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DA

DIREITA MODERNA À DIREITA TRADICIONAL



© Cesar Ranquetat Jr., 2018.

FICHA CATALOGRÁFICA

Ranquetat Jr., Cesar, 1977– Da Direita Moderna à Direita Tradicional, 2º edição.
Curitiba, PR, Livraria Danúbio Editora, 2019.
ISBN 978-85-67801-22-3
Ciência Política
CDD – 320

Edição: Diogo Fontana
Revisão: Fausto Machado Tiemann
Capa: Gabriela Fernandes Fontana
Diagramação: Lucas Guse

Imagem da capa: Knight, Death and the Devil - 1513 - Albrecht Dürer
Metropolitan Museum.

Os direitos desta edição pertencem à Editora Danúbio
CNPJ: 17.764.031/0001-11 — Site: www.editoradanubio.com.br

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APRESENTAÇÃO

Para o leitor moldado nos estudos de autores liberais, como este que vos
escreve, Da Direita Moderna à Direita Tradicional é muito mais que uma
provocação: é um cruzado (de direita) fincado na boca do estômago. Todavia,
não vos assusteis em sua poltrona, pois o livro que tendes em mãos não é
meramente provocativo ou explosivo. Longe disso. Aqui está uma obra rigorosa
que, ao fim, oferece um bálsamo ao leitor. É uma história, se não com final feliz,
que ao menos sedimenta um final, vos asseguro, esperançoso.
Em 2015 e 2016, quando a Nova Direita brasileira ganhava visibilidade
no debate público, longe de todo ruído das redes e das ruas, estava o Professor
Cesar Ranquetat Jr. escrevendo um verdadeiro tratado, examinando as bases
teóricas e culturais dessa Direita, e também, consequentemente, nos alertando de
seus riscos.
Ao início dessa obra seminal, cuja apresentação fui convidado a escrever
e que muito me honra, o autor mostra como a Direita sempre foi retratada pela
academia, pelo jornalismo e pela cultura como sendo uma visão política
retrógrada, autoritária e mesmo burra. No imaginário popular, portanto, a Direita
sempre se deixou deformar pelo inimigo, furtando-se de desafiar a hegemonia
discursiva de seu adversário. Aqui, Cesar restabelece a discussão mostrando que,
para além da moderna divisão Direita versus Esquerda, inaugurada pela
Revolução Francesa, tanto uma quanto a outra possuem firmes raízes pré-
políticas e sobretudo metafísicas ou religiosas, portanto metapolíticas, cujos
significados simbólicos são recorrentes nas mais diversas sociedades humanas,
na linguagem e na cultura.
Sempre tendo o cuidado de expor as raízes etimológicas dos conceitos de
que trata, o professor Cesar examina o que é Esquerda e, numa das várias
passagens memoráveis do livro, revela suas raízes espirituais. Assim, pelo
método do contraste, lança luzes para a compreensão dos contornos que definem
uma genuína cosmovisão de Direita.
Após uma análise magistral da Direita e da Esquerda, Cesar enverada no
exame dos pressupostos do liberalismo e do conservadorismo que cimentaram a
Nova Direita brasileira, de onde assenta também uma interessante crítica a esses
fundamentos. A análise não pára por aí, um dos pontos altos do livro nos mostra
o caminho para restaurar a nossa valiosa tradição perdida. Nesse sentido, Da
Direita Moderna à Direita Tradicional é também obra inauguradora do resgate
de toda uma concepção de Direita que está relegada a velhos livros de brilhantes
autores, porém ignorados pelo nosso ambiente cultural e acadêmico (o
establishment) e que, fatalmente, seguem desconhecidos pela nossa Nova
Direita.
No entanto, antes de adentrar na concepção dessa Direita Tradicional,
Cesar abre um debate rigoroso com as bases intelectuais da Nova Direita. É o
momento em que o autor analisa o pensamento de conhecidos nomes como
Ludwig von Mises e F. A. Hayek, de um lado, e Russell Kirk e Roger Scruton,
de outro; para, no meio do percurso, revelar seus fundamentais problemas à luz
da nossa história e da nossa tradição. Após esse exame, Cesar passa então à
exposição do pensamento político tradicional estribado em nomes como Rubén
Calderón Bouchet, Nicolás Gómez Dávila, Rafael Gambra, Miguel Ayuso,
António Sardinha, José Pedro Galvão de Sousa, Arlindo Veiga dos Santos e
muitos outros que, somados, compõem um brilhante mosaico do pensamento
tradicional. Nesse instante, a dor daquele murro inicial na boca do estômago se
desfaz.
A vantagem dessa perspectiva não está apenas em seu aspecto teórico, há
outra também: o pensamento político tradicional é a essência de nossa própria
história enquanto nação latina, lusitana e católica. Esse tem sido o ponto fulcral
bastante negligenciado por nossa elite intelectual e, consequentemente, pelos
líderes políticos e ativistas por ela influenciados.
É inescapável reconhecer que, depois de desmontar algumas armadilhas
e quebrar certas ilusões liberais-conservadoras, ainda caras à Nova Direita, Cesar
restaura o nosso lugar no mundo filosófica e metafisicamente. É nesse ponto que
o livro torna-se um bálsamo para todo intelecto que de algum modo havia sido
afetado pelo pensamento ideológico moderno ou, como diria Eric Voegelin, pelo
pensamento imanentista – aquele que oculta premissas fundamentais.
Por fim, essa investigação sobre o pensamento político tradicional, ao
trazer uma nova luz para um novo exame da Nova Direita brasileira (que
influenciou o curso político do país a partir de 2015), fecha o livro com uma
mensagem contundente: o Brasil precisa sair da prisão cultural que o encerrou no
circunscrito duelo esquerdismo/comunismo versus liberal-conservadorismo.
É por essas e outras razões que, nesse ano de 2019, a presente obra já
está sendo lida e discutida, em encontros mensais, no Grupo de Estudos
Humanitas na cidade de Panambi-RS. Urge reconhecer a fantástica ampliação do
horizonte de consciência e a descoberta de nosso próprio lugar no mundo que
este livro nos oferece.
Concluo no intento de sensibilizar o leitor para o seguinte: este livro é
um divisor de águas para a Direita brasileira. Mais que isso, restaura em nós
aquilo que sempre fomos, sendo muito mais que um mero lembrete. É como que
a primeira rocha lançada na reconstrução de uma grandiosa catedral abandonada.
Rogo para que mais rochas desse tipo sejam lançadas e que um dia possamos
finalizar esta necessária reconstrução.
Boa leitura.

Lucas Mendes
Graduado em Economia, Mestre em Filosofia Política.
Panambi – RS, Maio de 2019


O reacionário verdadeiro não é o sonhador de passados abolidos, é o caçador
de sombras sagradas sobre as colinas eternas.
Nicolás Gómez Dávila

INTRODUÇÃO

Direita. Eis uma palavra que, quando evocada nos debates públicos, em
referência ao universo da política e das ideologias, provoca ressonâncias
emotivas e reações apaixonadas. Há quem diga que ela está morta e enterrada, há
quem defenda a tese de que ela é a mais acabada expressão do mal na Terra. Na
verdade, é muito difícil ficar indiferente aos seus encantos, ao seu poder de
fascinação e às lembranças que esse termo suscita. Por isso, realizar uma análise
rigorosa e precisa dessa noção torna-se uma tarefa laboriosa e arriscada.
Não são poucos os intelectuais e pesquisadores (historiadores, cientistas
sociais e filósofos) que, diante de qualquer fenômeno que tenha alguma relação
com a direita, parecem esquecer-se da necessidade de empreender um exame
científico, objetivo e honesto. Nessas incômodas e desconfortáveis ocasiões,
deixam de lado a seriedade e o olhar analítico e adotam posturas explicitamente
bélicas, sectárias e dogmáticas. É bastante comum observar renomados e
experientes pesquisadores abandonarem por completo a atitude científica de
tolerância e de distanciamento frente a tudo que tenha vínculos com o
“direitismo”. Visões deformadoras e superficiais, interpretações distorcidas e
parciais, bem como estudos carregados de preconceitos ideológicos e graves
erros metodológicos, abundam quando o objeto de estudo é a “malvada e pérfida
direita”. Acrescenta-se a isso a artimanha usual de omitir e ocultar continentes
inteiros de linhagens de pensamento, autores, livros e textos fundamentais da
cultura política de direita.
Um dos objetivos fulcrais deste trabalho é precisamente recuperar o
sentido originário, autêntico, do termo “direita”, resgatando, para tanto, essa
noção de usos equivocados, estereótipos e deformações. Para atingir essa meta,
faz-se indispensável a utilização do método etimológico que, como sublinha o
filósofo Alberto Buela (2002), é uma das vias privilegiadas de acesso ao real,
devolvendo às palavras a sua força elemental, seu significado autêntico. A
validade e a importância da investigação etimológica – etymos em grego, que
significa o verdadeiro –, residem, principalmente, na capacidade de desvelar a
realidade das coisas. A etimologia e a simbólica são tomadas aqui como ciências
auxiliares, ferramentas hermenêuticas necessárias na tarefa de restabelecer o
significado prístino da palavra “direita”. Ao longo de todo este trabalho, procuro
restaurar o verdadeiro e mais amplo sentido dessa palavra, porém dedico-me
com mais cuidado a essa questão no capítulo 3.
Perante qualquer enfraquecimento e quebra da hegemonia política e
cultural esquerdista, diante de alguma reação, articulação e do fortalecimento da
direita, a intelligentsia está pronta para lançar a acusação sumária de fascista.
Associar qualquer força política de direita, por mais confusa, inexpressiva e
incoerente que pareça, com o fascismo é a estratégia preferida da esquerda.
Trata-se, evidentemente, de uma tática ardilosa, de uma retórica simplificadora
que nada explica, mas que serve, até certo ponto, para neutralizar o adversário
político e, assim, mobilizar e unificar as fileiras da militância progressista.
Demonizar, rotular e intimidar o antagonista não são, de forma alguma,
tentativas sérias e responsáveis de compreensão e análise, mas banais e vulgares
expedientes propagandísticos de cunho stalinista, conforme assevera, com
precisão, o cientista político Alain de Benoist (1981, p. XXV):
Disse-se já que as palavras-chave do vocabulário
direitista teriam sido desacreditadas pelos
fascismos. Diremos, antes, que esse descrédito foi
sabiamente construído e mantido por facções
especialistas e especializadas na difusão de mitos
incapacitantes e culpabilizantes. É necessário que
sejamos muito claros neste caso. Aqui, não nos
encontramos em presença de uma análise, mas de
uma propaganda. Consiste esta propaganda em
assimilar ao “fascismo” toda e qualquer doutrina de
direita que se afirme com algum vigor e, como,
corolário, a definir apenas como “democráticos” os
regimes que concebam a liberdade sob a forma de
um “deixar andar” de qualquer forma estatutário,
como indispensável, aos empreendimentos
revolucionários da extrema esquerda. A nossa
sociedade oferece, assim, o espantoso espetáculo
de uma direita que se não pode afirmar como tal
sem se ver tachada de “fascismo”, e de uma
esquerda e de uma extrema esquerda que a
qualquer momento se podem dizer como
socialistas, marxistas ou comunistas, afirmando
sempre, claro está, que as suas doutrinas nada têm
a ver com o stalinismo, nem, aliás, com qualquer
forma de socialismo historicamente realizado. Ora,
se os seguidores das diversas variedades de
socialismos não se sentem comprometidos por
qualquer das experiências concretas que os
precederam – e nomeadamente pelas mais
criminosas dentre elas – não vejo por que razão a
direita moderna, que afasta totalmente de si
qualquer vocação totalitária, terá de bater com a
mão no peito e justificar-se.
Este provincianismo ideológico que somente percebe inteligência,
cultura, moralidade e bondade no lado esquerdo do campo político é analisado,
de forma mais pormenorizada, no primeiro capítulo deste trabalho. Importa
sublinhar que a confusão e a ignorância em torno desses conceitos não são
oriundas apenas da ação deformadora da esquerda; muitos direitistas de
carteirinha não têm a mínima idéia do que realmente é a direita, desconhecendo
totalmente suas origens, suas bases filosóficas e antropológicas, suas principais
referências intelectuais, suas diversas famílias e sua peculiar forma de entender o
mundo, a sociedade e o homem. Boa parte de nossa direita adota posturas
conservadoras, anticomunistas e antiesquerdistas mais por razões práticas e
instintivas do que, propriamente, por um conhecimento intelectual aprofundado
sobre esses tópicos. É uma forma de direitismo sentimental, intuitivo, pouco
afeito a especulações sociológicas e filosóficas e às lições da história.[1] Procuro,
nessa perspectiva, dissipar um pouco dessas ambigüidades e imprecisões ao
longo deste trabalho; em especial, no segundo capítulo, traço a genealogia desse
conceito, buscando esclarecer o seu significado, suas principais ramificações,
vertentes e seus traços essenciais. Apresento definições e tentativas de
conceitualização dessa categoria, realizadas por autores vinculados com essa
linhagem de pensamento.
Não obstante essas observações preliminares, para importantes analistas
e cientistas sociais, direita e esquerda seriam categorias que não teriam mais
valor e sentido no mundo contemporâneo – seriam noções obsoletas. Será que
realmente as noções de direita e esquerda perderam todo seu significado? A
dicotomia direita-esquerda estaria ultrapassada? Creio que não, pois se trata de
categorias usualmente empregadas pelos atores políticos, em suas disputas
ideológicas e em suas lutas pelo poder. Ademais, os agentes políticos costumam
autodefinir-se, assim como nomear seus adversários, com base nessa dicotomia.
Segundo explica o filósofo Olavo de Carvalho (2015):
Desde logo, se há pessoas que se dizem de
esquerda ou de direita e que agem politicamente
sob essas bandeiras, é evidente que esquerda e
direita existem como agrupamentos políticos reais
que sob esses nomes se reconhecem e por eles
distinguem os “de dentro” e os “de fora” Se
suprimimos os nomes teremos de designá-los por
outros da nossa própria invenção, nos quais os dois
grupos não se reconhecerão e que só servirão para
complicar o vocabulário. Como autodenominações
de grupos políticos e símbolos da sua identidade,
os termos esquerda e direita não estão superados de
maneira alguma. Expressam uma realidade
sociológica inegável.
Não se pode negar a validade e a utilidade de noções que continuam a
operar na política, na linguagem e no imaginário coletivo, despertando emoções
e unificando agrupações políticas. Essa dicotomia topográfica possui um
extraordinário poder explicativo, simplificando e facilitando a compressão do
intricado mundo da política e das ideologias. Na verdade, como afirma o escritor
francês Paul Sérant (1958), essa dualidade se funda em princípios filosóficos
eternos. É, assim, uma distinção de origem e caráter metapolíticos. Desta gênese,
em parte, deriva sua força simbólica e seu poder cognitivo. E, nesse sentido,
penso que direita e esquerda são conceitos meta-históricos, elementos estruturais
e permanentes da cultura, constitutivos da humanidade. Essa metáfora espacial
está presente em todas as civilizações, representando dois pólos de orientação
existencial e societal.[2]
Há distinções irredutíveis na visão de mundo e da sociedade entre o
“partido da ordem” – a direita – e o “partido do movimento” – a esquerda –,
conforme assevera Jacques Du Perron (1991). A direta acredita na existência de
um universo ordenado, o “cosmos”, e pensa que a sociedade, por sua hierarquia
e diversidade, deve refletir essa ordem. Reconhece e aceita a existência de uma
ordem superior a tudo aquilo que é unicamente humano e contingente. A
esquerda, por sua vez, defende a tese de que o universo não manifesta nenhuma
ordem preestabelecida, que a desordem triunfa e, portanto, a razão humana pode
e deve refazer o mundo e transformar radicalmente a vida social. A razão
autônoma, desligada de qualquer princípio e autoridade superior rebela-se contra
a tradição e a revelação, elementos basilares das grandes civilizações pré-
modernas. É deste espírito de ruptura radical e insurreição revolucionária contra
a ordem natural e o plano divino da criação que emerge e consolida-se a
mentalidade esquerdista.
Ademais, a polaridade direita e esquerda apresenta uma insuspeita
dimensão antropológica. A maneira como revolucionários (esquerdistas) e
contra-revolucionários (direitistas) descrevem e concebem o homem é
radicalmente distinta. A direita parte de um inegável pessimismo antropológico
de raízes teológicas (doutrina do pecado original e da queda); já a esquerda
sustenta uma visão otimista e perfectiva do homem.[3] Noções como natureza e
condição humana são próprias da gramática conservadora e tradicionalista, que,
grosso modo, considera o ser humano uma realidade que não se modifica
fundamentalmente, pois foi criada de uma vez por todas por Deus. Por sua vez, a
esquerda progressista e revolucionária percebe o homem como um ser
indeterminado, uma “matéria plástica e dúctil”, que pode ser moldada por forças
sociais externas. Tende a eludir ou mesmo negar a existência de uma natureza
humana universal e imutável em sua essência:
Encontramos no coração do pensamento
revolucionário a convicção de que o homem é seu
próprio mestre, que não é escravo de nenhuma
ordem, natureza ou condição humana; que deve
deixar voar livremente todas as asas suas de sua
imaginação (Molnar, 1975, p.70).
As múltiplas e variadas dimensões antropológicas, filosóficas e
sociológicas deste fenômeno sinalizam para o fato de que o antagonismo direita
e esquerda, presente na vida política e social moderna e contemporânea, é
reflexo de um conflito mais antigo, amplo e profundo, que possui uma origem
religiosa e metafísica. É, na verdade, a expressão de uma luta multissecular entre
as forças tradicionais e antitradicionais. As forças da revolução e da antitradição
(esquerda) caracterizam-se pelo espírito de contestação radical, que inicialmente
manifestou-se no domínio religioso para, num segundo momento, projetar-se no
plano político. Historicamente, a revolta contra o espírito tradicional principia
com o Protestantismo e sua feroz refutação à hierarquia da Igreja Católica e à
autoridade do Papa. O individualismo religioso protestante, com a sua conhecida
doutrina do livre-exame e seu rechaço ao universo simbólico e ritual católico,
permeado de figuradas mediadoras como os anjos, santos e a Virgem Mãe de
Deus, possibilitou o advento do individualismo político moderno. Do
individualismo derivam o racionalismo, o democratismo e o igualitarismo. É
inconteste que o Humanismo da Renascença e a Reforma Protestante
representam uma ruptura com a ordem tradicional, pois substituem a autoridade
da Igreja romana pela autoridade do indivíduo. Esses movimentos históricos
possibilitaram o aparecimento, mais tarde, de uma nova religião, própria da
esquerda, que cultua o homem no lugar de Deus (Perron, 1991; 1998). Das
ruínas da ordem tradicional surge o mundo moderno, plasmado pelas forças
revolucionárias de esquerda. A autêntica direita, identificando-se com o “mundo
da tradição”, apresenta uma relação tensional quando não mesmo de franca e
aberta oposição à modernidade. Uma direita entusiasticamente moderna,
simpática e patrocinadora dos mitos individualistas, igualitaristas, progressistas e
libertários, é uma contradição em termos.
Conforme assinala o cientista político Jean Laponce (1981), de maneira
geral, a linguagem da religião, das tradições culturais e dos costumes sociais
continua a associar a direita com o positivo; e a esquerda, com o negativo (trato
com mais cuidado desta questão no capítulo 3), mas, no campo da política
moderna, a relação é reversa: a esquerda, neste campo da atividade humana,
assume muitas das características de positividade e criatividade que, em outras
esferas, são normalmente associadas com a palavra direita. Comparada com a
religião, a política, principalmente em sua forma democrática, é um sistema
social marcado pela mudança, instabilidade, agitação e oposição. A política
emerge na modernidade como uma força desestabilizadora da religião e da
própria ordem social, portanto tende a ser percebida como o pólo negativo e
disruptivo da vida societal. Deste modo, enquanto a religião é normalmente vista
como o pólo positivo e ordenador, a política, por conta de seus traços
conflitantes e desagregadores, tende a ser concebida como algo nocivo e
maléfico. Assim, aquilo que é visto como positivo na religião e nos hábitos e
costumes sociais, é tomado como negativo na política. Se a “direita” é algo
positivo no universo tradicional da religião e das práticas sociais costumeiras, no
mundo da política, é uma força negativa. Na política, a “esquerda” é que
representa a positividade, exprimindo, paradoxalmente, o caráter
fundamentalmente negativo da política. A essencial negatividade da política
moderna é melhor expressa por um termo negativo, a esquerda, que, por
conseguinte, adquire um valor positivo no sistema político. Em síntese, por uma
necessária e simples inversão de signos, o negativo no mundo da tradição e da
religião transfigura-se em positivo na política moderna, ou seja, a esquerda; e o
negativo na política moderna, a direita, é apreendido como uma força positiva
nos sistemas religiosos e sociais tradicionais.[4]
Entendo que tais termos – direita e esquerda – são símbolos,
representações esquemáticas e sintéticas de um conjunto de idéias, valores,
crenças e concepções. Mais do que movimentos, partidos e ideologias políticas,
eles personificam dois tipos radicalmente distintos de mentalidade, orientação
existencial e sensibilidade. Direita e esquerda representam modos antagônicos de
perceber e interpretar o mundo, dois sistemas de referências espirituais,
intelectuais e valorativas absolutamente antitéticos.
Estabeleço, ao longo deste livro, uma contraposição entre a direita
moderna e o que defino como direita tradicional. Resumidamente, argumento
que aquela modalidade de direita apresenta feições liberais e conservadoras. Na
verdade, o liberalismo político e econômico é o verdadeiro rosto da direita
moderna, e que investigo no capítulo 4 deste trabalho. Por sua vez, a direita
conservadora parece oscilar entre o “mundo moderno” e o “mundo da tradição”,
não abandonando por completo os preceitos liberais da civilização burguesa e
democrática. Trato, especificamente, dessa importante vertente da direita no
capítulo 5. No capítulo 6, examino os limites e as tensões existentes no
conservadorismo e, principalmente, apresento as características e os atributos
principais da direita tradicional. Por fim, no capítulo 7, trato da ascensão de uma
nova direita em terras brasileiras, descrevendo brevemente as bases ideológicas
desse movimento, assim como procuro sublinhar os aspectos problemáticos e
contraditórios presentes no discurso e nas idéias defendidas por essa vertente
política. Neste último capítulo, defendo a necessidade da formação e do
desenvolvimento de uma cultura de direita no Brasil. Aliás, um dos motivos que
me levou a escrever este livro foi ter notado certa confusão e desorientação
doutrinária e conceitual presente nas fileiras direitistas de nosso país. Tornar esta
desconhecida mais compreensível, divulgar alguns de seus principais autores e
vertentes, revelar sua peculiar visão do mundo, da sociedade e do homem,
evidenciar suas características centrais, assim como explorar suas nuanças e
paradoxos são, também, outras finalidades desta investigação.
Ressalto, contudo, que este trabalho não tem a pretensão de esgotar esta
amplíssima e controversa temática, mas intenciona, acima de tudo, preencher
uma lacuna e, também, provocar um debate mais sério sobre este apaixonante
assunto.[5]







1 A CARICATURA DA DIREITA PELA SINISTRA

Na grande mídia e nos requintados ambientes intelectuais e culturais
progressistas, a direita sempre é identificada com tudo aquilo que há de pior na
face da Terra. Na visão caricatural e deformada da esquerda, simbolizaria o
autoritarismo, a misoginia, o preconceito, o racismo, a xenofobia, o
irracionalismo e o fanatismo político. Ser de direita, nesse sentido, seria a
expressão máxima da estupidez humana e um sinal inequívoco de alienação e
obtusidade mental. Os direitistas são percebidos, por via de regra, como pessoas
ultrapassadas, anacrônicas e moralistas, aferradas a valores e instituições
arcaicas, opressoras e elitistas. Resumo da ópera: a direita seria a própria
encarnação do mal na Terra; não haveria nada de bom e valioso nesta corrente de
idéias. Por sua vez, a esquerda encarnaria a sensatez, a racionalidade e a
consciência social. Ser de esquerda é ser moderno, descolado e “cabeça aberta”.
Ser de esquerda é ter sensibilidade social, olhar para os pobres, os oprimidos, e
preocupar-se com as “minorias”. A esquerda, desse modo, é concebida pelo
establishment como uma força política libertadora e humanista, devotada ao
progresso da humanidade e favorável às inovações. Ser de esquerda simbolizaria
tudo aquilo que existe de bom, correto, saudável e inteligente. Enfim, ser de
esquerda é cool e “pega bem”.
A esquerda teria, assim, o monopólio da inteligência, da cultura e da
moralidade. Os direitistas não passariam de brutos, selvagens, desprovidos de
saber e discernimento. Ser de direita é um pecado mortal, um vício degradante e
um atestado de rudeza e fanatismo. Sim, na cabeça da intelligentsia progressista,
toda postura política e doutrinária que não seja de esquerda é fascismo e
autoritarismo; quão pluralistas e democráticos são nossos intelectuais orgânicos
e ideólogos revolucionários.[6]
No Brasil, invariavelmente, a direita é associada ao período militar. Na
cabeça das classes falantes, ser de direita é ser a favor de ditaduras cruéis e
genocidas. Para os iluminados jornalistas e intelectuais esquerdistas, não existem
outras direitas, mas unicamente “a direita autoritária, golpista e militarista”. Isso
demonstra, por um lado, a total e absoluta ignorância da intelligentsia acerca do
vasto e complexo universo de idéias, doutrinas e valores da direita, mas,
também, a estratégia sorrateira e maliciosa – mas já um pouco surrada e
desgastada – de sempre relacionar qualquer movimento ou idéia de direita com o
autoritarismo e o extremismo.[7]
É inegável que, apesar de certos sinais de mudança, há, em nosso país e
no Ocidente em geral, uma hegemonia cultural e intelectual progressista. Nas
faculdades de Ciências Sociais, História, Filosofia, Direito, bem como em outras
áreas das Ciências Humanas e das Ciências Sociais aplicadas, no Brasil, vigoram
o pensamento, as idéias e a cosmovisão de esquerda. Os autores estudados, os
livros lidos e analisados, as correntes teóricas expostas são, em sua maioria
esmagadora, de orientação esquerdista. Parte significativa dos professores e
alunos é de esquerda, sendo que muitos militam em partidos políticos como PT,
PSOL e outros assemelhados.
Nas áreas de Ciências Humanas e Ciências Sociais, lê-se muito Foucault,
Bourdieu, Derrida, Latour, assim como outros autores estruturalistas, pós-
modernistas, pós-estruturalistas e pós-colonialistas.[8] Porém autores ditos
liberais e conservadores são deixados de lado, se não mesmo ignorados.
Pergunto: quem lê, em antropologia, Arnold Gehlen, Georges Dumézil, Konrad
Lorenz, René Girard e Robert Ardrey? Em sociologia, quem conhece, Robert
Nisbet, Alain Besançon, Jean Revel, Raymond Aron, Jules Monnerot, Othmar
Spann, Werner Sombart, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek, Vilfredo Pareto,
Pitirim Sorokin, Julián Marías, Ortega y Gasset e Recaséns Siches? Em Ciência
Política e Teoria Política, quem estuda, nas faculdades, autores fundamentais
como Eric Voegelin, Leo Strauss, Thomas Molnar, Michael Oakeshott, Julien
Freund, Alain de Benoist e Bertrand de Jouvenel? Quando muito, lê-se Alexis de
Toqcqueville e olhe lá!
Lembro que O Manifesto Comunista, de Karl Marx, é ainda leitura
obrigatória em vários cursos de Filosofia, História, Ciências Sociais, Economia e
até mesmo de Direito. Mas algum professor ou aluno dessas áreas já leu ou
ouviu falar nas Les Soireés de Saint-Pétersbourg (As Veladas de São
Petersburgo), de Joseph de Maistre,[9] do Manifesto dos Conservadores de
Giuseppe Prezzolini[10] ou no The Conservative Mind: From Burke to Eliot de
Russel Kirk?[11]
Em raríssimos casos, autores “conservadores” e linhas de pensamento
alternativas ao progressismo imperante são lidos e estudados. Este é um fato
incontestável, posso afirmar a partir da minha experiência pessoal. Nunca,
absolutamente nunca, obtive o conhecimento de um autor de “direita” ou de uma
corrente teórica conservadora nos cursos das áreas de humanas que freqüentei.
Pensadores conservadores jamais foram indicados nas referências bibliográficas.
Quando autores de direita são citados por professores e intelectuais, é sempre
com aquele ar de desdém, e às vezes mesmo num tom de deboche. Em certas
ocasiões, pode ocorrer de um pesquisador renomado reconhecer o valor e a
importância do trabalho de determinado autor “maldito”, porém sempre com
ressalvas e seguido da típica afirmativa: “É, ele fez um bom estudo, mas é um
direitoso”.
É um fato inegável que professores, intelectuais, jornalistas, escritores e
demais formadores da opinião pública de orientação socialista não se dão ao
trabalho de ler e estudar os autores da direita. Simplesmente os ridicularizam e
os rechaçam. Constroem, assim, uma imagem estereotipada e redutora do
pensamento conservador; criticam rasteiramente e reprovam mecanicamente
aquilo que não conhecem. Desprezar e aviltar o que não se sabe exatamente não
é uma atitude honesta e racional, mas a expressão de uma postura por demais
emotiva e irresponsável. Lamentavelmente, já há algumas décadas, a esquerda
militante e bem-pensante vem adotando uma estratégia de demonização,
desqualificação e intimidação psicológica e cultural dos grupos e indivíduos que
defendem publicamente idéias e princípios liberais, conservadores,
tradicionalistas e nacionalistas. Esta gigantesca ofensiva retórica e publicitária
mostra a capacidade infindável da esquerda em manipular a linguagem e
subverter o senso comum.
Conforme assevera o cientista político Jean Madiran (1977), a esquerda
define-se a si mesma e define a direita. Em muitos casos, a própria distinção
entre esquerda e direita é uma iniciativa que parte da esquerda, feita com astúcia
pela esquerda e em proveito dela. Definições arbitrárias e disparatadas, é
verdade, mas que, política e ideologicamente, são benéficas aos propósitos da
esquerda.[12] Um exemplo atual desse modus operandi, em nosso país, é a
tentativa de fazer do cantor Lobão um dos ícones da direita. Esta imagem de um
Lobão conservador foi em parte inventada pela esquerda. Há muitos artigos e
textos na internet, em revistas e em jornais escritos pelo nosso “clero secular”
que vão ainda mais longe ao denunciar o rebelde cantor como uma figura
“fascista” abominável, um reacionário incorrigível e perigoso para a ordem
democrática. Para ilustrar meu argumento, cito o artigo “Chamem o Lobão”, do
jornalista Moisés Mendes, publicado no jornal Zero Hora, em 7 de agosto de
2015. Nesse primoroso texto, o jornalista afirma, peremptoriamente, que o
músico Lobão é um direitista reacionário de marca maior. Em determinado
momento, declara: “Outra coisa que Lobão não sabe é que não há arte de
direita”. Mais adiante conclui:
Lobão deveria saber que arte e política só
funcionam à esquerda, com artistas panfletários e
seus sucessos que todos conhecem. Alguns são
geniais. Mas a direita pretendida como arte não
funciona, nem em teatros, circos ou quermesses. O
público sabe disso.
A premissa do argumento do autor é que só existe vida intelectual,
cultural e artística na esquerda; de que a “transgressão” e a “rebeldia” são o
combustível da criação cultural e artística. Como será que artistas da palavra e
dramaturgos como T. S. Eliot, Joseph Conrad, Honoré de Balzac, George
Bernanos, Jean Cau, Ezra Pound, Fiódor Dostoiévski, Hugo von Hofmannsthal,
Hermann Broch, Stefan George, Luigi Pirandello, Nelson Rodrigues, notórios
direitistas, receberiam tais palavras? Sem dúvida que cineastas como Andrei
Tarkovski, Ingmar Bergman, Stanley Kubrick, Alfred Hitchcock, conservadores
tradicionalistas, reagiriam com espanto. Bom, vou citar só alguns, pois a lista é
interminável.[13] Com esse argumento falacioso, o jornalista quer fazer crer que
toda a grandiosa e milenar história cultural e artística do Ocidente tem início e
atinge seu ápice, contraditoriamente, com os gênios socialistas (lembrando: o
socialismo é uma doutrina política que nasce no século XIX). Talvez – não
afirmo categoricamente e peço desculpas caso tenha sido este o fato – o referido
jornalista tenha feito um estudo antropológico sobre a produção cultural humana
nos últimos 25 séculos, e concluído que gregos, romanos, cristãos medievais,
renascentistas italianos e tantos outros povos e culturas já eram esquerdistas
criativos e inovadores, mas não sabiam. Se essa for a tese, seria melhor
desenvolvê-la em uma série de livros, e não simplesmente apresentá-la de
maneira superficial em um texto de jornal.
Em terras brasileiras, a Rede Globo, a revista Veja, o PSDB, políticos
como José Sarney, Marco Feliciano e Eduardo Cunha, representam a quinta-
essência do direitismo. Evidentemente, da direita forjada e inventada pela
esquerda. Com isso, reitera-se a imagem da direita como uma força política
obsoleta e retrógada, uma “ideologia” rasteira e grosseira em total desacordo
com os tempos atuais. Na realidade, trata-se de conferir à esquerda uma aura de
intelectualidade, erudição e cultura e, por sua vez, identificar a direita com o
conformismo, a barbárie e a estultícia. Nesse sentido, o chamado “pensamento
crítico” e inconformista seria um traço particular e único do homem de esquerda.
Ser intelectual, dessa forma, seria ser necessariamente de esquerda e
progressista, pois unicamente no esquerdismo encontrar-se-ia o manancial de
idéias, conceitos e símbolos imprescindíveis para o desenvolvimento de uma
consciência crítica e insubmissa.
Ora, o vergonhoso servilismo e a atitude de completa subserviência de
muitos membros da intelectualidade de esquerda aos regimes comunistas e
socialistas e, assim, ao partido-príncipe, infalível e onipotente, ao longo do
século XX, é um capítulo da história contemporânea pouco lembrada. No Brasil,
os laços por demais estreitos entre o lulopetismo e as classes falantes são mais
um exemplo de como o conformismo e a aceitação passiva do status quo
reinante, com a repetição monótona por parte da intelligentsia dos slogans e
clichês da propaganda oficial do partido dominante, são uma prática bastante
comum na esquerda.
A concepção estreita, mutilada e grotesca da direita abunda nos escritos
dos bem-pensantes.[14] A desqualificação sistemática e obstinada de idéias,
valores e princípios da direita tornou-se como que uma segunda natureza, um
hábito compulsivo em alguns setores mais sectários e histriônicos da esquerda
tupiniquim. Deter-me-ei, agora, em apenas alguns valorosos e elucidativos
textos.[15]
Em dezembro de 2005, a revista Caros Amigos dedicou uma edição
especial a desvendar os mistérios da direita. O editorial dessa edição é notável.
Destaco um trecho em que o direitista típico é caracterizado:
Ele tem certeza de que jamais existirá – nem ele
aceitaria – a distribuição da riqueza entre os
homens, por mais que ela tenha resultado do
trabalho de todos. Se tiver que optar entre a
construção de um presídio e de uma escola, ele
escolherá a primeira proposta, porque acredita
piamente que os desvios de conduta são originados
do DNA da pessoa e não do meio em que foi
obrigada a viver. Ele acha que o povo é burro, que
a maioria é incompetente e por isso não “subiu” na
vida. Que o povo tem cheiro! Direitos humanos,
justiça social, distribuição de renda são balelas,
conversa mole dessa raça que se nega a entender
que o socialismo está morto, as ideologias estão
mortas.
A julgar por essas afirmações, o direitista é simplesmente uma criatura
desumana, insensível e preconceituosa. Essa visão estereotipada e trivial,
contudo, é aceita, em muitos círculos, como uma definição objetiva e fidedigna
da direita. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, no final do ano de 2016[16], o
sociólogo José de Souza Martins, professor da USP, ao examinar o declínio
petista, declara: “A direita é a direita violenta, o regime militar, que justifica toda
a violência possível contra as pessoas e as práticas iníquas que você pode
imaginar”.[17]
A Caros Amigos repete a dose em 2010. Outra edição especial é
publicada com o objetivo de radiografar a direita brasileira. O editorial – com o
título sugestivo “Quem prejudica o Brasil?” – é também digno de nota:
A direita brasileira continua muito atuante, tem
uma agenda própria e articula ataques em várias
frentes contra o que pode ameaçar seus interesses.
O oligopólio da mídia neoliberal-burguesa expressa
exatamente o que quer e o que faz a direita, que
atua nas instituições públicas, nos poderes da
República, nos bastidores da política e da
economia. A direita cuida especialmente da defesa
do capital, das vantagens econômicas do
empresariado, dos privilégios patrimoniais das
elites e do poder político das oligarquias.
Como se pode observar, jargões marxistas vulgares são utilizados para
descrever a direita como uma corrente política a serviço do capital e da
burguesia. A expressão neoliberal para qualificar a direita é recorrente. A
oligarquia parasita e reacionária atuaria por trás dos bastidores, como uma
espécie de força invisível e oculta.
Equivalente posicionamento é esgrimido pelo educador Jorge Barcellos,
no artigo “O êxtase da direita”. O texto foi publicado no jornal Zero Hora, no dia
em que o Senado Federal aprovou o afastamento da então presidente Dilma
Rousseff do cargo por 180 dias.[18] O autor procura deslegitimar o processo de
impeachment, qualificando-o como um golpe. Ademais, profetiza o fracasso do
governo Temer na área social e tece duras críticas à direita que, supostamente,
estaria a tomar o poder com o novo governo do PMDB.[19] Logo na introdução,
Barcellos afirma: “Com o impeachment vivemos o êxtase da direita, momento
explosivo da liberação de seu projeto neoliberal, de defesa do Estado mínimo e
de refluxo dos direitos sociais” (Zero Hora, 12/05/2016). Em outro trecho do
artigo, declara, sem rodeios, sua visão sobre essa orientação política:
A vitória política da direita é conseqüência do fato
de que o pensamento de direita foi vitorioso na
defesa do consumismo exacerbado, no culto ao
ódio e à violência. Ao conquistar todos os
domínios, ao disseminar seu princípio
individualista, consumista, de transformação do
outro em objeto, a direita fez a diluição
homeopática do seu pensamento pela sociedade.
Aprendemos na indiferença ao próximo a amar ao
capital, a recusar a solidariedade e a rejeitar
projetos sociais, quer dizer, foi ao nível cotidiano
que a esquerda perdeu seu espaço e lugar.
A suposta conexão entre a direita e o grande capital é um lugar-comum,
um clichê usado e abusado pelos bem-pensantes. Em entrevista para a Folha de
S. Paulo, em 2015, o sociólogo Michel Löwy afirma que o país vive uma onda
conservadora: “Há um modernismo reacionário, que é sempre favorável ao
sistema capitalista [...]”.[20] Prossegue asseverando que a direita brasileira
apresenta semelhanças com a direita européia, pois defende uma ideologia
repressiva, o culto à violência policial e a intolerância para com as minorias
sexuais.
Não obstante a combatividade e a audácia dos liberais e libertários em
denunciar o estatismo e as incongruências do pensamento de esquerda, tais
escolas de pensamento têm colaborado, em parte, para a cristalização da imagem
da direita como defensora contumaz das delícias do capitalismo e da sociedade
de consumo. A apologética liberal em torno das virtudes e qualidades excelsas
do livre mercado reforça a percepção da direita como uma força política
obsessivamente preocupada com o desenvolvimento econômico, o lucro, a
ganância e o individualismo. Trago o exemplo do artigo do economista Alan
Ghani no site Infomoney, intitulado “Afinal, o que é ser de direita?”[21]. O autor
reduz a distinção entre direita e esquerda ao já cansativo debate sobre as relações
entre Estado e mercado com a seguinte colocação:
O pilar central para distinguir a direita da esquerda
é o papel que o Estado deve exercer sobre a
sociedade. Enquanto a esquerda acredita que a
redução da pobreza e representatividade, dos
direitos de cada um ocorrem pela participação do
Estado na vida social, a direita, ao contrário,
defende a redução estatal como forma de tirar
pessoas da pobreza, respeitando a liberdade
individual dentro das regras estabelecidas pela
sociedade.
Prossegue em sua defesa do Estado mínimo e do livre mercado como
idéias centrais da direita:
Já a direita, ao contrário, acredita na natureza
egoísta do ser humano e entende que a
concentração de poderes na mão do Estado
aumentaria ainda mais a pobreza e as injustiças,
dado que o homem utilizaria o poder estatal em
busca da resolução dos seus próprios interesses.
O egoísmo não é uma característica essencial da direita, mas tão-somente
de determinada direita: a direita liberal e libertária. Esta direita, em muitas
oportunidades, assume posturas que a configuram como uma direita a serviço da
esquerda, de acordo com a perspicaz análise do filósofo Olavo de Carvalho
(2007). A “direita econômica” é, na verdade, uma pseudodireita. Ressalto que a
direita tradicional, contra-revolucionária, tece duras críticas ao individualismo
liberal, conforme será demonstrado em outro capítulo deste trabalho.
Por sua vez, a narrativa que incorpora o conservadorismo e a direita à
intolerância, o racismo, a homofobia e o machismo é corriqueira e usual. O
jornalista Breno Altman, em texto publicado no site Opera Mundi, em 2014,
com o título macabro de “Carniceiros da direita são ameaça real”[22], declara:
“Jamais os valores do conservadorismo mais retrógado – racismo, preconceito
social, discriminação regional, machismo, individualismo – circularam com
tanta desenvoltura no Brasil pós-ditadura”.
Esse conservadorismo é uma contrafação do autêntico conservadorismo,
um conservadorismo fake e raso. Na verdade, a esquerda parece não conhecer a
tradição conservadora. Há exceções, é claro. Destaco a sensata afirmação do
sociólogo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, um social-democrata de
carteirinha, acerca desse espinhoso tema:
Não existe direita no Brasil, no sentido clássico do
conceito [...] O pensamento conservador filia-se a
uma tradição ocidental que estabelece como pilares
da ordem a família, a propriedade, os costumes. O
nosso conservadorismo não é nada disso. Tem a ver
com clientelismo, patrimonialismo, uso indevido
dos recursos do Estado. Ele não é composto de um
ideário, e sim de aproveitadores. Por que a
“direita”, no Brasil, apoia todos os governos, não
importa qual? Na história recente, ela apoiou os
militares, apoiou o Sarney, apoiou o Collor, apoiou
a mim, apoia o Lula. Porque seus integrantes não
são de direita. Essa gente toda só quer estar perto
do Estado, tirar vantagens dele.[23]
Em decorrência das manifestações multitudinárias ocorridas em 2015 e
2016 contra o governo da presidente Dilma Rousseff e o PT[24], uma miríade de
artigos indignados e com um tom categórico – e, às vezes, ferino – foram
publicados na internet, nos jornais e nas revistas pelos intelectuais orgânicos.
Dom Orvandil, bispo anglicano e professor universitário, escreveu um sugestivo
texto intitulado “A histeria fascista fracassa e a direita é derrotada: lições”.[25]
Destaco alguns trechos.
Se a direita mobilizasse o povo seria uma afronta à
lógica. A direita não tem relação orgânica com os
pobres, com os trabalhadores, com os indígenas,
com os negros, com as mulheres nem mesmo com
a falsa classe média. Esses segmentos não se
sentem vinculados aos que sempre os exploraram
historicamente e os mantiveram sob as botas
autoritárias da opressão.
Na ótica do citado articulista, a direita é inerentemente impopular,
portanto não gosta do povo, dos pobres e das minorias. É, por natureza,
autoritária e exploradora. Prossegue em sua análise desabrida ressaltando a
faceta violenta, corrupta e obscura da direita, assim como seu analfabetismo
político:
Esses infelizes são tremendamente violentos, por
isso pedem golpe militar, porque no fundo são
esquadrões da morte que vivem em permanente
estado de beligerância em suas relações. São
torturadores contumazes e frustrados porque não
podem torturar e matar a céu aberto, como
gostariam. Em cargos de chefia, perseguem
trabalhadores e oprimem quem produz. São
corruptos e fofoqueiros por natureza.
Por fim, numa exaltação quase religiosa, assevera que apenas a esquerda
representa as massas. E aduz que somente a esquerda está preocupada com a
transformação da realidade e unicamente ela é educada, gentil e civilizada:
Por isso nós, os verdadeiros combatentes do povo,
devemos permanecer nas ruas. Nós é que somos
orgânicos e comprometidos com a compreensão e
transformação da realidade. Nós sabemos
reconhecer nossos erros e mudar de rumo, sem
ofender e desrespeitar ninguém. A bandeira da luta
contra a corrupção é nossa e não dos desordeiros
de direita e seus capachos analfabetos políticos. A
direita não tem moral, pois é herdeira da
escravatura e da corrupção dos concentradores de
riquezas e de renda. A direita é corrupta por
natureza e corrompe inclusive os mais pobres e
simples. A rua é de uso do povo e não da burguesia
golpista, que se locomove de carros importados e
de helicópteros.
Evidencia-se, nos fragmentos citados desse artigo, uma peculiaridade do
pensamento de setores mais extremados da esquerda. Trata-se da propensão
irreprimível de julgar o antagonista político não como um adversário, mas como
um inimigo da humanidade, do progresso, da inteligência e da paz. É este
caracterizado como um obstáculo maligno à realização do paraíso na terra, um
demônio, uma força terrificante a ser destruída (Veneziani, 2000).[26]
Nessa mesma toada, o teólogo da libertação e da Nova Era Leonardo
Boff, em artigo publicado no site da famigerada Carta Maior, com o pomposo
título “O direito contra a direita”[27], declara em determinado momento:
O segundo caminho seria constituir uma frente
ampla e vigorosa de partidos progressistas,
sindicatos e outros grupos e intelectuais
progressistas, para fazer frente ao forte avanço da
direita e suas políticas neoliberais, associadas ao
projeto de mundo liderado pelos países centrais. A
direita não tem uma preocupação social
consistente, pois ela está interessada no
crescimento via PIB, que favorece as classes
proprietárias e os bancos, deixando os pobres onde
sempre estiveram, nas periferias.
Não tem jeito mesmo, a direita é intrinsecamente egoísta, mesquinha e
opressora. Mais adiante, revela o rosto antidemocrático e inescrupuloso dos
“direitosos”:
Em todo caso, contra a direita política, que busca
saídas alheias à democracia, devemos usar o
direito. Não podemos aceitar a quebra da ordem
democrática, pois a história demonstra que tal via
não tem um compromisso sério com a democracia
e não mede escrúpulos ou respeita regras para
defender seus interesses.[28]
O intelectual radical[29] coloca-se como o ardente defensor das classes
oprimidas, como o guardião e o porta-voz dos trabalhadores, dos pobres e das
minorias. Porém pergunto: quem dita as regras nesta relação? Quem mais se
beneficia com isso? Será que realmente os bem-pensantes são capazes de captar
e expressar os desejos e as necessidades mais profundos dos grupos sociais
desfavorecidos? Será que os grupos sociais desfavorecidos não podem ser
instrumentalizados nesta relação? Tudo leva a crer que esses questionamentos
nunca passaram pela cabeça do establishment esquerdista.
Com o intuito de destrinçar os motivos e as razões da decadência do
petismo, as agruras da esquerda e o despertar da direita, ressalto o texto da
antropóloga Rosana Pinheiro Machado na Carta Capital.[30] Afirma a autora:
A crise petista se arma diante de piores cenários
pós-democratização. Ou seja, em pleno aumento do
conservadorismo da extrema direita, que emerge
das brechas da saturação. O sentimento irracional
de ódio ao PT preenche vazios estruturais de
descontentamento da população e conquista espaço
para muito além das varandas gourmet. O fascismo
tropical traz soluções simplistas que dão repostas
àqueles que sentem que não têm mais para onde
correr. O aumento do conservadorismo, portanto,
encontra espaço justamente diante de um vácuo
moral, ético e político deixado pelo PT.
Os argumentos da cientista social são muito previsíveis e com um teor
fortemente retórico. Ademais, usar expressões como “conservadorismo de
extrema direita” é forçar a barra, além de ser um completo nonsense. Misturar
confusamente conservadorismo com fascismo e radicalismo de direita é um
expediente costumeiro, acionado outrora por leninistas e stalinistas.
Associar o conservadorismo político com a violência, a irracionalidade e
o anacronismo é, no mínimo, demonstração de incultura histórica. Grandes
estadistas europeus como Metternich, Otto von Bismarck e Disraeli foram
lideranças políticas conservadoras sem laivos de truculência e obscurantismo.
Bismarck inaugura as políticas de assistência social às classes trabalhadoras na
Alemanha do século XIX. É ele o pai – pasme-se – do Estado do bem-estar
social tão defendido pelas esquerdas contemporâneas. Em nosso país, no período
imperial, também tivemos lideranças conservadoras de peso como José
Bonifácio de Andrada e Silva, José da Silva Lisboa (mais conhecido como
Visconde de Cairu) e Joaquim Nabuco. Ressalto que Nabuco foi um dos líderes
da campanha abolicionista. Conservadorismo não é sinônimo de obscurantismo e
brutalidade.
Ademais, vincular a direita com o fundamentalismo religioso e a
confessionalidade de Estado, e a esquerda com o secularismo e a laicidade, é
altamente questionável. A direita liberal sempre foi uma firme defensora do
Estado laico. Há também uma direita agnóstica; posso citar como exemplo a
figura de Charles Maurras, fundador da Action Française – movimento
monarquista e nacionalista das primeiras décadas do século XX. Intelectuais
como Ortega y Gasset e Michael Oakeshott eram defensores de um liberal-
conservadorismo secular. Por sua vez, há uma esquerda mitológica – como a
jacobina – que implanta o culto à deusa Razão, entronizada solenemente na
catedral de Paris, ou mesmo o marxismo, que se converte em uma nova fé com
seu livro revelado, seu profeta, seus seguidores fanáticos, seus ícones, rituais e
anátemas. Em síntese, a experiência histórica demonstra que há direitistas e
esquerdistas incrédulos e crentes, laicistas e religiosos.
As palavras conservador e reacionário só podem definir “crimes de
pensamento” se, de maneira prévia, adere-se a uma teoria do progresso e do
sentido histórico de feição evolucionista e unilinear, conforme explica o filósofo
político Jean-Claude Michéa (2011). De acordo com esse autor, o imaginário da
esquerda contemporânea está infectado pela metafísica do progresso ilimitado,
pela mística do crescimento e do desenvolvimento infinito e pela fé ingênua no
universalismo abstrato. Essa visão progressista da história e da cultura leva o
homem de esquerda a desprezar tudo aquilo que traga a “marca infame” do
“ontem”, do passado, de tempos e tradições antigas, com seu aparente cortejo de
costumes absurdos, preconceitos ridículos e superstições assassinas. O tabu
fundador do pensamento de esquerda encontra-se justamente nesta proibição
religiosa de “olhar para trás”, para as experiências históricas das civilizações
antigas e tradicionais, com a finalidade de escapar do mundo infernal da tradição
e do enraizamento. Além disso, o universalismo abstrato que deita raízes na
filosofia das luzes embasa a cruzada perpétua da esquerda contra tudo o que
possa sinalizar para a existência de identidades individuais e coletivas, fortes e
intensas, bem como para todo o tipo de filiação e fidelidade a princípios e
instituições orgânicas. Leva o esquerdista a renunciar às “limitações arbitrárias”
oriundas da natureza e, sobretudo, a recusar as heranças sombrias do passado
que apontam para estilos de existência enraizados e tradicionais, em proveito de
uma banal e incessante celebração de atitudes de transgressão aos limites morais
e culturais legados pelas gerações anteriores. O esquerdismo é, concisamente,
uma forma mentis que louva e, pior, exorta os indivíduos e povos ao
desenraizamento, à destradicionalização e à ruptura com o particularismo
cultural.
A gigantesca e irrefreável onda conservadora e “nazifascista” que se
opôs ao governo petista e ao esquerdismo em 2015 e 2016 é examinada, em seus
pormenores, pela antropóloga Rosane Pinheiro Machado, no chamativo e surreal
artigo “O Reich tropical: a onda fascista no Brasil, publicado na célebre Carta
Capital”.[31] A autora volta à carga repetindo os mesmos slogans bolcheviques
como “extrema direita conservadora”. Em outra parte do texto, associa a direita
com o capitalismo financeiro internacional e a grande mídia: “O desequilíbrio
entre uma esquerda enfraquecida e uma direita que detém o monopólio do
capital financeiro e informacional, sem sombra de dúvidas, pesa para um único
lado”. E prossegue em sua perspicaz análise:
Desde junho de 2013, muito tem se falado em
guinada à direita ou da onda conservadora. O que
poucos mencionam, no entanto, com a devida
clareza necessária, é que tem emergido uma
multidão raivosa e fascista. Essa hipótese se baseia
nos fatos que elenco abaixo, os quais indicam uma
tendência de violência física e moral à diferença e à
diversidade.
Ressalta a complexidade do nazifascismo à brasileira e, sem perder a
verve, derrama seu fel contra a mídia, a polícia, a religião e, é claro, contra as
indefectíveis elites:
O fascismo brasileiro é mais complexo do que o
italiano ou o nazismo alemão. Ele é mais difícil de
identificar, possui um ódio mais pulverizado
direcionado a uma massa ampla e difusa. É
animado por uma mídia suja, uma polícia violenta,
um movimento religioso fanático e uma elite sui
generis que, na teoria, defende o liberalismo, mas
na prática age para defender privilégios.
Mais adiante, ressuscita o vetusto símbolo do ovo da serpente fascista, da
perigosíssima ameaça da extrema direita em terras brasileiras:
A semente do fascismo tropical está presente em
todas as classes, em todas as regiões. Há quem diga
que ele piorou após Junho de 2013. Há quem
acredite que sempre foi assim e que ele apenas
mostrou sua cara como tendência da polarização.
Há quem diga que se trata apenas de um resultado
das leves mudanças das estruturas da profunda
desigualdade brasileira ou mesmo do limbo entre
Junho de 2013 e as eleições de 2014. Em qualquer
uma das hipóteses, o germe do ódio está às soltas
no Brasil pronto para linchar física e moralmente
todo aquele que não se enquadra no establishment
masculino, branco, heterossexual, rico, bem-
sucedido e cheio de bens de consumo. A ameaça
comunista é uma mentira. A ameaça fascista é uma
realidade.
Para a sapientíssima e ultrademocrática intelligentsia, os manifestantes
antipetistas de verde-amarelo do terrível e sangrento domingo de 16 de agosto de
2015 não passam de psicóticos, nazistas e fascistas que cantam o Horst Wessel[32]
em seus protestos marciais e realizam a saudação romana em respeito a um
duce[33] inexistente. Que incomparável e estranha lição de bom senso e
moderação as “classes falantes”, alinhadas ao partido infalível e onisciente, estão
nos propiciando neste momento único de nossa vida política. Esses bravos
personagens, envolvidos nesse drama pátrio, certamente jamais serão
esquecidos. Poderiam figurar num romance de Dostoiévski – ao lembrar Piotr
Stiepánovitch dos Demônios – e provocariam a ira de pensadores como Voegelin
e Karl Kraus. Serão perenemente lembrados nos mais variados e plurais registros
e anais por seu indômito compromisso na defesa da verdade, da razão e da
prudência.
A reação patética e exasperada das classes falantes ao crescimento da
“nova direita brasileira” e aos protestos contra a presidente Dilma Rousseff e o
petismo, nos anos de 2015 e 2016, é altamente significativa e emblemática. A
direita que os progressistas (esquerda) gostam é aquela bem direitinha, a direita
que não incomoda, que não protesta, que não se manifesta. Enfim, uma direita
que não ocupe as ruas, que não organize movimentos, que não escreva na
internet, que não crie editoras, que não publique livros e que aceite – calada – a
destruição de um país.
Saliento que, para a esquerda radical, a categoria fascismo[34] é utilizada
como uma figura de linguagem, um símbolo mobilizador que visa a degradar e
neutralizar o adversário. O fascismo[35], desse modo, transforma-se em uma
essência que condensa todo o mal da história humana, é a própria representação
do mal absoluto, o inimigo mortal que precisa ser abatido a todo custo. Ao
acionar essa categoria, os intelectuais não se referem ao sentido histórico e
concreto do fascismo, ou seja, um movimento político e ideológico que pode ser
perfeitamente delimitado e circunscrito, que nasce na Itália, em 23 de setembro
de 1919, e morre em 25 de abril de 1945.[36] Referem-se a uma interpretação
peculiar desta categoria que nada tem que ver com o fascismo histórico,
conforme esclarece o cientista político e filosofo italiano Augusto Del Noce
(1977, p.48):
Através da transfiguração mítica, o conceito de
fascismo amplia-se, de maneira que qualquer um
pode ser acusado de fascista; o partido comunista
torna-se o juiz em última instância, para decidir
que pessoas e coisas têm que ser consideradas
fascistas.
Prossegue o citado autor: “Identifica-se o fascismo com a repressão, mas
a repressão é depois entendida de forma que engloba todos os valores afirmados
pela tradição, incluindo os dez mandamentos” (1977, p.82). Em síntese, com
esse rótulo infame procura-se atacar e aviltar todos os agentes que defendem os
valores culturais e espirituais da civilização ocidental.[37]
Rotular os adversários políticos de fascistas é um artifício que
escamoteia os vínculos ideológicos existentes entre esse movimento e o
comunismo, sempre tolerado – quando não mesmo defendido e louvado – por
boa parte da esquerda. Como demonstrou o sociólogo Alain Besançon, em seu
belo ensaio A Infelicidade do Século (2000), o nazifascismo e o comunismo são
gêmeos heterozigotos.[38] Essas duas ideologias totalitárias têm como objetivo a
realização de uma sociedade perfeita, extirpando de todas as formas os males
que impedem a concretização desse ideal. Se, para os comunistas, o princípio
maligno é a propriedade privada, no caso do nazifascismo, o mal está situado nas
chamadas “raças inferiores”, em primeiro lugar os judeus. Comunismo e
nazismo invocam a autoridade da ciência para legitimar seus propósitos radicais
de reeducação da humanidade e criação de um homem novo:
Essas duas ideologias se pretendem filantrópicas.
O nacional-socialismo quer o bem do povo alemão
e declara prestar serviço à humanidade ao
exterminar os judeus. O comunismo leninista quer
diretamente o bem de toda a humanidade. O
universalismo do comunismo lhe dá uma imensa
vantagem sobre o nazismo, cujo programa não é
exportável. As duas doutrinas propõem “ideais
elevados”, próprios para suscitar o devotamento
entusiástico e atos heróicos. No entanto, elas ditam
também o direito e o dever de matar (Besançon,
2000, p.136).
Foram os comunistas que difundiram e impuseram ao mundo ocidental
sua específica e distorcida classificação ideológica dos regimes políticos
modernos que, até os dias atuais, impregna o imaginário liberal-progressista:
Lenin os vinculava à oposição entre socialismo e
capitalismo. Até os anos 30, Stalin conservou esta
dicotomia. O capitalismo, chamado também de
imperialismo, englobava os regimes liberais, os
regimes social-democratas, os regimes fascistas e,
finalmente, nacional-socialista. Isso permitia aos
comunistas alemães manter uma balança
equilibrada entre os “social-fascistas” e os nazistas.
Mas, aprovando a chamada política das frentes
populares, a classificação tornou-se a seguinte: o
socialismo (isto é, o regime soviético), as
democracias burguesas (liberais e social-
democratas) e, finalmente, o fascismo. Sob o nome
de fascismo eram compreendidos conjuntamente o
nazismo, o fascismo mussolinista, os diversos
regimes autoritários que vigoravam na Espanha,
Portugal, Áustria, Hungria, Polônia, etc., e,
finalmente, as extremas direitas dos regimes
liberais. Uma cadeia contínua ligava, por exemplo,
Chiappe a Hitler, passando por Franco, Mussolini,
etc. A especificidade do nazismo se perdia. Além
disso, ele era fixado na direita, sobre a qual
projetava sua sombra negra. Ele se tornava a direita
absoluta, ao passo que o sovietismo era a esquerda
absoluta. (Besançon, 2000, p. 141).

1.1 As raízes espirituais e intelectuais do esquerdismo

Em parte, a atitude que oscila entre um criticismo radical e anárquico e
uma constrangedora e emotiva adesão ao sistema socialista dominante explica-se
por características específicas da mentalidade esquerdista.[39] O voluntarismo e o
racionalismo, bem como o utopismo[40], são traços típicos dessa mentalidade,
conforme explica o politólogo Jaime Nogueira Pinto (1996, p. 36):
[...] a matriz ideológica e intelectual da esquerda
encontra-se na revolução iluminista [...]. A razão
humana poderosa e sem limites, impulsionada pela
ciência, pela técnica e pelo movimento do próprio
tempo histórico, podia e devia fazer tábua rasa das
sociedades tradicionais e construir,
normativamente, sociedades perfeitas, de homens
iguais, livres e vocacionados para a felicidade,
descobrindo e promovendo os mecanismos que aí
conduzissem.
A exaltação da razão, da vontade e do ideal utópico – a causa sagrada da
revolução – tem como contrapartida o esquecimento ou mesmo a recusa e fuga
da realidade. A evasão em direção à utopia[41] e a supostos e imaginários mundos
igualitários funda-se numa “recusa do ser”, num divórcio com o real. Porém,
mais do que negar a realidade concreta, o homem de esquerda percebe-a como
maleável, fluida, provisória, incompleta e porosa. Esta atitude irônica de
desconfiança para com a realidade conduz a uma inquietude ontológica e
psicológica que acaba por resultar em certo ativismo e frenesi proselitista e
militante (Molnar, 1970b).
A filosofia de teor idealista e gnóstica[42] que está presente na
mentalidade esquerdista leva, fatalmente, à deformação e falsificação dos dados
da situação concreta. O conhecimento objetivo da verdade e do real torna-se,
assim, impossível (Molnar, 1970b). Mais ainda: quando o ideal se sobrepõe ao
real, e o devir sonhado da utopia tem primazia em relação ao ser, está aberta a
porta de entrada para todas as formas de dogmatismo e totalitarismo. Em nome
da sociedade perfeita do futuro, tudo é válido e permitido. Em nome do partido e
do regime comunista, tudo pode ser feito, pois é para o bem do povo e da classe
trabalhadora. Os agentes e as forças que se opõem à concretização da causa
sagrada revolucionária não passam de estorvos – burgueses, e fascistas – que, se
necessário, serão calados, silenciados, censurados ou até eliminados fisicamente.
[43]

O pensador jacobino de esquerda é o próprio intelectual coletivo descrito


por Antonio Gramsci, uma espécie de “poder oligárquico” constituído por
militantes fanatizados, políticos radicais, profissionais da cultura, do poder
midiático e tecnocrático que se julgam os depositários do espírito do progresso e
da verdade. O intelectual coletivo forma um “clero secular”, uma seita
pedagógica e moralista de ungidos que, diligentemente, fabricam os novos
valores sociais e culturais, remodelando o senso comum. Uma opinião, uma ação
ou aliança política é avaliada como justa ou injusta, útil ou danosa se está de
acordo com os interesses e desejos do intelectual coletivo, se lhe proporciona
alguma vantagem ou benefício. O intelectual coletivo estabelece as regras e os
cânones da vida social e da competição política (Veneziani, 2000).
A sanha normativa e legiferante do esquerdismo e sua arrogante
pretensão de superioridade intelectual e moral são explicadas, com agudeza, por
Scruton (2014, p.121):
[...] uma das premissas fundamentais do
esquerdismo moderno: a premissa segundo a qual,
em virtude de meu conhecimento e inteligência
superiores, eu, o intelectual crítico, tenho o direito
de legislar sobre você, o homem que meramente
prejulga.
Nós, pobres mortais, apegados a preconceitos, superstições e vãs
crendices, devemos obedecer às ordens e palavras oraculares dos “iniciados” que
possuem uma visão privilegiada, um conhecimento mais elevado da história e
vida social.
A mentalidade jacobina da intelligentsia é definida, também, pela sua
hostilidade aos valores e instituições tradicionais e, dessa maneira, pela ruptura
radical com o passado. Acerca do antitradicionalismo esquerdista de cariz
jacobino e sua fúria persecutória, comenta Augusto Del Noce (1977, p.187):
Uma mentalidade continuamente inclinada [...] a
encontrar um inimigo que precisa ser
marginalizado para que seja possível o progresso.
O jacobinismo originário viu este inimigo no
“aristocrata”; seu herdeiro, o radical do século
XIX, no clérigo; a mentalidade jacobina atual
prefere buscá-lo no “fascista”, palavra empregada
com a já conhecida indeterminação de significado,
que permite acusar de fascismo a qualquer pessoa
ou coisa. Se a mentalidade jacobina é persecutória
pela sua própria natureza, se deve reconhecer que
hoje conta com as maiores possibilidades de ação,
inclusive dentro de um aparente aspecto de formas
democráticas. Atualmente, a passagem até um
totalitarismo efetivo resulta sumamente fácil, dada
a possiblidade de fazer com que todos os meios de
comunicação cultural favoreçam [...] somente os
que possuem uma “mentalidade democrática real”.
Para reduzir o dissidente a total passividade (é esta,
precisamente, a essência do totalitarismo) não são
já necessários os campos de concentração.
Segundo Roger Scruton (2014), a face jacobina do intelectual socialista
manifesta-se em sua crença de que o mundo é carente de sabedoria e justiça.
Essa deficiência não se encontraria na natureza humana, mas nas estruturas
opressoras de poder. Assim, os bem-pensantes opõem-se pungentemente ao
poder estabelecido, arvorando-se no papel de legítimos defensores dos oprimidos
e de ardorosos advogados da emancipação humana e da justiça social.
O zelo inquisitorial e o maniqueísmo redutor ficam patentes na famosa
frase marxista: “Quem não está conosco está contra nós”. O mundo é divido
entre bons e maus, mocinhos e bandidos, corajosos e caridosos seguidores do
ideário redentor socialista de um lado e, de outro, os malvados e egoístas lacaios
do sistema capitalista.
O interesse obsessivo da esquerda pelo “social”, pelos problemas
econômicos e pela luta política deve-se à sua cosmovisão imanentista e ao seu
sociologismo. O plano da política e da vida social transmuta-se em um absoluto,
sacraliza-se a imanência e, como demonstrou Del Noce (1972), dissolvem-se os
princípios morais na política. Em resumo, tudo se politiza, e, dessa maneira, tudo
se torna uma questão de poder. Os problemas humanos mais profundos e
complexos são percebidos como uma mera questão de desigualdade social ou
mesmo como resultado de estruturas econômicas e de poder injustas. Com a
“justiça social” e uma melhor distribuição de renda, todos os dramas existenciais
serão resolvidos. A maldade não se encontra na natureza humana, mas nas
estruturas sociais.
Por seu turno, o caráter gnóstico do pensamento revolucionário[44] e
progressista revela-se na ânsia de transformação radical da realidade, na
angustiosa e frenética busca de uma transfiguração do mundo. Politicamente,
essa disposição espiritual traduz-se na luta sem tréguas pela instauração de uma
nova sociedade e de um novo homem.[45] Conforme demonstrou com acuidade
Eric Voegelin (2009), o aspecto essencial do gnosticismo moderno torna-se
patente na vivência do mundo como um lugar estranho. O gnóstico é tomado por
um estranho sentimento de insatisfação existencial. Para ele, a realidade é uma
terrível e gigantesca prisão da qual é preciso escapar. O mundo é um território
sombrio, opressivo, tirânico, injusto e defeituoso. Portanto, essa realidade
lúgubre e sufocante deve ser destruída. O mundo injusto e imperfeito precisa ser
substituído por uma nova ordem perfeita e justa criada pelo homem. O pensador
revolucionário pretende dominar e apoderar-se do ser mediante a construção de
um plano meticuloso, de um sistema abstrato de idéias, uma ideologia. Ao invés
de conhecer o real e colocar-se de acordo com ele, intenta-se alterar por
completo a estrutura da realidade e, por conseqüência, a natureza humana. Ainda
segundo Voegelin (2009), o gnóstico experiencia e interpreta os males de sua
situação existencial como algo que deriva do fato de que o mundo está
constitutivamente mal organizado. Acredita, porém, que é possível a redenção
dos males deste mundo. Desse modo, urge que a ordem do ser sofra uma
substancial alteração ao longo do devir histórico. A realidade, o mundo, pode ser
inteiramente transformada por meio da ação humana. Por conseguinte, a tarefa
primordial é investigar o programa de ação, a “técnica mágica” para a alteração
radical da estrutura do mundo. O saber salvífico, a “gnosis”, acerca do método
para a modificação total da realidade é o que cabe ao pensador revolucionário
alcançar. Assim, o gnóstico constrói a receita para a redenção de si mesmo e do
mundo. Cumpre o sublime e excelso papel de profeta secular que anuncia aos
homens profanos seu saber redentor.[46]
O pensamento revolucionário[47] é uma forma de “filosofia negativa” que
pretende negar a importância e o valor de tudo o que existe. Sua essência
profunda é a ojeriza e mesmo o ódio ao real (Del Noce, 1972). A palavra de
ordem é contestar e negar.[48] Negação da existência de Deus e, por conseguinte,
do valor espiritual e moral das religiões tradicionais, negação da família e da
idéia de pátria, negação do universo de valores morais vistos como uma simples
ideologia da classe dominante. Negação da alta cultura e do ideal de beleza.
Rejeição da existência de uma verdade objetiva e da capacidade humana de
atingir a verdade acerca do ser. Recusa pueril em aceitar os princípios da
hierarquia, da autoridade e da disciplina. O empenho dessacralizador e a ânsia de
tudo contestar e criticar não têm limites. O espírito de negação e oposição e até
mesmo de desprezo pelo mundo das normas morais, das tradições, dos costumes
e das convenções e, desse modo, o rechaço insistente à sociedade estabelecida e
a toda forma de autoridade é uma força motriz do pensamento radical de
esquerda. Para a construção do novo homem e da nova sociedade igualitária faz-
se necessária a destruição de tudo o que existe. Instituições, hábitos e princípios
tradicionais devem ser “varridos do mapa” para que o novo mundo paradisíaco
de liberdade total e igualdade absoluta possa emergir.[49]
Não é um exagero afirmar que o esquerdismo, em suas diversas
modalidades e variações, mas, principalmente, em sua versão mais extremada e
violenta – que é o comunismo –, representa uma gigantesca ofensiva contra a
“moral natural”, uma afronta aos preceitos éticos basilares presentes em todas as
culturas e sociedades, como explica Alain Besançon:
Eu chamo de moral natural ou comum aquela à
qual se referem os sábios da Antiguidade, e
também os da China, da Índia ou da África. No
mundo constituído pela Bíblia, essa moral é
resumida na segunda tábua dos mandamentos de
Moisés. A ética comunista opõe-se a ela de forma
frontal e muito consciente. Ela se propõe a destruir
a propriedade e, com ela, o direito e a liberdade
que se vinculam a ela, e reformar a ordem familiar.
Ela se dá o direito de todos os meios de mentira e
de violência para derrubar a velha ordem e fazer
surgir a nova. Ela transgride abertamente, em seu
princípio, o quinto mandamento (“honrarás pai e
mãe”), o sexto (“não matarás”), o sétimo (não
“cometerás adultério”), o oitavo (“não roubarás”),
o nono (“não darás falso testemunho contra o teu
próximo”) e o décimo (“não cobiçarás a mulher do
próximo”). Não é absolutamente necessário crer na
revelação bíblica para aceitar o espírito desses
preceitos que se encontram em todo o mundo. A
maioria dos homens considera que existem
comportamentos que são verdadeiros e bons
porque correspondem ao que eles conhecem das
estruturas do universo. O comunismo concebe um
outro universo e vincula a ele sua moral. É por isso
que ele recusa não só os preceitos, mas também seu
fundamento, o mundo natural. Dizíamos que a
moral comunista baseia-se na natureza e na
história; é falso. Baseia-se numa supernatureza que
não existe e numa História sem verdade (Besançon,
2000, p. 51).
Para boa parte da esquerda, a grandiosa herança cultural e política do
Ocidente é vista como uma impostura e um engodo. Dessa maneira, cabe ao
pensador radical de esquerda desmascarar, desmitificar e desconstruir os
princípios fundadores da civilização ocidental. O poder espiritual e material do
Ocidente é um tumor que precisa ser removido a todo custo, uma força que
subjuga e estrangula a vitalidade dos demais povos. Consolida-se, no imaginário
progressista, uma “cultura de repúdio” e de agressiva hostilidade aos valores e às
instituições do mundo ocidental, conforme enuncia Scruton (2015a).
Efetivamente, o radical de esquerda percebe por toda parte a presença do
poder e da autoridade como formas de dominação e manipulação. O poder é
concebido como intrinsecamente opressor e nefasto para as relações humanas. A
dominação diabólica espraia-se por todo o tecido social: dominação das nações
mais poderosas em relação às nações mais pobres, dominação da classe burguesa
sobre o proletariado, dominação do branco em relação ao negro, dominação do
homem sobre a mulher, dominação dos pais sobre os filhos, etc. A luta pela
emancipação universal, pela eliminação das estruturas de poder e autoridade é
um dos slogans repetidos ad nauseam pela intelectualidade e militância
progressista.[50] Contudo é preciso lembrar, de acordo com Scruton (2014), que a
tentativa de alcançar uma ordem social sem dominação conduz a um novo tipo
de dominação mais opressora que a deposta. As sementes da nova estrutura de
poder estão presentes no próprio movimento responsável pela destruição da
antiga ordem social. O ideal de libertação e emancipação total por meio da ação
do partido revolucionário comunista jamais se realizou historicamente.[51]
Cabe ressaltar que o progressismo é um dos elementos centrais da
mentalidade esquerdista. Conforme Molnar (1972), é esta a formulação
ideológica da crença filosófica no progresso, tal como fora estabelecida pelos
enciclopedistas. Nesse sentido, é uma crença mais antiga que o marxismo, que é
o produto conjunto do progressismo, do utopismo extremista, do pensamento
econômico inglês, da filosofia hegeliana e do materialismo de Feuerbach,
Büchner e outros. Por um lado, os pensadores marxistas, de um modo geral,
tiveram sempre um grande respeito pelos colaboradores da Enciclopédie,
sobretudo por Diderot, e admitiram sua dívida para com os materialistas La
Mettrie e Condillac. Por outro lado, os progressistas compartilham a veneração
marxista pela história, não como relato e estrutura da condição humana, mas
como um terrível mecanismo que guia as épocas e orienta com benevolência a
humanidade no caminho do aperfeiçoamento e da evolução constante. Além
disso, progressistas e marxistas acreditam que a ordem política representa a
resposta final e a solução última dos problemas humanos. Como outras
ideologias, o progressismo adotou a premissa de que a nova ordem social
deveria ser secular. Portanto, a sociedade unificada e perfeita que os
progressistas querem estabelecer não reconhece nenhuma ordem divina e, por
conseguinte, nenhum dever divino fora de si mesma. Os seguidores do
progressismo somente devem lealdade à Civitas Terrena, de cujas leis e regras
excluem-se qualquer alusão a uma ordem transcendente. Por isso, ainda de
acordo com o cientista político húngaro, os diversos proponentes radicais da
“sociedade perfeita” mostraram-se dispostos a tolerar unicamente uma relação
privada entre a consciência individual e Deus, insistindo que a coesão social seja
exclusivamente fruto de uma moral secular, laica.[52] Essa crença progressista
numa salvação coletiva advinda da história e numa transformação em
profundidade do ser humano por meio da vontade política é frontalmente oposta
à perspectiva do pensamento tradicional e cristão, conforme assinala o sociólogo
Alain Besançon (2000). Esta postura voluntarista, inerente à mentalidade
esquerdista, faz depender da ação política uma transformação que, de acordo
com a tradição cristã, só se deve a uma graça divina:
Quando o que só é possível pela ação divina se
torna o objetivo da ação humana, esta visa realizar
o impossível. A ação violenta contra a natureza
fracassa e logo se transforma em destruição da
natureza, e com ela, do humano. Pelágio pensa que,
numa certa medida, o homem poderia salvar a si
próprio, pela força de vontade e de ascese. Santo
Agostinho estimava que o pelagiano se oprimia
sem com isso melhorar. Assim, fazia o “herói
positivo” da lenda bolchevique. De fato, ele
piorava, pois o pelagiano pensava atingir a virtude,
no sentido comum do termo, e o herói positivo,
uma virtude definida pela ideologia, isto é, um
vício. Além disso, o velho pelagiano não visava, da
mesma forma que a filosofia antiga, senão a um
progresso individual. O novo é coletivizado. A
transferência ao poder político da idéia pelagiana é
mais destruidora, pois é o outro, enfim, são todos
os outros, que serão corrigidos pela educação, se
necessário pela reeducação, em um muro cercado
por arame farpado (Besançon, 2000, p. 89).
O predomínio em nosso tempo de uma visão caricata da direita é mais
uma evidência da hegemonia ideológica da esquerda. Os valores culturais
centrais da modernidade são os valores da esquerda, como, por exemplo: o
progressismo, o igualitarismo, o multiculturalismo, o feminismo enragé, o
democratismo, o cosmopolitismo, o materialismo prático, o secularismo, o
ativismo, o pragmatismo, o relativismo e o permissivismo. A cosmovisão
revolucionária de matiz antitradicional prepondera de maneira esmagadora. A
mundanização e o repúdio a toda forma de pensamento teológico e metafísico
são atitudes centrais no imaginário do mainstream. A cultura moderna e
contemporânea foi moldada e construída por forças e agentes a serviço das
múltiplas doutrinas e ideologias de esquerda. A civilização contemporânea
padece de uma perigosa “sinistrite aguda”.
2 DIREITA: ORIGENS HISTÓRICAS, TIPOLOGIAS E
DEFINIÇÕES

Como qualquer idéia e corrente política, a direita também tem sua
história. Nasce no contexto tumultuoso da França revolucionária, mais
precisamente quando da realização da sessão da Assembléia Constituinte de 4 de
setembro de 1789, segundo a versão defendida por importantes historiadores.
Nessa ocasião, ocorreu uma acalorada discussão sobre o direito de veto
suspensivo a ser concedido ao rei. Os deputados, então, dividiram-se em dois
grupos, os favoráveis ao veto, colocando-se à direita, e os contrários, à esquerda.
Outros historiadores afirmam que a dicotomia tem início em 21 de setembro de
1792, em uma reunião da Convenção (Assembléia Constituinte francesa). Os
deputados estavam divididos em dois grupos em disputa: os girondinos, que se
situavam à direita do Presidente da Assembléia, e os montanheses, que se
sentaram à esquerda. Os girondinos, liderados por Brissot, pretendiam restaurar
a legalidade e a ordem. Propugnavam por uma monarquia constitucional. Já os
montanheses queriam instaurar uma ditadura revolucionária que, posteriormente,
acabou dando origem à famosa e sanguinária etapa do Terror jacobino liderado
por Robespierre. Os moderados e conservadores ocupavam a bancada à direita
do presidente e os radicais e revolucionários localizavam-se à esquerda.[53] É
dessa topografia parlamentar que nasce a dicotomia direita e esquerda.[54]
Durante o século XIX, em vários países europeus, os partidos políticos
eram vistos como de direita, centro ou esquerda de acordo com a base e o
estamento social que representavam. Havia, dessa maneira, forças políticas que
exprimiam os interesses e a visão de mundo do clero, da aristocracia e dos
camponeses se identificavam com a direita. Existiam os partidos “liberais e
moderados”, de centro, que representavam a burguesia, e as agrupações políticas
socialistas e social-democratas que encarnavam os valores da classe operária,
estes eram a esquerda da época. A direita conservadora e tradicional defendia um
modo de vida social rural e agrário, assim como as estruturas tradicionais de
autoridade, principalmente a monarquia e a Igreja Católica (Gottfried, 2013).
Direita e esquerda são noções que apresentam um poderoso caráter
cognitivo e simbólico. Acionadas para interpretar e simplificar as complexidades
da vida política, estimular emoções, despertar memórias coletivas e induzir
lealdades e inimizades, são empregadas correntemente pelos atores políticos e
indispensáveis para os observadores e analistas. Trata-se de duradouras
representações espaciais da vida política, de inegável utilidade e versatilidade,
conforme explicita o sociólogo Steven Lukes (2003).
A direita política surge na modernidade ocidental. É um conceito
analítico e uma categoria política que se afirma e se desenvolve no mundo
moderno. É verdade que há outros conceitos que podem ser utilizados para
descrever e revelar a arquitetura íntima da política moderna: moderação–
extremismo, liberdade–ordem, nacionalismo–internacionalismo, liberal–
conservador, progressista–reacionário. Mas, em que pese o valor dessas
categorias, nenhuma delas tem o peso e a persistência do binômio direita-
esquerda. Em realidade, desde a Ilustração no século XVIII, a dinâmica da
política moderna fundamenta-se na distinção entre a direita e a esquerda como
suas coordenadas básicas. Essa díade origina-se quando a legitimidade da ordem
social deixa de ser tradicional e passa a ser objeto de disputa pública
(Fermandois,1995). A pergunta sobre como deve ser a nova sociedade, não mais
baseada na influência da religião cristã e na figura do monarca, impõe-se como
uma questão central nos debates políticos e nas discussões filosóficas. Aventa-se
a possibilidade da construção de uma ordem social e política puramente secular,
distanciada de valores e símbolos religiosos; uma ordem social moderna, sem
vínculos com o passado e com os princípios tradicionais.
Segundo Norberto Bobbio (1995), direita e esquerda são termos
antitéticos que, há mais de dois séculos, têm sido empregados para designar o
contraste entre ideologias e movimentos políticos. São, também, termos
excludentes e exaustivos. Excludentes porque nenhuma doutrina ou movimento
pode ser simultaneamente de direita e de esquerda. Exaustivos na medida em
que uma doutrina ou movimento pode ser apenas de direita ou de esquerda. O
filósofo italiano ressalta que a contraposição entre direita e esquerda não diz
respeito apenas às ideologias, mas a todo um conjunto de interesses, aspirações,
valores e programas contrapostos de organização da vida social. São termos que
a linguagem política adotou para representar o universo conflituoso da política,
contudo não são conceitos substantivos ou ontológicos, no sentido de que não
expressam qualidades intrínsecas da esfera política, mas representam uma
determinada topologia política, são lugares do “espaço político”.
Em realidade, não há a direita, mas múltiplas e diversas direitas. Ressalto
que, em termos estritamente políticos, a direita não é conceito unívoco, mas uma
categoria ambígua, polissêmica e multifacetada. Ademais, é um fenômeno
histórico e social mutável e variável temporal e culturalmente. Efetivamente,
para Gonzalo Fernández de la Mora (1999), a dicotomia direita e esquerda
precisa ser contextualizada historicamente. São categorias políticas relativas que
carecem de um conteúdo estável, possuindo um valor nominal e uma
significação ocasional e circunstancial, portanto devem ser descritas e explicadas
de maneira conjuntural. Como demostra o cientista político espanhol,
historicamente os programas e as bandeiras da direita e da esquerda evoluíram
de maneira circular e, às vezes, errática. Teses direitistas fazem-se esquerdistas e
vice-versa. Cita, como exemplo, a adesão atual dos socialistas ingleses do
partido trabalhista à economia de mercado, outrora ferrenhos defensores do
intervencionismo estatal e da socialização dos meios de produção. O
nacionalismo é outro exemplo. Em geral, os movimentos de direita sempre
assumiram posturas nacionalistas. Hoje, muitos partidos e organizações de
esquerda é que levantam essa bandeira. A direita liberal é, por via de regra, mais
globalista e cosmopolita que alguns setores mais extremados da esquerda.
Direita e esquerda são, também, termos relacionais. Afirmar que uma
ideologia é direitista implica referir-se a outra ideologia que, por seu turno, será
de esquerda. Não há direita sem esquerda, nem esquerda sem direita. Segundo
Martinez (1974), o procedimento mais correto consiste em que cada vez que se
catalogue uma posição como esquerdista ou direitista se especifique com
respeito a qual ideologia concretamente se realiza essa qualificação. Em resumo,
esquerda e direita são relações entre ideologias contrárias. Por exemplo, no
tempo da República espanhola, o partido de Gil Robles definia-se como de
direita – seu nome era Confederação Espanhola de Direitas Autônomas (CEDA).
[55]
Na mesma época, havia uma agrupação política importante reconhecida por
suas posições tradicionalistas, monarquistas e católicas, composta pelos carlistas,
que eram evidentemente de direita. No entanto, a CEDA e os carlistas divergiam
em muitos pontos doutrinários fundamentais: ela era direitista em relação ao
resto dos partidos republicanos, porém, quando comparada com o carlismo, suas
posturas poderiam ser vistas como de esquerda. Do mesmo modo, o
nacionalismo pode ser classificado como uma ideologia de direita em
confrontação com o internacionalismo marxista; mas, quando em relação com o
liberalismo, o nacionalismo extremado, como o nacional-socialismo alemão, é
uma posição de esquerda. A propósito, o nazismo foi extremista em seus
procedimentos, mas não no seu direitismo.
Historiadores e cientistas sociais têm formulado tipologias e
classificações da direita. Referindo-se ao caso europeu, Eugen Weber (1965)
apresenta três tipos de direita, a saber: a direita contra-revolucionária ou
reacionária, que se caracteriza pela reação contundente contra as forças sociais e
culturais da modernidade, assim como pela busca do retorno e da restauração da
civilização cristã. Essa direita é nostálgica, pois acredita na existência, em
tempos pretéritos, de uma Idade de Ouro civilizacional. No mundo anglo-saxão,
há uma direita da resistência e conservadora, que é fortemente cética em relação
às mudanças sociais e culturais radicais e abruptas, defendendo reformas
graduais e parciais na vida social. É uma direita moderada, realista e pragmática.
Há, ainda, uma direita radical e revolucionária, vulgarmente designada como
extrema direita. É uma direita ativista, autoritária e nacionalista, com traços
beligerantes, como, por exemplo, os fascistas italianos.[56]
Ao reportar-se ao caso francês, o historiador René Remond (1969)
aponta para a existência de três grandes famílias da direita: os legitimistas, os
orleanistas e os bonapartistas. Os legitimistas vinculados ao Antigo Regime são
tradicionalistas, católicos e monarquistas. Os orleanistas, que surgem com a
Revolução Liberal de 1830, são liberais conservadores e modernizadores, e os
bonapartistas são populistas, nacionalistas, autoritários e estatistas.
Pesquisadores como Eatwell e O’Sullivan (1989) distinguiram cinco
tipos de expressões da direita. Primeiramente, uma direita reacionária, que se
caracteriza por reagir fortemente à Revolução Francesa e às suas conseqüências.
Inspirada em autores católicos monarquistas e tradicionalistas, como Joseph de
Maistre e Louis de Bonald, essa direita contra-revolucionária condena duramente
o individualismo e o racionalismo iluminista como forças subversivas e
anarquizantes. A direita reacionária idealiza um longínquo passado glorioso
quando supostamente teria existido uma sociedade hierárquica e ordenada. A
segunda é a direita moderada, seus ancestrais intelectuais são Edmund Burke,
Benjamin Constant e Alexis de Tocqueville. É uma direita liberal-conservadora
que defende o governo limitado e os grupos sociais intermediários. Suspeita de
princípios políticos abstratos, como os ideais revolucionários liberdade,
igualdade e fraternidade, manifesta um respeito devocional às instituições que
surgem espontaneamente do corpo social, como a propriedade, a religião, a
família e a lei. A terceira é a direita radical, que surge nas primeiras décadas do
século XX. É uma direita revolucionária que, em resposta à ascensão do
socialismo e do comunismo, atua com força e violência. É caracterizada pela
defesa de um nacionalismo romântico e agressivo. Constitui-se na raiz do
fascismo e do nacional-socialismo alemão. Seus pais intelectuais são George
Sorel e Ernst Jünger. A quarta é a extrema direita, formada por movimentos e
partidos políticos hostis à esquerda, aos liberais e aos conservadores. É uma
direita identitária, europeísta e anti-imigração, fortemente vinculada aos
intelectuais da chamada nouvelle droite, como Alain de Benoist, Charles
Champetier, Louis Pauwels, Guillaume Faye e outros.[57] Finalmente, há a direita
liberal, ou melhor, neoliberal e libertária, que ganha força com a ascensão ao
poder do Presidente Reagan, nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher, na
Inglaterra, no início dos anos de 1980. É a direita dominante e hegemônica no
mundo ocidental que milita pelo Estado mínimo e a economia de mercado, mas,
ao mesmo tempo, defende certos valores ligados à “velha direita”, como o
patriotismo, o elitismo, a lei e a ordem. Seus mentores intelectuais são os
economistas libertários como Murray Rothbard e a Escola Austríaca de von
Mises e Hayek.[58]
Ao adaptar essas tipologias ao Brasil, pode-se afirmar que,
historicamente, a direita radical e revolucionária foi representada pela Ação
Integralista Brasileira, criada em outubro de 1932 pelo político e escritor Plínio
Salgado.[59] O integralismo era uma doutrina política de cunho nacionalista e
cristão, que fundia elementos do espiritualismo de Farias Brito, do nacionalismo
de Alberto Torres e do catolicismo social. Em seu simbolismo, em sua
ritualística e estética, é perceptível certo pendor fascista. Porém a influência do
tradicionalismo católico no integralismo era evidente. Após a Segunda Guerra
Mundial, o integralismo deu origem ao Partido de Representação Popular (PRP)
de explícita orientação conservadora cristã. Com o passar dos anos e seu
amadurecimento intelectual, Plínio Salgado, criador da AIB e do PRP, afasta-se
de posturas radicais e fascistas, assim adotando uma visão de mundo
conservadora e tradicionalista católica. A direita contra-revolucionária e
tradicionalista encontra-se representada pelo movimento católico Tradição,
Família e Propriedade (TFP), fundado em julho de 1960 pelo intelectual paulista
Plinio Corrêa de Oliveira. Em que pese o predomínio doutrinário do
tradicionalismo católico, há na TFP aspectos ideológicos de inspiração
conservadora. A ênfase na defesa da propriedade privada, expressa em seu
trinômio, e a visão simpática de seus membros em relação ao capitalismo e à
nação americana patenteiam a presença de matizes conservadores nessa
organização. É provável que o único movimento político brasileiro de orientação
genuinamente tradicionalista tenha sido a pouquíssima conhecida e estudada
Ação Imperial Patrianovista, criada em 1932 pelo intelectual e professor
universitário Arlindo Veiga dos Santos.[60] Este movimento cultural e político
defendia ardentemente a monarquia, o catolicismo, o patriotismo e era
fortemente antimarxista e antiliberal.[61] Aproximando-se da direita liberal, cito a
União Democrática Nacional (UDN), partido político fundado em 1945, cuja
principal liderança foi o jornalista Carlos Lacerda. Esta agremiação política
defendia os princípios do liberalismo clássico, e era frontalmente contrária ao
populismo varguista e ao comunismo.
No tocante à relação entre a direita e o fascismo, cabe, aqui, alguns
esclarecimentos adicionais. Boa parte dos comentaristas políticos, historiadores e
cientistas sociais identifica esse movimento político com a direita ou a extrema
direita. Contudo há diferenças notáveis entre o fascismo, a direita radical e a
direita autoritária conservadora. De acordo com Stanley Payne (1986), a direita
autoritária conservadora e em muitos casos também a direita radical baseiam-se
nos valores da religião tradicional cristã, mais que numa nova mística cultural
como o vitalismo, o irracionalismo ou o neoidealismo secular. Repudiam as
tendências sorelianas e o nietzscheanismo dos fascistas puros em prol de um
enfoque ideológico mais prático, racional e esquemático. Exemplo concreto
dessa distinção se deu em Portugal. Os fascistas, ligados ao nacional-
sindicalismo de Rolão Preto, diferenciavam-se em muito da direita radical,
representada pelo integralismo lusitano de Antônio Sardinha, e da direita
conservadora, a União Nacional de Salazar, que governava o país.[62] O nacional-
sindicalismo chegou a ser proibido na década de 1930 pelos conservadores
autoritários salazaristas, e seu chefe, Rolão Preto, foi exilado nessa época. A
direita conservadora é mais moderada e tradicionalista que os fascistas. Já a
direita radical é mais “direitista” que os fascistas, pois sempre dependeu das
elites e das estruturas econômicas existentes. Além disso, não aceita a estratégia
fascista de mobilização das massas e muito menos as mudanças sociais,
econômicas e culturais.
Grosso modo, a direita reacionária, conservadora e contra-revolucionária
sempre manifestou uma atitude de ceticismo se não mesmo de resistência à
modernidade, principalmente em sua vertente iluminista, racionalista e secular.
No entanto, ao contrário do que se apregoa, o fascismo não significou um
rechaço à cultura moderna, muito pelo contrário. As idéias filosóficas do
fascismo, como explica Payne (1986), são um produto direto de determinados
aspectos da “Ilustração” e derivam diretamente dos valores prometéicos e
seculares modernos do século XVIII. A divergência essencial das idéias fascistas
com respeito a determinadas dimensões da cultura moderna encontra-se mais
precisamente em seu antimaterialismo e na importância atribuída ao vitalismo,
ao idealismo filosófico e à metafísica da vontade. O objetivo central do
idealismo e do vitalismo fascista era a criação de um homem novo, de um novo
estilo de cultura que alcançasse a excelência tanto física como artística.
Exaltavam a superação de todos os limites e a liberdade natural do homem, bem
como a força física e a vontade enérgica. É verdade que essas idéias eram
contrárias ao materialismo do século XIX, porém pouco tinham que ver com a
postura defendida pela direita conservadora, reacionária e contra-revolucionária
de retorno aos valores morais e espirituais tradicionais do mundo ocidental antes
do século XVIII.
Não podemos esquecer de que o leitimov, sempre repetido por diversos
chefes fascistas, era: “Não somos nem de direita, nem de esquerda”. Essa
afirmação é uma pista importante porque sinaliza para o fato de que o fascismo é
uma ideologia e é um movimento político que, a rigor, não pode ser categorizado
como de direita. Trata-se, na realidade, de uma nova forma política que
ultrapassa as antigas distinções e clivagens. É um fenômeno novo próprio do
século XX, representativo da era das massas.[63] O nazifascismo, assim como o
bolchevismo, foi uma das manifestações históricas do totalitarismo. É
importante ressaltar que, enquanto movimentos totalitários, o fascismo e o
comunismo possuem inegáveis semelhanças, como a permanente mobilização
das massas, o culto ao chefe, uma ideologia milenarista oficial, o partido único
com o domínio burocrático do Estado por uma elite, o monopólio dos meios de
comunicação e o controle policial violento. Ademais, no fascismo e,
principalmente, no nacional-socialismo alemão há alguns aspectos que são
próprios da esquerda radical. O mais importante deles é a noção de que o poder
“vem de baixo”, do povo, das massas, e não do “alto”, como nos regimes
políticos tradicionais de matizes monárquicos e aristocráticos. Não apenas o
poder origina-se das massas, mas os seus líderes são provenientes do povo, vide
o exemplo de Stalin, Hitler e Mussolini. O poder político, nesses regimes
(principalmente no caso do nazismo e do comunismo), é conferido e legitimado
pelas massas, e não por uma autoridade espiritual como acontece nos sistemas
políticos tradicionais, revestindo-se, em muitas oportunidades e momentos, de
um teor anti-religioso e anticristão. Mais ainda: Hitler e Lênin fizeram de seus
movimentos políticos uma espécie de nova religião; uma religião secular.
Tinham a ambição prometéica de criar um “novo homem” e o desejo luciferino
de retificar ou mesmo de refazer a criação divina. Percebe-se, assim, um caráter
messiânico presente nos movimentos revolucionários do século XX que nada
tem que ver com o pensamento político tradicional da direita (Perron, 1991).
O binômio direita-esquerda tem uma relação essencial com a díade
progresso-conservação.[64] A esquerda em seus diversos matizes sempre se
identificou com a noção de progresso. O progresso é visto como um imperativo
para o homem político moderno. É o progresso moral, comportamental,
tecnológico e econômico que libertará a humanidade do jugo das tradições,
convenções morais pequeno-burguesas e crendices tolas. O progressismo da
esquerda caracteriza-se pela defesa de um “projeto de futuro” – um plano –, a
construção racional de uma sociedade melhor, que tenha como norte a idéia de
igualdade. A direita, porém, parte da premissa de que há uma ordem natural e
eterna, e que só pensando e agindo de acordo com essa ordem é que
determinadas reformas e ajustes podem ser realizados na vida social. Enquanto a
esquerda afirma a igualdade como meta reguladora de suas idéias e ações
políticas, a direita enfatiza os princípios de ordem, liberdade e hierarquia
(Fermandois, 1995).



2.1 Os traços característicos da direita

Trato agora de apresentar um conjunto de definições sintéticas da direita
elaboradas por pesquisadores, acadêmicos e intelectuais vinculados a este
universo de idéias e valores.
A direita, conforme explica Del Noce (1972), define-se pela fidelidade
ao espírito da tradição. Lealdade à tradição espiritual e filosófica clássica, que
afirma a existência de uma ordem eterna de valores – valores e princípios que
são o eixo de qualquer civilização normal. Já a esquerda caracteriza-se pela
contestação crítica a essa ordem de valores, rotulando-a como uma “ideologia
opressiva”. Concebe os valores morais e espirituais como uma máscara que
oculta interesses materiais e de dominação.
Para Erik von Kuehnelt-Leddihn (1974), a direita tem um compromisso
com a preservação da liberdade, dos valores da personalidade e da tradição.
Contrapõe-se às ideologias utópicas de teor futurista que almejam fazer do
passado uma tábula rasa. O homem de direita defende o que é eternamente
verdadeiro, os valores perenes. Advoga uma visão equilibrada da natureza
humana que nada tem que ver com o otimismo antropológico da esquerda.
Insiste, também, na unicidade e singularidade da criatura humana que sob
nenhuma hipótese pode ser transformada em simples objeto ou peça do sistema
político. A esquerda levanta-se contra os princípios da direita. É inimiga da
diversidade e da hierarquia e fanática promotora da uniformidade e do
coletivismo. Patrocina a centralização política e o estatismo. Além do mais,
rejeita invariavelmente a idéia de uma realidade sobrenatural e de uma ordem
espiritual, ou seja, é essencialmente materialista.
O filósofo belga Marcel de Corte (1972) define a direita como a
cosmovisão que aceita sem concessões e idealismos a condição humana. O
homem de direita admite e reconhece as contradições e limitações da natureza
humana. Estima e protege os valores ligados ao nascimento e à estirpe – valores
ontológicos, e portanto gratuitos, que fazem parte de seu ser. Ao contrário do
homem de esquerda, que exalta os valores materiais e econômicos, o homem de
direita subordina esses valores puramente quantitativos a um conjunto de
princípios mais elevados, relacionados ao nascimento, à família, ao lar, à pátria,
à cultura e à civilização. A direita cumpre a função essencial de conciliar o
mundo antigo com o mundo novo, defendendo com serenidade os valores
eternos e perenes. Portanto, ao inverso da esquerda, não se deixa contaminar e
extasiar com os valores transitórios, passageiros, os valores ditos novos e
modernos. O homem de direita tem consciência da grave missão de preservar e
transmitir aos seus descendentes uma herança e um patrimônio civilizacional,
moral e material.[65] Não se deixa envolver e levar pelos modismos sociais e
pelas mitologias modernas. Resiste firmemente às quimeras e utopias que
inflamam os espíritos mais imaturos. Dissipa todas as sugestões ilusórias do
mundo artificial que o circunda, recuperando o vínculo nupcial que o une
constitutivamente ao universo real. Esta tomada de consciência da condição
humana e esta compreensão e aceitação da realidade conduzem o homem de
direita ao Divino, à fonte primeira de tudo que existe e, assim, a um profundo
senso sacro e místico da vida.
Para o pesquisador Jacques du Perron (2004), não há propriamente
teóricos da direita porque ela não é um teoria, uma filosofia política, mas um
estado de fato, a ordem natural da vida política. Assim como há uma lei e uma
moral naturais, existe uma política natural seguida por todas as culturas, povos,
em todos os tempos. E esta política natural, tradicional, não é outra coisa que a
política da direita. Por conseqüência, o homem de direita é naturalmente
conservador, mas deve ser também um reacionário. O tradicionalista de direita
não deve unicamente se esforçar para conservar a herança do passado, mas
necessita ainda reagir contra as ameaças subversivas das forças da dissolução. A
direita defende a religião, a família, a propriedade, a pátria, portanto o homem
que se identifica com essa mentalidade precisa lutar contra a revolução que visa
a subverter e mesmo destruir todas essas instituições. O homem de direita deve
estar atento e pronto para o combate contra-revolucionário. Dessa maneira, uma
tarefa importantíssima que o contra-revolucionário deve levar a cabo é fazer com
que seus concidadãos compreendam que o combate da direita contra a esquerda,
ou, mais precisamente, da tradição contra a revolução, reflete uma luta mais
ampla: a guerra das duas cidades – a cidade de Deus e a cidade dos homens –
descrita por Santo Agostinho. É imprescindível que o homem de direita,
tradicionalista, esteja consciente de que ele é um estrangeiro no mundo moderno,
fundamentalmente antitradicional e inteiramente submetido às ideologias de
esquerda (liberais ou totalitárias).
O historiador e filósofo tomista Rubén Calderón Bouchet (1983; 1989)
discorre sobre uma direita cabal e absoluta que afirma a existência de certas
realidades essenciais e metafísicas que a esquerda, em seu materialismo, nega e
procura destruir. Perfila, esta direita absoluta, a existência de Deus, da natureza
humana como obra de Deus e da tradição divina como uma ordem de salvação
proposta à liberdade do homem para que este viva de acordo com ela e alcance,
desse modo, a vida eterna. O homem de direita afirmará que a liberdade é a
ordem imposta por Deus e livremente aceita por nós. O homem de esquerda vê
nessa aceitação uma forma de escravidão e submissão que o despoja de sua
condição humana, acreditando que essa ordem criada por Deus seja uma
projeção infantil da imaginação humana. O homem de esquerda espera, portanto,
a libertação definitiva que virá através de uma “ação social” puramente exterior
que modifique as condições socioeconômicas e, assim, por meio dessa
transformação estrutural, provoque a passagem do homem individualista para o
homem coletivo. O historiador católico ressalta ainda que, tanto na tradição pagã
como na tradição cristã, os termos direita e esquerda foram empregados para
indicar sendas, caminhos e posturas espirituais de aceitação ou rechaço dos
mandamentos e das leis de Deus. A esquerda a indicar a direção ominosa e
sinistra, e a direita como a vereda que leva ao Paraíso celeste na tradição cristã,
ou aos Campos Elíseos na tradição pagã.[66]
Com similar postura, Giuseppe Prezzolini (2003) considera que a
liberdade é um princípio essencial para a direita. Enfatiza que o valor da
liberdade é aristocrático; as massas não sentem necessidade de liberdade, mas de
bens que saciem seus desejos mais elementares. Não há liberdade sem riscos,
sem a responsabilidade e o esforço; as massas, no entanto, sempre irão preferir a
segurança e a comodidade. Ao contrário da esquerda, que defende
apaixonadamente a idéia de que os homens nascem iguais e o sistema social
torna-os desiguais, a direita reconhece o princípio da desigualdade natural.
Desigualdade entre os sexos, de força física, coragem, honestidade, fortuna,
inteligência, etc. A igualdade não passa de uma utopia, é, na verdade, uma
falsidade e uma ilusão. É uma utopia pensar em um mundo onde todos são belos,
inteligentes, simpáticos, fortes e corajosos. Uma ilusão pueril que, se um dia
fosse concretizada, teria conseqüências funestas, pois, em um mundo em que
todos fossem iguais, vigoraria a mais vulgar uniformidade e a massificação. Em
um mundo igualitário, a pessoa perderia por completo a sua individualidade. A
liberdade e a desigualdade são valores que estão vinculados à concepção clássica
de que a vida é uma luta sem tréguas, um combate constante pela conservação,
afirmação e aprimoramento da individualidade e da civilização. A luta, a
concorrência material, o enfrentamento e a competição moral estimulam a
inteligência e fortalecem o caráter. O homem e a civilização formaram-se em
séculos e séculos de lutas e conflitos, e não num ambiente de bem-estar, conforto
e ócio. Outro princípio inalienável da direita, conforme Prezzolini (2003), é o da
propriedade privada. O senso da propriedade é inato ao homem; trata-se de um
imperativo territorial natural à espécie humana, não é este de forma alguma um
produto da sociedade ou da estrutura econômica como advogam certas teorias
socialistas e anarquistas.
Consoante lição de Alain de Benoist (1982), a direita é, acima de tudo,
uma atitude que consiste em considerar a diversidade do mundo e as
desigualdades relativas como um bem, e a homogeneização progressiva do
mundo, preconizada pelos adeptos da ideologia igualitária, como um mal. Não
há escapatória: ou adota-se a perspectiva anti-igualitária, que implica julgar os
homens não pelos simples fato de sua presença no mundo, “política ontológica”,
mas pelo seu valor, apreciado em função de critérios adequados à sua atividade
pessoal e das características específicas das comunidades das quais fazem parte;
ou, então, assume-se a perspectiva igualitária, que percebe em toda desigualdade
uma injustiça e, ainda, perfilha o cosmopolitismo em política e o universalismo
no plano filosófico.
A filiação da esquerda com a ideologia igualitária é admitida por uma
série de autores, como é o caso de Norberto Bobbio (1995). Para o renomado
filósofo político, o critério mais adequado para distinguir e contrastar a esquerda
da direita é a postura adotada pelos homens em relação ao ideal da igualdade. De
um modo geral, a esquerda teria uma maior sensibilidade ao problema da
desigualdade. O igualitário de esquerda parte da convicção de que boa parte das
desigualdades que o revoltam é de origem social e, portanto, eliminável. Em
contrapartida, o inigualitário de direita parte da premissa oposta, isto é, de que as
desigualdades são naturais e, por isso, inelimináveis. Para o esquerdista, as
desigualdades sociais, econômicas, de gênero e outras semelhantes são resultado
dos costumes, das leis, normas morais e instituições culturais de uma dada
civilização e, desse modo, socialmente modificáveis. Com isso, fica explícito o
“espírito de retificação” inerente ao imaginário da esquerda, a pressurosa faina
de corrigir, emendar, se não mesmo eliminar as desigualdades de todos os tipos
por meio da vontade e da atividade política. O projeto de retificação, segundo
Lukes (2003), pode ser expresso mediante uma variedade de meios: na
linguagem dos direitos, no conflito de classes, na história da expansão da
cidadania, da justiça ou da democracia, ou mesmo na eterna luta contra a
exploração e a opressão. Sobre o construtivismo e o voluntarismo da esquerda,
observa o intelectual italiano:
Manifesta-se neste novo contraste o chamado
“artificialismo”, que é considerado uma das
características da esquerda. A direita está mais
disposta a aceitar aquilo que é natural e aquilo
que é a segunda natureza, ou seja, o habitual, a
tradição, a força do passado. O artificialismo da
esquerda não cede sequer diante das flagrantes
desigualdades naturais, as que não podem ser
atribuídas à sociedade: pense-se na idéia de
libertar os loucos dos manicômios. Ao lado da
natureza madrasta está a sociedade madrasta. E a
esquerda está geralmente propensa a considerar
que o homem é capaz de corrigir tanto uma
quanto a outra (Bobbio, 1995, p. 106).
Subjaz ao pensamento revolucionário de esquerda certa escatologia
mundana, ou seja, a tentativa de substituir a noção tradicional e clássica de
sentido da existência pela idéia de um sentido único e final da história. Ao
contrário da direita, que volta sua atenção para o que há de valioso no passado e
para os problemas e dramas do presente, a esquerda fixa seu olhar em um futuro
hipotético. O projeto revolucionário progressista persegue incessantemente
“centros terrenais”, reificando forças sociais como o Estado, a sociedade, a
classe, etc. (Negro, 1999). Absolutiza o temporal e o imanente por conta de sua
obstinada negação da realidade espiritual e transcendente. Qualquer forma de
autoridade espiritual é rechaçada em nome de poderes temporais absorventes.
Logo, os valores da personalidade e da individualidade concreta “de carne e
osso” são espezinhados em nome de forças coletivas impessoais e abstratas.
Mas, em que pese a complexidade e ambigüidade desta categoria
analítica e realidade histórica, é possível captar a essência desses fenômenos e
caracterizar os traços comuns e constantes que configuram o que pode ser
definido como espírito conservador-tradicional e atitude de direita. Para além das
diversas correntes e das múltiplas definições acadêmicas, há uma forma própria
e um modo específico de perceber a realidade social e a natureza humana que
podem ser definidos como cultura de direita ou mesmo sensibilidade
conservadora-tradicionalista, que se caracteriza principalmente por ser
diametralmente oposta à visão de mundo progressista e igualitária, hoje
dominante na civilização ocidental. A direita, nesse sentido, deve ser concebida
axiologicamente e em termos ideais como uma postura diante do real, assim
como uma orientação existencial.
Entendo que a direita apresenta alguns traços essenciais, estruturais e
constitutivos, como: o pessimismo antropológico, o realismo político e
metafísico, a defesa dos princípios da autoridade e da hierarquia, a preservação
dos corpos sociais intermediários e das instituições tradicionais – como a família
e a religião –, o senso comunitário e patriótico e a crença no valor e na
importância da tradição.
Para a direita, o homem não é nem uma criatura angelical, nem uma
besta demoníaca. Por conseguinte, a teoria de Rousseau acerca da bondade
natural do homem, assim como outras filosofias que advogam a perfectibilidade,
são repelidas, pois o homem é visto como um ser deficiente e limitado e, dessa
maneira, com inclinações para o mal, a corrupção e o erro. A concepção cristã do
pecado original está presente explícita ou implicitamente no pessimismo
antropológico da direita. Ora, se a natureza humana é marcada pelo pecado e é
intrinsecamente imperfeita, é imperativo a existência de autoridades, normas
morais e jurídicas, assim como instituições educativas e formadoras como a
religião e a família para refrearem as tendências viciosas e impulsivas existentes
no homem. A criatura humana precisa ser formada e ordenada por meio da
disciplina e do contato com o universo dos valores culturais e espirituais. É no
campo da educação e da pedagogia, assim como da visão do homem, que as
diferenças entre a direita e esquerda tornam-se mais nítidas, conforme assevera o
historiador René Rémond (2007):
A esquerda será favorável a um tipo de ensino sem
obrigações; não gosta de dizer que a aprendizagem
exige esforço. Pensa que se deve aprender com
alegria e divertindo-se. [...] a direita, ou boa parte
dela, afirmará que o esforço é necessário. Vemos
que entre uma liberdade sem obrigações e uma
autoridade com obrigações há uma divisão
profunda de sensibilidades e valores. A esquerda
pensa que o criminoso pode ser reintegrado à
sociedade, converter-se em um cidadão como os
outros. Há certa confiança no homem. Em
contrapartida, parte da direita é cética e não
acredita que isso é possível. O que divide a direita
da esquerda são concepções sobre a natureza
humana, [...] uma divisão antropológica.[67]
Para a direita, o mal está primordialmente no coração do homem, e não
nas estruturas e nos mecanismos sociais e políticos. Resulta, dessa maneira, de
uma deformação da consciência, de uma desordem interior. Por sua vez, para a
esquerda, o homem é plenamente moldado pelas instituições, é um produto do
ambiente social. A idéia da plasticidade e maleabilidade do homem e da
sociedade a partir de manipulações políticas, científicas, tecnológicas e legais é
inerente ao imaginário progressista. É visível, neste posicionamento, a influência
de Rousseau, com o seu projeto de um retorno idílico ao estado de natureza
originário, um regresso ao “bom selvagem”, ao homem natural livre e
emancipado de todos os liames civilizacionais.[68] Em boa parte dos pensadores e
autores esquerdistas revela-se uma motivação “contracultural”, conforme
acentua o politólogo Dalmacio Negro Pavón:
No rousseaunismo, o atual estado de civilização, a
cultura vigente, deve ser destruída; no fundo toda a
cultura, já que supõe convenções e normas que,
transmitidas, constituem a causa dos males, ao
opor-se ao espontaneísmo do homem no estado de
natureza. A contracultura, o auge do pensamento
débil, ou as especulações de Jacques Derrida,
influído pelo estruturalismo, em torno da
desconstrução da cultura, são um eco da luta pela
recuperação do estado de natureza frente a Hobbes
[...] (Negro, 2007, p. 211).
O realismo da direita manifesta-se na rejeição categórica das idéias
abstratas e utópicas. O homem de direita desconfia das “teorias e doutrinas de
gabinete” e dos planos ideológicos mirabolantes de transformação social. É
profundamente cético em relação às engenharias sociais e aos projetos
racionalistas de construção de sociedades perfeitas. A própria idéia de modelos
ideais, ou seja, de como uma sociedade deve ser, é rechaçada por muitos autores
liberais e conservadores. Por conseqüência, o homem de direita prefere o
conhecido, o testado, o que existe há muito tempo, o tradicional, a aquilo que é
novo e original.
Contra os devaneios e as fantasias do idealismo moderno, valoriza o
senso comum, os hábitos e costumes enraizados, a observação e a meditação
histórica. Não se deixa seduzir pela neofilia contemporânea e tece duras críticas
à “religião do progresso”. Não acredita na visão unilinear, determinista e
evolutiva da história, própria das ideologias modernas. Procura compreender e
adequar-se à ordem natural das coisas e à estrutura da realidade, ao invés de
tentar modificá-la abrupta e radicalmente com base em uma construção
puramente racional e hipotética. É fiel à tradição e francamente hostil às
transformações e inovações radicais que almejam cortar os laços das sociedades
humanas com o passado e com uma ordem eterna e metafísica de valores.
Desconfia, portanto, das desmedidas ambições progressistas de destroçar a moral
tradicional substituindo-a por “novas moralidades” construídas arbitrariamente.
Moralidades que são laicas e relativistas, por via de regra, antirreligiosas e,
sobretudo, anticristãs.
Para a esquerda, todas as restrições e limites precisam ser superados.
Urge criar uma nova ordem moral e societal libérrima, que possibilite a
expressão das emoções e dos impulsos. Abaixo a repressão! É proibido proibir!
Esses ainda parecem ser os lemas de determinada esquerda hipnotizada pela
utopia de uma civilização fundada na busca do prazer e na libertação dos freios
morais. Em contrapartida, a direita acuada cumpre o papel ingrato de lembrar ao
“homem festivo da contemporaneidade” que não há ordem social sem algum
tipo de controle e mesmo repressão. O enfadonho princípio de realidade[69] é
ainda uma das bandeiras mais importantes da direita, conforme comenta René
Rémond:
Boa parte da esquerda pensa que não há limites
para a evolução dos costumes e que esta é a prova
da modernidade. Alguns acreditam que todas as
restrições estão destinadas a desaparecer e que, por
conseqüência, deve-se permitir o casamento entre
homossexuais e a adoção por parte de parceiros do
mesmo sexo. A direita, quase em seu conjunto,
pensa que há limites, que se deve fixar regras e que
há algo de utópico nessa aspiração de generalizar
os direitos. Alguns dizem que o próprio das
sociedades políticas modernas é não aceitar
nenhuma restrição da natureza. Por conseqüência,
tudo é possível e pode-se rechaçar a distinção
natural dos sexos. Não aceitam o que é um fato
biológico. Ainda que não seja o caso de toda a
esquerda, pode-se dizer que essa afirmação é de
esquerda. Em oposição a isso, a direita diz que há
realidades, que há um princípio de realidade. Este é
coração do debate.[70]
Enquanto no pensamento e no discurso da esquerda predominam as
categorias sociológicas e econômicas, no universo doutrinário da direita
prevalecem as categorias metafísicas, teológicas e morais. Para a esquerda, as
estruturas sociais e econômicas são fatores determinantes nas ações e decisões
humanas e no devir histórico. O homem e as culturas resultam dos influxos
sociais e sistemas econômicos. Não há escapatória, o homem está preso aos
condicionamentos históricos e ambientais. É um produto do meio social. Sob
certo aspecto, determinadas linhagens ideológicas da esquerda tendem a uma
absolutização do temporal e a uma reificação das forças sociais. Por sua vez, os
autores e as idéias de direita enfatizam a liberdade e a responsabilidade humana,
sua capacidade de ação e decisão, seu poder de resistir e até contrariar as forças
sociais. O indivíduo não é visto como uma marionete de forças coletivas
impessoais e anônimas, mas como um centro ativo, um agente com certo grau de
autonomia e liberdade de escolha. Não se nega a influência e o condicionamento
das estruturas sociais e econômicas, porém estas não são tomadas como vetores
determinantes do comportamento humano e única chave explicativa do real.
Transcendendo as influências sociais, entram em cena fatores de ordem
espiritual. Para além do mundo temporal e das estruturas socioeconômicas, há
uma ordem metafísica de valores e princípios. A consciência humana e a
realidade supratemporal são percebidas como elementos centrais, constitutivos
da ordem total do ser. Levar em consideração unicamente a realidade histórica e
o mundo social é, necessariamente, mutilar a estrutura da realidade. Por
conseguinte, o homem não é apenas um ser histórico e cultural, enclausurado no
mundo da imanência, mas um ser espiritual, dotado de uma alma imortal e com
uma origem e um destino sobrenatural.
Além disso, é peculiar da visão direitista da existência a noção de
dignidade da pessoa humana e, desse modo, a idéia de direitos naturais como a
vida e a propriedade. O princípio de dignidade da pessoa humana tem origem na
tradição cristã. Na realidade, como lembra o pensador José Javier Esparza
(2005), há uma afinidade de fundo entre o cristianismo e a direita, e a esquerda
sabe disso muito bem, por isso, historicamente, sempre tentou aniquilar o
cristianismo. É evidente que o homem de direita não precisa ser cristão nem
mesmo acreditar em Deus. Porém a defesa da dignidade e singularidade da
pessoa humana, a crença de que o mundo repousa sobre uma ordem prévia, que
nos é dada e que admite apenas poucas mudanças; que a justiça consiste em
harmonizar e combinar a dignidade das pessoas com esta ordem do mundo; que
os homens não são indivíduos atomizados nem massas gregárias, mas pessoas
cuja vocação é realizar-se no interior de uma comunidade organizada; que a
tradição herdada é um fator imprescindível para o desenvolvimento das
sucessivas gerações; que o âmbito próprio das pessoas é a família natural, com o
conseguinte reconhecimento da autoridade dos pais sobre os filhos; que o poder
deve estar limitado precisamente para que não invada todas essas propriedades
naturais das pessoas e das comunidades e, finalmente, que o material não pode
constituir o horizonte único da existência humana, porque é caduco e efêmero.
Tudo isso, como destaca Esparza (2005), constitui a coluna vertebral da direita e
são princípios que herdamos da concepção cristã da vida. São princípios
tradicionais, presentes não apenas no cristianismo, mas também em todo
pensamento clássico ocidental, ou seja, na filosofia grega, no direito romano e na
escolástica medieval. Na verdade, cabe ressaltar que os princípios e os valores
defendidos pela direita são os fundamentos de qualquer civilização normal.[71]
Como se pode depreender das definições acadêmicas apresentadas, o
conceito de ordem é absolutamente central para o pensamento de direita. Esse
conceito possui acepções diversas. Numa primeira acepção de matiz sociológica
e jurídica, uma sociedade sadia e relativamente harmônica é ordenada e
hierárquica. Não há justiça e equilíbrio em uma comunidade sem a consolidação
da ordem civil. A ordem pública deve ser garantida para que a vida social
transcorra de uma maneira relativamente pacífica. Cabe à ordem política e
jurídica coordenar e estimular a harmonia das diversas forças sociais.
Uma sociedade ordenada é necessariamente uma sociedade orgânica,
onde cada parte, unidade e esfera da vida social desfruta de certo grau de
autonomia e liberdade. A diversidade humana e o pluralismo social são
respeitados e tutelados nesse tipo de ordem comunitária. O contrário de uma
sociedade orgânica é uma sociedade mecanizada, na qual se reage contra a
desagregação e a desordem social procurando fixá-la e moldá-la de acordo com
um ideal e modelo único; evidentemente isso é o que ocorre nos totalitarismos
que procuram negar e suprimir a diversidade humana. Uma ordem harmoniosa
não é uma sociedade materializada e uniformizada. Relações sociais petrificadas
e burocratizadas são justamente o oposto de formas vivas, dinâmicas e
articuladas de interação humana. Importa ressaltar que é o campo do político,
representado tradicionalmente pela função soberana, o responsável pela
manutenção da ordem. Realmente, a autoridade política introduz a ordem no
corpo social. A função soberana é a base do conjunto social, contribuindo para
determinar a finalidade e o sentido das múltiplas e variadas atividades
econômicas e sociais.[72] Contudo, na modernidade, nota-se uma perigosa
inversão: a subordinação do político ao econômico e ao social, com a
progressiva deterioração da função soberana e de mando. Talvez, neste ponto,
resida uma das causas da desordem atual. O “demonismo do social”[73] e a
transformação do econômico no fator determinante indicam o predomínio da
classe dos produtores e comerciantes e, por conseguinte, o declínio da “casta”
dos guerreiros, dos sacerdotes e dos soberanos, encarregados outrora das funções
de mando e autoridade. Desse modo, as frívolas e passageiras aspirações das
massas, essencialmente dominadas por interesses materiais, determinam as
decisões do poder político (Benoist, 1982). A autoridade enfraquecida acaba por
ceder às pressões sociais e populares, assim como aos interesses particularistas
dos poderosos grupos econômicos. O populismo demagógico e a pedestre
política dos lobbies proliferam com o eclipse de toda verdadeira autoridade e
soberania. A desordem campeia em uma sociedade onde os interesses
econômicos e sociais ordinários transformam-se em forças dominantes e
despóticas.
Analiso, agora, outro sentido da ordem, isto é, em uma segunda acepção
com tonalidades filosóficas e metafísicas. Não se trata precisamente de uma
ordem imposta, de uma ordem que surja em decorrência da vontade arbitrária
dos homens. Não é uma ordem construída e inventada, planejada
meticulosamente por legisladores e burocratas, muito menos que se origina
devido a um pacto ou consenso social. É, na verdade, uma ordem de origem
extra-humana, cósmico-divina, ou então uma ordem natural e espontânea que
resulta de um longo processo de evolução histórica e que, entre outros traços,
apresenta um caráter objetivo e universal.[74] É a ordem natural anterior ao
homem, fundamentando-se na regularidade, constância e permanência da
realidade e, em particular, na existência de uma natureza humana única e
imutável. Cabe aos homens, dessa maneira, conhecerem e conformarem-se a esta
ordem essencial, a “ordem das coisas” (Sacheri, 2014).[75]
A existência de uma ordem natural não exclui a ação do homem, pois é
este um elemento da natureza, uma parte essencial da realidade total, sendo,
principalmente, uma força ativa. Exclui unicamente determinados tipos de
conduta e atividade que contrariam a natureza, originando desordem ou criando
artificialidades que acabaram por gerar efeitos e conseqüências danosos (Vallet
de Goytisolo, 1970).
As múltiplas ideologias políticas e doutrinas filosóficas modernas
procuram negar a existência de uma ordem natural e, portanto, a noção de uma
verdade transcendente e de uma moralidade objetiva. Essas ideologias e
doutrinas são o produto do racionalismo, que assim é caracterizado pelo
jusfilósofo Danilo Castellano (2004, p. 23):
[...] é a ilusão do homem de poder construir ou
criar uma realidade nova, deixando de lado a
verdadeira. Com efeito, o racionalismo não é outra
coisa que o intento de plasmar a realidade segundo
modelos convencionais, elaborados arbitrariamente
e sem ter em conta a realidade, em geral
“alternativos” com respeito à ordem das coisas tal e
como foram criadas e como nos foram dadas. O
racionalismo é, em última instância, um desafio a
Deus: ao mundo imperfeito que Deus criou, o
homem opõe um mundo perfeito, construído por
ele mesmo; substitui-se a ordem natural por uma
ordem racional; prefere-se a racionalidade como
capacidade manipuladora e calculadora à
racionalidade como capacidade de apegar-se ao
Logos.
O racionalismo moderno quer construir uma ordem social artificial que,
dentre outras coisas, converterá o homem com seus desejos e projetos efêmeros
em suprema autoridade e fonte de toda lei e norma moral; um ser completamente
livre e absolutamente autônomo, sem deveres e obrigações éticas e religiosas.
Voltado unicamente para si mesmo, essencialmente egoísta e narcisista, e numa
constante e ansiosa busca por prazeres e divertimentos.[76]
Para o homem de direita, a existência humana reveste-se de um caráter
trágico e agonístico. A vida é um combate, uma luta sem tréguas contra a
desordem e o caos interno e externo. Viver comporta riscos, a existência do
homem neste mundo terrenal é concebida como uma aventura dramática, uma
espécie de campo de batalha repleto de provas, desafios e obstáculos.
Efetivamente, no imaginário e na simbólica da direita, as figuras arquetípicas do
herói, do cavaleiro, do santo e do asceta são bastante comuns. Contra o
hedonismo moderno, a visão de mundo da direita sustenta uma concepção
heróica e sacral da existência. Frente ao princípio do prazer e aos impulsos
oníricos e dionisíacos, a direita autêntica reivindica o princípio da realidade e da
ordem, a ordo societatis, bem como os perenes valores apolíneos do pudor, da
firmeza, do autocontrole e da temperança.



3 SIMBOLISMO UNIVERSAL DA DIREITA E DA ESQUERDA

Direita e esquerda é uma dicotomia que excede o universo da política.
São, especialmente, categorias ideológicas, cosmológicas e antropológicas, com
uma incontornável dimensão simbólica. Na verdade, essa polaridade, hoje
restrita ao campo da política, origina-se no universo dos mitos e da religião.
Como será visto neste capítulo, apresenta um vínculo com outras duas
dicotomias mais básicas: a oposição entre o sagrado e o profano e o antagonismo
entre espírito e matéria. Segundo o cientista social Dalmacio Negro Pavón
(1999), a relação direita e esquerda evoca o eterno conflito entre o cosmos – a
ordem – e o caos e, além disso, ainda que não seja uma categoria histórica,
constitui um dos pressupostos do movimento histórico e quiçá um requisito
fundamental de uma possível filosofia da história compatível com a teologia.
A polaridade em questão remete ao infindável e caudaloso problema das
relações entre o religioso e a política. Direita e esquerda foram primordialmente
símbolos metafísicos e religiosos que, com o surgimento da modernidade, foram
secularizados e politizados. Portanto, de símbolos espirituais tradicionais e
universais, transmutaram-se em categorias políticas modernas.

3.1 Etimologia e semântica

Direita e esquerda não são termos arbitrários, sem sentido e
simplesmente casuais e convencionais. Há uma significação profunda nesta
dualidade. A etimologia destas noções é altamente sugestiva. A palavra direita
tem origem indo-européia, mais precisamente nasce do sânscrito. Já o termo
esquerda tem uma origem desconhecida e sumamente problemática. O adjetivo
daksina, presente na língua hindu, tem o sentido de “direito”, “que está à
direita”, significando também moral, honesto, amável, cortês. Esse termo em
sânscrito para “direita” deriva da raiz daks, que se encontra num dos principais
livros sagrados da civilização indiana, o Rig-Veda, com a acepção de “ser
capaz”, “ser útil” e “servir”. Do termo daksina surgem outras expressões como
daksinatva que quer dizer retitude e sinceridade; daksinya que expressa as idéias
de habilidade, piedade, benevolência e civilidade. Há, ainda, o termo
daksinacara que designa o homem reto e leal. Por sua vez, a palavra em
sânscrito para esquerda é vama, que também tem o sentido de oblíquo, curvado,
malvado, vil. Do termo vama surgem palavras conexas como vamatva, que tem a
acepção de adversidade e oposição; vamacara significa má conduta; vamasila
que tem o sentido de mau humor e mau caráter e, por fim, vamabhasin que
expressa a idéia de hostilidade.[77]
Do sânscrito, a noção de direita passa para outras línguas indo-européias
como o grego e o latim. Em grego antigo, direita é dexiá, e direito dexiós.
Ambos os termos com a significação de oportuno, conveniente, prudente e sábio.
A palavra esquerda designa-se com o vocábulo aristerós, que expressa as noções
de imprudência, grosseria, estultícia, bem como incorreção e separação da ordem
legítima. Em latim, direita é dexter, termo que tem relação com decet, que é
conveniente, decente e decoro, e decus, que remete às noções de moralidade,
virtude e dever. Importante recordar que entre os romanos era sinal de amizade
apertar solenemente a mão direita com a direita (destras íungere) e estender a
mão direita era um ato de bondade e socorro (dextram porrigere). A esquerda,
em latim, é sinister, sinistra, laeva e scaevus, que significa adversidade,
infelicidade e incorreto. Interessante notar que, no latim, há também a palavra
sinisteritas, que significa inaptidão e desleixo. Cabe enfatizar que, na Idade
Média, ocorre a fusão de dois vocábulos latinos, dexter (direita) e rectus (reto,
retidão), dando origem ao termo direito (Siena, 2012). A noção de retitude,
originalmente ligada aos termos direita e direito, implica a idéia de lei, de uma
norma que se impõe e que precisa ser seguida.
A relação entre a palavra direita e direito é estreitíssima e reveladora. Em
francês, direita é droite e direito droit, usado não apenas com o significado de lei
e juridicidade, mas também para indicar alguém ou algo que é honesto, justo e
equitativo. Esquerda é gauche, que tem a acepção de torpe, torto. A expressão “à
gauche” quer dizer mal, sem fundamento, ao contrário. Outra expressão muita
usada é “donner à gauche”, que é errar, fazer o contrário de como se deve. Já
“prendre une chose à gauche” é interpretar mal, erroneamente. Sintomáticas são
as duas seguintes sentenças: “mariage du côté gauche”, que é a união de um
homem e uma mulher que não se ajusta à lei civil e religiosa; e “fils du côté
gauche”, que tem o sentido de bastardo.
Em espanhol, direita é derecha e direito é derecho. Derecho com a
significação de justo, fundado, legítimo. Muito usuais na língua espanhola são os
ditos: “a las derechas”, que é uma forma de dizer que uma pessoa age,
comporta-se, bem e corretamente; “ser el brazo derecho de uno”, que tem a
significação de ser uma pessoa de confiança. Esquerda é izquierda, sendo que
izquierdo quer dizer torto, não reto. Há, em espanhol, a palavra izquierdar, que é
apartar-se do que dita a razão e o juízo e manizquierda, que se refere às noções
de má sorte e desgraça. Interessante notar que a palavra diestro, destro em
português, é sinônimo de direito, hábil, expert em uma arte ou ofício. Por sua
vez, sinistro equivale a viciado, vício, infeliz e funesto.
Na língua italiana, direita é destra e direito é destro e diritto. Desses
termos deriva o vocábulo destrezza, que significa capacidade e habilidade. Além
disso, há a palavra dirittura, direitura em português, que significa retidão moral
e inteireza. Destaco também, que, nesta língua, consciência reta é dito coscienza
dritta. Esquerda é sinistra e esquerdo sinistro. Sinistro – esquerdo – com o
significado de desastre, já sinistra indica algo maléfico e perigoso (Siena, 2012).
No inglês, direita e também direito são denominados right, que sugerem
as idéias de reto, justo, verdadeiro e conveniente. Esquerda é left, que,
primordialmente, tinha o sentido de débil e sem valor. Algumas sentenças em
inglês são reveladoras: “left-handed”, quer dizer canhoto, mas também é usado
para designar alguém como torpe e inepto; “left-handed compliment” tem a
acepção de algo que se faz ou se cumpre com uma intenção maliciosa; “a left-
handed marriage” é um casamento ilegal, fictício, ou um concubinato. Na
língua inglesa, a palavra direito-direita (right) conserva o sentido primordial de
correção, de conformidade com uma ordem, de linha reta, ação justa,
pensamento verdadeiro, bons princípios. Isso fica evidente em frases como esta:
“the right man in the right place”, ou seja, o homem certo, apropriado, no lugar
certo, no lugar que lhe corresponde. A expressão sinister tem a conotação de
algo desonesto, desleal, corrupto, baixo e torto. No irlandês, direita-direito é
deas-des, que indica algo ou alguém decente, correto, elegante e belo.[78]
Na língua alemã, direito e direita são recht, exprimindo as noções de
destro, reto, justo, correto, conveniente e fiel. De recht derivam outros termos
correlatos como rechttun, que é fazer o bem, e rechtmässig (o mesmo que
rechtlich), que tem a significação de honrado e leal. Esquerda é link, de onde
provém linkisch, que é torpe, e links, que é mal, ao contrário.[79]
O português segue essa tradição semântica. Direito é sinônimo de justiça,
razoabilidade e correção. Direito é aquele ou aquilo que segue a linha reta, que
não se desvia, que não é curvo e oblíquo. Muito comuns, nesse sentido, são as
expressões “estrada direita” e “caminho direito”. Direita não tem apenas a
acepção de uma corrente política, mas também daquilo que é certo, correto e
reto. Cotidianamente, empregam-se frases como: “fulano é uma pessoa direita”,
“beltrano agiu direito”, “ciclano tem uma consciência direita”, “senta direito”,
“esta parede não está direita”. Direito, ainda, tem o sentido de verticalidade,
conforme define o dicionário Caldas Aulete (1964, p.1243): “[...] que está
vertical ou perpendicular ao horizonte; que não pende para lado nenhum;
levantado, aprumado, ereto: A velha não tremia, antes se tinha muito direita e
aprumada (Garret)”. O dicionário destaca que direita-direito equivale ao que é
reto, justo, equilibrado, honrado e integrado, citando outra frase do escritor
português Almeida Garret: “Pela direita razão assim deve ser. Se o administrar
justiça direita aos povos valia a pena de andar um desembargador a pé!”.
Ademais, a expressão “às direitas” refere-se a como algo deve ser, segundo a
razão ou a justiça determinam; opõe-se a “às avessas”. Há termos derivados
como direiteza, que diz respeito ao que é direito, à retidão e à inteireza. Já
endireitar é corrigir, emendar, retificar alguma coisa ou alguém. Endireitar é
encaminhar direito, é retomar o bom caminho e vencer as dificuldades. Por sua
vez, esquerda-esquerdo sugere algo que é torcido, torto e oblíquo. Segundo o
Caldas Aulete (1964), tem o sentido figurado de maljeitoso e desastrado. Há
vocábulos derivados como esquerdamente, que significa fazer de maneira
esquerda, desajeitadamente e esquivamente; e esquerdear, que tem acepção de
desviar-se do bom caminho, seguir mau rumo; e, ainda, esquerdecer, que é
proceder mal, fazer asneiras. Não poderia esquecer de citar aqui a sentença “um
zero à esquerda”, que diz respeito a uma pessoa sem graça, insignificante, que
não tem nenhum valor. No português, como em outras línguas neolatinas, existe
também a palavra destro com a significação de ágil e rápido e sinistro que indica
algo funesto.[80]
Em suma, como se pode perceber, em várias línguas indo-européias, mas
não apenas nessas, os vocábulos que designam direita-direito têm conotações
positivas. Etimológica e semanticamente, a direita é o que é justo, reto, correto,
conveniente, sincero, fundado, razoável e verdadeiro. Já a esquerda e o esquerdo
explicitam noções negativas, tais como sinistro, obscuro, torto, torpe, sem valor,
débil, incorreção, oblíquo, desafortunado e inepto.

3.2 Tradições metafísicas à direita e à esquerda

A riqueza e profundidade da polaridade direita-esquerda, contudo, não se
esgota em sua fascinante origem e evolução vocabular e em sua copiosa
semântica. Direita e esquerda são símbolos perenes e universais presentes em
diversas tradições míticas, sapienciais, metafísicas e religiosas de inúmeros
povos e culturas do Oriente e do Ocidente. Destaco que, ao contrário da visão
dominante na cultura moderna racionalista, não entendo os mitos e símbolos
como meras fantasias do inconsciente ou projeções ilusórias, irracionais e
delirantes, mas expressões e testemunhos de uma realidade superior, mais
profunda, invisível e essencial. Em muitos casos, a própria realidade “exterior”,
social e histórica é que pode ser percebida como uma corporificação, se não
mesmo um efeito e conseqüência, da realidade simbólica e mítica.
Na mais antiga das civilizações, a Suméria, já é possível constatar a
presença dessa dualidade simbólica. Os sumérios tinham um respeito e uma
estima especial pela mão direita: em suas orações, rezavam com a mão direita
levantada. Outros povos da Mesopotâmia também seguiam essa tradição, como
os caldeus. Na civilização egípcia, o Sol era concebido como o olho direito do
céu, a Lua como o olho esquerdo. Acreditava-se que o Sol exercia algum tipo de
influência sobre o olho direito dos homens; e a Lua, sobre o olho esquerdo.
Na tradição tibetana, de acordo com o texto esotérico dos Dzian, existem
no mundo duas fontes de poder e autoridade, a fonte da mão direita e a fonte da
mão esquerda. A fonte da mão direita localiza-se simbolicamente na mítica
cidade de Agharta, cujo chefe e guardião é o lendário “Rei do Mundo”.[81] Por
sua vez, a fonte da mão esquerda, que, entre outras coisas negativas, representa o
poder material, reside na cidade de Shambala, “a cidade da violência e do
terror”, comandada a ferro e fogo pelo “Rei do Temor”. O antagonismo é
evidente: da fonte da mão direita surge a autoridade legal, legítima, conforme o
direito, e da fonte da mão esquerda emerge um poder material tirânico baseado
no terror, no medo e na violência. Na antiga China, empregava-se a expressão
“caminho da esquerda” às práticas rituais e religiosas heterodoxas, que se
distanciavam e transgrediam o “caminho da direita”, ou seja, a via simbólica da
ordem, da lei e da moralidade.
Semelhante tradição é encontrada no tantrismo hindu. Nesta tradição
espiritual, há fundamentalmente duas orientações opostas: “daksinacara”,
literalmente a via da mão direita, e vamacara, que é a via da mão esquerda.
Ambas conduzem à libertação espiritual, mas por técnicas e métodos diferentes.
A via da mão direita respeita escrupulosamente as normas religiosas tradicionais,
já a via da mão esquerda envolve não apenas a ruptura com as normas
tradicionais, mas, principalmente, a prática de atos contrários e “desviantes”. O
tantrismo da “mão esquerda” caracteriza-se pelo panca tattva, que consiste numa
orgia coletiva ritualizada com o uso de substâncias entorpecentes e a prática de
atos proibidos no hinduísmo ortodoxo, como o vinho, a carne, o pescado, os
cereais e a fornicação. Na Índia dravidiana e ariana, como em praticamente todas
as culturas antigas, a direita tinha primazia. A direita opunha-se à esquerda,
como o puro antagonizava com o impuro, o reto com o curvo, o nobre com o vil,
a retitude com a baixeza, o bem com o mal, o normal com o anormal, o legal
com o ilegal, a ordem com a desordem, o ativo com o passivo, o sagrado com o
profano. Na Índia tradicional, a direita é a mão mais nobre. É ela a mão
considerada adequada para os atos rituais e as cerimônias religiosas. Em tudo
que se relaciona com a cortesia e os formalismos sociais, orienta-se que a mão
direita seja a protagonista. Além disso, somente a parte pura do corpo, acima da
cintura, pode ser tocada por ela. Ao contrário da mão direita, a mão esquerda é
concebida como impura. Não pode ela ser utilizada para tocar a parte nobre do
corpo, acima da cintura, com a exceção de usá-la para certos atos considerados
impuros, tais como limpar os olhos e os ouvidos e assoar o nariz. Proíbe-se que a
mão esquerda toque os alimentos. Interessante notar que as qualidades atribuídas
à mão direita se projetam a toda parte direita do corpo; em contrapartida, tudo o
que há de negativo e vil na mão esquerda estende-se à parte esquerda do corpo.
Mais do que isso, não apenas a mão direita e o lado direito do corpo humano são
considerados nobres e puros, mas tudo aquilo que esteja situado à direita de um
ponto de referência.
Entre os gregos, a preferência pela direita e o seu vínculo com as forças
celestiais e da ordem, assim como a sua relação com o sagrado, era também a
regra.[82] Na verdade, em toda a simbologia helênica, a direita é o lado bom e a
esquerda o lado mau. A religião olímpica e urânica privilegia o lado direito. Para
citar um exemplo: a espiral de destruição, atributo do deus Poseidon, gira em
direção ao lado esquerdo, enquanto que a espiral criadora, representada pela
figura da deusa Palas Athena, gira até a direita. A dexiofilia[83] dos gregos é
incontestável, estando presente nas criações literárias dos poetas e trágicos,
como também entre os filósofos. A famosa tabela de oposições dos pitagóricos
que representa as forças e os princípios que constituem e equilibram o universo,
presente na Metafísica de Aristóteles, é instigante:
Pares de opostos
Formado Informe
Ímpar Par
Unidade Pluralidade
Direito Esquerdo
Masculino Feminino
Repouso Movimento
Reto Curvo
Luz Obscuridade
Bem Mal
Quadrado Oblongo

É fácil notar que, nesses pares de opostos, o princípio primeiro é superior
ao segundo, desse modo tendo primazia e maior nobreza, de maneira que, ao
termo direito da díade, correlaciona-se tudo aquilo que é formado e tem uma
forma, que apresenta unidade, que é reto, bom, luminoso, que está em repouso e
é masculino. O vínculo entre a direita e o masculino, bem como a suposta
superioridade do macho em relação à fêmea, é inequívoco na cultura grega
clássica.
Em sua obra máxima A República, Platão relata, na parte que trata sobre
o mito do julgamento dos mortos (mito de Er), que os juízes ordenam que os
homens bons em vida tomem o caminho da direita e subam ao céu, levando
consigo o testemunho da sentença; já os homens maus são ordenados a dirigir-se
até a esquerda e a descer para a terra. Platão, da mesma forma que os
pitagóricos, associa o bem com a direita, o alto com o que está à frente (adiante);
a esquerda, em contrapartida, é relacionada com o mal, o baixo, o que está atrás.
No livro As Leis, o filósofo identifica o par com o lado esquerdo e os deuses da
terra, e o ímpar e o direito com os deuses do céu. Seguindo os passos de seu
mestre, Aristóteles sustenta que o lado direito do corpo de qualquer espécie
animal é mais perfeito que o lado esquerdo, pois seria irrigado com sangue mais
quente. Isso se explicaria pelo fato de que das três cavidades – que, de acordo
com o estagirita, existem no coração – a mais quente e que contém mais sangue
é a cavidade da direita. Essa diferença de temperatura seria maior no ser
humano; assim, o coração, que em outros seres está no centro do peito, no
homem encontra-se levemente mais à esquerda, compensando, desse modo, o
esfriamento deste lado. Aristóteles também afirma que os homens e os animais
iniciam seu movimento a partir da direita, acrescentando que os animais
preferem usar as partes do lado direito do corpo; por conta disso a natureza teria
dotado este lado do organismo com mais perfeição e força. A chamada
desteridade[84] seria ainda mais intensa nos humanos devido à maior nobreza e
natural superioridade da direita e do lado direito, em relação à esquerda. O
matemático e filósofo Simplício, estudioso de Aristóteles, chega a afirmar no seu
comentário ao De Caelo do estagirita: “[...] Antes de tudo são a direita e a
esquerda que se associam a idéia de bem e de mal; o alto e o baixo, a frente e
atrás [...]”.
Os romanos seguem esse simbolismo. Com a direita, realizava-se a
conhecida saudação romana, na qual se conjugavam simultaneamente as três
referências espaciais mais importantes para o homem clássico: a direita, o
adiante (para frente) e para cima (para o alto). Como já referido, a direita é ainda
a mão dos juramentos. Uma célebre fórmula romana para os juramentos, citada
por Tito Lívio, declarava: “Date dextras fidemque...”. Nas cerimônias e rituais,
privilegiava-se o uso da mão direita; no ato matrimonial, uniam-se as mãos
direitas de ambos os nubentes. A mão direita, especialmente, representava a
força e a coragem. Além do mais, a direita era o símbolo e o assento da deusa
Fides, que personificava a boa-fé que deveria presidir os atos públicos e
privados. Assim como os poetas e sábios gregos, os romanos, mediante as obras
de Cícero, Virgílio, Catão, Cátulo, Ovídio e Plínio, confirmavam a equivalência
da direita com qualidades positivas como o bem e da esquerda com os aspectos
negativos da realidade como o mal (Siena, 2012). Virgílio, em Eneida, narra a
descida do herói Enéias ao reino dos mortos. Logo em sua caminhada iniciática,
o personagem vê o caminho se bifurcar; o caminho da direita conduz aos
Campos Elíseos, morada dos bem-aventurados, e o caminho da esquerda conduz
ao Tártaro, onde os malvados e viciosos homens sofrem os mais terríveis
castigos.
A tradição cristã é rica em imagens e metáforas que remetem a essa
polaridade. Nos Evangelhos, múltiplas são as passagens que relacionam a direita
com forças e qualidades positivas e a esquerda com forças negativas e maléficas.
Em Mt 5:29-30, Cristo afirma: “Se o teu olho direito te leva a pecar, arranca-o e
lança-o fora de ti; pois te é mais proveitoso perder um dos teus membros do que
todo o teu corpo ser lançado no inferno. E, se tua mão direita te fizer pecar,
corta-a e atira-a para longe de ti; pois te é melhor que um dos teus membros se
perca do que todo o teu corpo seja lançado no inferno”. É importante salientar
que os autores cristãos que realizaram a exegese dessa passagem explicaram que
o olho direito é o conselheiro do homem nas coisas divinas, já o olho esquerdo é
o conselheiro do homem nos assuntos humanos. Além disso, a mão direita é
considerada como a indicada para a realização das boas obras e a mão esquerda é
a recomendada para a execução das atividades necessárias à manutenção do
corpo. O simbolismo da mão direita e mão esquerda reaparece em Mt 6:3. Cristo
diz: “Tu, porém, quando deres uma esmola ou ajuda, não deixes tua mão
esquerda saber o que faz a direita”. Em Mt 25:31-46, descreve-se o juízo final
em que os bem-aventurados são colocados à direita de Deus e os condenados à
sua esquerda. Orígenes, teólogo da Patrística grega, assim interpreta essa
imagem: “[...] os que fizeram obras direitas receberam como prêmio de suas
obras direitas a direita do Rei, na qual está o descanso e a glória; [...] os maus
por suas obras péssimas e sinistras, caíram na sinistra, isto é, na tristeza dos
tormentos”.
Em Mt 16:5, é narrado que as santas mulheres, ao entrar no sepulcro,
encontraram o túmulo de Cristo vazio, contudo viram sentado, ao lado direito,
um jovem, e este anunciou a ressurreição. São Gregório Magno, ao comentar
esse trecho dos Evangelhos, esclarece: “Que significa a esquerda senão a vida
presente, e a direita senão a vida eterna?”. Outro intérprete da Patrística,
Severino, explica que o jovem se encontra à direita porque na “ressurreição não
há nada da esquerda”, ou seja, nada de negativo, mau e inferior. Em Sl 117:6,
consta: “A mão direita do Senhor fez maravilhas”. Famoso, também, é o
seguinte trecho em Mc 16:19: “Depois que o Senhor Jesus lhes falou, foi levado
ao Céu e está sentado à direita de Deus”. Em outros textos cristãos essa
polaridade é destacada. A Didaqué, o primeiro catecismo dos cristãos, assevera
de maneira direta: “[...] sabereis distinguir a direita da esquerda, ou seja,
conhecer o bem e o mal” (Bazán, 2001).
O episódio histórico e simbólico de Cristo crucificado entre dois ladrões
é interpretado por Beda[85], o Venerável, deste modo: o ladrão crucificado, ao
lado esquerdo de Jesus Cristo, é o modelo dos que se esforçam apenas para
alcançar o sucesso e os aplausos humanos; o ladrão da direita exemplifica os
homens que lutam pela glória celestial.
A grande literatura cristã da mesma forma tratou dessa polaridade. Em A
divina comédia, a travessia de Dante e de Virgílio em direção à sede de Satanás é
feita dobrando sempre à esquerda; por seu turno, quando ambos ascendem até
Deus, tomam o caminho da direita. O escritor espanhol Francisco de Quevedo
refere-se aos caminhos da direita e da esquerda em El Sueño del Infierno,
caracterizando o caminho da direita como a rota difícil e pouco transitada da
virtude; por sua vez, o caminho da esquerda é concebido como a estrada dos
prazeres e da licença. O primeiro é o caminho do Céu e da salvação, o segundo o
do inferno e da danação eterna. A direita simbolizaria a senda da virtude, e a
esquerda, a senda do pecado e da perdição. Na Baixa Idade Média, surge, na
Inglaterra, a expressão right way, representando a idéia da existência de um
caminho da retidão moral e da salvação espiritual. O caminho da direita seria,
dessa maneira, o caminho reto. Por sua vez, as sentenças “left-hand way” e “left-
hand road” indicariam o caminho do desvio moral e da perdição.[86]
O livro do Gênesis narra a criação de Eva a partir de uma das costelas de
Adão, mais propriamente da costela esquerda desse personagem bíblico central
na tradição judaico-cristã. É relevante e sintomático que o sexo feminino, a
mulher, tenha sido criada com uma espécie de material proveniente do lado
esquerdo do corpo masculino. Segundo o etnógrafo Hertz (1980, p. 115): “[...]
uma única e a mesma essência caracterizam a mulher e o lado esquerdo do
corpo. É matéria das duas partes de um ser fraco e indefeso, algo ambíguo e
inquietante, destinado pela natureza a um papel passivo e receptivo [...]”.
Para os gnósticos, as categorias de direita e esquerda têm um sentido
cosmológico, representando, respectivamente: os psíquicos e cristãos e os hílicos
ou materiais, pagãos e incrédulos em geral. Os Extractos de Teodoto
conservados por Clemente de Alexandria afirmam: “[...] Sofia emite um Deus,
imagem do Pai, por cujo intermédio criou o céu e a terra, ou seja, os seres
celestes e terrestres, os da direita e os da esquerda”. Seguindo essa mesma
orientação doutrinária o Evangelho de Felipe diz: “A luz e as trevas, a vida e a
morte e os que são da direita e da esquerda são irmãos entre si. Não é possível
separá-los[...]”. Entre os ofitas, seita gnóstica encontrada na Síria e no Egito, por
volta do ano 100 d.C., a direita era associada com o que se eleva e tende para o
alto, a esquerda com o que vai para baixo (Bazán, 2001).
Interessante notar que nas lojas maçônicas há sempre uma representação
do Templo de Salomão, que apresenta, em sua parte frontal, duas expressivas
colunas de cobre. Os dois pilares de sustentação dos templos maçônicos recebem
os nomes de Jachin e Boaz, filhos do arquiteto Hiram Abiff, construtor do
templo na cidade sagrada de Jerusalém. A coluna da direta, Jachin, simboliza as
forças viris, ativas, masculinas, luminosas, o bem, assim como o orbe celeste. A
coluna da esquerda, Boaz, personifica as forças femininas, passivas, obscuras e
nefastas, bem como o mundo terrestre. O Sol é identificado com Jachin, e a Lua
com Boaz (Hutin, 1954).
No judaísmo, a direita é o lado do bem, e a esquerda é o lado do mal. No
Antigo Testamento, mais precisamente em Ecl 10:2, há uma passagem
esclarecedora: “O coração do sábio se inclina para o lado direito, mas o do
estulto, para o da esquerda”. O Zohar, livro mais importante da Cabala, a mística
judaica, associa a esquerda com o inferno, a discórdia e a desordem, e a direita
com a unidade e a harmonia (Laponce, 1981). Como em outras culturas, os
antigos hebreus acreditavam na prevalência da mão direita; ela era considerada
como a mão do poder e da força, como fica explícito em algumas passagens
bíblicas que ressaltam ser a mão direita a que quebranta o inimigo, sustenta o
crente, salva-o, faz proezas e atos de valentia. A tradição judaica ainda assevera
que Deus sustenta o céu com o braço direito e a terra com o braço esquerdo.[87]
O islamismo, igualmente, sustenta a identificação da direita com o
superior e o bom, e da esquerda com o inferior e maléfico. O Alcorão refere-se
“aos da direita” como os homens bem-aventurados, e “aos da esquerda” como os
condenados. Assim como os gregos, os muçulmanos voltam-se para o lado
direito para rezar. Além disso, evitam tocar os alimentos com a mão esquerda,
reservada para as tarefas “imundas”, como tocar certas partes do corpo. Mais
ainda: é com o pé direito que se faz a entrada nos lugares sagrados e,
curiosamente, a palavra árabe para juramento é jamîn, que tem o sentido literal
de a direita. Os dervixes, místicos sufistas, em suas danças rituais, levantam a
mão direita com a palma para cima para receber as bênçãos do céu, enquanto
que a mão esquerda está dirigida para baixo com o objetivo de transmitir as
dádivas para a terra.[88]
O antropólogo Robert Hertz refere, em seu estudo A Preeminência da
Mão Direita: um estudo sobre a polaridade religiosa (1980), que mesmo entre
os povos ditos primitivos nota-se a existência do simbolismo que relaciona a
direita com a força física, a retidão intelectual, a honradez e a integridade moral.
Entre os maoris, por exemplo, o direito é o lado sagrado, a sede dos poderes
bons e criativos; o esquerdo é o lado profano, vinculado a poderes perturbadores
e suspeitos. Os índios da América do Norte podem comunicar-se sem dizer uma
palavra, usando apenas gestos e movimentando a cabeça e os braços. Para eles, a
mão direita representa o eu, e a esquerda, o não eu, os outros. Com a finalidade
de expressar a idéia de alto, esses índios levantam a mão direita acima da
esquerda, que se mantém horizontalmente e imóvel. A mão direita significa
bravura, virilidade, poder; e a esquerda, morte, destruição e enterro. Entre as
tribos do sul da Nigéria, é terminantemente proibido que as mulheres utilizem
suas mãos esquerdas quando cozinham, sob a ameaça de serem acusadas de
envenenamento ou mesmo feitiçaria. A mulher jamais pode tocar seu marido
com essa mão. A mão esquerda é usada exclusivamente para as tarefas impuras e
desagradáveis.
No antigo Sudão, o homem utilizava a mão esquerda durante a união
sexual, porque o lado esquerdo era visto como o lado feminino. Já a mulher
usava a mão direita para realizar a sua higiene íntima. De um modo geral, os atos
“viris”, masculinos, eram executados com a mão direita; por sua vez, os atos
relacionados com “a feminilidade espiritual” eram feitos com a mão esquerda.
Cabe sublinhar que o Sudão fora no passado uma sociedade matriarcal
(Dieterlen, 1971).
Como foi visto ao longo desta exposição, à mão direita está reservado o
papel de comunicar-se com as forças espirituais e com o sagrado. É essa parte do
corpo humano que executa as atividades devocionais, cerimoniais e rituais. É
através da mão direita que o homem presta juramentos, cumprimenta e sela
amizades, conclui contratos como o casamento, dá assistência e auxílio,
consagra objetos e lugares. Em contrapartida, a mão esquerda ocupa-se com
situações e atividades ligadas à faceta demoníaca e soturna da existência. É ela
usada nos rituais funerários e de exorcismo. A mão esquerda é a mão da traição,
do perjúrio e da fraude, conforme explica Hertz (1980, p. 117):
Se a mão esquerda é desprezada e humilhada no
mundo dos deuses e dos mortos, ela tem o seu
reino onde é a senhora e onde a mão direita é
excluída; mas esta é uma região mal afamada. O
poder da mão esquerda é sempre algo oculto e
ilegítimo, inspira terror e repulsa. Seus
movimentos são suspeitos; nós gostaríamos que
permanecesse quieta e discreta, escondida nas
dobras da vestimenta para que a sua influência
corrompedora não se espalhasse. Como as pessoas
no luto, envolvidas pela morte, têm que se cobrir
com véus, negligenciar seus corpos, deixar seu
cabelo e suas unhas sem serem cortadas, ela é
menos lavada do que a outra. Assim, a crença
numa profunda disparidade entre as duas mãos às
vezes chega até a produzir uma assimetria física
visível.
Segundo o antropólogo francês, a mão esquerda é a mão amaldiçoada.[89]
Nas culturas antigas, os indivíduos com a mão esquerda muito ágil e habilidosa,
como, por exemplo, os canhotos, eram vistos de maneira suspeita como alguém
que infringia a ordem normal e correta, sendo, possivelmente, dotado de uma
disposição perversa e diabólica. Por sua vez, a prevalência da mão direita e a
repugnância em adquirir o que seja da mão esquerda eram sinais de uma alma
associada com o divino e imune ao profano e impuro. Hertz (1980) infere que os
santos cristãos em seu berço eram tão piedosos que recusavam o seio esquerdo
de suas mães. A mão esquerda sempre fora a mão reprimida, paralisada e
controlada, com a finalidade de assegurar a proeminência da mão direita e,
simbolicamente, fazer predominar o sagrado sobre o profano, o bem sobre o mal,
o puro sobre o impuro.
Contudo, nos últimos séculos testemunha-se uma mudança radical e
revolucionária: a tendência, quase que incoercível, de nivelar e igualar o valor
das duas mãos. Acerca dessa propensão, própria da cultura moderna e
contemporânea, declara Hertz (1980, p. 125): “As idéias religiosas antigas que
colocam uma distância intransponível entre coisas e seres, e que, em particular,
fundou a preponderância exclusiva da mão direita, estão hoje em retirada
completa”. O renomado etnólogo conclui seu ensaio com uma frase insinuante e
sugestiva, reveladora de certas inclinações intelectuais e culturais hoje
dominantes:
Se a coação de um ideal místico foi capaz por
muitos séculos de fazer do homem um ser
unilateral, fisiologicamente mutilado, uma
comunidade liberada e perspicaz se empenhara em
desenvolver melhor as energias adormecidas no
seu lado esquerdo e no nosso hemisfério cerebral
direito, e em assegurar, por um treino apropriado,
um desenvolvimento mais harmonioso do
organismo (Hertz, 1980, p. 125).
A psicologia e a psicanálise, em algumas de suas escolas, igualmente
reconhecem o simbolismo da polaridade direita-esquerda. Conforme mostra
Martinez (1974), muitos psicólogos e psicanalistas consideram a preferência
pelo lado direito como um conteúdo normal do inconsciente. Para Freud, há um
“caminho da direita” que tem o sentido do caminho direito e um “caminho da
esquerda” associado ao delito e à transgressão. Ressalto ainda que, segundo o
criador da psicanálise, a direita pode simbolizar a heterossexualidade e o
matrimônio, e a esquerda, a homossexualidade, o incesto e a perversão. Outro
psicanalista, Otto Fenichel, esclarece que as chamadas paralisias histéricas
afetam mais comumente o lado esquerdo. Essas paralisias seriam uma reação
orgânica e psicológica contra atos sexuais censuráveis que o inconsciente
relaciona com a sinistra.
O metafísico René Guénon explica que o caminho da direita é o famoso
“caminho estreito”, que conduz ao Reino de Deus; e o caminho da esquerda, o
caminho largo que leva à perdição e aos vícios:
Esses dois caminhos, o da direita e o da esquerda
[...], que os pitagóricos representavam pela letra Y,
aparecem também sob uma forma exotérica, no
mito de Hércules entre a virtude e o vício. São os
mesmos dois caminhos que a tradição hindu, por
seu lado, designa como o “caminho dos deuses”
(dêva-yâna) e o “caminho dos antepassados” (piri-
yâna). [...] Enfim, esses dois caminhos são ainda,
em certo sentido, tal como as portas pelas quais se
tem acesso a eles, os caminhos dos céus e dos
infernos. E podemos notar que os dois lados aos
quais correspondem, à direita e à esquerda, são os
mesmos em que se dividem os eleitos e os
condenados nas representações do Juízo Final que,
por uma coincidência muito significativa,
encontram-se com grande freqüência nos portais
das igrejas, e não em outra parte qualquer do
edifício (Guénon, 1993, p. 114).
Direita e esquerda expressam, simbolicamente, os dois pólos da vida
espiritual e moral. A direita representa o aspecto apolíneo da realidade, ou
melhor, tudo aquilo que expressa a racionalidade, a norma, o natural, a ordem, a
harmonia e a proporção. A esquerda representa a dimensão dionisíaca da
existência, isto é, forças e atributos associados com a irracionalidade, a
desmesura, a desordem, o caos, o informe, a anormalidade, a confusão e o
desequilíbrio.
O filósofo russo Nicolas Berdiaeff (1978) lembra que, na ordem social,
assim como no universo, ocorre um embate entre o princípio cósmico e o
princípio do caos, entre a dimensão apolínea e a dimensão dionisíaca do real. Em
uma sociedade normal, o princípio cósmico – apolíneo – tem a capacidade de
conter e frear os elementos caóticos, dionisíacos. O princípio apolíneo da ordem
social é aristocrático e hierárquico; por sua vez, o princípio dionisíaco é
democrático, igualitário e atomístico. O domínio irrestrito do princípio
dionisíaco conduz à desordem e à confusão geral. A primazia do dionisíaco na
realidade social despersonaliza, massifica e degrada, como explica Berdiaeff
(1978, p. 56):
O ser da pessoa supõe na verdade diferenças e
distâncias, formas e fronteiras. O dionisismo
revolucionário destruiu tudo isso, e, por
conseqüência, é profundamente hostil ao indivíduo,
cujo rosto não reconhece nem conhece. Quando a
Igreja cristã iniciou o combate contra a
demonolatria elemental, protegeu esse rosto,
imagem e semelhança de Deus; ajudou o homem a
permanecer erguido. Este culto dos demônios, em
forma secularizada, se apoderou novamente do
homem em todas as revoluções e o desgarra. O
princípio da pessoa está ligado ao princípio
hierárquico, surge e se desenvolve no cosmos;
perece no caos. É essencialmente aristocrático,
supõe distâncias, não tolera a confusão caótica, o
desordenamento plebeu de todas as fronteiras e
diferenças. É um princípio qualitativo; e
precisamente esta qualidade não pode ser
reproduzida e não admite mesclas quantitativas.
[...] A aparição no mundo do princípio aristocrático
foi conseqüência de um combate da luz contra as
trevas, significou o nascimento da pessoa, a
liberação do espírito. O dionisismo revolucionário
[...] foi e sempre será uma vitória momentânea da
quantidade que desbarata os contornos de rostos e
imagens, o surgir das trevas da plebe sem rosto e
sem forma.
A esquerda encarna o mundo da matéria, do efêmero, da passividade e da
pura potencialidade, ou seja, o mundo do devir, da mudança incessante e do
movimento febricitante. Disso se dá o materialismo teórico e prático da
esquerda. Recordo que a palavra matéria deriva do latim mater, que tem também
o significado de mãe. Ora, as sociedades matriarcais do passado eram estruturas
sociais igualitárias, fraternais, promíscuas e comunistas, em que os valores da
personalidade e da individualidade eram secundários e acessórios diante dos
poderes absorventes e dissolventes da Mãe-Terra (Gea-Gaia) – que eram as
divindades femininas cultuadas nessas culturas primitivas. Para a deusa mãe,
todos os seus filhos são iguais, não havendo qualquer tipo de diferenciação e
distinção. Todos os seres, de acordo com essa cosmovisão, originam-se do
“ventre da terra” e, após uma existência passageira, dissolvem-se nela.
Civilização essa, cabe destacar, na qual a dimensão naturalística, material e
sensual da existência ocupava uma posição central, pois o princípio “maternal-
telúrico” era visto como a força geradora e matricial. Em suma, há um laço sutil
que une esquerdismo, materialismo, igualitarismo e matriarcado. De modo que,
em linhas gerais, a defesa, por parte da esquerda, do feminismo e do
igualitarismo, enraíza-se, em última instância, numa visão idealizada e romântica
das sociedades ginecocráticas, cujo papel de chefia e comando pertencia às
mulheres. Até certo ponto, o coletivismo, o socialismo e o comunismo podem
ser vistos como formas secularizadas dos antigos ideais e cultos presentes nas
civilizações matriarcais, principalmente quando se leva em consideração o
rechaço à individualidade e a negação de qualquer forma de distinção e
diferenciação existente nessas ideologias e culturas.
A polaridade direita e esquerda pode ser vinculada à dualidade forma e
matéria presente na metafísica clássica: a forma apresentando o significado de
espírito, e a matéria tendo o sentido de natureza e fisicalidade. A forma é, dessa
maneira, o princípio espiritual ordenador que conduz, dispõe, retifica e eleva o
princípio matéria a uma condição superior. É o que propriamente formata a
matéria, dando-lhe um caráter determinado e específico, livrando-a de seu estado
informe e indiferenciado. A direita, simbolicamente, pode ser assimilada a essa
força ordenadora, formadora, determinadora e limitadora, em oposição à
esquerda, que se relaciona com o elemento puramente material, físico e
indeterminado do ser. Assim, se na estrutura mais profunda do real a forma é
superior, tendo primazia sobre a matéria, o normal e correto é que, na relação
metapolítica e hierárquica entre a direita e a esquerda, a direita tenha primado,
ficando a esquerda numa posição subordinada. A alteração dessa hierarquia, com
a primazia da esquerda e, portanto, da matéria, da natureza física, do informe e
indeterminando, explica boa parte das perversões do mundo contemporâneo. O
elemento material e informe do real liberto de qualquer princípio superior
ordenador torna-se uma força corrosiva e desintegradora.

3.3 Inversão dos sentidos

É surpreendente que, apesar de toda essa tradição semântica e simbólica
adversa e negativa, os termos esquerda e esquerdismo, já há algum tempo,
tenham adquirido um sentido positivo, benéfico e superior, quando,
tradicionalmente, sempre e em toda parte foram simbolizados como um
princípio maligno. Parcialmente, essa inversão de sentidos tem origem no
trabalho astuto e sagaz de adulteração da linguagem conduzido pelos
esquerdistas. Faina de adulteração lingüística e de inversão dos símbolos que,
segundo Guénon (1945), tem algo de diabólico, pois se atribui ao simbolismo
ortodoxo – no caso aqui estudado, a identificação da direita com o direito e a
ordem e da esquerda com o torto e a desordem – uma interpretação ao contrário,
ao revés, do que é na realidade; atividade torpe de deformação que, não por
acaso, somente poderia ser conduzida por sinistros agentes especialistas na
disseminação da confusão e do erro. Mas, especialmente, esse fato deve-se ao
gradual e lento processo esquerdizante que marca a histórica cultural e
ideológica do Ocidente nos últimos séculos. A cultura moderna e
contemporânea, em seus aspectos artísticos, doutrinários, filosóficos e
comportamentais, está amplamente esquerdeada, submetida aos dogmas e mitos
progressistas, assim como as idéias e os traços que caracterizam essa
cosmovisão: o amoralismo cínico, o ceticismo radical, o hipercriticismo, o
igualitarismo, o negativismo e a tolerância irresponsável para com todos os tipos
de posicionamentos, atitudes e opiniões, mesmo os mais incoerentes, absurdos e
bizarros.[90]
Jacques du Perron (2004) destaca que há uma perfeita identificação do
pensamento moderno com o pensamento de esquerda. Ambos partem das
mesmas crenças no progresso e numa visão ascendente e evolutiva da história,
na fé nas possibilidades infinitas da técnica e da ciência, da mesma aspiração à
igualdade, de semelhante busca pela satisfação de todos os desejos, da procura
ansiosa pela paz universal e pela felicidade. Na verdade, a partir da Renascença
e da Reforma, que marcam o nascimento do mundo moderno, todo um conjunto
de eventos e circunstâncias vai contribuir para a expansão das forças de
esquerda: o declínio das duas primeiras “ordens” ou estamentos sociais (o clero e
a nobreza), seguido do processo de “regressão das castas”, o desenvolvimento
das cidades e das trocas comerciais em detrimento da agricultura e a ascensão da
casta dos mercadores, que provocará a expansão da lógica econômica. Em
síntese, a entrada em um mundo antitradicional que rejeita os valores da
verdadeira direita. É sobretudo no século XVIII que a modernidade começa a
afirmar-se em todos os domínios e em um sentido absolutamente contrário ao
espírito da direita tradicional. Vale lembrar que esse é o século da Revolução
Industrial e do desenvolvimento do capitalismo. No domínio das idéias, observa-
se, nesse século, o triunfo da razão, que os revolucionários franceses
transformaram numa nova divindade, bem como a aparição dos intelectuais, dos
chamados philosophes, que produziram obras e divulgaram idéias de evidente
caráter subversivo.
Cada vez mais se distanciando da ordem e de estruturas hierárquicas e
sacrais em direção ao informe, oblíquo e caótico, a sociedade ocidental assinou
seu atestado de morte, escolhendo erigir um arremedo de civilização
essencialmente antitradicional e anticristã. Na verdade, uma anticultura
caracterizada por uma doentia agitação, fluidez e instabilidade, pelo
desregramento e a falta de medida, assim como por uma permanente e voraz
sede de novidades e mudanças.[91] A ojeriza à ordem transcendente, a
necessidade de negar, desfigurar e devastar o que há de superior na natureza
humana e no mundo da cultura, e o empenho titânico de decompor e arruinar a
“coluna”, símbolo da elevação do homem à altura do divino, comove e excita os
bárbaros – propulsores da desordem regressiva:
Há várias maneiras de atentar contra a nobreza de
uma coluna, isto é, da ordem que, desde os tempos
dóricos, rege a arquitetura de pedra, assim como a
arquitetura do espírito da Europa. Pode-se jogá-la
no lamaçal do desprezo e ficar indiferente à sua
elevação que exalta o céu; pode-se maculá-la com
um tag [etiqueta] cólera que mostra toda a
infelicidade da terra; pode-se manchá-la com uma
palavra que é uma afronta à língua dos deuses;
pode-se, enfim, diminuí-la pelo pensamento
esquecendo que foi edificada à medida do homem.
A cada volta, a barbárie do olhar ou do gesto
recusa, na coluna, todo o poder do tempo e toda a
memória do mundo (Mattéi, 2001, p.241).
Ora, o esquerdismo não é somente um hábito intelectual ou um vício
mental, mas é, acima de tudo, uma doença espiritual, uma pneumopatologia –
utilizando uma expressão de Schelling –, a doença da estupidez[92] que provoca
desordem na alma e na sociedade. Trata-se, segundo Eric Voegelin (2008), de
um tipo de “estupidez inteligente”,[93] caracterizada por um distúrbio no
equilíbrio do espírito. Não é uma falha ou defeito da mente ou de raciocínio, mas
uma deformação do espírito que leva o homem a uma atitude de revolta,
afirmando coisas e tomando atitudes contra o espírito. Nestes casos, o indivíduo
ou mesmo um grupo ou coletividade age com base numa imagem defeituosa da
realidade, padece de uma “perda da realidade”, uma vez que está privado da
autoridade do espírito, encontrando-se enclausurado em si mesmo, e, dessa
maneira, fechado ao fundamento divino do ser.
O “caminho da esquerda” é a via simbólica da dissolução da consciência,
da desintegração da realidade, da anomia, da despersonalização, da destruição de
todos os laços e vínculos e de transgressão de toda norma e lei. Trata-se, em
suma, da via perigosa e funesta que desmantela, nos homens, o sentido da
decência, da retidão e da normalidade. Debilitando e demolindo o senso comum,
assim como um conjunto de virtudes e sentimentos humanos essenciais como o
amor, a amizade, a solidariedade, a generosidade, a integridade, a honestidade, a
honra, o decoro, a lealdade, o caráter, a prudência e a disciplina, que colaboram
para a formação de uma sociedade harmônica e ordenada.
O projeto político e ideológico da esquerda contemporânea,
principalmente em suas vertentes pós-modernistas, libertárias e próximas à new
left,[94] faz da inversão valorativa e das relações hierárquicas, tal como a violação
das fronteiras e dos limites morais e culturais, não a exceção, mas a regra. A
cultura pós-moderna é justamente caracterizada pela generalização da
anormalidade e do disforme, pela irrupção da desordem e da confusão em todos
os domínios da existência. É a aniquilação planejada, pelas forças da
subversão[95] e da barbárie, de toda norma, padrão de excelência, modelo e
critério superior, conforme sublinha Jean-François Mattéi (2001, p. 267):
Vivemos a época paradoxal de uma cultura que
abandonou toda a referência a uma norma, exceto a
norma da ausência de norma, a norma da
anormalidade. Para retomarmos a palavra de
Augusto Comte, “tudo é relativo, eis o único
princípio absoluto”.
Ao tomar a “via da esquerda”, a civilização ocidental optou
deliberadamente pela barbárie interior e exterior e pelo niilismo, pela edificação
de um mundo i-mundo, sem sentido e vazio, segundo o penetrante diagnóstico de
Jean-François Mattéi (2001, p. 160):
Recusando o duplo enraizamento da terra e
do céu, quer dizer, negando que o
pensamento possa edificar um mundo
humano em direção ao alto deixando
embaixo desse mesmo pensamento a
desordem das pulsões, o que define o ato
próprio de civilização como sujeição da
barbárie, o sujeito moderno se abandona ao
seu próprio peso sem o contrapeso da luz.
Parece que agora, diante dos dados expostos neste capítulo, fica mais
claro o porquê do rechaço, da ocultação e da caricatura da direita pela esquerda.
Em tempos sinistros e sombrios como o atual, faz-se necessário resgatar a
dimensão simbólica e metapolítica da direita. Direita da tradição, que tem como
principal ponto de referência a realidade transcendente e cuja meta suprema é a
busca permanente pela ordem correta da alma e da sociedade.




4 A GRANDE TENTAÇÃO DA DIREITA MODERNA: O
LIBERALISMO

A direita liberal é a faceta moderna e contemporânea da direita. É a
direita predominante na atualidade, a mais aceita e influente. Parece ser a única
direita permitida pelo establishment. É, além disso, a tendência doutrinária, à
direita do espectro político, mais próxima do espírito da modernidade. Não há
como negar que a direita liberal e a esquerda progressista são herdeiras das
Luzes; representando o liberalismo, a vertente moderada do Iluminismo; e o
socialismo revolucionário encarnando a linhagem radical.
A afinidade ideológica da direita liberal com a cosmovisão moderna
revela o caráter problemático e ambivalente desse ramo do pensamento de
direita. Como estou procurando destacar ao longo deste estudo, o universo de
idéias e valores da direita é extremamente crítico e cético em relação à visão de
mundo moderna. Opõe-se frontalmente aos princípios que sustentam a
cosmovisão igualitarista, progressista, racionalista e individualista moderna.
Porém, é inegável que no liberalismo existe uma série de pressupostos,
postulados e premissas que estão de acordo com esses aspectos basilares do
mundo moderno. É verdade que, por um lado, a direita liberal corporifica um
modo temperado e mitigado de liberalismo, mas, em contrapartida, por outro,
não questiona em profundidade e não lança um desafio aos mitos fundadores do
mundo moderno.[96]
Em que pese essas observações iniciais, é inconteste que há um conjunto
de idéias e conceitos no liberalismo clássico que é valioso e relevante para o
homem de direita, como, por exemplo, a defesa aguerrida que os liberais fazem
do governo limitado, do Estado de direito (rule of law), da economia de
mercado, da liberdade individual, da livre-iniciativa, da propriedade privada, da
meritocracia e da divisão de poderes. Contudo, o que há de mais importante é a
crítica devastadora e irretorquível que vários autores liberais realizam à esquerda
e às suas idéias absurdas. O pensamento liberal é, inegavelmente, um precioso
antídoto contra a arrogância e as ilusões do socialismo revolucionário. As mais
categóricas objeções ao igualitarismo, ao coletivismo e ao estatismo encontram-
se em autores liberais.
Começo este capítulo examinando uma das correntes mais importantes e
atuais do liberalismo: a Escola Austríaca, encabeçada por autores de prestígio no
campo da economia, como Carl Menger, Eugen von Böhm-Bawerk, Ludwig von
Mises e Friedrich Hayek. Mais precisamente, exponho analiticamente as
principais idéias, do ponto de vista do ideário da direita, dos dois autores mais
notáveis dessa escola: Mises e Hayek. Posteriormente, procuro descrever e
examinar os aspectos lacunares e as fraquezas do liberalismo a partir de uma
perspectiva tradicionalista.

4.1 A crítica de Mises ao marxismo e à estatolatria

Ludwig von Mises foi um ardente defensor daquilo que, em ciências
sociais, é chamado de individualismo metodológico. Trata-se, grosso modo, da
descrição e da análise das ações humanas do ponto de vista dos agentes
individuais. É um método que busca explicitar e elucidar os fenômenos sociais a
partir das ações concretas dos indivíduos, e não de uma entidade coletiva. A
praxeologia, termo usado por Mises para a ciência da ação humana, lida com a
ação propositada – consciente – do homem, procurando decifrar os significados
que o agente atribui à ação e ao seu fim. Não investiga a ação humana em geral,
mas a ação específica, concreta, realizada por uma determinada pessoa, num
determinado local e num determinado momento, conforme explica Mises (1990,
p. 44): “A praxeologia pergunta: o que acontece quando alguém age? O que
significa dizer que um indivíduo, aqui e agora, em qualquer tempo em qualquer
lugar, age? O que resulta se ele escolhe uma coisa e rejeita outra?”.
Essa orientação teórica e metodológica é pertinente e meritória por
razões práticas e morais, conforme irei explicar, fundamentando-me no
economista austríaco. É sabido que, na linguagem coloquial, é bastante comum o
uso de afirmações do tipo: “a culpa toda é da sociedade”; “a sociedade obrigou-
me a agir deste modo”; “sou uma vítima das estruturas sociais”; “a
responsabilidade é do sistema social”; “o sistema social é opressor”. Essas
afirmativas são, no mínimo, arbitrárias, pois tendem a coisificar a sociedade, a
fazer dela uma realidade viva e concreta, com intenções, objetivos e finalidades.
Contudo a sociedade, o social, o sistema social e outras expressões afins nada
mais são que abstrações: noções e conceitos usados pelos leigos e pelos
cientistas sociais para descrever a vida de um conjunto de pessoas.
Quando o leigo ou um analista social assume uma idéia ou um conceito –
como a noção de sociedade e sistema social – e trata-o como se fosse algo
concreto e real, ele incorre naquilo que é denominado, nas ciências sociais e na
filosofia, de reificação. Reificar é, sinteticamente, coisificar uma noção abstrata.
Não apenas na linguagem cotidiana reifica-se o social. Importantes
teóricos sociais e filósofos conceberam a sociedade como uma entidade viva.
Émile Durkheim, um dos fundadores da sociologia, acreditava piamente que a
sociedade era uma totalidade orgânica que preexistia a seus membros. Para ele, a
sociedade era como uma “substância moral” e, além disso, uma “consciência
coletiva”. O social era uma força moral coercitiva, externa aos indivíduos, que
modelava por completo suas atitudes, gostos e pensamentos. Por sua vez, o
marxismo parte da perspectiva de que as estruturas sociais, sobretudo a infra-
estrutura econômica, determinam a superestrutura religiosa, moral, jurídica e
cultural. Desse modo, os indivíduos nada mais são que marionetes, guiados e
arrastados por forças sociais e econômicas poderosas. Outros autores e escolas
de pensamento também substancializaram a sociedade. Para os organicistas
biológicos do século XIX, como Herbert Spencer e Ernst Haeckel, a sociedade
era vista como um “organismo vivo gigantesco”. Os românticos alemães,
principalmente Herder, concebiam as sociedades como “almas nacionais”. Hegel
defendia a tese de que a sociedade era a materialização do “espírito coletivo”.
Essas perspectivas teóricas partem, equivocadamente, da premissa de que a
sociedade é algo externo aos indivíduos. Uma realidade que está acima e além
deles. Elas definem o social como uma espécie de substância, como uma coisa,
um objeto estático, uma realidade concreta semelhante a uma pedra, a uma
árvore ou a uma bola de bilhar. Porém a sociedade não é propriamente algo
subsistente como um organismo vivo ou uma alma. As “forças sociais”, as
“estruturas sociais”, “as classes e os grupos sociais” e o “sistema social” não
existem de forma autônoma, independentemente dos indivíduos que os
constituem. O social nada mais é que um conjunto de indivíduos em interação.
Trata-se de pessoas entre outras pessoas, envolvidas em relações de cooperação e
conflito. Noções como família, escola, indústria, cidade e Estado referem-se,
essencialmente, a grupos de seres humanos interdependentes, formando
configurações específicas.
Ademais, o social – a sociedade – não pode ser visto, nem mesmo pode
ser captado diretamente pelos sentidos físicos. Não é um objeto material, uma
entidade do mundo físico perfeitamente delimitada e perceptível. Ninguém é
capaz de observar e analisar a sociedade em sua totalidade. Tudo o que pode ser
observado é apenas a ação de indivíduos concretos (Mises, 1990). Por isso, só é
possível descrever, analisar e compreender uma sociedade descrevendo,
analisando e compreendendo as condutas, as ações, os valores, as motivações e
as idéias dos indivíduos que a compõem.
A sociedade não é capaz de pensar, sentir e agir. O sistema social não
tem intenções, vontades e desejos; quem os têm são os indivíduos. Em suma, a
sociedade não é um ser dotado de inteligência, consciência e vontade livre.
Dessa maneira, não pode ser avaliada, julgada e responsabilizada.
A premissa de que a sociedade é um ser vivo subsistente, com finalidades
e objetivos, legitima o argumento de que a culpa é sempre da sociedade, de que
os indivíduos são meras vítimas de um sistema social opressor. Ao eximir da
responsabilidade os indivíduos, transferem-se, automaticamente, culpas e males
para um ente abstrato. O problema reside sempre nesta entidade fantasmagórica
e nunca nos indivíduos reais de carne e osso. Não se imputa responsabilidade a
alguém, a uma pessoa concreta, mas a algo abstrato – o famigerado sistema
social.
Quando se concebe a sociedade como uma substância, uma realidade
com existência própria e independente, acaba-se por justificar as doutrinas
políticas e sociais que pretendem escravizar os indivíduos. Ao tomar-se outras
entidades coletivas, como o Estado, a nação, a classe e a raça, como organismos
vivos dotados de inteligência e vontade própria, legitima-se a sujeição dos
indivíduos a esses entes substancializados. A coisificação da sociedade
transforma as pessoas em insignificantes e descartáveis elementos da
engrenagem social, submergindo-as num todo coletivo amorfo e sem rosto. Em
síntese, a coisificação da sociedade acaba por coisificar os indivíduos, pois lhes
retira o rosto humano. É a fonte primordial de toda a forma de coletivismo,
socialismo, estatismo, nacionalismo agressivo e racismo.
Efetivamente, a estatolatria e a sociolatria modernas favorecem e
estimulam o conformismo, o servilismo, o nivelamento igualitário e a
massificação. A transformação do Estado, da sociedade e de outras entidades
coletivas em ídolos a serem objetos de devoção e culto conduz à
despersonalização e debilita e desintegra as individualidades. Torna os
indivíduos seres passivos, objetos inermes completamente moldados por forças
impessoais. Há uma dimensão teológica presente nessa sacralização do Estado e
da sociedade secular que é destacada por Mises (1990, p. 148):
Os termos sociedade e Estado, como empregados
pelos adeptos contemporâneos do socialismo, do
planejamento e do controle social das atividades dos
indivíduos, têm o significado de uma divindade. Os
padres dessa nova religião atribuem a seu ídolo todas
aquelas virtudes que os teólogos atribuem a Deus:
onipotência, onisciência, bondade infinita, etc.[97]
A fetichização da sociedade enfraquece – se não mesmo anula – a
capacidade de ação dos indivíduos, debilitando a aptidão humana de resistir e
opor-se às pressões, forças e “condicionamentos sociais”. Faz da pessoa humana
um produto mecânico dos influxos sociais e não um sujeito agente capaz de
intervir na marcha dos acontecimentos. Ainda, a “tirania do coletivo” reduz
todos os ideais, valores e todas as atividades humanas a interesses de teor social.
Tudo aquilo que não tenha uma dimensão e uma finalidade eminentemente
social é visto como uma atividade supérflua e ornamental, um “preconceito
burguês”, uma atitude egocêntrica e inútil para o bem-estar coletivo,
transfigurado – de acordo com o ideal coletivista – em um simples bem-estar
material tão do agrado do homem-massa.
Teorias sociais que reificam a sociedade são o fundamento especulativo
para os mitos políticos modernos de teor estatólatra e coletivista que tendem,
fatalmente, a hipertrofiar “entes coletivos”. Esse processo, por via de regra,
resulta na diminuição da liberdade e do poder de ação da pessoa humana. O que
se busca, em última instância, é a anulação da própria individualidade,
domesticando-a e submetendo-a aos ditames e imperativos de forças impessoais,
ou ao arbítrio de lideranças populistas e ditatoriais que afirmam representar os
interesses de entidades como o povo, a nação, a humanidade, a comunidade ou
determinada classe social.
As ideologias políticas coletivistas empenham-se em promover os mais
desbaratados e inconseqüentes planos de engenharia social:
É costume, hoje em dia, falar de engenharia social.
Este termo é, da mesma forma que planejamento,
sinônimo de ditadura e de tirania totalitária. A idéia
implícita nesse conceito é a de que se podem tratar
os seres humanos da mesma maneira que o
engenheiro manipula os elementos com os quais
constrói pontes, estradas e máquinas. Na
construção de sua utopia, o engenheiro social
substitui a vontade das pessoas pela sua própria
vontade. A humanidade se dividirá em duas
classes: de um lado, o ditador todo-poderoso e, do
outro, os tutelados, que ficam reduzidos à condição
de meros peões de um plano ou engrenagens de
uma máquina (Mises, 1990, p. 112).
As políticas estatais intervencionistas e dirigistas são elementos
absolutamente indispensáveis para a concretização dos planos grandiloqüentes e
utópicos de engenharia social. Os defensores do Estado planificador e demiurgo
apresentam-no como uma força benevolente, angelical e paternal, camuflando,
contudo, a sua verdadeira natureza autoritária e pervasiva, conforme explica
Mises (1990, p. 721):
Na realidade, a opção não é entre um mecanismo
rígido e sem vida de um lado e o planejamento
consciente do outro. A alternativa não é ter o ou
não ter um plano. A questão essencial é: quem deve
fazer o plano? Deveria cada indivíduo planejar para
si mesmo ou caberia a um governo benevolente
planejar por todos? A disputa não é automatismo
“versus” ação consciente; é ação individual
autônoma “versus” ação exclusiva do governo. É
liberdade “versus” onipotência governamental.
A estatolatria está irremediavelmente relacionada com a formação de
uma tecnocracia e com o furor legiferante de políticos e burocratas:
Os defensores do intervencionismo pretendem
substituir os efeitos da propriedade privada e dos
interesses estabelecidos – que consideram
“socialmente nocivos” – pelo ilimitado arbítrio do
legislador sábio e desinteressado e de seus
infatigáveis auxiliares, os burocratas. Para essas
pessoas, o homem comum é uma criança
desamparada, necessitando urgentemente de tutela
paternal para protegê-lo das artimanhas de um
bando de trapaceiros (Mises, 1990, p. 725).
O Estado de bem-estar social (welfare state) e outros modelos
contemporâneos de estatismo na verdade partem da premissa de que o poder
público é o principal, se não mesmo o único agente do desenvolvimento de uma
nação. Como se o Estado moderno fosse dotado de poderes especiais e de um
conhecimento privilegiado da realidade humana e da vida social. Segundo o
economista liberal:
Os propagandistas do Estado provedor vêem no
governo uma materialização da Divina Providência
que, sábia e imperceptivelmente, conduz a
humanidade a estágios mais elevados e perfeitos de
um inexorável processo evolutivo (Mises, 1990, p.
834).
Estados dirigistas, autoritários e totalitários procuram obsessivamente
tudo controlar e dirigir. São intolerantes a qualquer modo de parcial autonomia e
a qualquer liberdade. São movidos por um mórbido desejo de tudo regulamentar
e regrar. Como um Estado pedagogo e assistencialista, tratam os indivíduos de
uma comunidade como se todos fossem crianças pequenas e mimadas, carentes
de qualquer capacidade de iniciativa própria. Caracterizam-se por constituir uma
hipertrófica e teratológica estrutura burocrático-administrativa. Em seu afã
intervencionista, o dirigismo estatal, o autoritarismo e o totalitarismo devastam e
aniquilam os corpos intermediários, os grupos orgânicos, bem como sufocam e
enfraquecem os valores da personalidade, da autêntica liberdade e da
responsabilidade individual.
A visão essencialista da sociedade, assim como de outros “entes
coletivos”, como o povo, a nação, a raça e a classe, está inextricavelmente
associada àquilo que Mises definiu como polilogismo. Tradicionalmente, a
estrutura lógica da mente humana sempre fora concebida como sendo imutável,
uniforme, comum a todos os seres humanos. Porém, com o surgimento do
marxismo, verifica-se uma mudança radical e verdadeiramente revolucionária,
pois, para essa corrente filosófica, a forma de pensar de uma pessoa é
determinada pela classe social à qual pertence. Portanto, cada classe social tem
sua forma específica de pensar. O pensamento, a mente humana, não produziria
verdades, mas ideologias, que seriam um disfarce dos interesses egoístas e
mesquinhos da classe social à qual pertence o pensador. Importa lembrar que,
para Karl Marx, não é a consciência dos homens que determina a realidade, mas
é a realidade social que determina a consciência. Portanto, é preciso explicar a
maneira de pensar dos homens pelas relações sociais nas quais estão integrados.
Por conseguinte, ideologias não precisam ser refutadas a partir de argumentos,
mas desmascaradas pela denúncia da classe social de seus autores. Conforme
Mises (2013): “[...] os marxistas não discutem os méritos das teorias científicas;
eles simplesmente revelam a origem ‘burguesa’ dos cientistas”.[98]
Mas se toda idéia, doutrina e todo pensamento não passam de um
disfarce ideológico de interesses de classe, sem relação alguma com a verdade
objetiva, o marxismo, por conseqüência, seria, também, mais uma ideologia.
Porém os marxistas negam com veemência essa conclusão lógica:
Eles alegam que suas próprias doutrinas são a
verdade absoluta. Dietzgen ensina que “as idéias da
lógica proletária não são idéias partidárias, mas o
resultado da lógica pura e simples”. A lógica
proletária não é “ideologia”, mas a lógica absoluta.
Os atuais marxistas, que rotulam seus
ensinamentos de sociologia do conhecimento, dão
testemunho da mesma inconsistência. Um de seus
defensores, Professor Mannheim, procura
demonstrar que há certos homens, os “intelectuais
não engajados”, que possuem o dom de apreender
a verdade sem serem vítimas de erros ideológicos.
É claro, o Professor Mannheim está convencido de
que ele mesmo é o maior dos “intelectuais não
engajados”. Você simplesmente não pode refutá-lo.
Caso discorde dele, você apenas provará que você
mesmo não pertence à elite dos “intelectuais não
engajados” e que, portanto, seus pensamentos são
tolices ideológicas (Mises, 2013).[99]
Posteriormente, o polilogismo assumiu formas variadas. Racistas e
nacionalistas agressivos como os nazistas alemães afirmavam que cada nação,
cada raça, tem sua forma peculiar de pensamento e raciocínio. A mente dos
arianos seria diferente da mente dos semitas:
Cada raça ou nação possui sua própria lógica e,
portanto, sua própria economia, matemática, física,
etc. Mas, não menos inconsistente que o Professor
Mannheim, o Professor Tirala, seu congênere como
defensor da epistemologia ariana, declara que a
única lógica e ciência verdadeiras, corretas e
perenes são as arianas. Aos olhos dos marxistas,
Ricardo, Freud, Bergson e Einstein estão errados
porque são burgueses; aos olhos dos nazistas, estão
errados porque são judeus. Um dos maiores
objetivos dos nazistas é libertar a alma ariana da
poluição das filosofias ocidentais de Descartes,
Hume e John Stuart Mill. Eles estão em busca da
ciência alemã arteigen, ou seja, da ciência
adequada às características raciais alemãs (Mises,
2013).[100]
O historicismo e o relativismo cultural são igualmente tipos de
polilogismo, porque asseveram que a estrutura lógica do pensamento e da ação
humana está sujeita às mudanças da evolução histórica e dos diversos ambientes
culturais.
O marxismo apresenta, ademais, um caráter determinista e evolucionista.
Karl Marx acreditava devotamente que a história das sociedades humanas tinha
um sentido progressivo e unilinear que redundaria no paraíso igualitário
comunista. O advento do novo mundo socialista seria inevitável e altamente
desejável:
Marx viveu numa época em que a doutrina do
meliorismo evolucionário era aceita por quase
todos. A mão invisível da Providência conduz os
homens, independentemente de suas vontades, de
um estágio mais baixo e menos perfeito para um
mais alto e mais perfeito. Prevalece, no curso da
história do homem, uma tendência inevitável ao
progresso e à melhoria. Cada estágio posterior da
evolução da sociedade é, pelo fato mesmo de ser
posterior, também um estágio mais alto e melhor.
Nada é permanente na condição humana, salvo
esse impulso irresistível para o progresso (Mises,
1990, p. 687).
Porém, a realidade histórica desmentiu Marx. O capitalismo não se
autodestruiu e muito menos se materializou o seu prognóstico de uma nova
ordem social comunista justa e fraterna. Ao contrário do que previa o
materialismo dialético, o crescimento dos níveis de produção não resultou no
duplo processo de proletarização e pauperização que conduziria a uma crise
revolucionária, com isso provocando, fatalmente, a insurreição do proletariado
contra o sistema capitalista. No capitalismo, as condições materiais da classe
trabalhadora melhoraram significativamente, segundo observa Mises (2013):
[...] o progresso do capitalismo não empobrece os
assalariados de modo crescente; ao contrário,
melhora seu padrão de vida. Por que as massas
seriam inevitavelmente induzidas a se revoltar
quando se sabe que elas estão tendo acesso a mais
e melhores alimentos, habitações e vestuário,
carros e geladeiras, rádios e aparelhos de televisão,
nylon e outros produtos sintéticos? Mesmo se, em
prol da argumentação, admitíssemos que os
trabalhadores são induzidos à rebelião, por que seu
motim revolucionário almejaria apenas o
estabelecimento do socialismo? O único motivo
que poderia induzi-los a pedir a implementação do
socialismo seria a convicção de que eles próprios
estariam melhores sob o socialismo do que sob o
capitalismo. Porém os marxistas, ansiosos para
evitar lidar com os problemas econômicos
inerentes a uma economia socialista, nada fizeram
para demonstrar a superioridade do socialismo em
relação ao capitalismo, exceto apresentar este
raciocínio circular: o socialismo está destinado a
surgir como a próxima etapa da evolução histórica.
Sendo uma etapa histórica posterior ao capitalismo,
ele é necessariamente melhor que o capitalismo.[101]
Para Mises, é incorreto afirmar que alguns são pobres simplesmente pelo
fato de que outros são ricos. Se a sociedade capitalista fosse destruída e em seu
lugar surgisse o milênio socialista, baseado na igualdade de renda, todos os
cidadãos tornar-se-iam mais pobres. A produtividade nas economias socialistas é
sempre mais baixa em comparação com as economias de mercado, segundo
esclarece o economista austríaco:
[...] não importa qual seja a maneira que se
conjeture a equalização da renda – tal medida
levará, sempre e necessariamente, a uma redução
extremamente considerável da renda nacional total
e, conseqüentemente, da renda média. Quando se
compreende isto, a questão assume uma
complexidade bem distinta: agora temos de decidir
se somos a favor de uma distribuição equânime de
renda com uma renda média mais baixa, ou se
somos a favor da desigualdade de renda com uma
renda média mais alta (Mises, 2013).[102]
Apesar desse argumento econômico irrefutável e do fracasso retumbante
das experiências de economia socialista, os ideais marxistas de justiça social e de
igualdade econômica são ilusões que ainda seduzem jovens imaturos e
intelectuais existencialmente desorientados. O socialismo é um erro intelectual,
conforme assevera o economista liberal Jesús Huerta de Soto (2015), porque é
impossível que o órgão estatal planejador obtenha todas as informações
necessárias de que precisa para coordenar a economia. É inviável que só uma
mente ou mesmo várias mentes apreendam todas as informações que estão
dispersas na economia. No mercado, a informação jamais é conhecida por todos.
Ela decorre das interações diárias de milhões de seres humanos. Trata-se, em
suma, de um volume gigantesco de informações em constante e dinâmico
processo de criação e ampliação que não pode ser captado por um grupo seleto e
privilegiado. Mais: é uma informação subjetiva, implícita e tácita que não pode
ser consultada num catálogo e, assim, um tipo de informação que não pode ser
formalizada objetivamente e transmitida a um órgão central planejador.
O capitalismo não se baseia na exploração e na dominação do homem
pelo homem, conforme o esquema simplório pregado pelos apóstolos do
marxismo, mas é essencialmente um sistema econômico que visa a atender às
necessidades dos indivíduos; nele, o consumidor é o verdadeiro soberano e
senhor. Acerca desse aspecto da economia de mercado, afirma Mises (1988, p.
8):
A característica essencial do capitalismo moderno é
a produção em massa de mercadorias destinadas ao
consumo pelo povo. O resultado é a tendência para
uma contínua melhoria no padrão médio de vida, o
enriquecimento progressivo de muitos. O
capitalismo desproletariza o “homem comum” e o
eleva à posição de “burguês”.
Para além de motivações românticas e supostamente idealistas, a
mentalidade anticapitalista dos socialistas está fundada numa estranha
racionalização de sentimentos de frustação e inveja. No sistema capitalista, a
desigualdade dos homens no que diz respeito às suas habilidades intelectuais, à
sua força de vontade e capacidade de ação e iniciativa revela-se de uma maneira
impiedosa. O ressentimento é a mola mestra da postura anticapitalista:
A busca de um bode expiatório é a atitude das
pessoas que vivem sob uma ordem social que trata
todos de acordo com sua contribuição para o bem-
estar de seus semelhantes e na qual, portanto, cada
um é a origem de sua própria sorte. Neste tipo de
sociedade, cada indivíduo cujas ambições não
tenham sido totalmente satisfeitas odeia a sorte de
todos os que conseguiram mais êxito. O tolo libera
esses sentimentos através da calúnia e da
difamação. Os mais sofisticados não descambam
para a calúnia pessoal. Sublimam seu ódio numa
filosofia, a filosofia do anticapitalismo, a fim de
calar a voz interior que lhes diz que, se falharem, é
totalmente por culpa própria. Seu fanatismo ao
criticar o capitalismo está exatamente no fato de
eles lutarem contra a consciência que têm da
falsidade dessa crítica (Mises, 1988, p. 19).
Marxistas tendem a ver a produção e, de modo geral, as atividades
industriais e comerciais, como um fenômeno meramente material. Não percebem
que são também atividades intelectuais. São ações humanas que resultam da
capacidade criativa e transformadora da mente humana. Operações que, além do
trabalho físico, das forças naturais e das coisas externas, demandam a
intervenção da razão. A mente, na verdade, utiliza-se desses meios “materiais”
para alcançar seus mais diversos fins:
A metafísica materialista dos marxistas interpreta
essa realidade de maneira inteiramente falsa. As
propaladas “forças produtivas” não são algo
material. A produção é um fenômeno espiritual,
intelectual e ideológico. É o método que o homem,
dirigido pela razão, emprega para diminuir o seu
desconforto na medida do possível. O que
distingue a nossa situação da dos nossos ancestrais
que viveram há mil ou vinte mil anos não é algo
material, mas algo espiritual. As mudanças
materiais são fruto de mudanças espirituais (Mises,
1990, p.139).

4.2 O liberalismo conservador de Hayek

O economista e filósofo político Friedrich Hayek estabelece uma
interessante distinção entre o liberalismo que se desenvolveu na Inglaterra,[103]
com os “velhos whigs”, ao final do século XVII, e o liberalismo da Europa
continental. O primeiro liberalismo não surge como uma construção teórica, uma
doutrina política abstrata, mas como uma prática concreta e um anseio de
estender os efeitos benéficos das limitações aos poderes do governo.
Fundamenta-se na concepção da liberdade individual conforme a lei.[104] Além
disso, baseia-se em uma interpretação evolucionista dos fenômenos sociais e
culturais e numa atitude de desconfiança quanto aos poderes da razão humana.
Não aceita a postura dogmática e arrogante de que o homem tenha todas as
respostas e seja capaz de resolver todos os problemas. É, portanto, respeitoso
para com os hábitos e costumes de uma comunidade. Reconhece que todo
conhecimento e mesmo toda a civilização apóiam-se na tradição. Sendo assim,
não expressa uma postura contrária à religião.
O liberalismo da Europa continental, de caráter ideológico e doutrinário,
nasce da pluma de autores iluministas como Voltaire, Rousseau e Condorcet,
concretizando-se historicamente com a Revolução Francesa. Hayek enfatiza que
mesmo o utilitarismo inglês de Bentham fora contaminado por esse tipo de
liberalismo radical e militante. É, este, eivado de um racionalismo grosseiro. Em
geral, esgrima argumentos e atitudes anti-religiosos e anticristãos. Tende a
conceber todo fenômeno social e cultural como resultado de um plano
deliberado, como uma construção artificial. Acredita que é possível reconstruir
todas as instituições humanas a partir de um plano preconcebido. Olha com
desprezo para a tradição e para a história. É uma forma de democratismo que
exalta, às vezes demagogicamente, a vontade popular e exige o poder ilimitado
da maioria. É, por conseqüência, um antecedente intelectual do socialismo, do
populismo e do estatismo.
Em contrapartida, o liberalismo mitigado de Hayek percebe a ordem
social como uma ordem espontânea (voltarei a tratar deste conceito mais
adiante), que não foi criada intencionalmente por alguém e que não possui uma
direção central:
O conceito central do liberalismo é que com a
vigência de regras universais de conduta justa, que
protejam um domínio privado dos indivíduos que
possa ser reconhecido, formar-se-á por si mesmo
uma ordem espontânea de atividades humanas de
muito maior complexidade do que qualquer outra
que poderia produzir-se mediante um ordenamento
deliberado. Por conseguinte, as atividades
coercitivas do governo deveriam limitar-se a
manter o cumprimento destas regras [...] (Hayek,
1966 p. 182).
O liberalismo moderado e cético de Hayek contrasta com o liberalismo
progressista e racionalista. O filósofo político austríaco, seguindo essa distinção,
fixa uma segunda diferenciação entre um individualismo verdadeiro e genuíno
que conduz à autêntica liberdade e à emergência de uma ordem espontânea, e um
pseudo-individualismo que resulta no coletivismo e no planejamento estatal. O
individualismo genuíno considera que as múltiplas e variadas instituições
responsáveis pela manutenção das conquistas civilizacionais surgiram e
conservam-se sem a existência de uma mente planejadora e criadora. As
instituições são frutos da ação humana, porém não resultam de um planejamento
deliberado e, desse modo, suplantam qualquer tentativa de controle consciente e
compreensão total por parte de uma mente individual. Para essa perspectiva, a
ordem social é o resultado não premeditado de uma miríade de ações individuais
espontâneas. Além disso, afirma que tudo aquilo que o homem faz e conquista é
apenas parcialmente conseqüência da razão. Não nega que a razão seja um
instrumento cognitivo importante para o desenvolvimento pessoal e coletivo,
porém ressalta suas limitações e imperfeições. Destaca, especialmente, a
falibilidade e mesmo a irracionalidade das escolhas e condutas humanas, e como
os erros e equívocos individuais são corrigidos unicamente no desenrolar de um
longo processo social e histórico. Por seu turno, o individualismo dos
enciclopedistas, de Rousseau e dos fisiocratas, e que se origina remotamente do
cartesianismo, endeusa a razão individual. A “deusa razão” estaria presente de
maneira igualitária e plena em todos os homens, de modo que, resumidamente,
tudo o que homem realiza é resultado da atividade racional de uma mente
planejadora (Hayek, 1948).
O individualismo autêntico permite ao indivíduo, dentro de determinados
limites e regras, seguir os seus próprios valores e princípios. Consagra o
indivíduo como o juiz soberano de seus objetivos particulares, protegendo a
legítima esfera de privacidade e autonomia de ação individual. Conforme Hayek
(1977), esse individualismo é um dos traços fundamentais e um dos frutos mais
nobres da cultura ocidental:
[...] As características essenciais do individualismo
que, partindo de elementos fornecidos pelo
cristianismo e pela filosofia da antiguidade
clássica, desenvolveu-se pela primeira vez,
plenamente, durante a Renascença e desde então
evoluiu e penetrou o que chamamos de civilização
ocidental, são o respeito pelo homem individual na
sua qualidade de homem, isto é, a aceitação de seus
gostos e opiniões como sendo supremos dentro de
sua esfera, por mais estreitamente que isto se possa
circunscrever, e a convicção de que é desejável o
desenvolvimento dos dotes e inclinações
individuais por parte de cada um (Hayek, 1977, p.
15).
Em contrapartida, o liberalismo racionalista e progressista sustenta a
falsa idéia de que a liberdade individual é incompatível com qualquer tipo de
restrição geral. Nessas concepções políticas, intensificam-se as posturas
ideológicas e doutrinárias que alimentam a esperança de libertar os homens das
“cargas e fardos” da civilização. São sonhos regressivos e utopias libertárias que
ameaçam os alicerces da cultura ocidental e o próprio ideal de liberdade política
e jurídica. Essas “cargas civilizacionais” compreendem, segundo o teórico
austríaco (Hayek, 2013), uma série de práticas e normas morais como o trabalho
disciplinado, a responsabilidade, o assumir riscos, a economia, a honestidade e o
cumprimento das promessas. A libertação anárquica – prometida por liberais
progressistas e socialistas – dessas práticas e regras gerais de conduta conduziria
a sociedade ocidental a um doentio e regressivo estado de primitivismo e
selvageria.
Conforme o teórico político vienense, o homem foi civilizado contra seus
desejos e impulsos ao assumir de forma não-deliberada determinadas práticas e
hábitos morais salutares. As restrições comportamentais desenvolveram-se e
generalizaram-se mediante processos evolutivos baseados na seleção,
propiciando e facilitando o aumento demográfico e o maior bem-estar material
dos grupos humanos que adotaram certos tipos de conduta moral. Nossos
esquemas normativos e instituições sociais tradicionais não são conseqüências
de uma decisão intencional e racional, mas, na verdade, surgiram como parte de
uma longa evolução histórica e cultural, emergindo de uma maneira espontânea
e natural. Os esquemas morais baseiam-se na tradição, na aprendizagem e na
imitação e consistem em um conjunto de proibições e interditos. Trata-se, em
síntese, de uma série de restrições culturais às respostas inatas e às pulsões
instintivas. A civilização resulta da afirmação de uma constelação de tradições
morais e normativas “repressivas e inibitórias” que submetem e dominam os
impulsos naturais e as paixões insensatas.[105]
Hayek enfatiza que foram os princípios morais e a tradição, mais que a
inteligência e a razão calculadora, que permitiram ao homem superar o seu
inicial estado de selvageria. Parte importante dos esquemas normativos e das
práticas de conduta que possibilitaram o surgimento de uma ordem extensa, a
“grande sociedade”, deriva das crenças religiosas, principalmente as
monoteístas. Há uma inegável e inequívoca conexão histórica entre a religião e
os valores e instituições que deram origem, e que ainda sustentam, à civilização
ocidental, como por exemplo a família e a propriedade privada. Costumes e
hábitos saudáveis e benéficos à vida social foram conservados e transmitidos
devido ao respaldo e ao poder legitimador das crenças espirituais e místicas –
“verdades simbólicas”, segundo a feliz expressão cunhada pelo teórico político
vienense:
É muito provável que a evolução tenha selecionado
aquelas religiões que rechaçaram práticas morais
que não são benéficas para o crescimento do
homem. [...] Acredito que, desde a antiguidade,
devem ter existido muitos intentos de fundar
religiões inimigas da propriedade privada e da
família, tal como agora tentam fazer os socialistas
modernos. Entretanto, jamais sobreviveu alguma
religião que não tenha santificado o matrimônio e a
propriedade. Aquelas religiões que sobreviveram, e
não penso somente nas religiões moralistas do
Oriente, têm uma coisa em comum com as nossas
religiões ocidentais: desde o começo, aceitaram a
propriedade privada e a família (Hayek, 1981, p.
76).
Nos grupos humanos que adotaram esses esquemas morais tradicionais,
bem como regras de propriedade e contrato, a economia de mercado e a
especialização do trabalho expandiram-se formidavelmente. Em linhas gerais,
para Hayek, as mais importantes instituições sociais, jurídicas, econômicas,
morais e lingüísticas não foram criadas deliberadamente por alguém, mas
resultaram de um processo de evolução cultural de longa duração, pelo qual
várias gerações contribuíram de algum modo para o surgimento de um repertório
modelar de condutas, de pautas repetitivas de comportamento que configuraram
os indivíduos e as coletividades. Para o filósofo político austríaco, as sociedades
humanas não são produto de um artifício intelectual, de um plano consciente,
não surgiram da mente de um indivíduo ou de um grupo de eleitos, mas
constituem-se em decorrência de uma ordem espontânea, de um
desenvolvimento natural e da interação de milhões de seres humanos a partir de
sucessivas gerações.
Ordem espontânea é a noção axial do pensamento político de Hayek.
Este conceito sinaliza para a importante idéia de que as sociedades e suas
principais instituições são frutos da ação humana, mas não são produtos de um
design humano, de um plano ou projeto racional. O economista vienense traça
uma interessante distinção entre dois tipos de ordem: uma ordem feita,
construída, e uma ordem resultante da evolução. A ordem feita, definida de taxis
por Hayek, é, na verdade, uma ordenação intencional criada, projetada pela
mente humana, como por exemplo uma ordem de batalha. É uma ordem
artificial, exógena, dirigida, um tipo particular de organização. Por sua vez, a
ordem espontânea, conceituada por Hayek com a expressão grega kosmos, é uma
ordem que resulta da evolução. É uma ordem autogeradora e endógena.
A ordem feita, organização, é uma ordem simples, concreta, que pode
ser percebida e observada; por ser produto da criação de uma mente humana,
serve a um propósito específico desenhado pelo criador dessa ordem.
Organizações como o governo, por exemplo, têm como propósito principal
impor as leis; já as corporações empresariais têm como meta obter lucro, e as
Igrejas, unir as pessoas para atividades religiosas de culto e adoração (Flanagan,
1984). A ordem espontânea é uma ordem complexa, abstrata, que não pode ser
captada pelos sentidos humanos e dominada pela mente. Por não ter sido criada e
planejada, não serve a um propósito em particular. Ela é o ambiente ou a matriz
que auxilia os indivíduos a perseguirem seus próprios objetivos. Provê meios e
instrumentos (linguagem, direito, mercado), mas não fins, para que os agentes
realizem suas variadas metas existenciais. Acerca disso, esclarece Hayek:
Por conseguinte, nosso controle sobre a ordem
mais ampla e mais complexa será muito menor do
que aquele que poderíamos exercer sobre uma
ordem feita, taxis. A primeira terá muitos aspectos
sobre os quais não exerceremos absolutamente
nenhum controle ou que, pelo menos, não seremos
capazes de alterar sem interferir nas forças que
produzem a ordem espontânea, obstando-as.
Qualquer desejo que possamos ter quanto à posição
específica de elementos individuais, ou à relação
entre indivíduos ou grupos específicos, não poderia
ser satisfeito sem perturbar a ordem global. Não
poderíamos ter sobre uma ordem espontânea da
qual só seriamos capazes de influenciar aspectos
abstratos, o mesmo poder que teríamos sobre uma
disposição concreta, taxis (Hayek, 1985 p.44).
É possível afirmar, com base nos conceitos do filósofo político Michael
Oakeshott, que o pensador vienense descreve a ordem espontânea como uma
ordem nomocrática – governada pela lei e normas abstratas –, em oposição a
uma ordem telocrática – governada por uma finalidade ou objetivo único. Em
uma sociedade livre, não haveria uma escala unitária de fins concretos e
nenhuma perspectiva ideológica ou axiológica teria prevalência, de modo que
não se buscaria assegurar que alguns pontos de vista particulares acerca do que é
mais ou menos importante governasse o conjunto da sociedade (Hayek, 1966). A
ordem espontânea não tem uma finalidade; nela, cada indivíduo, usando
livremente seus conhecimentos e habilidades, é que estabelece seus fins e suas
metas. Sobre essa questão, comenta o filósofo político austríaco:
[...] as normas gerais de conduta sobre as quais a
ordem espontânea se funda visam a uma ordem
abstrata, cujo conteúdo particular ou concreto não é
conhecido ou previsto por ninguém; ao passo que
as determinações, bem como as normas que regem
uma organização, servem a resultados particulares
visados por seus dirigentes (Hayek, 1985, p. 52).
O mercado seria o exemplo modelar de uma ordem espontânea. Como
explica Gabriel Zanotti (1993), neste, ofertantes e demandantes, com um
conhecimento limitado e por meio de sintetizadores de informações dispersas,
que são os preços, produzem um resultado global, que é a economia de recursos,
que se tivesse de ser produzida e deliberada, conscientemente e de modo
planificado, requereria uma mente diretriz e planejadora com um conhecimento
total que nenhuma das mentes imersas no processo tem ou poderia ter.[106] A
linguagem humana é outro exemplo de ordem espontânea. Esta não foi criada
por um indivíduo específico, mas deriva de um desenvolvimento evolutivo.[107]
A teoria da ordem espontânea fundamenta-se na premissa gnosiológica
de que o conhecimento humano é limitado, fragmentado e disperso, bem como
na premissa de que os indivíduos possuem capacidades e disposições inatas de
conduta com as quais se integram a essa ordem não deliberada (Zanotti, 1993).
Efetivamente, a própria tradição liberal, segundo explica Alberto Oliva (1993),
estriba-se numa filosofia da negatividade – que tem como ponto de partida uma
postura de modéstia epistemológica – e, portanto, de rechaço aos projetos
grandiloqüentes de engenharia social, assim como de rejeição à planificação
centralizada da vida econômica e à concentração hipertrofiada de poderes e
funções do Estado.[108] Por isso, as concepções liberais acerca da sociedade, do
Estado, da política, da liberdade, da justiça e da felicidade pressupõem uma
teoria do conhecimento humilde e modesta, que sublinha a impossibilidade de se
chegar a uma verdade definitiva e cabal. No tocante a esse negativismo
epistemológico, aduz Alberto Oliva (1993, p. 22):
[...] o liberalismo adota uma teoria do
conhecimento que se situa nos antípodas das que,
assegurando a conquista da verdade, prometem a
completa remodelação da realidade, com base na
explicação última desveladora dos determinantes
ocultos que escapam ao senso comum, preso às
enganosas erupções do imediatamente dado.
Nenhum ator social, nenhum grupo humano, nenhuma mente singular
possui um saber completo, infalível e perfeito da realidade; nosso conhecimento
da vida social é sempre parcial, escasso e insuficiente, logo é ilusória a tarefa de
alterar e transformar radicalmente o mundo social por meio da razão. Assim
sendo, conforme Oliva (1993), são epistemológicas as razões apontadas pelo
liberalismo para opor-se ao Estado de providência intervencionista e dirigista,
visto que todo projeto político de planificação centralizada funda-se na
concentração de poder para coagir os indivíduos a realizarem determinadas
atividades e na enganosa tentativa de concentrar todo o conhecimento e todas as
informações que, necessariamente, estão dispersas e distribuídas pelas inúmeras
mentes e atividades individuais. Ainda acrescenta o filósofo liberal brasileiro:
Com base em sua epistemologia modesta, o liberal
enuncia o seguinte teorema: quanto maior a
concentração de poder, via planejamento central,
maior a perda de uso do amplo conhecimento
disperso entre os indivíduos, e maior a inibição à
produção de novos conhecimentos. A invenção e a
descoberta pressupõem as múltiplas e
descentralizadas atividades que se aninham no
interior da ordem espontânea. O que o liberal
chama de ordem espontânea não é a anarquia da
total falta de regulamentação, e sim a preservação
da miríade de planejamentos setoriais, estribados
nos variegados conhecimentos especiais que os
indivíduos têm da circunstância físico-social com a
qual mantêm contato privilegiado (Oliva, 1993, p.
25).
Contra a noção de uma ordem espontânea e, por conseguinte, opondo-se
ostensivamente às práticas e instituições tradicionais[109] – que configuraram a
civilização ocidental – insurgem-se as correntes radicais, iluministas,
positivistas, cientificistas, historicistas, utilitaristas e socialistas mediante a
construção de uma ideologia ativista e totalitária, com a sua peculiar disposição
mental, que Hayek definiu como racionalismo construtivista. De acordo com
essa concepção, a sociedade e as suas principais instituições resultariam de um
planejamento intencional e deliberado da mente humana. O racionalismo
moderno origina-se em Descartes, com seu desprezo pelos costumes, pela
história, pela autoridade e pela tradição e sua pretensão arrogante de
exclusivamente pela razão criar, construir e modelar um mundo novo, uma nova
moral e uma nova ordem jurídica e legal. A escola contratualista de Hobbes e
Rousseau segue essa orientação ao reivindicar a origem contratual e, portanto,
puramente convencional, da sociedade política e das normas de conduta.[110]
Em linhas gerais, o racionalismo construtivista é hostil à sabedoria
acumulada, às crenças religiosas e às regras morais restritivas dos impulsos e
instintos. Concebe-as como forças irracionais sem sentido, que não podem ser
explicadas cientificamente e justificadas em termos estritamente racionais. A
sanha criticista e revolucionária é evidente nessa postura ideológica, que busca a
construção de um novo tipo de sociedade e de um novo homem pelo abandono
das regras morais tradicionais que, contudo, são de inegável importância na
conservação da ordem social. A renúncia à sabedoria de nossos ancestrais,
incorporada nas instituições herdadas e transmitida de geração em geração,
acarretaria uma perigosa regressão ao mundo dos instintos e das pulsões
elementares.
É essa perspectiva doutrinária uma forma de engenharia social que visa a
refazer, reinventar e redefinir em sua integralidade as bases e os fundamentos da
ordem civilizacional. Conforme Hayek (1988, p. 86):
A concepção básica deste construtivismo pode ser
quiçá expressa em uma fórmula mais simples,
aparentemente inocente, a qual afirma que, tendo o
homem criado as instituições da sociedade e da
civilização, deve ser também o mesmo homem
capaz de alterá-las de acordo com a sua vontade
para satisfazer seus anelos e desejos.[111]
Curiosamente, a confiança excessiva nos poderes ilimitados da razão
acabou por gerar, em muitos momentos da história do Ocidente, um efeito
contrário: a revolta contra a razão, com a conseqüente exaltação das paixões e da
vontade. Paradoxalmente, voluntarismo e racionalismo são irmãos siameses.
Ressalto que, entre as diversas linhas de pensamento e orientações
ideológicas que se apóiam no racionalismo construtivista, a mais importante e
influente é o socialismo. Conforme destaca o filósofo político vienense, essa
doutrina social intenta reconstruir e remodelar em sua totalidade os esquemas
morais, as normas culturais e os preceitos tradicionais para que a humanidade
alcance um estado de perfeição:
A meta socialista não é outra que a radical
reconstrução tanto da moral tradicional como do
direito e da linguagem, para assim acabar com a
ordem existente e suas presumidas inexoráveis e
injustas condições, que nos impedem ascender ao
império da razão, da felicidade e verdadeira
liberdade e justiça (Hayek, 2013, p.121).
Hayek explica, com brilhantismo, como o socialismo conduz, em última
instância, à destruição da liberdade e da autonomia individual, ao solapar o
espírito de iniciativa, de confiança em si mesmo e independência por meio do
amplo planejamento estatal, com a finalidade de dirigir, de maneira centralizada
e consciente, as atividades sociais. O socialismo pretende organizar e controlar
os indivíduos e os diversos grupos sociais para que todos sirvam docilmente aos
objetivos coletivos, desenhados pelo Estado todo-poderoso. Para além das
quimeras da igualdade, da segurança econômica, da distribuição de renda e da
justiça social, propagandeadas pelos ideólogos radicais, os coletivismos e
socialismos de todos os tipos caracterizam-se pelo emprego de um método
particular para alcançar esses fins, que é a criação de um sistema de economia
planejada. A direção centralizada organizará as forças sociais para que elas se
ajustem ao plano unitário conscientemente construído pelo grupo político
dominante. Desse modo, é inevitável que o “comitê planejador” só conseguirá
atingir seus objetivos mediante uma grandiosa concentração de poder.[112]
Com precisão, Hayek esclarece o traço essencial dos diversos
coletivismos:
A característica comum a todos os coletivistas pode
ser definida, numa expressão cara aos socialistas de
todas as escolas, como a organização deliberada
dos trabalhos da sociedade para um objetivo social
determinado. O fato de faltar à nossa sociedade
atual essa direção “consciente” para uma finalidade
única, e de serem as suas atividades guiadas pelos
caprichos e fantasias de indivíduos irresponsáveis –
eis aí uma das maiores censuras que lhe fazem os
seus críticos socialistas (Hayek, 1977, p. 53).
Para o filósofo político vienense[113], porém, a mais significativa
transformação que o coletivismo e o dirigismo estatal provocam é de ordem
psicológica, pois alteram drasticamente o caráter de um povo, fomentando a
imoralidade e a irresponsabilidade individual:
O fato de que na esfera da conduta individual os
efeitos do coletivismo têm sido quase inteiramente
destrutivos é, ao mesmo tempo, inevitável e
inegável. Um movimento cuja maior promessa é a
isenção da responsabilidade não pode deixar de ser
antimoral nos seus efeitos, por mais elevados os
ideais de que tenha nascido. Acaso admite dúvida
que o sentimento de obrigação pessoal de remediar
iniqüidades, tanto quanto o permitem as forças de
cada um, foi enfraquecido ao invés de robustecer, e
que tanto a disposição para assumir
responsabilidades como a consciência de que é
nosso dever individual saber escolher foram
sensivelmente debilitadas? Há uma imensa
diferença entre exigir que uma situação desejável
seja estabelecida pela autoridade, ou mesmo estar
pronto a submeter-se contanto que todos os outros
façam o mesmo, e a presteza em fazer o que
pessoalmente julgamos justo, com sacrifício dos
nossos próprios desejos e talvez arrostando a
opinião pública hostil (Hayek, 1977, p. 199).
Socialismo e estatismo criam uma cultura política paternalista; são, em
suma, escolas de servilismo, comodismo e aniquilamento da personalidade.

4.3 Os erros e as fraquezas do liberalismo

É evidente que o liberalismo não é uma realidade monolítica e unitária.
Não há um só liberalismo, mas múltiplos e diversos liberalismos. Pode-se, nesse
sentido, falar em um liberalismo teológico, um liberalismo filosófico, um
liberalismo político, um liberalismo econômico, um liberalismo societal e
mesmo um liberalismo moral e cultural. Além disso, a tradição liberal possui
diferenciações internas: há um liberalismo francês, um liberalismo americano,
um liberalismo britânico, etc., cada um deles com características próprias e
específicas.[114]
Porém entendo que, não obstante essas distinções, há um núcleo
fundamental de idéias presente em todos os liberalismos, há um denominador
comum que permeia as variadas doutrinas liberais. Como explica Caturelli
(2008), o liberalismo não se reduz a uma doutrina política, econômica e social,
pois é, em primeiro lugar, uma visão de mundo, do homem, da sociedade e do
Estado. Há, por conseguinte, uma mentalidade liberal, uma disposição moral e
uma inclinação psicológica inerente e peculiar aos seguidores dessa concepção
da realidade humana e social, que ultrapassa a esfera das convicções racionais e
das elucubrações teóricas.[115]
O modo de pensar liberal, que impulsiona uma determinada atitude
frente à política e à forma de organização da sociedade, é caracterizado pela
idéia axial da auto-suficiência do homem e do mundo, pela absoluta autonomia
da ordem temporal e, portanto, pela separação da razão individual da ordem
revelada. O liberalismo é, em linhas gerais, uma ideologia política naturalista,
racionalista e de matiz individualista, que conduz ao secularismo e à posição
singularmente moderna de que é possível construir uma ordem social que não
esteja subordinada e, desse modo, orientada à ordem sobrenatural. No tocante a
esse ponto nodal, assevera o filósofo tomista Alberto Caturelli (2008, p. 7):
É lógico que semelhante concepção de mundo
implique uma política desligada da transcendência.
Mais além das grandes diferenças existentes entre
os pais do liberalismo moderno, pode sustentar-se
que: ao menos a não-dependência do homem e da
sociedade com respeito a Deus é sua nota essencial.
Esta não-dependência pode ser absoluta (ateísmo),
menos absoluta (deísmo) e ainda sumamente
moderada, como a dos cristãos que sustentam a
separação da ordem pública temporal com respeito
ao Deus transcendente. Em todos os casos, essa
não-dependência significa auto-suficiência do
homem.
Conforme sustenta o renomado tomista argentino, o liberalismo radical e
extremado (ateu), o liberalismo moderado (deísta) e o liberalismo conservador e
mui moderado (cristão) admitem uma zona, um espaço (a ordem temporal) de
auto-suficiência do homem. O liberalismo radical porque nega a existência de
uma ordem transcendente ao mundo temporal; o liberalismo moderado porque
ignora a existência da realidade sobrenatural; e o liberalismo conservador e
cristão porque separa a ordem política temporal da ordem transcendente. Esta
separação entre a ordem temporal e a ordem sobrenatural traduz-se política e
juridicamente na idéia de um Estado laico e secular, distanciado de valores,
princípios e símbolos religiosos. Aliás, a luta pela emancipação da esfera
política, bem como das demais esferas da vida social, do “jugo da religião”
sempre fora um dos cavalos de batalha dos liberais. É importante sempre
lembrar que a secularização, o laicismo e a autonomização dos diversos campos
e áreas da vida das coletividades (educação, cultura, arte, ciência, política,
economia, direito, moral, etc.), são alguns dos traços definidores da
modernidade, e algo que só ocorreu historicamente por conta da ação
revolucionária das doutrinas liberais.
Cabe acrescentar que a noção de laicidade estatal, portanto a neutralidade
do poder político e da ordem jurídica em relação ao religioso e à moral, é uma
herança do subjetivismo moderno que sustenta o caráter relativo e individual do
bem, seu cunho eminentemente particular, privado. O estado neutral e agnóstico
do liberalismo leva à conseqüente proibição de imposição de valores e a um
ceticismo para com as noções de verdade e falsidade, moralidade e imoralidade.
Em suma, renuncia, a todo custo, a propor um modelo de “vida boa”. O Estado
liberal não pode, em hipótese alguma, apreciar e julgar acerca de matérias éticas
que concernem ao bem e mal, certo e errado, pois estas seriam questões de
competência dos indivíduos e, assim, relativas. O tão elogiado pluralismo liberal
afasta da vida pública os temas morais e espirituais, deslocando-os para a esfera
privada, para o “foro íntimo das consciências”. Desse modo, acaba por privatizar
o bem e a verdade em nome de um suposto consenso e em prol de uma
organização política puramente convencional e artificial, que conduz as
sociedades a uma política sem moral e a uma justiça imoral, completamente
auto-referencial e exclusivamente formal e procedimental (Segovia, 2010). Em
síntese, o liberalismo, assim como outras ideologias políticas modernas, parece
não reconhecer o fundamento transcendente e sobrenatural da comunidade
política.
Para essa doutrina política inexiste um bem supremo, um fim último a
ser alcançado pelos indivíduos e pelas coletividades. O projeto da sociedade
liberal moderna parte de uma indiscutível neutralidade axiológica: não cabe ao
governo e às leis inculcarem uma perspectiva moral. Desse modo, a sociedade é
vista como um campo de conflitos no qual cada indivíduo busca sua própria
concepção de vida boa, como sublinha Alasdair MacIntyre (2001, p. 361):
Todo indivíduo deve ser igualmente livre para
propor e viver de acordo com qualquer concepção
do bem que lhe apraza [...]. Qualquer concepção do
bem humano segundo a qual, por exemplo, é dever
do governo educar moralmente os membros da
comunidade, de modo que eles passem a viver essa
concepção, pode, até certo ponto, ser sustentada
como uma teoria particular por indivíduos ou
grupos, mas qualquer tentativa séria de incorporá-
la à vida pública será proscrita.
As fontes ideológicas e filosóficas do liberalismo encontram-se no
nominalismo, no protestantismo, no racionalismo iluminista e no progressismo,
conforme ensina Segovia (2010). O liberalismo origina-se do nominalismo
porque o individualismo é filho desta corrente de pensamento. É o nominalismo
uma doutrina filosófica que, grosso modo, reconhece apenas a existência dos
indivíduos, negando a realidade das relações. Além disso, nega as essências e
desconhece no homem[116] a capacidade para conhecer a ordem da criação,
substituindo o ser pela vontade arbitrária. O protestantismo é a fonte teológica
do liberalismo, presente na concepção liberal da liberdade e no naturalismo
jurídico dos primeiros filósofos liberais. O protestantismo lega ao liberalismo o
subjetivismo religioso que toma a fé em sua dimensão imanente, o voluntarismo
que sustenta que o crer é uma decisão pessoal intransferível (decisionismo
fideísta). Ademais, o liberalismo é filho da ruptura da cristandade medieval, que
está diretamente relacionada com o surgimento do protestantismo. O liberalismo
é uma manifestação particular do racionalismo, que possui um caráter
fortemente antitradicional, pois recusa a ver, no passado, uma fonte de valores
com autoridade, confiando unicamente no poder do conhecimento racional em
modelar a política e a sociedade. O liberalismo pertence à família da filosofia do
devir e à ideologia progressista. A ideologia progressista rebela-se contra o
pensamento tradicional, substituindo a clássica metafísica do ser pela
pseudofilosofia do devir, que consiste, basicamente, na afirmação de que tudo na
realidade humana e natural deixa de ser entendido de maneira absoluta para
interpretar-se em via de fazer-se, construir-se. Realmente, tudo o que existe, para
essa linhagem de pensamento, está num permanente estado de vir a ser, num
processo interminável de mudança e transformação. Devir, progresso e
contingência inclusive da pessoa humana, porque o indivíduo é também um
processo em construção, uma matéria moldável, modelável, uma natureza
progressiva em busca de perfectibilidade. Portanto, é o liberalismo, em sentido
estrito, uma doutrina antitradicional. Por ter nascido do nominalismo, nega a
ordem universal do ser; por ser proveniente da Reforma, afirma a consciência
livre e independente de uma ordem moral objetiva; por ter sido forjado pelo
empirismo e pelo racionalismo dos filósofos dos séculos XVII e XVIII, toda
ordem histórica e tradicional é dissolvida pela razão soberana e construtora da
ordem humana; por ser instrumento ideológico dos juristas do século XVIII, o
liberalismo apregoa o reformismo centralista que atinge seu ponto máximo no
Estado moderno; e, por fim, pelo labor dos publicistas do século XIX, estabelece
as constituições modernas como uma engenharia racional do Estado de direito,
organização artificial que assegura os direitos do indivíduo frente e contra o
Estado, ainda que não possam existir sem a garantia mesma desse Estado
(Segovia, 2010).
O liberalismo parte de uma equivocada concepção antropológica e
sociológica. Percebe o homem como um ser econômico (homo oeconomicus),
como o marxismo, movido basicamente por interesses materiais e sempre
procurando satisfazer os seus desejos egocêntricos. Ressalta em demasia os
interesses individuais e econômicos em detrimento de outros valores e fatores
que condicionam a ação humana. Acaba por fazer da economia e da livre
expansão da individualidade a meta e o destino da vida humana. Sob esse
aspecto, na exaltação paroxística dos fatores econômicos, liberalismo e
marxismo aproximam-se, de acordo com a perspicaz colocação do politólogo
Alain de Benoist (2010, p. 55):
Liberalismo e marxismo nasceram como pólos
opostos de um mesmo sistema de valores
econômicos. Um defendendo o “explorador”, o
outro o “explorado”, mas em ambos os casos nos
movemos dentro da alienação econômica. Liberais
(não neoliberais) estão de acordo em um ponto
essencial: a função determinante de uma sociedade
é a economia. Ela constitui a infra-estrutura real de
todo grupo humano. São as suas leis as que
permitem apreciar de um modo científico a
atividade do homem e prever seu comportamento.
Dentro da atividade econômica, os marxistas
concedem o papel preponderante ao modo de
produção, enquanto que os liberais dão ao
mercado. É o modo de produção ou modo de
consumo (economia de “partida” ou economia de
“chegada”) o que determina a estrutura social.
Nesta concepção, o único fim que a sociedade civil
consente em atribuir-se é o bem-estar material e o
meio adequado a tal fim é o pleno exercício da
atividade econômica.
Nas sociedades liberais, o economicismo reinante estimula o
pragmatismo e o utilitarismo, seus irmãos siameses. Valorizam-se, sobremaneira,
as atividades que são úteis, que têm um impacto imediato e possibilitam uma
aplicação prática. Produtividade, rendimento, prosperidade, sucesso, eficiência e
eficácia transmutam-se em palavras mágicas e sagradas, os novos mantras de
uma civilização quantitativa que glorifica de maneira hipertrófica o progresso
material, tecnológico e industrial. Os agentes do domínio economicista
desdenham do ócio, da contemplação, da vida intelectual. Dessa maneira, o bem-
estar material, a busca a qualquer custo do prazer, da segurança, da proteção e da
comodidade acabam por atrofiar e corroer as capacidades mais elevadas do
espírito humano. Os interesses superiores e mais altos que transcendem a esfera
da existência meramente material são deixados de lado.
O homo oeconomicus do liberalismo e do marxismo – homo faber e
homo consumans, reduzido à condição de trabalhador, produtor e consumidor de
bens materiais – é uma concepção antropológica que barbariza e desfigura a
natureza humana. Ademais, uniformiza e padroniza os indivíduos convertendo-
os em meras peças descartáveis. Subordina e rebaixa a pessoa humana aos
imperativos tecnocráticos e coletivistas. Nesse cenário cultural, as figuras
hieráticas dos santos, dos sábios, dos ascetas e dos homens de pensamento, ou
seja, dos tipos humanos dedicados às atividades reflexivas e espirituais, são
apenas sombras longínquas de um passado remoto e já quase esquecido. Busca-
se o bem-estar bovino, o ganho, a satisfação e o prazer acima de tudo.
Anestesiado pela abundância material e por um ativismo desenfreado, o homem
moderno esquece que os verdadeiros problemas da existência humana não são de
ordem material. Os reais dramas humanos são de origem espiritual e moral. A
prosperidade material e o sucesso econômico não são garantias de uma vida
pessoal íntegra, virtuosa e dotada de um sentido superior. Pelo contrário, a
expansão desmedida das atividades unicamente técnicas, práticas e econômicas,
privadas de qualquer subordinação a fins superiores, pode conduzir a um
desmantelamento do homem e amputá-lo de sua natureza propriamente
intelectual, consciente e volitiva.
É preciso ser franco e direto neste ponto: o capitalismo liberal anárquico
e desordenado, a sociedade de consumo e o individualismo radical são forças
sociais destradicionalizadoras. O mercado sem peias, desregulamentado e não
submetido a uma necessária ordem jurídica e moral torna-se um mecanismo que
pouco ou nada tem de conservador e tradicionalista. É, na verdade, uma força
revolucionária e desestabilizadora, muitas vezes vigorosamente hostil aos
valores perenes e às instituições milenares. Não há como negar que existe uma
relação direta entre o avanço do capitalismo e a liberalização dos costumes. As
instituições de mercado precisam ser tanto suplementadas como refreadas, como
assevera o filósofo político John Gray (2011, p. 355):
As instituições de mercado, exceto em sua forma
mais rudimentar, não são fenômenos naturais,
resultados espontâneos da ação humana, mas
artefatos da lei e criaturas do governo. São tão
frágeis e vulneráveis aos ataques ferozes da guerra,
revoluções e ditaduras quanto qualquer outra
instituição civilizada. Este é um ponto
essencialmente importante, na medida em que as
instituições de mercado poderiam criar problemas
que elas mesmas não possam resolver, e que, às
vezes, ameaçam sua própria estabilidade. Não
precisamos procurar muito longe exemplos.
Entregues a si mesmas, tais instituições sem dúvida
lançariam no mercado uma cornucópia de drogas
narcóticas artificiais, uma rede até mesmo maior do
que aquela que se amplia subterraneamente e fora
do alcance da lei; nesta e em outras áreas da
política, uma estratégia de proibição legal, apesar
de seus custos, conseguiu em muitos países [...]
conter o problema dentro de um âmbito manejável.
E ainda as instituições de mercado sem travas
podem gerar formas de entretenimento, tais como
filmes e vídeos violentos e horrendos, cuja
disponibilidade generalizada é manifestamente
prejudicial à vida comum. Aqui, como por toda a
parte, as instituições do mercado devem ser
controladas, ou pelo menos restringidas em suas
atuações, se quisermos que uma forma de vida
comum pacífica e civilizada seja preservada e
transmitida através das gerações.[117]
Mais do que um sistema econômico, o capitalismo é um modo de vida,
uma mentalidade, uma forma de civilização que impulsiona a destruição do
senso de medida, os limites e as fronteiras, em sua obsessiva procura do
crescimento econômico, da expansão dos mercados e da produção incessante de
novos objetos e bens de consumo. A lógica do mercado sem peias leva à
formação de uma sociedade do espetáculo, centrada na publicidade, no
entretenimento, na multiplicação dos divertimentos e distrações sedutoras, na
consolidação de uma cultura de massas vulgar e uniformizadora. O
turbocapitalismo desordenado favorece a proliferação de todo tipo de excessos,
incita a cobiça e a expansão dos desejos, contribuindo para a quebra dos padrões
morais. Como observa com acuidade Jean-Claude Michéa (2008), a acumulação
do capital não poderia se desenvolver por muito tempo se tivesse de se acomodar
com a austeridade religiosa, o culto dos valores familiares, a indiferença à moda
e ao ideal patriótico. O mundo que nos rodeia evidencia que o crescimento
econômico ilimitado não pode encontrar suas bases psicológicas e ideológicas
senão em uma cultura do consumo generalizado, numa sociedade impregnada
por um imaginário permissivo, fashion e rebelde – imaginário este que, diga-se
de passagem, é idolatrado pela nova esquerda libertária.[118]
Ademais, o liberalismo econômico é a doutrina que tende a fazer do
modelo de mercado auto-regulado o paradigma de todos os fatos sociais
(Benoist, 2010). Inclina-se à mercantilização de todas as atividades humanas e
campos da vida social, não se limitando a apregoar apenas uma economia de
mercado, mas também uma sociedade de mercado. Creio que trocar o Leviatã
estatal pelo Behemoth mercantil e econômico não seja uma boa alternativa. É
necessário ir além da falsa oposição entre o poder do Estado moderno e as
relações de mercado.
Do ponto de vista sociológico, o erro do liberalismo está em sua visão
atomista da sociedade[119], ou seja, em sua incorreta percepção de que esta é
formada por átomos isolados, sem laços e relações sociais. O individualismo
liberal acerta em afirmar que a sociedade não é uma realidade substancial,
material, alertando para os perigos práticos da reificação do social, porém
equivoca-se em sustentar a hipótese de que a sociedade é um simples resultado
de um pacto ou acordo convencional estabelecido por indivíduos absolutamente
livres e autônomos, conforme explica Rafael Gambra (1973, p. 328):
[...] nem o indivíduo puro, nem a sociedade em si
existem na realidade, pois aquilo que existe são os
homens concretos e pessoais, simultaneamente
individuais e sociais. Os homens têm todos algo de
puramente seu, que os diferencia dos demais (a sua
individualidade); mas aquilo que são, o que
desejam e pensam, receberam-no da sociedade,
através da educação e do ambiente social. Se
tirássemos tudo isso a um homem, pouco nos
restaria dele, a não ser uma pura potencialidade de
ser, que há de atualizar-se ao longo de sua vida de
relação com os outros, isto é, como parte duma
sociedade. Assim, individualidade e sociedade são
aspectos de uma única realidade, o homem
concreto, que é individual e social. Nem o
indivíduo isolado, nem a sociedade em si mesma
realmente; o que é real são os homens individuais
vivendo em sociedade, dela nutrindo o seu espírito
e nela se realizando.
Para o pensamento tradicional, a sociedade política é uma unidade de
ordem, uma unidade moral, e não física, é um ser acidental (Segovia, 2009). Por
seu turno, para os liberais, a sociedade é percebida como um conjunto confuso e
caótico de indivíduos autocentrados, sem laços comunitários e desenraizados,
mônadas independentes e isoladas em seu egocentrismo, refratárias a qualquer
modo de autoridade, vínculo social, tradição e obrigação moral. Os indivíduos
em sua solidão anárquica e solipsismo constroem, descontroem e reconstroem
arbitrariamente seus projetos de vida, seus ideais e estilos de vida.
A sociedade não é uma mera soma de indivíduos atomizados frente ao
Estado, nem uma massa amorfa, mas uma hierarquia de grupos, um conjunto
orgânico de famílias, uma sociedade de sociedades, como explica o jusfilósofo
Galvão de Sousa (1967, p. 13):
Poder-se-ia comparar a sociedade política ou civil a
uma grande pirâmide. Em sua base está a
multiplicidade de famílias e no ápice o Estado,
passando pela gama variada e multiforme das
associações ou sociedades de diversos tipos, dos
munícipios, províncias e comunidades regionais.
No plano mais vasto das relações entre os Estados
estende-se a comunidade das nações.
O liberalismo constrói uma sociedade funcional aos interesses e desejos
dos indivíduos. A ordem social liberal não se define pela justa disposição das
partes, conforme um fim comum, não só porque não há um fim que tenha um
caráter comum às partes, mas, principalmente, porque não há partes, pois cada
indivíduo é um todo. A imagem liberal de um sujeito autônomo e soberano,
contudo, é uma ficção. O homem é, por natureza, um ser social, relacional, que
depende dos outros e da própria ordem social. Até certo ponto, os indivíduos são
configurados pela cultura e pelo ambiente social em que estão inseridos.
Equivocadamente, o liberalismo acredita que os indivíduos – todos os
indivíduos indistintamente – já se encontram amadurecidos, evoluídos,
realizados e conscientes de seus deveres e responsabilidades. Assevera,
igualmente, de maneira ingênua e com um otimismo panglossiano, que de um
estado de total liberdade para os indivíduos perseguirem a realização de seus
interesses egoístas resultará espontânea e naturalmente um ordenamento social
harmônico e sólido.
Além disso, o individualismo liberal engrandece de maneira exagerada
os direitos, deprimindo, se não mesmo anulando, os deveres individuais. Em
decorrência disso, o eu, o ego, converte-se no centro e na origem do mundo
moral, na fonte exclusiva e absoluta dos valores, pois, já que não há bens e fins
naturais ou sobrenaturais, tudo o que se pode considerar valioso ou desejável
procede do que os indivíduos desejam ou lhes apetece (Segovia, 2009).[120]
O liberalismo tende a rejeitar qualquer forma de autoridade e soberania.
Com ele, o indivíduo rompe todos os vínculos e laços com os grupos orgânicos e
com os valores tradicionais, erigindo-se à condição de uma entidade todo-
poderosa e soberana. Como conseqüência do individualismo, o Estado liberal
reduz-se à mera função de garantir, tutelar e proteger a liberdade individual e os
direitos e interesses dos indivíduos. Parte de uma concepção negativista do
Estado, concebendo-o como um “mal necessário”. Trata-se do ideal do Estado
agnóstico, neutral, despolitizado e gendarme.
Em contraste com o ideário liberal, uma ordem política tradicional
jamais pode ser entendida como o simples resultado de indivíduos justapostos e
em permanente luta, portadores de interesses múltiplos e divergentes que se
somam. Ela é, antes de tudo, uma unidade orgânica. Uma unidade de ordem e de
integração, e não uma unidade substancial e absoluta na qual, conforme destaca
o jurista Miguel Reale (2013, p. 53), “as partes componentes se conservam
distintas do todo, embora subordinadas aos fins comuns indispensáveis à
convivência”. É um todo que não absorve as partes, mas que lhes permite uma
parcial liberdade de movimento e de ação e que, ademais, procura mormente
estimular e conservar a autonomia da personalidade humana e dos vários corpos
intermediários que conformam uma dada sociedade.
Na ideologia liberal-libertária, a liberdade é imaginada como um valor
absoluto, como o princípio supremo da vida individual e social e, desse modo,
um fim em si mesma. É uma forma de liberdade abandonada a si mesma,
anárquica e infrene. Na realidade, a liberdade é um meio, não um fim; além
disso, só é legítima dentro da ordem (Galvão de Sousa, 1967). Só há uma
verdadeira e autêntica liberdade quando esta se ordena e se direciona para o bem
e colabora de modo efetivo para a realização integral da pessoa humana.
A liberdade, para os liberais, coincide com a “liberdade negativa”, ou
seja, com a liberdade exercida com o único critério da liberdade, e que significa
sem critério algum. A liberdade é percebida como poder de absoluta
autodeterminação, como possibilidade de fazer o que se quer. Postula, essa
doutrina política, uma forma de liberdade encarada como liberação e
emancipação, liberação da condição finita, liberação da própria natureza,
liberação da autoridade, liberação das necessidades, etc. A liberdade liberal é,
essencialmente, reinvindicação de uma independência da ordem das coisas, ou
seja, da realidade ontológica da criação (Castellano, 2010).
A ideologia liberal-libertária propaga uma falsa e anárquica noção de
liberdade, esquece ou finge esquecer que a verdadeira liberdade é aquela
ordenada e limitada, como assevera, primorosamente, o filósofo Nicolas
Berdiaeff (1978, p. 240):
O ser da pessoa supõe limites, distinções, uma
proteção contra o caos tumultuoso e sem rosto. A
pessoa humana alcança a liberdade definitiva, não
pela supressão arbitrária de toda fronteira e de toda
diferenciação, não se abrindo ao caos destruidor,
mas através da ordem e harmonia do cosmos e da
história. A pessoa e a liberdade humanas estão,
uma vez mais, intimamente ligadas com a
hierarquia.
Noções morais clássicas, como as de virtude e vida boa, não têm
centralidade no pensamento liberal, que ainda parece confundir o bem com a
própria noção de liberdade individual. A liberdade transformada em um absoluto
não se subordina a nenhuma finalidade transcendente, a nenhum valor superior.
Para os liberais extremados e, principalmente, para os libertários, uma sociedade
livre é mais importante que uma sociedade honesta, virtuosa e equilibrada. Ao
contrário da visão libertária e liberal, que enfatiza de maneira excessiva a
liberdade, para o pensamento tradicional de uma verdadeira direita, cabe à
comunidade política criar um ambiente institucional e societal que favoreça o
desenvolvimento integral da pessoa. As instituições sociais, os grupos
intermediários, as leis, os costumes e o próprio Estado devem suscitar e
estimular a elevação moral e espiritual do indivíduo. A meta do homem é a
virtude, a realização plena de suas potencialidades e de sua natureza orientada
para Deus. Desse modo, como assevera o cientista político Brent Bozell (1962),
o propósito principal da política é auxiliar os homens na busca das virtudes.[121]
Não há como negar que a ideologia liberal parte de uma visão abstrata e
desenraizadora do homem e, portanto, advoga uma liberdade puramente formal.
No entanto, é o homem efetivamente um ser concreto, inserido numa
determinada sociedade e cultura, vivendo em determinado contexto histórico,
vinculado a uma miríade de grupos sociais e possuidor de liberdades concretas.
[122]
Para Rubén Bouchet (1989), as liberdades reais devem estar de acordo com
as exigências qualitativas das pessoas. Elas são uma conquista social, e não uma
dádiva. Adquirem-se como resultado do esforço pessoal constante e firme. A
liberdade, conforme o pensamento tradicional, é sobretudo uma liberdade para
fazer algo, nasce de uma disposição natural de um homem para atualizar suas
capacidades virtuais e alcançar a perfeição que convém a cada um no quadro de
uma convivência política desigual, variada e hierárquica. Essa liberdade é
funcional e orgânica, inseparável dos fins próprios das pessoas e colocada sob o
signo clássico de que cada indivíduo tem de alcançar uma perfeição irreiterável.
Paradoxalmente, há uma relação íntima entre o individualismo liberal e o
estatismo. Ao reduzir a sociedade a uma massa amorfa, a um conjunto confuso e
anárquico de átomos soltos, e, assim, destruir as autoridades sociais e os corpos
intermediários, o liberalismo abriu o caminho para o totalitarismo e para as
diversas formas de dirigismo estatal. Nessas condições, o Estado torna-se o
único poder capaz de organizar e dirigir a sociedade, como refere Galvão de
Sousa (1967, p. 107):
Na sua exaltação da liberdade individual, o
liberalismo rejeitou todas as “sociedades parciais”
entre o indivíduo e o Estado, seguindo à letra o que
dizia a respeito Rousseau, nas páginas do seu
Contrato Social. Rompeu-se assim a ordem natural
da sociedade política, gerando-se uma ordem
jurídica separada do homem concreto, que está
sempre inserido nas comunidades naturais e
históricas. Conseqüentemente, despareceram as
autoridades sociais que regulamentavam setores
diversos da vida da coletividade, restando apenas o
poder político para promover esta regulamentação.
A expansão do individualismo, da lógica mercantil e da ideologia do
êxito competitivo provoca a desaparição das solidariedades naturais; para paliar
tal processo, o Estado moderno acaba por assumir uma série de tarefas de
assistência social que anteriormente eram desenvolvidas pelas próprias estruturas
orgânicas da comunidade. O Estado-providência é uma conseqüência do
liberalismo, pois quanto mais individualista é uma sociedade, mais recai sobre o
Estado a tarefa de reconstruir o tecido social e fortalecer os laços de
solidariedade. Existe um círculo vicioso: quanto mais fracos os laços sociais,
mais aumenta a dependência do Estado. E, dessa maneira, quanto mais aumenta
a dependência do Estado, mais tende este a estender suas intervenções em todos
os campos da existência, acelerando o processo que deveria remediar (Benoist,
2010).
O liberalismo político aceita, acriticamente, o “mito democrático”, o
democratismo, centrado na mística da vontade geral de Rousseau e nas noções
quiméricas de soberania popular e governo das massas. O democratismo tende a
fazer da democracia não unicamente uma forma de governo, mas o fundamento
do governo e, ainda mais, uma forma e um estilo de vida, que deve se estender
por todo o tecido social, abrangendo todas as dimensões da existência. Conforme
o filósofo Carlos Sacheri (2014, p. 250):
O mito democrático erige a multidão em suprema
fonte de autoridade e de toda a lei, o que
desemboca num panteísmo político (já não é Deus
a fonte de toda autoridade, mas o povo divinizado).
As doutrinas liberais da soberania popular, da
vontade geral, do sufrágio universal, a necessidade
de partidos políticos, o slogan “liberdade,
igualdade, fraternidade” são expressões da
democracia-mito.
O filósofo tomista salienta que, na sua forma pura, a democracia
concentra-se nos valores da liberdade e igualdade como fins supremos da ordem
social, o que conduz a um igualitarismo quantitativo, pois todos os indivíduos
hão de ser igualmente livres em tudo. Estabelece-se uma nivelação por baixo, de
acordo com uma igualdade aritmética, que tende ao igualitarismo dos bens
econômicos. Assim sendo, a democracia “pura” inclina-se, por um lado, para a
demagogia e, por outro, para o socialismo e o comunismo:
Para a primeira, porque a multidão-governante
recusa toda e qualquer obediência e exigência,
desembocando numa anarquia em que só triunfam
os demagogos ou aduladores. Para o socialismo
comunista, porque o igualitarismo por baixo,
inimigo de qualquer diferenciação, configurará
“uma coletividade sem outra hierarquia a não ser a
do sistema econômico” (Divini Redemptoris) em
que a liberdade puramente formal do cidadão-
massa será sacrificada no altar da igualdade
absoluta (Sacheri, 2014, p. 251).
A democracia moderna é um regime político próprio da sociedade de
massas que concede primazia aos direitos dos homens, esquecendo-se dos
direitos de Deus e dos deveres dos homens para com o Criador do universo. É
um sistema que funda sua autoridade no meramente humano e temporal, nas
massas, em absoluta antítese com as sociedades tradicionais que fundamentam a
autoridade em algo que vem do alto, do divino. Além disso, conforme assinalou
o filósofo russo Nicolas Berdiaeff, em seu magnífico ensaio Sobre a
desigualdade, cria e alimenta uma atmosfera social e cultural contrária à
elevação humana:
A democracia é hostil à manifestação de
personalidades fortes, brilhantes e criadoras. Cria
um meio social que tende a nivelar tudo, a
apoderar-se da pessoa humana para submetê-la. A
opinião pública democrática [...] é a mais terrível
das tiranias, oprime o espírito do homem, corta-lhe
as asas (Berdiaeff, 1978, p. 190).
Incorretamente, a doutrina liberal-democrática parte de uma premissa
igualitarista e niveladora consagrada na idéia do sufrágio universal, que reduz o
indivíduo a um simples número – um homem, um voto –, e a conseqüente noção
da paridade de qualquer voto. É uma estupidez tentar extrair da maioria a
verdade e a justiça – estes são princípios que independem dos critérios
quantitativos e massificadores da democracia. O sistema democrático liberal
consagra o regime dos piores, e nunca dos melhores e dos mais capacitados. Em
geral, acaba por descambar no totalitarismo, na partidocracia ou mesmo na
oclocracia.
Sobre o liberalismo de Hayek é preciso fazer algumas observações
críticas adicionais. Como destaquei anteriormente, o liberalismo do filósofo
político austríaco apresenta contornos conservadores de inegável valor para o
pensamento de direita.[123] Porém, Hayek não se livra por completo das aporias,
incongruências e limitações do liberalismo. A perspectiva desse autor é
claramente evolucionista e, até certo ponto, fatalista. Para ele, a moderna
sociedade “aberta” – a grande sociedade –, liberal, capitalista e democrática,
representa o ápice da evolução histórica e cultural. É patente a presença, nesse
enfoque, de uma “metafísica do progresso” que, entre outras características,
encara a história humana como um processo evolutivo único e com um destino
preordenado (Gray, 2011).[124] Em sua leitura otimista e utilitária da história, as
“ordens tribais”, ou seja, as sociedades antigas, “arcaicas e tradicionais”,
holísticas e orgânicas do passado, que, em linhas gerais, não eram marcadas pelo
individualismo, livre mercado e democracia-liberal, são concebidas como
substancialmente antagônicas à “grande sociedade”, o mundo moderno. Nesse
sentido, a economia de mercado é vista como a principal força social
responsável pelo progresso, por fazer as sociedades humanas libertarem-se de
arcaísmos e tribalismos retrógados e irracionais. A moderna sociedade liberal-
capitalista seria superior às demais formas de organização social, pois ela tem
sido “naturalmente selecionada” no curso da evolução (Benoist, 1998).
O esquema evolucionista de Hayek reflete-se em sua visão do homem. O
homem é tomado como um mero produto da evolução biológica e cultural. Cada
homem é apenas uma etapa na evolução histórica e social. O que caracteriza o
homem não é sua racionalidade e espiritualidade, conforme a concepção clássica
aristotélica e cristã, mas sua capacidade de evoluir e substituir as respostas inatas
por normas apreendidas. A própria razão é percebida como resultando do
processo evolutivo, procedendo da ordem extensa. Por conseqüência, a dimensão
espiritual e metafísica do homem é negada. O economista austríaco não
reconhece nada que tenha relação com a essência ou substância do homem. A
individualidade humana resultaria da ação de forças naturais e sociais imanentes;
o sobrenatural e o transcendente são deixados de lado. O fim do homem é a
sociedade entendida biologicamente como a “produção de outros seres vivos, o
crescimento e desenvolvimento da espécie humana em uma ordem extensa”
(Argandoña, 1999). Dessa maneira, a realização humana, a “felicidade”
entendida na acepção tradicional e o sentido da vida são noções inexistentes na
especulação de Hayek.
Todos os aspectos da vida humana são avaliados e analisados a partir de
critérios de funcionalidade e utilidade social. Conforme assevera o economista
Antonio Argandoña Rámiz (1999), quando Hayek ressalta a importância e o
valor dos hábitos e normas morais tradicionais, fá-lo de maneira
conseqüencialista e utilitarista, destacando os efeitos e resultados positivos que,
resumidamente, possibilitam o sustento de uma população em crescimento com
um nível de vida mais elevado. É um critério, vale ressaltar, estritamente
econômico, que nada tem de ético. Ademais, surgiriam essas práticas e normas
tradicionais como parte de um processo evolutivo inconsciente de auto-
organização de uma estrutura ou modelo; são, assim, esquemas herdados,
transmitidos aos agentes por meio de processos de imitação e aprendizagem.
Portanto, não apresentam um valor universal e intrínseco, sua função
fundamental é servir de suporte à ordem do mercado, gerando um elevado
volume de informação e recursos. O pensamento de Hayek está fortemente
impregnado de um prisma funcionalista. Uma prática, instituição ou norma
parece ser boa, positiva e legítima quando cumpre uma função social e evolutiva
na ordem extensa; principalmente, é funcional quando serve ao mercado. Não
haveria, portanto, uma instrumentalização econômica e sociológica dos valores
tradicionais e conservadores? Para o economista liberal, uma tradição é boa
quando legitima e favorece o desenvolvimento da economia de mercado.
Tradições que prejudicam o funcionamento e a expansão do livre mercado são
avaliadas negativamente, como é o caso das solidariedades comunitárias
presentes nas “ordens sociais tribais”. Conforme sagaz observação de José
Esparza (2010), parece que a única tradição que Hayek respeita verdadeiramente
é a do mercado.
Há na teoria política de Hayek uma inversão da relação hierárquica
normal, com a transformação das tradições religiosas, espirituais e morais em
simples mecanismos institucionais e sociológicos, ou melhor, meios para o fim
supremo: o desenvolvimento econômico e o progresso material. O mercado – o
econômico – é, assim, entronizado como a força soberana que comanda todas as
facetas da vida humana. Como no caso de outros autores liberais e neoliberais,
Hayek converte o mercado num sistema regulador geral da sociedade. Como
destaca o politólogo José Esparza (2010), para o filósofo político austríaco o
mercado eleva-se à condição de instituição social por excelência, a única
instituição social possível em uma sociedade composta por indivíduos que
guardam entre si apenas laços contratuais e cujas ações são movidas
exclusivamente pelo próprio interesse, carecendo de intenção coletiva. É o
mercado que automaticamente ordena a sociedade. Portanto, a ordem social e a
ordem econômica confundem-se; o liberalismo, depois de ter emancipado a
economia dos âmbitos do político e do moral, acaba, em última instância, a
subordinar o político e a moral ao econômico.
As tradições religiosas são compreendidas pelo filósofo liberal como
cumprindo funções sociais, dotadas de utilidade social e, mais ainda, tendo uma
origem na própria evolução da sociedade. Grosso modo, Hayek concebe a
religião como um produto social evolutivo, em oposição à concepção tradicional
que entende a religião como uma revelação divina, uma instituição de origem
sobrenatural. É preciso lembrar que Hayek era agnóstico, sua visão de mundo é
inegavelmente naturalista e imanentista. Para esse autor, a ordem natural não se
fundamenta em Deus, não é uma ordem criada por uma inteligência espiritual,
mas uma ordem que emerge com o passar do tempo, de uma maneira
espontânea, é, em suma, uma ordem endógena e autogerada. Há diferenças
notáveis e reveladoras entre a concepção tradicional e católica da ordem natural
e a noção liberal de ordem espontânea:
[...] diferentemente da concepção clássica, que
afirma que as inclinações naturais devem ordenar-
se virtuosamente e que, pela natureza social do
homem, corresponde ao príncipe estabelecer as
condições pacíficas da vida virtuosa; [...] a teoria
da ordem natural harmônica da Ilustração escocesa
não demanda virtudes e nem a ação do governo:
mesmo as condutas viciosas, quando não
controladas e nem reprimidas, tendem a produzir
um benefício coletivo. É, a propósito, a tese da
“harmonia natural”, não-política, da economia
clássica que descreve uma ordem natural
semelhante a uma ordem física, dotada de
legalidade intrínseca, imanente, que foi
proporcionada pelos fisiocratas e por Adam Smith;
a esta tese agregaram-se as derivadas e mutáveis
variações do conceito de “ordem espontânea” e as
explicações da “mão invisível” que vão de Smith a
Friedrich Hayek, passando por James Buchanan,
Gordon Tullock e Murray Rothbard. Em todos
estes, a liberdade se confunde com o bem e a
ordem espontânea carece de finalidade, pois sendo
fruto da liberdade negativa, a política se submete à
heterogeneidade dos fins individuais (Segovia,
2009, p. 63).
Em Hayek e em outros próceres do liberalismo, o mercado desempenha
uma função mítica. A fé na emancipação total da humanidade através das forças
do mercado é uma ilusão, uma utopia. A realidade histórica demonstra que não
há um único exemplo de que um mercado absolutamente livre produz
automaticamente uma melhor satisfação das necessidades dos indivíduos. Na
verdade, todos os grandes processos de crescimento do último meio século
apoiaram-se sim em mercados poderosos, mas só relativamente livres e nunca
carentes de um sensível grau de intervenção ou de orientação por parte do
Estado. Em nações que são seguidamente citadas como paradigmas do
capitalismo de livre mercado, como os Estados Unidos e o Japão, o Estado
impôs freqüentemente fortes barreiras à importação, o que permitiu um
crescimento exponencial da produção. Em muitos e variados casos, não foi o
mercado livre que favoreceu o crescimento, mas a combinação de mercado livre
e coordenação política (Esparza, 2010).
O pensamento de Hayek e o liberalismo conservador possuem insights
relevantes para a cosmovisão de uma autêntica direita em sua parte negativa, ou
seja, de crítica ao socialismo, ao marxismo, ao estatismo e à burocratização.
Contudo, as idéias de Hayek e, de um modo mais geral, o pensamento liberal da
Escola Austríaca são apenas uma versão mais razoável e sóbria da ideologia
individualista e racionalista moderna, como assevera o jusfilósofo Danilo
Castellano (1997, p. 735):
[...] a escola austríaca levou o liberalismo do
otimismo ao pessimismo, ainda que dito
pessimismo não seja mais que uma variante do
otimismo da modernidade. Do racionalismo
absolutamente voluntarístico passou-se ao
“racionalismo moderado”, que parece ser, ao
menos em parte, mais “aberto” à realidade.
Entretanto, dita abertura não é substancial, mas
uma fachada, já que se trata de um rechaço
apriorístico a aceitar o que a faz realmente
compreensível, ou seja, a finalidade e a ordem das
“coisas”, entendidas desde um ponto de vista
filosófico.

4.4 O liberalismo é de direita ou de esquerda?

Em suas origens, o liberalismo fora visto como uma ideologia
revolucionária e radical, de esquerda, que se opunha à ordem tradicional. Mais
ainda, o liberalismo sempre representou a fase inicial e preliminar no processo
de desintegração das sociedades tradicionais. Grosso modo, sempre foram os
liberais que prepararam e suscitaram as revoluções políticas e sociais modernas.
Foram eles que iniciaram os ataques à monarquia tradicional, à nobreza e à
Igreja Católica.
Em muitas ocasiões, o liberalismo assumiu feições explicitamente
anticlericais e até mesmo ateísticas e agnósticas. Como explica Jacques Du
Perron (1991; 1998), essa doutrina política e social foi a principal arma da
ascendente burguesia para aniquilar o “despotismo” do antigo regime. Ideologia
substancialmente burguesa que criticava duramente os limites que a autoridade
religiosa e o poder real impunham às atividades mercantis. Originalmente,
apresentou uma feição igualitária, sendo assim utilizada pela burguesia para
abater a aristocracia e, por conseguinte, igualar as condições políticas e jurídicas
entre os estamentos sociais. As idéias liberais foram a expressão mais acabada,
no plano de uma filosofia da história, da revolta dos mercadores contra os
representantes da religião e seus defensores, a nobreza guerreira.
Inquestionavelmente, a burguesia nascente opôs-se fortemente aos dois
primeiros “estados”, o clero e a nobreza. Foi o burguês, dessa maneira, o
primeiro homem de esquerda, revolucionário. Impregnado das idéias de Voltaire,
bem como de outros enciclopedistas e dos jacobinos, o burguês insurgiu-se
contra a moral cristã tradicional e a ordem política monárquica. Particularmente,
no caso francês, quando a Monarquia de Julho foi instaurada, em 1830, os
outrora liberais radicais e revolucionários tornaram-se, repentinamente,
moderados e conservadores, ou seja, procuraram conservar as vantagens
políticas e materiais obtidas com a Revolução Francesa de 1789.
O liberalismo burguês dos séculos XVIII e XIX foi responsável por
enfraquecer o sentido religioso e transcendente da existência. O historiador
Rubén Calderón Bouchet, em seu livro Iluminismo y Política (2012), descreve o
panorama mental e axiológico que molda o homem desse período histórico:
O homem do século XVIII, pelo menos aquele que
conduzia o carro da vida social, tinha do mundo
uma visão cada dia mais profana e orientada no
essencial por preferências claramente
economicistas. A revolução burguesa [...] foi
provocada por esta mudança radical na valoração
do mundo (Bouchet, 2012, p. 117).
Indubitavelmente, liberais e socialistas quase sempre partilharam uma
idêntica recusa revolucionária do mundo antigo e tradicional das castas e das
aristocracias guerreiras, o mundo das comunidades rurais fundadas nas
desigualdades de nascimento, o mundo da família patriarcal e das autoridades
ligadas à nobreza e à religião (Michéa, 2013).
Autores liberais e libertários admitem o caráter revolucionário e
modernizador dessa ideologia, como é caso do economista Murray Rothbard,
que, a respeito disso, enuncia:
[...] o requisito indispensável à civilização moderna
– a derrocada da Velha Ordem – foi levado a cabo
pela ação libertária das massas, irrompendo no
Ocidente em revoluções tão grandiosas quanto a
francesa e a norte-americana, provocando as
glórias da Revolução Industrial e os avanços da
liberdade, da mobilidade e os padrões de vida
ascendentes que até hoje conservamos. Apesar das
oscilações reacionárias no sentido de um retorno ao
estatismo, o mundo mantém-se num plano muito
superior ao mundo do passado. Quando
consideramos também que, de uma maneira ou de
outra a Velha Ordem do despotismo, do
feudalismo, da teocracia e do militarismo dominou
todas as civilizações do século XVIII, o otimismo
quanto ao que o homem conquistou e pode
conquistar deve tornar-se ainda maior (Rothbard,
1988, p. 56).
O pai do libertarismo exalta as conquistas das revoluções liberais e da
civilização industrial moderna; descreve o liberalismo como uma ideologia e
uma utopia secular:
O liberalismo nasceu e desenvolveu-se como uma
ideologia e, orientando e guiando as massas, fez a
revolução que mudou o destino do mundo. Pela
monumental ruptura que operou, essa revolução do
século XVIII transformou a história de uma crônica
de estagnação e despotismo num movimento
contínuo rumo a uma verdadeira utopia secular de
liberdade, racionalidade e abundância. A Velha
Ordem está morta ou moribunda, e as tentativas
reacionárias de gerir uma sociedade e uma
economia modernas mediante modalidades
diversas de retrocesso à Velha Ordem estão fadadas
ao fracasso total (Rothbard, 1988, p. 65).
De maneira explícita, o economista libertário norte-americano argumenta
que o liberalismo e o socialismo são movimentos políticos de esquerda com
vários pontos em comum:
Assim, com o liberalismo relegado dentro de suas
próprias fileiras, já não havia um partido da
esperança no mundo ocidental, nenhum movimento
de “esquerda” para levar à frente uma luta contra o
Estado e contra os remanescentes ainda intactos da
Velha Ordem. Nessa brecha, nessa lacuna criada
pelo esvaziamento do liberalismo radical,
introduziu-se um novo movimento: o socialismo.
Os libertários de hoje estão habituados a pensar no
socialismo como diametralmente oposto ao credo
libertário. Mas este é um grave equívoco,
responsável por séria desorientação ideológica dos
libertários no mundo atual. Como vimos, o
conservantismo era o oposto absoluto da liberdade,
e o socialismo à “esquerda” do conservantismo, era
essencialmente um movimento confuso, de cunho
intermediário. Era de cunho intermediário, e ainda
o é, por tentar alcançar fins liberais pelo uso de
meios conservadores (Rothbard, 1988, p. 32).
Segue sua interessante argumentação enfatizando as afinidades eletivas
existentes entre o liberalismo e o socialismo, os dois ramos do movimento
revolucionário:
À semelhança do liberalismo, e em oposição ao
conservantismo, o socialismo aceitou o sistema
industrial e as metas liberais de liberdade, razão,
mobilidade, progresso, padrões de vida elevados
para o povo, e um basta à tecnocracia e à guerra;
mas tentou chegar a esses fins utilizando meios
conservadores, incompatíveis com eles: estatismo,
planejamento centralizado, comunitarismo, etc. Ou,
antes, para ser mais preciso, houve desde o início
duas tendências dentro do socialismo. Uma era a
corrente de direita, autoritária, desenvolvida a
partir de Saint-Simon, que glorificava o estatismo,
a hierarquia e o coletivismo, sendo, portanto um
prolongamento do conservantismo, e empenhando-
se em adaptar-se à nossa civilização industrial e em
dominá-la. A outra era a corrente de esquerda,
relativamente liberal, representada em suas
diferentes modalidades por Marx e Bakunin,
revolucionária, muito mais interessada na
consecução das metas libertárias do liberalismo e
do socialismo, e, sobretudo, na destruição do
aparelho do Estado, de modo a chegar ao
“definhamento do Estado” e ao “fim da exploração
do homem pelo homem” (Rothbard, 1988, p. 33).
Rothbard, ao adotar entusiasticamente uma postura revolucionária e
progressista, esquece de mencionar os efeitos sociais e culturais destruidores do
liberalismo. Como lembra Galvão de Sousa (1991), foi essa ideologia política a
responsável pela destruição do multissecular regime corporativo, pelo avanço do
laicismo e da secularização das instituições públicas, pela livre concorrência
ilimitada, pela usura e pelos lucros desmedidos, pela concentração da riqueza e
proletarização crescente.
O liberalismo é um ideário político que se situa à direita da esquerda
revolucionária. Está à direita em relação ao socialismo, ao marxismo, ao
comunismo, ao totalitarismo e ao anarquismo. Todavia, não é propriamente uma
visão de mundo de direita. Em verdade, encontra-se circunstancialmente à direita
do espectro político, sem ser originária e fundamentalmente de direita. Por conta
do movimento inexoravelmente sinistrógiro, esquerdizante, da sociedade
capitalista liberal, na maior parte das vezes a direita moderna não é mais do que
uma antiga esquerda (Michéa, 2013).
Trata-se de uma sedutora ideologia que, de maneira direta ou subliminar,
encoraja a “revolução cultural permanente”, o crescimento ilimitado, a
transgressão moral, a modernização e a mobilidade social incessante, assim
como o rompimento com costumes ancestrais, solidariedades tradicionais (a
família, o bairro, a Igreja, etc.) e identidades enraizadas. Os liberais, ardorosos
defensores do capitalismo e da economia de mercado, na prática não se opõem
aos “avanços culturais”, à modernização integral e ilimitada do mundo e às
radicais mutações comportamentais. Há uma curiosa e reveladora convergência
de propósitos e uma afinidade eletiva entre o liberalismo econômico e o
liberalismo cultural. Como assinala Michéa (2000), o apelo constante da
esquerda de romper com todo o tipo de mentalidade “arcaica” e “conservadora”
confunde-se forçosamente com as exigências culturais do capitalismo liberal,
que, efetivamente, nada tem que ver com o domínio da Igreja, da nobreza e do
exército. Na realidade, vincula-se com um modo de civilização que pode ser
qualquer coisa, salvo conservadora. Importa salientar que essa comoção
incessante da produção, essa permanente ruptura de todo sistema social, essa
agitação e insegurança perpétuas, diferenciam a época burguesa de todas as
precedentes. O capitalismo é, por definição, um mecanismo social cujo
imperativo categórico consiste na dissolução permanente de todas as condições
de vida existentes.[125]
Há uma curiosa e reveladora confluência entre uma falsa direita liberal-
tecnocrática e a cultura progressista da esquerda. O liberalismo econômico de
certa direita e o liberalismo cultural libertário da esquerda pós-moderna
retroalimentam-se. A ideologia liberal-libertária rebela-se contra toda espécie de
regulamentação, norma, interdito e “tabu”, recusa todos os limites e limitações.
Em sua fúria emancipatória e desenraizadora, colabora ativamente para a
formação de uma sociedade permissiva, pueril e materialista. É indubitável que
tanto o liberalismo como o marxismo partem de uma visão otimista e
evolucionista do devir histórico, como salienta John Gray (2011, p. 425):
“Ambos viam a história como um processo de emancipação progressiva, que
terminava em uma civilização universal. Ambos acreditam que, com o
crescimento do conhecimento, toda a humanidade chegaria a compartilhar os
mesmo valores”. Mais ainda, liberais e marxistas tendem a idolatrar a ciência e a
técnica e, assim, a idéia racionalista da progressiva dominação da natureza. A
“luta contra a natureza”, a submissão ilimitada do mundo natural, são idéias
burguesas próprias da modernidade ilustrada e que foram levadas a seu zênite
por Karl Marx (Spaemann, 1984).
O liberalismo moderno está impregnado pela metafísica do progresso e
pelo culto do bem-estar material, como observa John Gray (2011, p. 87):
Com sua incoerente doutrina do progresso, seu
individualismo desordenado, antinômico, e sua
definitiva subordinação dos reclamos de liberdade
àqueles de um imaginário de bem-estar geral, o
liberalismo tornou-se, por fim, o inimigo da
sociedade civil sobre a qual uma vez procurou
teorizar.
Nas sociedades tradicionais, o estamento burguês ligado às atividades
econômicas e produtivas sempre fora considerado como uma força social de
importância apenas relativa. Vale lembrar que boa parte das sociedades do
passado era dividida hierarquicamente em três funções: a função de soberania,
que tinha uma dimensão política e religiosa; a função guerreira, vinculada à
nobreza; e o terceiro estado, constituído pelos produtores e trabalhadores. Os
sacerdotes e a aristocracia guerreira, bem como seus valores, tinham primazia,
orientando e governando as comunidades. Nas sociedades modernas, a burguesia
e o proletariado adquiriram centralidade, com o declínio das atividades e funções
dos dois primeiros estamentos.[126] Por conseguinte, os valores da disciplina, do
sacrifício e do sagrado enfraqueceram, então, predominando os valores
mercantis, econômicos e sociais que acabam por invadir e colonizar todas as
dimensões da vida humana.
Enquanto a direita moderna defende o liberalismo político e econômico,
a esquerda apóia o liberalismo cultural e societal. Porém ambas comungam do
mito do progresso ilimitado. A esquerda militando pelo progressismo social e
moral, e a direita liberal advogando o crescimento econômico e material infinito.
Como a esquerda revolucionária, a direita liberal volta sua atenção e suas
energias para o futuro, esquecendo-se do passado e da autoridade da tradição; e,
pior ainda, é mais mobilizada pelo anseio de um porvir glorioso e de abundância
no mundo terreno do que pela fé num mais-além celestial. Orienta-se
existencialmente pelo desejo de mudança, de transformação e de evolução
constante. Assim, desdenha todas as forças que obstaculizem e limitem o
desenvolvimento econômico e tecnológico e que impeçam a livre expansão da
individualidade. Algumas de suas vertentes mais fanatizadas inclinam-se,
irrefletidamente, à perigosa idéia de que o crescimento econômico é o objetivo
central e único da vida humana.
É preciso estar precavido e atento a um dilema intrínseco a esta linhagem
de pensamento político: a de que o ideal de liberdade e autonomia individual,
defendido pelo liberalismo clássico, pode perverter-se na utopia de libertação de
toda ordem moral objetiva, em um modo de individualismo atomístico e
narcisista que conduz à anomia e à desordem social, avassalando todos os laços e
vínculos comunitários indispensáveis à formação e ao amadurecimento da
personalidade humana. Nada pode ser mais temerário para a vida civilizada do
que fazer dos indivíduos e de seus interesses e desejos contingentes e mutáveis a
fonte e finalidade única do sistema social, jurídico e moral de uma comunidade.
O liberalismo e a democracia são ideologias modernas, essencialmente
antitéticas à visão de mundo tradicional, aristocrática, hierárquica, antiburguesa
e antiproletária. Nesse sentido, não há como reagir aos processos decadentes e
degeneradores da sociedade moderna partindo de premissas próprias da
cosmovisão burguesa, individualista, liberal e racionalista. Portanto, o espírito
burguês, com a sua preocupação obsessiva e doentia pela segurança e pelo bem-
estar físico, pela prosperidade material e pela vida cômoda, precisa ser
ultrapassado. Em seu lugar, urge formar uma nova mentalidade, um novo
espírito marcado pelas virtudes intelectuais, morais e marciais. Uma cosmovisão
religiosa, guerreira e hierárquica deverá dar o tom ao conjunto de uma
organização política de caráter tradicional.
O liberalismo “puro” é o tipo de direita que mais agrada à esquerda, é a
direita da esquerda. Na verdade, é uma pseudodireita que convém ao sistema.
Esta “direita liberal” fez e continua a fazer excessivas concessões ao mundo
moderno, sucumbindo, muitas vezes, ao otimismo progressista ingênuo e
romântico da esquerda. Ao contrário do liberalismo libertário – que estabelece a
primazia da liberdade e da absoluta soberania do indivíduo e, portanto, a não
subordinação da razão e da vontade humana a uma ordem objetiva transcendente
–, a autêntica direita tradicional afirma o primado do bem, da verdade e da
justiça.
5 A DIREITA CONSERVADORA: OS GUARDIÕES DA
CIVILIZAÇÃO

Assim como no caso do termo direita, conservador, conservadorismo e
outras expressões afins são apresentadas pelos próceres da cultura
contemporânea como rótulos depreciativos. Ser chamado de conservador é quase
uma ofensa, um ultraje, um epíteto que serve para estigmatizar o adversário
político e ideológico. Nos tempos atuais é preciso ter coragem e audácia para
afirmar-se como conservador.
Na verdade, conservador e conservadorismo são palavras com múltiplos
sentidos. Defini-los de maneira precisa é uma tarefa árdua, pois, mais do que
uma idéia e um conceito, o conservadorismo é uma disposição anímica, uma
atitude, um tipo peculiar de temperamento e uma forma mentis. A mentalidade
conservadora foi sinteticamente caracterizada pelo filósofo político Michael
Oakeshott, em uma memorável reflexão:
Ser conservador é preferir o familiar ao
desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o
fato ao mistério, o real ao possível, o limitado ao
ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao
superabundante, o conveniente ao perfeito, a
felicidade presente à utópica (Oakeshott, 2012, p.
5).
Essa preferência pelo familiar e pelo conhecido e o rechaço às inovações
e mudanças súbitas são traços psicológicos do homem prudente e conservador
que teme o desconhecido, o diferente, o estranho, o que foge à normalidade e à
naturalidade. O homem conservador apega-se aos hábitos e às rotinas, anseia
pela estabilidade e por tudo aquilo que é previsível e que já foi testado e
comprovado pela experiência e prática cotidiana.
Cabe acrescentar que, além de uma estrutura mental, o conservadorismo,
ou melhor, a conservação, é um instinto animal básico, uma “lei biológica”,
como assinala o filósofo italiano Giuseppe Prezzolini (1979, p. 19): “A regra
universal da vida não é, pois, a evolução; é a conservação”. A conservação é a
regra; a mudança é a exceção; [...] os biólogos consideram-na um erro”.
Além de ser um instinto vital, a atitude conservadora é também um
princípio existencial e ontológico, uma postura filosófica que reconhece a
primazia do ser em relação ao devir, segundo assevera Prezzolini (1979, p. 21):
[...] o ser é a base do devir, e não ao contrário. Para
um conservador, o ser é mais importante que o
devir; a estabilidade, a perenidade, a continuidade,
tem mais importância que a revolução, a
interrupção ou a transformação. O ser é a realidade
absoluta distinta de todas as coisas acidentais do
mundo, que, em comparação, são modificáveis e
incompletas. Sem o ser não haveria o espetáculo do
mundo cambiante.
O princípio ontológico de conservação está presente em qualquer
sociedade humana normal e sadia. São as forças conservadoras que mantêm o
equilíbrio, o desenvolvimento orgânico, a permanência e a ordem da vida
comunitária. De acordo com o filósofo russo Nicolas Berdiaeff (1978, p. 121):
Elas preservam os vínculos entre as épocas,
impedem as fraturas definitivas desta continuidade,
unem o porvir com o passado. O revolucionarismo
é superficial, está separado das bases ontológicas, o
núcleo da vida. Esta superficialidade afeta todas as
ideologias revolucionárias. O conservadorismo tem
profundidade espiritual, volta-se para as origens
antigas da vida, está ligado às raízes, acredita na
existência de uma profundidade incorruptível e
indestrutível.
Por ser sobretudo uma atitude e uma mentalidade, o conservadorismo
não é uma ideologia. Na verdade, refuta e contesta todas as formas de
pensamento ideológico. É, segundo a feliz expressão cunhada por Frederick
Watkins (1966), uma anti-ideologia. Trata-se, resumidamente, de um modo de
pensamento concreto antinômico ao pensamento de tipo abstrato e utópico da
esquerda revolucionária.
Para o sociólogo Karl Mannheim (1987), a forma de pensar conservadora
é originalmente de índole prática, consistindo em orientações habituais fundadas
em crenças, tradições religiosas e mitos. O pensamento conservador inclina-se a
aceitar o mundo circundante com toda a acidentalidade de sua concreção, como
se fosse a própria ordem do mundo, com a qual o homem deve conformar-se e
reconhecer. Para o conservador, a realidade, o ser, o aqui e agora, não são
considerados como algo defeituoso e essencialmente negativo, mas como a
encarnação de valores e significados mais altos. Socialistas e liberais tendem
sempre a adotar uma orientação doutrinária e uma prática normativa, estão
constantemente pensando num mundo ideal e hipotético, em como o mundo e a
sociedade deveriam ser em um futuro possível. Os conservadores aceitam o
existente, a realidade, tal como é concretamente. Conforme sintetiza em uma
forma lapidar Giuseppe Prezzolini (1979, p. 29): “[...] o que o conservador quer
existe: o que deseja o radical é imaginário”.
Segundo o cientista político João Pereira Coutinho (2012), a disposição
política conservadora distingue-se não apenas das ambições utópicas e futuristas
dos revolucionários progressistas, mas também das posturas reacionárias que
romantizam o passado e anseiam pelo regresso a uma suposta Idade de Ouro,
que de fato jamais existiu. O reacionário, desse modo, seria um “revolucionário
do avesso”, que sonha em conduzir a sociedade para uma “felicidade utópica”
passada:
O conservadorismo político recusa os apelos do
pensamento utópico venham eles de
revolucionários ou reacionários. Mas o
conservadorismo não se limita apenas a recusar
esses apelos utópicos, que fazem da fuga para o
futuro (ou para o passado) um programa de ação no
momento presente. O conservadorismo, por
entender o potencial de violência e desumanidade
que a política utópica transporta, irá também reagir
defensivamente a tais apelos – e “reagir” é a
palavra crucial para entender o conservadorismo
como ideologia (Coutinho, 2014, p. 26).
Para Coutinho (2014), assim como para outros destacados cientistas
sociais, como Samuel Huntington, o conservadorismo apresentaria um caráter
ideológico. Seria uma ideologia reativa que, entretanto, não possuiria um ideal
substantivo e uma cartilha pronta e acabada, ao contrário dos traços ativos e
ideacionais das ideologias progressistas. É, assim, o conservadorismo uma
ideologia posicional e de emergência, pois surge diante de uma ameaça
específica e concreta que coloca em risco os fundamentos institucionais da
sociedade. Ideologia antiutópica e refratária a qualquer forma de extremismo e
radicalismo, o conservadorismo é um forte obstáculo aos intentos
revolucionários de construção de paraísos terrenais.
Inegavelmente, o conservadorismo é um dos aspectos centrais do
pensamento de direita. Não há como entender o espírito da verdadeira direita
sem compreender o sentido que as categorias reação, tradição e conservação têm
para essa cosmovisão. Todo homem de direita, consciente ou inconscientemente,
apresenta algum tipo de inclinação conservadora. Isso não quer dizer, entretanto,
que a visão de mundo de direita esgota-se por completo no conservadorismo.
Por meio de uma conhecida metáfora do automobilismo, pode-se afirmar
que o conservador simboliza o freio e o progressista, o acelerador. Essa simples
metáfora revela a existência de uma antítese fundamental entre a mentalidade
conservadora e a progressista. A mentalidade conservadora é realista, por vezes
pessimista e cética; em contrapartida, a mentalidade progressista é idealista,
otimista e racionalista. Enquanto o conservador tem sempre o espírito voltado
para o passado, o progressista revolucionário está sempre a pensar e imaginar o
futuro, o porvir radioso da revolução. O progressista quer levar a modernidade às
suas últimas conseqüências, radicalizando e intensificando os valores, ou melhor,
os contravalores nascidos do Iluminismo. O conservador desconfia dos “mitos
redentores e emancipadores da modernidade”, tendo seu olhar posto num mundo
e em princípios pré-modernos. O conservadorismo é o partido da prudência, do
equilíbrio e da moderação, o progressismo é o partido do movimento incessante,
da desordem ativista, da loucura revolucionária e da hybris. O revolucionário,
como um demiurgo, pretende transfigurar o mundo e a própria natureza humana;
por sua vez, o conservador, como um jardineiro cósmico, empenha-se na tarefa
de cuidar, manter, cultivar e aprimorar a natureza e a realidade[127]. Como salienta
Roger Scruton (2015a), o conservadorismo é a filosofia do vínculo afetivo; nossa
ligação emocional com as coisas que amamos nos inclina a protegê-las do mal e
da decadência:
O conservadorismo advém de um sentimento que
toda pessoa madura compartilha com facilidade: a
consciência de que as coisas admiráveis são
facilmente destruídas, mas não são facilmente
criadas. Isso é verdade, sobretudo, em relação às
boas coisas que nos chegam como bens coletivos:
paz, liberdade, lei, civilidade, espírito público, a
segurança da propriedade e da vida familiar, tudo o
que depende da cooperação com os demais, visto
não termos meios de obter isoladamente. Em
relação a tais coisas, o trabalho de destruição é
rápido, fácil e recreativo; o labor da criação é lento,
árduo e maçante. Esta é uma das lições do século
XX. Também é uma razão pela qual os
conservadores sofrem desvantagem quando se trata
da opinião pública. Sua posição é verdadeira, mas
enfadonha; a de seus oponentes é excitante, mas
falsa (Scruton, 2015a, p. 9).
O conservadorismo não intenciona preservar todas as coisas, mas apenas
as tradições, os valores e as instituições essenciais e permanentes para a
existência de uma comunidade civilizada, como a família, a religião, a
propriedade privada e a pátria. Conforme o filósofo político John Kekes (1997)
ressalta, trata-se de conservar somente aqueles arranjos políticos e culturais que
a história tem demonstrado serem valiosos para o florescimento de uma boa
sociedade, de uma vida humana digna e plena.
O homem de mentalidade conservadora é mais prático e empírico do que
teórico. É naturalmente receoso no que tange às especulações filosóficas
excessivas, não aceitando de bom grado os devaneios ideológicos e o mundo frio
e exangue das abstrações. É avesso aos saltos no escuro, às inovações bruscas e
radicais e a todos os tipos de modismos. Em suma, a disposição conservadora
nasce da experiência; experiência da espécie, experiência de uma comunidade,
experiência de uma pessoa, e não de uma teoria final, elaborada por um filósofo
em seu gabinete de trabalho, como explica Russel Kirk (2013, p. 128):
A atitude política e moral chamada de
conservadorismo não vem de um livro; de fato,
algumas das pessoas mais conservadoras que
conheci eram distintamente avessas a livros. As
fontes da ordem conservadora não são escritos
teóricos, mas, em vez disso, o costume, a
convenção e a comunidade. Edmund Burke (1729-
1797) não conseguia imaginar nada mais perverso
do que a alma de um “metafísico abstrato” em
política, isto é, um tolo ou um velhaco erudito que
imagina poder varrer as complexas instituições de
uma sociedade civilizada, penosamente
desenvolvidas ao longo de séculos de experiência
histórica, para pôr-lhes no lugar algum projeto
livresco de um paraíso terrestre de própria autoria.
Portanto, não existe um equivalente conservador
do Das Kapital (O Capital), de Karl Marx (1818-
1883); e se Deus quiser, nunca existirá.
Portanto, o conservador suspeita do idealismo e do otimismo ingênuo do
revolucionário que pretende transfigurar o mundo. Vê nessa ambição
desmesurada um sinal de imaturidade, conforme assevera o filósofo Richard
Weaver (2012, p. 191):
Ora, essa imersão na tarefa de reconstruir a
natureza é uma obsessão de adolescente. O jovem
não é senão um mero intelectual, alguém que crê
em idéias e pensa que as idéias podem dominar o
mundo. O homem maduro, por outro lado, vai
intelectualmente além, rumo à sabedoria.
Conquanto também creia em idéias, a vida
ensinou-lhe a contentar-se com vê-las
corporificadas, o que significa vê-las sob uma
espécie de limitação. Em outras palavras, ele
descobriu que a substância é parte integrante da
vida – e parte inelutável! E essa visão mais
humilde dos poderes do homem é a essência da
piedade. A longo prazo, ela é mais gratificante,
uma vez que a natureza parece mais tratável
quando nós a respeitamos, sem nos deixarmos
tomar por um desejo demasiado feroz de possuí-la.
Em linhas gerais, o conservadorismo representa uma força de contenção
às ideologias revolucionárias modernas de orientação jacobina e bolchevique.
Historicamente, surge como uma resposta crítica à Ilustração, à Revolução
Francesa, assim como à sociedade surgida da Revolução Industrial.[128] Assim, de
acordo com a feliz expressão de Fermandois (1996), o conservadorismo é uma
crítica da crítica, uma forma de ceticismo e prevenção frente à alegre aceitação
do novo, bem como a defesa de princípios que fazem possível a consolidação de
uma ordem social civilizada.
Conforme Russel Kirk (2013), o conservador está preocupado com a
manutenção e a preservação das “coisas permanentes”, sobretudo com o
problema da ordem moral e social e, por conseguinte, com a necessária
regeneração do espírito e do caráter. A problemática perene e crucial da ordem
interna da alma e da ordem externa da comunidade é o eixo em torno do qual
gravita toda a mentalidade e atitude propriamente conservadora.[129]
O que realmente distingue a mentalidade conservadora é a reação e a
resistência contra a desordem moral e cultural. Reação lúcida contra as forças da
subversão e resistência obstinada aos processos de dissolução da ordem
espiritual de uma comunidade. Logo, defesa de uma política prudencial e realista
em face dos esquemas utópicos, dogmáticos e abstratos da política ideológica
dos radicais e da esquerda.
Tratarei, agora, de alguns tópicos do pensamento conservador com a
ajuda, principalmente, de filósofos, cientistas sociais, historiadores, humanistas e
críticos literários que se identificam com essa orientação.

5.1 A sabedoria dos ancestrais

O conservadorismo vê o passado como uma bússola orientadora e um
modelo inspirador para o presente. Ora, é indubitável que a experiência histórica
e os acontecimentos passados legam aos homens e às sociedades ensinamentos
valiosos que necessitam ser preservados e transmitidos. O conservador percebe
com clareza essa verdade irrefutável e, desse modo, busca respeitar, de maneira
piedosa e com humildade reverente, seus predecessores, bem como velar pela
continuidade das tradições culturais, espirituais e morais de sua comunidade.
Concebe-se como um herdeiro, alguém que recebeu um grandioso e relevante
patrimônio moral e material; cabe aos indivíduos e às coletividades proteger esse
legado.
A ligação do homem com os tempos pretéritos e remotos, a dependência
das diversas culturas para com o seu acervo de tradições, hábitos, ritos e práticas
milenares é algo de misterioso e encantador, como explica o filósofo Berdiaeff
(1978, p.122):
[...] o passado, na verdade, não tem menos direitos
que o porvir, não é menos ontológico. As gerações
mortas não têm menos substância que as futuras.
[...] Experimentamos mais vivamente o sentimento
de eternidade quando nos voltamos para o passado.
Em que consiste o misterioso atrativo da beleza das
ruínas? Na vitória da eternidade sobre o tempo. Os
muros derruídos cobertos de musgos dos velhos
castelos, dos palácios e das igrejas apresentam-se a
nós como um fenômeno de outro mundo, como
impregnados de eternidade. Neste outro mundo, o
que é autenticamente ontológico opõe-se ao curso
destruidor do tempo. Este leva tudo o que é
demasiado temporal, tudo o que foi feito para a
comodidade terrenal, e conserva a beleza
incorruptível da eternidade, o que explica o
mistério da beleza e o encanto das antiguidades, da
lembrança e da magia do passado. Não só as ruínas
nos brindam este sentimento da vitória da
eternidade sobre o tempo, também os velhos
templos, as velhas moradas, os velhos trajes, os
velhos retratos, os velhos livros, as velhas
recordações. Tudo isso exibe o selo de uma grande
e magnífica luta livrada pela eternidade contra o
tempo.
Para o filósofo russo, as bases de um autêntico conservadorismo
encontrar-se-iam neste combate da eternidade contra o tempo, nesta resistência
do incorrupto frente à decadência. O conservadorismo seria não apenas uma
energia de preservação, mas de transfiguração e elevação.
Tal estima pela história e tradição é completamente incompatível com o
culto revolucionário das inovações, das mudanças abruptas e das grandes
rupturas. Conforme Berdiaeff (1978, p. 122):
O espírito revolucionário quer erigir a vida futura
sobre cemitérios, sem tomar em consideração as
pedras sepulcrais; quer estabelecer-se sobre os
esqueletos de pais e avós, rechaça e nega a
ressurreição dos mortos e a vida passada.
Há algo de misterioso e fascinante no antigo, no passado e, portanto, na
reverência conservadora à tradição; por sua vez, existe qualquer coisa de
derrisório e blasfemo no desprezo revolucionário pelo passado. Acerca disso,
comenta com argúcia Berdiaeff (1978, p. 124):
A atitude revolucionária [...] a respeito do passado
é exatamente o oposto da religião da ressurreição.
O espírito revolucionário é incompatível com a
religião de Cristo, porque não deseja a ressurreição,
mas a morte de todo o passado [...], porque está
dirigida unicamente às gerações futuras e não
pensa nos antepassados mortos, não deseja
preservar um laço com aquilo que nos legaram. A
religião da revolução é uma religião da morte,
precisamente porque está absorvida inteiramente
pela vida terrena e atual. A religião de Cristo é a da
vida, justamente porque está referida não
unicamente aos vivos e a vida, mas também aos
mortos e a morte.
O espírito revolucionário, essencialmente anticristão e antitradicional,
pretende, em última instância, destruir os vínculos que nos unem às gerações
passadas e à memória dos que já não mais estão neste mundo:
Há na base do sentimento revolucionário da vida
[...] uma incredulidade profunda na imortalidade e
um rechaço desta. [...] O conservadorismo exige,
por princípio, que ao decidir os destinos das
sociedades, dos Estados e das culturas, escute-se
não só a voz dos vivos, mas, ainda, dos mortos, que
se reconheça não somente o ser real do presente,
mas também do passado, que não se corte o
vínculo com nossos mortos (Berdiaeff, 1978, p.
126).
Para o conservador, o passado é uma realidade que condiciona e
influencia o presente, que delimita nossas escolhas e decisões e configura nossos
gostos, nossas preferências e convicções. Não há doutrina política e social que
exalte tanto o valor e a importância do passado, que sublinhe com tanta certeza
que os homens e as sociedades são seres históricos e temporais. São as antigas e
imemoriais regras de vida e os costumes inveterados que enobrecem e dão um
sentido e uma orientação à vida dos povos. Dentre os variados hábitos morais, o
cavalheirismo e o espírito religioso, em especial, destacam-se como práticas e
princípios basilares que salvaguardam as sociedades da rudeza e da vulgaridade,
conforme ressalta Edmund Burke (1982, p. 102):
Nada é mais certo do que o fato de que os nossos
costumes e nossa civilização, e todas as coisas que
deles decorrem, dependem há séculos, na sua
Europa, de dois princípios; e resultaram, sem
dúvida, da combinação de ambos: quero dizer, o
espírito do cavalheirismo e o espírito da religião. A
nobreza e o clero, este por profissão e o primeiro
por patronato, vêm há inúmeras existências
aprendendo, mesmo no meio de armas e
confissões, e mesmo quando os governos estavam
ainda sendo formados. A aprendizagem devolveu à
nobreza e ao clero o que deles haviam recebido, e
pagou com usura, alargando suas idéias e
alimentando suas mentes. Felizes teriam sido se
tivessem todos continuado a conhecer sua união
indissolúvel e seus respetivos lugares! Felizes
teriam sido se a ciência, ainda não desviada pela
ambição, se satisfizesse em continuar como
instrutor e não aspirasse ao poder! Pois, agora, ela
se encontrará, como seus protetores e guardiões,
atirada ao lodo e lançada aos pés de uma ignóbil
multidão.
Para Burke, a nobreza e o clero e, igualmente, o espírito de
cavalheirismo e a religião, eram forças que ordenavam o corpo social; ademais,
criavam uma determinada atmosfera, um clima de heroísmo e devoção que
favorecia a coesão social e a estabilidade das instituições. O declínio desses
estamentos sociais, e, desse modo, de seus hábitos morais, resultou em parte da
ascensão da burguesia e, portanto, das atividades comerciais e mercantis, assim
como do estilo de vida que caracteriza esse grupo social. O avanço da burguesia
e do espírito comercial e capitalista colaborou decisivamente para o surgimento
do culto ao progresso, para o fortalecimento de uma visão propriamente
burguesa e liberal, segundo a qual o desenvolvimento econômico e industrial e a
evolução vertiginosa das ciências e das técnicas trariam ao mundo uma nova era
de paz, liberdade, prosperidade e felicidade. Além disso, a fé no progresso
material e científico está intimamente relacionada com o processo de
secularização societal, com a consolidação de uma orientação existencial e
valorativa mundana, voltada, prioritariamente, para o mundo natural e para a
imanência. O otimismo progressista da mentalidade liberal e burguesa, com o
seu cortejo de imagens e narrativas utópicas e triunfalistas, impulsionou a
destruição definitiva do espírito de nobreza e de devoção religiosa presente nas
sociedades do antigo regime. Nas esperanças seculares iluministas de uma
evolução progressiva e de um final da história subjaz uma versão laicizada e
naturalizada da mensagem cristã.
Os conservadores são avessos à ideologia do progresso, um dos
elementos centrais da modernidade, fundada numa equivocada visão da história
que coloca a sociedade ocidental democrática e capitalista como o ápice da
evolução social. Conforme elucida o sociólogo Robert Nisbet (1987, p. 151):
De muitas maneiras, a crítica mais dura dos
conservadores à idéia de progresso foi a negação
da sua perspectiva global da história, uma
perspectiva baseada na suposição de alguma
grande entidade conhecida por humanidade, que é
como um único ser humano individual vivendo
através do tempo e aperfeiçoando-se lenta, gradual
e continuamente no seu intelecto e na sua moral,
durante muitos séculos. Mas esta imagem serve
melhor como metáfora e como profecia do que
como análise e compreensão: é a essência de
grande parte da resposta conservadora à filosofia
do progressismo no século XIX e também no
século XX. O resultado do progressismo no
espírito liberal e socialista foi a glorificação da
sociedade ocidental como supra-sumo da história
humana.
Na defesa conservadora da tradição, surge a intuição de que esse acervo
de saberes, crenças, valores e práticas não é uma mera invenção humana, uma
construção artificial, que, portanto, pode ser destruída e aniquilada, como
querem os racionalistas e progressistas. A tradição é sim uma espécie de “capital
cultural”, um acúmulo compendiado de princípios, conhecimentos e
experiências, ou melhor, um conhecimento social, segundo assevera Roger
Scruton (2015b, p. 86):
Uma verdadeira tradição não é uma invenção; é um
subproduto involuntário da invenção, o qual
também torna possível essa invenção. Nossa
tradição musical é exemplo surpreendente disso.
Nenhuma pessoa a criou. Cada colaborador
baseou-se em conquistas anteriores, descobrindo
problemas e resolvendo-os por meio da constante
expansão da sintaxe comum. A notação
desenvolveu-se simultaneamente à harmonia e ao
contraponto. Uma única pessoa não poderia ter
descoberto o conhecimento do ouvido e do coração
humano, que essas práticas contêm, assim como
uma única pessoa não pode descobrir uma língua.
O exemplo mostra o que uma tradição realmente é:
não um costume nem um ritual, mas uma forma de
conhecimento social. Com “conhecimento social”
eu me refiro ao tipo de conhecimento incorporado
no direito consuetudinário, nos procedimentos
parlamentares, nos hábitos, nos costumes e nas
convenções sociais e também na moralidade.
A tradição de um povo, a “sabedoria dos ancestrais”, é uma herança
moral inestimável que protege e previne as sociedades da presunção do
racionalismo, como bem ensina Edmund Burke (1982, p. 108):
Tememos colocar os homens para viverem e
comerciarem cada um com o seu próprio estoque
de razão, porque suspeitamos que o fundo de cada
homem é pequeno e os indivíduos fariam melhor se
utilizassem o banco geral e o capital das nações e
dos séculos.
As tradições de uma sociedade cumprem um papel pedagógico,
verdadeiramente formador, conforme explica João Pereira Coutinho (2014, p.
60):
Partindo desse imperativo de conservação de
princípios ou instituições que se consideram
importantes para a comunidade presente, o
conservador vai retirar das tradições os seus
ensinamentos fundamentais. Em primeiro lugar, as
tradições começam por ter uma função educacional
evidente. Para usar a linguagem
inconfundivelmente poética de Oakeshott, são as
tradições de uma comunidade que permitem ao
indivíduo, isoladamente considerado, entrar na
“grande conversa da humanidade”. As tradições
fornecem aos indivíduos a gramática básica dessa
conversa, impedindo que estes se tornem, nas
palavras de Burke, meras “moscas de verão”:
existências breves, desgarradas e desabitadas de
qualquer referência social, cultural e moral. Um
conservador entende que nascemos, crescemos e
atuamos no interior de uma tradição [...].
A defesa conservadora das tradições, dos costumes e do respeito pelo
passado é inseparável da deferência para com os mortos. Para o
conservadorismo, não se deve apenas levar em consideração as necessidades, os
desejos e os interesses dos vivos, das gerações atuais e futuras, mas, também,
das gerações passadas e dos mortos, conforme esclarece Roger Scruton (2015b,
p.110):
Há, porém, uma razão muito mais profunda para
incluir os mortos e os desejos deles em nossos
cálculos. Desde o início dos tempos foi o respeito
pelos mortos que formou a base das instituições.
Escolas, universidades, hospitais, orfanatos, clubes,
bibliotecas, igrejas, institutos surgiram como
fundações privadas dependentes da propriedade
doada ou legada pelas pessoas falecidas. Os
detentores efetivos dessa propriedade eram,
moralmente falando, seus administradores
temporários. O respeito pelos mortos proibia o uso
arbitrário de seu legado e obrigava os
administradores a promover propósitos que os
fundadores e doadores aprovariam. Ao honrarem
os mortos, os administradores vivos
salvaguardavam os interesses dos sucessores. O
respeito pelos mortos é o fundamento da atitude do
administrador, do qual as futuras gerações
dependem para a sua herança. Tirem-se os mortos
da equação, e serão excluídos também os não
nascidos. E esse, francamente, é o verdadeiro
perigo da democracia não moderada.
Ressalto, contudo, que o conservadorismo não é imobilismo.[130] Não é
muito menos uma aceitação passiva do status quo reinante. Nem tudo merece ser
conservado. O que realmente necessita ser conservado são apenas os valores e as
instituições essenciais à existência de uma comunidade humana ordenada e
relativamente equilibrada. Trata-se, assim, de manter e preservar todas as
realidades fundamentais e basilares que estão conforme o ser do homem e a
natureza das coisas. Conservar o essencial e reformar de maneira prudente,
gradual e sensata o acessório e circunstancial, eis o cerne da atitude
conservadora. Como atesta Berdiaeff (1978), a verdade do conservadorismo não
está em frear e impedir a criação do porvir, do amanhã, mas em preservar o
eterno e o incorruptível do passado.

5.2 O conservadorismo e a sociedade humana

Para os conservadores, a perspectiva atomística do individualismo
liberal, que, grosso modo, considera a sociedade humana como um conjunto de
indivíduos isolados, sem vínculos e sem raízes, é inaceitável, uma mera
construção ideológica sem sentido concreto. Concebem-na metaforicamente
como um organismo histórico, dinâmico e complexo. O conservadorismo parte
de um prisma holista sobre a vida social. A sociedade é percebida como um
sistema, uma estrutura, uma totalidade ordenada. Assim, o sistema social não
poder ser reduzido à simples soma das partes que o compõem.
A perspectiva conservadora discorda da idéia de que as sociedades
humanas foram criadas pela razão individual. A sociedade não é um artefato, um
produto artificial construído unicamente pela vontade humana, e que nasce a
partir de um fictício pacto entre os indivíduos. As sociedades têm suas raízes
mais profundas na própria natureza humana e no passado. São, desse modo,
manifestações de inclinações básicas do homem e de um longo processo de
evolução histórica. Formam uma estrutura com características específicas, uma
ordem moral que, histórica, lógica e eticamente, como explica o sociólogo
Robert Nisbet (1981), possui primazia sobre os indivíduos. De modo que, para a
direita conservadora, o homem só existe efetivamente no interior de uma dada
comunidade. Em linhas gerais é a sociedade, com seu conjunto articulado de
instituições e valores, que forma e constitui os indivíduos. O homem está, de
modo inextricável, inserido numa série de grupos sociais, em redes de interações
e instituições cooperativas.
A sociedade humana forma uma comunidade de almas, uma “associação
dos mortos, dos vivos e dos não nascidos”, como lembra Edmund Burke (1982),
que não pode ser reduzida a um simples contrato forjado pelas partes,
unicamente movida por interesses temporários, transitórios e grosseiros, que,
desse modo, pode ser facilmente dissolvida pelo desejo dos seus membros:
O Estado é uma associação que leva em conta toda
ciência, toda arte, toda virtude e toda perfeição; e
como os fins de tal associação não são obtidos em
muitas gerações, o Estado torna-se uma associação
não só entre os vivos, mas também entre os que
estão mortos e os que irão nascer. Os contratos que
regem cada Estado em particular são cláusulas do
grande contrato primitivo da sociedade eterna, que
liga as naturezas mais baixas às mais elevadas, liga
o mundo visível ao mundo invisível, conforme a
inviolável lei que mantém todas as naturezas
morais e físicas, cada um em seu lugar determinado
(Burke, 1982, p.116).
Os indivíduos são partes e elementos da realidade social que os envolve
e condiciona seus modos de ser, pensar e agir; é na ordem social que encontram
o apoio necessário para a realização de seus objetivos, conforme explica Roger
Scruton (2015b, p. 128):
Para uma visão conservadora das coisas, é
fundamental (como sugeri) que os indivíduos
busquem e encontrem sua realização na sociedade
e que se reconheçam como parte de uma ordem que
é maior que eles mesmos, no sentido de
transcender tudo o que possa ter ocorrido por meio
do seu próprio acordo voluntário. Eles devem ver a
si próprios como herdeiros, e não como criadores
da ordem da qual participam, para que possam
derivar dela [...] os conceitos e os valores que
determinam a autoidentidade.
O conservador acredita que todo costume, toda tradição e instituição
servem a alguma necessidade básica da vida humana, cumprem uma função
social, contribuindo com alguns serviços e atividades indispensáveis para a
existência de uma comunidade (Nisbet, 1981). As instituições e os costumes que
venceram o teste do tempo têm uma razão de ser, uma utilidade e finalidade.
Descortina-se no conservadorismo uma perspectiva funcionalista da vida social:
Os conservadores lembram antropólogos
funcionalistas, em sua preocupação com os efeitos
a longo prazo dos costumes sociais e das
instituições políticas. Eles vêem sabedoria naquelas
idéias preconcebidas, imediatas e consoladoras,
segundo as quais as pessoas conduzem suas vidas,
e mostram resistência para aprovar a reforma das
instituições, que parecem promover a felicidade
daqueles que se sujeitam a elas, bem como a
qualquer uma que venha a ser oferecida no lugar
delas (Scruton, 2015b, p. 310).
Como herdeiros que somos, temos o dever moral de reconhecer e
demonstrar nosso afeto e nossa dívida de gratidão para com as tradições, os
costumes, as instituições e os laços sociais que nos protegem e auxiliam em
nosso desenvolvimento pessoal, segundo a bela lição de Roger Scruton (2015b,
p. 318):
As pessoas nascem num emaranhado de ligações;
elas são nutridas e protegidas por forças cujo
funcionamento não poderiam nem autorizar nem
intencionar. Sua própria existência carrega uma
dívida de amor e gratidão, e é ao reagir a essa carga
que elas começam a reconhecer o poder do
“dever”. Não é o “dever” abstrato e universal da
teoria liberal – ou pelo menos ainda não –, mas o
“dever” concreto e imediato das ligações de
família. É o “dever” da piedade, que reconhece a
integridade inquestionável dos laços sociais
condicionados local, transitória e historicamente.
Esse “dever” é essencialmente discriminatório; ele
não reconhece nem a igualdade nem a liberdade,
mas apenas a reivindicação absoluta do localmente
dado.
Ao colocar o ego e suas ânsias e cobiças no centro da realidade, o
individualismo das sociedades modernas tende a rejeitar esses vínculos e elos,
bem como a existência de uma fonte de ordem que se situe fora da subjetividade.
Esse egoísmo extremo e arrogante nega qualquer tipo de reverência e piedade
para com o mundo, as outras pessoas e o passado, conforme explica o filósofo
Richard Weaver (2012, p. 189):
A piedade é uma disciplina da vontade exercida
através do respeito. Ela reconhece a existência de
coisas maiores do que o ego, de coisas diferentes
do ego. E, antes de podermos trazer a harmonia de
volta a um mundo em que então tudo parece
encontrar-se “em mero combate”, será preciso,
com espírito de piedade, levar três coisas em
consideração: a natureza, nossos próximos – ou
seja, todas as demais pessoas – e o passado.
Ora, diante da fragilidade intrínseca das instituições sociais e da
possibilidade de serem debilitadas e destruídas, ou mesmo alteradas
radicalmente, urge defendê-las e preservá-las. Aniquilar as instituições é bem
mais fácil que mantê-las fortes e íntegras, como lembra Edmund Burke (1982, p.
166):
É necessário habilidade para destruir e modificar?
Isso o populacho faz tão bem quanto as suas
Assembléias. A inteligência mais superficial, a mão
mais inábil são todas iguais nessas tarefas. A raiva
e o delírio destroem em uma hora mais coisas do
que a prudência, o conselho, a previsão não
poderiam construir em um século.
O conservadorismo destaca o princípio da autoridade, não considera a
liberdade individual um valor central e absoluto, pleiteia uma liberdade
vinculada à ordem e às instituições, uma liberdade ordeira e virtuosa de acordo
com a lição de Burke (1982, p. 220):
Mas o que é a liberdade sem a sabedoria e a
virtude? É o maior dos males, pois é apenas
extravagância, vício e loucura exercendo-se sem
proteções e sem constrangimentos. Aqueles que
sabem o que é a liberdade virtuosa não podem
suportar vê-la desonrada por homens incapazes, em
função de palavras sonoras que lhes saem da boca.
No interior de suas comunidades, os seres humanos desempenham
variados papéis e funções sociais, não são, portanto, meros átomos individuais,
simples unidades isoladas, sem passado, raízes e laços comunitários. E,
principalmente, é nos grupos sociais naturais, como a família, a igreja, as
associações profissionais e a comunidade local, que o eu, a individualidade,
forja-se e encontra os suportes necessários para o seu desenvolvimento. Essas
associações intermédias são os verdadeiros muros protetores da liberdade
individual e social diante do poder invasivo do Estado centralizador. Além disso,
são esses corpos intermediários que estão mais preparados para o desempenho
de atividades de assistência e solidariedade social, segundo destaca o sociólogo
Robert Nisbet (1987, p. 105):
Existem grupos, a começar pela família e incluindo
a vizinhança e a Igreja, que estão devidamente
constituídos para prestar assistência na forma de
auxílio mútuo, e não como caridade de altos vôos
proveniente de uma burocracia. Tais grupos são
corpos mediadores por natureza; estão mais perto
do indivíduo e, na sua própria força comunal, são
aliados naturais do indivíduo. O objetivo primeiro
do governo é olhar pelas condições de força desses
grupos, na medida em que, por força de séculos de
desenvolvimento histórico, eles são os mais aptos a
tratar da maioria dos problemas dos indivíduos.
Mas passar por cima desses grupos por meio de
auxílio social dirigido diretamente a uma
determinada espécie de indivíduos é – argumenta o
conservadorismo – um convite imediato à
discriminação e à ineficácia, e uma maneira
implacável de destruir o significado dos grupos. O
desuso e a atrofia aplicam-se de fato muito bem à
evolução social. Lamennais disse-o bem: a
centralização provoca apoplexia no centro e
anemia nas extremidades.
Nos grupos naturais, o homem encontra consolo e amparo, educa-se e
civiliza-se. Ademais, a força de uma comunidade humana está justamente em
seus corpos intermediários. Uma sociedade é forte quando composta por
famílias, igrejas e associações profissionais, educacionais e culturais sadias e
vigorosas.

5.3 O conservadorismo, a esfera da política e o problema das
ideologias

A política, segundo os conservadores, é a arte do possível. Trata-se,
ademais, de uma ciência prática que necessita estar baseada na experiência e na
observação histórica. É uma atividade específica e restrita, “uma ordem
superficial”, que, assim, sob nenhuma hipótese deve invadir e colonizar os
demais campos da vida social. Segundo assinala John Gray (2008, p. 313):
No que tem de melhor, a política não é um veículo
de projetos universais, mas a arte de reagir ao fluxo
das circunstâncias – o que não requer nenhuma
visão grandiosa do progresso humano, apenas a
coragem de enfrentar os males que estão sempre aí.
O conservadorismo propõe uma política prudencial e realista em face dos
esquemas utópicos, dogmáticos e racionalistas da política ideológica dos radicais
e da esquerda, conforme assevera Russel Kirk (2013). Como conseqüência, a
direita conservadora entende que o Estado e o ato de governar precisam ser
limitados e moderados em suas atividades e funções. Não cabe ao Estado impor
modos de vida, reconfigurar as instituições sociais com base em idéias e
modelos abstratos, assim como reformar e melhorar substancialmente a vida das
pessoas. Como ressalta Michael Oakeshott (2012, p. 21):
A função do governo não reside em impor crenças
e atividades aos seus súditos, da mesma forma que
não deve protegê-los nem educá-los; nem em fazê-
los melhores ou mais felizes de outra forma; nem
em comandá-los ou estimulá-los à ação, nem guiá-
los nem coordenar as suas atividades de modo a
que não se produza nenhuma ocasião de conflito. A
função do governo consiste, simplesmente, em
governar. Esta é uma atividade específica e
limitada, facilmente corruptível quando combinada
com outras e, dadas as circunstâncias,
indispensável. A imagem do governante deve ser a
de árbitro cuja função consiste em aplicar as regras
do jogo, ou a de um moderador que dirige um
debate sem participar dele.
O Estado deve ser o guardião da ordem social, protegendo o ethos da
comunidade. Jamais pode ser considerado como a finalidade da vida coletiva,
mas sim como um meio necessário e útil para a realização do bem comum. Não
é tarefa do governo e da ordem estatal fomentar os desejos e as ambições
desmedidas, suscitar conflitos e inimizades, despertar paixões vis e egoísticas.
Pelo contrário, conforme explica Michael Oakeshott (2012, p. 25):
O conservador entende que a função do governo
não consiste em alimentar paixões e dar-lhes novos
objetivos com que possam alimentar, mas sim em
introduzir um ingrediente de moderação nas
atividades de pessoas demasiado apaixonadas,
limitar, desencorajar, pacificar e reconciliar; não
atiçar o fogo do desejo, mas sufocá-lo.
Vale lembrar que o pai do conservadorismo moderno, Edmund Burke,
salienta, em seu memorável Reflexões sobre a Revolução em França, que o
governo é uma invenção da sabedoria humana para atender às necessidades
humanas. Cumpre, mormente, o importantíssimo e destacado papel de
constranger e restringir as inclinações viciosas e as paixões sórdidas dos
indivíduos.
Políticas de imperfeição (Quinton, 1978) são próprias do realismo
antropológico e sociológico do conservadorismo, pois partem do princípio de
que os homens são seres falíveis, frágeis e insuficientes.[131] Assim, a atividade
política e todos os projetos sociais construídos pela racionalidade humana
padecem da imperfeição e deficiência que caracterizam a criatura humana e suas
instituições. O conservador está perfeitamente consciente do fato de que não
existe perfeição no mundo da política e das relações sociais. Por conseguinte,
entende que a função do Estado é “mitigar os males naturais e inevitáveis da
vida humana e refrear-se de contribuir para eles” (Gray, 2011, p. 153). Contudo,
apesar de o Estado defendido pelo conservadorismo ser limitado em suas
funções, não é o Estado mínimo, gendarme, e inerte do liberalismo
individualista, como acentua o filósofo político John Gray (2011, p. 157):
Contrariamente ao neoliberalismo, um governo
conservador tem boas razões para preocupar-se
com o bem-estar e a virtude de seus súditos, já que,
se estes não forem promovidos, a sociedade civil
liberal decairá e a lealdade do Estado tenderá a
diminuir. Por esse motivo, os conservadores devem
resistir à pressão pela desestabilização política da
moralidade, que é a pedra angular comum do
liberalismo em suas variedades libertária ou
igualitária revisionista.
Se, por um lado, para a perspectiva conservadora, a política é concebida
como uma das múltiplas dimensões da vida humana, por outro, as ideologias
nascidas na modernidade tendem a sacralizar a política. De uma das várias
esferas da vida social, ela é transformada no centro ordenador da vida humana.
De meio e instrumento para busca da ordem social ela transmuta-se em um fim
em si mesmo: tudo é politizado e colonizado por interesses de ordem política. A
absolutização da política na modernidade tem, evidentemente, um caráter
patológico. É ela a fonte de todos os utopismos, dogmatismos, totalitarismos e
maniqueísmos que marcaram os últimos séculos da história humana.
A sacralização e absolutização da política acabam por instrumentalizar os
variados campos da vida social. A educação, a ciência, a cultura, a arte e a
religião tornam-se servas do poder político, perdendo sua autonomia e
independência. Além disso, o messianismo político moderno parte de esquemas
doutrinários abstratos e apriorísticos, de uma visão dogmática, racionalista e
uniformizadora que violenta a complexidade multifacetada da realidade social. O
messianismo político moderno anseia por uma mutação radical da natureza
humana e da vida social. Almeja, obstinadamente, a construção de uma
sociedade ideal, perfeita, sem tensões e desequilíbrios. Ambiciona, por meio de
um amplo processo de planejamento e engenharia social, a realização do paraíso
na terra. Conforme o teórico político Michael Oakeshott (1996), trata-se da
percepção moderna e progressista da “política de fé”, da crença nos poderes
demiúrgicos e alquímicos da ação política. A fé na política, a transformação da
política num modo de crença, como uma espécie de panacéia universal, está
intimamente relacionada com as ideologias políticas surgidas na modernidade.
Mais ainda: é uma expressão categórica da mentalidade ideológica que permeia
a cultura ocidental dos últimos quatro séculos.
A linguagem da ideologia visa a engendrar padrões de comportamento e
conduta, mobilizando as massas, confortando-as e criando nelas um sentido de
identidade grupal por meio dos encantos ilusórios de um mito político. As
ideologias políticas modernas configuram-se, até certo ponto, como sucedâneas
das religiões tradicionais.[132]
As utopias e ideologias políticas são falácias que, enganosamente,
apontam para uma solução única, cabal e completa dos problemas, dos conflitos
e das misérias humanas, assim manifestando, implicitamente, um modo de
recusa do real, segundo assevera Roger Scruton (2011, p. 75):
Para a pessoa que confia a solução de todos os
problemas a uma única solução final, a realidade é
destituída de esperança e de soluções. Tem que ser
forçada a ajustar-se a outro molde e, para esse fim,
serão necessárias novas formas de governo e novos
poderes de longo alcance. Assim, por trás da utopia
avança em simultâneo outro objetivo, que é o
desejo de vingança contra a realidade.
Enquanto que, para o conservadorismo, o conjunto dos valores morais,
sociais, culturais e religiosos de uma coletividade precisa ser custodiado pela
política, no ativismo político moderno de caráter messiânico e milenarista busca-
se a total transmutação dos valores de uma sociedade, com a finalidade de
construir uma nova ordem social e um novo homem liberto de todas as peias e
limitações impostas pelas tradições religiosas e morais de uma dada
comunidade.

5.4 O conservadorismo e a economia de mercado

O conservador é simpático à economia de mercado, reconhece os
inegáveis e visíveis benefícios materiais e a eficiência do sistema capitalista.
Porém, não acredita que o mercado seja capaz de resolver todos os problemas
humanos. Nem tudo é negociável, nem tudo pode ser mercantilizado. O mercado
precisa estar subordinado a uma ordem legal e moral. Sem essas restrições
jurídicas e éticas, torna-se uma força dissolvente.
Segundo Scruton (2015a), para a filosofia política conservadora, há, na
vida das civilizações, um universo de bens e práticas inestimáveis e inegociáveis
que possui um caráter sagrado. A família, o amor, a amizade, a religião, a beleza
e a comunidade são realidades que apresentam um valor intrínseco e não
instrumental; são instituições que transcendem o cálculo econômico de custo-
benefício e que, desse modo, nada tem que ver com a mera satisfação de
instintos e impulsos egoísticos. São, em suma, valores comunitários e
civilizacionais que necessitam ser protegidos e defendidos da sanha das forças
sociais e de indivíduos que agem movidos unicamente pela lógica mercantil e
por interesses materiais.
Os conservadores estão particularmente atentos às conseqüências
desumanizantes de uma economia desregulamentada, sem freios e controles, e,
ademais, a um modelo materialista de sociedade que faz da busca pelo lucro,
bem como do incremento da produção e do consumo, o eixo da vida humana,
como bem aponta Russel Kirk (2013, p. 196):
Uma economia obcecada com um suposto Produto
Interno Bruto, não importa o que ou como seja
produzido, acaba por ser tornar desumana. Uma
sociedade que pensa somente em uma suposta
eficiência, independentemente das conseqüências
para os seres humanos concretos, cava a própria
ruína.
De um modo geral, o conservadorismo não acredita que os problemas e as
questões de ordem política e econômica sejam centrais e decisivos numa
comunidade humana, pois chama atenção para a importância crucial dos fatores
culturais, morais e religiosos na formação e no desenvolvimento dos indivíduos
e das coletividades.

5.5 O conservadorismo e a esfera da educação e da cultura

Entre o conservadorismo e o universo da cultura e da educação existem
laços estreitíssimos. Segundo Berdiaeff (1978), a cultura supõe o princípio
conservador que preserva o passado e ressuscita os mortos. Além disso, a esfera
da cultura está, de forma inextricável, relacionada com o sagrado e a tradição. É
sempre importante lembrar que a palavra cultura se origina de culto, e sem a
sucessão hereditária a cultura torna-se uma impossibilidade:
Nesta há sempre um vínculo sagrado entre os vivos
e os mortos, entre o presente e o passado: há
sempre uma veneração dos antepassados e uma
energia que tende a ressuscitá-los; a cultura
recebeu uma herança recôndita, essa reverência das
lápides sepulcrais e dos monumentos funerários,
essa preservação do vínculo sagrado dos tempos. A
cultura procura, a seu modo, refirmar a eternidade
(Berdiaeff, 1978, p. 130).
Não existe verdadeiro conservadorismo político sem conservadorismo
cultural. Nesse sentido, a preservação e a transmissão da autêntica e sã cultura
estão entre as tarefas principais do homem conservador.
Para a filosofia conservadora, a cultura não pode ser confundida com
entretenimento e diversão. A cultura não é um ornamento, um mero adorno
estético, mas é sobretudo a alma de uma sociedade, o farol que ilumina e orienta
a vida dos indivíduos e das coletividades. A cultura é vista, pelos conservadores,
como o conjunto de idéias, crenças e valores que salva do naufrágio vital, assim
permitindo ao homem viver sem que sua vida seja uma tragédia sem sentido
(Ortega, 2001). Uma sociedade ou um indivíduo inculto não vive uma vida
plenamente humana, não vive uma vida significativa, apenas sobrevive,
satisfazendo suas necessidades físicas básicas. É a cultura que dá à vida
individual e coletiva um sentido mais elevado, possibilitando que se tenha acesso
ao mundo das idéias, dos valores, das tradições e dos símbolos de conteúdo
universal e supratemporal. Ora, é a cultura que refina a sensibilidade e a visão do
mundo, aperfeiçoa a mente e a imaginação, emancipando o homem do
imediatismo. A cultura superior estimula os juízos e a reflexão moral e estética,
como acentua Roger Scruton (2015a, p. 230):
Uma cultura é uma maneira de transmitir, de
geração para geração, o hábito do juízo. Este hábito
de julgamento é vital para o desenvolvimento
moral e é o fundamento dos ritos de passagem
pelos quais os jovens deixam a fase de
adolescência e assumem obrigações na vida adulta.
Por isso, uma sociedade sadia requer uma cultura
sadia, e assim o é, mesmo que a cultura, como a
defino, não seja fruída por muitos, mas por poucos.
O homem dotado de cultura distancia-se do provincianismo, alça vôos
mais altos, transcende os pontos de vista estreitos de seu tempo e de sua época.
Entra em contato com um complexo de idéias perenes e imorredouras, com as
“coisas permanentes”, como asseverava o poeta e crítico literário T. S. Eliot.
Conhecimentos permanentes que não são elucubração estéril, mas tesouros
intelectuais que enriquecem e estruturam a personalidade humana, dando-lhe
maior amplitude, profundidade e densidade.[133]
Os conservadores sublinham a importância dos padrões e cânones
culturais e artísticos. Sem a manutenção de padrões e convenções, a civilização
soçobra. Para o crítico literário Irving Babbitt (2003), a anarquia que campeia na
esfera da cultura, letras e artes resulta de uma anarquia das emoções que,
contudo, tem uma origem mais sutil em uma anarquia da imaginação.
Os hábitos, a disciplina, os exemplos e os paradigmas são essenciais no
universo da cultura e da educação, conforme explica Babbitt (2003, p. 318):
Possuir padrões significa, na prática, selecionar e
rejeitar; e isso também significa que é preciso
disciplinar sentimentos e afeições, para usar o
termo mais antigo, em relação a algum centro
ético. Para que a disciplina seja efetiva, de modo
que o homem possa gostar e desgostar das coisas
certas, é mister que, como regra, tal disciplina se
torne uma questão de hábito, e quase que a partir
da infância.
O declínio dos padrões e a ausência de modelos e de disciplina produzem
efeitos deletérios no processo de formação intelectual e moral das novas
gerações. Os novos modelos de educação abandonaram por completo “os antigos
e tradicionais padrões” em nome de ideais e princípios vagos como a justiça
social, a inclusão, a democracia, a eficiência técnica e o serviço social. Na
realidade, a educação moderna é resultado da mentalidade tecnicista, ideológica
e utilitária que permeia a cultura atual. De acordo com Babbitt (2003, p. 322):
A educação antiga, pelo menos na intenção, era um
treinamento para a sabedoria e o caráter. A nova
pode ser sintetizada na frase do reitor Eliot:
treinamento para o serviço e para o poder. Estamos
todos caminhando, mais e mais, para essa idéia de
serviço. Conquanto o serviço nos esteja, de alguma
forma, suprindo uma convenção, ele não está, seja
no sentido humanista seja no religioso,
proporcionando padrões. No sentido corrente da
palavra ele tende, em vez disso, a minar padrões,
caso seja verdade, como tentei mostrar, que
envolve uma suposição de justificativa complicada
em termos puramente psicológicos – a de que os
homens podem se reunir expansivamente e ao nível
de seus eus ordinários. A educação antiga baseava-
se na crença de que os homens necessitavam ser
disciplinados em relação a algum centro ético.
Segundo Russel Kirk (2013), a educação “antiga” buscava transmitir
uma herança moral, um conjunto de verdades e princípios religiosos,[134] bem
com um padrão de significados, percebidos por meio de certas disciplinas do
intelecto. Essa modalidade de educação procurava instruir as gerações vindouras
acerca da natureza da realidade e traçava um padrão de ordem: ordem na alma e
ordem na comunidade política. Para um dos pais do conservadorismo americano,
a educação, outrora, era fundamentada em certos postulados:
Um deles afirmava que muito da verdade é
alcançável; outro, que a verdade religiosa é a fonte
de todo bem; um terceiro, que podemos aproveitar
a sabedoria de nossos ancestrais; um quarto, que o
indivíduo é tolo, mas a espécie é sábia; um quinto,
que a sabedoria se persegue como um fim em si
mesmo; finalmente, que pelo bem da comunidade
política, o ensino deve despertar a imaginação
moral (Kirk, 2013, p. 311).
Esses postulados foram abandonados e esquecidos.[135] A educação atual
está preocupada com outras coisas, como a socialização, o treinamento técnico e
profissional, a luta contra as “desigualdades e a intolerância”, etc. A busca árdua
pela sabedoria e pela virtude e o desenvolvimento de um hábito mental
filosófico, ideais humanistas defendidos por Russel Kirk e outros autores
conservadores, desapareceram por completo do modelo moderno e
contemporâneo de educação.
Russel Kirk (2013) entende que a degradação educacional atinge, em
especial, as universidades. Em um ambiente social e cultural impregnado do
“dogma democrático”, as pressões niveladoras são gigantescas. Elas acarretam o
rebaixamento dos padrões e dos verdadeiros objetivos superiores do ensino
universitário:
O objetivo primário da educação superior, em todas
as terras e tempos, tem sido o que John Henry
Newman (1801- 1890)[136] chamou de treinamento
do intelecto para formar um hábito mental
filosófico. Faculdades e universidades foram
fundadas para desenvolver a reta razão e a
imaginação, em nome da pessoa e da república
(Kirk, 2013, p. 303).
Aprimorar o cultivo do intelecto e despertar a imaginação moral são as
metas mais elevadas da educação universitária. Portanto, esta instituição basilar
destina-se a oferecer duas espécies de benefício:
A primeira é o aperfeiçoamento da pessoa humana,
em prol do próprio indivíduo: abrir as portas de
alguma sabedoria aos rapazes e às moças, para que
haja algo mais na vida que adquirir e gastar. A
segunda espécie de benefício é a preservação e o
avanço da sociedade, por intermédio do
desenvolvimento de um corpo, ou classe, de jovens
que serão líderes em vários ramos de atividades:
cientistas, clérigos, políticos ou representantes,
funcionários, médicos, advogados, professores,
industriais, gerentes e várias outras coisas. A
universidade é um meio de auxiliar a formação dos
intelectos, garantir a competência e (um propósito
quase esquecido hoje em dia) colaborar na
formação do caráter (Kirk, 2013, p. 305).
É missão das universidades a formação e preparação de elites intelectuais
e políticas. É dessa instituição superior que devem nascer as novas lideranças de
uma sociedade sadia. Elites culturais e líderes em todos os setores da vida social,
dotados de verdadeiro saber e caráter, firmes, decididos, honestos e sensíveis aos
complexos problemas humanos. Líderes que sejam modelos e exemplos não só
de sabedoria, mas de conduta, que demonstrem coerência entre pensamento e
ação, que sejam modestos e recatados, que não se deixem levar pela vaidade e
pelo exibicionismo social, que sejam leais e sinceros, que, enfim, sejam
verdadeiras autoridades sociais.

5.6 O conservadorismo e a religião

Para Nisbet (1981), em oposição às filosofias racionalistas e materialistas,
os conservadores insistem na importância dos elementos sagrados, religiosos e
não-utilitários da existência humana. Argumentam que os homens não vivem
apenas movidos pela razão e por relações puramente contratuais e mercantis.
Toda tentativa de fundar a sociedade sobre princípios meramente seculares e
laicos e interesses materiais e egocêntricos é ruinosa.
O homem necessita do sagrado, carece de valores espirituais superiores
que transcendam o mundo físico. É, pela sua natureza, como alude Edmund
Burke (1982), um animal religioso. Mais ainda: precisa dar aos seus atos e às
suas ocupações um caráter ritual e cerimonial. Para a filosofia política
conservadora, a religião é uma força integradora e ordenadora da vida pessoal e
coletiva. Não somente reveste a existência dos indivíduos e das culturas de um
sentido mais elevado, como, principalmente, fortalece e unifica a consciência e o
espírito. É a religião um aspecto medular para a existência da ordem nas almas e
da ordem social:
Em larga medida, o apoio conservador à religião
baseava-se na crença bem fundamentada de que
todos os seres humanos, uma vez que se libertem
da ortodoxia, estão sujeitos a sofrer uma certa
perturbação, uma perda de equilíbrio. A religião,
escreveu Burke numa carta a seu filho, “é a
segurança do homem num mundo de outro modo
incompreensível e, portanto, hostil” (Nisbet, 1987,
p. 121).
O conservadorismo, corroborando as melhores teorias antropológicas e
sociológicas, constata que o religioso é um elemento de controle social e moral
e, desse modo, uma instituição e prática de inestimável relevância para conter os
impulsos, os instintos animais e as cobiças. A religião enriquece moralmente as
culturas ao estimular a vida espiritual. Ademais, as tradições espirituais, com as
suas doutrinas, suas rígidas moralidades, os seus ritos e símbolos, transmitem
aos homens uma forma de percepção da realidade, um modo particular de
compreender o mundo e agir sobre a realidade. Ao cultivar a vida interior e,
assim, fortificar o espírito, as religiões tornam os homens mais resistentes às
tentações mundanas e às ilusões do poder, do dinheiro e do prazer.
A religião é um dos pilares da sociedade. É, seguramente, a base e o
fundamento da civilização e da cultura. A ordem social e moral deriva dessa
fonte espiritual. Na visão conservadora, a religião cumpre um significativo papel
de manter a coesão social e robustecer os laços comunitários. Além disso, o
religioso transmite um halo de sacralidade às instituições e práticas sociais:
Independentemente da situação jurídica da Igreja,
ela continua provendo as instituições que mais
reforçam a adesão dos cidadãos às formas da vida
civil e que mais desviam a atenção deles de si
mesmos como indivíduos para focá-los neles como
seres sociais. Ela confere a cada tipo de tempo livre
uma beleza cerimonial; separa os dias de trabalho
dos dias de descanso; busca dignificar as
ocupações dos leigos e sustentar e satisfazer todo
esforço no qual a diligência ultrapassa o objetivo.
Sejam suas doutrinas fundamentais verdadeiras ou
falsas, ela é, sem dúvida, a mais importante de
todas as instituições cuja autoridade não coincide
com a autoridade do Estado (Scruton, 2015b, p.
271).
Desse modo, a religião encerra uma inquestionável dimensão pública e
social; não é, como querem muitos liberais e socialistas, uma mera questão de
sentimento pessoal e foro íntimo que, assim, deve estar restrita ao domínio
privado.
De acordo com Russel Kirk (1957), não haveria autêntico
conservadorismo sem um fundamento religioso. Conservadorismo e religião não
poderiam ser separados, pois o verdadeiro conservador seria, em sua essência,
um homem religioso. O conservador religioso estaria convencido de que todos
os homens têm deveres para com a sociedade e que o governo justo e legítimo
deveria estar orientado e subordinado à lei moral. O conservador deseja
preservar a natureza humana, manter os homens e as mulheres verdadeiramente
humanos como seres feitos à imagem e semelhança do Criador. Para o humanista
estadunidense, uma sociedade que nega as verdades da religião estaria mais
sujeita às arbitrariedades, aos totalitarismos e aos coletivismos.
Semelhante posicionamento já fora esgrimido por Lord Hugh Cecil
[137]
(1929), que asseverara, em seu tempo, que uma das funções mais importantes
do conservadorismo seria velar pela vida religiosa do povo desde a esfera da
política:
Enquanto o conservadorismo se consagre ao
cumprimento de sua missão religiosa fazendo dela
o primeiro de seus objetos, ficará preservado dos
dois perigos principais que alternativamente o
ameaçam, a saber: de um lado, o risco de
converter-se em uma mera variedade do
liberalismo, apenas diferenciada deste por não
portar nenhum princípio fundamental; por outra
parte, o perigo de consagrar-se à defesa das classes
pudentes, sem um sincero propósito de respeitar os
interesses da comunidade inteira, nem outro objeto
mais elevado que o triunfo de seu egoísmo. A
religião é a medida de acordo com a qual devem
estabelecer-se os programas políticos, e o espírito
religioso purificará seus fins e seus métodos.
Destacando esta verdade, o conservadorismo não
corre o risco de se converter em uma facção
supérflua nem em uma coletividade de egoístas
(Cecil, 1929, p 76).
Apesar dos indubitáveis elos entre o conservadorismo e a religião,
sublinhados por Kirk, Lord Cecil e outros autores, é preciso lembrar que nem
todo conservador é um homem religioso. Há, também, um conservadorismo
político de caráter secular e laico, sem vínculo com a religião.[138] Conforme
Nisbet (1987), é apenas o aspecto institucional da religião que está ligado ao
conservadorismo, de maneira que seria absurdo imaginar que os conservadores
teriam mais devoção religiosa que os liberais e socialistas:
Com certeza não é este o caso de qualquer dos
fundadores do conservadorismo político; nem de
Burke, Coleridge, Southey, Disraeli e Newman em
Inglaterra, ou de Bonald, de Maistre e
Chateaubriand em França. Para estes, a religião
era, acima de tudo, pública e institucional, algo a
que eram devidas lealdade e consideração
apropriada – um pilar valioso para o Estado e para
a sociedade, mas não uma doutrina profunda e
convincente e muito menos uma experiência total
(Nisbet, 1987, p. 116).
Muitos autores conservadores apontam para a existência de uma relação
umbilical entre o declínio da religião e a decadência de uma civilização. O
enfraquecimento e a perda de influência pública e cultural da religião
conduziriam as sociedades a um perigoso e, muitas vezes, irreversível processo
de desagregação normativa e degradação moral e intelectual.
O eclipse do sagrado e a perda de vitalidade do religioso relacionam-se
com a predominância de uma mentalidade racionalista e cientificista:
Parece bastante evidente que a principal causa da
perda da idéia do sagrado é a postura denominada
“cientificista” – isto é, a noção popular de que as
revelações das ciências naturais, ao longo dos
últimos séculos ou mais, de alguma forma
demonstraram a obsolescência das asserções da
igreja; informaram-nos que os homens e as
mulheres são apenas macacos nus; destacaram que
a finalidade da existência é simplesmente a
produção e o consumo; que a felicidade é a
gratificação dos impulsos sensuais; que as noções
de ressurreição da carne e de vida eterna são
superstições próprias da infância da espécie (Kirk,
2013, p. 267).
Nesta faina de demolição das bases religiosas e morais da civilização,
com o pulular e a difusão de uma mentalidade agnóstica, cética e secularista, o
conservadorismo enfatiza a ação de fanático proselitismo dos intelectuais, dos
letrados, das “elites pensantes” que, desejosas de prestígio e na busca por
novidades e mudanças, adotam e propagam posturas racionalistas e materialistas,
conforme assinala Edmund Burke (1982, p. 127):
Os escritores, sobretudo quando atuam
conjuntamente e no mesmo sentido, exercem uma
grande influência sobre o espírito público [...].
Esses escritores, como todos aqueles que propagam
mudanças, mostravam nos seus escritos uma
grande preocupação pelos pobres e por todas as
classes mais humildes da sociedade, enquanto que,
nas suas sátiras, procuravam tornar, sempre
exagerando, detestáveis os erros da corte, da
nobreza e do clero. Eles se tornaram demagogos e
desempenharam a função de elo entre as
disposições hostis dos detentores do capital e a
agitação desesperada dos miseráveis.

5.7 A direita conservadora e a esquerda revolucionária: algumas
notas conclusivas

O conservadorismo não é uma filosofia política que encoraja o retrocesso
e a regressão, com isso impedindo o desenvolvimento orgânico e equilibrado das
sociedades. É, na realidade, um princípio que faz frente à manifestação dos
elementos caóticos e bestiais na vida social, como bem alertou o filósofo russo
Nicolas Berdiaeff (1978, p. 133): “O sentido do conservadorismo não consiste
em obstaculizar o progresso e a elevação, mas em opor-se à regressão e ao
descenso até a noite do caos; impede a volta ao estado anterior à formação dos
Estados e das culturas”.
São as ideologias revolucionárias de esquerda que legitimam, justificam
e oficializam o caos e a desordem ao fazer destes os princípios orientadores da
existência, assim dando uma sanção racionalista ao caos. Para Berdiaeff, a
negação revolucionária de todo conservadorismo é a barbárie: “O espírito
revolucionário é uma reação contra a cultura e toda a tradição cultural” (1978, p.
133).
O escritor francês Albert Camus, na obra O Homem Revoltado, disseca
com perspicácia a psicologia revolucionária. Para o filósofo existencialista, há
uma íntima relação entre a mentalidade revolucionária e a dessacralização:
O homem revoltado é o homem situado antes ou
depois do sagrado e dedicado a reivindicar uma
ordem humana em que todas as respostas sejam
humanas, isto é, formuladas racionalmente. A partir
desse momento, qualquer pergunta, qualquer
palavra é revolta, enquanto, no mundo do sagrado,
toda palavra é ação de graça. Seria possível
mostrar, dessa forma, que nele só pode haver para a
mente humana dois universos possíveis: o do
sagrado (ou, em linguagem cristã, o da graça) e o
da revolta. O desaparecimento de um equivale ao
surgimento do outro, embora este aparecimento
possa ocorrer sob formas desconcertantes. Ainda
nesse caso, encontramos o Tudo ou Nada. A
atualidade do problema da revolta depende apenas
do fato de sociedades inteiras desejarem manter
hoje em dia uma distância em relação ao sagrado.
Vivemos em uma sociedade dessacralizada. Sem
dúvida, o homem não se resume à insurreição. Mas
a história atual, por suas contestações, obriga-nos a
dizer que a revolta é uma das dimensões essenciais
do homem. Ela é a nossa realidade histórica. A
menos que se fuja à realidade, seria necessário que
nela encontrássemos nossos valores. Longe do
sagrado e de seus valores absolutos, pode-se
encontrar uma regra de conduta? Esta é a pergunta
formulada pela revolta (Camus, 2011, p. 33).
As observações de Camus são valiosas. De algum modo, o pensador
francês evidencia uma das teses que procuro defender neste trabalho: a da
existência de um vínculo entre a esquerda revolucionária e os processos de
dessacralização e secularização da civilização ocidental, que podem ser
compreendidos como um afastamento e distanciamento gradual dos princípios
metafísicos e das verdades transcendentes. Enquanto a direita conservadora e
tradicional procura identificar-se com o mundo do sagrado e do culto,
relacionando este com a alta cultura e os pilares da civilização, a esquerda
revolucionária tende a assumir uma postura explícita ou implicitamente
profanadora, secularizadora e humanitarista. Conforme Camus, busca instaurar
uma ordem social exclusivamente fundada na razão e vontade humana.
O romancista francês assinala as raízes metafísicas da psicologia
revolucionária: “A revolta metafísica é o movimento pelo qual um homem se
insurge contra a sua condição e contra a criação. Ela é metafísica porque
contesta os fins do homem e da criação” (Camus, 2011, p. 39). Se o homem da
direita conservadora é uma criatura que aceita a ordem natural e divina, o
homem da esquerda revolucionária recusa, rejeita e rebela-se contra a ordem do
ser. Camus, em outro momento, é ainda mais explícito:
Ao mesmo tempo em que recusa sua condição
mortal, o revoltado recusa-se a reconhecer o poder
que o faria viver nessa condição. O revoltado
metafísico, portanto, certamente não é ateu, como
se poderia pensar, e sim obrigatoriamente
blasfemo. Ele blasfema, simplesmente em nome da
ordem, denunciando a Deus como o pai da morte e
o supremo escândalo (Camus, 2011, p. 40).
Finalmente, aponta para o caráter demiúrgico e prometéico da psicologia
do homem revoltado:
Insurgir-se contra a condição humana transforma-
se em uma incursão desmedida contra o céu para
capturar um rei que será primeiro destronado, para
em seguida ser condenado à morte. A rebelião
humana acaba em revolução metafísica. Ela evolui
do parecer para o fazer, do dândi ao revolucionário.
Derrubado o trono de Deus, o rebelde reconhecerá
essa justiça, essa ordem, essa unidade que em vão
buscava no âmbito de sua condição, cabendo-lhe
agora criá-las com as próprias mãos e, com isso,
justificar a perda da autoridade divina. Começa
então o esforço desesperado para fundar, ainda que
ao preço do crime, se for o caso, o império dos
homens. Isso não se fará sem conseqüências
terríveis, das quais só conhecemos ainda algumas.
Mas essas conseqüências não se devem
absolutamente à revolta em si ou, pelo menos, elas
só vêm à tona na medida em que o revoltado
esquece as suas origens, cansa-se da dura tensão
entre o sim e o não, entregando-se por fim à
negação de todas as coisas ou à submissão total
(Camus, 2011, p. 41).
A revolta não é apenas contra a ordem criada por Deus e, portanto, contra
a própria condição e natureza humana, mas, também, contra as autoridades
tradicionais que representam tal ordem superior. Busca-se demolir e substituir a
lei moral natural e a lei divina revelada pelo império dos homens e seus
caprichos. O homem revoltado não aceita o mundo e a estrutura da realidade
sustentada e criada pelo Verbo Divino.
O homem da direita, de espírito conservador,[139] é o homem da tradição,
o guardião da cultura que aprecia a ordem e estima, protege e incentiva as forças
culturais e morais que propiciam a coesão e a harmonia social. O homem da
esquerda é, sob determinado aspecto, o homem revoltado de Camus, que se
insurge contra o plano Divino da criação e que intenta a todo custo forjar uma
sociedade nova, um homem novo, sob os escombros e as ruínas do patrimônio
moral, cultural e material da civilização construída ao longo dos séculos.
A direita conservadora tem uma relação tensional com o mundo
moderno. Nasce na modernidade procurando opor-se a determinados traços
patológicos do mundo industrial, burguês e liberal. Tem um pé no “mundo da
tradição” e outro na modernidade. Não procura superar e transcender, em sua
integralidade, a civilização moderna, mas conter, refrear e impor limites aos seus
excessos e desvarios. Em muitas oportunidades históricas, nas quais
determinadas forças políticas conservadoras assumiram posições de comando,
acabou deixando-se levar pelas ilusões libertárias, emancipadoras, igualitaristas,
individualistas e economicistas da modernidade. Ademais, é notável o
fortalecimento do chamado “fusionismo”, ou seja, o amálgama entre o
liberalismo e o conservadorismo, conhecida como síntese liberal-conservative
(liberal-conservadora). O perigo do conservadorismo “clássico” transformar-se
em uma forma envergonhada e tímida de liberalismo está sempre à espreita. Mas
isso é tema para o próximo capítulo.

6 OS LIMITES DO CONSERVADORISMO E A DIREITA
TRADICIONAL

Como afirmei no capítulo anterior, o conservadorismo é uma força de
contenção, um sistema de freio e controle dos processos desagregadores da
modernidade, porém não é, de forma alguma, uma vertente de pensamento e
uma orientação existencial de contestação global ao establishment, que portanto
busque uma renovação e reconstrução da ordem social. Procura, tão somente,
atenuar e suavizar os efeitos deletérios do liberalismo. Concretamente, é uma
forma moderada de liberalismo que, grosso modo, contenta-se com uma ação de
retaguarda no tocante ao radicalismo revolucionário progressista. Essas
tendências do conservadorismo têm raízes históricas e sociológicas. Segundo o
teólogo Francisco Canals Vidal (2012), a direita conservadora nasceu com o
parlamentarismo, caracterizando-se por ser a força política que, no seio do
constitucionalismo liberal, desejava salvaguardar a ordem e a autoridade no
interior desse sistema. Os conservadores sempre intencionaram conciliar a
liberdade com a ordem; a liberdade do liberalismo e a ordem nascida com a
revolução. Desse modo, o “partido conservador” é, por via de regra, o
conservador da revolução, consolidando ou amainando os avanços progressistas.
Os conservadores, com o temor de serem tachados de “reacionários”, adotaram
atitudes de contemporização e mesmo de aceitação dos dogmas e princípios
liberais.
Vidal (2012) argumenta que há um constante deslocamento até a
esquerda das opiniões e forças políticas, bem como das normas e dos critérios de
valor por meio dos quais se julga o direitismo (conservadorismo e liberalismo) e
o esquerdismo (socialismo e comunismo). Antes de 1848,[140] a democracia era o
esquerdismo; e a direita conservadora e liberal era adversária do sufrágio
universal. A direita conservadora e liberal era antidemocrática porque acreditava
que esse regime político poderia falsear e destruir o verdadeiro liberalismo. Anos
depois, a “democracia anti-socialista” seria já admitida como preservadora da
ordem pelos antigos liberais e conservadores. Desde a direita, agora transmutada
definitivamente em liberal e democrática, acusar-se-ia o socialismo de ser o
adversário da verdadeira democracia e, portanto, de ser reacionário e destruidor
do progresso e da liberdade.
Semelhante constatação é feita pelo jurista e filósofo espanhol Miguel
Ayuso (2016), que argumenta que o conservadorismo é um produto da revolução
liberal. Uma vez produzida esta, surgem duas correntes: uma que, desde o início,
aceita-a e pactua com ela, pretendendo apenas moderá-la, restringi-la e, logo,
conservá-la; e outra corrente que pretende radicalizá-la, exasperá-la e levá-la às
suas últimas conseqüências. Os conservadores querem, assim, brecar a marcha
da revolução; e os progressistas, intensificá-la.[141]
Em linhas gerais, os múltiplos conservadorismos são filhos da tradição e
da revolução. Nutrem-se do pensamento filosófico, literário e jurídico greco-
romano, da religião e moral cristã e, também, dos princípios políticos modernos
democráticos e liberais. Conservadores como Burke reconhecem o valor da
tradição, porém, distintamente de reacionários, como Joseph de Maistre, não
rejeitam a democracia constitucional, o Estado de direito e a economia de livre
mercado.[142] Perfilham uma ordem social que mescle aspectos do
conservadorismo moral e social (próprios da tradição greco-romana e cristã) com
o sistema democrático-liberal (Bénéton,1988). Sobre esse caráter ambíguo e
híbrido do conservadorismo, em parte tradicional e em parte moderno e liberal, o
historiador Rubén Calderón Bouchet apresenta uma interessante observação:
A atitude conservadora supõe a Revolução [...], a
supõe como um acontecimento positivo que trouxe
como conseqüência uma série de liberdades das
quais o homem moderno não pode prescindir e que
constituem, em sua comparação com o Antigo
Regime, um verdadeiro ganho no sentido humano e
social do termo. O conservador admite também a
herança religiosa que vem de Israel e aquela outra
mais próxima que deriva da cultura greco-latina e
que se consolidou nos séculos de predomínio
eclesiástico, mas toda esta herança está integrada
em sua convicção de que isso trouxe como fruto a
democracia constitucional, o estilo de vida que
prega a liberdade e a vontade popular. De um modo
mais preciso, defende-se a herança antiga, mas
passada pelo filtro dos princípios ideológicos
nascidos à sombra do pensamento protestante:
imanentismo, historicismo, evolucionismo,
democratismo [...], progressismo, sempre que este
último não tenha o lastro das utopias coletivistas
(Bouchet, 2014, p. 104).
O filósofo Alaisdair MacIntyre, em sua importante obra Depois da
Virtude, também sublinha tal hesitação e ambivalência presentes no
conservadorismo, mormente em sua versão anglo-americana, destacando, ainda,
os usos ideológicos que os teóricos políticos conservadores têm feito do conceito
de tradição:
O individualismo moderno não poderia,
naturalmente, encontrar utilidade para a noção de
tradição dentro do seu próprio esquema conceitual,
a não ser como uma noção adversária; portanto,
abandonou-a espontaneamente aos burkeanos que,
fiéis à própria lealdade de Burke, tentaram
combinar a adesão política com uma concepção de
tradição que justificaria a revolução oligárquica da
propriedade em 1688, e a adesão, em economia, à
doutrina e às instituições do mercado livre. A
incoerência teórica dessa má combinação não a
privou de utilidade ideológica. Mas o resultado,
porém, foi que os conservadores modernos estão,
em sua maioria, empenhados na conservação das
versões mais antigas, e não das mais recentes, do
individualismo liberal. Sua própria doutrina
fundamental é tão liberal e tão individualista
quanto aquela dos autoproclamados liberais
(MacIntyre, 2001, p. 373).
Há problemas semântico e atitudinal no conservadorismo. Expressões e
posturas como conservar e conservador denotam uma atitude meramente
defensiva e de revide à ação destrutiva dos revolucionários esquerdistas.[143] Está
ausente do conservadorismo uma postura verdadeiramente afirmativa e
combativa de, por exemplo, tomar a iniciativa na luta cultural e lançar-se ao
ataque ideológico com a necessária intrepidez e audácia. Nota-se, na história do
conservadorismo, certa timidez e fraqueza, uma incapacidade de fazer frente à
ofensiva progressista, o que, de certo modo, explica o domínio cultural,
ideológico e político da esquerda. A direita conservadora só retruca nas horas
extremas. O comodismo, o gosto pela segurança, pela vida tranqüila e rotineira
são fantasmas sempre a ameaçar o espírito conservador. Além disso, os termos
conservar e conservadorismo possuem um indubitável caráter desmobilizador.
Tenho a impressão de que tais noções são, em um primeiro momento,
pouco atrativas, além de favorecerem as táticas redutoras e as intepretações
simplistas e polêmicas da esquerda, assim dando munições ao inimigo, que,
insistentemente, identifica essa posição política com a mera defesa dos interesses
econômicos da classe burguesa e com a manutenção do sistema capitalista.
Acerca dessa fragilidade semântica do conservadorismo, comenta o filósofo
tradicionalista Julius Evola:
[...] os conservadores de ontem, não diferentemente
dos de hoje, [...] haviam se reduzido a defender
essencialmente suas posições político-sociais, os
interesses materiais de um determinado estrato, de
uma determinada casta e não, em primeiro lugar, a
sustentar uma reinvindicação decidida de um
direito superior, de uma dignidade, de uma herança
impessoal de valores, de idéias, de princípios: nisto
consistiu sua fundamental debilidade (Evola, 1994,
p. 23).
Em que pesem as insuficiências e debilidades do pensamento liberal,
reconheço que Friedrich Hayek, em Why I Am Not a Conservative (1960),[144]
apresentou uma importante pista para a compreensão dos limites do
conservadorismo. Em determinado trecho de sua interessante exposição, o
filósofo político austríaco afirma que o conservadorismo não é uma real
alternativa ao sistema dominante:
Direi agora o que considero a objeção decisiva ao
verdadeiro conservadorismo: por sua própria
natureza, o conservadorismo não pode oferecer
uma alternativa ao caminho que estamos seguindo.
Por resistir às tendências atuais poderá frear
desdobramentos indesejáveis, mas, como não
indica outro caminho, não pode impedir sua
evolução. Por esta razão, o destino do
conservadorismo tem sido invariavelmente deixar-
se arrastar por um caminho que não escolheu. A
luta pela supremacia entre conservadores e
progressistas só afeta o ritmo, não o rumo dos
acontecimentos contemporâneos, mas, embora seja
necessário “frear o curso do progresso”,
pessoalmente não posso limitar-me a ajudar a
puxar o freio. Antes de mais nada, os liberais
devem perguntar não a que velocidade estamos
avançando, nem até onde iremos, mas para onde
iremos. De fato, o liberal difere muito mais do
coletivista radical dos nossos dias do que o
conservador. Enquanto este geralmente representa
uma versão moderada dos preconceitos de seu
tempo, o liberal dos nossos dias deve opor-se, de
maneira muito mais positiva, a alguns dos
conceitos básicos que a maioria dos conservadores
compartilha com os socialistas.[145]
Assim, deixando de lado sua defesa do liberalismo, Hayek foi
absolutamente certeiro nessa passagem. De fato, não basta conter e frear as
forças da dissolução, é preciso, especialmente, ter a coragem de tomar outro
caminho. A pergunta que o conservador deve sempre fazer é a seguinte: o que
realmente vale a pena defender e preservar da modernidade decadente? Entendo
que, não obstante o inegável desenvolvimento técnico e material hodierno, muito
pouco necessita ser conservado da ordem social e política atual, ou melhor, da
desordem e da descivilização contemporânea.[146]
É indispensável, neste momento de terrível crise espiritual e decadência
civilizacional, romper com os compromissos e as concessões ao establishment,
ter a audácia de abandonar, em sua integralidade, o pensamento débil e a
ideologia soft de teor liberal e igualitarista que dominam a modernidade,
revitalizando os valores “arcaicos”, pré-modernos, os perenes princípios da
tradição. Compreendendo por tradição não apenas a conservação do passado,
como quer determinado conservadorismo liberal, mas, principalmente, o
reconhecimento de uma ordem de valores eternos e metafísicos que precisam ser
entregues e transmitidos por uma elite espiritual de geração a geração e
incorporados nas instituições de uma civilização.
Um conservadorismo axiológico, tradicionalista, ou melhor, uma luta
pela conservação de princípios eternos e instituições milenares, será sempre
importante traço definidor da direita reacionária. No entanto, o perigo encontra-
se na transfiguração do conservadorismo clássico e tradicional num estéril e
debilitante conservadorismo liberal, ou, ainda pior, num mero conservar de
posições, interesses e privilégios, numa defesa mesquinha e medíocre do status
quo reinante. Em muitas oportunidades, a atitude e o pensamento conservador
não passam de um liberalismo acanhado e mascarado, como observa o filósofo
aristotélico-tomista Alasdair MacIntyre (2001, p.421):
[...] os chamados conservadorismo e radicalismo,
nos seus disfarces contemporâneos, são geralmente
pretextos para o liberalismo: os debates
contemporâneos nos sistemas políticos modernos
são quase exclusivamente entre liberais
conservadores, liberais liberais e liberais radicais.
Há pouco espaço, nesses sistemas políticos, para a
crítica do próprio sistema, isto é, para pôr o
liberalismo em questão.
O pensamento político conservador preocupa-se com a preservação da
saúde da sociedade moderna. Para os defensores dessa filosofia, a religião, os
costumes sociais e a moralidade tradicional são concebidos como forças
culturais decisivas na manutenção da humanidade e da estabilidade de uma
comunidade. Mais particularmente, as tradições religiosas são vistas como
ingredientes indispensáveis para a existência da ordem social. Neste ponto, surge
um problema, pois se corre o sério de risco de colocar a religião unicamente a
serviço da tarefa política de conservação do equilíbrio social, conforme assinala
Rubén Calderón Bouchet (2014, p. 37):
O que os nossos conservadores saxões parecem
esquecer com muita freqüência é que o propósito
da religião de Cristo não foi devolver a saúde à
sociedade, nem lutar para a instauração de uma
civilização terrena justa. Na predicação do Reino
de Deus há um objetivo sobrenatural e uma das
forças mais importantes desta finalidade é que
todos os outros propósitos silenciem-se para
propiciar a única iniciativa.
O objetivo essencial da religião cristã é o advento do Reino de Deus na
alma do fiel; o resto, como a boa ordem familiar e social, é efeito secundário,
segundo observa com agudeza Bouchet (2014, p. 24):
O conselho de Jesus: “Buscais o Reino de Deus e
sua justiça que tudo o mais lhe será dado como um
complemento” sofre nas mentes conservadoras
uma transposição que invalida totalmente sua
eficácia redentora. O conservador parece
aconselhar que para poder salvar os acréscimos,
resulta conveniente buscar o Reino de Deus.
Em face da crise moral, espiritual e cultural do nosso tempo, os
conservadores buscam, de algum modo, espiritualizar e moralizar o mundo
moderno, mas não superá-lo. Essa atitude pode ser notada principalmente nos
Estados Unidos e na Inglaterra, países em que, historicamente, o
conservadorismo teve mais força política e alguma importância intelectual.
Parece que a preocupação central do conservadorismo é dar um tom mais
religioso à dominação anglo-americana, segundo argumenta Bouchet (2014,
p.116):
[...] foram os conservadores quem ressaltaram os
sinais anômicos do American way of life e tiveram
a impressão de que se não os corrigissem com
cautelas morais, políticas e religiosas, sua expansão
provocaria mais anarquia do que ordem. Seu
objetivo não foi mudar o espírito que inspirou a
constituição americana senão paliar os efeitos de
uma intepretação demasiado liberal.
Como lembra Bouchet (2014), a tradição política dos Estados Unidos é
basicamente liberal, e implica um modo de pensar o homem e a sociedade
política com matizes otimistas, progressistas, democráticos, igualitaristas e
idealistas. Como em todos esses valores há uma dose inquietante de idealismo
utópico, o pensamento conservador nasceu com o propósito de mantê-los sob
controle e equilíbrio, para que não caiam arrastados pela inclinação de sua
vertente anárquica. Surge, nessa perspectiva, uma contradição implícita no
conservadorismo que pode resumir-se nesta pergunta: é possível a conservação
de princípios que constituem por si mesmos uma clara negação da estabilidade e
da ordem?
Até o presente momento, o conservadorismo parece ter fracassado no
intento de paliar os efeitos destrutivos e revolucionários do American way of life,
assim como do niilismo da cultura pós-moderna. De maneira precisa e
irretocável, o grande escritor alemão Ernst Jünger intuiu essa verdade: “A atitude
conservadora, digna de atenção em seus representantes e inclusive [...] de
admiração, não é capaz já de interceptar o movimento crescente e de represá-lo”
(Jünger, 1994, p. 49).
Não basta aliviar as conseqüências dissolventes da modernidade liberal,
revestindo-a com uma aparência de espiritualidade e moralidade, é preciso algo
mais. É essencial mudar a rota de nossa caminhada civilizacional, alterando em
sua integralidade, a orientação valorativa e existencial da cultura contemporânea.

6.1 A direita tradicional

A direita conservadora não é a direita tradicional. Em que pese o
autêntico espírito conservador ser um dos traços da direita tradicional, ela não se
esgota em um conservadorismo defensivo, muito menos em formas por demais
modernizadas e liberais de conservadorismo, hoje dominantes no universo
político e intelectual de determinada direita. É um contra-senso tentar preservar a
ordem social e política atual intrinsecamente subversiva, por ser proveniente da
Revolução Francesa e, por essa razão, uma expressão da ideologia individualista
liberal. Mais do que conservar o que existe, é fundamental iniciar um esforço de
regeneração e restauração de uma verdadeira ordem civilizacional ancorada nos
princípios da tradição. O que de fato importa não é a conservação de
determinadas instituições sociais e costumes já decadentes e estéreis, mas a
fidelidade a certos princípios universais, imutáveis e eternos. Não se trata, desse
modo, de retornar a um passado histórico longínquo, remoto ou próximo, mas de
retornar “às origens”, de fazer ressurgir no tempo presente o espírito tradicional.
Sem cair em anacronismos e posturas regressistas, o que realmente é
decisivo, segundo assevera Julius Evola (1994), não é tanto a lealdade a formas e
instituições de tempos passados que já esgotaram suas próprias possibilidades
vitais e não estão mais à altura dos tempos, mas a princípios[147] dos quais umas e
outras podem ter sido expressões particulares adequadas para certo período e
tempo: “Metodologicamente, na busca de pontos de referência, uma determinada
forma histórica deve, pois, ser considerada exclusivamente enquanto
exemplificação e como aproximada aplicação de tais princípios; este
procedimento é totalmente legítimo [...]” (Evola, 1994, p. 24).
A direita tradicional, conforme explica Julius Evola (2009), não pode ser
confundida com as atuais “direitas econômicas e políticas”, de tonalidades
liberais e conservadoras. A direita tradicional é, sobretudo, uma determinada
orientação espiritual e uma concepção do homem, da sociedade e do mundo. É,
portanto, uma cosmovisão absolutamente antitética ao liberalismo, à democracia
e às mitologias socialistas, ancorando-se na defesa dos valores da tradição,
valores estes essencialmente espirituais, aristocráticos e guerreiros.
A Weltanschauung da verdadeira direita tem um caráter tradicional.
Porém isso não significa a adesão a um mero conservadorismo estático ou
mesmo a um tradicionalismo genérico, puramente empírico e histórico. Não se
trata, portanto, de manter e tutelar um sistema dado de instituições e princípios,
que sempre terá um aspecto factual, contingente e relativo, mas de reconhecer e
defender valores constantes de natureza universal que, além do mais, possuam
caráter normativo:
Ainda quando estes princípios se objetivem em
uma realidade histórica, eles não estão
condicionados por esta, remetem-se sempre a um
plano superior, meta-histórico, que é seu lugar
próprio e natural e onde, repetimos, não existe
mutação. De tal maneira devem ser concebidas as
idéias que nós chamamos tradicionais (Evola,
1994, p. 26).
Para Evola (1985), o conteúdo positivo e a premissa essencial da direita
tradicional estão na admissão da existência de uma realidade superior –
transcendente – de ordem sobrenatural, que revela um caráter deontológico e,
portanto, normativo.
Sob determinado aspecto, a direita tradicional é a direita das origens, a
direita que sempre existiu, representando a forma natural de ordem social e
política presente em todas as civilizações tradicionais. É no mundo pré-moderno,
anterior à Revolução Francesa, que se encontram as idéias norteadoras dessa
direita, conforme explica Julius Evola (1995, p. 27):
[...] idealmente o conceito da verdadeira direita, da
direita tal como nós a entendemos, deve definir-se
em função das forças e das tradições que atuaram
formativamente em um grupo de nações e, às
vezes, quiçá também em unidades supranacionais
antes da Revolução Francesa, antes do advento do
Terceiro Estado e o mundo das massas, antes da
civilização burguesa e industrial, com todas as suas
conseqüências e seus jogos de ações e reações
concordantes que conduziram até o marasmo atual
[...].
A autêntica direita tem como supremo ponto de referência e força
inspiradora o “mundo da tradição”, ou seja, o universo cultural e simbólico das
sociedades tradicionais. Uma civilização tradicional caracteriza-se
fundamentalmente por ter como eixo e centro ordenador um elemento
supratemporal de origem não-humana. Em todas as culturas tradicionais, o
próprio mundo social e político e, por conseguinte, a totalidade das leis, normas
e instituições “vinham de cima”, originando-se de uma realidade que
ultrapassava o mundo humano e temporal, dirigindo-se, também, para o alto,
para uma dimensão supra-humana. Toda autoridade, instituição social ou lei era
considerada falsa se não se orientasse por princípios superiores. Desse modo, a
própria ordem política tinha significado e finalidade transcendentes. Era a ordem
política concebida como um reflexo e uma projeção do mundo do ser no devir,
um símbolo de centralidade e estabilidade.
Para a direita tradicional, as sociedades não são uma criação do arbítrio
humano, fundamentando-se unicamente na razão e na vontade dos indivíduos.
As bases da sociedade encontram-se na ordem divina do mundo.[148] A ordem
social é um aspecto da ordem cósmica e divina; nela, manifestam-se as forças
sobrenaturais. As civilizações tradicionais são teocêntricas e sacrais.
Conseqüentemente, segundo observa o pesquisador francês Jacques Du Perron
(1991), a direita tradicional reconhece o papel central do sagrado na vida da
comunidade e o primado da autoridade espiritual sobre o poder temporal. O
trono e o altar, símbolos, por excelência, do poder político real imperial e da
autoridade moral e religiosa da Igreja Católica no antigo regime, assim como o
clero e a nobreza guerreira, são os dois estamentos e autoridades que
coordenavam e orientavam a vida coletiva, dando o tom e estabelecendo os
padrões e critérios morais e existenciais nessas civilizações.
Conforme Perron (1998; 2004), a direita tradicional origina-se e encarna
as duas primeiras ordens e/ou castas: a casta sacerdotal e a casta dos guerreiros.
É, assim, a legítima seguidora de uma concepção religiosa, guerreira e heróica
da vida social. Por sua vez, a esquerda é proveniente do terceiro estado, a casta
burguesa dos mercadores e, dessa maneira, é a herdeira e a defensora de uma
visão econômica e hedonista da existência. Os homens da direita da tradição são
os representantes dos estamentos guerreiros, cuja principal função consiste em
exercer o poder temporal sob a direção suprema dos sacerdotes. São os membros
da aristocracia guerreira os responsáveis pela proteção e defesa da religião. Um
claríssimo exemplo histórico disso consiste nas ordens de cavalaria na
cristandade medieval. Essa filiação da direita leva a uma série de conseqüências
teóricas e práticas, como o reconhecimento da origem divina do poder e a
escolha, portanto, do regime monárquico e de uma forma de ordem social
hierarquizada de tipo aristocrática; o respeito às leis morais naturais e às normas
e aos mandamentos da Igreja; o reconhecimento da religião e da família como
bases da organização comunitária; e a defesa do papel primordial da família na
formação da personalidade, bem como a necessidade da propriedade privada
como garantia da estabilidade familiar e de sua permanência no tempo. Além
disso, pode-se inferir que a direita repousa essencialmente sobre uma tradição
espiritual, heróica e ascética, tendo como tipos ideais e modelos humanos
arquetípicos as figuras do herói, do cavaleiro, do santo e do místico; já os
paradigmas antropológicos da esquerda são os homens do terceiro e quarto
estados, ou seja, o burguês e o proletário. Assim, é fácil deduzir que uma direita
burguesa, contaminada pelo “espírito burguês”, é uma falsa direita.[149]
O primado dos estamentos sacerdotais e guerreiros nas civilizações
tradicionais revela e aponta para os dois pólos principais de realização espiritual:
a via da contemplação e a via da ação. O caminho da contemplação encarnada
pelos sacerdotes, monges, santos e místicos representa a realização efetiva da
verdade; por sua vez, a senda da ação personificada pelos guerreiros, heróis e
cavaleiros expressa a conformidade da vida aos princípios metafísicos de
realização. A contemplação é a verdadeira espiritualidade e a ação é a vida
informada, colocada em ato – em forma – pelos princípios dessa espiritualidade.
A contemplação é o verdadeiro conhecimento, a real ciência sagrada; já a ação
autêntica, do ponto de vista da tradição, é aquela que se reveste de um caráter
ritual e sacrificial. Por um lado, a contemplação realizadora da verdade é a
dimensão teórica da vida tradicional, por outro, a dimensão prática é a
santificação da ação (De Giorgio, 1987).
Como estou aqui tratando sobre a direita tradicional, as sociedades
tradicionais e a cosmovisão tradicional, é indispensável a elucidação e análise do
conceito de tradição.
Primeiramente, a tradição[150] pouco tem que ver com usos, hábitos e
costumes históricos, não é um modo de conformismo social e de conservação
acrítica do status quo.[151] É, em sua essência, uma força meta-histórica:
[...] é uma força geral ordenadora em função de
princípios que têm o crisma de uma superior
legitimidade [...] de princípios do alto – força que
atua ao largo das gerações, em continuidade de
espírito e de inspiração, através das instituições,
leis e ordenamentos que podem apresentar uma
notável variedade e diversidade (Evola, 1994, p.
24).
[152]
A tradição caracteriza-se por ser uma realidade dinâmica e atuante,
que jamais pode ser entendida num sentido meramente abstrato e especulativo.
Com efeito, ela “manifesta-se em sua plena potência formativa e animadora no
domínio da organização política e social, para conferir à mesma um significado e
uma legitimação superior” (Evola, 1999, p.271). A tradição é uma potência que
se plasma no domínio histórico, é uma “força do alto”, transcendente, que atua
no campo político e social, assim tornando-se o eixo em torno do qual gravitam
todas as atividades e esferas da vida de uma civilização normal. Tal força
espiritual é uma presença que se transmite. Ademais, essa força do alto – a
“transcendência imanente”, na feliz definição evoliana – corporifica-se numa
elite cuja fundamental tarefa é conservar e transmitir a tradição, assumindo, além
disso, o ingente papel de comando e direção da vida coletiva.
Elémire Zolla (2003) ressalta a diferença entre a tradição e os diversos
tipos de tradições sociais, políticas e culturais existentes em um agrupamento
humano. A tradição, por excelência, é a transmissão do objeto ótimo e máximo,
o conhecimento do ser perfeitíssimo. A tradição é a transmissão da idéia do ser
em sua perfeição máxima, portanto de uma hierarquia entre os seres relativos e
históricos. Essa hierarquia é transmitida desde o alto, é uma teofania que se
concretiza em uma série de meios: sacramentos, símbolos, formas de oração,
ritos, preceitos morais, escrituras e seus comentários e definições discursivas,
cujo fim é desenvolver o homem em sua dimensão espiritual, desse modo
propiciando a intuição do ser perfeitíssimo.
Por sua vez, a partir de uma perspectiva estritamente cristã e católica,
afirma o historiador Rubén Bouchet (1980, p. 20):
A noção de tradição realiza-se cabalmente no
conceito de revelação sagrada. Se existe realmente
uma revelação proveniente de Deus mesmo, há
tradição, de outro modo se trata de palavra
inventada pelo homem com o propósito de tornar
imutáveis ensinamentos que, pela sua origem
humana, devem estar submetidos a uma crítica
perfectiva.[153]
A principal e mais importante expressão concreta da tradição no
Ocidente é a religião cristã, mais exatamente a Igreja Católica como a instituição
tradicional primacial. A tradição católica se projetou cultural, política e
sociologicamente de maneira mais perfeita e acabada na civilização cristã
medieval. Elías de Tejada (2001) assevera que a cristandade organizou o mundo
como um agrupamento hierárquico de povos entrelaçados organicamente e
subordinados aos dois “astros” de São Bernardo de Claraval: o Sol do Papado e a
Lua do Império. Nessa sociedade hierárquica e sacral, os homens participavam
de várias ordens, corporações e confrarias articuladas em torno das figuras do
clérigo, do cavaleiro e do povo.
A tradição é uma categoria universal que expressa o vínculo com o que
ultrapassa o universo humano. É a conexão com a fonte divina do real. É esse
nexo, profundo e misterioso, com a sabedoria das origens que possibilita o
contato com a dimensão vertical da ordem do ser. É o fio invisível que nos liga a
outras realidades, outros mundos e outros tempos. É um legado sacro, uma
herança divina, pois vem de Deus e reconduz os homens a Deus. Forma o núcleo
e a substância espiritual das civilizações, de modo que, apesar de uma relativa
autonomia, as tradições cívicas, morais, científicas, culturais e artísticas devem
manifestá-la e, dessa maneira, lembrar os homens sobre a sua origem e o seu
destino, auxiliando-os na tarefa grandiosa de retornar ao princípio absoluto. Em
suma, a tradição é uma espécie de energia espiritual que conforma e dá unidade
interior aos povos e às personalidades.[154]
Marcello Veneziani (2002; 2005) ressalta que, ao contrário do apregoado
por progressistas e liberais, não existe incompatibilidade absoluta entre tradição
e progresso. A idéia de progresso é correlata à idéia de uma raiz imutável, de
uma persistência dentro do fluir temporal. A tradição é um princípio de
continuidade, é o ser no progredir, e a presença e a persistência do imutável na
mudança. Não é a tradição o passado, mas aquilo do passado que não passa, o
que resta de vivo para além da degradação que o tempo provoca. Além disso,
segundo o filósofo tradicionalista italiano, a tradição é uma cultura no sentido
mais amplo da expressão. É uma visão de mundo e uma interpretação do tempo
que permeia e anima uma civilização, é o repositório dos tesouros mais
preciosos de uma sociedade:
A Tradição é o fruto sintético de uma reelaboração
dos cumes, dos pontos apicais conseguidos por
uma civilização, por uma comunidade no decurso
de um significativo período ou de uma longa
duração. Na Tradição são postos a salvo os
tesouros de uma civilização ou de uma
comunidade, protegidos da deterioração dos
tempos e da maré baixa das formas. A Tradição é a
proteção do essencial contra tudo o que possa se
dizer passageiro. Nem todos os conhecimentos,
obras e experiências repetidas se tornam tradição;
uma contínua seleção dá lugar à Tradição e a suas
perpétuas metamorfoses (Veneziani, 2005, p. 45).
Do mesmo modo que as sociedades tradicionais têm uma origem divina e
sacral, as principais idéias do tradicionalismo político e, portanto, da direita
tradicional têm um fundamento religioso. Cabe sublinhar, contudo, que a direita
tradicional, ao contrário da esquerda, não é uma religião política, ela é, na
realidade, a grande defensora da religião e das tradições espirituais.
Diferentemente da esquerda, não possui dogmas, nem livros sagrados, nem
profetas, nem teólogos para comentar suas escrituras; nela, não se observam
fenômenos de clara dimensão idolátrica como a peregrinação à tumba de Lenin e
o culto fervoroso a Stalin (Perron, 1998).
Do ponto de vista de um tradicionalista como Jacques du Perron (1998),
a direita não nasceu em 1789, com a Revolução Francesa, mas, paradoxalmente,
começa a declinar e morrer a partir desse momento da história política do
Ocidente. É com esta revolução liberal e burguesa que a concepção e a prática
tradicional da política, própria da direita, cessam de existir com o eclipsar do
Ancien Régime. O que de fato surge em 1789 não é uma inovação – a direita não
surge do nada, pois ela sempre existiu –, mas, simplesmente, uma reação de
defesa; os partidários da realeza tradicional colocam-se à direita do presidente da
Assembléia Nacional e tentam salvar o princípio monárquico. Essa reação de
defesa, que provoca a aparição de um movimento político que se tornará a direita
para os historiadores oficiais, é altamente simbólica; ela marca as forças e atores
fiéis à tradição que, doravante, longe de poder desempenhar um papel
construtivo na sociedade política, serão reduzidos ao rol de oponentes. Com as
duas primeiras “ordens” – clero e nobreza guerreira – esfaceladas enquanto
castas e corpos organizados, a oposição será feita por indivíduos isolados, e,
mesmo quando estes se organizarem em partidos e agremiações políticas, dando
origem às diversas correntes da direita, será condenada a uma atitude
exclusivamente defensiva, conservadora, em face da dinâmica irresistível do
terceiro estado, que, de agora em diante, dominará o campo político.
A direita moderna, em suas modalidades liberais, anarcocapitalistas,
neoconservadoras e extremistas (nacionalistas, bonapartistas, militaristas,
protofascistas, etc.), representa uma queda de nível, uma contrafação da direita
original. Eis o drama da direita moderna, que tende a distanciar-se da tradição,
esquecendo-se de seus princípios basilares, por um lado, e, por outro, fazendo
uma série de concessões, alianças comprometedoras e adaptações ao mundo
moderno.
Em contraposição à civilização tradicional, parâmetro e modelo
orientador da legítima direita, há a decadente e confusa civilização moderna,
cujo centro é não mais o sagrado, mas o meramente humano e temporal. A
civilização moderna rompe os laços do humano com o eterno e o divino. Todas
as atividades humanas e instituições sociais concentram-se no que é contingente
e efêmero. Como conseqüência lógica desse processo de dessacralização, a
própria ordem política e moral mundaniza-se, refletindo o caráter secularista da
configuração societal moderna, voltada unicamente para o humano e o temporal.
O mundo moderno resulta da revolução antitradicional e anticristã que há
séculos corrói os pilares da civilização ocidental.[155]

6.2 A revolução antitradicional

Na modernidade, a categoria revolução – assim como a categoria
esquerda – adquiriu um significado positivo. A revolução e, de um modo mais
geral, as revoluções são concebidas pelo vulgo e pelas classes falantes como um
sinal de mudança, de progresso, de renovação e aperfeiçoamento. Como
demonstrou o sociólogo Jules Monnerot (1969), desde os séculos XIX e XX a
palavra revolução tem despertado emoções profundas e esperanças
escatológicas, tão ou mais vastas e potentes que a palavra providência nos
tempos da cristandade medieval. Contudo, se deixarmos de lado o enfoque
progressista e o clima de opinião dominante na modernidade acerca dessa
questão, é possível notar que, em outras latitudes, épocas e paradigmas de
pensamento, a revolução tem um sentido mais preciso, não sendo concebida
como algo tão benéfico e salutar.
Sem olvidar que a palavra revolução é polissêmica e multifacetada,[156]
existem inúmeros e variados tipos de revoluções.[157] Ressalto, neste trabalho, seu
sentido especificamente político e sociológico, que, grosso modo, refere-se a
uma mutação radical da sociedade, realizada geralmente por meios violentos. A
revolução é algo que provoca a inquietação, a perturbação e a agitação dos
espíritos e das coletividades. Essa alteração global e abrupta da vida social é uma
forma de desordem, pois convulsiona e desestrutura por completo os padrões
tradicionais de comportamento, as referências valorativas e as normas sociais e
legais existentes em uma comunidade política.
O Dicionário de Política (1998), de Galvão de Sousa, Lema Garcia e
Teixeira de Carvalho, sublinha que a revolução não é apenas uma insurreição ou
sublevação, mas uma palavra que indica, acima de tudo, uma subversão:
Quer-se destruir a ordem reinante na sociedade
para implantar um estado de coisas fundado em
princípios opostos ou numa total ausência de
princípios que não sejam meros ditames arbitrários
do homem que se revolta (Galvão de Sousa, Lema
Garcia e Teixeira de Carvalho, 1998, p. 469).
Os movimentos revolucionários, ao longo da história política moderna,
procuraram instaurar uma “Cidade Nova”, fundada em princípios puramente
humanos e seculares. Intencionavam criar uma nova sociedade, nova cultura e
nova moralidade e até mesmo modificar a natureza humana, baseando-se
exclusivamente na razão e na vontade humana, assim rechaçando a vontade
divina e as leis eternas. O fundamento intelectual das revoluções são as
ideologias, construções mentais arbitrárias que, contudo, possuem um inegável
poder mobilizador. As ideologias revolucionárias fomentadas pela intelligentsia
opõem-se à religião e às leis morais naturais. A revolução insurge-se contra a
revelação, é propriamente uma ruptura com a tradição, uma quebra da
continuidade histórica e uma subversão da ordem natural estabelecida por Deus.
A revolução é uma modalidade de heresia: uma heresia social e política.[158] É,
resumidamente, uma rebelião contra a ordem.
A revolução par excellence, que inaugura a Idade Moderna, é a
Revolução Francesa de 1789. É nela que as características e os traços essenciais
do fenômeno revolucionário adquirem contornos precisos e inconfundíveis. É
esta a revolução paradigmática, que será vista como o modelo principal a ser
seguido pelas demais revoluções modernas. A Revolução Francesa representou
uma inovação radical, uma ruptura com a ordem tradicional do antigo regime
monárquico e aristocrático. Com este evento afirma-se o liberalismo, a
democracia, a ideologia dos direitos humanos e o individualismo, assim como
ocorre a consolidação definitiva da “casta burguesa e mercantil” como o
estamento político, cultural e econômico dominante. A Revolução Francesa faz
avançar o projeto racionalista e secularista moderno que se origina mais
remotamente na Renascença e na Reforma Protestante. É com ela que a faceta
anti-religiosa, antitradicional e anticristã da modernidade revela-se de maneira
cristalina. Não se pode olvidar que a Revolução Francesa caracterizou-se por
uma sistemática ação descristianizadora, posteriormente seguida por outros
revolucionários.
Em um sentido mais amplo, a revolução que provocou o
desmantelamento da ordem tradicional cristã – a cristandade – manifestou-se
histórica e ideologicamente por meio de cinco grandes rupturas ocorridas entre
1517 e 1648, conforme explica o cientista social e filósofo do direito Francisco
Elías de Tejada (2001): a fratura religiosa do protestantismo luterano; a fratura
ética com Maquiavel; a fratura política arquitetada por Bodin; a fratura jurídica
com Hugo Grócio e Thomas Hobbes; e a definitiva fratura do corpo místico-
cristão afirmada nos tratados de Paz de Westfália.
A primeira ruptura revolucionária é obra de Lutero, que, com a Reforma
Protestante, desintegra a unidade da civilização cristã. Com a ação deste
importante personagem, verifica-se o declinar da organicidade espiritual da
cristandade, rompe-se a unidade de consciência do Ocidente. A segunda fratura
ocasionou a paganização da moral, ou melhor, a separação da política da ética.
Maquiavel não vê mais na moral um fundamento religioso. Para o pensador
político florentino, a “virtù” é apenas vontade de poder, uma vontade ilimitada e
inescrupulosa de dominação. Deixa de ser uma qualidade moral, propriamente
uma virtude, e torna-se uma espécie de energia vital que possibilita ao homem
astucioso alcançar o poder e manter-se no poder a todo custo. Vale lembrar que,
para o pensamento tradicional da escolástica, a virtù era uma força moral que
freava os desejos, uma forma de domínio sobre as paixões, um dique aos
impulsos. Maquiavel modifica radicalmente a ética orgânica e tradicional da
escolástica que conectava a ação do homem ao juízo de Deus. O mecanicismo e
a fragmentação desintegradora que Lutero produz na consciência, e Maquiavel,
no campo moral e comportamental, serão concretizados na política quando o
jurista Jean Bodin secularizar o poder com a sua famosa teoria da soberania.
Com a finalidade de acabar com as terríveis lutas entre católicos e protestantes
na França, surge uma terceira força: a política, que proclama a neutralização do
poder real, distinguindo-o de qualquer conteúdo religioso. Desse modo, o
monarca – o soberano – começa a ser obedecido de maneira direta e neutra pelos
súditos. Bodin é um dos teóricos do absolutismo que propiciará ao governante
um imenso fortalecimento de seu poder. Prevalecerá em todas as questões e em
todas as esferas da vida social a vontade do soberano. Com essa teoria, o filósofo
e político francês acaba por suprimir a liberdade e autonomia da multiplicidade
dos grupos sociais que ficaram integralmente subordinados à vontade do
soberano. Essa nova ruptura revolucionária afetará de maneira aguda a ordem
social orgânica do medievo, porque substituirá “o corpo místico” da sociedade
cristã tradicional por um novo equilíbrio mecanicamente baseado no cetro
onipotente do rei e, posteriormente, na figura do déspota iluminado. A quarta
ruptura é de ordem jurídica. A nova filosofia do direito de Hugo Grócio e
Thomas Hobbes rechaçará o direito natural clássico. Estes importantes
pensadores principiaram a secularização da filosofia do direito, que consistirá
em perceber no direito natural apenas a lei interna de funcionamento mecânico
de uma máquina. Com Grócio, o direito começa a assumir uma feição
racionalista, voluntarista e individualista. O racionalismo separa a lei natural da
lei eterna. O voluntarismo nega a distinção entre o bem e o mal em si mesmos,
atribuindo a lei natural a um decreto da vontade de Deus e não à razão divina. É
Hugo Grócio o precursor do positivismo jurídico moderno. O individualismo,
por sua vez, baseia a ordem jurídica não no fundamento objetivo que é a lei
natural, mas nos direitos naturais subjetivos (Galvão de Sousa, Lema Garcia e
Teixeira de Carvalho, 1998). Hobbes, seguindo essa mesma linha voluntarista e
naturalista, considerará somente a vontade humana separada da ordem criada
pela vontade divina. Deus é, assim, eliminado nessa concepção: exclui-se o
princípio divino que era o centro do desenvolvimento orgânico do direito
natural. Ademais, Hobbes esvazia de substância moral e comunitária a vida
política com o mecanismo artificial do contrato social. Todas essas fraturas
revolucionárias serão consolidadas com a Paz de Westfália (1648), que é o
grande marco da política e da diplomacia moderna, dando início ao sistema
fundado nos Estados nacionais e suas respectivas soberanias. O sistema
tradicional do império cristão, do “corpus mysticum” que foi a cristandade
medieval, desmorona.
De um modo mais esquemático, podem-se constatar cinco revoluções de
explícita orientação antitradicional e que acabaram por moldar o mundo
moderno e contemporâneo: o Renascimento, uma revolução filosófica e no
campo das cosmovisões que, entre outras conseqüências e traços, fez surgir o
Humanismo, e, portanto, uma concepção antropocêntrica do Universo que
derruiu a visão teocêntrica do medievo cristão; a Reforma Protestante, uma
revolução religiosa; a Revolução Francesa de 1789, que foi uma revolução de
índole política; a Revolução Bolchevique de 1917, que se tratou de uma
revolução de teor social e econômico; e a Revolução Contracultural de maio de
1968, em Paris, revolta de caráter cultural e comportamental.[159]
Interessante notar a intensidade dessas revoluções e o alvo simbólico
principal que foi atacado em tais eventos decisivos. A Reforma Protestante
configura-se como uma negação da autoridade da Igreja Católica, mais
especificamente do Vigário de Deus na terra, do Papa, o pontífice romano. A
Revolução Liberal Francesa, concretizando as idéias deístas, enciclopedistas e
racionalistas do Iluminismo, representa uma negação do cristianismo e da
própria pessoa de Cristo enquanto encarnação do Logos Divino. A Revolução
Comunista Russa de 1917, conduzida de acordo com os princípios ideológicos
do materialismo marxista, representa uma negação explícita de Deus. E, por fim,
a Revolução Contracultural de 1968, cujos efeitos e desdobramentos são visíveis
até os dias atuais, exprime um desejo de negação e desfiguração do próprio
homem, da pessoa humana como criatura feita à imagem e semelhança de Deus.
[160]

Há que se sublinhar agora a relação da esquerda com a revolução. Como


já referido, os dois primeiros estamentos representam a tradição (casta sacerdotal
e casta guerreira); já os dois últimos estamentos (casta burguesa-mercantil e
casta dos trabalhadores) representam a revolução. Desse modo, o mundo
moderno, liberal e socialista, é resultado da “rebelião das castas”, da revolta da
casta burguesa contra a nobreza e, posteriormente, da insurgência do estamento
dos trabalhadores contra a burguesia mercantil. A esquerda nasce das revoluções
do terceiro estado, das revoluções liberais, consolidando-se ideológica e
estrategicamente com as revoluções comunistas do quarto estado, o proletariado.
Como afirma Perron (1991; 1998), a esquerda é o principal ator da “revolta das
castas”, é a faceta social da revolução, que encontra no proletariado um
importante aliado, um auxiliar de peso. Porém, importa sempre lembrar que a
burguesia e o proletariado partilham fundamentalmente da mesma ideologia, a
luta que existe entre esses grupos sociais não passa de uma luta de interesses
materiais. A modernidade é uma criação dessas castas, é, portanto, uma
construção da revolução. Isso permite explicar os motivos e as razões da
hegemonia política e cultural da esquerda. A esquerda é, sob determinado
aspecto, a sucessora da revolução, pois é a principal força a encarnar as idéias e
as consignas dessa entidade e a envidar esforços para levar o projeto moderno às
suas últimas conseqüências.
A revolução não se realizaria sem o impulso e a prevalência do espirito
burguês e da mentalidade economicista e utilitária e, ainda, a conseqüente
descristianização das práticas sociais e da cultura, conforme explica Rubén
Bouchet (1980, p. 80):
O homem econômico existiu sempre, mas o que
caracteriza a idade moderna e a distingue do
mundo medieval é a tônica decisiva e
predominante deste tipo humano. Seria ingênuo
supor uma idade habitada exclusivamente por
monges ou comerciantes, mas o importante em
uma época determinada é o que certas minorias
impõem como disposição valorativa especial.
Durante o período medieval, os critérios cristãos
determinaram a orientação geral de todo o esforço
civilizador e conferiram à consciência do homem
uma orientação essencialmente religiosa e
teocêntrica que impregnou com o seu particular
tom axiológico todas as manifestações da vida
cultural.
Essa relevante mudança de orientação existencial e valorativa é que
permite o surgimento do homem fáustico e prometéico, homo faber, voltado
quase que unicamente para o domínio e a transformação do mundo material.
Curiosamente, Karl Marx percebeu o caráter revolucionário dessa nova
inclinação antropológica personificada exemplarmente pela burguesia:
A Revolução, como processo secularizador da
ordem cristã, tem por motor a mentalidade
econômica. Marx [...] destacava a capacidade
revolucionária da burguesia e a convertia no aríete
implacável contra a “ideologia cristã-feudal”, e
afirmava que pisoteava “as relações feudais,
patriarcais e idílicas”, para não deixar subsistir
mais vínculos entre os homens que o “frio
interesse” [...]. E com a sua linguagem descuidada
continuava o Manifesto Comunista descrevendo,
não sem ironia, os ideais cristãos afogados “nas
águas geladas do cálculo egoísta”. “Tudo o que era
sólido e estável”, nos diz, “é destruído; tudo o que
era sagrado é profanado e os homens se vêem
forçados a considerar suas condições de existência
e suas relações recíprocas com desilusão”. Não se
pode dizer melhor, nem com mais autoridade: o
progresso e a Revolução são uma coisa só e o saldo
negativo que Marx atribui à ação dissolvente do
burguês constitui um passo dialético inevitável
para poder realizar a futura síntese da sociedade
socialista (Bouchet, 1980, p. 82).
As revoluções burguesas, liberais e democráticas preparam o terreno
para as revoluções socialista e comunista. Não existiria o socialismo, o
comunismo, o igualitarismo e o coletivismo sem o liberalismo, o individualismo
e o capitalismo; não haveria o advento e o predomínio da mentalidade
econômica sem o florescer do espírito burguês que enfraquece todos os valores
que transcendem o universo do cálculo egoístico de custos-benefícios.[161]
Ao exaltar paroxisticamente o poder transformador do homem, a
revolução acaba por inverter uma série de relações hierárquicas naturais e
sobrenaturais, fazendo irromper os impulsos destrutivos e titânicos latentes na
criatura humana. Conforme explica Rubén Bouchet (1983), o pensamento
tradicional afirma a primazia do teórico sobre o prático, que, em linhas gerais,
fundamenta-se na superioridade da ordem criada por Deus em relação aos
ordenamentos que são construídos pelo arbítrio humano. O reconhecimento
dessa primazia põe limites à ação humana, pois nem o ser nem a natureza são
invenções do homem, para que este possa eludir a necessidade de conhecer essas
realidades antes de empreender a conquista de sua própria plenitude. Em
contraponto à visão tradicional, o pensamento e a ação do revolucionário não
reconhecerão limites divinos nem naturais. Convencido de seu poder
transformador, ele arremete contra todas as estruturas sem medir as
conseqüências degenerantes de seus atos. Sonha com uma total liberação das
sujeições e, para lográ-la, afina sua pontaria destrutiva contra os vínculos que o
ligam a Deus, às autoridades sociais e mesmo à natureza humana. Dessa
maneira, ainda segundo o filósofo tomista, o resultado de tudo isso é uma
inversão do dinamismo moral: em vez de submeter o inferior ao superior, coloca
o espírito a serviço dos instintos, assim degradando o homem.
A revolução é um fenômeno político e social que contém múltiplas
camadas de significação. Como explica J. Gil Moreno de Mora (1974), ela afeta
os mais diversos níveis e distintas esferas da vida social, representando uma
guerra aberta, explícita ou mesmo velada, “oculta e invisível”, contra a
totalidade das instituições. Mais ainda, a revolução tem como um dos seus
propósitos principais perverter as instituições naturais e tradicionais. O primeiro
passo de todas as revoluções é modificar violentamente as metas e finalidades
das instituições:
[...] as instituições podem ser as naturais, que são
boas, e as pervertidas, que são a sua inversão e,
portanto, serão maléficas. Mas, também, chega o
momento em que as instituições pervertidas não
bastam às concupiscências desatadas e se faz
necessário atribuir o estatuto de instituição a algo
que não é pervertido senão perverso; é o caso das
leis contra a família e a vida, eutanásia, aborto,
divórcio [...] e de outras instituições que
abundaram nas sociedades pagãs como a dos ritos
com sacrifícios humanos e a prostituição sagrada
(Moreno de Mora, 1974, p. 301).
Com efeito, a violência física ou simbólica da revolução está em seu
anelo de modificar e adulterar, pela “força” e de maneira “forçada”, os objetivos
naturais de uma instituição. Busca-se, desse modo, perverter os meios, dirigindo-
os então para fins nocivos e perniciosos – por exemplo, fazendo da família,
igrejas e escolas não mais espaços voltados para a formação da personalidade e a
elevação moral, intelectual e espiritual, mas núcleos cujos propósitos são a
propagação de idéias vagas e abstratas como a socialização e a inclusão, e,
sobretudo, a contestação e a crítica corrosiva aos princípios fundadores da
civilização ocidental – visando, em última instância, a libertar e emancipar os
jovens da carga de “valores repressores”. A revolução é, em suma, uma força
desnaturante que se empenha na tarefa de desvirtuar e subverter as práticas, as
normas, os símbolos, os rituais e os organismos sociais.
O estudioso atento da revolução não demorará muito a notar que ela é
uma forma secularizada e invertida da tradição cristã. A revolução nada mais é
que uma perversão da Revelação. Trata-se de uma transposição naturalista e
degradada das três virtudes teologais: fé, esperança, caridade – conforme explica
Bouchet (1980, p. 340):
Uma fé falsa, uma esperança utópica e o pretexto
mentiroso de uma caridade puramente humana
constituem os motores morais do processo
revolucionário mundial. Fé nos meios técnicos para
transformar o homem em ser equilibrado e
harmonioso. Esperança em uma futura organização
social sem contradições, e um amor puramente
verbal para construir sobre ele a ordem socialista.
A revolução é uma humanização integral da religião, uma modalidade de
religião secular que transfere para a imanência o sagrado. Segundo Castellano
(1995), com essa mudança epocal e de visão do mundo e do homem, a
escatologia cristã é laicizada, transmutando-se em uma utopia política e societal
estribada no rechaço da realidade, em particular da natureza humana e de Deus.
Ocorre a transformação da esperança sobrenatural cristã em sonho temporal de
concretização de uma futura sociedade impecável, com a afirmação da idéia da
realização da humanidade perfeita, isto é, a divinização do humano, que,
ademais, implica a recusa do pecado original e a inutilidade da graça, assim
como a contínua e vã perseguição da salvação na história.
Se, por um lado, a revolução apresenta um caráter antropocêntrico e
racionalista, enquanto a tradição é essencialmente teocêntrica, por outro, há nela
uma dimensão misteriosa e preternatural. Para Perron (1998), a revolução é uma
entidade metafísica que encarna o mal, estando presente na história da
humanidade ao longo dos séculos e inspirando uma série de seitas heréticas,
sociedades secretas subversivas, movimentos revolucionários e grandes
convulsões e insurreições sociais. A revolução é uma potência dinâmica e
destruidora, é o “partido do movimento, da oposição e da agitação”. Existe na
revolução, bem como na esquerda, certo cariz religioso. Como fora apontado em
outro momento, o revolucionário deposita toda sua fé e esperança, suas energias
e seus talentos na causa política redentora, no ideal transformador. Assim, a
revolução adquire os traços de uma contra-religião; e isto explica as razões do
fanatismo, do zelo e do proselitismo do revolucionário que encara sua faina de
conquista e transformação do mundo com fervor missionário.
A revolução não se esgota no plano da política, não é apenas um
fenômeno sociológico. Na verdade, é um fenômeno de natureza e origem
espiritual remotíssima. A revolta irrompe no universo no começo dos tempos,
quando o anjo Lúcifer recusa-se a servir a Deus. O espírito de insubmissão e de
negação, bem como de ódio visceral ao divino, são marcas indeléveis dessa
estranha força demolidora. Há, portanto, algo na revolução que escapa à
racionalidade e à maldade puramente humana.
O homem contemporâneo está mergulhado num estado mental e em uma
atitude existencial de revolução permanente, de constante agitação e insatisfação
metafísica, pois se orienta exclusivamente por aquilo que é contingente,
transitório e mutável, instaurando o devir como o valor antropológico mais alto.
Como sublinha Thomas Molnar (1975), a revolução, na atualidade, não se limita
simplesmente a um único objetivo, como o bem-estar, a independência nacional
ou a emancipação de um grupo social. Na contemporaneidade, é possível notar a
presença de um “estilo e de um conteúdo revolucionário” generalizado, cujo
traço principal é um niilismo raivoso e gratuito. Os métodos e as ideologias da
revolução já são partes integrantes do establishment de nossas sociedades. Por
meio deles, nossas sociedades são continuamente demolidas, recompostas e
novamente arruinadas, para serem, em seguida, reconstruídas. Estamos diante de
um autêntico caso de obsolescência social desejada, de uma revolução cultural
informe, que não tem outro fim que se alimentar a si mesma.[162]
Parece paradoxal afirmar que existe uma “tradição revolucionária”, uma
espécie de tradição da antitradição, mas é a mais pura verdade. Segundo Elémire
Zolla (2003), no decurso de todo o seu desenvolvimento e em suas diversas
manifestações históricas, a revolução apresenta alguns caracteres fundamentais
que se mantêm idênticos, como a aversão pelas normas em geral, ou seja, pela
forma, lançando assim imprecações contra o fixo, o estático, o petrificado em
uma norma, como se uma matéria pudesse libertar-se de uma forma sem tomar
imediatamente outra, ou como se uma comunidade pudesse destruir uma lei sem
cair sob o império de outra. Em geral, o hipócrita e cínico convite de desligar-se
de todas as formas e normas esconde o desejo de impor normas e formas piores.
Ganhou força, nas últimas décadas, a revolução cultural, ou melhor,
contracultural,[163] que se caracteriza por pretender modificar o modo de pensar,
agir e sentir dos homens de uma maneira sutil e vagarosa, objetivando uma
liberação integral.[164] Trata-se de uma mutação antropológica que visa,
especialmente, à liberação dos limites e dos fins assinalados por Deus à natureza
humana. Para Marcel Clément (1973), a revolução, em seu último e derradeiro
estágio, ambiciona uma liberação ontológica, e não meramente social:
O homem só deseja transformar a sociedade
porque aspira a modificar a sua própria natureza.
Ele almeja destruir a subordinação humana dentro
da sociedade política e da economia social, e na
própria família, porque ela reflete e traduz uma
dependência ontológica: a do homem em relação a
Deus (Clément, 1973, p. 84).
As várias fases e linhagens do pensamento e do processo revolucionário
e os diversos estágios convergem na recusa da natureza humana, vista pelo
pensamento tradicional como dependente de uma ordem criada por Deus e
inscrita na estrutura física, moral, social e pessoal do ser humano. Após as
revoluções políticas, sociais e econômicas, assiste-se, nas últimas décadas, a uma
revolução comportamental e sexual que atinge e altera o núcleo mais íntimo da
personalidade humana:
A liberação integral do homem atinge o casamento
e a família, em nome da liberdade sexual; o Estado,
em nome da dignidade individual; a propriedade
privada, em nome da justiça social. De fato, é a
dignidade da pessoa, imagem de Deus, que é o
objetivo dessa “liberação”, pois o casamento e a
família tendem, por sua própria natureza, a formar
e desenvolver o homem como pessoa [...]
(Clément, 1973, p. 88).
A meta principal e suprema da revolução, ocultada pelos seus principais
agentes, consiste em estabelecer um regime de tipo totalitário, que será a
prefiguração do reino do Anticristo – reino este que será uma grotesca e infernal
paródia da cristandade (Perron, 1998). É na ojeriza, no ódio e na perversão do
cristianismo que se encontra o âmago da atitude revolucionária. A revolução é a
negação da tradição: negação radical e destrutiva da tradição metafísica e
revelada.[165]

6.3 Reacionários, contra-revolucionários e a restauração tradicional

O homem da direita tradicional é, essencialmente, um reacionário[166] e
um contra-revolucionário. Reage contra a desordem moderna, recusando-se a
assistir de braços cruzados à destruição revolucionária das instituições e dos
valores tradicionais.[167]
Ninguém soube melhor captar o espírito do “reacionário autêntico” do
que o filósofo colombiano Nicolás Gómez Dávila, ainda praticamente
desconhecido no Brasil.[168] Em seus esplêndidos aforismos e em suas
meditações metafísicas fragmentadas e breves, expôs, com impressionante
lucidez e rigor, uma mundividência pessimista e antimoderna. Conquanto o
pensamento de Don Colacho[169] não se esgote no tema da reação, este é o pano
de fundo de todas as suas reflexões, o fio condutor que articula as múltiplas
questões exploradas pelo autor, dando sentido e certa unidade à sua obra.
O pensador colombiano define-se como um homem de outro tempo, de
outra época: “Não sou um intelectual moderno inconformado, mas um camponês
medieval indignado” (GD[170], 2001, p. 168). Em outros escólios[171], revela seu
papel e sua missão em um mundo em ruínas: “Sou o asilo de todas as idéias
desterradas pela ignomínia moderna” (GD, 2001, p. 251). O filósofo colombiano
é o porta-voz de verdades imperecíveis em uma civilização decadente, doente e
confusa: “Não pertenço a um mundo que perece. Prolongo e transmito uma
verdade que não morre” (GD, 2001, p. 269).
O reacionário autêntico gomezdaviliano insurge-se contra os tempos
modernos. Não há, nesta civilização degradada, nada que mereça ser conservado.
O reacionário, portanto, nesta época decadente, não pode ser conservador: “O
reacionário não se torna conservador senão nas épocas que guardam algo digno
de ser conservado” (GD, 2001, p.160). Em tempos passados, menos decadentes,
até fazia algum sentido adotar uma atitude conservadora; hoje, não mais: “Burke
pode ser conservador. Os progressos do progresso obrigam a ser reacionário”
(GD, 1992, p. 126).
Há um paradoxo no conservadorismo assinalado pelo sociólogo Karl
Mannheim (2007) e pelo filósofo Michaël Rabier (2014). Se são os velhos
modos de experimentar o mundo que dão ao conservadorismo o seu caráter
peculiar, e essa atitude e orientação mental tornam-se conscientes quando
surgem novos modos de vida e pensamento, emerge aqui uma contradição
fundamental: à medida que o mundo se modifica radicalmente e que o
conservadorismo adquire uma forma reflexiva para refutar tais transformações
com argumentos, vão eclipsando-se todos os valores e as instituições tradicionais
que essa filosofia defende, de modo que ela já não tem mais sentido. Como
afirma Rabier (2014, p. 237): “Desde o momento em que as tradições defendidas
já não mais existem ou foram substituídas por outras, o conservadorismo como
tal, em seu sentido próprio, não tem mais razão de ser”. O conservador vê-se
forçado a converter-se em um reacionário: “Se o reacionário não desperta no
conservador, tratava-se somente de um progressista paralisado” (GD, 1977, p.
165).
De acordo com o jurista e filósofo Miguel Ayuso (2007), o
conservadorismo consiste, em boa medida, na conservação do que não deve ser
conservado, na conservação do que rompe com a tradição. O reacionarismo, por
sua vez, implica a reação contra a revolução em suas múltiplas facetas, em suas
várias etapas e distintos desdobramentos. Isso não significa, porém, que o
reacionário não seja até certo ponto um conservador, ou, inclusive, que certo
conservadorismo não seja o pressuposto de certo reacionarismo.[172]
Aliás, o próprio mestre colombiano reconheceu os aspectos edificantes
do conservadorismo, ressaltando, contudo, que este precisa ser entendido como
um estado de espírito: “O conservadorismo não deve ser partido, mas a atitude
normal de todo o homem decente” (GD, 2001, p. 368).[173]
O reacionário autêntico não é um nostálgico saudosista que imagina o
ressurgir de uma idade de ouro supostamente existente em tempos pretéritos: “O
reacionário não anela a vã restauração do passado, mas a improvável ruptura do
futuro com este sórdido presente” (GD, 2001, p. 224). Não quer simplesmente
voltar ao passado, retroceder a um determinado momento da história: “O
reacionário não aspira a que se retroceda, mas que se mude de rumo. O passado
que admira não é meta, mas exemplificação de seus sonhos” (GD, 2001, p. 366).
No mundo moderno, o reacionário é desdenhado e ridicularizado. Ele é
percebido como uma figura exótica e estranha, uma espécie de forasteiro. Suas
objeções e posicionamentos quase nunca são levados em consideração pelos
bem-pensantes. Em muitas oportunidades, resta ao homem da reação uma
posição “marginal”, periférica. O reacionário é um outsider, vítima de todo o
tipo de ultrajes e maledicências, como assevera Don Colacho: “Caluniado, como
um reacionário” (GD, 2001, p.190). As idéias do reacionário parecem não
interessar a ninguém, são tomadas pelo mainstream cultural como demasiado
duras, absurdas e ultrapassadas. No entanto, segundo o mestre colombiano: “Os
textos reacionários parecem obsoletos aos contemporâneos e de uma atualidade
surpreendente à posteridade” (GD, 2011, p. 423). O que incomoda os modernos
na figura do reacionário é a sua intransigência, firmeza e severidade diante dos
mitos de nosso tempo, dos modismos e clichês liberais e progressistas
dominantes. O pensador reacionário é insubornável, como afirma nosso autor,
não se deixa cooptar pelos poderes políticos e econômicos de turno e pelas
correntes de idéias hegemônicas.
Gómez Dávila estabelece uma relevante distinção entre o reacionário, o
conservador e o progressista, baseada na forma como esses tipos humanos
percebem o tempo e a história:
Se o progressista se inclina ao futuro, e o
conservador ao passado, o reacionário não mede
seus desejos com a história de ontem ou com a
história de amanhã. O reacionário não clama o que
há de trazer a próxima alvorada, nem se aferra às
últimas sombras da noite. Sua morada se levanta
neste espaço luminoso onde as essências o
interpelam com suas presenças imortais. O
reacionário escapa à servidão da história, porque
persegue na selva humana a pegada de passos
divinos.[174]
O reacionário, distinguindo-se do conservador e do progressista, parece
buscar uma liberação do cativeiro da história, ou melhor, não aceita os
postulados historicistas que fazem do homem e das sociedades simples
marionetes da temporalidade. Não nega o tempo histórico e o peso desse fator
nos destinos humanos, porém não faz dele uma força determinante, fatal e
irresistível. Há algo para além do tempo histórico que, no entender do homem da
reação, ultrapassa a disjuntiva passado ou futuro. A postura do filósofo
colombiano é meta-histórica e metafísica. Para Don Colacho, a figura do
reacionário busca modelos, paradigmas e valores que não pertencem ao tempo,
que não se exaurem na história de ontem (conservador) ou de amanhã
(progressista). Ancora-se nos valores atemporais do espírito, valores que “não
são cidadãos deste mundo, mas peregrinos de outros céus” (GD, 2001, p. 185).
Procura por algo mais excelso e longínquo, aspira a uma realidade que é superior
ao mundo terreno: “O reacionário verdadeiro não é o sonhador de passados
abolidos, é o caçador de sombras sagradas sobre as colinas eternas” (GD, 2001,
p. 324). Sua tarefa laboriosa é proteger os princípios da tradição em um mundo
devastado: “O reacionário não argumenta contra o mundo moderno esperando
vencê-lo, senão para que os direitos da alma não prescrevam (GD, 2001, p.
262)”. As causas e idéias brandidas pelo homem da reação são causas que não
importa perder, pois “não rodam sobre o tabuleiro da história” (GD, 2015).[175]
Conforme observa Rabier (2014), o reacionário gomezdaviliano não se
limita a uma ação política e cultural, anseia por uma transformação espiritual
que tenha tonalidades religiosas e místicas. Logo, não aceita utilizar os métodos
violentos do adversário revolucionário, empenhando-se numa reforma interior,
uma verdadeira mutação da mente, por uma espécie de metanóia.[176]
Em algumas notas, Góméz Dávila sublinha os vínculos do
conservadorismo com o liberalismo: “Os conservadores atuais não são mais que
liberais maltratados pela democracia” (GD, 2001, p. 211). Para Don Colacho,
conservadores, liberais, socialistas e comunistas são os gestores do mundo
moderno, as forças dirigentes que buscam manter suas posições de comando,
distinguindo-se unicamente na tarefa de acelerar ou abrandar o processo de
dissolução: “Salvo o reacionário, hoje só encontramos candidatos a
administradores da sociedade moderna” (GD, 2001, p. 335).
Conservadores, liberais e bonapartistas representam a direita moderna, a
direita política e econômica que, segundo o filósofo colombiano, revela uma
posição filosófica insuficiente, incapaz de superar por completo as ilusões da
modernidade e, dessa maneira, destronar o progressismo: “Ainda a direita de
qualquer direita me parece sempre demasiado à esquerda” (GD, 2001, p. 209).
Em seu entendimento, as direitas atuais têm algo da esquerda: “Qualquer direita
em nosso tempo não é mais que uma esquerda de outrora desejosa de digerir em
paz” (GD, 2001, p. 245). Don Colacho situa o homem da reação em outra
topografia política, não aceitando instalar o reacionário à direita da esquerda: “A
esquerda chama direitista a gente situada meramente à sua direita; o reacionário
não está à direita da esquerda, mas em frente” (GD, 2001, p. 351).
O que principalmente inquieta o reacionário é a desintegração espiritual
da sociedade moderna: “A angústia ante o ocaso da civilização é aflição
reacionária” (GD, 2001, p. 66). Manter-se de pé, sem perder a lucidez e a
dignidade, já é um triunfo, uma importante vitória diante do soçobrar de uma
cultura: “O reacionário, hoje, é meramente um passageiro que naufraga com
dignidade” (GD, 2001, p. 138).[177]
Manifesta-se, na escrita curta e elíptica do filósofo colombiano, uma
visão trágica da existência temperada com um moderado ceticismo: “Ser
reacionário não é crer em determinadas soluções, mas ter um sentido agudo da
complexidade dos problemas” (GD, 2001, p. 195). Na visão antropológica
gomezdaviliana, patenteia-se um corajoso pessimismo com colorações místicas:
“Ser reacionário é compreender que o homem é um problema sem solução
humana” (GD, 2001, p. 381). Apesar disso, o homem da reação, impregnado
pela espiritualidade cristã, não perde a virtude da esperança: “Não é uma
restauração o que o reacionário espera, senão um novo milagre” (GD, 2001, p.
192).
Ao contrário do revolucionário radical, o reacionário é prudente,
escrupuloso e diligente em seus atos e suas escolhas. A ética maquiavélica, o
oportunismo, a ação pela ação e a despudorada vontade de poder não fazem
parte de seu universo moral. Nem tudo é válido, nem tudo é permitido em nome
da vitória da causa: “É reacionário todo aquele que não está pronto a comprar a
sua vitória a qualquer preço” (GD, 2001, p. 294).
Similar disposição espiritual encontra-se na figura do contra-
revolucionário, exemplarmente caracterizada por Marcel de La Bigne de
Villeneuve no diálogo filosófico imaginário Satan dans la Cité (Satanás na
Cidade). Nesse livro, o escritor francês apresenta um curioso e revelador
colóquio entre um sociólogo cético e um erudito teólogo católico tradicionalista,
o abade Mutti, sobre o caráter diabólico das instituições políticas e sociais
modernas. O personagem central da narrativa, o abade Mutti, é um religioso fiel
à ortodoxia, que não se deixa iludir pelos embustes progressistas, limitando-se a
repetir obstinadamente as verdades imutáveis da tradição e as lições da
experiência que, apesar de tudo, sempre permanecem. Em sua ardente e
angustiosa defesa dos valores perenes, o sábio católico enfrenta as dúvidas e os
questionamentos metafísicos de um intelectual descrente. Explica, de maneira
clara e franca, que no mundo contemporâneo observa-se a propagação de uma
mentalidade de rebeldia e inversão de todos os princípios, que tem uma origem
preternatural.[178] Para ele, a perversão e a corrupção das instituições humanas
apresentam um caráter satânico e luciferino. O que é notável nos tempos atuais é
que as instituições, em lugar de serem concebidas para refrear a extrema malícia
dos homens, como ocorria em outros tempos, são hoje planejadas para excitar e
exaltar os vícios e os impulsos: em vez de remediar, na medida do possível, as
faltas e os pecados das sociedades, multiplicam-nos e agravam suas
conseqüências. Como argumenta o abade Mutti: “E isto é porque Satanás
encontrou acesso a elas” (Bigne de Villeneuve, 1952, p.78). O príncipe deste
mundo, ao insinuar-se e controlar as instituições políticas e sociais, faz passar
por bom aquilo que é mal, “decorando a desordem com as cores da ordem e a
falsidade com as aparências de verdade [...]” (Bigne de Villeneuve, 1952, p. 79).
O abade tradicionalista lembra que o nome hebreu para Satanás é Shatan,
que, literalmente, significa adversário, o que está contra tudo. O diabo, do grego
diabolôs, ou seja, aquele que desune, que provoca o ódio e a divisão, é o mestre
da intriga e da mentira, o espírito maligno que engana, falsifica e perverte todas
as coisas. É dessa entidade nefasta que parte o espírito de negação e de crítica
corrosiva da revolução antitradicional e anticristã, conforme afirma, sem meias-
palavras, o sacerdote católico:
Observe que, apoiando-se com pérfida habilidade
sobre certas reinvindicações bastante especiosas
para arrastar as massas, a Revolução vai dirigida
contra a autoridade, a ordem, a paz e a concórdia
social, e, finalmente, contra os dogmas mais
fundamentais do cristianismo; contra toda a
disciplina e toda a hierarquia sacra; leva a rubrica
do destruidor (Bigne de Villeneuve, 1952, p.105).
Há um “dogma infernal” por excelência que constitui o modo preferido
pelo qual Satanás difunde sua corrupção: “[...] é a soberania do povo e seu
sucedâneo, o liberalismo [...]” (Bigne de Villeneuve, 1952, p.110). Ambos estão
intimamente interligados e estribam-se na falsa teoria de matiz antropocêntrica,
segundo a qual todo indivíduo é livre e soberano por natureza e por essência,
como argumenta nosso teólogo contra-revolucionário:
A soberania do povo é a soma ou, mais
exatamente, a resultante dessas soberanias
individuais, e participa de seu caráter de limitação;
é a vontade geral rainha e senhora absoluta, em
última instância, de suas decisões em tudo o que
diga respeito à cidade. Em poucas palavras, é a
onipotência do número. Há, pois, uma
sobreposição perfeitamente lógica da soberania do
homem e da soberania do povo [...]. Aí está a base
da doutrina revolucionária e a corrupção
democrática da sociedade, e aí está também o
ponto essencial da ocupação e da infestação
demoníacas (Bigne de Villeneuve, 1952, p. 113).
Para o personagem central da narrativa de Bigne de Villeneuve, a
soberania popular opõe-se diametralmente à noção cristã de poder, conduzindo,
necessariamente, à eliminação de Deus e ao desprezo pela Revelação. Os
dogmas liberais da soberania do homem e da soberania popular derribam com a
noção religiosa do pecado original, pretendendo substituí-la por outra:
O Cristianismo coloca como princípio primeiro e
absoluto, com São Pedro e São Paulo, que “todo
poder vem de Deus” e, por conseguinte, para ser
legítimo, deve ser exercido conforme as leis
estabelecidas e reveladas. Que a Vontade divina,
única independente, impõe-se à vontade
subordinada dos indivíduos, e que nenhuma
decisão, ainda que emane da maioria, [...] não
apresenta o menor valor nem sequer força
obrigatória intrínseca, se está em oposição com as
leis divinas. A senha formal foi dada pelos
Apóstolos e foi repetida muitas vezes pelos Papas:
“Temos de obedecer a Deus antes que aos homens”
(Bigne de Villeneuve, 1952, p. 114).
Em outra passagem, o abate Mutti reforça esses princípios contra-
revolucionários de maneira taxativa:
A soberania popular é satânica porque intenciona
expulsar a Deus da sociedade e proclamar os
Direitos do Homem, exatamente igual a Lúcifer
que pretendia substituir a Deus no céu e proclamar
contra Ele os supostos Direitos dos Anjos rebeldes.
É satânica ao negar, explícita ou insidiosamente,
dois dogmas essenciais da Fé cristã, a saber, o da
queda original, com a profunda mancha do homem,
e o de que toda autoridade tem em Deus sua fonte
exclusiva, sua regra e seus limites (Bigne de
Villeneuve, 1952, p. 121).
O mito liberal da soberania do povo contraria o dogma do pecado
original, pois nega a antropologia cristã tradicional fundada na idéia de que o
mal está no interior do homem desde seu nascimento. Indubitavelmente, a
criatura humana possui, por conta da “queda primordial”, más tendências que
somente podem ser combatidas e dominadas por meio da graça e de uma
autoridade espiritual. Logo, é um equívoco proclamar a soberania, a
independência e a total autonomia do homem. Não obstante, o mito da soberania
popular e da democracia liberal parte da falsa premissa de que o indivíduo nasce
bom, inteligente e livre. A crença na bondade natural do homem é um dos
principais tópicos defendidos pelos doutrinários e pensadores da revolução,
como, por exemplo, Jean-Jacques Rousseau. As ideologias revolucionárias
deificam o homem e hipostasiam o povo. Há um elemento explicitamente
idolátrico nessa forma de pensar a realidade que desemboca em uma “religião da
democracia e dos direitos do homem”, segundo elucida o teólogo católico:
Como Cristo veio abrir ao homem o caminho do
Céu, o Diabo pretende dar este livre acesso aos
gozos deste mundo e transportar o Paraíso para a
terra. Constrói seu falaz reino à imagem do reino
celestial, e sua malfeitora igreja sobre o modelo da
Igreja verdadeira. A esta Contra-Igreja, que ele se
esforça com êxito em fazer “católica” no sentido
etimológico de universal, deu um grande Fetiche, o
Povo deificado em seus elementos [...], o povo
hipostasiado pela doutrina revolucionária, e
especialmente por Michelet, em um ídolo dotado
de uma personalidade própria, infalível e
impecável, criando assim uma verdadeira idolatria
democrática, uma Demonolatria [...] (Bigne de
Villeneuve, 1952, p.159).
Essa religião mundana, consoante as aguçadas sugestões do contra-
revolucionário do romance filosófico de Marcel de La Bigne de Villeneuve, tem
seus símbolos, como a Declaração dos Direitos do Homem, tem a sua teologia e
os seus exegetas e doutores sutis, que celebram os seus ofícios nos cenáculos
parlamentares e nos comitês políticos. Tem o seu catecismo composto de slogans
repetidos à exaustão. Tem seus prestidigitadores, que se esforçam em imitar os
milagres, porém apresentando-os como feitos exclusivamente científicos. Tem a
sua magia, que pretende operar a transubstanciação das ignorâncias, dos
impulsos frívolos, dos baixos interesses e das opiniões doentias em vontade geral
infalível, sempre reta, inalterável e pura. Tem o seu culto e os seus objetos
sagrados, como as urnas eletrônicas e as papeletas de voto, bem como seus fiéis
e seus sacristãos. O sábio católico estabelece uma inusitada relação entre a
democracia e aquilo que cunhou como demonocracia:
[...] por sua ação insidiosa, a Democracia se
identifica cada vez mais com a Demonocracia.
Demos e Demon são muito parecidos, e Satanás
habita com gosto no número. Não diz ele mesmo
que seu nome é Legião? (Bigne de Villeneuve,
1952, p. 159).
O abade deixa patente que o embate entre Cristo e Satanás, entre a Igreja
e a Contra-Igreja, projeta-se no campo político e cultural através do antagonismo
revolução e contra-revolução: “A guerra é sem trégua e sem quartel entre a
revolução e os que permanecerem fiéis a Deus sobre a terra, porque a revolução
é uma tentativa de organização do mundo sem Deus e contra Deus” (Bigne de
Villeneuve, 1952, p. 116).
Como se pode perceber, reacionários e contra-revolucionários são irmãos
gêmeos. A contra-revolução é essencialmente uma reação contra os ataques da
revolução à ordem tradicional. Segundo Luis María Sandoval (1992), o conceito
de contra-revolução[179] é análogo e constitui-se a partir da sobreposição de três
noções: reação, catolicidade e tradição. A reação é o componente mais amplo,
vago e de menor valor para a contra-revolução, porém constitui uma atitude que
não se reduz à mera oposição, posto que implica insurreição contra os princípios
causantes do mal. A natureza cristã da contra-revolução é seu traço mais
importante; não é simplesmente a defesa dos cristãos, nem dos direitos da Igreja,
mas basicamente a defesa da civilização cristã.[180] Uma reação contra a
revolução em prol de uma sociedade cristã é já uma contra-revolução, todavia,
carece da nota distintiva da contra-revolução histórica: a inspiração no passado
institucional da cristandade. Esse terceiro fato caracteriza a contra-revolução
integral, cuja meta final é a restauração de uma sociedade e de uma cultura
cristã.[181]
Nesse sentido, Madiran (1981) constata que o limes, a fronteira ou a
linha de demarcação que separa a direita tradicional da esquerda, ou seja, a
contra-revolução da revolução, não diz respeito à fé cristã em si mesma, mas à
principal obra temporal da fé, a cristandade, a moral social do cristianismo
ensinada pela tradição católica e inscrita nas instituições políticas.[182]
É incontestável que a revolução apresenta nuanças religiosas – uma
contrafação das religiões tradicionais, é claro; a contra-revolução, por sua vez, é
primordialmente de natureza religiosa e espiritual. Na realidade, como assevera
Rubén Calderón Bouchet (1983), é perfeitamente inútil lutar contra uma falsa
religião sem esgrimir a força da religião verdadeira. Um contra-
revolucionário[183] não é necessariamente cristão, mas nada é tão oposto ao
espírito da revolução como o cristianismo vivido na plenitude das suas
exigências. Enquanto a revolução, em suas diversas facetas – burguesa,
proletária, liberal, anarquista, socialista e comunista – distingue-se por sua
profanidade radical e pela sua orientação mundana e tecnicista, a contra-
revolução possui um sentido e uma inclinação totalmente oposta:
A contra-revolução nasce de uma atitude espiritual
e religiosa: conhece o caráter sagrado do mundo e
do homem e dispõe-se a ordenar a vida humana
como um movimento que conduz a um Reino
escatológico, além da história, supramundano. A
revolução considera fictícias as crenças cristãs e
sustenta que favorece a situação de predomínio
capitalista (Bouchet, 1983, p. 95).
Mais do que a conservação, é preciso uma restauração. A conservação do
estado atual de desordem e dissolução do mundo contemporâneo é um terrível
engano presente em alguns setores da direita moderna: o que se faz cada vez
mais necessário é a restauração da ordem e do espírito tradicional. Há que se
levar a cabo uma ação retificadora, que, entre outras tarefas, procurará reativar e
revitalizar no tempo presente os princípios perenes da tradição.[184]
Essa restauração do espírito tradicional não é uma utopia invertida, um
inverossímil regresso histórico a uma imaginária idade de ouro de tempos
pretéritos, mas é, na vida social e cultural, um processo análogo à cura de um
enfermo, segundo afirma Rubén Bouchet (1983, p. 207):
Reclamar a restauração destes princípios negados
pela revolução não significa distrair-se em uma
utopia de retorno, mas salientar com ênfase os
elementos permanentes de uma ação salutar. O
médico não pretende devolver a seu enfermo a
juventude, mas tem a santa intenção de restaurar as
fontes de uma saúde comprometida.
Revitalizar, revigorar, sanear e restaurar não apenas os princípios, os
valores, as idéias e os símbolos perenes, mas também as instituições e as
estruturas sociais tradicionais, como a religião, a família[185] e a pátria:
Restaurar significava dar vigor e força a todos os
corpos sociais intermediários corroídos em sua
vitalidade mais profunda pela ação constante de
dois processos aparentemente opostos. Um,
centrífugo e dissolvente, toma por fundamento o
espírito rebelde e instala seu poder destruidor sobre
a ânsia de abandonar o jugo dos limites traçados
pela nossa natureza. Seu espelhismo: uma
liberdade angélica e a quimérica aspiração a uma
mudança capaz de provocar uma transformação da
nossa condição humana. O outro é centrípeto e
tirânico, cresce à custa das sociedades orgânicas
abandonadas pelo movimento liberador e encerra
os homens no anel de ferro da estatolatria.
Rompidas todas as solidariedades da vida
comunitária natural, uma vida socialmente anêmica
busca a proteção do Estado e se entrega submissa
ao poder artificial, à organização burocrática que
lhe promete segurança e prazeres (Bouchet, 1983,
p. 216).
Assim, é o combate metapolítico pela restauração da ordem interna da
alma e pela ordem e a hierarquia na sociedade, com o restabelecimento da
primazia dos valores espirituais sobre aqueles materiais, que distingue a direita
tradicional da direita moderna. O reacionário tradicionalista deve preparar-se
espiritual e intelectualmente antes de lançar-se ao embate político. A verdadeira
resistência é interior, de retificar e reordenar pensamentos, emoções e atitudes.
Sem uma profunda reforma moral, sem a busca pela elevação espiritual e a
santidade interior, a batalha ideológica e cultural contra a revolução
antitradicional estará fadada ao fracasso.

7 A NOVA DIREITA BRASILEIRA: UM FALSO DESPERTAR?

Muitos são os analistas e comentaristas políticos que têm apontado para
o surgimento de uma nova direita em terras brasileiras. Tal fenômeno é
inquestionável e pode ser explicado, parcialmente, como uma reação diante da
hegemonia política e cultural da esquerda e, além disso, como uma rejeição à
corrupta e decadente classe política dominante. É sobretudo na esteira dos
multitudinários protestos contra o governo Dilma Rousseff e contra o PT, nos
anos de 2015 e 2016, que a nova onda direitista ganhou força e visibilidade.
Indubitavelmente, o antipetismo é um dos principais traços dessa direita
à brasileira, que tem um caráter multifacetado e bastante heterogêneo do ponto
de vista ideológico e doutrinário. Trata-se de um magma confuso, cabendo ao
analista a tarefa de colocar um pouco de ordem nesse intricado fenômeno. Essa
força política tem-se estruturado e organizado numa miríade de movimentos,
associações, institutos e partidos como o MBL (Movimento Brasil Livre),[186] o
Vem Pra Rua,[187] os Revoltados On-Line, o Acorda Brasil, o Endireita Brasil, o
Nas Ruas, os vários Instituto Liberais espalhados por todo o território nacional, o
Instituto Liberdade, o Estudantes pela Liberdade, o Instituto de Estudos
Empresariais, o Instituto Millenium, o Ordem Livre, o Instituto Mises-Brasil, o
Partido Novo, o Partido Social Liberal, etc. Além dessas organizações, cabe
destacar a proliferação de revistas eletrônicas, sites e blogs que defendem as
causas liberais e conservadoras.[188] Não intenciono, neste capítulo, descrever
exaustivamente as múltiplas organizações, os atores e personagens que
configuram a nova direita brasileira, mas apenas destacar sucintamente as
características ideológicas e doutrinárias essenciais dessa vertente política, assim
como sinalizar para as suas fragilidades, incongruências e antinomias a partir da
perspectiva da direita tradicional.
Doutrinariamente, a nova direita brasileira poder ser caracterizada como
liberal e liberal-conservadora. Em linhas gerais, duas são as correntes de
pensamento que fundamentam a visão de mundo desse movimento: o liberalismo
da Escola Austríaca de economia (Mises, Hayek) e o conservadorismo anglo-
americano. A luta contra o domínio esquerdista no campo cultural e político, a
defesa do liberalismo econômico, do capitalismo, da democracia liberal e do
Estado de direito, mínimo, enxuto e eficiente, são os tópicos basilares que
irmanam as diversas forças que integram essa corrente política.
A tendência liberal é predominante e majoritária, contudo os liberais-
conservadores e os conservadores em sentido estrito têm crescido de maneira
significativa. Vale ressaltar que os conservadores “puros” e “ortodoxos” são
inspirados principalmente pelos trabalhos do jornalista e filósofo Olavo de
Carvalho. Além de liberais e libertários, liberais-conservadores e conservadores,
há tendências minoritárias como os militaristas (que defendem explicitamente o
retorno da ditadura militar), os nacionalistas, os neointegralistas e os
monarquistas agrupados em torno da figura de Dom Bertrand de Orléans e
Bragança.[189]
Os liberais-conservadores, uma tendência que cada vez ganha mais
adeptos, são liberais em economia e conservadores no terreno moral e
comportamental. Afirmam defender a economia de livre mercado, as liberdades
individuais e o fundamento ético e religioso judaico-cristão da civilização
ocidental. Os liberais-conservadores e os conservadores “ortodoxos” ressaltam a
importância dos fatores morais e culturais na formação de uma comunidade.
Alertam para a degradação ética e cultural que aflige a sociedade brasileira e o
mundo ocidental. Já os liberais e os libertários enfatizam os aspectos econômicos
e administrativos. Preocupam-se com os limites do Estado e sua relação com o
mercado, concentrando-se na espinhosa questão da autonomia e da liberdade
individual.
É curioso que o termo “nova direita” tenha uma dupla origem histórica.
Foi primeiramente empregado para caracterizar os governos liberais de Margaret
Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos, nas décadas de
1970 e 1980, que, grosso modo, insurgiram-se contra o Estado de bem-estar
social. Governos estes que, em termos de política econômica, inspiravam-se nas
lições da Escola Austríaca de Mises e Hayek e na Escola de Chicago de Milton
Friedman. A nova direita liberal-conservadora inglesa e norte-americana
combinava a defesa do capitalismo e da economia de livre mercado com certo
conservadorismo moral e religioso. Essa é a origem mais conhecida do termo.
Outra fonte histórica, pouco conhecida e divulgada, relaciona essa expressão
com a nouvelle droite (nova direita, em francês), escola de pensamento surgida
na França no final da década de 1960, liderada pelo filósofo e cientista político
Alain de Benoist. Vale lembrar que, entre outras características, essa corrente
intelectual revela um viés fortemente antimarxista e antiliberal. É uma
perspectiva doutrinária crítica da sociedade de consumo e do “turbocapitalismo”
globalizado. É evidente que os militantes e intelectuais da nova direita brasileira
filiam-se histórica e ideologicamente ao liberal-conservadorismo de Thatcher,
Reagan, Hayek e Mises.

7.1 Os equívocos e as debilidades da nova direita

Algo que chama bastante atenção na nova direita brasileira é a tendência
desta corrente política em emular o conservadorismo anglo-saxão e norte-
americano. Tal reprodução do ideário conservador anglo-americano em terras
brasileiras não se resume apenas à leitura e citação de autores e obras ligados a
essa vertente do pensamento político, mas também a uma estranha e curiosa
propensão a mimetizar certos trejeitos, gestos, hábitos, estilos de fala e
determinadas vestimentas que se vinculam à tradição cultural britânica e norte-
americana. É inegável que o conservadorismo anglo-americano é uma linha de
pensamento político riquíssima e que merece ser lida e estudada com cuidado,
mas isso não significa incorporar por completo o ethos e o habitus britânico,
abandonando, negando ou mesmo desdenhando da nossa identidade cultural
ibérica e católica, com isso deixando de lado uma imensa gama de autores
nacionais e hispânicos que elaboraram formas autóctones e “indígenas” de
conservadorismo e tradicionalismo. Precisamos conhecer mais o nosso país, a
nossa história e cultura, bem como os autores conservadores e tradicionalistas do
mundo hispânico, antes de mergulhar no universo de idéias anglo-americanas.
Assimilar o que há de valioso no conservadorismo de outras latitudes,
então o adaptando à realidade nacional, parece ser o caminho mais prudente e
sensato. Essa primazia dada aos autores do conservadorismo anglo-saxão e
norte-americano, assim como a outras linhas ideológicas afins, como o
liberalismo da Escola Austríaca e o libertarianismo de Murray Rothbard e Ayn
Rand, relaciona-se com outra problemática predisposição da nova direita em
exaltar acriticamente a grandeza dos Estados Unidos e da Inglaterra. A anglofilia
e americanofilia são profundamente antinacionais e antipatrióticas, atitudes que
contrariam os princípios basilares de uma autêntica direita. O conservadorismo e
o tradicionalismo caracterizam-se justamente pela valorização e preservação da
identidade cultural e espiritual de um povo, e não pela imitação ou transposição
mecânica de valores culturais exógenos, muitas vezes contrastantes e
incompatíveis com a nossa experiência histórica e formação social. Um
conservadorismo alienígena, sem a preocupação com o enraizamento, sem a
busca constante pela alma nacional e sem o respeito pelas tradições pátrias acaba
por ser uma força desintegradora, nociva à substância espiritual da nação.
Entretanto é bastante comum entre os membros da nova direita brasileira o
desprezo, quando não mesmo a ojeriza, por tudo aquilo que se vincula com a
identidade nacional brasileira.
A nação brasileira é, com freqüência, vista como uma nação de
primitivos e bárbaros que precisa urgentemente tomar uma injeção de
liberalismo, capitalismo e individualismo para libertar-se de suas taras
patrimonialistas e estatizantes de origem ibérica. É fácil perceber que a anglofilia
e a americanofilia, em muitas oportunidades, não passam de disfarce para uma
patologia que parece estar presente em boa parte das elites brasileiras: o
complexo de inferioridade – a mentalidade de colonizado – diante do poder e da
exuberância das grandes potências anglo-americanas.
A propósito, lembro aqui os laços inextricáveis existentes entre o
liberalismo e o conservadorismo anglo-americano. Na realidade, essa forma de
pensamento conservador, própria das sociedades protestantes, é um ramo do
liberalismo burguês, uma variante moderada do projeto iluminista da
modernidade. É uma das facetas da direita política e econômica moderna que,
apesar de contestar alguns elementos da democracia liberal e da economia de
livre mercado, não coloca em questão os valores centrais da civilização
individualista liberal.[190]
Nossos liberais e conservadores precisam entender que o Brasil não é, e
jamais será, os Estados Unidos ou a Inglaterra. Somos uma nação com traços
culturais, valores, crenças, instituições políticas e uma formação histórica e
social diametralmente oposta a essas duas nações, que, em geral, são tomadas
pela nova direita como modelos civilizacionais.[191] Não creio que o American
way of life seja o melhor caminho a trilhar. Os Estados Unidos não são o único
modelo, o modelo universal e mais avançado a ser seguido por todas as nações.
É evidente que é um erro aceitar o discurso antiamericano de determinada
esquerda romântica, pois há uma série de características positivas na sociedade
estadunidense; contudo, não se pode cair no extremo oposto, da glorificação
cega e apaixonada.
Outra terrível ilusão alimentada pela direita liberal e pelos libertários
seguidores de Rothbard e Ayn Rand é acreditar que todos os nossos gravíssimos
problemas civilizacionais e culturais serão solucionados, como num passe de
mágica, por meio de entidades etéreas como o mercado, o capitalismo liberal, a
iniciativa privada, as corporações transnacionais e, ademais, pela expansão
ilimitada das liberdades individuais e pelo fortalecimento da mentalidade
utilitária e mercantil. O liberalismo econômico é muito eficaz na produção de
riquezas e no desenvolvimento técnico e material de um povo, mas é totalmente
indiferente, quando não pernicioso, no que diz respeito à construção de laços
sociais e vínculos comunitários. As sábias leis do mercado, defendidas com
ardor pelos epígonos do individualismo liberal, pouco se importam com a
identidade nacional, com as tradições culturais, com os valores morais e
religiosos. Sua meta, seu alvo e sua força motriz podem ser resumidos em duas
palavras: produção e lucro. É um engano acreditar que o liberalismo político e a
economia de mercado podem ser os pilares de sustentação de uma sociedade
humana. Nenhuma comunidade mantém-se de pé, firme e forte, mediante um
direito meramente formal, com uma moral laicizada e com simples trocas
“voluntárias” no mercado.
Ademais, há uma tensão entre o capitalismo e conservadorismo. Como
assevera Alain de Benoist (2011), muitos conservadores apoiam com entusiasmo
o capitalismo, sem no entanto dar-se conta de que o capitalismo é um sistema
econômico que pode provocar a destruição de tudo o que os conservadores
almejam e pretendem preservar. Na realidade, o que boa parte dos conservadores
não percebe é que o capitalismo não é somente um sistema econômico, mas,
antes de tudo, um modelo antropológico, baseado em valores que colonizam o
imaginário coletivo, transformando-o radicalmente. É um sistema que reduz todo
valor ao valor do mercado, ao valor de troca. Trata-se de uma mentalidade e
visão do homem que considera como algo transitório, secundário ou inexistente
tudo o que não possa ser reduzido ao cálculo quantitativo, ou seja, dinheiro. É
um sistema “dinâmico”, fundado na lógica do “sempre mais” – mais comércio,
mais mercados, mais bens, mais benefícios –, e, assim, na crença de que o
“mais” significa automaticamente o “melhor”. O capitalismo sem peias, sem
limites, busca o crescimento material infinito, estriba-se nos valores da eficácia,
do rendimento e da rentabilidade, transformando a terra num gigantesco
supermercado mundial, em uma civilização comercial cosmopolita (Benoist,
2011).[192]
A insuficiência do liberalismo e até mesmo de certo conservadorismo
fica patente quando se aponta para outro aspecto questionável presente em
alguns setores da nova direita brasileira: o seu pendor para o hipercriticismo, o
seu gosto exagerado pela polêmica e pela discussão de questões insignificantes e
acessórias, a sua postura excessivamente negativista, que acaba por transformá-
la no “partido do contra”, enfim, sua incapacidade congênita de reconhecer
certos aspectos positivos no “inimigo”. Essa atitude de zombaria hipercrítica,
negativista, às vezes rancorosa e amarga, que é bastante notória nas redes sociais
e em alguns textos e declarações de expoentes da nova direita brasileira,
manifesta-se por meio de um anticomunismo visceral que beira a irracionalidade
– no caso brasileiro, antipetismo. Aliás, em determinados setores da direita
nacional, o antipetismo já se transformou numa obsessão, num hábito quase que
automático. Há uma diferença substancial entre combater o esquerdismo e o
comunismo em nome de princípios e valores mais altos e superiores – este é um
anticomunismo positivo – e fazer do antipetismo um esporte, uma atividade
cotidiana e costumeira que se torna um fim em si mesmo. É esta uma postura
risível e insignificante. Acerca dessa direita tentada por Mefistófeles, comenta
com acuidade o cientista político Alain de Benoist (1981, p. XXXI):
Acredita que nos tornamos fracos por termos sido
“subvertidos”. Quando foi precisamente o contrário
que sucedeu: fomos “subvertidos” por nos termos
tornado fracos. A esquerda não é forte senão das
fraquezas da direita, das suas dúvidas, das suas
hesitações. É certo que, no mundo atual, não faltam
razões de descontentamento. Mas isso não é razão
para que nos limitemos a deplorar. A direita, com o
seu lamento, cai num dos erros da esquerda: aquele
que consiste em atribuir aos outros a
responsabilidade da sua sorte. Um olhar lamentoso
não é uma análise. Ele nada mais comprova do que
uma incompreensão. Traçar um diagnóstico é,
primeiro, identificar as causas. Mas a direita não
identifica as causas. Ou reporta-se apenas às causas
imediatas que não passam, elas próprias, de efeitos.
A direita fala de “subversão”. É verdade que uma
subversão está em curso: mas o que quer isso
exatamente dizer? Dizer a subversão não poderá
reduzir-se a enumerar os sintomas. A direita
abandonou o seu papel explicativo; deixou isso aos
pedagogos, como sendo da sua profissão. Só que os
pedagogos passaram para o lado da subversão.
Não basta lutar contra algo – esta atitude é insuficiente –, é preciso saber
em nome do que se combate. Demonstrar insatisfação e hostilidade para com o
status quo reinante, denunciar os vícios e as taras do sistema, são atividades
válidas, mas é preciso algo mais. As posições “anti” são uma forma de ação
defensiva. No entanto, o simples rechaço não basta, é necessário adotar uma
postura afirmativa, construtiva e propositiva. O que estamos defendendo? Pelo
que somos capazes do sacrifício supremo? São essas perguntas que devem
nortear um movimento cultural e político. A atividade metapolítica não pode se
reduzir a descrições críticas, deve portar também um projeto positivo, uma visão
de mundo e do homem alternativa ao sistema dominante.
Um dos slogans preferidos pela direita liberal brasileira, “Mais Mises,
Menos Marx”, é altamente simbólico. Ao opor a figura do economista liberal
Ludwig von Mises ao pai do socialismo internacionalista Karl Marx, a “nova
direita” corrobora a idéia de que existe um iniludível paralelismo entre a
dualidade direita x esquerda e as dicotomias capitalismo x comunismo e
liberalismo x marxismo. Ora, essa duvidosa equação reforça a narrativa da
esquerda que associa a direita com o universo do capital, do mercado e das
trocas econômicas. É possível escapar dessa aparente, se não mesmo falsa,
polaridade? Penso que sim. Mas, para tanto, seria necessário que os direitistas
brasileiros voltassem sua atenção para outras escolas do pensamento econômico
que se opõem tanto ao socialismo marxista quanto ao liberalismo econômico,
como, por exemplo: o catolicismo social de Wilhelm von Kettler, Albert de Mun,
Heinrich Pesch, Armand de Melun, René de La Tour du Pin e Frédéric Le Play,
de clara orientação contra-revolucionária, corporativista e legitimista; a doutrina
social da Igreja Católica, perfeitamente exemplificada nas encíclicas Rerum
Novarum (1891) de Leão XIII, e Quadragesimo Anno (1931) de Pio XI; o
distributismo de Chesterton e Hilaire Belloc; a filosofia social organicista de
Othmar Spann; o Ordoliberalismus advogado por autores como Franz Böhm,
Walter Eucken e Wilhelm Röpke (doutrina que prega a economia social de
mercado e cuja principal expressão prática e histórica foi o chamado capitalismo
renano); a escola americana de economia política de Alexander Hamilton e o
sistema nacional de economia de Friedrich List.
Não é por acaso que o liberalismo de Mises e Hayek, o libertarianismo e
o conservadorismo anglo-saxão e americano são as principais referências
intelectuais da nova direita brasileira. Trata-se de vertentes de pensamento mais
aceitáveis pelo establishment do que outras correntes não conformistas e
dissidentes da direita, como o tradicionalismo integral ou perenialismo (René
Guénon, Julius Evola, Frithjof Schuon, Martins Lings, Titus Burckhardt), a
escola tradicionalista hispânica (Francisco Elías de Tejada, Rafael Gambra,
Álvaro D’Ors, Miguel Ayuso, Rubén Calderón Bouchet, Carlos Alberto Sacheri,
Osvaldo Lira, Juan Antonio Widow, António Sardinha, José Pedro Galvão de
Sousa e Gustavo Corção), a Konservative Revolution (revolução conservadora
alemã, movimento cultural multifacetado que surgiu nas primeiras décadas
século XX, representado por autores do estofo de Hugo von Hofmannsthal,
Thomas Mann, Oswald Spengler, Carl Schmitt, Hans Freyer, Werner Sombart,
Stefan George, Edgar Julius Jung, Arthur Moeller van den Bruck, Ernst von
Salomon e Ernst Jünger), a Nouvelle Droite (a Nova Direita francesa de Alain de
Benoist) e os autores contra-revolucionários católicos como Joseph de Maistre,
Louis de Bonald e Juan Donoso Cortés.
Ao contrário do que imagina parte importante da nova direita brasileira,
o liberalismo, o capitalismo, o secularismo e a democracia não são “armas
ideológicas e institucionais” capazes de fazer frente ao esquerdismo e ao
socialismo marxista. De acordo com o filósofo Nicolas Berdiaeff (1953, p.81), o
espírito liberal e burguês não representa a verdadeira antítese ao comunismo,
pelo contrário, desse modo: “Não é uma idéia que tem que enfrentar o
comunismo, mas uma realidade religiosa. [...] Contra o comunismo materialista
não cabe senão suscitar o cristianismo integral.” Diante do avanço do
esquerdismo e da ofensiva de velhos e novos marxismos, só há uma alternativa:
o retorno à tradição cristã e às fontes clássicas de nossa civilização.
Liberais e mesmo muitos conservadores detêm-se principalmente nos
efeitos e nas conseqüências, e não nas causas. Atacam com virulência o
marxismo, o socialismo e o comunismo, mas parecem esquecer o papel
desempenhado pelo individualismo, o liberalismo, “o espírito burguês” e o
próprio capitalismo no processo de secularização, descristianização e
destradicionalização dos espíritos, das instituições e práticas sociais. Em resumo:
o espírito revolucionário antitradicional e anticristão é um fenômeno vastíssimo
e complexo que não se esgota no socialismo marxista.[193]
Não se pode aceitar a armadilha de que, em nome do antimarxismo e do
anticomunismo, tudo é válido e aceitável. A luta contra o esquerdismo, o
estatismo e o neomarxismo pós-moderno não pode significar a aliança com
forças plutocráticas e ideologias exóticas e antinacionais, que não possuem
qualquer vínculo com a nossa cultura e a nossa tradição ibérica e católica.
Acerca dessa delicada questão, adverte o filósofo tomista Rubén Bouchet (1983,
p.217):
Os homens empenhados em combater os efeitos da
revolução costumam cair facilmente nas
manipulações da direita econômica. Supõem, por
ingenuidade ou malícia, que o dinheiro é inimigo
nato do socialismo e sob a influência desta visão
superficial do problema entregam-se com alegre
inconseqüência ou com culpável cumplicidade a
uma política inspirada pelo capitalismo.
Uma direita que abraça com fervor quase místico o individualismo, o
consumismo, o espírito burguês, o utilitarismo e o economicismo representa uma
inversão absoluta da direita tradicional e contra-revolucionária.
O principal combate metapolítico da direita da tradição não é contra
sombras e fantasmas do passado (nazifascismo, socialismo e comunismo), mas
contra a cultura liberal, permissiva e cosmopolita dominante na
contemporaneidade.[194]

7.2 Por uma cultura de direita

Mais do que um mero partido ou movimento político de direita, é
fundamental a restauração de uma cultura de direita, de uma visão de mundo e
do homem que gravite em torno de princípios permanentes e imutáveis como a
ordem, a autoridade, a hierarquia, a justiça, a religião, a tradição, a família, a
pátria, as liberdades concretas e a responsabilidade individual e social. Uma
direita comprometida apenas com questões técnicas, administrativas e
econômicas é um simulacro de direita. Uma sensibilidade e uma estética de
direita, que sobretudo tenha suas próprias referências literárias, artísticas,
filosóficas, históricas, antropológicas e sociológicas, é algo que está muito além
de uma confusa e redutora exaltação do egoísmo narcisista e de uma apologética
apaixonada e obsessiva em torno das supostas delícias da economia de mercado
e das excelsas virtudes do sistema capitalista liberal. Uma cultura de direita que
tenha a ousadia de opor-se aos mitos igualitários e progressistas e que, em
antítese ao espírito antitradicional imperante no mundo contemporâneo, estimule
e suscite o florescimento de um determinado modo de ser e de uma atitude
diante da vida marcada pelo heroísmo, espírito de sacrifício, generosidade,
austeridade, franqueza e honradez.
Nesse sentido, é pertinente seguir algumas pistas e orientações que o
filósofo tradicionalista Marcello Veneziani apresenta no ensaio La Cultura della
Destra (2002). O pensador italiano estabelece uma importante distinção entre
dois modos de entender a cultura: de um lado, a idéia de uma cultura que
intenciona corrigir a realidade, modificando os elementos históricos, políticos e
sociais de uma coletividade, por conseguinte aceitando a idéia militante e radical
de sentir-se participante de uma “intelectualidade coletiva” que age encarnando
o espírito do tempo; de outro, existe a noção da cultura como um instrumento
intelectual que busca conhecer e descrever a realidade, procurando, em alguns
casos, aperfeiçoá-la, elevá-la, porém não a transforma em sua totalidade. Nessa
distinção elementar reside um dos contrastes entre a cultura de esquerda e a
cultura de direita. A cultura de esquerda alimenta o sonho de um mundo melhor.
Tal sonho torna-se um projeto racionalista que se chama utopia.
Como já foi ressaltado neste trabalho, a utopia mestra da esquerda é
modificar a natureza humana; a direita, em contrapartida, prefere manter-se fiel a
essa natureza, deixando a sua eventual superação para o âmbito do sobrenatural.
A utopia transmuta-se, para a cultura de esquerda, em um empreendimento de
transformação do mundo, da história e da humanidade; no caso da cultura de
direita, o mito, com seus aspectos metafísicos e simbólicos, emerge como uma
dimensão central para a compreensão do mundo e do papel do homem na
realidade. É esse um modo de conhecimento intuitivo, que ultrapassa o mundo
da experiência sensível e da razão individual.
A cultura de direita, em seu sentido mais amplo, refere-se à tradição, ao
mito, ao rito, à religião e aos costumes milenares. Essa cultura é uma
Weltanschauung, uma visão do mundo e da vida na qual a linguagem da idéia,
do mythos, prevalece sobre a ratio. Como assinala Veneziani (2002), a rigor, usar
a expressão cultura de direita é algo impróprio: o mais correto seria cogitar sobre
uma cultura comunitária e tradicional, mas a existência de uma cultura
hegemônica de esquerda induz à utilização de uma denominação antagonista.
Há uma diferença importante entre o mito cultivado pela direita e a
utopia da cultura de esquerda, distinção que pode ser equiparada às noções de
ideal e ideocracia. Segundo assevera o pensador tradicionalista italiano, o mal
não está em cultivar a dimensão ideal, mas em percebê-la em oposição à
realidade. O erro não reside em acreditar em um ideal e até mesmo num sonho,
mas pretender que eles possam substituir o mundo e cancelar a vida real. O mito
é uma dimensão simbólica que não substitui a realidade, que não pretende
sujeitá-la ou aboli-la, pois se constitui como a outra metade da realidade, como
indica a etimologia da palavra símbolo.[195] É uma dimensão que vai mais além
da realidade física, é uma realidade metafísica, a metade invisível e profunda do
real.
O arquétipo da cultura, para a direita, segundo explica Veneziani (2002),
coincide com a idéia de tradição. A cultura, portanto, é o anseio de integração
entre o culto e o cultivo, a abertura para o céu e ligação com a terra, senso do
sacro e de enraizamento. Sensibilidade religiosa e forte sentido comunitário são
aspectos que impregnam o imaginário da autêntica direita que diverge do
cosmopolitismo, do multiculturalismo e materialismo propagados pela cultura
liberal-progressista.
Como se pode inferir do exposto até aqui, a cultura de direita não é
propriamente uma filosofia, uma construção teórica abstrata. Nada tem que ver
com a erudição livresca e o intelectualismo pedante. É fundamentalmente uma
visão de mundo, um estilo de vida, uma forma de percepção da realidade. Para o
pensamento tradicional, o essencial não é a aquisição de conhecimentos e idéias
e, portanto, a formação de uma elite culta, mas a formação de uma aristocracia
do caráter. O que necessitamos em tempos de crise não são de homens que
prediquem belas frases e idéias requintadas, mas homens que sejam exemplos de
seriedade, firmeza e honradez. O problema de nossa época não é a falta de
cérebros, intelectuais e eruditos, mas a ausência de “colunas vertebrais”, de
indivíduos de caráter vigoroso e resoluto.
Enquanto a cultura de esquerda nasce a partir de um ato de rebelião
contra a estrutura do ser, a tradição e a natureza, assim como anseia por
emancipar-se de todo laço hereditário, a começar pelo laço religioso, a cultura de
direita surge a partir de um ato de fidelidade ao mundo, à tradição e à natureza.
O senso do limite, a aceitação da finitude humana e da existência de uma ordem
cósmica que precede a ação humana são traços específicos desta forma mentis.
Em contrapartida, a cultura de esquerda busca transferir a esperança celeste e
ultraterrena de salvação espiritual para o campo da história e do mundo terrenal,
estando profundamente convencida de que o invisível, o céu, o divino e a
religião são simples ilusões e superstições que encorajam a ignorância e o
fatalismo. Em resumo: a cultura de esquerda almeja o paraíso na terra,
engendrando uma humanização do sobrenatural e uma historização da redenção.
A cultura de direita é, sobretudo, uma cultura da ordem e da medida. É a
busca pela vida ordenada, pela vida virtuosa, é o gosto pela forma e pelos
valores permanentes do bem, do belo e da verdade. De acordo com Gustave
Thibon (1970), toda cultura fundada sobre esses valores permanentes implica o
respeito a certas regras elementares: para o verdadeiro, a submissão da
inteligência aos princípios de contradição e de identidade, à lógica e à estrutura
do real; para o bem, a conformidade com as leis morais; para o belo, o
reconhecimento das leis do ritmo e da harmonia. Contra esses valores eternos e
transcendentais, contra esse modelo paradigmático, ergue-se a cultura moderna
de esquerda, cultura da revolta, da profanação, da subversão e da desordem.[196]
O homem não pode viver de maneira saudável e plena em meio ao caos e
à desordem. A rejeição à ordem, o desprezo e a revolta contra a ordem social,
moral e divina são a raiz de todos os males e erros. A procura e a luta pela ordem
são as primeiras leis da existência individual e coletiva. O equilíbrio espiritual e
a harmonia social são condições essenciais para o desenvolvimento integral de
uma civilização. Sem a ordem, sem a retitude, sem a disciplina e a pulcritude, o
homem e as sociedades não atingem as metas e os objetivos mais elevados.




7.3 Cultura hispânica ou cultura anglo-americana?

O desenvolvimento de uma cultura de direita de orientação tradicional no
Brasil passa, necessariamente, por uma recuperação da nossa herança espiritual
ibérica e católica. É essa tradição hispânica e cristã que precisa ser atualizada e
revigorada. Nossos mitos e símbolos fundacionais trazem essa poderosa marca.
Nunca é demais recordar que o Brasil é uma nação hispano-americana que
sofreu o influxo civilizador do catolicismo desde seus primórdios. Foi
descoberta por uma nação católica que, em seu projeto colonizador e
evangelizador, visava a estender ao novo mundo “as fronteiras da fé e do
império”. Um dos primeiros atos que o colonizador português efetuou, após
desembarcar por estas terras, foi a realização de uma missa. Nessa ocasião, foi
afixada uma cruz na areia de Porto Seguro, litoral sul da Bahia, à nova terra
descoberta deu-se o nome de “Ilha de Vera Cruz”, posteriormente chamada de
“Terra de Santa Cruz”. Nas naus portuguesas que aportaram em nosso litoral,
havia adornando as velas o símbolo da Ordem de Cristo, uma imponente cruz
vermelha em um fundo branco. É uma realidade iniludível que o Brasil nasceu
sob o signo da Cruz de Cristo e da Hispanidade.
Nossa personalidade cultural é hispano-americana, pois nós, brasileiros,
como lembra José Pedro Galvão de Sousa (1962), somos descendentes dos
hispano-portugueses. Cabe ressaltar que o termo “hispânico” era usado para
designar todos os habitantes da Península Ibérica, onde atualmente se situam
Portugal e Espanha. Formavam eles a Hispânia. Esse nome simboliza, ainda
hoje, mais do que uma realidade meramente geográfica:
Nele se expressa uma tradição romana e gótica,
ressaltando a comunidade de origem e destino dos
povos por esse termo abrangidos, que vieram a ser
os protagonistas da Reconquista e, depois, da
conquista da América, os formadores de novas
nacionalidades. Daí a hispanidade, que se compõe
de homens de raças branca, negra, índia e malaia,
abrangendo territórios com os mais variados
climas, da península de origem ao Estreito de
Magalhães, ou do Golfo do México às Filipinas.
Trata-se de povos que devem a sua civilização à
Espanha e Portugal, e conservam um sentimento de
unidade resultante não só da mesma língua ou de
línguas semelhantes, mas principalmente da adesão
a ideais e valores comuns recebidos dos
missionários que os evangelizaram. A formação
desses povos deu-se na época em que a
Cristandade medieval, por efeito do protestantismo,
se desagregava ao norte dos Pirineus, sendo
Portugal e a Espanha preservados na unidade da fé
católica em virtude da atuação dos seus monarcas.
Conseqüentemente, as nações hispânicas do mundo
todo mantiveram a nota de catolicidade como
elemento consubstancial, distinguindo-se assim, a
América espanhola e a América portuguesa da
América anglo-saxônica, esta última de formação
protestante (Galvão de Sousa, Lema Garcia e
Teixeira de Carvalho, 1998, p. 263).[197]
Nas nações da Península Hispânica, a cristandade medieval resistiu por
mais tempo. Enquanto a Europa modernizava-se e protestantizava-se, na
Espanha e em Portugal as tradições políticas e culturais medievais e cristãs eram
conservadas. Mais do que isso, essas sociedades hispânicas tradicionais, a partir
dos séculos XV e XVI, projetaram com ardor missionário e civilizador suas
instituições sociais, sua cultura e seus valores católicos no “novo mundo”, como
explica Galvão de Sousa (1962, p. 30):
Enquanto a Europa protestantizada e racionalista se
submete a um processo de desagregação religiosa e
política, Portugal e Espanha, na “dilatação da Fé e
do Império”, alargaram os horizontes da
Cristandade, que se contrai no velho mundo.
Tornam-se povos missionários, e, ao mesmo tempo
em que a cultura européia se desintegra, a cultura
hispânica – abrangendo o grande ramo da cultura
lusíada no Brasil, ou seja, a “civilização luso-
tropical”, segundo a expressão de Gilberto Freyre –
floresce em terras distantes, portadora do legado da
unidade católica até aos confins da Ásia e da
América.
Esta tradição viva e criadora constituiu e formou os povos americanos,
assim dando-lhes uma fisionomia própria, um modo de ser peculiar e um estilo
cultural e político específico, como explica o filósofo Félix Adolfo Lamas (2001,
p. 44):
América, e com ela todos os seus povos, não foi
tanto descoberta como fundada, e este patrimônio
tradicional fundante é algo mais que uma marca de
nascimento; é o constitutivo último de sua
identidade. A língua [...], a fé, a família com sua
estrutura tradicional (monogâmica, fundada no
matrimônio indissolúvel e sacramental, patriarcal,
mas temperada por um suave e cálido matriarcado
afetivo), as formas políticas (a descentralização, o
federalismo, o regime municipal, a representação, a
ordem concreta das liberdades, etc.), o direito (de
velho cunho romano-cristão, mas adaptado às
novas exigências sociais e históricas), a estrutura
social, com suas hierarquias, suas formas de
institucionalização da caridade e a solidariedade
com os humildes e necessitados, sua tradição
universitária e sapiencial, e em geral tudo aquilo
que constitui o patrimônio que cada povo hispano-
americano recebeu como herança tradicional, não
são um conjunto de arcaísmos ou nostalgias, mas o
núcleo dos fatores que nos definem como povos,
pátrias, nações e Estados.
Em termos doutrinários, a visão hispânica tradicional se ancora numa
concepção antropológica e sociológica realista e concreta, em flagrante contraste
com as posturas racionalistas e utópicas defendidas por liberais e progressistas:
A visão hispânica [...] é uma visão histórica do
homem inserido numa tradição e pertencente a
grupos naturais (família), ou conjuntos sociais
formados pelo direito costumeiro (comunidade de
vizinhos, associações dos profissionais do mesmo
ofício, etc.) (Galvão de Sousa, 1962, p. 43).
Essa cosmovisão parte de premissas teológicas e metafísicas e de um
sentimento sacral da vida:
A visão hispânica é também uma visão supra-
histórica, de sentido transcendente. O homem dessa
concepção entranhadamente católica é o peregrino
em demanda da Eternidade, o homo viator, a alma
na busca ansiosa do Infinito (Galvão de Sousa,
1962, p.43).
A colonização espanhola e portuguesa, verdadeira obra ecumênica de
elevação cultural e humana, não apresentou os traços de exploração econômica,
dominação imperialista, etnocentrismo e exclusivismo racial que marcou outros
empreendimentos coloniais.[198] Para o antropólogo Gilberto Freyre, isso se deve,
dentre outros fatores, à centralidade da religião para os povos ibéricos:
Os hispanos deram maior ênfase que outros
europeus, nos séculos XVI e XVII, quando
principiaram os seus contatos mais ou menos
sistemáticos com os não-europeus, à sua condição
de cristão, colocando acima – como condição
sociológica – da sua condição européia, étnica ou
nacional. Não que fossem melhores cristãos do que
os outros europeus que com eles competiam no
trato comercial com os não-europeus. Mas porque
entendiam, em resultado dos seus longos conflitos
com os não-cristãos nas suas próprias terras não-
européias, que eram sociologicamente mais
cristãos do que europeus ou do que membros de
uma progressiva cultura européia em face de
culturas não-européias, tidas pelos norte europeus
como arcaicas ou atrasadas no tempo.
Apresentaram-se aos ameríndios, asiáticos e
africanos principalmente como cristãos católicos,
cuja noção de tempo social não era a de um ritmo
constante e progressivo – como o tempo europeu se
tornou desde o princípio da Revolução Comercial –
mas uma fusão de passado, presente e futuro; não
tanto um tempo dedicado religiosamente ao
trabalho constante, tendo apenas os domingos para
repouso, mas um tempo em que o trabalho e o
descanso alternavam-se, muitas vezes, entre
esforço e dança, com numerosos dias santos e de
festa concedidos aos fiéis pela própria Igreja. É
fácil de compreender como o tempo, assim
encarado, foi a base de entendimento entre
espanhóis ou portugueses e as populações não-
européias na Ásia, na África e Américas [...]
(Freyre, 1975, p. 8).
O ethos hispânico distingue-se da mentalidade produtivista dos povos
anglo-americanos. O culto do trabalho, da produção, o ativismo e o
pragmatismo, assim como as idéias de que o “tempo é dinheiro” ou de que o
tempo deve ser dedicado prioritariamente à atividade laboral-produtiva, próprias
de anglo-saxões, norte-americanos e da ideologia marxista, são modos que se
contrapõem aos valores hispânicos, semiativos e semicomteplativos,
marcadamente lúdicos, estéticos e religiosos, como assevera Gilberto Freyre:
Nós, brasileiros, temos vivido principalmente
dentro de um sentido hispânico de vida, um tanto
desdenhoso do cronométrico, anglo-saxônico,
modernista. Isto nos permite nos aparentarmos
mais facilmente, que povos com o sentido
principalmente cronométrico de vida, de tendências
e preferências cronometrizadas, com populações
como as orientais e africanas não de todo
ocidentalizadas (Freyre, 1975, p. xlvi).
Enquanto as nações produtivistas enfeitiçadas pelo culto do trabalho e da
ação material útil identificam o tempo com o dinheiro, os povos ibéricos
associam o tempo com a vida. O tempo, desse modo percebido, é servo da vida e
do homem. Essa vivência do tempo explica por que as culturas hispânicas
apreciam e valorizam o ócio, a meditação, as tertúlias e o lazer. O homem
hispano-americano cultiva o tempo livre, o tempo “inútil e desocupado”, o
tempo que não é dedicado ao negócio, a ganhar dinheiro, trabalhar e produzir:
A essa fase, no desenvolvimento da civilização
européia, do tempo como dinheiro, – isto é, o
hispânico, o castiçamente hispânico: o que não se
norte-europeizou ou norte-americanizou a ponto de
perder a virtude – ou o defeito – hispânica, o
hispano conservou-se de tal modo alheio que, neste
particular, sua civilização desenvolveu-se à parte
tanto da norte-européia como da anglo-americana;
e em termos de quase intimidade psicossocial com
aquelas civilizações não-européias que, por se
terem conservado pré-industriais, pré-burguesas e
pré-capitalistas, em face da norte-européia e da
norte-americana, continuaram a viver, em espaços-
tempos tropicais, uma vida, pela própria ecologia
dos trópicos, de ritmos lentos de trabalho ou de
produção; sem o acelerado de trabalho e de
produção que, nos espaços frios e temperados,
europeus e americanos, parece ter sido uma
expressão da Revolução Industrial e do sistema
capitalista de competição econômica, sob o favor
de condições biológicas de clima excitando o
esforço físico, de solo compensador da atividade
agroindustrial à maneira norte-americana e de
subsolo rico em carvão (Freyre, 1975, p. 44).
A concepção de vida hispano-americana é antética à visão quantitativa e
progressiva do tempo. É uma atitude para com o tempo fortemente vinculada
com o elemento religioso e mítico: “O seu tempo é uma série de míticos ou
poéticos rituais associados à renovação da vida. E não uma série de atividades
lógicas e quantitativamente lucrativas” (Freyre, 1975, p. 11). O homem
hispânico percebe e acentua a importância da dimensão vertical da existência. Os
valores espirituais e religiosos são aspectos que conformam a cosmovisão e o
ethos ibérico e católico. A redução da vida humana à dimensão da
horizontalidade e da imanência, associada às esferas econômicas e políticas da
realidade humana, empobrece e mutila a existência. Ora, a mentalidade
tradicional hispânica rejeita as perspectivas temporais e históricas
evolucionistas. A idéia, particularmente moderna e racionalista, de que o futuro
sempre será melhor que o presente, e o presente melhor que o passado, é tomada
como um mito, uma superstição progressista. O hispano nota uma constante
interpenetração passado-futuro:
Repugna a algum de nós um presentismo com
pretensões a modernismo que ignore nas suas
dimensões de tempo além do imediatamente atual
ou do apenas moderno. E nessa atitude creio
exprimir-se a antiga tendência hispânica para situar
o homem num tempo que, longe de ser apenas o
presente, é também o que foi e o que será –
inclusive o além-tempo – os três ou quatro
interpenetrando-se. Tríbio: constantemente tríbio
(Freyre, 1975, p. 105).
Sem rechaçar em sua totalidade o desenvolvimento industrial e
tecnológico capitalista levado a cabo pelas grandes potências ocidentais, o que
seria uma atitude romântica e pueril, entendo que o mais importante é
harmonizar e equilibrar o progresso material com os valores tradicionais e
“arcaicos”, pré-burgueses e pré-capitalistas. Assimilar e combinar o poder
econômico e técnico com a restauração e o fortalecimento de nossa identidade
cultural e espiritual ibérica e católica.
Outros empreendimentos coloniais europeus de orientação protestante e
liberal acabaram por favorecer, em áreas não-européias, o surgimento de
instituições tipicamente burguesas e “modernas”, como o banco, o parlamento e
a imprensa; em contrapartida, a colonização ibérica foi marcada por transplantar,
para outras regiões e outros continentes, instituições, costumes e modos de vidas
tipicamente medievais como os mosteiros, a monarquia hereditária de direito
divino e a família patriarcal, conforme ressalta o cientista social pernambucano:
O ponto, entretanto, a ser acentuado aqui é a
preocupação com aqueles valores espirituais, que, à
falta de melhor classificação, podem ser
característicos de colonizadores hispânicos –
colonizadores que, senhores de terras e de homem,
julgavam-se também obrigados pela nobreza de sua
condição espiritual – a de cristãos: nobreza, por
conseguinte espiritual, a civilizarem,
domesticarem, cristianizarem seus escravos, como
se nesses escravos enxergassem uma extensão de
filhos e parentes, de membros da família patriarcal.
E quando lhes faltasse o senso dessa obrigação,
estavam presentes, ao lado da família patriarcal que
reuniu, de modo ordinário, em áreas de colonização
hispânica como a brasileira, os três empenhos – o
econômico, o político, o espiritual – as ordens
religiosas, empenhadas num esforço de civilização
espiritual que não faltou a atenção – por vezes
exagerada – a problemas de civilização secular:
políticos e econômicos. Duas formas de
paternalismo – a de nobreza agrária e a das ordens
religiosas – que, nas áreas de colonização hispânica
orientada para a civilização agrária de terras e
populações não-européias, fizeram-se sentir de
modo a evitar, retardar ou dificultar nessas áreas –
e, em ponto menor, nas próprias áreas de
mineração – não só o laissez-faire nas atividades
econômicas como o liberalismo nas atividades
políticas (Freyre, 1975, p. 58).
A cultura luso-tropical brasileira, assim como em toda a América ibérica,
mantém, ainda em estado de latência, esses vestígios do Ocidente tradicional,
dessa consciência pré-moderna que, como destaca o filósofo argentino Alberto
Buela (2002), proporcionou à nossa civilização o sentido hierárquico dos
valores; o sentido de ordem a partir da idéia de bem comum, e não simplesmente
de bem-estar material moderno, entendido este como busca desenfreada pelo
conforto na sociedade de consumo; o princípio da objetividade dos valores, que
rechaça a dissolução subjetiva e arbitrária dos mesmos, que tem início com o
postulado do primado da consciência, e a visão do homem e da sociedade como
uma totalidade ordenada, visão holística e integradora oposta ao atomismo
liberal.[199] Despertar as energias adormecidas deste outro Ocidente, deste
Ocidente profundo, é uma das principais missões de uma direita tradicional.
O Brasil necessita recuperar seus laços espirituais e históricos com a
cristandade hispânica, assim reatualizando a visão católica do homem e mundo.
Ao regressar às suas origens e ao resgatar a sua tradição formadora, reencontrar-
se-á consigo mesmo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo acompanhou as metamorfoses da direita, suas origens
históricas, seu sentido metapolítico, suas modalidades e definições, seus traços
essenciais, bem como seu antagonismo fundamental com a esquerda. Destacou-
se, especialmente, a tensão existente entre a direita moderna e o que foi
conceituado como direita tradicional.
Ora, a direita, em suas facetas liberais e libertárias, e mesmo, em alguns
casos, em suas modalidades conservadoras, parece aceitar e adequar-se aos
princípios axiais do mundo moderno, mundo das mudanças contínuas, da
transformação constante, da instabilidade, da incerteza, do informe, da
volatilidade, do movimento e da multiplicidade – como o próprio sentido
etimológico da palavra moderno aponta.[200] Mundo este, cabe ressaltar, no qual
reina a quantidade, o efêmero, a superficialidade e o fugaz, descivilização em
que as categorias clássicas de ser – substância, forma, essência e eternidade –
eclipsaram-se. Conforme já advertira Galvão de Sousa (1973), nesta sociedade
de massas utilitária e consumista, moldada e planificada por Estados
tecnocráticos e dirigistas, por oligarquias financeiras e poderes midiáticos, as
metas supremas da existência reduzem-se ao desenvolvimento econômico e à
satisfação dos desejos. Nesta hipermoderna cultura – hedonista e narcisista – a
liberdade desordenada e anárquica converte-se no bem supremo dos indivíduos e
das coletividades.
Diante dessa modernidade triunfante e, assim, da evolução permanente,
do devir ininterrupto e da mutação incessante, duas atitudes predominam: a que
contribui com a radicalização e a intensificação dessas transformações e
inovações de todo tipo, que é a postura adotada pela esquerda, ou então a
tentativa, na maioria das vezes falha, de moderar, frear, suavizar e atenuar as
mudanças e modificações infindáveis, que é especificamente a postura assumida
pela direita liberal-conservadora (direita moderna). Por sua vez, buscando
transcender a cosmovisão moderna (produto das ideologias liberais e
progressistas) e recusando seu frenesi ativista, seus modismos, sua desordem em
todas as esferas, sua movimentação estéril e sua neofilia delirante, ergue-se a
direita pré-moderna, antimoderna e tradicional.[201] Para esta, a disjuntiva
progressismo ou conservação é falsa e ilusória. Não se trata, desse modo, para a
verdadeira direita, de acelerar ou brecar o processo dissolutivo da modernidade,
mas de abandonar por completo as ideologias e os postulados individualistas,
igualitaristas, materialistas e cosmopolitas da visão moderna do homem, da
sociedade e do mundo, trilhando outro caminho civilizacional. Perante a
desordem do nosso tempo, a direita da tradição procura concretizar uma dura
tarefa: a restauração da ordem, do equilíbrio e da harmonia no espírito e na
sociedade. Em síntese, a direita tradicional é antitética ao mundo moderno e,
assim, distinta das direitas liberais e conservadoras, que, de algum modo, são
expressões da Weltanschauung iluminista. Opõe-se mormente à força ideológica
que representa, de maneira cabal, a mentalidade e os valores modernos: a
esquerda progressista e revolucionária.
Como foi mencionado ao longo deste estudo, a autêntica direita, baseada
na tradição clássica e cristã, parte da noção de que o homem é um ser imperfeito,
pecador e decaído. Assim, cabe ao ser humano lutar contra o mal que reside em
sua alma, empreendendo uma batalha espiritual contra seus vícios e suas
tendências inferiores, desse modo almejando, com tenacidade, uma conversão
interior, uma reforma moral. Quanto à esquerda, o que lhe importa,
essencialmente, é o progresso humano por meio das transformações das
estruturas sociais e econômicas. O desenvolvimento material, econômico,
científico e técnico propiciaria a evolução humana e social. Por conseguinte, o
essencial não é a reforma espiritual e interior, mas a luta contra a opressão, a
desigualdade e as injustiças sociais que restringiriam e sufocariam a autonomia e
a liberdade humana.
Para a direita da tradição, a conversão interior somente é possível com o
auxílio de instituições e forças externas, ou melhor, com a ajuda de algo que está
além do meramente humano, e que, assim, ultrapassa a racionalidade e a vontade
dos indivíduos. Por sua vez, para a esquerda progressista e a pseudodireita
liberal e libertária, vetores propulsores do espírito moderno, o homem tudo pode
por suas próprias forças, não dependendo de nada e de ninguém. Ele faz a si
mesmo de acordo com seus desejos e caprichos momentâneos. Diante do
exposto, percebe-se que a direita tradicional se fundamenta em uma metafísica
da interioridade e do ser e em uma antropologia centrada na dimensão espiritual
da pessoa humana, já a esquerda apóia-se em uma filosofia da exterioridade e do
devir de inegáveis contornos historicistas.
Em contraposição às posturas relativistas e historicistas que imperam
acerca dessa questão, defendi, neste trabalho, a tese de que direita e esquerda não
são simples ideologias e orientações políticas, mas sobretudo dimensões
metafísicas, símbolos universais, arquétipos, modelos ideais no sentido
platônico. Na verdade, o conflito entre essas duas entidades reflete e manifesta
um embate de teor teológico e espiritual entre as forças do cosmos contra as
potências do caos, da ordem contra a desordem. Como foi demonstrado neste
estudo, tais conceitos originam-se primordialmente do universo das religiões e
do sagrado. Conforme argumenta Martinez (1974), a dualidade direita-esquerda
fundamenta-se na oposição entre a existência de uma lei natural e a perspectiva
relativista e subjetivista de um universo desprovido de ordem e de estrutura
determinada e, portanto, de uma configuração societal destituída de normas
substanciais, ou seja: enquanto a direita da tradição afirma a existência de
princípios imutáveis de ordem social, de uma normatividade universal e, assim,
reconhece a presença e a realidade de uma ordem transcendente, supra-histórica,
a esquerda nega a existência dessa ordem superior e de leis morais naturais
universais, necessárias e imutáveis. Logo, a sociedade, com suas normas, seus
preceitos e suas instituições, não passa de um mero artefato, uma construção
puramente humana que a todo o momento pode ser alterada, restando sujeita aos
grupos de pressão e às opiniões temporariamente majoritárias. Sociedade
artificial, produzida por convenções e acordos momentâneos, que não possui
qualquer nexo ou vínculo com uma ordem substantiva e primordial, com a
ordem do ser. A esquerda contesta e, em casos extremos, desconhece a
necessidade espiritual da criatura humana de sintonizar e harmonizar a ordem da
sua existência, bem como a ordem social e política com essa ordem superior,
transcendente.[202]
A direita tradicional é contra-revolucionária, pois reage contra o protéico
e multissecular processo revolucionário que vem erodindo os fundamentos
espirituais e morais da cultura ocidental. A esquerda moderna encarna a
revolução; por sua vez, a autêntica e arquetípica direita representa a tradição.
Como sublinha o filósofo Olavo de Carvalho (2013), essa polaridade somente
pode apresentar algum valor descritivo-objetivo tomando como linha de
demarcação o movimento e as ideologias revolucionárias como um todo e
opondo-lhe a direita contra-revolucionária:
Os termos “esquerda” e “direita” só têm sentido
objetivo quando usados na sua acepção originária
de revolução e contra-revolução respectivamente.
Todas as outras combinações e significados são
arranjos ocasionais que não têm alcance descritivo,
mas apenas uma utilidade oportunística, como
símbolos da unidade de um movimento político e
signos demonizadores de seus objetos de ódio
(Carvalho, 2013, p. 190)
Não nego, contudo, que, a partir de uma perspectiva estritamente social e
histórica, a direita apresenta-se sob múltiplas e variadas formas. Nesse sentido,
seria mais correto afirmar a existência de muitas direitas do que da direita. As
inúmeras e distintas direitas seriam manifestações, expressões, de uma
mentalidade, de um espírito, de uma peculiar forma de percepção da realidade,
de uma específica mundividência.
Do mesmo modo que outras palavras e termos, a categoria direita
degradou-se – foi e continua a ser distorcida de maneira proposital na
modernidade. A degradação desse conceito reflete, de algum modo, o próprio
caráter confuso e degenerado do mundo moderno. O verdadeiro sentido dessa
categoria foi pervertido e mutilado pelos agentes da subversão e do caos, a tal
ponto que ser de direita e proclamar-se aberta e publicamente direitista é quase
uma heresia, uma ofensa mortal à sensibilidade politicamente correta. A
esquerda progressista, além de redefinir, distorcer e desqualificar
sistematicamente as idéias, as perspectivas e os autores de direita, apresenta-se
como a portadora da luz, como a representante dos ideais modernos,
emancipadores, como a força política que encarna a racionalidade e a marcha
evolutiva da história. Ademais, cabe ressaltar, é parte do espírito antitradicional
fazer da polaridade direita-esquerda um esquema meramente político e
sociológico de origem histórica recente, olvidando e eludindo, de maneira
planejada e intencional, as dimensões mais profundas e teológicas dessas noções.
Destaco que, em termos sociológicos, uma das distinções cruciais entre a
direita e a esquerda encontra-se na forma como essas linhagens de pensamento
percebem as idéias de igualdade, democracia e elite. De um modo geral, a
esquerda abraça, com entusiasmo quase religioso, o mito igualitarista e sua mais
acabada expressão política: a democracia. O mantra da igualdade é um dos
tópicos essenciais do esquerdismo. A direita, realista e mais afeita à natureza das
coisas, reconhece as distinções, as desigualdades e as diferenças que existem
entre os homens e as sociedades. Essas distinções não são vistas em si mesmas
como algo negativo, mas como um sinal do caráter plurifacetado da realidade
humana e social. Mais ainda: para a direita, toda tentativa forçada de
uniformizar, homogeneizar e, portanto, igualar é uma espécie de imposição de
matizes totalitários que violenta a natureza humana; uma pretensão arrogante
que acaba por massificar e, pior, nivelar por baixo, instaurando o império da
mediocridade, “o reino da quantidade”, o domínio de um tipo humano
despersonalizado, volátil, fugaz e passivo. Em antítese ao igualitarismo, a direita
favorece a busca pela excelência, assim, valorizando a superação, a distinção, a
elevação moral e espiritual dos indivíduos. O dogma democrático baseado na
idéia de governo do povo, de participação popular e soberania das massas é
concebido pelo homem de direita como uma das mais terríveis ilusões da
modernidade. Uma verdadeira superstição maliciosamente propagada por
demagogos, plutocratas, pela grande mídia e pela intelligentsia. A concepção
igualitarista e democrática de uma autoridade que se legitima e origina-se do
“que vem de baixo”, das massas populares volúveis e informes, contrapõe-se à
idéia tradicional de uma autoridade que provém do alto, que tem uma origem
divina. Desse modo, a direita autêntica inclina-se por regimes de governo de tipo
monárquico e aristocrático. Defende a idéia de hierarquia, de elites naturais e
minorias seletas virtuosas marcadas por uma superioridade de caráter moral,
espiritual e intelectual. Como assevera Julius Evola (2001), cabe a essas
aristocracias o papel de cristalizar um tipo de vida superior, despertar formas
especiais de sensibilidade, dar o tom de uma civilização, mais por uma ação
catalítica, de simples presença, do que por meio de uma ação direta. Essas elites
exercem, numa civilização normal, a tarefa política, assim formando uma
verdadeira classe dirigente que transmitirá aos membros de uma comunidade
ordenada uma sensação de terra firme, de um centro imutável superior às
contingências e crises sociais momentâneas. Em absoluta oposição às posturas
da corrupta e vaidosa classe política de nossos dias, conhecida por sua falta de
princípios, plasticidade e ductilidade, pelo seu desejo de sempre agradar e
bajular os instintos mais baixos das massas, essas aristocracias, com seu
testemunho, com seu exemplo, com seu estilo ascético, austero e viril, realizarão
uma obra eminentemente educativa e formadora.
Indubitavelmente, o grande desvio moderno foi arquitetado, dirigido e
intensificado por forças e atores políticos de esquerda. Segundo o pesquisador
Jorge Martinez Albaizeta (1974), a história da cultura ocidental, desde o século
XIV, é, em essência, uma história de constante e gradual cunho esquerdizante. A
visão de que o mundo, a natureza, os entes e a sociedade possuem certa ordem,
uma forma, uma estrutura e, portanto, leis e princípios intrínsecos que podem ser
descobertos pela inteligência humana, perde força, erodindo-se no i-mundo[203]
moderno. Prevalece a idéia, própria da esquerda, de que o mundo é uma anti-
physis, ou seja, o contrário de um cosmos, de uma totalidade ordenada e
harmônica, uma realidade caraterizada e determinada intrinsecamente por uma
“natureza”, por uma estrutura. Conforme a posição revolucionária, moderna e de
esquerda, as coisas, os seres, transcendem toda determinação e todo limite
estrutural, toda ordem. Nesse sentido, seria fácil citar vários autores
progressistas, pós-modernos, à esquerda do espectro político e intelectual, que
defendem esses posicionamentos. Martinez (1974) lembra as concepções dos
existencialistas franceses, como Sartre e Simone de Beauvoir, que entendem o
mundo como algo radicalmente absurdo, sem sentido, irrazoável e, dessa
maneira, sem leis e princípios.[204]
O esquerdismo é uma ideologia dissolvente, corrosiva e intrinsecamente
destruidora. Seu espírito de negação evidencia-se em sua ânsia de rejeitar,
solapar e pulverizar as instituições e os princípios tradicionais. Ora, é da
esquerda que, historicamente, partiram os ataques mais radicais contra as elites e
as hierarquias naturais; a recusa da importância das tradições, da herança do
passado, dos costumes e da sabedoria dos ancestrais. É dessa vertente ideológica
que partem as contestações mais categóricas, quando não mesmo bizarras, contra
a família, o patriarcado e a propriedade privada; são dos próceres do
esquerdismo e de sua militância fanatizada que se originam as ofensivas que
procuram neutralizar ou subverter as religiões, mormente o cristianismo; e é
dessa linhagem de pensamento que se propagam os sonhos internacionalistas e
cosmopolitas de uma república universal, de um governo mundial que ponha fim
ao sentimento nacional, à idéia de pátria, dessa maneira enfraquecendo e
eliminando a noção e a realidade do enraizamento e de comunidades históricas e
orgânicas. Diante dessa realidade e do exposto neste livro, torna-se cristalino que
o esquerdismo, em suas diversas nuanças, representa a inversão completa das
idéias, concepções, atitudes, orientações existenciais e dos princípios essenciais
da direita.
O esquerdismo progressista e revolucionário manifesta uma verdadeira
ojeriza a duas realidades fundamentais: a natureza e a tradição. As tradições
culturais, históricas e espirituais milenares, a idéia de uma revelação divina, e a
existência de leis naturais e biológicas necessárias e universais e de uma ordem
natural das coisas, são aspectos da existência incômodos e insuportáveis para a
esquerda. Nunca é demais lembrar que o objetivo primordial da revolução,
anunciado pelo militante de esquerda, é a destruição da ordem estabelecida, na
verdade a destruição de toda a ordem, ou melhor, a dissolução da ordem natural
da realidade. O utopismo construtivista que caracteriza a mentalidade
revolucionária esquerdista não tem grande estima pelo concreto, pelos fatos
objetivos, pela idéia de fronteiras e limites, pelas realidades biológicas e pelas
verdades do senso comum. Em sua faina voluntarista e titânica de transmutação
de todos os valores, instituições e do homem, bem como em suas fantasias
grandiloqüentes de planificação e engenharia social, arremete contra o plano
divino da criação, aniquilando tradições históricas, comunidades orgânicas e
corpos intermediários. Em suma, e recapitulando alguns dos argumentos e idéias
desenvolvidas neste trabalho, pode-se afirmar que o sinistrismo é uma forma
particular de revolta gnóstica contra a estrutura do real e a tradição.[205]
Curiosamente, boa parte do arsenal de ideais e símbolos da esquerda tem
origem religiosa. O esquerdismo, sob certo aspecto, é uma versão secularizada
do cristianismo, uma deformação imanente e mundana da mensagem dos
Evangelhos. É uma forma de religião política, se não mesmo um tipo peculiar de
heresia cristã moderna. Não é possível entender o espírito revolucionário e a
mentalidade esquerdista sem estudar as suas raízes remotas no gnosticismo, no
milenarismo e no pelagianismo. Sem hesitar, Jacques du Perron (1998) chega a
afirmar que o homem de esquerda é um gnóstico: paradoxalmente, professa uma
forma de religião anti-religiosa, porque ataca explícita ou implicitamente a
ordem da criação e a autoridade moral e espiritual da Igreja Católica. O homem
de esquerda não é um pagão, mas um herético; sua primeira motivação, o que de
fato anima suas escolhas e atitudes, é a revolta, a revolta contra o mundo,
supostamente criado por um malvado demiurgo, e ainda a revolta contra a Igreja,
acusada de defender a ordem estabelecida e, portanto, as injustiças e
desigualdades sociais. Essa atitude essencialmente negativa é compensada pela
crença na possibilidade de redesenhar e refazer integralmente a marcha da
humanidade, conduzindo-a por um destino melhor. Assim, exprime-se o
idealismo da esquerda, que, conquanto repouse em uma concepção otimista do
homem e do mundo, parte de um pessimismo radical acerca da criação do
universo e da natureza. Tal otimismo antropológico, inerente à mentalidade
revolucionária, supõe a negação da crença no pecado original e até mesmo a
negação do mal.
Em que pesem essas observações finais, não se pode esquecer o papel da
direita liberal e capitalista na afirmação e consolidação da moderna sociedade
tecnoeconômica, hiperindividualista e assaz materialista. Como ressalta Perron
(1998), a direita, por sua decadência, e a esquerda, pela sua ação subversiva,
contribuíram para a realização desse grande desvio que é o mundo moderno, e,
por um processo de interação e influência recíproca, a modernidade acabou por
configurar o modo de pensar e agir das direitas liberais e da esquerda
progressista.
Uma direita econômica, obcecada com a prosperidade, com o progresso
material e que, além do mais, faz da liberdade negativa[206] e do individualismo
burguês seus valores centrais é uma contrafação da verdadeira direita, ancorada
nos princípios perenes e nos valores imutáveis – a direita metafísica, a direita da
tradição, fiel à herança espiritual clássica e cristã que configurou a civilização
ocidental. A autêntica direita preocupa-se em preservar e fortalecer o
fundamento substancial de uma sociedade, os seus princípios espirituais
constitutivos, não exagerando a importância dos aspectos acidentais,
contingentes e acessórios de uma coletividade, relacionados com a economia, a
produção e a dimensão meramente física da existência humana. Logo, as
coletividades e os indivíduos, numa sociedade política tradicional, não se
limitam à realização e ao desfrute de bens imanentes, mas ordenam-se ao
supremo bem transcendente.
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[1]
O cientista político André Singer, em seu trabalho Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro (2000),
demonstra que, em geral, os brasileiros identificam-se com a polaridade direita-esquerda, reconhecendo-a,
porém não sabem exatamente o que significam essas categorias: “[...] os dados da pesquisa Cultura
Política/89 e Cultura Política/90 mostram que mais de 60% dos eleitores não sabiam dizer o que significava
esquerda e direita. [...] Mesmo assim, os 60% de eleitores brasileiros que não sabiam o que significava
esquerda e direita contrastam fortemente com o uso coerente da escala esquerda-direita que, como
mostramos, a imensa maioria do eleitorado brasileiro fez entre 1989 e 1994. Como pode o eleitor usar seu
posicionamento em um espectro esquerda-direita para orientar a decisão do voto, se não sabe o que é
esquerda e direita? A nosso ver, trata-se, como assinala a bibliografia internacional (Miller & Shanks1996;
Knight & Lewis 1996), de um conhecimento intuitivo, de um sentimento do que significam as posições
ideológicas. Esse sentimento permite ao eleitor colocar-se na escala em uma posição que está de acordo
com as suas inclinações, embora não as saiba verbalizar” (Singer, 2000, p.142). Ressalto que, apesar do
trabalho de Singer ser valioso do ponto de vista das informações e dos dados empíricos, ele apresenta uma
orientação ideológica de esquerda, que fica visível na passagem que segue: “Nesses 60% estamos incluindo
tanto os que declaravam não saber responder quanto os que produziram respostas como: esquerda é o
‘errado’, é o ‘negativo’ e direita ‘é o certo, o melhor’. Vale destacar que esse último tipo de resposta,
embora equivocada, tem uma longa tradição desde que os termos esquerda e direita entraram em uso, na
época da Revolução Francesa (Sartori, 1982; Bobbio, 1995). [...] Em contrapartida, aceitamos como
respostas ‘corretas’ as que definiram esquerda como ser contra o governo, e direita a favor. Esse tipo de
resposta, que representou em torno de 20% das amostras, corresponde tanto à história brasileira quanto aos
padrões internacionais, em que a esquerda é vista como sendo uma força de oposição” (Singer, 2000, p.
142). O cientista político paulista considera sem importância e valor a impressão de senso comum,
“intuitiva”, de que a esquerda é o negativo e a direita é o certo, o positivo. Pergunto: por que desprezar –
desconsiderar – este dado elementar, esta primeira percepção presente em boa parte da população brasileira
e mesmo mundial? Por que não rastrear as origens remotas e as motivações sutis dessa intuição? Por sua
vez, por que aceitar com facilidade a idéia de que ser de esquerda é ser contra o governo, ser oposição, e ser
de direita é ser favorável ao governo? Parece que o autor aceita como correta e válida apenas as opiniões
populares que favorecem determinada visão e narrativa, já sedimentada pela própria intelligentsia e pela
mídia mainstream, acerca da esquerda, e rejeita e desvaloriza de cara os dados e as impressões que podem
associar a direita com o que é bom, justo e reto. Vale lembrar que André Singer é filiado ao Partido dos
Trabalhadores. Foi secretário de Imprensa do Palácio do Planalto (2005-2007) e porta-voz da Presidência da
República no primeiro governo Lula, (2003-2007).
[2]
O filósofo Norberto Bobbio (1995, p. 69) sublinha que, além desta metáfora espacial (direita-esquerda),
existe, na linguagem política, uma metáfora temporal: “que permite distinguir os inovadores dos
conservadores, os progressistas dos tradicionalistas, os que se deixam guiar pelo sol do futuro dos que
procedem guiados pela inextinguível luz que vem do passado. Não está dito que a metáfora espacial, que
deu origem à dupla direita-esquerda, não possa coincidir, em um de seus significados mais freqüentes, com
a metáfora temporal”.
[3]
O sociólogo belga Léo Moulin escreveu um importante livro sobre esse tema com o título La Gauche, la
Droite et le Péché Originel: et autres essais (1984).
[4]
Laponce (1981) ressalta ainda que os termos direita e esquerda começaram a fazer parte do vocabulário
da política somente a partir do século XVIII, durante a Revolução Francesa. Com essa revolução igualitária,
a dimensão horizontal (direita-esquerda) substitui o ordenamento vertical e hierárquico presente nas
sociedades tradicionais, representado nas figuras do rei, dos sacerdotes e dos guerreiros. A direita toma o
lugar da noção de “alto”, relacionada com os estamentos mencionados; e a esquerda identifica-se com a
categoria “baixo”, que representaria o povo e as classes sociais produtivas: o proletariado e a burguesia. Em
resumo, a metáfora espacial horizontal esquerda e direita sobrepõe-se ao simbolismo vertical do alto e do
baixo presente nas culturas políticas pré-modernas do antigo regime.
[5]
Ao realizar a pesquisa para este livro, notei a escassez de obras e trabalhos sobre este tema no Brasil.
Enquanto nos Estados Unidos e, principalmente, na Europa existem livros muito importantes acerca desta
questão, em nosso país e mesmo em outros países da América Latina, os poucos trabalhos publicados
pecam por seu indisfarçável viés ideológico esquerdista.
[6]
Acerca deste traço do pensamento de esquerda, comenta Jean Revel (2001, p. 255): “O ideólogo, por sua
vez, só percebe o totalitarismo em seus adversários, nunca nele próprio, já que ele é o dono da Verdade
absoluta e tem o monopólio do Bem”.
[7]
O desprezo pela direita não ocorre apenas no Brasil, mas é algo que caracteriza todo o mundo ocidental.
Esse desprezo intenso tem muitas motivações e causas. Indico aqui apenas duas apontadas pelo filósofo
político Marcello Veneziani (2010): a) o fato de que, por via de regra, os direitistas opõem-se ao
politicamente correto e aos modismos culturais e ideológicos, apresentando e expondo opiniões e posturas
que estão de acordo com o senso comum; preferindo, os valores tradicionais, civis e religiosos; b) a
avaliação e o juízo negativo e extremamente crítico que a direita faz do comunismo, que diverge
integralmente do cânone dominante sobre esse movimento e ideologia no universo cultural progressista.
[8]
Acerca das relações entre a esquerda e o movimento intelectual pós-moderno, é essencial a leitura do
livro do filósofo Stephen Hicks, Explicando o Pós-modernismo: ceticismo e socialismo – de Rousseau a
Foucault (2011).
[9]
Conde Joseph de Maistre (1753-1821) era um pensador, escritor e diplomata francês de linha
tradicionalista católica. As Veladas de São Petersburgo é um belíssimo romance filosófico escrito por esse
autor, publicado em 1821. No Brasil, até o presente momento, é claro, a obra ainda não foi publicada. Existe
uma publicação em espanhol desse livro pela editora Aldus do México, do ano de 2007.
[10]
Filósofo e político italiano. O manifesto dos conservadores (Manifesto dei Conservatori em italiano) foi
publicado em 1972.
[11]
Eminente pensador conservador americano. The Conservative Mind foi publicado em 1953.
[12]
Conforme demonstra o filósofo Olavo de Carvalho (2013, p. 190), a esquerda e, de um modo mais
amplo, o movimento revolucionário, em muitos momentos históricos, apoderou-se desses conceitos,
desfigurando seu sentido primordial: “De um lado, a esquerda é a revolução em geral, e a direita a contra-
revolução. Não parecia haver dúvida quanto a isso no tempo em que os termos eram usados para designar as
duas alas dos Estados Gerais. A evolução dos acontecimentos, porém, fez com que o próprio movimento
revolucionário se apropriasse dos dois termos, passando a usá-los para designar suas subdivisões internas.
Os girondinos, que estavam à esquerda do rei, tornaram-se a ‘direita’ da revolução, na mesma medida em
que, decapitado o rei, os adeptos do antigo regime foram excluídos da vida pública e já não tinham direito a
uma denominação política própria. Esta retração do ‘direitismo’ admissível, mediante a atribuição do rótulo
de ‘direita’ a uma das alas da própria esquerda, tornou-se depois um mecanismo rotineiro do processo
revolucionário. Ao mesmo tempo, remanescentes contra-revolucionários genuínos foram freqüentemente
obrigados a aliar-se à ‘direita’ revolucionária e a confundir-se com ela para poder conservar alguns meios de
ação no quadro criado pela vitória da revolução. Para complicar mais as coisas, uma vez excluída a contra-
revolução do repertório das idéias politicamente admissíveis, o ressentimento contra-revolucionário
continuou existindo como fenômeno psicossocial, e muitas vezes foi usado pela esquerda revolucionária
como pretexto e apelo retórico para conquistar para a sua causa faixas de população arraigadamente
conservadoras e tradicionalistas, revoltadas contra a ‘direita’ revolucionária imperante no momento. O apelo
do MST à nostalgia agrária ou a retórica pseudotradicionalista adotada aqui e ali pelo fascismo fazem
esquecer a índole estritamente revolucionária desses movimentos. O próprio Mao Dzedong foi tomado,
durante algum tempo, como um reformador agrário tradicionalista. Também não é preciso dizer que, nas
disputas internas do movimento revolucionário, as facções em luta com frequência se acusam mutuamente
de ‘direitistas’ (ou ‘reacionárias’). À retórica nazista que professava destruir ao mesmo tempo ‘a reação’ e
‘o comunismo’ correspondeu, no lado comunista, o duplo e sucessivo discurso que primeiro tratou os
nazistas como revolucionários primitivos e anárquicos e depois como adeptos da ‘reação’ empenhados em
‘salvar o capitalismo’ contra a revolução proletária”.
[13]
Na música, destaco o compositor britânico John Tavener. Na pintura, o espanhol Augusto Ferrer-
Dalmau. Na arquitetura, o catalão Antoni Gaudí e o luxemburguês Léon Krier.
[14]
Um exemplo cabal disso é o famoso Dicionário Crítico do Pensamento de Direita (2000), que
apresenta 300 verbetes escritos por 120 acadêmicos. Este livro, que distorce por completo a direita, foi
analisado criticamente pelo filósofo Olavo de Carvalho no artigo “Tudo o que você queria saber sobre a
direita – e vai continuar não sabendo”, publicado no jornal O Globo de 22 de setembro de 2000. Outro livro
que tem a pretensão de analisar academicamente o ressurgir da direita no Brasil, mas que, entretanto,
apresenta um indisfarçável viés esquerdista, é Direita, Volver: o retorno da direita e o ciclo político
brasileiro. Esta obra foi publicada em 2015, com apoio da Fundação Perseu Abramo, vinculada ao Partido
dos Trabalhadores.
[15]
Poderia expandir minha amostra citando autores estrangeiros, contudo coloco o foco da minha atenção
em intelectuais brasileiros. Para ficar só num exemplo de deturpação das idéias da direita por pensadores de
outros países cito o lamentável livro da filósofa feminista Simone de Beauvoir O Pensamento de Direita,
Hoje, editado no Brasil pela editora Paz e Terra, em 1991.
[16]
Essa entrevista foi publicada em 27/10/2016. Em outro momento, o sociólogo uspiano afirma que o PT
é um partido de direita: “O PT bota o carimbo de direita em todo mundo. Eles nem sabem o que é direita.
Na verdade, eles são a direita hoje, porque se tornaram o partido do poder, não o partido de uma causa, da
superação dos problemas políticos e sociais do país”.
[17]
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/10/1826671-intelectuais-divergem-sobre-
posicao-ideologica-de-partidos.shtml>. Acesso em: 18/12/2016.
[18]
O fato citado ocorreu em 12 de maio de 2016.
[19]
Sobre o papel da esquerda, nesse novo contexto político de hipotético domínio da direita, o autor do
citado artigo assevera: “O que temo não é a esquerda perder o poder – ela já não o tinha mais pela força do
presidencialismo de coalizão –, o que temo é o silêncio da esquerda após o golpe, revelação da angústia e
do vazio. Resta à esquerda o papel de ser a sombra da direita, o que significa segui-la aonde quer que vá,
pois só assim poderá, quem sabe, no futuro, ser cúmplice do seu desaparecimento” (Zero Hora,
12/05/2016). Fica explícito, conforme o que é dito pelo autor, que o objetivo da esquerda é fazer a direita
desaparecer: com ela, não deve existir diálogo, pois sua existência não é permitida nem como oposição! O
autor não reconhece, dessa forma, um regime democrático de direita e escancara o objetivo totalitário da
esquerda.
[20]
Edição de 6 de junho de 2015. A entrevista com o sociólogo paulista, radicado em Paris, trata, também,
sobre o lançamento do seu novo livro Revolta e Melancolia.
[21]
O artigo foi publicado em 26/05/2015. Disponível em: <http://www.infomoney.com.br/blogs/economia-
e-politica-direto-ao-ponto/post/4065990/afinal-que-serdireita>. Acesso em: 09/09/2015 .
[22]
Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/brenoaltman/2014/11/11/carniceiros-da-direita-sao-
ameaca-real-3/>. Acesso em: 10/09/2015.
[23]
Esta citação encontra-se no artigo “A direita a serviço da esquerda”, escrito pelo filósofo Olavo de
Carvalho no Diário do Comércio de 9 de abril de 2007.
[24]
As manifestações mais significativas ocorreram em 15 de março, 12 de abril e 16 de agosto de 2015, e a
maior da história política do país em 13 de março de 2016.
[25]
O texto foi publicado em seu blog pessoal: <http://domomb.blogspot.com.br/ e no site brasil 247.
[26]
Sobre o emprego de procedimentos tipicamente stalinistas por parte da esquerda contemporânea,
comenta Jean Revel (2001, p. 114): “[...] a ideologia marxista-leninista, embora desacreditada pela
realidade prática, ou pelo menos assim deveria ser, continua impregnada em nossos esquemas
interpretativos e comportamentos culturais. Os procedimentos típicos dos regimes de Stalin e Lenin
continuam em uso. A calúnia, a mentira, a desinformação, a deformação, o casuísmo, a injúria difamatória,
o rótulo fascista, colaboracionista, ou mesmo anti-semita, aplicado a todos aqueles que os contradizem,
enfim, a afronta imerecida e insidiosa, continuam sendo aceitas em nossos meios políticos e mesmo
artísticos ou literários. A acusação mais trivial é tratar de nazista qualquer um que desaprova a seita,
independentemente da natureza do debate, mesmo que nada tenha a ver com a política”.
[27]
Artigo publicado em 29/05/2015. Disponível em: <http://cartamaior.com.br/?/Coluna/O-direito-contra-
a-direita/33611>. Acesso em: 08/08/2015.
[28]
A ideia de que a direita é, por natureza, antidemocrática é praticamente um lugar-comum entre os
esquerdistas. Para ilustrar o meu argumento, cito o comentário, no Twitter, da deputada federal petista
Maria do Rosário, logo após a posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos: “A posse de
Trump nos leva a pensar sobre o Brasil: temos que construir unidade contra a direita. Não existe democracia
com direita no poder (21 de janeiro de 2017)”.
[29]
Acerca do fascínio que o marxismo exerce nas classes falantes é indispensável a leitura da obra do
sociólogo francês Raymond Aron O Ópio dos Intelectuais (2016).
[30]
O artigo foi publicado no site da revista em 20/05/2015. Disponívelem:
<http://www.cartacapital.com.br/politica/a-falencia-do-pt-a-ascensao-da-direita-e-aesquerda-orfa-
7538.html>. Acesso em: 10/08/2015.
[31]
O artigo foi publicado no site da revista em 13/10/2014. Disponível em:
<http://www.cartacapital.com.br/sociedade/o-reich-tropical-a-onda-fascista-no-brasil-2883.html>. Acesso
em: 10/10/2015.
[32]
Hino oficial do Partido Nacional Socialista (NSDAP), mais conhecido como partido nazista.
[33]
Palavra italiana que significa líder. O termo era usado, na Itália fascista, para designar o chefe-supremo
da nação, Benito Mussolini.
[34]
A estratégia desonesta de acusar de fascista todos os adversários políticos vem de longa data. Na
realidade, foi elaborada pelo Comintern (Internacional Comunista), na década de 1930. Cabe lembrar que os
comunistas qualificavam de fascistas não apenas os adeptos de Mussolini ou Hitler, mas também os liberais,
os conservadores e os socialistas.
[35]
Como esclarece o historiador Stanley Payne (1986), um dos principais pesquisadores do tema, o termo
fascismo talvez seja o mais vago dos termos políticos contemporâneos.
[36]
É essencial lembrar que Benito Mussolini foi, inicialmente, um militante político socialista. Chegou a
dirigir um dos mais importantes jornais italianos de esquerda no começo do século XX, o Avanti! Além
disso, conforme demostrou o historiador israelense Zeev Sternhell, em seu brilhante estudo sobre a
ideologia fascista The Birth of Fascist Ideology (1994), essa doutrina política nasce de uma revisão do
marxismo. De uma revisão voluntarista e antimaterialista do socialismo marxista iniciada na França, com a
obra de George Sorel. Grosso modo, a ideologia fascista seria uma síntese de nacionalismo tribal e orgânico
com o socialismo.
[37]
O livro da filósofa feminista Marcia Tiburi Como Conversar com um Fascista (2016) é um exemplo
perfeito do uso equivocado e abusivo desse termo.
[38]
Alain Besançon lembra que essa expressão foi cunhada pelo historiador Pierre Chaunu.
[39]
Conforme observa Jacques du Perron (1991), o primeiro e principal teórico da esquerda é Rousseau. É o
autor Do Contrato Social (1762) que fornece as primeiras “pedras” do edifício conceitual antitradicional. O
filósofo genebrino constrói os cinco axiomas fundamentais do pensamento de esquerda: 1º o homem é
naturalmente bom; 2º o homem é perfectível; 3º os homens são naturalmente iguais; 4º a propriedade é a
causa principal da má organização da sociedade; 5º o único soberano é o povo. Rousseau é o pai da
democracia moderna que se fundamenta na idéia de que o poder “vem de baixo”, das massas – a vontade
geral – e, assim, de um novo tipo de humanidade e organização política e social. O aspecto idealista e
sanguinário da Revolução, encarnado historicamente nas figuras de Robespierre e Saint-Just, bem como a
nova moralidade igualitarista, eivada de rancores e ressentimentos, é construída originalmente por este
pensador liberal.
[40]
Scruton (2011, p. 67) assim descreve o utopismo esquerdista: “As utopias são visões de um estado
futuro em que os conflitos e problemas da vida humana se resolvem completamente, em que as pessoas
vivem juntas em unidade e harmonia e em que tudo é ordenado de acordo com uma vontade única que é a
vontade da sociedade como um todo [...]. O desejo é de uma solução final, não só para um problema, mas
para os problemas como tal, de modo que seja o que for que exista seja compatível com o que cada pessoa
quiser. Tudo o que criar tensão e conflito é para eliminar”.
[41]
Sobre a utopia, afirma, de maneira irônica, Jean Revel (2001, p.30): “A utopia não tem obrigação de
apresentar resultados. Sua única função é permitir aos seus adeptos a condenação do que existe em nome do
que não existe”.
[42]
Corrente religiosa e filosófica que se desenvolveu nos primórdios do cristianismo. Os gnósticos antigos
acreditavam que o mundo material foi criado por uma falsa divindade. O homem estaria aprisionado no
corpo e neste demoníaco mundo físico. O único modo de libertar-se deste cárcere terreno seria por meio de
um conhecimento superior e místico, a gnose.
[43]
Com sarcasmo, Revel (2001, p. 197) afirma: “A arte de ‘pensar como socialista’ consiste em perceber
na realidade o contrário daquilo que demonstram os fatos mais concretos e evidentes”.
[44]
Para Voegelin (2009), todos os grandes movimentos políticos de massa da modernidade, como o
nazismo, o fascismo, o socialismo e o comunismo, apresentam uma feição gnóstica e escatológica.
[45]
O cientista social Alain Besançon (2000) considera a perspectiva salvacionista do marxismo-leninismo
como otimista, comparável à salvação anunciada pela profecia bíblica: “Seu objetivo é superar a natureza
como ela é, o homem como ele é; chegar a um tempo messiânico de paz e justiça, em que o lobo conviva
com o cordeiro, em que as disciplinas e as frustações do casamento, da família, da propriedade, do direito,
da penúria sejam abolidas. Finalmente, é a própria morte que é vencida: houve devaneios sobre esse tema
no começo da revolução bolchevique, alimentados por um certo Fedorov, um quimérico da ressureição
científica dos corpos e da imortalidade. ‘O homem novo’, produto do socialismo, é um tipo de corpo
glorioso tal como a profecia o entrevê. E sua salvação está nas mãos dos homens. Ela é obtida por meios
políticos” (Besançon, 2000, p. 88).
[46]
O sociólogo Luciano Pellicani (2000) afirma que, além do gnosticismo, outro traço específico da
esquerda marxista é o milenarismo. O milenarismo parte de uma visão do mundo baseada na contraposição
entre o mundo real e aquele sonhado, e na esperança de um cataclismo que porá fim à corrupção e ao erro,
dando início a um novo mundo de justiça e verdade. A meta suprema do milenarismo é o “totalmente outro”
que se materializará mediante um processo dialético de negação, inversão e destruição do que existe.
Quando as três grandes tradições apocalípticas, o milenarismo, o messianismo e o maniqueísmo,
secularizam-se temos o surgimento da mentalidade revolucionária. O revolucionarismo socialista moderno é
herdeiro direto dessas tradições; não é possível entender o ativismo revolucionário moderno sem
compreender o espírito escatológico. Há uma relação umbilical entre o mito da revolução e os três m(s)
apocalípticos: messianismo, milenarismo e maniqueísmo. Com efeito, a política da tábula rasa, própria do
espírito revolucionário socialista, que visa destruir o “velho mundo” corrompido, regenerando e purificando
a humanidade, fundamenta-se numa concepção apofática da revolução. A revolução total e permanente é
dominada pela fé mística na potência criadora e purificadora da negação e da violência. A destruição e o
terror revolucionário são concebidos como forças libertadoras e transformadoras. Essa é a tese central do
sociólogo Luciano Pellicani (2014). Sugiro a leitura do excelente trabalho desse autor From Apocalypse to
the Revolution.
[47]
O pensamento revolucionário é uma atitude espiritual baseada na crença de uma salvação total do
homem. A revolução universal e final eliminaria o mal e sofrimento do mundo, libertando o homem de
todas as formas de repressão e autoridade, ambicionaria também a mutação completa da sociedade. Sobre
esse traço do pensamento revolucionário, assevera Leszek Kolakowski (1985, p, 13): “O messianismo
revolucionário, que se fundamenta no princípio ‘tudo ou nada’, tem naturalmente tendência a assinalar a
descontinuidade radical da cultura, pois afirma que a Revolução Socialista deve transformar a sociedade em
todos os pontos de vista, e que toda a cultura do passado não era nada mais do que um conjunto de
instrumentos, servindo para reforçar os interesses das classes privilegiadas. Na retórica revolucionária da
década de 20, na União Soviética, encontra-se uma grande quantidade de fenômenos que manifestam essa
crença na descontinuidade fundamental da cultura: a utopia da deterioração do Estado (em conformidade
com a doutrina de Marx) estava em voga, e, além disso, vimos aparecer teorias que profetizavam o
desparecimento da escola, da família, a morte da filosofia e até proclamaram o caráter de classe da
linguagem [...]”.
[48]
O escritor e jornalista francês Claude Lanzmann, num interessante livro L’Homme du Gauche (O
homem de esquerda), assevera que a esquerda é marcada por tal negatividade e criticismo radical, é a
encarnação desse “momento negativo”, rebelando-se contra a realidade e rechaçando a ordem existente
(Lanzmann, 1958, p. 8).
[49]
A ideia de uma revolução mundial permanente e destruidora da ordem existente é uma particularidade
da esquerda marxista, conforme observa o sociólogo Luciano Pellicani (2000, p. 213): “[...] a revolução
conduziria a uma declaração de guerra ao mundo inteiro, animada pela convicção de que construir o
socialismo significava destruir os ordenamentos existentes. Dito de outro modo, significava adotar a política
de tábua rasa. De fato, não havia Engels sentenciado que ‘tudo o que existia era digno de morrer?’, não
havia afirmado Marx que a cena mundial estava ocupada pelo duelo mortal entre o ‘partido conservador’ e
o ‘partido destruidor’ e que este, uma vez no poder, haveria de ‘aniquilar o velho mundo’?”.
[50]
É notável a metamorfose do outrora impulso revolucionário marxista da esquerda ortodoxa em um
prosaico e enfadonho romantismo humanitarista secular que, entre outras coisas, consiste em repetir
insistentemente os mesmos clichês e slogans: igualdade, justiça social, democracia participativa, inclusão,
diversidade, defesa das minorias, luta contra a opressão, direitos humanos, etc. Trata-se de uma retórica
emotivista, pueril e entediante, planejada para agradar os censores da ideologia liberal-progressista
dominante; não é preciso salientar que o establishment e os arquitetos da nova ordem mundial agradecem
efusivamente por essa estrepitosa claudicação. O esquerdismo chic e politicamente correto, ávido de
novidades superficiais e suscetível aos mais torpes modismos intelectuais, parece ter definitivamente
suplantando o marxismo ortodoxo. Foucault, Rorty, Deleuze e “Cia Ltda” derrotaram Marx e Lênin.
[51]
Sobre os anseios libertários da esquerda, comenta Anthony Giddens (1995, p. 106): “A perspectiva
política da esquerda – e, em reação, portanto contrária, à da direita – esteve sempre centrada em uma idéia
de emancipação. Emancipação significa liberdade, ou melhor, liberdade de vários tipos: liberdade em
relação à tradição, em relação aos grilhões do passado; liberdade em relação ao poder arbitrário; e liberdade
das restrições da pobreza ou privação material. A política emancipatória é uma política de oportunidades de
vida. Ela está relacionada à autonomia da ação”.
[52]
Thomas Molnar (1972) assevera que a atração que o progressista tem pelo marxismo revela uma dupla
natureza: um elemento deriva de seu racionalismo extremo e, assim, surge o sonho de uma sociedade
organizada racionalmente, o outro é proveniente de seu sentimentalismo igualmente extremo, que emerge
quando o progressista expressa seu amor abstrato pela humanidade.
[53]
O cientista político Yuval Levin, no livro The Great Debate: Edmund Burke, Thomas Paine, and the
Birth of Right and Left (2013), defende a controversa tese de que, na verdade, a dicotomia direita-esquerda
nasce com a fundação da república estadunidense, em 1776, mais especificamente com o acirrado debate
público entre Edmund Burke e Thomas Paine.
[54]
Na Inglaterra, a partir de 1730, os deputados do partido governamental posicionam-se, em Westminster,
à direita do speaker (presidente do Parlamento), já os da oposição situam-se à esquerda deste (Nogueira
Pinto, 1996).
[55]
Esta agremiação surgiu, mais precisamente, em 4 de março de 1933, para opor-se ao governo e aos
movimentos de esquerda que dominavam o cenário político espanhol.
[56]
Importa lembrar que as correntes políticas e ideológicas chamadas de direita na Europa continental são
conhecidas no mundo anglo-saxão pela expressão conservador (conservative); já a esquerda é designada
com o termo liberal. Nos países hispânicos e latino-americanos, utilizamos a palavra progressista para se
referir às posições de esquerda. Mais particularmente na Inglaterra, a contraposição inicial é entre tories e
whigs (Nogueira Pinto, 1996).
[57]
A nova direita é uma escola de pensamento que surge na França, em 1968.
[58]
Baseio-me aqui no resumo feito por Lukes (2003) da pesquisa de Eatwell e O’Sullivan.
[59]
Um estudo pormenorizado da doutrina da Ação Integralista Brasileira é efetuado por Rosa Maria
Feiteiro Cavalari (1999) no seu livro Integralismo: ideologia e organização de um partido de massa no
Brasil (1932-1937).
[60]
Inicialmente chamada de Centro Monarquista de Cultura Social e Política Pátria-Nova, esta organização
começa suas atividades em 3 de março de 1928.
[61]
Para uma análise cuidadosa desta organização, recomendo o livro Império e Missão: um novo
monarquismo brasileiro, da historiadora Teresa Malatian (2001).
[62]
Salazar comandou Portugal de 1933 até 1974. O nacional-sindicalismo foi bastante forte nos primeiros
anos da década de 1930. Já o integralismo lusitano foi atuante de 1914 a 1932 .
[63]
O cientista político Arnaud Imatz (2016) explica que o “fascismo genérico” não é uma ideologia de
direita, nem de esquerda: ele nasce do encontro do radicalismo de direita com o radicalismo de esquerda.
Nem de direita, nem de esquerda, o fascismo é um membro da vasta família das ideologias da chamada
terceira via. É o ramo mais radical e revolucionário dessa “terceira posição”.
[64]
Outros binômios semelhantes como tradição-revolução, permanência-progressão e ordem-progresso
também poderiam ser citados (Negro,1999).
[65]
Uma valiosa análise psicológica do homem de direita e do homem de esquerda é realizada por Jean
Jaélic no livro La Droite: cette inconnue (1963).
[66]
O escritor romeno Vintila Horia também vincula a direita à religião cristã. Cito um trecho da entrevista
deste autor na revista Hespérides da Espanha: “A direita não é uma ideologia, é um estilo de vida que
coincide com os valores fundamentais e dentro desses valores, em primeiro lugar, como cúpula de todos
eles, estão os valores cristãos. A direita é um estilo de vida permanente dentro do qual está o amor, a
família, a propriedade privada, a fé religiosa, a moral, o heroísmo na guerra como na paz, esses são os
valores fundamentais que sempre caracterizaram as direitas porque contra eles sempre se manifestaram os
de esquerda [...]. Eles inventaram uma ideologia, uma filosofia para poder atacar esses valores que não
necessitam de nenhuma ideologia [...]. A direita representa a vida e a esquerda a morbidez [...]. A direita é
pelo amor normal ou natural, contra o aborto, em defesa da família, contra a droga, e não em vão, porque
isto significa defender a vida. Do outro campo, do campo das ideologias, que são sempre de esquerda, vêm
sempre os ataques contra a vida, defendendo sempre atitudes contra-natura”. Disponível em: <http://accao-
integral.blogspot.com.br/2012/03/direita.html>. Acesso em: 09/10/2014.
[67]
Entrevista publicada com o historiador francês em 21 de março de 2007, no jornal argentino La Nación.
Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/893182-ya-nohay-diferencias-de-fondo-entre-la-derecha-y-la-
izquierda>. Acesso em: 10/02/2015.
[68]
Além de uma dimensão antropológica, a dualidade direita e esquerda possui um caráter epistemológico
e gnoseológico. Perron (1998) e Upinsky (1991) ressaltam que a clivagem realismo-nominalismo
corresponde à divisão política direita e esquerda que serve de base a toda a nossa vida política. O
pensamento de esquerda é abstracionista, “geométrico”, já o pensamento de direita é concreto, realista. A
abstração é a chave do pensamento nominalista, como a “encarnação” marca o realismo. O nominalista
buscará constantemente reduzir as realidades do “alto” aos fenômenos de “baixo”. Para ele, o mundo
espiritual não passa de uma abstração do mundo temporal-material. Para o pensamento da “encarnação”,
realista, da direita tradicional, segundo Upinsky (1991), Deus faz-se homem; para o abstracionismo
progressista, o homem faz-se Deus. Dessa orientação epistêmica derivam as ambições prometéicas da
esquerda: o homem-deus realizará o Paraíso na Terra. Indubitavelmente, a esquerda intelectual e utópica
está impregnada de idealismo e nominalismo, apesar de existir uma esquerda visceralmente materialista,
que, em termos históricos, remonta ao pensamento de Epicuro e Lucrécio. Em linhas gerais, a esquerda
combina o materialismo ontológico com o idealismo moral e social; e, ainda, um idealismo epistemológico
com uma concepção materialista do conhecimento como transformação ou produção do real. Para o
idealismo epistemológico, toda forma de conhecimento, interpretação e julgamento apresenta um aspecto
criador e construtor, rejeitando assim o núcleo central do pensamento realista de que o conhecimento é um
modo de assimilação e conformação ao objeto. De acordo com esta perspectiva gnoseológica idealista, há
uma espécie de dissolução do objeto no sujeito, do mundo material no mundo conceitual (Molnar, 1970a).
[69]
A natureza utópica, salvacionista e irrealista do pensamento político de esquerda fica evidente no artigo
“Por que sou de esquerda ainda”, escrito pelo doutor em educação Jorge Barcellos, no jornal Zero Hora de
17 de fevereiro de 2016. Quase ao final do texto, o autor relaciona o projeto da esquerda com a “utopia da
redenção do homem” e, na frase de conclusão, afirma: “[...] ser de esquerda é estar inteiro em cada instante,
é querer a palavra contra o poder e contra o princípio de realidade. Isto é ser de esquerda”.
[70]
Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/893182-ya-no-hay-diferencias-defondo-entre-la-derecha-
y-la-izquierda>. Acesso em: 10/02/2015.
[71]
Há autores católicos tradicionalistas que contestam o valor heurístico da dicotomia direita-esquerda.
Destaco os nomes do jusfilósofo italiano Danilo Castellano (1989) no seu trabalho A Proposito della
Definizioni di Destra, de Gustavo Corção na obra o Século do Nada (1973) e do cientista político francês
Arnaud Imatz no livro Droite-Gauche: pour sortir de l’équivoque (2016). Para Castellano, os termos direita
e esquerda têm origem hegeliana, de modo que seria impróprio e ilegítimo tratar dessas categorias fora do
sistema hegeliano. Por sua vez, Arnaud Imatz acredita que a clivagem direita e esquerda mascara outra
polaridade mais fundamental nos dias atuais, que opõe os partidários do enraizamento, das identidades
fortes e da defesa das soberanias nacionais contra os adeptos do mundialismo, do cosmopolitismo e do
multiculturalismo.
[72]
Como explica Sacheri (2014, p. 212): “[...] a autoridade política deve introduzir uma ordem no conjunto
de operações que os cidadãos desempenham cotidianamente. Tal ordenamento encontra sua expressão
exemplar na ordem jurídica. De fato, as leis não são mais do que os grandes meios adotados pelo legislador
para a realização do bem comum. Dentro do marco legal, os cidadãos exercem suas respectivas funções, de
modo tal que o efetivo respeito às leis vigentes assegura a obtenção do bem comum. Isso supõe,
evidentemente, que a ordem normativa de uma sociedade seja intrinsecamente justa, isto é, respeitadora dos
valores humanos fundamentais”.
[73]
Fenômeno que o filósofo russo Nicolas Berdiaeff (1953) definiu como “idolatria do social e do
coletivo”. Trata-se, essencialmente, da preocupação exagerada de muitos agentes e muitas organizações
culturais e religiosas com os problemas sociais, políticos e de uma exaltação mórbida do coletivo e do
societal em detrimento da personalidade humana. É a transformação dos valores sociais, políticos e
econômicos, fundamentalmente relativos, em valores absolutos.
[74]
A noção de uma ordem eterna, de uma ordem natural, é antiquíssima e deita raízes na tradição indo-
européia e greco-romana.
[75]
Para o filósofo político Eric Voegelin (2008, p. 117), a ordem “é a estrutura da realidade como
experienciada pelo homem, bem como a sintonia entre o homem e uma ordem não fabricada por ele, isto é,
a ordem cósmica”.
[76]
O racionalismo, o voluntarismo e o irracionalismo são doutrinas modernas eivadas do espírito
revolucionário, notavelmente definido pelo filósofo tomista Carlos Sacheri (2014, p. 93): “O espírito
revolucionário inclui essencialmente uma vontade de autonomia, de autodeterminação, que exclui qualquer
aceitação de uma moralidade objetiva, realista, como é a moral cristã. A vontade revolucionária supõe a
vontade de erigir uma ordem fundada na vontade do homem, e não fundada na ordem divina [...]”.
[77]
Há também uma conexão etimológica e semântica entre a tradicional expressão hindu dharma, cujo
significado é maneira de ser natural, adequada, correta, que deriva da raiz DHRI, e os vocábulos derecho
em castelhano e right em inglês (Vedoya, 1985).
[78]
Para os dados e informações etimológicas apresentados neste capítulo baseei-me, principalmente, no
trabalho de Martinez (1974).
[79]
Conforme Erik von Kuehnelt-Leddihn (1974), em todas as línguas européias, incluindo as eslavas e o
húngaro, a direita relaciona-se com o que é justo, direito, certo e correto. No russo, pravo (lei) e pravda
(verdade) conectam-se com as categorias direita e direito, bem como o búlgaro levitsharstvo e o húngaro
jobb que também significam melhor, superior. Já bal, esquerda em húngaro, é usando para designar algo
negativo, sendo que balsors, um derivado de bal, significa má sorte.
[80]
Vale destacar que mesmo em línguas que não fazem parte do universo indo-europeu, como o basco, o
termo esquerda, ezker ou esquerra, neste estranho e misterioso idioma, tem o sentido de algo obscuro,
negativo e sinistro.
[81]
Para maiores detalhes sobre esse mito, ver René Guénon (1991) em seu livro O Rei do Mundo.
[82]
Parmênides acreditava que o sexo da criança era determinado, ou pelo menos poderia ser vaticinado,
pela posição da criança no útero da mãe. Os meninos estariam situados à direita e as meninas à esquerda.
Hipócrates afirmava que o testículo direito continha as sementes que dariam origem aos meninos e o
testículo esquerdo as sementes para o nascimento das meninas (Laponce, 1981).
[83]
Primazia e preferência dada ao lado direito. Neologismo inspirado de termo da língua espanhola.
[84]
Preferência pela direita, destreza e desenvoltura.
[85]
Monge inglês do século do século VIII, proclamado Doutor da Igreja por Leão XIII.
[86]
Sobre a representação simbólica dos lados direito e esquerdo na arte ocidental, sugiro a leitura da obra
de James Hall The Sinister Side: How left-right symbolism shaped western art (2008).
[87]
Lembro que o nome hebreu Benjamin quer dizer “filho da direita”, referindo-se à direita como símbolo
da força e da virtude.
[88]
Para os dados e as informações referentes ao simbolismo metafísico da direita e da esquerda
apresentados neste capítulo, baseei-me, principalmente, no trabalho de Martinez (1974).
[89]
Hertz (1980) observa que, para as culturas antigas e primitivas, a morte, o mal e a miséria penetravam o
âmago do ser humano pelo lado esquerdo. Desta forma, esse lado indefeso e exposto a influências deletérias
precisava ser reforçado por meio de amuletos protetivos. Por isso o uso do anel no terceiro dedo da mão
esquerda, que visa, primordialmente, a manter as tentações e outras coisas negativas longe dos homens.
[90]
Num de seus últimos livros, O Camponês do Garona, o pensador católico francês Jacques Maritain tece
algumas considerações pertinentes sobre a clivagem direita-esquerda, a despeito de certos equívocos: “Num
primeiro sentido é-se da direita ou da esquerda por uma disposição do temperamento, tal como o ser
humano nasce bilioso ou sanguíneo. É inútil, neste sentido, pretender nem ser da direita nem da esquerda; o
mais que se pode fazer é corrigir o temperamento e levá-lo a um equilíbrio que se aproxime, mais ou
menos, do ponto superior, onde as duas ladeiras se encontram; porque, no extremo limite inferior destes
pendores, há uma espécie de monstruosidade que se desprende diante do espírito – na direita, o puro
cinismo; na esquerda, o puro irrealismo, segundo a expressão de Jean-Jacques: o que não é aquilo que é; o
puro homem de direita detesta a justiça e a caridade, preferindo sempre, e por hipótese, segundo a expressão
de Goethe [...], a injustiça à desordem. Um nobre e belo tipo de homem de direita é Nietzsche; um nobre e
belo tipo de homem de esquerda, Tolstói” (Maritain 1967, p. 34).
[91]
Como bem salienta Michéa (2011), o elogio sistemático e o culto do progresso e da modernização
pertencem ao núcleo duro do programa esquerdista. Progresso e modernização que implicam na ruptura
com as formas de ordem moral e societal tradicionais, orientadas e estribadas em princípios meta-históricos,
religiosos e espirituais.
[92]
Não se trata de um xingamento, mas de um termo técnico, com longa história na tradição filosófica
ocidental.
[93]
Termo cunhado e estudado pelo escritor austríaco Robert Musil.
[94]
Movimento político e intelectual de esquerda que surge na década de 1960 e voltado para a luta contra
as opressões de gênero, raça e sexualidade. Caracteriza-se por forte ativismo social. O cientista social Paul
Edward Gottfried, em seu livro The Strange Death Of Marxism (2005), define esta nova esquerda como
pós-marxista e multiculturalista, visceralmente hostil à herança cultural e histórica do Ocidente e, portanto,
preocupada em promover uma revolução cultural e antropológica que liberte a sociedade ocidental de seus
resíduos fascistas. Aliás, a luta constante contra o “fascismo” é uma das obsessões desta nova esquerda pós-
marxista.
[95]
Utiliza essa palavra no seu sentido original latino subvertere, que indica um revolver de baixo para
cima, uma perturbação e convulsão que parte do baixo.
[96]
A modernidade deve ser entendida ao longo deste trabalho principalmente em seu sentido axiológico
como sinônimo de subjetivismo e relativismo, e não em seu aspecto meramente histórico e cronológico,
conforme explica o jurista e filósofo Danilo Castellano (2013).
[97]
Para o economista austríaco, o comunismo, o nacional-socialismo alemão e o positivismo são religiões
políticas, religiões seculares, que divinizam o meramente humano: “O Estado e o governo de que falam os
planejadores, o povo para os nacionalistas, a sociedade para os marxistas, a humanidade para os positivistas
comtianos, são nomes dos deuses dessas novas religiões” (Mises, 1990, p.687).
[98]
Disponível em: <http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/polilogismokarl-marx-nazistas/>.
Acesso em: 20/10/2014.
[99]
Disponível em: <http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/polilogismokarl-marx-nazistas/>.
Acesso em: 20/10/2014.
[100]
Disponível em: <http://www.libertarianismo.org/index.php/artigos/polilogismo-karl-marx-nazistas/>.
Acesso em: 20/10/2014.
[101]
Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=750>. Acesso em: 15/10/2015.
[102]
Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1224>. Acesso em:12/12/2015
[103]
Este é o liberalismo de David Hume, Adam Smith, Edmund Burke, Gladstone, Macaulay, Lord Acton
e Tocqueville.
[104]
Hayek está sempre a destacar a liberdade individual, distinguindo-a de outras liberdades, como, por
exemplo, a liberdade política entendida como a participação dos indivíduos na eleição de seu governo.
Sobre isso declara: “Muita gente tem consciência de que a liberdade política é algo diferente da liberdade
individual. Um povo livre, neste sentido, não é necessariamente um povo de homens livres. Não é
necessário participar desta liberdade coletiva para ser livre como indivíduo” (Hayek, 1957, p.11). Hayek
também sublinha que a liberdade individual, no sentido original e verdadeiro, não significa fazer o que se
quer, não se trata de uma liberdade que significa onipotência, ausência de restrições e obstáculos para a
realização de nossos desejos. Acerca disso, coloca: “A transição do conceito de liberdade individual ao de
liberdade no sentido de poder foi facilitada em grande parte pela tradição filosófica que emprega o termo
‘restrição’ onde usamos ‘coerção’. Restrição seria de certo modo uma palavra mais conveniente, se sempre
se recordar com claridade que em seu sentido estrito se refere a uma atividade humana e pressupõe a ação
de uma pessoa ou pessoas que restringem algo. Usado neste sentido, tem a vantagem de recordar-nos de que
as limitações da liberdade consistem em grande escala em impedir que as pessoas façam coisas, enquanto
que o conceito de coerção acentua mais o sentido que obriga a realizar coisas determinadas” (Hayek, 1957,
p.15).
[105]
O filósofo tradicionalista italiano Marcello Veneziani resume, de um modo bastante esclarecedor, o
pensamento político de Hayek: “O liberalismo de Hayek fundamenta-se num curioso triângulo isósceles: os
dois lados simétricos, o individualismo e o mercado, apóiam-se numa base insólita, a tradição. Hayek, por
uma parte, correlaciona estreitamente a liberdade individual à exigência de valores comuns e, por outra, faz
derivar do vínculo social e do costume (a sociedade livre) a relação mercantil. No primeiro caso, Hayek é
filho de Tocqueville; no segundo, estende seu débito a Bernard Mandeville e a Adam Ferguson. Mas o
conceito-chave de Hayek que une liberdade à tradição (e, portanto, indivíduo a valores comuns, e mercado a
ligação social) é a ordem espontânea, filha da ordem natural. Odiando todo construtivismo, Hayek identifica
assim o vínculo tradicional com a ordem espontânea sobre a qual se funda tanto a iniciativa individual como
o livre mercado” (Veneziani, 2005, p. 85).
[106]
Para Hayek, o sistema de preços resultou de uma longa evolução social, e não de um plano ou desenho
deliberado. É um sistema complexo que permite a comunicação e a transmissão de informações econômicas
que se encontram dispersas e fragmentadas entre milhões de pessoas. O mercado é, assim, um método de
transmissão e utilização do conhecimento.
[107]
Os conceitos de ordem espontânea e organização são tipos ideais, ferramentas teóricas para a análise
de situações sociais (Flanagan,1984).
[108]
Oliva (1993) vai mais longe ao afirmar que boa parte das teorias políticas se inspiram em teorias do
conhecimento. Sobre isso, declara: “Há sempre uma teoria do conhecimento pressuposta, tácita ou
abertamente, quando se faz a defesa de uma ordem social. É comum a suposição de que a certeza é
alcançável se se fizer acompanhar da convicção de que não há limites aos nossos intentos de criar um
mundo melhor sobre os escombros da ordem espontânea abatida ‘pela arma da crítica e pela crítica das
armas’. A isso junta-se o pressuposto de que a ordem social é inculcada nos indivíduos, que se limitam a
absorvê-la passivamente. Ora, se os indivíduos são receptáculos passivos da ordem social, mudá-la, em
consonância com algum modelo de perfeição, vai dar ensejo a que os indivíduos se ajustem a um mundo
(social) melhor, em si mesmo existente” (Oliva, 1993, p. 79-80).
[109]
Sobre a ideia de tradição em Hayek é indispensável a leitura do artigo Hayek on Tradition, do filósofo
Edward Feser (2003 ).
[110]
Como destaca Flanagan (1984), o positivismo jurídico de Kelsen é também uma forma de
construtivismo, ao conceber todas as leis válidas e legítimas de uma sociedade como um comando do
soberano. Dessa maneira, acaba por confundir a ordem, cujas normas desenvolvem-se organicamente, com
a organização que depende de uma estrutura rígida e mecânica que proclama regras. Conseqüentemente,
subsume o kosmos da sociedade na taxis do Estado. O positivismo é, na esfera legal, o que o socialismo é na
esfera econômica. O primeiro deprecia “a bárbara confusão do direito costumeiro e jurisprudencial”, já o
socialismo condena “a anarquia do mercado”. O sonho do socialismo é substituir os processos impessoais
do mercado pelo planejamento centralizado e o controle organizado. Em suma, tanto o socialismo marxista
como o positivismo jurídico e sociológico de Kelsen, Saint-Simon e Augusto Comte pretendem construir
uma sociedade nova, comandada por cientistas e tecnocratas, convertendo a ordem espontânea da sociedade
numa organização coercitiva racionalizada e burocrática.
[111]
Para o cientista político Thomas Flanagan (1984), profundo estudioso do pensamento de Hayek, o
racionalismo construtivista é o erro intelectual de interpretar a ordem como se essa fosse uma organização,
concebendo estruturas autogeradas e espontâneas como sistemas deliberadamente criados e controlados
pelo homem. A conseqüência lógica dessa errônea premissa é: já que o homem criou a seu bel-prazer as
instituições da sociedade e a civilização, ele é capaz de alterá-las de acordo com a sua vontade para
satisfazer os seus desejos e suas necessidades. Em síntese, o construtivismo adula o homem, fazendo-o crer
que é dotado de um poder criativo quase que divino.
[112]
De acordo com Thomas Flanagan (1984), a noção de construtivismo em Hayek pode ser amplamente
aplicada às diversas ideologias modernas. Para além de suas variações, há em todas elas uma tendência
comum: o desejo de submeter a sociedade ao controle consciente dos homens pela agência do Estado, bem
como a glorificação do conhecimento e da vontade humana e, portanto, a suposta capacidade dos homens
de remodelar a vida social. Em resumo, por meio de algum conhecimento esotérico e de sua vontade
absoluta, o homem tornar-se-ia o legislador de si mesmo, autoconstruindo-se de acordo com os seus desejos
pessoais ou o esquema doutrinário previamente elaborado.
[113]
Interessante notar que, conforme o cientista político Thomas Flanagan (1984), o pensamento político
de Hayek possui pontos de contato com a filosofia clássica e, portanto, com o pensamento tradicional que
orienta a cosmovisão da verdadeira direita. Ambas partem da intuição fundamental de que o homem busca a
ordem do cosmos, que não é feita, produzida, e que não depende da vontade ou decisão consciente dos
indivíduos. É essa ordem algo que existe objetivamente, transcendendo a pessoa individual. Trata-se de uma
ordem extremamente sutil e complexa que provoca nos homens o assombro e o maravilhamento. Uma
ordem que suscita o espanto e a curiosidade intelectual, mas que, da mesma forma, alimenta o senso do
mistério e uma atitude de reverência e humildade diante da grandeza e infinitude do cosmos.
[114]
A obra que melhor explica tais distinções entre o liberalismo americano, francês e britânico é, sem
dúvida, Os Caminhos para a Modernidade (2011), da historiadora Gertrude Himmelfarb.
[115]
Como existe, também, é claro, uma mentalidade progressista e esquerdista e uma mentalidade
conservadora e tradicionalista.
[116]
Uma profunda e esclarecedora análise da “ideologia individualista moderna” é feita pelo antropólogo
Louis Dumont, no livro O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna (1993).
[117]
John Gray desenvolve uma análise crítica devastadora do neocapitalismo global, a partir de uma
perspectiva conservadora, no livro Falso Amanhecer: os equívocos do capitalismo global (1999).
[118]
O jurista católico tradicionalista Álvaro D’Ors (1990, p. 1) afirma sem rodeios: “O capitalismo, cuja
conseqüência é o consumismo, o que faz é aumentar os vícios, aumentando as riquezas, aumentar as
riquezas para os vícios, para o prazer [...]”.
[119]
Ressalto que, nesse e em outros aspectos, o liberalismo conservador de Hayek apresenta uma visão
mais nuançada.
[120]
Para o liberalismo, conforme Sacheri (2014, p. 69): “No plano da conduta, o sujeito não pode estar
submetido a nenhuma regulação ética que não provenha de sua autodeterminação. Esse subjetivismo moral
acarreta a negação de toda ordem objetiva de valores, do direito natural e da lei ou Providência divina”.
[121]
O liberalismo fundado na idéia de que a sociedade humana resulta de um pacto social parece ter
olvidado essa finalidade superior. Esse artifício contratual existe unicamente para proporcionar a
subsistência e a segurança física aos homens, conforme explica o filósofo Rubén Bouchet (1989, p. 23): “A
ordem social imposta pelo pacto não alenta outro propósito. Nada que recorde o bom viver aristotélico nem
sua noção de eudaimonia e muito menos algo que faça pensar na idéia de salvação. Se existe uma sociedade
destinada a manter viva a presença do traditum religioso e fazer da salvação eterna o propósito fundamental
da vida humana, o liberalismo tolera a título provisório, como garantia de uma disposição favorável à
realização da paz social e ao cumprimento geral dos contratos particulares”.
[122]
Thomas Molnar (1979) demonstra que a ideologia democrático-liberal é anti-institucional em sua
essência. Intenciona apagar, na alma dos indivíduos, qualquer noção de lealdade e sacrifício,
desestabilizando as instituições tradicionais e desmontando os mecanismos legítimos de autoridade e
governo. Segundo o filósofo húngaro, observando os tribunais, as universidades, as igrejas, os parlamentos,
os corpos profissionais, as famílias, as instituições culturais, a política, o exército, nota-se uma dificuldade
de todos esses organismos em cumprirem com uma função determinada, com a sua função essencial.
Utilizando-se de uma linguagem filosófica, pode-se afirmar que persistir em seu próprio ser converteu-se
numa atitude superada, pois a tendência atual destas instituições é deixar-se levar pelo devir. Na realidade
cotidiana, isso se traduz em uma profunda carência, desestruturação e enfraquecimento da autoridade. As
instituições atuais parecem ter como tarefa primordial a busca de seu próprio desmantelamento. Por
conseguinte, os indivíduos encontram-se isolados, atomizados, desamparados diante de um Estado cada vez
mais centralizador e invasivo.
[123]
Hayek não aceitava com bons olhos o rótulo de conservador. Chegou a escrever um texto, Why I Am
Not Conservative (1960), condenando os equívocos do conservadorismo. Definia-se com um liberal da
velha guarda (seguidor de Lord Acton, Burke, Macaulay, Gladstone e Tocqueville). Era, essencialmente, um
Whig, o partido da liberdade no Reino Unido. Sobre o debate em torno do caráter conservador do
pensamento de Hayek, recomendo a leitura do estudo de Roger Scruton, Hayek and Conservantism (2007).
[124]
O filósofo político John Gray aponta para o caráter teleológico da doutrina social de Hayek. Há na
especulação do pensador austríaco certa fé no futuro e, assim, a realização de uma harmonia final, com a
concretização de uma ordem social orientada pelas forças espontâneas do mercado. Gray (2008, p. 139)
ressalta a dimensão utópica do liberalismo de Hayek: “Nada existe nos processos de mercado que os torne
auto-reguláveis. A grande contribuição de Hayek foi mostrar que uma economia planejada bem-sucedida é
uma utopia. Mas ele não foi capaz de ver que o mesmo se aplica ao mercado auto-regulável”.
[125]
O liberalismo, na realidade, não se opõe ao projeto revolucionário, mas somente a uma de suas
manifestações, o socialismo, conforme explica o filósofo Olavo de Carvalho (2010): “O liberalismo, em
contraste, é a resistência a uma modalidade específica de projeto revolucionário, o socialismo. Ambos
nasceram no século XIX e se definem um ao outro como irmãos inimigos. Ao socialismo a proposta liberal
opõe a defesa da economia de mercado e das liberdades políticas no quadro do moderno Estado laico. A
todos os componentes do movimento revolucionário que escapem da definição formal de socialismo, que
portanto não ataquem diretamente esses dois pilares da ideologia liberal, o liberalismo não pode oferecer
nenhuma oposição eficaz. Nada, no discurso liberal, oferece fundamento sólido para a rejeição do
abortismo, do feminismo radical, da liberação de drogas, do gayzismo, do multiculturalismo, da guerra
assimétrica, da abolição das soberanias nacionais ou da destruição de todos os pilares culturais e religiosos
milenares em que se assenta a possibilidade de existência do próprio liberalismo. Quando essas bandeiras se
tornam as principais armas de propaganda do movimento socialista, só resta ao liberalismo opor-lhes uma
resistência muito fraca, fundada em argumentos de legalidade formal, ou então aderir a elas, na esperança
louca de parasitar a força retórica do discurso socialista para fins de imediatismo eleitoral. Nesta última
hipótese, cada miúdo triunfo eleitoral dos liberais torna-se mais uma vitória ideológica de seus adversários”.
[126]
Para Alain de Benoist (2010, p. 87): “Hoje, mais do que nunca, o burguês é a exceção que se toma por
norma, o particular que se apresenta como o universal. Hoje [...] lhe são alheios o gosto pelo inútil, a
gratuidade, o sentido do gesto, o gosto pelo dom; em suma, tudo o que poderia dar à presença no mundo
uma significação que excedesse a mera existência individual”.
[127]
Para essa analogia, inspiro-me no formidável livro da historiadora e antropóloga Chantal Delsol, La
Haine du Monde. Totalitarismes et Postmodernité (2016).
[128]
A palavra conservadorismo é de origem relativamente recente. Surge da pluma do pensador, político e
diplomata francês François de Chateaubriand, mais especificamente quando ele lança o periódico Le
Conservateur (O Conservador), em 1819, para propagar as idéias da restauração monárquica na França.
Depois, seu uso espalha-se para a Alemanha e Inglaterra na década de 1830 (Rabier, 2014).
[129]
Uma análise minuciosa do pensamento de um dos pais do conservadorismo norte-americano é
realizada por Alex Catharino, em Russel Kirk - O Peregrino na Terra Desolada (2015).
[130]
O historiador João Camilo de Oliveira Torres traça uma interessante distinção entre conservadorismo e
conservantismo: “O instinto de conservação é normal, e devemos procurar conservar o patrimônio e
substâncias nacionais. Mas devemos evitar o conservantismo isto é, a preocupação de conservar tudo, de
bom ou de mau, só por ser antigo. O antigo é belo e nobre; mas o velho pode ser caduco e decrépito (refiro-
me a realidades sociais e não indivíduos). Cumpre reformar e renovar, mas conservar também. Quem
condena o passado como tal, quem acha que uma idéia antiga é má, esquece-se de que a Idade Média nos
deu São Francisco e São Luís, a Suma Teológica e a Divina Comédia, as catedrais góticas e as corporações
de ofício. Em muitas coisas os séculos posteriores não superaram o medievo, eis tudo. Mas não vamos
morar em castelos, nem dispensar os computadores em nome dos pergaminhos góticos (Camilo Torres,
2016, p. 94)”.
[131]
O cientista político Noël O’Sullivan (1976) definiu o conservadorismo como uma filosofia da
imperfeição .
[132]
Para João Camilo de Oliveira Torres (2016, p. 91), as ideologias são idéias absolutizadas: “O mal do
mundo são as ideologias, isto é, a transformação de uma idéia em absoluto e a sua utilização em mito, no
sentido de Sorel, isto é, de uma constelação emocional movimentando as ações humanas”.
[133]
Para o filósofo político Richard Weaver (2012, p. 125): “O homem de cultura considera relevante todo
o passado, ao passo que o burguês e o bárbaro consideram relevante apenas o que está estreitamente ligado
à satisfação de seus apetites. Só os que são capazes de recordar têm um senso de ligação com os outros
[...]”.
[134]
Edmund Burke, em seu famoso livro Reflexões sobre a Revolução em França, já advertia acerca da
importância dos “métodos antigos e eclesiásticos de educação”: “Acreditamos tão firmemente na certeza
dos métodos eclesiásticos de educação que poucas mudanças foram introduzidas depois dos séculos XIV ou
XV, bem de acordo com a nossa velha máxima de nunca destruir totalmente, ou de uma vez só, aquilo que é
antigo. Chegamos à conclusão de que esses métodos antigos de educação são favoráveis à moralidade e à
disciplina e estamos certos de podermos aperfeiçoá-los sem destruí-los. Acreditamos que esses métodos são
capazes de guardar, aperfeiçoar e sobretudo de conservar o patrimônio da ciência e da literatura, como
tendo evoluído segundo os ditames da vontade divina. E antes de tudo, em decorrência dessa educação
gótica e monástica (ela realmente o é nos seus fundamentos), podemos fazer valer nossos direitos, muito
mais do que qualquer outra nação européia, a uma parte considerável dos progressos da ciência, da arte e da
literatura que iluminou e ornamentou o mundo moderno. Acreditamos que uma das causas principais desse
progresso tenha sido o fato de que nunca menosprezamos o patrimônio de conhecimentos que nos foi
legado por nossos antepassados” (Burke, 1982, p. 119).
[135]
Uma interessante análise, a partir de uma perspectiva conservadora, da decadência educacional e
cultural contemporânea é realizada pelo cientista político Allan Bloom, no livro traduzido no Brasil com o
título O Declínio da Cultura Ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade (1989).
[136]
Importante cardeal e teólogo católico inglês. Beatificado por Bento XVI, em 2010. Autor de várias
obras nos campos da filosofia, espiritualidade, história, literatura e educação. Escreveu uma obra essencial
sobre a educação superior, com o título The Idea of a University (1852).
[137]
Importante político e intelectual do partido conservador da Inglaterra, nas primeiras décadas do século
XX.
[138]
Um exame eminentemente filosófico do conservadorismo em suas dimensões religiosas e seculares é
realizado por Edward Feser no ensaio The Metaphysics of Conservatism (2006).
[139]
O estudioso de religião comparada Titus Burckhardt definiu, com belas e expressivas palavras, o
drama do homem conservador nos tempos atuais: “Desde a derrocada, não apenas da natureza hierárquica
da sociedade, mas de quase todas as formas tradicionais, o homem conscientemente conservador encontra-
se por assim dizer em um vácuo. Ele se acha só em um mundo que, com toda a sua escravidão opaca, jacta-
se de ser livre e, com toda a sua uniformidade compressora, jacta-se de ser rico. Gritam-lhe aos ouvidos que
a humanidade está-se desenvolvendo continuamente em sentido ascendente, que a natureza humana, depois
de se desenvolver por tantos e tantos milhões de anos, passou agora por uma mutação decisiva, que a levará
à sua vitória final sobre a matéria. O homem conscientemente conservador encontra-se só entre notórios
bêbados, é o único desperto em meio a sonâmbulos que tomam sonhos por realidade. Pelo entendimento e
pela experiência, ele sabe que o homem, com toda a sua paixão pela novidade, continua fundamentalmente
o mesmo, para o bem ou para o mal; as questões fundamentais da vida humana têm sido sempre as mesmas;
as respostas a elas são conhecidas desde sempre e, na medida em que podem ser expressadas em palavras,
têm sido transmitidas de geração em geração. O homem conscientemente conservador interessa-se por esta
herança” (Burckhardt, 2014). Disponível em: <https://fschuon.files.wordpress.com/2014/01/o-
homemconservador1. pdf> . Acesso em: 13/10/2016 .
[140]
Neste ano, explodiram, em vários países europeus, revoltas contra os sistemas políticos monárquicos.
[141]
Em seu tempo, Chesterton afirmou algo semelhante: “Os revolucionários fazem a reforma; os
conservadores apenas conservam a reforma. Eles jamais reformam a reforma, o que geralmente é muito
mais necessário” (2013, p. 184).
[142]
O gênio de Chesterton aponta para o caráter moderno do conservadorismo de Burke, ressaltando os
aspectos relativistas e historicistas da filosofia política do insigne pensador irlandês no livro O Que Há de
Errado com o Mundo (2013), mais particularmente na parte V, intitulada “O lar do homem”.
[143]
Para Thomas Molnar (1972, p. 200): “[...] na corrente histórica dos últimos dois séculos, o tipo que
chamamos conservador tem permanecido em geral na defensiva, tanto filosófica como historicamente [...]”.
[144]
Trata-se de um capítulo do livro The Constitution of Liberty (1960).
[145]
Baseio-me aqui na tradução em português do texto de Hayek Why I Am Not a Conservative, disponível
em: <http://ordemlivre.org/posts/por-que-nao-souconservador>. Acesso em: 15/10/2015.
[146]
O metafísico francês René Guénon (1945) observa que, ao constatar as formas mais visíveis da
desordem moderna, algumas forças pretendem executar uma reação. Neste momento, determinados
“agentes” entram em cena procurando confundir e amortecer os esforços reacionários. Esses agentes sabem
que o melhor meio de paralisar e tornar ineficaz essa reação é dirigi-la a alguma das etapas anteriores ou
menos avançadas do “desvio moderno”, estágios em que a desordem não havia ainda se tornado tão
manifesta, apresentando-se sob aparências mais aceitáveis (como, por exemplo, a defesa apaixonada por
parte de determinada direita conservadora de um sistema político e social liberal, individualista, capitalista e
democrático diante do perigo estatizante e coletivista do socialismo e do comunismo). Esse tipo de ação
neutralizadora visa impedir uma verdadeira reação tradicional, transmutando-a em um mero retorno a uma
situação de menor desordem, assim dissimulando o verdadeiro caráter dessa última, fazendo-a passar
erroneamente por uma situação de ordem.
[147]
Similar posicionamento é defendido pelo filósofo Marcello Veneziani (2005, p. 49): “Com respeito às
duas atitudes, do conservador e do destruidor, a tarefa do espírito tradicional é, porém, a de pôr a salvo os
princípios, e não os vestígios; e de empreender, aqui e agora, a obra de construção, sejam quais forem o
clima e os recursos disponíveis. Sem preocupação em apressar a morte das tradições cansadas ou murchas,
ou, vice-versa, em retardar seu desaparecimento definitivo. É essa a tarefa de quem está à altura da
fidelidade criadora”.
[148]
Acerca desse ponto, o historiador e filósofo tomista Rubén Bouchet (1980, p.12) formula uma pergunta
provocadora e instigante: é a religião uma instituição social ou a sociedade humana é uma instituição
religiosa?
[149]
Perron (1998) ainda destaca que, além do sacerdote e do guerreiro, o camponês representa um
arquétipo do homem tradicional, pois respeita as leis do cosmo: vivendo em conformidade com a natureza,
rechaça as mudanças bruscas, é, por essência, um conservador. A esquerda revolucionária e radical,
historicamente, perseguiu não apenas os sacerdotes e a nobreza como também os camponeses.
[150]
Lembro que, etimologicamente, a palavra tradição deriva do latim traditio, que, por sua vez, origina-se
de tradere, que significa transmitir, entregar.
[151]
O metafísico francês René Guénon (1945) chega a afirmar que é ilegítimo o uso da palavra tradição
para referir-se aos usos e costumes, porque induz a confundi-la com coisas meramente humanas e privadas
de sentido profundo. A rigor, o verdadeiramente tradicional encontra-se somente em realidades que
possuem um elemento supra-humano
[152]
Mais além da diversidade de tradições espirituais, culturais e religiosas há uma prototradição ou
revelação primitiva, uma tradição primordial, uma tradição constitutiva, conforme assevera o historiador
católico Rubén Bouchet (1980). O teólogo e filósofo católico tomista Josef Pieper (1994) utiliza o conceito
de “revelação original” para tratar sobre o tema da tradição no esclarecedor estudo Tradition: The concept
and its claim upon us. Em outro estudo, explica o sentido do termo revelação: “Mediante o termo revelação
se indica [...] o ato comunicativo original, [...] por meio do qual uma palavra de Deus (um theios logos) se
faz perceptível primariamente”. O pensador católico conecta a idéia de Revelação divina com a noção de
tradição: “Tradição sagrada é o processo – através das gerações – de entrega e recepção por meio do qual
aquela revelação que se deu um dia mantém-se presente” (Pieper, 1981, p. 131).
[153]
Para o sociólogo e jusfilósofo Francisco Elías de Tejada (2001), importante teórico do tradicionalismo
hispânico, de um ponto de vista ideal, a tradição é a instauração da mensagem e dos mandamentos de Cristo
como normas da vida social, restabelecendo nas circunstâncias do mundo atual aquele espírito que foi
próprio da cristandade medieval.
[154]
O historiador católico Roberto de Mattei considera que o coração da tradição está no próprio Deus:
“Neste mundo, quer se trate da vida moral ou da vida física, há coisas que passam e coisas que
permanecem. Mas apenas aquilo que reflete a lei natural e divina vive e merece viver na história. Aquilo
que é antinatural, que se afasta da ordem divina, é destinado a cair e se corromper. A Tradição é o elemento
incorruptível e imutável da sociedade. E só na Tradição é possível o progresso, porque nós não podemos
progredir e aperfeiçoar-nos nas coisas que passam, mas somente nas que permanecem. A Tradição não é o
passado, porque o passado não existe mais e não pode voltar. A Tradição é aquilo do passado que vive no
presente, aquilo que deve viver para que nosso presente tenha um futuro. Mas a raiz última de tudo o que é
e do que será é o próprio Deus, em quem passado, presente e futuro se fundem em um único ato infinito de
ser. [...] A Tradição é aquilo que é estável nas perenes alterações das coisas. É aquilo que é imutável no
mundo que muda e o é porque tem em si um reflexo da eternidade. É por isso que as palavras de Santa
Teresa ressoam em nossos corações como um manifesto da Tradição: ‘Tudo passa, só Deus não muda’.
Porque só aquilo que se funda e repousa em Deus merece ser conservado, transmitido e guardado. E, na
atual época de Revolução, onde poderiam os homens e os povos procurar a estabilidade e a paz, senão
Naquele que é o princípio e centro de tudo o que existe e que é sempre igual a si mesmo, na infinidade de
suas perfeições” (Mattei, 2013, p.13).
[155]
Martin Lings, estudioso de religião comparada, define, de maneira magnífica, o verdadeiro rosto da
civilização moderna: “Esta civilização não tem o direito de ser chamada como tal se vamos seguir falando
da civilização hindu, budista, cristã e islâmica, para tomar somente quatro dos exemplos mais importantes.
O objetivo de todas essas (e de seus exemplares) consistia em preservar a herança primordial do homem tal
como havia sido parcialmente restaurada pelas Revelações nas quais se baseiam suas respectivas religiões, e
atrasar o inevitável processo de degeneração. A civilização moderna é a antítese direta de tudo o que elas
reivindicavam, pois não é mais que um sistema organizado de subversão e degeneração. Em lugar de opor
resistência às tendências descendentes naturais do homem, aos distanciamentos dos princípios, ao avanço
do superior ao inferior, do interior ao exterior, abre-lhes os braços e fomenta-os em nome do progresso e da
evolução” (Lings, 2009, p. 70).
[156]
Revolução é uma palavra que deriva do latim revolutio – ato de revolver. É um conceito físico-político
que, sinteticamente, originariamente, tem um significado astronômico; é o movimento de translação de um
astro em relação a outro e, também, o retorno periódico de um astro a um ponto da própria órbita. Trata-se,
em suma, de uma noção que, num primeiro momento, referia-se ao movimento regular dos corpos celestes.
Contudo, a partir do século XVI, esse termo assume um sentido eminentemente político. Segundo Giacomo
Marramao (1995), trata-se da aplicação na esfera da política do esquema cíclico da revolutio. A difusão
deste modelo rotatório está intimamente vinculada à experiência da Revolução Inglesa, a chamada
Revolução Gloriosa de 1688. O citado autor ainda demonstra que o conceito de revolução, assim como o
conceito de progresso, relaciona-se com o processo de secularização. Há, em ambos os conceitos, uma
dimensão utópico-projetual que deriva da secularização da teologia judaico-cristã. A revolução é assim uma
espécie de mundanização e dessacralização da escatologia da tradição cristã, uma projeção no futuro
histórico-temporal da ideia de redenção: “[...] o tema da redenção é recuperado/transvalorado no da
libertação – isto é possível somente em virtude da futurização da história introduzida pelo par ao mesmo
tempo opositivo e complementar, progresso e revolução” (Marramao, 1995, p. 112). O autor também
lembra que o termo revolucionário foi cunhado justamente por Condorcet, pensador francês ao qual se deve
a primeira formulação doutrinária do conceito de progresso.
[157]
Pode-se constatar a existência de revoluções políticas, revoluções sociais, revoluções econômicas,
revoluções culturais, revoluções sexuais, revoluções comportamentais, revoluções religiosas, revoluções
psicológicas, etc.
[158]
Esta tese é desenvolvida pelo pensador católico tradicionalista Jean Ousset, no livro Pour qu’il Règne
(1959).
[159]
Uma visão mais detalhada dessas revoluções e seu caráter anticristão é realizada pelo professor Plinio
Corrêa de Oliveira, no excelente e importantíssimo livro Revolução e Contra-Revolução (1998).
[160]
Como se pode notar, primeiramente nega-se a autoridade da Igreja Católica, depois a autoridade de
Cristo e a própria religião cristã são colocadas em questão, posteriormente a autoridade de Deus é
rechaçada, e, por fim, contesta-se a idéia de que a pessoa humana foi criada à imagem de Deus, com o
anúncio por parte de alguns filósofos pós-modernistas da tese da “morte do homem”.
[161]
É preciso sempre ressaltar que a ideologia revolucionária possui duas facetas: a utópica e a anárquica,
ou melhor, um rosto liberal e outro socialista e progressista, como explica Thomas Molnar (1975, p. 156):
“A dominação adota duas formas principais, as únicas admitidas pelo compromisso revolucionário no
terreno ideológico: a liberal ao estilo de 1789, e a coletivista, ao estilo de Hegel e da esquerda hegeliana. O
liberalismo desorganiza a comunidade em nome de uma liberdade impossível, e o coletivismo destrói as
liberdades em nome de uma comunidade impossível também. O mundo posterior a 1945 é uma explosiva
mescla dos dois. Onde manda o comunismo, a liberdade brilha por sua ausência, e os ‘valores comunitários’
são um engana-bobos; onde reina a democracia, as comunidades se desintegram em nome de uma liberdade
falsa e aparente, fictícia e formal. Somente se compreendemos que essas duas formas pertencem à mesma
raiz espiritual [...] poderemos perceber a dominação ideológica com que nos debatemos”.
[162]
O sociólogo Jules Monnerot (1969), em seu espetacular trabalho Sociologie de la Révolution, assevera
que o nosso tempo se caracteriza por certa disposição psicológica difusa – o revolucionarismo.
[163]
A nova esquerda tem adotado esta linha doutrinária, conforme declara Jesús Trillo-Figueroa (2005, p.
111): “A nova esquerda cultural se perdeu na contracultura, empenhada em um estéril debate filosófico,
substituindo a prática política reformista pela prática revolucionária cultural mediante a subversão e a
transgressão”.
[164]
Segundo Juan Vallet de Goytisolo (1974), a revolução cultural é uma revolução silenciosa que é
implementada através de projetos legislativos, reformas administrativas ou fiscais, planificações, e por meio
da difusão de idéias engendradas abstratamente por quem pretende fabricar um mundo novo de acordo com
seus sonhos, prescindindo da ordem natural e da experiência do real transmitida pela tradição viva e
enriquecida pelas novas experiências e pelos novos conhecimentos reais.
[165]
Diante do exposto, pode-se notar que, para a direita tradicional, a história das sociedades humanas é
um longo processo de involução e decadência espiritual, em total antítese, portanto, com as posturas
progressistas e evolucionistas da esquerda.
[166]
Segundo o cientista político Mark Lilla (2016), os termos reação e reacionário surgem na história do
pensamento político na Europa no século XVIII. Durante o período jacobino da Revolução francesa,
qualquer agente ou força política que resistia às mudanças radicais trazida por esse acontecimento era
tachado como reacionário. Este termo adquiriu nesta época uma conotação moral negativa por conta da
propaganda e da agitação política dos revolucionários.
[167]
A reação é, em primeiro lugar, um imperativo biológico, uma luta contra o instinto de morte, como
acentua Armando Plebe em sua refinada análise filosófica desta temática, realizada na obra Filosofia della
Reazione (1971).
[168]
“El reaccionario auténtico” é o título de um texto escrito por Gómez Dávila para uma revista
colombiana em 1995.
[169]
Assim era chamado pelos seus amigos .
[170]
Utilizo, neste capítulo, a abreviatura GD para o sobrenome Goméz Dávila.
[171]
Trata-se de um comentário, uma anotação feita à margem de um texto.
[172]
Ayuso (2007, p. 810) destaca as diferenças entre o reacionário e o conservador, lembrando um
pensamento do grande escritor peruano Riva-Agüero: “Hay tan poco que conservar y tanto contra lo que
reaccionar” .
[173]
Haveria, deste modo, uma reação conservadora ou um mesmo um reacionarismo conservador? Para o
filósofo italiano Michele F. Sciacca (1974, p. 15), a posição tradicional cristã procura conciliar a renovação
com a conservação, superando a antítese conservadorismo e progressismo: “Basta ser integralmente cristão
para transformar qualquer situação, para recriar conservando e conservar renovando. Isso explica porque
uma consciência autenticamente cristã não pode colocar-se numa posição de ruptura nem frente à tradição,
como faz a revolução, nem frente ao progresso, como faz o conservadorismo. [...] adota a posição justa de
conservar renovando e de renovar conservando, que é dialética ou a relação que une tradição e progresso,
porque não há progresso verdadeiro e construtivo sem tradição e não há tradição viva e operante sem
progresso; [...]”.
[174]
Disponível em: <http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/16245-2015-12-13-18-42-22.html.>
Acesso em: 09/02/2016 .
[175]
Disponível em: <http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/16245-2015-12-13-18-42-22.html>.
Acesso em: 09/02/2016.
[176]
Trata-se de uma palavra de origem grega que significa conversão interior.
[177]
Conforme observa Miguel Ayuso (2007, p. 806): “[...] a denúncia do gregarismo, da fealdade e da
estultícia do mundo moderno são típicas de um reacionário”.
[178]
Termo da teologia cristã usado para designar aquilo que ultrapassa o natural.
[179]
O citado autor assinala que o termo contra-revolução é de origem francesa.
[180]
O pensador católico tradicionalista Joseph de Maistre, em sua clássica obra Considerações sobre a
França, destaca uma característica fundamental da contra-revolução: “[...] a que se chama contra-revolução
não será uma revolução contrária, mas o contrário da revolução” (Maistre, 2010, p. 277). Para o pensador
francês, a contra-revolução jamais terá os traços violentos e totalitários da revolução: “O retorno à ordem
não pode ser doloroso, porque será natural, e porque será favorecido por uma força secreta, cuja ação tudo
cria. Ver-se-á precisamente o contrário de tudo o que se viu. Em vez de comoções violentas, de rupturas
dolorosas e de oscilações perpétuas e desesperantes, uma certa estabilidade, um repouso indefinível, um
bem-estar universal anunciarão a presença da soberania” (Maistre, 2010, p.277).
[181]
Sobre a cristandade enquanto modelo inspirador para o combate contra-revolucionário, afirma Miguel
Ayuso (1993, p.749): “[...] a Cristandade foi a melhor e mais densa impregnação alcançada na história das
estruturas sociais e políticas pela mensagem bíblica e o magistério da Igreja”.
[182]
Devo esta passagem de um artigo de Jean Madiran a uma citação que se encontra no valioso livro La
Política, Ofício del Alma (2007), do jusfilósofo tradicionalista hispânico Miguel Ayuso.
[183]
Sandoval (1992) define, resumidamente, o arquétipo ideal do contra-revolucionário integral: a)
conhece a Ordem, a Revolução e a Contra-revolução em seu espírito, doutrinas e métodos; b) Ama a Ordem
e a Contra-revolução e detesta a Revolução e seus frutos; C) Constitui em eixo de sua vida inteira esse amor
e essa repugnância.
[184]
Em tempos como o nosso, levantar o estandarte da tradição é já um ato de heroicidade, como destaca
Marcello Veneziani (2005, p. 29): “Às vezes, nas sociedades dominadas por um espírito antitradicional, a
Tradição é a única verdadeira transgressão”.
[185]
Conforme argumenta Marcello Veneziani (2005, p. 163), a família é a metáfora universal da tradição:
“O espírito antitradicional se configura, com efeito, como parricídio. Livrar-se do pai é o programa de todo
pensamento antitradicional. A tradição nasce no seio da família. De pai para filho”.
[186]
Uma das organizações que mais tem se destacado na luta contra o petismo, o estatismo e o socialismo
é o MBL (Movimento Brasil Livre), que apresenta uma agenda política tipicamente liberal. Ao ler as
propostas aprovadas no primeiro congresso nacional realizado por este movimento, em novembro de 2015,
nota-se a preocupação com a defesa da economia de mercado, o livre comércio, a privatização, a
desburocratização e a redução de impostos. Destaco algumas propostas: fim da função social da propriedade
– a propriedade privada não pode ser relativizada; inserção plena da economia brasileira no comércio
internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas
econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia; revisão do capítulo econômico da
Constituição (adotar a economia de mercado: qualquer interferência do Estado deverá ser justificada e seus
resultados, posteriormente, avaliados); acabar com o limite de 30% de participação de capital estrangeiro
em veículos de imprensa; fim do voto obrigatório; fim do alistamento militar obrigatório; legalização do
homeschooling e apresentação do Projeto de Lei “Escola sem Partido” em legislativos estaduais e
municipais.
[187]
Semelhante plataforma apresenta o Vem Pra Rua, outro ator que teve um importante protagonismo nas
mobilizações e manifestações a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff. O Vem Pra Rua
define-se com uma organização suprapartidária que procura defender os valores democráticos e
republicanos: “[...] Vem Pra Rua convida os brasileiros a se unirem para continuar manifestando esta
indignação sempre que necessário, com o objetivo de resgatar a esperança seqüestrada pela corrupção,
exigir mais eficiência e transparência no gasto público e defender a redução da carga tributária e da
burocracia. Sonhamos com um Brasil em que cada cidadão possa viver dignamente do seu trabalho e ser
atuante na construção de uma sociedade próspera. País rico é aquele em que seus cidadãos não têm medo de
lutar por seus direitos, dentro da legalidade, respeitando o Estado de Direito. É onde a liberdade econômica
é estimulada e o Estado não é maior que o necessário, a fim de que o empreendedorismo e a livre iniciativa
gerem riquezas e oportunidades para todos” (Disponível em: <http://www.vemprarua.net/manifesto/>.
Acesso em: 23/10/2016). Levanta-se contra a impunidade dos poderosos da República, advogando pela
ética e transparência na política. Opõe-se a qualquer forma de autoritarismo e extremismo: “Acreditamos na
força do povo brasileiro, na sua capacidade inventiva, na sua generosidade e no seu trabalho – e num Estado
que garanta minimamente segurança, educação básica, saneamento básico e saúde pública para todos.
Queremos menos impostos e mais Brasil. Queremos uma sociedade que ofereça igualdade de oportunidade
a todos, sem distinção. Queremos mais concorrência e menos clientelismo. Quando o governo e os políticos
agem apenas em interesse próprio, impedem o desenvolvimento deste Brasil que todos merecemos. Esta é
uma distorção que cabe a nós, cidadãos brasileiros, corrigir. Somos a favor da democracia, da ética na
política e de um Estado eficiente e desinchado. Somos contra qualquer tipo de violência e condenamos
qualquer tipo de extremismo (separatismo, intervenção militar, golpe de Estado) e não compactuamos com
governos autoritários. E, assim, vamos clamar juntos por um Brasil ético, justo, próspero e com valores
sólidos. E, acima de tudo, por um Brasil unido!” (Disponível em: <http://www.vemprarua.net/manifesto/>.
Acesso em: 23/10/2016).
[188]
Além dessa multiplicidade de institutos e organizações, uma nova intelectualidade liberal e liberal-
conservadora tem despontado no cenário nacional. Cito aqui alguns nomes: o economista Rodrigo
Constantino, o filósofo Luiz Felipe Pondé, o jornalista Reinaldo Azevedo, o jornalista e arquiteto Percival
Puggina, o escritor Diogo Mainardi, o cientista político Bruno Garschagen, o publicitário Alexandre
Borges, o coordenador do MBL Kim Kataguiri, entre muitos outros.
[189]
O Príncipe imperial Dom Bertrand de Orléans e Bragança é trineto do imperador Dom Pedro II.
[190]
O cientista político Patrick Deneen trata sobre essa questão no livro Conserving America? Essays on
Present Discontents (2016).
[191]
As obras sociológicas e antropológicas de Oliveira Vianna e Gilberto Freyre, dois cientistas sociais
conservadores que precisam ser mais lidos por nossos direitistas, mostram essa realidade de uma maneira
incontestável.
[192]
O grande jusfilósofo tradicionalista José Pedro Galvão de Sousa chama atenção para o caráter
massificador e nivelador do capitalismo: “Por vários aspectos o capitalismo tornou-se um elemento de
massificação, suscitando, entre outros efeitos tendentes a este resultado, a produção em série, a conseguinte
formação da massa consumidora e a pressão exercida sobre esta pela propaganda para estimular o consumo,
donde a sociedade de consumo de massas” (Galvão de Sousa, 1973, p.58).
[193]
O filósofo político Jean-Claude Michéa, no excelente livro L’Empire du Moindre Mal: essai sur la
civilisation libérale (2007), esclarece, com grande riqueza de argumentos e dados, que o liberalismo é a
ideologia moderna par excellence.
[194]
Segundo o cientista político Arnaud Imatz (2016), a direita liberal-libertária e a esquerda pós-moderna
convergem na defesa da ideologia soft da contemporaneidade, cujos principais elementos definidores são a
moral secularista, a apologia das virtudes do mercado, a exaltação da democracia e dos direitos humanos, o
multiculturalismo e o cosmopolitismo.
[195]
A palavra símbolo origina-se do grego syn-ballein, que significa reunir, colocar junto.
[196]
Um corolário do princípio da ordem é a ética do dever: dos deveres morais da pessoa singular – de
carne e osso – para com Deus, para consigo mesma, para com a sua família e para com sua comunidade
(município, região e nação).
[197]
Destacam, ainda, os pensadores tradicionalistas brasileiros: “Que devam incluir-se no mundo hispânico
Portugal e o Brasil, é o que decorre de se acharem estas nações unidas à Espanha e aos povos de origem
espanhola numa comunidade espiritual e histórica. Já, nos Lusíadas, Camões (1525-1580) denomina os
portugueses ‘gente fortíssima de Espanha’ (Canto I, 31). O humanista André de Resende (1500-1573)
escrevia: ‘Hispania omnes sumus’. E Almeida Garret (1799-1854) dizia que todos os que habitam a
península hispânica devem ser chamados hispânicos. O vocábulo hispanidade, utilizado desde a antiguidade
(hispanitas, hispanitatis), foi restaurado pelos humanistas da Renascença e adquiriu maior sentido afetivo
na pena de Miguel de Unamuno (1864-1936)” (Galvão de Sousa, Lema Garcia e Teixeira de Carvalho,
1998, p. 496).
[198]
Sublinha, ainda, Galvão de Sousa (1973), que a faina civilizadora e evangelizadora dos missionários
cristãos no Brasil caracterizou-se, dentre outras coisas, pela abertura de escolas e universidades. Nesses
centros de ensino estudava-se o latim, a literatura clássica, o direito romano, e ensinava-se o catecismo aos
indígenas, muitas vezes mediante a língua natural dos silvícolas, como fazia o Padre Anchieta, ensinando
aos “curumins” de São Paulo de Piratininga e escrevendo para eles uma gramática da língua tupi. Por sua
vez, nas aulas de teologia, chegavam aos bancos universitários as grandes lições dos mestres de Salamanca,
Alcalá e Coimbra.
[199]
O filósofo Alberto Buela (2002) desenvolve a tese da existência de uma visão histórico-ontoteológica
do Ocidente em antítese à concepção moderna dessa civilização. Os traços mais significativos desse
Ocidente profundo são os seguintes: a) o indo-europeu como substrato lingüístico fundamental; b) a noção
de ser descoberta pela filosofia grega; c) a concepção do ser humano como pessoa vinculada à propriedade
privada, esta como espaço de expressão da vontade livre, núcleo de uma antropologia que tem origem na
cultura jurídica romana; d) o Deus transcendente, uno e trino, pessoal e redentor, em que a fé sem obras
nada vale, como contribuição mais significativa do cristianismo católico; e) a idéia de razão humana como
poder científico e tecnológico sobre o mundo e a natureza.
[200]
A palavra moderno deriva do latim modernus, que significa o que é novo, recente, atual. Relaciona-se
com as palavras moda e modo, do latim modus.
[201]
Os filósofos católicos tradicionalistas Claude Polin e Claude Rousseau (1997) defendem a existência
de uma Direita Eterna (droite éternelle).
[202]
Utilizo-me aqui de categorias da filosofia política de Eric Voegelin. O magistral pensador germânico
assim explica as conexões entre as diversas ordens da realidade: “O homem tem a experiência de participar
através da sua existência numa ordem do ser que não só abrange a si mesmo, mas também Deus, o mundo e
a sociedade. Esta é a experiência que se pode tornar articulada na criação de símbolos da ordem penetrante
do ser, tal como os previamente indicados maat egípcio, ou tao chinês, ou nomos grego. O homem
experiencia, outrossim, a ansiedade da queda possível desta ordem do ser, com a conseqüência da sua
aniquilação na parceria do ser; e, correspondentemente, ele experiencia uma obrigação de sintonizar a
ordem da sua existência com a ordem do ser. Finalmente, ele experiencia a queda possível e a sintonia com
a ordem do ser como dependente da sua ação, isto é, ele experiencia a ordem da sua própria existência como
um problema para a sua liberdade e responsabilidade. No âmbito da sociedade, a realização da ordem do ser
é experienciada como o fardo do homem” (Voegelin, 1998, p. 94).
[203]
Neologismo empregado pelo filosofo francês Jean-François Mattéi (2001).
[204]
Sobre a suposta defesa, pelos marxistas, da existência de uma ordem universal, esclarece Martinez
(1974, p. 24): “Não obstante, uma doutrina tão esquerdista como o materialismo dialético parece admitir a
vigência de uma ordem universal: para os marxistas tudo se desenvolve de acordo com leis dialéticas, dando
lugar à formação de tríades de teses, antíteses e sínteses. Mas estas leis são muito especiais e não
correspondem à noção clássica de lei como princípio universal e necessário. Toda lei tomada neste sentido
implica o princípio de não-contradição, segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser, ao mesmo tempo
e sob o mesmo aspecto. Mas o marxismo não reconhece este princípio (dialética, explica Lênin, é a teoria
de como os contrários podem ser idênticos), o que faz com que o universo concebido pelos marxistas seja,
em última análise, alegal. Porque a noção de lei inclui, como dissemos, a idéia de necessidade, de algo que
deve ser; [...]”.
[205]
Sem titubear, a filósofa feminista de esquerda Simone de Beauvoir afirmou certa feita: “A natureza é
direitista”, acrescentando: “[...] a natureza é um dos grandes ídolos da direita” (Beauvoir apud Martinez,
1974, p. 24).

[206]
Conforme explica o jusfilósofo Danilo Castellano (2010), a liberdade negativa é a liberdade exercida
unicamente com o critério da liberdade, ou seja, a liberdade sem critério algum. É a liberdade que se
identifica com o direito à autodeterminação absoluta. Esta liberdade, própria das ideologias modernas, é
indiferente aos fins e à ideia de natureza humana.

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