75: “Nestes Estados não se conserta, não
se melhora nada. Só se constroem casas para a vida, não se fazem fossos, não se plantam árvores;
tira-se tudo da terra e não se lhe devolve nada; tudo está inculto, tudo é deserto”.
84
MONTESQUIEU. O espírito das leis, V, 14. Cf. p. 74.
SANTOS, Antônio Carlos dos. A via de mão dupla: tolerância e política em Montesquieu. Ijuí: Ed.
85

Unijuí; Sergipe: EDUFS, 2006. p. 152.


208 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

tido, por inelutável vício interior86.


Como lembra Bobbio, o despotismo de Montesquieu correspon-
de à tirania, forma corrompida na tipologia clássica87, mas, conquanto
a datar de Aristóteles viesse sendo tratada pelos pensadores políticos,
somente com o Senhor de La Brède tornou-se fundamental para a aná-
lise das sociedades políticas88. Ao menos desde as Cartas persas Mon-
tesquieu manteve o interesse em explorar e criticar esta modalidade de
organização política, ocasião em que, segundo a interpretação tradicio-
nal, era uma alegoria para criticar o absolutismo francês. Assim, embora
argumente ser governo típico do Oriente89, o interesse está, justamente,
em identificá-lo na Europa, a partir do modelo oriental, associando-o às
monarquias absolutas. Segundo Althusser, o despotismo é “uma ideia
do político, a ideia do mal absoluto, a ideia do limite mesmo do político
como tal”90. Essa conotação negativa contrasta com o ar positivo dado
por alguns contemporâneos de Montesquieu, defensores do “despotis-
mo esclarecido”91. Porém, para ele, um governo em que a liberdade está
ausente não pode ser aceito.
Sendo a corrupção inerente a todas as formas de governo, inicia-
-se pela degeneração do princípio. Com isso, “as melhores leis tornam-se
más e se voltam contra o Estado”92. Como então conservar o princípio?
Um dos modos é a manutenção da grandeza original do Estado93. Assim
também a educação, cujas leis variam conforme as formas de governo.
Voltadas à preparação dos cidadãos, devem ter por objeto os princípios,
incutindo a virtude, a honra ou o temor94.
Inobstante claramente se incline em favor da monarquia como
a melhor forma de governo, Montesquieu deixa claro que o governo
perfeito, ainda que não concretizado historicamente, é aquele mais con-
86
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 10. Cf. p. 128.
87
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. cit., p. 130-131.
88
Ibid., p. 139.
89
Segundo Bobbio, essa identificação do despotismo com o despotismo oriental perdurará, ao me-
nos até o século XIX, como se verá até em Hegel. Cf. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de
governo. cit., p. 141; HEGEL, Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Trad. Maria Rodrigues e Hans
Harden. 2. ed. Brasília: Editora UnB, 2008. p. 105-190.
90
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 83.
91
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. cit., p. 142-144. V. também FORTES, Luiz Ro-
berto Salinas. O Iluminismo e os reis filósofos. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Sobre Montesquieu,
p. 30-40).
92
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 11. Cf. p. 128.
93
MONTESQUIEU. O espírito das leis, VIII, 20. Cf. p. 134-135.
94
MONTESQUIEU. O espírito das leis, IV, 1. Cf. p. 41.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 209

forme à natureza. E essa conformidade ocorre quando o governo tem


uma disposição particular que “se relaciona melhor com a disposição do
povo para o qual foi estabelecido”95. Somente assim um governo terá leis
que lhe são adequadas.

3.1 Separação de poderes

Em cada Estado existem três espécies de poder: “o poder legis-


lativo, o poder executivo das coisas que dependem o direito das gentes
e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil”. Com o
primeiro, o chefe de estado ou o magistrado cria suas leis, bem como
anula ou corrige leis anteriores. Pelo segundo, ele “faz a paz ou a guerra,
envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previne invasões”. Já
o terceiro é identificado como o poder pelo qual o Estado “castiga os cri-
mes ou julga as querelas particulares”, por isso chamado simplesmente
de “poder de julgar”96.
Erroneamente associada pelo senso comum às repúblicas demo-
cráticas, tais funções são encontradas em todos os tipos de governo ana-
lisados por Montesquieu. O que difere uma forma de governar da outra,
portanto, não é uma diferença numérica, mas o modo – concentrado ou
separado – pelo qual tais poderes são exercidos. Governos despóticos
concentram no mesmo corpo o poder legislativo, executivo e judiciário.
O poder se torna uno; assim, “o mesmo corpo de magistratura possui,
como executor das leis, todo o poder que se atribuiu como legislador”97.
Inexistem obstáculos ao déspota, e não há força capaz de proteger os
súditos de seu arbítrio:

Quando, na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistra-


tura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não
existe liberdade; porque se pode temer que o mesmo monarca
ou o mesmo senado crie leis tirânicas para executá-las tirani-
camente. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não
for separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse
unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade
dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se es-
tivesse unido ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de
um opressor. Tudo estaria perdido, se o mesmo homem, ou o

95
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 3. Cf. p. 16.
96
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 167-168.
97
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 168-169.
210 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exer-


cesse os três poderes98.

Não importa o segmento social: quando o poder se encontra con-


centrado numa única esfera, haverá, invariavelmente, tirania. Apenas
quando as autoridades legislativas, executivas e judiciárias são exerci-
das por entidades diferentes, torna-se possível a preservação das liber-
dades políticas individuais.
Resta evidenciada a necessidade de um sistema tripartite, no
qual o exercício de cada um dos poderes seja distribuído a instâncias
organicamente distintas, cada qual dotada de atribuições específicas.
Tal divisão deve ser rigorosamente respeitada, sendo defeso que uma
instituição interfira na esfera de atuação das demais, razão pela qual o
sistema ficou conhecido por seus “freios e contrapesos”. Ademais, ape-
nas um sistema legal poderoso, estável por si, seria capaz de conferir a
independência funcional dos três poderes, de modo a permitir que se
mantenham perfeitamente distintos e sempre constantes.
Conforme magistério de Goyard-Fabre, a atuação dos três pode-
res se dá em caráter cooperativo, dada sua complementariedade, o que
confere estabilidade ao exercício do poder: “Tal ‘balança’ das instâncias
governamentais, estabelecida sob a Constituição e no respeito das for-
mas legais, impede não apenas os desvios que ocasionariam as invasões
de competência de um órgão institucional no outro, mas também os
abusos ou descaminhos de poder99.
A seu turno, Annelien de Dijn ressalta o caráter competitivo da se-
paração de poderes em Montesquieu. Reconhecendo que o exercício do
poder possui tendência natural a expandir-se, o sistema de freios e con-
trapesos funciona pelo fato de que cada um dos três poderes, separados
em corpos sociologicamente diferentes, procura atender aos seus pró-
prios interesses, sendo então refreado pelo mesmo desejo de expansão
contido nos outros poderes. É justamente a tensão de interesses opostos
que gera o equilíbrio no interior de um Estado100. Neste sentido afirma
Montesquieu estarem os poderes presos entre si, “concertadamente”.
Vejamos:

98
Idem.
99
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. cit., p. 240-241.
DE DIJN, Annelien. French political thought from Montesquieu to Tocqueville: Liberty in a Levelled
100

Society? cit., p. 25.


Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 211

Eis então a constituição fundamental do governo de que fala-


mos. Sendo o corpo legislativo composto de duas partes, uma
prende a outra com sua mútua faculdade de impedir. Ambas
estarão presas ao poder executivo, que estará ele mesmo preso
ao legislativo. Estes três poderes deveriam formar um repou-
so ou uma inação. Mas, como, pelo movimento necessário das
coisas, eles são obrigados a avançar, serão obrigados a avançar
concertadamente101.

O autor não se limita a constatar a necessidade de separação dos


poderes de Estado, dispondo também sobre a sua organização ideal.
Neste ponto, torna-se ainda mais evidente as fontes de inspiração de
Montesquieu, por ele analisadas, a saber, a República romana, no qual
o poder era dividido entre o povo, o senado e os magistrados102; e, con-
temporaneamente, a Inglaterra103. Com o intuito de construir um gover-
no apto a assegurar a liberdade de seus cidadãos, seria necessário, por
exemplo, que o poder judiciário fosse composto por “pessoas tiradas do
seio do povo, em certos momentos do ano, da maneira prescrita pela
lei, para formar um tribunal que só dure o tempo que a necessidade
requer”104, ao invés de um corpo de membros permanente, ou, ainda, de
“comissários nomeados” pelo rei105. Contra o arbítrio dos magistrados
franceses, Montesquieu opõe sua ideologia da aplicação mecanicista da
lei106, defendendo o esvaziamento do poder de julgar, função deveras
“terrível entre os homens”107.
Tais objeções não se aplicam aos outros dois poderes, vez que
não atuam de modo direto sobre os indivíduos. Antes, legislativo e
executivo apenas expressam e executam a vontade do Estado. Assim,

101
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 176.
Sobre os poderes em Roma, ver CÍCERO. De re publica, II. Cf. Da República. Trad. Amador Cisnei-
102

ros. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores). p. 163-173; POLÍBIO. História, VI. Cf. História.
Trad. Mário da Gama Kury. 2. ed. Brasília: Editora UnB, 1996. p. 325-349. V. também o tópico 4
deste artigo.
103
Sobre a Inglaterra e Montesquieu, ver DEDIEU, Joseph. Montesquieu et la tradition politique anglai-
se en France. Paris: J. Gabalda & Cie, 1909. (Sobre a viagem de Montesquieu à Inglaterra, p. 131-159;
sobre a influência de Locke, p. 160-191).
104
MONTESQUIEU. O espírito das leis. XI, 6. Cf. p. 169.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Et al.
105

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 544. É digno de nota a constatação realizada, na mesma
oportunidade, pelo penalista italiano: o autor credita ao iluminismo francês do século XVIII, e, de
modo especial, à Montesquieu, a formulação mais madura do princípio penal do juiz natural e a
proibição de juízes extraordinários.
106
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. cit., p. 43.
107
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 169.
212 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

é preferível que a composição destes poderes seja dada a magistrados


ou a corpos permanentes, especializados no exercício dessas funções108.
Embora o poder judiciário não possa ser exercido por juízes de carreira,
sendo ainda defeso que um poder exerça as funções características dos
outros dois, Montesquieu estabelece a seguinte exceção:

Se o poder legislativo deixa ao executivo o direito de pren-


der cidadãos que podem dar caução de sua conduta, não há
mais liberdade, a menos que sejam presos para responder, sem
postergação, a uma acusação que a lei tornou capital; neste
caso, estão realmente livres, já que estão submetidos apenas
ao poder da lei. Mas se o poder legislativo se acreditasse em
perigo devido a alguma conjuração secreta contra o Estado, ou
a algum entendimento com os inimigos de fora, ele poderia,
por um tempo curto e limitado, permitir ao poder executivo
mandar prender os cidadãos suspeitos, que só perderiam sua
liberdade por um tempo para conservá-la para sempre109.

Principal garantia das liberdades políticas individuais, o princí-


pio da separação dos poderes só poderia ser violado na extrema hipóte-
se da existência de conspirações contra a própria ordem legal, situação
que, caso concretizada, anularia todas as liberdades já conquistadas, im-
pulsionando o arbítrio. Exatamente por isso, restaria autorizada a breve
restrição da liberdade dos cidadãos suspeitos de conspirar contra o po-
der legislativo, “único meio conforme a razão”110 de impedir o triunfo
do despotismo.

3.2 Liberdade

“Não existe palavra que tenha recebido tantos significados e te-


nha marcado os espíritos de tantas maneiras quanto a palavra liberda-
de”111. Esta famosa passagem de O espírito das leis coloca em relevo o
lugar da liberdade no pensamento de Montesquieu.
Seguindo as palavras do filósofo, ordinariamente cada um cha-
mou liberdade segundo seus costumes e inclinações, o que levou a pre-
ponderar o seu reconhecimento nas democracias, pois nelas o povo pa-
rece fazer o que quer. Porém, isto é confundir o poder do povo com a
108
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 169.
109
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 170.
110
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 6. Cf. p. 170.
111
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 1. Cf. p. 165.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 213

liberdade. Liberdade, em sentido político, não consiste em fazer o que


se quer. “Em um Estado, isto é, numa sociedade onde existem leis, a li-
berdade só pode consistir em poder fazer o que se deve querer e em não
ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer”. Mais, “deve-se
ter em mente o que é independência e o que é a liberdade”, sendo esta
“o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão pudes-
se fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros
também teriam este poder”112. A liberdade política é liberdade sob a lei113.
Somente existe liberdade em tais moldes nos governos modera-
dos e, mesmo nestes, está presente apenas quando não se abusa do po-
der. Nesse sentido, “até a virtude precisa de limites”. Entretanto, para
que não ocorra o abuso, é necessário que “o poder limite o poder”114.
Trata-se, então, de uma liberdade formada pela disposição das leis fun-
damentais, isto é, são as leis que formam a liberdade política em sua
relação com a constituição.
Outrossim, essas leis se relacionam com o cidadão. Neste caso, a
liberdade política consiste na segurança do cidadão ou na opinião que
ele tem de sua segurança115. Isto é, liberdade definida como ausência de
temor e de preocupação, quer dizer, securitas116. Por isso, afirma que “a
única vantagem que um povo livre tem sobre outro é a segurança que
cada um goza de que o capricho de um só não lhe retirará seus bens
ou sua vida”117. Esta segurança é frequentemente atacada nas acusações
públicas e privadas, o que torna a liberdade dependente da excelência
das leis criminais, pelas quais a inocência é garantida e as penas não

112
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 2-3. Cf. p. 165-166.
113
SPECTOR, Céline. Was Montesquieu liberal? The Spirit of the Laws in the history of liberalism.
In: GEENENS, Raf.; ROSENBLATT, Helena (eds.). French Liberalism. From Montesquieu to the Pres-
ent Day. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 61; MONTESQUIEU. Pensées, 943 (2ª
parte) Apud EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. cit., p. 105: “Um ancião comparou as leis a
algumas teias de aranha que, tendo apenas a força para parar as moscas, são rompidas pelas aves.
Para mim, eu compararia as boas leis a essas grandes redes nas quais os peixes são presos, mas se
creem livres, e as más a essas redes nas quais eles são tão apertados que, a princípio, se sentem
presos.” (Tradução nossa).
114
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XI, 3. Cf. p. 166.
115
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XII, 1. Cf. p. 197.
116
Benjamin Constant declarará, décadas depois, que “o objetivo dos modernos é a segurança dos
privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a esses
privilégios”. CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Trad. Loura
Silveira. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/~luarnaut/Constant_liberdade.pdf. Acesso em
09 jun. 2016.
117
MONTESQUIEU. Pensées, 32 Apud EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. cit., p. 123. (Tradução
nossa).
214 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

são arbitrárias118. A pena deve figurar, portanto, como a consequência


lógica da conduta anterior, cujas naturezas se assemelhem. A liberdade
dos cidadãos resta assegurada apenas quando o jus puniendi estatal se vê
contido pelo primado da razão, ao invés da arbitrariedade cega119.
Desde logo, deve-se reiterar a distinção entre liberdade política e
liberdade filosófica. Esta consiste no exercício da vontade ou na opinião
que o homem tem de que exerce sua vontade120. Em seus pensamentos,
explicitou com transparência: “A liberdade pura é mais um estado filo-
sófico que um estado civil. Isso não impede que haja governos muito
bons e muito maus, e mesmo que uma constituição não seja mais im-
perfeita à medida que se afaste mais dessa ideia filosófica de liberdade
que temos”121. Ao confrontar a polissemia do termo “liberdade”, Mon-
tesquieu identifica na acepção filosófica uma natureza metafísica, abs-
trata, concernente à alma. Como transcende a realidade, recusa-a, pois
parte de conceitos apriorísticos ou apreciações subjetivas. A verdadeira
liberdade somente pode ser aquela derivada da “natureza das coisas”,
que é fato social, ou seja, liberdade política122.
Starobinski constata que, ao delimitar a liberdade “como um po-
der de infração, como uma imperfeição” do homem e de sua inteligên-
cia, no início de O espírito das leis, Montesquieu apresenta uma definição
de lei que precede a definição de liberdade. A liberdade humana é poder
de desobediência às leis invariáveis. Para limitá-la será preciso decretar
um amplo corpo de leis escritas que imponha ao homem novamente a
medida da “razão primitiva”, tarefa do legislador123.
De fato, a liberdade não é apenas faculdade de violação, mas um
“bem que faz fruir os outros bens”124, garantido, sob outra perspectiva,
118
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XII, 2-4. Cf. p. 198-199.
119
De fato, em O espírito das leis, sempre que Montesquieu alude à formulação das leis penais, espé-
cie do gênero das leis de direito político, o faz pautado no respeito às liberdades individuais. Assim,
encontramos no rol de ideias defendidas pelo iluminista o projeto de prevenção dos delitos por
meios não penais (VI, 9); a correspondência entre a natureza dos delitos e de suas respectivas penas
(XII, 4) e a impossibilidade de punição estatal contra condutas que consistam em mero sacrilégio ou
violação dos costumes (XII, 9). Não sem motivo, os princípios estatuídos pelo filósofo de Bordeaux
permanecem ainda hoje como parâmetros para a limitação do poder punitivo estatal.
120
MONTESQUIEU. O espírito das leis, XII, 2-4. Cf. p. 198-199.
MONTESQUIEU. Pensées, 943 (1ª parte) Apud EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. cit., p. 105.
121

(Tradução nossa).
122
GHORBEL, Hichem. La liberte politique chez Montesquieu. Dogma: Revue de philosophie et de
sciences humaines, jan. 2010, p. 2. Disponível em http://www.dogma.lu/pdf/HG-MontesquieuLi-
berte.pdf. Acesso em 09 jun. 2016.
123
STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. cit., p. 67-68.
124
MONTESQUIEU. Pensées, 1574 Apud EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. cit., p. 105. (Tra-
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 215

pela lei que o reinsere na ordem do mundo. Nesse sentido, Starobinski


assinala que a liberdade não seria “mais que a realização normal da le-
galidade”125. Portanto, goza de um duplo valor, como fim supremo da
atividade política e como meio pelo qual os homens podem agir (traba-
lhar, possuir e enriquecer por conta própria). Eis o que parece justificar
a caracterização de Montesquieu como um dos pais do liberalismo clás-
sico:

Essa imagem da liberdade – à qual o liberalismo moderno


pretenderá conformar-se – consagra o homem à comunidade,
apenas para devolvê-lo imediatamente a si mesmo. A lei que
acorrenta os homens no seio do Estado liberta-os com vistas a
seus interesses particulares. A afirmação do indivíduo contra-
balança a afirmação da comunidade regida pela lei. O indiví-
duo quer a lei e esta, por sua vez, quer o indivíduo. É assim que
o indivíduo tem o direito de querer a si mesmo. Mas, ao passo
que o homem violento queria a si mesmo imediatamente, o ho-
mem livre quer-se segundo a mediação da lei.126

Aliás, se a igualdade acompanhará a liberdade em um binômio


indissociável a partir da Revolução Francesa127, para Montesquieu ela
não é essencial. Tal conclusão advém não só do caráter crítico atribuí-
do à democracia, mas também da percepção positiva, principalmente,
acerca da monarquia, governo conduzido por privilegiados (rei e corpos
intermediários). Nesse sentido, se as desigualdades sempre existiram,
entende que “a ordem social é, em essência, heterogênea, e que a liber-
dade tem como condição o equilíbrio dos poderes sociais e o governo
dos notáveis”. Por isso, para Aron, o cerne da filosofia política de Mon-
tesquieu é o liberalismo128, embora um liberalismo de “contra poderes”,
embasado na ideia de moderação129.

dução nossa).
125
STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. cit., p. 88. Na sequência, afirma: “Os refinamentos do luxo e
da cultura, se não são coroados por um sistema jurídico rigoroso, nunca bastarão para definir uma
sociedade livre.”
126
Ibid., p. 97.
BALIBAR, Étienne. Equaliberty. Political essays. Trad. James Ingram. Durham: Duke University
127

Press, 2014. p. 35 et seq.


128
ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. cit., p. 49.
129
SPECTOR, Céline. Was Montesquieu liberal? The Spirit of the Laws in the history of liberalism.
cit., p. 64-65. Para Spector, Montesquieu tenta unir certos aspectos da liberdade positiva típica dos
antigos. Se defende a ausência de amarras para o homem buscar os seus interesses e, enfim, alcan-
çar a felicidade, critica o espírito de comércio que domina a Europa e, com ele, a perda do valor he-
roico, da glória e da honra. Assim, segundo ela, entre o liberalismo e um humanismo cívico ao estilo
216 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

4. História, causas e totalidade

Após o exame dos principais aspectos do Direito e da política no


pensamento de Montesquieu, resta averiguar um último, porém funda-
mental elemento componente da obra do Senhor de La Bréde: a história,
que permeia intensamente todos os principais trabalhos do autor. Neles,
diversamente da maioria dos modernos até o século XVIII, à exceção
talvez de Giambattista Vico e Jacques Bossuet, ela é alçada a um inédito
patamar de destaque, ganhando contornos originais que influenciarão
as reflexões históricas desse momento em diante.
Com efeito, principalmente a partir do oitocentos surge um am-
plo interesse pela história. Nesse contexto, a “filosofia da história”, ter-
mo cunhado por Voltaire130, nasce ou, ao menos, assume uma nova face,
decorrente da crença de que a história deveria ser escrita filosoficamen-
te, quer dizer, transcender a crônica de miscelânea de fatos por meio da
identificação das causas por trás dos acontecimentos históricos e, assim,
afirmar a superioridade do tempo presente. Em outras palavras, seria
possível extrair tendências e padrões cognoscíveis racionalmente imerso
nos múltiplos fatos do passado131.
Montesquieu esteve intrigado por essas causas desde cedo. Em
De la politique, texto elaborado em 1725, como parte de um Tratado dos
deveres, nunca publicado e perdido, deixa entrever uma posição dividi-
da quanto à relação entre eventos pretéritos e posteriores. Por um lado,
apresenta certo determinismo, manifestado, por exemplo, na interpre-
tação sobre os efeitos da criação da Igreja Anglicana por Henrique VIII,
que teria fomentado um espírito de liberdade que transcendera a re-
ligião e se direcionara às leis e ao poder, culminando com a morte de
Carlos I e a Revolução Gloriosa132. Assim, esboça preliminarmente o que
será a noção de “espírito geral”:

de Maquiavel, pode-se concluir por aquele, malgrado o anacronismo, desde que considerando esse
liberalismo como plural. Em suma, uma leitura liberal clássica de seu pensamento não comporta
a complexidade de seu “sentimento de liberdade” e o papel da coesão social e do refinamento dos
costumes como procedentes de uma sociabilidade fundada sobre a civilidade. Nesse sentido, v.
também SPECTOR, Céline. Montesquieu était-il liberal? In: KEVORKIAN, Gilles (ed.). La pensée
libérale: histoire et controverses. Paris: Ellipses, 2010. p. 57-71; SPECTOR, Céline. L’Esprit des lois
de Montesquieu: entre libéralisme et humanisme civique. Revue Montesquieu, n. 2, p. 139-161, 1998.
130
VOLTAIRE. La philosophie de l’histoire. Amsterdã: Changuion, 1765.
CARRITHERS, David. Montesquieu’s Philosophy of History. Journal of the History of Ideas, Phila-
131

delphia, v. 47, n. 1, p. 61-80, jan./mar. 1986. p. 61-62.


132
MONTESQUIEU. De la politique. In: MONTESQUIEU. Mélanges inédits de Montesquieu. Bordeux:
G. Gounouilhou; Paris: J. Rouam & C, 1892. p. 158.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 217

Em todas as sociedades, que são uma união de espírito, for-


ma-se um caráter comum. Essa alma universal assume uma
maneira de pensar que é o efeito de uma cadeia de causas in-
finitas que se multiplicam e se combinam de século em século.
Uma vez que o tom é dado e reconhecido, é ele somente que
governa, e tudo o que os soberanos, os magistrados, os povos
podem fazer ou imaginar, seja chocando contra esse tom ou o
seguindo, sempre se relaciona com ele; e ele domina até a total
destruição.133

Contudo, esse determinismo é atenuado pela consideração da


história como uma rede de fatos na qual “a maioria dos efeitos chegam
por vias tão singulares ou dependem de causas tão imperceptíveis e re-
motas que dificilmente se pode prevê-las”134 ou mesmo evitá-las135. Nes-
sa linha, posteriormente, em Reflexions sur le caractere de quelques princes
et sur quelques évènements de leur vie136 (1731-1733), Montesquieu enfatiza
as ações imprevisíveis dos líderes políticos, em perspectiva voluntaris-
ta137. Isso mostra como ele não havia se decidido ainda entre o acidente
e a necessidade como a força primária da história, mantendo-se aberto a
considerar ambas as possibilidades dependendo das circunstâncias par-
ticulares138.
Em Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua
decadência, publicado em 1734, Montesquieu parece finalmente ter vis-
lumbrado uma coerência no desdobrar da história ao estudar Roma. Na
obra, como proposto no título, Montesquieu investiga, primeiramente,
as razões da proeminência dos romanos. Cidade conquistadora, Roma
tem como objetivo principal a guerra, movido pelo desejo de dominação
dos demais povos e pela glória. Este “espírito geral” moldou a criação
das primeiras instituições políticas que, em seguida, passaram elas mes-
mas a formar a índole dos chefes políticos e de todo o povo139. Assim,
entre o período da Realeza e, principalmente, da República, os romanos
tornaram-se militarmente sofisticados, orientando a sua conduta em re-

133
Ibid., p. 161. (Tradução nossa).
134
Ibid., p. 157. (Tradução nossa).
135
CARRITHERS, David. Montesquieu’s Philosophy of History. cit., p. 68-70.
136
MONTESQUIEU. Reflexions sur le caractere de quelques princes et sur quelques évènements de leur vie.
In: MONTESQUIEU. Mélanges inédits de Montesquieu. cit., p. 171 et seq.
137
CARRITHERS, David. Montesquieu’s Philosophy of History. cit., p. 72 et seq.
138
Ibid., p. 77.
MONTESQUIEU. Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência, I. Cf. p.
139

109.
218 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

lação a outros povos segundo certas máximas e impelidos por interesses


comuns (como a repartição de terras conquistadas)140, a partir de um
vigoroso ar de liberdade e comunhão pública. Ademais, o poder não era
concentrado, mas divido entre o espírito do povo, a força do Senado e a
autoridade de certos magistrados141. A queda, por sua vez, teria se ori-
ginado pelo auge militar que alcançara proporções incompatíveis com
o espírito conquistador do povo e com as leis e os costumes adequados
a este estilo de vida. A ambição desenfreada pelo poder e o excesso de
riquezas e luxos estimularam o perfil combativo romano para o acirra-
mento das disputas internas142. Do mesmo modo, a expansão do império
proporcionou a concentração de poderes pelos generais e o reconheci-
mento da cidadania aos povos conquistados, de modo a perder o amor à
liberdade e à igualdade e o ódio à tirania que geravam a união social143.
Em algumas passagens de Considerações, Montesquieu inclina-se
a uma postura determinista, como ao afirmar que, “devendo a Repú-
blica necessariamente perecer, a questão agora era saber só como e por
quem seria abatida”144 ou que “se César e Pompeu tivessem pensado
como Catão, outros teriam pensado assim como César e Pompeu, e a Re-
pública, destinada a perecer, teria sido arrastada ao precipício por outra
mão”145. Para Carrithers, haveria aqui uma opção determinista decor-
rente da percepção de uma sequência lógica no desenvolvimento histó-
rico romano146. Ainda que se verifique esta feição, ela não significou uma
afirmação doutrinária dogmática. É possível aferir em Montesquieu cer-
ta permanência do fator imprevisível, não só em outras passagens de
Considerações, como também por uma leitura global de O espírito das leis.
Como afirma Santos, em Montesquieu não há determinação, como defi-
nição e condicionamento, mas relação (rapport) de conexão, correspon-
dência entre os objetos147.
Decerto, a sorte não governa o mundo, não há uma “fatalidade

140
MONTESQUIEU. Considerações..., II, III e VI. Cf. p. 120-134 e p. 167-182.
141
MONTESQUIEU. Considerações..., VIII. Cf. p. 120-134 e p. 196-197.
142
MONTESQUIEU. Considerações..., VIII. Cf. p. 189-196.
143
MONTESQUIEU. Considerações..., IX. Cf. p. 199-205.
144
MONTESQUIEU. Considerações..., XI. Cf. p. 214.
145
MONTESQUIEU. Considerações..., XI. Cf. p. 223.
146
CARRITHERS, David. Montesquieu’s Philosophy of History. cit., p. 77.
SANTOS, Antônio Carlos dos. A via de mão dupla: tolerância e política em Montesquieu. cit., p.
147

144.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 219

cega”148. Se o contexto molda o indivíduo, também os acidentes aconte-


cem, o que não quer dizer que alterem a direção do desenvolvimento da
história149. De fato, “os homens tiveram em todos os tempos as mesmas
paixões, pelo que as circunstâncias que ensejam as grandes mudanças
são diferentes, mas as causas são sempre as mesmas”150. Essa causalida-
de não se desenrola como um encadeamento linear de motivos e efeitos,
por um único caminho. Como é perceptível pela história dos romanos,
não há uma única causa, mas causas múltiplas em ações simultâneas e
concorrentes. O resultado de uma composição de forças reunidas por
vias divergentes e não redutíveis umas às outras é a “causa geral”151,
cuja inclinação predominante dimana da ascendência de uma causa em
face das demais.
Para além de Roma, é possível compreender as sociedades de
qualquer época por meio dessa espécie de apreciação. Todos os ele-
mentos constitutivos de um determinado grupo social estão em estrita
correlação, não como parcelas de uma soma e sim como forças interde-
pendentes cuja ação recíproca depende da forma do todo. Do modo de
educação ao sistema de justiça, da organização familiar ao mecanismo
de política interna e externa, tudo depende crucialmente da forma fun-
damental do Estado152:

Pode-se afirmar que Montesquieu é o primeiro pensador a con-


ceber e exprimir de maneira clara e precisa a noção de ‘tipo
ideal’ histórico. O espírito das leis é uma teoria política e socio-
lógica dos tipos. A obra quer mostrar e demonstrar que os or-
ganismos políticos que designamos pelos nomes de república,
aristocracia, monarquia, despotismo não são meros agregados
de elementos variados, que cada um está, por assim dizer, pré-
-formado, e é a expressão de uma determinada estrutura. É evi-
dente que essa estrutura permanece escondida enquanto ficar-
mos na simples consideração dos fenômenos políticos e sociais.
(...) Mas essa aparência desfaz-se desde o instante em que se
aprenda a retroceder dos fenômenos para os princípios, da di-
versidade das formas empíricas para as forças constituintes.153

148
MONTESQUIEU. O espírito das leis, I, 1. Cf. p. 11.
149
CARRITHERS, David. Montesquieu’s Philosophy of History. cit., p. 67.
150
MONTESQUIEU. Considerações..., I. Cf. p. 110.
151
STAROBINSKI, Jean. Montesquieu. cit., p. 78-79.
152
CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. cit., p. 285.
153
Id., ibid., p. 283.
220 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

Para além da generalidade empírica, o autor quer tornar visível


a regra interior que domina e governa as formas de governo, isto é, esta-
belecer a sua universalidade de sentido. Sob este prisma é possível sim
declarar que essas regras exprimem um dever-ser e, por isso, nunca se
realizarão plenamente em nenhuma individualidade histórica. Ao tratar
do espírito das leis e não dos fatos, avalia os fatos per se, mas pelas leis
neles exprimidas. Como um dos primeiros a reconhecer a influência de
fatores físicos nas formas políticas e nas leis, como o clima e o solo, dei-
xa divisar que elas nunca são determinantes como as causas espirituais.
Posto que o homem está submetido às forças naturais, pode conhecê-las,
traçar metas e conduzi-las ao objetivo designado. Assim também o bom
legislador não deve ceder às deficiências; partindo dessa capacidade e
ciente das limitações, pode elaborar as melhores leis que estabeleçam a
justiça e o equilíbrio do Estado154.
A grande descoberta de Montesquieu, segundo Althusser, são
os princípios universais que permitem conhecer toda a história humana
e todos os seus detalhes155. A história é a totalidade movente, da qual
se pode compreender a unidade, saber os sentidos dos movimentos in-
ternos, porém sem jamais relacionar os movimentos de interação a um
elemento determinante156. Nesse contexto, “a política é filha da história”
e seu realismo político, crítico do maquiavelismo, é mais exigente do
que um banal empirismo157. Montesquieu se serve da razão para vis-
lumbrar o encadeamento necessário entre os passos da humanidade,
“cuja lógica apresenta-se nas diretrizes às quais cada fato político tem
de obedecer”, não por imposição teórica arbitrária do investigador, mas
porque os princípios conceituais correspondem ao espírito que anima
os movimentos da história158. Assim, o confronto entre o real e o ideal é
dirigido para “mostrar como a razão prática do legislador soube conce-
der ao curso dos anos, na concretude da história e da geografia, o fato e
o direito, o particular e o universal”159.
Para Bobbio, Montesquieu faz, em O espírito das leis, uma “teoria
geral da sociedade”, com base no estudo do maior número possível de

154
Id., ibid., p. 282-287.
155
ALTHUSSER, Louis. Montesquieu: la politique et l’histoire. cit., p. 43.
156
Ibid., p. 54.
157
EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. cit., p. 10.
MOSCATELI, Renato. Política e história no pensamento de Montesquieu. Mediações. Revista de
158

Ciências Sociais, Londrina, v. 9, n. 1, 2004, p. 155.


159
EHRARD, Jean. Politique de Montesquieu. cit., p. 11.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 221

sociedades históricas160. Peter Burke prefere denominá-lo, ao lado de ou-


tros autores do século XVIII, a exemplo de Adam Ferguson, John Millar
e Adam Smith, como “teorista social”, pois, naquela época, a sociologia
inexistia como disciplina independente161. No entanto, parece pouco de-
fini-lo como sociólogo ou mero teórico da sociedade, o que já é sentido
ao se constatar a gravidade da influência newtoniana mesclada com a
herança aristotélica em seu pensamento162.
Collinwood reconhece o mérito de Montesquieu em captar as
diferenças entre nações e culturas, porém acredita que errou em não ex-
plicar a história a partir da razão, e sim pelas diferenças climáticas e ge-
ográficas163, leitura extremamente equivocada. Moscateli, por seu turno,
acredita que a originalidade de Montesquieu em relação a outros tra-
balhos de tipologia de governos, como Platão, Aristóteles, Políbio, Ma-
quiavel e Vico, está em “se propor a desvendar o que chama de espírito
das leis e das instituições políticas”164. Ademais, já nas Considerações, a
abordagem é globalizante e marcada por duas tendências que se torna-
rão cada vez mais dominantes nos séculos seguintes: a escrita de uma
história que interprete os eventos ao invés de apenas narrá-los e o esta-
belecimento de problematizações como princípio para a pesquisa histó-
rica165. Para tanto, como destaca Meinecke, ele colocou de forma inédita
a integralidade das aquisições científicas de seu tempo a serviço de sua
missão166, estando consciente de sua posição privilegiada para conhecer
e escrever a história167. Assim, “(...) lançou a investigação histórica por
novos caminhos, forçando-a a ser mais exigente na fundamentação dos
fenômenos individuais”, a partir do discernimento dos sentidos imersos
nas causas168. Não à toa, Montesquieu retrata os historiadores como “os
examinadores severos das ações daqueles que apareceram sobre a terra,
e eles são como os magistrados do Egito que chamavam em julgamento

160
BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. cit., p. 127-129.
161
BURKE, Peter. History and Social Theory. Ithaca: Cornell University Press, 1993. p. 4.
162
GOYARD-FABRE, Simone. Montesquieu: la Nature, les Lois, la Liberté. cit., p. 2-12; 55-68.
163
COLLINGWOOD, R. G. A ideia de história. Trad. Alberto Freire. Lisboa: Presença, 1972. p. 129-130.
164
MOSCATELI, Renato. Política e história no pensamento de Montesquieu. cit., p. 155.
165
Ibid., p. 148.
MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su genesis. Trad. José Mingarro y San Martín e Tomás
166

Muñor Molina. Ciudad de México: Fondo de Cultura Economica, 1943. p. 116.


167
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. Pensées, 1183. Disponível em https://
www.unicaen.fr/services/puc/sources/Montesquieu/index.php?texte=1183. Acesso em 14 jun. 2016.
168
MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su genesis. cit., p. 141.
222 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

a alma de todos os mortos”169.


Isso explica o porquê de se valer de Roma. Montesquieu estava
impregnado pela tradição humanista, liderada por autores de podero-
sa erudição e devoção classista pela exemplaridade da Antiguidade170.
Roma era referência comum entre pessoas de estipes discrepantes,
o que não seria diferente com o aristocrata presidente do Parlamento
de Bordeaux, já patente em trabalhos juvenis, como Discurs sur Cicéron
(1709), apaixonado elogio a quem considerava, entre todos os antigos,
o “que teve o maior mérito pessoal”171. No entanto, segundo Senarcles,
em Considerações, Montesquieu não se lamenta pela época romana, não
faz um discurso nostálgico sobre as glórias das civilizações passadas ou
sobre as virtudes patrióticas a serem resgatadas, não adota um tom irô-
nico sobre os erros de outrora ou mesmo um tom poético: Roma não é
mais referência de um discurso moral ou político. Montesquieu faz uma
transformação, um giro em direção à história. Apreende Roma sob uma
perspectiva efetivamente histórica, renovando o topos desgastado da
cultura ocidental e recusando-se a considerá-la como fonte de exemplos
atemporais172. A mensagem conclusiva de Considerações reflete a querela
entre os antigos e os modernos: os romanos pertencem à ordem dos an-
tigos e devem ser submetidos ao julgamento dos modernos173. Por certo,
as coisas passadas devem ser conhecidas porque úteis aos homens do
presente: “Deve-se conhecer as coisas antigas não para mudar as novas,
mas a fim de bem usar as novas”174.
Se para Carrithers Montesquieu não aceitaria ser chamado de
“filósofo da história”, por ter sido mais um estudante do passado que
às vezes fez declarações filosóficas sobre o conteúdo da história175, é a
leitura de Cassirer que parece acertada. Para ele, “o curso geral e o obje-
tivo geral da história” estão impregnados de uma ordem comparável à

169
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. Pensées, 1260. Disponível em https://
www.unicaen.fr/services/puc/sources/Montesquieu/index.php?texte=1260. Acesso em 14 jun. 2016.
170
MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su genesis. cit., p. 116.
171
MONTESQUIEU. Discours sur Cicéron. In: MONTESQUIEU. Mélanges inédits de Montesquieu.
cit., p. 3.
172
SENARCLENS, Vanessa de. Montesquieu historien de Rome: un tournant pour la réflexion sur le
statut de l’histoire au XVIIIe siècle. Genève: Droz, 2003. p. 11.
173
PII, Eluggero. La Rome antique chez Montesquieu: Une question et quelques notes pour une
recherche. Revue Montesquieu, n. 1, p. 25-38, 1997. p. 29.
174
MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, Baron de. Pensées, 1795. Disponível em https://
www.unicaen.fr/services/puc/sources/Montesquieu/index.php?texte=1795. Acesso em 14 jun. 2016.
175
CARRITHERS, David. Montesquieu’s Philosophy of History. cit., p. 78.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 223

das leis da natureza, inobstante não seja o mundo moral tão ordenado,
visto serem os homens racionalmente limitados e sujeitos ao erro, o que,
ao mesmo tempo, é abertura para a liberdade. Com isso, Montesquieu,
como um legítimo ilustrado, “espera do progresso do conhecimento desse
estado de coisas uma nova ordem do mundo da vontade, uma nova orien-
tação geral da história política e social da humanidade”. Por esse mo-
tivo, Cassirer entende que Montesquieu foi o primeiro a tentar fundar
uma filosofia da história no âmbito da filosofia do Iluminismo176:

O homem não está somente submetido à necessidade da natu-


reza, ele pode e deve criar livremente o seu destino, construir
o seu próprio futuro. Mas um simples desejo será impotente
se não for conduzido e penetrado por uma visão segura das
coisas, a qual só pode nascer da união e da concentração de
todas as faculdades do espírito. Ela exige, ao mesmo tempo,
que o espírito observe cuidadosamente as realidades individu-
ais, que ele mergulhe nos detalhes empíricos da história e, por
outra parte, que analise teoricamente as diversas ‘possibilida-
des’ para se situar e distinguir com nitidez umas das outras.
Montesquieu mostra idêntica mestria na solução de ambos os
problemas. De todos os pensadores do seu meio, ele é o dotado
de mais viva penetração histórica, o que possui a mais pura
intuição das diversas formas de existência histórica.177

Isso não significa forçosamente a afirmação de um olhar evo-


lucionista em face da história, mas mudança ou adaptação, segundo a
variação das causas178. Não obstante, legou ao pensamento “um novo
respeito perante as formações do mundo histórico, (...) nova sensibili-
dade que pressente, por todas as partes, novas conexões e sentidos até
então ignorados”179. Constata-se, afinal, um esforço que resultou em

CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. cit., p. 282. Para Rain, Montesquieu apresenta muito
176

mais novidades do que Voltaire em seu Histoire de Charles XII, lançado três anos após Considerações.
RAIN, Pierre. Montesquieu et l’histoire. In: INSTITUT DE DROIT COMPARÉ DE LA FACULTÉ DE
DROIT DE PARIS. La Pensée politique et constitutionnelle de Montesquieu. Bicentenaire de L’Esprit des
Lois 1748-1848. Paris: Recueil Sirey, 1952. p. 198.
177
CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. cit., p. 288.
178
MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su genesis. cit., p. 142-143. SANTOS, Antônio Carlos dos.
A via de mão dupla: tolerância e política em Montesquieu. cit., p. 151: “Ora, ‘mudar’ significa dar ou-
tra direção, desviar, dispor de outro modo, deslocar, alterar. ‘Progredir’, por seu lado, denota uma
ação ou um provimento progressivo, a marcha para diante, ato de avançar, desenvolver-se, ascen-
der de um degrau para outro, melhorar de forma crescente. Os dois verbos apresentam concepções
diferentes e não se deve confundi-los. O pensamento de Montesquieu é traspassado pela ideia de
mudança, mas não de progresso.”
179
MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su genesis. cit., p. 157.
224 • Capítulo 8 - Das leis à história: Direito, política e causalidade histórica em Montesquieu

muito mais do que um trabalho puramente histórico, mas em reflexões


de dimensões filosóficas. Como sintetiza Gibbon, “a teoria das causas
gerais seria nas mãos de um Montesquieu uma história filosófica do ho-
mem”180.
No século XVIII, a filosofia da história assume uma reflexão es-
peculativa, tomando a razão, a liberdade e a vontade como categorias de
elucidação do motor da história. Se é recorrente afirmar que somente no
século XVIII tornou-se inaceitável a fundamentação do desenrolar histó-
rico a partir de uma autoridade externa, como a providência divina, ou
movida por razões extrínsecas, voltando-se então para a busca de razões
imanentes e entendendo a ordem da realidade como provida de sentido
próprio181, estas novas perspectivas já estão presentes em Montesquieu,
embora não sistematizadas182.

Considerações finais

Montesquieu legou herança formidável, muito além da famosa


teoria da separação dos poderes. Desde suas obras mais célebres, a sa-
ber, Cartas persas, Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e
da sua decadência e O espírito das leis, até textos inéditos e pouco conheci-
dos, percebe-se um caminho nítido em direção a uma crescente precisão
científica como condição indispensável para a identificação das causas
por trás das leis, das sociedades e dos tempos históricos.
Com efeito, a inteligibilidade do mundo, a partir de Montes-
quieu, não será mais a mesma. Ele constata a complexidade inerente à
“natureza das coisas”, da qual o homem é parte, mesmo em seu plano
errático, no qual é livre. Essa liberdade humana, sob a forma política, é
submissão às leis, que retornam o homem à perfeição, somente possível

GIBBON, Edward. Essai sur l’étude de la littérature. Londres: T. Becket & P. A. De Hondt, 1761. p.
180

108. (Tradução nossa).


181
JULIÃO, José Nicolao. Ensaio de introdução à Filosofia da História. Veritas, Porto Alegre, n. 55, n.
3, p. 236-230, set./dez. 2010. p. 237-238.
182
A sistematização, em outro sentido, somente ocorre com o nascimento das teorias da história
e das ciências históricas, principalmente no século XIX, que começam a rejeitar as abordagens da
filosofia da história, a tal ponto que, com a afirmação das ciências humanas, e apesar das numerosas
incursões nessa área, como Herder e Hegel, foi frequentemente considerada mero gênero literário
que oporia fantasia ao rigor, intuição ao saber. Nesse sentido, ver JULIÃO, José Nicolao. Ensaio de
introdução à Filosofia da História, cit., p. 238 et seq; ARON, Raymond. Introduction à la philosophie
de l’histoire: Essai sur les limites de l’objectivité historique. Paris: Gallimard, 1981. p. 356 et seq; LE
GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão Et al. Campinas: Editora da UNICAMP,
1990. p. 18 et seq.
Isadora Eller de Alencar Miranda & Igor Moraes Santos • 225

em um governo moderado, cujos diferentes poderes estejam separados e


possam controlar uns aos outros. Montesquieu quer entender o mundo
em sua totalidade. Esse todo não é estático, está em movimento cons-
tante, gerando infinitas relações entre os seres e as coisas. Outrossim, é
um emaranhado de causas que os fazem ser como são. É a riqueza da
história que o Senhor de La Brède pretende apreender. História que, em
última instância, tem o humano na posição central, uma vez que todo
esse empenho gnosiológico tem por finalidade o homem. Por isso, antes
de filósofo da história, cientista político ou teórico social, Montesquieu
é um humanista, não ao estilo cívico maquiaveliano, mas pelo empenho
inteiramente voltado à concepção de uma “filosofia do homem”183, no
sentido de contemplar as mais importantes dimensões da vida humana,
estruturando suas reflexões a partir de perspectivas em grande parte
inéditas até então na cultura ocidental.

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CAPÍTULO 9

Voltaire: a racionalidade como forma


de alcançar a tolerância nas
sociedades democráticas

Ana Paula Silva Ferreira1


Maria Luísa Estanislau Reis2

1. Introdução

O presente artigo aborda autor consagrado como um dos gran-


des pensadores do Iluminismo francês no século XVIII: François-Marie
Arouet (1694 –1778), que nasceu em Paris, no dia 21 de novembro de
1694, e adotou, como escritor, o nome Voltaire, com o qual ficou conheci-
do para a posteridade. Sua obra é de prodigiosidade vasta, perpassando
diversos temas vivenciados ao longo de seus mais de sessenta anos de
produção intelectual e combativa, o que fez com que, desde o século
XVIII, fossem intermináveis as controvérsias ao seu respeito.
Utilizamos como fonte principal neste trabalho a obra “Traité sur
la tolérance, A l’occasion de la mort de Jean Calas” (1763), na qual Voltaire
critica o fanatismo e mostra os estragos por ele provocados ao longo do
curso da História. Ressalta-se, entretanto, que também foram considera-
das outras produções, do mesmo autor e de outros, seja para esclarecer
a importância do legado voltairiano, seja para diferenciar seu posiciona-
mento do de outros pensadores.
Para que possamos compreender o posicionamento de Voltaire,
é necessário que abordemos o momento histórico, político e social em
que ele estava inserido, bem como seu desenvolvimento filosófico atra-
vés da passagem dos anos de sua vida. Posto isso, passemos ao enfoque
da perspectiva histórica do pensador.
Nascido em família francesa de posses, em 1694, caçula de cinco

1
Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
² Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 231

irmãos, o filósofo teve contato com a academia desde cedo: foi educado
na casa de seu padrinho por alguns anos e, posteriormente, foi para o
colégio jesuíta Louis-le-Grand a mando de seu pai. Na juventude, após
receber pomposa herança, se tornou frequentador do “círculo de jovens
pensadores”3. Sua personalidade impulsiva lhe trouxe alguns contra-
tempos, dentre eles, cumprimento de pena na Bastilha e exilo.
A despeito dos problemas que lhe causou, essa personalidade
o fez conhecer diversos lugares da Europa, possibilitando-o entrar em
contato com as ideias de outros importantes pensadores de sua época,
como Newton e Locke. Essas viagens igualmente proporcionaram ao
filósofo a chance de conhecer a realidade de outras culturas e criticar a
sua pátria no que se refere a diversas questões, especialmente políticas e
religiosas.
Assim, ainda em sua juventude – em 1713 – Voltaire esteve na
Holanda, em companhia do irmão de seu padrinho, o marquês de Châ-
teneuf, aonde conheceu uma jovem protestante com quem manteve um
romance4. Devido à religiosidade de sua família e à organização polí-
tico-social da época, Voltaire foi trazido de volta à França para que a
distância pudesse dar fim ao envolvimento amoroso.
Tempos depois, ainda na França, Voltaire cumpriu pena de onze
meses na Bastilha por ter distribuído duas composições, de sua auto-
ria, que expressavam ideias vistas como atrevidas em relação ao regente
francês. Em 1726, retornou à prisão devido a desentendimentos com um
nobre que havia se ofendido com o sarcasmo do filósofo.5
Após seu segundo tempo na Bastilha, François-Marie foi viver
em exílio na Inglaterra, aonde republicou sua obra “La Ligue” (que ha-
via sido publicada em 1723), porém sob o nome de “Henríade”, a qual
foi produzida em honra ao rei Henrique IV. Em 1729, voltou à França,
mas foi no exílio que entrou em contato com vários pensadores da épo-
ca, que não somente influenciaram sua obra, como também eram fonte
de pesquisa do filósofo. Voltaire tinha especial gosto pelas teorias de Lo-
cke e Newton, tendo publicado, em 1733/1734 as “Cartas filosóficas so-
bre os ingleses”, em que ele comparava o caráter libertário da sociedade
inglesa da época à censura absolutista que se vivia na França; ainda nes-
sa obra, ele trazia princípios do pensamento de Bacon, Locke e Newton,

³ ANTISERI, Dario, REALE, Giovanni. História da filosofia: de Spinoza a Kant. V. 4. São Paulo: Paulus,
2004. p. 256.
⁴ Ibid.
⁵ Ibid.
232 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

e criticava a ciência de Descartes.6 A referida obra não foi bem recebida


pelo Parlamento, que a condenou e mandou incinerar. Assim, Voltaire
se viu novamente obrigado a sair de Paris, tendo encontrado abrigo no
castelo de Cirey, aonde se envolveu com a marquesa de Châtelet e per-
maneceu por 12 anos, tendo produzido várias obras nesse período.
Em 1746, voltou a Paris, nomeado historiógrafo da França pelo
rei e eleito membro da Academia. Não permaneceu na cidade por mui-
tos anos, pois, em 1749, foi convidado pelo rei da Prússia a ocupar o pos-
to de camareiro, o qual aceitou com grandes honras.7 Porém, sua estadia
em Berlim terminou com uma prisão e, em 1755, Voltaire adquiriu uma
chácara nos arredores de Genebra, aonde permaneceu por cinco anos e
escreveu outras tantas obras. Já em 1760, passou a ter residência em sua
propriedade em Ferney, local em que também desenvolveu vários escri-
tos, dentre eles, o “Tratado sobre a Tolerância” (1762), em que o filósofo
critica o dogmatismo, o fanatismo e a intolerância religiosa.8
O pensador retornou à Paris em 1778, após 28 anos apartado da
cidade, para a exibição de uma comédia de sua autoria, “Irene”. Três
meses depois, ainda em Paris, faleceu aos 83 anos de idade.
Em relação ao período histórico vivido por Voltaire, se faz ne-
cessário ressaltar que a sociedade europeia estava convulsionada pela
enxurrada de ideias iluministas advindas de uma construção que cien-
tificava o homem e a razão. A França teve importante papel neste pa-
radigma, tendo sido Voltaire seu principal expoente. Ao longo de sua
vida, como pudemos ver, o pensador produziu diversos escritos – desde
anedotas e comicidades a tratados filosóficos – desenvolvendo sua teo-
ria político-social, seja quando estava em sua terra natal, bem como fora
dela. De modo geral, ele defendeu as liberdades individuais, de credo,
de pensamento, de comércio e de imprensa.
Ainda, devemos destacar que o ensaísta disseminava ideais li-
bertários fundados na razão. Voltaire não apoiava os privilégios e des-
mandos da nobreza e do clero e era favorável a classe burguesa que
vinha ganhando força e vislumbre na sociedade francesa. Porém, apesar
das citadas ideias e de se encontrar, historicamente, em um momento
anterior à Revolução Francesa, não se pode afirmar que ele era um de-
fensor da igualdade ou da voz dos pobres. Na verdade, o pensador não
lutava pelos direitos da classe desfavorecida, sequer se remetendo a ela

⁶ Ibid.
⁷ Ibid.
⁸ Ibid., p. 257.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 233

como detentora de direitos.


Com relação à política, apoiava o regime monárquico, desde que
o Rei possuísse características ímpares que fariam dele um bom gover-
nante. Dentre elas a bondade, a sabedoria e a prudência, mas mais do
que qualquer uma dessa em separado, a razão9. Afinal, um monarca que
se pauta por pensamentos racionais tenderia a viabilizar maiores liber-
dades aos seus súditos, melhorando também a circulação de mercado-
rias, pessoas e, por que não, ideias. Nesse sentido, Voltaire desenvolve
em seus escritos uma imagem positiva do rei Luís XIV da França, a ele
atribuindo várias das características que considerava essenciais ao bom
governante10.
Outrossim, o filósofo acreditava ser necessária uma leitura histó-
rica da política, para que se desenvolvessem preceitos sociais cada vez
melhores e mais próximos à “natureza” do homem. Nesse sentido afir-
ma Ribeiro:

Voltaire defendia um progresso dentro da história, porém este


avanço só seria alcançado utilizando-se de acontecimentos
oriundos do passado, quando o historiador iria promover uma
análise sistematizada dos fatos históricos, procurando encon-
trar lições que ajudaria o mesmo a solucionar questões do pre-
sente, e esperar com bastante otimismo o futuro.11

Por isso, o iluminista ressalta a importância de reconhecer as re-

⁹ VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 99.
10
“Autores contemporâneos afirmam que as boas referências de Voltaire ao rei Luís XIV não se
deram apenas pelas atitudes do monarca vistas como louváveis ou pela concepção geral do filósofo
acerca das qualidades indispensáveis ao rei, mas também para ridicularizar os atos do rei Luís XV.
Em seus escritos o ensaísta destacava os bons comandos do rei Luís XIV, como um ambiente mais
tolerante, para que estes pudessem ser contrapostos aos atos de Luís XV, demonstrando a pouca
capacidade de governança do mesmo. Enfatiza-se que a popularidade deste monarca era baixa
como um todo, tendo em vista o cenário internacional que vinha se desacortinando. Entre os anos
de 1756 e 1763 ocorreram diversos conflitos entre países europeus devido a disputas territoriais. A
França, como Estado pouco desenvolvido belicamente, teve que suportar diversas perdas quando
da assinatura do tratado de paz, no ano de 1763. O país havia conseguindo dominar alguns territó-
rios durante os anos de guerra, porém, os atos de Luís XV não foram suficientes para mantê-los, de
modo que a França saiu do conflito como derrotada. O tratado de paz estabeleceu o fim da chamada
Guerra dos Sete Anos, mas também demarcou um momento de insatisfação crescente na sociedade
francesa.” LOPES, Marcos Antônio. Voltaire historiador: uma introdução ao pensamento político na
época do iluminismo. Campinas: Papirus, 2001. p. 4.
11
RIBEIRO, Lucas Pires. Entrelinhas do Pensamento Voltairiano. Anais do III Congresso Internacional
de História da UFG/Jataí: História e Diversidade Cultural, Jataí, 2012. p. 6. Disponível em <http://www.
congressohistoriajatai.org/anais2012/Link%20(128).pdf>. Acesso em 12 de maio de 2016.
234 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

gras estabelecidas no passado, bem como os contornos de outras cul-


turas. No mais, tendo como base os regramentos sociais gerais, mui-
tos deles advindos de uma moral cristã estabelecida através de ensinos
bíblicos, Voltaire demonstra ser a intolerância ilógica; uma construção
maléfica dos homens que em nada se assemelha aos preceitos ou à pa-
lavra de Deus:

Se o céu vos amou o suficiente para fazer-vos enxergar a ver-


dade, vos fez uma grande graça; mas os filhos que receberam
a herança de seu pai têm o direito de odiar aqueles que não a
receberam? (Montesquieu, O espírito das leis, Livro XXV). Po-
deríamos editar um livro enorme, composto inteiramente de
passagens semelhantes. Nossas histórias, nossos discursos,
nossos sermões, nossas obras de moral, nossos catequismos,
todos respiram e ensinam hoje em dia esse dever sagrado da
indulgência. Por que fatalidade, por que inconseqüência des-
mentiríamos na prática uma teoria que anunciamos todos os
dias? Quando nossas ações desmentem nossa moral é porque
cremos que existe uma certa vantagem em fazermos o contrá-
rio daquilo que ensinamos. Contudo, certamente não existe
qualquer vantagem em perseguir aqueles que não partilham
de nossa opinião e em provocar seu ódio contra nós. Há, por-
tanto, repito mais uma vez, um absurdo na intolerância.12

2. O Combate na Obra de Voltaire

Voltaire dispensava enorme paixão à luta pela verdade e pela


justiça, por meio da utilização de suas ideias e de sua escrita. A filosofia
voltairiana é marcada pelo combate entre a razão e a irracionalidade.
Nesse sentido, Goldzink13 afirma que: “A filosofia é o belo tornado uma
ideia força, um uso social [...] que reivindica o monopólio da humani-
dade”.
Essa característica combativa da filosofia é bastante explícita na
obra Cartas Filosóficas. O livro, publicado em 1734, causou inflamada re-
ação do poder regente, que enviou a Voltaire a lettre de cachet14. Suas

12
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 67.
13
GOLDZINK Jean. Voltaire entre A et V. Paris: Hachette, 1994. p. 134.
14
Lettres de cachet eram cartas assinadas pelo Rei da França e por um de seus ministros, e seladas
com o selo real, ou cachet. Elas continham ordens diretas do rei, com frequência para impor ações e
julgamentos arbitrários que não poderiam ser objeto de recurso. Definição disponível em < http://
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 235

obras foram apreendidas e o Parlamento determinou que os livros fos-


sem queimados. Em relação ao teor da referida obra, verifica-se que se
compõe de vinte e cinco cartas, das quais oito são dedicadas à filosofia,
sete são dedicadas à religião, três à política e, nas sete outras, discute-se
questões referentes às letras15.
Segundo Mota16, Pierre Boisferre afirma que antes do exílio as
ideias que interessavam ao filósofo eram as práticas cotidianas, e elas
foram expressas em peças, versos, ensaios e não desenvolvidas em for-
ma de tese, a qual só se manifestará após sua experiência em Londres.
Portanto, a experiência estrangeira representa uma maturação, uma
consolidação das concepções do autor, mais do que propriamente uma
mudança de pensamento ou opinião.
Ainda quanto às obras, destacamos “Ode sursainte Geneviève”,
que foi a primeira publicada por Voltaire – provavelmente por volta de
1710, escrita enquanto o filósofo era aluno no Louis-Le-Grand. Nela já são
observados três temas bastante recorrentes em seus escritos: as paixões
como causa dos males morais, o repúdio à guerra e o apelo à transcen-
dência com o propósito de frear os impulsos humanos17.
As guerras também são temas reincidentes em Voltaire. Ocorre
que, em que pese a celebração das glórias militares e dos heróis mor-
tos em combate, o autor lamenta as infelicidades e as terríveis conse-
quências que dela advém. Voltaire pretendia, através da exposição dos
desprezíveis efeitos da guerra, criar em seus leitores e espectadores o
mesmo repúdio moral que nutria pelos responsáveis por ela18.
É imperioso destacar que o pensador considerava o papel do filó-
sofo extremamente importante para a organização social. Da mesma for-
ma, elevava o poder da racionalização e da crítica racional como meios
necessários ao desenvolvimento do homem, das relações sociais e da
sociedade como um todo. Nesse sentido, ele destaca o potencial de força
da opinião pública, em que os indivíduos estariam aptos a racionalizar
o ambiente ao seu redor – seus fatos e acontecimentos –, podendo tomar
decisões conscientes e acertadas. Em relação ao tema, Mota afirma que:

www.aticaeducacional.com.br/htdocs/Especiais/rev_franc/html/glossario.htm>. Acesso em 30 de
junho de 2016.
15
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012, p. 33.
16
Ibid., p. 35.
17
Ibid., p. 36-37.
18
Ibid., p. 39.
236 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

Voltaire considera, entre as atividades fim do fazer filosófico, a


da disseminação de ideias. O procedimento do filósofo é, tam-
bém, o de difundir escritos que possam fazer eco e, assim, re-
forçar o peso do seu argumento numa verdadeira guerra cujo
campo de batalha é o verbo. Contudo, sua fidelidade à verdade
é assegurada, o que se deseja é dar ao leitor a evidência a qual
todo ser racional deve se conformar. (...) as obras de Voltaire vi-
sam transportar seu combate para a arena da opinião pública,
fundando sua legitimidade sobre o senso comum e dessacrali-
zando o texto. Deixando a escrita, ela mesma, de ser sagrada, o
leitor torna-se o único juiz, cada afirmação é considerada pela
opinião pública. Dessa maneira, Voltaire pretende emancipar o
leitor da tutela das instituições, fazendo desse leitor um indi-
víduo capaz de formar um julgamento por ele mesmo, promo-
vendo a sua capacidade de raciocinar, de criticar.19

Percebe-se que, desde as primeiras obras, Voltaire desenvolve


seu pensamento filosófico no sentido de utilizar a razão como ferramen-
ta intrínseca das relações humanas. Seu trabalho esteve permeado de
uma força combativa – não de guerra armada, mas sim de enfrentamen-
to da irracionalidade e da desumanidade – contra as paixões nocivas,
possibilitando, assim, se alcançar a felicidade individual e coletiva.

3. Deus e a necessária tolerância religiosa

A questão da divindade é recorrente nos sessenta anos de refle-


xão que separam o primeiro do último escrito de Voltaire sobre Deus;
assim, o entendimento do filósofo acerca da existência de uma divin-
dade é de extrema importância para a análise de suas obras. Ainda que
fosse um combatente do fanatismo e das regalias desnecessárias dadas à
Igreja, Voltaire não era ateu. Pelo contrário, ele sempre teve uma crença
muito forte na existência de um Deus – um ser de inteligência suprema
– que seria o responsável por criar a vida, o universo e tudo que nele
habita. François-Marie defendia que a crença em Deus não era questão
de fé, e sim de mera lógica racional.20
Voltaire seguia a corrente filosófica do teísmo, que acreditava
que o mundo só poderia ter sido criado por um ser, ou uma força, de
inteligência superior. Nesse sentido, o autor expõe dois caminhos que se

19
Ibid., p.42-43.
20
ANTISERI, Dario; REALE, Giovanni. História da filosofia: de Spinoza a Kant. V. 4. São Paulo: Pau-
lus, 2004. p. 258.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 237

complementam para a compreensão da existência da divindade, a saber:


Deus como ordenador do mundo21 e Deus como primeiro motor22 – a
causa primeira de tudo o que existe, as quais serão analisadas abaixo.

3.1 Deus como ordenador do universo

Para o filósofo “(...) Neste caso [quanto aos primeiros princípios


das coisas], não recorrer a Deus é ser ignorante, pois, ou absolutamente
não há Deus, ou não há primeiro princípio a não ser em Deus”23. Com
base no trecho destacado e na obra Elementos da filosofia de Newton como
um todo, podemos verificar que o autor explica o início do tudo através
da ideia de Deus. Porém, é importante ressaltar que as questões acerca
da natureza – que se faziam comprovadas cientificamente – não deman-
davam a explicação através de um ser divino, já que eram compreensí-
veis por meio do uso da razão.
No “Tratado de Metafísica”, Voltaire explana acerca da ideia de
um ser supremo que preside o universo. O pensador se utiliza da ana-
logia para melhor explicitar seu pensamento, comparando o universo
a um relógio e Deus à pessoa que organizou os mecanismos do relógio
para que este marcasse as horas corretamente24. Assim, Voltaire entende
ser necessária a existência de um ser inteligente que arranje o universo
tal qual ele está arranjado, sendo o próprio universo uma prova de sua
existência.
O filósofo compreende que na natureza o movimento é constante
e, assim, questiona qual seria o princípio dessa movimentação universal.
Ao racionalizar sua problematização, Voltaire conclui que só poderia
haver um princípio de todas as coisas, que seria responsável por orga-
nizar e promover a movimentação, bem como a própria existência, de
tudo que há. É também nesse sentido que se desenvolve o segundo ca-
minho para a compreensão da existência de uma divindade25.

21
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 70.
22
Ibid., p. 103.
VOLTAIRE. Elementos da filosofia de Newton. Trad. Maria das Graças de Souza. Campinas: Editora
23

UNICAMP, 1996. p. 61.


24
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 105.
25
Ibid., p. 106.
238 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

3.2 Deus como primeiro motor

Se partindo do princípio de que não há efeito sem causa – se eu


existo é porque algo me deu causa e assim por diante, até o infinito – no
qual deve haver, necessariamente, um ser que exista por ele próprio,
esse ser é Deus. Voltaire pretende demonstrar que é necessário se admi-
tir que há um princípio geral das coisas e causas, que influi existência e
modificação (movimento) a tudo e que esse ser é único. Nas palavras do
pensador:

Se houvesse dois [motores], eles seriam ou diversos, ou con-


trários, ou semelhantes. Se diversos, nada se corresponderia;
se contrários, tudo se destruiria; se semelhantes, é como se não
houvesse senão um, seria um duplo emprego. Confirmo-me
nessa ideia de que não pode existir senão um só princípio, um
só motor, desde que eu preste atenção às leis constantes e uni-
formes da natureza inteira.26

Voltaire recebeu diversas críticas da comunidade ateia em rela-


ção à compreensão apresentada e, em Elementos da filosofia de Newton,
buscou esclarecer os diversos pontos confrontados. Os ateus atacaram
as ideias de Voltaire acerca da concepção de Deus como ordenador do
universo e primeiro motor com base nas seguintes afirmações: a utili-
zação da tese de sucessão de seres não prova a existência de Deus, uma
vez que não haveria uma pluralidade de seres, mas somente uma única
substância, de forma que não seria possível a produção de seres; desse
modo, tudo seria eterno e necessário27. O filósofo rebate as críticas ar-
gumentando que o universo não descreve um conjunto de seres, mas
sim um único ser, composto por uma única substância capaz de variar
apenas em suas modificações e que a matéria, por si só, não possui mo-
vimento, tendo em vista que, caso o movimento fosse inerente a ela, não
poderia existir repouso. Em que pese a compreensão do próprio pensa-
dor acerca do caráter fictício da ideia de repouso, Voltaire afirma que,
analisado apenas no âmbito da metafísica, o debate acerca da existência
de Deus poderia se prolongar infinitamente, de modo que ele encerra a

26
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Cartas inglesas; Tratado de metafísica; Dicionário filosófico; O
filósofo ignorante. Trad. Bruno da Ponte, João Lopes Alves e Marilena de Souza Chauí. 3. ed. São
Paulo: Abril Cultural, 1984.
27
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 108.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 239

discussão enaltecendo o caráter prático da observação e se utilizando da


vivência para corroborar sua tese: “não sei se existe uma prova metafí-
sica mais impressionante e que mais forte fale aos homens do que essa
ordem admirável que existe no mundo”28.
É através dessa compreensão que Voltaire pretende de-
monstrar, racionalmente, a existência de Deus. O filósofo baseia-se em
uma série de premissas concatenadas para delinear a conclusão de que
o movimento e a modificação das coisas acontecem independentemente
delas mesmas, tendo em vista que essas características não são intrínse-
cas à matéria, de modo que tal movimentação só poderia ser provenien-
te de uma existência terceira, apartada da própria matéria. Desse modo,
a inteligência suprema responsável por atribuir às coisas movimento,
modificação e até mesmo pensamento, seria onipotente, infinita e uni-
versal, tendo em vista sua imanência como criadora de tudo que existe29.
É importante ressaltar que Voltaire não concebia a ideia de que
Deus fosse intervir no mundo para corrigir os atos dos homens; o filósofo
compreendia Deus apenas como uma força inicial motora, sem se ater
a juízos de valor quanto às possíveis decisões desse ser superior30. Ade-
mais, o pensador procurou se ater à comprovação da existência de Deus,
sem pretender ir além. Para Voltaire, a divindade é inacessível, não se
podendo conhecer seus atributos ou sua essência31.

3.3 Breve apanhado de posicionamentos no período clássico

Quanto ao domínio religioso no período, podemos destacar a re-


lação entre consciência individual e verdade religiosa como questão re-
corrente nas discussões filosóficas. Instalou-se uma divisão entre os par-
tidários da intolerância – que consideravam a defesa da verdade como
dever absoluto, sem dispensarem o uso da força e violência para alcan-
çarem seus objetivos – e os pensadores da tolerância, que preconizavam
o direito da consciência individual de buscar, de modo real e sincero, a
verdade, sem se prender a dogmas oficiais32. Devido a tais ideias, os afe-

VOLTAIRE. Elementos da filosofia de Newton. Trad. Maria das Graças de Souza. Campinas: Editora
28

UNICAMP, 1996. p. 27.


29
Ibid., p.30.
30
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p.37.
31
Ibid., p. 110.
32
CHARLES Sébastien. Voltaire pensador da tolerância: do combate ao fanatismo à luta contra o ateís-
240 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

tos à tolerância acabavam por legitimar a tese da consciência errante33.


Nesse sentido, destacamos os três principais argumentos de defesa da
referida tese explanados no período clássico.
A primeira corrente sustenta a existência de uma verdade reli-
giosa reconhecível – ainda que não provada ou demonstrada – sendo
necessário se admitir níveis de diferenciação, que variam entre a heresia
religiosa e a verdade dogmática. Assim, mais do que considerar o erro
como totalmente oposto à verdade, esse deve ser compreendido como
um desvio que necessite ser corrigido, e não eliminado, pois possui um
valor próprio que pode ser reconhecido34. Foram defensores dessa cor-
rente Pascal, no domínio religioso, e Leibniz, no domínio metafísico35.
Já a segunda corrente sustenta que, embora a verdade religiosa
exista, ela não pode ser conhecida. Tal corrente dividiu-se, ainda, en-
tre aqueles que: (1) acreditavam que todas as religiões seriam legítimas,
desde que reconhecessem o caráter parcial que as regem; e (2) procura-
vam um denominador comum mínimo entre as posições religiosas exis-
tentes, estabelecendo postulados fundamentais que seriam universais.
Destacam-se como expoente das referidas vertentes Bodin e Cherbury,
respectivamente36.
Por fim, a última corrente é composta por aqueles que postula-
vam a supremacia da ortopraxia sobre a ortodoxia. Para esses pensado-
res, a questão principal acerca da religião se dava em torno das atitudes
do indivíduo, como a verdadeira prática da vida religiosa e a retidão
na maneira de se conduzir as ações. Os atos em conformidade com os
preceitos religiosos seriam mais importantes e mais valiosos que a mera
busca por uma verdade expressa nessa ou naquela religião. Essa posição
supõe que a convicção religiosa consiste mais na obediência àquele que
se reconhece como Deus do que na crença de uma determinada verdade.
Ressalta-se que seus partidários promovem uma cisão entre o domínio
do conhecimento – filosofia –, pela qual seria possível atingir a verdade

mo. Trad. Rodrigo Brandão. Université de Sherbrooke, Canadá. Publicado em Revista DoisPontos,
São Carlos, 2012. Disponível em <http://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/27439>. Acesso em
23 de maio de 2016. p. 31.
33
“(...) não devemos ser punidos se nos enganamos de boa fé”. CHARLES Sébastien. Voltaire pen-
sador da tolerância: do combate ao fanatismo à luta contra o ateísmo. Trad. Rodrigo Brandão. Uni-
versité de Sherbrooke, Canadá. Publicado em Revista DoisPontos, São Carlos, 2012. Disponível em
<http://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/27439>. Acesso em 30 de maio de 2016. p. 33.
34
Ibid., p. 31.
35
Ibid.
36
Ibid., p. 32-33.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 241

pelo exercício da luz natural, do domínio da obediência – teologia –, no


qual é preciso, antes de mais nada, ser sincero e se submeter. Esse é o
pensamento comum a vários autores do período iluminista, como Locke
e Espinosa, sendo, também, o entendimento de Voltaire37.
É nesse sentido que Voltaire opõe sua visão à ortodoxia dominante,
uma vez que ele é contrário à ideia de determinar a valoração objetiva de
uma religião revelada em relação à outra, além de não admitir nenhuma
religião como a única verdadeira e, seguindo o mesmo raciocínio dos
pensadores já mencionados, perceber a necessária distinção entre
filosofia e teologia38.
Voltaire entende como ideal uma religião pura, limpa, destituída
dos misticismos, superstições e fanatismos, ou seja, destituída de tudo
que lhe possa conceder caráter de absurdo, fantástico ou incrível. E é
nesse ponto que o filósofo difere dos demais de sua época, pois explicita
um teísmo hiper-racionalista, que se dispõe a buscar uma compreensão
da religião próxima à dos pensadores renascentistas39.
Desta feita, Voltaire é considerado um dos líderes da empreitada
iluminista contra a religião ortodoxa. Nesse sentido afirma o pensador:
“entendo por religião natural os princípios de moral comuns ao gênero
humano”40.
O filósofo acreditava que, para que o homem alcançasse a feli-
cidade individual e coletiva, seria preciso acabar com a superstição e o
fanatismo praticados pelas Igrejas, pois essas posturas geravam a intole-
rância que culminava em guerras sangrentas. É no intuito de combater
tal cenário que o autor associa religião e moral, propondo que a religião
seja fundada nas leis naturais inscritas nos homens por Deus.

3.4 Crítica ao determinismo de Leibniz

Gottfried Wilhelm von Leibniz nasceu em meados do século


XVII, na cidade de Leipzig, na Alemanha. Filósofo e matemático de
grande renome foi autor das obras: “Discurso da metafísica”, “Sobre a li-
berdade” e “Novos ensaios sobre o entendimento humano”, que abordavam
temas como o racionalismo, o cálculo diferencial e a metafísica. Leibniz

37
Ibid., p. 33-34.
38
Ibid., p. 34.
39
Ibid., p. 35.
VOLTAIRE. Elementos da filosofia de Newton. Trad. Maria das Graças de Souza. Campinas: Editora
40

UNICAMP, 1996. p. 43.


242 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

defendia que tudo o que acontecia, era o melhor que poderia acontecer
no melhor dos mundos.
Em seus “Ensaios de Teodicéia”, Leibniz toma Deus como um ser
cognitivo perfeito, racional e bondoso, incapaz de agir contra sua cria-
ção, sob pena de contradição. Portanto, Deus, por meio de critérios lógi-
cos fundamentais, criou o melhor dos mundos possíveis41.
Diferente da obra “Tratado Sobre a Tolerância”, que foi embasada
em um caso real, a crítica de Voltaire à Leibniz foi feita por meio de
uma obra narrativa, denominada “Cândido” ou “O otimismo”, em que
um jovem otimista se depara com a maldade humana no decurso de sua
peregrinação pelo mundo. 
Em breve síntese, Cândido foi expulso de onde morava, preso e
torturado; perdeu sua amada e seus melhores amigos de forma cruel.
Mesmo assim, a personagem tenta explicitar o melhor dos mundos pos-
síveis, em uma evidente sátira às ideias de Leibniz42.
A Professora Maria das Graças S. do Nascimento, em seu livro
“Voltaire, a razão militante”43, afirma que existem, em Cândido, ou O Oti-
mismo, três alternativas para se responder ao problema do mal. A pri-
meira, é a de Pangloss, para o qual os males são necessários em favor
de um bem maior; porém tal alternativa não se verifica em qualquer
momento da obra, o que se comprova pelo fato de que, apesar de Cân-
dido casar-se com Cunegundes, ela já não era a mesma por quem ele se
apaixonara, mas sim uma mulher feia, rabugenta e insuportável.
A segunda é a de Martinho, o maniqueísta, que acreditava que
tudo no mundo é regido pelos princípios do bem ou do mal. Todavia,
o segundo sempre se sobrepõe ao primeiro, ou reprime qualquer bem
incluso no curso dos acontecimentos.
A última alternativa é apresentada pelo muçulmano ceticista,
para o qual diante de todo o mal que há na Terra a única coisa a fazer é
calar-se44.
A conclusão é extraída da cena final, na qual as personagens,
vivendo e trabalhando em um jardim, se posicionam sobre como deve

41
BRANDAO, Rodrigo. A ordem do mundo e o homem: estudos sobre metafísica e moral em Voltaire.
Tese (doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo, 2008. p. 177.
42
Ibid., p. 213-223.
43
NASCIMENTO, Maria das Graças S. do. Voltaire: a razão militante. São Paulo: Moderna, 1996.
44
BRANDAO, Rodrigo. A ordem do mundo e o homem: estudos sobre metafísica e moral em Voltaire.
Tese (doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia,
Universidade de São Paulo, 2008. p. 213-223.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 243

ser a vida. Pangloss permanece tentando mostrar que esse é o melhor


dos mundos possíveis. Martinho afirma que trabalhar sem filosofar é a
única maneira de tornar o mundo possível. E Cândido aconselha repeti-
damente que devemos cultivar nosso jardim.
Assim, a discussão sobre se o mundo é bom ou ruim, já não im-
porta para ele. A personagem transcende a dicotomia otimismo/pessi-
mismo ao reconhecer que a desgraça faz parte da vida e não há como
negá-la, por isso há que se viver da melhor forma possível. Por fim, des-
taca-se que Cândido chega a essa ideia por si só, demonstrando que o
autor pretende frisar o papel central da autonomia no processo de escla-
recimento.

3.5 Voltaire: combate ao fanatismo e a crença em Deus

A temática da religião é abordada, sobretudo, na obra de análise


central desse trabalho, o Tratado sobre a Tolerância, inspirada em um caso
real ocorrido na cidade de Toulouse, França, em 09 de março de 1962,
em que Jean Calas – negociante, conhecido como bom pai e de religião
protestante – foi condenado à pena de morte pelo assassinato de seu
filho, Marc-Antonie Calas, que “havia abjurado heresia”45.
Embora houvesse indícios de suicídio do jovem – encontrado nu
na residência da família, pendurado por uma corda – um forte clamor
religioso tomou conta da população, a qual culpou a família do faleci-
do. O Estado, no intuito de dar uma resposta rápida ao caso e se livrar
do inconveniente, prendeu todos os supostamente envolvidos no crime.
Nesse cenário, o patriarca passara por um célere julgamento, sem mui-
tas possibilidades de se defender das acusações contra ele proferidas.
Momentos antes da execução em praça pública, Jean Calas foi torturado
para que confessasse o crime, todavia, declarou-se inocente até o final46.
Em relação ao acontecido, Voltaire afirmou:

(...) se um pai de família inocente é entregue às mãos do erro,


da paixão, ou do fanatismo; se o acusado só tem como defe-

45
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 4.
46
BRANDAO, Rodrigo. A ordem do mundo e o homem: estudos sobre metafísica e moral em Voltaire. Tese
(doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Uni-
versidade de São Paulo, 2008. Disponível em <http://filosofia.fflch.usp.br/sites/filosofia.fflch.usp.br/
files/posgraduacao/defesas/2009_docs/2009.doc.Rodrigo_Brandao.pdf>. Acesso em 01 de julho de
2016. p. 213-223.
244 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

sa sua virtude; se os árbitros de sua vida, ao decapitarem-no,


apenas correm o risco de se enganar; se podem matar impu-
nemente através de uma sentença, então o clamor público se
levanta, cada um teme por si próprio, percebe-se que ninguém
está seguro de sua vida diante de um tribunal erigido para
zelar pela vida dos cidadãos, e todas as vozes se juntam para
pedir vingança.47

É através do caso de Jean Calas, em que a questão da iniquidade


e da intolerância religiosa se faz fortemente presente, que Voltaire
desenvolve seu pensamento crítico acerca da temática na obra já
mencionada. Logo nas primeiras páginas é evidenciado o número de
vítimas que o abuso da religião e o dogmatismo exacerbado da Igreja
Católica provocaram na Europa: “O furor que inspiram o espírito dog-
mático e o abuso da religião cristã mal compreendida derramou san-
gue, produziu desastres tanto na Alemanha, na Inglaterra e mesmo na
Holanda, como na França”48. Outrossim, verifica-se que o progresso no
Velho Continente, em termos de convivência religiosa, havia sido muito
irrisório até o século XVIII. Diversas crenças buscavam se impor como
hegemônicas em detrimento das demais, provocando um cenário mar-
cado por disputas de espaços e de legitimidade, em que frequentemente
recorria-se à violência49.
Nesse contexto a tolerância se apresenta como solução precisa.
Sem ela “o fanatismo devastaria a terra, ou pelo menos a afligiria sem-
pre!”50. Segundo o autor, para promovê-la, é necessário haver reciproci-
dade e razão.
Em relação à primeira, Voltaire lembra dos efeitos produzidos
por boas ações e por más ações. Informa que se os homens se insurgem
quando lhes fazem mal, igualmente se insurgirão quando lhes fizerem

47
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 3-4.
48
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.
25.
49
“Cita-se, como exemplo, a Igreja Católica que utilizou-se da Bíblia e da cruz como armas contra
aqueles que pretendia cristianizar: ‘Digo-o com horror mas com verdade: nós cristãos, é que fomos
perseguidores, carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Nós é que destruímos cidades
com o crucifixo ou a bíblia na mão, e não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras
desde os tempos de Constantino até os furores dos canibais que habitavam as cavernas, furores
que, graças a Deus, não mais subsistem hoje’.” VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a
tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 62.
50
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.
62.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 245

bem51. O autor recorre a um episódio envolvendo o sábio imperador


chinês Yung-Ching:

É verdade que o grande imperador [...] expulsou os jesuítas; mas


não porque fosse intolerante, e sim porque os jesuítas; ao contrário
o eram. [...] O imperador, portanto, não fez mais que mandar de vol-
ta perturbadores estrangeiros. Mas com que bondade os mandou de
volta! Que cuidados paternos dispensou-lhes para a viagem e para
impedir que os insultassem no caminho! O próprio banimento deles
foi um exemplo de tolerância e de humanidade.52

No que tange à segunda, o filósofo informa que “a claridade da


razão, descortinando as risíveis querelas religiosas, é o maior trunfo em
favor dos povos”53. Nesse sentido, estabelece que:

O grande meio de diminuir o número de maníacos [...] é sub-


meter essa doença do espírito ao regime da razão, que escla-
rece lenta, mas infalivelmente, os homens. Essa razão é suave,
humana, inspira a indulgência, abafa a discórdia, fortalece a
virtude, torna agradável a obediência às leis, mais ainda do que
a força é capaz.54

Recorre, nesse ponto, ao Direito Natural – “não faças aos outros


o que não consideras razoável que o outro te faça”55. Baseado nesse prin-
cípio, o filósofo reflete acerca da impossibilidade racional de criar uma
espécie de imperativo que determine o seguinte pensamento56: “Crê, ou
te abomino; crê, ou te farei todo mal que puder; monstro, não tens a
minha religião, logo não tens religião alguma: cumpre que sejas odia-
do por teus vizinhos, tua cidade, tua província”57. Em que pese citadas

51
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 26.
52
Ibid. p. 25-26.
BENEDETTI, Priscila Sansone. Pela legitimação da tolerância: uma leitura da obra Tratado sobre a
53

Tolerância de Voltaire. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia. Departamento de Filosofia,


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. p. 40.
54
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 30.
55
HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Abril, 1979. p. 97.
BENEDETTI, Priscila Sansone. Pela legitimação da tolerância: uma leitura da obra Tratado sobre a
56

Tolerância de Voltaire. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia. Departamento de Filosofia,


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011, p. 40.
57
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas.
Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 33.
246 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

palavras, não se pode compreender que Voltaire defendia o ateísmo,


pelo contrário, condenava-o, afirmando que a existência de Deus apare-
ce como muito mais provável que sua negação. E ainda complementa:

Tal é a fraqueza do gênero humano e tal é sua perversidade


que, para ele, certamente é preferível ser subjugado por todas
as superstições possíveis, contanto que não sejam mortíferas,
do que viver sem religião. O homem sempre teve necessidade
de um freio e, ainda que fosse ridículo fazer sacrifícios aos fau-
nos, aos silvanos, às náiades, era bem mais útil e razoável ado-
rar essas imagens fantásticas da divindade do que se entregar
ao ateísmo. Um ateu argumentador, violento e poderoso seria
um flagelo tão funesto quanto um supersticioso sanguinário
(...). Onde quer que haja uma sociedade estabelecida, uma reli-
gião é necessária: as leis protegem contra os crimes conhecidos,
e a religião, contra os crimes secretos.58

Nesse sentido, a religião per se não seria abominável; a censura


deve pairar sobre a maneira como o homem conduz a religião e sobre
as mentiras que o homem elabora para enganar os demais se utilizando
da religião. Ora, na verdade, Voltaire coloca-se como defensor de uma
fraternidade universal59. A liberdade de escolha, de percepção e de con-
duta racional em relação aos diferentes dogmas religiosos foi defendida
pelo iluminista veementemente60.
Diante disso, pode-se afirmar que o pessimismo de Voltaire em
relação à estrutura da Igreja Católica derivava do fato de as autoridades
eclesiásticas insistirem em manter os fiéis na ignorância, tolhendo-lhes a
liberdade de pensar e incutindo-lhes que a violência se legitimava con-
tra aqueles que não se submetessem à ordem religiosa posta. O filósofo
ainda acrescenta à sua doutrina que, no momento em que as crenças tor-
nam-se dogmas e transformam-se em ações violentas, deve-se recorrer à
repressão para combater o fanatismo. Para mais, ele compreende que o

58
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Voltaire Foundation: Complete Works of Voltaire. Oxford: Ox-
ford University Press, 1968. p. 242.
59
“Não é preciso uma grande arte, uma eloquência muito rebuscada, para provar que os cristãos
devem tolerar-se uns aos outros. Vou mais longe: afirmo que é preciso considerar todos os homens
como nossos irmãos. O quê! O turco, meu irmão? O chinês? O judeu? O siamês? Sim, certamente;
porventura não somos todos filhos do mesmo Pai e criaturas do mesmo Deus?” VOLTAIRE, Fran-
çois-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 125.
BENEDETTI, Priscila Sansone. Pela legitimação da tolerância: uma leitura da obra Tratado sobre a
60

Tolerância de Voltaire. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Filosofia. Departamento de Filosofia,


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011. p. 50.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 247

problema da tolerância religiosa torna-se político.61

4. Da tolerância política

Voltaire expressou simpatia a regimes políticos e formas de go-


verno diversas, desde o despotismo esclarecido de Frederico da Prússia
até alguns regimes republicanos, razão pela qual pode ser compreen-
dido como um “relativista político”. Para ele, a valoração do sistema
político deve ser averiguada na medida em que proporciona o bem aos
governados. Desse modo, a filosofia política do autor não está embasada
em uma teoria política específica, tal como se vê em Hobbes ou Rousse-
au.
No que se refere à tolerância política ou civil, Voltaire estabele-
ce duas possibilidades de condução: deve-se favorecer a ideia de uma
religião de Estado; ou deve-se pensar o Estado como o fundamento da
coexistência de diversas religiões62.
No primeiro caso, deve-se analisar a compatibilidade entre a
obediência a Deus e a submissão ao soberano. O autor questiona se se-
ria hipócrita praticar exteriormente um culto oficial que não correspon-
desse à fé interior dos indivíduos, dilema o qual Hobbes propôs como
solução a dissociação da fé interior e do culto oficial exterior imposto
pelo soberano, e a consequente submissão do religioso ao político63. No
segundo caso, em que há uma pluralidade de cultos no Estado, o pensa-
dor aponta que a liberdade de credo é basilar para a sinceridade religio-
sa, de modo que a imposição de um culto oficial somente encorajaria os
comportamentos hipócritas.64
No quadro político, Voltaire parece abraçar seus antecessores,
sobretudo Hobbes. Ele distingue o que se reporta à consciência indivi-
dual do que pertence à ação pública, ou seja, a diferença entre o direito
de cada um acreditar naquilo que quer, e o direito de impedir determi-
nada ação executada em nome de crenças religiosas.
Lembra o artigo ‘Catecismo chinês’ do Dicionário Filosófico que:

61
CHARLES Sébastien. Voltaire pensador da tolerância: do combate ao fanatismo à luta contra o ateís-
mo. Trad. Rodrigo Brandão. Université de Sherbrooke, Canadá. Publicado em Revista DoisPontos,
São Carlos, 2012. Disponível em <http://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/27439>. Acesso em
09 de junho de 2016. p. 37.
62
Ibid., p. 38.
63
Ibid.
64
Ibid.
248 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

A lei natural permite a cada um crer naquilo que quer, como


de se alimentar do que quer. Um médico não tem o direito de
matar seus doentes porque eles não observaram a dieta que
ele lhes prescreveu. Um príncipe não tem o direito de mandar
prender aqueles de seus súditos que não pensam como ele; mas
ele tem o direito de impedir as agitações.65

Nota-se que a tolerância religiosa exige uma liberdade de consci-


ência que não encontra limites além dos políticos. Nesse sentido, o autor
entende que impedir a anarquia é essencial, e os governantes devem
utilizar os meios disponíveis para impedir tal transformação da ordem
social. Logo, nenhuma atividade religiosa pode ser exercida sem o acor-
do do político, nenhum membro do clero pode estar isento do controle
do magistrado no exercício de sua função e nenhum dogma pode ser
promulgado sem ter recebido a sanção governamental.66
Ainda, o autor destaca que toda insurreição contra um reinan-
te legítimo deve ser amordaçada. A tolerância não pode ser reduzida
à indiferença e o imperioso é sempre a preservação da ordem social e,
portanto, da liquidação do espírito de fanatismo67.
Por fim, em que pese a ausência da definição precisa do termo
Estado em sua obra, a questão da centralização política e da pacificação
das relações sociais estão presentes nos escritos de Voltaire. A análise do
comportamento dos soberanos tornou-se objeto de seus estudos, não só
em razão do refinamento dos costumes, mas, também, porque ele acre-
ditava que o exercício do poder político era o elemento capaz de garantir
a coesão social e a iniciativa livre e pacífica dos homens esclarecidos68.
Em relação à formação da monarquia francesa, Voltaire dedi-
cou-se ao estudo das atitudes dos monarcas, aos conflitos entre grupos
sociais, à eficácia dos mecanismos de controle político e ao desenvol-
vimento das forças econômicas. O autor foi, também, forte crítico da
Igreja Católica e defendeu a centralização monárquica e a propriedade

65
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Voltaire Foundation: Complete Works of Voltaire. Oxford: Ox-
ford University Press, 1968. p.127.
66
CHARLES Sébastien. Voltaire pensador da tolerância: do combate ao fanatismo à luta contra o ateís-
mo. Trad. Rodrigo Brandão. Université de Sherbrooke, Canadá. Publicado em Revista DoisPontos,
São Carlos, 2012. Disponível em <http://revistas.ufpr.br/doispontos/article/view/27439>. Acesso em
09 de junho de 2016. p. 38.
67
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Voltaire Foundation: Complete Works of Voltaire. Oxford: Ox-
ford University Press, 1968. p.128.
68
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 49.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 249

privada69.
Sua análise se inicia a partir do século XV, em razão da vitória
francesa na Guerra dos Cem Anos, a qual contribuiu para o fortaleci-
mento da monarquia – remanescendo apenas dois grandes “feudos” na
França, a Borgonha e a Bretanha. Assim, para o filósofo, Luís XI teria
sido o primeiro rei absoluto da Europa.
Dessa forma, a questão do bom e do mau governante é anali-
sada através do uso da imagem de Luís XI, o qual comportava ambas,
uma vez que a utilização da violência e da tirania corresponde ao caráter
bárbaro e supersticioso de seu tempo e, entretanto, o referido monarca
foi capaz de promover mudanças positivas na sociedade francesa que
foram de grande alcance histórico. Desse modo, em que pese a utiliza-
ção de métodos condenáveis, Luís XI foi o precursor de um modelo de
monarquia forte e centralizadora, o qual abriu caminho para o avanço
do processo civilizador70. Noutro giro, Voltaire define negativamente o
rei Henrique VI, como um rei fraco, incapaz de neutralizar as ambições
e a beligerância da nobreza.
Por fim, Voltaire ressalta os bons atributos, como governante, de
Luís XIV. Foi durante seu reinado que a consolidação das regras de bom
comportamento se efetivou, desempenhando importante função no con-
trole da nobreza, mas não se restringindo a ela, ao adentrar à vida dos
cidadãos comuns, de forma a padronizar o comportamento dos indiví-
duos que, ao imitarem os hábitos da nobreza, foram perdendo a bruta-
lidade. Assim, para Voltaire o grande feito do monarca não foi a criação
de um novo sistema político, mas a mudança de comportamento dos
franceses, no qual a tolerância às escolhas alheias era indispensável71.

5. Do aperfeiçoamento dos costumes como remédio contra a intolerân-


cia

Neste tópico abordaremos a função que Voltaire atribuiu ao


conhecimento como elemento imprescindível para que os homens en-
tendessem os valores e as virtudes que possibilitariam à sociedade al-

69
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 50.
70
LOPES, Marco Antonio. Voltaire político: espelhos para príncipes de um novo tempo. São Paulo:
UNESP, 2004. p. 117.
71
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.
95.
250 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

cançar momentos de prosperidade e de esclarecimento. Cita-se, a título


de exemplificação, a obra “À mademoiselle Duclos”, em que é possível
perceber a introdução do tema da polidez e do cultivo da arte como ele-
mentos essenciais à felicidade, bem como a paz. Ainda, destaca-se que
essas questões são retomadas em “Le siècle de Louis XIV”, de 1752, escrita
trinta e sete anos depois72.
Ao longo de sua obra o autor consolidou o entendimento de que
a arte é capaz de cultivar a polidez, ou seja, de aprimorar os costumes;
por isso, a educação tem papel central no desenvolvimento das socieda-
des e, por conseguinte, na busca pela felicidade. Dessa forma, Voltaire
concebe que o papel do filósofo é a disseminação de ideias73 e entende
que a leitura deveria ser dessacralizada74, de forma a permitir que o ci-
dadão seja capaz de formar seu próprio conhecimento e sua própria opi-
nião, libertando-se dos dogmas e das imposições religiosas tidas como
absolutas. No prefácio à quinta edição do “Dicionário filosófico”, 1765,
Voltaire explica a finalidade de um livro útil:

Os livros mais úteis são aqueles dos quais os leitores compõem


eles mesmos a metade, estendem os pensamentos dos quais se
lhe apresentam o germe, corrigem o que lhes parecem defei-
tuoso e fortalecem por suas reflexões o que lhes parece fraco.75

Nesse sentido, Voltaire chama o leitor à reflexão nos versos de


“Épître à Uranie”, de 1722, em que contrapõe a ideia de um Deus cruel
a de um Deus bondoso76. Utilizando-se da estratégia de exigir do leitor
o uso da racionalidade, o pensador pretende combater os males causa-
dos pelos dogmas, pelo fanatismo e pela intolerância. Assim, o filósofo
se mostra, desde o princípio de seus escritos, um reformador de costu-
mes. Nesse sentido, é possível notar que, já em sua viagem à Londres,
demonstra preocupações acerca dos costumes nas cartas trocadas com
a Marquesa de Berniéres, nas quais exalta as qualidades da sociedade
holandesa sobre suas virtuosas práticas e a multiplicidade religiosa:

72
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 39-50.
73
Ibid., p. 42-57.
74
Ibid., p. 42.
75
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Dictionnaire philosophique. Paris: Flammarion, 2010. p. 72.
76
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 119-121.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 251

Dos quinhentos mil homens que habitam Amsterdam, não há


nela um desocupado, um pobre, [...] um insolente, [...] não se
conhece senão o trabalho e a modéstia. [...] Temos aqui uma
ópera detestável, mas, em compensação, eu vejo ministros cal-
vinistas, arminianos, socianos, rabinos, anabatistas que falam
muito bem e que, a verdade, todos têm razão.77

Além da Holanda, Voltaire também destacava a Inglaterra como


exemplo a ser seguido nas áreas da arte, da política, da economia e da
liberdade religiosa, conforme se verifica em diversas de suas obras e, de
forma especial, nas Cartas filosóficas78.
Nessa linha, na obra Ensaio sobre os costumes, Voltaire busca de-
monstrar que o desenvolvimento das sociedades é decorrente das ações
dos homens em distintos momentos históricos e da organização da pró-
pria sociedade. Por isso, segundo o filósofo, os homens devem aprender
não só com a história de sua própria sociedade, mas também com a de
outros povos. Em suas palavras: “[...] vantagem consiste, sobretudo, na
comparação que um estadista, um cidadão pode fazer das leis e costu-
mes estrangeiros com os do seu país.”.79
O autor entendia que a educação é transmitida de geração a ge-
ração, portanto, é imprescindível retomar a história, para que o processo
educativo não se torne mera repetição de crenças e verdades estabeleci-
das, de forma que o conhecimento da história é fundamental para ques-
tionar essas verdades80.
Noutro ângulo, importa destacar que a visão da educação em
Voltaire está diretamente relacionada à visão de homem que ele cons-
truiu, isso porque, ao considerar que o homem é livre dos dogmas, da
superstição e do próprio Deus que o criou – tendo em vista que esse
lhe deu a capacidade de pensar e refletir – conclui-se, que o homem é
responsável pelo seu destino, de modo que apenas o próprio homem po-
derá promover a busca pela educação, para que ele possa contribuir com

77
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Correspondence. Tome I. Paris: Gallimard, 1977. p. 90-91.
78
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 49.
79
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Filosofia da História. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2007. p. 14-15.
80
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 162-163.
252 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

o bem comum por meio da reflexão81. O autor ainda vai além e afirma
que a educação não deve ser um caminho em si, para satisfazer apenas
os interesses egoísticos do homem, mas, deve antes, ater-se às questões
da sociedade82.

5.1 Reflexão – a questão na atualidade

A obra Tratado sobre a tolerância  exalta a necessidade da


convivência pacífica entre pessoas com opiniões divergentes para que
possa ocorrer a boa interação social. Contudo, nos dia atuais ainda é
possível perceber que a sociedade ocidental precisa avançar, em muito,
no que tange à convivência pacífica, ao respeito às liberdades e à com-
preensão da divergência de ideias e ideais. Mesmo com a consolidação
do modelo republicano e das sociedades democráticas – que em sua gê-
nese se apresentavam como lugar propício à convivência pacífica entre
povos, culturas e religiões diferentes – se mostraram ineficientes para
cumprir a difícil tarefa de assegurar a tão necessária liberdade de cons-
ciência, de expressão e de crença que a separação entre a religião e o
Estado pretendiam.
Assim, mesmo considerando o diferente contexto social e políti-
co no qual estamos inseridos e a distância que nos separa da época da
publicação da obra, o pensamento de Voltaire é inspirador, nos insti-
gando a realizar nossas próprias reflexões acerca do tema. Dessa forma,
ainda que a obra tenha sido escrita há mais de 200 anos, não podemos
negar sua contemporaneidade.
Ainda que tenhamos alcançado certa garantia de liberdades e
direitos, por vezes, na história política, podemos perceber um grau de
retrocesso e limitação dessas garantias. No caso do Brasil, temos acom-
panhado com receio e infelicidade os últimos desdobramentos políti-
cos. Receio por aquilo que está por vir e infelicidade por aquilo que já
presenciamos. Em tempo de efervescência de opiniões, cada vez mais
extremas, o espaço para o diálogo vem sendo reduzido dia após dia. Os
posicionamentos se tornam polarizados e inflexíveis. O diferente é visto
como ameaça.
É nesse contexto que se abre espaço para a intolerância e que
as conquistas vão sendo minimizadas. Presenciamos o silenciamento de
professores, de alunos, a tentativa de silenciamento de uma sociedade
81
Ibid., p. 119-125.
82
Ibid., p. 144-145.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 253

inteira.
É contra isso que se insurge Voltaire:

O rei, por essa bondade, como por tantas outras de suas ações,
mereceu o apelido que o amor da nação lhe conferiu. Possa
esse exemplo servir para inspirar aos homens a tolerância, sem
a qual o fanatismo desolaria a terra ou, no mínimo, a entris-
teceria para sempre! Sabemos perfeitamente que se trata aqui
de apenas uma família, enquanto a raiva sectária fez perecer
milhares. Contudo, hoje, quando uma sombra de paz deixa em
repouso todas as sociedades cristãs, após séculos de carnifici-
nas, é neste tempo de tranqüilidade que a infelicidade dos Ca-
las deve causar uma maior impressão, tal como uma trovoada
que retumba na serenidade de um dia de sol. Esses casos são
raros, mas acontecem e são o efeito dessa sombria superstição
que induz as almas fracas a imputar crimes a qualquer um que
não pense como elas83.

Agora, cabe a nós, voltar nossa atenção para a história, refletir e


buscar atingir a tolerância – necessária à felicidade dos povos – por meio
da disseminação do conhecimento.

6. Considerações finais

A leitura das obras de Voltaire nos faz entender o porquê de o


autor ter se consagrado como expoente do pensamento iluminista. A im-
portância do filósofo transcendeu o tempo e a sociedade em que estava
inserido, uma vez que seu posicionamento político e o enfrentamento
de questões de sua época o tornaram não só uma referência para os seus
contemporâneos, mas também para os estudiosos modernos, sendo sua
leitura bastante atual.
Voltaire embasou-se na história da humanidade, dos diversos
povos e, sobretudo, da sociedade francesa, desenvolvendo a tese de que
os homens só poderão prosperar se tiverem a capacidade de aprender
com a história. Daí a importância da educação observada nas obras do
filósofo. Ao afirmar que o homem é criação de Deus, mas que esse lhe
dá a autonomia de pensamento84, o autor demonstra que cumpre ao pró-

83
VOLTAIRE, François-Marie Arouet. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p.
195.
84
MOTA, Vladimir de Oliveira. Acerca da noção de filosofia em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo,
2012. p. 89-90.
254 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

prio homem esclarecer-se e orientar-se pela razão, livrando-se dos dog-


mas, da intolerância e das paixões, para alcançar a felicidade individual
e coletiva85.
No que se refere aos estudos políticos, Voltaire se preocupou em
apresentar as virtudes que seriam necessárias aos governantes e, embo-
ra entendesse que atos de força faziam-se necessários às vezes, pautou-
-se sempre pela busca da tolerância86. Já em relação à religião, o filósofo
se opunha à ortodoxia do pensamento religioso cristão, que foi respon-
sável por atrocidades cometidas em nome da Igreja87. Por essa razão, o
autor propôs que a religião se pautasse nos desígnios naturais, dados ao
homem por Deus, e que ela pudesse libertar os homens dos dogmas e
das superstições88.
Assim, diante do exposto nesse trabalho, podemos concluir que
Voltaire ofereceu importantes contribuições para uma nova perspectiva
religiosa, social e política, visando alcançar a felicidade individual e cole-
tiva. O filósofo desejou demonstrar as mazelas causadas pelo fanatismo
e pela intolerância, ressaltando que a crença na existência de uma força
superior criadora – de um Deus – não se fazia por meio da credulidade
cega em absurdos e misticismos, mas sim pela correta racionalização da
experiência de vida e observação da natureza. Ainda, o filósofo frisa,
em toda a sua obra, a importância da liberdade, seja ela religiosa, políti-
ca, de expressão ou de pensamento. Ao debruçar sua construção teórica
sobre elemento tão caro à sociedade, também nos dias atuais, Voltaire,
por meio de sua obra, nos ensina o caminho para uma comunidade mais
tolerante: a razão.

Referências bibliográficas

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BENEDETTI, Priscila Sansone. Pela legitimação da tolerância: uma leitura
da obra Tratado sobre a Tolerância de Voltaire. Dissertação (mestrado)
– Faculdade de Filosofia. Departamento de Filosofia, Pontifícia Univer-
sidade Católica de São Paulo, 2011.

85
Ibid., p. 15.
86
Ibid., p. 137-138.
87
Ibid., p. 44-48.
88
Ibid., p. 111.
Ana Paula Silva Ferreira & Maria Luísa Estanislau Reis • 255

BRANDAO, Rodrigo. A ordem do mundo e o homem: estudos sobre me-


tafísica e moral em Voltaire. Tese (doutorado) – Faculdade de Filosofia,
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256 • Capítulo 9 - Voltaire: a racionalidade como forma de alcançar a tolerância...

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_____. Voltaire Foundation: Complete Works of Voltaire. Oxford: Oxford
University Press, 1968.
CAPÍTULO 10

Vontade geral vs. vontade de todos:


do que é a Democracia?

Raoni Macedo Bielschowsky

Die höchste Gemeinschaft ist die höchste Freiheit


G. W. F. Hegel

Introdução

Jean-Jacques Rousseau certamente é um dos mais importan-


tes, influentes e controversos nomes do pensamento político ocidental.
Inclusive, mais até do que apenas um grande pensador, não é demais
trata-lo como um personagem absolutamente único na história. Teve
uma vida pessoal muito conturbada, que ele próprio tratou de registrar
em algumas de suas obras, a principal delas: Confissões. Nela relata, de
forma única, fugas, maus tratos, amores, deslizes, crimes e isolamento.
A originalidade de Rousseau é tal que, segundo algumas leituras, com
Confissões o genebrino teria criado o próprio gênero literário: autobio-
grafia1.

1
Cf. MARQUES, José Oscar de Almeida. Rousseau e uma autobiografia filosófica. In: MARQUES,
José Oscar de Almeida (org.). Reflexos de Rousseau. São Paulo: Humanitas, 2007. p. 153-172. Na linha
de Stelzig, Marques tratará da obra como mais especificamente pertencente ao gênero autobiografia
romântica. Comum entre o fim do século XVIII, início do século XIX, o gênero se caracteriza por uma
narrativa confessional do próprio indivíduo que de forma artística mistura realidade e imaginação,
além dos lados historiográficos e poéticos da narrativa, em um relato e interpretação retrospectivos
sobre a formação da identidade e da personalidade do próprio escritor. Starobinski, um dos mais
conhecidos comentadores de Rousseau, também aborda a questão da autobiografia na obra do
genebrino, remarcando as angústias e questões que o próprio colocou a si mesmo, não apenas em
Confissões, mas também em outros textos como Diálogos e Devaneios, tratando da questão como a
possibilidade de pintar-se a si mesmo. STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e
o obstáculo seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1991. p. 187-207.
258 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

A peculiaridade de sua biografia, bibliografia e obra em geral é


tanta, que Mads Qvortrup a introduz da seguinte forma:

Ludwig Wittgenstein escreveu a história de amor de maior su-


cesso de seu século? Thomas Hobbes compôs uma ópera – e
ela inspirou a obra de Mozart? Byron escreveu poemas sobre
Hume ou Leibniz? Schiller compôs sonetos sobre Descartes e
Locke? Estas questões parecem muito ridículas para merece-
rem uma resposta. Faça as mesmas perguntas sobre Jean-Jac-
ques Rousseau (1712-78) e o contrário é verdadeiro. Composi-
tor da Le devin du village (a ópera favorita de Luís XV), autor da
La Nouvelle Héloïse (a novela mais vendida do século dezoito),
Rousseau foi mais do que um educador famoso e o ‘autor da
Revolução Francesa’. Ele inspirou Mozart, Derrida, Tolstoi,
Kant, Marie Antoinette, Emile Durkheim, Byron, Goethe e Si-
mone Weil, bem como políticos como Maximilien Robespierre,
Thomas Jefferson, Simon Bolivar e John F. Kennedy.2

Além disso, a profundidade, originalidade, acuidade e amplitu-


de de suas reflexões fizeram com que, em muitas situações, algumas
delas tenham sido tomadas como contraditórias. Allan Bloom, no en-
tanto, atenta para o fato de que, se por um lado, o pensamento rous-
seauniano pode, externamente, aparentar ser paradoxal – inspirando e
desejando contraditórios como virtude e sentimento, sociedade civil e
estado de natureza, filosofia e ignorância – por outro ele se coloca como
notavelmente consistente na medida em que suas alegadas contradições,
na verdade, refletem as contradições existentes na própria natureza das
coisas. Nesse sentido, Bloom identifica que inclusive o próprio Rousse-
au tinha consciência do aspecto paradoxal de sua obra3.

2
QVORTRUP, Mads. The political philosophy of Jean-Jacques Rousseau: the impossibility of reason.
Manchester: Manchester University Press, 2003. p. 1: “Did Ludwig Wittgenstein write the most
successful love story of his century? Did Thomas Hobbes compose an opera – and did it inspire the
work of Mozart? Did Byron write poems about Hume or Leibniz? Did Schiller compose sonnets
about Descartes and Locke? These questions seem too ridiculous to warrant an answer. Ask the
same questions about Jean-Jacques Rousseau (1712–78) and the opposite is true. The composer of Le
devin du village (the favourite opera of Louis XV), the author of La Nouvelle Héloïse (the best-selling
novel in the eighteenth century), Rousseau was more than the famed educationalist and the ‘au-
thor of the French revolution’. He inspired Mozart, Derrida, Tolstoi, Kant, Marie Antoinette, Emile
Durkheim, Byron, Goethe and Simone Weil, as well as politicians like Maximilien Robespierre,
Thomas Jefferson, Simon de Bolivar and John F. Kennedy”.
³ Cf. BLOOM, Allan. Jean-Jacques Rousseau. In: STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph. History of politi-
cal philosophy. 3 ed. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. p. 559-580, p. 559. Para Bloom,
essa consciência do pensador genebrino é ilustrada na sua Cartas a D’Alembert, em que trata de dis-
cutir o papel do teatro, especialmente, do teatro do esclarecimento, do qual D’Alembert, Diderot
e Voltaire eram representantes. Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Cartas a D’Alembert. Trad. Roberto
Raoni Macedo Bielschowsky • 259

Dentre os grandes temas políticos e filosóficos influenciados por


nosso pensador, o da democracia, possivelmente, é dos que maiores e
mais profundas marcas ele deixou. Rousseau preocupou-se, especial-
mente, com a formação da vida política, da sociedade civil e da comuni-
dade. Para tanto, ele partiu da fórmula do contrato social, tão marcante
da modernidade, e construiu uma narrativa totalmente original e parti-
cular, em muitos aspectos, contraposta às demais construções contratu-
alistas.
Nesse percurso, uma das chaves mais importantes, se não, mes-
mo, a mais importante da formulação rousseauniana, é a vontade geral.
Em torno dela o pensador faz gravitar a maior parte da vida política
de uma comunidade, chegando a trata-la em identidade com o próprio
contrato social.
Todavia, a leitura a respeito do que ela efetivamente representa
tampouco é uníssona. Leitores, comentadores e críticos, historicamente
divergiram e seguem discordando quanto a seus contornos, significados
e possibilidades.
No decorrer da evolução política ocidental, por várias vezes o
significado e identidade da vontade geral foram – e ainda são – confun-
didos com a simples vontade da maioria, ou mesmo, com a vontade de
todos. Contudo, apesar de por muitas vezes a vontade da maioria, efe-
tivamente, apontar para a vontade geral, essa assertiva não é absoluta. A
vontade da maioria, tomada como a simples soma das vontades indi-
viduais imediatas dos membros da comunidade não necessariamente
reflete uma vontade livre como, por definição, é a vontade geral.
Neste trabalho procurar-se-á apresentar a questão em Rousseau
a partir da exposição e argumentação do próprio pensador e de alguns
de seus comentadores, comparando interpretações distintas. Inicial-
mente procurar-se-á fazer uma exposição de leituras liberais críticas à
Rousseau – especialmente as de Constant, Talmon e Berlin – para,
em seguida, contrapor-lhes o pensamento do próprio autor. De Rous-
seau serão utilizadas, sobretudo, passagens do verbete Economia políti-
ca, publicado no tomo V da Encyclopedie (1755), primeiro texto do autor
em que aparece menção à vontade geral, e o Contrato Social, princípios do
direito político (1762), sua opus magnum. Por fim, buscar-se-á demarcar
a diferença entre a vontade geral e a simples vontade de todos, apontando
para algumas questões caras à democracia.

Leal Ferreira. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.


260 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

1. Algumas leituras liberais sobre Rousseau: uma disputa acerca do


sentido da vontade geral

Para além dos paradoxos que são próprios à obra de Jean-Jac-


ques Rousseau, as várias leituras que lhe foram feitas representam in-
terpretações por vezes bastante diversas de suas ideias. Isso ocorre por
inúmeros motivos que vão desde a abrangência de seu pensamento e
complexidade dos seus objetos de reflexão, à ampla influência que suas
ideias tiveram sobre grandes movimentos históricos, como, por exem-
plo, a própria Revolução Francesa.
Diante dessa diversidade é possível apontar a, pelo menos, duas
grandes linhas de interpretação acerca da vontade geral. Uma primei-
ra ligada ao liberalismo e a certa leitura “totalizadora” de Rousseau,
como as feitas por seus críticos Benjamin Constant, Isaiah Berlin e J.
L. Talmon4. De outro lado, há uma linha de interpretação que confere a
Rousseau um viés marcadamente democrático e que identifica em sua
construção a importante preocupação com os próprios limites ao poder
e às maiorias, bem como, com a conciliação entre a autonomia e as liber-
dades individuais.
De fato, tendo sido o Contrato Social, praticamente, a bíblia da Re-
volução Francesa, além de livro de primeira mão, e grande, influência
a Jacobinos e a Robespierre, muitas vezes foram desenvolvidas chaves
de leitura um tanto radicalizadas de suas ideias. No entanto, por outro
lado, talvez seja possível afirmar que as interpretações mais extrema-
das e totalizantes do pensamento rousseauniano foram conduzidas por
quem o criticava, em alguma medida, fazendo caricatura de suas ideias.
Isto é, vê-se menos uma leitura totalizadora de Rousseau naqueles que o
acolhem que naqueles que o criticam. Há menos defesa de Rousseau por
autores autoritários, de esquerda ou, mesmo, de direita (ainda que elas,
sem dúvida, existam), que críticas a ele desde o polo liberal.
Nesse sentido, Brint aponta que nos trabalhos de Constant
e Rousseau há uma batalha entre duas visões de liberdade colocadas
em dois modelos de sociedade: a dos modernos e a dos antigos,
respectivamente. Grosso modo, o primeiro seria um defensor da liberda-
de individual, especialmente atento ao limite da soberania e admirador

⁴ Carlos Nelson Coutinho lembra que a posição do neoliberal J. L. Talmon é curiosamente re-
produzida por Fernando Henrique Cardoso em texto de 1978: Cf. COUTINHO, Carlos Nelson.
De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011. p. 27. O texto a que
Coutinho se refere é: CARDOSO, Fernando Henrique. Democracia para mudar. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1978.
Raoni Macedo Bielschowsky • 261

da sociedade comercial moderna, enquanto o segundo seria um teórico


da soberania absoluta, basicamente preocupado com a liberdade políti-
ca e com uma crítica à sociedade moderna5.
Em seus textos, como no famoso Da liberdade dos antigos compara-
da à dos modernos, o liberal francês declara “imensa admiração” por “este
grande homem” que seria Rousseau, tratando-o como um “gênio subli-
me”. Com isso assegura não se alistar dentre seus detratores chegando
a afirmar que, inclusive, desconfia destes. Apesar disso, alega que o ge-
nebrino embora “animado pelo amor mais puro à liberdade, forneceu,
todavia, desastrosos pretextos a mais de um tipo de tirania”6. Ressalva,
ainda, que não é exatamente a Rousseau que se deve especialmente atri-
buir o erro que aponta à leitura sobre a liberdade, mas, particularmen-
te, segundo suas palavras, a um de “seus sucessores, menos eloqüente,
mas não menos austero; e mil vezes mais exagerado. Este, o abade de
Mably”7.
A crítica de Constant a Rousseau pretendia-se colocada desde
uma análise social que entendia a incompatibilidade das propostas do
autor do Contrato social com as condições da sociedade moderna. Para o
liberal, nelas não haveria limites para a soberania. Considerava que po-
liticamente o Estado imporia aos cidadãos suas escolhas públicas e que
socialmente seria negado ao indivíduo um espaço em que pudesse se-
guir seus próprios fins e interesses sem interferências. Em síntese, afirma
Brint, Constant arguia que ao se transportar o modelo rousseauniano,
desenhado pelos antigos, ao mundo moderno gerar-se-ia um modelo ti-
rânico de uniformidade social em detrimento de uma “verdadeira visão
de liberdade humana”8.
J. L. Talmon tem preocupações similares e apresenta sua críti-
ca a Rousseau desenvolvendo a ideia de democracia totalitária. Com essa
chave o historiador israelense pretendeu compreender uma série de re-

⁵ Cf. BRINT, Michael. E. Jean-Jacques Rousseau and Benjamin Constant: a dialogue on freedom and
tyranny. The review of politics, Notre Dame, v. 47, n. 3, p. 323-346, jul. 1985.
⁶ CONSTANT, Benjamin. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. Revista Filosofia
Política, n. 2, p. 9-25, 1985. BRINT, Michael. E. Jean-Jacques Rousseau and Benjamin Constant, cit. p.
325: “in the hands of the Revolutionary Terror and the supporters of Napoleon, Constant claimed,
Rousseau’s philosophy provided a justification for the ‘infinite misery’ and ‘odious measures of
tyranny’ endured under these regimes”.
⁷ CONSTANT, Benjamin, Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos, cit. O Abade Mably
foi um filósofo francês que viveu entre 1709 e 1785, que tinha uma postura hostil à propriedade
privada, sendo considerado um dos precursores do socialismo. Suas ideias também tiveram impor-
tante influência sobre a legislação revolucionária francesa.
⁸ BRINT, Michael. E. Jean-Jacques Rousseau and Benjamin Constant, cit, p. 330.
262 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

gimes que sucederam processos revolucionários na modernidade polí-


tica que, para ele, seriam herdeiros de Rousseau. Ser-lhes-ia comum a
prevalência do coletivo sobre as individualidades e alguma relação com
o messianismo político. Para Talmon, é marca da democracia, tout court,
uma aspiração ao consenso, sendo variável de regime a regime o grau
de tolerância com o dissenso. De acordo com essa leitura, o autor do
Contrato Social seria o pai dos regimes que historicamente manifestaram
pouca aceitação ao dissenso9. Nesse sentido define o próprio Talmon:

A democracia totalitária moderna é uma ditadura que se baseia


no entusiasmo popular e é assim completamente diferente do
poder absoluto exercido por um rei com direito divino ou por
um tirano usurpador. Na medida em que é uma ditadura base-
ada na ideologia e no entusiasmo das massas ela surge, como
logo se mostrará, da síntese entre a ideia de ordem natural do
século XVIII e a ideia rousseaniana de plenitude e autoexpres-
são popular. Através dessa síntese, o racionalismo foi trans-
formado em uma fé apaixonada. A “vontade geral” de Rous-
seau, um conceito ambíguo, por vezes concebida como um a
priori válido, por vezes como imanente à vontade do homem
(exclusiva e implicando unanimidade), torna-se a força motriz
da democracia totalitária, e a fonte de todas as contradições e
antinomias10.

Talmon trata esses regimes, que considera como herdeiros de


Rousseau, como regimes totalitários de esquerda. Segundo ele, os totali-
tarismos de direita entendem a natureza humana como essencialmente
má e, até por isso, priorizam entidades coletivas históricas como raça,
nação e Estado, de forma um tanto mecânica. Assim, eles se afastam
das formulas individualistas e racionalistas. Por outro lado, os totalita-
rismos de esquerda seriam marcados pela crença excessiva no próprio
humano, tendendo a um caráter universal, o que justificaria o uso da

⁹ Cf. MARTÍNEZ MEUCCI, Miguel Ángel. El concepto de democracia totalitaria en Talmon y su


pertinencia en nuestros tiempos. Politeia, v. 34, n. 47, p. 113-139, jul./dez. 2011.
10
TALMON, Jacob Leib. The origins of totalitarian democracy. Londres: Secker & Warburg, 1952, p. 6:
“Modern totalitarian democracy is a dictatorship resting on popular enthusiasm, and is thus com-
pletely different from absolute power wielded by a divine-right King, or by an usurping tyrant. In
so far as it is a dictatorship based on ideology and the enthusiasm of the masses, it is the outcome,
as will be shown, of the synthesis between the eighteenth-century idea of the natural order and the
Rousseauist idea of popular fulfilment and self-expression. By means of this synthesis rationalism
was made into a passionate faith. Rousseau’s “general will”, an ambiguous concept, sometimes
conceived as valid a priori, sometimes as immanent in the will of man, exclusive and implying una-
nimity, became the driving force of totalitarian democracy, and the source of all its contradictions
and antinomies”.
Raoni Macedo Bielschowsky • 263

força como parte do processo catalizador do progresso, da humanidade


e do homem, à perfeição e à harmonia social.
Por mais idiossincrática que seja a posição de Talmon, sua crí-
tica a Rousseau também caminha no sentido de carregar o tom da ver-
tente positiva da liberdade (nos termos de Berlin) ou da liberdade dos
antigos (nos termos de Constant) frente às suas considerações sobre a
liberdade negativa. Sua ressalva se coloca, justamente, no fato de a von-
tade geral supostamente absorver as individualidades, ainda que sob o
argumento de progresso humano, de modo a negar as particularidades
e as liberdades individuais.
A crítica de Isaiah Berlin segue linha similar, ainda que se
apresente de forma bastante mais agressiva e, mesmo, mais caricata.
O autor britânico trata Rousseau como um dos mais sinistros e formidá-
veis inimigos da liberdade em toda a história do pensamento moderno11. Para
Berlin, Rousseau é extremamente original não por causa do objeto que
trata, mas por dar sentido totalmente inédito às próprias questões e
instrumental usados por seus predecessores. Contrato, liberdade, estado
de natureza, assumiriam no genebrino, conceitos totalmente diversos
dos apresentados até então.
Assim sendo, o filósofo inglês identifica duas grandes questões
a Rousseau, o compromisso com a liberdade e o questionamento pela
forma de vida justa que, por sua vez, desemboca no tema da autoridade
do corpo social. Para Berlin, ao respondê-las, o autor do Contrato Social
faz aflorar um paradoxo, uma vez que em sua formulação haveria dois
valores absolutos: o valor absoluto da liberdade e o valor absoluto das
regras corretas, sendo o respeito a ambos inegociável. Para Berlin é jus-
tamente a identificação e a impossibilidade de flexibilização desses dois
valores que faz a originalidade de Rousseau.
Enquanto nas construções de Hobbes, Locke, Helvétius ou Mill
havia uma mediação em favor de um polo ou do outro, em Rousseau
eles são intransigíveis e por isso sua tarefa foi a de:

“encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com


toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e
pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a
si mesmo e permaneça tão livre quanto antes.” Esse é o proble-
ma fundamental cuja solução é fornecida pelo contrato social.
(...) Enfim, cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém,

11
BERLIN, Isaiah; HARDY, Henry (ed.). Freedom and its betrayal: six enemies of human liberty. 2 ed.
Princeton: Princeton University Press, 2014. p. 52.
264 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

e, como não existe um associado sobre o qual não se adquira


o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o
equivalente de tudo o que se perde e mais força para conservar
o que se tem12.

É nessa medida que, ao invés de uma relação de tensão, liberdade


e autoridade apresentam-se como dois versos de uma mesma moeda para
Rousseau. No entanto, é justamente esse o ponto que é inaceitável para
Berlin. O incomodo do inglês é tamanho, que ele chega ao ponto de
desferir uma série de críticas ad hominem ao genebrino, comparando-o
com um “matemático louco”, afirmando ser ele alguém com complexo
de inferioridade que passou os primeiros anos de sua vida como um
vagabundo (tramp) e que tudo isso estaria refletido em sua obra13. No en-
tanto, o que Berlin realmente não aceita de forma alguma é a conciliação
que o autor do Contrato Social faz entre liberdade e autoridade.
Nesse sentido, o inglês destaca a famosa frase rousseauniana:
“aquele que se recusar a obedecer à vontade geral a isso será constran-
gido por todo o corpo – o que significa apenas que será forçado a ser
livre”14 e a interpreta atomisticamente, deslocada de seu contexto e do
conjunto da construção sobre a vontade geral. Interpreta-a de forma ca-
ricata, dando a entender que o soberano em Rousseau não encontra
limites. Assim sendo, desenvolve sua crítica como se a vontade geral e a
articulação entre liberdade e autoridade representassem a completa absor-
ção totalizadora do indivíduo pela coletividade, sem senões.
Berlin chega ao ponto de afirmar que “a verdade sobre essa
construção” é a de que não houve nenhum ditador no Ocidente que,
após Rousseau, não tenha usado seu “monstruoso paradoxo para justi-
ficar suas ações”.

Os jacobinos, Robespierre, Hitler, Mussolini, os Comunistas


todos usam esse mesmo método de argumentação, de dizer
que os homens não sabem o que realmente querem – e que,
sendo assim, por quererem isso para eles, por querer isso em
seu nome, nós [os ditadores] estamos dando-lhes o que, em al-
gum sentido oculto, sem saber-se, eles próprios “realmente”
querem15.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social: Princípios do direito político. Trad. Antonio de Pá-
12

dua Danesi. 4. ed. São Paulo:, Martins Fontes, 2006. p. 20-21.


13
BERLIN, Isaiah; HARDY, Henry (ed.). Freedom and its betrayal, cit. p. 39-45.
14
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 25.
15
BERLIN, Isaiah; HARDY, Henry (ed.). Freedom and its betrayal, cit. p. 50: “He will be grateful to me
Raoni Macedo Bielschowsky • 265

Berlin faz todas essas críticas, tratando como se a “má utiliza-


ção” dos argumentos fundamentais de um pensador fosse privilégio de
Rousseau. A verdade é que a perspectiva filosófica liberal do inglês ten-
de a sempre refutar qualquer resposta não atomista à questão da liber-
dade individual16.
Com se verá, não nos parece possível tirar tais conclusões do
contexto geral da obra rousseauniana. Mais que isso, a preocupação cen-
tral de Rousseau é justamente a de conciliar ambos os polos, liberdade e
autoridade, soberania e sujeição, não criando, mas expondo o paradoxo
inerente à ordem social. A vontade geral, não se trata da simples vontade
das maiorias, nem mesmo da vontade de todos, não podendo ser con-
fundida com a simples facticidade política. O pensamento rousseaunia-
no vai muito além dessa polarização, o que pode ser observado já na
primeira utilização do termo vontade geral pelo autor.

2. Vontade geral na Encyclopedie: Diderot e o verbete direito natural

A primeira vez que a ideia de vontade geral apareceu em um texto


de Rousseau foi em 1755, numa de suas contribuições à famosa Encyclo-
pedie, editada por Diderot e d’Alembert, que contava com contribuições
de importantes figuras como Montesquieu, Voltaire e outros grandes
intelectuais da época, em sua maioria, bastante ligados ao Iluminismo
francês.
No tomo V da Encyclopedie publicou-se um verbete sobre o Direi-
to Natural, escrito por Diderot, e um sobre Economia Política, de autoria
de Rousseau. Sabine aponta ser evidente que, em alguma medida, eles
dialogavam e, em certo sentido, “serviam de companheiro um ao ou-
tro”. Fato é que ambos utilizavam a expressão vontade geral e, por isso,
Sabine afirma ser inseguro apontar qual dos dois autores cunhou a ex-
pressão – ainda que ela tenha sido definitivamente apropriada e consa-

for it if he ever discovers what his own true self is: that is the heart of this famous doctrine, and there
is not a dictator in the West who in the years after Rousseau did not use this monstrous paradox
in order to justify his behaviour. The Jacobins, Robespierre, Hitler, Mussolini, the Communists all
use this very same method of argument, of saying men do not know what they truly want – and
therefore by wanting it for them, by wanting it on their behalf, we are giving them what in some
occult sense, without knowing it themselves, they themselves ‘really’ want”.
16
BERLIN, Isaiah; HARDY, Henry (ed.). Freedom and its betrayal, cit. p. 52: “This is the sinister par-
adox according to which a man, in losing his political liberty, and in losing his economic liberty, is
liberated in some higher, deeper, more rational, more natural sense, which only the dictator or only
the State, only the assembly, only the supreme authority knows, so that the most untrammelled
freedom coincides with the most rigorous and enslaving authority”.
266 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

grada pelo genebrino17.


A verdade é que a expressão vontade geral é anterior a esses dois
autores e está presente na obra de Malebranche, Montesquieu, Pascal,
dentre outros18. No entanto, como afirma Judith Shklar, se é verdade
que não foi Rousseau que inventou o termo, definitivamente foi ele que
fez sua história19.
No século XVIII e na Ilustração, de uma maneira geral, a preo-
cupação com o direito natural foi muito cara e presente. Até por isso,
Diderot inicia o verbete Droit naturel (morale) – Direito natural (moral)20 –
afirmando que, em sendo o tema tão íntimo e próprio a todos, qualquer
um ao analisa-lo, fosse ele filósofo ou cidadão comum, estaria convenci-
do de que o conhecia com toda a evidência. No entanto, com um olhar
mais apurado o filósofo começaria a verificar que a questão do direito
natural trata-se das mais importantes e difíceis de compreender dentre
todas as noções morais.
Ela diz respeito aos contornos da liberdade de cada um e à sua
delimitação na vida em comunidade. A questão do justo e do injusto, do
bem e do mal moral, da obrigação e do direito, estão ligadas à liberdade
e ainda que a existência humana seja pobre, contenciosa e inquieta, cheia
de paixões e necessidades, a verdade é que queremos ser felizes. O ho-
mem justo deseja a seus iguais apenas aquilo que deseja que façam para
ele mesmo, enquanto o injusto comumente sente-se compelido a fazer
aos outros o que não desejaria que fizessem a si. Nesse sentido, Diderot,
inclusive, vai além e afirma que em algumas situações essa equação não
é, ela mesma, suficiente para saber-se o parâmetro de justiça, pois o ho-
mem justo que deseja sua própria morte não pode exigir que os outros
homens também queiram morrer.
Assim sendo, o que permite ao indivíduo saber e fazer o que é
justo é o fato dele, diferentemente dos outros animais, pensar e, por isso,
ser capaz de descobrir a verdade: “quem se recusa a procurá-la renuncia
à qualidade de homem e deve ser tratado pelo resto da sua espécie como

17
SABINE, George H. História de la teoría política. Trad. Vicente Herrero. 3 ed. México: FCE, 1994.
p. 446.
18
RILEY, Patric. The General Will before Rousseau: The Contributions of Arnauld, Pascal, Male-
branche, Bayle, and Bossuet. In: FARR, James; WILLIAMS, David Lay (eds.). The general will: evolu-
tion of a concept. Nova York: Cambridge University Press, 2014. p. 3-71.
19
SHKLAR, Judith N. General Will. In: WIENER, Philip P. (ed.) Dictionary of the History of Ideas. V.
II. New York: Charles Scribner’s Sons, 1973. p. 275.
DIDEROT, Denis. Direito natural: moral. Trad. João da Silva Gama. Covilhã: Lusofia. Disponível
20

em: http://www.lusosofia.net/textos/diderot_direito_natural.pdf
Raoni Macedo Bielschowsky • 267

besta feroz; quem se recusa a conformar-se com a verdade, uma vez des-
coberta, é insensato ou perverso com maldade moral”21.
Desse modo, é retirado do indivíduo o direito quanto a decidir
sobre a natureza do justo e do injusto. Ela deve ser colocada para avalia-
ção “perante o género humano: somente a ele compete dela decidir, já
que o bem de todos é a única paixão que tem. As vontades particulares
são suspeitas; podem ser boas ou más, mas a vontade geral é sempre
boa; nunca enganou, jamais enganará”22.
Eis então que surge a ideia de vontade geral em Diderot, relacio-
nada não a uma comunidade particular, a valores variáveis, mas com
um caráter universal, sendo, portanto, relativa a todo o gênero humano.
A partir dessa compreensão, entende-se que cada indivíduo tem o “di-
reito natural mais sagrado” a tudo o que não é contestado pela espécie
inteira. O que nos caracteriza como gênero comum, por sua vez, é o fato
de sermos animais racionais. Assim, para Diderot, é à vontade geral que
cada indivíduo deve recorrer para saber como deve agir como homem,
cidadão, sujeito, pai, filho, inclusive sobre se lhe convêm viver ou mor-
rer.
Quando se pergunta onde se encontra o depósito da vontade ge-
ral, Diderot afirma que ela está:

nos princípios do direito escrito de todas as nações civilizadas;


nas acções sociais dos povos selvagens e bárbaros; nas conven-
ções tácitas dos inimigos do género humano entre si, e até na
indignação e no ressentimento, essas duas paixões que a natu-
reza parece ter colocado até nos animais, para suprir a ausência
de leis sociais e da vingança pública23.

O verbete encerra-se com um resumo das questões sobre o direito


natural enumeradas em nove pontos intimamente relacionados à ques-
tão da vontade geral: 1º) o homem que escuta apenas sua própria vonta-
de particular é inimigo do gênero humano; 2º) portanto, a vontade geral
é ato de puro entendimento em cada um, assim, isolado das paixões,
o indivíduo será capaz de raciocinar sobre o que pode cada um exigir
de seu semelhante; 3º) desse modo, a vontade geral é considerada desejo
comum da espécie humana e, portanto, regra de conduta relacionada à
reciprocidade entre indivíduos em uma mesma sociedade, entre cada

21
DIDEROT, Denis. Direito natural, cit. p. 5.
22
DIDEROT, Denis. Direito natural, cit. p. 6.
23
DIDEROT, Denis. Direito natural, cit. p. 7.
268 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

particular e a sociedade que compõe e, inclusive, entre as várias socie-


dades humanas; 4º) destarte, para Diderot, a submissão à vontade geral é
o laço que une todas as sociedades, “sem dele exceptuar as que são for-
madas pelo crime. Ah! A virtude é tão bela que até os ladrões respeitam
a sua imagem no fundo das suas cavernas”24; 5º) logo, as leis devem ser
feitas de forma geral, nunca apenas para um, mas sempre para todos; 6º)
de mesmo modo, como a vontade geral nunca erra, para a felicidade do
gênero humano o poder legislativo deve pertencer sempre a ela, nunca
à vontade particular, sendo veneráveis aqueles indivíduos cuja vontade
particular coincide com a infalibilidade e a autoridade da vontade geral;
7º) o direito natural é imutável pois ele sempre diz respeito ao desejo
comum de toda espécie, à vontade geral que para Diderot, como visto, é
ela mesma imutável; 8º) nesses termos, a relação entre equidade e justiça
é a relação entre causa e efeito, isto é, “a justiça só pode ser equidade
explícita”; 9º) e, por fim, finaliza-se o verbete com a afirmação de que
“todas estas consequências são evidentes para quem raciocina, e quem
não o quiser fazer, renunciando à qualidade de homem, deve ser tratado
como um ser desnaturado”25.
Sendo dos maiores representantes do Iluminismo francês, Dide-
rot dá à vontade geral inegável caráter universalista. Para ele, ela é abso-
lutamente racional, imutável e atingível pelo entendimento. O mesmo
não acontece com Rousseau, autor de virada, de síntese e de paradoxos.

3. Vontade geral na Encyclopedie, tomo V: Rousseau e o verbete Eco-


nomia política

No verbete sobre Economia Política26 da Encyclopedie, Rousseau


adiantou boa parte das ideias que veio a desenvolver mais tarde no Con-
trato Social, publicado em 1762. No texto de 1755 já se vê a formulação da
comunidade com personalidade coletiva – com um moi comum –, a ideia
de um corpo social que tem na vontade geral as pautas morais válidas
para seus membros, dentre outras coisas.
Vale o destaque de que o verbete de Rousseau é publicado onze
anos antes da d’A riqueza das nações de Adam Smith (1776), obra que,

24
DIDEROT, Denis. Direito natural, cit. p. 7.
25
DIDEROT, Denis. Direito natural, cit. p. 8.
26
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political economy. In: ROUSSEAU, Jean-Jacques. The
social contract and discourses. Trad. G. D. H. Cole. London and Toronto: J.M. Dent and Sons, 1923. p.
247-287. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/0132_Bk.pdf
Raoni Macedo Bielschowsky • 269

via de regra, é considerada como o marco zero da economia moderna


e inaugural da disciplina de ciências econômicas como a tratamos hoje.
Deste modo, o texto de Rousseau discute questões políticas em senti-
do amplo, relacionadas ao governo do Estado, com recorte, abordagem
e metodologia completamente diferentes dos que hoje são tidos como
próprios da economia política.
O texto inicia-se abordando a raiz etimológica grega da pala-
vra economia (οικονομία), em que oikos (οἶκος) significa “casa” e no-
mos (νόμος) – dentre os vários significados possíveis – é tomado como
“lei”27. Assim, Rousseau afirma que o significado original da palavra
economia era relacionado apenas ao sábio e legítimo governo da casa para
o bem comum de toda a família e que esse sentido tornou-se extensível
à grande família que é o Estado. Desde logo, registra-se, ainda, que com
o tempo passou-se a distinguir a economia geral ou política – referente às
coisas do Estado – da economia doméstica ou particular.
Apesar dessa explanação, Rousseau afirma que as semelhanças
entre a família e o Estado limitam-se à obrigação de seus líderes com o
bem estar de seus grupos. Assim, as próprias regras de conduta para
atingir esse objetivo em ambos os casos devem ser tomadas como com-
pletamente diferentes. Enquanto o pai, líder da família descrita por Rou-
sseau, deve seguir sempre a voz da natureza, o magistrado que governa
o Estado terá nela um falso guia. Enquanto o primeiro tem de apenas
seguir seu coração, o segundo será um traidor caso siga o seu, pois mes-
mo a razão individual do magistrado deve-lhe ser suspeita, uma vez que
ele não pode seguir qualquer outra regra que não a da razão pública que
é a lei.
Na sequência do texto, Rousseau faz uma diferenciação que será
importante para suas construções futuras. Ele distingue governo (Gouver-
nement) e Soberania (Souveraineté). Enquanto esta tem o direito de legislar
– “e em certos casos amarrar o próprio corpo da nação”28 – o governo
somente tem o direito de executar, vinculando apenas os indivíduos.
Portanto, a soberania é livre e plena, enquanto o governo é executivo e
mais estritamente determinado. Deste modo, a soberania deve legislar
de acordo com a vontade geral, enquanto o governo deve dirigir o Estado

27
No texto original “loi” e na tradução inglesa “law”, respectivamente: Cf. ROUSSEAU, Jean-Jac-
ques; VAUGHAN, Charles Edwyn (ed.). The Political Writings of Jean Jacques Rousseau. V. I. Cam-
bridge: Cambridge University Press, 1915; Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political
economy, cit. p. 249.
28
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political economy, cit. p. 252: “and in certain cases
binds the body of the nation itself”.
270 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

de acordo com a lei.


Diante disso, Rousseau destaca três regras fundamentais da eco-
nomia política, isto é, do governo: i) o governo legítimo tem de ter por ob-
jeto o bem do povo e, por isso, deve seguir a vontade geral que a princípio
é instituída na lei; ii) para que a vontade geral seja cumprida, é necessário
que as vontades particulares se ajustem a ela; iii) e decorre da própria
vontade geral o dever do Estado de não apenas proteger os cidadãos, mas
de dar garantias mínimas para sua subsistência.
Assim, o corpo político é tratado em analogia a um organismo,
mais especificamente, com o próprio corpo humano. O genebrino afirma
ser essa uma comparação muito comum, ainda que, em algum sentido,
pouco precisa. De todo modo, é nesse contexto que pela primeira vez
aparece a expressão vontade geral.
Afirma que o corpo político é um ser moral que possui vontade,
uma vontade geral, que sempre tende à preservação e ao bem estar do
todo, por conseguinte, também de cada parte. Ela é a fonte das leis, sen-
do constituída por todos os membros do Estado, quer nas relações que
os particulares têm entre si, quer nas que têm com o próprio Estado. A
vontade geral, portanto, é a medida, a regra entre o que é justo e injusto29.
Por isso, a primeira e mais importante regra da Economia política é que
o governo legítimo tenha por objeto o bem do povo, isto é, que siga a
vontade geral que, por sua vez, a princípio, é instituída na lei.
Ao contrário do que propôs Diderot, que a compreendia com
caráter universal, comum a todo o gênero humano, para Rousseau a
vontade geral tem traços um tanto mais relacionais, sendo própria a cada
comunidade. Para o autor do Contrato Social, toda sociedade política é
composta de associações menores de inúmeras espécies – transitórias
ou permanentes, formais ou tácitas – e cada uma delas tem interesses e
regras de conduta próprias. Pelo efeito de suas vontades essas regras e
interesses influenciam a vontade coletiva da comunidade mais ampla.
Portanto, a vontade das sociedades particulares coloca-se, sempre, com
duas vertentes: por um lado ela é vontade geral em relação aos membros
dessas associações e, por outro, ela é vontade particular em relação à
associação maior.
Daí aduz-se duas consequências que revelam o caráter relacio-
nal do conceito no genebrino. A primeira consiste no fato de a vontade
de um Estado só ser tida como geral especificamente em relação a seus
membros, sendo individual e particular (não geral) para os estrangeiros

29
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political economy, cit. p. 253.
Raoni Macedo Bielschowsky • 271

e para os outros Estados. A segunda encontra-se no fato de, ao menos


nessa primeira abordagem, Rousseau propor que em que pese ela ser
vontade geral para uma comunidade mais apertada, como uma associa-
ção religiosa, militar ou o senado, ela é vontade particular em relação ao
Estado. Assim, afirma textualmente que é possível ser um padre devoto,
um bravo soldado ou senador zeloso e, ao mesmo tempo, um mau ci-
dadão.
Ressalva, no entanto, que na medida em que as sociedades par-
ticulares sempre são subordinadas à sociedade mais geral, o dever que
decorre da condição de cidadão (em relação ao Estado) tem precedência
sobre o dever decorrente da condição de soldado (em relação ao corpo
militar); e que, por sua vez, o dever decorrente da condição de ser hu-
mano (em relação à humanidade) tem precedência sobre a condição de
cidadão30.
Sendo a vontade geral que é imperativa a cada comunidade deve
institucionalizada através da lei. Destarte, Rousseau afirma que o pri-
meiro dever do legislador (em sentido vulgar, aquele que faz a lei)31 é
tornar as leis compatíveis com a vontade geral. Contudo, essa construção
não se dá em termos de facticidade, mas, sim, de validade32, de proposi-
ção normativa. Nesse sentido:

Determinemos cuidadosamente o que ocorre em toda delibera-


ção pública e veremos que a vontade geral busca sempre o bem
comum; mas muitas vezes há uma divisão secreta, uma aliança
tácita, que, por causa de objetivos particulares, faz com que a
disposição natural da assembleia seja aviltada. Neste caso, o
corpo da sociedade é efetivamente dividido em vários outros
corpos, cujos membros sustentam uma vontade geral boa e jus-
ta no que diz respeito a cada um desses novos agrupamentos,
mas injusta e ruim em relação à associação total da qual esses
corpos menores foram desmembrados33.

30
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political economy, cit. p. 254.
31
A questão do Legislador em Rousseau é muito mais complexa que a definição sobre quem faz as
leis, até porque, para ele, o responsável por essa função é o próprio povo, reunido em assembleia
que diretamente exerce a soberania. Figura diferente é a do Legislador, ser humano excepcional,
na história e no Estado, capaz de incutir valores e de criar o próprio povo. O tema é abordado mais
detidamente no Contrato Social. Sobre a questão, por todos: PIRES, Edmundo Balsemão. “O povo
não sabe o que quer” alguns aspectos da crítica hegeliana a J. J. Rousseau, a respeito da idéia de
legitimidade e da origem do Estado, entre 1817/18 e 1820. Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, v.
8, n. 15, p. 65-115, mar. 1999.
32
MATOS, Manuel João. Rousseau e a lógica democrática. Lisboa: Edições Colibri, 2008. p. 231-234.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political economy, cit. p. 254: “Carefully determine
33

what happens in every public deliberation, and it will be seen that the general will is always for the
272 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

Assim, a lei deve institucionalizar a vontade geral em termos nor-


mativos, mas isso não significa, para Rousseau, que ela deve ser tomada
de forma absoluta como tal. Já no texto de 1755, está claro que para nos-
so pensador a formulação de que a obediência à lei é incondicional revela-se
apenas na circunstância plena de que esta também esteja incondicional-
mente identificada com a vontade geral.
Ainda nesse sentido, reforçando essa compreensão, em Rousse-
au, do mesmo modo que a lei é vinculada à vontade geral, os governantes
e a administração da justiça devem se conformar à lei34. No entanto, esta
é incapaz de esgotar todas as possibilidades e conjunturas em que o go-
vernante deve decidir. Assim sendo, há um sem número de situações
que não são minuciosamente reguladas pela lei, cuja decisão é deixada
à “sabedoria dos governantes”. Nestas, devem eles, primeiro, recorrer
ao espírito da lei. Não sendo ele suficiente, devem socorrer-se imedia-
tamente à própria vontade geral, “fonte e suplemento de todas as leis”.
Contudo, nessas circunstâncias, cabe a pergunta que o próprio Rousse-
au faz retoricamente o próprio genebrino: como é possível o governante
conhecer e agir de acordo com a vontade geral?
O autor do Contrato Social responde rechaçando qualquer possi-
bilidade de se reunir todo o povo em assembleia, e o faz por duas razões.
Uma de ordem prática, sustentando que esse método seria impraticável
em Estados de grandes populações e outra de ordem lógica, quando
afirma que tampouco é possível ter certeza se em tais condições a res-
posta de uma assembleia, efetivamente, corresponderia à vontade geral.
Destarte, pondera que essa assembleia “dificilmente seria necessária
onde o governo fosse bem intencionado”.
Isso porque, para Rousseau, o governante bem intencionado sa-
beria perfeitamente que a vontade geral está sempre do lado mais favorá-
vel ao interesse público, isto é, do lado mais equitativo. Logo, para agir
de acordo com a vontade geral, bastaria agir com justiça e quando ela é
desrespeitada muito abertamente, em que pese as imensas amarras da
autoridade pública, isso se torna notório e claramente sentido. Essa res-
posta de Rousseau afasta-o consideravelmente da interpretação vulgar
e da crítica corriqueira que o liberalismo lhe faz.

common good; but very often there is a secret division, a tacit confederacy, which, for particular
ends, causes the natural disposition of the assembly to be set at nought. In such a case the body of
society is really divided into other bodies, the members of which acquire a general will, which is
good and just with respect to these new bodies, but unjust and bad with regard to the whole, from
which each is thus dismembered”.
34
ROUSSEAU, Jean-Jacques. A discourse on political economy, cit. p. 258.
Raoni Macedo Bielschowsky • 273

A incompatibilidade da interpretação liberal e da crítica tota-


lizante a nosso pensador fica ainda mais clara em sua opus magum, O
Contrato Social, em que se vê mais claramente, inclusive, o delineamen-
to de espaços individuais em que não apenas a vontade geral não pode
interferir, mas cuja proteção decorre da própria vontade geral.

4. Vontade geral vs.Vontade de todos no Contrato Social

O Contrato social, princípios do direito político é o ápice do ideário


político de Rousseau. Nele encontram-se questões relacionadas à fonte
de legitimidade da relação política de sujeição e, assim, as bases de fun-
dação de uma ordem inexistente até então que veio a desembocar em
um formato que até hoje perdura como o modelo político legítimo do
ocidente: o modelo democrático.
Segundo o próprio Rousseau, seus predecessores como Hobbes,
Grócio e Pufendorf, estavam preocupados em justificar “os princípios
do direito político” a partir de “fatos” ao invés de busca-los em um dever
ser. Hobbes, por exemplo, fundamentava a ordem política a partir da
busca pela segurança e, para tanto, motivava a relação política de su-
jeição na necessidade da existência de um poder forte que impedisse o
homem de ser o lobo do homem.
Ao contrário deles, Rousseau não buscava a fundamentação da
ordem política na própria estrutura, internamente, fundamentando-a
em uma pré-existência do poder. Do contrário, para ele a finalidade do
Estado era a persecução do bem comum de seus cidadãos e é esta ins-
tituição seria a responsável por balancear a oposição existente entre os
diversos interesses particulares da sociedade.
É justamente a comunhão dos interesses dos indivíduos que
obriga a existência do Estado, pois “o vínculo social é formado pelo
que há de comum nesses diferentes interesses, e, se não houvesse um
ponto em que todos os interesses concordam, nenhuma sociedade
poderia existir. Ora, é unicamente com base nesse interesse comum que
a sociedade deve ser governada”35.
Nessa esteira, uma questão central na obra política de Rousse-
au, já desde o texto de 1755, mas de modo ainda mais claro no Contrato
Social, diz respeito à identificação da ideia de vontade geral como sendo
o melhor e mais adequado interesse da coletividade, pelo qual esta sem-

35
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 33.
274 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

pre deve nortear-se. Trata-se, portanto, de um dever ser absoluto para a


totalidade de indivíduos da comunidade que, ao mesmo tempo – e por
isso mesmo – é “uma ‘essência’ respeitante a ‘todos’, sob pena de resul-
tar comprometida sua ‘rectidão natural’”36.
No momento hipotético do pacto social, cada cidadão deve re-
nunciar às suas vontades particulares que confrontam a vontade geral
da comunidade. Nessa construção, pode identificar-se um bem comum
mediato a ser atingido pela subordinação imediata das vontades par-
ticulares à vontade geral. Esse bem mediato é a conservação do grupo
político que tem por questão de fundo, justamente, a preservação de
cada um de seus membros. Assim, o respeito aos interesses comuns da
coletividade identifica-se, também, com o respeito ao interesse de cada
cidadão enquanto parte desta.
Dessa forma, a vontade geral, sempre reta, é também o melhor
para cada um de seus membros, justamente por representar o melhor
para o grupo social. Ainda q ue essa construção pareça tautológica ela,
efetivamente, não o é. Ao contrário, trata-se de proposição dialógica,
pois encara o sentido de pertencimento político próprio e necessário à
lógica democrática. Assim, já se vê nessa formulação a estrutura holís-
tica que, em alguma medida conecta com os antigos, mas que também
marcará tantos autores até a contemporaneidade, como nas propostas
comunitaristas e republicanas37.
Nestes termos, Rousseau propõe que a vontade geral encontra-se
subjacente a cada cidadão ainda que nem todos eles sejam capazes de
reconhecê-la. Ela é latente em cada indivíduo, ora que cada um “sempre
quer o bem”, independentemente de ser capaz de visualizá-lo.
Além disso, ela é indestrutível, pois, ainda que não seja reco-
nhecida pelos cidadãos, e nem mesmo pelo Estado ou pela sociedade,
não há que se falar que em alguma situação a vontade geral possa estar
“aniquilada ou corrompida”, mas, apenas, subordinada a vontades par-
ticulares que a subjugam indevida e conjunturalmente. Diante de tudo
isso, normativamente, a vontade geral é a única razão que deve nortear o
Estado.
Dessa forma, os deveres que cada cidadão assume com a coleti-
vidade e com o Estado, são deveres assumidos tanto com a comunidade

COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade moral da Constituição: da fundamentação da validade


36

do Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2009. p. 351.


37
Não por acaso, Sabine intitula o capítulo de sua obra destinado a Rousseau: El redescubrimiento de
la comunidade: Rousseau. In: SABINE, George H. História de la teoría política, cit. p. 439-454.
Raoni Macedo Bielschowsky • 275

quanto consigo mesmo. Ao avocar o pacto social, o indivíduo assume


consigo e com os demais cidadãos o compromisso de subordinar seus
interesses particulares (imediatos) ao interesse comunitário (mediato),
na medida em que estes forem aparentemente conflitantes.
No entanto, “o que está fundamentalmente em causa, em Rous-
seau, é ‘encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com
toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado e pela qual
cada um, unindo-se a todos, não obedeça, contudo, senão a si mesmo’”38.
Destarte, na construção do genebrino não há efetiva contradição entre o
interesse comum e o interesse individual.
Sendo a vontade geral, ao mesmo tempo, bem comum e bem indi-
vidual (mediato), a submissão do cidadão às regras da comunidade se
justifica no fato de esse elemento partilhado – um sentimento de unida-
de e integridade que envolve a vontade geral (bem comum) – fazer com
que todos tenham o compromisso com as decisões coletivas, mesmo que
elas sejam “imediatamente” (aparentemente) contrárias a seus interes-
ses particulares.
Essa formulação poderia parecer justificar as críticas liberais à
Rousseau, indicando sua vertente totalizadora. No entanto, no Contrato
Social – e mesmo antes dele, no verbete sobre Economia política – o gene-
brino destaca que nem todas as questões referentes aos indivíduos estão
no campo de “atuação” da vontade geral. Pelo contrário, ela só influencia
os interesses particulares na medida em que estes intersectam o interes-
se da coletividade.
Assim sendo, existe uma reserva de subjetividade de cada indi-
víduo naqueles assuntos que não dizem respeito a questões da coletivi-
dade. E quanto a isso, Rousseau é peremptório: “não existe vontade geral
acerca de um objeto particular”39.
Portanto, o denominador de bem comum que é represen-
tado pela vontade geral não diz respeito a toda e qualquer esfera da
individualidade, pelo contrário. Em Rousseau é explicito que, a par dos
assuntos típicos à coletividade, há uma esfera particular que não cabe à
comunidade interferir. No próprio texto Contrato Social, há um exemplo
claro e explícito de uma esfera dessa natureza, quando é tratada a ques-
tão da tolerância religiosa:

os súditos só devem ao soberano contas de suas opiniões na

38
COUTINHO, Luís Pedro Pereira. Autoridade moral da Constituição, cit., p. 351-352.
39
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 46.
276 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

medida em que estas interessam à comunidade. Ora, ao Estado


importa que cada cidadão tenha uma religião que o faça amar
seus deveres; os dogmas dessa religião, porém, não interessam
nem ao Estado nem a seus membros, a não ser enquanto se li-
gam à moral e aos deveres que aquele que a professa é obrigado
a obedecer em relação a outrem. No mais, cada qual pode ter as
opiniões que lhe aprouver, sem que toque ao soberano tomar
conhecimento delas, pois, como sua competência não chega ao
outro mundo, o destino dos súditos na vida futura não lhe diz
respeito, contanto que sejam bons cidadãos nesta vida40.

Não fosse esse o sentido pretendido por Rousseau não haveria


no Contrato Social, capítulo (IV, Livro II) intitulado: Dos limites do Poder
Soberano. Nele lê-se textualmente:

além da pessoa pública, temos de considerar as pessoas priva-


das que a compõem e cuja vida e liberdade são naturalmente
independentes dela. Trata-se, pois, de distinguir entre os res-
pectivos direitos dos cidadãos e do soberano, e dos deveres que
os primeiros devem cumprir na qualidade de súditos, e o direi-
to natural que devem gozar na qualidade de homens41.

Nesse sentido, é possível interpretar a relação entre a vontade


geral e a liberdade individual do cidadão em sentido, inclusive, ainda
mais profundo. Na medida em que o pacto social justifica-se enquan-
to promotor do bem comum, tendo como base fundadora a liberdade
e a igualdade de todos os membros, as esferas de individualidade de
cada cidadão não apenas devem ser protegidas da interferência arbi-
trária da coletividade enquanto limite negativo, mas sua proteção deve
ser compreendida como dever positivo de todos para com todos. Isso
porque essa proteção é, ela mesma, parte da persecução desse bem co-
mum identificado na vontade geral. Isto é, é da própria vontade geral da
comunidade que seus cidadãos tenham suas esferas estritamente par-
ticulares protegidas não apenas contra a coletividade, mas, também, pela
própria coletividade.

40
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 165.
41
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 39. E segue: “No tocante a tudo quanto cada
um aliena, pelo pacto social, de seu poder, de seus bens e de sua liberdade, convém-se que repre-
senta somente a parte de tudo aquilo cujo uso interessa à comunidade, mas é preciso convir tam-
bém que só o soberano pode julgar desse interesse. Todos os serviços que um cidadão pode prestar
ao Estado passam a ser um dever tão logo o soberano os solicite; mas o soberano, de sua parte, não
pode onerar os súditos com nenhuma pena inútil à comunidade; não pode sequer deseja-lo, pois,
sob a lei da razão, não menos que sobe a da natureza, nada se faz sem causa.”.
Raoni Macedo Bielschowsky • 277

Questão relacionada a essa, contudo, diversa e, talvez, ainda


mais complexa, é de como identificar-se a vontade geral. Isso porque, ape-
sar de ela ser “indestrutível”, de estar sempre correta e de ser subjacente
a cada e em cada cidadão, o próprio Rousseau atenta para o fato de
que nem sempre os indivíduos e a própria coletividade estão em condi-
ção de “reconhece-la”. Além disso, mesmo em conhecendo-a, eles nem
sempre estão em condição de virtuosamente compreender que mais lhes
vale subordinar seus interesses particulares imediatos à persecução do
bem comum.
É nessa medida que entra outra demanda perene à obra de Rou-
sseau que é a questão da formação e educação do indivíduo. Isso por-
que, para o genebrino, a efetiva identificação e reconhecimento, pelos
cidadãos, dessa relação de subordinação dos interesses meramente par-
ticulares à coletividade é diretamente proporcional ao grau de esclareci-
mento de um povo.
Apenas em um estado ideal da sociedade, em que os homens fos-
sem suficientemente esclarecidos, a vontade geral corresponderia sempre
à vontade da maioria. Isso porque nessa situação utópica cada indiví-
duo conseguiria identificar quais são os interesses comuns e reconhecer
que estes devem sobrepor-se aos interesses meramente particulares que
não lhes são compatíveis. Assim sendo, nesse estado ideal, a aferição da
vontade da maioria do povo corresponderia de modo absoluto com a
vontade geral.
No entanto, não há segurança que isso ocorra em um Estado real
– e talvez seja possível afirmar que tampouco essa seja a aspiração de
Rousseau. De todo modo, nas sociedades reais a vontade da maioria
pode corresponder não à vontade geral, mas à mera vontade de todos. E é
nesse sentido que o próprio Rousseau diferencia:

há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral;


esta se refere somente ao interesse comum, enquanto a outra
diz respeito ao interesse privado, nada mais sendo que uma
soma das vontades particulares. Quando, porém, se retiram
dessas vontades os mais e os menos que se destroem mutua-
mente, resta a soma das diferenças, a vontade geral42.

Assim, os indivíduos, por vezes inebriados por seus interesses


particulares ou por interesses particulares de determinados grupos, não
necessariamente conservam a capacidade de reconhecer a vontade geral.

42
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 37.
278 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

Novamente nas palavras de Rousseau, “a vontade geral é invariavel-


mente reta e tende sempre à utilidade pública; mas daí não resulta que
as vontades do povo tenham a mesma retidão. Deseja-se sempre o pró-
prio bem, mas não é sempre que se pode encontrá-lo”43.
Assim, ao tentar transportar para uma sociedade fática essa es-
trutura de forma literal, no sentido de identificar que a vontade da maio-
ria corresponde à vontade geral, esse modelo torna-se inválido. É nessa
direção que se encaminha a crítica de Manuel João Matos às leituras
liberais de Rousseau:

É pois um monumental erro de exegese, filosófica e histórica,


confundir a teoria da “vontade geral” com a “tirania da
maioria”, como na senda de Constant, cometeram uma plêiade
de filósofos liberais, modernos e contemporâneos. Rousseau
não confundiu a regra da maioria com o processo con-
sensual de formação da lei em sede deliberativa e a
legitimidade ético-normativa dos conteúdos da lei
sempre se sobrepôs ao carácter factual da sua empí-
rica tomada de decisão e execução. É a velha confu-
são da política realista com a ética normativista do
cidadão, o plano do ser e do dever ser que, em polí-
tica se confundem mais do que em outra área cien-
tífica, a mescla dos “factos” com o direito “ ou da
“facticidade” com a “validade”, a simbiose da história
política e da filosofia política, que está na origem
deste preconceito sobre o pensamento de Rousseau
e que, actualmente é tão debatido, porque se situa
no âmbito da própria democracia44.

Por isso mesmo, é preciso ter-se claro que, em termos rousseau-


nianos, afirmar que a lei se legitima pela vontade geral não significa que
ela corresponda, necessariamente, à mera vontade de todos. Em Rousseau,
e possivelmente para toda lógica democrática, a regra da maioria deve
ser tratada como um processo de decisão e não como um princípio de decisão
absoluto. Portanto, como afirma Matos, “é uma condição necessária, mas
não suficiente para a existência do regime democrático”45.

43
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 37.
44
MATOS, Manuel João. Rousseau e a lógica democrática, cit. p. 232.
45
MATOS, Manuel João. Rousseau e a lógica democrática, cit. p. 232.
Raoni Macedo Bielschowsky • 279

Destarte, em Rousseau, formalmente, a lei é a expressão da von-


tade do corpo político e contém as condições básicas de existência desse
grupo, dos deveres e direitos dos cidadãos46. Estas, por sua vez, repre-
sentam as próprias cláusulas do contrato social: deveres assumidos não
somente com os demais membros da sociedade, mas, também, por cada
cidadão consigo mesmo.
Por conseguinte, só diz respeito à lei os assuntos gerais e comuns
da comunidade de forma que “o povo estatui sobre o povo”, não ca-
bendo a ela interferir na esfera meramente particular do cidadão. Por
isso mesmo essa norma deve ser sempre geral e abstrata, de forma a ser
dirigida a todo o corpo político e não a indivíduos determinados, sendo
possível dizer que no estado civil todos os direitos estão nela estabele-
cidos.
Assim sendo, a vontade de todos só será justa e democrática, na
medida em que guarde correspondência com o próprio bem comum. Se
este pode ser tomado como contrário aos interesses meramente parti-
culares, tende-lhe ser identificado o compromisso com a liberdade e
igualdade de seus indivíduos. Destarte, a vontade de todos, efetivamente,
encontra limites na própria vontade geral, da qual decorre a proteção às
esferas estritamente particulares de liberdade de cada cidadão.

Considerações Finais

Rousseau é um autor único no curso do pensamento ocidental.


Ele apresentou uma série de críticas e transformações em relação a seus
predecessores que, das duas uma, ou modificaram o próprio curso do
pensamento político, ou anteciparam questões que só vieram a ser apro-
fundadas nos anos, décadas e séculos seguintes.
Seu impacto foi especialmente sentido na história do pensamen-
to democrático, sendo especialmente marcante seu desenvolvimento
quanto à vontade geral. Dentre as várias interpretações que foram fei-
tas desse conceito, é possível dividi-las em duas grandes linhas, entre
aqueles que entendem que há uma prevalência absorvedora da indivi-
dualidade pela coletividade e aqueles que entendem que a tensão entre
liberdade e autoridade/sujeição é encaminhada de forma a balancear e
respeitar as próprias esferas de individualidade.

46
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social, cit. p. 48, “As leis não são, em verdade, senão as
condições da associação civil. O povo submetido às leis deve ser o autor delas; somente aos que se
associam compete regulamentar as condições da sociedade”.
280 • Capítulo 10 - Vontade geral vs. vontade de todos: do que é a Democracia?

Considerando que Rousseau fundamenta a própria justiça do


contrato social na vontade geral – em alguns momentos, inclusive, iden-
tificando ambos os conceitos – e, de mesmo modo, que os relaciona à
própria natureza livre e igual dos indivíduos, não há razão para atribuir
à sua construção qualquer leitura totalizante.
Rousseau expressamente aponta à vontade geral uma identidade
ética, necessariamente comprometida com esses dados parâmetros de
justiça. Assim, as eventuais vontades das maiorias ou, mesmo, a vontade de
todos que desprezem os fundamentos próprios, típicos e justificadores
do contrato social – a comunhão de indivíduos livres e iguais –, efetiva-
mente não correspondem ao ideal de justiça, tão pouco ao bem comum,
por conseguinte, à vontade geral da comunidade democrática.
Assim sendo, ainda que do ponto de vista hipotético e ideal a
vontade da maioria, mais ainda, a vontade de todos, coincida com a vontade
geral, essa assertiva não pode ser transportada à facticidade de maneira
automática. Não se deve fazer isso sob pena de, nesse caso sim, justifi-
car o despotismo da maioria, a tirania dos muitos contra os poucos, a
absoluta subordinação a liberdade do eu à nua vontade de todos. No
entanto, tal afirmação não pode ser feita a partir Rousseau, mas somente
à sua revelia, contra seu ideal de comunidade política e avessa a seu
pensamento democrático e libertador.
A vontade de todos pode corresponder à vontade geral, mas com ela
não se confunde em termos absolutos. Isso porque é, inclusive, próprio
ao bem comum o respeito à liberdade e igualdade dos indivíduos, sendo
este o fundamento último do contrato social rousseauniano.

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STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau: a transparência e o obstáculo
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São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CAPÍTULO 11

Jean-Jacques Rousseau:
do homem natural ao homem social

Rafael Costa de Souza1


Rosa Juliana Cavalcante da Costa2

L´homme est né libre, et partout il est dans les fers. Tel


se croit le maître des autres, qui ne laisse pas d´être plus
esclave qu´eux (Rousseau, Du contrat social).

1. Metodologia e obras escolhidas

O trabalho propõe analisar as ideias difundidas por Jean-Jacques


Rousseau tocantes ao conceito de homem natural – ou selvagem – e a
transição para aquele político, com esteio na leitura da obra “Discurso
sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”. A pes-
quisa bibliográfica também se apoia em conceitos ministrados em “Do
Contrato Social”, sobretudo o de democracia participativa, e em “Confis-
sões”, esta última como subsídio para traçar a vida do autor e suas cone-
xões com o momento histórico.
Ademais, foram utilizados artigos e livros dedicados a Rousse-
au, tanto quanto aplicáveis aos objetivos deste Paper, visto que algumas
perspectivas analíticas não se adequavam inteiramente ao estudo pro-
posto.
Quanto à estrutura, buscou-se acompanhar o próprio desenvol-
vimento das proposições contidas no livro-base, descrevendo-se, uma
vez superado o panorama histórico, o perfil indicado pelo filósofo polí-
tico daquele indivíduo “primitivo”, a maneira como se articula e atende
às próprias necessidades. Empós, analisa a narrativa quanto à transição

¹ Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor do Centro Universi-
tário Newton Paiva.
² Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista CAPES.
284 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

ao indivíduo social e os elementos pertinentes, sobretudo a moralidade,


a cultura e a propriedade privada.
Outrossim, indicam-se os vícios e a desordem decorrentes da
mutação em análise, assim como a desigualdade, institucionalizada pelo
poder arbitrário e pela magistratura, conferindo aparência legítima às
injustiças que se consolidavam.
Finalmente, nas considerações apresentadas sobre o novo estado
de natureza apontado por Rousseau, busca-se conciliar as ideias então
exploradas com as propostas em sua obra mais célebre, “Do Contrato So-
cial”, associadas como, de forma intrínseca, planos do dever-ser e do ser.
3
Sem propor um retorno ao estado original, o autor sugere o equilíbrio
pelo livre comprometimento político.

2. Biografia do autor e contexto histórico

Jean-Jacques Rousseau nasce em Genebra, Suíça, no ano de 1712,


filho de Isaac Rousseau, joalheiro, e de Sezanne Bernard, que falece em
decorrência do parto poucos dias após o nascimento do filho.4
Nos anos seguintes, sob os cuidados do pai, desenvolve forte
inclinação à leitura, de início dos romances deixados pela mãe e, pos-
teriormente, de obras de teor político e filosófico, como bem descreve
em “Confissões”5, o que fomentou, de acordo com o próprio filósofo, o
espírito livre e republicano que afloraria mais adiante.
Ocupa-se na juventude de ofícios como moço de recados e grava-
dor, mas para nenhum revela talento. Encontra amparo à frágil condição
financeira sob proteção de Sra. Warens, em Annecy, para quem oferece
préstimos relacionados à Medicina e à Alquimia. Nesse período, tam-

3
COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política Apud HAUSER, Ester Eliana. O ideal democrático
no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau. In: WOLKMER, Antônio Carlos (Org). Introdu-
ção à história do pensamento político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 169.
⁴ ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Ensaio sobre a Origem das Línguas. Discurso so-
bre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Discurso sobre as Ciências e as
Artes. In: Os Pensadores. v. XXIV. São Paulo: Nova Cultural, 1997. p. 5.
⁵ “De ces intéressantes lectures, des entretiens qu’elles occasionnaient entre mon père et moi, se forma cet es-
prit libre et républicain, ce caractère indomptable et fier, impatient de joug et de servitude, qui m’a tourmenté
tout le temps de ma vie dans les situations les moins propres à lui donner l’essor. Sans cesse occupé de Rome
et d’Athènes, vivant pour ainsi dire avec leurs grands hommes, né moi-même Citoyen d’une République, et fils
d’un père dont l’amour de la patrie était la plus forte passion, je m’en enflammais à son exemple, je me croyais
Grec ou Romain; je devenais le personnage dont je lisais la vie: le récit des traits de constance et d’intrépidité
qui m’avaient frappé me rendait les yeux étincelants et la voix forte. Disponível em: <www.dominiopubli-
co.gov.br/download/texto/aa000094.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 285

bém se dedica ao estudo da música, permitindo-lhe obter recursos como


professor.6
Em 1742, muda-se para Paris, monarquia sob controle do rei Luís
XV. Ali, a convite de D’Alembert, participa da redação da Enciclopédia,
relativamente aos temas música e economia política. A obra surge em
contexto de renovação filosófica e social inspirada pelo Iluminismo, mas
enfrenta oposição do monarca, que a considerou subversiva e buscou
reprimir os estudiosos envolvidos com condenações públicas e manda-
dos de prisão.7
O incômodo do monarca revela, na verdade, a decadência do
Antigo Regime e do poder absoluto do Rei, bem como o fortalecimento
de uma classe burguesa, em detrimento da aristocracia e do clero8. Evo-
cava-se o direito à liberdade sob diversos aspectos, sobretudo econômi-
co e intelectual. O Liberalismo exigia a intervenção estatal mínima em
matéria negocial, sustentando que o mercado estaria apto a reger-se e
equilibrar-se autonomamente. Os progressos tecnológicos fomentavam
a pungência econômica, ao tempo que subsidiavam o pensamento cien-
tífico desvinculado de premissas religiosas.
Edgar Morin afirma que a ciência, naquele contexto, assume o
papel de produtora do conhecimento, destacando que a razão “guia a
humanidade na direção do progresso e assim o progresso torna-se a lei
inexorável da história”9.
Sobre o Século das Luzes, Cassirer explica que nenhum outro lhe
superou quanto à relevância da noção de progresso intelectual, conci-
liando uma progressão quantitativa a uma determinação qualitativa do
conhecimento. Para o autor, “a ‘razão’ é o ponto de encontro e o centro
de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os
seus esforços, de seu querer e de suas realizações.”10
Mas o significado e a percepção concebida à razão não devem ser
tomados de modo uniforme. Neste aspecto reside distinção relevante

⁶ ROUSSEAU, cit., p. 6.
⁷ La storia della pubblicazione dell’Encylopédie [s.n.t.]. Disponível em: http://www.oil project.
org/lezione /diderot-dalembert-encyclopedie-enciclopedia-filosofia-riassunto-illuminismo-france-
se-10671.html. Acesso em 02 jul. 2016.
⁸ Contexto Histórico Rousseau [s.n.t.]. Disponível em: < http://documents.mx/documents/1-contex-
to-historico-rousseau.html#>. Acesso em 17 jul. 2016.
⁹ MORIN, Edgar. Para além do Iluminismo. Revista FAMECOS, n. 26, 2005, p. 25. Disponível em:
<http://200.144.189.42/ojs/index.php/famecos/article/view/416/343>. Acesso em 16 julho 2016.
10
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo. Trad. Álvaro Cabral. Campinas: UNICAMP, 1992.
Disponível em: <https://politica210.files.wordpress.com/2015/03/cassirer-ernst-a-filosofia-do-ilumi-
nismo-1-ed.pdf>. Acesso em 16 jul. 2016.
286 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

entre Rousseau e os autores da Enciclopédia – bem como em relação


aos demais contratualistas daquele período. Enquanto a racionalidade
alcançava posição de centralidade no pensamento vigente, o filósofo em
estudo mantinha reservas – atinha-se ainda a certo espírito bucólico e
romântico, o homem natural encontrando sua essência no amor-de-si e
em seus instintos, não na razão suprema.
Morin, a esse respeito, esclarece que Rousseau confere à natureza
relevância matricial, sustentando que “sozinha a razão tem um caráter
abstrato e quase inumano”11, motivo pelo qual não reduzira à condição
secundária noções de afetividade e intimismo.
Isso se revela mais notório em 1753, quando se dedica ao tema
“Qual é a origem da desigualdade entre os homens e se é autorizada pela lei
natural”, proposto pela Academia de Dijon. O questionamento enseja a
publicação, no ano seguinte, do segundo Discours. Na obra, Rousseau
exalta o homem natural, que viveria para atendimento de suas necessi-
dades usufruindo das benesses da natureza, sem necessidade de convi-
vência social. Privado da razão e de noções de civilidade, inicialmente,
teria se adaptado às adversidades importas pelas circunstâncias, o que
lhe fez associar-se a outros. Mas a referida agregação trouxe consigo a
imposição de uma ordem – regras para socialização – injusta, baseada
na arbitrariedade e na injustiça.
Sete anos depois, Rousseau tornaria ao assunto, mas com outra
perspectiva. Em “Do Contrato Social”, o filósofo se volta para o homem
civilizado, regido por um ordenamento que lhe assegura a liberdade de
que dispunha o homem selvagem, mas em pleno gozo das garantias a
que se filiara ao assentir a um pacto equilibrado, feito entre a sociedade
e aqueles que disciplinariam a coletividade.

3. O Homem Natural

Buscando compreender o homem em sua origem, em estado na-


tural, Rousseau conjecturou o modo como os indivíduos viviam – e por
quais diretrizes se regiam -, perpassando as habilidades, virtudes, lin-
guagem e comportamento.
É relevante sublinhar que o intuito do suíço era menos histórico
do que hipotético. Edesmin Paredes esclarece esse entendimento ao
revelar que o objetivo central desse recurso seria o de “sustentar a

11
MORIN, Para além do Iluminismo, cit., p. 25.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 287

vontade original do homem, já desfigurada pelo desenvolvimento da


sociedade”.12 Não pretendia Rousseau, portanto, indicar o real processo
histórico vivenciado pelo homem, mas sim utilizar uma hipótese capaz
de, a despeito das múltiplas possibilidades dos acontecimentos, alcançar
sua essência e as modificações sofridas ao longo do tempo.
Para o filósofo, os ditos selvagens viviam dispersos, movidos por
seus instintos, sem necessidade ou dependência de outros sujeitos, o que
não propiciava a formação de comunidades. Para satisfazer suas deman-
das mais urgentes de alimentação e autoconservação, desenvolveram
habilidades de ataque e de defesa – velocidade e força para buscar o ali-
mento; agilidade e robustez para enfrentar os males que lhe ameaçavam
a segurança.
Ainda em virtude da condição solitária, a linguagem não teria
sido explorada ou desenvolvida – ou, ainda, apenas de forma incipiente
-, pois seu aprimoramento pressupunha o contato com outros indivídu-
os.
Ao concentrar-se na análise de gênero, Rousseau contrapõe a fi-
gura da mulher, associada ao pudor e à delicadeza, à do homem, que
seria forte e corajoso para assegurar a sobrevivência13.
A despeito das diferenças destacadas pelo filósofo, Rousseau
vislumbrava elementos em comum que os afastavam dos demais seres
sensíveis. Homens e mulheres se diferenciariam dos animais em dois
aspectos relevantes: primeiramente, a capacidade de não se deixar intei-
ramente ao jugo da natureza – também sua imperatividade lhe recairia,
mas o indivíduo seria capaz de se reconhecer livre para submeter-se ou
resistir.
Sob o aspecto moral, opõe-se à tese de que o homem seria natu-
ralmente belicoso e cruel. Entende, em verdade, que aos selvagens não
se poderiam atribuir esses caracteres – eles não seriam bons ou maus
porque não se regeriam sob essas referências. A eles aplicar-se-iam ape-
nas dois princípios, anteriores à razão: o de autoconservação e o de rejei-
ção ao sofrimento ou à morte do outro.
Sávio Santos, nesse sentido, compreende que o estado de nature-
za não fomentaria a capacidade moral. Busca esclarecer que a natureza
bondosa do homem selvagem estaria justamente no sentido amoral do

12
PAREDES, Edesmin Wilfrido Palacios. A liberdade e a igualdade do homem, no estado natural e social,
segundo Jean-Jacques Rousseau. 2007. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. Disponível em: <http://
www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-26112007-140627/>. Acesso em: 18 jul. 2016.
13
Ibid., p. 11.
288 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

indivíduo naquele estágio: significaria apenas, conforme o estudioso,


a ausência de maldade. Esse sentimento, inclusive, permitiria o desen-
volvimento daqueles já citados, por ele referidos como conservação e
comiseração do sujeito em relação ao outro, do qual se distanciava em
virtude de sua autonomia.14
Rousseau repudia ainda a propriedade como direito natural.
Para ele, as desigualdades naquele estágio inaugural seriam sensíveis –
basicamente aquelas ligadas à idade ou à saúde. Não haveria, naquele
momento, as noções de “meu” e “seu”, isto é, de apropriação do que lhe
cerca. O surgimento da desigualdade, da qual a propriedade é símbolo
maior, decorreria de um processo histórico que o filósofo formula, ainda
pautado nas conjecturas por ele traçadas.
Também refuta a corrupção como característica ínsita ao homem
natural. Para ele, afirma Evaldo Becker, admitir hipótese contrária signi-
ficaria “aceitar a situação de corrupção e de opressão vivenciada pelos
povos ao longo de sua sociabilidade”.15Ater-se à ideia de que o homem
teria a possibilidade de aperfeiçoar-se – para o melhor ou para o pior –
permitiria subsidiar a tese de que as mazelas vivenciadas pela sociedade
decorreriam da própria ação humana, não de um fator intrínseco irre-
mediável, permitindo ainda “atribuir este mal-estar às escolhas assumi-
das por estes em suas construções sócio-político-morais”16

4. Do Homem Natural ao Homem Social

Rousseau narra o processo de socialização do indivíduo em eta-


pas cuja compreensão é necessária para acompanhar a passagem da
dispersão e do isolamento ao convívio em grupo e à dependência em
relação aos seus iguais.17 Para o filósofo suíço, em seu estágio inaugural,
o homem detinha consciência do existir e ação instintiva para sobreviver
às intempéries impostas pela natureza. Perpassa ainda o aprimoramen-

14
SANTOS, Sávio Gonçalves dos. A Pessoa em Jean-Jacques Rousseau. 2011, p. 55. Dissertação (Mes-
trado em Filosofia). Instituto de Filosofia, Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais. 2017.
Disponível em: http://biblioteca.versila.com/10214217>. Acesso em: 18 jul. 2016.
15
BECKER, Evaldo. Natureza, ética e Sociedade em Rousseau. Cadernos de Ética e Filosofia Po-
lítica, [S.l.], n. 21, julho 2013, p. 34. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/cefp/article/
view/58318/61323>. Acesso em: 18 jul. 2016.
16
BECKER. Natureza, ética e Sociedade em Rousseau, cit., p. 34.
17
HAUSER, Ester Eliana. O ideal democrático no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau.
In: WOLKMER, Antônio Carlos (Org.). Introdução à história do pensamento político. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003. p. 171.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 289

to de técnicas de caça, a produção de fogo e o vigor físico para autopre-


servação.
Em virtude das circunstâncias a que era submetido, surgem-lhe
novas luzes (“prudência maquinal”), o que o distingue de maneira mais
notória dos demais seres sensíveis. Inicia o processo de aproximação
e codependência por meio de pequenos grupos, como o familiar, am-
pliando o contato e a dinâmica social até a formação de grupamentos
maiores, a exemplo de nações.
A vivência coletiva ensejaria hábitos de socialização e diverti-
mento, o que faria revelar questões como vaidade, beleza e o desejo de
destacar-se frente aos demais por meio de habilidades que seriam exi-
bidas em público. Nesse contexto, o autor compreende que a dança e a
música teriam sido os elementos primeiros para o que posteriormente se
consolidaria em vício e desigualdade entre os indivíduos.
Distanciados do estado original, assumiriam deveres de civilida-
de, cuja inobservância representaria grave ofensa e daria azo a reações
violentas. Além disso, a moralidade, para além dos princípios elencados
por Rousseau e já descritos em tópico pretérito, consolidou-se entre os
homens.
No plano econômico, destaca que a inicial produção para subsis-
tência teria sido sobreposta pelo cultivo em grande escala, o que pressu-
pôs a acumulação de terras – a propriedade, assim, não seria algo inato
aos indivíduos, não seria resultante de leis naturais, mas uma constru-
ção social. As relações comunitárias também precisaram adaptar-se a
essa nova realidade, reforçando as necessidades entre os sujeitos, mas
com conotações assimétricas: haveria nesse contexto o claro propósito
de obter vantagem a partir da exploração do trabalho do outro, aprofun-
dando os desníveis socioeconômicos já existentes.
Coutinho explica que esse processo teria preparado o indivíduo
para duas hipóteses de contrato social: o primeiro negaria ao indivíduo
a liberdade e a igualdade, aprofundando as diferenças no seio comu-
nitário; o segundo, almejado, teria o condão de aprimorar as caracte-
rísticas relegadas pelo modelo anterior, o que faria dele o sistema mais
legítimo para reger o corpo político.18
Em Discurso, Rousseau apresenta perspectiva pessimista sobre
os rumos que a sociedade, afastada de seus elementos naturais, adota-

18
COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política Apud HAUSER, Ester Eliana. O ideal democrático
no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau. In: WOLKMER, Antônio Carlos (organizador).
Introdução à história do pensamento político. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 173.
290 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

va. A lei seria conjugada para legitimar a desigualdade e torná-la irre-


tratável. Também a Magistratura e o Poder oficial, arbitrário e tirânico,
perpetuariam as diferenças civis, fomentando a miséria, a exploração e
a desordem – este último aspecto em decorrência do direito de renunciar
ao contrato social em caso de descumprimento pelo gestor.
Todavia, a obra que lhe segue, “Do Contrato Social”, apresenta
outra vertente dessa concepção de organização política – daí a comuni-
cação e complementaridade entre as obras -, na qual se vislumbra uma
direção mais otimista para a dinâmica social, respeitando princípios ba-
silares ao direito político.

5. O Contrato Social

Com o rompimento do estado de natureza, os indivíduos deixa-


ram de viver isolados e, consequentemente, foi quebrada a independên-
cia, que era fruto do isolamento. Na natureza não havia disputas, pois
ela satisfazia todas as necessidades. No estado social, os homens passam
a depender uns dos outros. A convivência gera os conflitos.
Não sendo possível satisfazer seus interesses sem levarem consi-
deração os outros, restaram aos seres humanos duas alternativas: com-
bater ou cooperar. A primeira opção significaria continuar num estado
de natureza, mesmo ele tendo sido quebrado. Então, os indivíduos op-
tam por se associarem, constituindo um pacto – uma ligação comunitá-
ria artificial – com o fim de defender as pessoas e os bens de cada um:19

Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com


toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e
pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si
mesmo e permaneça tão livre quanto antes. Este é o problema
fundamental cuja solução é fornecida pelo contrato social.20

A cláusula básica desse contrato é a alienação total sem reservas


de todos os direitos de cada associado a toda comunidade. Assim, todos
ficariam submetidos à nova ordem de forma igual e ao mesmo tempo
ninguém se submete a ninguém: “cada um de nós põe em comum sua
pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e

CARDOSO, Edgard Cabral. Liberdade natural e liberdade civil no pensamento de J.-J. Rousseau.
19

Controvérsia, v.2, n.2, p. 12-21, jan.-jun. 2006, p. 16.


20
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. Tradução Antonio de
Pádua Danesi; revisão da tradução Edison Darci Heldt. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 291

recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível do to-


do”.21
Dessa maneira, o contrato social seria o marco do momento em
que os homens deixariam de se relacionar meramente como indivíduos
e passariam a conviver como cidadãos.

6. Desigualdade e corrupção

Jean-Jacques Rousseau concebe duas espécies de desigualdade:


natural e moral. A primeira diz respeito à desigualdade percebida na
própria constituição física dos seres humanos, como a força física e agili-
dade motora. A última se refere àquela decorrente da vida política:

“Concebo na espécie humana, duas espécies de desigualdade:


uma a que chamo natural ou física, por ser estabelecida pela
natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das
forças do corpo e das qualidades do espírito ou da alma; a ou-
tra, a que se pode chamar desigualdade moral ou política, por
depender de uma espécie de convenção e ser estabelecida, ou
pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Esta
consiste nos diferentes privilégios que alguns usufruem em
prejuízo dos outros, como serem mais ricos, mais reverencia-
dos e mais poderosos do que eles, ou mesmo em se fazerem
obedecer por eles”.22

No Discurso, Rousseau propõe que a desigualdade – tanto a na-


tural, como a moral – acabou por causar uma dependência entre os ho-
mens. Essa, por sua vez, resultou numa relação social essencialmente
opressiva, uma vez que poucos acabaram por submeter o interesse da
maioria aos seus interesses particulares. Isto seria a corrupção do es-
tado social, no qual a desigualdade - antes mera desigualdade natural
– é substituída pela desigualdade social, enquanto tratamento desigual
dado pela lei. A lei corrompida não iguala, pelo contrário, distingue os
homens.23
Nesse sentido, a corrupção se dá pela edição de leis que fazem
distinções e concedem benefícios a alguns indivíduos em detrimento da

21
Ibid., p. 21-22.
22
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Ho-
mens: precedido de discurso sobre as ciências e as artes. Cronologia e introdução Jacques Roger;
tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 159.
23
CARDOSO. Liberdade natural e liberdade civil no pensamento de J.-J. Rousseau, cit., p. 15.
292 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

vontade geral. Neste momento, o Estado passa a ser usurpado por al-
guns indivíduos e rompe com a liberdade, uma vez que passa a existir a
sujeição da vontade de um indivíduo – déspota – em relação aos demais
– súditos.24
A corrupção do estado nada mais seria que o estado natural tra-
vestido de estado social:

É este o último termo da desigualdade, e o ponto extremo que


fecha o círculo e toca o ponto de que partimos; é nele que todos
os particulares voltam a ser iguais porque nada são, e que,
já não tendo os súditos outra lei além da vontade do senhor,
nem o senhor outra regra além das suas paixões, se esvaem
mais uma vez as noções do bem e os princípios da justiça.
É nele que tudo se resume apenas à lei do mais forte e, por
conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele
por que começamos, porque um era o estado de natureza em
sua pureza, e este último é o fruto de um excesso de corrupção.
Aliás, há tão pouca diferença entre esses dois estados, e o
contrato de governo está dissolvido pelo despotismo, que o
déspota só é o senhor enquanto é o mais forte e, tão logo o
podem expulsar, ele não pode reclamar contra a violência. A
rebelião que acaba por estrangular ou destronar um sultão é
um ato tão jurídico como aqueles pelos quais ele dispunha, na
véspera, das vidas e dos bens de seus súditos. Apenas a força o
mantinha, apenas a força o derruba; todas as coisas se passam,
assim, de acordo com a lei natural, e, seja qual for o desfecho
dessas curtas e frequentes revoluções, ninguém pode queixar-
-se da injustiça alheia, mas somente de sua própria imprudên-
cia, ou de sua infelicidade.25

O pessimismo do Discurso26 é substituído pelo otimismo de direi-


to do Contrato.27 Rousseau demonstrará que o corpo político poderá ter
outra configuração que possibilite o atendimento aos interesses gerais.28
Percebe-se que ele não enxergava a civilização simplesmente como aqui-
lo que traz a corrupção, mas como o momento de efetivação das suas
características essencialmente humanas:

24
Idem.
25
Ibid, p. 240.
26
O termo se refere a obra de Rousseau: “ Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigual-
dade entre os homens”.
27
CARDOSO. Liberdade natural e liberdade civil no pensamento de J.-J. Rousseau, cit., p. 19.
MARTIN, Adriano Eurípedes Medeiros. A corrupção e a perfectibilidade: a questão em Jean-Jacques
28

Rousseau. 2011. 214f. Tese (Doutorado em Filosofia). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Universidade Federal de Minas Gerais. 2011. p. 152.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 293

A passagem do estado de natureza ao estado civil produz no


homem uma mudança considerável, substituindo em sua con-
duta o instinto pela justiça e conferindo às suas ações a mora-
lidade que antes lhes faltava. Só então, assumindo a voz do
dever o lugar do impulso físico, e o direito o do apetite, o ho-
mem, que até então não levara em conta senão a si mesmo, se
viu obrigado a agir com base em outros princípios e a consultar
sua razão antes de ouvir os pendores. Conquanto nesse estado
se prive de muitas vantagens concedidas pela natureza, ganha
outras de igual importância: suas faculdades se exercem e se
desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se eno-
brecem, toda a sua alma se ela a tal ponto que, se os abusos
dessa nova condição não o degradassem amiúde a uma condi-
ção inferior àquela de que saiu, deveria bendizer sem cessar o
ditoso instante que dela o arrancou para sempre, transforman-
do-o de um animal estúpido e limitado num ser inteligente,
num homem.29

Entretanto, para a configuração desse novo corpo político, é ne-


cessário que a sociedade tenha leis baseadas na igualdade e na liberda-
de. Rousseau afirma explicitamente que ambos são os maiores de todos
os bens e objetivos do sistema legislativo.30

7. Liberdade e Igualdade

Rousseau distingue o homem dos outros animais pela sua facul-


dade de escolher, ou seja, pela sua liberdade natural:

[...] a natureza manda em todos os animais, e o bicho obedece.


O homem sente a mesma impressão, mas se reconhece livre
para aquiescer ou para resistir, sendo sobretudo na consciência
dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma,
pois a física explica de certa maneira o mecanismo dos senti-
dos e a formação das ideias; mas, na faculdade de querer, ou
melhor, de escolher, e no sentimento dessa faculdade só se en-
contram atos puramente espirituais, dos quais nada se explica
pelas leis da mecânica [...].31

Para Rousseau, a outra incontestável distinção entre o homem e

29
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 26.
30
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 62.
31
ROUSSEAU. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, cit., p. 173.
294 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

o animal é a sua perfectibilidade.32 Indo além, ele afirma que a faculdade


de se aperfeiçoar é o que move o homem, fazendo “desabrochar com os
séculos as suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, tornando-o
com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza”. 33 Esta progressiva
transformação é que faz com que a sociedade humana mude, ao contrá-
rio da vida animal, que estaria fadada a sempre ser a mesma.
A liberdade em Rousseau pode ser dividida em duas dimensões:
uma metafísica extraída da leitura do Discurso; e a outra jurídica exposta
no Contrato.34
No estado natural o homem é guiado unicamente pelos seus ins-
tintos e por isso é escravo da natureza.35 No isolamento dos bosques e
independente dos outros indivíduos, o homem selvagem almeja somen-
te atender suas necessidades a partir dos meios hábeis a satisfazê-las e
buscar a autoconservação:

Sozinho, ocioso, e sempre próximo do perigo, o homem selva-


gem deve gostar de dormir e ter o sono leve como o dos ani-
mais que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, todo o
tempo em que não estão pensando. Sendo a própria conser-
vação quase o seu único cuidado, suas faculdades mais exer-
citadas devem ser aquelas cujo objetivo principal é o ataque e
a defesa, seja para subjugar sua presa, seja para evitar ser a de
outro animal; pelo contrário, os órgãos que só se aperfeiçoam
pela indolência e pela sensualidade devem permanecer num
estado de grosseria, que exclui nele qualquer espécie de delica-
deza; e, estando seus sentidos divididos nesse ponto, ele terá o
tato e o paladar de uma rudeza extrema e a visão, a audição e o
olfato da maior sutileza.36

A partir da perspectiva metafísica, a liberdade é algo sem a qual


o homem perde a sua “qualidade de homem”. Entretanto, ela só passa a
existir quando o homem abandona o estágio primitivo, sendo que esta
fase não é imediatamente sucedida pelo pacto social. Há um período
intermediário, no qual o homem não está simplesmente submetido às
leis da natureza, mas ainda não obedece a lei civil. Neste momento, o

32
Ibid, p. 173.
33
Ibid, p. 174.
MOSCATELI, Renato. A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau. Princípios
34

Natal, v. 15, n. 24, jul./dez. 2008, p. 60.


35
Ibid, p. 61.
36
ROUSSEAU. Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, cit., p. 171.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 295

homem é guiado por suas vontades pessoais e por uma liberdade pre-
cária.37 Apenas com o contrato social, este processo volitivo passa a ser
presumido ao refletir os próprios princípios do pacto comunitário.
Como a liberdade é um atributo indissociável do ser humano, o
estado social não pode querer anulá-la. Não sendo possível retornar à
noção da liberdade do estado de natureza, deve-se constituir uma or-
dem na qual o homem possa usufruir da liberdade natural convertida
em liberdade civil – que seria sua dimensão jurídica. Assim, a liberdade
natural “se institucionaliza juridicamente, no âmbito da comunidade
política, como liberdade civil, no plano da e para a participação políti-
ca”.38
Rousseau explica o papel da liberdade na passagem do estado de
natureza ao estado civil:

“A passagem do estado de natureza ao estado civil produz no


homem uma mudança considerável, substituindo em sua con-
duta o instinto pela justiça e conferindo às suas ações a morali-
dade que antes lhe faltava. Só então, assumindo a voz do dever
o lugar do impulso físico, e o direito o do apetite, o homem,
que até então não levara em conta senão a si mesmo, se viu
obrigado a agir com base em outros princípios e a consultar sua
razão antes de ouvir seus pendores”.39

O fundamento que legitima a obrigação social está na convenção


entre todos os membros do corpo político. Nesse sentido a obrigação
decorre da liberdade em se obrigar. Isto significaria que a autoridade de
um sobre o outro não é natural e ela só advém de um contrato firmado
de forma livre e consciente.40
O homem perde no contrato social a liberdade natural, mas ga-
nha a liberdade civil. Enquanto a primeira tem como limite apenas a
força do indivíduo, a segunda é limitada pela vontade geral. 41
Para Rousseau, os indivíduos só efetivamente se constituem
como homens na medida em que se mantém livres na vida social, atra-
vés da adesão consentida ao contrato social pelo uso da razão: 42

37
MOSCATELI. A liberdade como conceito metafísico e jurídico em Rousseau, cit., p. 74.
38
CATTONI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 88.
39
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 25-26.
40
HAUSER, O ideal democrático no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau, cit., p. 175.
41
ROUSSEAU, O contrato social, cit., p. 26.
KOHN, Ananda Mila. Acerca da especificidade do conceito de liberdade no pensamento político
42

de Rousseau. Semana Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCRS- VIII,


296 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

(...) poder-se-ia acrescentar à aquisição do estado civil a liberda-


de moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor
de si, porquanto o impulso do mero apetite é a escravidão, e
a obediência à lei que se prescreveu a si mesmo é liberdade.43

O corpo político ganha vida com o pacto social. Já o seu movi-


mento e vontade se dá pela legislação. A lei seria um ato emanado da
vontade geral sobre um objeto. Nesse sentido, ela exige a convergência
entre a vontade e o interesse por meio da linguagem.44 A lei não tem ou-
tra finalidade senão a de resguardar a liberdade e, consequentemente, a
igualdade, uma vez que a legislação deve garantir que não haja abusos
e arbitrariedades.45
A partir do contrato social, cada componente do corpo político
deve ser ao mesmo tempo cidadão e súdito. “Cidadão, porque membro
do soberano46 e participante da atividade do corpo político, e súdito,
porque obediente às leis votadas por esse corpo”. 47 Nesta lógica, o indi-
víduo é cidadão por ter liberdade de votar, e súdito por se submeter à
vontade legislativa.
Nesse sentido, o direito à liberdade é compreendido “como di-
reito à autodeterminação política, que se realiza através do exercício da
liberdade civil e da soberania do povo, na construção de uma comuni-
dade ou ‘corpo’ ético-político”.48
No entanto, esta concepção de associação pressupõe dois requi-
sitos: predomínio da vontade geral e relativa igualdade de riqueza.
Primeiro, a vontade geral não é meramente a soma de todas as
vontades particulares. Rousseau afirma que cada indivíduo pode ter
uma vontade particular que seja oposta a sua vontade geral de cidadão.49
Assim, Rousseau distingue a vontade geral da vontade de todos.
Enquanto a primeira “é invariavelmente reta e tende sempre à utilidade

Edição, 2011.
43
ROUSSEAU, O contrato social, cit., p. 26.
44
ROUSSEAU, O contrato social, cit., p. 47.
45
MARTIN. A corrupção e a perfectibilidade, cit., p.153.
46
Nota explicativa sobre o Soberano apresentada na edição consultada do Contrato Social: “O povo
de Genebra e, mais especialmente, o Conselho Geral dessa cidade, chamado de Soberano Conselho
(1.200 “cidadão e burgueses”), no qual Rousseau foi admitido a tomar parte uma vez em 1754”
(ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 171).
47
HAUSER. O ideal democrático no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau, cit., p. 176.
48
CATTONI. Devido Processo Legislativo, cit., p. 87.
49
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 24.
Rafael Costa de Souza & Rosa Juliana Cavalcante da Costa • 297

pública”50, a segunda diz respeito à somatória dos interesses privados,


“nada mais sendo que uma soma das vontades particulares”51.
A vontade geral exige um elemento moral, pelo qual o indivíduo
se identifica com o corpo político e subjuga livremente seu interesse par-
ticular ao comum. Ela é um vínculo comunitário formado pelo que há
de comum nos diferentes interesses.52 É algo que move os cidadãos num
mesmo sentido.53
A busca pelo interesse geral seria então uma busca moral que
transforma a liberdade natural em liberdade civil.54 Logo, a vontade ge-
ral é a única que tem possibilidade de dirigir o Estado em direção ao
bem comum.55
Por outro lado, a vontade geral não pode ser atingida numa so-
ciedade em que a desigualdade de riqueza estimula cada um a agir com
seus próprios interesses. Rousseau não advoga em favor da supressão
da propriedade privada, mas sustenta a necessidade de uma igualdade
material por meio da limitação do excesso da propriedade. 56
O pacto social substitui a desigualdade natural (ou física) pela
igualdade moral, na qual todos se tornam iguais por convenção e de
direito. 57
E é nesse sentido que a liberdade e a igualdade se apresentam
como os princípios basilares da construção de uma sociedade legítima
e democrática.

8. Considerações finais

Para Rousseau, o homem no estado de natureza era bom, vivia


de forma feliz e usufruía da sua liberdade. Por sua vez, o homem social
se corrompeu. O indivíduo que vivia no isolamento e na abundância da
natureza foi substituído por um homem que vive num constante estado
de conflito.

50
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 37.
51
Idem.
52
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 33.
CARVALHO, Manoel Jarbas Vasconcelos. Rousseau e o conceito da vontade geral: princípio
53

metafísico ou pacto social? Revista Helius, ano 1, n. 1. Jul-dez 2013, p. 4.


54
HAUSER. O ideal democrático no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau, cit., p. 177.
55
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 33.
56
HAUSER. O ideal democrático no pensamento político de Jean-Jacques Rousseau, cit., p. 177.
57
ROUSSEAU. O contrato social, cit., p. 30.
298 • Capítulo 11 - Jean-Jacques Rousseau: do homem natural ao homem social

Qual a diferença entre o homem natural e o homem social? A res-


posta está na compreensão da perfectibilidade humana. A capacidade
de se aperfeiçoar foi a responsável pelos erros e acertos da humanidade.
Foi em razão dela que os indivíduos saíram do estado natural para a
corrupção do estado social. Mas, é também em razão dela que outra via
é possível.
Jean-Jacques Rousseau não pretende construir um sistema po-
lítico baseado na mudança da natureza humana. Ele busca entender o
homem e sua natureza a fim de utilizá-la em prol da própria sociedade.
Nesse contexto, a liberdade natural é convertida na liberdade
civil e a desigualdade natural é transformada em igualdade moral. As-
sim, o sistema legislativo respaldado na vontade geral tem como objeti-
vo assegurar a liberdade e a igualdade.
Ao contrário do senso comum, a constatação do estado de cor-
rupção humana não seria uma condenação eterna feita por Rousseau.
Mas sim uma orientação para a construção de uma nova sociedade.

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biblioteca.versila.com/10214217>. Acesso em: 18 jul. 2016.
CAPÍTULO 12

Kant entre Republicanismo e Liberalismo

Karine Salgado
Philippe O. Almeida

1. Introdução

A filosofia de Kant é impactante sob muitos aspectos. Impressio-


na porque inova, pela via inesperada do criticismo, se ressalta pela sua
abrangência e pelo esforço de tudo se abarcar dentro de um coeso siste-
ma, mas também, e sobretudo, se destaca por pontos específicos, e mui-
tas vezes polêmicos, que forçam a reflexão e desencadeiam discussões
intermináveis. No edifício de concreto armado de que é feito o corpus
kantiano, há salas específicas pelas quais inúmeros intérpretes, ontem
e hoje, se digladiam. Kant convida ao debate e à sedutora armadilha de
sua crítica e superação.
Como a filosofia crítica se posiciona face às principais tradições
político-ideológicas do Ocidente – a democrática (que se origina na pólis
grega), a republicana (que remete à Roma Antiga) e a liberal (tipicamen-
te moderna)? Como os conceitos de liberdade, lei e poder se articulam em
Kant, em vista dessas tradições?
Diversas leituras distintas do pensamento kantiano foram pro-
postas, nos últimos séculos. Diversas concepções teóricas, no que tange
ao Direito, à Ética e à Política, foram atribuídas ao mestre de Könings-
berg. Seu legado foi reivindicado por incontáveis correntes ideológicas,
razão pela qual não existe uma tradição kantiana única, mas tradições
diversas de exegese do trabalho de Kant, com premissas não raro incon-
ciliáveis.1 Neste movimento, muitas características foram atribuídas a
Kant, especialmente em face às passagens mais marcantes de seu pensa-
mento. Algumas delas tiveram um apelo tão grande que acabaram por

¹ Ileana P. Beade recupera a disputa entre liberais e republicanos pela memória de Kant, a partir de
diferentes leituras do conceito kantiano de liberdade. V. BEADE, Ileana P. Consideraciones acerca
de la concepción kantiana de la liberdad en sentido político. Revista de filosofía, 2009, v. 65, p. 25-41.
302 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

determinar preconcepções aos leitores de suas obras. É o caso do caráter


liberal de sua filosofia e do individualismo que a subjaz. Nenhuma des-
sas características pode ser negada em absoluto, o que não significa que
possam ser aceitas acriticamente. Repensar o caráter liberal e, no caso
kantiano, consequentemente antidemocrático da sua teoria, bem como
o individualismo que permeia sobretudo os escritos políticos, é o que se
pretende propor.

2. O justo: da moral ao Direito

Ao definir o Direito como um conjunto de condições sob as quais


é possível ao arbítrio de cada um conciliar-se com os arbítrios dos de-
mais segundo uma lei universal da liberdade2, Kant não só evidencia
as diferenças que em seu pensamento se revelam aprofundadas entre
Direito e moral, mas de modo especial ressalta o vínculo indelével que
se estabelece entre elas.3
Na moral são trabalhados alguns dos conceitos que serão caros
ao Direito. A Fundamentação à Metafísica dos Costumes estabeleceu o prin-
cípio supremo da moralidade e, com ele, evidenciou a compreensão de
Kant sobre o homem e sua liberdade.
Não sendo o homem puramente sensível, ele é capaz de agir
segundo a representação de leis, vale dizer, não se determina imedia-
tamente por elas, como ocorre nas relações da natureza. Ao responder
afirmativamente à capacidade da razão na sua função prática, Kant abre
caminho para os dois conceitos que se erguerão para além da moral e do
Direito, elementos capazes de amalgamar, ao redor de si, Direito, polí-
tica e história. Assim se desvelam os conceitos de dignidade humana e
de liberdade.
Enquanto racional, o homem é capaz de se autodeterminar, de
legislar para si próprio sem influência externa. A liberdade surge, en-
tão, como autonomia (autos – nomos), como capacidade de não se deter-
minar por elementos empíricos. A lei moral, lei universalmente válida
porquanto expressão da razão, é factum da razão e o homem toma ime-

² MS, VI, 230


³ Nesse sentido, autores como Edgar da Mata Machado pecam por atribuir a Kant a cisão contempo-
rânea entre moral e o Direito – cisão esta que está na raiz do positivismo jurídico. Embora distintos,
moral e o Direito encontram-se, em Kant, indissociavelmente ligados, posto que ao Direito incumbe
o múnus de zelar pela salvaguarda da liberdade externa – única maneira de o indivíduo realizar-se
eticamente. Cf. MATA MACHADO, Edgar de Godói da. Direito e coerção. São Paulo: UNIMARCO,
1999.
Karine Salgado & Philippe O. Almeida • 303

diata consciência dela. A lei não determina a ação por imediato, como
verificado nas relações determinadas por leis naturais. O homem age a
partir de representações da lei, de onde se conclui que ele é legislador
de si próprio e a vontade, quando não sujeita às inclinações, é capaz de
apresentar o que é devido segundo a lei moral.
A possibilidade concedida pela razão de fazer-se livre das de-
terminações externas confere ao homem um valor inestimável, inquan-
tificável, definido na Fundamentação à Metafísica dos Costumes como
dignidade. Ter dignidade significa expressar um valor absoluto, inco-
mensurável, quer dizer, não passível de comparação e relativização. Se
não há tábua de valores que comporte a medida do valor expresso pelo
homem, nada lhe pode ser superior, ou seja, não há nenhum fim para o
qual o homem se preste como meio. O único tratamento adequado a ele
é o de fim em si mesmo.
A moral, entretanto, é um retorno a si próprio, à liberdade inter-
na do sujeito, aos motivos determinantes da ação, isto é, às razões que
levaram alguém ao cumprimento da lei moral. Ela não se satisfaz com a
ação puramente, ela exige a motivação no dever e só este é capaz de dar
à ação valor moral.
A moral explicita conceitos indispensáveis ao Direito. Este trata-
rá da liberdade na sua forma exterior, o homem nas suas relações com
os demais. Evidentemente, quando a moral trata da conduta humana,
ela não pode desconsiderar o outro e a conexão que se estabelece en-
tre aquele que age e aquele a quem é dirigida a ação. Todavia, a moral
centra-se no sujeito da ação, como dito, não explorando as implicações
decorrentes da exterioridade da ação e dos reflexos diante de outros in-
divíduos. Ademais, ela não é capaz, por si mesma, de garantir a ordem.
Ao voltar-se para os motivos da ação e neles centrar o valor da conduta,
a moral não é capaz de criar mecanismos de coação, fazendo depender
inteira e exclusivamente do sujeito a sua determinação pelo dever. Não
possui a dimensão de heteronomia que caracterizará o campo do jurídi-
co.
Nas relações exteriores, tão ou mais importantes que os motivos,
é a garantia da ordem e do respeito aos demais. “Cuando el propósito no
consiste en enseñar la virtud, sino sólo en exponer qué es conforme a derecho
(recht), no es lícito, ni se debe incluso, presentar aquella ley del derecho como
móvil de la acción.”4 Portanto é a conformidade com a lei que, por sua vez,

⁴ MS, VI, 231 (quando o propósito não consiste em ensinar a virtude, mas somente expor o que é
conforme ao direito, não é lícito, tampouco se deve apresentar aquela lei do direito como móvel da
304 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

garante a convivência do arbítrio do agente com o arbítrio dos demais,


garantindo-se a liberdade. Aqui, a liberdade se revela em sua forma ex-
terior, embora mantenha a sua essência de autonomia, como apresen-
tada na moral. Na preservação da estrutura social, o Direito não pode
ficar à mercê da adesão subjetiva do indivíduo – impõe-se tanto a um
despostismo de anjos quanto a uma república de demônios.
Miguel Ángel Rossi5 salienta as correlações entre a perspectiva
kantiana e a ética protestante. De fato, com base na doutrina da certituto
salutatis, amplamente adotada pelo luteranismo e pelas correntes refor-
madas do protestantismo, o cristão só pode ter garantias de sua própria
salvação – afinal, é a fé, e não as obras, que assegura a absolvição no
Julgamento Final. Nesse sentido, o coração do próximo sempre perma-
necerá sendo terreno incógnito, inacessível. Vemos suas ações, mas não
seus motivos, e são esses que importam – e que podem levar a Deus ou
ao Diabo. Não é na esfera pública, mas na vida íntima, em minha pró-
pria consciência individual, que se trava o drama existencial pela santi-
ficação. Nada que, externamente, a comunidade faça (como as presses
católicas pelas almas no Purgatório), pode impedir que uma alma cor-
rompida seja salva. Ora, se assim é, então não cabe ao Direito morali-
zar, incutir virtudes nas consciências recalcitrantes dos homens – mas
estabelecer marcos gerais, exteriores, que impeçam que os condenados
atrapalhem o ritmo da vida cotidiana dos verdadeiros eleitos. Kant es-
tabelece os limites do Direito (exterior, heterônomo), para dar lugar à fé.
A existência do Direito está diretamente ligada à liberdade, seu
fundamento. O Direito é uma extensão da moral, não no sentido de lhe
ser apenas um apêndice, dela dependente, mas enquanto continuidade,
sequência imposta pela necessidade de garantia da liberdade para se-
res que não são puramente racionais. Ele é, assim, um passo adiante na
efetivação da liberdade, que não poderia ser plena se se restringisse ao
homem de modo isolado. A liberdade de legislar para si, de agir segun-
do representações de leis que o homem se dá, tem como escopo a ação
propriamente dita e, por isso, precisa levar em consideração o outro.
Vale destacar que a moral já havia considerado a alteridade, bem
expressa numa das fórmulas do imperativo categórico que determina a
necessidade de se tratar os demais como fim em si mesmos. Entretanto,

ação.)
⁵ ROSSI, Miguel Ángel. Democracia, liberalismo e republicanismo: tensões no pensamento de
Immanuel Kant. Problemata – Revista Internacional de Filosofia, João Pessoa, n. 1, v. 5, p. 43-63,
2014. p. 50.
Karine Salgado & Philippe O. Almeida • 305

ela continua tomando a conduta sob a perspectiva do agente, do seu


modo de representação das leis, de determinação da conduta, da sua
vontade, do seu arbítrio, enfim, do modo e dos motivos pelos quais uma
determinada ação é desencadeada. Na moral, o dever perante o outro
evidentemente existe e é norteador da conduta, mas a relação entre os
arbítrios não é explorada. Ela fica a cargo do Direito e do foco na exterio-
ridade da ação que lhe é peculiar.
Ser livre é agir segundo a razão, o que exige, para além da capaci-
dade de não se determinar por inclinações, a possibilidade de efetivar a
ação. Para tanto, é necessário que os outros também se orientem segun-
do leis racionais, sob pena de o mau uso do arbítrio impedir o exercício
do livre arbítrio dos demais. Não é a submissão aos desejos – à dimensão
apetitiva –, mas a resistência a eles, sinalizado pelo respeito aos manda-
mentos da razão, que configura a verdadeira liberdade individual.
A liberdade é a mesma para todos, igual, porque todos são igual-
mente racionais, e tem como condição inafastável a limitação do arbítrio
de cada um. O Direito se encarrega, então desta limitação, como for-
ma de garantir a liberdade. Enquanto conjunto de leis exteriores, postas
para todos, ele parece não se conciliar com a liberdade, tomada como
autonomia. Daí a necessidade de ser o Direito expressão de racionali-
dade, sob pena de não garantir a liberdade que o justifica. Assim, não
são as normas que o compõem fruto da soma aritmética da vontade dos
indivíduos, entendida esta vontade como empírica. O Direito deve ser
expressão da vontade geral (eidética, não histórica), vale dizer, deve
conter normas cujo conteúdo possa ser aceito por todos segundo a sua
racionalidade.6
Se não foi possível no âmbito da moral pensar em coercibilidade,
no Direito ela se coloca como elemento imprescindível. Como Salgado
observa, a coercibilidade é condição de existência de Direito, garantia de
sua efetividade, suporte de sua eficácia, nos momentos em que o cum-
primento espontâneo da norma jurídica fica comprometido.7 A sua via-
bilidade se dá pela exigência do Direito em relação à conduta humana:
não estando ele diretamente ligado ao foro íntimo, à esfera da intenção,

⁶ Vale notar que a distinção entre a soma das vontades individuais e a vontade geral já se encontra
em Rousseau, que, como se sabe, exerceu grande influência sobre o pensamento kantiano.V. REIS,
Cláudio Araújo. Vontade geral e decisão coletiva em Rousseau. Trans/Form/Ação, Marília, n. 2, v.
33, 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31732010000200003&script=s-
ci_arttext>, acessado em 16 de agosto de 2015.
⁷ SALGADO, Joaquim. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2006,
p. 78.
306 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

as normas do Direito se contentam com a simples conformidade do ato


praticado ao ato prescrito, em uma palavra, com a simples exterioridade
da conduta.8 Como bem esclarece Kant: “la coacción que se le [ao uso da
liberdade] opone, en tanto que obstáculo frente a lo que obstaculiza la libertad,
concuerda con la libertad según leyes universales”.9 Trata-se de uma fun-
damentação interessante para a coerção e, simultaneamente, inovadora,
dado que não esbarra na difícil questão da legitimidade de se usar a
força contra um igual. A coerção surge como natural, como inerente ao
próprio Direito, revelado por um processo analítico.10
A noção do justo em Kant traz de modo definitivo o elemento
‘igualdade’, que mantém a sua essência de autonomia tanto na moral
quanto no Direito, mas que também revela nestes momentos os seus
desdobramentos. A liberdade não poderia, entretanto, ser trabalhada
sem lastro com a ideia de igualdade, tomada por Kant em termos abs-
tratos e universais. Assim, a justiça se efetiva pela realização igual da
liberdade para todos, mantendo-se o equilíbrio entre o universalismo
e o individualismo que permeiam seu pensamento. Salgado, ao sinteti-
zar a concepção de justiça kantiana, esclarece-a em seus três momentos
fundamentais: é justo o que reconhece a liberdade como Direito inato a
todos; é justo o que realiza as liberdades externas de modo a compatibi-
lizá-las; e, por fim, é justa a lei que realiza a liberdade também como au-
tonomia. Aqui estaria revelada não apenas a ideia de justiça para Kant,
mas todo o seu projeto filosófico destinado a atender as suas próprias

⁸ Como observa Kersting, “se o imperativo moral exige ser seguido somente por força de sua obri-
gatoriedade, tornando-se a própria razão através dele diretamente prática, o Direito, que não se
ocupa do que a pessoa pensa, pode promover sua efetivação através da coerção. A prerrogativa de
coação, a autorização para através do uso da força se defender do injusto, é a contrapartida jurídico-
-filosófica para a sujeição moral do imperativo categórico.” KERSTING, Wolfgang. O fundamento
de validade da moral e do direito em Kant. In: TRAVESSONI, Alexandre (Coord.) Kant e o Direito.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2009. p. 165.
⁹ KANT, Immanuel. La Metafísica dos Costumes. (Metaphysik der Sitten). Trad. Adela C. Orts e Jesus
C. Sancho. 2. ed. Madrid: Tecnos, 1994. 231, D.
10
Hoffe explica que o argumento utilizado para justificar a coerção “operates solely with the concepts
of right and wrong and with double negation. The authorization to use coercion is thus contained in the
concept of right: A first-order permission of right includes the second-order permission of its enforcement.
A subjective right is not made up of “two elements”, of “obligation in accordance with a law” and the au-
thorization to use coercion, but rather “right and authorization to use coercion therefore mean one and the
same thing”. HÖFFE, Otfried. Kant’s comsmopolitan theory of law and Peace. New York: Cambridge
University Press, 2006. p. 115. Kant explica, na Metafísica dos Costumes, que se trata de um raciocínio
paralelo ao matemático, “pero así como a este concepto dinámico todavía subyace en la matemática pura
(por ejemplo, en la geometría) uno puramente formal, la razón ha cuidado de proveer en lo posible también
al entendimiento con intuiciones a priori para construir el concepto de derecho.” KANT. La Metafísica dos
Costumes..., cit., 223.
Karine Salgado & Philippe O. Almeida • 307

preocupações políticas, cada vez mais evidentes em seu trabalho.11 As-


sim, à igualdade, tomada em termos universais, unem-se a liberdade,
cujo individualismo supera-se na ideia de república, e o reino dos fins,
decorrência dessa e peça chave à paz perpétua.

3. O Estado: liberal ou democrático?

A liberdade que fundamentava a moral e o Direito é a mesma


que irá justificar a existência do Estado e moldá-lo. A efetivação da liber-
dade estabelece um programa à filosofia kantiana que será perseguido
até a paz perpétua e suas reflexões sobre a história.
A teoria do Estado kantiana revela o modelo ideal de Estado12,
sem nenhuma pretensão de sua aplicação direta à realidade política,
qualquer que seja ela. Trata-se de uma ideia, na acepção kantiana da
palavra, portanto de um projeto cuja efetivação se coloca como tarefa,
muito embora não haja nenhuma pretensão de completa-la. Assim, o Es-
tado tratado por Kant é “el Estado en la idea, tal como debe ser según los prin-
cipios jurídicos puros, Estado que sirve de norma (norma) a toda unificación
efectiva dirigida a formar una comunidad.” (KANT, 223, §45).13 É uma (nas
palavras de Kant) “norma eterna para toda constituição civil em geral”,
uma ideia regulativa, um paradigma, um arquétipo que deve guiar a
constituição dos Estados fenomênicos, históricamente constituídos, mas
que jamais se confundirá com qualquer um deles. Encontra-se no plano
do dever-ser, não do ser.
Em absoluta coerência com o restante de sua doutrina, a teoria
política de Kant se afasta de todo e qualquer utilitarismo. O Estado ga-
nhará nova fundamentação, ética, desvinculada da ideia de utilidade.
Não é no âmbito da satisfação material dos indivíduos que Kant justifica
a esfera pública. Assim, a felicidade, por exemplo, não pode justificar a
sua existência, tampouco a indicação de um modelo como ideal. Trata-
-se de um fim individual e, enquanto tal, circunscrito à subjetividade de
cada um. Mesmo a paz, elemento fundamental do pensamento político
kantiano não pode ser considerado o fundamento do Estado. Trata-se,

11
SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Kant. Belo Horizonte: UFMG, 1986. p. 340.
12
É preciso destacar que Kant diferencia Estado e estado civil. Eles se referem a dois aspectos da
mesma relação entre indivíduos. O termo Estado diz respeito à reunião de indivíduos submetidos
a uma ordem jurídica comum. Já o estado civil conota a relação de convivência destes indivíduos
de acordo com a ordem constituída. Cf. SALGADO, Karine. A Paz Perpétua de Kant. Belo Horizonte:
Mandamentos/FUMEC, 2008.
13
Grifo do autor.
308 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

na verdade, de uma decorrência, uma consequência inevitável do Esta-


do ideal de Kant. Ela é fim a ser perseguido pelo homem, mas não é ela
que dá fundamento ao Estado. Em outras palavras, não é em função da
paz que um Estado pode proporcionar aos seus súditos ou cidadãos que
ele justifica a sua existência ou se legitima aos olhos de Kant.
A passagem do estado de natureza ao estado civil, categorias uti-
lizadas por Kant, não se dá por utilidade, mas se coloca como um dever
moral ao homem. Há, com isso, um visível rompimento com a tradição,
sobretudo jusnaturalista, cujo viés utilitarista sempre restou evidencia-
do. Kant está, aqui, nas antípodas de Hobbes, que sedimentava no medo
dos indivíduos (medo, antes de mais nada, da morte violenta) a edifi-
cação do Estado. Em Hobbes, o Estado, em última instância, só se legi-
tima como instrumento útil para impedir a guerra civil e preservar, em
alguma medida, a integridade física dos cidadãos.14 Não é numa matriz
psicologizante ou empiricista, mas transcendental, que Kant moldará sua
definição de Estado. Já Kant percebera no contratualismo clássico o ele-
mento que, décadas depois, será objeto da crítica hegeliana: a tentativa
de alicerçar o Direito Público no Direito Privado.
O Estado tem uma ligação visceral com o Direito. Ao assumir a
coerção como elemento fundamental do Direito e dar a ela uma funda-
mentação ética, Kant liga de modo inexorável o Direito ao Estado. Não é
possível pensar na sua efetivação sem a estrutura estatal, monopólio do
uso legítimo da violência/coerção. “Un Estado (civitas) es la unión de un
conjunto de hombres bajo leyes jurídicas”.15 Não se pode, portanto, pensar
na justiça sem o Estado, o que faz dela, em último grau, a justificação e a
medida da própria existência do Estado.
Assim, a ideia de justiça é determinante para o pensamento po-
lítico de Kant, dado que a estrutura estatal, bem como a relação entre os
Estados, precisa se adequar à natureza do homem e ao seu valor inexo-
rável e inquantificável, à sua dignidade. Não se pode pensar na justiça
em Kant sem se considerar a ideia de homem como fim em si mesmo.
Não é possível, igualmente, tomar o Estado como um ente desvinculado
da ideia de justiça e de dignidade humana. O Estado é etapa fundamen-
tal no projeto kantiano para a humanidade. Ora, é no âmbito do Estado
que o indivíduo tem o reconhecimento do seu status de ser humano,
portador de dignidade. É nele que se dá a fruição e a garantia da sua

14
RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
15
KANT. La Metafísica dos Costumes..., cit., 313, §45.
Karine Salgado & Philippe O. Almeida • 309

liberdade.
Evidentemente, nem todos os Estados são capazes de tamanha
tarefa, o que exigiu de Kant uma análise cuidadosa das formas de Esta-
do e de governo, resultando na república como modelo ideal - capaz de
reunir as características indispensáveis para a realização do justo e da
dignidade humana - e na sua elevação a etapa fundamental para todos
os Estados rumo à paz perpétua. A república se caracteriza pelo governo
das leis – e, não, do interesse individual de um ou outro homem. Nela,
todos os cidadãos podem ser vistos como legisladores da coisa pública –
visto que a lei é expressão da vontade racional. Dessa maneira, é a forma
de governo mais compatível com o espírito do contrato originário, isto é,
do pacto hipotético que embasa a sociedade política.16
O Estado ideal kantiano tem como primeiro pilar a separação en-
tre os poderes.17 Kant aceita a divisão tripartite do poder, dando ênfase,
especialmente, à distinção entre as funções do executivo, na sua concep-
ção, governante, e legislativo, tomado como soberano. O equilíbrio entre
elas se faz pela complementação das funções (KANT, 313, §45, e 316,
§48). Como observa Santos:

A insistência de alguns filósofos políticos modernos e também


de Kant na vantagem do sistema representativo e do sistema
de divisão de poderes visava introduzir mecanismos de limita-
ção, mas também de mediação e de filtragem que prevenissem
as possíveis perversões funcionais do exercício da soberania e
do poder, impedindo, no primeiro caso, que se legislasse em
benefício direto próprio ou diretamente contra o direito de al-
guém em particular, ou, no segundo caso, que se governasse
interpretando ou aplicando a lei comum em benefício próprio
ou ao sabor de interesses particulares. Assim se garantiria a
boa saúde das funções essenciais da comunidade política ou

16
LIMA, Francisco Jozivan Guedes de; BAVARESCO, Agemir. A concepção kantiana de republica-
nismo e suas implicações normativas para o Estado de Direito. Revista Guairacá, Guarapuava, n. 27,
v. 141, p. 123-141.
17
Westphal considera a separação entre os poderes o principal elemento caracterizador da repúbli-
ca. Aliás, ele faria dela o único modelo adequado aos propósitos kantianos de realização do justo.
WESTPHAL, Kenneth R. Republicanismo, despotismo e obediência ao estado: a inadequação da
divisão de poderes de Kant. In: TRAVESSONI, Alexandre (Coord.) Kant e o Direito. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2009. p. 491. Não nos parece a melhor interpretação. A questão da representativida-
de da vontade nas leis é a marca central da república que, evidentemente, tomará a separação dos
poderes como um importante instrumento na sua realização. Se é difícil pensar em uma república
sem separação de poderes é porque, na verdade, não há república, propriamente, cujas leis não es-
pelhem a vontade dos seus cidadãos, vale dizer, não possam ter o reconhecimento deles. Ademais,
por exceção, Kant admite que um Estado que na sua constituição não tenha a separação de poder
embora seja conduzido republicanamente.
310 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

da república.18

Temos, pois, em Kant, um precursor do sistema de “freios e con-


trapesos”, que, hodiernamente, ocupará boa parte das reflexões dos
doutrinadores constitucionalistas. É necessário pensar uma engenharia
governamental por meio da qual o poder imponha limites ao poder. So-
berano e governante são figuras que não devem se fundir em uma única
pessoa sob pena de se configurar um Estado despótico. Assim, não cabe
ao governante legislar. A distinção entre poder executivo e legislativo
garante que o Estado não executará arbitrariamente as leis que ele mes-
mo estabeleceu. Aqui está, cabe observar, a matriz da moderna noção de
Estado de Direito.19
Os tipos de Estado e o desenvolvimento da ideia de um Estado
adequado aos propósitos kantianos são apresentados na Metafísica dos
Costumes, embora a definição da república receba complementação em
outros escritos. Kant avalia o Estado sob duas perspectivas. Primeiro,
quanto à forma (forma imperii), enumera os três tipos clássicos, levan-
do-se em consideração a quantidade de pessoas que exercem o poder.
Assim, tem-se a autocracia, a aristocracia e a democracia. É interessante
notar que o termo autocracia é deliberadamente preferido em relação à
monarquia, pois “el monarca es aquél que tiene el poder supremo, mientras
que el autócrata o el que manda por sí solo es el que tiene todos los poderes.”
(KANT, 339, §51) Kant ainda divide (forma regiminis) os Estados em re-
publicanos ou despóticos, o que abre a possibilidade de uma monarquia
republicana, segundo sua acepção de república.
Com efeito, o modelo concreto que mais se aproximará do ide-
al, no entender de Kant, será a monarquia constitucional, representativa
– embora o autor nutra reservas ao sistema parlamentarista inglês de
sua própria época. Frise-se que Kant diferencia a república noumênica,
ideal, e a república fenomênica, histórica. O fracasso – assim a maioria
dos pensadores alemães de sua época avaliava – do republicanismo da
Revolução Francesa em nada compromete a República ideal, que eleva
acima das decepções contingentes. Não é fática, mas contra-fática, não é
um dado histórico, mas uma exigência da razão. É por esse motivo que,
no entender de Leonel Ribeiro dos Santos, Kant seria o responsável pela

SANTOS, Leonel Ribeiro dos. Kant: da reinvenção do Republicanismo à ideia de uma “República
18

Mundial”. Cadernos de Filosofia Alemã, São Paulo, n. 16, p. 13-54, jul./dez. 2010. p. 45.
19
COSTA, Pietro. O Estado de Direito: uma introdução histórica. Em COSTA, Pietro; ZOLO, Danilo
(Orgs.). O Estado de Direito: história, teoria, crítica. Trad. Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Martins
Fontes, 2006. p. 116.
Karine Salgado & Philippe O. Almeida • 311

reinvenção moderna da república e do republicanismo (após o pensa-


mento de Cícero, na Antiguidade, e o “humanismo cívico” no Renas-
cimento): o filósofo alemão fundaria a república, não em experiências
históricas precedentes, mas na noção pura de Direito, alçando o ideário
republicano a um novo patamar.
Para Kant, “toda verdadera república es – y no puede ser más que – un
sistema representativo del pueble, que pretende, en nombre del pueble y me-
diante la unión de todos los ciudadanos, cuidar de sus derecho a través de sus
delegados”.20
A república é capaz de realizar a liberdade justamente porque é
o único modelo de Estado que atende às exigências da liberdade tomada
como autonomia. É, ademais, a única forma de governo que pode apro-
ximar a humanidade do ideal de paz perpétua. A própria relação entre
os Estados, na cena global, deve, em vista da paz perpétua, se articular
como uma república – Kant fala em um “universal senado dos povos”,
que, criando um fórum permanente para dirimir conflitos, poria fim às
guerras. É por isso que, na concepção de Santos,21 republicanismo, fede-
ralismo e cosmopolitismo são interdependentes na filosofia da história
kantiana.
A república assenta-se na igualdade, na liberdade e na submis-
são de todos a uma legislação comum. Se na moral a liberdade se efetiva
pela determinação da conduta livre de qualquer influência externa, no
Direito, ordem heterônoma por excelência, o desafio da autonomia só
pode ser superado se se pensar em normas cujo conteúdo possa ter o
assentimento daqueles que a ela se submetem.
Kant não se deixa levar, entretanto, pela democracia empírica.
Aliás, é duro crítico dela, por entender que o critério da maioria aliado a
uma “livre” manifestação da vontade, absolutamente vulnerável e sem
nenhuma garantia de uma análise e julgamento sério da questão, não é
critério seguro e, certamente, não levaria a uma decisão de uma maioria
livre, em termos kantianos. A percepção do equívoco quanto à correção
da decisão da maioria leva Kant a rechaça-la. O conteúdo da decisão é
tão importante para Kant quanto o critério formal que a princípio a legi-
timaria. O político e o justo não se separam.
Se cabe à política a sua conciliação com o justo como meio de
realizá-lo, é, por outro lado, o justo que deve definir os contornos do po-
lítico. Justiça e política, elementos muitas vezes - e para alguns - incon-

20
KANT. La Metafísica dos Costumes..., cit., 341, §52.
21
SANTOS. Kant..., cit., p. 35.
312 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

ciliáveis, inevitavelmente se encontram, pois a natureza humana torna


imperativa a presença de ambos. Em Kant, mais do que uma convivência
inexorável, o justo e o político não estabelecem uma relação de oposição,
antes, se exigem mutuamente na construção de um projeto delineado
para toda a humanidade e que tem como ponto de chegada o respeito e
o reconhecimento da dignidade humana pelo estabelecimento da paz.
O Estado tem sua fundamentação e legitimidade na liberdade.
Ela justifica a sua existência e a molda segundo as suas próprias necessi-
dades. É assim que se expressa o Estado ideal. A liberdade, reconhecida
como único direito natural por Kant, somado ao individualismo que é
característico de seu pensamento, à teoria do cidadão, que coloca como
condição para a participação direta na vida política a independência fi-
nanceira, e à ideia segundo a qual, a partir da garantia da liberdade,
todos e cada um são responsáveis pela sua felicidade, leva inevitavel-
mente à convicção do caráter liberal do pensamento kantiano.
Os traços do liberalismo são inegáveis, o que não nos autoriza a
reconhecer o Estado kantiano como um modelo pura e autenticamente
liberal. Se o reducionismo dos direitos naturais à liberdade aponta nesta
direção, por outro lado é preciso lembrar o compromisso kantiano com a
efetivação desta mesma liberdade, o que não pode ser, para ele, pensado
em termos puramente individualistas e privatistas. Não basta a não in-
terferência do Estado, a sua omissão, para que esta liberdade se efetive.
A liberdade em Kant é pensada primeiramente, nesta discussão, em ter-
mos políticos, o que significa dizer que não se pode falar em liberdade
plena sem leis que reflitam e possam obter a aceitação daqueles cujas
condutas são por elas prescritas.
Vale observar que, diferentemente dos doutrinadores liberais
mais recentes, Kant não nutre qualquer simpatia pelo anarquismo, a ele
preferindo, mesmo, o despotismo esclarecido (como o de Frederico II).
O Estado liberal kantiano é democrático na sua essência ao combater,
acima de tudo, um Direito que não possa se converter em autonomia, o
que na compreensão kantiana significa dizer um Direito racional. Mes-
mo monarcas autocráticos devem governar republicanamente - quer
dizer, em respeito às leis da liberdade, e não visando a seus interesses
particulares, e guiado, não pela razão privada (instrumental), mas pela
razão pública (substantiva). Kant não se interessa pelo respeito à vonta-
de da maioria como critério maior de garantia da república. Ele espera
por uma lei que tenha a aceitação de todos, sem exclusões, ao menos em
potência, o que só seria possível se a lei expressasse pura racionalidade.
Trata-se de uma decorrência lógica da premissa de igualdade e liberda-
Karine Salgado & Philippe O. Almeida • 313

de de todo ser humano enquanto ser racional.


Embora se possa sempre discutir até que ponto isso seria possí-
vel e o próprio Kant enfaticamente esclarece que isso é uma ideia, não se
pode negar o seu compromisso com uma lei que represente a vontade do
povo, preocupação genuinamente democrática. Como aponta Rossi,22 é
a democracia direta, de tipo rousseauniano, que Kant rejeita, por nela
identificar “o terreno da tirania e a perda do princípio da liberdade”. O
mestre de Köningsberg não vê diferença considerável entre a opressão
exercida por um e a opressão exercida por muitos. Nada nos leva a crer
que o filósofo rejeitaria o modelo de democracia representativa da con-
temporaneidade.

4. A superação do individualismo pela necessidade do justo

O individualismo e mesmo o solipsismo são características fre-


quentemente atribuídas a Kant e a sua doutrina. A ótica individualista
marca seu pensamento, o que não significa que Kant está restrito a ela.
A filosofia prática kantiana é um sistema que tem início na análise e
no estabelecimento de normas de conduta a partir exclusivamente do
indivíduo, mas o movimento natural do sistema, a direção à qual se con-
duz leva a uma abertura cada vez maior, a uma ampliação do olhar que
começa ainda na moral, na Fundamentação à metafísica dos costumes pela
revelação das fórmulas do imperativo categórico e pela constatação do
outro como igual, somada à necessidade de tratamento dele como fim
em si mesmo.
O individualismo de Kant vai sendo mitigado, permeado de
outros elementos, a partir do momento em que suas preocupações po-
líticas se revelam. Sob a perspectiva lógica da obra kantiana, elas não
se evidenciam precocemente em seus trabalhos, mas gradualmente vão
ocupando uma posição privilegiada no sistema.23
A filosofia kantiana, passando pelo Direito, pelo Estado, pelas re-
lações entre eles e as reflexões sobre história impulsionam Kant a pensar
o homem em sociedade e na necessidade de esta ter condições mínimas

22
ROSSI. Democracia, liberalismo e republicanismo..., cit., p. 44.
23
Como explica Salgado, “há uma preocupação política constante no pensamento de Kant (…) Essa
preocupação espelha-se na necessidade de justificar a vida do homem como sociedade organizada,
sob a ideia de liberdade, que, por sua vez, justifica toda sua preocupação moral já veiculada na
Crítica da Razão Pura, por ele concebida como meio para limpar e acertar o terreno sobre o qual
deveria construir a contextura firme da sua filosofia prática, que dá valor e dignifica a filosofia de
modo geral”. SALGADO. A idéia de justiça em Kant..., cit., p. 339.
314 • Capítulo 12 - Kant entre Republicanismo e Liberalismo

de justiça para que cada um possa ser respeitado em sua dignidade. É


preciso lembrar que as ideias e as tarefas que estes projetos impõem são
para a humanidade, não para o indivíduo. A efetivação do justo exige
uma postura política que deixa desterrado o individualismo, ao exigir,
por exemplo, o uso público da razão como um dever de cada um peran-
te a coletividade ou, ainda, ao indicar a educação como o instrumento
essencial para que todos sejam cidadãos plenos e efetivamente livres em
todos os espectros da liberdade.
O elemento igualdade, muitas vezes relegado ao segundo plano,
sobretudo porque Kant não dá ao seu leitor tantos elementos, isto é, não
há sobre ele um trabalho cuidadoso e fundamentado como o feito com
liberdade, o que é ao menos em parte compreensível, já que aceita e
absorve o legado clássico medieval sobre o tema, induz a uma subcon-
sideração do seu papel na filosofia kantiana. A igualdade é a regra de
medida da liberdade em todos os seus momentos, desde a moral até o
possível progresso da humanidade através de sua história. É ela que exi-
ge limitação à conduta do indivíduo, ela que impõe a necessidade da lei
enquanto expressão da vontade de todos, ela que exige o reconhecimen-
to do homem como cidadão, ela que demanda, em qualquer situação e
sem nenhuma escusa, o tratamento digno ao outro. Enfim, não há justiça
sem a igualdade, sem a consideração do outro, portanto, o que a coloca
em equilíbrio com a tão bem desenvolvida ideia de liberdade em Kant.
É por isso que a república kantiana ganha os contornos que aqui
brevemente se evidenciaram, num esforço de atender não só à liberda-
de, mas também à igualdade como única forma de realização da justiça.
É o que justifica uma reflexão mais cuidadosa sobre o individualismo e
o liberalismo kantianos.

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CAPÍTULO 13

Direito e Coerção:
a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

Daniel Cabaleiro Saldanha1

“Diríamos que o Direito é como o Rei Midas. Se na lenda


grega esse monarca convertia em ouro tudo aquilo em que
tocava, aniquilando-se na própria riqueza, o Direito, não
por castigo, mas por destinação ética, converte em jurí-
dico tudo aquilo em que toca, para dar-lhe condições de
realizabilidade garantida, em harmonia com os demais
valores sociais.”2 Miguel Reale

1. Introdução

1. O fenômeno jurídico é marcadamente cultural. Os valores


predominantes em uma sociedade são suprassumidos (Aufheben) numa
estrutura a que a Ciência do Direito denominou ordenamento jurídico.
O estudo da história de uma civilização constitui, portanto, um impera-
tivo de ordem epistemológica para o pensador da Cultura e, por conse-
guinte, do Direito, pois que conhecer uma cultura é, necessariamente,
conhecer seus valores. Hegel, verdadeiro avatar do pensamento oci-
dental, com clarividência, apresenta a simbiose entre história e cultura e
suas repercussões no plano do conhecimento:

A ciência apresenta esse movimento de formação cultural em


sua atualização e necessidade, como também apresenta em sua
configuração o que já desceu ao nível de momento e proprie-
dade do espírito. [...] A substância do indivíduo, o próprio es-
pírito do mundo, teve a paciência de percorrer essas formas na
longa extensão do tempo e de empreender o gigantesco tra-
balho da história mundial, plasmando nela, em cada forma, e

¹ Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do grupo
de pesquisa em Jurística e Filosofia do Direito.
² REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 22.
Daniel Cabaleiro Saldanha • 319

na medida de sua capacidade, a totalidade de seu conteúdo; e


nem poderia o espírito do mundo com menor trabalho obter a
consciência sobre si mesmo.3

2. O estudo das ciências humanas vale-se em várias esferas do


conhecimento da obra do norte-americano Samuel P. Huntington.
Abstraindo-nos das repercussões políticas de sua obra, não se pode me-
nosprezar a contribuição por ele oferecida ao estudo das humanidades,
qual seja: o recorte civilizacional4 do Panteão cultural da Humanidade.
Não será despiciendo, assim, considerar a civilização (cultura) ocidental
como pano de fundo do desenvolvimento deste ensaio.
Nossa civilização construiu ao longo dos milênios um arcabou-
ço cultural diferenciado e privilegiado que se manifestará de maneira
contundente no Direito. Têm sido desenvolvidos na Faculdade de Di-
reito da Universidade Federal de Minas Gerais estudos, conduzidos
pelo Prof. Dr. José Luiz Borges Horta, que buscam identificar o cânone
do pensamento ocidental que se comunica no desenrolar de nossa for-
mação (aqui tomada no sentido hegeliano – Bildung) civilizacional. É
inegável que toda a tradição ocidental é dialeticamente superada nos
sucessivos estágios de nossa formação, de maneira a construir uma
unidade gnosiológica e axiológica, quer no cidadão, através de uma
Paidea ocidental, quer no Espírito, através de nossa Bildung. Nietzsche
não desconhecia essa tradição e se inclinou a estudar os pré-socráticos,
talvez o manancial de nossa civilização. Assim ensina:

E eles formam, em conjunto, aquilo que Schopenhauer cha-


mou, em oposição à República dos sábios, uma República dos

³ HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Menezes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. p.
42 (§29 – Die Wissenschaft). Hyppolite esclarece qual seja o verdadeiro significado da Fenomenolo-
gia: “a Fenomenologia é o itinerário da alma que se eleva ao espírito pelo intermédio da consciên-
cia” HYPPOLITE, Jean. Gênese e Estrutura da Fenomenologia do Espírito de Hegel. Trad. Andrei J. Vaczi
et al. 2. ed. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. p. 27. O mesmo autor elucida o conceito de espírito
de um povo (Volksgeist): “espírito de um povo é, portanto, o que reconcilia o dever-ser (sollen) e o
ser. É uma realidade histórica que ultrapassa infinitamente o indivíduo, mas que lhe permite en-
contrar-se a si mesmo sob uma forma objetiva”. HYPPOLITE, Jean. Introdução à Filosofia da História
de Hegel. Trad. José Marcos de Lima. Lisboa: Edições 70. p. 18. Nesse sentido é que tratamos aqui
de cultura.
⁴ Cf. HUNTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações, a recomposição da ordem mundial. Trad.
M. H. C. Côrtes. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997. O autor esclarece o objeto central de sua obra: “O
tema central desse livro é o de que a cultura e as identidades culturais – que, em nível mais amplo,
são as identidades das civilizações – estão moldando padrões de coesão, desintegração e conflito no
mundo pós-Guerra Fria.” Ibid., p. 18. E adiante: “A cultura é o tema comum em praticamente todas
as definições de civilização” Ibid., p. 46.
320 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

gênios: um gigante interpela outro através dos espaços vazios


do tempo, e, sem se deixarem perturbar pelos anões maliciosos
e barulhentos que guincham por baixo dele, continuam o seu
diálogo espiritual sublime.5

Nas palavras do Prof. Joaquim Carlos salgado “a história do


pensamento ocidental é um embate entre liberdade e poder. Trata-se da mesma
realidade ética, a política e o direito, ou a liberdade na sua face subjetiva e da
liberdade no seu aspecto objetivo” 6. Destarte, caber-nos-á, aqui, avaliar a
relação Direito e Força, Direito e Poder nos primórdios do pensamento
jurídico ocidental. Indício inequívoco da relevância temática7 da questão
é a dificuldade pedagógica de se enfrentar o tema do conceito de Direito,
mais precisamente quanto ao fundamento da obrigatoriedade da nor-
ma. Na esteira de Kant e Ihering, muitos autores apontam a coerção8

⁵ NIETZSCHE, Friedrich. A filosofia na idade trágica dos gregos. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições
70, 1995. p. 21.
⁶ SALGADO, Joaquim Carlos. O Estado Ético e o Estado Poiético. Revista do Tribunal de Contas do
Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 27, n. 2, p. 37 usque 68, abr./jun. 1998.
⁷ Grandes mestres da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais já dedicaram
estudos ao tema. Dentre eles destacamos aqui a tradição anti-coercitivista da escola, representada
por: α) Prof. Edgar de Godói da Mata Machado, cuja tese de cátedra teve por objeto precisamente
o tema “Direito e Coerção”, republicada recentemente: MATA MACHADO, Edgar de Godói da.
Direito e Coerção. São Paulo: Unimarco, 1999, β) Prof. João Baptista Villela, decano da Casa de
Afonso Pena e titular da cátedra de Direito Privado, que publicou a seguinte monografia: VILLELA,
João Baptista. Direito, Coerção & Responsabilidade: por uma ordem social não-violenta. Belo Horizon-
te: Movimento Editorial da Faculdade de Direito da UFMG, 1982.
⁸ A terminologia técnica acerca da incorporação da força no Direito apresenta inúmeras equivo-
cidades. A nomenclatura empregada pela doutrina está longe da univocidade. O termo coerção
deriva do latim cŏercitĭō: ação de reprimir, repressão. Muito se tem discutido acerca do emprego
da expressão coação (derivada do latim cōgō que significa conduzir em conjunto, restringir, forçar,
constranger) como sinonímia do termo coerção. Muitas outras expressões têm sido utilizadas para
descrever o mesmo fenômeno, propiciado pela afirmação do Direito como ordenamento privile-
giado de condutas. Valem aqui alguns destaques: i) Del Vecchio utiliza indistintamente os termos
coação e coerção, pois a nota essencial da ordem jurídica é a coercibilidade, uma coerção potencial.
Essa coercibilidade é, nada mais, que o corolário da bilateralidade atributiva como nota caracterís-
tica do jurídico; ii) A doutrina francesa oscila entre o emprego do termo coercition e contrainte (que
em vernáculo significa constrangimento). Segundo Mata Machado, existe ali uma preferência pelo
segundo termo em função da influência dos estudos de sociologia e da definição de fato social por
Émile Durkheim; iii) Luís Recásens Siches oferece uma solução ao problema e cunha a expres-
são impositividad inexorable; iv) Autarquia, expressão de origem stammleriana. Ampla exposição
das vicissitudes terminológicas foi realizada por Mata Machado, Cf. MATA MACHADO. Direito
e coerção, cit., p. 13 usque 37. Contudo, parece-nos que a origem da miscelânea terminológica é a dis-
seminação da tese coercitivista do Direito a partir de Kant e Ihering. O signo germânico do qual se
utiliza é Zwang, que se traduz em português por coação, coerção ou constrangimento. De nossa par-
te, preferimos a utilização do termo coerção (força legítima que acompanha o Direito e que confere
sua existência) ao termo coação, pois este possui uma significação técnico-dogmática própria, qual
seja a de vício da manifestação de vontade. Na sistemática privatística coação configura a fattispécie
de um vício do consentimento no negócio jurídico (v. art. 151 et seq do Cód. Civil); na criminalística,
Daniel Cabaleiro Saldanha • 321

como nota distintiva do jurídico. Objetivamos aqui é mostrar que, desde


seu nascedouro, a idéia de justiça relacionou-se com a de poder.
Como sói observar, o espírito de uma civilização não prescin-
de do contato com a antiga tradição cultural. Esses sucessivos contatos
que se justapõem no devir da história geram uma espécie de constância
no pensamento ocidental. Trata-se de um imiscuir da tradição outro-
ra consolidada no vindouro pensamento de uma geração. Tem-se uma
apropriação cultural que opera à maneira de uma co-ratificação, uma
comunicação. Buscamos, nesse pequeno ensaio, analisar o binômio jus-
tiça/força através dessa cifra de compreensão histórica que constitui o
modelo da continuidade. 9

2. Uma incursão no pensamento helênico: Hesíodo

1. Questão recorrente na literatura é a evolução do pensamento


humano que se operou ao fim do período arcaico grego, na transição10
da tradição mítica para o pensamento dos pré-socráticos. Tem-se repre-

uma excludente da culpabilidade, quando irresistível.


⁹ Essa chave de compreensão matizada pelo conceito de continuidade é ainda incipiente no pen-
samento do Direito como fenômeno cultural. Em princípio, adotamos termos como influência, he-
rança, legado, lição. Entretanto, trata-se de uma abreviação mental adotada com vistas a simplificar
uma realidade. Modelo que se nos afigura mais plausível é aquele cunhado pelas ciências bioló-
gicas, qual seja a hereditariedade. Assim, à semelhança do que ocorre no mundo da fisiologia, a
cultura matriz, como forma viva, organiza e reproduz suas percepções nas vindouras gerações.
Esse elemento “duradouro” pode manifestar-se de duas formas: através dos sujeitos portadores
de uma cultura (continuidade helênica, germânica et cœtera) e através dos elementos objetivos de
uma cultura (continuidade da Antigüidade, in fine). Todavia, essa percepção de elementos “du-
radouros” entrecruza-se com a noção de devir histórico, mediatizada pela recepção das idéias de
uma geração por outra. Assim, o choque dessas estruturas transmitidas com a contínua mudança
do pensamento gera um processo dialético de superação, dentro do qual se cunham os novos con-
ceitos. Cf. WIEACKER, Franz. História do Direito Privado Moderno. Trad. A. M. Botelho Hespanha. 3.
ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 35 usque 38.
10
Importa perceber que se tem anotado a mudança de foco em relação ao objeto das especulações
filosóficas: as questões humanas tão presentes na poesia do período arcaico teriam sido convertidas
em especulações de ordem física e cosmológica. Contudo, parece-nos que é equivocada essa pre-
tensa oposição, pois que a oposição entre homem e natureza para eles (pré-socráticos) não existia e
assim suas construções físicas e cosmológicas abarcam também a antropologia, que se manifestaria
de forma mais contundente com Sócrates (O Prof. Joaquim Carlos Salgado entende que a meta-
física ocidental poderia ser divida em três momentos: a metafísica do objeto – período helênico até
Descartes – e a metafísica do sujeito – posterior a Descartes – e a metafísica especulativa, demarcada
por Hegel). A busca da ordem do mundo que o organiza e que lhe assegura harmonia corresponde-
rá, no microcosmos, à busca da lei natural dos homens que possa engendrar a justiça da cidade em
seus corações. Cf. PEIXOTO, Miriam Campolina Diniz. A emergência da reflexão sobre a responsa-
bilidade moral na Grécia Antiga: Homero e Demócrito. Síntese – Rev. de Filosofia, Belo Horizonte, v.
29, n. 95, p. 301 usque 322, 2002.
322 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

sentado essa transição através do binômio logos-mito. Muitos tomam


esse binômio através de uma oposição. Todavia, parece-nos que melhor
seria interpretá-lo através do esquema hegeliano da superação.
O logos representa a explicação do desconhecido, a busca con-
trolada e pré-ordenada da realidade, a intelecção de conceitos, através
de reduções, fixações e produção de sentido. Corresponderia, portan-
to, ao instrumento do intelecto filosófico. De outra parte, a experiência
do mito teve lugar diante do desconhecido, na ânsia de compreensão e
significação dos fatos da natureza. O mito não representa tal esforço de
explicação, mas de significação, uma nomeação de deuses e heróis11 para
transpor o desconhecido em sinais reais. Mito e logos, embora esforços
distintos, pertencem ao campo da linguagem. Portanto, cremos ser pos-
sível reconhecer uma racionalidade própria ao mito, manifesta em seu
poder de presentificação do desconhecido. Logo, passamos a uma breve
investigação da Teogonia de Hesíodo, grande relato poético-mítico da
antiguidade.
2. Hesíodo, nascido em Áscora entre a segunda metade do sé-
culo VIII e o primeiro quartel do século VII a. C12, tem em sua obra a
influência da linguagem das obras homéricas13, mas como camponês,
não se pode excluir o influxo de uma linguagem própria, haja vista o
fato de sua origem campesina. Hesíodo busca em sua obra retomar e
imortalizar os mitos cosmogônicos. O itinerário da Teogonia revela a
recorrente temática da soberania (portanto, inequivocamente, a temáti-
ca do poder14) que perpassa a obra: gerações sucessivas dos deuses en-
frentam-se para dominar o mundo15. É notável a preocupação moral no
poema, a preocupação com o homem justo e o papel representado por
Zeus como símbolo moral – aquele que faz reinar a justiça, controlando
os excessos dos homens16.

11
Posto isso, cabe observar que o mito não é transcendental, está compreendido na physis, compar-
tilhando a existência do infinito através do discurso.
Cf. CERQUEIRA, Ana Lúcia Silveira; LYRA, Maria Therezinha Áreas. In HESÍODO. Teogonia.
12

Niterói: UFF, 1979. p. 11


13
A influência oriental não é descartada. A análise de diversos mitos orientais pode demonstrar sua
repercussão na obra hesiódica. Cf. Ibid., passim.
14
Ao lado da temática do poder surge a liberdade. Hesíodo recupera de Homero a moral da respon-
sabilidade. O homem, como Prometeu, será responsável por seus atos. Cf. Ibid, p. 15.
15
Urano é derrubado por seu filho Cronos, mais novo e superior ao pai. Este é destronado por Zeus,
seu filho mais novo que assume o trono dos imortais. Cada restabelecimento de poder é antecedido
por um estado de caos, de desordem e degradação.
16
O papel retificador de Zeus fica patente no mito de Prometeu. V. Teogonia, v. 567 et seq; Os trabalhos
Daniel Cabaleiro Saldanha • 323

O poeta, assim como o profeta, possui inspiração divina.


Este a recebe dos deuses, aquele das musas17. O adivinho está voltado,
contudo, para o futuro; o poeta para o passado, no intuito de permitir
ao homem decifrá-lo. Assim, voltemo-nos ao poema de Hesíodo, numa
tentativa de perceber essa simbiose entre justiça e poder, que se arrasta
desde tempos imemoriais. Essa tentativa, de per si, já se apresenta fada-
da ao fracasso, pois pretende construir um discurso sobre a canção (aedo)
que representa a experiência do sagrado, nas palavras de J. A Torrano:

um discurso sobre a experiência do Sagrado, um discurso so-


bre o que não deve e não pode ser dito, quer por ser motivo
do mais desgraçoso horror (Nefando), quer por ser motivo e
objeto da mais sublime vivência (o Inefável).18

3. Traço marcante da obra é a relação que se estabelece entre as


divindades. Essas não se relacionam através de vínculos de causa-efeito,
mas de um vínculo de concomitância. Essa concomitância estabelece-
-se através de um processo de continuidade, uma continuidade multi-
direcional, multívoca e complexa. A própria relação genealógica entre
genitores e gerados não se dá no esquema de causa-efeito, antecedente-
-consequente, mas através de uma imanência essencial entre a natureza
de pais e filhos: a natureza daqueles está imbricada na natureza destes.
Genitores e gerados não podem ser tomados como anteriores e pósteros,
mas como contemporâneos. Estabelece-se, portanto, uma contigüidade.
O modelo de genealogia funda-se naquilo que se convencionou
chamar coincidentia oppositorum19. Essa fórmula, que ocupa papel nevrál-
gico no pensamento arcaico grego, promove uma avaliação da alterida-
de e da ipseidade: travam, a um só tempo, uma relação de coincidência
e diferença, entre os diversos entes e eventos. Essa concomitância entre
os membros e eventos é uma contigüidade onto-cronológica. A palavra
“genealogia” deriva do grego génos que significa estirpe, família, raça,
mas também do verbo gígnomai que aporta a idéia de nascer, tornar-se,

e os Dias, v. 42 et seq.. Na Teogonia, a preocupação é mostrar como se organiza o mundo dos Deuses
e suas linhagens, nos Trabalhos e os Dias, em mostrar a organização do mundo dos mortais.
17
“Assim falaram as virgens do grande Zeus verídicas/ por cetro deram-me um ramo, a um loureiro
viçoso/ colhendo-o admirável, e inspiraram-me um canto/ divino para que eu glorifique o futuro e
o passado/ impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos/ e a elas primeiro e por último
cantar.” Teogonia, v. 29 usque 35.
18
TORRANO, Jaa. In Hesíodo. Teogonia: a origem dos Deuses. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1995.
p. 13.
19
TORRANO, Jaa. Teogonia, cit., p. 77 et circa.
324 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

devir. Então, a Teogonia que propõe uma narração-descrição da genea-


logia das divindades não poderia deixar de apresentar esse caráter uno
e contínuo das entidades; assim, a descendência é sempre uma explicita-
ção da natureza dos genitores e de toda sua família. Ensina Jaa Torrano:

A possibilidade de um indivíduo ser ele-Mesmo tanto quanto


Outro-que-não-ele só se dá enquanto o Ser desse indivíduo é
não uma natureza pessoal (i.e, de uma pessoa) mas uma na-
tureza familial (i.e., de um génos), enquanto esse indivíduo é
não a expressão única, peculiar, insubstituível de seu próprio
ser, mas a expressão em que momentaneamente se manifesta a
Fundamento-Genitor, i.e., a natureza fundamental do génos.20

Na Titanomaquia, guerra empreendida por Zeus contra os Titãs,


aquele conta com o auxílio dos filhos de Estige e Palas: Inveja (Zelos) e
Vitória (Nike), Poder (Cratos) e Violência (Bia)21. A relação entre Zeus, Bia
e Cratos estabelece-se dentro de uma proximidade absoluta. Nesse con-
texto fica evidente a relação de contigüidade entre as entidades, como
ensina Torrano:

Nesta seção da Teogonia consagrada a Estige e seus filhos


evidencia-se com a maior nitidez de que modo a relação de
concomitância coordena e vincula entre si os entes e eventos,
sem que se possa encontrar neles quaisquer indícios da relação
causa-efeito.22

Nesse desiderato, fácil será notar que o próprio Zeus, causa sui, é
também muito de Bia e Cratos. Essa ideia de Poder e Violência também
se manifestará nas diversas linhagens de Zeus, por força da continuida-
de de seu génos.
4. A quarta geração dos deuses provém, aqui, das núpcias de
Zeus e Thémis .O casamento deles confere a Zeus a Ordenação interior
de seu reinado, a ordem em suas várias facetas, com suas filhas Hórai e

20
Ibid., p. 78.
21
“Estige filha do Oceano unida a Palas/ no palácio pariu Zelo e Vitória de belos tornozelos/ e pariu
Poder e Violência, insignes filhos./ Longe deles não há morada de Zeus nem pouso/ nem percurso
por onde o Deus não os guie/ mas sempre perto de Zeus gravitroante repousam [...] E veio primeiro
Estige imperecível ao Olimpo/ com os filhos, por desígnio de seu pai;/ honrou-a Zeus e seus supre-
mos dons lhe deu:/ fez dela própria o juramento dos Deuses/ e seus filhos para sempre residirem
com ele” Teogonia, v. 383 et seq.
22
Ibid., p. 73.
Daniel Cabaleiro Saldanha • 325

Moîrai23. Estas são: Cloto, Láquesis e Átropos, que dão aos mortais felicida-
de e infelicidade, distribuindo o bem e o mal; aquelas são: Eunômia (Dis-
ciplina-Eqüidade), Diké (Justiça) e Eirene (Paz), que dosam e regram a
distribuição do bem e do mal. Assim como Bia e Cratos estão intrincados
no génos de Zeus, também se farão presentes na conformação de Eunô-
mia, Diké e Eirene, através da entidade unificadora que Zeus representa.
Destarte, nota-se que as ideias de Poder e Justiça estão correla-
cionadas desde o período arcaico grego. Assim, a compreensão do fe-
nômeno da coerção no Direito remonta a narrativas mitológicas, que já
revelam a íntima relação entre esses termos componentes do conceito
ocidental de Direito24.
A herança daquela efervescência helênica foi transmitida
aos romanos, principalmente por força dos estóicos. Como não poderia
deixar de ser, as idéias de poder e justiça/liberdade continuaram ali a se

23
“Após desposou Têmis luzente que gerou as Horas,/ Eqüidade, Justiça e a Paz viçosa/ que cuidam
dos campos dos perecíveis mortais,/ e as Partes [Moîrai] a quem mais deu honra o sábio Zeus,/
Fiandeira Distributriz e Inflexível que atribuem/ aos homens mortais os haveres de bem e de mal.”
Teogonia, v. 901 usque 906.
24
Essa positividade conferida ao conceito de justiça através de seu relacionamento com a força
e o poder foi já questionada no mundo grego, através dos pensadores que constituem, embora
heterogeneamente, o conjunto dos jusnaturalistas cosmológicos. Dentre uma infinidade de textos,
podemos destacar α) os fragmentos morais de Demócrito, nos quais o querer é o motor do agir
moral gerando responsabilidade: “O inimigo não é aquele que comete a injustiça, mas aquele que a
quer” (Máximas de Demócrates, 55: 68 B 89 DK) e ainda “As leis não impediriam a cada um de viver
segundo seu pendor, se as pessoas não se fizessem mal mutuamente. Pois a inveja é o começo da
discórdia” (Estobeu, Florilégio, III, XXXVII, 53: 68 B 245 DK); β) Antifonte: “Aquelas Leis que resul-
tam de um acordo mútuo não são naturais, mas aquelas da natureza, que são naturais, não resultam
de um acordo. Logo, aquele que transgride a lei, se o faz às escondidas daqueles que estabeleceram
o acordo escapa da vergonha e do castigo. Mas não, se ele não o faz às escondidas. Quanto às nor-
mas naturais da natureza se, indo além do possível, as violamos, mesmo se o fazemos às escondidas
de todos os homens, o mal não é menor, e se todos os sabem, não é maior. Pois o prejuízo não vem
da opinião, mas da verdade. O que explica esse problema é que as prescrições do justo segundo a
lei estão, a maior parte do tempo, em conflito com a natureza.”(Papiro de Oxyrhyncos, XI, 1364, ed.
Hunt: DK B44, Fragmento A, 1-3); γ) Sófocles, com Antígone, chamada por Maritain de eterna
heroína da lei natural (Cf. MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Trad. Alceu Amoroso Lima. Rio
de Janeiro: Agir Editora, 1966. p. 87): “Não foi, com certeza, Zeus que as [leis que a condenaram
à morte] proclamou,/ nem a justiça com o trono entre os deuses dos mortos/ as estabeleceu para
os homens./Nem eu supunha que tuas ordens/ tivessem o poder se superar/ as leis não-escritas,
perenes dos deuses, visto que és mortal./ Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas/ são sempre
vivas, nem se sabe quando surgiram./ Por isso, não pretendo, por temor à sentença às decisões/
de algum homem, expor-me à sentença/ divina. Sei que vou morrer.”Antígone, tradução do grego
por Donaldo Schüller, 450-459. Todavia, o embate entre o justo natural/racional e o justo positivo
permaneceria. Exemplo claro jaz no diálogo entre Sócrates e Trasímaco na República de Platão.
Trasímaco oferece seu conceito de justiça: “a justiça não é outra coisa que o interesse do mais forte”
(338c – essa notação refere-se à paginação da edição in folio de H. Stephanus, impressa em Paris,
em 1578) que é desqualificado por Sócrates, que, todavia, não consegue, nesse momento, expor seu
conceito de justiça, configurando um diálogo aporético.
326 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

inter-relacionar.

3. A fundação da idéia de Direito e o justo jurídico.

1. Roma desenvolveu uma ordenação de condutas própria e


especial, que legou ao Ocidente: o Direito. O Direito distingue-se das
demais normas sociais – moral, costume os convencionalismos – por
tratar-se do ordenamento de “cumeada”, daquilo que o Prof. Joaquim
Carlos Salgado denomina “maximum ético” 25.
A denominação técnica do Direito, como essa ordem exterior e
positiva que impõe obediência, foi a palavra ius26. Esse Direito confor-
mado em Roma haveria de possuir alguns caracteres que o fizessem, a
um só tempo, diferente e superior27 aos demais ordenamentos de con-
dutas. Assim, pode-se dizer, em linhas gerais, que esse conceito28 roma-
no-universal de Direito é caracterizado por suas categorias essenciais,
quais sejam: bilateralidade “tributiva”, exigibilidade e irresistibilidade.
2. Essa bilateralidade “tributiva”29 caracteriza o fenômeno ju-

25
SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação
do Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 8 et seq.
26
A palavra ius possui etimologia obscura, conforme nos informa Bonfante. Certamente não de-
riva de iustum ou issum, palavras que derivam de ius (raiz iugo). Lingüistas modernos tendem a
relacionar o termo ius ao verbo iurare ou à palavra sânscrita iaus. Esta palavra encontra-se uma vez
nos Veda e possui o sentido de saúde, felicidade, com um caráter religioso. Cf. Bonfante, Pedro.
Instituciones de Derecho Romano. Trad. Luis Bacci e Andrés Larrosa. Madrid: Editorial Réus, 1929,
p. 6. Essa origem sânscrita anuncia o caráter positivo do termo Direito e sua preocupação com a
benignidade e indulgência social, veja-se a definição de Celsus, anunciada por Ulpiano: Iuri operam
daturum prius nosse oportet, unde nomen iuris descendat est autem a iustitia appellatum: nam, ut eleganter
Celsus definit, ius est ars boni et æqui.”Dig. I, 1, 1. A edição utilizada para a consulta ao Corpus Iuris
Civilis é: JUSTINIANO, Imperador. Corpus Iuris Civilis. Comp. Paulus Krueger e Theodor Momm-
sen. Berolini: Weidmannos, 1954.
27
Trata-se de uma nova maneira de ordenar as condutas no meio social. Todavia, conforme as pala-
vras de Norberto Bobbio: “Um ordenamento [jurídico] não nasce num deserto” (Bobbio, Norberto.
Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Maria Celeste Leite dos Santos. 10. ed. Brasília: UnB. p. 41) .
Assim, o ordenamento jurídico suprassume os demais ordenamentos sociais, isto é, supera-os e os
modifica; contudo, paradoxalmente, conserva-os em sua estrutura.
28
Focamo-nos aqui no Direito romano-universal (ius gentium) que teve lugar entre 218/20 a.C e
235 d. C (entre as crises que se seguiram à guerra de Aníbal e à morte de Alexandre Severo). Esse
período do Direito Romano seguiu-se ao período quiritário – primeira fase do Direito romano,
caracterizada por uma ordem jurídica adaptada a uma sociedade de vida simples e rústica – e se
caracterizou pelo desenvolvimento científico da principiologia romana, cuja maior manifestação foi
o ius honorarium, obra do pretor. Posteriormente ao período do ius gentium, teremos a codificação
justianéia (séculos I-III d.C), monumento do espírito lógico e prático dos jurisconsultos romanos.
Cf. BONFANTE. Instituciones, cit., p. 10 usque 13.
29
No tocante à nomenclatura acompanhamos aqui a lição do Prof.. Salgado, quem prefere o termo
Daniel Cabaleiro Saldanha • 327

rídico porquanto o extrema da experiência moral. O agir moral perten-


ce ao sujeito ativo e nele se esgota. O período helênico ainda não tem
consciência de um outro-diferente-de-si. O justo moral realiza-se numa
relação na qual ipseidade e alteridade estão mutuamente imbricadas;
trata-se do contexto da “bela totalidade da pólis grega”, conforme o de-
nomina Hegel. O agir jurídico pressupõe o reconhecimento, isto é, a per-
cepção de um outro-igual, de uma outra consciência que impõe limites.
O Direito necessita dessa cisão de ipseidade e alteridade para conformar
um nexo que, agora, não mais pertence ao sujeito ativo e, tampouco, ao
sujeito passivo, mas se configura um nexo transubjetivo. Assim, tem-se
uma bilateralidade que importa numa relação de polaridade entre sujei-
tos que se vinculam objetivamente mediante a chancela do Estado, para
exercerem suas pretensões ou competências. A tributividade decorre da
posição objetiva ocupada pela relação jurídica, na qual o Direito (Esta-
do) confere a cada qual suas pretensões. A relação jurídica que encer-
ra essa bilateralidade tributiva já é anunciada por Ulpiano: “Iustitia est
constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi” (Justiça é a vonta-
de constante e perpétua – infatigável e persistente – de dar a cada um o
seu direito). 30
Dessa tributividade decorre a exigibilidade da conduta devida.
Uma vez que o nexo jurídico não jaz em nenhum dos pólos da relação,
pertencendo simultaneamente a ambos, quando um falha, ao outro é
facultado exigir. Esse sentido objetivo e transubjetivo da bilateralidade
tributiva cria, portanto, uma garantia contra o descumprimento. Surge,
aqui, um conceito propriamente jurídico, o conceito de dívida. Essa ga-
rantia é fruto da segurança e da certeza inerentes à relação jurídica.
Contudo, por derradeiro, resta mencionar a irresistibilidade
diante do comando jurídico. Trata-se de um atributo da norma jurídica
que a torna incontestável, social e racionalmente. Nas palavras do Prof.
Salgado:

A irresistibilidade integra a estrutura categorial da Consciên-


cia Jurídica e decorre da universalidade representativa da auc-
toritas e da validade universal abstrata da norma jurídica [...]
implica, portanto, não só a força coativa, mas a fundamentação

“tributividade” à expressão “atributividade”, porquanto se aproxima de sua origem latina: tribuere.


Esclarecedora exposição da temática pode ser encontrada em SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia
de justiça no mundo contemporâneo: fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006. p. 35 et circa e REALE, Miguel. Bilateralidade Atributiva. In. Enciclopédia
Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977. p. 332 usque 342.
30
Dig. I, 1, 10. A fórmula também é repetida nas Institutas, Cf. Inst. I,1.
328 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

ulterior de qualquer decisão ou a ação da autoridade como de


toda a sociedade, portanto com mérito de sua força e de sua
vontade. 31

É precisamente nesse influxo entre a exigibilidade e a irresistibi-


lidade que surge a força, uma força eticamente destinada a fazer cum-
prir o justo jurídico.
3. O gênio romano conformou um instituto que encerra em sua
ontologia essas características essenciais do conceito de Direito. Trata-
-se da actio. Na definição de Celso: “Nihil aliud est actio quam ius quod
sibi debeatur, iudicio persenquendi.(Ação nada é além do que o direito de
perseguir aquilo que lhe é devido em juízo)”32. A actio configura-se, des-
tarte, como um instrumento de defesa da pretensão resistida, o direito a
perseguir o devido em juízo.
Está-se diante da construção conceitual do Direito capaz de aga-
salhar os caracteres do jurídico, servindo de termo médio para a efetiva-
ção da força encarcerada na norma abstrata e universal.
A actio avultou-se de tal maneira no contexto jurídico romano
que o possuir ou não um direito expressava-se dizendo possuir ou não
a faculdade de exercitar a actio. Essa postura é oriunda da formação do
Direito nas mãos do pretor, que ao introduzir inovações não o fazia me-
diante normas, mas concedendo em seu edicto a actio adequada. Assim,
muitos direitos de origem pretoriana não possuem sequer denomina-
ção própria, sendo expressos por sua ação33. (Portanto, parece-nos que
o conceito de obrigação natural parece um tanto quanto estrambótico
e destituído dessa juridicidade romana. Sua compreensão é mediatiza-
da sempre pela alegação de não possuir actio correspondente e, quando
muito34, pelo surgimento da solutio retentio na ocasião do pagamento es-
pontâneo. Não se nos afigura como pertencente ao campo privilegiado e
protegido do Direito, mas um sim um fóssil entre a moral e o jurídico).

31
Salgado, Joaquim Carlos. A idéia de justiça no mundo contemporâneo, cit., p. 84.
32
Dig. XLIV, 7, 51. O conceito é repetido ainda nas Institutas “Superest, ut de actionibus loquamur, actio
autem nihil aliud est, quam ius persequendi iudicio quod sibi debetur” Inst. IV, §6. Ulpiano, no parágrafo
16 do Livro L do Digesto, dedicado ao significado das palavras, assim define: “Actionis verbum et
speciale est et generale nam omnis actio dicitur, sive in personam sive in rem sit petitio: sed plerumque ‘ac-
tiones’ personales solemus dicere ‘petitiones’ autem verbo in rem actiones significari videntur. ‘persecutionis’
verbo extraordinarias persecutiones puto contineri, ut puta fideicommissorum et si quae aliae sunt , quae non
habent iuris ordinarii exsecutionem.” Dig. L, 16, 178, 2.
33
V. BONFANTE, Pedro. Intituciones de Derecho Romano, cit., p. 111.
34
Essa é a lição de Ulpiano: “Naturales obligationes non eo solo aestimantur, si actio aliqua eorum, nomine
competit, verum etiam eo, si soluta pecunia repeti non possit” Dig. XLV, 7, 10.
Daniel Cabaleiro Saldanha • 329

4. A já anunciada relação entre o Direito, a liberdade e a força


é sintetizada, como lembra com maestria o Prof. Salgado, na ação do
interdictium de homine libero exhibendi35. Surge um justo qualificado, su-
prassumido da realidade, delimitado por uma forma e garantido pela
força. É, pois, que a ideia de justiça alcançou um novo patamar36: um
justo jurídico.

4. Kant e a Coação

Muito se tem dito do papel da coerção na filosofia moral kan-


tiana. Sem embargo, muito pouco se tem fundamentado. Del Vechio,
por exemplo, embora reconheça o papel nevrálgico da coerção na filo-
sofia kantiana, não lhe atribui um caráter inovador, afirmando, apenas,
que Kant apenas “corrigiu e esclareceu, com método rigoroso, o antigo
procedimento da Escola do Direito Natural.”37 De outra parte, Maritain
considera a filosofia kantiana apenas como uma corruptela da filosofia
moral cristã38.
Parece-nos, porém, que a concepção mecânica do direito em
Kant encontra amparo precisamente na identidade entre conduta jurídi-
ca e motivação pela força. A preocupação fundamental da filosofia críti-
ca kantiana está em encontrar as condições de possibilidade da conduta

35
Trata-se da ação que fornece o substrato de nosso moderno habeas corpus. Trata-se de um inter-
dicto que consistia em uma ordem do Magistrado, ditada ante o recurso da parte prejudicada, cuja
aplicação soia ocorrer quando o interesse prejudicado tinha caráter quase público. O paterfamilias
podia fazer valer esse seu direito diante de um terceiro que retivesse o filiusfamilias contra sua
vontade. Inicialmente, tratava-se de uma vindicatio, e, posteriormente, o pretor introduziu a este
efeito o interdictus de liberis exhibendis. V. BONFANTE. op. cit. p. 135/164. Agora, o romano superava
a concepção de liberdade de Epiteto, jungindo consciência e corpo, reclamando sua liberdade de ir,
vir e permanecer. V. SALGADO. op. cit. p. 61.
36
Novamente aqui anunciamos que essa positividade da idéia de justiça não foi pacífica. Essa dis-
sidência entre a justiça positiva e a justiça natural manifestou-se no seio da doutrina católica e deu
origem ao jusnaturalismo de matriz teológica. A separação da ordem das coisas humanas e da
ordem divina foi cristalizada por Jesus de Nazaré. Os discípulos dos fariseus, com malícia pergun-
taram-lhe: “É lícito pagar tributo a César, ou não?” Ele os respondeu: “Por que me experimentais,
hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. Eles lhe apresentaram um denário. E ele lhes pergun-
tou: De quem é esta efígie e inscrição? Responderam-lhe: De César. Então ele lhes disse: Daí a César
o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt, 22: 15-22). De outra parte, Paulo afirma a existência
de uma lei natural, fruto da natureza divina da criatura humana: “Quando os gentios, que não têm
lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei. Eles
mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência e os seus
pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” (Rm, 2: 14-16).
37
DEL VECCHIO, Giorgio. Lezioni di Filosofia del Diritto. 8. ed. Milano: Giuffrè, 1952. p. 82-89, 237.
38
MARITAIN, Jacques. Neuf Leçons sur les nottions premières de la philosophie morale. Paris: Pierre
Téqui, 1951. p. 3
330 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

humana, submetendo todas as condutas a um “tribunal”, com o propó-


sito de assegurar as ações e posições justas, repelindo aquelas infunda-
das. Esse tribunal é justamente a crítica da razão pura. Impondo limites
à razão pura, incapaz de conhecer qualquer coisa além daquelas que lhe
são dadas na representação do mundo da experiência, Kant quer, em
verdade, desanuviar o caminho da razão pura. Se, na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, Kant aborda os princípios da moral vulgar, na
Crítica da Razão Prática buscará os elementos a priori do agir moral.
A coerção, como nota do Direito, como desenvolverá o filósofo
prussiano encontra seu fundamento metafísico ainda na razão pura, na
medida em que esta, lançando mão do próprio exemplo kantiano, “poli-
cia”39 a razão prática.
A distinção fundamental exposta pela Crítica da Razão Pura entre
mundo da natureza, em que predomina, no mundo sensível, a ligação
de um estado com o anterior, ao qual sucede de acordo com certa norma,
e o mundo da liberdade, concebida como idéia criada pela própria razão
para seu próprio uso (transcendental) fornece as bases para sua filoso-
fia do direito coercitivista. Explique-se: a liberdade, no sentido prático,
é a independência da vontade relativamente à coerção exercida pelas
inclinações da sensibilidade. A vontade animal, ou brutum arbitirum, é
aquela em que os móveis sensíveis necessitam a vontade; já no homem,
a vontade é um sensitivum arbitrium, na medida em que pode desvenci-
lhar-se das afecções dos sentidos, convertendo-se em arbitrium liberum.
Essa idéia transcendental de liberdade pura é o único modo de conciliar
a liberdade com a universalidade da lei natural da causalidade. Neste
passo, ainda que impossível conhecer-se a realidade da liberdade, é pre-
ciso querê-la sempre, pois se toda ação é submetida à regra da liberdade,
ou princípio regulador da razão, é, ao mesmo tempo, voltada para os
fenômenos sobre os quais atua a razão teórica, através das intuições, dos
conceitos a priori, das formas, das categorias, dos princípios e das idéias.
Assim, qualquer contato do mundo moral com o reino da coisa em si lhe
é fatal, senão impossível:

A moralidade própria das ações (o mérito e a falta) a moralida-


de de nossa própria conduta é-nos absolutamente dissimulada.
Nossas imputações só se podem referir ao caráter empírico. Em
que medida se lhe deve atribuir o efeito puro à liberdade, em
que medida à simples natureza, ou a suas qualidades propícias

39
KANT, Immanuel. Critique de la Raison Pure. Trad. François Picavet. Paris: Flammarion, s/d. p.
26-27.
Daniel Cabaleiro Saldanha • 331

(mérito fortunae) é o que ninguém pode descobrir, nem, por con-


seqüência julgar com perfeita justiça.40

Assim, a Crítica da Razão Pura apresenta um conceito de liber-


dade ainda vazio e de um mundo moral necessário. Somente a partir da
Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) e com os Princípios Me-
tafísicos do Direito (1797) Kant irá desvendar o princípio supremo da mo-
ralidade, vinculado às suas concepções da Crítica da Razão Pura, isto é,
a busca por uma lei moral de necessidade absoluta. É justamente nesse
influxo da necessidade que surge o dever, compreendido como vínculo
com princípios universais. Só as ações que se praticam por dever são
morais. O dever pode, assim, ser expresso segundo as seguintes propo-
sições:

[...] uma ação realizada por dever tira seu valor moral não do
fim, que, por meio dela se queira alcançar, mas da máxima se-
gundo a qual foi decidida; não depende, pois, da realidade do
objeto da ação, mas, exclusivamente, do princípio do querer,
de acordo co o qual sucede a ação, prescindindo de todos os
objetos da faculdade de desejar.41

Ainda:

O dever é a necessidade da ação por respeito à lei42

A lei, em cujo respeito ação realizada por ser considerada moral-


mente boa, é o de distinção universal do agir moral, e sobre ela se fun-
dará a formulação central da ética kantiana: agir de tal modo que possa
querer que minha máxima se converta em lei universal.
Em sua teoria dos imperativos, Kant distinguirá os imperativos
hipotéticos – imperativos técnicos ou regras e os imperativos de prudên-
cia ou conselhos – os imperativos morais – mandatos ou leis, segundo a
desigualdade de coerção da vontade. No reino moral, a autonomia como
que destrói a coerção, isto é, na esteira do iluminismo antropocêntrico,
crê haver encontrado o princípio autêntico da moralidade: o homem está
sujeito apenas e tão somente à sua legislação, desde que universal. Não

40
Ibid., p. 102.
KANT, Immanuel. Fundamentación de la metafísica de los costumbres. Trad. Manuel . Morente. Bue-
41

nos Aires: Espasa Calpe, 1946. p. 37


42
Id., Ibid.
332 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

que o agir moral estivesse totalmente livre de coerção, mas, em verdade,


encontrava-se submetido a uma coerção inevitável, exercida pela pró-
pria razão sobre as inclinações da sensibilidade: “a consciência de uma
livre submissão da vontade à lei, unida, entretanto, a uma coerção inevi-
tável, que é exercida sobre todas as inclinações, mas somente por nossa
própria razão, é, pois, o respeito à lei.”
Como se demonstrou, uma ação moralmente boa há de ser rea-
lizada não apenas conforme a lei moral, mas em vista da lei moral. A
primeira atenderia apenas à legalidade, a segunda, sim, à moralidade
pura. Nossa inteligência, contudo, pode apenas considerar a ação se-
gundo sua legalidade. É o respeito à lei moral que determina a ação
moralmente valorosa, respeito que tende em ser converter em amor à
lei moral e, assim deixa a moral, para Kant, de apresentar qualquer viés
coercitivista.
De outro lanço, o Direito não se situa no plano da moralidade,
mas, antes, da legalidade, ou, melhor, da ação conforme a lei. A distin-
ção entre ação jurídica e ação moral está em que nesta a motivação se
baseia na representação do dever, naquela se baseia na sua imposição
mecânica, isto é, a coação, daqui derivando outra ordem de distinção,
talvez mais popular: a interioridade da moral em cotejo com a exteriori-
dade do Direito.
Em síntese, nas palavras de Mata Machado:

Eis como, partindo do criticismo teórico, com uma noção de li-


berdade indemonstrável, e passando por uma conceituação da
moral, fundada em algo necessário, mas incognoscível, Kant
não pode encontrar para a vida social plena do homem, para a
boa convivência entre os cidadãos, senão uma ordem jurídica
mecanizada pelo uso da força, que a tanto equivale a identifi-
cação entre direito e coerção.43

Assim conclui Salgado:

A natureza obriga o homem com esse antagonismo [...] à so-


lução do seu problema maior: constituir uma sociedade civil
que administra o direito universalmente ou uma sociedade do
maximum de liberdade com o maximum de determinação e ga-
rantia dos limites dessa liberdade para compatibilizá-la com a
dos outros. [...] É necessário que haja o Direito limitando esses
arbítrios, segundo o princípio de igualdade, é necessário que

43
MATA MACHADO, Edgar de Godói. Direito e coerção, cit. p. 120.
Daniel Cabaleiro Saldanha • 333

se anulem pela forma analógica da ação e reação na natureza


(igualdade), por intensidade igual, as inclinações sensíveis dos
indivíduos que impedem o exercício da liberdade dos outros.
O modo pelo qual é possível a anulação dessas inclinações é,
pela mesma forma, um sistema de reações sensíveis de relações
causais psicológicas ou físicas do mundo dos fenômenos, isto
é, da coação.44

Eis, aí, lapidada a noção de ius já presente em Roma, aparelhada


por seus elementos existenciais, muito embora o próprio Kant, na Meta-
física dos Costumes, tenha negado que a máxima ulpiana (honeste vivere,
neminem laedere, suum cuique tribuere) não possam fornecer a base me-
tafísica do Direito. Verdade parcial. Não fornecem, isolados, essa base,
porém a compõem, faltando-lhes seus elementos existenciais: a actio.

5. O estigma do conceito de força: por uma reabilitação

Posturas modernas como a de Carl Schmitt, que concebe uma


força aparelhada – Estado – sem direito, terminaram por estigmatizar o
conceito de força, ensejando o recrudescimento de leituras anti-coerciti-
vistas.
Grande estudo de Antropologia, História e Direito, a
obra de Sumner Maine, Ancient Law, de 1861, informa-nos que um dos
indicativos de desenvolvimento de uma sociedade é a substituição do
estatuto pelo contrato. O autor empreende vasta investigação da juris-
prudência romana45, para esposar sua tese de que a introjeção do senti-
do da contratualidade no pensamento ocidental possibilitou seu grande
desenvolvimento em relação às civilizações bárbaras. Michell Vasseur
recupera esses elementos e verifica que a contratualidade vem perme-
ando a esfera do Estado, constata que a empresa não mais vê o Estado

SALGADO, Joaquim Carlos. A idéia de Justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualda-
44

de. 2. ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1995. p. 276.


45
Afirma, no prefácio: “The space allotted in the third and fourth chapter to certain philosophical theories
of the Roman Jurisconsults has been appropriated to them for two reasons. In the first place, those theories
appear to the author to have had a wider and more permanent influence on the thought and action of the world
than is usually supposed. Secondly, they are believed to be the ultimate source of most of the views which have
been prevalent, till quite recently, on the subjects treated of in this volume” Prefácio de Ancient Law, 1861.
Mais adiante, no início do capítulo 9, afirma a distinção entre a sociedade de seus dias e as gerações
que o precederam: “There are few general propositions concerning the age to which we belong which seem
at first sight likely to be received with readier concurrence than the assertion that the society of our day is
mainly distinguished from that of preceding generations by the largeness of the sphere which is occupied in
it by Contract.” SUMNER MAINE, Henry. Ancient Law. New York: Cosimo Classics, 2005. p. 179
334 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

como polícia e, tampouco, como distribuidor de impostos, mas como


cooperador necessário de sua atividade. O Estado, por sua vez, aproxi-
ma-se da empresa para realizar os fins do interesse geral; afirma, con-
cluindo:

o domínio de aplicação do contrato e do bilateral negociado se


estende, e então se reduz, por seu turno, o do regulamento e do
unilateral imposto.46

O Prof. João Baptista Villela, remetendo-se a esses autores,


propugna, no já citado estudo, a substituição de uma ordem jurídica co-
ercitiva por uma ordem fundada na auto-responsabilização dos sujeitos,
que se unem por vínculos jurídicos, rechaçando uma violência institu-
cionalizada.
Parece-nos que o ranço dos autoritarismos exigiu a tração do
pêndulo da idéia de justiça para o pólo do anti-coercitivsmo. Todavia,
cremos ser possível recuperar o sentido dessa força qualificada pela
presença do Estado (coerção). Basta, para tanto, não nos olvidarmos da
destinação ética do Direito. A força jurídica não é opressora, violenta e
nociva, mas garante e libertária. Ora, o bilatéral négocié de Vasseur e a
auto-reponsabilização de Villela somente são possíveis diante do papel
pedagógico e civilizador exercido pelo Direito, que não pode se des-
guarnecer. Buscamos, assim, uma força eticamente orientada, capaz de
garantir a liberdade do homem, da pessoa e do cidadão47.

Referências bibliográficas

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HESÍODO. Teogonia. Niterói: UFF, 1979.

46
“le domaine d’application du contrat et du bilatéral négocié s’étende, alors que se réduit celui du règlement
et de l’unilateral imposé. ” VASSEUR, Michel. Un nouvel essor du concept contractuel : Les aspects
juridiques de l’économie concertée et contractuelle. Revue Trimestrielle de Droit Civil. t. 62. p. 5 usque
48. 1964. p.13
47
Esta é a lição de Salgado, em SALGADO, Joaquim Carlos. Op. cit., p. 273 usque 281.
Daniel Cabaleiro Saldanha • 335

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336 • Capítulo 13 - Direito e Coerção: a permanência de elementos da Antiguidade em Kant

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POSFÁCIO

Sobre a constelação de Modernidades1

Prof. Dr. José Luiz Borges Horta2

1. O problema do moderno, ou o moderno como problema

A divisão da história, e particularmente da história do pensa-


mento, em três grandes etapas tem um apelo tipicamente subjetivista e
instrumental.
Pensar o tempo em três etapas, uma gloriosa (a antiga) e uma de
reconquista desta glória (moderna), encontrando-se entre ambas uma eta-
pa meramente média possui duas virtudes razoavelmente estratégicas: a
primeira, facilitar ao máximo a oposição ao imediatamente passado; a
segunda, inserir o pensador que a utiliza, de modo imediato, no novo
tempo – como se no arranjo filosófico proposto já estivesse implícito o
autoelogio: “eu sou moderno”.
Nada mais coerente, portanto, que um tempo que pode ser reco-
nhecido, antes de mais nada, como uma Filosofia (ou Metafísica) do Su-
jeito queira recompor o legado humano autoproclamando-se o moderno.
Os historiadores têm por hábito estabelecer duas diferentes da-
tas para o fim do Medievo e a irrupção do período moderno, datas que,

¹ A redação do presente ensaio, aqui publicado à guisa de posfácio — como sempre, com a cola-
boração eficiente e zelosa do jovem pesquisador Vinicius de Siqueira, da Universidade Federal de
Minas Gerais — insere-se na linha de pesquisa Estado, Razão e História e no projeto Macrofilosofia,
Direito e Estado, este último contando com incentivo, entre outros, do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
Minas Gerais (FAPEMIG). Na linha como no projeto, temos a generosa e inspiradora participação
da Profa. Dra. Karine Salgado, a quem devotamos admiração, gratidão e imenso afeto. Não há
como deixar de reconhecer, nas linhas e especialmente nas entrelinhas aqui esboçadas, a presença
radiante dos hegelianistas Joaquim Carlos Salgado, Gonçal Mayos Solsona e Alfredo de Olivei-
ra Moraes, a quem mais uma vez prestamos nossa homenagem.
² Professor associado de Teoria do Estado e Filosofia do Estado na Faculdade de Direito da Univer-
sidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito Constitucional (UFMG, 1999) e Doutor
em Filosofia do Direito (UFMG, 2002), com pós-doutorado em Filosofia pela Universitat de Barcelo-
na (2010-2011). Coordenador (desde 2005) do Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos e (desde
2011) do Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado. E-mail: zeluiz@ufmg.br.
338 • Posfácio: Sobre a constelação de Modernidades

de alguma forma, podem nos inspirar na reconstrução do moderno em


sede de História da Filosofia.
Para alguns, o marco cronológico seria a tomada de Constanti-
nopla, até então capital do Império Bizantino (herdeiro das tradições do
Império Romano do Oriente – o mesmo que, através do monumental
trabalho ordenado por Justiniano, nos legou a preservação do Direito
Romano), pelos turcos, em 14533. Naturalmente, refletido desde uma
perspectiva eurocêntrica e especialmente de um imaginário de uma
Europa cristã, a organização de um império muçulmano nas fronteiras
orientais da Cristandade possui um evidente efeito aterrorizador (do
qual, talvez, o anti-islamismo europeu contemporâneo nada mais seja
que um desdobramento atávico).
Para outros, cujas chaves de leitura buscam compreender a Mo-
dernidade como um fenômeno mundial ou, na Europa, a partir de radi-
cais transformações na conjuntura econômica, o marco da Modernidade
seria precisamente a descoberta das Américas, em 1492.
Em uma das perspectivas, o projeto moderno seria tipicamente
europeu e construído geneticamente pela oposição a um certo medieva-
lismo islâmico; na outra, a Modernidade origina-se da Europa mas se
vocaciona a irradiar-se pelo mundo na medida em que se afirma antes
como colonialidade (ou colonialismo) que como Modernidade.
De uma ou de outra forma, no entanto, na segunda metade do
século XV o coração do mundo (a Europa) teve de modernizar-se, quer
movida pelo risco efetivo a seus valores e tradições, quer alimentada
pela era colonial que a patrocinava.

2. Muitas modernidades: esboço de classificação dos modernos

Ainda que se tome uma ou outra posição, o problema


remanesce, já que talvez nada será tão complexo como compreender
a chamada Modernidade como um conjunto coerente e monolítico de
valores e mundivisões; quantas modernidades fomos capazes de gerar
nestes últimos quinhentos anos? Duas? Três? Quatro?
Ora, para fazermos Filosofia e história coerentes entre si, a pri-
meira Modernidade não poderia ser situada no racionalismo cientificis-
ta de um Renê Descartes, mas sim séculos antes, na etapa filosófica (e no
espaço privilegiado daquelas cidades-Estado itálicas) que se convencio-

³ Este é o ponto de partida do monumental SIMMS, Brendan. Europa: A Luta pela Supremacia; de 1453
aos nossos dias. Trad. Miguel Ferreira da Costa. Lisboa: Edições 70, 2015, p. 39 et seq.
José Luiz Borges Horta • 339

nou chamar algo comodamente de filosofia do Renascimento.


De fato, a filosofia do Renascimento possui já boa parte das ca-
racterísticas do que mais tarde se agiganta como filosofia moderna. Mi-
remos, em sede de Filosofia do Estado, o notável esforço teórico de Ma-
quiavel, talvez o legitimo fundador de uma filosofia política consciente
de si, e veremos que o pensamento florentino é tão moderno quanto o
será o do contratualismo jusnaturalista dos séculos seguintes.
Teríamos assim ao menos duas modernidades: a Modernidade
renascentista, marcada por uma reelaboração das categorias de pensa-
mento em direção a uma retomada dos fios perdidos da tradição antiga
que se pretendia fazer renascer, e a Modernidade iluminista, essa típica
Modernidade construída no encalço da revolução científica e, portanto,
tributária das viradas epistemológicas propriamente trazidas pela Filo-
sofia do Sujeito construída a partir de Descartes, consolidada em Kant e
quiçá hipostasiada em Fichte.
No entanto, também o concluir da Modernidade no momento
Kant-Fichte parece insuficiente, já que o Idealismo pós-kantiano (ou ale-
mão) é sem dúvida a mais potente filosofia moderna. Teríamos então de
assumir a existência de uma terceira Modernidade, uma Modernidade
especulativa, sem dúvida pautada por Hegel e que teria seu tempo de
florescimento no longo século XIX, um século que começa timidamen-
te no cenário pós-Revolução Francesa e melancolicamente desaparece
como a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 19144.
Essa terceira Modernidade, que já não constrói uma Filosofia do
Sujeito senão que a busca matizar pela via da superação da separação
entre o sujeito e o objeto, é o inequívoco tempo de Hegel e das filosofias
que com ele dialogam: Schelling, Marx, Nietzsche.
Mas teria a Modernidade de fato terminado em 1914? O breve
século XX seria não-filosófico? Seria pós-moderno? Este é o debate no
qual muitos pensadores encontram-se envolvidos, com autores do porte
de Baumann advogando a permanência do projeto moderno, ainda que

⁴ Na Universitat de Barcelona, um dos mais importantes centros de pesquisa filosófica europeus, os


cursos de História da Filosofia Moderna (a cargo de filósofos do porte de Gonçal Mayos Solsona e
Salvi Turró) chegam precisamente ao desmoronar da Belle Époque, em 1914. Essa percepção de um
arco mais amplo a caracterizar o moderno na Filosofia nos levou a propor a Mayos a organização
do seu instigante Macrofilosofia da Modernidade, cujos ensaios percorrem de Descartes a Nietzsche;
cf. MAYOS, Gonçal. Macrofilosofia de la Modernidad. Barcelona: dLibro, 2012 [é curioso pensar que
o livro foi originalmente organizado e traduzido para o português a partir de ensaios publicados
anteriormente por Mayos em castelhano e catalão, visando sua publicação no Brasil; as astúcias da
Razão o fizeram publicar antes em castelhano].
340 • Posfácio: Sobre a constelação de Modernidades

em termos de uma Modernidade líquida5.


Talvez para sermos rigorosos tenhamos de assumir que a Moder-
nidade possui quatro etapas, portanto: a Modernidade renascentista, a
Modernidade iluminista, a Modernidade especulativa e a Modernidade
fragmentária – esta última marcada pela crise dos sistemas filosóficos e
talvez pelo ocaso da Filosofia como saber de totalidade6.
Um panorama da Modernidade, no entanto, não se esgota na li-
nearidade histórica destes quatro momentos sucessivos.

3. Modernidade e Contramodernidade: a contribuição do Romantismo


Alemão

O discurso racionalista, ou iluminista, sobre a Modernidade, que


mescla a mística cientificista a uma cosmovisão triunfante, foi menos
vitorioso, no seu tempo, que a contemporânea história da filosofia deixa
entrever.
No mínimo em relação à etapa mais autoapologética – aqui chama-
da de Modernidade ilustrada –, a crítica foi especialmente dura e parti-
cularmente fértil.
Em radical oposição ao discurso filosófico da Modernidade e à
centralidade da Razão ou dos procedimentos racionais na Filosofia de
seu tempo, construiu-se de modo um tanto difuso a Escola Romântica
de pensamento filosófico, cuja elaboração mais sofisticada é sem duvida
a do Romantismo alemão7.
É fato que o Romantismo alemão possui em si uma pluralidade
de vertentes e concepções, de alguma forma inspirando autores tão
diferentes, mas ao mesmo tempo tão harmônicos em sua polifonia,
quanto Goethe (que mais tarde teceria duríssimas críticas ao Romantis-
mo, proclamando-se um classicista), Herder, Novalis, Schiller, Schlegel,
Hölderlin, entre tantos outros.

⁵ Cf. BAUMANN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
⁶ Ainda assim é extremamente pertinente o esforço de Gonçal Mayos em direção a uma história
filosófica das últimas décadas, que o filósofo catalão vem desenvolvendo sob o tema-problema
Somos modernos ou pós-modernos?, de que já resultaram alguns dos ensaios recolhidos em MAYOS
SOLSONA, Gonçal, et al [orgs]. Cultura, Historia y Estado; pensadores em clave macrofilosófica.
Barcelona: La Busca, 2013.
⁷ Sem dúvida podemos reconhecer romantismos diversos e em idiomas diversos. O Romantismo
francês, e.g., tem na figura de Jean-Jacques Rousseau um evidente fautor. Assim como a Filosofia
de Ilustração, para a qual podemos falar em uma Ilustração francesa, uma Ilustração inglesa, uma
Ilustração escocesa, mas cujo apogeu se dá com a Ilustração alemã (Kant), igualmente plural será a
Filosofia Romântica.
José Luiz Borges Horta • 341

Igualmente as idéias-força do Romantismo alemão são distintas


e nem sempre presentes em todos os seus autores e vertentes; porém, em
alguns aspectos talvez possamos identificar perspectivas comuns a todo
o movimento romântico8.
A primeira delas diz respeito a uma relação tremendamente dú-
bia com a Revolução, histórica e faticamente representada no universa-
lismo da Revolução Francesa. É bem verdade que uma parcela dos ro-
mânticos chega a saudar a Revolução como um novo tempo e um novo
marco; nada obstante, a crítica que fazem à ilusão racionalista revolucio-
nária é insuperável e talvez esteja na raiz do olímpico desprezo que uma
parcela dos filósofos dedica ao Romantismo.
A crítica ao racionalismo é talvez a marca mais evidente do Ro-
mantismo, empenhados que estavam seus pensadores em recuperarem
as dimensões passionais, emocionais e simbólicas da experiência huma-
na como objeto do filosofar. Se a Razão é uma potência, não menos vigo-
rosa será a força do sentimento.
O sentimento, por sua vez, decorre muito mais da história e do
processo de construção dos valores e de tradição desses valores de uma
geração a outra que de uma Razão supostamente universalista e formal-
mente apreensível.
Sem dúvida, o antirracionalíssimo romântico, de alguma forma
comum a todos os seus pensadores, inscreve o Romantismo em uma
posição tão dissonante com as correntes filosóficas hegemônicas que po-
demos assumi-lo como uma verdadeira Contramodernidade9.
Por outro lado, o que era dúbio em relação ao presente de então
– o tempo da Revolução – é ainda mais dúbio e complexo na relação do
romântico com o tempo e a história; a nostalgia é a marca romântica por
excelência, mas não somente uma nostalgia do passado, senão que tam-
bém paradoxalmente uma nostalgia do futuro.
É que o romântico parece dissolver o tempo em um processo de
tradição no qual passado, presente e futuro se articulam em razão de um
sentido histórico e se permitem reescrever à luz deste sentido.
Nostálgico do passado, o romântico buscará recompô-lo, refun-

⁸ Remetemos o leitor à acurada pesquisa BARROSO, Gabriel Lago de Sousa. Arte e Política no Ro-
mantismo Alemão. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais,
2014. (Dissertação, Mestrado em Direito).
⁹ Não propriamente no sentido de uma Contramodernidade estritamente antiliberal, mas no sen-
tido de uma crítica radical à racionalidade moderna. Sobre os contramodernos antiliberais, v. LI-
MONCIC, Flávio; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes [orgs]. Os intelectuais do antiliberalíssi-
mo; projetos e políticas do antiliberalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
342 • Posfácio: Sobre a constelação de Modernidades

dindo-o, em grande medida, à luz de seus próprios valores.


O romântico volta à Antigüidade e ao mundo medieval com
avidez de se reencontrar, e naturalmente submete sua interpretação do
passado antigo e do passado medieval ao chamado ou à vocação que
pretende desdobrar no futuro.
É mesmo uma nostalgia de e do futuro o que move o verdadeiro
romântico em direção ao passado; ousadamente o romântico reinventa o
passado, idealizando aspectos e mitos que lhe serão necessários a uma critica
de seu tempo; consciente da incapacidade da reprodução mais perfeita
ou verdadeira do passado, o romântico se lança à reprodução mais bela
(e portanto, a seu juízo, mais útil ao seu tempo).
A tradição, com o Romantismo, se transforma em um instrumen-
to de ataque aos tempos modernos, um ataque que, como bem lembra
Gonçal Mayos, constitui-se também ele em um dos eixos centrais da Mo-
dernidade10.

4. Modernidade “contemporânea”: Hegel

A Contramodernidade oferecida pelos românticos pode


ser considerada axial ao debate moderno, na medida em que talvez o
tema-chave da Modernidade seja a dualidade entre Razão e irrazão,
pensamento e sentimento, lógica e emoção. Se o racionalismo moderno
buscava todas as formas de fundamentação ética e filosófica da raciona-
lidade humana, o Romantismo recupera seu lado passional, intuitivo,
emocional, simbólico.
Talvez sem Hegel não fosse possível assumirmos o papel do Ro-
mantismo na filosofia moderna; com Hegel já não é mais possível, de
maneira nenhuma, negar a importância filosófica do Romantismo.
Hegel, este autor que, para muitos, não sem razão, é o mais im-
portante filósofo da Modernidade, busca em seu sistema filosófico har-
monizar todas as dimensões da vida humana, (re)assumindo-as, ou su-
prassumindo-as em uma totalidade dialética e cultural.
Não é possível, a partir de Hegel, imaginar uma Razão que não
contenha o irracional, uma lógica que não contenha o empírico, um ra-
cional que não contenha o histórico11.

10
Este o sentido central de uma de suas obras seminais: MAYOS SOLSONA, Gonçal. Ilustración y
Romanticismo; introducción a la polémica entre Kant y Herder. Barcelona: Herder, 2004.
Por todos os que vimos buscando reconstituir os laços de Hegel com o Romantismo, v. MAYOS
11

SOLSONA, Gonçal. Entre Lògica i Empiria; claus de la filosofia hegeliana de la história. Barcelona:
José Luiz Borges Horta • 343

Ou mesmo negar, para além, o vice-versa: um real que é racional


e um racional que é real12.
Se o coração do pensamento hegeliano, a força que impulsiona
a própria história do pensamento humano, outra não é que a dialética,
então corretas estarão todas as concepções e interpretações de Hegel que
visam reforçar a importância e o relevo da negatividade e o papel do ne-
gativo no pano de fundo do debate filosófico.
A dignidade do Romantismo alemão, antes de mais nada, está
em oferecer um negativo vigoroso para o racionalismo moderno, uma
contramodernidade rigorosamente moderna que tornará a Modernida-
de ainda mais forte, como compreensão humana e como projeto de hu-
manidade, que a mera quimera racionalista.
A força desta Modernidade especulativa, como a tradição certamen-
te prefere chamá-la, é a de afirmar-se como Modernidade dialética, exa-
tamente por termos na negatividade, na cisão, a energia que dá vida à
história e portanto promove o progresso efetivo do Espírito. O coração
da vida do Espírito está nas cisões que produz, não nas reconciliações;
portanto, a negação parece ser a chave da compreensão da Filosofia de
Hegel, não a suprassunção (que, afinal, também ela é negação-da-nega-
ção).
Assim se manifestou Hegel, em parágrafo especialmente mal-
-compreendido pela tradição:

“§79 A lógica tem, segundo a sua forma, três lados: a) o lado abs-
trato ou do entendimento; b) o dialético ou negativamente-racional;
c) o especulativo ou positivamente-racional.”13

Intérpretes apressados ou pouco conscientes da realidade dialé-


tica tenderiam a afirmar que o sistema hegeliano é, portanto, especu-

PPU, 1989; MAGEE, Glenn Alexander. Hegel and the Hermetic Tradition. Ithaca: Cornell, 2001; e ainda
o nosso HORTA, José Luiz Borges. Entre o Hegel racional e o Hegel real. In: BAVARESCO, Agemir;
MORAES, Alfredo. [Orgs.] Paixão e Astúcia da Razão; em memória e gratidão a Paulo Meneses, Maria
do Carmo Tavares de Miranda e Geraldo Edson Ferreira da Silva. Porto Alegre: Editora Fi, 2013, p.
125-142.
12
Na tradução mais prestigiada em língua portuguesa do célebre Prefácio à Filosofia do Direito,
Hegel nos provoca: “O que é racional, isto é efetivo; o que é efetivo, isto é racional”; HEGEL, G.W.F.
Filosofia do Direito. Trad. Paulo Meneses, Agemir Bavaresco et al. São Leopoldo, Recife, São Paulo:
Unisinos, Unicap, Loyola, 2010, p. 41. Outras versões são comuns, como “O que é racional é efetivo
e o que é efetivo é racional”, que encontramos na tradução HEGEL, G.W.F. Enciclopédia das Ciências
Filosóficas; em compêndio [1830]. Vol. I – A Ciência da Lógica. Trad. Paulo Meneses e José Machado.
3. ed. São Paulo: Loyola, 2012, p. 45 [§6º].
13
HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas..., cit., p. 159.
344 • Posfácio: Sobre a constelação de Modernidades

lativo, destinado ao positivamente racional, à suprassunção das nega-


tividades e, como os mais rudimentares o fazem (Kojève à frente), ao
fim da negatividade com a assunção do fim da história14. Nada menos
hegeliano e nada menos inconsistente.
O parágrafo 79 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas está a nos
ensinar o exato oposto: é na contradição, na divergência, na negação,
que reside a vida do pensamento. É ali que está a chave da compreensão
da totalidade a ser construída em devir.
A filosofia como saber de totalidade, reivindicada por Hegel, pa-
rece então exigir um sem-número de fragmentações e enfrentamentos,
negações e ceticismos, para se provar viva e poderosa.
Que será o tempo posterior a Hegel, esse tempo que a História
chama de Contemporaneidade e busca datar a partir do evento fundan-
te do tempo em que vivemos — o tempo da Revolução, simbolizado na
mais universalista delas, a Revolução Francesa de 1789, e da construção
do Estado de Direito e dos direitos fundamentais15 — senão um desdo-
bramento, ainda que fragmentário, ou decididamente contrário, a foices
ou a martelos, dos marcos hegelianos?
Ora, dizer não a Hegel é alimentar a Dialética, e portanto é con-
sagrar o Filósofo de cumeada do pensamento ocidental. Se tomarmos
Nietzsche, tão inspirado e anti-hegeliano, como exemplo, facilmente (!)
veremos que sua filosofia, conquanto cronologicamente posterior à de
Hegel, nela encontra um papel dialético fundamental. Como Marx, o
hegeliano de ponta-cabeça, Heidegger, o hegelianista de uma única ca-
tegoria (a existência), e todo e qualquer alma alienada que julgue fazer
filosofia sob o amplo leque da “pós-modernidade”.
A força do sistema de Hegel está em exigir que assumamos o di-
ferente, que o alberguemos na totalidade, que reconheçamos o valor da
divergência. Nisso (como em tudo o mais, dirão os hegelianos), Hegel
ultrapassa (suprassume, preferimos os estudiosos) a Modernidade deci-
sivamente. Sua filosofia é mais humanista e mais libertária que a de seus
antecessores16, abrindo veredas que, hoje como amanhã, podem nos le-

14
Cf. o nosso HORTA, José Luiz Borges. A subversão do fim da História e a falácia do fim do Estado:
Notas para uma filosofia do tempo presente. In: CARVALHO, Marcelo; FIGUEIREDO, Vinicius
[Orgs.] Filosofia alemã de Kant a Hegel. São Paulo: ANPOF, 2013, p. 287-296. Um duríssimo libelo
antikojeveano encontra-se em MIDDELAAR, Luuk van. Politicídio; o assassinato da política na filo-
sofia francesa. Trad. Ramon Alex Gerrits. São Paulo: É, 2015.
15
V. HORTA, José Luiz Borges. História do Estado de Direito. São Paulo: Alameda, 2011.
16
Essa é a importantíssima lição central de SALGADO, Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça em Hegel.
São Paulo: Loyola, 1996.
José Luiz Borges Horta • 345

var mais próximos de nós mesmos, reconciliando, no porvir, o homem


e seu destino.
Perscrutar esta filosofia, no entanto, é outra tarefa, para outras
obras: Uma tarefa em devir.

Casa de Afonso Pena, Primavera de 2016.

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la, 1996.
SIMMS, Brendan. Europa: A Luta pela Supremacia; de 1453 aos nossos
dias. Trad. Miguel Ferreira da Costa. Lisboa: Edições 70, 2015.
SOBRE OS AUTORES

Aléxia Alvim Machado Faria é bacharel em Direito e mestranda em


Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, e foi pesquisadora
visitante na Universität Augsburg e no Max-Planck-Institut für auslän-
disches und internationales Strafrecht.

Ana Paula Silva Ferreira é bacharel em Direito e mestranda em Direi-


to pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Antônio Alves Mendonça Junior é bacharel em Letras e bacharelan-


do em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, onde é pes-
quisador em iniciação científica.

Cézar Cardoso de Souza Neto é bacharel em Filosofia pelas Faculda-


des Claretianas, bacharel em Direito pela Faculdade Libertas, mestre em
Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas e doutoran-
do em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professor
na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e na Escola
Estadual “Benedito Ferreira Calafiori”.

Daniel Cabaleiro Saldanha é bacharel em Direito pela Universidade


Federal de Minas Gerais, laureado com o Prêmio Barão do Rio Branco
e com o Prêmio Francisco Brant, mestre em Direito e doutorando em
Direito pela UFMG.

Igor Moraes Santos é bacharel em Direito pela Universidade Federal


de Minas Gerais, laureado com o Prêmio Barão do Rio Branco e com o
Prêmio Messias Pereira Donato, e mestrando em Direito pela UFMG.

Isadora Eller Freitas de Alencar Miranda é bacharel em Direito e


mestranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

João Protásio Farias Domingues de Vargas é bacharel em Ciências


Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ba-
charel em Ciências do Estado pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais e mestrando em Direito pela UFMG. Foi professor da Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Faculdade
348 • Razão e Poder: (re)leituras do Político na Filosofia Moderna

de Direito do Oeste de Minas.

José de Magalhães Campos Ambrósio é bacharel em Direito pela


Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutor em Direito
pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professor adjunto de
Fundamentos do Direito na Universidade Federal de Uberlândia e foi
pesquisador visitante na Katholieke Universiteit Leuven e na Universitat
de Barcelona. Coordena o Grupo de Pesquisa Política, Imaginação e Fu-
turo.

José Luiz Borges Horta é bacharel em Direito pela Universidade Fede-


ral de Minas Gerais, laureado com o Prêmio Hugo de Andrade Santos,
Mestre em Direito Constitucional e Doutor em Filosofia do Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais. É professor associado de Filo-
sofia do Estado e Teoria do Estado na Universidade Federal de Minas
Gerais e foi professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte
e na Universidade Federal de Ouro Preto. Realizou estudos pós-dou-
torais pela Universitat de Barcelona, onde foi recebido como professor
visitante. Coordena o Grupo de Pesquisa dos Seminários Hegelianos e o
Grupo internacional de Pesquisa em Cultura, História e Estado e, entre
outros ensaios e livros, publicou, pela Editora Alameda, História do Es-
tado de Direito.

Karine Salgado é bacharel em Direito, Mestre em Filosofia do Direito


e Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. É pro-
fessora adjunta de Filosofia do Estado e Filosofia do Direito na UFMG e
foi professora na Universidade FUMEC. Foi pesquisadora visitante no
Max Planck Institut für ausländisches und internationales Privatrecht e
realizou estudos pós-doutorais pela Universitat de Barcelona, onde foi
recebida como professora visitante. Coordena o Grupo internacional de
Pesquisa Direitos Humanos: Raízes e Asas, e, entre outros ensaios e li-
vros, publicou em dois volumes, pela Editora Mandamentos, A Filosofia
da Dignidade Humana.

Layon Duarte Costa é bacharel em Direito e mestrando em Direito


pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Levindo Ramos Vieira Neto é bacharel em Direito e mestrando em


Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Sobre os autores • 349

Lucas Camargos Bizzotto Amorim é bacharel em Direito e mestrando


em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi professor no
Centro Universitário de Lavras.

Lucas César Severino de Carvalho é bacharelando em Direito pela


Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista em iniciação científica
pelo Conselho Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).

Maria Luísa Estanislau Reis é bacharel em Direito e mestranda em


Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Philippe Oliveira de Almeida é bacharel em Filosofia pela Faculdade


Jesuíta de Filosofia e Teologia, é bacharel em Direito, mestre em Direito
e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi pro-
fessor na Universidade Federal de Minas Gerais.

Rafael Costa de Souza é bacharel em Direito e mestrando em Direito


pela Universidade Federal de Minas Gerais. É professor no Centro Uni-
versitário Newton Paiva.

Raoni Macedo Bielschowsky é bacharel em Direito pela Universidade


Federal do Rio Grande do Norte, mestre em Ciências Jurídico-Políticas
pela Universidade de Lisboa e Doutor em Direito pela Universidade Fe-
deral de Minas Gerais. Foi professor na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte e pesquisador visitante na Westfälische Wilhelms-U-
niversität Münster. Entre outros ensaios e textos, publicou, pela Editora
Saraiva, Democracia Constitucional.

Raul Salvador Blasi Veyl é bacharelando em Direito pela Universi-


dade Federal de Minas Gerais e bolsista em iniciação científica pelo Con-
selho Nacional de desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Renan Victor Boy Bacelar é Bacharel em Direito pela Universidade


Federal de Viçosa, laureado com a Medalha de Prata Presidente Bernar-
des, e mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Foi pesquisador visitante da Universidade de Coimbra.
350 • Razão e Poder: (re)leituras do Político na Filosofia Moderna

Rosa Juliana Cavalcante da Costa é bacharel em Direito pela


Universidade Federal do Ceará, laureada com Distinção Acadêmica
Magna Cum Laude, e mestranda em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais.

Vinícius Batelli de Souza Balestra é bacharel em Direito pela Uni-


versidade de São Paulo e mestre em Direito pela Universidade Federal
de Minas Gerais.

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